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Campbell, Ullisses
Suzane: assassina e manipuladora / Ullisses Campbell. - 2. ed. - São Paulo: Matrix, 2023.
336 p.; 23 cm. (Mulheres assassinas)
ISBN 978-65-5616-358-1
ISBN 978-65-5616-357-4 (coleção)
1. Richthofen, Suzane von - 1983-. 2. Criminosas - Brasil - Biografia. 3. Prisioneiras - Brasil - Biografia. I.
Título. II. Série.
23-85395
CDD: 364.1523092
CDU: 929:343.611
INTRODUÇÃO
CA PÍ TU LO 1
A SANGUE FRIO
CA PÍ TU LO 2
ENCONTRO DE ALMAS
CA PÍ TU LO 3
REAÇÃO EM CADEIA
CA PÍ TU LO 4
NATUREZA DA OCORRÊNCIA: LATROCÍNIO
CA PÍ TU LO 5
OLHAR GLACIAL
CA PÍ TU LO 6
OS MORTOS DE SUZANE
CA PÍ TU LO 7
A VIDA NA ESCURIDÃO
CA PÍ TU LO 8
UM BONDE PARA TREMEMBÉ
CA PÍ TU LO 9
QUALQUER MANEIRA DE AMOR VALE A PENA
CA PÍ TU LO 10
O TESTE DO BORDÃO
A RESSONÂNCIA DA TRAGÉDIA
Para a minha mãe, Doraci Campbell, meu pai, Evandro
Campbell (in memoriam), meus irmãos, Marcello,
Wellington e Michelle, e sobrinhos.
Gratulação eterna aos meus guardiões jurídicos
Alexandre Fidalgo
Juliana Akel Diniz
Agradecimentos especiais
Alvino Augusto de Sá - in memoriam (psicólogo)
Augusto de Arruda Botelho (advogado)
Beto Ribeiro (jornalista)
Cíntia Tucunduva (delegada de polícia)
Clarissa Oliveira (jornalista)
Eduardo Caamaño (escritor)
Fábio Martinho (jornalista)
Guido Palomba (psiquiatra forense)
Ivan Miziara (médico legista)
Jonne Roriz (fotógrafo)
José Giocondo (psiquiatra forense)
Luiz Marcelo Negrini Mattos (promotor)
Mário Sérgio Oliveira (advogado)
Paulo José de Palma (promotor)
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Romeu Tuma Jr. (advogado)
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Se o conhecimento que pode ser extraído dos crimes permite fazer o
bem, não há por que deixar de usá-lo. É até um modo de honrar as
vítimas.
Hélio Schwartsman
Suzane está queimada
O
meu primeiro contato com Suzane Louise von Richthofen foi no alvorecer
do dia 11 de agosto de 2016, uma quinta-feira. Na época, eu fazia uma
reportagem para a revista Veja. Ali, naquela manhã ensolarada, tive a ideia
de estender a pesquisa para escrever um livro sobre a presa lendária. O portão da
Penitenciária Feminina de Tremembé foi aberto cedinho e ela ganhou a rua,
radiante. Estava acompanhada de suas melhores amigas, Amanda e Vanessa,
outras criminosas do regime semiaberto. Alegando experiências negativas no
passado com jornalistas, ela não concede entrevistas.
Inspirado na icônica reportagem Frank Sinatra está resfriado, do repórter
Gay Talese, publicada na revista norte-americana Esquire, em 1966, decidi sair
em busca das pessoas próximas da mulher que planejou matar os pais a pauladas.
Talese tentava marcar uma entrevista com Sinatra. Os assessores do cantor
agendaram o encontro diversas vezes e desmarcaram em cima da hora, dando
sempre a mesma desculpa: Frank Sinatra está gripado. Sem qualquer contato
com o artista, o repórter fez um perfil dele em 55 páginas apenas entrevistando
os seus amigos e inimigos. Hoje, a reportagem de Talese é considerada pioneira
do jornalismo literário.
Para reconstituir a vida de Suzane dentro e fora do cárcere, entrevistei 56
presas que cumpriram pena junto com a parricida ao longo de dez anos, tanto no
regime fechado quanto no semiaberto. Conversei com 16 agentes de segurança
penitenciária lotados nas casas penais por onde a assassina famosa passou ao
longo de 16 anos de reclusão. Essas entrevistas foram fundamentais para
reconstituir a sua vida desde a primeira incursão na cadeia, em 2002.
Os irmãos Cravinhos também tiveram a vida esquadrinhada para compor as
suas histórias na narrativa. Cristian colaborou com oito entrevistas. Nesses
longos encontros, o criminoso contou com riqueza de detalhes como entrou no
plano sórdido de Suzane e Daniel e revelou até o que sentiu na hora de dar
pauladas em Marísia von Richthofen. Para escrever sobre os irmãos Cravinhos,
visitei a Penitenciária Masculina de Tremembé doze vezes e falei com quinze
detentos amigos dos dois assassinos confessos.
As vidas de Suzane e dos irmãos Cravinhos antes do crime foram
reconstituídas a partir de entrevistas com amigos da adolescência e com
parentes. Duas pessoas tiveram os nomes trocados a pedidos. A maioria dos
agentes carcerários de Tremembé e oito presidiárias colaboraram na condição de
anonimato.
O processo penal que condenou os três assassinos tem quase 6 mil páginas. O
material serviu como ponto de partida para a pesquisa. Uma peça jurídica dessa
envergadura tem um mundo de informações. Desde cartas trocadas entre Suzane
e seu ex-namorado até grampos telefônicos, além de dezenas de depoimentos.
Uma fonte rica de informações sobre Suzane é o seu processo de execução
penal, cujo acesso era liberado para consulta pública até maio de 2016. Nesses
autos, a parricida conta dos seus amores, suas angústias, o medo de sair na rua e
relata principalmente como lida com o crime que cometeu, confessando
motivações financeiras. Fala até dos planos para a vida em liberdade. Mas isso
tudo não foi suficiente para entender a cabeça da presa mais famosa do Brasil.
Em busca de respostas na seara psicológica, entrevistei doze profissionais
especializados em Psicologia Forense, além de psiquiatras estudiosos de mentes
criminosas. Esses especialistas foram fundamentais para me fazer compreender o
que leva uma menina bonita, inteligente e com toda a vida pela frente a dar cabo
dos próprios pais.
É difícil um leigo entender o universo complexo da Psicologia, a ciência do
comportamento e das funções mentais. Não entrava na minha cabeça, por
exemplo, como terapeutas escreviam com toda a verdade do mundo que Suzane
é “manipuladora”, “dissimulada”, “narcisista” e “egocêntrica” após ela olhar por
duas horas para dez pranchas com desenhos de tintas borradas. Depois de ler três
livros técnicos sobre a teoria de Rorschach, entrevistar oito psicólogos
especializados no exame e ser submetido ao teste, pude compreender que o
método é tão eficaz quanto envolvente. Imagens semelhantes aos desenhos de
Hermann Rorschach, que ilustram a abertura dos 10 capítulos do livro, são até
assustadoras.
Quem comete um crime de qualquer natureza precisa de advogados desde a
fase da investigação, passando pelo julgamento até a execução da pena. Uma
dezena deles me ensinou como funciona um Tribunal do Júri e principalmente
os meandros da execução penal, um ramo do Direito Criminal multifacetado.
Quatro promotores de Justiça e dois peritos forenses também enriqueceram o
trabalho.
A atualização deste livro passa pelas novidades nas vidas de Suzane e dos
irmãos Cravinhos fora da cadeia. Ao todo, me encontrei com Suzane três vezes.
Ela deixou claro não ter o menor interesse em fornecer informações para o livro.
Na última vez que a procurei, em abril de 2019, a criminosa estava na casa do
noivo, Rogério Olberg, em Angatuba, interior de São Paulo. Bati em sua porta e
quem atendeu foi a cunhada, Josiely Olberg, uma moça educadíssima. Josi, como
gosta de ser chamada, foi lá dentro e voltou minutos depois dizendo que Suzane
não podia falar. A justificativa: ela havia ficado o dia anterior na piscina com as
crianças e se esqueceu de passar filtro solar. Estava toda queimada de sol. No dia
seguinte, encontrei Suzane, pálida, tomando sorvete na praça central de
Angatuba.
Um esqueleto, mandíbulas, um cálice e uma flor
T
remembé (SP), sexta-feira, 6 de dezembro de 2013. O portão cinza-
medieval e azul de ardósia todo talhado em chumbo maciço da
Penitenciária Feminina Santa Maria Eufrásia Pelletier foi aberto às 9 horas
para o psicólogo Thiago Luís da Silva entrar. A pedido da juíza Sueli Zeraik
Oliveira Armani, o terapeuta tinha a missão de aplicar na criminosa mais famosa
do país um teste projetivo conhecido como Rorschach, cujo método induz o
indivíduo a revelar seu mundo privado ao ponto de expressar seus sentimentos
ocultos e os instintos mais primitivos da natureza humana. Thiago carregava na
mão direita uma pasta de couro preto e caminhava apressado pelo pátio com
vista deslumbrante para o bosque às margens do rio Paraíba do Sul, todo
arborizado por eucaliptos, palmeiras, samambaias e bromélias. Por cima dessa
paisagem era possível contemplar o infinito do firmamento graças aos acidentes
geográficos comuns naquela região serrana. Nas laterais e ao fundo da prisão
feminina não havia muralhas. O único obstáculo era um cercado de cinco metros
de altura feito de arame liso trançado em forma de losango, na parte de baixo, e
espiral de aço inox todo farpado com lâminas afiadas, no alto. Apesar de remeter
a um campo de concentração, o lugar em nada lembrava uma casa penal com
260 almas femininas presas nos regimes fechado e semiaberto.
A paisagem era bucólica. O silêncio, volta e meia, era quebrado ora pelo
canto de pássaros, ora pelo som horrendo do ferrolho do portão de acesso à rua.
De tanto aplicar exames criminológicos em bandidos, Thiago tornou-se habitué
no complexo de quatro penitenciárias de Tremembé, na região do Vale do
Paraíba, a leste do estado de São Paulo. Naquele dia, ele levava dentro da tal pasta
10 pranchas com as imagens abstratas usadas no exame de Rorschach. Em
Tremembé, o teste é indicado somente para assassinos que matam de forma
violenta pessoas da própria família, autores de crimes sexuais, pedófilos e quem
comete homicídios em série. Se bem aplicada, a avaliação revela como é a
organização básica da personalidade do criminoso, incluindo características da
afetividade, sexualidade, vida interior, recursos mentais, energia psíquica, traços
gerais e particulares do estado intelectual, além dos elementos sobre o caráter
que o indivíduo não deseja trazer à luz. Com esse exame, a juíza queria saber o
que se passava pela cabeça de Suzane Louise von Richthofen, 30 anos de idade na
época, doze depois de ela abrir a porta de casa na calada da noite para guiar os
assassinos dos seus pais.
O teste psicológico era necessário porque Suzane queria migrar para um
regime mais brando de prisão. Só um laudo de Rorschach poderia revelar se ela
estaria, de fato, arrependida da monstruosidade cometida no passado e,
principalmente, se havia o risco de voltar a matar quando pusesse o pé fora da
cadeia. Ou seja, a avaliação psicológica era fundamental para verificar a sua
aptidão para viver em sociedade.
Ansiosa à espera de Thiago, Suzane mantinha autocontrole das suas
emoções. Não precisou fazer nenhum esforço para disfarçar a angústia e o
nervosismo comuns àquele tipo de situação. Magra, solteira e muito bonita,
apresentou-se toda perfumada e com as unhas feitas ao psicólogo. Os cabelos
loiros-champanhe estavam soltos, brilhosos e esvoaçantes. Vestia uniforme de
presidiária: camiseta branca e calça cáqui. Mas o figurino pobre não escondia a
beleza do seu corpo longilíneo. O comportamento exemplar diante daquele
profissional seria fundamental para ganhar a rua em datas especiais. Suzane sabia
disso. Na época, a parricida estava privada de liberdade fazia uma década.
Thiago era um homem atraente. Moreno, 28 anos no dia daquele encontro.
Altura mediana, nem gordo, nem magro. Usava camisa social clara e calça jeans
justa e bem cortada. Cabelos escuros, repicados e penteados para o lado direito.
Ao entrar na sala, foi recebido por Suzane. Ela estava sentada, mas se levantou da
cadeira com sorriso aberto e olhar vívido para dar as boas-vindas ao psicólogo.
Estendeu a mão para cumprimentá-lo, fixando o seu olhar no dele. Thiago
correspondeu à saudação formalmente. O especialista acredita que a presidiária
havia ensaiado aquelas cenas, pois mantinha a postura ereta feito um robô e era
econômica nos gestos. Voz mansa e aveludada. Português corretíssimo na fala e
na escrita.
A sala onde o teste foi aplicado era ampla. Tinha uma mesa de tamanho
médio e duas cadeiras. A porta ficou aberta e lá de fora uma agente de segurança
vigiava discretamente o ambiente a uma distância suficiente para garantir
privacidade à paciente. Suzane estava em casa, literalmente. Ofereceu café e água
ao psicólogo. Ele agradeceu a gentileza, mas preferiu recusar a oferta.
Acomodou-se em uma das extremidades da mesa. Suzane puxou a cadeira e
sentou-se no lado oposto, cruzando as pernas, bem à vontade. Usou as duas
mãos para enrolar o cabelo por trás da cabeça e, habilidosa, deu um nó para
deixá-lo preso em um coque meio bagunçado. O gesto apurado chamou atenção
pela sensualidade. Em seguida, Suzane lançou mão da arma mais poderosa
disponível em seu arsenal: a sedução. Encarou Thiago firmemente, investiu na
sua graça de mulher e disparou um elogio sutil para quebrar o gelo:
— Como você é jovem! – disse com voz macia.
— Obrigado! – devolveu ele, seco.
Thiago conhecia a ficha corrida da moça em questão. Àquela altura, Suzane
já era uma figura lendária dentro das penitenciárias e fora delas. Na comunidade
carcerária de São Paulo, ela é célebre pelo potencial de seduzir com alta voltagem
quem lhe interessa, descartar sumariamente as pessoas quando a utilidade
termina e ignorar friamente quem não lhe traz proveito algum. O elogio feito ao
psicólogo, por exemplo, teve o único objetivo de conquistar simpatia, na
esperança de que o terapeuta fosse benevolente na aplicação do teste e
principalmente na hora de escrever o laudo e enviá-lo à juíza. Experiente em
ficar frente a frente com criminosos psicopatas, o profissional não caiu na
armadilha da moça de aparência frágil. Abriu a pasta, pôs sobre a mesa a
primeira das dez pranchas de Rorschach e explicou a dinâmica do teste. Suzane
observou atentamente o desenho, idêntico ao que abre este capítulo do livro. O
psicólogo pediu, então, que a paciente dissesse o que enxergava naquela figura
enigmática. Sem titubear, a assassina teria respondido:
— Um esqueleto, mandíbulas, um cálice e uma flor.
São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2002
As mãos ao volante do Gol dourado tremiam mais do que vara verde na noite
do dia 30 de outubro de 2002. Completamente desatinado, Daniel Cravinhos de
Paula e Silva, de 21 anos, já não possuía reflexo suficiente para parar o carro
quando o sinal fechava nas ruas de São Paulo. Dava freadas bruscas e acelerava
subitamente, elevando a tensão à sequência macabra por vir, protagonizada por
ele, sua namorada, Suzane Louise von Richthofen, de 18 anos, e seu irmão mais
velho, Cristian Cravinhos de Paula e Silva, de 26. Quando o carro chegou ao
bairro de Campo Belo, zona sul de São Paulo, faltavam 10 minutos para as 23
horas. Daniel estava fora de si, a ponto de quase provocar um acidente de
trânsito e pôr o plano a perder por causa do seu descontrole emocional. Suzane,
no banco carona, concentrada, percebeu a fraqueza de espírito do namorado e
interveio de forma ríspida.
— Pare o carro agora! – ordenou.
Daniel obedeceu ao comando imediatamente com outra freada repentina.
Desceu trêmulo. Quase não conseguia ficar de pé. Suava frio. Ao dar a volta pela
frente do veículo, agachou-se diante do capô e teve uma crise de tosse seca. Os
raios luminosos dos faróis evidenciavam a expressão de medo estampada na cara
de Daniel. Queria falar, mas a voz não saía. Respirou fundo, acendeu um cigarro
de maconha para se acalmar, soprou a fumaça e voltou ao carro, sentando-se
agora no banco do carona. Com tranquilidade, Suzane assumiu o volante e
dirigiu rumo à sua casa. No trajeto, deu uns tragos no baseado e aproveitou para
repassar as instruções aos irmãos Cravinhos. Cristian, no banco de trás, também
fumava maconha e ficou calado a maior parte do tempo. Quando explica algo,
Suzane tem o cacoete de repetir a última palavra da frase três vezes, como se
quisesse reforçar uma ideia.
— Vocês têm de entrar em casa sem fazer barulho! Tem de ser tudo muito
rápido, rápido e rápido! Não podemos ficar na casa por mais de meia hora.
Entenderam?
Tenso, Daniel ouviu as ordens da namorada sem dizer uma palavra. Cristian
tentou dissuadir o casal daquela ideia funesta:
— Por que vocês vão fazer isso? Ainda dá tempo de pensar no que estão
fazendo. Vocês vão acabar com a vida de vocês, com a minha e com a vida de
nossas famílias!
Suzane e Daniel ignoraram a quase evidente profecia de Cristian e seguiram
para o palco do crime. Ainda assim, ele continuava a ladainha que parecia não
ter fim. Cristian falava frases soltas, sem nexo, típico de quem está chapado:
— A morte é a morte. É a desaparição do ser vivo. Na minha opinião, nada
justifica o decesso. Não há nada que justifique, sabe? A morte é a morte. Matar os
seus pais não é justo.
— Cala a boca, Cristian! – irritou-se Suzane.
Em seguida, ela contra-argumentou:
— Não sei se é justo ou não. Só sei que enquanto não matá-los, não serei uma
pessoa feliz!
Por volta das 23 horas, o trio chegou à Rua Zacarias de Góis, 232, endereço
de Suzane. A via estava vazia e escura. Pairava o receio de serem vistos por algum
vizinho ou mesmo pelo vigia da cercania, Francisco Genivaldo Modesto Diniz.
Apesar de estar entretido assistindo à televisão na guarita a 300 metros dali, viu a
garota ao volante entrando na rua. Suzane embicou rapidamente o carro na
entrada da garagem e usou o controle remoto para abrir o portão basculante de
ferro, do tipo em que uma única chapa metálica sobe inclinando metade por
sobre a garagem e metade por cima da calçada da rua. Como o motor elétrico
funciona com mecanismo de contrapesos e cabos de aço, o movimento de
abertura foi rápido – levou oito segundos –, mas pareceu durar uma eternidade,
deixando o trio ainda mais tenso.
— Rápido! – gritou Daniel, alterado.
— Calma, está abrindo. E fala baixo! – ordenou Suzane, friamente.
Com o portão totalmente suspenso, o carro adentrou na garagem da mansão
dos Richthofen com os faróis apagados. A casa estava completamente escura.
Ainda dentro do veículo, feito líder, Suzane repassou os comandos parte a parte
com uma riqueza de detalhes impressionante. Em seguida, desceu do carro
sorrateiramente.
— Vou subir para ver se eles estão dormindo! Esperem aqui no carro até eu
voltar. Não façam barulho!
Suzane vestia calça de algodão cinza, blusa de moletom vermelha com
estampa de urso e sapato de camurça marrom. Contornou a piscina pela calçada
lateral e passou pelo jardim com plantas de porte médio diversificadas – entre
elas, espadas-de-são-jorge, dasilírios de folhas serrilhadas, finas e compridas,
agave, pacová e alguns cactos. No meio desse caminho havia uma placa baixa em
forma de caracol onde se lia em letras com motivos infantis: “Aqui mora gente
feliz”. Ao atravessar esse caminho verde, entrou calmamente pela porta da sala.
Subiu as escadas. No piso superior, seguiu pelo corredor escuro até alcançar o
quarto dos pais. Abriu a porta lentamente, sem fazer ruído. Manfred Albert von
Richthofen, de 49 anos, alemão radicado no Brasil, engenheiro, dormia à
esquerda da cama de casal. Marísia von Richthofen, de 50 anos, médica
psiquiatra, brasileira de José Bonifácio, interior de São Paulo, dormia no lado
direito. Ambos estavam sob um cobertor xadrez nas cores vermelha e branca.
Após se certificar de que o casal dormia um sono profundo, Suzane voltou à
garagem rapidamente, abriu a porta do carro e deu a ordem aos irmãos
Cravinhos:
— Estão dormindo. Venham!
Trépido, Daniel desceu do carro. Cristian, do banco de trás, levantou o
tampão de acesso ao porta-malas e pegou sob o carpete dois porretes de ferro
cilíndrico com as pontas dobradas feito pé de cabra, com formato idêntico a um
acessório de lareiras conhecido como atiçador, usado para espalhar brasas. A
arma foi construída por Daniel. O jovem foi tão meticuloso ao ponto de se dar ao
trabalho de fazer numa das extremidades do instrumento um cabo com
pequenas ondulações para dar mais aderência às mãos. Habilidoso em trabalhos
artesanais, preencheu a parte oca do instrumento com fragmentos de bálsamo,
uma madeira usada na construção de aviões de aeromodelismo, e um tipo de
massa epóxi, o que conferiu densidade à arma, ou seja, um poder mais letal.
Suzane abriu a bolsa e tirou três pares de luvas cirúrgicas e duas meias-calças de
microfibra anatômica e entregou aos irmãos Cravinhos. Deu o comando em tom
de ordem:
— Vistam isso! Não podemos deixar nenhum vestígio dentro da casa!
Mais tarde, em depoimento à polícia, Suzane e Daniel confessaram que, na
tentativa de não deixar pistas pela casa, o casal se inspirou na famosa série de
televisão CSI (Crime Scene Investigation). A ideia de usar a meia-calça para evitar
a queda de pelos e fios de cabelos dos irmãos pelo chão da casa e as luvas
cirúrgicas que impediriam o registro de digitais em maçanetas e corrimões, por
exemplo, saiu da maratona que o casal fez para assistir, em duas semanas, aos 43
episódios da primeira e segunda temporadas do seriado. O CSI mostra como
cientistas forenses desvendam crimes obscuros envolvendo mortes em
circunstâncias misteriosas e pouco comuns na cidade de Las Vegas (EUA). Saiu
desse seriado, também, a sugestão de figurino que os assassinos usaram na noite
do crime. Daniel vestia calça bege folgada, tênis branco e vermelho e camisa
cinza. Carregava uma mochila nas costas. Cristian optou por um figurino
camuflado de exército. Os dois usaram os acessórios repassados por Suzane. As
meias-calças foram postas por cima da roupa e na cabeça. Vestido para matar,
Cristian, ainda na garagem, decidiu desistir da empreitada e se justificou em voz
alta:
— Não vou! Não consigo! Não sou assassino!
— É tarde demais para desistir! E fala baixo, seu filho da puta! – retrucou
Suzane.
— Cris, se você não for, eu vou sozinho! – avisou Daniel.
Sabendo que o irmão não daria conta de matar duas pessoas sem a sua ajuda,
Cristian resolveu acompanhá-lo. No entanto, na expectativa de melar o plano
diabólico, o irmão mais velho bateu a porta do carro com força para tentar
despertar o casal Richthofen. A atitude irritou Suzane. Seguiram em frente. Cada
um dos Cravinhos tinha um porrete na mão. Dentro da mansão, Cristian fez
uma segunda investida para fazer tudo dar errado. Na sala, começou a pisar forte
no chão de madeira. Suzane perdeu a paciência novamente. “Que porra é essa
que você tá fazendo?!”, questionou ela. “Desculpa. Estou nervoso!”, justificou ele.
A sequência de barulhos poderia ter acordado os pais. Suzane pediu para o
namorado conter o irmão enquanto ela subia para conferir mais uma vez se
Manfred e Marísia não haviam despertado.
O plano do momento era assim: se o casal continuasse dormindo, Suzane
piscaria três vezes lá de cima a lâmpada da escada como sinal de ação. Ela entrou
no quarto escuro pisando na ponta dos pés. Lado a lado, Manfred e Marísia
dormiam o sono dos anjos. A jovem voltou para o hall da escada e acionou o
interruptor de luz três vezes, conforme o combinado. Ao abrir e fechar os
circuitos elétricos, Suzane dava ali, naquele momento, o comando definitivo para
os irmãos Cravinhos assassinarem os seus pais. Daniel foi o primeiro a obedecer.
Furioso e apreensivo, subiu a escada de 16 degraus distribuídos em dois lances
saltando de três em três. Cristian seguiu logo atrás. Assim que os irmãos
entraram na suíte, Suzane desceu as escadas e sentou-se no sofá vermelho da
biblioteca.
No quarto, Daniel se posicionou ao lado esquerdo da cama para matar
Manfred. Cristian ficou no lado oposto, perto de Marísia. O local estava escuro,
mas era possível ver o casal deitado, graças à iluminação indireta projetada do
corredor. Raios de luz vindos da rua pelos vidros transparentes da janela também
ajudavam a quebrar o breu. Por alguns segundos, os irmãos ficaram imóveis, em
silêncio, observando as vítimas respirando, entregues ao sono profundo. Naquele
instante, passou pela cabeça de Cristian a possibilidade de Daniel desistir por
falta de coragem. Ficou estático, olhando para o caçula. Decidiu desferir o
primeiro golpe só depois de Daniel.
Para desespero de ambos, Manfred, que estava deitado de lado, mexeu-se
lentamente na cama, virando de peito para cima. Repentinamente, o engenheiro
abriu os olhos e ficou cara a cara com o seu assassino. Numa fração de segundo,
Daniel trincou os dentes, mordeu o lábio inferior com força e ergueu os braços
para dar a primeira porretada na cabeça do pai da namorada. Suzane ouviu o
som da primeira pancada lá de baixo. Cristian foi tomado por um susto e agiu
imediatamente sobre Marísia. O casal não teve a menor chance de defesa.
O primeiro golpe em Manfred provocou afundamento na região parietal
direita do crânio, causando-lhe sofrimento agudo. O segundo atingiu a têmpora
anterior direita. Como os irmãos Cravinhos nunca haviam matado, tudo aquilo
era uma novidade horripilante para eles. A cada desdobramento da execução,
uma surpresa inesperada acontecia.
Em crimes envolvendo força bruta, por exemplo, é impossível se livrar do
sangue. Já nas primeiras cacetadas, o sangue da cabeça do casal esguichou em
Daniel e Cristian, respingando inclusive no rosto dos assassinos. Isso ocorre
porque o couro cabeludo é uma área muito vascularizada e há artérias
importantes sob essa camada espessa de pele.
Após as primeiras cacetadas, Manfred tentou escapar da morte sentando-se
na cama. Imediatamente, recebeu uma sequência de pancadas na cabeça e na
região do tórax o bastante para matá-lo em poucos minutos. Pelas contas de
Daniel, o engenheiro só morreu “mais ou menos” após a décima paulada.
Ao contrário do marido, Marísia agonizou muito mais antes de morrer.
Cristian começou os trabalhos acertando a médica levemente. O primeiro ataque
atingiu-lhe a cabeça de raspão, fazendo a mulher acordar desesperada a ponto de
ver o marido sendo assassinado. Marísia deu um grito abafado, mas alto o
suficiente para Suzane ouvir do piso inferior.
Para se livrar da trilha sonora que embalava a morte dos pais, Suzane
resolveu simplesmente tapar os ouvidos com as mãos. Cristian continuava a
bater devagar em Marísia. Em determinados momentos, o assassino fechava os
olhos para não ver as cenas de horror que protagonizava. Sem a visão, errava o
alvo e acertava a cabeceira da cama, arrancando lascas da madeira e produzindo
ainda mais barulho. Marísia tentou proteger o rosto com a mão direita. Os golpes
então passaram a quebrar os seus dedos.
Cristian estava com dificuldade para matar. Daniel pediu mais força ao
irmão. O incentivo extra deixou Cristian cego, potente e obtuso. A partir da
quarta porretada desferida na cabeça da vítima, a violência foi tão grande que a
ponta do ferro, dobrada em forma de L, ficou enganchada em sua calota
craniana. Apesar da atrocidade, para espanto dos Cravinhos, Marísia continuava
viva e se mexendo na tentativa de se livrar do seu algoz. Para desenganchar a
arma, Cristian afundou rapidamente o bastão no crânio da mãe de Suzane e
puxou fazendo um movimento brusco, espalhando massa encefálica pelo colchão
da cama. Tal qual um filme de terror, Marísia continuava viva.
Frenético, Cristian ergueu a arma e desferiu uma sequência de golpes ainda
mais violentos, desfigurando completamente a face da médica. O movimento do
porrete ensopado de sangue para cima e para baixo tingia o teto de gesso branco
de vermelho. A adrenalina daquela ação fazia Cristian gemer enquanto esfacelava
os ossos de Marísia.
Depois de cerca de 20 pancadas, a vítima ficou estática. Só então Cristian
parou, aliviado, e caiu deitado no chão, soltando o porrete no tapete. Daniel se
ajoelhou e, fatigado, deitou parte do corpo sobre o colchão da cama. Os dois
irmãos se entreolharam e trocaram poucas palavras:
— Acabou! – sussurrou Daniel.
Não havia acabado. Para surpresa dos Cravinhos, mesmo imóveis na cama e
banhados de sangue, os pais de Suzane não estavam mortos.
Repentinamente, o casal começou a emitir um som alto e medonho,
semelhante a um gargarejo. Segundo os médicos legistas autores do laudo
cadavérico, o ruído ocorreu porque o casal teve morte agônica. Como houve
lesão na base do crânio, o sangue escorreu para a nasofaringe, a parte mais alta
das vias aéreas, situada logo atrás do nariz e acima do palato mole. A nasofaringe
serve justamente para a passagem do ar das narinas à garganta, levando oxigênio
até a traqueia, brônquios e pulmões. Com essa região entupida por sangue,
Marísia e Manfred passaram a gargarejar por alguns minutos antes de morrer.
Os irmãos Cravinhos ficaram apavorados com aquela sinfonia fúnebre.
Cristian entrou em desespero e acendeu a luz, levando um susto com a imagem
iluminada à sua frente:
— Minha Nossa Senhora! – espantou-se.
— Olha só o estrago! – comentou Daniel.
— Que porra de barulho é esse? – perguntou Cristian.
— Não sei. Temos de fazer parar! – avisou o irmão.
No andar de baixo, Suzane percebeu que algo dava errado e correu até a
porta da suíte. Sem entrar no cômodo, perguntou se os assassinos precisavam de
ajuda. Para conter o grunhido das vítimas, Daniel pediu uma jarra à namorada.
Obediente, ela desceu até a cozinha e voltou com o recipiente, mas não entrou no
quarto. Deixou no chão da porta e voltou para o sofá da sala principal.
Daniel então pegou a jarra de cor alaranjada, usou a torneira da pia do
banheiro para enchê-la de água e despejou o líquido nos rostos irreconhecíveis
de Marísia e Manfred. O ruído não cessou. Pelo contrário, com o excesso de
líquido na garganta, o som aumentava.
— Faz essa merda parar! – gritou Cristian.
Depois de alguns minutos, Manfred finalmente se calou. No entanto, Marísia
continuava roncando. Cristian teve a ideia de pegar uma toalha branca no
banheiro e enfiar na boca da vítima até ela parar de emitir aquele som
inquietante. Depois de ter a traqueia obstruída, Marísia finalmente veio a óbito.
Minutos depois, Daniel teve um rompante de culpa. Pegou outra toalha, molhou
na pia da suíte e limpou calmamente o rosto de Manfred.
Quando a face da vítima estava sem sangue, aos prantos, Daniel fez carinho
nele. De joelhos, pediu perdão a Deus pela crueldade de seus atos e insistiu em se
desculpar em voz alta enquanto acariciava o rosto do cadáver:
— O que eu fiz, meu Deus?! O que eu fiz?! Perdão, Senhor! Perdão!
Marísia ficou tão deformada que era impossível limpá-la apenas com toalha.
Para amenizar aquela imagem repugnante, Cristian tomou providências. Desceu
até a metade da escada e pediu a Suzane que pegasse sacos de lixo. A garota foi
até a despensa e pegou uma unidade de cor preta e a entregou ao assassino, sem
entrar no quarto.
Em seguida, Cristian ensacou a cabeça da médica, dando um nó bem
apertado no pescoço para conter a água e o sangue que vertiam do corpo pelos
buracos do crânio.
Daniel foi mais delicado: cobriu a face de Manfred com uma toalha limpa. Ao
ver o cadáver do engenheiro coberto com tecido, Cristian resolveu imitar o
irmão e também estendeu uma toalha por cima do plástico envolto na cabeça da
mãe de Suzane.
Os Cravinhos revelaram depois, em depoimento, ter ocultado o rosto das
vítimas para que o irmão de Suzane, Andreas von Richthofen, de 15 anos na
época, não se deparasse com os pais completamente desfigurados.
De acordo com o laudo assinado pelos legistas André Ribeiro Morrone e
Antônio Carlos Ferro, do Instituto Médico Legal de São Paulo, Manfred e
Marísia morreram por meio cruel, vítimas de traumatismo cranioencefálico
causado por vários golpes aplicados por instrumento contundente. O exame
necroscópico feito na mãe de Suzane relata sofrimento antes da morte e emprego
de violência além do necessário para executá-la, provocando sofrimento extra.
Para os médicos, é um mistério Marísia ter resistido bem mais do que o
marido. Os legistas afirmaram ter havido sofrimento extra por causa das
congestões encontradas no fígado e nos pulmões das vítimas. Segundo a
necropsia, esse detalhe indica ter havido intervalo de tempo longo entre o início
da ação e a morte do casal.
Matar duas pessoas a pauladas não é tarefa fácil. É um trabalho desgastante
fisicamente e mentalmente. Na hora das porretadas, os irmãos Cravinhos
puseram para fora muita adrenalina. Depois de assassinar o casal von
Richthofen, a dupla estava esgotada e emocionada. Mas havia uma segunda parte
do plano para pôr em ação imediatamente.
Mesmo sujos de sangue, sob o comando de Suzane, que naquele momento
não despejou uma única lágrima pela morte dos pais, Daniel e Cristian
começaram a montar uma farsa na mansão: encenar um latrocínio (morte
seguida de roubo) cometido por ladrões profissionais.
Usando luvas, Daniel correu ao closet da suíte, abriu uma das portas e retirou
a tampa do fundo falso do armário. Dentro havia uma arma Rossi calibre 38 com
cano oxidado preto e cabo de madeira com capacidade para seis balas, mas
carregada com cinco. Ele pôs o revólver sobre a cama. Cristian achou melhor
colocá-la no chão, sobre o tapete, próximo à mão direita de Manfred, estendida
para fora da cama. Sempre citando cenas do seriado CSI, Daniel explicava que
tentava passar a ideia de uma reação do pai de Suzane ao suposto assalto.
E a bagunça na mansão dos Richthofen continuava. Cristian abriu duas
gavetas de uma cômoda dentro da suíte e jogou todo o conteúdo dela no chão.
Ao vasculharem a suíte, os irmãos Cravinhos acharam um porta--joias com mais
de 100 peças. Daniel pegou as doze maiores, acreditando serem as mais valiosas –
entre elas, um colar de pérolas, um pingente, braceletes e um par de brincos de
ouro puro com a letra M de Marísia – e as repassou imediatamente ao irmão. Na
sequência, espalhou as peças menores pelo chão para incrementar a cena do falso
assalto na mansão.
Depois de encerrar os trabalhos no andar de cima, os Cravinhos desceram
para, juntamente com Suzane, revirarem a biblioteca. Jogaram livros e revistas
pelo chão. Do armário baixo, Suzane pegou uma pasta estilo 007 de couro
marrom-escuro fechada com segredo numérico. Como sabia a combinação de
três números (953), ela abriu a pasta com facilidade e pegou envelopes contendo
8.000 reais, 5.000 dólares e 1.000 euros. Tudo em dinheiro vivo.
Daniel raciocinou rapidamente: se estavam simulando um assalto, não faria
sentido abrir a pasta acionando o segredo. Fechou imediatamente e, com uma
faca de cozinha, cortou a lateral para fazer crer que o dinheiro tinha sido
roubado pelo rasgo. Posteriormente, jogaram a pasta no chão com o lado cortado
virado para baixo.
Segundo o Ministério Público, pelo acerto feito entre Suzane e os irmãos
Cravinhos, todos os objetos de valor encontrados na casa, incluindo dinheiro,
ficariam com Cristian como recompensa pelo assassinato da mãe de Suzane.
Sendo assim, ele começou a esconder pelos bolsos da calça todas as cédulas
retiradas da pasta. Nessa hora, Suzane encontrou 300 reais na gaveta do
escritório do pai, que foram guardados imediatamente no cós da calça sem que
Cristian percebesse.
Para finalizar, o trio abriu todas as portas e gavetas dos armários de quase
todos os cômodos da casa. Só não entraram no quarto de Suzane e no de
Andreas. Quando acabaram, Daniel e Cristian trocaram de roupa. Colocaram as
sujas de sangue em uma sacola plástica. Apagaram todas as luzes da casa, exceto
as da sala principal. Eles já estavam na garagem indo embora quando se
lembraram dos bastões deixados na suíte. Daniel correu para pegar e os lavou na
piscina, guardando-os na sacola. Suzane começou a apressá-los para deixar a
mansão antes de chamar a atenção dos vizinhos. Para reforçar a tese de assalto,
Daniel teve uma ideia. Entrou novamente na casa, dessa vez pela janela, para
deixar marcas na parede e confundir a futura investigação policial.
O nervosismo dos Cravinhos antes do crime já havia se dissipado após o
assassinato. Ao entrarem no carro, Daniel e Suzane se deram um beijo longo e
seguiram às pressas para a casa de Cristian, na Rua Graúna, 422, no bairro de
Moema, onde morava com a avó. Esse trajeto, à noite, a partir da casa de Suzane,
dura doze minutos. No caminho, ao passarem pelo cruzamento da Avenida
Vereador José Diniz com a Rua Vieira de Morais, no bairro nobre do Campo
Belo, a um quilômetro e meio da cena do crime, Daniel parou o carro. Desceu e
jogou num contêiner de lixo a sacola contendo roupas, sapatos, bastões, luvas e
outros apetrechos usados no duplo homicídio. Depois, seguiram viagem.
Dentro do carro, minutos depois do crime, o trio já fazia planos para o
futuro. Suzane sonhava herdar a mansão dos pais e se casar com Daniel.
Imaginava que viveria certo período com dificuldades financeiras, pois ficaria
sem a renda familiar e os processos de sucessão de bens costumam se arrastar na
Justiça. Cristian ouvia tudo calado como se estivesse em transe. Daniel pensou
mais à frente. Sugeriu à Suzane vender a casa e, com o dinheiro, montariam um
negócio e empregariam o irmão. Assim, todos sairiam ganhando. Ela ficou de
pensar com carinho no assunto.
Na porta de casa, Cristian desceu do carro e desejou feliz aniversário à
Suzane, que faria 19 anos dali a quatro dias. Para comemorar a data e celebrar o
sucesso do plano de matar o casal Richthofen, Daniel e Suzane resolveram
terminar a noite bem ao estilo das tragédias de Nelson Rodrigues. Foram ao
Motel Colonial Palace, no bairro da Saúde. Na época, logo na entrada havia uma
frase definindo a filosofia do lugar: “Respondemos às exigências da vida moderna
preservando o charme e o bom gosto da tradição, tornando único cada um de
nossos clientes”. Suzane e Daniel eram assíduos do local. Sempre ficavam em
quartos baratos. Nesse dia, eles chegaram à recepção do motel à 1h36. Ela olhou
para a atendente e exigiu categoricamente:
— Quero a suíte presidencial!
Daniel estacionou calmamente o carro no box exclusivo, entrou de mãos
dadas com a namorada no quarto de luxo-cafona todo decorado com luz indireta
e suave nas cores vermelha, verde e roxa. A suíte tinha paredes brancas, sofá de
couro tipo marquesa, mesa de mármore, candelabros dourados e piso brilhoso de
tábua corrida. Uma fita de neon vermelha circundava o pedestal de sustentação
da cama. O teto solar móvel com vista para as estrelas dava um toque romântico
ao lugar. Outros atrativos: piscina térmica, sauna, banheira de hidromassagem,
ducha dupla, cachoeira e equipamento de som individual. Suzane planejou pagar
a noite especial com os 300 reais surrupiados do escritório do pai. O casal
assassino estava eufórico, sob a mais absoluta felicidade. Daniel tirou a roupa de
Suzane lentamente e despiu-se de corpo e alma. Beijaram-se longamente.
Tomaram banho juntos. Suzane se jogou nos braços do namorado e começou a
contemplar o que para ela seria o crime perfeito. Ao pé do ouvido, disse ao
amado transfigurada de amor:
— Agora, sim, a nossa vida vai acontecer de verdade!
Nus, seguiram para a banheira de hidromassagem. Depois foram se refrescar
na piscina aquecida com iluminação subaquática. Durante a fase de investigação
enfrentada pelo casal e até no julgamento, Daniel afirmou ter transado com
Suzane no motel. Não para comemorar o duplo homicídio, segundo sustenta até
hoje, mas sim para festejar o aniversário da namorada. Suzane nega ter feito sexo
naquela madrugada. Ainda na suíte, Daniel teve uma crise de pânico que, por
muito pouco, não estragou a noite. Acendeu um cigarro de maconha, pegou uma
lata de Coca-Cola no frigobar e começou a chorar, ao mesmo tempo que dizia
umas palavras proféticas à namorada:
— Nós seremos descobertos! Não tem jeito! Seremos presos! – disse ele aos
prantos, enquanto soprava a fumaça pelos ares.
Suzane o tranquilizou com palavras doces, algumas recomendações e um
toque de realidade, além de muito carinho:
— Calma, amor! Você é muito emotivo! Para de chorar! Você não fez nada
de mais! O pior já passou! Agora já era! O mais difícil você já fez! Agora é tudo
comigo! Tente apenas ser frio! Não se comporte como se tivesse matado alguém!
A tragédia atroz cometida algumas horas antes uniu ainda mais aquelas duas
criaturas. Daniel e Suzane ficaram por muito tempo abraçadinhos na cama, em
um frêmito de vida e sonho, provando uma tese rodriguiana: na adversidade, o
vínculo entre um casal se fortalece.
Assim como Daniel era o único homem para Suzane, ela era para ele a única
mulher em todo o universo. A cena de romantismo bizarra se desfez às 3 horas
da madrugada, quando o telefone celular de Suzane tocou, assustando o casal de
assassinos. Daniel deu um salto e perguntou, apavorado:
— Ai, meu Deus! Quem está te ligando?!
Dois pássaros, um coração, uma serpente e um
rato
A
ndreas von Richthofen abriu os olhos por volta das 9 horas da manhã no
sábado, 3 de julho de 1999, mas se recusou a sair de baixo das cobertas.
Virou-se de um lado para o outro na tentativa de esticar um pouco mais o
sono naquela manhã de inverno. Mesmo com a vista desfocada pela sonolência,
conseguiu enxergar um pacote grande embalado com papel de presente
repousado sobre o tapete colorido do quarto. Em um ímpeto, deu um pulo da
cama seguido de um grito e rasgou sem a menor cerimônia a embalagem fina
feita com muito esmero. Dentro da caixa havia um avião para prática de
aeromodelismo de um metro de comprimento, porém inteiramente desmontado.
Presente dos seus pais, Manfred e Marísia. Naquele dia, o garoto completava 12
anos. Com um pé na adolescência, a voz de Andreas já começava a engrossar.
Aos poucos, vinha perdendo interesse pelos brinquedos de criança, a exemplo de
carrinhos e bonecos. A miniatura de avião era movida pelo combustível
conhecido como glow, uma mistura de metanol com nitrometano; levantava voo
alcançando até dezoito metros de altura e possuía autonomia para ficar no ar por
até 20 minutos. Comandado por controle remoto, o avião foi projetado para
acrobacias de alto desempenho. Um sonho para quem passou a infância ouvindo
do pai as histórias de patriotismo do avô, um aviador alemão e combatente da
Segunda Guerra Mundial, cujo maior mérito foi bombardear o Reino Unido em
1940 e 1941. Manfred também tinha o mesmo nome de quem ele dizia ser seu
tio-avô, notável na Europa pela alcunha de Barão Vermelho, o maior piloto
alemão de caças militares de todos os tempos. Na Primeira Guerra Mundial, o
Barão abateu 80 aviões inimigos de seu país. Por causa dos méritos dos supostos
parentes na aviação, Manfred resolveu presentear o filho com o aeromodelo.
— Combater naquela época era uma atividade nobre e sofisticada. Quando a
munição do inimigo acabava, os combatentes rivais os esperavam se
reequiparem. Era um sinal claro de respeito aos adversários – contava Manfred
com orgulho para o filho.
Existia ainda um motivo particular para aquele presente especial. Andreas era
um garoto extremamente tímido e calado. Com problemas de relacionamento na
escola, enfrentava dificuldade de fazer amigos e passava as horas de lazer
trancado no quarto, solitário, entretido com jogos eletrônicos. O avião de
aeromodelo seria um estímulo para o adolescente sair de casa e interagir com
outros jovens amantes do esporte. Alegre como poucas vezes se viu, o menino
magro, cabelos loiros e rosto de traços finos, correu à sala de pijama abraçado à
caixa do avião com um sorriso estampado no rosto. Agradeceu aos pais pela
maravilha de presente. Embora festivo, o ritual de gratidão não teve beijos,
abraços nem qualquer outro tipo de calor humano. Foi frio, formal e distante,
como eram, aliás, as relações interpessoais na família. O distanciamento e a falta
de demonstração de afeto naquele lar, mesmo em momentos de comemoração,
era o traço mais forte da origem alemã dos Richthofen. Mas não havia nenhuma
sombra de dúvida: naquela manhã, o ambiente estava coberto de alegria e
Andreas sentia-se tomado por uma felicidade rara, essencial e profunda.
A tarde estava ensolarada e Andreas pediu aos pais que o levassem ao Clube
Escola de Aeromodelismo, no Parque Ibirapuera. Lá, um instrutor poderia
montar o avião e ensiná-lo a pilotar. Manfred e Marísia decidiram testemunhar
de perto o júbilo do caçula. Enquanto vestia o casaco, Marísia perguntou à
Suzane von Richthofen, de 15 anos na época, se ela queria ir:
— Vamos, filha?
— Nem pensar! – respondeu a garota, enquanto estudava alemão na mesa da
cozinha.
Por volta das 16 horas, o casal e o filho Andreas – agarrado ao seu presente –
entraram na luxuosa Chevrolet Blazer verde-metálico da família e seguiram para
o Ibirapuera, distante seis quilômetros da casa. No parque, ao ouvir o barulho
estridente dos aviões cortando os ares freneticamente, Andreas ficou em estado
de graça. Na porta da escola de aeromodelismo, havia dezenas de jovens e
adultos com controle remoto na mão conduzindo aviões, olhando para o alto. O
cenário deixou Manfred e o filho boquiabertos. Marísia, contudo, não parecia
nem um pouco fascinada com o ambiente tumultuado e a poluição sonora do
lugar. Encarregou-se de tomar uma iniciativa para se livrar daquele pandemônio.
Ao trombar com um homem carregando um aeromodelo nas mãos, foi prática e
objetiva e, de quebra, deixou escapar uma leve arrogância:
— Quem é o melhor professor desta escola?
O aluno anônimo apontou para um instrutor a cerca de 200 metros dali. Ele
controlava um avião vermelho e branco modelo T-25 com mais de um metro e
meio de envergadura. Vestia calça jeans larga, camiseta branca e um casaco azul e
amarelo, as duas cores da bandeira da Ucrânia. A roupa era exclusiva de atletas
competidores, na qual se lia “Campeonato Mundial de Aeromodelismo”. Marísia
chamou Andreas e Manfred para perto de si, aproximou-se do jovem instrutor e
fez uma síntese da sua demanda:
— Boa tarde! Meu nome é Marísia von Richthofen e esse é meu filho
Andreas. Ele ganhou de aniversário este avião. Gostaria que você montasse o
brinquedo e o ensinasse a pilotar. Me disseram que você é o melhor.
O instrutor pediu um minuto para aterrissar o avião na pista de asfalto. Tão
logo o aeromodelo taxiou, cumprimentou educadamente a família von
Richthofen.
— Obrigado pelo elogio! Não posso montá-lo agora. Mas se a senhora deixar
o avião comigo, amanhã pela manhã estará pronto para voar.
Marísia passou ao instrutor a caixa com mais de 100 peças do avião, acertou
o preço e marcou para voltar no dia seguinte, um domingo. Entusiasmado,
Manfred aproveitou para contar a ele as histórias dos seus supostos ascendentes
famosos na aviação. O instrutor simpatizou logo de cara com o alemão. Depois
de quase meia hora de conversa, o aeromodelista agradeceu ao casal e já se
preparava para decolar novamente o protótipo de aeronave, quando foi
interrompido mais uma vez por Marísia:
— Desculpe. Como é mesmo o seu nome?
— Daniel Cravinhos – respondeu o rapaz.
Aos 19 anos, Daniel Cravinhos de Paula e Silva não era apenas o melhor
instrutor de aeromodelismo da pista do Ibirapuera. Com 16, o atleta ficou em
quinto lugar no quesito acrobacia da categoria juniores no Mundial de 1998,
realizado em Kiev, capital da Ucrânia, numa disputa com mais de 500
competidores de 120 países. Foi lá que o piloto ganhou o casaco exclusivo com as
cores da bandeira ucraniana. Para se ter uma ideia, nesse páreo internacional, o
atleta brasileiro atrás dele no ranking terminou em quadragésimo lugar.
Além de bom competidor, Daniel ficou famoso pela habilidade com as mãos.
Era um dos poucos aeromodelistas a conseguir montar aviões a partir de plantas
americanas e inglesas. Considerado caprichoso no acabamento dos modelos, ele
sempre estava cheio de encomendas. Para trabalhar com esse esporte, o jovem
montou um ateliê no quintal da casa dos pais e chegava a cobrar entre 500 e
3.000 reais em valores da época por um protótipo feito desde o desenho das
peças até a pintura da fuselagem, passando pela montagem dos motores. O preço
variava de acordo com o modelo.
Daniel também era talentoso no conserto de controles remoto. Na arte de
pilotar, o atleta chamava atenção pelas manobras arriscadas, fazendo o avião dar
piruetas no ar bem próximo do chão, arrancando aplausos de quem costumava
assistir às suas performances. Com todos esses predicados, construir o avião de
Andreas seria tarefa corriqueira. Ao chegar em casa, à noite, Daniel armou o
presente do garoto em menos de meia hora e ainda incrementou o modelo com
peças extras, acessórios e cores exclusivas.
Na manhã do domingo, Andreas acordou ansioso. Tomou café às pressas e
pediu aos pais para levá-lo ao parque novamente. Marísia se lembrou de quão
tumultuado era o Ibirapuera aos domingos e concluiu não estar disposta a um
sacrifício tão grande. Não saía da cabeça da médica o som irritante dos aviões
comandados do chão. Já prevendo que Andreas passaria a frequentar o parque
todos os finais de semana para ter aulas com Daniel, Marísia pediu à Suzane uma
gentileza:
— Minha filha, por favor, vamos levar o Andreas para aprender a pilotar o
avião? Tem muitos jovens da sua idade no parque. Você vai gostar.
— Jamais! – respondeu Suzane, cortante, enquanto tomava o café da manhã.
Manfred nasceu em 1953 na cidade alemã de Erbach, num castelo às margens
do rio Danúbio. No ano seguinte, a família se mudou para o município de Santa
Cruz (RS). Em 1970, seguiu para São Paulo. Quatro anos depois, entrou no curso
de Engenharia Civil na Universidade de São Paulo, onde conheceu uma
estudante de Medicina de ascendência libanesa, Marísia, com quem se casou em
1979. Em 1983, teve a primeira filha. Manfred mantinha hábitos da cultura alemã
em casa. Aos domingos, por exemplo, ele levava a sério o que os alemães
chamam de Ruhetag, o dia do descanso. O primeiro dia da semana era marcado
por um silêncio absoluto. O único som ouvido na mansão dos Richthofen era
música clássica e mesmo assim bem baixinho. A família também cultivava o
hábito típico da sua terra natal de deixar as janelas sempre fechadas, mesmo em
dias de sol.
Uma entrevista com Manfred feita na década de 1990 pelo repórter Claudio
Júlio Tognolli, do finado Jornal da Tarde, ajuda a revelar um pouco os hábitos da
família. O jornalista ligou para o engenheiro e marcou um encontro para fazer
um perfil do homem que poderia ser parente do piloto e herói de guerra Barão
Vermelho. Antes de receber em casa a equipe de reportagem, na manhã do dia 1o
de março de 1996, Manfred exigiu que o repórter e o fotógrafo José Diório
jogassem as suas credenciais de jornalistas por debaixo do portão. O engenheiro
devolveu os crachás meia hora depois e abriu o portão armado com uma pistola
semiautomática Mauser C96. A reportagem com o pai de Suzane foi publicada
no dia 31 de março de 1996.
Manfred costumava beber uísque caro em casa todos os dias, inclusive nos
finais de semana pela manhã. Geralmente, tomava a primeira dose quando
começava a ler relatórios do trabalho no sofá da sala. Engenheiro competente,
ocupava o cargo de diretor de engenharia da Dersa (Desenvolvimento
Rodoviário S/A), empresa de economia mista com patrimônio líquido de 1,4
bilhão de reais, administrada pelo governo de São Paulo. Manfred era
responsável pela construção do primeiro segmento do anel viário de 176
quilômetros de extensão ao redor da Região Metropolitana de São Paulo,
conhecido como Rodoanel. O trecho foi inaugurado pelo então presidente
Fernando Henrique Cardoso. No palanque badalado havia uma dezena de
autoridades, entre elas o governador Geraldo Alckmin, além de Manfred. Essa
cerimônia ocorreu onze meses antes de ele ser assassinado. Mais tarde, em
investigação no âmbito da Operação Lava Jato, descobriu-se que a Diretoria de
Engenharia da Dersa era a base de um propinoduto de 40 milhões de reais
escoados de um cartel formado por empreiteiras diretamente ligadas à
construção do Rodoanel. O dinheiro, segundo o Ministério Público, abastecia o
caixa 2 do PSDB.
Orgulhoso do Rodoanel, Manfred costumava dizer a quem estivesse ouvindo
que a “sua obra” iria melhorar o trânsito caótico de São Paulo. Naquele domingo,
o engenheiro largou a papelada do Rodoanel e resolveu levar o filho ao parque.
Prepotente como uma autoridade pública, exigiu a companhia de Suzane. Afinal,
a incumbência de acompanhar Andreas nas aulas de aeromodelismo ficaria com
ela. Suzane, porém, batia o pé se recusando e Manfred lançou mão da
supremacia paterna:
— Venha conosco! É uma ordem!
Sem saída, a garota largou o café pela metade e subiu contrariada até o quarto
para se arrumar. Marísia ficou em casa. Manfred levou os filhos ao parque e
carregou consigo uma garrafa de uísque escocês Glenlivet 12 anos. Enquanto
dirigia o carro, falava com Suzane:
— Vou te apresentar o professor que a sua mãe contratou para dar aulas ao
seu irmão. Na próxima vez, vocês já vêm sozinhos.
— Que saco! – resmungava Suzane. Andreas seguia calado.
O céu estava limpo na manhã daquele domingo. A bagunça do dia anterior
no Ibirapuera se repetia em dobro. A muito custo, os três chegaram à escola de
aeromodelismo. Daniel já os aguardava próximo à pista com o avião de Andreas
pronto para voar. O garoto deu pulos de alegria e ria pelos cotovelos. Daniel
começou a lhe dar instruções básicas e Manfred o interrompeu para apresentar
Suzane ao instrutor:
— Daniel, essa é a minha filha Suzane. É ela quem vai trazer o Andreas para
as aulas de aeromodelismo.
Foi impossível Daniel não reparar na beleza da jovem. Suzane tinha um olhar
vivo, doce e penetrante. Vestia bermuda jeans curta e blusa cor-de-rosa. Mas a
garota não deu nenhuma trela para o aeromodelista. Daniel tinha estilo nerd.
Baixinho, corpo franzino, lábios finos, nariz grande, queixo proeminente e olhar
caído de peixe morto. Para o grupo do Ibirapuera, ele ainda era virgem naquela
época. A suspeita tinha fundamento. Os atletas de aeromodelismo frequentavam
prostíbulos toda semana. Daniel era o único a se esquivar da luxúria. Quando os
colegas perceberam o interesse dele em Suzane, houve risos de zombaria.
Enquanto isso, ela virava a cabeça para os lados como se procurasse por algo ou
alguém, até se deparar com o aeromodelista Vinícius Soares, amigo de Daniel.
Com 17 anos, chamado de Vinas pela turma do parque, era o galã do Clube de
Aeromodelismo. Bonito como galã de novela, chamava a atenção de todas as
garotas e despertava ciúme na galera. Suzane ficou encantada com Vinas.
Manfred percebeu a troca de olhares entre a filha e o bonitão e resolveu cortar:
— Filha, venha cá! Esse aqui é o Daniel! Ele é o instrutor do seu irmão.
Com sorriso angelical e rápido beijinho no rosto, Suzane saudou Daniel com
voz meiga. O aeromodelista viu na garota um quê misterioso. Mas logo ele se
convenceu: aquela boneca bela e rica para os padrões dele era um sonho
impossível. Manfred tentava forçar uma amizade entre a filha e Daniel. O
alemão, porém, jamais imaginaria que, ao promover esse encontro, naquela bela
manhã de domingo, em um dos maiores cartões-postais de São Paulo, ele estava,
na verdade, assinando a própria sentença de morte. Manfred unia as duas
pessoas que, dali a três anos, estariam planejando de forma obcecada assassinar
friamente ele e sua esposa.
Suzane começou a conversar com Daniel, mas deixou claro logo de cara não
vê-lo como um possível namorado. Nas primeiras prosas, ela quis saber quem era
o tal Vinas. Daniel passou a ficha do rapaz, pontuando inclusive o fato de o
amigo ter uma namorada. A informação não foi suficiente para ela desistir do
piloto de olhares sensuais. A princípio, Vinas correspondeu aos encantos de
Suzane com a única intenção de turbinar seu currículo de galanteador.
As horas foram passando. Enquanto Suzane exercia a sedução para tentar
conquistar Vinas, Daniel ensinava Andreas a pilotar o avião. Manfred conversava
na lanchonete com o pai do instrutor, Astrogildo Cravinhos, um homem de 55
anos na época, cujo hábito era apresentar-se como juiz, apesar de ser, na verdade,
escrivão do Fórum João Mendes, no Centro de São Paulo. Ao falar com Manfred,
Astrogildo bebia cerveja e usava a empáfia de homem da lei. O engenheiro
ofereceu-lhe uísque, e o pai de Daniel descartou a cerveja imediatamente.
Perderam a hora bebendo e conversando sobre filhos, Rodoanel, mulheres e
aviação.
Por volta das 15 horas, Marísia apareceu no parque para levar a família à
churrascaria. A essa altura, apesar de ter desdenhado do programa dominical
mais cedo, Suzane não queria sair dali por nada deste mundo. Estava encantada
com o cenário de céu azul cortado por aviões coloridos, e com a sensação ímpar
de liberdade que tomava conta do seu espírito. A garota corria pelo gramado de
braços abertos como se fosse livre tal qual um pássaro no céu. Teve uma sensação
estranha e tão curiosa quanto inexplicável. Parecia começar a viver, de verdade,
naquele exato instante. Repentinamente, a autoridade dos pais a fez voltar para o
mundo real.
— Suzane, vamos embora agora! – esbravejou Manfred.
Ela caiu em si e sumiu da vista de Daniel.
Na semana seguinte, Suzane estava no parque com o irmão. Os dois, aliás,
ficaram assíduos no Clube de Aeromodelismo. Era período de férias escolares e
Andreas fazia aula praticamente todos os dias. Numa tarde de calor insuportável,
Vinas resolveu tirar a camisa para aliviar a temperatura elevada do ar. Suzane
ficou ainda mais interessada ao ver o corpo musculoso do piloto. A namorada de
Vinas raramente dava as caras no Ibirapuera. Suzane aproveitou essa ausência
para investir pesado pela primeira vez no galã. Aproximou-se e fez um pedido
com voz infantil:
— Sempre quis aprender aeromodelismo. Você me ensina a pilotar?
— Claro!
Segurando o controle remoto com as duas mãos, de pé, Vinas se posicionou
atrás de Suzane e deu o equipamento a ela. O avião estava no ar. Suzane segurou
o controle enquanto o rapaz a abraçava por trás. Tão logo a aeronave pilotada a
quatro mãos pousou, Suzane se virou para arriscar o primeiro beijo. Para sua
surpresa, Vinas esquivou-se e justificou a recusa:
— Suzane, tenho namorada. Não vou sacaneá-la.
— Só um beijo! – insistia ela.
— Não.
— Por favor! – implorou.
— Não quero! – respondeu ele, definitivo.
A recusa de Vinas não foi suficiente para Suzane esquecê-lo. Só parou de
investir nele quando a tal namorada, tão linda quanto ela – ou até mais –, passou
a frequentar o parque para marcar território. Rejeitada, Suzane finalmente jogou
a toalha. A partir dessa frustração, passou a olhar para Daniel com outros olhos.
Em uma tarde de agosto, já próximo do pôr do sol, sentados perto da pista dos
aviões, começou a fazer perguntas sobre o instrutor:
— O que você faz além de dar aula de aeromodelismo? – ela quis saber.
— Eu tenho uma oficina onde monto aviões. E você?
— Estudo. Meu sonho é ser diplomata.
A conversa fluiu e o casal nem viu o tempo passar. Andreas aprendeu
rapidamente a pilotar e a fazer acrobacias com o seu avião. Para se fazer notado
por Suzane, Daniel também usou a estratégia de pilotar a quatro mãos.
Perguntou se a jovem queria aprender. A menina fez sinal positivo com a cabeça.
O instrutor então lhe passou o equipamento, mas fez questão de segurar junto.
Ao contrário de Vinas, Daniel foi respeitoso. Limitou-se a tocar as mãos de
Suzane com as suas num gesto delicado.
Depois disso, as coisas passaram a acontecer aos poucos, meio à revelia da
vontade de um e de outro. Já se haviam passado alguns meses e o laço de união
entre os dois só se fortalecia. Mas não havia evoluído a ponto de ocorrer um
beijo, muito por causa da timidez excessiva de Daniel. Eles andavam grudados
feito amigos, quando, em novembro de 1999, o destino se encarregou de juntá-
los de forma categórica.
Haveria uma competição de aeromodelismo em Campinas no fim de semana
e Daniel participaria como atleta. Pensando na companhia de Suzane, o piloto
teve a ideia de convidar Andreas, o seu pupilo. Em casa, o adolescente pediu
permissão aos pais para assistir ao seu treinador competir no interior de São
Paulo. Manfred se comprometeu a levá-lo, mas Marísia foi contra porque a nova
mansão da família Richthofen estava em fase final de construção, e justamente
naquele fim de semana o casal teria de inspecionar a obra para acertar os detalhes
finais do acabamento. A família morava em uma casa modesta de três quartos,
com paredes envelhecidas e portão enferrujado, num terreno de 300 metros
quadrados, na Rua Barão de Suruí, Vila Congonhas. A casa nova era imensa e foi
erguida num terreno de 1.000 metros quadrados e comprado pela família à vista
por 600 mil reais (valor corrigido) da metalúrgica Kanthal Brasil. O novo
endereço ficava a dois quilômetros da atual residência, num bairro mais nobre, o
Campo Belo. Manfred e Marísia não se desfizeram da casa antiga e gastaram
quase 1,5 milhão de reais na construção da mansão, na qual viveriam somente
por três anos.
Para liberar a viagem de Andreas a Campinas, Manfred impôs uma condição:
Suzane teria de acompanhá-lo. Ela aceitou de pronto. Por cautela, crendo que o
pai de Daniel realmente fosse um juiz, o engenheiro ligou para o falso
magistrado e fez uma série de recomendações, pois Suzane e Andreas nunca
haviam viajado sozinhos. Astrogildo prometeu cuidar de Suzane e Andreas como
se fossem seus filhos. Manfred ficou aliviado. A viagem a Campinas era um bate-
volta e foi feita no Maverick prata envenenado de Astrogildo. Na ida, ele
conduziu o carro e Daniel seguiu sentado ao seu lado. Atrás, estavam Suzane e
Andreas.
Na apresentação esportiva, Daniel se empenhou nas acrobacias com o seu
avião para vencer a competição e impressionar Suzane, mas ele ficou em terceiro
lugar. O aeromodelista não precisava de troféus ou medalhas para chamar a
atenção da moça meiga e delicada. Àquela altura dos acontecimentos, ela já
estava completamente envolvida emocionalmente. Para embarcar no jogo de
sedução de Daniel, Suzane recorria à voz infantil anasalada quando se dirigia a
ele e andava pelo gramado da pista dos aviões dando galopes, sacudindo a
cabeleira ao vento. Daniel correspondia com excesso de zelo. A todo momento
perguntava se estava tudo bem ou se a garota precisava de algo. Esse cuidado era
estendido a Andreas. O adolescente via em Daniel um misto de melhor amigo,
cúmplice, herói, parceiro e irmão. Sempre que o piloto de aeromodelo se
mostrava diligente, Andreas fazia um comentário elogioso com a irmã.
— O Daniel é muito gente boa, Suzane. Ainda por cima é uma fera no
aeromodelismo.
— É verdade! – concordava ela, jogando charme para o treinador o tempo
todo.
Havia outro forte motivo para Daniel se mostrar preocupado com os irmãos
Richthofen. Nessa época, Suzane havia acabado de completar 16 anos e Andreas
estava com 12. Daniel era maior de idade – tinha 18 anos –, estava prestes a
completar 19 e já se sustentava com a atividade de aeromodelismo.
Espontaneamente, o piloto era cativante e querido, apesar de ser excessivamente
inibido e reservado. Em campeonatos, ajudava os atletas concorrentes, algo raro
em esportes de competição envolvendo vaidade. Tinha o hábito de falar pouco,
apesar de ser enturmado e bastante solicitado pelos amantes de aeromodelismo.
Em Campinas, Andreas virou uma espécie de mascote e Daniel assumiu com
empenho o papel de irmão mais velho, sentindo-se responsável pelo adolescente.
Suzane ficava maravilhada com aquele carinho fraternal dispensado ao caçula.
Na volta para casa, dentro do Maverick, alguns lugares foram alterados.
Andreas viajou ao lado de Astrogildo e Daniel veio atrás com Suzane.
Extrovertido e brincalhão, Astrogildo chamava o casal de pombinhos. Suzane
ficava corada de vergonha e Daniel soltava sorrisos amarelos. No final da tarde,
já no meio da viagem de retorno, começou a escurecer. Fatigado, Andreas
apagou. Suzane e Daniel conversavam baixinho coisas da vida sentimental. Ele
investigava a vida amorosa da moça:
— Você tem namorado? – ele quis saber.
— Não. E você? – devolveu.
— Também não.
Sentados lado a lado, face a face, Daniel e Suzane se conheciam cada vez mais
e melhor dentro daquele carro de motor barulhento. A proximidade do rosto de
Suzane fez Daniel ver de perto o quanto ela era linda. E toda aquela beleza estava
ali, à sua frente, ao alcance de um gesto. Vítima da timidez, não tomou nenhuma
atitude. O leve chacoalhar do carro antigo aliado à paisagem bucólica exibida
pela janela fez Suzane adormecer com o rosto virado para o vidro. Daniel passou
a apreciar o sono da sua princesa. O sol já estava posto, mas uma claridade
frouxa persistia, proporcionando um lusco-fusco anunciando o anoitecer. Num
rompante, Daniel pôs sua mão levemente sobre a dela, que descansava num
espaço da poltrona posto entre eles. Ao se sentir tocada, Suzane despertou bem
devagar, virou-se, ficou ainda mais próxima de Daniel e fechou os olhos
estrategicamente. Já era noite quando ele finalmente criou coragem e deu o
primeiro beijo na boca da garota. Foi um toque longo e afetuoso. Astrogildo,
discreto, flagrou o casal pelo retrovisor e não fez nenhum comentário.
Daniel e Suzane desceram do carro em São Paulo de mãos dadas, com “uma
certeza plena e absoluta vinda do lugar mais escuro do coração: estavam
perdidamente apaixonados”. O trecho está entre aspas porque foi escrito por
Suzane em uma carta enviada a Daniel descrevendo com detalhes essa viagem e o
primeiro beijo do casal.
Com dois meses de namoro, já no ano 2000, Daniel e Suzane se viam todos
os finais de semana. Inicialmente, Manfred e Marísia não fizeram nenhuma
restrição ao relacionamento. Pelo contrário, Daniel tinha a credencial de melhor
(e único) amigo de Andreas para ser aceito pelos pais da namorada. O garoto,
por sinal, já vinha abandonando a característica de filho recluso graças ao
fantástico mundo apresentado a ele por Daniel. Estava mais alegre, mais falante.
Ou seja, amigo de Andreas e namorado da filha mais velha, Daniel passou a ser
bem-vindo na casa dos Richthofen. Todo final de semana ele estava lá. Quando a
mansão ficou pronta, Marísia resolveu não levar os móveis da casa velha. Tudo
seria comprado novinho em folha. No dia da mudança, a família toda fez um
mutirão para arrumar o novo lar. Daniel, solícito, ofereceu ajuda. As caixas de
papelão com documentos e objetos pessoais de Manfred e Marísia foram abertas
por Suzane e Daniel. Eles arrumaram roupas, sapatos e joias nas gavetas do closet
da suíte. Ao ver aquele excesso de objetos de valor, Daniel comentou com Suzane
sem a menor parcimônia:
— Nossa! Seus pais são ricos, né?
— Minha mãe ganha mais do que ele – confidenciou Suzane enquanto
desencaixotava pertences dos pais.
Em três dias, a mansão de estilo neocolonial de dois pavimentos estava toda
arrumada. E que mansão! Da rua, a muralha de alvenaria de cinco metros de
altura e os portões de ferro – um para entrada de carros e outro para acesso de
pedestres – impediam a visão daquele imóvel suntuoso, avaliado na época em 3
milhões de reais. Cinco pés de palmeiras-imperiais, dois plantados na frente, dois
na lateral e um na calçada, do lado de fora do terreno, davam charme especial ao
lugar. Quem entrava pelo portão principal rumo à porta da sala era obrigado a
caminhar sobre pedras amarelas de São Tomé, depois contornar a ampla piscina
revestida com ladrilhos azuis e borda externa trabalhada em cerâmica terracota
de três cores. A porta principal era toda esculpida em madeira de lei e tinha
entalhe do brasão da família Richthofen, sobrenome nobríssimo na Alemanha.
Ao atravessar essa porta, havia uma ampla sala social com piso de tábua corrida
dividida em dois ambientes, com três sofás e uma poltrona marrom-trufa.
Toda a decoração do palacete foi feita em tons escuros, oscilando entre as
cores preta, avelã e carvalho profundo, dando um aspecto sombrio ao ambiente.
A área conjugada da sala continha uma estante feita de madeira rústica, duas
cadeiras pretas, mais um sofá coberto com tecidos de retalhos nas cores
vermelha, amarela e verde, além de diversos adornos. Todos escuros. Da sala,
duas escadas permitiam acesso ao piso superior. Uma delas era ampla e ligava a
sala ao corredor de passagem para os dormitórios. A outra, em forma de caracol,
seguia até um mezanino social onde havia mais dois sofás. Haja sofá! Dois
corredores da sala do piso inferior uniam outros compartimentos da mansão.
Um direcionava ao escritório, usado por Manfred e Marísia para ler jornais e
revistas. O outro dava acesso à espaçosa cozinha, com um enorme balcão ao
centro.
Na parede, ao lado da geladeira, havia um monitor exibindo imagens em
tempo real de toda a área externa da casa e até da calçada da rua, captadas por
quatro câmeras de segurança. Esses equipamentos não faziam gravações. A
mansão dos Richthofen possuía ainda sensores de infravermelho. Ligados, esses
dispositivos disparavam alarme sonoro quando alguém caminhava pela casa. No
alto das muralhas havia cercas elétricas de quatro fios.
No piso superior ficavam as três suítes da mansão. A mais ampla era de
Manfred e Marísia. Suzane e Andreas ocupavam as outras duas. A casa tinha
ainda uma despensa e uma churrasqueira na área externa, com cobertura, além
de um quintal espaçoso. No fundo havia uma garagem coberta com vaga para
dois carros e mais o quarto da empregada. Outra garagem coberta com vaga para
dois carros ficava na lateral da casa, próxima à sala principal. No dia da
mudança, Daniel conheceu cada canto da mansão dos Richthofen e suspirava,
deslumbrado, como se estivesse no paraíso.
O primeiro ano de namoro de Suzane e Daniel foi todo abençoado por
Manfred e Marísia. No Natal de 2000, Daniel deu a Andreas um avião de
aeromodelo enorme – um dos maiores já montados por ele, avaliado em 5 mil
reais. Esses gestos faziam o prestígio de Daniel aumentar junto à família
Richthofen. Marísia costumava fazer compras em um supermercado Extra
próximo à casa dos Cravinhos. No caminho, deixava Suzane na casa do
namorado. Nos finais de semana ensolarados, Daniel fazia churrasco com
Manfred na mansão. No entanto, aos poucos, o engenheiro e a médica
começaram a ficar incomodados com o excesso de intimidade do namorado da
filha. O pai foi o primeiro a verbalizar a queixa, em meados de janeiro.
— Marísia, esse namoro não está indo longe demais? Esse rapaz está todo
final de semana enfiado aqui em casa.
— Isso é namoro de adolescente, Manfred! Daqui a pouco as aulas
recomeçam e a relação esfria – previu Marísia, lembrando que Daniel foi
prestativo na mudança e que deixava Andreas mais alegre.
A matriarca estava enganada. O namoro não esfriava. Pelo contrário.
Esquentava cada vez mais e mais. A cada dia, os laços de união entre Daniel e
Suzane se fortaleciam. Quando estavam juntos, falavam em amor eterno. Ela
costumava perguntar a ele: “Até onde vai o seu amor por mim?”. Daniel
respondia sem pestanejar: “Até o infinito”. O exagero da relação poderia ser
medido pelas inúmeras cartas trocadas entre o casal quando ficavam sem se ver.
“Quando era criança, fazia uma ideia infantil do amor. Pensava maravilhas
desse sentimento. Mas não sabia nem o que era. Hoje eu sei o que é o amor.
Descobri com você. Agora, sim, sou uma mulher feliz. Esse sempre foi o meu
sonho, meu desejo mais profundo. Ser feliz”, filosofou Suzane numa carta
enviada ao namorado em junho de 2000, quando viajou com os pais para a
Alemanha. Em resposta a uma dessas correspondências, Daniel se revelava
trágico ao escrever à amada. “Eu te amo tanto... mas tanto, que a simples
ausência da minha princesa faz eu ter ideias estranhas, como a morte.” Os
pensamentos fúnebres, segundo Daniel, eram incentivados pelo espírito de um
amigo morto há um ano que insistia em atormentá-lo. Ao ler as demonstrações
exacerbadas de amor do namorado, Suzane se via ainda mais enredada e
perdidamente apaixonada. Andreas era testemunha ocular e conivente com
aquela relação que, aos poucos, ficava turva.
O atleta de aeromodelismo Edson Luiz Gaona, de 32 anos na época, foi outra
testemunha da relação obsessiva do casal. Amigo de longa data de Daniel, ele o
descreve como um rapaz retraído e acanhado. Ao conhecer Suzane, sua
personalidade teria mudado. Passou a ter uma devoção doentia pela moça e se
afastou dos amigos. Por ser onze anos mais velho do que Daniel, Edson resolveu
dar uns conselhos a ele. Quando estavam pilotando lado a lado no Ibirapuera
numa manhã de sábado, Edson iniciou um diálogo:
— Daniel, você não acha que está se afastando do aeromodelismo?
— Não. Tanto que estou aqui.
— Os seus amigos estão se queixando que você não se dedica mais ao esporte
como antes. Não participa mais de campeonatos...
— É que antes eu estava solteiro. Agora estou namorando – justificou,
interrompendo o amigo.
— Todo mundo aqui no parque está comentando que você está obcecado
pela Suzane. Cuidado. Você pode se machucar – advertiu Edson.
— Obrigado pelo conselho. Mas deixa que da minha vida cuido eu! – cortou
Daniel, pousando o avião e saindo de perto de Edson.
Caminhando para pegar o seu avião da pista, Daniel avistou Suzane
chegando ao parque. A jovem observou Edson de longe e perguntou ao
namorado o que eles tanto falavam. Daniel deu um beijo na garota e falou sobre
a reclamação dos amigos em relação ao namoro deles. Suzane justificou a
fofocada com uma suposta inveja do amor que um sentia pelo outro. Na
primeira oportunidade, ela provocou Edson com racismo. Em uma roda com dez
pilotos, aproximou-se do amigo de Daniel. Ela o cumprimentou com sarcasmo e
em voz alta para todo mundo ouvir:
— Como vai, boi?
— Do que você me chamou? – perguntou Edson, indignado.
— Você é surdo? Te chamei de “boi”. Não é esse o seu apelido? – retrucou
ela, esboçando um sorriso de escárnio.
Quando Suzane chamou Edson de “boi”, todos – inclusive Daniel – riram.
Era um riso malicioso. Ao ser o centro de uma chacota aparentemente pueril,
Edson sentiu sua energia desaparecer. A gargalhada parecia não ter fim.
Trêmulo, ele quis sentar no chão e chorar. Para não passar recibo de fraqueza em
público, preferiu se afastar. Foi à lanchonete beber um copo de água para se
recompor. O piloto tinha motivos de sobra para refutar o apelido jocoso. Um
ano antes, no auge da carreira no aeromodelismo, Edson conseguiu o patrocínio
da marca Bad Boy, especializada em artigos esportivos. Para honrar o apoio da
marca, ele batizou o seu avião de Bad Boy. Como é negro, passou a ser chamado
de “boi” pelos pilotos, em alusão à cantiga popular Boi da cara preta.
O apelido já estava colado em Edson quando resolveu tomar uma
providência. Chamou seus amigos separadamente para uma conversa séria.
Revelou ficar extremamente ofendido, incomodado, constrangido e triste ao ser
chamado por essa alcunha. Para os mais íntimos, confessou ficar com a
autoestima debaixo do chão ao ter a cor da sua pele usada como instrumento
para diminuí-lo. Fazer as pessoas cessarem com o apelido ofensivo era uma
questão de honra para Edson. Dez anos antes, quando o piloto tinha 22 anos, um
senhor branco muito rico que ia ao Clube de Aeromodelismo do Ibirapuera disse
a ele que o local não deveria ser frequentado por pessoas pretas, a não ser que se
ocupassem da limpeza dos aviões ou da segurança. Depois da ofensiva, os amigos
deixaram de se referir a Edson com termos racistas. Até Suzane desenterrar o
apelido. No entanto, o piloto não deixou barato. Com tom de voz firme,
esbravejou:
— Suzane, não me chame assim. Se você não conseguir me chamar pelo
nome, prefiro que não me dirija mais a palavra.
— Nossa, desculpa. Fica calmo. Não sabia que isso tirava um boi do sério.
Ops! Desculpa mais uma vez! – continuou provocando.
Para não dar uma bofetada na cara de Suzane, Edson resolveu sair. Daniel foi
atrás dele e o abordou:
— O que está pegando, boi? – desafiou Daniel.
— Daniel, olha, você é muito novo. Vai descobrir que mulheres como a
Suzane entram e saem da nossa vida. Quem fica são os amigos.
— Não. A Suzane é a mulher da minha vida. Vou morrer ao lado dela! –
exagerou Daniel.
Edson e Daniel nunca mais se falaram. O namoro com Suzane o isolou de
tudo e de todos.
* * *
A
o ver o bilhete escrito por Marísia colado no para-brisa do carro, Suzane
ficou estática feito o Cristo Redentor. Atônita, não soube o que fazer nem
para onde ir. Depois de pensar bastante, resolveu enfrentar a mãe e foi
para casa. Marísia a recebeu aos berros na sala, chamando-a de mentirosa e
desonesta. Esbravejou, acusando a filha de só lhe dar desgosto. Em outro ato, a
médica foi dramática.
— Suzane, esse rapaz está te levando cada vez mais para um caminho ruim.
Agora você deu para mentir. Abra os olhos, pelo amor de Deus! Esse vagabundo
vai te levar ao fundo do poço. E quando você estiver lá, será tarde demais. Sua
vida estará arruinada de forma definitiva!
Suzane ouvia calada. Não chorava nem esboçava qualquer emoção. Apenas
olhava fixamente para o chão. Manfred chegou da rua quando Marísia estava no
final do sermão. Aos prantos, a médica fez um resumo da sua decepção ao
marido:
— Eles não estão rompidos! Ela passou o dia na casa daquele ordinário. Saiu
de casa dizendo que ia estudar e foi para a casa dele – relatava Marísia, fumando
e bebendo uísque.
Na verdade, a mãe já investigava a filha fazia tempo. Havia descoberto
inclusive o sumiço de Suzane da academia de caratê. Manfred pediu para a
esposa se acalmar, pegou um copo de uísque no bar e engoliu a bebida de uma só
vez. Ergueu a cabeça de Suzane pelo queixo usando o polegar e fez uma ameaça
derradeira. O tom foi suave, porém firme:
— Ouça bem o que vou dizer porque não vou falar duas vezes: se você se
encontrar novamente com aquele malandro, você será deserdada. Ouviu bem?
Isso significa que eu vou te excluir da minha herança! Não vai receber um tostão!
— Eu não tenho medo das suas ameaças! – retrucou Suzane, agressiva.
Tomado por uma intensa emoção jamais experimentada, Manfred ficou fora
de si. Numa fração de segundo, o engenheiro estava totalmente descontrolado.
Tão rápido quanto um relâmpago, o pai ergueu o braço direito e sentou uma
bofetada colossal no rosto da filha em pleno domingo, 12 de maio de 2002, Dia
das Mães. O tapa foi tão forte que ela quase se desequilibrou e por pouco não foi
ao chão. Era possível ver os dedos do pai grafitados em vermelho no rosto branco
da filha. Reinou um silêncio inquietante na casa. Incrédula, Marísia ficou tão
impactada com a cena violenta jamais vista naquele lar que parecia estar
anestesiada. Inerte, soltou o copo de bebida ao chão e levou as duas mãos à boca,
espantada. O pai, sem ação, parecia ter congelado.
Uma das características mais marcantes da personalidade de Suzane é a
capacidade de dominar os nervos e manter as emoções inteiramente sob controle
e ocultas. Dessa vez, porém, não conseguiu. Trêmula e colérica, encarou o pai
vertendo lágrimas. Estava sufocada num choro contido. Manfred nunca havia
batido nos filhos, tanto que ficou desnorteado após o ato irracional. Suzane subiu
as escadas sem falar uma palavra, entrou no quarto, fechou a porta e trancou à
chave. Na madrugada, já recomposta, saiu de casa e foi encontrar Daniel na casa
dele. Chegou com uma mochila contendo mudas de roupas, mostrou a marca da
violência paterna e anunciou:
— Nunca mais piso naquela casa! Nunca! Nunca! Nunca! Vou morar aqui
com vocês!
Astrogildo e Nadja se entreolharam e consolaram Suzane. Ponderaram que
fugir de casa não seria a melhor solução para a crise. Astrogildo, o falso juiz,
argumentou como se fosse um profundo conhecedor das leis:
— Suzane, não é bem assim. Você tem menos de 21 anos. Pela legislação
vigente, você ainda é menor. Só poderia sair de casa se fosse emancipada. Seu pai
vai mandar te buscar e pronto! Acabou! Você pode ficar tranquila que o Daniel
tem grandes planos para você.
Na cabeça de Suzane, os planos do namorado eram aqueles de todas as
mulheres apaixonadas da sua idade: casar, morar no paraíso e ter filhos lindos.
Daniel endossou o argumento dos pais e implorou para a amada voltar. Fez
questão de levá-la de volta para casa. No carro, em frente à mansão dos
Richthofen, Daniel fez uma promessa à namorada:
— Em breve viveremos juntos para todo o sempre.
A jovem desceu do carro e subiu para o quarto. Passou a madrugada em claro
pensando na vida de casada e na liberdade em não mais depender dos pais. No
café da manhã, encarou a família ainda com a marca do tapa na bochecha. O
hematoma apresentava-se numa coloração roxa esverdeada. A refeição parecia
um funeral. O pai quebrou o silêncio pedindo desculpas. A mãe ficou imóvel e
Andreas parecia não ter língua. Suzane estava revoltada. Apesar do seu tremendo
autocontrole, custou-lhe esforço disfarçar a própria raiva. Dissimulada, fingiu ter
feito por merecer aquela bofetada. Aos pais, fez um juramento com uma
convicção tocante, porém extremamente falsa.
— Eu juro, juro, juro! Juro a vocês. Nunca mais vou encontrar o Daniel.
Nunca! – anunciou ela, fingida.
A passos curtos e cabisbaixa, Suzane foi para a faculdade. Do caminho,
mandou uma mensagem ao namorado com a sugestão de não se encontrarem
por pelo menos um mês. Daniel respondeu que não suportaria a separação e
ainda ameaçou abandoná-la. Suzane pediu calma e o jovem falou pela enésima
vez em suicídio. Ela contabilizava em silêncio a possibilidade de ficar
desamparada financeiramente, caso realmente fosse deserdada pelos pais. Se
tinha algo do qual Suzane e Andreas não tinham queixa era da falta de recursos.
Manfred era mão aberta com os filhos e ambos ganhavam mesada. Além do valor
fixo mensal, o pai dava dinheiro vivo aos filhos sempre que pediam. Às vezes,
não precisavam dizer onde e nem como iriam gastar.
Manfred havia passado por uma experiência terrível no início de 2002. Um
assaltante o sequestrou em plena luz do dia. Com uma arma camuflada e
apontada para ele, o bandido o obrigou a passar em vários caixas eletrônicos para
fazer saques, até conseguir, na época, quase 10.000 reais em dinheiro vivo,
retirados de quatro contas diferentes. A partir desse episódio, Manfred passou a
ter aversão aos bancos 24 horas, comprou uma arma e começou a guardar
dinheiro em casa. Toda a família tinha acesso à carteira do pai e a uma gaveta do
closet abarrotada de cédulas para as despesas do dia a dia. Com esse dinheiro,
Suzane passou a cobrir Daniel de presentes caros. Comprava óculos de grifes
famosas, como Oakley, uma das marcas esportivas preferidas por jovens da classe
média, e celulares sofisticados. Pagava as contas de telefone do piloto e mandou
trocar até o piso de carpete do quarto dele por porcelanato. Apaixonada, usou
recursos depositados pelos pais em sua caderneta de poupança para dar entrada
em um Fiat Palio novo para Daniel. O restante do valor do veículo foi parcelado
em inúmeras prestações, todas pagas por ela. Certa ocasião, Amanda viu Suzane
quitando um boleto de Daniel. A sós, questionou a amiga:
— Su, o Daniel não trabalha e tem carro novo, celular novo e viaja. Onde ele
arruma dinheiro?
— Eu pago tudo – revelou.
Era verdade. Suzane bancava Daniel. À medida que mergulhava na relação
doentia, o piloto foi largando a prática de aeromodelismo e as encomendas de
aviões começaram a minguar em seu ateliê. Certo dia, ele comprou para a sua
cama dois travesseiros de plumas e mandou pôr nas fronhas estampas da foto do
casal. Suzane adorou o carinho. Na sequência, porém, ele pediu dinheiro a ela
para pagar a compra. A jovem não reclamava de sustentá-lo. Pelo contrário. Era
a forma de manter-se no controle da relação. Quando o pai ameaçou privá-la da
herança, Suzane só pensava na penúria em que sua vida seria transformada. Um
dia após levar o tapa, a garota ouviu os pais tendo o seguinte diálogo no quarto,
por volta das 21 horas:
— Ela tem um futuro brilhante, mas o Daniel está afastando a nossa filha
desse caminho – disse Marísia.
— Eu não vou deixar. Vamos mandá-la para a Alemanha já no final do ano.
Amanhã mesmo vou pedir para a minha secretária cotar as passagens áreas –
planejou Manfred.
Aflita, Suzane esperou o relógio marcar duas da madrugada. Enquanto todo
o mundo dormia, a estudante desceu para encontrar Daniel, que a esperava
dentro do carro em frente à mansão. O rapaz estava angustiado e ensopado de
suor. Beijaram-se e Daniel a interrompeu. Confuso e chorando muito, afirmou
estar morrendo lentamente e mostrou à namorada um corte superficial no peito
ainda sangrando. Parecia um ferimento feito de raspão por objeto cortante.
Suzane se assustou e perguntou quem tinha feito aquilo. Não houve resposta. O
piloto ameaçou tirar a própria vida caso eles não pudessem mais ficar juntos.
Daniel passou a ter cada vez mais ideias obsessivas sobre suicídio envolvendo
morte violenta.
— Pensa comigo, Su. Se morrermos juntos, viveremos felizes em algum outro
lugar. Sem os seus pais por perto – planejava ele, soluçando.
— Você está enlouquecendo, Dan – repetia Suzane ao mesmo tempo que o
consolava e o beijava.
Há casos raríssimos nos quais duas pessoas têm a mesma ideia quase
simultaneamente. Naquele dia, ali, dentro daquele carro, de madrugada, Suzane
encarou os olhos perturbados de Daniel. Ele sussurrou uma certeza vinda do
fundo da sua existência:
— Nós só seremos felizes no dia em que os seus pais não existirem mais.
— Eu estava pensando nisso agora mesmo, acredita? Eles acabaram de dizer
que vão me mandar para a Alemanha no fim do ano – disse ela, espantada com a
transmissão de pensamento.
Era uma conclusão bastante óbvia: Daniel e Suzane jamais seriam felizes com
os pais dela operando contra. A princípio, quando o casal condicionou a
“felicidade a dois” à “não existência” dos pais de Suzane, não se falava claramente
em assassinato. A ideia era abstrata. “Seria ótimo se Manfred e Marísia não
fizessem mais parte do mundo”. Foi assim, em tom quase poético, que Suzane e
Daniel passaram a trabalhar para pôr um fim àquela agonia. A partir daquele
momento, tornaram-se definitivamente uma só criatura. Um só cérebro
comandava aqueles dois espíritos doentes. Suzane ficou com Daniel no carro até
as 5 horas da manhã lucubrando como seria a vida em liberdade longe dos pais.
Bolaram um plano e começaram a agir.
O primeiro passo foi investir novamente na ideia de terem rompido
definitivamente. Para incrementar essa farsa, Suzane passou a dizer em casa,
durante as refeições, que Daniel era um aproveitador. “Esse picareta não paga
uma conta sequer. Vocês estão cobertos de razão”, disse à mesa de jantar.
Chegou ao cúmulo de agradecer aos pais por eles terem aberto os olhos dela para
essa verdade. Com isso, as relações familiares na mansão dos Richthofen
voltaram a ficar harmônicas. Naquela semana, Suzane frequentou a faculdade
assiduamente, estudou de verdade para as provas de final de semestre e tirou
notas altas. Em julho, Manfred e Marísia viajaram para a Escandinávia.
Quando viajavam juntos, para evitar que os filhos ficassem órfãos de pai e
mãe em caso de acidente aéreo, Manfred e Marísia sempre embarcavam em voos
diferentes. No trajeto de São Paulo à Finlândia, eles foram obrigados a embarcar
no mesmo avião porque todos os outros voos estavam lotados. Antes de saírem
de casa, os pais fizeram mil e uma recomendações aos filhos porque eles nunca
tinham ficado tanto tempo sozinhos. Manfred deu a Suzane o número de uma
conta bancária, um cartão de saques e a senha anotada em um papel. Deixou
ainda uma boa quantidade em dinheiro vivo na gaveta secreta do closet.
Foi Suzane quem levou os pais ao aeroporto. Tão logo desceram do carro
com seis malas, Suzane tirou do bolso o anel símbolo do amor que sentia por
Daniel e o pôs de volta, dessa vez no dedo anular da mão direita. Quando ela
chegou em casa, Daniel já estava lá com uma mala de roupas para 30 dias. O
piloto estava matando passarinhos com Andreas no quintal. Foi o mês mais feliz
do casal. Tudo era incrível. Nos finais de semana, tinham a companhia de
Cristian e faziam churrasco. Passavam o dia inteiro na piscina ouvindo música
eletrônica. Amanda também foi a algumas das festas na mansão. As baladas eram
regadas ao cardápio de sempre: muitas drogas (maconha, cocaína, ecstasy,
solventes e lança-perfume) e bebida. Daniel se comportava como se fosse o dono
da casa. Volta e meia, ele martelava feito um diabo na cabeça de Suzane palavras
que entravam no coração:
— Olha que maravilha, Su! Imagina se fosse assim para sempre. Olha que
beleza. Olha como é bom. Olha como a gente está sendo feliz.
Suzane ouvia calada, e Daniel continuava a vislumbrar o futuro:
— Pensa se isso aqui durasse muito. Não só um mês, mas a vida toda. Seria
perfeito.
Num domingo de sol, Daniel e Suzane estavam deitados na pérgola da
piscina olhando juntos o mesmo céu. A mansão dos Richthofen era próxima do
Aeroporto de Congonhas e era comum avistar aviões voando baixo sobre o teto.
Ao ver uma aeronave passando, Daniel perguntou:
— Viu esse avião?
— Sim. Eu vi! – respondeu.
— Imagina seus pais dentro desse avião.
— Sim... E aí?
— Agora imagina esse avião caindo...
Sob o efeito de drogas e álcool, Suzane ficou em silêncio, pensativa. Daniel
prosseguiu:
— Se isso acontecesse, nós ficaríamos juntos nessa mansão para sempre –
concluiu, alucinado e eufórico.
Ela, calada estava e calada continuou.
Na véspera do retorno de Manfred e Marísia, Daniel e Suzane fizeram uma
despedida dramática. A estudante chorou copiosamente ao retirar pela segunda
vez a aliança de prata do dedo. Enquanto arrumava a mala para voltar para casa,
o piloto fez questão de lembrar à namorada que a sua aliança nunca havia saído
do dedo. Em seguida, Daniel voltou para a casa simples dos pais. Na primeira
semana de agosto, o casal voltara à antiga rotina e a saudade dos dias da vida em
liberdade na mansão dos Richthofen provocava angústia. Suzane sofria por não
poder mais passar 24 horas ao lado do namorado:
— A minha vida não tem o menor sentido longe de você – reclamou ela.
— Eu disse a você. Nós só teremos aquela vida novamente se os seus pais
desaparecerem do mundo – reforçou Daniel.
Até mesmo as mentiras inventadas por Suzane para passar o dia na casa de
Daniel começaram a ficar sem graça. O casal só via alegria na vida se morasse na
mansão. Fazendo festa, fumando e bebendo, como foi em julho. Para pressionar
a namorada a tomar uma iniciativa, Daniel começou a atormentá-la. Suzane
estava assistindo à TV na sala junto com o pai, por volta das 22 horas, quando o
celular tocou. Era Daniel, aos prantos.
— Preciso falar com você agora! – suplicou.
— Não posso! – sussurrou Suzane tapando a boca com a mão para Manfred
não perceber.
— É só para dizer para você ficar bem. Que eu te amo. Não posso mais falar.
Mas, se eu morrer, saiba que vou te amar para sempre – disse Daniel, enigmático.
— Como assim, morrer? – quis saber ela, apavorada.
Daniel desligou o telefone antes de ouvir a pergunta da namorada. Suzane
ficou com os nervos à flor da pele tentando ligar de volta. Caminhava pela casa
de um lado para o outro feito uma fera enjaulada. Às 3 horas o piloto ligou
novamente, para alívio de Suzane. Ele estava na porta da mansão. A estudante foi
ao seu encontro. Depois de uma conversa interminável, os dois juntos, numa
sintonia macabra de pensamento, decidiram ser felizes. A primeira providência
seria tomada na semana seguinte.
* * *
O
s mortos não eram problema para Suzane e Daniel. Enquanto os cadáveres
de Manfred e Marísia esfriavam sobre a cama, o casal delirava sob o efeito
de cocaína e maconha no motel. Eufóricos, felizes e sem qualquer noção de
tempo e espaço, os dois continuavam trocando juras de devoção e amor como se
estivessem em lua de mel.
— Diga que me ama na minha cara! – implorava Daniel na cama do motel.
— Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo! – revidava Suzane repetidamente,
cobrindo o namorado de beijos.
— Quero sentir o seu amor queimando os meus ossos! – desatinava ele,
chapado.
Após receberem a ligação de Andreas, Suzane e Daniel vestiram-se
rapidamente e pediram a conta da noitada no motel pelo interfone. Em poucos
minutos, a atendente Angélica da Silva tocou a campainha com som de cigarra.
O cálculo estava anotado à mão num pedaço de papel posto sobre um prato de
metal junto com duas balas de canela. A conta foi passada pela janela discreta
usada para os clientes se comunicarem com os funcionários. Para surpresa do
casal, as despesas totalizaram 318 reais. Eles só tinham três notas de 100 e
nenhum cartão de débito ou crédito.
— Só temos 300 reais. E agora? – questionou Daniel pela janelinha, sem ver o
rosto da atendente. Ela pediu um minuto, afastou-se e logo veio com a resposta:
— Deixe a sua identidade e venha buscá-la quando tiver os 18 reais restantes
– propôs a funcionária.
— Tudo bem. Poderia emitir uma nota fiscal?
— Oi? Você falou em nota fiscal? Você está num motel! – espantou-se
Angélica.
— Sim, preciso de uma nota fiscal! – exigiu Daniel.
O casal saiu do Colonial Palace às 2h56 para buscar Andreas na Red Play
com a nota fiscal no bolso. O trajeto do motel até a casa de jogos durou dez
minutos. No caminho, Daniel e Suzane criaram um roteiro para pôr em prática
tão logo ela chegasse à mansão com o irmão, onde encontrariam os pais mortos.
O espetáculo teria três atos. No primeiro deles, Suzane fingiria surpresa ao
descobrir que a casa “havia sido invadida”. Paradoxalmente, logo depois de
protagonizar cenas tão bárbaras de homicídio, o casal teve um arroubo de
humanidade. Suzane e Daniel estavam preocupados com o choque emocional
que Andreas levaria ao se deparar com os corpos dos pais destroçados sobre a
cama encharcada de sangue. Caberia a Suzane impedir o garoto de acessar o piso
superior da residência. Como parte do teatro, ela deveria fazer uma ligação para
o namorado fingindo contar sobre o suposto assalto. Daniel simularia
orientações.
Antes de ser levado para casa, Andreas pediu à irmã para dar mais uma volta
de ciclomotor pela cidade. Daniel e Suzane seguiam o adolescente no Gol
dourado presenteado pelos pais tão logo ela passou no vestibular. Andreas
deixou a pequena moto na casa dos Cravinhos e Daniel desceu do carro. Ele deu
um beijo na namorada e Suzane seguiu com o irmão para casa. Em frente à
mansão dos Richthofen, ela acionou o controle para abrir o portão. Quando viu a
sala toda iluminada, Suzane entrou em ação e encenou o primeiro ato do
espetáculo, forjando um sobressalto:
— Ué?! Quem acendeu as luzes?! – perguntou ao irmão.
— Que luzes?... Ai, meu Deus! – exclamou Andreas, boquiaberto.
Na cabeça do adolescente, ele estava numa fria. Imaginou os pais acordados e
se lembrou imediatamente da farsa dos travesseiros cobertos sobre a cama.
Andreas desceu às pressas do carro e seguiu ao hall da entrada. Suzane foi atrás e
pediu para o irmão não entrar correndo. Ela ficou parada no meio da sala
principal. Andreas seguiu em passos rápidos até a cozinha e voltou à sala no
mesmo instante sem entender nada. Entrou na biblioteca e viu as janelas abertas
e objetos jogados no chão, entre eles a pasta 007 onde Manfred guardava
dinheiro vivo. O adolescente começou a subir as escadas esbaforido e Suzane
interveio rapidamente com um grito de alerta:
— Andreas, para! Não sobe!
Ele parou.
— Por quê? O que está acontecendo? – quis saber.
— Acho que a casa foi assaltada. Não sobe, por favor! Pode ter um ladrão
armado lá em cima! Vamos sair da casa agora! – ordenou.
Já apavorado, Andreas desceu lentamente do meio da escada e os dois saíram
da mansão na ponta dos pés. Do meio da rua, Suzane ligou para Daniel e
começou a encenar o segundo ato, conforme havia combinado com o seu
cúmplice assassino.
— Daniel, chegamos em casa e acho que fomos assaltados – resumiu.
— Sai da casa agora! Fica lá fora e liga para a polícia. Estou indo aí! –
representou Daniel do outro lado da linha.
— Já estamos do lado de fora – avisou ela.
Suzane e Andreas ficaram calmos, sentados na calçada à espera de Daniel. Ela
ligou para o 190 e chamou a polícia. Enquanto esperava pelos agentes, a jovem
resolveu improvisar e fez uma cena fora do script: ligou do seu celular para o
telefone de casa falsificando para o irmão uma preocupação com os pais.
— Ninguém atende! – disse ela a Andreas.
— Será que eles estão lá dentro?
Dissimulada, Suzane repetia a chamada telefônica suplicando cinicamente
para si em voz alta:
— Atente! Atende! Atende!
Quinze minutos depois de Suzane ligar para o 190, o policial Alexandre
Paulino Boto estacionava a viatura da Polícia Militar de número 12.192 em frente
à mansão dos Richthofen. Segundo o seu registro, eram 4h09 quando ele chegou
ao palco do crime e deparou-se com Suzane e Andreas no meio da rua. Boto fez
inicialmente só uma pergunta (O que houve?) e recebeu de Suzane um prólogo
narrado num único fôlego:
— Eu e meu irmão chegamos em casa agora há pouco e vimos as luzes acesas.
Entramos na casa e percebemos que a porta da sala, que deveria estar trancada,
encontrava-se aberta. A biblioteca está toda revirada. Mexeram em tudo, tudo,
tudo! As janelas estão abertas. Liguei para o meu namorado e ele me mandou
ficar aqui fora e ligar para a polícia. Foi o que eu fiz: liguei para o 190.
O primeiro relato feito por Suzane sem cortes chamou a atenção do policial
“meio de leve”, conforme ele mesmo observaria dias depois. Mas até ali, qualquer
tipo de previsão seria prematura. Boto, que estava acompanhado de um
motorista, ergueu uma pistola PT 24/7 calibre .40 e entrou na mansão na
expectativa de flagrar assaltantes dentro dela. Fez primeiro uma varredura na
área externa e só depois passou pela porta da sala. Viu a biblioteca bagunçada, foi
à cozinha – intacta – e subiu ao quarto de Suzane, que estava todo arrumado. No
quarto de Andreas, ao ver a cama, imaginou ter alguém sob as cobertas. O
policial puxou o edredom e avistou os travesseiros representando uma pessoa.
Na suíte do casal Richthofen, Boto enxergou primeiro um cadáver. Em um
relatório, o policial escreveu:
“De imediato, iluminado somente pela luz da rua, vi o corpo de um homem
deitado na cama com a barriga virada para cima, as pernas cruzadas e uma
toalha cobrindo a cabeça. O braço direito estava estendido para o chão em direção
a uma arma calibre 38 caída no solo, próxima à mão dele. Faltava uma bala no
tambor da arma. Logo pensei em suicídio. Acendi a luz e vi o segundo cadáver
enrolado em um lençol com a cabeça ensacada. Havia algumas joias espalhadas
pelo tapete”.
Depois de atestar o óbito de Manfred e Marísia, Boto voltou para a rua e foi
abordado por uma Suzane demasiadamente ansiosa:
— Como estão meus pais? – quis saber.
— Seus pais estão bem – projetou Boto.
Impactada pelo imprevisto daquele comunicado, Suzane saiu do personagem
e esboçou uma cara real de surpresa quando ouviu do policial que seus pais
estavam vivos. Andreas pediu para entrar na mansão e Boto disse “não”.
Orientou que esperassem do lado de fora. O policial foi até a viatura e pediu
reforço pelo rádio, comunicando em voz baixa a até então suspeita de homicídio
seguido de suicídio. A história construída naquele momento pelo policial era a
seguinte: Manfred assassinou Marísia com uma arma branca e depois se matou
com um tiro. A arma caída perto do corpo dele e a falta de uma bala reforçavam
essa tese. Da calçada, a poucos metros dali, Suzane ouviu o retorno de um agente
da base emitido pelo rádio da polícia em viva-voz, informando que havia um
crime com vítimas na Rua Zacarias de Góis. Incrédula, a jovem perguntou a Boto
mais uma vez pelos pais:
— Você tem certeza de que meus pais estão bem?
— Sim, eles estão deitados na cama.
— Você olhou direito? O quarto deles fica no fim do corredor – insistiu ela.
— Positivo!
Bem-intencionado, o policial mentiu. Boto não queria ser mensageiro de
uma notícia tão trágica. Sustentou que Manfred e Marísia estavam vivos. O
comportamento de Suzane chamou a atenção de Boto pela segunda vez. Na
tentativa de entender mais sobre a dinâmica daquele crime, o policial começou a
fazer perguntas informais para ela, ali mesmo, no meio da rua. Eficiente na arte
de representar, Suzane voltou rapidamente ao personagem:
— Seus pais têm arma em casa? – indagou Boto.
— Tem um revólver escondido num compartimento secreto do closet.
— Você acha que os ladrões levaram algo da sua casa?
— Na biblioteca havia uma mala 007 com dinheiro. Tinha lá dentro 8.000
reais, 5.000 dólares e 1.000 euros. Os ladrões levaram tudo, seu guarda! – fez
questão de frisar.
— Sua casa tem sistema de alarmes?
— Tem sim, mas está desligado – advertiu Suzane.
— E aquelas câmeras de segurança? – apontou Boto para um equipamento
instalado no muro, do lado de fora do terreno da mansão.
— Ah! Essas câmeras não fazem gravação – lamentou ela, pragmática.
A rapidez com que Suzane respondia às perguntas fez Boto desconfiar dela
pela terceira vez, mas até então o policial não sabia especificar de forma concreta
os motivos das suas suspeitas. Depois de o policial entrar pela segunda vez na
mansão, a tese de suicídio foi descartada e passou-se a acreditar em latrocínio
(assassinato motivado por roubo). Para ver como Suzane reagiria à notícia da
morte dos pais, Boto resolveu contar a verdade:
— Suzane é o seu nome, né?
— Sim!
— Fique calma, por favor. Me ouça com atenção. Tenho algo importante
para lhe dizer...
— Pode falar! – pediu Suzane, calmíssima.
Boto já começava a narrar a tragédia quando Daniel chegou e interrompeu a
fala do policial, querendo saber o que havia acontecido. Antes de obter a
resposta, o piloto fez questão de dar um beijo longo em Suzane.
— Quem é você? – quis saber Boto.
— Sou da família! – respondeu Daniel, encarando o policial e mantendo um
dos braços por cima dos ombros da namorada.
De certa forma, a chegada de Daniel trouxe alívio a Boto. Era mais adequado
uma pessoa próxima da família dar uma notícia espinhosa como aquela. O
agente chamou o namorado de Suzane até a viatura e contou que os pais dela
estavam mortos sobre a cama e era preciso fazer essa revelação aos filhos das
vítimas. Daniel pediu um momento e se afastou do policial, que ficou
observando de longe o desenrolar daquela cena. Daniel comunicou a Suzane e
Andreas numa única tomada a morte de Manfred e Marísia. Em seguida, os três
se abraçaram por alguns segundos, sem chorar. Suzane desfez o abraço a três e
foi até o policial. Amarrou o cabelo para trás, ajeitou a roupa e fez uma pergunta
de ordem prática:
— Seu policial, meus pais estão mortos! Quais procedimentos devemos
tomar agora?
Boto ficou mudo, afastou-se indignado, deixando Suzane no vácuo.
Acostumado a fazer esse tipo de diligência, o policial sempre se deparava com
pessoas altamente alteradas ao descobrir que um parente foi morto de forma
inesperada, como em latrocínios ou atropelamentos. A maioria só acredita
depois de ver o corpo. É comum, por exemplo, parentes sacudirem o cadáver
numa atitude desesperadora de tentar acordá-lo. Outros não resistem à forte
emoção e desmaiam. Há os que gritam de dor. Suzane não teve nada disso. Nem
Andreas, a bem da verdade. Com ceticismo pirrônico, Boto entrou na viatura da
polícia. Ao colega de profissão sentado no banco do carona, comentou:
— Como pode? Ela acabou de saber que os pais estão mortos e nem sequer
chorou. Nem uma lágrima. Já veio me perguntar quais os procedimentos. Você
acredita?
— Sim, acredito. Às vezes, a pessoa chora por dentro – ponderou o outro
policial.
— É verdade – admitiu Boto.
— Você acha que esses garotos mataram os pais? – arriscou o colega.
— Tenho dúvidas. Aqui, tudo é estranho e sinistro – respondeu Boto.
A dúvida, às vezes, pode ser um elo tão poderoso e sustentável quanto a
certeza. Boto suspeitava daquela menina fria que economizou lágrimas quando
soube da morte dos pais. Em minutos, a Rua Zacarias de Góis foi tomada por
carros da polícia, do Instituto Médico Legal (IML) e da imprensa. O excesso de
luzes vermelhas e azuis emitidas pelo giroflex das viaturas acordou a vizinhança.
Astrogildo, o pai de Daniel e Cristian, surgiu no meio da balbúrdia após receber
uma ligação do filho. Ele cumprimentou o casal de assassinos e entrou na
mansão para ver a cena do crime. Depois foi até o policial Boto se inteirar dos
fatos. Com receio de ser preso em flagrante por falsidade ideológica, Astrogildo
não ousou se apresentar a um policial como juiz. Também quis saber de Boto
quais seriam os próximos passos.
— E agora? Como vai ser?
— Vamos todos para a delegacia registrar a ocorrência. A Suzane vem
comigo na viatura – advertiu Boto.
— Não, não e não! Ela não vai entrar em carro da polícia. Ela é vítima.
Acabou de perder os pais, tadinha! Está abalada. Ela vai comigo! – insistiu
Astrogildo.
São Paulo estava agitada na manhã daquela quinta-feira, 31 de outubro de
2002. Feito de carro, o trajeto da mansão até a Primeira Delegacia do
Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) durou 20 minutos.
O prédio imponente de 20 andares do DHPP fica no Centro Velho de São Paulo,
próximo à Rua Santa Ifigênia, o paraíso dos artigos eletrônicos da capital.
Suzane, Daniel, Andreas e Astrogildo caminharam conduzidos por Boto por
corredores apertados até chegarem a uma sala de espera no terceiro pavimento.
Sonolenta, Suzane deitou no colo do namorado e cochilou enquanto recebia
carícias nos cabelos. Por volta das 6h da manhã, o casal ficou frente a frente com
a delegada Cíntia Tucunduva Gomes. Na sala, havia pelo menos uma dezena de
policiais e investigadores, entre eles o Boto. Antes de Cíntia fazer as perguntas,
Suzane fez uma súplica:
— Posso pedir uma coisa à senhora?
— Pode, claro.
— Tudo o que mais quero nesta vida é que a polícia prenda quem matou os
meus pais. Prenda! Prenda! Prenda! – reforçou, enfática, com voz aveludada.
— Prometo a você que quem fez isso será capturado – pressentiu a policial
civil.
Na delegacia, enquanto registravam a ocorrência de número 1.657/02,
Suzane e Daniel chamaram a atenção dos policiais pelo excesso de cenas
românticas. Ela começou a relatar como recebeu a notícia da morte dos pais e
detalhou a sua agenda no dia do crime. Entre uma pergunta e outra feita pela
delegada, Suzane fechava os olhos e dava um beijo romântico em Daniel. Às
vezes, Cíntia fazia uma pergunta trivial, do tipo “quando você viu seus pais pela
última vez?”. A jovem se virava para o namorado e repassava a pergunta: “Eu não
sei direito. Quando foi mesmo, amorzinho?”. E sentava outro beijo nele. O
namoro fora de contexto começou a irritar os policiais. Astrogildo assistia
àquelas cenas sem tecer nenhum comentário. Foi ele, inclusive – com autoridade
de falso juiz –, quem encerrou o procedimento. Alegou o raiar do sol e cansaço
coletivo. Levantou-se da cadeira e interveio:
— Delegada, é o seguinte: a ocorrência está registrada. Agora cabe à polícia
investigar quem matou. Olha para a cara dessas crianças. Elas estão sem dormir
desde ontem. Vou levá-las para casa. Se precisar de mais esclarecimentos, ligue
outro dia.
Ligeira, Suzane levantou-se da cadeira, e Cíntia pediu para ela assinar o
boletim como testemunha. No campo “natureza da ocorrência” estava escrito
“latrocínio”. Mesmo exausta, Suzane sentou-se novamente para ler o documento
com atenção antes de pôr o seu nome nele. Cautelosa, passava a ponta da caneta
em cada linha do texto para não deixar escapar nada. Quando acabou de ler as
quatro páginas descrevendo as circunstâncias do duplo homicídio, a jovem
balançou a cabeça de um lado para o outro em sinal de discórdia. Na última
folha, constava que os investigadores encontraram na biblioteca a mala 007.
Quando leu essa parte, Suzane pediu para a delegada mencionar o dinheiro
roubado, citando novamente a quantia com exatidão (8.000 reais, 5.000 dólares e
1.000 euros). Ousada, a assassina fez outro apontamento:
— Tem outra coisinha, delegada: meu sobrenome está escrito de forma
errada. O correto é Suzane von Richthofen. Aqui tá “Richtofen”, sem o H depois
do T. Conserte, por favor – exigiu.
Após as devidas correções, Suzane assinou o boletim de ocorrência. A
assassina já estava passando pela porta de saída de mãos dadas com Daniel
quando a delegada conseguiu lhe fazer uma última pergunta:
— Me diga uma coisa, Suzane: quem você acha que matou os seus pais?
— A empregada! – respondeu ela, determinada e seca, surpreendendo a
todos.
Astrogildo, Daniel, Suzane e Andreas seguiram para a residência da família
Cravinhos. Tomaram café e dormiram por volta das 8h. Enquanto descansavam,
peritos e policiais faziam uma varredura na mansão dos Richthofen. Legistas
levaram o corpo de Manfred e Marísia para o IML e lá esquadrinharam os
cadáveres em busca de informações úteis à elucidação do crime. Pistas coletadas
na mansão cruzadas com dados colhidos dos corpos das vítimas levaram os
investigadores a tirar a primeira conclusão: mais de uma pessoa matou o casal
simultaneamente, pois se fosse apenas um assassino daria tempo de uma das
vítimas pelo menos tentar escapar da cama. Quando se depararam com o fundo
falso do closet aberto, os policiais chegaram a outra conclusão importante: quem
acessou aquele compartimento secreto conhecia os segredos da casa. A arma
caída no chão próximo da mão de Manfred ajudou os investigadores a chegarem
a outra certeza: não foram ladrões profissionais que entraram ali. Esse tipo de
bandido jamais deixaria uma arma calibre 38 nova com cinco balas para trás.
Jamais!
Na biblioteca da mansão, os peritos encontraram caída no piso a tal pasta
007. Só ao suspendê-la do chão, no entanto, eles atestaram, pelo rasgo, que a
valise estava vazia. Os policiais ficaram surpresos. Afinal, como Suzane sabia que
o dinheiro não estava lá se a mala estava fechada a segredo e caída no chão com o
corte lateral virado para baixo? O golpe na mala também suscitou outro enigma.
Os peritos encontraram devidamente guardada numa gaveta da cozinha a faca
serrilhada usada para cortar a pasta. Na lâmina, havia vestígios do couro de
revestimento da valise. Dedução dos peritos: quem fez o rasgo sabia onde estava
a faca e ainda se deu ao trabalho de guardá-la depois do uso. Sabe quando um
ladrão faria isso? Nunca, nunca, nunca!
Outros elementos levaram os policiais a crer que pessoas próximas da família
seriam autoras do crime: 1) Os quartos de Suzane e de Andreas não foram
vasculhados; 2) Sobre a mesa da biblioteca havia um celular e dois talões de
cheques; 3) Não levaram da mansão os dois carros novos de luxo das vítimas
(uma Blazer e um Santana) e nenhum eletrônico de valor; 4) Não havia sinal de
arrombamento. Entretanto, aquele monte de conclusões formava apenas uma
montanha de indícios. Não havia evidências revelando autoria com nome e
sobrenome. Enquanto os investigadores trabalhavam na mansão dos Richthofen,
a campainha tocou. Era Rinalva chegando para trabalhar. Ao se deparar com os
policiais dentro da casa, a empregada levou um susto. Os policiais a intimidaram:
— Quem é a senhora? – quis saber um agente.
— Meu nome é Rinalva. Sou empregada da casa.
— A senhora tem a chave?
— Tenho.
— Então por que tocou a campainha?
— Porque a porta está lacrada e tem muitas viaturas lá fora.
— A senhora precisa prestar esclarecimentos na delegacia.
Rinalva, uma empregada nordestina e pobre cujo sonho era ter uma casa
própria, que conseguiu realizar com a ajuda de Santa Marísia, tornou-se suspeita
de matar os patrões. Foi levada para a delegacia imediatamente. No caminho,
chorou pela morte da médica e do engenheiro e chorou por medo de ser presa
acusada de duplo homicídio. Rinalva depôs para a delegada Cíntia no DHPP. Deu
detalhes da rotina do casal, de Andreas e de Suzane e afirmou ser comum os
patrões beberem cerveja, vinho e uísque diariamente, principalmente durante o
almoço. Contou que as vítimas eram tão exigentes ao ponto de obrigá-la a entrar
pelo portão de serviço e sempre ter acesso à mansão pelas portas dos fundos.
Apesar dessas formalidades, Rinalva afirmou que eles eram ótimos chefes. A
doméstica dissipou as suspeitas ao levar o namorado e uma irmã como álibi. Os
dois confirmaram à delegada que Rinalva estava em casa na noite do crime.
Cíntia revelou então que foi Suzane quem apontou a empregada da casa como
suspeita. Imediatamente, Rinalva se lembrou de Diana, a autora de ameaças à
Marísia no portão:
— Conte como foram essas ameaças – pediu a delegada.
— A Diana era muito indiscreta e fofoqueira, e dona Marísia não gostava
disso. Ela foi demitida após um mês de trabalho e passou a ligar todos os dias
cobrando uma dívida. Até que ela foi ameaçar dona Marísia pessoalmente –
resumiu.
Dispensada pela polícia, Rinalva passou a ser seguida por investigadores a
todo lugar que ia, mesmo depois de jogar a suspeita nas costas de Diana. Num
depoimento seguinte, dado pela ex-paciente de Marísia, Cláudia Sorge, Diana foi
apontada novamente como possível assassina. Como já se sabia àquela altura do
tempo, Marísia costumava estreitar laços de amizade com suas pacientes, prática
abominada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Cláudia admitiu em
depoimento que, nas terapias, a conversa sempre escapava para o lado pessoal.
“Durante uma sessão, a Marísia me contou que a Diana costumava fazer
comentários maldosos de cunho sexual sobre Andreas para os vizinhos”, relatou
na polícia.
Outra paciente de Marísia, Maria Isabel Smith Junqueira, foi à polícia
confirmar as ameaças feitas por Diana à médica psiquiatra, detalhando o
episódio em que a ex-empregada a abordou de forma agressiva na saída de casa
para cobrar a dívida de 1.700 reais. Diana passou a ser caçada freneticamente
pela polícia. Em depoimento, ela confirmou as ameaças, no entanto apresentou
um álibi tão forte – ela estava internada em um hospital público na semana do
crime – que a polícia a excluiu sumariamente da lista de suspeitos. A bem da
verdade, o crime nem sequer precisou das funcionárias da casa para ser
esclarecido. Uma semana depois, uma moto Suzuki de 156 cavalos se encarregou
de jogar luz sobre os verdadeiros assassinos.
* * *
* * *
Na noite em que matou dona Marísia, Cristian saiu de casa às 21h30, no
bairro de Moema, para se encontrar com Daniel e Suzane e seguirem juntos para
a mansão dos Richthofen. No elevador, topou com a amiga e vizinha Cristiane
Santos Silveira, de 23 anos na época. Esteticista, ela gostava de moda, música e
programas radicais. Convidou Cristian para assistir a dois amigos em comum,
Guimil e Marcos, disputarem naquela noite uma queda de braço no Nectar Bar,
localizado na esquina da Avenida Brigadeiro Faria Lima com a Juscelino
Kubitschek. Cristian agradeceu o convite e recusou, justificando que havia
marcado com Daniel e Andreas uma disputa de jogos na Red Play. Cristiane
insistiu, mas ele foi irredutível. Ela se despediu do amigo e foi assistir à queda de
braço no bar. Cristian foi matar dona Marísia.
Guimil era um homem musculoso e o seu rival, magrelo. Ou seja, estava na
cara quem sairia vencedor daquele embate. Apesar de ser uma luta amadora, os
jogadores seguiam regras de competições profissionais. Não podiam usar anéis,
relógios e pulseiras. O braço usado na luta deveria ter a mão colada na do
adversário e alinhada no centro da mesa. Nem os dedos escapavam do
regulamento. Os polegares sempre unidos e entrelaçados; a falange distal do
pólex tem de estar sempre à vista. A mão livre segura a lateral da mesa. Já os pés
não podem perder contato com o chão, caso contrário é marcada uma falta.
Ganha quem tiver força suficiente para fazer o braço do oponente desabar sobre
a mesa.
O tempo da partida é indeterminado, mas a luta entre Guimil e Marcos
durou poucos segundos. Logo no início do embate, Marcos usou uma técnica
conhecida como gancho. Trata-se de uma artimanha básica desse esporte.
Marcos, o magrelo, girou o pulso para dentro e trouxe o próprio braço para
próximo de si. Assim, ele usou toda a energia do corpo num único movimento
de ataque, enquanto Guimil passou a se defender usando apenas o braço. O golpe
foi tão rápido quanto uma piscada de olhos. Para derrotar Guimil, o oponente
empregou uma força tão bruta que o braço do amigo quebrou na altura do
úmero. O coitado sentiu tanta dor que desabou no chão, contorcendo-se e
fazendo caretas. Cristiane e Marcos o levaram às pressas à emergência do
Hospital São Paulo. Lá eles descobriram que a potência do golpe de Marcos
resultou numa fratura tipo helicoidal, quando o osso quebra por torção em
espiral. Cristiane percebeu que o atendimento médico a Guimil iria demorar. Ela
resolveu passar em casa para pegar dinheiro e voltar ao hospital.
Quando chegou de carro ao prédio em que mora, à 1h45 da madrugada,
Cristiane viu Cristian na janela do apartamento fumando um cigarro. A essa
altura, o jovem havia assassinado Marísia fazia duas horas. Como ele morava no
terceiro andar, ela puxou conversa da calçada da rua. Contou que Guimil estava
no hospital com o braço quebrado. Cristian desceu e se prontificou a ajudar.
Cristiane pegou dinheiro e os dois seguiram ao hospital no carro dela. Guimil
passava por uma série de exames e radiografias. Cabisbaixo, Marcos sentia-se
culpado por ter machucado o amigo. Cristian, apesar de ter matado a mãe de
Suzane a pauladas há poucos instantes, encontrou forças para consolar o amigo
na sala de espera.
— Esse tipo de acidente é comum em esportes de luta. Você não tem culpa –
confortou Cristian.
— Eu sei. Mas acho que exagerei – insistiu Marcos.
Os três falavam banalidades enquanto Guimil recebia tratamento médico. De
repente, Cristian se afastou e caminhou sozinho pelo amplo corredor de piso
azul-celeste do hospital. Avistou uma cadeira de rodas largada num canto,
sentou-se nela combalido e baixou a cabeça, levando as duas mãos ao rosto,
comprimindo as bochechas. Feito criança, Cristian verteu lágrimas
copiosamente. Era um pranto sonoro de desespero. Cristiane ouviu o choro do
amigo de longe e foi até ele:
— Nossa, Cristian! Você está soluçando. O que houve?
— Não sei. Não estou legal. Estou com uma sensação estranha. Um
pressentimento ruim. Mau presságio. Sei lá...
— Deve ser o clima pesado de hospital.
— Pode ser... – encerrou Cristian, enxugando as lágrimas.
Ainda no corredor azulado, afastado de Marcos, Cristian abordou a amiga
com o olhar fixo:
— Cristiane, que horas são?
— São quase 4h da manhã – respondeu ela.
— Que horas a gente se encontrou lá no prédio para vir ao hospital?
— Sei lá. Acho que era entre 1 e 2 horas da madrugada. Por quê?
— Não, não. Não era entre 1h e 2h da madrugada. Você está enganada! Era
por volta de meia-noite! – corrigiu ele.
— Acho que não. Meia-noite era a hora que eu e o Marcos chegamos com o
Guimil aqui no hospital – informou Cristiane.
Angustiado, Cristian segurou fortemente os ombros de Cristiane e fez um
apelo dramático, deixando-a assustada:
— Cristiane, olha só: se alguém perguntar desde que horas estamos juntos,
preciso que diga “a partir de meia-noite” – suplicou o assassino.
— Ok, ok! – respondeu a amiga sem entender nada.
Guimil foi liberado por volta das 5h da manhã. Saiu com o braço engessado e
apoiado por uma tipoia. Era levado em uma cadeira de rodas empurrada por
Marcos, que se desculpava a cada cinco minutos. Com exceção de Cristian, todos
passaram a rir, descontraídos com a situação. De lá, foram comer sanduíche no
McDonald’s da Avenida dos Bandeirantes já com o dia clareando. Ainda em
clima de alegria, Cristiane e Marcos pegaram uma caneta e passaram a escrever
frases exaltando a amizade no gesso branquíssimo que moldava o braço
quebrado de Guimil. Cristiane escreveu: “Que a sua recuperação seja rápida”.
Marcos registrou o seu remorso com o clichê: “Se arrependimento matasse...”
Cristian, por sua vez, pegou a caneta e escreveu lentamente um trecho da música
“Como uma onda”, de Lulu Santos e Nelson Motta: “Nada do que foi será de
novo do jeito que já foi um dia”. Ninguém entendeu. Da lanchonete, cada um
seguiu para a sua casa. No primeiro telejornal do dia transmitido em rede
nacional, a notícia mais importante foi anunciada pelo apresentador assim: “Um
mistério para a polícia paulista: o assassinato de um casal dentro de casa num
bairro nobre de São Paulo”. Era só o começo da cobertura massificada que a
imprensa faria do caso Richthofen.
Em casa, Cristian não conseguiu dormir, apesar de ter virado a noite
acordado. Ele tomou um banho gelado, subiu até o 14o andar e bateu na porta do
apartamento do amigo Jorge Ricardo March, de 24 anos na época. Jorge era
estudante de Direito e estagiava em um renomado escritório de advocacia. A ele,
Cristian disse guardar dólares em casa há muito tempo e tinha visto na TV que
era o momento propício para gastá-los, pois a moeda norte-americana estava em
alta. Queria aproveitar a oportunidade para comprar uma moto potente. Mas
havia um porém. Ele não podia pôr o veículo em seu nome por questões pessoais
envolvendo sua ex-namorada, Nathalia, que morava em Londrina e criava um
filho seu. Cristian também alegou ter dívidas em bancos. Ou seja, ao adquirir um
bem em seu nome, poderia perdê-lo em ações de arresto movidas por credores.
Jorge se comoveu com aquele poço de lamúria e foi naquela manhã com o
amigo à loja Nahime Motos, no Brooklin. Lá, Cristian escolheu uma Suzuki
usada modelo GSX 1.100, comprada à vista por 3.600 dólares (cerca de 12.000
reais na época) e paga com 36 notas de 100 dólares. Conforme acertado, a moto
ficou em nome de Jorge, mas quem saiu de lá pilotando foi Cristian. No
escritório, Jorge viu no noticiário uma reportagem sobre a morte de Manfred e
Marísia falando justamente sobre o roubo de moedas estrangeiras. Ele sabia que
o irmão de Cristian namorava a filha das vítimas.
Aventureiro, Cristian encheu o tanque da sua possante e andou pela cidade
por mais de quatro horas. Foi mostrar o brinquedo novo aos amigos. Cristiane,
Guimil e Marcos foram os primeiros a ver. A Suzuki escolhida por ele é uma das
máquinas mais cobiçadas por motociclistas do mundo e tem até fã-clubes
espalhados pela Europa, Japão e Estados Unidos. A moto consegue fazer de 0 a
100 quilômetros por hora em menos de três segundos, transformando a Suzuki
num verdadeiro monstro de duas rodas. Os amantes de motociclismo
apelidaram esse modelo de “bandida” e se referem a ela com o seguinte
predicado: “A verdadeira estupidez em forma de máquina”. Inebriado, Cristian
acelerava a sua moto e dava cavalos de pau no meio da Rua Graúna, em Moema,
onde morava. Àquela altura do dia, só se falava na morte do casal Richthofen e
no roubo na mansão. Os amigos de Cristian passaram a desconfiar dele.
Cristiane se lembrou da conversa no hospital e o confrontou:
— Cristian, desce dessa moto! Quero falar com você!
— Fala daí – e continuou dando piruetas.
— Você tem alguma coisa a ver com a morte dos pais da Suzane? –
questionou ela na frente de Guimil e Marcos.
Submetido a uma pergunta tão indigesta, Cristian teve náuseas. Parou a
moto, tirou o capacete e se aproximou de Cristiane. Com a boca seca e trêmula,
perguntou se a amiga estava doida. Cerca de dez vizinhos cercaram os dois na
rua para ouvir a conversa:
— Eu tenho cara de assassino? – ousou perguntar Cristian.
— De onde veio o dinheiro para comprar essa moto? – replicou Cristiane.
— Ela não é minha. É do Jorge. Foi ele quem comprou. Só estou guardando –
justificou, tirando do bolso a nota fiscal da moto em nome do amigo e
mostrando-a para quem quisesse ver.
— Não acredito em você! – finalizou Cristiane.
Pela cara dos amigos e vizinhos, Cristiane não era a única incrédula ali.
Cristian sentiu uma inquietação tomar conta do seu corpo. A moto reluzente
chamava muita atenção. Quanto mais o noticiário falava do crime da Rua
Zacarias de Góis, mais ele ficava perturbado e se revelava incompetente na arte
de dissimular. A casa da sua namorada, Maria Lúcia, de 16 anos na época, era no
mesmo prédio em que morava, no sexto andar. Do alto, ela o viu se exibindo na
moto e resolveu descer. Estava acertado que o casal passaria o fim de semana na
chácara da família dela, no município de Mairinque, a 60 quilômetros da capital.
Eles viajariam à noite. Apesar da pouca idade, a adolescente era astuta. Ao ver
Cristian ao lado da Suzuki, Maria Lúcia foi logo ordenando:
— Tira essa moto daqui!
— Vamos para o sítio na moto, amor – anunciou ele.
— Nem pensar!
— Por que não? – quis saber.
— Cristian, eu não sou mais criança. Eu sei como você comprou essa moto! –
especulou Maria Lúcia para desespero do namorado.
— Eu vou te explicar...
Antes de ele começar a ladainha da moto comprada pelo amigo, Maria Lúcia
virou as costas, deixou o namorado falando sozinho no meio da rua e voltou para
casa. Não havia ninguém no apartamento. Ela ligou a TV e viu no jornal o enterro
de Manfred e Marísia. A cena de Suzane toda descabelada usando uma blusinha
preta com a barriga chapada à mostra em pleno cemitério chamou mais atenção
do que as lágrimas falsas que escorriam pelo rosto torto por excesso de caretas.
Pela TV, era possível ver Daniel vestido de camisa social e gravata consolando a
namorada enquanto os caixões seguiam cova abaixo cobertos por uma chuva de
pétalas. As câmeras de televisão captaram Andreas arrasado. De dentro do
campo-santo, o repórter Valmir Salaro, da TV Globo, narrava o funeral assim:
“O casal foi enterrado num cemitério da zona oeste de São Paulo na presença
dos dois filhos. O duplo assassinato ainda é um mistério para a polícia. Foi nessa
mansão que Manfred von Richthofen e sua mulher, Marísia, foram mortos com
pancadas na cabeça. Os dois filhos disseram que tinham saído de casa. Andreas
afirmou que estava numa casa de jogos eletrônicos até as três da madrugada.
Suzane contou à polícia que estava num motel com o namorado. Do motel, ela
passou para buscar o irmão. Ao chegarem em casa, encontraram os pais mortos e
chamaram a polícia. Suzane disse que foram roubados dólares da mansão. Para os
investigadores, os ladrões conheciam a casa, pois os alarmes de segurança foram
desativados e não havia sinal de arrombamento”.
Alarmado, Cristian estacionou a moto na garagem do prédio e subiu até o
apartamento da namorada. No trajeto, começou a derreter com medo de ser
descortinado. Das profundezas da sua alma, veio naquele momento o sentimento
de que ser preso era só uma questão de tempo. Ele até já se imaginava algemado
dentro de um camburão da polícia e sendo despejado em uma penitenciária.
Vulnerável diante de Maria Lúcia, na sala, começou a chorar. Tentava falar e não
conseguia. Estava tão fora de si que babava enlouquecido e gemia como se fosse
parir. Trôpego, jogou-se no tapete felpudo da sala diante da garota e começou a
se expressar com muita dificuldade. Segurando as mãos de Maria Lúcia, de
joelhos, Cristian abriu o coração:
— Amor, fiz uma coisa horrível... – anunciou, desmanchando-se em
lágrimas.
— O que você fez? – ela quis saber.
— Você já sabe...
— Quero ouvir da sua boca! Fala!
— Eu matei a mãe da Suzane – confessou.
— Tá escrito na sua cara! – anunciou a namorada, revoltada.
— Serei preso! – previu Cristian, já um assassino confesso.
Maria Lúcia ficou muda, prostrada no meio da sala vendo o namorado
desmantelado.
— E agora? O que eu faço? – interrogou Cristian.
— Devolva essa moto! – sugeriu a adolescente.
O pai de Maria Lúcia, Sílvio Rodrigues Peixoto, oficial de Justiça, andava
armado e era considerado um pai severíssimo. Com medo da reação dele, a
garota resolveu não compartilhar a confissão do namorado assassino. Ela
também passou a ter medo de Cristian, uma vez que ele revelou-se um homem
cruel, capaz de matar. O receio de Maria Lúcia a fez guardar aquele segredo para
si. À noite, foi para o sítio da família com Cristian, conforme o combinado. Lá, já
recomposto, o homicida mostrou à namorada as joias roubadas da mansão dos
Richthofen. Maria Lúcia pegou duas peças (um par de brincos prateados em
forma de elefante e um anel de ouro) e experimentou. Gostou tanto que resolveu
ficar com as joias. Mandou o namorado dar um sumiço com o restante. Cristian
resolveu enterrá-las no quintal. Jantaram, tomaram vinho e fizeram amor.
Um vampiro, uma senhora sentada, um homem
deitado e o demônio com chifres
F
undado em 1922 para sepultar protestantes estrangeiros e com tamanho
equivalente a um campo de futebol, o Cemitério do Redentor ficou
pequeno para o funeral do casal Richthofen. Apesar de Manfred e Marísia
terem poucos amigos, a imprensa acabou atraindo uma legião de curiosos. Eles
se apinhavam sobre as sepulturas e subiam até em árvores para espiar o caixão do
casal passar pelas vielas apertadas do local. No meio da muvuca, Amanda, a
melhor amiga, tentou encontrar Suzane para consolá-la, mas foi impossível
chegar perto dela por causa do tumulto. Logo após o enterro do casal, Suzane e
Daniel foram para a mansão. Era uma sexta-feira e Rinalva estava em casa,
chorosa, sem saber o que fazer. Foi Suzane quem deu as primeiras instruções à
empregada:
— Dona Rinalva, tudo bem com a senhora? – perguntou.
— Sim. Ainda trabalho nesta casa?
— Claro que sim! Só que agora eu e o meu irmão somos os seus patrões.
— O que devo fazer? – quis saber.
— Me acompanhe! – ordenou a nova ama.
Pela primeira vez Suzane seguiu até o quarto dos pais depois do duplo
homicídio. Acompanhada da funcionária, a jovem ficou uns instantes em
silêncio dentro do cômodo. A órfã olhava atentamente para as paredes, para o
chão e esticava o pescoço para enxergar o teto, como se inspecionasse o palco do
crime. Depois, arregaçou as mangas e começou a agir. Puxou as cortinas, abriu as
janelas. Havia sangue ressecado sobre a cama, nas paredes e até no gesso branco
do forro. Enfática, Suzane ordenou:
— Dona Rinalva, limpe tudo, tudo, tudo! Até o fim da tarde não quero ver
nenhuma manchinha de sangue neste quarto. A senhora ouviu bem?
— Mas, Suzane...
— Dona Suzane! Agora sou dona! – corrigiu a patroa de quase 19 anos.
— Desculpe! Dona Suzane, esse tipo de trabalho é complicado. Não seria
melhor chamar uma empresa especializada em limpeza pesada?
— Nem pensar. Limpe a senhora sozinha! – insistiu.
Contrariada, Rinalva passou a esfregar as paredes com água e sabão. Com
muita dificuldade, removeu as manchas maiores. A empregada estava pondo a
coberta da cama na máquina de lavar, quando Daniel interveio:
— O que a senhora está fazendo?
— Vou lavar os lençóis!
— Nem pensar. Jogue tudo fora no lixo! – mandou.
Em seguida, Suzane decidiu jogar a cama toda fora. No final da tarde, quando
a empregada estava de saída, Suzane pediu um momento. E seguiu à suíte para
conferir se a limpeza estava do seu agrado. Não estava.
— Dona Rinalva, ainda tem mancha de sangue no teto! – observou.
— Eu fiz o que pude, dona Suzane. Tinha muito sangue.
— Limpe tudo. É uma ordem! Não quero uma gota vermelha aqui!
A funcionária usou água sanitária e removedor para eliminar todos os
vestígios do crime. Foi embora às 22h. No trajeto para casa, da porta da mansão
até o seu casebre, na periferia de São Paulo, Rinalva percebeu ser seguida
discretamente pelo mesmo investigador de outrora. Ela subiu no ônibus, pagou a
passagem e escolheu um assento duplo vazio. O policial foi atrás e sentou-se ao
seu lado.
— Boa noite, dona Rinalva. Sou policial.
— Eu sei.
— Vamos conversar?
Mesmo receosa, ela respondeu a todas as perguntas feitas por ele sobre a
nova rotina na mansão dos Richthofen. Rinalva revelou a ascensão da menina
que mandou matar os pais ao matriarcado e deu detalhes da dificuldade em
sumir com as manchas de sangue das paredes. Quando falou que Suzane e Daniel
jogaram a cama fora, os olhos do investigador se arregalaram.
No sábado pós-funeral, Suzane completou 19 anos. A assassina dispensou o
luto e resolveu comemorar o aniversário com um churrasco. Para não chamar
muita atenção, convidou só amigos íntimos. Encheu a piscina, pôs música alta e
serviu cerveja e vodca com energético. Daniel ficou encarregado de assar a carne.
Amanda foi convidada, mas resolveu não comparecer alegando ter medo de
assombração. De volta do sítio, Cristian levou Maria Lúcia. Ousada, a
adolescente usou os brincos em forma de elefante de Marísia. Suzane reconheceu
os acessórios da mãe e pegou levemente nas orelhas da garota: “ficaram lindos
em você!”.
No início da tarde, no auge da festa, a campainha tocou. Acreditando serem
repórteres à porta, Suzane decidiu não atender. Da cozinha, pelo sistema de
câmeras, Daniel viu seis policiais no portão. A aniversariante, vestindo biquíni,
foi lá fora com um cigarro em uma mão e uma lata de cerveja na outra. A
delegada Cíntia Tucunduva, acompanhada de investigadores e peritos, pediu
para entrar. Do portão, Suzane fez sinal para Andreas abaixar o volume do som e
permitiu o acesso dos policiais. Feito uma guia de turismo, Suzane ciceroneou os
investigadores por dentro da mansão, enfatizando se tratar de um cenário de
crime.
— Aqui é a sala, por onde os ladrões entraram – mostrou.
— Onde fica a suíte? – quis saber a delegada.
— Por aqui. Venham! – subiram a escada de dois lances.
No quarto dos pais, simpática, Suzane estendeu o braço lentamente para
anunciar:
— Foi aqui que tudo aconteceu. As paredes e o teto estavam sujos de sangue,
mas mandei limpar tudo, tudo, tudo.
— Onde está a cama? – interrogou a delegada.
— Mandei jogar fora, pois trazia lembranças ruins.
— Oi?!
Os policiais se entreolharam desconfiados. O assassinato ainda não tinha
completado 48 horas. Suzane quebrou o clima tenso ao revelar que a cama ainda
estava no quintal. Os peritos recolheram a cabeceira, onde havia marcas das
porretadas dadas pelos irmãos Cravinhos. Cíntia fechou a cara e fez perguntas de
forma ríspida à Suzane:
— Quero saber onde você guarda o material de limpeza, menina!
— Na despensa.
— Mostra onde fica! – pediu a delegada, enfática.
Solícita, Suzane levou Cíntia e os peritos até o local, um compartimento
afastado da casa, próximo à churrasqueira, na área externa. Andreas e Cristian se
mostravam indiferentes à presença dos policiais na casa. Andreas pôs fones de
ouvido, ouviu música e viajou para outro mundo, dançando e pulando. Daniel
viu o movimento dos policiais rumo à despensa e foi atrás. Lá dentro, as
perguntas embaraçosas da delegada continuaram:
— Quero ver onde ficam os sacos de lixo!
— No armário – apontou Suzane, incomodada.
Cíntia pôs luvas, abriu o armário e viu vassouras, panos de chão e dezenas de
garrafas plásticas contendo sabão líquido, água sanitária, amaciante de roupa e
detergentes. Nada de sacos de lixo. Na parte de baixo do móvel, havia seis nichos
com panos de chão e outros apetrechos. A delegada remexeu um por um até
encontrar um rolo de 100 unidades de sacos pretos de 60 litros. Pelo tamanho da
embalagem, foi possível concluir: poucas unidades haviam sido retiradas do rolo.
A delegada arrancou um saco de lixo do rolo, levantou com a ponta dos dedos e
fez uma afirmação desagradável, porém proposital:
— Tá vendo esse saco, menina?
— Sim!
— Olhe bem para ele! Foi num saco como este que a cabeça da sua mãe foi
amarrada.
— Não sei. Foi? Eu não tive coragem de ver – desconversou Suzane.
Para os peritos, a delegada fez o seguinte comentário: “Os assassinos
conheciam tanto a casa que vieram buscar saco de lixo aqui na despensa, neste
armário, dentro desse nicho”. Suzane ficou lânguida e Daniel transpareceu
nervosismo. Nenhum deles replicou a especulação da delegada. Em seguida, a
equipe guardou o rolo consigo sem dar qualquer satisfação e foi embora.
Inabalada, ainda com cigarro e bebida nas mãos, Suzane se despediu dos policiais
com um “até logo” e fechou o portão. Daniel ficou apreensivo.
— Essa delegada está desconfiando de nós.
— Deixa ela desconfiar. Quero ver ela provar! – desafiou Suzane.
— Estou começando a ficar com medo – admitiu Daniel.
— Já disse a você um milhão de vezes, mas vou repetir mais uma: para de se
comportar como um assassino. Você tem que ser frio. Senão, vai acabar dando
mancada e pondo tudo a perder – insistiu a jovem.
— Acho justamente o contrário. Essa sua frieza é que está dando bandeira –
ponderou o namorado.
— Não vou mais discutir. O tempo vai dizer quem está com a razão –
finalizou Suzane.
A presença dos policiais não conseguiu estragar a festa de aniversário da
parricida. A balada seguiu até o fim da tarde com todos dançando música
eletrônica, bebendo e fumando maconha, inclusive Andreas. Na noite de
domingo, Suzane, Daniel e Andreas foram jantar na casa do tio Miguel Abdalla
Netto, irmão de Marísia. Ele estava preocupado com o fato de os sobrinhos
estarem em casa sozinhos. O crime foi pauta da refeição:
— Tomara que encontrem os assassinos – torceu Miguel.
— Ouvi dizer lá na polícia que os assaltantes fazem parte de uma quadrilha
profissional de fora do estado. Eles nunca serão presos – enfatizou Daniel.
— Seja o que Deus quiser – finalizou o tio.
Miguel não quis prolongar o assunto mórbido. Após o jantar, durante o
cafezinho no sofá, tentou consolar Suzane com um abraço, mas ela estava
arredia. O tio viu naquela noite uma frieza nunca percebida antes na sobrinha.
Como a morte dos pais era muito recente, ele acreditou que aquela reação inédita
seria consequência de um choque emocional. No entanto, o excesso de carícias
trocadas entre Daniel e Suzane naquele encontro social acendeu uma luz de
alerta em Miguel. No final do jantar, ele lembrou a sobrinha de que os
funcionários do consultório de Marísia precisavam ser avisados oficialmente por
alguém da família sobre o encerramento das atividades. Na manhã do dia
seguinte, Suzane e Daniel foram até lá. O casal entrou sem cumprimentar as duas
atendentes. Seguiram diretamente para o gabinete de Marísia. Suzane abriu
gaveta por gaveta e pegou dinheiro e cheques assinados pelas pacientes,
totalizando 8.500 reais em valores da época. Na saída, a jovem comunicou em
voz alta a demissão coletiva. Irritada, uma das atendentes ligou para a polícia
dando detalhes da visita do casal.
Dois dias depois de dispensar as funcionárias de Marísia, Suzane começou a
receber uma série de intimações para depor na delegacia junto com o namorado.
O último convite foi feito no dia 20 de novembro. Suzane teve um feeling de que
esse seria um depoimento terminal. Amanda se comprometeu a ajudar Suzane a
escolher uma roupa adequada, pois ela ainda recebia muitas críticas por causa do
figurino de pouco pano usado no enterro dos pais e replicado na primeira página
de todos os jornais do dia seguinte. Mas havia um problema. Amanda estava com
medo de entrar na mansão. Acreditando piamente que o casal Richthofen foi
morto por bandidos, a amiga vislumbrava o retorno dos assassinos para matar
Suzane e Andreas. Amanda também argumentava ter medo dos mortos. Com
muito esforço, Suzane a convenceu a entrar na casa. Na sala, Amanda sentiu um
frio na espinha. À medida que subia as escadas, o calafrio só aumentava. Estar no
local onde duas pessoas foram mortas brutalmente deixava a estudante
dominada pelo pavor. Ainda assim, ela acompanhou a amiga até o quarto.
Suzane tinha pouquíssimas peças de vestuário para uma garota da classe
média alta de 19 anos. Para se ter uma noção, o guarda-roupa dela tinha apenas
duas portas e duas gavetas pequenas. Diante de tão poucas opções, não havia
muito o que escolher. Para ir à delegacia, Suzane vestiu calça jeans azul-claro,
jaqueta desbotada no mesmo tom e uma blusa amarelo-cajá. Enquanto a jovem
se arrumava, Amanda foi tomada por uma força externa inexplicável no plano
terreno. Deu uns passos – contra a sua vontade – e saiu do quarto de Suzane.
Movida por uma curiosidade mórbida e avessa, virou o corredor à esquerda e
entrou na suíte do casal Richthofen. Ficou paralisada no cômodo. Quis sair dali,
mas não teve forças. Começou a sentir tremores. De repente, Amanda sentiu
uma mão pesada repousar em seu ombro direito e soltou um grito histérico. Era
Daniel, com ar de dono da porra toda. Os dois ficaram frente a frente:
— O que você está fazendo aqui? – quis saber Daniel.
— Eu? Nada! – respondeu Amanda, lacônica.
Intrigada com o berro da amiga, Suzane adentrou às pressas o quarto dos
pais. Amanda já estava recomposta do susto, mas ainda parecia distante. De pé,
no meio do quarto, a sensitiva fechou os olhos e construiu o seguinte cenário em
sua imaginação: a cama com o casal morto sobre ela, coberta de sangue. Como
Daniel estava lá, ao seu lado, ela o introduziu inconscientemente na cena do
crime fantasiada em sua cabeça. Amanda teve um impulso arrebatador, abriu os
olhos e falou para si: “Meu Pai eterno! Foi ele!”. Sem se despedir, Amanda saiu
correndo da mansão, tropeçando pelos tapetes e degraus. Não mais com medo
dos mortos. Dessa vez, ela fugia dos vivos. Suzane e Daniel ficaram sem entender
aquela cena.
— A sua amiga enlouqueceu? – quis saber Daniel.
— Ela tem medo de espíritos – contemporizou Suzane.
Enquanto dirigia sem rumo pelas ruas da cidade, Amanda relembrava as
cenas de ciúme protagonizadas por Daniel e Suzane na faculdade; de como ela
bancava as despesas dele; das queixas da amiga por causa do namoro proibido e
da arma mostrada por Daniel quando eles acamparam na praia. A empáfia do
piloto na casa da namorada logo após a morte do casal aumentava as suas
desconfianças. Três horas depois de sair esbaforida da mansão, Amanda ligou
para Suzane, mas ela não atendeu. Na mesma hora, as duas passaram a trocar
mensagens de texto pelo celular. Amanda iniciou a conversa: “Preciso falar com
você urgentemente”. De imediato, veio a resposta: “Agora não posso, estou indo
para a delegacia”. Amanda investiu um pouco no suspense: “Temos de conversar
antes de você depor. É sobre o assassinato dos seus pais. Descobri algo importante”.
Curiosa, Suzane não resistiu: “Me encontre, então, em meia hora, no
estacionamento do supermercado Extra, perto da Avenida dos Bandeirantes”.
Seguiram para lá.
No estacionamento, Amanda avistou o carro de Suzane e parou ao lado. Não
havia ninguém dentro do Gol da amiga. Amanda desceu e Suzane apareceu por
trás, assustando-a involuntariamente. Trêmula, começou a falar:
— Suzane, não sei nem como começar. Estou muito nervosa. Olha, você
corre perigo. Tive uma visão quando estava no quarto dos seus pais. Uma visão,
uma premonição, uma clarividência, sei lá... Eu fechei os olhos e vi o assassino
dos seus pais lá dentro. Você não vai acreditar quem é...
— Do que você está falando, sua louca? – questionou Suzane, irritada.
— Vou te contar...
Quando se preparava para revelar à Suzane ser Daniel o assassino, segundo a
sua quimera, ele apareceu no estacionamento com sacolas de supermercado e
fumando um cigarro tranquilamente, interrompendo a conversa. O piloto
encarou Amanda, que deu três passos para trás, muda. Suzane lançou a Daniel
um olhar de cumplicidade. Em seguida, estimulou a amiga a continuar falando:
— Amanda, você estava dizendo que teve uma visão e acabou descobrindo
quem matou os meus pais. Então diga quem foi para eu contar à polícia – pediu
Suzane.
Daniel encarou Amanda com um olhar de bala de carabina. Intimidada,
resolveu suspender a revelação. Desconversou dizendo ter tido um devaneio e
não uma visão. Suzane, aparentemente irritada, despediu-se argumentando estar
atrasada para depor. Daniel pediu para Amanda não ligar mais para eles, pois
todos os telefones estavam grampeados pela polícia.
— É verdade, Amanda. Não ligue mais para o meu celular. A polícia está
investigando todo mundo que frequentava a minha casa. Se você ficar ligando,
mandando mensagem, vão colocar você na lista de suspeitos – advertiu a jovem.
— Meu Deus! Tudo bem. Pode deixar. Nunca mais vou te ligar – concordou
Amanda.
Sem se despedir, Suzane entrou no carro, deu a partida e seguiu em direção à
saída do estacionamento com o namorado ao lado. Amanda ficou estática,
incrédula, olhando o carro desaparecer. Sem entrar em qualquer estado de
arrebatamento, transe ou fantasia, ampliou a sua certeza incluindo Suzane:
“Minha Nossa Senhora! Não foi só ele. Foram eles!”. Repentinamente, Suzane
parou o carro um pouco antes de sair da área interna do supermercado e deu ré
para se reaproximar de Amanda, que ainda estava no mesmo lugar. Ao parar ao
lado da amiga, Suzane abriu a porta e desceu. A tensão entre as duas se dissipou
completamente. Sem dizer nenhuma palavra, Suzane, que até então era avessa
aos abraços de Amanda, deu nela um bem longo, apertado e aconchegante
abraço. As duas ficaram entrelaçadas por um longo tempo, emocionadas. Ainda
muda, Suzane ajeitou o cabelo da amiga num gesto de carinho e se despediu
como se não fosse mais vê-la. Entrou no carro e seguiu para a delegacia. A
tradução daquele gesto extraordinário de ternura veio bem mais tarde, numa
carta escrita à mão por Suzane e endereçada à Amanda, na qual se lia em um
trecho:
“Amiga, por favor, acredite, eu não sou um monstro. [...] Me desculpa pela
decepção e me perdoa, se for capaz, por eu não ser a pessoa que você imaginava
que eu fosse. Queria te pedir um favor: cuida do Andreas como se ele fosse o seu
irmão mais novo. Ele é a coisa mais preciosa que tenho no mundo. Por último,
queria te fazer um pedido especial: nunca se esqueça de mim”.
* * *
A
ngustiada, Suzane debutou na prisão com um par de algemas nos pulsos
em 20 de novembro de 2002, dia de Santo Edmundo, o protetor dos órfãos
e das viúvas. Sua primeira moradia foi a Penitenciária Feminina da Capital
(PFC), um complexo de 11.717 metros quadrados de área construída no coração
do bairro do Carandiru, zona norte de São Paulo. Na época, a casa penal tinha
capacidade para 410 mulheres, mas hospedava 664, deixando a atmosfera do
local altamente inflamável. Oitenta por cento das prisioneiras cumpriam pena
por tráfico e 10% por crimes passionais. Detalhe: onde há traficantes confinados
imperam facções criminosas e as suas tradicionais rixas. Na PFC, a disputa de
poder, na época, ocorria entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e um
grupo dissidente, batizado de Terceiro Comando da Capital (TCC), as duas
organizações rivais mais sangrentas do país até então.
A Penitenciária Feminina da Capital foi inaugurada no dia 4 de setembro de
1973, dia de Santa Rosália, uma mulher religiosa de vida extremamente solitária,
segundo a hagiografia. Por 29 anos, a instituição foi vizinha da Casa de Detenção
de São Paulo, conhecida internacionalmente pela rebelião de 1992, cujo saldo foi
o massacre de 111 detentos pela Polícia Militar. Em 2002, os nove pavilhões do
Carandiru começaram a ser implodidos. Na área de 240 mil metros quadrados
foi construído o Parque da Juventude, um ponto turístico importante da capital.
Para preservar a história do lendário presídio, foram mantidas no parque parte
das ruínas das galerias, das muralhas e algumas torres usadas para vigilância.
Reza a lenda que o local era assombrado pelas almas dos 111 presidiários mortos
na chacina. Um terço do terreno era ocupado por uma mata fechada, colada ao
muro de 9 metros de altura da PFC. No bosque viviam árvores de grande porte,
como o guapuruvu (Schizolobium parahyba), uma espécie de 30 metros de altura
com folhas bipinadas de 1 metro e flores amareladas que eclodiam na primavera-
verão. Havia ainda o pau-ferro (Caesalpinia ferrea), uma espécie frondosa de 28
metros com copa arredondada e vistosa; além de carnaúba (Copernicia
prunifera), a palmeira sertaneja de 15 metros e folhas verdes e azuladas,
conhecida como árvore da vida. Segundo contam as carcereiras da PFC, as almas
dos homens mortos no massacre do Carandiru encarnam justamente nas árvores
gigantes desse bosque, principalmente em dias chuvosos e de muita ventania. As
ruínas do Carandiru e a vegetação imponente da redondeza fariam parte da vida
de Suzane durante dois anos de estada na PFC.
Quando a jovem botou os pés na casa penal, o dia estava chuvoso em São
Paulo. A condução da presa famosa ocorreu sob forte esquema de segurança,
incluindo batedores da Polícia Militar. A imprensa perseguia freneticamente
pelas ruas e até pelo céu a menina rica que mandou o namorado matar os pais.
Ao vivo no Cidade Alerta, da TV Record, o jornalista José Luiz Datena
acompanhava a chegada de Suzane do estúdio. Um repórter falava de um
helicóptero:
— Datena, São Paulo está sendo castigada por uma tempestade com raios,
trovões e ventos fortes. Estou nesse momento aqui do alto acompanhando a
polícia, que leva Suzane von Richthofen do DHPP rumo à Penitenciária Feminina
da Capital, uma das cadeias mais violentas de São Paulo. O comboio com dezenas
de viaturas está cruzando a Marginal Tietê pela Avenida Santos Dumont. Eles
seguem agora pela Ponte das Bandeiras com destino ao bairro do Carandiru, onde
fica a penitenciária. Datena, vou devolver para você aí no estúdio porque o
helicóptero está trepidando. É com você.
No estúdio, o apresentador continuou:
— Diretor, foca em mim! Para quem está sintonizando o Cidade Alerta agora,
vou explicar: Suzane von Richthofen acabou de confessar à delegada Cíntia
Tucunduva que mandou o namorado Daniel Cravinhos matar os próprios pais a
pauladas na calada da noite. Foi um crime horroroso que chocou a nação. O
Daniel convidou o irmão, Cristian Cravinhos, para o crime. Os dois vagabundos
também confessaram tudo. Ou seja, a menina rica, de rostinho angelical e voz
meiga, deixou de ser mera suspeita do crime. Agora, Suzane é uma assassina
confessa! Vou repetir para ela ficar com essa marca para sempre: Suzane é
ASSASSINA! A parricida e os irmãos Cravinhos vão aguardar o julgamento na
cadeia. Gente, quando eu falo desse crime, fico com o estômago embrulhado. Como
pode uma filha matar os próprios pais?
Ao chegar ao departamento de inclusão do presídio, Suzane sustentou a
mesma altivez usada para enfrentar a delegada Tucunduva. Ela encarou os
policiais na recepção e manteve a cabeça erguida até quando fez mais uma foto
para o registro de sua entrada no sistema penal de São Paulo, onde teve as
algemas retiradas. Em uma sala especial, recebeu com empáfia as primeiras
ordens, dadas por uma agente de segurança penitenciária:
— Tira a roupa!
— Não entendi – rebateu Suzane.
— Você é surda, garota? Eu mandei tirar a roupa! – repetiu a agente,
demonstrando impaciência.
— Espera um pouco! – suplicou a presidiária.
— Você está me dando ordens?
— Não! Não! Não!
Contrariada, Suzane se despiu do figurino escolhido no dia anterior com
ajuda da amiga Amanda para depor na delegacia. Três agentes femininas
testemunharam a cena íntima, todas com a cara amarrada. Primeiro, Suzane
tirou bem devagarinho a jaqueta desbotada. Dobrou a peça lentamente e a
acomodou com todo o cuidado sobre uma mesa de ferro. Tirou os sapatos.
Despiu-se da calça jeans combinada com a jaqueta e da camiseta amarela. À
medida que Suzane tirava a roupa, seu espírito se desarmava. Quando ficou
apenas de calcinha e sutiã, abaixou a cabeça e abraçou o próprio corpo, olhando
fixamente para o chão, com a postura curvada. Estática, Suzane se entregou a um
choro contido, repetindo várias vezes a expressão “Pelo amor de Deus!”. Ao
ouvir o apelo divino, a agente levantou a voz ordenando que a criminosa
cumprisse as regras da penitenciária. Quando Suzane estava nua em pelo, a
funcionária determinou:
— Agora se agache!
— Como?
— Mandei ficar de cócoras!
— Pra quê?
— Não me faça perguntas, menina!
— Isso é humilhante! – reclamou a assassina.
— Você tem razão. É vexatório! Mas se você não tivesse matado seus pais,
não passaria essa vergonha! – retrucou.
A revista íntima é praxe na entrada em presídios. Nuas, as presas faziam
agachamento em um chão espelhado para provar que não carregavam drogas ou
telefone celular escondidos no reto ou na vagina. Nessa época, as prisões
paulistas não tinham máquinas de raio-X. Só depois do ritual de revista Suzane
recebeu o uniforme de presidiária – calça cáqui e camiseta branca. Ainda na sala
de inspeção, ganhou um kit levado pelo seu advogado, composto por escova de
dentes, creme dental Colgate, chinelo de dedo, xampu, toalha branca, um rolo de
papel higiênico Sublime e sabonete Dove. Em seguida, foi acomodada na cela de
inclusão de número 4, uma das solitárias nas quais toda presa neófita é obrigada
a se hospedar por dez dias até se adaptar à rotina do cárcere. Na época, o
cubículo de 10 metros quadrados tinha somente uma cama de concreto e um
vaso sanitário embutido apelidado pelos presos de “boi”. A tradicional privada de
cerâmica, chamada de “pote” no glossário da cadeia, é evitada na cela de inclusão
porque é comum que presas de primeira viagem a quebrem. Atormentadas com
a privação da liberdade, costumam usar os cacos para se matar com golpes na
jugular.
Sozinha com os seus botões, Suzane tentou dormir à noite naquele ambiente
hermético. Tentou. Na calada da noite, era torturada pelo som horripilante das
árvores frondosas do bosque ao lado. Nas noites de ventania, os guapuruvus, os
paus-ferro e as carnaúbas faziam tanto barulho que pareciam estar saindo do
lugar. Ao ouvir árvores uivando pela primeira vez, Suzane sentiu pavor. Desabou
a chorar copiosamente pela segunda vez, assombrada pela curva acentuada que a
sua vida fazia naquele momento. Em uma carta escrita para Amanda um mês
depois de dar entrada na PFC, contou nunca ter chorado tanto na vida como nos
primeiros dias na solitária. “Amiga, estou chorando tanto que me sinto fraca
espiritualmente [...]. Tenho sido assombrada aqui dentro [...]. Só agora, sofrendo
nesse limbo, tenho noção da merda que eu fiz”, escreveu.
Logo depois do assassinato, Suzane recebeu em casa a visita do advogado
Denivaldo Barni, do quadro jurídico da Dersa, onde o pai trabalhava como
engenheiro. Manfred e Barni eram amigos íntimos. Às vezes, costumavam sair
para jantar depois do expediente. Assim que o crime começou a estampar as
manchetes dos jornais, a empresa nomeou Barni para acompanhar as
investigações da polícia. O advogado acabou criando um afeto paterno pela
acusada, a quem chamava de filha. Ela devolvia o carinho tratando Barni como
pai. Na primeira visita do tutor à cadeia, a jovem estava com o rosto inchado de
tanto chorar. Ele levou pizza e Coca-Cola. Os dois lancharam e conversaram no
parlatório da PFC:
— Não consigo dormir à noite! – queixou-se Suzane, enquanto mordia um
pedaço de margherita com borda de catupiry.
— Você vai sair logo daqui – prometeu Barni, dando um gole no copo de
refrigerante.
— Não vejo a hora. Tem umas árvores horríveis que fazem barulho na
madrugada.
— Não ligue para essas besteiras – aconselhou Barni.
— Como está o Daniel?
— O quê? Esquece ele. Aliás, você só vai se livrar de uma pena pesada se
acusá-lo pela morte dos seus pais.
— Nunca farei isso! Eu o amo! Amo! Amo! Amo! – finalizou ela, comendo
mais uma fatia de pizza.
Em um dos encontros diários com Barni, para surpresa do advogado, Suzane
pediu uma cópia do seu processo criminal para ler na solitária. A presidiária
queria entender o tamanho da encrenca na qual estava metida. Barni tentou
demover essa ideia, já que as peças jurídicas continham centenas de fotos de
Manfred e Marísia destroçados sobre a cama e até nus, costurados sobre as mesas
metálicas do Instituto Médico Legal (IML), junto de outros cadáveres. Suzane
insistiu, justificando ser parte no processo e estudante de Direito. Ou seja, ela
tinha poder legítimo de acessar a peça jurídica para saber com exatidão quais
provas pesavam contra si. Barni prometeu fazer uma cópia sem as fotos. Suzane
bateu o pé, deixando claro querer ver tudo, inclusive as tais fotografias. Por
último, alegou precisar preencher o tempo ocioso com leitura.
Ainda no primeiro mês de reclusão, Suzane saiu algumas vezes da cadeia para
depor no inquérito aberto para investigar a morte dos seus pais. Uma das saídas
de muita repercussão ocorreu a convite da delegada Cíntia Tucunduva, para
participar da reconstituição do crime, tecnicamente chamada de reprodução
simulada.
Quando envia um inquérito bem elaborado para o Ministério Público, a
polícia conta uma história com enredo amarrado, apontando inclusive a
dinâmica do crime e as motivações de cada um dos acusados. Refazer o
assassinato numa investigação é fundamental para reforçar a tese defendida pelos
policiais e principalmente para esclarecer dúvidas. Como Suzane e os irmãos
Cravinhos eram réus confessos, eles não se recusaram a reproduzir a noite em
que o casal Richthofen foi assassinado.
O primeiro a mostrar aos policiais como tudo ocorreu foi Cristian. O
acusado manteve-se sóbrio e respondeu a todas as perguntas, apontando onde os
porretes estavam escondidos (no porta-malas do carro de Suzane) quando o trio
chegou à mansão. Cristian também mostrou como desferiu os golpes em
Marísia.
Em seguida, foi a vez de Suzane. Impressionada com a quantidade de
curiosos e jornalistas do lado de fora, ela ficou tensa. O quarteirão foi todo
isolado. Na rua, pessoas gritavam de longe “assassina!”, “assassina!”, “assassina!”.
Mas todos dentro da casa ouviam o xingamento. Aos policiais, Suzane indicou
como acendeu a luz do corredor dando sinal verde aos Cravinhos para seguirem
até a suíte e executar seus pais. Depois sentou-se no sofá para demonstrar como
se sentou e tapou os ouvidos para não ouvir as porretadas. O curioso é que ela
representava o crime como se não tivesse participado dele, narrando cada cena
de forma dissertativa. Enquanto ocorria a reconstituição da morte dos pais,
Andreas estava na mansão assistindo a um desenho animado na TV do quarto de
Rinalva, nos fundos. O garoto não saiu de lá momento algum. Suzane pediu a um
policial para dar um abraço no irmão, mas o garoto se recusou a recebê-la.
Quando chegou a vez de Daniel reconstituir o crime, surgiu um impasse.
Abalado, disse não ter estrutura emocional para subir até a suíte. Pediu um
tempo para tomar água e se recompor. Uma hora depois, o jovem pegou o
porrete cenográfico feito de papelão e seguiu até a cama, onde o policial
Francisco Pandolpho estava deitado, representando Manfred. Daniel deveria
simular os golpes no policial-ator. O piloto percebeu uma leve semelhança entre
Pandolpho e o pai de Suzane. Perturbado, o jovem chorou copiosamente e se
ajoelhou por causa de uma súbita fraqueza nas pernas. A reconstituição teve de
ser interrompida. Só continuou depois que os policiais fizeram um círculo e
rezaram um Pai-Nosso de olhos fechados. Em toda a reprodução simulada, os
três assassinos não tiveram nenhum contato entre si.
Após a reconstituição do crime, Suzane e os irmãos Cravinhos voltaram para
o xilindró. Ela regressou para a PFC e Daniel foi levado novamente ao Centro de
Detenção Provisória (CDP), uma cadeia bomba-relógio. Quando o piloto esteve
lá, o local tinha capacidade para abrigar 876 presos, mas havia o dobro. Sua cela
era a de número 9, no pavilhão 7, com lotação para doze homens. No entanto, 40
bandidos espremiam-se no cubículo, incluindo matadores de aluguel, traficantes
e integrantes do PCC egressos do Carandiru. Ficavam misturados no mesmo
espaço os presos provisórios à espera de julgamento, como Daniel, e os
criminosos condenados e até sentenciados do regime semiaberto reincidentes no
crime. Não havia cama para todos nem artigos de higiene. O banho era frio e
regrado. Os funcionários da cadeia distribuíam aos presos somente três escovas
de dentes e cinco sabonetes por xadrez a cada 15 dias. Astrogildo Cravinhos
levou itens de higiene para o filho. Mas ele foi obrigado a dividir tudo com seus
colegas de cela, inclusive a sua escova de dentes e o aparelho de barbear. Certo
dia, Daniel pegou seu sabonete Lux Luxo novinho e foi tomar banho no chuveiro
coletivo. Um traficante do PCC, que se enxaguava sem nada ao lado, pediu a
barra de sabão emprestada. O piloto não tinha como negar esse favor. O bandido
esfregou o sabonete no corpo todo, inclusive na cabeça feito xampu. Ingênuo,
Daniel ficou lá esperando. Quando acabou o banho, em vez de devolver o
sabonete ao dono, o bandido repassou o item de higiene para o preso do
chuveiro ao lado, que repassou a outro, mais outro e mais outro. De mão em
mão, de corpo em corpo, o sabonete de Daniel simplesmente derreteu até
desaparecer.
A direção do CDP considerava Daniel um preso vulnerável, pois ele aparecia
excessivamente na televisão. Mas não havia cela especial – conhecida como
“seguro” – para acomodá-lo. Com isso, ele era constantemente ameaçado de
morte nos pavilhões. Angustiado, voltou a ter ideação suicida. A tentativa
ocorreu logo após ele testemunhar uma briga violenta dentro da cela, bem no
início da manhã. Três presos dormiam dividindo o mesmo colchão. Um deles
ficou excitado e encoxou o colega por trás sem querer. Houve uma confusão
generalizada no ambiente. O detento pivô do barraco tentava explicar ao colega
que a ereção matinal não vinha acompanhada de desejo sexual. Ninguém quis
saber e ele levou uma facada na virilha. Quando viu o excesso de sangue, Daniel
se lembrou do momento em que matava Manfred e vomitou no chão da cela,
respingando restos de comida nos demais presos. Irritados, eles empurram o
piloto de um lado para o outro até o jogarem num espaço privado, onde havia
um vaso sanitário cercado por uma cortina de plástico. Aos prantos, Daniel se
sentou na latrina. Em seguida, tentou arrancá-la do chão. A peça estava
fortemente chumbada no concreto. Daniel olhou as paredes, o teto e fixou a
visão na janela alta com grades espessas. Depois, tirou a calça e prendeu uma das
pernas do tecido jeans no ferro da janela. Na outra ponta ele fez um nó e apertou
no pescoço. Um dos presos afastou um pouquinho a cortina e percebeu o
movimento suicida de Daniel. Depois de observar, saiu calado para o piloto se
matar em paz. Com uma das pernas da calça amarrada na grade e a outra no
pescoço, ele pulou do vaso sanitário. O peso do seu corpo pendurado na corda
improvisada provocou uma esganadura. Daniel se debateu, embolando-se na
cortina de plástico, que despencou com o cano de sustentação. Com a queda,
todos os presos viram o namorado de Suzane agonizando. Três deles correram
para tentar salvá-lo. O suicida estava com os olhos revirados, o rosto esverdeado
e babava quando foi retirado pelos colegas.
Daniel desmaiou e só foi acordar numa maca, na enfermaria do CDP. O
pescoço estava tomado por hematomas escuros. Uma algema prendia o seu pulso
direito ao ferro lateral da cama. Um médico se aproximou com uma lanterna
clínica. Usando os dedos, o profissional arregalou os olhos do paciente e mirou a
luz forte em sua pupila:
— Tente olhar para o foco da lanterna – pediu.
Daniel mexeu o globo ocular para acompanhar o feixe de luz. Ou seja, sua
atividade cerebral estava perfeita.
— O que houve? Por que você tentou tirar a própria vida, rapaz? – perguntou
o profissional da saúde.
— Minha jornada acabou, doutor. Eu matei uma pessoa a pauladas por causa
de uma vagabunda. Eu vou ser condenado e passar o resto da vida preso. Prefiro
a morte!
— Para de falar bobagem. Encare os seus erros de frente, por mais terríveis
que eles sejam. Assuma o que você fez e pague sua penitência com dignidade.
Não leve mais sofrimento à sua família — aconselhou.
Arrasado, Daniel se levantou da cama e ficou em pé. Seu pulso continuava
preso à algema e à maca. Nadja e Astrogildo invadiram o local esbaforidos. Ao
ver o filho vivo, ela o agarrou aos prantos. O piloto abraçou a mãe usando apenas
um dos braços. Nervosa, Nadja perguntou ao médico como estava a saúde do
filho. “Ele teve sorte. Os exames mostram que não houve ruptura das vértebras
cervicais e a medula espinhal foi preservada”, diagnosticou. Só de pensar na
morte do caçula, Nadja teve um princípio de desmaio. Daniel chorou ao ver a
mãe sucumbindo. Astrogildo levantou a esposa do chão com auxílio das
enfermeiras. Daniel também tentou ajudar, mas a algema o impediu. Astrogildo
segurou o rosto do jovem fortemente com as duas mãos. “Meu filho, pelo amor
de Deus. Não faça mais isso com você. Não faça mais isso com a sua mãe. Não
faça isso com a nossa família”, suplicou o pai. Um policial soltou uma das
algemas da cama e prendeu nos pulsos de Daniel, por trás. No caminho para a
cela, o assassino perguntou ao agente de segurança penitenciária que o conduzia:
“Será que a Suzane ficou sabendo que tentei me matar?”
* * *
* * *
Assim que Suzane foi presa, Rinalva procurou Miguel, irmão de Marísia, para
saber como deveria proceder, já que na casa dos Richthofen havia restado apenas
Andreas como morador. Miguel tentou convencer o garoto a passar uma
temporada em sua casa, mas ele bateu o pé, insistindo em morar sozinho na
mansão. Entre os argumentos do adolescente de 16 anos constava que dali a dois
anos seria maior de idade e passaria a ser dono da casa e de outros bens deixados
pelos pais, avaliados na época em 10 milhões de dólares. Miguel passou a bancar
a moradia do garoto, e Rinalva foi mantida na mansão para dar assistência a ele.
A convivência da empregada com Andreas foi amistosa nos primeiros dias. O
jovem, no entanto, encarnou o papel de patrão exigente e passou a implicar com
a sua única funcionária. Reclamava do excesso de sal na comida, da limpeza e até
de camisetas que desejava usar, mas estavam no cesto de roupas para passar. A
gota d’água ocorreu no terceiro mês de convivência com Rinalva. Ela estava em
casa com seus familiares, assistindo à novela Mulheres Apaixonadas, da TV
Globo, quando recebeu um telefonema de Andreas. Ríspido, acusou-a de furto.
— Dona Rinalva, cadê o perfume importado que estava no meu quarto?
— Eu vi em cima da cômoda – respondeu a empregada.
— Não está mais lá. Será que ele bateu asas e voou? – ironizou.
— Se não está mais lá, não saberia dizer por onde ele anda.
— Como não?
— Não sei se você sabe, mas estou no meu horário de descanso – rebateu
Rinalva.
— Não me importa! Amanhã, quando voltar da escola, quero esse perfume
no mesmo lugar. Entendeu? Caso contrário, eu vou à delegacia dar queixa de
furto e a senhora será presa. Nem preciso lhe contar que de delegacia eu entendo,
né? – ameaçou o rapaz, fazendo alusão à quantidade de depoimentos que havia
dado à delegada Cíntia Tucunduva durante as investigações da morte dos pais.
— Pois então vá à delegacia! Agora, se você me fizer uma acusação sem
provas, quem vai à delegacia sou eu, seu fedelho! Aí meto um processo por danos
morais no seu rabo! – encerrou Rinalva, áspera, batendo o telefone na cara do
projeto de sinhozinho.
No dia seguinte, a empregada passou na casa de Miguel e pediu as contas. No
período em que teve estômago para trabalhar na mansão dos Richthofen após o
crime, Rinalva recebeu três cartas de Suzane contando os perrengues na prisão
com as mulheres do PCC e pedindo notícias do irmão. Semianalfabeta na época,
ela pedia para uma irmã ler as cartas, mas nunca as respondeu. Com a demissão
de Rinalva, Andreas foi obrigado a morar com o tio Miguel, que havia cortado
relações com Suzane desde a confissão de ter mandado matar os pais. Antes de se
mudar, o adolescente foi até o quarto de Suzane, pegou o ursinho de pelúcia da
irmã no qual estava escondida a Beretta calibre 22 que ganhou de Daniel e a
levou para a casa do tio. O primeiro conflito entre Miguel e Andreas ocorreu
mais tarde, justamente por causa dessa arma. O segundo embate entre tio e
sobrinho foi travado porque o garoto decidiu visitar a irmã na penitenciária.
Miguel se negou a levá-lo. Andreas resolveu pedir esse favor à Amanda. Quando
recebeu um telefonema do garoto, lembrou-se do apelo da amiga para cuidar de
Andreas como se ele fosse seu irmão e resolveu levá-lo à penitenciária num
domingo pela manhã. Para conseguir uma senha, os dois tiveram de madrugar
numa fila com mais de 500 pessoas.
Amanda e Andreas ficaram em pé por mais de três horas. Uma senhora na
fila puxou conversa, dizendo ter viajado 500 quilômetros para visitar a sua
melhor amiga, assaltante profissional de bancos. A mulher não parava de falar.
Entediada, Amanda começou a prestar atenção no que ela dizia:
“Não existe fila mais humilhante do que essa. A gente em pé aqui até o diabo
dizer chega, castigada pelo frio. Pra quê? Para visitar assassinas, traficantes e toda
sorte de criminosas. Mas sabe por que estamos aqui? Porque amamos
incondicionalmente. E não existe maior prova de amor do que essa. Amor em
estado bruto. Eu amo a minha amiga como se ela fosse minha irmã. Por isso estou
aqui...”, pregava a mulher de cerca de 50 anos.
Amanda ficou reflexiva ao ouvir aquele sermão e tentou preparar o espírito
de Andreas para o encontro com a assassina dos seus pais. Afinal, o garoto iria
enfrentar o ambiente pesado de uma prisão pela primeira vez.
— Andreas, essa visita pode fazer mal a você. Quer desistir?
— Nem pensar! Não vai me fazer mal, não. Pode deixar! Eu não tenho raiva
da minha irmã.
— Tem certeza?
— Sim. Eu perdi o meu pai, a minha mãe e o meu melhor amigo [Daniel].
Agora só tenho a Suzane. Vou ficar ao lado dela – anunciou.
Quando chegaram à sala de inspeção, onde os visitantes são revistados,
Andreas e Amanda foram separados. O garoto foi revistado por um homem e ela
por uma mulher. Os dois tiveram de tirar a roupa e se agachar. Andreas não
estranhou, pois o tio já havia advertido quão humilhante era visitar uma pessoa
presa na cadeia. Amanda ficou incomodada com a ordem de se acocorar nua
diante do espelho.
— Isso é mesmo necessário? – quis saber a estudante de Direito.
— Não, garota! Não é necessário. Você pode não se submeter a esse vexame.
Basta dar meia-volta e cancelar a visita – sugeriu a agente penitenciária, irônica.
Amanda enfrentou a revista íntima, mesmo contrariada. Ela carregava um
bolo de chocolate com recheio de morango feito com carinho pela sua mãe, dona
Estelita, para dar de presente à amiga. Como a iguaria estava dentro de uma caixa
de papelão, a agente pediu que Amanda abrisse a embalagem. Ao puxar as abas
da caixa, só era possível ver a parte de cima do bolo, coberto com ganache
amargo, onde se lia a frase bíblica “A fé move montanhas” escrita com chantili.
Sem retirar o produto da caixa, a agente meteu a mão com toda a força e
remexeu o bolo molhado com os dedos até virar um mingau empapado
impossível de ser fatiado. No final, a agente lambeu os dedos com pedaços da
cobertura e devolveu à visitante. “De-li-ci-o-so. Depois me passa a receita”,
sacaneou.
Indignada, Amanda pegou a caixa, encontrou-se com Andreas no pátio e
caminhou até Suzane, que estava sentada em um banco, sozinha, fumando e
lendo. Estava tão ansiosa que nem sequer abriu o presente. Abraçou o irmão por
muito tempo e agradeceu à amiga por ter levado Andreas para visitá-la. O garoto
fez questão de deixar claro que o tio o proibiu de vê-la. Os três falaram de vários
assuntos, exceto do crime. Era como se a tragédia não tivesse acontecido.
Andreas passou para a irmã uma carta escrita por Daniel. Em um dos trechos, o
piloto dizia manter na cadeia uma luta diária para preservar a sanidade mental,
assumia ter atentado contra a vida três vezes e que também vinha sendo
assombrado pelos fantasmas do casal Richthofen. Suzane não se comoveu,
guardou a carta no bolso e começou a falar das ameaças recebidas dentro da
cadeia e da necessidade de sair dali para provar a sua inocência:
— Eu não posso ficar aqui por muito tempo. Não posso! Não Posso! Não
posso! Aqui tem muitas traficantes perigosas. Elas repetem todos os dias que vão
me matar! Uma delas tem lâminas no lugar das unhas! Além do mais, preciso de
advogados bons e eles são caros. Ou seja, preciso de dinheiro – avisou Suzane.
— O tio Miguel disse que você vai apodrecer aqui dentro sem nada, pois não
terá direito à herança – argumentou o irmão.
— E o que você acha disso? Ele está certo? Eu mereço morrer aqui dentro?
Mereço?
Andreas abaixou a cabeça e não respondeu. Amanda quebrou o clima pesado
abrindo a caixa com o bolo destruído. Suzane olhou e riu, explicando que as
agentes metem a mão nas comidas para ver se tem arma branca ou celular no
recheio. Os três comeram o bolo amassado descontraídos. No final da visita,
Suzane perguntou a Andreas sobre a Beretta dada a ele por Daniel:
— Onde você escondeu essa arma?
— Dentro do seu ursinho de pelúcia!
— Tire de lá sem o tio Miguel perceber e dê um sumiço nela. Se a polícia
encontrá-la, vão achar que você está envolvido no crime – advertiu a assassina.
Suzane implorou para Amanda e Andreas voltarem no próximo domingo,
pois precisaria de um favor importante. E ainda aconselhou a amiga a levar um
creme e não um bolo, pois a consistência da sobremesa se manteria mesmo
depois de remexida pelas agentes. Assim que Amanda e Andreas saíram da
cadeia, Suzane recebeu a visita dos advogados Denivaldo Barni e de seu filho,
Barni Jr. Os dois também levaram um bolo de presente, que por sinal não estava
destruído. Suzane deixou o presente de lado e foi logo falando de negócios:
— O meu tio não vai me deixar receber a herança.
— Imaginei que isso aconteceria. Convença o Andreas a impedi-lo.
— Como faria isso?
— Consiga dele uma carta escrita de próprio punho dizendo que é contra a
sua exclusão da herança – sugeriu o advogado.
— Já havia pensado nisso... – concordou Suzane.
No meio da semana, Andreas acatou a ordem da irmã. Foi até o quintal da
casa de Miguel e começou a cavar um buraco perto de um pé de limão. Ao ser
flagrado pelo tio, o adolescente disse que estava fazendo uma cova para enterrar
um dos seus cachorros, que havia morrido supostamente intoxicado por material
de limpeza. Miguel ficou desconfiado, mas não fez nenhuma repreensão. Deixou
o sobrinho trabalhando freneticamente com uma pá. No dia seguinte, porém,
Miguel foi até o local e revolveu a terra. Para sua surpresa, não havia cachorro na
cova. Miguel encontrou a Beretta sepultada e um estojo de balas. Pressionado
pela família, Andreas confessou que ganhara a arma de presente de Daniel
quando fizera 15 anos. Para se livrar da Beretta e incriminar ainda mais Suzane e
Daniel, Miguel levou a arma até o Ministério Público e contou a história
repassada pelo sobrinho.
No domingo seguinte, conforme o combinado, Andreas e Amanda voltaram
à penitenciária. O irmão de Suzane, dessa vez, seguia calado. Amanda tentava
puxar conversa, mas ele não interagia. Na fila de espera, a senhora tagarela fazia
novamente apologia à amizade verdadeira para quem quisesse ouvir:
“A minha amiga presidiária é uma assaltante e assassina que matou cinco.
Quando a conheci, era mulher honesta. Hoje, é bandida perigosa. Uma pessoa
pode perfeitamente ser amiga de uma assassina. Isso é uma escolha. Eu escolhi o
errado e por isso estou aqui nessa fila degradante à espera de uma senha para me
agachar nua para as agentes verem se carrego um telefone celular no rabo. Vou
fazer uma pergunta a vocês: nós gostamos e desgostamos das pessoas por fatores
alheios à nossa vontade? Não! Tudo na vida é uma escolha. Várias portas se abrem
à sua frente e você escolhe em qual entrar...”
A mulher falava tão ininterruptamente que mal fazia pontuação. Mas
Amanda não desejava que ela se calasse. Só parou de ouvir o sermão quando
chegou a sua vez de entrar no presídio.
Amanda não seguiu o conselho de Suzane e levou dessa vez dois bolos
recheados e duas garrafas de refrigerante de dois litros cada uma. Ao passar na
inspeção, não esperou a ordem para tirar a roupa. Foi logo se despindo e
agachando-se três vezes diante do espelho. A mesma agente que havia destruído
o bolo no fim de semana anterior em busca de objetos pegou as caixas e abriu
para ver o que tinha dentro. Quando se preparava para meter a mão e destroçar a
iguaria, Amanda interrompeu:
— Um bolo é para a Suzane. O outro é para você.
— Para mim? – espantou-se a agente.
— Isso mesmo! Um bolo é seu. Fique também com uma garrafa de
refrigerante!
— Que gentil da sua parte. Muito obrigada!
Com o mimo, a agente ficou sorridente! Foi Barni quem deu essa dica à
Amanda. A funcionária fechou as caixas e devolveu um dos bolos à amiga de
Suzane sem encostar o dedo. Guardou o outro no armário com a garrafa de
Coca-Cola para o lanche da tarde com as colegas. Amanda seguiu até o pátio,
onde Suzane a aguardava com um caderno e uma caneta na mão. Andreas, dessa
vez, parecia entupido de perguntas e antes mesmo de cumprimentar a irmã,
disparou à queima-roupa:
— Por que você fez isso? Por que você matou os nossos pais? Por quê? –
perguntou com a voz embargada, trêmulo de emoção.
Em silêncio Suzane estava, em silêncio permaneceu por um longo tempo.
Cabisbaixa, começou a chorar de soluçar. Parecia um pranto fingido. Ao
testemunhar cena de tamanho constrangimento e intimidade familiar, Amanda
resolveu dar uma volta pelo pátio da penitenciária para deixar os dois à vontade.
Suzane passou a mão no rosto como se enxugasse as lágrimas. Mas não havia
lágrimas. Ela começou a falar. Contou para o irmão que estava sendo ameaçada
de morte pelas mulheres do PCC. O adolescente não se comoveu e insistia nas
respostas da irmã para as motivações do crime. Suzane então começou a velha
história de que foi manipulada por Daniel. Disse não ter matado Manfred e
Marísia, jogando a responsabilidade do duplo homicídio para os irmãos
Cravinhos. “Eu nem entrei naquele quarto. Eu juro, juro, juro!”. Andreas
abraçou a irmã, numa cena dramática, mas sem lágrimas de ambos. No ápice da
emoção, Suzane repassou ao irmão o caderno e a caneta azul e pediu que
escrevesse uma carta naquele momento. O adolescente aceitou. Suzane então
começou a ditar, enquanto o irmão ia escrevendo:
“Querida Su, estou morrendo de saudades. Você sabe que eu não tenho vindo
te visitar porque o tio Miguel me proibiu de te ver. Eu sou contra isso. Também sou
contra que você seja excluída da herança. Isso foi ideia dele e da doutora Cida
[advogada do Miguel]. Eu continuo do seu lado. Eu te amo. Do seu irmão,
Andreas”.
Depois de refletir um pouco, Suzane pediu para o adolescente riscar o “eu te
amo”. “Você jamais diria isso”, observou ela. O irmão obedeceu e substituiu o
“eu te amo” por “um beijo”.
Suzane arrancou a página do caderno e guardou a carta no bolso,
expressando alegria. Em depoimento, Andreas disse ter escrito aquilo sob efeito
de forte chantagem emocional. Amanda voltou a tempo de flagrar a
ambivalência de Suzane ao manipular as emoções de Andreas, mas não teceu
nenhum comentário. Os três comeram bolo de chocolate com refrigerante. Um
bolo cortado em fatias e não amassado, frise-se.
Enquanto lanchava no pátio, Amanda olhou ao redor e enxergou o maior
número de criminosas que a sua vista pôde alcançar. Lembrou-se das palavras da
senhora na fila da penitenciária dizendo ser possível escolher as pessoas que
entram e saem de sua vida. Ali, olhando para aquele pátio repleto de bandidas
recebendo visitas de gente inocente, incluindo crianças, em pleno domingo de
sol, Amanda prometeu a si mesma afastar-se de Suzane e do imbróglio da família
Richthofen e suas camadas de desavenças, cizânia, rixa e discórdia. Nunca mais
ela pisou naquela clausura. Cumpriu a promessa com afinco e desapareceu da
vida de Suzane para sempre. Não escrevia nem respondia mais às cartas enviadas
pela amiga. Andreas, dando-se conta de como a irmã era insidiosa, também
decidiu cortar relações e não foi mais lá. “Ela manipula até a nossa alma”, disse
ele ao tio. Mas o conceito de Andreas sobre a irmã mudava como as fases da Lua.
Ao ser confrontado pelo Ministério Público ainda sobre a arma enterrada no
quintal, Andreas deixou claro estar ao lado de Suzane. “Nunca quis obstruir as
investigações nem o processo que investiga a morte dos meus pais. Mas também
não quero prejudicar a minha irmã. A prisão me custa muito sofrimento. Vou
ajudá-la no que for preciso, pois esse é o meu dever como membro da família”,
declarou após escrever a carta ditada por Suzane. Em seguida, o adolescente
repassou aos membros do Ministério Público o ursinho de pelúcia com um rasgo
no ventre, por onde havia retirado a Beretta presenteada por Daniel. A
compaixão de Andreas por Suzane não duraria muito tempo. Convencido pelo
tio, ele rompeu definitivamente com a assassina. “Andreas, você não é mais
criança. Abra seus olhos para a realidade. A Suzane matou os seus pais para ficar
com a herança. Quem faz isso por dinheiro é capaz de qualquer coisa. O herdeiro
será você. Mas se você morrer, quem ficará com tudo será ela. Uma coisa já está
clara: Suzane é assassina e manipuladora”, teria dito o tio Miguel. Com essa
verdade jogada na cara, Andreas rompeu definitivamente com a irmã. Passou a
ter medo dela.
Sem visitas do irmão e da melhor amiga, Suzane passou a fazer amizades no
cárcere. A primeira a se aproximar foi Maria Cecília Santiago, de 40 anos, a Ciça.
As duas eram colegas de cela. Assim como a jovem, a detenta dizia “ter matado
para se libertar”. Suzane logo se identificou. O crime de Ciça escandalizou a
cidadezinha de Monte Aprazível, no interior de São Paulo. Ela era mãe solteira
de Tatiana, de 6 anos, quando conheceu o padeiro Chico do Pão. O casal engatou
um namoro e cinco anos depois estavam dividindo o mesmo teto. Chico era
mulherengo e essa característica irritava Ciça. Na rua, ele chegava a dar em cima
de mulheres da vizinhança até mesmo na frente da companheira. Ciça fazia vista
grossa porque, à noite, era na cama dela que ele se refestelava para fazer amor.
Tatiana completou 14 anos quando Ciça e Chico comemoravam bodas de
algodão. Aplicada, a garota costumava fazer grupos de estudos em casa com
outras meninas da sua idade. Certa vez, Ciça pegou o caderno escolar da filha e
na contracapa se deparou com uma mensagem escrita dentro de um coração
pintado com canetinha colorida, onde se lia: “Pode haver centenas de obstáculos,
mas nada fará o meu amor por você morrer”. A mensagem não tinha destinatário.
Ciça acreditou na possibilidade de a filha estar apaixonada por um colega de
escola. Um mês depois, a mãe pegou novamente o caderno de Tatiana e viu outra
declaração, dessa vez explícita: “Chico, meu amor, te amo tanto que chega a doer”.
Em um diálogo franco com a filha, Ciça ouviu da garota um balde de
honestidade. A enteada estava perdidamente apaixonada pelo padrasto. A
menina ainda deixou claro que Chico não sabia de nada. O padeiro foi chamado
para a conversa. Defendeu-se argumentando sempre ter olhado a adolescente
como se sua filha fosse. Para se livrar da relação triangular, a mãe mandou
Tatiana à casa da avó, no município vizinho de Votuporanga. Ciça deu a seguinte
justificativa para se livrar da filha: “Ela era uma mulher feita, com os peitos duros
e a vida toda pela frente. E eu era uma mulher de meia-idade chegando à velhice.
Entre o amor pela minha filha e a necessidade de ter um homem em casa, fiquei
com a segunda opção”.
No dia 24 de junho de 2001, um domingo, três meses depois de Tatiana ter
sido despachada, Chico fez uma festa de São João no quintal de casa para amigos
do trabalho e chamou toda a vizinhança. No cair da noite, foi acesa uma fogueira
de dois metros de altura. Comida típica e bebida à vontade. Ciça e Chico
embriagavam-se e dançavam felizes. Por volta das 20h, Tatiana chegou à festa
com um grupo de amigas. A adolescente estava de mãos dadas com um jovem de
17 anos. A mãe mandou a filha dar meia-volta e regressar para a casa da avó, mas
Chico interferiu:
— Para com esse ciúme bobo! A sua filha tá namorando! Veio
acompanhada...
— Eu a proibi de pisar aqui! – esbravejou Ciça.
Tatiana acabou ficando. Cecília, de longe, observava a filha bebendo quentão
e dando uns beijos no rapaz. Ficou aliviada. Passou a ficar preocupada com as
olhadas de Chico para uma sirigaita risonha, dançarina profissional. Por volta
das 23h, havia dez gatos pingados na festa e todos alcoolizados. Perto de meia-
noite, a bebida acabou e Ciça se prontificou a ir até o bar da esquina pegar
cerveja. No caminho de volta para casa ela encontrou uma amiga e as duas
ficaram proseando. Quando se deu conta, já era quase 1h da madrugada. Correu
para casa.
A fogueira ainda estava incandescente quando Ciça passou pelo quintal. Pôs
a bebida na geladeira e seguiu até o quarto. Lá, flagrou o marido transando com
Tatiana na cama do casal. Os três estavam muito bêbados.
Ciça correu até a cozinha e pegou a maior faca que encontrou na gaveta.
Voltou ao quarto e parou por um instante, consumida pela dúvida: quem deveria
morrer? Numa fração de segundo, escolheu assassinar a filha. Saltou sobre a
cama e cravou a faca nas costas da menina. “Na hora, pensei: ela tinha o meu
sangue. Não podia fazer isso com a própria mãe”, justificou Ciça em 2016.
Golpeada, Tatiana caiu da cama nua, com a faca enterrada nas costas. A poça
de sangue encharcou o tapete bege do chão do quarto. A vítima ainda se debateu
antes de morrer.
Chico ficou apavorado com a fúria da mulher e correu enrolado em um
lençol pela rua, pedindo para os vizinhos chamarem a polícia. Em nenhum
momento Ciça socorreu a filha. Sentou-se na beirada da cama, aos prantos, à
espera dos policiais. Na delegacia, confessou o crime. No Tribunal do Júri,
recebeu uma pena de 30 anos de cadeia.
O crime bárbaro não desfez os laços entre Ciça e o padeiro. Ele nunca
abandonou a companheira na prisão. Por cinco anos a criminosa o recebia, mas
deixava claro sentir ódio no coração. Anos mais tarde, aconselhada por Suzane,
Ciça esqueceu a filha, perdoou Chico e se casou com o seu amado no pátio da
penitenciária. Os dois planejam renovar votos de casamento tão logo ela
conquiste a liberdade, prevista para 2024. No regime semiaberto, quando tem
direito às saidinhas, é para a cama quente do marido que Ciça corre.
* * *
N
a ambiência do cárcere, os criminosos fazem as suas próprias leis. Apesar
de essas regras não estarem escritas em nenhum papel, elas são cumpridas
à risca. Os presos condenam à pena de morte e executam a sangue frio
dentro da cadeia, na primeira oportunidade, estupradores, pedófilos,
sequestradores que assassinam reféns depois de receber o dinheiro do resgate,
filhos que matam os pais e pais que matam os filhos. Quem tem dívida com
facções criminosas também é executado. A Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP) atribui aos criminosos fadados à morte o termo “detento
vulnerável”. Suzane já estava com a sentença de morte assinada pelas mulheres
do PCC, mas a direção da Penitenciária Feminina da Capital (PFC) havia
recebido recomendações vindas do gabinete do governador de São Paulo,
Geraldo Alckmin na época, determinando um cuidado especial com a garota.
Principalmente porque ela era considerada uma “presa de mídia”, ou seja, sua
simples presença na cadeia jogava luz sobre o sistema penal. Além disso, seu pai,
Manfred von Richthofen, foi um alto funcionário da Dersa. Para garantir sua
proteção, a direção da PFC acomodou Suzane em uma cela com outras seis
detentas autoras de crimes passionais, de comportamento exemplar. A galeria em
que essas presas ficavam era chamada de “gaiola do bem”.
Fazia parte de uma estratégia vital de sobrevivência ter uma amiga fiel na
cadeia. A escudeira, de preferência, deve ser da mesma cela. Assim é possível
uma cuidar da outra, inclusive enquanto dormem. A primeira e única criminosa
aliada de Suzane durante a sua passagem pela PFC foi Sofia, uma detenta
educadíssima de 28 anos. Os gestos delicados e o rosto bonito renderam a ela o
apelido de “Bonequinha de Luxo”, dado pelas agentes de segurança penitenciária.
Como as presas não abrem a vida pessoal para as colegas no primeiro contato,
Suzane só conheceu a intimidade de Sofia depois do quarto mês de convivência,
quando ouviu uma história de amor sofrida. Goiana de Anápolis, a Bonequinha
foi prostituta dos 12 aos 21 anos na rodovia Belém-Brasília. Sua clientela era
formada preferencialmente por caminhoneiros. Na primavera de 1997, a garota
de programa subiu na boleia da carreta de Eduardo, de 33 anos, carinhosamente
chamado de Dudi. Foi amor à primeira vista, daqueles inexplicáveis no campo
racional, como ela mesma definiu. Certa vez, Sofia e Dudi fizeram um programa
especial num motel de beira de estrada. Cansada do dia pesado de trabalho, a
garota adormeceu nos braços do cliente. Quando acordou, por volta do meio-
dia, viu que Dudi havia deixado um bilhete de despedida junto com uma nota de
50 reais, dizendo que a noite tinha sido incrível.
Por causa do carinho incomum na relação envolvendo sexo e dinheiro, o
rapaz passou a habitar os pensamentos de Sofia dia e noite. Um mês depois do
encontro especial, o cliente reapareceu e pediu a acompanhante em casamento.
A ex-prostituta passou em casa, pegou uma sacola com roupas e sapatos e subiu
no caminhão do noivo. Foi morar no município natal do amado, Atibaia,
interior de São Paulo. Dudi era romântico, do tipo que manda flores. Passava
quinze dias na estrada fazendo frete em seu próprio caminhão do Porto de
Santos para capitais do Centro-Oeste e sempre voltava com um ramalhete nas
mãos. Sofia virou dona de casa dedicada e engravidou do primeiro filho, o
pequeno José.
A vizinha da casa ao lado se chamava Edileusa, uma mulher solteira, amarga
e fofoqueira de 50 anos. Todas as vezes em que batia na porta era para pedir
açúcar ou falar mal da vida alheia. O repertório de maledicência da víbora
parecia infinito. Sofia também era amiga de Marilene, uma ex-garota de
programa de 23 anos moradora da rua de trás. Ela havia trocado a calçada pela
atividade de diarista tão logo engravidou. Sofia se identificava com a história de
vida da amiga, muito parecida com a sua. Para ajudá-la, Sofia a contratou para
fazer faxina em sua casa de quatro cômodos uma vez a cada 15 dias. As duas
praticamente haviam engravidado na mesma época. Para os íntimos, Marilene
contava “ter pego barriga” de um cliente casado. O pai misterioso prometeu
bancar o filho bastardo, mas deixou claro que faria um exame de DNA e jamais
abandonaria a esposa. Quando Edileusa, a amiga fofoqueira, viu Marilene
lavando roupa na casa de Sofia, o seu veneno saiu com uma porção de
vulgaridade:
— Como você teve coragem de botar essa puta dentro da sua casa, um lugar
sagrado? Seu marido vai passar a vara nela!
— Deixe de ser maldosa, dona Edileusa. Ela está grávida. Precisa trabalhar.
— Homem é tudo igual, minha filha! Se eu fosse você, ficaria de olho. Só
estou dizendo isso porque sou uma mulher boa – advertiu a vizinha.
Sofia não deu ouvidos à maldade de dona Edileusa. Dudi continuava
romântico mesmo depois de três anos de casamento e nem sequer sabia o nome
da diarista, fazia ele questão de frisar.
Em um final de semana de sol, Dudi ensinou Sofia a dirigir sua carreta, uma
Scania de cabine branca modelo 360 trucada 6x2, uma das mais belas e potentes
da época. Ao dirigir aquele veículo imenso pela Rodovia Fernão Dias, Sofia
sentiu uma sensação autêntica de poder e nostalgia, pois o pai e o avô foram
caminhoneiros e costumavam levá-la com os irmãos para passear nas carretas.
Sofia gostou tanto da experiência que resolveu tirar carteira de motorista para
dirigir veículos pesados e passou a sonhar em ser caminhoneira profissional.
“Outro dia eu vi uma reportagem na TV sobre mulheres que levam cargas por
todo o Brasil sem perder a feminilidade. É isso que eu quero para a minha vida”,
decidiu. Dudi aprovou a ideia, mas pediu para a esposa, grávida de quatro meses
na época, esperar o filho nascer e completar 10 anos.
No sábado, 22 de julho de 2000, pela manhã, Sofia chamou Marilene para
fazer uma faxina e ajudá-la a preparar um jantar especial para Dudi, prestes a
chegar de uma longa viagem de trabalho. Por telefone, a diarista falou de enjoos e
avisou não estar disponível. Sofia comprava legumes na feira para o jantar
quando encontrou Edileusa por acaso. Solícita, a fofoqueira se ofereceu para
ajudar na faxina e nos preparativos da refeição. À tarde, enquanto varria o chão
da cozinha da amiga, Edileusa fazia perguntas inconvenientes a Sofia:
— O que você fazia da vida quando conheceu o seu marido?
— Eu era vendedora – disse Sofia, enquanto cortava cenoura com uma faca
de cozinha.
— Vendia o quê? – insistiu Edileusa.
— Cosméticos – mentiu a ex-garota de programa.
De vassoura na mão, Edileusa aproximou-se de Sofia, que já passava a faca
afiada nos tomates. Fulminante como uma metralhadora, a fofoqueira estufou o
peito e disparou uma rajada de verdades na cara daquela de quem se dizia amiga:
— Todo mundo aqui na cidade sabe que você era garota de programa, assim
como a Marilene é até hoje. Você é prostituta, né? Fala a verdade. Só estamos eu
e você aqui!
Chocada, Sofia parou de cortar os legumes, fincou a faca na tábua de
madeira, posta sobre a pia, e começou a sentir tremores. Continuou a ouvir
Edileusa falando sem parar:
— Olha, eu não tenho nada contra. Juro por Deus. Cada um vende o que
tem. Agora vou te contar uma novidade: o seu lindo marido, para quem você está
preparando esse jantar, tem um caso com a Marilene muito antes de você
aparecer na vida dele.
Incrédula e fora de si, Sofia largou os legumes pra lá, pegou a faca e avançou
sobre Edileusa.
— O que a senhora está falando?
— Quer saber mais? É dele o filho que aquela puta carrega na barriga.
— A senhora está mentindo! – repetia Sofia, soltando a faca no chão.
— Ah, estou? Então vai hoje à noite, às 23h em ponto, no quilômetro 61 da
Fernão Dias. Vai lá, se tiver coragem. Vai e você verá com os seus próprios olhos.
— Quero que a senhora saia da minha casa agora, sua cobra!
Dona Edileusa largou a vassoura, tirou o avental com uma sensação de dever
cumprido, pegou a faca do chão e a pôs sobre a pia. Em seguida, saiu desejando
“bom jantar”. Fria, Sofia terminou de preparar a salada e cozinhou macarrão
com almôndegas para Dudi, que chegou em casa por volta das 18h. Ele
estacionou a carreta num terreno baldio ao lado e jantou tranquilamente com a
esposa por volta das 19h. Duas horas depois, o caminhoneiro tomou um banho,
vestiu uma roupa limpa e passou Seiva de Alfazema no pescoço. À Sofia, o
marido disse que iria visitar um amigo em Mairiporã, cidade vizinha, para falar
de uma carga a ser transportada de São Paulo para Imperatriz, no Maranhão.
Desconfiada, Sofia se prontificou a acompanhá-lo. Dudi concordou de pronto e
ela ficou imediatamente aliviada, pois era a prova de que o marido falava a
verdade. Resolveu deixá-lo ir sozinho. Ele pegou o carro do casal, um Fiat Uno, e
saiu. Sofia estava se preparando para dormir, por volta das 22h, quando Edileusa,
intrometida, bateu à sua porta. Pediu um café. Na sala, a vizinha perguntou:
— Cadê o seu marido?
— Está em Mairiporã. Por quê?
— Com quem? – quis saber a fofoqueira.
— Com um amigo.
— Sei...
— Eu me ofereci para ir junto e ele se prontificou a me levar. Se fosse um
encontro amoroso, desistiria de ir...
— Deixa de ser ingênua, menina. Você é mulher rodada! Vai lá no
quilômetro 61 e tira a prova dos noves. Não durma com essa dúvida. Vai lá! Não
lhe custa nada. Vai lá e descubra se eu sou uma mentirosa ou se você é uma
idiota.
Irritada, Sofia expulsou Edileusa de casa e voltou para a cama. Não conseguiu
dormir. Angustiada, trocou de roupa, pegou a chave da carreta do marido e
partiu para a Rodovia Fernão Dias.
Na estrada, Sofia tinha tanta pressa de chegar ao quilômetro 61 que acelerou
a carreta. Com a carroceria vazia e um eixo suspenso, a jamanta desenvolvia mais
velocidade. Rapidamente o velocímetro marcou 110 quilômetros por hora.
No ponto indicado por Edileusa, Sofia viu Dudi e Marilene abraçados em
pleno acostamento. Possuída por uma agitação violenta, ela teve frieza para
desligar os faróis e fúria para acelerar o caminhão com toda a força disponível no
pé direito. No ponto exato, Sofia jogou a carreta em alta velocidade sobre o casal.
Dudi escapou da morte por pouco, dando um salto com impulsão de goleiro
para o matagal. Marilene não teve esse reflexo e foi atropelada de forma tão
violenta que o seu corpo desmembrou em dois, amassando a parte da frente do
caminhão do marido e manchando a lataria branca de sangue. A cabeça da
vítima se desprendeu e ficou presa na grade protetora do motor.
Ré confessa, a ex-prostituta foi condenada a 36 anos de prisão. Ela pariu o
filho José na penitenciária. A tragédia não separou o casal. Pelo contrário, uniu
ainda mais. Dudi cria o filho sozinho e nunca deixou de visitar a esposa na
cadeia.
Ao ouvir a história trágica de Sofia com riqueza de detalhes, Suzane chorou
de emoção. A aprendiz de caminhoneira deixou claro ter matado a amante do
marido por amor e fazia questão de frisar: faria tudo novamente, se preciso fosse.
— É incrível você ter perdoado o seu marido. Queria ter o espírito evoluído
assim – comentou Suzane.
— Quem ama sempre perdoa – filosofou Sofia.
Suzane adorava falar dos seus sentimentos com a confidente de cela. Quando
ouviu da colega pregação tão comovente sobre amor e perdão, a jovem
vislumbrou o dia em que seria perdoada pela família, principalmente pelo irmão
Andreas. Naquela época, antes de enfrentar o Tribunal do Júri, a presidiária
repetia às amigas da “gaiola do bem” ter mandado matar os pais por amor a
Daniel. À Sofia, confidenciou que, se Cristian não tivesse cometido a estupidez
de comprar a moto, ela e o namorado jamais seriam presos. “Meu maior
arrependimento foi deixar esse estúpido entrar naquele quarto!”, reiterava. No
meio de assassinas cruéis, suas colegas de cadeia davam razão a ela.
Sofia e Suzane ainda conversavam na cela sobre a vida quando ouviram uma
explosão vinda do pátio da penitenciária e uma sucessão de gritos de guerra
ecoando pelas galerias. Assustada, Suzane saiu às pressas pelo corredor.
A explosão vinha de um botijão de gás incendiado para simbolizar o início da
rebelião planejada pelo PCC. Para escapar da morte, Suzane improvisou um
capuz usando um lençol rasgado e escondeu a cabeça. As presas do comando
faziam festa no pátio pedindo, paradoxalmente, paz, justiça e liberdade.
Rebeladas, aproveitaram para beber como se fosse suco a tradicional maria-
louca, uma aguardente de alto teor alcoólico, comum nos presídios, feita
clandestinamente nas celas com cascas de frutas cítricas, fermento em pó, milho,
açúcar e água. Dependendo do preparo, essa bebida alcança teor alcoólico de
70%. Apavorada, Suzane correu com a cabeça coberta até o posto médico, onde
trabalhava com João. No caminho, passou por uma infinidade de mulheres
armadas e bêbadas, todas encapuzadas. Ninguém conseguiu reconhecer
ninguém. Ao chegar na porta do posto médico, Suzane encontrou Marisol.
— Minha filha, corre e se esconde que o PCC está atrás de você – advertiu a
aspe.
— Me ajuda! O João falou para eu me esconder no almoxarifado.
Marisol abriu o depósito de materiais de limpeza e Suzane entrou nele.
Escondeu-se de cócoras dentro de um armário de ferro estreito. Em seguida, a
agente fechou o móvel com dois cadeados. Ao sair do almoxarifado, ainda
trancou a porta. A agente pôs todas as chaves dentro do cesto de lixo do posto
médico, na pia. Quando estava saindo da sala de João, a carcereira foi abordada
por Maria Bonita, armada com uma faca e uma marreta. A cangaceira encostou a
ponta da lâmina no abdome de Marisol, pressionando-a:
— Onde está a Suzane, sua vaca?
— Não sei.
— Chega de mentiras! – gritou Maria Bonita, endemoniada.
— Acho que ela está na cela com a Sofia – despistou Marisol.
Com a ajuda de outras seis presas, Maria Bonita imobilizou a carcereira e a
arrastou pelos corredores rumo à “gaiola do bem”. Ao chegarem à cela de
Suzane, as presas do PCC se revoltaram por terem sido enganadas pela agente e
resolveram levá-la ao pátio da penitenciária, onde estava concentrado o comando
da rebelião. Cerca de 50 presas haviam capturado outras cinco agentes e todas
foram feitas reféns. As detentas pegaram 12 cilindros de gás industrial e puseram
lado a lado no meio do pátio. Marisol foi a primeira a ser amarrada a um deles.
Quando estava presa no artefato explosivo, Quitéria surgiu, plena, com uma faca
em punho. Tossiu e deu as três tradicionais cuspidas nas agentes. Uma das
gosmas verdes acertou em cheio o rosto de Marisol. A líder interrogou as
agentes:
— Onde está aquela loira assassina?
— Eu não sei – respondeu uma delas.
Quitéria se dirigiu a Marisol e perguntou mais uma vez pela detenta famosa.
A agente repetiu não saber. A líder do PCC na cadeia sentou uma bofetada em
Marisol e repetiu a pergunta: “Onde está Suzane?”. A agente manteve a resposta
dada anteriormente e levou mais dois tapas. Ao perceber que Marisol era
resistente à tortura física, Quitéria pegou um litro de álcool e despejou ao redor
das reféns enquanto gargalhava. Uma das agentes entrou em pânico e suplicou
para Marisol entregar a jovem e salvá-las. Marisol se recusou. Quitéria deu uma
hora para ela pensar, ameaçando matá-las carbonizadas.
A rebelião já durava dez horas e Suzane permanecia trancada no armário do
almoxarifado, com dificuldade para respirar por causa do ar rarefeito e estava
fraca, sem comer e beber água. Para não morrer de sede, ela tirou a calça e fez
xixi diretamente no armário. Em seguida, bebeu a própria urina.
As presas do PCC fizeram uma verdadeira operação pente-fino para localizá-
la, mas não tiveram êxito logo de cara. Helicópteros da imprensa e da Polícia
Militar sobrevoavam a penitenciária. Na pauta repassada ao governo, as detentas
pediam melhorias nas instalações do presídio, mais frutas no café da manhã e
banho quente. Mas as reivindicações eram de fachada. O PCC se rebelou mesmo
para matar Suzane e Aurinete, a líder do TCC, a facção rival. A primeira deveria
morrer por causa do crime cometido e para dar visibilidade ao PCC; a segunda,
por ser considerada traidora.
Esperta, Aurinete conseguiu escapar com a ajuda da direção da penitenciária
logo após a explosão que deu largada ao motim. Ela foi acomodada no parlatório
e retirada de lá por uma viatura da polícia. Quando Quitéria e seu bando
perceberam que a rival já estava fora da cadeia, o foco era capturar Suzane. Elas
fizeram um mutirão para encontrá-la. Maria Bonita voltou ao posto médico com
uma gangue de 40 presas bêbadas e munidas de marretas e facas. Depois de
abrirem à força todas as portas do lugar, as bandidas suspeitaram do
almoxarifado ao lado. Correram para lá. A porta de madeira foi arrombada com
facilidade. Dentro do depósito, começaram a martelar com selvageria o armário
de ferro onde Suzane se escondia. A cada pancada, a porta do móvel entortava
lentamente. Com 100% de certeza de que Suzane estava ali dentro, as
sanguinárias do PCC passaram a rolar o armário pelo chão até levá-lo ao pátio da
penitenciária. Debilitada por inanição, debatendo-se e abalada psicologicamente
pela iminência de ser assassinada, Suzane começou a passar mal. Teve forças para
ouvir a voz assustadora de Maria Bonita:
— Eu sei que você está aí dentro, sua cadela! Vou cortar a sua garganta! –
ameaçou a detenta de garras afiadas.
Quando viu o armário com a sua pupila dentro rolando pelo chão de
cimento, Marisol começou a rezar em voz alta. Finalmente, Maria Bonita
conseguiu fazer furos na parede do móvel de ferro. Por uma das fendas foi
introduzida a ponta de uma mangueira metálica de um lança-chamas caseiro.
Num ímpeto, Suzane puxou a mangueira com força bruta para dentro do
armário até arrancá-la da base, deixando o lança-chamas inoperante e as
bandoleiras ainda mais furiosas.
— Você vai pagar caro por isso! – ameaçou Quitéria.
A tropa de choque da Polícia Militar, posicionada na entrada principal da
PFC, passou um aviso ao comando da rebelião por megafone. Se em uma hora o
motim não acabasse, a penitenciária seria invadida por homens armados. Maria
Bonita percebeu que só abriria o armário se usasse as chaves. Ela correu até
Marisol, que ainda estava amarrada ao botijão de gás, e perguntou pelo molho. A
carcereira manteve-se irredutível. Irritada, Quitéria jogou álcool na cabeça das
reféns e acendeu um palito de fósforo, ameaçando incendiá-las.
— Marisol, salve a sua vida. Diga onde está a chave do armário – implorou
Maria Bonita, compadecida com a aspe.
— Eu não sei onde está! – reiterou a agente, aos prantos.
Havia dezenas de presas alcoolizadas e armadas em volta das agentes, que
ainda estavam amarradas aos botijões de gás. Duas carcereiras chegaram a urinar
de tanto medo. As detentas gritavam palavras de ordem contra a opressão
carcerária. Marisol estava encharcada de álcool e começou a rezar pela própria
vida. O tumulto generalizado provocou um empurra-empurra. Quitéria soltou
uma gargalhada medonha e anunciou a morte de Marisol. Maria Bonita ficou
com dó e interveio pela última vez:
— Marisol, pelo amor de Deus, por que a senhora vai morrer no lugar
daquela assassina? Basta dizer onde está a chave do armário e estará a salvo.
Onde está a chave? – insistiu a cangaceira.
Como se quisesse morrer, Marisol permaneceu calada. De repente, no meio
da confusão, Quitéria parou de rir e soltou o fósforo aceso no chão. O palito
apagou na queda. Subitamente, a rainha da cadeia ajoelhou-se com a boca aberta
e caiu calada no chão, no meio da multidão. As detentas gritavam, eufóricas.
Maria Bonita percebeu que Quitéria havia sido atingida violentamente com uma
facada na jugular. Como estavam com o rosto encoberto, era impossível
identificar a autora daquele golpe certeiro. Ainda mais no meio da balbúrdia. A
facada foi tão forte que a lâmina ficou inteiramente cravada, deixando somente o
cabo curto e fino do lado de fora do pescoço, expelindo um jato de sangue.
Odiada pelas mulheres do PCC e do TCC, a presa de riso frouxo e catarro no
peito ainda agonizava no chão, tentando arrancar a faca do próprio pescoço.
Houve festa ali mesmo para comemorar a morte da rainha da penitenciária.
Ainda estrebuchando no chão de cimento, Quitéria levou um tapa no rosto de
uma detenta qualquer. Começou um coro frenético de “bate mais!”, “bate mais!”,
“bate mais!”. Impulsionada pela pressão social, outra presa se abaixou para dar
mais uma bofetada na bandida. Quitéria passou a levar inúmeros chutes,
bofetadas e cuspidas das inimigas. A apatia dos espectadores daquela cena
chocou Marisol, que assistia a tudo imobilizada. Maria Bonita, que ainda tinha
no rosto a marca de um ferimento feito por Quitéria no dia anterior, entrou na
fila e desferiu com gosto uma bofetada sonora na ex-líder. Ainda debochou:
“Não ouviu o barulhinho, né? Vou dar mais duas!”.
A gênese do linchamento só encerrou quando o Batalhão de Choque invadiu
a penitenciária, soltou as reféns e arrombou o armário onde estava Suzane,
pondo fim à rebelião. Apesar de ter sido massacrada, Quitéria foi levada com
vida para o hospital, mas morreu tão logo deitou-se num leito da Santa Casa de
Misericórdia. Suzane e as seis agentes também receberam atendimento médico
dentro da penitenciária. A assassina chegou a tomar soro fisiológico na veia para
se reidratar.
No dia seguinte à rebelião, a Secretaria de Administração Penitenciária fez
uma varredura na PFC e encontrou mais de 100 facas. Para evitar outro motim,
as detentas com posição de liderança do PCC, incluindo Maria Bonita, foram
transferidas para cadeias do interior de São Paulo. Ao chegar à cela, ainda
debilitada, Suzane foi consolada por Sofia. Mal ela se deitou para descansar na
cama de concreto, uma agente abriu a porta e mandou Suzane arrumar suas
coisas, pois seria transferida imediatamente. A jovem teve uma crise de pânico e
ficou abraçada a Sofia. A amiga deu seus últimos conselhos motivacionais à presa
famosa:
— Suzane, se você se entregar à tristeza, vai morrer nesse purgatório. Não
deixe isso acontecer. Acorde todos os dias, passe um batom, mantenha as suas
unhas limpas e pintadas. Esteja sempre bonita...
— Eu tenho medo de ser abandonada nesse inferno! – confessou Suzane.
De todas as angústias que assolam as mulheres presidiárias, o abandono dos
familiares é a maior delas. Ser esquecida na cadeia chega a ser desgraça pior do
que a morte. E elas não escapam dessa desventura. Em todos os presídios
femininos, a maioria das detentas cumpre pena sozinhas, rejeitadas pelos
esposos, filhos, pais e irmãos. Ao receber visita do marido todos os finais de
semana, Sofia era a exceção confirmadora da regra. As suas cinco colegas de cela,
incluindo Suzane, não recebiam visitas de parentes havia mais de dois anos.
Ao ser levada a uma sala no prédio da administração da PFC, Suzane recebeu
a notificação da transferência para o Centro de Ressocialização Feminino (CRF),
no município de Rio Claro, a 175 quilômetros da capital. A um funcionário, a
jovem pediu para se despedir do médico João Paulo e de Marisol, o que foi
negado. O médico, por sinal, foi denunciado por agentes de segurança carcerária
por não ter avisado da rebelião e por ter protegido Suzane, ao indicar o
almoxarifado como esconderijo. João também foi acusado de ter dado proteção a
outras detentas.
* * *
D
e volta para a cadeia, condenada, Suzane foi jogada feito um saco de
batatas num camburão da Polícia Militar estacionado no pátio do Fórum
da Barra Funda. Deitada, algemada e tremendo de frio, a jovem vestia um
casaco azul-celeste com listras brancas e tinha os cabelos repicados na altura dos
ombros. Os policiais fizeram questão de deixar a porta traseira da viatura aberta
para expor a assassina à imprensa. Depois de cinco minutos de holofotes, flashes
e filmagens, a barca – como são chamados os carros oficiais de transporte de
presos – partiu pela Rodovia dos Bandeirantes com sirene ligada por 180
quilômetros rumo ao Centro de Ressocialização de Rio Claro. Ao chegar à
moradia-paraíso, a jovem foi hostilizada pelas presas porque tinha gozado de
privilégios em sua primeira passagem pelo local e por causa da natureza do crime
cometido. E também pelos funcionários, já que as regalias anteriores da
criminosa famosa vazaram para a imprensa, provocando o afastamento de parte
da direção do presídio. Como punição, Suzane foi transferida para a
Penitenciária Feminina de Ribeirão Preto, a 320 quilômetros da capital. Lá,
mergulhou no inferno pela segunda vez.
Inaugurada em 2003, a nova moradia de Suzane era tão “luxuosa” quanto a
cadeia de Rio Claro. Não havia superlotação e a calmaria reinava. A Secretaria de
Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo escolheu justamente essa
unidade prisional para ser transformada em modelo de ressocialização do
nordeste do estado. Focou na humanização da pena e na oferta de trabalho e
educação, além de projetos voltados para a saúde mental e cursos. Tudo para
devolver a mulher presa ao convívio social. Lá, todas trabalhavam, fosse em
empresas parceiras do presídio, fosse na manutenção dentro da unidade, como
limpeza, cuidados com a horta e reformas. Eram oferecidos cursos
profissionalizantes voltado para aptidões diversas, como empreendedorismo,
finanças e até marketing. A penitenciária mantinha ainda um espaço com
hortifrútis orgânicos cultivados pelas detentas. Os produtos eram usados nas
refeições das criminosas e dos funcionários.
As qualidades da Penitenciária de Ribeirão preto não foram suficientes para
fazer Suzane sorrir. Ao chegar, ela cumpriu os ritos de inclusão. Ficou sozinha na
cela destinada ao regime de observação por dez dias. No início, não conseguia
comer nem as refeições com legumes orgânicos cultivados pelas colegas. Quando
foi solta no pátio para o primeiro banho de sol, estava esquálida e abatida. Nesse
contato inicial com as outras presas após o julgamento, Suzane percebeu ter sido
transformada em celebridade. Sua imagem estava em todos os jornais, revistas e,
principalmente, na televisão. Esse tipo de exposição dá prestígio ao criminoso
dentro das penitenciárias. As demais detentas e até as agentes de segurança
olhavam para Suzane como se ela fosse artista. Elogiavam a sua beleza. “Você é
muito mais bonita pessoalmente. As fotos não te valorizam”, disse uma
carcereira. Os elogios não eram capazes de reanimar a estrela da cadeia. Ela
estava deprimida com o castigo pesado de 39 anos de reclusão. A sentença-base,
a bem da verdade, era de 18 anos. Mas os agravantes do crime (meio cruel,
motivo torpe e ausência de chance de defesa às vítimas) fizeram a pena mais do
que dobrar. Nessa época, seus advogados tentavam reanimá-la, prometendo
conseguir em instâncias superiores da Justiça um novo julgamento. No entanto,
é mais fácil a Irmã Lúcia revelar o terceiro segredo de Fátima do que anular a
sentença de um réu confesso no tribunal do júri. Sem esperança e deprimida,
Suzane sentou-se numa soleira e passou a olhar o céu azulado, quando foi
abordada por uma presa:
— Veja só quem veio comer farelo com os porcos! Seja bem-vinda, querida! –
ironizou.
— Nossa Senhora! – assustou-se Suzane, levantando-se rapidamente.
A interlocutora era Maria Bonita, a cangaceira sinistra de garras afiadas. Por
causa do seu envolvimento na rebelião na Penitenciária Feminina da Capital, a
traficante havia sido transferida para Ribeirão Preto. Nessa época, meados da
década de 2000, a vigilância interna das galerias era feita pelas próprias detentas.
Poderosa, Maria Bonita era uma das novas “seguranças” do presídio. Ela
carregava todas as chaves das celas de um bloco onde ficavam 30 presas do
regime fechado. Desde que chegara à unidade, a bandida havia feito seis cursos,
incluindo os de segurança, primeiros socorros, jardineiro e pedreiro. Foi nesse
período que a bandoleira ganhou a confiança das colegas e da administração –
graças a tantas regalias, ela conseguiu gerenciar de dentro da penitenciária uma
pequena quadrilha especializada em sequestro relâmpago e extorsão.
Egressa da Bahia, Maria Bonita chegou a São Paulo com a família em 1990,
aos 14 anos. O pai conseguiu emprego de gari na prefeitura da capital, enquanto
a mãe vendia cosméticos de porta em porta. Para ajudar no sustento do lar, a
filha começou a trabalhar honestamente como faxineira numa empresa
especializada em serviços gerais. Aos 16, conheceu um assaltante de
supermercados e se apaixonou por ele e, principalmente, pelo universo perigoso
do rapaz, sempre metido em tiroteios e fugindo da polícia. Aos 18, Maria Bonita
já se intitulava “cangaceira urbana” e figurava na lista dos bandidos mais
perigosos de São Paulo. Aos 21, levou um tiro na perna disparado por um
segurança de banco durante um assalto, mas conseguiu escapar. A mãe e uma
vizinha enfermeira fizeram os curativos. Curada, ela mesma resolveu se afastar
da família para não colocar os pais em perigo. Um ano depois, Maria Bonita foi
cooptada pelo PCC junto com o namorado. Na facção, o casal intensificou a
atividade criminosa, praticando inclusive sequestros. Sua casa caiu em 2000,
quando ela tinha 24 anos, denunciada anonimamente à polícia. O namorado foi
para a penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau, enquanto ela
foi parar na Penitenciária Feminina da Capital, onde tentou matar Suzane.
Respeitada dentro da Penitenciária de Ribeirão Preto, Maria Bonita foi eleita
“presidente da cadeia”, gíria para definir quem “governa” ou “pilota” a prisão.
Nesse cargo, a bandoleira adorava exibir o molho com cerca de 30 chaves preso à
cintura. Na hora que quisesse, ela conseguia abrir as portas do almoxarifado e até
da despensa de alimentos. No entanto, a sua autoridade ia muito além dessas
coisas miúdas. Maria Bonita tinha poder de decidir quem deveria viver ou
morrer dentro do confinamento, administrando um tribunal do crime
intramuros. A líder nunca estava sozinha. Por onde andava, era sempre
acompanhada por um grupo de seis seguidoras, formando à sua volta um
eficiente escudo de proteção. Ai de quem a encarasse no pátio da cadeia. Suas
seguranças eram detentas violentas, envolvidas com tráfico e latrocínio. Como
tinha conexão com assassinos perigosos do mundo lá fora, Maria Bonita era
temida até pelas agentes de segurança penitenciária, chamadas pelas detentas de
“pé de porco”. Certo dia, uma carcereira tentou repreender a “presidente” da
cadeia em público porque ela tinha ameaçado uma rival com uma enxada na
horta. No dia seguinte, a bandoleira chamou a funcionária num canto e lhe
repassou um papel contendo anotações. “Pela ordem, sua funça? [Tudo bem com
a senhora?]. Leia essa pipa [bilhete] com molejo [atenção]. Nela tem o ninho
[endereço] da sua família e até o nome da escola do seu piá [filho homossexual].
Pense duas vezes antes de me fazer passar vergonha no meio das baratas [colegas
de cela]. Caso contrário, pego um graham-bell [telefone], passo um fio para os
meus parças pularem a fogueira [espancar] da sua filha, copiou?”. Depois desse
recado, nunca mais a carcereira ousou levantar a voz para a presidente da cadeia.
Suzane não precisou de muito tempo para perceber a dimensão do poderio
da sua velha rival. Sem a menor cerimônia, Maria Bonita resgatou das
profundezas da calcinha um celular minúsculo. Fez uma ligação pressionando
um único botão e engatou o aparelho numa engenhoca feita de arame,
prendendo-o perto do ouvido, sob a cabeleira cheia de cachos cor de fogo. O
truque deixou as suas mãos livres. Falando baixinho, Maria Bonita misturou as
gírias da cadeia com as usadas em conversas por rádio amador:
— QAP? Me dá um break? [...] Não posso comer barbante porque estou
debaixo do sol. [...] Vou modular rápido: o batom tá aqui na minha frente! [...]
Ela dorme no seguro, mas tem um peixe nosso lá no aquário! [...] O batente tá
agendado, copiou? [...] Beleza, fica com PX-D Maior. Câmbio, desligo!
Traduzindo, Maria Bonita passou a seguinte mensagem por telefone:
“Estás na escuta? Posso falar? [O interlocutor pediu um momento] Não posso
esperar porque estou na hora do banho de sol. Vou falar rápido: a Suzane está
aqui na minha frente! Ela dorme num pavilhão especial, mas tenho uma amiga na
mesma cela. O trabalho tá agendado, entendeu? [...] Beleza, fica com o diabo. Até
mais!”
Quando a cangaceira desligou “o radinho”, como os presos chamam os
aparelhos celulares traficados para dentro do presídio, Suzane tentou negociar.
Começou fazendo uma sondagem:
— Você ainda trabalha para o PCC? – perguntou.
— Pedi demissão! Agora presto serviços diretamente para o Satanás, o pai
das trevas! – debochou Maria Bonita, gargalhando e mostrando as garras
vermelhas.
— Olha, meus advogados têm muito dinheiro. Eu topo pagar uma certa
quantia a você em troca de proteção.
— Topa mesmo? Não me diga! Se enxerga, sua puta! Você está na miséria.
Foi deserdada. Matou os pais para ficar com o dinheiro e acabou sem um real na
bolsa! Pensa que não leio jornal aqui dentro?
— Eu posso te pagar! Juro! Juro! Juro! Juro por Deus! Quanto você quer para
me deixar em paz?
— Jura por Deus? – ironizou a detenta satânica.
Irredutível, Maria Bonita não abriu canal para negociação. Outras bandidas
integrantes da quadrilha infernal mostraram à Suzane facas artesanais de cabos
vermelhos em plena luz do dia, no pátio da cadeia. Com medo de morrer, a
jovem teve coragem de formalizar à direção do presídio uma denúncia contra a
cangaceira. Orientada por advogados, Suzane limitou-se a relatar só as ameaças
de morte, omitindo ter visto a criminosa usando um celular e armas brancas. A
queixa foi encaminhada ao Ministério Público. Semanas depois, ao ver o
promotor de Justiça Eliseu José Bernardo Gonçalves andando pelos corredores
da penitenciária, fazendo uma inspeção de rotina, Suzane não titubeou em
abordá-lo. Lançou mão da postura infantil e da voz de menina:
— Doutor, pelo amor de Deus! Me ajude!
— O que houve, Suzane?
— Uma presa vai me matar aqui dentro!
Eliseu era promotor da Vara do Júri e de Execuções Criminais em Ribeirão
Preto. Sua tarefa era fiscalizar a execução da pena das detentas e encaminhar
parecer à Justiça sobre concessão de benefícios. A autoridade também apurava
denúncias de maus-tratos nos presídios. Sendo assim, era comum ter audiências
com as presidiárias. Dentro da unidade penal, no dia a dia, Eliseu já via Suzane
com outros olhos, segundo relatos de funcionários. No dia em que a jovem falou
das ameaças de morte, o promotor fez questão de estender a conversa:
— Quem quer matar você, sua linda?
— Uma presa satânica chamada Maria Bonita. O senhor sabe quem é?
—Todo mundo a conhece. Mas olha, cão que muito late não morde.
— Aqui dentro ela ameaça até as carcereiras. O senhor precisa ver! –
entregou Suzane.
— Por que ela quer matar você?
— Ela se diz mensageira do Satanás ou sei lá de quem. Me tire daqui, por
favor. Não estou pedindo, estou implorando! – suplicou Suzane.
— Para onde você quer ir?
— Tremembé!
Na semana seguinte, Maria Bonita encontrou Eliseu na penitenciária. A
cangaceira foi objetiva quando questionada por ele:
— É verdade que você vai matar a Suzane?
— Sim! – assumiu.
— Por quê?
— Porque quem mata os pais não merece viver. O senhor conhece as regras,
né?
— Quem mandou você matá-la?
— Não posso falar! Aliás, todo mundo aqui na comunidade sabe que o
senhor paga o maior pau por ela. Se eu fosse o doutor, tiraria ela daqui quanto
antes! – sugeriu Maria Bonita.
— Quero que você pare com essas ameaças, caso contrário você será
denunciada à Justiça e receberá um aumento na pena – avisou o promotor.
A cangaceira diabólica não era o único problema de Suzane na penitenciária
de Ribeirão Preto. Dois anos depois de mandar matar os pais, ela passou a ser
investigada pelo Ministério Público de São Paulo por causa de duas contas
supostamente abertas em seu nome e de sua mãe no Discount Bank and Trust
Company (DBTC), hoje Union Bancaire Privée, na Suíça. As contas haviam sido
descobertas em 2003 por meio da CPI do Banestado, que identificou também
uma ordem de pagamento de número 310035 no valor de 500 mil dólares para o
banco JP Morgan Chase, de Nova York. De lá, o capital foi enviado para o
DBTC. Na época, o procurador Eduardo Reingantz suspeitava que o dinheiro
transferido para o exterior por meio de uma offshore tenha sido desviado da obra
do Rodoanel Mario Covas, gerenciada por Manfred von Richthofen. O
Ministério Público acreditava que o advogado de Suzane, Denivaldo Barni, sabia
dessas contas e por esse motivo ficou colado a ela – ora feito advogado, ora feito
tutor – por mais de uma década após o crime.
Outro indício que alimentava a suspeita de que Manfred operava dinheiro
sujo vinha do padrão de vida da sua família, considerado elevado para um
rendimento de aproximadamente 30 mil reais (do casal) em valores da época. A
outra suspeita veio do fato de Suzane ter desistido com muita facilidade da
herança milionária deixada pelos pais. Segundo uma tese da investigação, ela
teria planejado matar os pais de olho nessa fortuna. A renúncia à herança
ocorreu bem antes de a Justiça declarar a assassina como indigna do espólio de
Manfred e Marísia. Denivaldo Barni chegou a depor no MP no inquérito aberto
para apurar os caminhos desse dinheiro, mas nunca foi provado que as contas no
exterior, de fato, pertenciam à família Richthofen. A investigação do MP foi
arquivada quando o procurador Nadir de Campos Júnior, que atuou no
julgamento de Suzane, surgiu no programa Super Pop, da Rede TV!, em 2 de
março de 2015. Em entrevista à apresentadora Luciana Gimenez, ele afirmou
categoricamente que a jovem mandou os irmãos Cravinhos matarem os pais de
olho na fortuna oculta. Andreas, irritado com as suspeitas sobre Manfred,
escreveu uma carta aberta ao procurador, publicada no dia 7 de março de 2015,
no jornal O Estado de S. Paulo:
Prezado Dr. Nadir de Campos Jr.
É em nome do excelente trabalho do qual o Sr. participou, ao condenar a
minha irmã Suzane Louise von Richthofen e os irmãos Cristian e Daniel
Cravinhos, e também por toda sua história na Justiça brasileira, que me sinto
compelido a abordá-lo.
Escrevo-lhe esta mensagem por vias igualmente públicas às quais o Sr. se vale
para comentar o caso da minha família. Entendo que sua raiva e indignação para
com esses três assassinos sejam imensas e muito da sociedade compartilha esse
sentimento. E eu também. É nojento. Encare da perspectiva existencialista. No
entanto, observo que o Sr. faz diversos apontamentos referindo-se a um suposto
esquema de corrupção, do qual meu pai, Manfred Albert von Richthofen, teria
participado e cujos resultados seriam contas no exterior em enormes montantes.
Gostaria que o Sr. esclarecesse essa situação: se há contas no exterior, que o Sr.
apresente as provas, mostre quais são e onde estão, pois eu também quero saber.
Entendo que sua posição e prestígio o capacitam plenamente para tal. Mas se isso
não passar de boatos maliciosos e não existirem provas, que o Sr. se retrate e se cale
a esse respeito, para não permitir que a baixeza e crueldade desse crime manchem
erroneamente a reputação de pessoas que nem aqui mais estão para se defender,
meus pais Manfred Albert e Marísia von Richthofen.
Respeitosamente,
Andreas Albert von Richthofen
Desde então, o Ministério Público nunca mais se pronunciou publicamente
sobre as supostas contas da família Richthofen no exterior.
* * *
Depois de ser advertida pelo promotor Eliseu, Maria Bonita passou a não ter
mais acesso à Suzane no pátio da penitenciária de Ribeirão Preto. A cangaceira
foi transferida de pavilhão e tomava banho de sol em horários distintos. No
entanto, num procedimento de rotina para contagem geral das presas, todos os
portões foram abertos e dezenas de filas indianas compridas seguiam pelos
corredores. As detentas caminhavam com as mãos para trás, como se estivessem
algemadas. Suzane seguia com um grupo de 40 mulheres para a área externa. A
cangaceira caminhava pela galeria no sentido contrário – também em fila indiana
– com outro agrupamento de criminosas. As filas andavam, faziam curvas e
paravam a todo momento. A famosa lei de Murphy diz: “Se alguma coisa pode
dar errado, dará”. No caso de Suzane, deu muito errado. A sua fila parou bem ao
lado da fila em que estava a sua antagonista de unhas vermelhas. Maria Bonita
aproveitou a coincidência e deu dois passos à frente para ficar mais próxima da
sua rival. Mesmo advertida pelo promotor e cercada de testemunhas, inclusive de
carcereiras, Maria Bonita ameaçou Suzane mais uma vez. O prenúncio, dessa vez,
beirava o terrorismo:
— O Satanás me mandou uma mensagem. Eu li, mas não respondi...
— Do que você tá falando, sua louca? – questionou Suzane.
— Não pensa que você escapou, sua vagabunda! Presta atenção no que eu
vou te falar: na sua cela tem seis detentas. O Anhangá já está incorporado em
uma delas. Você nem faz ideia de quem seja. À noite, quando você fechar os
olhos, será para sempre! – ameaçou a cangaceira.
— E quem é Anhangá? – quis saber Suzane.
— O Satanás, sua idiota! – esbravejou Maria Bonita, arrancando risadas de
quem ouviu a conversa.
Perplexa por ser ameaçada na frente de diversas testemunhas, Suzane ficou
sem ação. À noite, quando a galeria foi trancada, ela fitou o rosto de cada uma
das suas colegas de cela na tentativa de identificar quem, afinal, havia
incorporado o tal Anhangá. A jovem passou a desconfiar de uma nigeriana
radicada no Brasil chamada Latasha, de 28 anos na época. Circunspecta, a
estrangeira foi condenada a 46 anos de prisão por ter jogado o filho, um bebê de
dois meses, num panelão de água fervente. Sem fluência na língua portuguesa, a
nigeriana não falava com ninguém. Latasha chamava atenção das colegas porque
parecia dormir sem respirar, na mesma posição a noite inteira e sem fazer
nenhum barulhinho, tal qual um defunto. Das suas companheiras de cela,
Suzane só confiava em Celeste, a famosa Tia do Fogo, que havia conhecido
quando passou pela Penitenciária Feminina da Capital. Suzane falou da ameaça
de Maria Bonita, das suas desconfianças em relação à Latasha, e pediu à amiga
para vigiá-la durante o sono. Celeste riu:
— Menina, para com essa bobagem!
— A Maria Bonita disse que um tal Anhangá vai encarnar em uma das
detentas aqui do barraco (cela). Estou achando que vai ser no corpo da Latasha –
arriscou Suzane.
— Por que justamente na pobre da Latasha, tadinha? Ela não mexe com
ninguém. Passa o dia dormindo – ponderou Tia do Fogo.
— Sei lá, de todas nós, ela é a que tem o pior crime. Só pode ser ela, né? –
argumentou Suzane.
— Faz o seguinte: aproveita que o promotor está com os quatro pneus
arriados por você, marca uma visita no gabinete dele e insista no bonde para
Tremembé – aconselhou a amiga.
— Bonde?
— Bonde, na gíria dos presídios, significa mudar de cadeia – ensinou a
veterana.
Celeste era uma viúva de riso frouxo e carismática. Com 48 anos, convertida
ao espiritismo dentro da cadeia, fazia atendimentos na cela em uma mesa branca.
Garantia falar com os mortos. Sua credibilidade era tão grande que presidiárias
de todas as religiões disputavam a tapa uma hora para entrar em contato com
parentes desencarnados por intermédio da espírita. A maioria queria encontrar
com suas vítimas para pedir perdão. Uma senhora de 46 anos chamada Isabel
havia matado o filho de 16 porque ele era dependente químico e estava
destruindo a família, vendendo até os eletrodomésticos da casa para comprar
cocaína. Certa noite, a mãe acordou de madrugada com ele e dois amigos
arrancando a televisão de 29 polegadas da parede da sala. Isabel tentou impedir,
mas seu filho a empurrou com tanta força que ela caiu no chão. Movida por uma
forte emoção, a mãe foi até o quintal, pegou um machado pequeno e deu um
único golpe na cabeça do jovem, afundando a ferramenta em seu crânio,
atingindo o lobo parietal, responsável pela sensação e percepção, pela informação
sensorial e os campos visuais. O adolescente caiu no chão, estrebuchou e morreu
meia hora depois numa poça de sangue à espera de socorro. Isabel foi condenada
a 33 anos de reclusão. Na Penitenciária de Ribeirão Preto, sua maior angústia
nem era a privação da liberdade. Era a falta de comunicação com o filho morto
de forma trágica por ela. Numa sessão espírita com Tia do Fogo, Isabel teria
finalmente falado com ele. Na conversa sobrenatural, o filho teria perdoado a
mãe associando a sua morte ao seu vício. “Ele disse que está num lugar lindo,
cheio de flores. Por ele, eu nem estaria na prisão. Mas não me importo em estar
presa. Saber que meu filho me perdoou já é libertador”, disse Isabel. Cínica,
Suzane também fez consulta com Tia do Fogo para acessar a alma dos pais.
“Fechei os olhos e encontrei a mamãe. Ela também disse já ter me perdoado, pois
a culpa toda é do Daniel. Ele, sim, é um assassino. O papai ainda não quis
conversar. Pediu um tempo”, contou a parricida sobre a sua experiência
sobrenatural.
Com sobrepeso, Celeste, a Tia do Fogo, pesava cerca de 100 quilos e tinha
1,72 de altura. Mãe de três filhos adultos, trabalhava na cozinha da penitenciária
e era elogiadíssima por fazer arroz de panela soltinho e pela criatividade em
combinar temperos. A cozinheira lidava bem com o sobrepeso, mas adorava
mostrar fotos de biquíni, feitas na época em que era magérrima, na juventude. A
parede de sua cela era repleta dessas imagens. Antes de ser privada de liberdade,
Celeste ganhava a vida cozinhando em um restaurante de comida brasileira.
Esperta, nunca se envolveu em confusão na cadeia. Seu defeito, como costumava
dizer às colegas, foi amar demais um lixo de homem. Suzane logo se identificou,
pois àquela altura da vida ela ainda justificava o seu crime com a paixão cega por
Daniel.
Celeste foi casada com Pascoal, um professor de Educação Física jovem, alto
e aficionado por esportes. Em uma foto do casamento, era possível ver a noiva
com uma cintura de pilão. O casal morava em Ribeirão Preto. Com o passar do
tempo, a cozinheira desenvolveu um distúrbio alimentar provocado por
alterações hormonais combinadas com excesso de cortisol no organismo. O
sedentarismo e o metabolismo lento também agravaram o seu quadro clínico.
Celeste passou a ganhar peso lentamente. O receio de perder o marido a fez
procurar ajuda médica. Mas a compulsão por comida só aumentava. Pascoal
passou a repreendê-la. No início, ele fazia alertas sutis, como se estivesse
preocupado com a saúde da companheira. Depois, os avisos foram evoluindo
para comentários abusivos. Quando Celeste repetia o prato no jantar, por
exemplo, Pascoal dizia na frente dos filhos que a mãe estava ficando gorda feito
um hipopótamo. E complementava a chacota simulando com os dois braços
abertos a bocarra do mamífero de grande porte. Os meninos riam e Celeste,
lógico, ficava envergonhada.
Certo dia, a família recebeu Manuella, uma sobrinha de 16 anos vinda do
interior de Minas Gerais. Quando viu Celeste, a menina comentou em tom
jocoso: “Nossa, tia, como a senhora engordou!”. Angustiada com a aparência, a
cozinheira comia mais e mais. A princípio, Manuella passaria só uma semana,
mas foi ficando, foi ficando, e a estada na casa dos tios já somava três meses.
Magra, a garota usava o excesso de calor como desculpa para usar roupas
curtíssimas. Ao pôr uma blusinha folgada e abrir mão do sutiã, a sobrinha foi
repreendida por Celeste. Pascoal defendeu Manuella, alegando que a juventude
estava mais liberal.
A adolescente de seios fartos começou a despertar a cobiça dos homens da
vizinhança. O filho mais velho de Celeste, de 15 anos na época, se interessou pela
prima, mas ela o rejeitou dizendo gostar de homens mais velhos, citando Pascoal
como exemplo. Triste com o fora, o garoto falou para a mãe das preferências de
Manuella. Celeste teve uma intuição e providenciou o retorno da sobrinha para a
casa dos pais. Ela mesma arrumou a mala da jovem e a levou até a rodoviária
para se certificar da sua partida. Só arredou pé do terminal quando viu o ônibus
com Manuella virar a esquina. Naquela mesma noite, Pascoal não chegou para o
jantar. Celeste ficou intrigada. Às duas da madrugada, a porta da sala abriu e
Pascoal entrou, bêbado. O excesso de álcool emprestou ao marido uma coragem
pra lá de imprudente:
— Quer saber a verdade? Eu namoro a Manuella desde o ano passado,
acredita? Por isso mandei ela vir morar conosco.
— Como assim? O que você está falando?! – espantou-se Celeste.
— Isso mesmo que você ouviu! Olha, e ela nem tem culpa de nada, tadinha.
Eu que dei em cima. Ela nem queria nada comigo. Insisti, insisti, insisti até que
ela não resistiu – orgulhava-se Pascoal.
— Por que você está fazendo isso comigo?
— Se olha no espelho que você terá a resposta! Você está gorda, pesada,
envelhecida e gasta. Uma baranga! Impossível ter desejo por um bucho feio feito
você... Aí resolvi namorar uma novinha magra e bonita...
Quanto mais Pascoal botava as suas verdades ácidas para fora, mais Celeste
sucumbia emocionalmente. Mal se aguentando em pé, o bêbado falava enquanto
tirava a roupa no quarto do casal:
— Você nem se deu conta de que reforcei o estrado da nossa cama com
chapas de aço porque a madeira não aguentava mais o seu peso. Você parece
aquela mulher que explodiu na novela de tanto comer. Você é saco de gordura.
[...] Seu tempo já passou. Mas o meu, não. Estou em forma e você está feia,
derrubada...
— Para com isso, Pascoal! – suplicou Celeste.
— Eu bem que implorava para você parar de comer e dar um jeito nessa
barriga. [Nesse momento, Pascoal apertou com os dedos as dobras de gordura do
abdome de Celeste]. Mas você nunca me ouviu! Só fazia engordar, engordar e
engordar. Agora tá aí, redonda, andando pela casa que nem um elefante.
— Por favor, para! Por favor... – implorava a cozinheira.
— Paro não! Espero que essa minha sinceridade faça você dar um jeito nessa
sua vida triste! Começa fazendo uma dieta! – sugeriu.
Com as duas mãos sobrepostas na boca e os olhos esbugalhados, Celeste
passou a ouvir as ofensas do marido estática, chorando em silêncio. Pascoal
nunca havia encostado um dedo na companheira. Em compensação, falava
absurdos para a mulher – inclusive na frente de amigos – desde que ela
engordou. Antes, Celeste dizia que suportava as ofensas do marido por amor.
“Ele me falava coisas horrorosas. Mas nunca tinha me traído. Mesmo depois que
adquiri sobrepeso, o sexo era bom. Até que um dia ele arrumou outra...”,
recorda. Hoje, ela diz que nunca soube – de verdade – o que era o amor. “Estava
doente”, concluiu.
No fatídico dia, Pascoal, mais pra lá do que pra cá de tanta bebedeira, abriu
uma gaveta da cômoda com roupas da esposa e pegou uma calçola plus size de
cor violeta. Em seguida, ele pôs a peça íntima no próprio pescoço para zombar da
coitada, comentando em tom de escárnio: “Olha para isso!” Ao fazer à esposa um
anúncio embalado com mais humilhação, Pascoal assinou a sua sentença de
morte:
— Eu vim arrumar as malas. Vou morar com a Manuella. Estou de mudança
para Minas amanhã cedo. Se quiser vir conosco, venha. Já conversei com ela.
Você é habilidosa no fogão, lava e passa roupa bem. Será a nossa empregada.
Aliás, vai lá na cozinha, faz um café quente e traz um copo de água que preciso
me hidratar... Vai lá, saco de banha! Mas pisa no chão devagarinho para não
acordar as crianças!
Mesmo sóbria, Celeste parecia embriagada de tão desnorteada. Ela saiu do
quarto de mansinho e caminhou pelo piso de madeira da casa sem fazer barulho,
conforme o marido havia pedido.
Pascoal tirou toda a roupa – deixou a calçola de Celeste no pescoço – e se
jogou no meio da cama de peito para cima, completamente nu, com as pernas e
os braços totalmente abertos. Seu corpo fazia um X sobre o colchão. Sob forte
efeito de álcool, apagou.
Nervosa, Celeste acendeu um cigarro, deu vários tragos seguidos e certificou-
se de que os filhos dormiam. Obediente, foi até a cozinha. Em vez de café, pegou
uma corda comprida e usou uma faca para cortá-la em quatro pedaços iguais.
No lugar da água, a cozinheira apanhou um galão com cinco litros de
gasolina no depósito. Voltou ao quarto. Deu mais uns tragos e pôs o cigarro
aceso em um cinzeiro sobre a cômoda. Depois, imobilizou o marido, amarrando
os pés e as mãos do coitado na madeira da cama.
Celeste despejou lentamente boa parte do combustível inflamável sobre o
colchão, ao redor do traidor boquirroto, encharcando a cama inteira. Ali,
naquela cena, Celeste se transformou na Tia do Fogo. Pegou o cigarro, bateu as
cinzas e continuou fumando.
O vapor do benzeno expelido pela gasolina acordou Pascoal da bebedeira. O
marido recobrou a lucidez e tentou sair da cama. As amarras o impediram.
Debateu-se. Imóvel, Tia do Fogo só olhava a angústia da vítima. Pascoal suplicou
pela vida:
— Que porra é essa, amorzinho? Não me leva a mal. Tudo o que eu te falei foi
da boca para fora! Me desamarra, por favor!
— Agora eu sou seu “amorzinho”, né? – ironizou.
— Eu te amo! Só falei aquelas merdas da boca pra fora. Nem vou mais me
mudar. Me solta! Eu serei outro homem, juro! – prometia Pascoal.
Ao narrar as próximas cenas, em 2018, Celeste chorou de soluçar e encharcar
os olhos. “Como eu queria ter tido forças para parar ali. Acho que ele já havia
aprendido a lição. Mas a emoção me anestesiou. As pessoas não têm noção do
poder das palavras. Elas podem te enaltecer se vierem em forma de elogio. Mas
elas ferem, sangram e deixam marcas profundas se forem ditas para humilhar”,
justificou.
Mesmo ouvindo os apelos de Pascoal, Celeste foi tomada por uma descarga
de adrenalina. Possuída, a Tia do Fogo retirou a calçola do pescoço do marido e
derramou o restante da gasolina, inclusive sobre o seu rosto, fazendo-o fechar os
olhos de tanta ardência. Ela deu a última tragada no cigarro, soprou a fumaça
para o alto e jogou a bituca sobre o marido, que gritava. Furiosa, vociferou:
— Vai gritar no inferno, desgraçado!
Foi num piscar de olhos. A ponta de cigarro triscou o colchão e o fogaréu
explodiu até o teto, provocando um incêndio, acordando toda a vizinhança. Com
o estrondo, os filhos do casal despertaram e correram para a rua. Tão logo pegou
fogo, Pascoal se contorceu sobre o colchão, numa tentativa eloquente de se livrar
das amarras.
Ao ver a pele do marido derretendo, Celeste teve um arroubo de
arrependimento e jogou um edredom sobre ele. O esforço desesperado da esposa
para salvar o marido foi em vão. O edredom desapareceu rapidamente em meio
às chamas.
No primeiro momento, carbonizaram a epiderme, a derme e as estruturas
mais profundas da pele. Quando o fogo queimou as cordas que prendiam
Pascoal na cama, ele já estava irreconhecível. Quando a última fagulha se apagou,
toda a cama havia virado um montueiro de cinzas. Só a lâmina de aço usada para
reforçar o estrado sobrou intacta.
Os restos mortais do professor que tanto se vangloriava da forma física
ficaram sobre essa chapa, torrados feito um carvão. Segundo o laudo do IML, ele
morreu vítima de queimadura de quarto grau, aquela que destrói pele, músculos
e até os ossos. Celeste foi condenada a 36 anos de cadeia, e das colegas da prisão
recebeu o notório apelido de Tia do Fogo, a mulher que tudo pode.
Celeste se diz arrependida, pois os filhos a abandonaram na cadeia. O seu rol
de visitantes ficou zerado por mais de dez anos. Até que um dia uma funcionária
anunciou que um rapaz havia pedido para visitar Tia do Fogo no próximo
domingo. Ela foi às pressas à secretaria ver o nome da pessoa. Quase desmaiou
quando viu o nome do seu filho mais velho escrito na sua lista de visitantes.
Emocionada, ela não dormiu de quarta até domingo. Parecia um zumbi de sono
atrasado. Não conseguia trabalhar na cozinha nem nas sessões espíritas. Suas
colegas de cela tentavam acalmá-la. No sábado, véspera da visita, Tia do Fogo fez
com carinho um bolo de morango enorme com três camadas separadas, com
leite condensado. A massa era macia; já o recheio foi feito de uma combinação
irresistível de mousse branca e creme belga. Ela foi ao mercadinho da cadeia e
comprou refrigerantes para receber o filho no pátio da penitenciária no dia
seguinte. Era incrível o carisma de Tia do Fogo na penitenciária. As mulheres –
inclusive as carcereiras – apoiavam a mulher que matou um marido tóxico e
abusador numa época em que essa sororidade nem estava em voga. Todo o
mundo ajudava a detenta a se preparar para o grande dia. Na madrugada de
sábado para domingo, Tia do Fogo cortou e fez escova no cabelo; fez as unhas
dos pés e das mãos. Passou uma maquiagem leve no rosto. Queria estar bonita.
“Será que ele vai me reconhecer? Meu filho tinha 14 anos quando fui presa.
Agora ele tem 24. Nossa! Agora que me dei conta! Nem sei como é a sua
aparência atualmente. Nunca mais vi nem por fotografia. Deve estar um homem
lindo!”, criava expectativas enquanto se arrumava.
Nas penitenciárias de São Paulo, só podem visitar presos na cadeia familiares
de segundo grau com quem ele mantém vínculo familiar. Podem ser pai, mãe,
filhos, irmãos, avós, esposa/companheira. Se o detento não tiver referências
familiares, ele pode adicionar nomes de amigos. Já a entrada de crianças e
adolescentes é permitida somente quando o menor de idade for filho ou neto da
pessoa a ser visitada. O horário para a visita permanecer dentro da cadeia vai das
8h às 16h. Mas o parente só tem acesso ao pátio se chegar até duas horas antes do
horário de encerramento. Tia do Fogo foi para o pátio com o bolo de morango às
8h. Ela levou uma canga e estendeu no chão. Ficou sentada lá. Ao meio-dia, seu
filho ainda não havia aparecido. As amigas observavam Celeste de longe, parada
feito uma estátua, com o olhar fixo no portão. Às 13h, o bolo já estava derretido e
o refrigerante havia esquentado. Se o rapaz não chegasse até as 14h, ele não
entraria mais. Às 13h50, ele finalmente entrou. Realmente era um homem lindo,
forte como o pai e cheio de saúde. Ele caminhou pelo pátio no meio de outros
familiares. Sua mãe fez sinal com os braços. O rapaz a viu e caminhou a passos
largos. Celeste ficou tão emocionada com a aproximação do primogênito que
não teve forças para se levantar do chão. Começou a chorar. Perto da mãe, o filho
tirou um documento e uma caneta do bolso. Foi econômico com as palavras.
Seco, ele justificou a visita:
— Eu vou me casar e preciso de dinheiro. Tem um terreno enorme na
Reserva Macaúba. A propriedade está em seu nome e no do meu pai. Para vendê-
lo, preciso da sua assinatura nessa procuração. Faz favor de assinar – pediu.
Em estado de choque, Celeste pegou o papel e a caneta.
— Filho, me ajude a levantar. Fiz um bolo para você!
— Obrigado, mas não posso demorar. Assine a procuração – pediu, calmo.
— Como está o seu irmão? Me fale da sua noiva! Me fale de você!
— Assine a procuração! – insistiu.
Celeste escreveu seu nome no papel, muda. O filho nem olhou em seu rosto.
Muito menos a chamou de mãe. De posse do documento assinado, ele virou-se
de costas sem dizer “muito obrigado” ou pelo menos “tchau” e desapareceu tão
rapidamente quanto entrou. Tia do Fogo foi consolada pelas amigas e só
conseguiu se recuperar do baque emocional três meses depois. Ela entendeu com
o tempo que, ao jogar aquela bagana de cigarro em Pascoal, não estava matando
o seu marido, mas o pai dos seus filhos. “O Pascoal era um companheiro de
merda. Mas a verdade seja dita: ele era um bom pai. Meus filhos o amavam”,
disse em 2018.
O abandono pelos familiares era outro ponto em comum entre Celeste e
Suzane. A Tia do Fogo contou à amiga ter matado o marido por um impulso
causado pelas palavras violentas ditas por ele naquela noite. No entanto, ao ver
Pascoal crepitando sob as labaredas, a cozinheira se lembrou de todo o
sofrimento vivido desde que começou a perder as curvas do corpo. “Ele me
humilhava até na frente dos meus filhos”, recorda-se. A detenta só entendeu o
que aconteceu depois de se converter ao espiritismo. “Meu marido cumpriu a
missão dele neste plano e eu estou cumprindo a minha. Quem sabe não nos
encontraremos em outras encarnações”, resumiu.
Ao ouvir o relato triste da colega de cela, Suzane pegou carona na história e
contou ter elaborado o plano para matar os pais motivada pela opressão familiar
sofrida dentro de casa desde criança. “Eu sonhava em ser livre. Em poder viajar.
Queria ter poder sobre a minha vida. Agora estou aqui, presa, abandonada”,
reclamou para Celeste.
De madrugada, todas as detentas do “seguro” estavam dormindo, exceto
Suzane, que não pregava o olho à espera do tal Anhangá. Por volta das 3 horas da
madrugada, a jovem foi vencida pelo sono e adormeceu. Celeste roncava alto na
cama de baixo enquanto Suzane dormia no mesmo beliche, na cama de cima.
Latasha jazia no beliche ao lado. No meio da noite, Suzane acordou e olhou em
direção à cama da nigeriana. Mesmo na escuridão, percebeu que Latasha não
estava mais no beliche. Suzane deu um grito de terror e acordou todas as presas
do pavilhão. A detenta africana estava no banheiro da cela, urinando. Celeste deu
um jeito de contornar a situação, dizendo que a amiga havia tido um pesadelo.
Latasha ficou sem entender e voltou a dormir feito uma múmia em sua cripta.
Semanas depois, Suzane se maquiou, entrou em um carro da Polícia Militar e
foi ao Ministério Público pela primeira vez para se encontrar com o promotor.
Essa visita foi no dia 5 de janeiro de 2007. Ela queria falar das ameaças de Maria
Bonita. Ao entrar no gabinete, algemada, Suzane foi cumprimentada pelo
promotor com “um beijinho no rosto”. Em seguida, acomodou-se em uma
cadeira no lado oposto da mesa onde o promotor despachava. De Eliseu, a
detenta famosa recebeu oferta de água e café. Ela aceitou os dois.
Para puxar assunto, Eliseu pediu a Suzane que falasse do assassinato dos pais.
A criminosa bateu na tecla de que só fez o que fez por ter sido manipulada por
Daniel e acabou “confessando” um fato nunca levado a sério pela polícia: Suzane
afirmou que, além dela e dos irmãos Cravinhos, Astrogildo, o pai de Daniel e
Cristian, havia participado diretamente do assassinato de Manfred e Marísia. O
promotor colheu o depoimento de Suzane e já imaginava as luzes dos holofotes
da mídia sobre si caso conseguisse reabrir as investigações da morte dos
Richthofen. No entanto, orientada por Denivaldo Barni, a jovem se recusou a
assinar o testemunho. Por causa desse depoimento, Suzane passou cerca de dez
horas no gabinete de Eliseu – sempre com algemas. Preocupado, o promotor
providenciou um lanche. Mais para a frente, os holofotes da mídia realmente se
acenderiam para Eliseu, mas por outros motivos.
No final da audiência com o promotor, Suzane falou das suas angústias no
presídio de Ribeirão Preto. Contou passar noites em claro com medo do diabo e
da sua emissária, Maria Bonita. A jovem implorava por uma transferência de
cadeia. Chegou ao cúmulo de reclamar das olheiras escuras e enormes
estampadas no rosto. “Essa Demônia me persegue desde a Penitenciária
Feminina da Capital. Sabe aquela rebelião em que quase morri? Foi ela quem
organizou!”, recordou-se.
Depois de ouvir com detalhes como Maria Bonita atazanava Suzane dentro
do presídio, Eliseu teria afirmado à detenta poder mandá-la para Tremembé.
Mas haveria uma condição sine qua non. Nesse momento, ele teria se levantado
da cadeira e contornado a mesa para se aproximar de Suzane. A detenta
perguntou qual seria essa cláusula. O promotor, então, teria levado o seu rosto
para perto da moça e anunciado a tal condição indispensável: um beijo. Suzane
teria se levantado rapidamente e seguido algemada de maneira sensual rumo à
porta do gabinete. Momentos antes de sair, anunciou charmosamente com a sua
voz de criança: “Primeiro a transferência, depois o pagamento”. E escafedeu-se.
Em uma visita de rotina ao presídio, Eliseu teria dito à Suzane que a
requisição da transferência dela para Tremembé já estava assinada por ele.
Faltava apenas encaminhar à Justiça para sacramentá-la. Suzane ficou empolgada
e pediu ao promotor que a enviasse ao fórum de Ribeirão Preto imediatamente,
pois poderia morrer assassinada por Maria Bonita ainda naquele dia. Eliseu,
segundo relatos de funcionárias da penitenciária, já demonstrava intimidade
com Suzane ao se referir à moça com apelidos carinhosos:
— Suzi, você tem certeza que quer ir mesmo para Tremembé? Aqui posso
proteger você – teria ponderado o promotor.
— Tenho certeza, sim! – sustentou Suzane.
— Olha a minha dívida, hein...
— Ainda estou neste inferno, ou seja, por enquanto não há dívida alguma –
ironizou a detenta.
Foi abraçada à Tia do Fogo e pulando em círculos no pátio da Penitenciária
Feminina de Ribeirão Preto que Suzane comemorou a notícia da transferência,
oficializada três semanas depois do encontro com o promotor. A mudança estava
marcada para dali a três dias. Enquanto celebrava, a jovem foi surpreendida. No
dia 15 de janeiro de 2007, uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de
Urgência (Samu) foi buscá-la na cadeia. Mesmo sem estar doente, Suzane foi
algemada e entrou no furgão rumo ao Ministério Público.
No gabinete de Eliseu, de número 207, as algemas de Suzane foram retiradas
por um policial a pedido do promotor. Segundo relato dela, a sala onde a
autoridade analisava processos de execução penal das detentas estaria
transformada em boate, com som dançante e um globo de luzes coloridas
conhecido como bola-maluca. A jovem não teve dúvida: estava ali para quitar a
sua dívida. Em determinado momento, Eliseu teria tirado o CD de música
agitada e posto um com a canção romântica de Tom Jobim e Vinicius de Moraes
“Chega de saudade”, cantada por João Gilberto, o pai da bossa nova. Um dos
trechos dessa música diz “Mas se ela voltar, se ela voltar / Que coisa linda, que
coisa louca / Pois há menos peixinhos a nadar no mar / Do que os beijinhos que eu
darei na sua boca”. Segundo Suzane, o promotor teria se declarado apaixonado
nesse segundo encontro e lido diversas poesias de sua autoria. “Eu não consigo
mais viver sem você. Eu sonho com você todos os dias e acordo todo melado”,
teria se derretido. Eliseu teria se aproximado de Suzane para dar um beijo em sua
boca, mas a assassina esquivou-se. O promotor teria desafivelado o cinto e aberto
a calça. Ao ver tal cena, Suzane pediu um tempo para ir ao banheiro. Ela saiu do
gabinete de Eliseu, caminhou por um corredor estreito, dobrou à esquerda e
atravessou pela primeira porta que viu aberta. Era justamente a sala de outro
corregedor dos presídios. Lá, foi prática e objetiva. Com a voz firme de mulher
adulta, anunciou:
— Quero registrar uma denúncia de assédio sexual...
Eliseu não era um homem bonito nem feio. Tinha cabelos escorridos e
partidos ao meio. Usava óculos de aro grosso e estava sempre bem-vestido. Aos
45 anos na época, sendo 19 de carreira no Ministério Público, mantinha postura
séria. Ele vivia uma união estável e foi abandonado pela mulher tão logo o
suposto affair com Suzane ganhou a mídia. Repórteres ligavam de cinco em
cinco minutos perguntando se ele estava apaixonado pela detenta. Eliseu negava,
aborrecido. “A minha mulher acreditou em mim. Mas acabou pairando uma
dúvida”, comentou. O promotor foi investigado em um procedimento interno e
punido com 22 dias de suspensão das atividades, algo humilhante para uma
autoridade dessa envergadura. Ao optar pela sanção, a Corregedoria do
Ministério Público escreveu que Eliseu “não teve uma conduta compatível com o
cargo que ocupa”.
A punição de Eliseu foi publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo
no dia 15 de setembro de 2010. Ele recorreu da decisão junto ao Conselho
Nacional do Ministério Público, em Brasília, mas o castigo foi mantido.
Funcionários da Penitenciária de Ribeirão Preto disseram em depoimento que o
promotor tinha “um certo encantamento” por Suzane. Há relatos de que ele batia
fotos com a presa famosa e a chamava carinhosamente de Suzi, em referência à
boneca jovem de cintura fina e pernas delineadas, da Estrela. Um promotor,
colega de Eliseu, recorda-se do dia em que ele comentou numa roda de amigos
achar Suzi “muito linda”.
No mesmo procedimento que puniu o promotor, as acusações foram
rebatidas. “Nunca a chamei de Suzi. [...] Nunca tive aparelho de som na minha
sala. [...] Não havia clima romântico algum. [...] Nunca houve nada entre nós.
Nossa relação foi toda profissional. [...] Nunca escrevi poesias. Nem poeta eu sou.
[...] Nego tudo com veemência!”. O beijinho no rosto de Suzi e o lanchinho em
seu gabinete ele admite. E se justificou na época: “Eu também dava beijinhos no
rosto das outras detentas. Eram beijinhos profissionais. [...] O lanche foi uma
questão humanitária, pois ela estava há dez horas sem comer”. A amigos, Eliseu
afirmou que foi seduzido por Suzi. À revista Veja, em 31 de agosto de 2016, o
promotor encerrou o assunto: “Prefiro ouvir falar do diabo, mas não quero ouvir
o nome dessa moça”. Depois desse fuzuê, Suzane pegou o bonde para Tremembé
e se livrou do tal Anhangá e das garras afiadas tanto de Maria Bonita quanto de
Eliseu.
Algas marinhas, fontes luminosas, pélvis e um
brasão
D
ez entre dez criminosos condenados pela Justiça almejam cumprir a pena
numa das quatro penitenciárias do complexo prisional de Tremembé, no
Vale do Paraíba, região do interior paulista. Entretanto, não é fácil
conseguir uma das 3.283 vagas oferecidas nas celas dos concorridos pavilhões. A
seleção é rigorosa. O primeiro pré-requisito para passar pelo crivo é ter cometido
atrocidades rejeitadas pela comunidade prisional, como estupro, executar refém,
feminicídio, infanticídio, corrupção ou matar membros da própria família com
brutalidade. Ser autor de crime de impacto na mídia também é garantia de um
colchão no local. Advogados, médicos, pedófilos, ex-policiais, ex-promotores,
jornalistas e políticos figuram na lista da clientela preferencial de Tremembé.
Um dos maiores atrativos do presídio-sensação é não abrigar membros de
facção criminosa. Esse detalhe reduz para quase zero a possibilidade de extorsão,
motim e rebelião. Como o sistema lá é diferenciado, 75% da população carcerária
trabalha com remuneração sem pôr os pés para fora da cadeia. Nas penitenciárias
de Tremembé há empregos em ateliê de corte e costura, de reforma de carteiras
escolares, de usinagem e montagem de torneiras. Dentro do complexo existem
vagas também para criminosos em setores de lavanderia, rouparia, marcenaria,
barbearia e manutenção predial, além de serviços de pedreiro e pintor. Na
cozinha e nas oficinas, assassinos manuseiam ferramentas letais, como facas,
martelos, chaves de fenda e serrotes. Os presos trabalhadores recebem 1 salário
mínimo mensal e mais um benefício pra lá de generoso: para cada três dias
trabalhados na cadeia, é abatido um na pena.
Por abrigar réus envolvidos em casos de grande repercussão, Tremembé
recebeu o inusitado epíteto de O Presídio dos Famosos. A lista de celebridades do
crime que estão ou estiveram hospedados por lá incluem o médico Roger
Abdelmassih (estuprou 37 pacientes); o ex-goleiro Edson Cholbi Nascimento,
filho do Rei Pelé (lavagem de dinheiro e associação ao tráfico); o ex-senador e
proprietário do portal Metrópoles Luiz Estevão (corrupção ativa, estelionato e
peculato); o jornalista e ex-diretor de redação do Estadão Antônio Marcos
Pimenta das Neves (executou a namorada Sandra Gomide com um tiro pelas
costas); Gil Rugai (assassinou o pai e a madrasta); Alexandre Nardoni e Anna
Carolina Jatobá (estrangularam e jogaram a pequena Isabella Nardoni pela janela
do sexto andar); Lindemberg Alves Fernandes (sequestrou e matou a ex-
namorada Eloá Pimentel com um tiro na cabeça e outro na virilha); Elize
Matsunaga (matou o marido com um tiro na cabeça e esquartejou o corpo); além
de Suzane e os irmãos Cravinhos. Por pouco, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva não foi parar no Presídio dos Famosos. Em agosto de 2019, a Justiça de São
Paulo conseguiu um beliche para o petista no pavilhão mais nobre de Tremembé.
Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu mantê-lo na carceragem da
Polícia Federal de Curitiba, onde ficou preso por 580 dias no regime fechado por
lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Lula foi liberado no dia 8 de novembro
de 2019 depois de a Suprema Corte decidir ser inconstitucional a prisão em
segunda instância. O petista foi eleito presidente do Brasil pela terceira vez em
2022.
Na recepção da entrada principal de Tremembé II, onde moram os presos
famosos do sexo masculino, uma frase de autoria desconhecida convida à
reflexão: “Este presídio só recebe o homem. O delito e seu passado ficam nesta
portaria”. Uma regra de convivência respeitada à risca tanto na cadeia feminina
quanto na masculina ilustra a mensagem subliminar contida nesse aviso.
Recomenda-se nunca perguntar o que o colega de cela fez de errado. Pela
etiqueta do presídio, deve partir do próprio criminoso a iniciativa de falar de si.
A princípio, quando questionados, eles respondem com o número do artigo do
Código Penal correspondente ao delito. Os mais comuns em Tremembé são 121
(assassinato), 148 (sequestro), 155 (furto), 157 (latrocínio), 213 (estupro) e o
terrível 217 (estupro de menor). Só depois de criar intimidade e confiança os
detentos relatam com detalhes as barbaridades praticadas no passado. No
entanto, todo o mundo sabe da vida alheia por causa do “corre”, como os
detentos se referem às fofocas de corredor.
Em todos os pavilhões das quatro penitenciárias, o dia começa antes de o sol
nascer. Em Tremembé II, um galo se encarrega de despertar os presos com um
canto nervoso ainda na aurora. Às 5h30 é feita a primeira contagem de detentos.
Os agentes chamam um por um pelo nome para identificar possíveis fugas na
madrugada. Logo após a conferência, recebem ainda na cela o café da manhã
(pingado com pão francês e margarina). A refeição é servida pelos próprios
presos. Depois, seguem para o banheiro, onde tomam a primeira ducha fria do
dia. Com recomendação médica é possível usar o chuveiro especial de água
quente. Quem tem emprego troca o uniforme bege pelo azul-escuro e assume o
seu posto de trabalho. Quem não tem vai para a musculação em uma academia
improvisada, estuda na biblioteca, entrega-se ao ócio ou namora por
correspondência.
Sem contato com o mundo externo e confinados com pessoas do mesmo
sexo, os presos solitários da penitenciária masculina de Tremembé criaram uma
espécie de “Tinder raiz” para se relacionar com as mulheres da cadeia feminina,
distante 5 quilômetros. Por intermédio de visitantes, os rapazes descobrem quem
são as detentas solteiras e atraentes da casa penal vizinha e mandam cartas com
galanteios e declarações de amor. Para agilizar a paquera, costumam anexar
fotografias de corpo inteiro para enredar as pretendentes. Em média, cartas de
uma penitenciária a outra levam uma semana para ser entregues pelos Correios.
(Por uma questão de segurança, todas são lidas por agentes carcerários.) Se a
moça gostar do rapaz, ela responde. Se não houver retorno, significa que não
houve interesse, ou seja, não deu “match”.
Em abril de 2018, Vinícius Nunes, um preso do semiaberto de 38 anos pra lá
de carismático, enviou uma carta para Jaqueline Moraes, de 42, com uma foto
dele tirada na praia. Há dez anos, Vinícius matara o irmão com um tiro na testa
por ele ter transado com sua esposa. Magro e alto, o detento se disse interessado
em Jaqueline. A presidiária era bonita, sorridente e magra nas fotos enviadas. Em
uma das cartas, ela respondeu dizendo tê-lo achado “um gato” e muito gentil
com as palavras. Selaram namoro por correspondência sem nunca terem ficado
frente a frente.
Adeptos da leitura na cadeia, os presos de ambos os sexos acabam chamando
a atenção pela qualidade do texto dessas missivas. “Nunca te vi, nem nunca te
beijei. Mas a tua ausência me faz imaginar-te perfeita. [...] No retrato enviado na
última epístola – recebida com muita alegria – pareces-me dona de beleza
imprecisa ou, quem sabe, imprevista. [...]Se ansiedade fosse um câncer, teria
morrido eu de metástase...”, escreveu Vinícius à Jaqueline às vésperas do
primeiro encontro.
Na saidinha seguinte, Vinícius tomou um banho longo, vestiu roupa nova e
fez a barba, além de caprichar na colônia. Saiu da cadeia às 7h da manhã e seguiu
apressado para o encontro da amada, condenada a 35 anos por ter assassinado o
marido com 56 facadas 16 anos antes. Depois de uma hora de espera, o portão da
penitenciária feminina de Tremembé se abriu para Jaqueline sair. A detenta
estava impecável em uma roupa apertadíssima e toda maquiada. Mas houve
decepção por parte dele. Jaqueline “o enganou”. As fotos enviadas por ela nas
cartas eram muito antigas. De um tempo em que era jovem, magra e com rosto
de pele macia. Bravo, Vinícius aconselhou a detenta a não mentir, pois acabava
criando falsas expectativas. Jaqueline justificou não ter na cadeia fotos recentes
para mostrar como estava na época daquele encontro: com sobrepeso e excesso
de rugas ao lado dos olhos, conhecidas como pés de galinha. Vinícius a
dispensou no portão da penitenciária e aproveitou a oportunidade para catar, ali
mesmo, durante a saída das detentas, uma nova pretendente. Escolheu Marlene,
uma ex-empregada de 24 anos que matou o patrão com 20 facadas, segundo ela,
por tentativa de estupro. Vinícius e Marlene passaram a trocar cartas e ficaram
noivos. Pretendiam se casar em 2023, quando ambos estivessem gozando do
regime aberto.
Desde 2020, quando as visitas nos presídios foram suspensas por causa da
pandemia, os detentos das cadeias de São Paulo passaram a se corresponder com
familiares também por correio eletrônico. Para possibilitar as interações, a
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) criou uma ferramenta on-line
para atender as 176 unidades prisionais de São Paulo, permitindo aos familiares
escrever até duas mensagens por semana. As cartas podem ter até 2 mil
caracteres – o que dá uma página do Word no padrão Times New Roman
tamanho 12 – e são enviadas para um servidor que as redistribui, por e-mail,
para a unidade prisional do destinatário. Na secretaria de cada unidade, uma
equipe faz a triagem tanto das cartas físicas quanto das digitais para verificar se
os presos não estão articulando novos crimes com pessoas do lado de fora. A
equipe de checagem trabalha com o mesmo rigor dos agentes do departamento
de censura federal do Ministério da Justiça na época do regime militar. Eles leem
todas as linhas, jogam no lixo as que são consideradas suspeitas e riscam termos
tidos como chulos, a exemplo de palavrões. O critério é meramente subjetivo.
Fotos de pessoas sem roupa ou em poses ousadas também são vetadas. Depois de
passar por esse crivo, as cartas digitais são impressas e entregues aos
destinatários. Quem quiser escreve de volta num papel, que então é digitado e
encaminhado. Em 2021, o fluxo de correspondências eletrônicas chegou a 1
milhão de cartas. Com o fim da pandemia, as visitas retornaram e esse número
caiu pela metade.
* * *
* * *
* * *
D
epois de sobreviver ao inferno de três casas penais, Suzane finalmente
chegou ao lugar mais perto do céu. No dia 2 de fevereiro de 2007, a
condenada deu entrada na Penitenciária Feminina Santa Maria Eufrásia
Pelletier de Tremembé, conhecida tecnicamente como Feminina P1. Quando
pisou no pavilhão destinado às detentas do regime fechado, a assassina já era um
verdadeiro mito no sistema penal de São Paulo. Não apenas pela notoriedade do
crime cometido, mas também pelo excesso de exposição na mídia e por ter
sobrevivido a uma rebelião do PCC. A estratégia de seduzir o promotor Eliseu
José Bernardo Gonçalves em troca da tão sonhada transferência foi considerada
uma jogada apoteótica. Denunciá-lo por assédio na sequência, então, fez dela
uma lenda da criminalidade. Aos 24 anos, Suzane já estava calejada e esperta o
suficiente para sobreviver num ambiente hostil como a cadeia. Conhecia os
truques, sabia fazer intrigas, alianças, conchavos e amizades com as pessoas
certas para ter qualidade de vida e vantagens pessoais atrás das grades. Nos
momentos apropriados, mostrava-se frágil, recorrendo à voz infantil, sua marca
registrada. Também lançava mão do tom firme e olhares fulminantes quando
surgiam demandas importantes.
Marisol já havia cantado a pedra para Suzane lá atrás, na Penitenciária
Feminina da Capital: no cárcere, a inteligência é um instrumento poderoso.
Nesse quesito, a assassina tinha talento de sobra. Em testes de avaliação cognitiva
realizados dentro das casas penais, o seu quociente de inteligência (QI) alcançou
117, uma pontuação considerada elevada. O QI mede os talentos linguísticos, os
pensamentos lógicos, matemáticos e analíticos do indivíduo, além de aferir a
facilidade em abstrair construções teóricas e desenvolvimento escolar. Para efeito
de comparação, as pessoas consideradas normais têm QI em torno de 100.
Um dos exemplos do desenvolvimento cognitivo de Suzane vem dos estudos.
Em abril de 2016, a presa foi aprovada no vestibular para o curso de
Administração da Universidade Anhanguera de Taubaté. No entanto, a 2a Vara
de Execuções Criminais da mesma cidade a proibiu de fazer a matrícula,
alegando que ela seria repugnada no ambiente acadêmico por alunos e
professores. Suzane recorreu à segunda instância e conseguiu do desembargador
Damião Cogan um mandado de segurança garantindo o direito de estudar fora
de Tremembé. Na decisão, Cogan afirmou que a “repulsa” a ser sofrida pela presa
no curso superior, mencionada na decisão de primeira instância, seria uma
“ilação subjetiva”. Para o desembargador, apenas a efetiva frequência dela às
aulas poderia mostrar como seria sua integração com a classe. “É inalienável o
direito do preso ao estudo. [...] Apenas 2% da população carcerária aprimora-se
intelectualmente em curso superior. Tal intenção deve ser respeitada e, inclusive,
servir de exemplo para os demais reeducandos, como demonstração de que a
terapêutica penal abriu novos horizontes para Suzane”, disse o desembargador.
Apesar da vitória nos tribunais, a criminosa resolveu não se matricular na
universidade em 2016, alegando justamente medo da hostilidade dos demais
alunos. No ano seguinte, Suzane tentou mais uma vez fazer o curso superior. Foi
pré-selecionada para obter empréstimo pelo Fundo de Financiamento Estudantil
(Fies) do governo federal para cursar Administração na Faculdade Dehoniana de
Taubaté, uma instituição religiosa mantida pela Congregação dos Padres do
Sagrado Coração de Jesus no Brasil. A faculdade ofereceu apenas duas vagas para
dezenas de concorrentes. Suzane conquistou uma delas por seleção do Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem). Nas provas, a criminosa conquistou nota
675,08, quando a média nacional naquele ano foi de 519,03. Também alegando
medo de represálias na rua e na sala de aula, Suzane preferiu mais uma vez ficar
em casa, isto é, na cadeia.
Em 2021, a vida acadêmica de Suzane finalmente deslanchou. Após obter
nota no Enem para ingressar no ensino superior, ela se matriculou na Faculdade
Anhanguera de Taubaté. A assassina passou no curso de Farmácia, mas acabou
mudando para Biomedicina porque não houve alunos suficientes para preencher
uma turma. Coincidentemente, Biomedicina foi a graduação feita por Alyne
Bento, ex-mulher de Daniel Cravinhos. Já a primeira opção de Suzane, Farmácia,
foi a escolha do irmão, Andreas, que fez o curso na Universidade de São Paulo
(USP). Depois, ele estudou Bioquímica. Em 2023, Suzane pediu transferência
para a Faculdade Sudoeste Paulista (UNIFSP) de Itapetininga.
No cárcere, Suzane passou a usar o intelecto como estratégia de
sobrevivência. Descobriu rapidamente que em Tremembé, onde a maioria dos
presos encontrava-se na parte mais baixa da pirâmide social, seria fácil chegar ao
topo e se consolidar na liderança. Suzane passou a ter postura de celebridade. Sua
inspiração era Maria Bonita, a temida líder da Penitenciária de Ribeirão Preto,
que andava pelos pavilhões com suas unhas vermelhas pontiagudas, ladeada por
um grupo de seguidoras arrancando respeito até das carcereiras. O fato de o
Presídio dos Famosos não abrigar criminosos profissionais facilitou os seus
planos.
Nos primeiros banhos de sol na nova moradia, Suzane começou a recrutar
aliadas. A primeira cooptada foi Luciana Olberg das Dores, uma boxeadora de 29
anos e cabelos loiros oxigenados, repicados à navalha. As duas dividiam a mesma
cela e começaram a trocar confidências. Autora de crime de grande repercussão,
a parricida famosa nem perdia tempo falando do passado. Já a história da colega
causou uma sensação terrível na boca do estômago de Suzane.
Luciana vivia um romance a três no município de Itapeva, a 443 quilômetros
de São Paulo. Dividia a cama de casal com o marido, Joel de Almeida Campos, de
45 anos, com quem tinha um filho de 6 anos, e com um amante também
boxeador, de 32 anos e 1,95 metro de altura, chamado Felipe Damasceno. O
terceiro elemento da relação estava em uma relação estável com outra mulher no
município de Paranapanema, a 100 quilômetros da casa de Luciana e Joel. Com o
tempo, ele largou a esposa e se mudou para Itapeva para ficar mais perto dos
amantes. O plano dos três era abrir uma academia de boxe.
Luciana tinha duas meias-irmãs gêmeas de 3 anos. As crianças eram filhas do
seu pai com uma mulher chamada Marly. Volta e meia, as meninas eram levadas
pela mãe à casa de Luciana para elas brincarem com o filho da boxeadora. A
princípio, as gêmeas sempre estavam acompanhadas de Marly. Com o tempo,
Luciana começou a pegar as meias-irmãs e levá-las sozinhas à sua casa pela
manhã. Para passar confiança às meninas, a boxeadora dava-lhes doces e
brinquedos. A mãe buscava as meninas no final tarde. Certo dia, uma delas pediu
para não ir, pois tinha “medo” do tio Joel. Luciana tentou levá-la à força, mas a
menina abriu um berreiro. Marly, então, liberou só uma das gêmeas. Passado um
mês, a mãe começou a notar um comportamento estranho nas filhas. Uma delas
acordou e ficou muda o dia inteiro. A outra falava sozinha pela casa de manhã. À
tarde, a menina arrancou a cabeça de todas as suas bonecas. Em poucas semanas,
elas estavam agressivas e reticentes.
No dia 3 de novembro de 2012, conforme descrito no inquérito policial
(178/2013), Marly levou as gêmeas à casa de Luciana. O combinado era que o pai
as buscasse à noite. Por volta das 17h, desabou um temporal em Itapeva. A chuva
foi noite adentro, acompanhada de ventania, raios e trovoadas. O pai telefonou
para Luciana dizendo que só buscaria as filhas no dia seguinte. A boxeadora
chamou seu amante Felipe para dormir em casa. O trisal bebeu cerveja e tequila.
No meio da madrugada, eles cometeram uma monstruosidade.
Joel pegou a chupeta das meninas, mergulhou num copo de tequila e dava
para elas porem na boca. Ato contínuo, as gêmeas entraram em coma alcoólico.
Joel as acomodou lado a lado na cama de casal e tirou só a parte de baixo da
roupa das meninas. Em seguida, fez sexo oral e penetrou na vagina e no ânus das
duas crianças, dilacerando-as. Luciana pegou o telefone celular do marido e
filmou toda a violência sexual cometida contra as suas duas irmãzinhas.
Depois de Joel ejacular, a boxeadora pediu para Felipe estuprá-las. A
princípio ele se negou, dizendo que tinha o pênis muito grande. Luciana
repassou o celular com a câmera ligada para Felipe continuar a gravação. “Olha
só, eu vou virar elas de ladinho. Aí você começa devagarinho. Faz como estou
dizendo que você consegue”, instruiu a pedófila. Felipe devolveu o celular e
penetrou nas duas meninas, que ficaram desmaiadas até o dia clarear.
Luciana, Joel e Felipe frequentavam grupos de pedofilia nas redes sociais. A
filmagem foi postada numa dessas comunidades. Até os pedófilos repudiaram a
violência contra as gêmeas. “Vocês passaram dos limites”, escreveu um deles. De
lá, o vídeo foi encaminhado de forma anônima ao Conselho Tutelar de Ibiúna,
que acionou a polícia. Um exame feito nas vítimas comprovou a violência sexual.
O curioso é que as duas crianças foram devolvidas aos pais no dia seguinte ao
estupro e ninguém percebeu nada. Quando os investigadores bateram à porta de
Marly para perguntar se aquelas meninas no vídeo eram suas filhas, dez dias
depois do crime, ela respondeu positivamente. “Elas estavam reclamando de dor,
coceira e ardência nas partes íntimas. Mas jamais imaginei uma coisa dessas”,
reagiu a mãe, aparentemente calma. Assim que a polícia saiu de sua casa, Marly
ligou para Luciana tirando satisfação. A boxeadora bateu o telefone na cara da
madrasta e fugiu com o marido e o amante. Os três só foram capturados um mês
depois. Joel e Felipe ficaram presos à espera de julgamento na Cadeia Pública de
Pilar do Sul, enquanto Luciana seguiu para a Cadeia Pública de Votorantim.
As gêmeas foram levadas para conversar com psicólogos infantis com o
intuito de incriminar o trio de pedófilos. “O tio Joel beijava e passava o pinto na
nossa pepeca. Ele também mijava [ejaculava] na nossa cara durante o banho. [...].
Um dia ele me jogou contra a parede e mostrou uma cinta. Fez isso para a gente
não contar o nosso segredo”, denunciou uma das crianças. Mas as provas mais
contundentes estavam no celular de Joel, que foi apreendido após a sua prisão.
Além da filmagem, havia áudios comprometedores, todos transcritos no
inquérito, presidido pelo delegado Fabrício Lopes Ballarini, de Ibiúna (SP). Os
áudios mais reveladores referem-se às conversas travadas entre Joel e advogados
criminalistas. O primeiro deles era seu amigo. O estuprador pediu para ser
representado por ele:
“Olha, é difícil te defender, cara. No vídeo, aparece você colocando o pênis na
bunda das meninas. [...] O negócio é feio, feio, feio. Horrível pra caralho! Aparece
o seu rosto nas imagens. Aparece o pau enorme do seu amigo negão. [...] A
menininha estava dormindo, tadinha, com uma chupeta azul. Não sei como vocês
tiveram coragem... Cara, o certo era eu pedir para você morrer negando, mas não
tem como! Complicado, viu? Complicadérrimo!”
“Faz alguma coisa por mim. Me livra dessa encrenca! Se quiser, posso negar até
a morte! Faço tudo o que você mandar! Estou desesperado! Pelo amor de Deus!”
“Cara, olha só. Não bota Deus nessa parada! É até ofensivo. É o seguinte: eu só
pego essa causa se você confessar tudo, entregar todo mundo. Não esconder nada.
Cara, você é doente. Você é um monstro. Você é inominável! É isso que você tem de
dizer ao juiz.”
“Faço o que você mandar!”
Três dias depois, o amigo advogado mandou o último áudio:
“Joel, é o seguinte. Eu não consegui mais dormir desde que vi a porra desse
vídeo asqueroso. Fiquei deprimido, pensando na vulnerabilidade das minhas filhas
pequenas. Minha esposa perguntou o que estava acontecendo e mostrei o vídeo.
Ela jogou meu celular na parede e vomitou na casa toda. Disse que vai me largar
se eu defender você no tribunal. Disse até que vai levar minhas filhas de casa. Eu
não vou pegar a sua causa, tá? Sinto muito. Não tem como. Tenho medo de perder
a minha família. Também tenho medo de perder clientes. Entrei até em crise
profissional, cara. Puta que pariu! Acho que o que você fez não tem defesa. Se
tivesse pena de morte no Brasil, você já era. Mas não tem, né? Você tem o direito
constitucional de ser amplamente defendido. Foda, né? Mas olha: para você ter um
julgamento justo, te aconselho a procurar um defensor público. Não tem como ele
recusar a causa porque essa defesa é bancada pelo governo.”
Não foi difícil o pedófilo estuprador encontrar um outro defensor particular,
que também trocava áudios:
“Cara, é o seguinte: você está nas mãos da Luciana. Se ela abrir a boca e contar
tudo, você e o amante estão ferrados. Mas aí, se ela fizer isso, você fode com ela
também. Até porque as vítimas são irmãs dela. Isso pesa muito mais pro lado dela.
Até porque as gêmeas estavam sob os seus cuidados”.
“O que devo fazer? Eu nego tudo, né? A gente tinha bebido muita cerveja e
tequila. Nós matamos uma garrafa inteira de tequila. Só fizemos isso porque
estávamos bêbados. Você sabe, né?”
“Cara, as únicas vítimas aqui são as crianças. Se você colocar a culpa na
bebida, o promotor vai comer o seu cu no tribunal. Acorda! Nenhum juiz vai
aceitar um argumento infantil como esse. Para de falar merda, porra! Não fode!
Todo mundo sabe o que vocês fizeram. Tá tudo bem esclarecido. As gêmeas
contaram tudo a uma psicóloga. Tá tudo escrito aqui. Cara, o vídeo é claro porque
mostra o que cada um fez. Nem tem como negar isso aí. A sua sorte é que crime de
estupro não vai para o Tribunal do Júri. Se fosse, vocês seriam condenados a 500
anos de cadeia. E reza desde já para não te matarem na prisão!”
Insatisfeito, Joel dispensou esse advogado e contratou outro. O novo
defensor finalmente disse, também por áudio, o que o pedófilo queria ouvir:
“O lance é o seguinte. Você é inocente! Nega tudo. Nega, meu irmão. Eu vi o
vídeo. Nem é tão chocante assim! Não dá para cravar com toda certeza que é você
na fita. Bora negar tudo, entendeu? Vamos inverter essa porra. Vou mandar a
Luciana livrar a cara do amante, que fica mais fácil inocentar vocês. A cara dele
não aparece mesmo. Outra coisa que ajuda: a filmagem não tem áudio. Não tem
voz. A imagem não tem qualidade. Isso é maravilhoso! No fundo aparece uma TV
passando um desenho do Pica-Pau. Dá fim nessa TV, entendeu? Outra coisa
importante: vocês têm de queimar as roupas que usam na filmagem antes de
começarem a comer as meninas. Principalmente a camisa que a Luciana está
vestindo, pois tem umas letras na estampa que podem identificá-la facilmente. Vou
te dizer a minha estratégia de defesa. Vou lançar muitas incertezas sobre esse
vídeo. Vai ser uma chuva de dúvidas e imprecisões. Todo mundo vai ficar confuso.
Aí, na sombra da dúvida, o juiz prefere inocentar, entende? Você tem a manha de
chorar com facilidade? Seria legal você derramar umas lágrimas na audiência. Diz
que você também tem um filho pequeno e que jamais teria coragem de fazer isso
com uma criança. Cara, nós vamos brilhar na audiência, você vai ver.”
Luciana e Joel brilharam mesmo foi no banco dos réus. O casal de pedófilos
foi condenado pelo juiz Wendell Lopes Barbosa de Souza, mas o magistrado foi
econômico na sentença: 25 anos para Joel e 29 para Luciana. E justificou: “O
crime pelo qual os réus foram condenados é repugnante. [...] Em suma, os delitos
abalaram toda a comunidade onde vivem as vítimas e os réus”. Felipe, o amante
do casal – pasme –, foi absolvido por causa da chuva de dúvidas que pairou no
tribunal. Apesar de aparecer nu no vídeo feito por Luciana e ser citado nos
áudios, ele foi inocentado. Felipe se beneficiou também porque a boxeadora
negou que era ele na filmagem e porque seu rosto não apareceu em momento
algum na gravação. Entre diversos argumentos, o juiz escreveu o seguinte para
justificar a absolvição do acusado de estupro: “No vídeo aparecem dois pênis.
Um de cor mais clara e outro de cor mais escura. No entanto, só dá para ver o
rosto do que tem o pênis mais claro, que é o Joel”. Cético, o juiz também não
conseguiu acreditar que Joel e Felipe pudessem estar fazendo sexo com a mesma
pessoa no mesmo ambiente porque um era casado com Luciana, enquanto o
outro era amante dela. “Concluí que eles não se dariam bem porque disputavam
a mesma mulher”, justificou o magistrado.
Por causa do seu crime, Luciana tinha alto índice de rejeição em Tremembé.
Compadecida com a solidão da nova amiga, Suzane a recrutou como sua
primeira seguidora. As duas andavam juntas de mãos dadas e riam alto pelos
pavilhões do regime fechado. Certo dia, num banho de sol, Suzane foi paquerada
por uma presa conhecida como Sandrão, de 25 anos na época. Lésbica, alta,
robusta, agressiva e braços musculosos, a detenta usava cuecas e fazia questão de
deixar o cós da peça íntima para fora, revelando marcas de grife, como Calvin
Klein e Cavalera. Usava um corte de cabelo masculino curto, espetado em cima e
raspado nas laterais, conhecido nos salões como fade comb. De longe, Sandrão
encarou a jovem firmemente, disparou um olhar sedutor e complementou o
aliciamento com uma ousadia: levantou a blusa, passou a ponta do dedo no
mamilo direito e, rápida, levou o mesmo dedo até a língua, finalizando com uma
piscadela. Suzane demonstrou nojo:
— Meu pai do céu! Quem é essa pessoa sem noção? – perguntou.
— Chama-se Sandrão! Ela é simplesmente a rainha de Tremembé! Manda e
desmanda aqui dentro! – informou a amiga.
— Ah, é? Que interessante... Ela é solteira?
— Sandrão namora Elize Matsunaga, a mulher que cortou o marido.
— Sério? Que mau gosto! – debochou Suzane.
Seguindo os planos de se tornar uma mulher poderosa, Suzane passou a ver
Sandrão por outra perspectiva. A lésbica marrenta se aproximou e as duas
iniciaram uma amizade. No início, passavam o tempo conversando amenidades e
jogando xadrez no pátio da penitenciária todo final de semana. Na tentativa de
seduzir a pretendente, Sandrão contava as vantagens de ser a capitã de
Tremembé. As agentes de segurança penitenciária lhe davam regalias, como
cigarros, faziam vista grossa para bebidas alcoólicas (maria-louca) e permitiam
acesso à capela mesmo em horário proibido. A fama de violenta assustava
Suzane, mas também causava deslumbramento. Para demonstrar poder, a
bandida perigosa arrumava brigas com agentes de segurança. Num desses
embates, Sandrão estava beijando Elize numa área em que esse tipo de afeto era
proibido. A agente pediu que as duas parassem. Irritada, Sandrão esmurrou a
funcionária. Acabou sendo castigada com a prisão no “pote” por 15 dias. Suzane
sentiu saudade.
Depois de três anos de amizade, as duas criminosas estavam grudadinhas.
Luciana, a pedófila, ficou com ciúme da amizade, mas logo superou. Suzane
armou para tomar Sandrão de Elize. A estratégia era bem simples. Como a líder
estava prestes a ser transferida de Tremembé para o Centro de Ressocialização
Feminino de São José dos Campos, a jovem a pediria em namoro imediatamente.
Quando a bandida deixasse a prisão – dali a alguns meses –, Suzane realizaria o
sonho de se tornar presidente da penitenciária por suplência. Havia outra
vantagem em assumir o namoro no cárcere. Um programa social desenvolvido
em algumas cadeias do Sistema Penal de São Paulo concede aos casais gays o
benefício de dormir na mesma cela. Em Tremembé, a ala especial destinada aos
pares era chamada de “gaiola do amor”. O compartimento era confortável e
conferia privacidade às detentas. Mas só tinha direito a esse privilégio quem
mantinha parceiro fixo na prisão há pelo menos seis meses.
A partida de xadrez seguinte entre Suzane e Sandrão foi o grande dia. As
duas detentas surgiram luminosas no pátio da cadeia. Com a ajuda de Luciana,
Suzane abandonou o loiro-champanhe do cabelo e o tingiu de marrom-escuro.
Aplicou nas unhas pintadas de branco desenhos de flores coloridas. Nos lábios,
passou um batom vermelho-coral. Sandrão não ficou atrás. Fixou o cabelo com
gel e caprichou na colônia masculina. Cara a cara, a dupla começou o jogo de
tabuleiro em silêncio. Depois de quase uma hora movimentando bispos, cavalos,
torres e peões, Suzane ensaiava coragem para se declarar. Sandrão se antecipou:
— Não sei como será a sua reação ao que vou te dizer...
— Fala!
— Você já sabe, né?
— Acho que sei. Mas fala! – pediu Suzane.
— Eu estou apaixonada por você!
Com uma peça de xadrez na mão, Suzane olhou com sedução para a
adversária e ficou calada. Arrumou o cabelo para trás, passou um elástico para
prendê-lo e lançou mão da sua energia manipuladora:
— O que você disse? Não ouvi direito – fingiu.
Irritada, Sandrão se levantou sem a menor paciência para jogos de amor.
Com receio de perder a oportunidade, Suzane pediu um momento e Sandrão
sentou-se novamente à mesa:
— É loucura! Mas eu também estou apaixonada por você. Nunca senti isso
antes, até porque sou heterossexual! – sustentou Suzane.
Diante da reciprocidade, Sandrão foi tomada pela emoção e chorou. A líder
contou um segredo à sua pretendente. Era um rinoceronte por fora, e uma
chinchila por dentro. Dura e frágil. “Essa minha brutalidade é uma casca
protetora. Sou romântica e delicada”, descreveu-se a mandachuva de Tremembé.
Como se diz no universo lésbico prisional, Suzane era simplesmente a mina bife
(mulher gostosa) mais bonita da cadeia. Na tentativa de dar o primeiro beijo na
amada, Sandrão curvou-se por cima do tabuleiro. Uma carcereira flagrou a
demonstração de afeto e ensaiou repreender o casal. Sandrão recuou e fez uma
cara feia para a funcionária, que engoliu a autoridade no mesmo instante. Suzane
entrou em ação. Aproximou o seu rosto com feições delicadas da carranca de
Sandrão e deu nela um beijo na boca longo, suave e molhado. Após a troca de
carinho, continuaram a partida de xadrez. Disfarçadamente, Suzane limpou a
boca com a manga da sua camiseta para se livrar da saliva de Sandrão. O casal
selou o namoro no mesmo dia, logo após a parricida derrubar o reinado da líder
com um xeque-mate dado pela rainha.
No dia seguinte, Sandrão terminou o namoro com Elize, que teve de deixar a
gaiola do amor. Seis meses depois, Sandrão e Suzane foram até a secretaria
declarar o relacionamento estável e o casal ganhou uma vaga na ala dos casais.
No aconchego da cama, Suzane e Sandrão faziam amor todas as noites. Às vezes,
mais de uma vez ao dia. Elas faziam a famosa cabaninha com lençóis nos beliches
e transavam gemendo alto na área restrita. O barulho incomodava os demais
casais homoafetivos, mas, como se tratava de Sandrão, ninguém ousava reclamar.
Dentro da cadeia, Suzane falou sobre sua experiência gay com Sandrão ao
psiquiatra forense Rafael Dias Lopes, da Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP). Contou ter achado estranho, no início, o envolvimento com
outra mulher, já que se considerava heterossexual. Mas disse que estava carente e
sentia necessidade de ter alguém ao seu lado. E Sandrão era o que tinha ali,
naquele momento. Suzane se disse arrependida do romance homoafetivo por
causa da exposição para todo o Brasil. Sobre a especulação de ter se envolvido
com a líder de Tremembé por interesse, a parricida argumentou que, se quisesse
proteção por meio de relacionamentos, teria investido no promotor Eliseu José
Bernardo Gonçalves, que tentou forçadamente ter um envolvimento com ela.
“Suzane contou que Sandra foi o seu segundo relacionamento amoroso no
presídio. As duas se conheceram por volta de 2010 e ficaram como amigas por
cerca de quatro anos. Por insistência de Sandra, começaram a namorar”,
escreveu o médico em um laudo pericial psiquiátrico assinado em 30 de
novembro de 2017.
Para as amigas de Tremembé, no entanto, Suzane dizia outra coisa. Falava ter
“asco” de Sandrão. Era comum ver Suzane evitando beijos da namorada,
alegando ser uma mulher reservada. Quando não, a beijava rapidamente e
limpava os lábios com as mãos imediatamente. Para Luciana, a parricida dizia
que a maior vantagem de namorar Sandrão é que ela era facilmente manipulável.
“A Sandra pensa que vamos nos casar lá fora. Muito sem noção, né? Será que ela
nunca se olhou no espelho?”, questionava retoricamente.
Sandra Regina Ruiz Gomes tinha 32 anos quando conheceu Suzane. Apesar
de ter quase 90 quilos e aparência maltratada pelos anos de prisão, a criminosa
foi uma mulher bonita. Aos 20 anos, tinha cabelos ruivos longos e rosto bem
desenhado. Seu passado em nada lembra a mulher assustadora de Tremembé. A
vida da bandida mudou da água para o vinagre no dia 21 de outubro de 2003.
Sandra morava com os pais na periferia de Mogi das Cruzes (SP) quando
resolveu sequestrar – juntamente com o namorado, Valdir Ferreira Martins – o
adolescente Tallisson, de 14 anos. Com o dinheiro do resgate, pretendia conhecer
a ilha de Fernando de Noronha e comprar um carro zero-quilômetro.
Tallisson era filho de Ana Maria, vizinha e amiga de Sandra. O garoto foi
escolhido porque a casa de seus pais era a mais bonita da rua, a única de dois
pavimentos e toda revestida com pastilhas de vidro colorido. Apenas aquela
moradia guardava dois carros na garagem. Mas nem de longe a família de
Tallisson era endinheirada. Um comparsa de Sandra, conhecido como Formiga,
capturou a vítima na saída da escola, por volta do meio-dia. Improvisaram o
cativeiro num imóvel desocupado da família de Valdir. Para evitar contato com o
resto da casa, onde circulavam os sequestradores, o garoto ficou trancado na
suíte. À noite, na hora de levar comida à vítima, eles apagavam todas as luzes da
casa para o menino não reconhecer os seus algozes.
A audácia dos sequestradores era digna de filme hollywoodiano. Quando
Formiga ligou para a casa de Tallisson para anunciar o sequestro, foi Ana Maria,
a mãe, quem atendeu. Ela ficou desesperada e desmaiou. O pai, Antônio,
assumiu a negociação. Formiga garantiu que o adolescente estava bem e exigiu
40.000 reais de resgate. Cínica, Sandra estava na casa da vítima e testemunhou a
aflição da família:
— Nós não temos todo esse dinheiro – argumentou Antônio.
— Tenta fechar por 30 mil – sugeriu Sandra, fingindo angústia.
— Não tem como! Só se eu vender a casa... – cogitou o pai.
Nos três dias de sequestro, Sandra seguia do cativeiro para a casa dos pais do
adolescente e de lá para o esconderijo novamente. Nos momentos mais críticos,
chegava a preparar água com açúcar para acalmar Ana Maria, que não parava de
chorar. No segundo dia, Antônio foi ao banco tentar um empréstimo, e a mãe
ficou em casa na companhia da falsa amiga. No meio da tarde, Formiga ligou
para negociar pela segunda vez e Ana Maria atendeu. Abalada, não conseguiu
dialogar. Sandra assumiu as negociações em nome da família e passou a falar
com os próprios comparsas, numa encenação digna de Oscar:
— Olha aqui, seus cretinos, os pais do Tallisson estão inconsoláveis! Isso não
se faz! É muito desumano! Vocês são uns monstros! [...] Esse valor está fora de
cogitação! Esquece! Podemos pagar 20 mil! Já sei, a polícia tem de ficar fora,
senão o menino morrerá... Essa parte eu entendi.
Mal Sandra bateu o telefone, Antônio chegou em casa com 2.000 reais
conseguidos com um agiota. Ana Maria entrou em desespero com a quantia
muito abaixo do exigido pelos sequestradores. Inescrupulosa, Sandra sugeriu aos
pais de Tallisson fazer uma vaquinha na vizinhança para conseguir pelo menos
mais 2.000 reais, já que o casal era muito querido graças à prática de caridade na
igreja do bairro. Na mesma noite, Sandra, Antônio e Ana Maria saíram pela rua
passando uma sacolinha de casa em casa em prol da vida de Tallisson. Depois de
percorrer quase o bairro inteiro, conseguiram somar 4.500 reais. No dia seguinte,
pela manhã, Formiga ligou para negociar pela terceira vez. Antônio atendeu:
— Tudo o que temos é 4.500. Em nome de Deus, liberem o meu filho por
esse valor! – suplicou o pai aos prantos.
— Sério que a vida do seu filho vale só esse troco? Dez mil reais ou ele morre
ainda hoje! – anunciou o sequestrador aos risos.
Sem palavras para argumentar, Antônio largou o telefone no chão. Ana
Maria chorava tão alto que toda a vizinhança ouvia. Um aglomerado de
populares ficou de sentinela na rua para acompanhar o desfecho do sequestro.
Os mais religiosos se deram as mãos e fizeram uma roda de oração. Um vizinho
tirou o celular do bolso e sugeriu acionar a polícia. Sandra interpelou, pediu um
momento, pegou o telefone da casa e assumiu mais uma vez as negociações em
outro ato cênico. Falou com os seus parceiros.
— A parada é a seguinte: você pediu para não ligarmos para a polícia. A gente
atendeu a essa exigência para preservar a vida do menino. Chegou a hora de pôr
um ponto final. A gente não aguenta mais. Aceite os 4.500 e solte o garoto!
— Um momento! – pediu Formiga.
Do outro lado da linha, Valdir e Formiga entenderam a mensagem: eram os
4.500 reais ou nada. Resolveram aceitar. Antônio deixou o dinheiro numa lata de
lixo próxima da estação de trem Braz Cubas, nos cafundós de Mogi das Cruzes, e
os bandidos pegaram imediatamente. Sandra, Valdir e Formiga foram até o
cativeiro soltar o adolescente. Ao abrir a porta, para surpresa do trio de
sequestradores, o menino havia saído da suíte, mas não conseguiu escapar da
casa. Ficou na sala vendo TV. Quando se deparou com Sandra e sua gangue,
Tallisson levou um susto:
— Tia Sandra, você que me sequestrou? Bem que eu estava reconhecendo a
sua voz...
Tallisson também identificou Valdir. O criminoso era amigo de seu pai e os
dois jogavam pelada juntos aos sábados. Sem saída, Valdir imobilizou a vítima
com um mata-leão. Sandra amarrou uma fronha de travesseiro na cabeça do
adolescente e passou um barbante para imobilizar os braços e as pernas,
jogando-o no porta-malas do carro do namorado.
Os três sequestradores seguiram para um local conhecido como Prainha, um
terreno deserto e pantanoso, afastado da cidade. Tallisson ficou calado durante o
trajeto de quase uma hora, fazendo os sequestradores imaginarem que ele havia
morrido por sufocamento. Dentro do carro, chegaram a comemorar. Entretanto,
o menino continuava vivo.
Valdir arrancou a fronha da cabeça de Tallisson. O menino gritava por
socorro, mas ali, no meio do nada, ninguém ouvia os seus apelos. Por precaução,
Sandra pegou um lenço de cabeça todo florido e enfiou na boca de Tallisson.
Valdir sacou uma arma Rossi calibre 38 com cabo de madeira e apontou para a
cabeça do adolescente. Sandra interrompeu:
— Espera! Espera! Espera! Não atira!
— Por quê? Tá louca? Ele vai contar tudo para os pais! – esbravejou Valdir.
— Quem vai matar o menino é o Formiga! Ele tem 17 anos, é menor de
idade. Não pega nada pra ele! Já um de nós pegaria brincando 30 anos – previu
Sandrão.
Nem precisou de muita lábia para convencer Formiga a fazer aquela
barbaridade. Tallisson se ajoelhou involuntariamente, arregalou os olhos e ouviu
dos sequestradores que estava morrendo porque desobedeceu a ordem de não
sair da suíte.
O menino usou o olhar para implorar pela última vez, mas foi ignorado.
Formiga encostou o cano da arma na testa de Tallisson e deu um único disparo.
O projétil estourou o crânio. A vítima sucumbiu a tamanha violência vestindo
uniforme escolar. Atrozes, os assassinos só deixaram o local depois de afundar o
corpo dele na lama.
Com uma simples quebra de sigilo telefônico, a polícia chegou ao número do
celular de Formiga. Pressionado, confessou tudo e entregou os comparsas.
Sandra e Valdir fugiram. Como tinha 17 anos, conforme previsto, Formiga foi
apreendido, recolhido ao Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente
e punido com medidas socioeducativas, como determina o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA). O casal teve um destino bem mais amargo. Por estarem
foragidos, ela foi condenada à revelia a 27 anos de cadeia e ele, a 30. Sandra foi
julgada à revelia e capturada um ano depois de ser sentenciada.
Enamoradas, Suzane e Sandrão trocavam carícias e beijos no pátio da
penitenciária, na capela e até na sala da direção, à qual tinham acesso a qualquer
hora do dia. No início, Elize teria tentado reconquistar Sandrão. Suas amigas
diziam que ela era tão bonita quanto Suzane, ou mais. Elize cumpria pena de 16
anos. Na cadeia, fazia sucesso entre as mulheres. Segundo fofocas de pavilhão,
Sandrão chegou a ficar com as duas assassinas simultaneamente. No entanto,
depois de ser rejeitada, Elize parou de falar tanto com Sandrão quanto com
Suzane e engatou romance com uma latrocida e depois com um homem trans
que tentou matar o avô com uma martelada.
Graças ao prestígio com a diretoria de Tremembé, Sandrão e Suzane
conseguiram emprego na oficina de costura da penitenciária. Suzane ficou com o
disputado posto de coordenadora de produção. Sua tarefa era fiscalizar se as
demais detentas estavam costurando as roupas conforme o desenho dos moldes.
Lá eram fabricadas as calças beges dos presos e os uniformes dos agentes
penitenciários. Sandrão fazia a manutenção do maquinário, uma tarefa braçal.
Iludida, Sandrão começou a fazer projetos para a vida pós-cárcere. Sonhava
montar o próprio negócio com Suzane. Planejava algo na indústria têxtil, já que
as duas estavam experts em corte e costura. Falsa, a parricida incentivava a
namorada a fazer planos.
No primeiro ano de namoro, Suzane começou a reclamar da falta de
dinheiro. Com a exclusão da herança dos pais, dizia ter ficado na miséria.
Denivaldo Barni, seu advogado e tutor, havia conseguido para a assassina, junto
ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), uma pensão de dois salários
mínimos pela morte dos pais. Segundo dados do INSS, a jovem recebeu entre 31
de outubro de 2002 e 3 de novembro de 2004 o valor de 17.640 reais em valores
da época pela morte de Marísia von Richthofen. No mesmo período, recebeu
27.334 reais pela morte de Manfred. O benefício só foi encerrado quando ela
completou 21 anos, como prevê a lei. No entanto, o Ministério Público pediu à
Justiça o ressarcimento do dinheiro porque não fazia sentido a homicida ser
remunerada por uma morte de sua autoria. O caso se arrastou por dez anos pelo
sistema judiciário do país. Em 2013, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo
Tribunal Federal (STF), determinou que Suzane devolvesse aos cofres públicos
44.500 reais. Até aquele momento a parricida tinha como fonte de renda seu
salário na confecção de Tremembé e um único patrimônio, o apartamento em
São Paulo deixado pela avó paterna, avaliado em 1 milhão de reais. Ambiciosa,
Suzane achava pouco para recomeçar uma vida depois dos 30.
Numa das visitas feitas pelo advogado-pai Denivaldo Barni em Tremembé,
em 2014, Suzane falou do seu namoro com Sandrão e o defensor condenou
veementemente o enlace homoafetivo e a tintura marrom no cabelo da filha-
cliente. “Você é linda com os cabelos loiros”, sustentou o defensor. Barni só não
implicou mais com o romance porque havia uma notícia pra lá de boa. Já no mês
seguinte, Suzane teria direito de pedir à Justiça progressão para o regime
semiaberto. Na nova fase, a detenta faria “saidinhas” da cadeia no Natal, Ano
Novo, Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais e Dia da Criança. Em cada uma dessas
datas festivas, teria sete dias em liberdade. No entanto, a detenta teria de ser
avaliada antes por um exame criminológico, conforme prevê a lei de execuções
penais (LEP).
Para alcançar o semiaberto, Suzane também teria de informar à Justiça onde
iria passar os sete dias em liberdade a cada saidinha. Ficou pálida quando soube o
endereço. Barni teria adaptado o quarto do filho com uma cama de casal para
Suzane dormir de conchinha com o primogênito. A assassina não gostou da
proposta, mas resolveu não se manifestar naquele momento. Pediu ao advogado-
pai que desse entrada ao pedido de progressão de regime. Barni saiu da cadeia
comemorando. No dia seguinte, a parricida deu um bote certeiro no defensor.
Suzane foi até o gabinete da juíza que executava a sua pena e fez um pedido
incomum: não queria progredir para o semiaberto. A magistrada aconselhou a
detenta a falar com o seu advogado, pois ele daria entrada no pedido nos
próximos dias. Costureira em Tremembé, Suzane não dava ponto sem nó. Pediu
à juíza uma folha de papel-ofício em branco e uma caneta. Mesmo algemada,
escreveu de próprio punho um documento destituindo Barni da sua defesa e
anexou o documento em seu processo de execução penal. Quando foi
questionada à época por que abriu mão do regime mais brando, Suzane disse que
não queria sair de Tremembé. Sem Barni, a criminosa passou a ter assistência
jurídica do defensor público Saulo Dutra de Oliveira.
Uma semana depois, desavisado, Barni pediu no balcão do fórum de Taubaté
o processo de execução penal de Suzane para incluir nele o pedido de progressão
de regime. Um funcionário se negou a entregar os autos, justificando que ele não
advogava mais para a detenta. Ímpio, impaciente, irritado e iludido, Barni
argumentou se tratar de um equívoco. “Eu represento os interesses da Suzane há
doze anos”, esbravejou, segundo relatos de funcionários do fórum de Taubaté.
Barni Jr. acompanhava o pai e pedia calma. Do seu gabinete, a juíza ouviu os
gritos no balcão e mandou chamar Barni Pai. Ao advogado, a magistrada
mostrou o documento feito à mão por Suzane. Ao ler aquelas linhas azuis
escritas com caneta Bic, o advogado fez um escândalo. “Foi aquele sapatão dos
infernos que convenceu a minha Su a escrever essa merda!”, esbravejou. Barni
Jr., contido, pediu ao pai para ter modos, pois estava no gabinete de uma juíza.
Descontrolado, o advogado saiu do fórum e correu para Tremembé. Na portaria,
segundo relatos de agentes penitenciários, Barni suplicou para falar com Suzane.
Ela não o atendeu. Barni Pai então fez uma última tentativa. Ainda segundo
relatos de agentes, o advogado gritou do portão inúmeras vezes pela filha-cliente:
“Su, meu amor!”, “Su, meu amor!”, “Su, meu amor!”. O apelo foi ouvido, mas
não teve resposta. Su descartou da vida os dois advogados de forma definitiva.
Barni Pai e Barni Jr. nunca mais a viram pessoalmente. Só pela TV.
* * *
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A alma de Suzane nunca sossegou quando se fala em religião. Era luterana
quando mandou matar os pais e migrou para o catolicismo assim que foi presa.
Quando era atormentada pela diabólica Maria Bonita, flertou com o espiritismo
e passou a acreditar em reencarnação e vidas passadas. Em Tremembé, rendeu-se
aos cultos evangélicos e passou a andar com uma Bíblia na mão.
A maioria dos detentos autores de crimes contra a vida adota a religião
evangélica tão logo bota os pés no cárcere. Todos têm basicamente a mesma
justificativa para se entregar a Deus durante o castigo imposto pela lei dos
homens. Sustentam que mataram guiados pelo Satanás. O pastor Fábio Correa
de Lima, da Comunidade Moriá, mantinha em seu rebanho 150 ovelhas-
presidiárias de Tremembé em busca de salvação. O sacerdote reforça essa tese:
“Na teoria, quando a pessoa peca, ela favorece o diabo e se afasta do Nosso
Senhor”.
Em 2016, aos 33 anos, Suzane passou a assistir aos cultos do pastor Fábio.
Com a sua fé, a parricida cogitou seguir a carreira de líder religiosa. Pretendia
começar como missionária até ser promovida ao cargo de pastora. Segundo
Fábio, seu orientador espiritual, Suzane não estava arrependida de ter matado os
pais quando pisou em sua igreja. “Foi na minha comunidade que ela, de fato, se
redimiu do passado e conseguiu o perdão divino. [...] Suzane aceitou ser
transformada por Deus num todo – corpo, alma e espírito. Para isso, teve de
reconhecer os seus erros. Hoje, posso assegurar que ela é uma mulher totalmente
arrependida”, garantiu o religioso.
Suzane também flertou com a Igreja do Evangelho Quadrangular, onde já
deu um testemunho sobre arrependimento e perdão, em Itapetininga e
Angatuba. Na pregação, subiu ao púlpito e falou ao microfone sobre redenção
com uma Bíblia na mão para cerca de 300 pessoas: “Confessei-te o meu pecado,
reconhecendo minha iniquidade e não encobri as minhas culpas. Então declarei:
confessei minhas transgressões para o Senhor, e tu perdoaste a culpa dos meus
pecados”, proclamou. A igreja, lotada de fiéis, quase veio abaixo com tanto
aplauso e gritos de “aleluia, irmão!”.
No plano terreno, mesmo espiritualizada, Suzane continuou enfrentando
perrengues com a Justiça por violar as regras do regime semiaberto. No Natal de
2018, a criminosa tinha 35 anos quando foi convidada para ser madrinha de
casamento da sua melhor amiga de cadeia, a seguidora Vanessa dos Santos
Martins, de 37 anos. O júbilo ocorreu na cidade de Taubaté, no dia 22 de
dezembro de 2018. A noiva estava toda vestida de vermelho; e o futuro marido,
de preto. O bolo de três andares tinha cobertura vermelha e branca para
combinar com o vestido da noiva. Pelas regras das saidinhas, do portão da
penitenciária, Suzane deveria seguir diretamente para o seu domicílio, a cidade
de Angatuba. No dia do casório, porém, a jovem resolveu vestir roupa de gala e
partir para a festa da amiga. Vanessa trocou alianças com um pastor evangélico,
com quem já havia sido casada dez anos antes sob o teto de uma igreja católica e
separada após um fato marcante em sua vida.
A história de Vanessa parece uma novela mexicana, como definiu o pastor
Fábio, condutor do culto de casamento da detenta. Ela era casada com Vanderlei
Garcia Alves, pai de Allan, de 4 anos. O menino era filho da sua ex-mulher e
Vanessa o acolheu como se fosse seu. A detenta também tinha um menino
chamado Sandrinho, fruto de outro matrimônio. As duas crianças brincavam
feito irmãos. Com o tempo, Vanessa teve outro bebê e começou a nutrir um
ciúme doentio do marido, canalizando o sentimento danoso para o enteado.
Era uma daquelas manhãs muito frias em São Paulo, no dia 1º de junho de
2007, quando Vanderlei saiu para trabalhar às 6 horas. Vanessa acordou logo em
seguida, tirou à força Allan da cama quente e o deixou completamente nu.
Apesar da baixa temperatura, a madrasta pôs a criança debaixo de uma ducha
fria e fechou a porta do box. Allan sentiu calafrios e deitou-se, trêmulo, no chão
sob o jato de água gelado.
A perversidade da madrasta foi além. Vanessa levantou a criança do chão e
começou a aplicar uma sucessão de socos em sua barriga. Lá pelo décimo golpe,
o menino caiu desacordado no piso frio do box reservado para o banho.
Desumana, a madrasta investiu ainda mais na violência. Ela levantou o garoto
mais uma vez e bateu fortemente a cabeça dele contra a parede. Da porta do
banheiro, Sandrinho, o filho de Vanessa, testemunhou, em estado de choque, o
crime da mãe.
No laudo do Instituto Médico Legal (IML), o legista João Carlos D’Élia
escreveu: “A criança apresentava traumas e escoriações na região da face, pescoço
e couro cabeludo. As lesões provocaram ruptura do baço em dois tempos,
ocasionada por pancadas na região toracoabdominal esquerda. Óbito por anemia
aguda”. Vanessa negou o homicídio. Em juízo, relacionou a morte de Allan a um
acidente doméstico. Não colou. Foi condenada a 22 anos de cadeia. Hoje
evangélica, a assassina põe a culpa pela barbaridade na conta do diabo. “Eu
estava possuída pelo Satanás”, justificou.
Dez anos depois de cometer o crime hediondo, Vanessa se casou pela
segunda vez com Vanderlei, o pai do menino que ela mesma matou. O pastor
Fábio foi quem fez a detenta se arrepender do assassinato e conquistar o perdão
do ex-marido. Mas nem o líder religioso é capaz de explicar no plano terreno um
perdão dessa magnitude. “Explicação na letra é difícil mesmo. Até porque esse
perdão ocorre no campo espiritual”, tenta justificar o pastor. Fábio recorre à
Bíblia para se convencer de que tanto Vanessa quanto Suzane estão
transformadas em almas bondosas mesmo depois de terem matado parentes de
forma tão fria e cruel.
De forma anônima, uma outra detenta, convidada do casamento de Vanessa,
ligou para a Polícia Militar e denunciou a violação da saidinha de Suzane. Em
fração de minuto, o primeiro-tenente Fabiano Aparecido de França chegou ao
casório, sem ter sido convidado. O policial algemou Suzane e a levou de volta à
penitenciária de Tremembé. Em sua defesa, a parricida jurou por Deus ter ficado
na festa da amiga além da conta porque estourou o pneu do carro de Rogério. E
foi “muito, muito, muito difícil encontrar uma roda idêntica nas borracharias do
interior, pois se tratava de um veículo rebaixado”, justificou. A lábia colou e a
jovem foi liberada para as novas saidinhas graças à benevolência divina da juíza
Sueli Zeraik, a mesma santíssima magistrada que beneficiou o médico Roger
Abdelmassih a cumprir temporariamente uma pena de 181 anos de prisão no
conforto do lar. Na decisão, a juíza escreveu que a detenção de Suzane
“vislumbra possível constrangimento ilegal”, o que abre brechas para a
presidiária entrar até com pedido de indenização por danos morais contra o
Estado, como já fez no passado. A caneta da magistrada perdoou com facilidade.
Sobre Suzane, Sueli escreveu: “Determino a imediata liberação da sentenciada,
anotando, por relevante, que a mesma vem sendo vítima, constante e
reiteradamente, da saga de vingança de expressiva parcela da sociedade civil
organizada, cruel e hipócrita, que projeta nela seus recalques e outras mazelas”.
Em seguida, a jovem voltou a ganhar a rua.
A alegria da liberdade fracionada de Suzane durou exatos dois anos. Em
dezembro de 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei Anticrime
(13.964). Um dos dispositivos proíbe saidinhas de autores de crimes hediondos
que resultam em mortes, como homicídios qualificados. Ao justificar as novas
regras, o deputado autor do projeto, Lafayette de Andrada (Republicamos-MG),
citou Suzane para justificar a nova medida. “Não faz sentido ela sair da cadeia
justamente no Dia das Mães e no Dia dos Pais, se ela própria os matou”,
declarou. O parlamentar também citou o caso de Alexandre Nardoni, que matou
a filha de 6 anos e saía da cadeia para comemorar o Dia dos Pais em família. “Isso
é um escárnio. Um tapa na cara da sociedade”, comentou Lafayette.
A única referência familiar de Suzane fora da cadeia é a família Olberg. Em
entrevista para um exame criminológico, a parricida foi questionada para onde
iria, caso o seu noivado com Rogério fosse desmanchado. “Buscarei apoio com a
minha rede de amigas de Tremembé”, respondeu. Só para constar, na rede de
amigas de Suzane há assassinas, infanticidas, latrocidas, estupradoras, pedófilas e
toda sorte de criminosas conhecidas pelas formas cruéis de matar.
Testemunhar a cerimônia de casamento de Vanessa com Vanderlei encheu o
coração de Suzane de esperança. Na época, a assassina pensava em se casar com
Rogério Olberg tão logo fosse promovida ao regime aberto. Metade da família do
noivo festejava a união do marceneiro com a menina que mandou matar os pais.
A outra metade condenava o enlace por acreditar que ela, ardilosa, iria
abandoná-lo tão logo conquistasse a liberdade.
Rogério se dizia perdidamente apaixonado por Suzane. Em entrevista à TV
Record, em maio de 2016, relatou ter conversado muito com a amada por cartas
antes de decidir namorá-la. “Percebi que as ideias que ela tinha de
relacionamento eram as mesmas que eu tinha, sabe? Teve uma química. Bateu.
Eu consegui enxergar na Suzane grande probabilidade de ela ser a pessoa que eu
quero para sempre. [...] Eu me vejo casado com ela. [...] Tenho certeza de que ela
me ama. [...] Temos muitas afinidades”.
Para ser aceita pela família de Rogério, em Angatuba, Suzane passou por uma
sabatina. Cerca de vinte parentes dele se reuniram na sala e puseram a assassina
no meio da roda. No momento mais tenso do debate, uma tia dele fez uma
pergunta espinhosa: “Afinal, por que você matou os próprios pais?” Para
responder, Suzane respirou fundo e invocou a narrativa antiga de que vivia
oprimida por Manfred e Marísia. Em seguida, fez uma pausa dramática e se
esforçou para chorar. Não conseguiu. Ainda assim enxugou lágrimas invisíveis.
Com feições tristes, relatou ter dado cabo dos pais para ganhar liberdade e que só
fez o que fez porque, fraca emocionalmente, sucumbiu à manipulação de Daniel
Cravinhos, o ex-namorado. Depois de repetir esse discurso batido, Suzane
convenceu toda a família Olberg e foi, definitivamente, bem-vinda ao seio da
família do namorado. A resistência dos Olberg em aceitar Suzane chegava a ser
curiosa, pois Luciana, a pedófila, também passava suas saidinhas no mesmo
endereço. E a família tinha ainda uma tia indiciada pela polícia por falsificação de
remédios.
Não custa nada lembrar: nos laudos criminológicos e em entrevista ao
apresentador Gugu Liberato, Suzane admitiu ter matado por dinheiro. Rogério
preferia não acreditar na sinceridade dessa Suzane. “Em uma conversa séria entre
nós, ficou bastante claro que não pode haver nenhuma mentira, a menor que
seja, no nosso relacionamento. Estou depositando muita confiança nela. Se eu
descobrir que a Suzane mentiu, haveria um estrago grande. Não sei dizer nem o
que eu faria”, previu Rogério ao jornalista Geraldo Luís, da TV Record, em 2016.
“Nós vamos nos casar e constituir uma família”, anunciou o noivo. Na mesma
conversa, disse existir uma Suzane que só ele conhece e a mídia não consegue
enxergar. Essa outra mulher, segundo ele, é muito educada, delicada, sensível e
romântica. Detalhe: essas são as mesmas características atribuídas à assassina por
amigos da faculdade e professores na época do crime.
Suzane estava conectada a Rogério e totalmente em sintonia quando se falava
em planos a dois. Ao se casar, a criminosa aproveitaria a oportunidade para
mudar o nome: planejava excluir o “von Richthofen” da carteira de identidade. A
ideia era tentar descolar a sua atual imagem cristã do crime diabólico cometido
em 2002, quando chocou uma nação inteira. Se tudo desse certo, seu novo nome
seria Suzane Louise Olberg das Dores.
No dia 11 de janeiro de 2023, a parricida finalmente conseguiu migrar para o
regime aberto, onde o criminoso cumpre o resto da pena em liberdade. Como
era de se esperar, ela pôs fim ao relacionamento estável com Rogério. “Na
verdade, eu terminei quando ainda estava no semiaberto. Minha liberdade foi
sendo postergada e o relacionamento acabou esfriando por causa do
distanciamento. O importante é que a família dele continuou me acolhendo”,
explicou Suzane ao psiquiatra Leandro Gavinier. Em 19 de outubro de 2022, o
médico assinou em Tremembé o último laudo sobre ela – peça importante para
credenciar a assassina a ganhar a tão sonhada liberdade. Ao profissional, ela teve
de relembrar pela enésima vez a morte dos pais. Já com 38 anos, Suzane ainda
culpava indiretamente Manfred e Marísia pelo duplo homicídio, exatamente
como sustentava antes do seu julgamento, alegando que o crime não ocorreu por
motivo torpe. “Tudo começou quando completei 15 anos. Eu conheci o Daniel e
um mundo novo se abriu na minha vida. Era um mundo de liberdade, namoro
íntimo e uso de maconha. No início, o relacionamento transcorreu
normalmente. Em um determinado momento, minha família passou a rejeitar o
nosso namoro por achar que ele não era a pessoa certa para mim. Isso acabou
gerando um distanciamento entre mim e meus pais. Minha mãe não percebeu
que eu estava ficando emocionalmente longe dela. O planejamento inicial do
duplo assassinato era envolto na ideia de viver uma paixão em paz com Daniel. O
foco não era a morte, e sim viver feliz uma paixão. Mas isso era uma ideia
completamente inconsequente, utópica, infantil e absurda”, desabafou a
parricida em seu último exame criminológico.
Antes de ganhar a liberdade, Suzane teve 20 saidinhas. Desde 2021, ela
deixava a prisão todos os dias às 17 horas usando uma tornozeleira eletrônica
para estudar, voltando às 23h. Usava transporte público. Nessa época, fazia uso
contínuo de dois medicamentos: Fluoxetina 20 mg (antidepressivo) e
Clonazepan 2 mg (ansiolítico). A combinação dessas duas drogas geralmente é
indicada para pacientes com depressão e síndrome do pânico. Sobre seus planos
fora de Tremembé, Suzane disse que pretendia montar um ateliê de costura, já
que trabalhava na penitenciária havia 15 anos, na Funap, confeccionando roupas.
Ainda em seu último laudo psiquiátrico, que serviu de base para Suzane
deixar a penitenciária definitivamente, está escrito que durante o exame a
assassina “estava vígil (atenta), com postura franca, orientada globalmente,
pensamento organizado, impulsividade latente sob adequado controle, tendência
a busca ativa de estímulos, afeto ressoante e ansiosa com boa empatia. Porém, às
vezes superficial. Inteligência acima da média, sem evidência de delírios ou
alucinações. Traços de infantilidade mitigados pelo amadurecimento natural”.
Conclusão do médico: “Suzane tem presença de traços de transtorno de
personalidade como charme superficial e necessidade de estímulo (tendência ao
tédio) que estão mitigados pelo amadurecimento pessoal. Não há elementos
suficientes para caracterização do transtorno de personalidade antissocial.
Presença de transtorno ansioso não especificado em remissão de sintomas
mediante uso de medicação. Não há contraindicação psiquiátrica neste momento
para progressão de regime penal”, escreveu o psiquiatra Leandro Gavinier em 19
de outubro de 2022.
Como era de se esperar, o Ministério Público deu parecer desfavorável à
parricida e pediu que a Justiça só concedesse a liberdade se ela fizesse mais um
teste de Rorschach. A juíza Wania Regina da Cunha, da 2ª Vara de Execuções
Criminais de Taubaté, descartou essa possibilidade. “A sentenciada foi submetida
ao teste diversas vezes. Esse exame afere aspectos da sua personalidade. Sendo
assim, provavelmente não ocorreriam alterações significativas no resultado do
laudo. Até porque a personalidade do indivíduo não muda de um ano para o
outro”, escreveu a magistrada. E justificou: “Na época do cometimento das
condutas criminosas, a previsão para cumprimento máximo da reprimenda era
de 30 anos. Até o presente momento, ela cumpriu 20 anos da sanção. Logo, não
seria justo e razoável que a apenada fosse mantida em cárcere por mais tempo”.
Suzane está em liberdade, mas bem longe de pagar o que deve à Justiça por
ter matado seus pais. Sua sentença de 39 anos termina só em 2041. Posta para
cumprir o restante da pena na condição de mulher livre, ela tinha regras a
cumprir: manter-se trabalhando em ocupação lícita; comparecer a cada três
meses à vara de execução criminal para informar as suas atividades; não mudar
de cidade sem pedir à Justiça; ficar em casa das 20h às 6h. Não podia pisar em
bares, boates, casas de jogos ou em locais incompatíveis com o benefício.
Em agosto de 2023, Suzane tinha 39 anos e morava em Angatuba, na casa da
família do seu ex-namorado, Rogério Olberg. Foi acolhida por Josiely e Luciana
Olberg, a pedófila. “Eles são a minha família”, disse a assassina antes de deixar
definitivamente a cadeia. Na nova fase da vida, a bandida montou o seu tão
sonhado ateliê e passou a customizar sandálias Havaianas, vendendo um par por
até 185 reais. Para facilitar o comércio, abriu uma conta no Instagram e
conseguiu 30 mil seguidores.
Em seu ateliê, Suzane recebia encomendas de todo o país. Costurava capa
para computadores portáteis, bolsas, pantufas e mochilas. Quase todas as
bugigangas tinham motivos românticos ou infantis. A homicida já postou
imagens em suas redes sociais enviando sua “arte” até para o Japão. Muitos dos
seus clientes se identificavam como fãs e admiradores. Diziam apoiar a
ressocialização da criminosa, não o crime. Alguns desses simpatizantes pediam
que os artigos fossem autografados pela parricida. Desconfiados, alguns
consumidores só faziam o Pix se a costureira-homicida enviasse um vídeo
provando que era ela mesma quem confeccionava os produtos. Para não perder a
venda, Suzane ligava o celular e fazia a transmissão ao vivo, mas só com os
clientes mais chegados. A assassina também mantinha um site para vender suas
quinquilharias. Na home, teve a ousadia de postar uma foto das suas mãos
sardentas com as unhas pintadas de vermelho-sangue. São as mesmas mãos
usadas em 2002 para tapar os ouvidos e não escutar a sinfonia macabra
produzida pelas porretadas que mataram seus pais.
Desde os seus primeiros contatos com psicólogos e assistentes sociais em
Tremembé, em meados da década de 2010, Suzane falava em ser mãe. Esse desejo
aumentou quando ela se tornou madrinha da filha mais nova de Josiely, sua ex-
cunhada. Suzane dizia às amigas ter pressa para engravidar por causa da idade
tardia: trinta e poucos anos. Ela sonhava até com os nomes dos rebentos: “Se vier
menino, se chamará Benjamin. Se for menina, Isabela”, contou ao assistente
social Maurício Fernandes de Faria, conforme consta no parecer técnico assinado
por ele em 20 de outubro de 2017. Seu desejo se concretizou em julho de 2023,
quando sentiu enjoos e vomitou durante uma competição de motocross, em
Angatuba. Nos dias seguintes, teve outros sintomas, até descobrir que a sua
menstruação estava atrasada.
Com medo da notícia sobre a gravidez vazar para a imprensa, Suzane
comemorou com seus amigos íntimos no rancho de Angatuba. Ela também tinha
medo de perder o bebê, já que a gestação estava bem no início. Por exigência do
pai, ela não revelou o nome do “felizardo”. Suspeita-se que se trata de um amigo
da faculdade, de um médico ou de um jovem nerd que construiu a plataforma do
seu e-commerce.
Certa vez, quando vislumbrava em Tremembé a possibilidade de ser mãe, a
parricida foi confrontada por uma colega de cela com uma pergunta indigesta:
— Me conta uma coisa, Suzane: quando o seu filho lhe perguntar: “Mamãe,
onde estão os meus avós?”, o que você vai responder?”.
Sem saber o que responder, a assassina fechou-se em silêncio.
© 2023 - Ullisses Campbell
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Capa, projeto gráfico e diagramação
Patricia Delgado da Costa
Ilustrações
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Pág. 342 (primeira): Fabiano Rocha / Agência O Globo
Pág. 344 (primeira): Ricardo Borges / Folhapress
Demais fotos: redes sociais e arquivos pessoais
Revisão
Cida Medeiros
Campbell, Ullisses
Flordelis: a pastora do diabo / Ullisses Campbell. - 2. ed. - São Paulo: Matrix, 2023.
352 p.; 23 cm (Mulheres assassinas)
ISBN 978-65-5616-359-8
ISBN 978-65-5616-357-4 (coleção)
1. Flordelis. 2. Carmo, Anderson do. - Assassinato. 3. Políticos - Biografia - Brasil. 4. Igreja protestante -
Clero - Biografia. 5. Reportagens e repórteres. I. Título. II. Série.
23-85287
CDD: 923.2
CDU: 929:32(81)
Oscar Wilde
A
mbição, amor, assassinato, Bíblia, cadeia, crime, dinheiro, escândalo, fama,
família, fé, feitiçaria, ilusão, intrigas, justiça, lealdade, luxúria, magias,
maternidade, orgia, poder, preconceito racial, religião, romance, sangue,
sentença, sexo, sucesso e traição. As etiquetas (tags) sugeridas para classificar a
biografia de Flordelis dos Santos de Souza parecem não ter fim, assim como os
arcos da sua trajetória. Sua biografia parece realismo fantástico, característica
marcante dos livros de Gabriel García Márquez. A vida, no entanto, dizia o
próprio escritor colombiano, já é fantástica por si. Ao sair pelas ruas do Rio de
Janeiro “recolhendo” crianças e adolescentes para montar uma organização
criminosa dentro de casa, Flordelis transformou sua existência em um enredo
que mais parece ficção de folhetim barato, daqueles que se compravam em banca
de revista. No início da década de 1990, seu caminho se cruzou com o do jovem
aprendiz de bancário Anderson do Carmo, de apenas 14 anos, então namorado
de sua filha, Simone. De “genro”, o garoto logo passou a “filho” – chamava
Flordelis de “mãe”. Mais tarde, envolveu-se afetivamente com ela e os dois
acabaram se casando. Sim, a relação é confusa mesmo. Visionário e
centralizador, Anderson traçou um plano ambicioso para sua amada: torná-la
pastora evangélica, cantora gospel famosa e deputada federal. Alçada ao estrelato,
porém, Flor perdeu o controle sobre seu destino e suas finanças. Anderson vivia
a vida de Flordelis como se fosse a dele. Para se livrar do “filho-marido”,
portanto, a pastora acionou a prole para matá-lo. Primeiro, tentou
envenenamento. Não deu certo. Mandou contratar um matador de aluguel. Não
deu certo mais uma vez. Por último, pediu para Flávio, filho biológico, assassiná-
lo com arma de fogo na garagem de casa. Da pobreza na favela do Jacarezinho ao
plenário da Câmara dos Deputados, passando pelos púlpitos das igrejas, Flordelis
percorreu um roteiro pautado pela mentira. Não se sabe, por exemplo, se o pai
dos três filhos biológicos, nascidos na década de 1980, é realmente o homem que
aparece nos registros de nascimento deles. A carreira de supermãe, segundo ela,
começou com o resgate de 37 crianças de uma chacina na Central do Brasil –
mas a matança nunca existiu. Para rechear sua jornada de dramas, inventava
passados trágicos para cada criança que acolhia: Rayane foi achada no lixão,
Cristiana foi resgatada de uma enchente, Roberta estava morrendo em uma caixa
de sapatos, Carlos Ubiraci era responsável pelo paiol do Comando Vermelho, e
por aí vai... Já casada com Anderson do Carmo, disse ter engravidado em 1998 e
dado à luz Daniel. O bebê, na verdade, foi surrupiado da mãe, a dona de casa
Janaína do Nascimento Barbosa.
Na busca pelo sucesso, Flordelis e Anderson imitaram o Diabo, pastorando
em pele de cordeiro dentro de igrejas evangélicas. Expulsos da Assembleia de
Deus, montaram uma congregação só para eles. Ao mesmo tempo, cultuavam
figuras satânicas e entidades da umbanda e quimbanda, fazendo uma mistura
fajuta de ocultismo. Como religiosa, Flordelis sempre foi uma farsa: distorcia
rituais, fraudava milagres, fingia curas e fazia falsas profecias para ganhar fama e
dinheiro. No entanto, para não estigmatizar religiões evangélicas nem crenças de
matriz africana, ainda tão marginalizadas, esta obra revela também uma série de
crimes sexuais praticados por padres pedófilos contra seus fiéis. São relatos de
embrulhar estômagos fortes. Ao mostrar com detalhes como líderes invocam o
nome de Deus para cometer toda sorte de perversidades, presta-se uma
homenagem a quem usa a religião honestamente, levando conforto espiritual
genuíno a quem precisa.
Na atualização do livro, foram inseridas novas histórias do mundo
extraordinário de Flordelis, incluindo sua vida conturbada na cadeia. A nova
edição também traz mais detalhes sobre o dia do crime e o ritual da pastora no
dia da sua prisão, além de um assassinato perturbador envolvendo o pastor
Anderson do Carmo. O capítulo dos padres pedófilos de Arapiraca ganhou
histórias assombrosas de líderes religiosos condenados pela Justiça a penas
altíssimas por terem abusado de pessoas vulneráveis que estavam em busca de
conforto espiritual.
É difícil estruturar um compêndio com tantos personagens, tramas,
subtramas e intrigas entrelaçadas. Para facilitar a leitura, a narrativa central segue
em ordem cronológica. Por dois anos, o autor mergulhou no processo de mais de
30 mil páginas do caso. Mas, como diz o jornalista Ricardo Noblat, documentos
não falam por si. Isto é, para a reportagem, o que está fora dos autos também está
no mundo, ao contrário do que dizem operadores do Direito. Os autos do
processo, nesse caso, serviram somente como ponto de partida para a
investigação. Foram mais de cem entrevistas com pessoas que estiveram e estão
no entorno de Flordelis, incluindo filhos falsos e verdadeiros; parentes, vizinhos,
ex-namorados, amigos, inimigos, além de policiais, advogados, promotores e até
traficantes. Os diálogos foram reconstituídos a partir desses depoimentos.
Alguns personagens tiveram os nomes trocados quando essa foi a condição
imposta por eles para colaborar. Todos os fatos recontados nos próximos
capítulos são verdadeiros? Provavelmente não. As pessoas mentem para
embelezar suas memórias, tornar a rotina mais interessante, satisfazer seus
interesses, por vaidade ou por hobby. Para coroar sua gloriosa biografia, Flordelis
publicou um livro em 2011, cujo título é seu próprio nome. No subtítulo, ela
escreveu: “A incrível história da mulher que venceu a pobreza e o preconceito
para ser mãe de cinquenta filhos”. Quando Janira Rocha, sua advogada penal, leu
a obra, sugeriu usá-la no tribunal, na defesa da ré. “Dona Janira, esse livro é um
pacote de mentiras!”, confessou a pastora. O universo da assassina gospel
realmente é fantástico, como a imaginação de García Márquez. Porém, Flordelis
faz parte do Brasil de hoje, e não da Macondo fictícia do escritor colombiano.
“Quem me segue não precisa de velas porque
nunca andará nas trevas.”
D
eus, pai todo-poderoso, despejava um dilúvio sobre o Rio de Janeiro
naquela noite de sábado, 27 de junho de 1970. Em meio à tempestade que
assombrava com relâmpagos e trovoadas, a casa de Calmozina Motta, 37
anos, fazia água. Separados por paredes de tijolos aparentes, os quatro cômodos
estavam alagados – assim como muitas moradias vizinhas da Rua João Pinto, no
coração do Jacarezinho, favela na zona norte nascida de um quilombo que, na
época, abrigava mais de 20 mil pessoas.
Várias telhas de amianto do teto de Calmozina estavam partidas. Culpa do
abacateiro frondoso plantado no quintal da vizinha, Mariazinha Macêdo, 40
anos. Era uma telha a menos a cada fruta que caía. Sem forro, a água escorria em
cascata do telhado sobre os móveis da sala e dos quartos. Naquela noite, ninguém
tinha condições de dormir no Jacarezinho. Francisco Jorge dos Santos, o Chicão,
36 anos, segundo marido de Calmozina, subiu na mesa de madeira para tentar
remendar os buracos pelo lado de dentro da casa. Laudicéia, 19 anos; Amilton,
18; Abigail, 13; Flordelis, 9; e Fábio, 8, ajudavam a mãe na luta contra o aguaceiro
usando vassoura, rodo e pano de chão. Com as chuvas fortes, transbordavam o
rio Jacaré e seus afluentes, que cortavam a comunidade de ponta a ponta. A força
das águas destruía móveis e levava na correnteza roupas e utensílios domésticos.
Para piorar, a companhia de fornecimento de energia elétrica desligava as
subestações e deixava a região às escuras. Em meio ao desespero daquela hora,
alguém chamou à porta da casa da família de Calmozina. Com uma lamparina na
mão, Chicão recebeu dona Conceição e o marido, Lucivaldo. O casal tentava se
proteger com um guarda-chuva, mas estava ensopado. Eles conheciam
Calmozina de vista, dos cultos da Assembleia de Deus. Não partilhavam de
intimidade alguma, por isso Conceição adiantou-se às dúvidas:
– Calmozina do céu, me desculpe pela inconveniência. É uma emergência.
Meu marido está perdendo a vida. O médico disse que não passa de hoje. Já
tentei de tudo. Levei até a igreja católica. O padre disse que nem Nossa Senhora
de Lourdes, a protetora dos enfermos, pode salvá-lo. Pelo amor do Altíssimo,
não deixe meu marido morrer! – suplicou a mulher, às lágrimas.
Conceição era dona de casa. Lucivaldo trabalhava na Guarda Portuária do
Rio de Janeiro, mas estava de licença médica. Há um ano tratava de um câncer
agressivo no pulmão, irradiado para outras partes do corpo numa rapidez
assombrosa. Desenganado, foi mandado para casa pelos médicos, mas Conceição
não se resignou. Nos últimos dez dias, já havia levado Lucivaldo a um babalorixá,
e depois a um médium, que dizia receber o espírito do doutor Fritz, o médico
alemão que teria atuado na Primeira Guerra Mundial. Ofertas aos santos, banhos
de descarrego e cirurgia espiritual não trouxeram resultado algum. Numa visita
ao padre Carlos Ramos, que ganhara fama de milagreiro na Paróquia Nossa
Senhora do Bonsucesso, o clérigo se limitou a ofertar a bênção de extrema-
unção. “Esse não passa desse mês”, sentenciou.
Quanto mais Lucivaldo peregrinava em busca de salvação, mais definhava.
Conceição estava ali para apelar a Calmozina, cuja fama se espalhava: diziam que
ela seria capaz de profetizar e curar. Chicão ofereceu as cadeiras da sala para que
se acomodassem. Lucivaldo não tinha forças para falar e caminhava apoiado na
mulher, com passos lentos e curtos. Respirava com muito sacrifício.
A chuva e a escuridão continuavam. Na sala parcamente iluminada, os cinco
filhos de Calmozina seguravam velas de cera vermelha, sem conter o burburinho.
Amilton tinha medo dos supostos poderes sobrenaturais da mãe. Flordelis e
Fábio, as crianças mais novas da família, entendiam pouco sobre aquilo.
Laudicéia e Abigail, as mais velhas, ficavam incomodadas com o ritual. Além de
provocarem um entra e sai a qualquer hora do dia e da noite, as ditas sessões de
cura deixavam a mãe mentalmente esgotada e a casa toda suja por causa das
visitas.
Em resposta ao apelo de Conceição pela saúde do marido, Calmozina pediu
silêncio, apagou as velas e começou a rezar. Em transe, a voz ficara mais grave e
rouca:
– Este pobre homem não está morrendo por desejo do Criador! Ele está
sendo arrastado para um buraco sem fundo pelo Satanás. Mas o Senhor é o nosso
pai. Somos o barro, e Ele, o oleiro. Todos somos obras divinas. Ó, Pai, mostre a
sua soberania diante de tudo e de todos e deixe este servo aqui junto de sua
família. Afaste o poder maligno do Demônio deste corpo. É uma súplica!
Calmozina emendou a falar em línguas estranhas.
– Mãe, estou com medo. Pode acender a vela? – interrompeu Amilton,
tremendo-se de medo.
– Não! Como Jesus, eu sou a luz do mundo. Quem me segue não precisa de
velas porque nunca andará nas trevas! – respondeu Calmozina, ainda com os
olhos fechados.
Mariazinha, a vizinha dona do abacateiro, era católica não praticante.
Enxerida, ouviu de longe a sessão de cura de Calmozina. Tratou de chamar o
marido e os filhos para testemunharem, mesmo sob chuva, o que acreditava ser
uma ação de exorcismo. A sala ficou apertada para tanta gente. A ventania
derrubava mais frutas no telhado e Mariazinha ficava envergonhada com o
barulho. Lucivaldo começou a estremecer na cadeira. Uma saliva espessa
escorreu da boca ao queixo e pingou em seu colo. Calmozina revirava os olhos,
enquanto Amilton chorava de pavor. Entre um amém e outro, Flordelis,
fascinada, observava a cena. Uma goteira enorme caiu na cabeça de Lucivaldo no
auge da pregação. Chicão se moveu para afastar a cadeira, mas Calmozina
interveio:
– Não mexa em nada! A entidade está derramando sua cura sobre o doente
por meio da água sagrada e límpida que vem do céu.
– Amém! – ouviu-se em coro.
A goteira engrossou. Calmozina ordenava aos gritos que o Diabo deixasse o
corpo de Lucivaldo. Pegou-o pelos cabelos e jogou-o ao chão molhado. “Sai,
Satanás! Sai, Satanás! Sai, Satanás!”, repetia com toda a potência da voz. De
acordo com os presentes, de uma hora para a outra Lucivaldo ganhou forças e
levantou-se com uma agilidade inesperada. Conceição começou a chorar. Seu
marido havia sido curado pela bruxa do Jacarezinho, acreditava ela. Houve um
alvoroço na casa. “Glória à vida!”, gritavam os fiéis da família – exceto Amilton,
que saiu de casa correndo, desesperado, sob a chuva. Às pressas, Laudicéia
providenciou um copo de água para ajudar a mãe a se recuperar. Flordelis
respondeu ao espetáculo com risadas nervosas. De tanto ver a mãe “curando”
doentes na sala de casa em cenas dramáticas, ela passou a desejar esse “poder”
para si. Na infância, todas as vezes que alguém perguntava “Flor, o que você quer
ser quando crescer?”, ela respondia: “Quero ser bruxa que nem a mamãe!”.
Encerrada a sessão de exorcismo de Lucivaldo, Calmozina sentou-se no sofá,
olhou as telhas rachadas e o chão molhado pela chuva e, então, voltou-se para
Mariazinha, que estava em pé num canto da sala:
– Mariazinha, esse teto parece uma peneira por causa dos seus abacates...
– Pode deixar que vou cortar os galhos que estão sobre a sua casa e
providenciar o conserto do seu telhado! – prometeu a vizinha, saindo em
seguida, constrangida.
Lucivaldo deixou a casa de Calmozina dizendo-se bem-disposto. Nem
parecia o homem que chegara ali em estado terminal. No dia seguinte, voltou de
bicicleta à casa da bruxa, levando sacos de feijão, arroz e macarrão como forma
de agradecimento. Alguns meses depois, porém, Lucivaldo perdeu
completamente o apetite. Magro e fraco, foi novamente internado e morreu em 3
de outubro de 1970, com o enterro realizado no Cemitério da Ordem Terceira da
Penitência. A surpresa da cerimônia fúnebre foi a descoberta de que o falecido
tinha outra família para os lados do Engenho de Dentro, bairro vizinho do
Jacarezinho. Houve bate-boca entre as duas viúvas enquanto o caixão descia até o
fundo da cova. Quando soube do entrevero, Calmozina atribuiu o fracasso em
salvá-lo à vida pecaminosa de Lucivaldo. Ela ilustrou a infração divina lendo um
trecho da Bíblia, selando o destino do marido bígamo: “Os que morrem no
Senhor gozarão de felicidade eterna. Os que escolheram viver fora do propósito
de Deus, que optaram pelo caminho largo, irão para o lugar de tormento
consciente e de onde jamais poderão sair”. “Que o Diabo te carregue!”, balbuciou
Calmozina.
– O que a senhora disse, mamãe? – quis saber Amilton.
– Que essa alma descanse em paz! – respondeu a bruxa.
Calmozina era preta, magra e media 1,58 metro. Na juventude, os cabelos
eram escuros, compridos e ondulados, inspirados na cantora Gal Costa. Preferia
deixar os fios soltos e raramente os penteava. Os olhos eram castanhos, com
olheiras escuras que resultavam em um aspecto lúgubre. Faltavam-lhe alguns
dentes. Econômica nos gestos e na fala, era semianalfabeta. Apesar da aparência
frágil, a mãe de Flordelis era uma mulher forte e poderosa. Em casa, comandava
a família com rigor e disciplina. Nem sempre fora assim. Comeu o pão que o
Diabo mastigou no primeiro casamento e, depois, nas mãos de um namorado
que não valia um centavo furado.
Filha do jagunço Eupídio Motta e da dona de casa Sebastiana Francisca,
Calmozina nasceu de parto caseiro em 19 de março de 1933 em Santo Antônio
de Pádua, cidade fluminense a 262 quilômetros do Rio de Janeiro. Caçula de uma
prole de cinco crianças, viveu a infância e a adolescência em Itaperuna, no
noroeste do estado. Distantes um do outro por 60 quilômetros de asfalto precário
da BR-393 e por uma estrada de terra bastante esburacada (RJ-198), os
municípios de Pádua e Itaperuna tinham perfil rural. Eupídio chegou a trabalhar
como “delegado” de fazenda em São José de Ubá. Sua função era coordenar um
grupo de jagunços encarregados de expulsar à bala de carabina os posseiros das
terras do patrão. No auge da pistolagem, o pai de Calmozina conseguiu comprar
cinco alqueires de terra e oito cabeças de gado. Acumulou dívidas e perdeu todo
o patrimônio para agiotas a quem devia.
Empobrecido, Eupídio passou a oferecer Calmozina e as outras filhas para
que fossem levadas pelos solteiros da vizinhança – segundo acreditava, só um
casamento livraria a família de uma vida extremamente miserável. Submissa,
Sebastiana não se opunha aos planos do marido. Esse tipo de relacionamento
forjado e bruto era comum nos rincões do Norte e do Nordeste e nas localidades
rurais do Sul e do Sudeste do país. Eupídio primeiro permitiu que a filha mais
velha, Carmem Motta, com apenas 14 anos, seguisse sozinha com um caixeiro-
viajante de 34. Ela foi levada para uma fazenda em Palmas de Monte Alto, na
Bahia, a 1.300 quilômetros de casa. Trabalhava sob sol escaldante em plantações
de feijão, algodão, mandioca, sorgo, milho e arroz. Morreu de câncer de pele
antes de completar 30 anos.
Quando viu suas irmãs sendo “distribuídas feito filhotes de cachorro”, o
único filho homem de Eupídio e Sebastiana, Pedro Motta, primogênito de 16
anos, fugiu de casa. Trocou de nome num ritual religioso e apresentava-se como
um feiticeiro adepto de práticas macabras. Era conhecido em Itaperuna e
arredores como Pai Miquelino, autointitulado filho do Exu Caveira. Adulto, ele
se dizia representante terreno do que acreditava ser a entidade das trevas. Em seu
quintal, ora Miquelino atendia os clientes vestindo indumentária masculina
(calça e bata brancas) e falando com voz grave, ora com saias brancas cheias de
babados e um turbante na cabeça, conhecido como ojá, e todo enfeitado com
balangandãs, emitindo voz anasalada e fina. A variação na expressão de gênero
de Miquelino era, segundo ele, uma homenagem a Olocum, orixá das águas
metade peixe, ora identificado com o feminino, ora com o masculino.
Com capacidade para receber 200 pessoas, o terreiro de Miquelino parecia
uma oca indígena rústica. Sem paredes, tinha pé-direito alto, coberto com palhas
sustentadas por troncos enormes. O chão reluzia com a areia branca trazida da
praia de Grussaí, em São João da Barra, a 170 quilômetros de distância. Na porta,
lia-se uma placa anunciando seus principais serviços: destruo inimigos, separo
casais, amarrações amorosas, faço e desfaço macumbas, organizo oferendas.
Todo esse serviço era cobrado.
A poucos metros do terreiro de Miquelino morava o pastor Possidônio, da
Assembleia de Deus. O líder religioso fazia cultos na sala da sua humilde
residência para 30 fiéis. Com o tempo, o número de ovelhas foi crescendo e a
pregação passou a ser feita no quintal. Como o terreiro de Miquelino ficava
ocioso às terças e quintas, Possidônio pediu para alugar o espaço. Selaram
acordo. Nas celebrações evangélicas, as imagens talhadas em madeira de
Olocum, São Cipriano, Exu Morcego e Iemanjá eram camufladas por lençóis e o
pastor assumia o púlpito. Os fiéis sabiam que ali era um terreiro dito de
umbanda, mas não ligavam para esse “porém”. Não demorou muito para
Miquelino crescer os olhos sobre o negócio de Possidônio. O tio de Flordelis
percebeu que dava muito mais lucro receber dízimo e contribuições de
evangélicos do que fazer despachos em encruzilhadas. Convenientemente, ele
deixou Possidônio ministrar os cultos nos dias combinados (terças e quintas) e
passou a pastorar usando a Bíblia às segundas, quartas e domingos. Na sexta, Pai
Miquelino intensificava os rituais ao som dos atabaques, palmas e instrumentos
de percussão, para supostamente incorporar as entidades. Nas horas vagas, fazia
atendimentos diversos.
Nos dias em que assumia a identidade de Pai Miquelino, ele vestia branco e
se transformava num homem rabugento. Nesses ritos, as pessoas tiravam os
sapatos e os deixavam do lado de fora, à esquerda do acesso principal. Pai
Miquelino contava com auxiliares que guiavam o público até o espaço de
assistência, onde ficavam mais próximos do altar e das imagens dos pretos-
velhos. Durante o processo, os clientes recebiam banhos com ervas para facilitar
a sintonia com as entidades da noite. Nos cultos evangélicos, tudo mudava.
Pastor Miquelino usava roupas sociais e subia ao altar do terreiro para falar de
Deus e do Diabo. Proferia testemunhos de fé, superação e cura, erguendo uma
Bíblia com fervor para pontuar a fala. Fazia previsões e sessões de cura espiritual
de forma teatral. Em poucos anos, ganhou aval da Assembleia de Deus e pôs um
letreiro na entrada do terreiro, já transformado definitivamente em templo
evangélico. O local lotava de crentes e cada fiel tinha de levar seu próprio
banquinho, porque não havia cadeiras suficientes para o público. As imagens dos
pretos-velhos e de Exu-Caveira foram postas num espaço menor, atrás da igreja.
Doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo, Lidice Meyer
observa que, na década de 1960, quando as igrejas evangélicas pentecostais ainda
estavam precariamente estruturadas no Brasil, era comum as instituições
dividirem espaços sagrados para exercer atividades religiosas, mesmo que
possuíssem doutrinas antagônicas. O compartilhamento dos templos ocorria em
comunidades pequenas, onde as pessoas se conheciam. Com isso, ficavam à
vontade para exercer a fé de formas diferentes. “Até hoje é possível encontrar, no
interior do Brasil, igrejas dividindo o mesmo local. Há casos de igrejas
evangélicas de vertentes diferentes, como luteranas e presbiterianas, fazendo
cultos sob o mesmo teto, mas em horários distintos”, ressalta a antropóloga.
Segundo ela, o enlace entre igrejas evangélicas e religiões de matrizes africanas
fora do cristianismo (candomblé e umbanda), como feito no espaço de
Miquelino na década de 1960, geralmente ocorria quando o pai de santo estava
em processo de troca de religião. “Nos morros do Rio de Janeiro há diversos
templos evangélicos funcionando em espaços onde antes era um terreiro, porque
o pai de santo se converteu”, conta Lidice, que também é professora de mestrado
em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, em Portugal.
Durante o processo de conversão, Miquelino recebia simultaneamente
evangélicos e seguidores do candomblé, como sua irmã Calmozina. Era comum,
por exemplo, ele pedir aos crentes que tirassem os sapatos ao entrar na igreja,
como exigia dos adeptos do candomblé. Por muito tempo, conciliou atividades
de pastor com o de suposto pai de santo. Na vizinhança, as pessoas falavam à
boca pequena que ele havia feito um pacto com o Diabo. Para amedrontar a
comunidade, ele não desmentia nem confirmava essa fofoca.
Quem chegou a testemunhar o trabalho macabro de Miquelino relatou que
seus alvos se enforcavam, morriam atropelados, eram vítimas de envenenamento
com arsênico ou cianeto ou assassinados por armas de fogo. Miquelino era
magro, alto e negro. Tinha o hábito de deixar as unhas grandes, como se fosse o
personagem Zé do Caixão. Suas mãos se destacavam ainda mais com o uso de
acessórios chamativos, como anéis, pulseiras e braceletes. Chegou a se casar com
Zeferina, uma garota de 15 anos entregue ao suposto pai de santo pela própria
mãe. A jovem era neta de uma mulher escravizada que havia morrido durante
uma tentativa de fuga da fazenda onde era explorada. Para ser aceita como
mulher de Miquelino, Zeferina ficou trancada num quarto escuro por uma
semana, comendo apenas vegetais, bebendo água e vestindo uma bata branca.
Todas as noites, Miquelino e um assistente a estupravam. Só depois desse ritual
Zeferina foi aceita como companheira do bruxo. No terreiro, ela fazia de tudo
um pouco: sacrificava animais, como bodes, porcos e pombos; limpava o espaço,
sempre sujo de sangue; cozinhava, lavava e passava a roupa do marido, além de
ajudá-lo no atendimento aos clientes. A faxina feita por ela e voluntários era mais
pesada às vésperas dos cultos evangélicos. Cabia ainda a Zeferina fazer oferendas
a Exu, de madrugada, em encruzilhadas da rodovia BR-393. À mulher,
Miquelino fez um pedido crucial no momento de selar o namoro: que ela jamais
engravidasse, porque um filho, disse, não seria bem recebido pelas entidades
cultuadas por ele. Quando foi ordenado pastor da Assembleia de Deus, ele se
casou com Zeferina.
A última filha negociada por Eupídio foi Calmozina – que tinha 10 anos
quando passou a viver com o soldado do Exército Benedicto Marcelino de Paulo
depois de ter sido abusada por ele. Sofria violência verbal e psicológica, além de
ser estuprada e frequentemente espancada pelo militar.
Aos 13 anos, na semana em que se comemorava o Natal, Calmozina apanhou
tanto do marido durante uma relação sexual que perdeu três dentes e teve
ferimentos dolorosos na vagina e no ânus. Depois disso, juntou os trapos e
voltou para a casa dos pais. Aos prantos, implorou para ficar por lá pelo menos
até o ano-novo. Sebastiana estancou o sangue da boca da filha usando gelo e uma
fralda. Para conter as hemorragias vaginal e anal, a mãe encheu uma bacia com
água e bastante sal grosso e pediu para Calmozina sentar-se nela por uma hora.
Depois, Sebastiana deu um banho na filha, fez questão de pentear os cabelos da
pré-adolescente e vesti-la com roupas limpas, além de perfumá-la com água de
colônia. Na sequência, levou-a de volta para a casa do marido agressor, sob o
argumento de que a brutalidade do homem fortalece a mulher. No caminho,
Sebastiana buscou justificar o injustificável:
– Filha, você acha que o seu pai não me bate? – questionou a mãe.
– Nunca vi ele encostar um dedo na senhora!
– O Eupídio me bate todos os dias. De manhã, de tarde e de noite. Levo tapas,
socos, chutes e empurrões. Principalmente na cama. A sina da mulher é apanhar
do marido, filha. O homem bate na esposa porque a ama. Por isso a gente é
agredida durante o sexo. Ouça o meu conselho: volte para o seu marido. Faça
tudo que ele mandar que você apanhará bem menos – aconselhou a mãe.
Nem deu muito tempo de Calmozina refletir sobre as palavras absurdas de
Sebastiana. No caminho de casa, as duas toparam com Benedicto, o marido, por
volta das 20 horas. Ele pegou a menina do chão, deu um beijo em sua boca e a
colocou em cima dos ombros. “Como você está cheirosa”, elogiou o agressor.
Calmozina só conseguiu se livrar do abusador aos 17 anos, quando ele, com 27,
interessou-se por uma criança de 12. Benedicto levou a nova vítima para dentro
de casa. Não estava trocando uma pela outra: deixou claro que queria as duas.
Algumas semanas depois, Calmozina pegou suas roupas, pôs em uma sacola e
fugiu de vez.
Para não voltar à casa dos pais e correr o risco de ser entregue a outro
monstro, ela se mudou para o terreiro de Miquelino, o irmão mais velho. Lá,
passou a ajudar Zeferina no trabalho doméstico e nas invocações do bruxo
evangelista. Uma das tarefas de Calmozina era limpar as imagens de Exu Caveira
e São Cipriano, além de auxiliar no culto das quartas-feiras.
Aos 18 anos, durante a estada na casa do feiticeiro, Calmozina testemunhou
uma tragédia que a marcaria para sempre. Contrariando o desejo do marido,
Zeferina engravidou. A gestação de uma menina só foi descoberta no sétimo
mês. Miquelino não queria a filha porque, segundo suas crenças, a bebê não era
abençoada pelo Exu.
Para forçar o aborto da esposa, ele primeiro deu uma sequência de socos em
seu abdome. Depois de espancada, a grávida foi forçada pelo marido a tomar
chás abortíferos feitos de uma mistura de alcaçuz, cáscara-sagrada, prímula e
quebra-pedra. Com tantos episódios violentos, a gestante sofreu choque
anafilático no oitavo mês de gestação. O bebê, ainda prematuro, sobreviveu à
morte da mãe. Miquelino, então, acendeu tochas e incendiou o terreiro com a
nenê dentro. Apavorada, Calmozina escondeu a criança em uma casa vizinha.
Quando perguntou pela filha, o pai foi informado de que ela não havia
sobrevivido ao fogaréu. Uma semana depois, aconteceu outra desgraça no espaço
de trabalho de Miquelino: um bando de jagunços invadiu o terreiro na
madrugada e, com tiros, pauladas e dezenas de facadas, matou o pai de santo.
Nunca se soube a real motivação do crime, apesar das suspeitas de intolerância
religiosa ou vingança. Miquelino teve o corpo esquartejado em sete partes. O
tronco com os braços foi pendurado em ganchos de metal e amarrado em
correntes nas pernas-mancas de sustentação do telhado do terreiro. O couro
cabeludo, os olhos, as orelhas e a língua foram brutalmente extirpados. As unhas
dos dedos dos pés e das mãos foram arrancadas. O sangue do bruxo foi todo
retirado e depositado em uma tigela de barro, utilizada para sacrificar animais. A
cabeça da imagem de Exu Caveira foi enfiada no ânus da vítima.
Calmozina deparou-se na manhã seguinte com os pedaços do cadáver
suspensos no terreiro de areia branca. Antes de chamar a polícia, fez um ritual de
despedida e banhou-se com o sangue do irmão. Como lembrança de Miquelino,
guardou consigo as imagens de São Cipriano e Exu Caveira. Nesse rito, segundo
contou, Calmozina herdou a essência dos supostos poderes sobrenaturais do
bruxo, mais tarde aperfeiçoados e repassados a Flordelis. A polícia nunca
encontrou os assassinos de Miquelino. A lista de seus desafetos tinha tantos
nomes quanto os grãos de areia que havia naquele terreiro.
Depois da morte trágica do irmão, Calmozina registrou a bebê como filha e
deu a ela o nome de Laudicéia. Começou a namorar um rapaz chamado Amilton
e com ele teve dois filhos: Amilton Filho e Abigail – como não gostava do nome,
porém, a moça passaria a ser chamada de Eliane após um ritual religioso
envolvendo sangue de bode preto. Com três filhos pequenos e um passado
marcado pela violência, Calmozina saiu de casa assim que levou o primeiro tapa
de Amilton. Prometeu para si mesma transformar-se numa nova mulher e jamais
admitiria apanhar de homem algum. Jamais!
* * *
* * *
A
quariana, Flordelis dos Santos de Souza nasceu de parto normal na
madrugada de 5 de fevereiro de 1961 em uma viela do Jacarezinho, uma
das favelas cariocas mais pobres, violentas e negligenciadas do país.
Carmozina tinha 28 anos quando pariu a filha. O país era governado por Jânio
Quadros, o presidente com mandato mais curto da história do Brasil. Jânio havia
sido eleito com 5,6 milhões de votos e o apoio de uma coligação de partidos
liderados pela UDN (União Democrática Nacional) em 3 de outubro de 1960.
Tomou posse em 31 de janeiro de 1961 e ficou no cargo por apenas sete meses,
renunciando no dia 25 de agosto. No período em que Jânio pedia votos nas ruas,
Carmozina gestava a futura pastora. Brasília havia acabado de ser inaugurada.
Uma penca de denúncias de pagamento de propina envolvendo contratos do
governo com empreiteiras manchava as obras de construção da nova capital.
Excêntrico, Jânio elegeu uma vassoura como símbolo da campanha e usava a
piaçaba nos comícios para anunciar uma faxina no país e livrá-lo da corrupção.
O marketing deu certo.
Nos primeiros meses de governo, Jânio deu sinais de autoritarismo e
extravagância ao tomar medidas esdrúxulas e conservadoras – como proibir o
uso de biquínis em todas as praias do país e o de maiôs nos concursos de beleza.
Populista, ofereceu prêmio em dinheiro para os funcionários públicos que não
tivessem faltas no trabalho. As novas regras, impostas por decretos, fizeram a
rejeição do presidente disparar e sua base política ruir. Renunciou por meio de
um bilhete dirigido ao Congresso Nacional, com 24 palavras distribuídas em
cinco linhas.
Nessa época, um dos vizinhos de Carmozina no Jacarezinho era Sandoval
Gomes, de 19 anos. Cearense de Jaguaribe, popular na favela, era um jovem forte,
alto e bem-sucedido aos olhos da comunidade carente. Trabalhava na campanha
de Jânio distribuindo vassouras e santinhos e dirigia um carro de som,
divulgando o jingle do político nos morros do Rio de Janeiro: “Varre, varre,
vassourinha, varre, varre a bandalheira”. A canção tinha ritmo de carnaval e
empolgava a população. Certo dia, Sandoval apareceu no Jacarezinho com cem
vassouras e repassou dez delas a Carmozina, fazendo piada: “Não vai sair voando
por aí, hein...” Era uma referência à fama de bruxa, já em ascensão no bairro. Ela
não gostou do gracejo, mas pegou as vassouras e repassou às vizinhas – duas
ficaram com Mariazinha, a dona do abacateiro. Quando Jânio foi eleito, Sandoval
conseguiu uma sinecura por indicação política no Palácio do Catete e se manteve
no cargo mesmo depois de o presidente perder o poder.
Em 1973, aos 32 anos, Sandoval trabalhava como motorista no gabinete do
governador do Rio de Janeiro, Raimundo Padilha (Arena), eleito indiretamente
pelos votos dos deputados da Assembleia Legislativa do Estado. Com um cargo
prestigiado pelas pessoas humildes, o servidor público passou a fazer sucesso
entre as mulheres do Jacarezinho. Foi quando Laudicéia, de 22 anos, filha mais
velha de Carmozina, interessou-se pelo rapaz. Os dois começaram a namorar
como casal de novela das seis. Andavam de mãos dadas na praça. Assistiam à TV
na sala sempre vigiados pela família dela. Para o casal dar um beijo, era um
sacrifício. Chicão não permitia. Alegava que o beijo era a porta de entrada para
saliências. Mesmo assim os dois conseguiam trocar carícias no fundo do quintal.
Certo dia, Sandoval marcou um encontro com Laudicéia na praça, mas ela não
teria como comparecer na hora marcada por causa de um problema doméstico.
Para não deixar o namorado esperando, ela mandou Flordelis, com 12 anos na
época, avisar o rapaz. A menina deu o recado e Sandoval demonstrou
descontentamento. Flor começou a balançar a blusa insistentemente, reclamando
do excesso de calor. Sandoval a convidou para tomar sorvete, mas ela declinou
do convite. “Meu pai não deixa eu sair com homens mais velhos”, justificou
Flordelis. O motorista aceitou a negativa e se afastou. Ela interpelou com uma
pergunta ingênua: “Será que tem sacolé de chocolate?”. Sandoval e Flordelis
foram até a sorveteria. De lá, ele a levou de carro para a casa dos pais. No
caminho, Sandoval começou a pegar no próprio pênis por cima da calça até ficar
excitado. Perguntou se ela queria chupá-lo. Flor escapou do assédio e desceu do
veículo. Numa segunda investida, ela fez sexo oral no motorista. Após o ato, Flor
fez uma chantagem: “Se você não terminar o namoro com a minha irmã, vou
contar ao meu pai que você me forçou”. Uma semana depois, Sandoval deu um
fora em Laudicéia dizendo estar apaixonado por Flordelis. Chicão proibiu o
namoro e ainda ameaçou o motorista de morte. Mas isso não foi suficiente para
desfazer o enlace amoroso entre os dois. Sandoval teve uma aliada. Carmozina
passou a acobertar o namoro da filha pré-adolescente com o motorista,
acreditando que a relação poderia evoluir para um casamento. Era comum a
bruxa pedir dinheiro a Sandoval em troca do segredo. Ao esconder o casal, a
matriarca fazia um alerta: não devia haver sexo antes da união no religioso. Os
dois namoravam no quintal à luz do dia, sob os galhos frondosos do abacateiro
de Mariazinha, sentados em um banquinho de madeira. Os encontros eram
sempre à tarde, quando Chicão estava no trabalho. A bruxa passava lá e dava
instruções aos dois pombinhos: “Vocês têm de conversar bastante antes de
noivarem. Podem se beijar, mas com muito respeito. Nada de mãos em lugares
proibidos. Deus tá vendo tudo lá do alto! Até quando a gente está entre quatro
paredes, no escuro e debaixo das cobertas, estamos sendo observados por Ele.
[...] Sexo, só depois do casamento e apenas para procriar, conforme está nos
escritos sagrados. Daqui a alguns meses, a gente vai até o pastor Demóstenes
Assumpção formalizar o noivado”. De mãos dadas, Sandoval e Flordelis ouviam
o sermão da bruxa com atenção. Quando Laudicéia descobriu que o ex estava
com a irmã mais nova, teve uma crise de choro. Carmozina a consolou dizendo
que ela escolheu Sandoval, mas infelizmente não havia sido escolhida por ele. “A
vida amorosa de uma mulher é cheia de dissabores, filha”, consolou a mãe.
Sandoval e Flordelis faziam sexo oral no carro, de forma recorrente. Com o
tempo, ele começou a insistir para a relação evoluir, apesar das restrições
impostas por Carmozina, pois o namoro estava ficando sem graça. “Você quer?”,
perguntava ele. “Querer eu quero, mas não posso por causa de Deus”, ponderava
Flordelis. O funcionário público começou uma conversa fiada dizendo à
namorada que o sexo proibido por Deus era o reprodutivo, ou seja, o vaginal.
Por essa lógica, eles estariam liberados para a prática do sexo anal. Flordelis
concordou e passou a transar com Sandoval todos os dias na casa dele. Os dois
chamavam atenção porque Flor era uma menina baixinha e magricela, enquanto
Sandoval era um adulto alto e forte. A discrepância física entre os dois lembrava
a do casal formado por Carmozina e Benedicto, o militar com quem ela se
relacionou forçada pelos pais na infância. As primeiras relações sexuais de
Flordelis e Sandoval foram dolorosas para ela porque ele tinha o pênis muito
grande. O “noivo” insistia em penetrá-la no ânus mesmo assim. Flor dizia não e
não, mas Sandoval usava força bruta e estuprava a garota diariamente. Para se
livrar da dor anorretal, ela sentiu-se obrigada a fazer sexo vaginal, mas o
desconforto continuou e os estupros ficaram ainda mais frequentes. Com fortes
dores e sangramentos, Flor procurou por Laudicéia e perguntou em tom de
segredo se ela sentia dores ao transar com ele na época em que namoravam.
“Você está louca? Nós nunca fizemos amor!”. Em choque, a irmã contou para
Chicão, pontuando o fato de o namoro clandestino ser acobertado pela mãe. O
patriarca fez uma reunião com dez músicos do Conjunto Angelical e falou sobre
os estupros sofridos pela filha, que àquela altura já cantava acompanhada pela
banda. Sandoval tocava baixo nas horas vagas e pedia de forma recorrente uma
chance para se apresentar com os rapazes da igreja. Chicão marcou uma reunião
com ele para realizar um teste no domingo à noite. Tratava-se, no entanto, de
uma emboscada: o “noivo” de Flordelis levaria uma surra logo após o culto. De
orelhada, Laudicéia ouviu dentro de casa o plano para espancar Sandoval. Ainda
apaixonada por ele, resolveu alertá-lo. Agradecido pelo aviso, ele deu um longo
beijo na moça, arrumou a mala às pressas, pegou o carro e desapareceu do
Jacarezinho. A primeira filha de Carmozina se ofereceu para ir junto, mas ouviu
uma negativa do fugitivo. “Você é muito velha pra mim. Eu gosto de novinhas”,
justificou – e ele era nove anos mais velho do que ela. Segundo Mariazinha,
Sandoval teria voltado para o Ceará. Mas havia quem dissesse tê-lo visto pelos
lados do morro da Providência, na região portuária, de mãos dadas com outra
criança.
A relação com um parceiro vinte anos mais velho, marcada por estupros e
violência, aflorou a sexualidade de Flordelis, exatamente como ocorreu com
Carmozina. Na adolescência, a garota desenvolveu uma compulsão por sexo,
estigmatizada por comportamentos impulsivos e obsessivos. De acordo com um
estudo do psiquiatra Táki Cordás, professor dos programas de pós-graduação do
Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, a exposição de
crianças ou pré-adolescentes ao sexo de forma extremamente precoce as torna
mais propensas a desenvolver transtornos alimentares, como compulsão (comer
demais ou de menos) e bulimia, depressão e até alterações nas funções cerebrais
logo cedo, comprometendo a relação entre hipotálamo, hipófise e adrenal, o
circuito do estresse. Cordás integra o Programa de Neurociências e
Comportamento do Instituto de Psicologia da USP e coordena o ambulatório
dos transtornos do impulso (AMITI) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “A sexualização infantil leva a
mudanças de comportamento não apenas na criança, mas em toda a sociedade.
[...] Quando o menor se coloca como um objeto desejado, abre-se uma
prerrogativa para o assédio e abuso por parte dos adultos”, avalia o médico. A
psicanalista Karin Szapiro, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), associou a sexualidade precoce a
uma vida adulta cuja maior característica pode ser a falta de emoções,
principalmente quando o fenômeno está relacionado a eventos traumáticos,
como os estupros sofridos por Flordelis e Carmozina na fase final da infância.
Para Sigmund Freud, pai da psicanálise, trauma é um acontecimento definido
pela intensidade e pela incapacidade de a pessoa reagir de forma adequada. É um
transtorno, um atropelamento e um excesso de efeitos prejudiciais e duradouros
na organização psíquica da pessoa. Sendo assim, a erotização precoce aciona
impulsos sexuais de maneira inapropriada na fase adulta. “Isso atropela as fases
do amadurecimento e do desenvolvimento, prejudicando diretamente o processo
de aprendizagem afetiva do indivíduo”, destaca Szapiro. Segundo os especialistas,
a sexualidade está presente em todos os estágios do desenvolvimento humano.
No entanto, deveria ser canalizada para a construção das emoções, das relações
sociais, da experimentação de papéis e do desenvolvimento da afetividade.
Quando a vida sexual começa cedo demais, acaba desviando a pulsão sexual
exclusivamente para o erótico, o excitante, o sensual. Essas análises são
fundamentais para entender como Flordelis desenvolveu a vida afetivo-sexual na
adolescência e, principalmente, em sua fase adulta.
Livre de Sandoval, Flordelis se envolveu simultaneamente com um padeiro
autônomo chamado Valdeci e um alfaiate conhecido no Jacarezinho como Dora.
Com nome unissex, era comum o profissional surpreender os clientes quando
batiam na porta do seu ateliê de costura. A maioria acreditava que se tratava de
uma mulher. Dora não ligava, a não ser quando alguém o chamasse de
costureira. Aí sim, ele descia das tamancas, como costumava dizer. Os dois
rapazes tinham entre 25 e 30 anos. Frequentavam a mesma igreja da Assembleia
de Deus na qual Flor, de 14 anos, congregava. Ela, inclusive, soltava a voz
assiduamente nos cultos noturnos. Para organizar a vida afetiva, ela montou uma
escala de encontros e conseguia sexo praticamente todos os dias com os dois
namorados, em horários alternados. Mas nem sempre as coisas saíam conforme
o planejado. Certa vez, Flor trocava beijos ardentes com Dora na entrada de um
beco da favela quando Valdeci passou vendendo pão numa bicicleta cargueira. O
flagrante causou um bate-boca que evoluiu para luta corporal, apartada por
vizinhos. Com raiva e ainda com as camisetas rasgadas, os dois pretendentes
pediram a Flor que optasse por um deles. Esperta, ela os levou até um canto mais
reservado e confidenciou aos prantos amá-los na mesma proporção. “Não tem
como fazer uma escolha. Vocês são homens bem diferentes. Um é delicado e o
outro, mais rústico. Ou seja, vocês se completam”, argumentou Flor, enquanto
enxugava as lágrimas. Os jovens se entreolharam e ficaram em silêncio. Com a
pancadaria, a bicicleta havia caído e espalhado dezenas de pães pelo chão da rua.
Valdeci começou a juntá-los com a ajuda de Flordelis, que propôs namorar o
alfaiate à tarde e o padeiro à noite. Os rapazes primeiro rejeitaram a proposta,
depois ouviram argumentos sobre os desprendimentos do amor e finalizaram a
discussão definindo horários para o triângulo afetivo, cuja maior característica
seria a transparência. Para selar a tríplice aliança, Dora, solidário, também
começou a juntar do chão os pães de seu rival. Como eram quase 16 horas no
momento do acerto, o alfaiate pediu ao padeiro que o deixasse em paz com a
namorada, já que estava em seu turno de namoro. Valdeci pegou a bicicleta e
saiu gritando para os moradores do bairro que tinha pão quentinho saído do
forno, sumindo no emaranhado de casebres.
Mesmo feliz com os dois namorados, Flor não deixava de flertar com outros
homens, incluindo os integrantes do Conjunto Angelical e os amigos de
Amilton, seu irmão. Segundo dizia na época, fazia isso para aperfeiçoar a
sedução. Três meses depois do barraco na favela, Dora, o alfaiate, conseguiu um
emprego de tempo integral num ateliê em Botafogo e pediu a Valdeci, o padeiro,
para trocar o turno do namoro. Ele não aceitou. Para não ficar no prejuízo, Flor
teve a ideia de namorar os dois juntos na parte da noite, sugerindo a formação de
um casal de três. No início, ambos recusaram. “Nem com uma arma apontada
para a minha cabeça eu vou tirar a roupa na frente de outro homem!”,
argumentou Valdeci. Flor ensaiou dispensar o padeiro para ficar só com o
alfaiate e ele cedeu. Num outro encontro no beco, eles discutiram as regras para
o novo modelo de relação – como iriam dividir a cama, por exemplo. “Contanto
que essa costureira não encoste em mim, tá tudo certo”, ponderou Valdeci,
másculo, grosseiro e viril. “Costureira é a sua mãe! Sou alfaiate! E fica tranquilo,
que nem de homem eu gosto. [...] Só estou aceitando essa pouca-vergonha
porque não consigo viver sem a minha Florzinha”, pontuou Dora, delicado,
romântico e afetuoso.
O relacionamento triangulado logo virou fofoca no Jacarezinho, porque os
três sentavam lado a lado nos cultos dominicais da Assembleia de Deus e saíam
de lá sempre juntos. Numa tarde, a bicicleta de Valdeci passou pelas vielas do
Jacarezinho com os três sobre ela, aumentando os burburinhos sobre a relação
suja e pecaminosa aos olhos de Cristo. À boca pequena, Flordelis passou a ser
chamada na comunidade evangélica de Dona Flor, em alusão à personagem da
atriz Sônia Braga no filme Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto,
grande sucesso nos cinemas de todo o país, exibido a partir de 1976. Em um dos
cultos, ela viu uma obreira da Assembleia de Deus comentando sobre as orgias
do trisal. No púlpito da mesma igreja, Flor provocou os fiéis entoando versos da
música O que será, de Chico Buarque. Na época, a canção era difundida nas
rádios de forma maciça na voz da cantora Simone. Um trecho da letra diz: “O
que será? Que será? O que não tem governo, nem nunca terá. O que não tem
vergonha, nem nunca terá. O que não tem juízo...” A música fazia parte da trilha
sonora do filme de Bruno Barreto. Flor cantou afinadíssima, com voz sensual,
fitando o alfaiate e o padeiro, sentados lado a lado. A cantora estava
acompanhada do Conjunto Angelical e foi aplaudida de pé pelos fiéis.
Após a performance musical, o trisal do Jacarezinho ficou mais descarado.
Na nova fase do namoro, eles passaram a fazer sexo no mesmo colchão, sempre
na casa de Dora, que morava sozinho e tinha uma cama de casal larga. No
entanto, a trinca não durou muito. Certo dia, eles combinaram um encontro às
20 horas. O padeiro e o alfaiate, como sempre, foram pontuais. Florzinha atrasou
quase duas horas porque teve uma agenda cheia. Foi à escola pela manhã, ao
culto à tarde, ajudou nos atendimentos da mãe e ainda teve ensaio com o
Conjunto Angelical. Ao chegar para o compromisso, tirou os sapatos e os deixou
no pátio. Com uma Bíblia na mão, abriu a porta da rua bem devagarinho e
entrou na sala sem fazer barulho. Rumo ao quarto, deparou-se com uma cortina
de tecido fino cobrindo a entrada da alcova. Ao puxar o pano, Flor flagrou os
dois namorados transando romanticamente sobre um tapete felpudo, tendo ao
lado um garrafão de vinho tinto suave Sangue de Boi e dois copos americanos,
além de diversos tipos de pães e frios. Como ela mesma havia dito em outro
momento, a cena de sexo mostrou que o padeiro e o alfaiate realmente se
completavam.
Estarrecida, Flor gritou, esperneou, tentou espancá-los, foi contida, teve
taquicardia, quebrou os móveis do quarto e o garrafão de vinho. Descabelou-se,
sentiu falta de ar e teve um princípio de desmaio. Chorou de soluçar, desmaiou
novamente e recobrou a consciência abanada pelos dois. Recuperada, a mulher
traída recorreu à Bíblia para condenar a relação homoafetiva entre os
namorados. “Vocês vão morrer carbonizados no inferno, seus veados pecadores.
A Bíblia pune a homossexualidade com a morte!”, berrou Flordelis, como se
estivesse pregando para multidões. O alfaiate rebateu, enquanto vestia a cueca:
“Lá na nossa igreja têm muitas bichas, inclusive pastores. Você sabe disso. E
alguns deles fazem outra interpretação dessa sentença”. Flordelis abriu a Bíblia
para argumentar melhor. Passou a ponta dos dedos na saliva da língua e folheou
o livro sagrado até chegar a Levítico 18:22-24: “Vocês estão copulando feito
homem e mulher. Aqui diz que isso é uma abominação. Há outra interpretação
para isso, suas maricas do inferno?”, questionou ela enquanto bebia um copo
com água e açúcar servido por Valdeci, já vestido. “Você está equivocada, amor.
Precisa estudar. Na época em que a Bíblia foi escrita, ‘abominação’ significava
algo não vernáculo, e não o pecado propriamente dito. Além disso, Levítico
também disse que misturar tecidos de cores diferentes é uma abominação
condenada com a morte, e nem por isso as costureiras foram sacrificadas por
fazerem peças coloridas”, argumentou o alfaiate. Fora de si, Flor foi até a
máquina de costura de Dora e pegou uma tesoura. “Vocês têm de morrer! O sexo
existe para ocorrer somente entre um homem e uma mulher!”, esbravejou aos
prantos, apontando a arma branca de longe para os dois. O alfaiate contra-
argumentou ao mesmo tempo que tentava tirar a tesoura das mãos dela
delicadamente: “O pastor disse que Deus ama a todos, Florzinha,
independentemente dos pecados que cometemos”. Ela ficou ainda mais
enfurecida e tentou avançar nos rapazes outra vez, com argumentos repetidos.
“Se um homem se deita com outro homem, ambos devem ser mortos. Está
escrito na Bíblia [Levítico 20:13]”, ameaçou ela, apontando a tesoura para ambos
novamente. “O mesmo versículo diz que a mulher adúltera e as crianças
desobedientes também devem ser castigadas com a morte. E não tenho visto
infanticídio no Jacarezinho...”, insistiu o alfaiate. Sem paciência para melodrama,
Valdeci encerrou a discussão arrancando a tesoura das mãos de Flor e deu-lhe
um empurrão, declamando um versículo derradeiro: “Flor, a mesma Bíblia que
você está segurando diz que se um homem se casar com uma mulher e descobrir
na lua de mel que ela não é mais virgem, ele pode matá-la na casa dos pais a
pedradas para lavar a própria honra [Deuteronômio 22:13-30]. Como você não é
mais virgem e sonha em se casar...” Flor saiu de lá decidida a contar para toda a
comunidade evangélica que o padeiro e o alfaiate da favela eram mariconas. Com
medo de perseguição, o casal de homens – apaixonadíssimo – mudou-se para o
Morro da Babilônia, entre a Praia do Leme e a Praia Vermelha. Moraram juntos
por trinta anos, numa casa linda e modesta com vista privilegiada para o mar.
Depois do luto pela morte do pai, em 1976, e sem namorados, Flor passou a
flertar com tantos homens no Jacarezinho que ganhou no bairro os apelidos
pejorativos de “vassourinha” e “motosserra”. O jingle da campanha de Jânio
ressuscitava fortemente no carnaval e tocava sem parar no rádio e em blocos de
rua. Mas os apelidos também tinham cunho sexual. Sempre que Flor passava
pelos becos onde os rapazes se reuniam, os versos “varre, varre, vassourinha”
eram cantarolados enquanto eles sambavam e batiam palmas. Bem-humorada, a
filha de Carmozina entrava na brincadeira e dava uns passos de dança. Segundo
amigas dessa época, a especialidade de Flor era roubar os namorados alheios.
Uma delas, a costureira Quitéria de Pádua Santana, a Kiki, contou em novembro
de 2020: “Ela nunca foi uma mulher bonita, mas tinha uma energia sexual
poderosa e invejada por todas nós. Os homens olhavam e a desejavam. Ela não
precisava mover uma palha para isso. Eles ficavam loucos e ela não deixava
passar nada. ‘Varria’ todos, literalmente. Nesse caso, ‘varrer’ era uma gíria da
época e significava ‘levar para a cama’. Exemplo: a gente perguntava a uma
amiga: ‘você conhece o fulano?’ Aí a amiga respondia: ‘conheço, sim, já varri ele’.
A Flor varreu o Jacarezinho inteiro. Parecia um cio eterno. Tiro o chapéu para
ela. Sabia usar o poder sexual a seu favor, principalmente com os homens bonitos
de passagem pelo bairro. Com ela não tinha esse lance de seduzir com o olhar.
Ela chegava junto dos caras, dizia que estava a fim e transava com eles logo em
seguida. Era uma predadora. [...] Na década de 1970, as garotas do Jacarezinho
escondiam seus namorados da Flor. Se os homens vissem a ‘motosserra’
passando na rua, eram seduzidos por ela e derrubados imediatamente”. Mas qual
era a semelhança de Flor com a motosserra? Não deixava tronco algum de pé?
“Era brincadeira da rapaziada. Coisa de gente de mente suja, sabe?... Não tenho
nem coragem de explicar”, esquivou-se Kiki, aos risos.
* * *
* * *
A
favela do Jacarezinho faz limite com o Complexo de Manguinhos, na zona
norte do Rio de Janeiro. Também dominada pelo Comando Vermelho
(CV) e mergulhada na pobreza, a comunidade vizinha está localizada no
entroncamento das avenidas Brasil, Leopoldo Bulhões e Dom Hélder Câmara,
via divisora dos dois bairros. Entre a segunda metade da década de 1980 e a
primeira de 1990, Manguinhos foi marcado por grandes tragédias, como
chacinas, inundações e incêndios. Nativa do bairro, Dulcivânia de Colares tinha
16 anos no final da década de 1980. Era uma das melhores amigas de Simone e
vivia com os pais e dois irmãos num barraco de lona erguido em um
assentamento da prefeitura do Rio, depois transformado no Conjunto
Habitacional Nelson Mandela. Simone conheceu Dulcivânia numa festa
promovida por traficantes no Complexo da Maré. Com o tempo, a amizade entre
as duas se fortaleceu e a jovem passou a frequentar a casa de Carmozina, para
onde Flordelis voltou depois de se separar do pastor Paulo Xavier. A bruxa
simpatizou com a garota tão logo ela começou a falar da vida difícil em
Manguinhos. Em maio de 1988, uma chuva torrencial fez os rios Faria Timbó e
Jacaré subirem 3 metros, destruindo os barracos dos moradores, inclusive o da
família de Dulcivânia. A água se misturou ao esgoto do Canal do Cunha. Quando
os dois rios baixaram, sobrou na favela uma mistura de lama fétida contendo
fezes e restos mortais de bichos. O lixo asqueroso invadiu todo o assentamento.
Os desabrigados só conseguiram reerguer suas moradias dois meses depois de a
lama contaminada secar.
Os moradores ainda se recuperavam da enchente quando foram
surpreendidos por um incêndio de grandes proporções, no final de 1989. O
fogaréu começou no Parque João Goulart e destruiu todos os barracos erguidos
no terreno da Associação dos Caminhoneiros do Rio de Janeiro (Ascarj), onde
morava a família de Dulcivânia. Esse segundo infortúnio ocorreu enquanto os
moradores esperavam pelo título definitivo da terra. Depois da segunda
calamidade, a prefeitura resolveu transferir os sem-teto para o Parque das
Missões, no município de Duque de Caxias, a 10 quilômetros de Manguinhos.
Dulcivânia resistiu a fazer a mudança porque não queria ficar longe do
Jacarezinho, onde a sua vida acontecia. Na favela vizinha, ela frequentava os
cultos da Assembleia de Deus, esbaldava-se nos bailes funk com Simone e
namorava o diácono e líder comunitário Elton Júnior, de 27 anos. Carmozina
percebeu a tristeza de Dulcivânia e a convidou para morar em sua casa. As duas
amigas comemoraram, mas a bruxa fez questão de conversar com a mãe da
menina. “Vou adotar você como se minha filha fosse”, anunciou Carmozina. A
nova integrante da família Motta teve vontade de soltar fogos de artifício diante
de tanta alegria, pois estava trocando uma vida miserável em Manguinhos por
uma casa de alvenaria no Jacarezinho. Nessa época, Carmozina já havia
construído um segundo pavimento para atender seus clientes e tinha mais
espaço. A garota dividiu um quarto com Abigail (Eliane) e Laudicéia, a outra
adotada.
No novo lar, Dulcivânia chamava Carmozina de mãe. Brincando, dizia para
Simone respeitá-la, pois agora era sua tia. As duas caíam na gargalhada com a
piada. A vida das amigas era estudar pela manhã, trabalhar ajudando Carmozina
no período da tarde e frequentar os cultos da Assembleia de Deus à noite. Após o
assassinato de Anderson, o traficante, Simone levou o namoro com o outro
Anderson, o “do Carmo”, mais a sério. Ele era menor aprendiz do Banco do
Brasil e frequentava a mesma igreja. Precoce como a maioria dos jovens da
favela, o casal tinha vida sexual ativa. Anderson do Carmo era amigo de Elton, o
diácono da Assembleia de Deus e namorado de Dulcivânia. Os dois casais faziam
programas juntos com frequência, como sair para dançar e pegar sol na praia do
Leme. Apesar de não ser virgem, Dulcivânia não tinha uma vida sexual tão
movimentada quanto a de Simone. Com desejo à flor da pele, ela até tentava
transar com Elton, mas ele se recusava por uma condição, segundo dizia, imposta
por Deus. “Só transo depois de me casar. É o que a igreja determina”, justificava
ao receber as investidas de Dulcivânia. A namorada tentava convencê-lo com
uma falácia comum entre protestantes progressistas: havia outras formas de fazer
amor, sem penetração vaginal. “Nem pensar!”, sentenciava o diácono. Jovem,
atraente e comunicativo, ele não caía na tentação da carne porque tinha certeza
de que o caminho seria sem volta. Nessa época, com muito sacrifício, ele se
masturbava durante o banho.
Num domingo de sol, os quatro amigos foram acampar numa praia deserta
no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio de Janeiro. Levaram duas
barracas e bebidas. À noite, Simone e Anderson transaram por mais de quatro
horas, fazendo muito barulho. Na barraca ao lado, Dulcivânia tentou despertar o
interesse de Elton tirando toda a roupa, alegando excesso de calor. Ele vestia
bermuda e virou para o lado. Embriagado, dormiu um sono profundo.
Dulcivânia acordou antes do amanhecer e percebeu que o namorado estava com
a bermuda meio aberta e o pênis ereto. Aproveitou para fazer sexo oral até ele
ejacular. O rapaz acordou logo em seguida e deu uma bronca na namorada.
Envergonhado e sentindo-se desrespeitado, terminou o namoro naquele mesmo
instante, dentro da barraca. Anderson e Simone tentaram contornar a situação,
dizendo que sexo é algo natural e divino. “Todo mundo faz. Até os monges, os
padres e os pastores da igreja. Façamos amor. Vamos amar”, cantarolou Simone.
Não teve jeito. Elton foi embora sozinho e ficou sem falar com Dulcivânia por
meses.
Naquela época, o jovem vislumbrava uma carreira de líder religioso na
Assembleia de Deus. Dedicado, frequentava o culto desde a adolescência, quando
largou as drogas. Fazia trabalhos voluntários, assumiu a função de obreiro e
tentava alcançar o posto de presbítero, para mais tarde, quem sabe, ser
promovido. Seu mentor na Assembleia de Deus do Jacarezinho era o pastor e
líder comunitário Demóstenes Assumpção, de 50 anos. Certa vez, Elton pediu ao
chefe para dar um testemunho contando como a religião foi fundamental para
ele largar as drogas de forma definitiva. Quando tinha 16 anos, estava totalmente
dependente de cocaína. Sem dinheiro para bancar o vício, passou a trabalhar
como “vapor” numa das bocas do Comando Vermelho. Foi expulso porque a
facção não aceitava viciados atuando perto da linha de frente. Num bairro
dominado pelo tráfico, Demóstenes não aceitou a proposta de testemunho feita
pelo pupilo. A igreja e o Comando Vermelho sempre mantiveram uma relação
cordial, embora tensa. Na década de 1980, por exemplo, nenhum templo era
erguido na favela, perto das bocas, sem o aval da bandidagem. Na década
seguinte, os traficantes passaram a lavar dinheiro no caixa das igrejas, como será
mostrado mais adiante. Demóstenes orientava os sacerdotes protestantes
egressos do tráfico a esconder dos fiéis seu passado criminoso. “Esse tipo de
testemunho polui moralmente os verdadeiros evangélicos. O importante é que
você encontrou Deus aqui na nossa igreja e foi salvo das garras do Diabo. [...]
Você está renovado, Elton, pois deixou de carregar o estigma de malfeitor e se
tornou uma pessoa do bem. É isso que importa”, argumentou o religioso.
Flordelis e Rose, a ex-namorada de Amilton, também congregavam na
Assembleia de Deus comandada por Demóstenes. As duas sonhavam em se
tornar pastoras, embora pesasse contra ambas o passado “pecaminoso”, de
conhecimento público. Flor ainda carregava o apelido de “vassourinha”. Rose era
lembrada, inclusive pelos líderes, de quando namorava Amilton e encurtava a
saia para mostrar as coxas grossas. No entanto, era comum essas ovelhas
desgarradas serem acolhidas pelos rebanhos das igrejas evangélicas – desde que
elas demonstrassem, no discurso e na prática, um estilo de vida totalmente
dedicado a Deus, como vinham fazendo Flor e Rose. Se o crente levasse uma vida
dupla, ou seja, com um pé na igreja e outro na devassidão, os pastores até faziam
vista grossa, desde que os pecados da carne fossem mantidos em segredo. Caso
contrário, o fiel teria de dar um testemunho de arrependimento e regeneração no
altar. Rose, por exemplo, já havia dado vários depoimentos lembrando a época
em que vivia de mãos dadas com o Diabo, transando todos os dias, mergulhada
nas águas quentes do inferno. “Encontrei Jesus, purifiquei a alma e me tornei
novamente uma serva de Deus, com uma vida totalmente dedicada à igreja”,
disse ela num culto dominical abarrotado de ovelhas do rebanho de Demóstenes.
O religioso lhe deu esperanças de, “um dia, quem sabe”, promovê-la a pastora,
apesar de a Assembleia de Deus ainda não ordenar mulheres. Os chefes iludiam
as moças para não perdê-las para congregações concorrentes, como a igreja
apostólica Renascer em Cristo, fundada na década de 1980, aberta a mulheres em
cargos de liderança. Outra instituição, a igreja apostólica Fonte da Vida,
inaugurada nos anos 1990, também adotava o ministério feminino e até fazia o
seu marketing em cima disso. Nos templos da Assembleia de Deus, os sacerdotes
tentavam convencer as mulheres que sonhavam com o cargo a se casarem com
um ministro e assumirem o posto de “auxiliadora”, uma espécie de primeira-
dama religiosa. Outros líderes engambelavam as mulheres com o título de
“pastora de consideração”, uma perfumaria tão sem importância que sequer era
remunerada. Foi esse o cargo prometido a Flordelis na Assembleia de Deus, caso
conseguisse sepultar definitivamente a fama de “predadora sexual” disseminada
na favela.
Para limpar sua imagem, a cantora envolveu-se em atividades filantrópicas
no Jacarezinho. Mas uma fofoca sobre seu mais recente escândalo eclodiu e
trouxe perdas e danos a ela: seu marido, Paulo, pastor na igreja de Demóstenes,
flagrara Flor na cama com Beto, o comerciante, e ainda fora convidado a
participar da orgia. Com o forte tapa no rosto que levou do marido, Flor caiu da
cama. Com medo de também apanhar, Beto correu nu, pegou uma arma
carregada no móvel de cabeceira e apontou-a para a cabeça do rival. Paulo não se
intimidou e seguiu em direção a Beto. Para assustá-lo, o comerciante deu um tiro
para o alto e o barulho do disparo acordou Marilene, dopada com o remédio
colocado por Flor em seu copo de cerveja. Nua, Flor enrolou-se num lençol
enquanto Beto estava pronto para dar mais um tiro. Marilene, com a saúde
mental debilitada, quebrava objetos no quarto. Fora de si, a mulher traída pegou
a arma do marido e mirou Flordelis, mas acabou desmaiando. Internada às
pressas, definhou até morrer, três meses depois, de depressão.
Mesmo envergonhado, Paulo fez questão de contar o ocorrido a Demóstenes.
O líder pediu que o casal mantivesse a história sob o mais absoluto sigilo, porque
traição era um pecado imperdoável, segundo a Bíblia. “Deus perdoa filho que
mata a mãe e mãe que mata o filho. Mas Ele não passa pano para chifre,
principalmente quando o corno é o homem”, comentou Demóstenes. Àquela
altura, porém, era impossível manter segredo sobre a traição de Flor. Os
comentários maldosos sobre o flagrante na casa de Beto circulavam até nas
comunidades vizinhas. Irritado, o pastor mandou chamar Paulo e Flordelis.
Naquela época, era comum o religioso promover terapia de casais. Bravo, ele
intimou a cantora adúltera: “Mantenha essa vida de puta no calabouço, sua vaca.
Caso contrário, você será expulsa da comunidade a pedradas, feito Maria
Madalena!”. Chorando, Flor prometeu nunca mais escandalizar o reino de Deus.
Derramando uma cachoeira de lágrimas, ela encarou o marido e pediu perdão de
joelhos. “Meu amor. O ódio e a raiva; a mágoa e o rancor tornam você um
homem pequeno. Já o perdão te trará forças para fazer de você uma alma bem
maior do que você era. Perdoe-me para você prosperar como marido e como
homem”, aconselhou Flordelis, ainda chorosa, mas esboçando um riso cínico
pelo canto da boca. Paulo sentiu vontade de esmurrá-la, mas se conteve:
– Como posso perdoar essa puta de igreja? – questionou Paulo.
– Olha o palavreado chulo na Casa de Deus! Contenha-se! – reprovou
Demóstenes.
– Sabe qual é o apelido dessa vadia na comunidade, pastor? – gritou o
marido, enfurecido.
– Não, mas posso imaginar... – devolveu Demóstenes.
– Vassourinha!
– Valha-me Deus! Que horror! – espantou-se o religioso.
– Já nem sei se esses filhos são meus! – desconfiou Paulo.
– Pai é quem cria, meu filho!
– Agora me fale, pastor: que moral tem um homem casado com uma mulher
chamada na rua de vassourinha? – perguntou Paulo.
– Acho que isso é relativo... Você pode estar exagerando – ponderou
Demóstenes.
– Exagerando?! Essa mulher tem outro apelido que até Satanás tem vergonha
de falar!
– É mesmo? Que apelido é esse?
– Motosserra! – exclamou o marido, aos prantos.
Contendo o riso, Demóstenes tentou apaziguar. Contrariando o que havia
dito antes, referiu-se às escrituras sagradas (Mateus 18:21-22) para tentar
reconciliar o casal: “Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: ‘Senhor, quantas
vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete
vezes?’. Jesus respondeu: ‘Eu digo a você: não até sete, mas até setenta vezes
sete’”. A princípio, Paulo não se comoveu com a citação bíblica. Disse preferir
dormir abraçado ao Diabo do que se deitar na mesma cama com Flordelis.
Demóstenes chamou Paulo a um canto e pediu que ele não terminasse com
Flordelis em meio a um escândalo, pois isso mancharia a imagem da igreja e
poria o seu posto de pastor em xeque. “Fique mais um tempo. Aproveite essa
fama de piranha que ela tem, pois você é o esposo. Depois de alguns meses,
quando ela estiver um bagaço, você pula fora e casa com outra”, aconselhou o
líder religioso. Obediente, Paulo aceitou a sugestão e se reconciliou com a esposa.
Nas primeiras semanas, o casal sequer se falava e Flor foi proibida de sair de casa.
Com o tempo, Paulo a liberava para ir ao comércio e à casa da mãe. Mas a saída
da adúltera era cronometrada no relógio. Se demorasse na rua mais do que o
tempo estipulado, Flordelis levava tapas no rosto, inclusive na frente dos filhos. A
violência doméstica seguia em escalada. Alegando que Flordelis era viciada em
sexo, Paulo passou a estuprá-la com violência diariamente. Quando a
reconciliação havia completado um ano, ele conheceu uma mulher na igreja e
finalmente rompeu definitivamente o casamento com Flordelis, em meio a uma
discussão violenta. Paulo arrumou suas coisas e seguiu com a nova companheira
para a Assembleia de Deus no município de São Benedito, no Ceará, onde
continuou a carreira religiosa e desapareceu. Por causa dos casos extraconjugais
da esposa, Paulo pôs em xeque se Flávio, Simone e Adriano realmente seriam
seus filhos, apesar de tê-los registrado no cartório. Por causa dessa suspeita, o
suposto pai não quis saber de notícias dos filhos. A desconfiança da paternidade
pairava mais sobre Simone e Adriano, pois Flávio era parecido com o pastor.
Mais tarde, Flor descobriu que Paulo não passava de um hipócrita, assim como a
maioria dos líderes religiosos da igreja de Demóstenes. Desde sempre, ele
mantinha uma coleção de amantes protestantes. Com duas delas, inclusive, o
sonso teve filhos.
Na década de 1990, escândalos sexuais no seio da Assembleia de Deus do
Jacarezinho, a propósito, eram mais comuns do que se imaginava. A cúpula da
igreja ficava irritada e punia somente quando as notícias negativas vazavam para
a imprensa. Depois do sumiço do pastor Paulo, Demóstenes resolveu dar mais
uma chance a Flor porque tinha sido muito amigo de seu pai, Chicão. E por ver
futuro promissor em sua carreira de cantora gospel. Havia, ainda, um segredo
inconfessável: Demóstenes queria levar a “vassourinha” para a cama e comprovar
se ela era mesmo tudo aquilo que falavam. Solteira novamente, Flordelis deu um
tempo na vida libertina e investiu nas atividades religiosas juntamente com Rose.
Nos cultos, as duas se empenhavam como obreiras bíblicas para tentar alcançar
melhores posições no organograma local o mais rápido possível. Na liturgia da
Assembleia de Deus, cabia aos obreiros auxiliar o pastor durante os cultos e nas
atividades fora da igreja. Eles recebiam meio salário mínimo da época e eram
vistos como autoridades espirituais, por serem responsáveis também pelas
orações e intercessões. Flordelis e Rose brilhavam na função.
A vida das duas na igreja começou a estagnar quando Demóstenes chamou
Elton para discutir planos de carreira para o diácono. O líder anunciou a
construção de uma nova igreja na Rua do Canal, bem próximo do Rio Jacaré. O
jovem era o candidato ideal para assumir o cargo de pastor no local, pois tinha
talento e se relacionava bem com os bandidos do Comando Vermelho, com
quem mantivera laços num passado recente. Nenhum empreendimento, nem
mesmo os religiosos, prosperava no Jacarezinho sem o aval dos traficantes. Além
dessas habilidades, Elton pregava com excelente oratória, tinha seguidores e
realizava trabalhos voluntários nas redondezas. Também distribuía sopa para os
sem-teto e encaminhava crianças de rua para abrigos, facilitando a adoção. A
Assembleia de Deus tinha pressa em inaugurar uma nova filial na Rua do Canal
porque a concorrência avançava na favela: tanto a Igreja Universal do Reino de
Deus quanto a Igreja Pentecostal Deus é Amor, conhecidas no Jacarezinho pela
agressividade em roubar fiéis de outras instituições religiosas, tinham obras nas
proximidades, provocando uma disputa por ovelhas. Elton ficou empolgado com
os planos de seu mentor. Na reunião, Demóstenes pediu ao pupilo que acolhesse
Flordelis e Rose nessa nova empreitada. Em seguida, o líder religioso iniciou uma
entrevista peculiar para saber se Elton tinha, de fato, as credenciais para se tornar
sacerdote de uma instituição respeitada como a Assembleia de Deus:
– Você é virgem?
– Sou sim, senhor!
– Você bate punheta?
– [silêncio]
– Responde, servo de Deus!
– Todos os dias, senhor.
– Você nunca fez sexo com mulheres?
– Nunca!
– Nem quando você vivia no inferno, consumindo e vendendo drogas?
– Nem nessa época, senhor!
– Você é homossexual?
– [Silêncio]
– Eu perguntei se você é veado!
– [Silêncio]
– Você já transou com homens, porra?!
– Já! Mas me livrei desse pecado quando encontrei Jesus na igreja, senhor.
– Cadê aquela sua namorada?
– A Dulcivânia? Terminamos, senhor.
– Então volte para ela ou arrume outra vadia, porque a minha igreja não
ordena pastor solteiro. Muito menos mariconas assumidas!
Depois da entrevista, Elton foi bater na casa de Carmozina atrás de
Dulcivânia. Para reatar o namoro, ela impôs como condição transar todos os dias
e começar a prática sexual imediatamente. Ao ouvir um pedido para esperar pelo
menos até o casamento, a jovem não aceitou. Ele, então, falou de seus planos
religiosos e deu aval para a garota fazer sexo com outros rapazes, desde que fosse
às escondidas. Dulcivânia era apaixonadíssima por Elton desde a primeira vez
que o viu. Tanto que nem teve vontade de se relacionar com outros homens, pelo
menos naquele momento. Seis meses depois de reatar o namoro, o rapaz subiu
ainda mais na carreira e foi ordenado presbítero da Assembleia de Deus. Em
pouco tempo ele já era evangelista, o último estágio antes de se tornar pastor.
Ganhava um salário mínimo por mês. Com a trajetória de líder religioso
evoluindo e dinheiro no bolso, Elton selou noivado com Dulcivânia e a data do
casamento foi marcada para dali a nove meses, após uma cerimônia de troca de
alianças. O casal tinha muita afinidade. Quanto mais próximo do cargo cobiçado,
mais o crente se alinhava à conduta exigida pela igreja. Não saía mais à noite, não
ia à praia e pouquíssimas vezes falava em transar, ou seja, apenas para procriar,
deixando Dulcivânia apavorada. “Veja o exemplo da Flordelis, ‘sua irmã’. A fama
de pecadora dela percorre o bairro de cima a baixo, chegando lá no Méier. [...]
Sexo é algo sujo. Faremos só uma vez por ano e com muita responsabilidade,
porque Deus vê tudo, até o que acontece debaixo dos panos”, comentou Elton.
Dulcivânia não aguentou esperar a agenda divina do namorado e começou a
transar com um colega da escola, apesar de garantir ainda estar loucamente
apaixonada pelo jovem religioso.
Quando faltavam três meses para o casamento, Elton falou para Demóstenes
que sabotou sua homossexualidade com a prática do celibato graças à dedicação
à igreja. “Espero que você esteja falando a verdade, pois o Diabo ajuda a fazer,
mas não ajuda a esconder”, avisou o chefe. O novo templo estava em fase final de
construção. Para o acabamento da obra, etapa mais cara, líderes da Assembleia
de Deus fizeram uma vaquinha pelas bocas do Comando Vermelho. Os
traficantes colaboraram generosamente. “No Rio de Janeiro, os contraventores
sempre financiaram as obras das igrejas evangélicas e até cultos ao ar livre. O
tráfico bancava artistas de projeção nacional para fazer shows gospel na favela e
sempre pagou dízimo. O engajamento com as agremiações religiosas locais
ocorria porque havia a expectativa de um dia eles saírem da vida do crime e
precisarem da ajuda espiritual dos evangélicos”, destaca Christina Vital da
Cunha, autora do livro Oração de traficante e pesquisadora do Departamento de
Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nos arredores da futura
igreja, Elton intensificou as atividades filantrópicas. Com o auxílio de Flordelis,
Rose e outras voluntárias, começou a recolher crianças pequenas das vias
próximas. A atividade se estendeu por todo o Jacarezinho. Eles abordavam
moradores de rua com bebês de colo e pediam para levá-los. O argumento era
simples: o menor teria mais chance de sobreviver se fosse adotado por uma
família estruturada. Assim, Elton intermediava adoções clandestinas em nome de
Deus e com a anuência da igreja. As famílias beneficiadas registravam como
legítimos, em cartório, bebês e crianças de rua de até 12 anos.
Conhecida como “adoção à brasileira”, essa prática não tem respaldo legal.
Comum no passado, a irregularidade, muitas vezes, era praticada com boas
intenções, como fazia o aspirante a pastor. No entanto, a conduta é tipificada
como crime contra o estado de filiação. O artigo 242 do Código Penal descreve o
delito de dar como próprio o parto alheio e considera crime o ato de registrar
como sendo seu o filho de outra pessoa, bem como o ato de esconder ou trocar
recém-nascido por meio de remoção ou modificação de seu estado civil. A pena
prevista é de dois a seis anos de reclusão. Contudo, se o crime é praticado por
motivo nobre, a pena é diminuída para detenção de um a dois anos. Nesse caso,
o juiz pode até deixar de aplicar a punição, como já ocorreu em diversos casos
país afora. A “adoção à brasileira” era mais comum nas décadas de 1980 e 1990,
porque os pais podiam registrar as crianças quando bem entendessem.
Atualmente, as maternidades são obrigadas por lei a só liberar a saída do bebê
depois de os pais sacramentarem o registro.
Faltando seis meses para a inauguração da nova igreja, o trabalho voluntário
de Elton, Flordelis e Rose começou a enfrentar problemas. O trio tornou-se
referência em acolhimento de crianças – não precisava mais perder tempo
procurando por elas nas quebradas do Jacarezinho, pois famílias pobres,
dependentes químicos e moradores de rua faziam questão de entregar seus filhos
a eles voluntariamente. Sem abrigo suficiente para tantos menores, a atividade foi
suspensa temporariamente. Solteira, Flordelis estava morando com a mãe e os
filhos – Simone, Flávio e Adriano. A missionária tentou levar para lá um bebê de
seis meses e um adolescente de 14 anos, chamado Ítalo, mas Carmozina não
aceitou. Para que não voltassem às ruas, Elton os levou para casa. O futuro pastor
morava no Jacarezinho com a mãe, Valdinéia, de 60 anos; o pai, Beviláqua, de 75;
e o irmão, Pedrinho, de 12. A grande diferença de idade do caçula com os pais
fez com que o filho mais velho assumisse o papel paterno na criação do mais
novo desde os primeiros meses de vida. Com um problema sério na coluna
decorrente de uma queda, Valdinéia não podia carregar peso e, por isso, não
segurava o menino no colo. Sem dinheiro para contratar babá, coube ao
primogênito fazer a mamadeira, trocar fralda, dar banho e passear com Pedrinho
empurrando o carrinho de bebê. Antes mesmo de entrar na escola, a criança foi
alfabetizada em casa pelo irmão. Nas aulas domésticas, aprendeu até a fazer
contas. Quando o garoto começou a estudar, Elton o levava à escola e participava
das reuniões com os professores. Nos fins de semana, iam juntos à praia. Essa
aproximação entre os dois fazia Pedrinho chamar o irmão equivocadamente de
pai e, volta e meia, se referia aos pais verdadeiros como avós. No entanto, o
menino era corrigido imediatamente quando cometia esse lapso.
Muito contrariado, o casal de idosos deixou que o bebê e Ítalo, ambos criados
na rua, ficassem na casa por três dias, acomodados respectivamente em um berço
improvisado na sala e no quarto do mais velho. Pedrinho dormiu com os pais
idosos. À noite, Elton foi ao quintal dar um banho no pequeno. Curioso, Ítalo
levantou o colchão de sua cama e encontrou diversas revistas com fotos de
homens nus. Quando todos estavam dormindo, o adolescente foi até seu
anfitrião e deu um beijo em sua boca. O futuro pastor pôs o jovem para fora no
meio da madrugada. No dia seguinte, Ítalo encontrou Dulcivânia no ponto de
ônibus e contou a ela que seu futuro esposo era gay. Ela não acreditou. Ítalo foi
mais além: “Quando eu dormi na casa dele, a gente se beijou. Foi delicioso”,
debochou. Dulcivânia tentou agredir o garoto. “A verdade dói, né?”, provocou.
“Vai lá e olha o que tem debaixo do colchão dele”, desafiou. À noite, ela seguiu o
conselho de Ítalo e fez uma visita surpresa ao noivo. Valdinéia assistia à novela e
Beviláqua preparava o jantar. Elton fazia o dever da escola com o irmão ao
mesmo tempo que cuidava do bebê de rua. Enciumada, Dulcivânia alertou os
sogros sobre o perigo de ter um estranho dentro de casa. “A gente não tem a
menor noção de quem são os pais dele, que tipo de doença contagiosa ele tem.
Pode contaminar todos vocês, inclusive o Pedrinho”, envenenou. Valdinéia
mandou o filho se livrar do hóspede imediatamente. Dulcivânia se encarregou de
pegar o bebê e o levou até um hospital público, deixando-o no jardim, dentro de
uma caixa de papelão.
Na tarde do dia seguinte, a atitude desumana da noiva gerou uma discussão
acalorada entre o casal, no quarto dele. No auge da fúria, Dulcivânia tirou a
aliança aos prantos, jogou o anel no chão e terminou o noivado. Com medo de
perder o posto de pastor, ele pediu “pelo amor de Deus” para ela esperar um ano.
Pegou a aliança, pôs de volta no dedo da noiva, trancou a porta e os dois foram
para a cama. Mesmo com preliminares promissoras, não transaram porque ele
não teve ereção suficiente para penetrá-la. Dulcivânia saiu da cama e vestiu-se
bem devagarinho. Em seguida, levantou o colchão e pegou a coleção de revistas
eróticas de Elton. Folheou algumas delas. Ele ficou desconcertadíssimo. Sucinta,
Dulcivânia quis saber:
– Você gosta de homens?
Ele fez um longo silêncio e admitiu, balançando a cabeça. Dulcivânia fez mais
uma pergunta ao noivo:
– Foi por isso que você não conseguiu transar comigo?
– Sim.
Desolada, Dulcivânia jogou as revistas no chão, foi embora da casa do noivo
e procurou Demóstenes. A sós, ela acusou o jovem de “pederastia”. Logo, ele não
podia ser ordenado pastor. O líder religioso perguntou se ela considerava manter
o noivado e ouviu um não como resposta. Elton foi expulso da Assembleia de
Deus no mesmo dia. Não por gostar de homens, mas por não saber manter seus
segredos longe da luz do sol. Desolado, foi consolado por Rose e Flordelis. Os
três pegaram um ônibus e foram espairecer na praia do Leme. Mas os estragos
promovidos por Dulcivânia ainda nem tinham começado. Enquanto o ex-noivo
chorava na zona sul, ela fez uma visita aos pais dele, na zona norte. Na sala com
Beviláqua, Valdinéia e Pedrinho, Dulcivânia anunciou ter rompido o noivado ao
descobrir a homossexualidade do rapaz.
Nessa hora, o menino foi retirado da sala pela mãe e levado para a casa de
uma vizinha. Depois, a conversa continuou. O casal não frequentava igrejas, o
que reduziu bastante o impacto da notícia. “Eu até já desconfiava”, amenizou
Beviláqua. Valdinéia permanecia inerte. Dulcivânia falou que Elton e Ítalo, o
adolescente de rua, haviam se beijado, talvez até transado sob aquele teto. Os pais
se entreolharam meio constrangidos. A moça, então, deu a cartada final, selando
para sempre o destino do ex-noivo: “Eu li numa revista que todo gay é pedófilo.
Eles molestam crianças, sabiam? Aí fiquei pensando... É por isso que o Elton é
muito apegado ao irmãozinho. Gosta de dar banho nele trancado no banheiro.
Dorme no mesmo quarto só de cueca. Se eu fosse vocês, perguntaria para o
menino se ele já foi tocado pelo irmão”, aconselhou. O pai mandou Dulcivânia
sair. Mas a mãe, com dor na coluna, deu razão a ela. Valdinéia não tinha estudo e
nunca trabalhou. Seu passatempo predileto era assistir a novelas e ao Programa
Flávio Cavalcanti. Com essas características, segundo Elton, ficou fácil para ela
acreditar nas bobagens proferidas por Dulcivânia. Beviláqua tinha ensino médio
(antigo segundo grau), trabalhou por décadas como vendedor numa loja de
ferragens e lia jornais. Seria mais difícil convencê-lo de que todo gay é pedófilo.
Preocupada, Valdinéia foi até a casa da vizinha perguntar ao filho se Elton já
havia tocado em seu sexo. O menino, de 12 anos, assustou-se com o
questionamento e negou de forma categórica. Para evitar um novo confronto
com o ex-noivo, Dulcivânia foi embora do Jacarezinho. Pegou suas mudas de
roupa, despediu-se da “mãe” Carmozina, de Simone e Anderson, e foi morar
com os pais no Complexo da Maré.
Quando Elton chegou em casa, os pais contaram sobre a visita inconveniente
de sua ex-namorada. Ele ainda estava processando o desligamento da igreja,
quando foi expulso pela mãe sob a acusação de pedofilia, por ter supostamente
abusado sexualmente do irmão que ele tanto amava. Elton não suportou outro
baque emocional. Sentou-se no chão e desabou no choro. A mãe pediu que ele
saísse de casa o quanto antes, do contrário chamaria a polícia. Beviláqua alertou a
esposa sobre a possível injustiça. “Posso estar enganada? Posso! Mas posso estar
certa? Também posso! Na dúvida, prefiro não arriscar. Quero essa bicha longe do
meu filho”, ponderou Valdinéia. O rapaz arrumou a mala de roupas e pediu para
se despedir do irmão, que ainda estava na vizinha. O pai permitiu, mas a mãe não
deixou. Com pouco dinheiro no bolso, o jovem pegou um ônibus e foi para São
Bernardo do Campo, no ABC Paulista, onde morava uma tia idosa, irmã de
Beviláqua. Longe da família e dos amigos, ficou mais fácil assumir sua orientação
sexual. Fez curso técnico de montador de veículos no Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (Senai) e conseguiu emprego na linha de montagem
automotiva da Ford. Beviláqua nunca – em tempo algum – acreditou na
possibilidade de Pedrinho ter sido molestado sexualmente por quem quer que
fosse.
O garoto amargou um período triste, com saudade do irmão. Por cinco anos
seguidos, uma vez por mês, mesmo idoso, Beviláqua pegava um ônibus na
rodoviária do Rio de Janeiro e levava Pedrinho para encontrar Elton em São
Paulo. Os três passeavam no Parque Ibirapuera e visitavam o zoológico e parques
aquáticos. Nos feriados prolongados, o mais velho viajava até o Rio para levar
Pedrinho à praia. Esses encontros aconteciam às escondidas da mãe, que nunca
aceitou a sexualidade do filho mais velho. “Você não sente saudade do nosso
Elton?”, perguntava Beviláqua. “Quem é Elton?”, devolvia Valdinéia. Certa vez, o
recenseador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) bateu à
porta deles e perguntou quantos filhos ela teve. A idosa respondeu: “Tinha dois,
mas um morreu”. Valdinéia faleceu aos 65 anos em decorrência de um acidente
vascular cerebral (AVC). Depois de sepultar a esposa, Beviláqua se mudou com
Pedrinho, já com 17 anos, para a casa de Elton, casado na época com um
engenheiro civil. Os quatro moraram juntos por quinze anos em São Bernardo.
Beviláqua morreu de causas naturais aos 95, cercado de amor e carinho.
Pedrinho se formou em engenharia mecatrônica na Universidade de São Paulo
(USP), casou-se com uma colega de classe e teve dois filhos. A vida de Dulcivânia
também sofreu reviravoltas: sem muitas oportunidades na vida, virou prostituta
na zona portuária do Rio de Janeiro. Em 1995, seu programa custava 5 reais.
* * *
Com a saída de Elton da Assembleia de Deus, os trabalhos de assistência
social comandados por ele no Jacarezinho foram suspensos temporariamente
pelo pastor Demóstenes. Duas referências em filantropia no bairro, Flordelis e
Rose continuavam sendo procuradas por moradores de rua com crianças
pequenas. Algumas famílias sem-teto simplesmente pediam ajuda. Outras
perguntavam como poderiam deixar os filhos num abrigo público, pois não
tinham condições de alimentá-los. A maioria dos pais inalava cola e líquidos
solventes, como tíner e acetona. No cérebro, essas drogas provocam efeitos
psíquicos agudos, causando euforia seguida por depressão. Nos casos mais
graves, o dependente químico era tomado por alucinações. Geralmente o
morador de rua tentava se livrar dos filhos na fase de alegria intensa e se
mostrava arrependido quando mergulhava na ressaca da tristeza profunda.
Convocadas pelo pastor Diógenes, Rose e Flordelis assumiram o lugar de
Elton no trabalho de pegar bebês de moradores de rua. A enfermeira Quirina da
Silveira havia trabalhado por 30 anos na Santa Casa de Misericórdia de São
Paulo, entre 1930 e 1960, quando a instituição mantinha a chamada “roda dos
expostos”, um compartimento público usado para as mães se livrarem dos filhos
de forma anônima, caso quisessem. A tal roda era uma espécie de passa-volume
em formato de tambor com a mesma dinâmica de uma porta giratória. Aos 16
anos, Rose, de pele branca, começou a se questionar por que não se parecia com
a mãe, de pele preta. Dona Quirina contou então um segredo: Rose havia sido
recolhida por ela da “roda dos expostos”, assim como suas duas irmãs mais
velhas. “Sempre quis ter filhas brancas. Não queria que as minhas filhas
sofressem na pele os preconceitos raciais que sofro desde sempre”, justificou a
enfermeira na época. Quando Rose contou essa história para Flordelis, ambas se
perguntaram por que não instalar uma “roda dos expostos” na igreja de
Demóstenes, para facilitar o recolhimento de crianças. Um marceneiro do bairro
ficou encarregado de construir a peça giratória, de madeira. No Brasil, esse
método de se livrar de bebês sempre esteve ligado às instituições caridosas, como
abadias, mosteiros e irmandades beneficentes. Nela eram deixadas crianças de
pouca idade cujos pais, por alguma razão, não podiam ou não queriam criar seus
filhos. No passado, esse abandono era feito no anonimato, justamente para evitar
qualquer tipo de contato entre quem estava entregando o bebê e quem estava
recebendo-o do outro lado da roda giratória. Atualmente, esse tipo de doação
voluntária continua anônimo e está previsto pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). Como no passado, a mulher pode escolher informar ou não
o nome do pai no momento da doação, assim como manter o nascimento e todo
o processo em sigilo. Em 2022, a atriz Klara Castanho usou esse dispositivo para
doar seu bebê logo após o parto, alegando que ele era fruto de um estupro. Vale
ressaltar: a mãe não é obrigada a informar à Justiça o motivo da doação.
Instalada no muro da igreja do Jacarezinho em 1986, a “roda dos expostos”
recriada por Rose e Flordelis era uma caixa dupla de formato cilíndrico. A janela
ficava aberta para o lado de fora. Quando o objeto era girado, a porta ia para o
lado de dentro. Segundo relatos, a igreja de Demóstenes chegou a receber 16
bebês em seis meses por esse meio. Todos teriam sido encaminhados para casas
de acolhimento. Algumas mães disseram para Rose e Flordelis que abandonaram
os filhos porque o pai não queria assumir e elas não tinham dinheiro para
sustentar o bebê sozinhas. Outras puseram o filho na “roda” porque eles não
foram desejados. Quando as freiras da Santa Casa de Misericórdia do Rio de
Janeiro descobriram que o sistema de doação havia sido ressuscitado pela
Assembleia de Deus, o pastor Demóstenes temeu um escândalo na imprensa.
Com isso, ele ordenou que Rose e Flordelis encerrassem a “roda dos expostos”
imediatamente e passassem a recolher crianças manualmente, como fazia Elton.
No início da década de 1990, as adoções capitaneadas por Rose e Flordelis
ficaram mais ostensivas. Em 1991, a dupla caminhava pelo entorno da Central do
Brasil quando encontrou uma mulher conhecida na área pelo apelido Queixo de
Tamanco. Suja e fedida, a moradora de rua carregava uma garrafa plástica
contendo cola de sapateiro numa das mãos e puxava um menino de 3 anos na
outra. Flor abordou a moradora de rua:
– Para onde você vai com esse menino lindo?
– Estou procurando pelo Elton. Quero entregar o garoto – anunciou.
– Esse menino é seu filho? – perguntou Flordelis.
– Sim, mas não tem registro!
– O Elton não trabalha mais na igreja. Se quiser, posso ficar com a criança –
se dispôs a missionária.
Quando assumiu o lugar de Elton nos trabalhos voluntários de acolhimento
de meninos de rua, Flor se intitulava obreira da igreja Assembleia de Deus do
Jacarezinho. Queixo de Tamanco entregou o rebento por volta das 18 horas de
uma quinta-feira e escafedeu-se. Rose alertou Flordelis para um fato: naquele dia
não havia vagas nos abrigos públicos infantis, nem no bairro, nem nas
redondezas. Nessa época, a Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de
Janeiro mantinha apenas duas casas de acolhimento nas proximidades e ambas
ficavam permanentemente lotadas, porque recebiam muitos menores
encaminhados pelos Conselhos Tutelares até de bairros vizinhos. Mais uma vez,
Flor tentou hospedar o menino com Carmozina, mas a bruxa disse não, não e
não. Flor acusava a mãe de falta de apoio e compaixão. Para o pequeno não
pernoitar ao relento, Rose e Flor deixaram-no numa creche mantida pela
prefeitura em Del Castilho. Uma semana depois, Rose voltou para buscá-lo, mas
ele havia sido encaminhado “por engano” a uma entidade mantida pela Pastoral
da Criança da igreja católica, em Belford Roxo, e nunca mais tiveram notícias do
menino.
Simone ainda namorava Anderson quando foi com ele, a mãe e Rose comer
cachorro-quente numa carrocinha de rua após um culto evangélico. Sentaram-se
lado a lado, em cadeiras de plástico encardidas. Flor comentou sobre o trabalho
filantrópico, falando de como esse tipo de atividade poderia cacifar a sua
ascensão na Assembleia de Deus e torná-la famosa no Jacarezinho. Segundo ela,
até a igreja católica investia em trabalhos de resgate de crianças de rua para se
promover. Anderson, assíduo nos cultos de Demóstenes, concordou com a
cantora. No momento dessa conversa, Flor estava sentada na primeira cadeira.
Anderson, na outra extremidade – ou seja, com as outras duas mulheres, que se
mantinham caladas, comendo entre eles. Para ficar mais próximo de Flor,
Anderson levantou-se, puxou a cadeira e foi terminar seu lanche ao lado da
missionária. Com a desculpa de ter dever de casa, Simone terminou a refeição
rapidamente, despediu-se do namorado com um beijo na boca e foi embora.
Rose continuou fazendo companhia aos dois, mas ficou sobrando quando os
amigos engataram uma conversa. Flordelis nunca havia reparado no namorado
adolescente da filha como um homem. Naquela noite, falaram sobre religião,
adoções, música e amor. Ele também se queixou de Simone, que não levava mais
o namoro a sério como outrora. Segundo ele, a filha de Flordelis vinha
abandonando as atividades da igreja. “Ela não carrega mais nem a Bíblia,
acredita?”, reclamou Anderson. Flor ouviu as queixas do “genro” com atenção e
aproveitou para falar da sua falta de sorte com os homens de sua idade, fazendo
uma resenha negativa do ex-marido. Os dois se empolgaram e a conversa varou a
noite. Por volta das 2 da madrugada, Anderson levou primeiro Rose em casa e
depois acompanhou a “sogra”, despedindo-se dela na porta com um beijo de
carinho em seu rosto, porém bem pertinho da boca.
Uma semana depois, decidida a investir no trabalho filantrópico, Flor
recolheu com Rose um bebê de cerca de seis meses das mãos de uma mulher
conhecida como Joana Cara de Cadáver. O apelido inusitado era decorrente de
sua aparência lívida e dos olhos bem profundos. A moradora de rua fumava
crack, cheirava cola de sapateiro e bebia cachaça todos os dias. Havia meses não
tomava banho. Eram 10 horas quando Flor avistou a sem-teto sentada sobre um
papelão na calçada da Praça da República, perto do monumento de Benjamin
Constant, no Centro do Rio de Janeiro. A criança estava deitada entre as pernas
da genitora, que tinha uma faca com a lâmina enferrujada presa na cintura.
Aparentemente desnutrido e desidratado, o bebê vestia uma fralda improvisada
com trapos, toda suja de xixi e cocô, e chorava agitando as pernas e os braços. A
mulher parecia não se importar com o estado deplorável do filho. Flor se
aproximou lentamente e identificou-se como missionária da Assembleia de
Deus, como sempre fazia. Em seguida, em silêncio, ajoelhou-se e pegou a criança
bem devagarinho pelas axilas. Levantou-se com delicadeza e começou a embalar
a criança, tentando fazê-la parar de chorar. Instintivamente, o bebê procurou o
peito de Flor para mamar. A moradora de rua não fez nenhuma objeção. Alguns
usuários de drogas com cara de poucos amigos e sinais claros de embriaguez se
aproximaram. Rose ficou com medo, mas Flor tentou obter informações usando
uma voz aveludada:
– Tadinha! Quantos meses tem essa criança?
– [silêncio]
– Ele é tão bonitinho. É menino ou menina? – insistiu a missionária.
– [silêncio]
– A senhora está disposta a entregar o seu filho para adoção?
– [silêncio]
– Leva logo esse bebê embora, caralho! A Cara de Cadáver nem é a mãe dele.
Essa criança não come faz dois dias! – gritou um sem-teto de longe.
Joana Cara de Cadáver levantou-se do chão e encarou a missionária, mas
ficou calada. Em pé, a faca enferrujada amarrada na cintura da moradora de rua
ficou ainda mais evidente. “Deixa esse bebê e vamos embora daqui”, pediu Rose,
aflita. Joana Cara de Cadáver se afastou e as duas amigas saíram apressadas em
direção ao ponto de ônibus, levando a criança. Dentro do coletivo, Flor percebeu
se tratar de uma menina. Era meio-dia quando as duas chegaram em casa.
Carmozina estava com um grupo de “clientes” quando viu a nenê nos braços da
filha. Primeiro, expulsou Rose. “Some da minha frente, sua vagabunda dos
infernos!”, gritou. Em seguida, a bruxa se voltou contra Flor:
– Eu já disse que não quero moradores de rua aqui em casa!
– Mas, mãe, é temporário. Vou arrumar um lar para essa pequena órfã.
– Quem é a mãe dessa criança?
– Não sabemos! – mentiu.
Um dos motivos para Carmozina implicar com a filha e seu projeto de
recolher meninos da rua era justamente a companhia constante de Rose. As duas
não se falavam desde o dia do afogamento de Amilton na piscina do Clube da
Marinha. Contrariada, a bruxa deu um prazo de três dias para a criança ser
levada embora, senão chamaria o Conselho Tutelar. Enquanto as duas discutiam
na sala, Rose deu um banho na bebê usando a torneira do tanque de lavar roupa
e sabão em barra. Depois a acomodou na cama de Flor. Carmozina também
reclamava dos novos hóspedes porque sua casa de 70 metros quadrados na Rua
João Pinto, 51, estava com lotação esgotada. No início da década de 1990,
moravam ali nove pessoas: Carmozina, Laudicéia, Abigail, Flordelis, Fábio e sua
esposa, Ieda, Simone, Flávio e Adriano. Às vezes, Anderson também dormia por
lá. O imóvel tinha dois pavimentos, mas parecia menor porque um dos quartos
era reservado exclusivamente para as bruxarias da matriarca, onde ninguém
entrava sem sua autorização. Dentro do guarda-roupa, ficavam escondidas as
imagens de São Cipriano e Exu Caveira.
Apegada à criança resgatada da rua, Rose passou a frequentar a casa de
Carmozina quando ela estava na igreja. Seu acesso era facilitado pelos filhos da
bruxa, que simpatizavam com ela. Numa dessas visitas, Rose preparou na
cozinha uma mamadeira para a nenê e levou-a até o quarto de Flor. Ao chegar lá,
a cama estava vazia. Rose desceu nervosa, alertando sobre o sumiço da menina.
As duas procuraram em cada canto pela pequena – que ainda não tinha idade
para engatinhar, muito menos para sair andando. Rose e Flor já haviam
procurado em todos os cômodos – exceto no quarto secreto, trancado à chave.
Usando um grampo de cabelo, elas abriram a porta. Flor nunca tinha entrado ali.
A bebê não se encontrava lá, mas as duas missionárias ficaram tão
impressionadas com a energia do espaço onde a bruxa fazia atendimentos
secretos que até se esqueceram do desaparecimento da menina. Havia um
pequeno altar com uma imagem coberta por um lençol branco e duas cadeiras de
plástico, viradas de frente uma para a outra. Uma prateleira continha cerca de
vinte volumes, entre eles A Bíblia Satânica, de Anton Szandor Lavey, ocultista
fundador e sacerdote da Igreja de Satanás, e a edição de capa preta do livro São
Cipriano, o bruxo.
Rose estava chocada com os segredos de Carmozina. Flor agia como se
estivesse descobrindo um novo mundo. Ela puxou o lençol branco e deu de cara
com a imagem de Exu Caveira. O mesmo grampo usado para destrancar a porta
abriu a fechadura do guarda-roupa, onde ficava a imagem de São Cipriano, feita
de gesso e totalmente oca. Havia também um pôster de Baphomet [pronuncia-se
Bafomé], figura mística cultuada por adeptos de rituais da alta magia. No cartaz,
a entidade aparecia representada pela clássica figura com tronco de homem, asas
longas e escuras, pernas e cabeça chifruda de bode. No livro de São Cipriano, o
personagem é descrito assim: “Figura estranha que impõe respeito a seus
admiradores e pavor aos neófitos da bruxaria negra. Ele é o maioral, o famoso
bode satânico que preside há séculos as sessões de sabbats (sábado das bruxas)”.
Na história das religiões, o nome Baphomet está relacionado diretamente aos
cavaleiros templários, que no século XII chegaram a confessar sob tortura a
prática homossexual, sodomia, enriquecimento ilícito e adoração ao Diabo. Para
antropólogos especializados em religiões, Baphomet nada tem a ver com o
ocultismo e teria sido simplesmente uma derivação do nome Muhammad
[pronuncia-se Maomé], o profeta fundador do Islã. No entanto, ao longo dos
séculos, o mistério e a especulação envolvendo os templários e Satanás
aumentaram, popularizando nessa esteira a imagem enigmática de Baphomet.
Atualmente, a criatura é figurinha fácil em rituais satânicos e filmes de terror.
Enquanto vasculhavam os segredos de Carmozina no segundo andar,
Flordelis e Rose se assustaram com o barulho da porta da sala batendo, no piso
inferior. As duas se apressaram. Flor pegou uma sacola e guardou as imagens de
São Cipriano e Exu Caveira, o livro de São Cipriano, A Bíblia Satânica e o cartaz
de Baphomet. Saiu do quarto às pressas e escondeu a sacola embaixo de sua
cama. Em seguida, desceu para entreter quem havia chegado em casa. Enquanto
isso, habilidosa com grampos, Rose conseguiu trancar o guarda-roupa e a porta
do quarto. Lá embaixo, Flor se deparou com Mariazinha segurando o bebê. “Eu a
ouvi chorando de fome, não vi ninguém e a levei para dar uma mamadeira. Está
tão desnutrida, coitada”, justificou a vizinha intrometida. Antes que mais alguém
chegasse, Flor pegou a sacola com os apetrechos de Carmozina e pediu para Rose
guardá-la por 24 horas. A amiga se negou, mas, diante da insistência, acabou
aceitando.
Quando Carmozina chegou, Flor anunciou uma novidade: iria ficar com a
nenê, já batizada por ela de Rayane. Rabugenta, Carmozina disse que, sendo
assim, teria de deixar a casa dela no dia seguinte. Flor concordou, avisando que
procuraria um imóvel para alugar nas proximidades. “Mãe, vou adotar essas
crianças de pais drogados”, anunciou. “Adota, mas longe da minha vista”,
reiterou a bruxa. Em seguida, Carmozina preparou o almoço para toda a família:
arroz, feijão, bife, farofa e Coca-Cola. Estavam comendo à mesa quando a bruxa
se levantou, subiu até o quarto secreto e soltou um grito de pavor tão estridente
que até Mariazinha apareceu para xeretar o ocorrido. Todos, incluindo Flordelis,
correram até o quarto para ver o que tinha acontecido. Irritada com a invasão,
Carmozina falou com a voz mais calma do mundo: “Achei que tivesse visto o
vulto de meu irmão Miquelino aqui no quarto. Mas foi um engano”.
Acreditando que A Bíblia Satânica, o livro e a imagem de São Cipriano, o cartaz
de Baphomet e a peça de Exu Caveira tivessem sido resgatados pelo fantasma do
irmão, Carmozina passou a visitar a gruta perto da Capela das Almas
diariamente, para tentar encontrar Miquelino. Em vão. O espírito dele e sua
comitiva de escravizados nunca mais apareceram para a velha, e ela suspendeu
temporariamente os atendimentos em casa.
Sentindo-se leve sem as imagens de Exu Caveira e Baphomet, como
confessaria mais tarde, Carmozina amoleceu. Logo ela se afeiçoou a Rayane e
nem reclamou quando Flor chegou em casa com mais uma menina, Suzy, de 12
anos, a mesma idade de Flávio, segundo filho biológico da missionária. A ideia
inicial era resgatar somente crianças de pessoas drogadas e encaminhá-las para
adoção. O trabalho seria coordenado pela Assembleia de Deus comandada pelo
pastor Demóstenes. Flávio começou a sentir ciúme de Suzy, principalmente
quando ela recebia carinho de Flor ou pegava seus brinquedos. “Mãe, não traga
novos irmãos aqui para dentro. Essa garota está mexendo nas minhas coisas”,
reclamava. Prevendo a chegada de mais crianças de rua em sua casa, Carmozina
voltou a reclamar. Para se livrar da pressão familiar, Flor conseguiu um emprego
numa padaria e, batalhadora, formou-se em magistério. Começou a dar aulas em
duas escolas públicas do Jacarezinho e aumentou a renda. Suas atividades
profissionais eram conciliadas com a performance de cantora em cultos nas
igrejas, onde era remunerada e bastante aplaudida. Com dinheiro no bolso,
alugou um imóvel de dois quartos na Rua Guarani, 29, bem próximo da
residência da mãe.
A missionária mudou-se para o novo endereço com os três filhos biológicos e
os dois adotivos. Nessa fase, Simone, a mais velha, se recusava a cuidar das novas
irmãs. Como Suzy tinha 12 anos, cabia a ela a tarefa de ficar com Rayane, de seis
meses, enquanto Flor trabalhava. Com isso, era comum encontrar na casa uma
criança com a outra no colo. Numa noite de domingo, todos assistiam à televisão
na sala quando Anderson chegou para namorar Simone. Com os quartos sempre
ocupados e a sala cheia de gente, o banheiro passou a ser o único lugar com
privacidade. O casal entrou lá e transou, fazendo muito barulho, por mais de
uma hora. Para abafar os gemidos, Flor aumentou o volume da TV. Quando
saíram do banheiro, Simone e Anderson foram repreendidos. A missionária
sugeriu que os dois fizessem amor em silêncio para não despertar a curiosidade
dos menores.
Para distrair a prole, Flor comprava brinquedos de uso coletivo, como
velocípede, futebol de botão, bola, baralho, videogame e jogos de tabuleiro.
Quem continuava não gostando de compartilhar as coisas, incluindo o afeto da
mãe, era Flávio. O garoto era muito apegado ao pai, o pastor Paulo Xavier, e
sempre perguntava quando ele voltaria. Incomodado com as novas irmãs,
implorou mais uma vez a Flor para não levar mais crianças de rua para casa. Ela
pegou o filho biológico pelo braço e foi até o quintal conversar. A sós, Flor
perguntou se Flávio já havia reparado na beleza de sua irmã Suzy. “Os peitinhos
dela estão nascendo. Viu isso, filho?”. Tímido, o menino ficou corado. A mãe não
costumava falar sobre sexo com ele. Nessa mesma noite, Flor estendeu um
colchão no chão da sala e pôs Flávio e Suzy para dormirem juntos. Deu a eles
apenas um cobertor. Na manhã seguinte, os dois adolescentes andavam de mãos
dadas e se beijavam de língua na frente da família. Simone e Anderson faziam
chacota do novo casal, dizendo que Flávio era “devagar”, pois permanecia virgem
mesmo depois de dormir com a namorada. Uma semana depois, uma senhora
bateu na porta de Flor acusando-a de ter pegado sua filha sem autorização.
Ameaçando chamar a polícia, a moradora de rua levou Suzy embora. Flávio ficou
inconsolável, chorando pelos cantos, com saudade da menina. “Não fica assim,
filho. A mamãe vai arrumar outra namoradinha para você”, prometeu. Ingênuo,
Flávio pediu uma garota idêntica à sua “irmãzinha”.
As transas de Simone e Anderson no banheiro ficaram mais frequentes e
barulhentas. Mesmo depois de gozar, o casal costumava ficar trocando carícias e
tomando banhos demorados, o que fazia os demais moradores baterem na porta
constantemente. Para não ocupar o banheiro por muito tempo, passaram a
transar no quarto da mãe, com o consentimento dela. Só havia um porém: a
porta não trancava à chave. Certa vez, Flordelis entrou no quarto de forma
abrupta, viu os dois nus, pediu desculpas e saiu rapidamente. No mesmo dia,
Simone quis saber a opinião da mãe sobre o corpo do namorado. Flor elogiou a
beleza de Anderson, pontuando o tamanho do seu pênis, considerado por ela
“muito grande”. Simone se vangloriou da excelente performance sexual do rapaz,
mas confessou à mãe que, a cada dia, seu interesse pelo namorado diminuía.
“Quando deixa de ser novidade, eu enjoo de tudo no homem: da voz, da
aparência, do cheiro, da companhia e principalmente do sexo”, comentou.
Mesmo assim, não demorou muito para Anderson seguir de mala e cuia para a
casa de Flor, tornando-se seu terceiro “filho” adotivo. No novo lar, ele passou a
chamar a missionária carinhosamente de “mãe”. Flor devolvia o carinho
chamando-o de “filho”. Com o passar dos dias, Anderson contraiu o hábito
inconveniente de vestir apenas cueca, principalmente em dias de calor. Volta e
meia, saía completamente nu do banheiro e corria para o quarto. No início, Flor
o repreendia, mas todos os moradores acabaram se acostumando com esse
hábito inadequado.
Com o tempo, Anderson passou a frequentar assiduamente com a “mãe” e
com a namorada a igreja administrada por Demóstenes e a envolver-se com as
atividades da instituição. Numa reunião, o sacerdote falou a Flor sobre um fuxico
dando conta de que Carmozina abriria uma outra Assembleia de Deus nas
proximidades, o que ele considerava uma afronta – principalmente porque a
igreja estava na pindaíba e vinha perdendo ovelhas para a concorrência. “A quem
interessa dividir o nosso rebanho?”, questionou. Para disputar com Carmozina,
Demóstenes pediu que Flordelis e Rose intensificassem os trabalhos de
filantropia iniciados por Elton. Ele andava em busca de um terreno no
Jacarezinho para construir uma casa para crianças de rua.
Com esse abrigo apinhado de menores abandonados, seria mais fácil
conseguir um convênio com a prefeitura. Na reunião, Demóstenes falava do
projeto com entusiasmo e deixou claro que, com o sucesso da empreitada,
Flordelis e Rose seriam ordenadas pastoras da igreja. A ideia de Demóstenes era
juntar o maior número possível de crianças e chamar a reportagem local da TV
Globo para obter visibilidade. Depois, o líder tentaria convencer empresários a
ajudá-lo financeiramente na causa. “Tem igreja que arrecada milhões com
filantropia”, destacou. Anderson estava nessa conversa e anotava tudo num
caderno. Nesse mesmo encontro, Flordelis e Rose tiveram a ideia de criar um
movimento batizado de “evangelização da madrugada”. Enroladas em cobertores
brancos para se proteger do frio e agarradas a bíblias, as duas perambulavam
pelos bailes funk promovidos por traficantes do Jacarezinho abordando crianças
e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Nessa nova fase, usavam a lábia
para convencer os garotos a deixarem o tráfico. Como as amigas entravam em
áreas completamente dominadas pelo Comando Vermelho, Anderson passou a
acompanhá-las para dar proteção. Cabia a Simone ficar em casa cuidando dos
menores. Na busca por novos “filhos” pelos becos do Jacarezinho, Flor pediu
para Rose avisá-la caso encontrasse uma menina “bem bonitinha”, com idade
entre 10 e 14 anos, para “dar de presente” a Flávio. Rose levou um susto quando
ouviu o pedido esdrúxulo.
A partir daí, a relação entre as duas azedou. Rose devolveu para Flor a sacola
com os objetos roubados de Carmozina e começou a desconfiar das boas
intenções da amiga. Sem interesse, a missionária guardou os apetrechos satânicos
dentro de uma caixa de papelão e a colocou sobre o guarda-roupa de seu quarto.
Aos poucos, as amigas foram se afastando. Quando Flordelis tentava combinar
com Rose saídas na madrugada para resgatar crianças do tráfico, a ex-cunhada
inventava desculpas para não ir. Algumas semanas depois, ela desistiu
definitivamente da missão, afastando-se de todos e até dos cultos. “Quando a
Flor pegou a Rayane na praça, eu acreditava no seu gesto humanitário. Parecia
que ela estava mesmo preocupada com a vida daquele bebê. Mas, quando ela me
pediu para ‘catar’ na rua uma menina para o Flávio namorar, caiu a ficha. Nunca
houve bondade naquelas adoções”, disse Rose em fevereiro de 2022. Sobre os
apetrechos usados por Carmozina, ela fez o seguinte comentário: “Só descobri o
que significavam aquelas coisas alguns anos depois”.
Um dos resgates mais dramáticos feitos por Flordelis durante a evangelização
da madrugada foi o de um jovem chamado Alan, de 17 anos. Usuário de cocaína,
o moço havia desaparecido. Sua namorada pediu ajuda à missionária, por
acreditar que ele estivesse no corredor da morte. Flor e Anderson saíram à
procura do moço de madrugada pelos becos do Jacarezinho. Por volta das 3
horas, encontraram-no amarrado a um poste, com um capuz na cabeça, prestes a
ser executado por um grupo de oito integrantes do Comando Vermelho. Flor
intercedeu. “Deus me mandou aqui para salvar esse rapaz!”, falou aos bandidos,
que riram cinicamente. “Vocês têm de dar mais uma chance a ele. A mãe e a
namorada, coitadas, estão desesperadas”, argumentou. Os traficantes não se
comoveram nem demonstraram disposição para negociar. Deram mais risadas
de escárnio. Alan tinha dois fuzis apontados para sua cabeça porque,
galanteador, havia xavecado a ex-namorada de um dos donos da boca num baile
funk e ainda acumulava dívidas com os criminosos. Em sua defesa, Flor garantiu
que ele pagaria a dívida e nunca mais olharia para a tal moça. Impacientes, os
traficantes deram uma série de socos no abdome de Alan e colocaram o cano
forjado a frio da arma próximo ao nariz da vítima. Nesse momento, Flordelis
pediu para fazer uma oração de despedida.
Mesmo irritados, os marginais permitiram. Feito pastora, a missionária pediu
que eles se dessem as mãos e iniciou a pregação em voz alta no meio da rua:
“Entregamos este pobre rapaz aos seus cuidados, Senhor. Seu corpo será levado
das trevas da noite. Ele está sendo libertado de toda a escuridão e de toda a dor.
[...] Vai partir para além deste mundo. Sua alma será eterna. [...] Das cinzas às
cinzas. Do pó ao pó”. Irritados, os bandidos pediram para ela encurtar a
pregação. “Deus, responda a esses jovens. Se acreditarem na Sua existência, eles
ouvirão a Sua voz como eu ouço agora. Por que punir seus pares com crueldade?
Por que o sacrifício? Por que a dor? Ele vai partir agora e nunca saberá do
tamanho da aflição daqueles deixados para trás, como sua mãe. Entregamos-lhe
esse corpo, Senhor. Peço que tenhas piedade desses rapazes que o executarão.
Eles não sabem o que fazem. [...] Espero que o Senhor tenha deles a piedade que
não estão tendo agora, quando também estiverem com um fuzil apontado para a
cabeça, pois a hora deles também chegará”. Os traficantes se entreolharam e
refletiram sobre as palavras da missionária. Um deles tomou a iniciativa de tirar
o capuz da cabeça do jovem. O outro desamarrou a corda e o soltou. Flor se
comprometeu a levá-lo para casa e incentivá-lo a honrar a dívida com os
traficantes. Com esse tipo de atitude, a missionária ganhava respeito na favela.
Todas as crianças e adolescentes resgatados chegavam a Flordelis imundos e
exalando um mau cheiro insuportável. Tinham sujeiras escuras acumuladas atrás
da orelha, nas dobras do pescoço, debaixo das unhas e nas axilas, além de
lêndeas, piolhos e carrapatos. Alguns exibiam sarnas na pele e parasitas nos pelos
pubianos, e muitos nem sequer usavam papel higiênico depois de defecar. Como
se fosse um ritual, Flordelis dava pessoalmente um banho pesado nos novos
hóspedes, numa espécie de batismo. Eles ficavam inteiramente nus debaixo do
chuveiro e ela os esfregava com uma bucha e muito sabão de coco. Flor também
tirava a roupa nesse banho de boas-vindas e acabava transando com os “filhos”
que achava interessantes. Os escolhidos tinham pequenos privilégios, como
escolher o canal da TV sintonizada na sala e dormir em sua cama de casal.
Quando chegou, Alan também foi banhado pela missionária. Conforme contou,
ele teria sido masturbado por ela já no primeiro dia. Outros rapazes que
passaram pela primeira casa de Flordelis confirmaram a prática sexual,
classificada anos depois pelo Ministério Público como abusiva.
Na madrugada de 23 de julho de 1993, oito meninos que dormiam em frente
à Igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro, foram executados a tiros
disparados por policiais militares à paisana. O crime chocou o país e o mundo
pela brutalidade. O grupo de extermínio se aproximou dos garotos disfarçado de
voluntários. Os assassinos chegaram a distribuir comida a setenta moradores de
rua que dormiam enrolados em sacos na escada da catedral e sob as marquises
dos prédios. Sem piedade, os policiais usaram fuzis para exterminar oito menores
com idade entre 10 e 17 anos, ferindo mais de uma dezena de garotos. Como
revelado depois, o crime foi motivado por vingança contra o apedrejamento de
uma viatura pelos jovens, ocorrido no dia anterior. O guardador de carros
Wagner dos Santos, de 23 anos, tomou quatro tiros e sobreviveu porque se fingiu
de morto. Ele se tornou a única testemunha da tragédia, conhecida
mundialmente como “chacina da Candelária”.
Na semana seguinte, a maioria dos moradores de rua de toda a cidade do Rio
de Janeiro praticamente desapareceu, com medo de ser executada por policiais.
Pedro e Victor, ambos de 15 anos, e Marcelo, 13, estavam no grupo de meninos
amedrontados. No Centro, eles ouviram falar de uma missionária da Assembleia
de Deus acolhedora de adolescentes sem-teto e correram para lá. Pedro era o
mais apavorado. Branco e magricelo, fora abandonado pelos pais posseiros no
município de Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, quando cruzaram a fronteira
com o Paraguai até chegar à cidade de Oberá, onde plantariam ervas. “Eles me
deixaram num abrigo quando eu tinha 10 anos e disseram que viriam me buscar
depois. Mas nunca vieram”, contou Pedro em dezembro de 2021, aos 42 anos.
Filho de pescadores, Victor era baiano de Camaçari e ficou órfão aos 7 anos,
depois da morte dos pais num naufrágio. Negro e alto, ensinava capoeira aos
meninos de rua no Centro e para turistas no calçadão de Copacabana. Os dois
amigos chegaram ao Rio de Janeiro pedindo carona pela estrada. Marcelo era
carioca, tinha pais desabrigados e mostrava-se tão desnutrido que era possível
contar suas costelas. Por volta das 23 horas de um domingo, os três bateram à
porta de Flordelis em busca de abrigo e comida. Quem os atendeu foi Simone.
Ela avisou que a casa estava lotada e o trio deu meia-volta para ir embora.
Caminhavam pelo Jacarezinho quando encontraram Flordelis e seus discípulos
fazendo o tal evangelismo da madrugada. Abordaram a missionária e pediram
para dormir na casa dela pelo menos por uma semana, pois tinham medo de
morrer. Flor resgatou os três para tomarem banho, mas avisou que só teria uma
vaga na casa.
O primeiro a entrar no chuveiro foi Pedro, o gaúcho. Em seguida veio
Marcelo, o magricelo. Por último, ela deu um banho bem demorado em Victor, o
baiano capoeirista. Como já era madrugada, serviu a eles um mingau de amido
de milho e os acomodou num único colchão. No dia seguinte, durante o café da
manhã, Flor anunciou com muito pesar que somente Victor ficaria. Os três
garotos acabaram a refeição, agradeceram o acolhimento e foram embora juntos,
pois eram inseparáveis. De volta à rua, Victor perguntou como havia sido o
banho dado pela missionária. Eles contaram que ela exagerou ao esfregar a bucha
em seus corpos; Victor revelou, então, que foi tocado e acabou transando com ela
sob o chuveiro.
Os dois garotos escaparam das garras de Flor. Pedro pegou carona numa
carreta e foi mendigar no Centro-Oeste. Marcelo desapareceu no mundo. Sem os
amigos, Victor procurou a casa de Flor três meses depois de ter pisado lá pela
primeira vez. Estava em busca de comida, banho e sexo. Flor adotou o
capoeirista, a quem chamava de “filho”. Os dois dividiram a mesma cama por
duas semanas.
Em maio de 2022, aos 43 anos, Victor morava em Miami, onde mantém uma
academia de lutas há 15 anos. Bastante emocionado, ele deu o seguinte
depoimento: “Fui apaixonado pela mãe Flor por três meses. Depois da gente
transar várias vezes no banheiro da casa da Rua Guarani, ela acabou se tornando
minha única referência sexual. Ela me dava carinho e prazer. Para quem mora na
rua sem pai nem mãe, nem ninguém, receber afeto é uma dádiva, mesmo que
seja de uma mulher de alma deplorável como ela. Apesar de ter 30 anos na época,
Flor parecia mais jovem. Era magra, sedutora e muito boa na cama. Eu já tinha
transado com meninas de rua, mas nunca rolava sentimento. Com a Flor era
diferente. Aprendi muita coisa com ela. Sou formado em Educação Física e pai
de três crianças. Hoje, tenho plena convicção de que fui abusado sexualmente de
forma sistemática pela Flor, pois eu vivia em condição de extrema
vulnerabilidade.
A violência começava nos banhos e terminava na cama dela. Ficava implícito
que, se eu não quisesse mais, teria de sair da casa. Ela nunca verbalizou isso, mas
sempre falava que era preciso ter rotatividade para dar chance a outros meninos
de rua. Um dia, estava jogando videogame com os meus ‘irmãos’ e ela me
chamou para dormir. Eu estava sem a menor vontade de transar. A gente até
tentou, mas não tive ereção. Flor falou ‘tudo bem, acontece, faremos outro dia’.
Em seguida, ela me deu um colchão, me pediu para sair do quarto e chamou
outro ‘filho’ [Alan] para dormir na cama com ela. Não fui mandado embora, mas
recebi uma punição severa no dia seguinte. Flor deu o meu colchão para outro
rapaz recém-chegado. Tive de dormir algumas noites sentado numa cadeira da
mesa de jantar, com a cabeça apoiada nos braços. Minha coluna ficou dolorida
por vários dias. Para voltar a me deitar num lugar confortável, pedi para fazer
sexo e ela topou. Depois da transa, ganhei novamente um colchão. [...] O que
tem de mais podre nessa história é que eu era abusado e gostava, porque sentia
prazer com aquilo. [...] O sonho de todo garoto de rua era descansar numa cama
macia com uma mulher limpa e cheirosa. Hoje, tenho nojo retroativo da época
em que eu vivia naquele inferno. Morando atualmente bem longe do Brasil,
pensava que havia me livrado definitivamente dessa predadora sexual. A verdade
é que nunca consegui esquecer Flordelis, embora tenha feito muito esforço. Até
hoje, quando fecho os olhos para dormir, tenho pesadelos abomináveis com os
banhos que esse demônio me dava”.
* * *
N
a primeira metade da década de 1990, três lideranças evangélicas
dominavam um quadrilátero generoso do Jacarezinho formado pelas ruas
do Rio, Miguel Ângelo, Álvares de Azevedo e pela Avenida Dom Hélder
Câmara. Nesse pedaço importante da favela estava instalada a Assembleia de
Deus administrada pelo pastor Demóstenes, que Flordelis frequentava com
Anderson, seus filhos biológicos e os recolhidos da rua. Nos cultos de domingo,
para deleite dos fiéis, a missionária soltava a voz potente em cantos de louvor. No
mesmo perímetro ficava o centro de orações e atendimentos espirituais erguido
por Carmozina. O espaço de dois pavimentos foi montado pela bruxa, com a
ajuda dos filhos, na Rua Santa Laura, 36, onde antes funcionava um salão de
beleza. Nesse endereço, havia uma placa da Assembleia de Deus exibida
indevidamente na fachada, pois ela não tinha autorização da cúpula da
instituição religiosa para usar a marca da igreja. Lá, Carmozina previa o futuro,
fazia orações de cura e dava aconselhamentos espirituais. Recebia em dinheiro,
mas a cobrança era discreta e o pagamento, voluntário. “Doe quanto o seu
coração puder”, dizia aos clientes. Três vezes por semana, mesmo sem ter por
trás de si um CNPJ ou qualquer igreja constituída, Carmozina realizava cultos
evangélicos lendo e interpretando a Bíblia de forma teatral. Sem as imagens de
Exu Caveira e São Cipriano, ainda em poder de Flordelis, a velha raramente fazia
sessões análogas ao exorcismo. Mas o Diabo, no conceito dela, aparecia
incorporado em seus clientes por meio da bebida alcoólica ou pelo uso constante
de cocaína, crack ou maconha.
Nessa época, um adolescente de 16 anos chamado Vinícius era levado com
frequência ao “consultório” de Carmozina porque sua mãe, Jacira Alves Maciel,
36, “tinha certeza” de que Satã possuía o corpo do jovem pelo menos três vezes
no mês e ficava dentro dele por até sete dias. Evangélica da Igreja Deus é Amor,
Jacira morria de medo das forças do mal, pois havia testemunhado cerca de
trinta sessões perturbadoras de descarrego no palco de sua congregação,
conhecida pela atuação fervorosa e agressiva dos pastores. Sem sucesso, o
adolescente era submetido a todo tipo de ritual. “Em um dos cultos, meu filho foi
mergulhado num tanque cheio de água por longos dois minutos. Segundo o
pastor, uma experiência de quase morte o salvaria da maldição do Demônio. Por
pouco ele não se afogou, e a gente foi para casa acreditando em sua cura. Na
semana seguinte, ele acordou novamente possuído, atacou e espancou a irmã de
12 anos”, relatou a mãe. Em outra sessão, os religiosos da Deus é Amor estiveram
em sua casa. Eles fizeram uma corrente de orações e cobraram pelo serviço.
Como Jacira não tinha dinheiro para pagar, os sacerdotes levaram uma TV
colorida de 29 polegadas, um aparelho de som – na época conhecido como 3 em
1, por conter no mesmo equipamento rádio, toca-discos e toca-fitas – e todos os
discos de vinil. “Pegaram a minha coleção inteira do Roberto Carlos alegando
que o Diabo estava chegando em casa pelas músicas indecentes do Rei e pelos
programas da Xuxa na televisão”, contou. Em outra visita à casa de Jacira, os
emissários da Deus é Amor suspeitaram que o Demônio estaria se
materializando em um gás clorado e fluorado derivado do metano. A substância
altamente inflamável era usada em geladeiras e circulava por todo o circuito do
eletrodoméstico, incluindo compressores, válvulas de expansão, evaporadores e
condensadores. Quando abria a porta do refrigerador para tomar água, portanto,
Vinícius inalava o gás tóxico e seu corpo era tomado pelo espírito do mal.
“Queriam levar a minha geladeira Consul de duas portas, novinha em folha, mas
achei um pouco demais. Pedi para os pastores irem embora e nunca mais fui à
igreja deles”, recorda-se a mãe.
Como o adolescente continuava “conversando com o Diabo”, Jacira resolveu
levá-lo para Carmozina dar um jeito. Na primeira consulta, a bruxa se trancou
com Vinícius no quarto. Jacira ficou do lado de fora, aflita. Uma hora depois
Carmozina saiu com o menino e deu um prognóstico assustador à mãe: “De fato
o Diabo está no corpo do garoto. Só vai deixá-lo em paz depois de o seu filho
apodrecer embaixo da terra”. Segundo a bruxa, Satanás só deixaria Vinícius em
paz de forma definitiva depois de trinta sessões contendo banhos de ervas e
muitas orações. “No final do ritual, creia, ele estará livre de espíritos ou entidades
sobrenaturais maléficas, além das energias deletérias”, afirmou a mãe de
Flordelis. As atividades seriam presenciais, pois o problema era considerado
grave. Às vezes, quando a demanda do “cliente” era pequena, bastava ele deixar
uma foto e a súplica religiosa era feita de forma remota. No caso de Vinícius,
Jacira deveria pagar 5 reais para cada sessão de oração. Ela achou até barato, pois
gastaria bem menos do que o valor da sua geladeira Consul de duas portas.
Um ano depois de ter alta do “tratamento” de Carmozina, porém, Vinícius
continuava “dialogando” com espíritos inferiores. Jacira já não sabia mais o que
fazer. Na escola, depois de um surto violento, ele agrediu uma professora com
um pedaço de ferro porque ela o mandou calar a boca. Em seguida, Vinícius
começou a quebrar os armários enquanto falava usando uma voz grave e
incompreensível, às vezes misturada a um som semelhante ao ronco de porco. Os
colegas de classe imobilizaram Vinícius e a diretora acionou a polícia, mas a
professora, mesmo machucada, ficou com pena e preferiu chamar uma
ambulância, pois o jovem ainda parecia doente. O menino foi levado a um
pronto atendimento e transferido para o Instituto Municipal Nise da Silveira, no
Engenho de Dentro. Lá, os psiquiatras descobriram o óbvio: o Diabo, ou
qualquer um dos seus representantes, nunca havia se apossado daquele corpo.
Vinícius foi diagnosticado com esquizofrenia e tratado com medicamentos e
terapia. Quando Jacira conversou com os médicos, quase morreu de vergonha
com tanta ignorância. Confrontada, Carmozina defendeu-se dizendo que o
Diabo também se manifesta por meio de “doenças da cabeça”. Enganada por
pastores e pela feiticeira, Jacira passou a duvidar da existência de Satanás como
descrito em cultos de igreja.
A história das religiões mostra que o Diabo é uma invenção dos homens.
Biblicamente falando, é um anjo caído do céu na terra. Ezequiel, um dos livros
proféticos do Antigo Testamento, conta que, antes de Lúcifer despencar do
firmamento, ele havia sido colocado por Deus numa posição de querubim da
guarda, um cargo de destaque em relação às demais criaturas celestiais. Sábio e
formoso, era perfeito para a função. Ou seja, o Diabo era alguém que gozava de
autoridade, privilégios e regalias. No entanto, segundo outra passagem do livro
sagrado (Isaías 14:13-14), Lúcifer se rebelou e passou a alimentar o desejo
obsessivo de ser tal qual seu Criador. Queria para si o comando do universo e
poderes exclusivos de Deus, como operar milagres. Assim, passaria a ser tão
adorado e elogiado pelos súditos quanto Nosso Senhor. Lúcifer acabou perdendo
a disputa, pois seria impossível vencer a soberania divina apenas com poderes
malignos, e Ele jamais dividiria sua autoridade e glória com quem quer que fosse.
Bem longe das páginas da Bíblia, Satanás, o antagonista de Deus, evoluiu
como entidade histórica, mudando seu perfil físico e psicológico com o único
propósito de reforçar a imagem de seu oponente. Esse recurso é muito utilizado
na dramaturgia. O super-herói Batman, por exemplo, não seria tão grandioso
sem a presença do seu maior rival, Joker, vilão conhecido no Brasil como o
diabólico Coringa. Até meados do século VII, porém, Satanás era um
personagem menor, quase um coadjuvante. Naquela época, a humanidade vivia a
expectativa de que o mundo acabaria até a virada do século X para o XI. Nessa
toada, Jesus Cristo voltaria para buscar suas ovelhas antes do apocalipse. O prazo
venceu e nada de o juízo final chegar. A partir da reestruturação da igreja,
conhecida como Reforma Gregoriana, no ano de 1073, o Diabo começou a se
destacar no cristianismo de forma pitoresca. Para desassociá-lo da imagem de
anjo, teólogos colaram a figura de Satã a animais considerados grotescos e
ridículos, como porcos e macacos. Existia uma gravura do Demônio com essas
características na Catedral de Santa Maria de Regla de Leão, na Espanha. A obra
de arte mostrava um macaco gargalhando cinicamente ao mesmo tempo que
tocava seu sexo. Essa retratação debochada e risível ficou exposta por séculos no
claustro da catedral, onde somente monges e padres podiam vê-la. Por volta do
século XIII, Lúcifer deixou de ser retratado com escárnio e ganhou contornos
bem assustadores. Também na Espanha, o Mosteiro de Santo Domingo de Silos
mostrava o Coisa-ruim retratado com asas de dragão, garras afiadas e chifres
pontiagudos, segurando a cabeça decapitada de um homem com expressão de
horror e passando a mensagem subliminar do medo eterno que os fiéis deveriam
sentir dele.
Para se ter uma ideia de como o perfil medonho do Diabo foi difundido a
partir do século XV pela religião e pelas artes plásticas, as gravuras do juízo final
feitas depois desse período passaram a ser desenhadas tendo o inferno como
cenário e apresentando Lúcifer no papel de protagonista. Antes, o último
julgamento de Deus sobre todos os seres da Terra mostrava Jesus Cristo em
primeiro plano diante dos cristãos e seu oponente era retratado de forma
diminuta. A partir do Renascimento, marcado pela transição da Idade Média
para a Moderna, Satanás ganhou a forma de um homem majestoso, pintado e
esculpido com uma personalidade sedutora, manipuladora e narcisista.
No livro O Diabo no imaginário cristão, Carlos Roberto Figueiredo Nogueira,
professor de História da Universidade de São Paulo (USP), diz que a ideia de Satã
como um ser astuto e maligno tem como principal objetivo provocar a perdição
eterna do ser humano, reforçando a batalha infinda entre as forças da bondade e
os poderes do mal. Hoje, padres católicos e pastores protestantes pregam
sistematicamente nos púlpitos e nos palcos dos templos que o inimigo de Deus é
quase tão poderoso quanto Ele. Essa falácia tem como único objetivo exercer o
poder por meio do medo, exatamente como fizeram os pastores da Igreja Deus é
Amor quando “atenderam” o filho de Jacira. Ou quando Carmozina tentou
convencer Amilton de que ele caiu do teto da igreja e perdeu o dedo numa
máquina de cortar papel por ter se afastado de Deus e, consequentemente,
chegado mais perto do Diabo.
Mesmo decepcionada com líderes religiosos picaretas, Jacira não arredou o
pé do protestantismo. A cerca de 300 metros do centro de cura de Carmozina,
Rose, a ex-namorada de Amilton, realizava um sonho antigo: atuava como
pastora numa unidade bem simples da Igreja Evangélica de Confissão Luterana
no Brasil (IECLB), a terceira liderança pentecostal do entorno. O centro tinha
trinta cadeiras de plástico simples e um sistema de som com microfones e caixas
acústicas doados por fiéis. Rose conseguia lotar o espaço nas noites de sábado e
domingo. No início, seus fiéis eram egressos da Assembleia de Deus. Jacira já
conhecia a moça da vizinhança e passou a frequentar seus cultos. Certo domingo,
apenas quatro pessoas compareceram para ouvi-la – incluindo a mãe de Vinícius
–, contra trinta da semana anterior. No meio da pregação, ao perguntar pelo
restante de seu público, Rose ouviu de uma mulher que Carmozina havia feito
um corpo a corpo e conseguira “roubar” quase todas as suas ovelhas usando a
maledicência como arma. A bruxa primeiro investiu contra as ovelhas de Rose
contando com detalhes passagens da sua vida de periguete. No entanto, nem
todo mundo acreditava na fofoca. Para provar o que dizia, Carmozina remexeu
as coisas de Amilton ainda guardadas numa gaveta. Encontrou negativos de
diversas fotos em que Rose estava de minissaia e outras na qual usava apenas
calcinha e sutiã. A velha selecionou os negativos mais picantes e os colocou num
objeto muito popular na época, conhecido como monóculo. Trata-se de uma
peça de plástico em formato cônico medindo cerca de 3 cm de comprimento.
Geralmente colorido, o monóculo tem numa das extremidades uma lente e, na
outra, uma tampa branca, na qual é encaixado o pequeno fotograma. Para ver
com clareza a imagem, a pessoa tem de fechar um dos olhos, apontar o
monóculo para a luz e olhar com o outro olho o fundo da peça. Carmozina
colocou dois negativos de Rose nos objetos e fazia deles chaveirinhos. Andou
pelo bairro contando às ovelhas da sua rival como a ex-nora era depravada.
Quando uma crente dizia não acreditar, a feiticeira mostrava os monóculos com
imagens comprometedoras de Rose. Com esse estratagema, a bruxa do
Jacarezinho conseguiu esvaziar a igreja da inimiga.
Revoltada com a concorrência desleal, Rose cerrou as portas e foi até o centro
de Carmozina, que estava lotado. Do lado de fora, a pastora gritou bem alto para
todo o mundo ouvir que Carmozina era uma feiticeira e que Flordelis roubava
crianças. A velha devolveu as acusações responsabilizando a pastora pela morte
de Amilton. “Essa vagabunda guiou meu filho para o mau caminho, até ele se
matar na piscina do clube”, acusou. Para rebater a injúria, Rose revelou que a ex-
sogra manteve em casa imagens de São Cipriano e A Bíblia Satânica. Nesse
momento, Carmozina se calou. Seu centro foi se esvaziando e os fiéis começaram
a chamá-la de “bruxa” repetidas vezes. Jacira aproveitou para acusar a velha de
impostora. O barraco religioso rapidamente chegou aos ouvidos de Demóstenes,
que foi até lá tentar apaziguar a guerra santa. A confusão só parou com a
presença da polícia. Com medo de ser presa e temendo ser linchada como seu
irmão Miquelino, Carmozina fechou o ponto de cura. No passado, chamar uma
mulher de bruxa equivalia a declarar sua sentença de morte: durante a Inquisição
católica, no século XV, as ditas feiticeiras eram queimadas na fogueira. O termo
“caça às bruxas” se espalhou, então, para definir a perseguição ocorrida a quem
supostamente manifestava poderes sobrenaturais.
Em meados dos anos 1970, as regiões mais pobres do Rio de Janeiro
mudaram radicalmente o perfil religioso. Em áreas de influência majoritária do
catolicismo, as práticas de umbanda e candomblé também eram adotadas por
boa parcela da população, muitas vezes simultaneamente aos rituais católicos. A
partir dos anos 1980, no Brasil como um todo, mas especialmente na capital
fluminense, as denominações evangélicas ganharam força. Novos ramos ligados
ao neopentecostalismo – baseados na chamada Teologia da Prosperidade, que
prometia aos fiéis recompensa divina imediata durante sua passagem terrena –
conquistaram quase metade da população das favelas do Rio de Janeiro. Desde
essa época, as igrejas expandiram suas atividades missionárias para
estabelecimentos penitenciários e conseguiram alta taxa de conversão entre os
reclusos. Esses lugares sempre representaram um espaço-chave para a formação
de organizações criminosas. Todas as grandes facções de narcotráfico, como
Comando Vermelho, Terceiro Comando e Primeiro Comando da Capital (PCC),
foram fundadas em prisões. Pouco tempo depois, o primeiro grupo
narcopentecostal conhecido foi fundado como uma subfacção do Terceiro
Comando Puro: o Bonde de Jesus. Além de controlar o tráfico no bairro do
Parque Paulista, no município do Rio de Janeiro, os chamados “soldados de
Jesus” atacaram e vandalizaram vários templos de candomblé e de umbanda,
expulsando os sacerdotes de seus territórios.
Desde então, a perseguição não só a religiões afro-brasileiras, mas também a
padres católicos, tem sido relatada em várias favelas – só entre 2019 e 2022, o
Ministério Público contabilizou mais de 150 atos de agressão contra terreiros e
líderes de umbanda e candomblé em comunidades carentes do Rio. A
majoritária presença evangélica em estabelecimentos penitenciários tem se
traduzido na conversão de traficantes. Enquanto cumpriam sentenças em prisões
estaduais, vários líderes do Terceiro Comando Puro, principal rival do Comando
Vermelho, aderiram ao neopentecostalismo. O cenário radical tornou o
ambiente mais difícil para figuras como Carmozina. Se no passado ser chamada
de bruxa representava medo, mas também poder e respeito, a denominação
voltou a ser equivalente a uma sentença de morte. Traficantes têm agredido,
expulsado e até matado pessoas que insistem em declarar fé na prática de
religiões de matrizes africanas.
Acusada de bruxaria, Carmozina entrou em depressão e foi cercada pelo
carinho dos filhos, exceto Flordelis. As duas não tinham rompido, mas acabaram
se afastando por motivos até então desconhecidos. Para as irmãs, Flor dizia que
não tinha tempo para visitar a mãe. “Meus filhos tomam todo o meu tempo”,
reclamava a missionária. Para integrantes da igreja de Demóstenes, Flor falou ter
ficado decepcionada com o fato de Carmozina não apoiar seu romance com
Anderson nem sua missão de resgatar crianças de rua, vítimas do tráfico e do
abandono. Carmozina teria deixado claro ser contra a tal “evangelização da
madrugada” depois do barraco promovido por Joana Cara de Cadáver na festa
de noivado de Flor. A moradora de rua acusou a cantora de ter roubado Rayane
de seus braços e avançou sobre ela com uma faca. Anderson e Flávio
conseguiram desarmá-la. Um dos convidados chamou a polícia. Endividada até o
pescoço com traficantes, Cara de Cadáver fugiu prometendo voltar. Na mesma
festa, Flor ainda teve de enfrentar a fúria de Maria Edna, mãe de Anderson, que
não aceitava o namoro do adolescente de 16 anos com uma mulher de 33.
Carmozina também amaldiçoava o enlace porque o rapaz havia sido namorado
da neta. Flordelis e Anderson se juntaram mesmo assim, rompendo com quem
não abençoava a relação. Junto, o casal estava determinado a seguir carreira
religiosa na Assembleia de Deus do Jacarezinho.
No início, os planos de Anderson eram ambiciosos. Conforme já dito à
esposa, ele pensava em transformar sua casa num abrigo para menores
abandonados. Segundo imaginava, com a visibilidade do trabalho filantrópico,
ele e Flor conseguiriam aparecer na televisão e chamar a atenção da cúpula da
Assembleia de Deus do Rio de Janeiro. Com o prestígio, o casal fundaria sua
própria filial da agremiação e surrupiaria o posto de Demóstenes, então o maior
expoente da igreja no Jacarezinho. Havia, no entanto, um enorme obstáculo a ser
vencido: ao contrário de Demóstenes, Flor e Anderson não tinham ligações
estreitas com o Comando Vermelho. Àquela altura, os laços do pastor experiente
com traficantes eram tão apertados que ele recebia deles, além do dízimo,
donativos e ajuda financeira até em situações de crise, como alagamentos. Para
preservar a imagem da Assembleia de Deus e manter a relação com o CV
amigável, porém, ele ainda mantinha proibido em seu púlpito o testemunho de
ex-traficantes convertidos. Seus inimigos o acusavam de esconder quadrilhas
inteiras nas dependências do templo quando ocorriam investidas da Polícia
Militar nas bocas do Jacarezinho. O religioso negou essa proteção e, segundo
assegurou, fazia questão de chamar os policiais para mostrar cada canto do
templo administrado por ele. Com o passar do tempo, Demóstenes começou a
ser assediado por políticos da periferia e passou a sonhar em ser vereador,
prefeito e até governador. No início da década de 1990, ele recebia com
frequência a visita do renomado arquiteto Luiz Paulo Conde, eleito prefeito do
Rio de Janeiro em 1993. Conde falava com Demóstenes sobre a reurbanização
das comunidades cariocas e colaborava com as obras de reforma da igreja. A
promiscuidade do pastor com a máquina pública despertou ainda mais cobiça
em Anderson e Flordelis.
O prestígio de Demóstenes caiu por terra em 1994, quando se envolveu num
escândalo sexual. Preocupado com a ascensão da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil, ele chamou para conversar em seu gabinete uma missionária
chamada Taís, na época com 18 anos. A jovem era bonita, carismática e atuava
como braço direito de Rose, já com 39 anos. Segundo o pastor havia apurado no
bairro, Taís era uma grande mobilizadora de jovens e eles vinham lotando os
cultos da concorrência. No encontro a sós, Demóstenes mostrou como a
Assembleia de Deus vinha se expandindo cada vez mais no Jacarezinho. O líder
falava do crescimento da sua igreja e fazia observações negativas sobre a
Confissão Luterana no Brasil, como a admissão de gays em seus quadros,
considerada por ele uma afronta a Deus. “Onde já se viu veados pastorando
ovelhas? Onde? Só no inferno!”, debochava. Na conversa com Taís, Demóstenes
falou dos planos da Assembleia de Deus de ordenar mulheres e ofereceu a ela
trabalhar como obreira, auxiliando em seus cultos e ganhando na carteira de
trabalho meio salário mínimo por mês. Os olhos de Taís brilharam com a
promessa. A missionária pontuou, inclusive, ser totalmente contra a corrente da
Confissão Luterana defensora dos homossexuais. “Realmente não tem como um
homem que se deita com outro homem subir ao altar e congregar em nome de
Deus”, frisou a religiosa. “Algumas igrejas, principalmente essas que crescem
sem muitos critérios, são moradia do Diabo. Por isso elas aceitam disparates,
como a pederastia e o adultério”, falou Demóstenes, com 53 anos na época,
casado com uma professora e pai de três filhos. Taís já havia perguntado a Rose
sobre a possibilidade de um dia tornar-se pastora. A líder, no entanto, apontou a
pouca idade da cordeirinha como obstáculo para chegar a um posto tão elevado
na congregação. “Para ser pastora na minha igreja, a candidata precisa ter
experiência de vida”, justificou Rose.
Enquanto Taís reclamava da carreira religiosa, Demóstenes agia feito Satanás.
Ele estava sentado à mesa do escritório, do lado oposto da garota. Alto, magro e
vestido com camisa e calça sociais, o pastor pegou uma Bíblia, levantou-se, deu a
volta na mesa e ficou atrás de Taís, que se manteve estática. “Filha, aqui não exijo
experiência de vida das minhas ovelhas para servir a Deus. Se vier para a nossa
igreja, você vai comandar todos os tipos de culto: o dominical, denominado de
celebração a Deus, pai todo-poderoso; o culto de oração das terças-feiras e o
estudo bíblico das sextas. Você tem ideia da multidão de ovelhas que estarão aos
seus pés?”, vislumbrou. Taís ficou em êxtase, imaginando-se no palco de um
templo grande como aquele. Enquanto ela sonhava acordada, Demóstenes
prendeu a Bíblia numa das axilas e começou a fazer uma massagem relaxante nos
ombros da missionária concorrente. Inebriada, ela não se opôs. Pelo contrário,
relaxou os músculos do trapézio e levantou e abaixou os ombros, para reduzir a
tensão. “Me fale uma coisa: em quanto tempo eu me tornaria pastora se
começasse amanhã como obreira?”, quis saber a jovem carreirista.
Antes de responder, Demóstenes se aproximou ainda mais de Taís e, mesmo
sem tirar a calça, esfregou seu pênis ereto na nuca da garota. “Isso dependerá
exclusivamente de você, irmã”, respondeu. “A pastora Rose trabalhou aqui na
sua igreja por uma década e nunca passou do cargo de obreira”, argumentou
Taís. “Com o passar do tempo, Rose tornou-se uma ovelha maltratada pela vida,
sem muito a oferecer. E ela ainda tem a mácula dos negativos de puta nos
monóculos da bruxa. O Jacarezinho todo viu aquela indecência...”, ponderou
Demóstenes, enquanto se esfregava na moça. Ao ouvir o barulhinho do zíper da
calça do pastor se abrindo, Taís teve um sobressalto e correu do assediador.
Tentou sair pela porta, mas estava trancada. Demóstenes pediu mil desculpas
enquanto fechava a calça. “Basta uma distração para o Diabo entrar no nosso
corpo e alterar a circulação sanguínea do homem. Aí a gente acaba fazendo
coisas erradas mesmo sem nossa vontade. [...] Mas o segredo é uma
demonstração irrefutável de fé, viu, minha filha?”, justificou. Taís soltou um grito
estridente. Funcionárias da Assembleia de Deus bateram na porta até o religioso
abri-la. A jovem saiu de lá correndo com sua Bíblia. No mesmo dia, contou para
toda a favela ter sido vítima de abuso sexual. Foi até uma delegacia, mas os
policiais disseram que a situação caracterizava constrangimento, e não assédio,
pois “o pastor não chegara a pôr o pênis para fora da calça e nada havia sido
forçado”. “Além do mais, é difícil para o homem controlar uma ereção quando
ele fica diante de uma mulher bonita como você”, justificou o delegado, em 1994.
Quando ouviu o relato de Taís, Rose se encarregou de denunciar Demóstenes
na cúpula da Assembleia de Deus do Rio de Janeiro. No primeiro momento,
falaram em transferi-lo para um templo de Bonsucesso após a próxima
assembleia geral ordinária da convenção dos ministros das igrejas evangélicas
Assembleia de Deus, marcada para dali a seis meses. Rose não quis esperar e
ameaçou levar o escândalo a uma emissora de televisão de alcance nacional. Com
medo da publicidade negativa, a instituição tomou providências imediatas.
Demóstenes desapareceu do Jacarezinho sem deixar vestígios. Com isso, o cargo
de pastor na unidade próxima à casa de Carmozina ficou vago e muitas
lideranças se candidataram ao posto. Pretensiosos, Anderson e Flordelis bolaram
um plano audacioso para assumir a função no médio prazo – e isso incluía
intensificar os trabalhos de resgate de meninos de rua para se cacifar junto à
administração da Assembleia de Deus.
Humilhada e deprimida, Carmozina vestiu-se de branco e foi conversar com
Deus às 18 horas na gruta escura, localizada atrás da Capela das Almas.
Segurando uma Bíblia, a bruxa entrou pela abertura estreita e caminhou pelo
túnel por 200 metros até chegar numa bifurcação. Em silêncio e sem enxergar
um palmo diante do nariz, ela apalpou as paredes até encontrar uma rocha, onde
se sentou. Depois de orar por quarenta minutos, surgiu uma luz branca e
brilhante no fundo do túnel. Ao ouvir gritos com ecos, resolveu caminhar a
passos lentos na direção da entrada. Carmozina sentiu que estava sendo seguida
no breu. Ficou com medo de olhar para trás. Ouviu uma voz rouca masculina
chamar por seu nome. A velha apressou os passos. “Não adianta fugir de mim,
sua bruxa decrépita!”, gritou Miquelino, materializando-se em frente à irmã.
Logo atrás surgiu o exército de espíritos de pessoas escravizadas. Eles estavam
com aparência deformada, como na outra vez. Um deles tinha uma corrente
amarrada ao pescoço de forma tão apertada e há tanto tempo que os elos
metálicos amassavam seus músculos posturais. Uma senhora chegou bem depois
da comitiva de mortos porque caminhava lentamente, apoiada pelas paredes do
túnel. Sem os pés, suas pernas começavam na altura dos tornozelos. Miquelino
soltou uma gargalhada diabólica:
– Olha só para você, minha irmã. Está um trapo de pessoa!
– Minha vida foi para o buraco depois que o Chicão morreu!
– Sua vida virou uma merda depois que você roubou minhas imagens, sua
bandida!
– Elas não estão mais comigo!
– Eu sei. Elas estão com a sua filha, aquela filha de Satanás! Mas só vejo
fantasmas e ruínas na vida dessa infeliz.
– Me perdoa, meu irmão!
– Você não precisa da minha clemência. A noite escura será o seu lamento!
Carmozina tentou se afastar do irmão, mas os espíritos das pessoas
escravizadas impediram. Miquelino a segurou pelo braço.
– Você é uma farsa, tal qual a sua filha. O destino de vocês será muito pior do
que o meu. O inferno será pouco para abrigar almas tão pequenas quanto as suas.
Carmozina conseguiu se livrar de Miquelino e correu pela galeria em direção
à luz brilhosa. Adiante, deparou-se cum o vulto de um rapaz banhado de sangue.
Era Amilton, que suplicava:
– Mãe, eu tentei ser um bom filho, mas não consegui. Me desculpe!
– Está desculpado! Por onde é a saída desse inferno?
– Mãe, a Rose é uma pessoa de coração bom. Não faça mal a ela, por favor!
Carmozina soltou um grito e correu feito louca pelo túnel até encontrar a
saída. Prometeu para si nunca mais pisar naquele buraco. Em casa, comentou
com Abigail e Laudicéia que vira Amilton e Miquelino na gruta. As duas não
ligaram para as alucinações da mãe. Depois de tomar um banho, a bruxa foi à
delegacia do Centro do Rio de Janeiro e acusou Flordelis de sequestro de
crianças. “Minha filha finge que está adotando menores abandonados. Na
verdade, ela está roubando os filhos dos outros para formar uma quadrilha!”,
denunciou a bruxa.
* * *
D
epois de seis meses sem um pastor titular, o principal templo da
Assembleia de Deus do Jacarezinho finalmente conseguiu um líder. José
Maria de Oliveira, de 46 anos, conhecido na favela como Zé da Igreja,
assumiu o lugar de Demóstenes com a missão de agregar novas ovelhas ao
rebanho, além de estreitar laços com os traficantes do Comando Vermelho, uma
das maiores habilidades de seu antecessor. Ex-presidiário, o novo sacerdote
protestante mantinha o crime cometido no passado guardado sob o mais
absoluto sigilo. Quando questionado pelos fiéis sobre o motivo de ter sido
condenado, ele desconversava ou dava respostas vagas, sempre frisando o fato de
não dever mais nada à justiça dos homens, pois havia cumprido uma pena de
dezoito anos, nem à divina, uma vez que conseguira perdão celestial nos cultos
liderados por ele no presídio Ary Franco, uma das piores casas penais do Rio de
Janeiro.
Já na primeira semana à frente da Assembleia de Deus, Zé da Igreja
conseguiu com Sandra Sapatão dinheiro para reformar o forro do templo, cuja
madeira tinha apodrecido em razão da proliferação das fezes corrosivas dos
pombos. No mês seguinte, ele ampliou o palco onde eram realizados os cultos e
trocou a instalação acústica – tudo com o dinheiro sujo do comércio ilegal de
drogas. Na década de 1990, o tráfico ainda era uma das principais fontes de
contribuição das instituições religiosas em áreas dominadas pelo crime
organizado. Segundo o livro Operação traficante, da socióloga Christina Vital da
Cunha, da Universidade Federal Fluminense, o dinheiro e o recrutamento de
fiéis são os dois maiores interesses dos traficantes e das igrejas evangélicas
quando se fala na atuação em favelas. “A teologia da prosperidade, por exemplo,
une os dois mundos [do tráfico e da religião]. Os traficantes gostam de dinheiro e
vivem a vida no crime, onde circula muito capital. Já os evangélicos não negam o
dinheiro. Pelo contrário, pois cobram o dízimo de forma ostensiva. Na visão dos
traficantes, a contribuição financeira a uma igreja funciona como uma
purificação do dinheiro sujo. Ou seja, doar para a igreja é uma forma de agradar
a Deus. [...] Alguns traficantes acreditavam que purificavam suas almas ao
contribuir financeiramente com as instituições religiosas. Nos cultos, os pastores
também apresentavam essa alternativa de ajuda como uma espécie de salvação
moral. Era como se, a cada doação, o bandido se renovasse, ou seja, deixasse de
carregar o estigma de criminoso para se tornar uma pessoa de bem”, destaca a
obra da socióloga.
Quando viu Zé da Igreja pregando no palco do Jacarezinho, Flordelis ficou
decepcionada. Chorou por três dias seguidos. Ela almejava um posto de destaque
naquele lugar e trabalhava duro para isso, apesar de a instituição religiosa não
ordenar líderes femininas na época. Flor, no entanto, não perdeu a esperança e
continuou sonhando em ser a primeira mulher pastora da Assembleia de Deus.
Quando soube do trabalho “filantrópico” da missionária e de suas apresentações
nos cultos de domingo, Zé da Igreja chamou a supermãe para um lanche à tarde.
Logo após o encontro, à noite, ele foi internado às pressas no pronto-socorro da
Santa Casa de Misericórdia do Jacarezinho com suspeita de intoxicação
alimentar fulminante. Depois de vários exames laboratoriais, foi constatado
envenenamento por chumbinho, uma substância granulada de cor cinza-escuro
composta de aldicarbe, um agrotóxico de alta potência usado para exterminar
ratos. Zé da Igreja deu queixa na delegacia e a suspeita recaiu sobre sua esposa,
Eulália, de 22 anos. Segundo ele mesmo disse aos policiais, se tivesse morrido, a
jovem teria direito a um seguro da funerária no valor de 25 mil reais. Aos
prantos, a acusada jurou inocência e acabou sendo perdoada por Zé da Igreja.
Mas Eulália pouco se importou com o indulto do marido: fez as malas e foi
morar com a mãe em Rio Bonito, sustentando para todos ser incapaz de matar
uma barata. Para não perder o cobiçado cargo, Zé da Igreja passou a procurar
uma namorada desesperadamente. Nos cultos, flertava com todas as meninas e
chamava as mais bonitas para tomar sorvete. Ele até era um homem charmoso,
mas, como guardava um segredo sobre seu passado, as pretendentes corriam dele
como o Diabo foge da cruz.
Mesmo com o trabalho do pastor se consolidando, Flor não desistiu de um
dia assumir a administração do templo onde congregava e cantava desde criança.
Para aumentar o número de filhos, investiu na evangelização da madrugada. Esse
trabalho comovia populares e chamava a atenção de líderes religiosos de outras
instituições. Um diácono da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
sugeriu que seus integrantes providenciassem alimentos para doar aos carentes
resgatados pela missionária. Rose, que pertencia à instituição, resolveu fazer uma
campanha de arrecadação. Antes, porém, fez uma visita à antiga amiga e foi bem
recebida, em nome dos velhos tempos. Flor falou das dificuldades enfrentadas
para alimentar tanta gente.
– Quantos filhos você já tem? – perguntou Rose.
– Deus tem sido muito generoso comigo. Já estou com dez! É muito amor...
– Tudo isso? Quem são?
– Simone, Flávio, Adriano; Rayane, Ubiraci, Wagner, Alexsander, André Luiz
e Cristiana, essa menina linda que chegou por último.
– Quanta gente!
– Olha, Rose, como disse o salmista, os filhos são, de fato, uma herança do
Senhor. Uma pena que você não tenha nenhum...
– Flor, você falou que são dez, mas só citou nove.
O décimo, cujo nome foi omitido na contagem de Flor, era Anderson, já em
processo de promoção a “marido”. Rose havia participado da festa de noivado do
casal e ficou de queixo caído pelo fato de ele ainda ser tratado pela cantora como
filho, mesmo dormindo na cama da “mãe”. Na verdade, Rose sempre desconfiou
das boas intenções da amiga, pois havia testemunhado Flor tirando bebês dos
braços de mães drogadas no Centro do Rio e caçando uma menina para namorar
Flávio. Suas impressões sobre aquela grande família, que mais tarde constituiria
uma organização criminosa, só pioraram. Enquanto as duas conversavam no
sofá, Anderson passou por elas, deu um beijo longo na boca de Flor e perguntou
se os filhos já haviam almoçado. A cantora ficou constrangida com a cena. Nesse
momento, Rose quis saber sobre os desdobramentos da confusão promovida por
Maria Edna do Carmo, mãe de Anderson. Flor contou ter prevalecido a vontade
do rapaz: ficar em sua casa. Outra situação deu nó na cabeça da moça. André
Luiz, outro “filho” resgatado das ruas, atravessou a sala de mãos dadas com
Simone, sua irmã. Nesse momento, Rose se levantou para ir embora. Lá fora, as
duas conversaram mais um pouco.
– Flor, o que você está fazendo?
– Do que você está falando? – esquivou-se.
– Dessa promiscuidade na sua casa. Você chamando Anderson de filho ao
passo que dormem juntos. A Simone namorando o irmão André Luiz...
– Rose, Deus está despejando amor na minha família. Você é contra o amor?
– Não! Não sou! Mas não acho isso certo!
– Você está nos julgando porque você não ama. Ficou amarga e seca desde
que perdeu o Amilton. Você nunca mais amou ninguém. Agora se coloca contra
o afeto que floresce no seio da minha família...
– Você pretende legalizar a adoção dessas crianças?
– Rose, deixa eu te falar uma coisa: meus filhos são tudo para mim. O amor
que sinto por eles é tão grande e genuíno quanto a existência de Deus! Na minha
casa, eles são todos iguais. Já nem sei quais nasceram das minhas entranhas nem
quais eu resgatei da rua, tamanha é a minha devoção a eles. Para mim, uma
certidão de nascimento é só um papel, ou seja, não significa nada!
Mesmo contrariada, Rose decidiu ajudar a amiga. No próprio dia, mandou
entregar para Mãe Flor alimentos coletados pelos integrantes da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Na semana seguinte, porém, cheia
de boas intenções – segundo disse –, foi ao Ministério Público fazer relatos de
crianças e adolescentes carentes resgatados da rua por uma missionária da
Assembleia de Deus. “Flordelis precisa de apoio jurídico para regularizar a
adoção dos menores tirados do tráfico”, disse ela no balcão de atendimento da
Promotoria da Infância e Juventude. Foi orientada a fazer um relatório detalhado
por escrito. No balcão, a pastora escreveu com uma caneta mais de cinco páginas
contando como era a tal evangelização da madrugada. Para proteger a amiga,
Rose omitiu as ligações sexuais de Flordelis com um dos meninos “adotados”. O
registro de Rose no Ministério Público não foi a primeira denúncia contra
Flordelis. Os pais de Alexsander já tinham dado queixa contra a missionária por
roubo de criança na delegacia do Jacarezinho. Carmozina também comparecera
a uma unidade do Centro para falar dos delitos da filha. Em nenhum dos casos a
polícia abriu inquérito para investigar as ações de Flordelis. No boletim de
ocorrência registrado no Centro, por exemplo, os policiais consideraram as
adoções da cantora como crime de menor potencial ofensivo, aqueles cuja pena
máxima é de até dois anos (ameaça, lesão corporal leve, desacato, entre outros).
Ali, houve até quem classificasse o “trabalho” de Flor como benéfico para as
crianças.
Uma semana depois de entregar o relatório contra Flor, Rose foi chamada ao
MP por um promotor para dar mais detalhes sobre aquela “denúncia gravíssima”
posta de próprio punho no papel. Rose ficou nervosa quando descobriu que seus
relatos davam conta de um crime de maior potencial ofensivo. “Ou a senhora
prova o que foi revelado em seu relatório ou poderá ser processada por falsa
comunicação de delitos, podendo pegar até seis meses de detenção, conforme
está previsto no Artigo 340 do Código Penal [Provocar a ação de autoridade,
comunicando-lhe a ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter
verificado]”. Rose pediu um copo de água para se recompor e começou a
detalhar tudo que sabia sobre a missão de Flordelis em pegar crianças da rua,
inclusive sobre as mães que a acusavam de roubar seus filhos. Nervosa e
arrependida de se envolver em confusão, ela teve um ataque de verborragia e
proferiu um monólogo para tentar inocentar a missionária:
“Mas, olha, se o senhor promotor visse as condições degradantes desses
meninos na rua, até o senhor levaria umas crianças para a sua casa. Eles ficavam
ao relento, tadinhos, desnutridos no meio da praça em plena madrugada e
cercada de marginais... Parecem uns ratinhos, sabe? Essas crianças estão muito
melhor com a Mãe Flor, eu juro! Quer dizer, crente não pode jurar! Nem pela
mãe, porque a mãe é sagrada. Nem pelo céu, porque o céu é o trono de Deus.
Nem pela Terra, porque a Terra é o escabelo de seus pés. Nem por Jerusalém,
porque é a cidade do grande Rei. Me desculpe se estou falando demais! Doutor
promotor, olha só, a Flor é uma boa mãe. Acredite! Não tem procedência
maligna nem pecaminosa em suas ações. Ela dorme com um dos filhos, é
verdade. Mas eles se amam, viu? Eu lhe garanto: muitas mães levam suas crianças
remelentas até a casa dela por livre e espontânea vontade. A Flor fala: ‘não quero,
obrigada’. Mas as mães deixam lá assim mesmo e desaparecem. O senhor já
ouviu falar na roda dos expostos? A casa da Flor parece um depósito de bebês. Vá
na casa da Rua Guarani olhar e o senhor verá com os seus próprios olhos. O
bairro é tomado por bandidos armados, eu sei... Mas, se quiser, eu mesma falo
pessoalmente com os traficantes do Comando para eles deixarem o senhor entrar
na favela. Eles não vão tocar num fio do seu paletó nem lhe cobrarão pedágio...”
Enquanto Rose falava mais do que o homem da cobra, o promotor acionava a
Polícia Civil. Um delegado da 12ª Subdivisão Policial do Jacarezinho associou a
denúncia de Rose à queixa apresentada pelos pais de Alexsander na delegacia.
Rose saiu de lá pedindo “pelo amor de Deus” para a sua denúncia ficar sob sigilo,
pois não tinha provas do que havia dito e também por temer pela vida, já que
havia “filhos” de Mãe Flor ligados ao tráfico. Os policiais ficaram ainda mais
interessados na história. Do Ministério Público, a denúncia contra a missionária
foi parar na Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro. Um mês depois, Flor
foi intimada a comparecer ao gabinete do juiz titular Liborne Siqueira. Na
audiência, o magistrado determinou a devolução de todas as crianças aos pais
biológicos. “Impossível, Excelência. Até porque muitos deles perderam os pais
para o tráfico”, argumentou Flor, com empáfia. “Então vamos recolher todos
para abrigos, pois esses menores devem ser tutelados pelo Estado”, avisou
Siqueira. Flor saiu de lá decidida a desobedecer à ordem judicial. “Quero ver um
oficial de Justiça entrar no Jacarezinho, um território dominado pela
bandidagem”, comentou com Anderson na saída do fórum.
Três meses depois da audiência Flor ainda não havia recebido a visita de
nenhum oficial, conforme havia previsto. Determinada, continuou resgatando
meninos das ruas. Em seis meses, já havia na casa quinze menores, mas os cinco
novatos não se misturavam ao núcleo principal formado pelos dez “filhos”
considerados mais importantes. Essa segregação ficava evidente durante as
refeições, na hora de dormir e até para usar o único banheiro existente. Os dez
“mais” dormiam nos quartos e os cinco “menos” se espalhavam sobre colchões e
papelões na sala e na cozinha – houve relatos até de quem pernoitasse sobre a
mesa de jantar e dentro da pia da cozinha. A comida era servida primeiro aos
mais chegados. Se sobrasse, os demais almoçavam. Caso contrário, para se
alimentar, tinham de mendigar em bairros nobres da zona sul, como
Copacabana, Ipanema e Leblon, já que os moradores do subúrbio não têm o
hábito de dar esmola. Quem quisesse usar o banheiro para defecar tinha de pedir
papel higiênico à Mãe Flor, que mantinha os rolos trancados em seu quarto e só
liberava o material para os preferidos. Os demais tinham de se limpar com um
guardanapo que era lavado na pia do banheiro e reutilizado inúmeras vezes.
Apesar de não transparecer, Flor estava apreensiva com a possibilidade de
uma investida da polícia contra a sua prole. Nesse período, ela ficou mais em
casa. Recebeu visitas das irmãs, Laudicéia e Abigail. “Tenho certeza que alguém
da família fez a denúncia. O juiz tinha um monte de papéis nas mãos quando me
chamou à sala dele. Sabia de detalhes íntimos”, acusou a missionária. “Será que
foi a mamãe? Ela nunca aprovou essas adoções”, arriscou Laudicéia. “Ela jamais
faria isso comigo”, ponderou Flor, acusando os pais de Alexsander. “Ou pode ter
sido uma vizinha invejosa. Nesse meio religioso só tem cobras”, comentou
Abigail. Com dor na consciência, Rose fez uma visita à amiga para ver como ela
estava. Preocupada, sugeriu que Flor entregasse ao Conselho Tutelar pelo menos
metade dos “filhos” e ficasse somente com o “núcleo duro”. Diante dessa
sugestão, a missionária passou a desconfiar da ex-cunhada: “Você seria capaz de
fazer uma denúncia contra mim?”, questionou Flor, sem rodeios. “Jamais. Tá
louca?”, esquivou-se Rose, firme.
Enquanto viviam a expectativa de receber a visita da polícia, Flordelis e
Anderson não saíam nem para trabalhar. Tinham pelo menos 20 crianças e
adolescentes. “Nessa época, a casa da Flor virou um chiqueiro que abrigava
meninos de rua. Muitos saíam diretamente da sarjeta e batiam em sua porta para
dormir em qualquer lugar. Tinha adolescente sem-teto indo lá só para usar o
banheiro”, relatou Olival dos Santos da Luz, de 16 anos, um dos últimos a chegar
nessa temporada, na Rua Guarani. Segundo ele, quando passou pela residência,
os “filhos” mais próximos reclamavam da chegada dos novos hóspedes, mas
Anderson ressaltava que “quanto mais crianças eles recolhessem, melhor seria
para todos”. Nessa época, Carlos Ubiraci, o mais velho, passou a atuar como uma
espécie de gerente. Coube a ele tomar conta do rolo de papel higiênico, por
exemplo. Ele mandava os “novatos” lavarem o banheiro cinco vezes ao dia e
fazerem faxina de manhã, de tarde e à noite, pois a imundície aumentava em
progressão geométrica. Os filhos principais não eram submetidos a trabalhos
pesados.
Antes da gerência de Carlos Ubiraci, a casa – e principalmente o banheiro –
tinha um odor insuportável, por causa do fluxo de gente. Certa vez, o vaso
sanitário entupiu por excesso de fezes e os detritos escorreram pelo corredor e
chegaram à sala. “Era tanta gente para tomar banho e fazer cocô que chegavam a
entrar de três em três, caso contrário não daria tempo para todo o mundo usar.
Não havia escova de dentes para todo o mundo. Eram somente três, com cerdas
escuras de tanta sujeira dentro de um copo imundo, e todos as usavam. Para
otimizar a dinâmica do banheiro, Carlos Ubiraci mandava meninos e meninas
urinarem no quintal”, contou Olival. Sem nenhuma privacidade até para usar o
banheiro, Flávio voltou a reclamar do excesso de gente. Nessa época, aos 16 anos,
ele namorava uma “irmã” de 11 chamada Agatha, resgatada da rua por Simone.
Para fugir da bagunça, Flávio pegou a menina e ficou uma temporada com a avó,
Carmozina.
Um mês se passou e nada de a polícia bater à casa da Rua Guarani. Flor e
Anderson entraram em ação novamente. Fizeram um mutirão para recolher
juntos, numa única noite, a maior quantidade possível de crianças. Para ajudar,
convidaram Theo e Samir, os amigos das orgias na praia. Sabendo do estado
precário da casa, Theo – que não entrava com seu táxi no Jacarezinho, com medo
dos traficantes – levou quarenta rolos de papel higiênico para contribuir com
aquele “trabalho nobre” da missionária. Segundo Flor dizia aos amigos, quanto
mais jovens conseguisse adotar, mais chances teria de obter ajuda financeira de
instituições religiosas e de empresários solidários para construir um grande
abrigo. Ela também falava a todo momento do sonho em ser pastora da
Assembleia de Deus. Em busca de novos “filhos”, Anderson orientava Flor e os
amigos a priorizarem bebês. “Chega de marmanjos! São todos parasitas e dão
muita despesa”, reclamava. Como sempre, Flor investia em moradores de rua
drogados e pegava os rebentos deles sem consentimento. Theo ficou chocado e
abandonou a missão no meio da madrugada. Samir percebeu que, às vezes, os
pais davam crianças de boa vontade para Flor porque estavam possuídos pelos
efeitos alucinógenos da cocaína e de solventes, como ocorrera com Joana Cara de
Cadáver. Alguns realmente procuravam Flordelis de forma espontânea e
entregavam seus filhos pequenos para adoção, como havia relatado Rose no
Ministério Público. Samir ainda testemunhou mães batendo à porta da casa da
Rua Guarani pedindo abrigo para bebês de colo somente durante o dia, fazendo
o local de creche.
Um dos meninos acolhidos por Flor na época em que Samir saía com Simone
foi Edinelson, de 8 anos, apelidado de Beto pelos hóspedes da casa. Seus pais
moravam no 17º andar de um prédio abandonado no Centro do Rio. Drogado, o
casal teria entregado o rapazinho voluntariamente. Passada uma semana, já
lúcidos, os dois foram até a Rua Guarani buscá-lo de volta. Ficaram nesse dá e
toma por três meses. Apegada ao “filho”, Flor resolveu não devolver mais o
garoto, que já a chamava de mãe. A briga por ele ocasionou um bate-boca entre
Flor e os pais biológicos de Beto. Como a grande família já estava na mira da
Justiça, Anderson pediu a Flor que abrisse mão do menino, para não se meterem
em nova encrenca. A missionária ignorou a sugestão. “Não abro mão de nenhum
filho”, retrucou Flor, enlouquecida. Conforme o previsto, a polícia foi chamada.
O Juizado de Menores foi acionado mais uma vez. Um oficial determinou a
devolução imediata do menino aos responsáveis legais. Sem saída, a criança foi
embora. Flor aproveitou para fazer uma cena teatral na hora de entregar Beto aos
pais verdadeiros. Chorou, gritou, descabelou-se, jogou-se no chão. Um policial
advertiu Flor sobre o procedimento aberto em duas delegacias para investigar a
origem daquele monte de gente pernoitando em sua casa. “Não estou nem aí. O
que Deus me deu, o Diabo não me toma”, revidou a missionária aos berros, sob o
foco de luzes azuis e vermelhas de giroflex das viaturas policiais. Como a
confusão atraiu os homens da lei ao Jacarezinho, o Comando Vermelho mandou
um “soldado” avisar Mãe Flor que a facção estava descontente com as visitas
frequentes de policiais à favela por causa de “roubo de crianças”. Abusada, a
missionária desdenhou do recado dos traficantes. Uma semana depois de
entregar Beto, ela resolveu fazer uma visita ao menino. Para sua surpresa, soube
pela mãe que seu “filho” fora jogado pela janela do 17º andar pelo próprio pai,
simplesmente porque o menino chorava de fome e o irritava.
Chocada com a morte trágica, a missionária tomou uma decisão que mudaria
sua carreira materna para sempre. Flordelis foi até o guarda-roupa, pegou a
imagem de Baphomet e a fixou na parede, usando fita adesiva. Em seguida,
agarrou-se fortemente a uma Bíblia e teria orado de forma fervorosa, olhando
para a imagem do homem com cabeça de bode e longos chifres: “Meu Deus!
Obrigada por me dar a missão de acolher essas criaturas celestes que
perambulam sem alma e sem destino pelas ruas. Nunca mais vou entregar meus
‘filhos’, mesmo com uma ordem judicial, mesmo sob ameaças de pais drogados,
mesmo sob a pontaria de uma pistola da polícia ou mesmo sob a mira de fuzis de
traficantes. Deus me escolheu para dar amor a esses pequenos querubins caídos
do céu. Esse será o meu único propósito de vida daqui em diante. Nada me
deterá!”.
Atrelada à Assembleia de Deus do Jacarezinho, onde ainda mantinha o sonho
de assumir o cargo de pastora, Mãe Flor intensificou ainda mais suas buscas por
“anjinhos” pelo Rio de Janeiro. Visionário, Anderson mantinha em ação – de
forma incipiente nessa época – o plano de fazer das adoções uma fonte de renda.
Todos os seus vencimentos no emprego do Banco do Brasil, assim como o salário
de professora de Flordelis, eram investidos no custeio da casa da Rua Guarani.
Entretanto, quando houve ali dentro um fluxo rotatório de 25 adolescentes –
nem todos dormiam no local –, as coisas saíram um pouco do controle. Sem
muito critério para pegar gente das ruas, Flor e Anderson, com a ajuda de Carlos
Ubiraci e Wagner, resgataram menores de 18 anos em conflito com a lei,
suspeitos de assalto a banco, sequestro e até assassinato. Considerados infratores
de alta periculosidade, Aldeci e Selma, de 16 anos, foram recolhidos do entorno
da Central do Brasil e levados para o Jacarezinho. Ficavam lá durante o dia e
saíam à noite pelo Centro do Rio para cometer crimes (infrações, já que eram
menores). Voltavam no meio da madrugada com dinheiro vivo, carteiras, bolsas,
relógios e cordões. Carlos Ubiraci percebeu a atividade criminosa da dupla e
contou para a Mãe Flor, que chamou os dois para uma conversa em particular.
Os adolescentes assumiram a atividade ilegal e ofereceram repassar parte dos
ganhos com os malfeitos a Mãe Flor, para ajudá-la no sustento da casa. Para não
sujar as mãos, a missionária não aceitou receber diretamente, mas orientou o
casal de delinquentes a entregar a contribuição periódica de forma discreta ao
“gerente” Carlos Ubiraci. Algumas semanas depois, porém, os dois
desapareceram, sem nem dizer até logo.
Passados três meses, Selma voltou sozinha, pedindo abrigo e salvação, pois
não queria mais cometer delitos. Ela havia se afastado do namorado, por um
motivo a ser explicado mais tarde. Flor não só a aceitou como fez um culto
especial de boas-vindas, em sua sala, com a presença de suas ovelhas e de
vizinhos. A missionária falou de “arrependimento”, exaltou as qualidades de seu
lar e discorreu sobre o poder de Deus em resgatar fiéis do fundo do inferno,
mesmo depois de mastigados pela mandíbula do capeta. Antes, Selma deu seu
testemunho: “Vi a morte várias vezes diante dos meus olhos, irmãos. Ela é
horrível! Mas não quero mais esse tipo de vida. Quero viver na paz do Senhor,
sob as asas reconfortantes da Mãe Flor e do Pai Anderson”, anunciou,
derramando lágrimas. A missionária abraçou a menina, abriu a Bíblia e tomou a
palavra para si:
“Prestem muita atenção, filhos. [Glória a Deus!] Essa garota linda havia sido
sequestrada pelo Satanás. [Glória a Deus!] Mergulhou nas profundezas do
inferno, foi chamuscada pelas labaredas do Demônio. Teve a alma
completamente derretida e escoada pelo ralo do abismo sem fim. [Glória a
Deus!] Selma foi parar no esgoto do mundo, onde estão depositadas as almas dos
mortos de pecados inafiançáveis! [Glória a Deus!] Mas há uma luz! [Glória a
Deus!] Uma luz divina que se acendeu no firmamento e a guiou de volta ao
paraíso, que é o nosso lar. [Glória a Deus!] Bendita seja a nossa casa. Ela foi toda
construída de harmonia, compaixão, perdão, fé e amor. Muito amor! [Glória a
Deus!]”.
Durante o culto, a maioria dos “filhos” ficou de olhos bem fechados. Os
homens, porém, não deixaram de reparar na beleza de Selma, uma moça de
cabelos pretos e ondulados, dentes bem alinhados e roupas muito curtas. A ficha
corrida da infratora também lhe agregava valor. Esperta, ela capitalizava as
atenções e jogava charme para os rapazes, exceto para Anderson e Carlos
Ubiraci, considerados “feios” pela menina. Como a casa estava lotada, Mãe Flor
pediu aos outros que fossem generosos e dividissem o colchão com a ovelha
arrependida. “De qual você gostou mais, filha?”, perguntou Flor. Selma escolheu
todos: transava a cada madrugada com um “irmão” diferente. Seus parceiros
constantes eram Flávio, Alexsander e Olival, mas às vezes dividia um colchão de
solteiro com dois garotos e acabava transando a três. Numa noite, também
dormiu com Simone. A resenha de sua performance no colchão virou assunto
entre todos os moradores. André Luiz ouviu da namorada Simone boas
referências sexuais de Selma e acabou transando com ela várias vezes, no
banheiro de piso marrom, com permissão da amada. De volta a casa com sua
namoradinha de 11 anos, Flávio também fez sexo com Selma e falou sobre as
qualidades da “irmã” para o padrasto. Depois do consentimento de Mãe Flor,
Anderson dormiu com Selma – e até Samir arrastou a garota para um motel. No
final, o taxista levou um susto: ela pediu dinheiro pelo sexo. Como transava sem
proteção, Selma não engravidou por um milagre. Mas contraiu gonorreia, sífilis,
bubão, tricomoníase, herpes genital, crista de galo, candidíase e HPV. Doente, foi
desprezada pela casa. Compadecido, Olival peregrinou com Selma pelos postos
de saúde do Rio até ela ficar curada. Os dois se apaixonaram e passaram a
namorar seriamente.
* * *
O
templo da Assembleia de Deus antes administrado por Demóstenes, onde
Flordelis soltava a voz aos domingos, prosperou com a gestão do pastor
José Maria de Oliveira, de 36 anos, o Zé da Igreja. A cúpula da instituição
religiosa estava satisfeita com seu trabalho porque a arrecadação financeira havia
aumentado 30% em um ano, muito em função do pagamento do dízimo pelos
fiéis, das doações dos pequenos comerciantes do bairro e principalmente pela
injeção financeira do Comando Vermelho. Em 1995, Zé da Igreja conheceu, em
um dos cultos, a vendedora Izabela Coura, de 22 anos. Ele estava solteiro desde a
suposta tentativa de envenenamento por sua ex-esposa, Eulália. Como a
Assembleia de Deus não aceitava pastores solteiros, ele tinha pressa em arrumar
uma companheira, e Izabela parecia a candidata ideal. Menina bonita, andava
sempre bem-vestida e usava maquiagem leve. Trabalhava na Avon vendendo
cosméticos de porta em porta durante o dia e fazia supletivo à noite. Ainda
assim, tinha tempo para assistir à pregação de Zé da Igreja todos os dias, no final
da tarde. Em um culto festivo dominical, durante a apresentação da banda
gospel Marcenaria da Fé, o pastor aproveitou para se aproximar de Izabela.
Conversaram um pouco no corredor, foram tomar sorvete e a jovem falou um
pouco sobre sua vida e o sonho de se casar. Para espanto de seu pretendente,
entre uma lambida e outra na bola gelada de maracujá, Izabela revelou-se
católica. Sua família frequentava a paróquia de Nossa Senhora Auxiliadora, onde
ela foi batizada e recebeu a crisma, o sacramento no qual o fiel aceita, pela ação
do bispo, uma unção com óleo sagrado. Mas a moça não estava certa se queria
seguir o catolicismo, religião considerada a maior comunidade cristã do planeta.
“Ando meio perdida. Não sei qual religião seguir. Essa é a verdade. Enquanto
estiver em dúvida, vou pulando de galho em galho – até me sentir totalmente
acolhida. Já fui à Deus é Amor, mas achei as pregações muito agressivas. Já as
celebrações da Igreja Batista me pareceram sem graça. Na próxima semana irei à
Sara Nossa Terra, aberta recentemente em Copacabana”, anunciou a ovelha
totalmente desgarrada. Zé da Igreja esperou o fim do colóquio enfadonho e deu
nela um beijo de cinema. Os dois começaram a namorar no dia seguinte, um mês
depois estavam noivos e o casamento saiu em menos de um ano.
Na Assembleia de Deus, Izabela não almejava ser pastora, como ocorria com
a maioria das primeiras-damas dos templos. Ela assumiu o papel de cúmplice e
colaboradora no ministério do esposo, nas funções administrativas na secretaria,
como fiscalizar o trabalho na tesouraria. Izabela também auxiliava o marido nos
cultos. No entanto, sua decepção com a Assembleia de Deus veio com a mesma
rapidez com que engrenou a vida amorosa: a garota ficou incomodada quando
percebeu a ligação escusa da igreja com o Comando Vermelho. Certa vez, ela
estava na secretaria fechando o caixa das doações financeiras quando foi
surpreendida com a chegada de um traficante acompanhado de três “soldados”,
todos fortemente armados. A quadrilha trazia uma mochila abarrotada de notas
de 5 reais. Um dos bandidos abriu o zíper e ordenou que as funcionárias
contassem o dinheiro. Depois de passarem nota por nota, elas anunciaram o total
de 1.985 reais. Os traficantes deram pela falta de 15 reais, pois deveria haver 2 mil
reais na mochila. Desconfiado, um dos soldados pediu a Izabela e suas auxiliares
que repetissem o processo até o valor chegar aos 2 mil reais redondos. No tira-
teima, o montante alcançou 1.990 reais. Para se livrar dos marginais, Izabela
tirou 10 reais da bolsa e completou a diferença. Em casa, os dois brigavam
porque a esposa não tolerava o contato com traficantes. “É como se Deus e o
Diabo andassem de mãos dadas”, argumentava ela. Numa dessas discussões, Zé
da Igreja, imprudente, sentou um tapa no rosto da mulher. Depois da agressão,
ela se tornou uma companheira circunspecta. Na secretaria, Izabela ofereceu
resistência, recusando-se a conferir o dinheiro do crime. “Quanta hipocrisia!”,
retrucava o marido.
Em meados da década de 1990, segundo denúncia do Ministério Público, a
Assembleia de Deus e outras instituições religiosas do Jacarezinho
transformaram-se em verdadeiras lavanderias do dinheiro sujo do tráfico. No
templo onde Flordelis congregava, a lavagem ocorria desde a época do pastor
Diógenes. O esquema, segundo uma investigação da Polícia Federal, funcionava
assim: os líderes pediam dinheiro ao Comando Vermelho para reformar os
prédios das igrejas, encomendar bancos de madeira em marcenarias e instalar
sistemas de som. Os traficantes doavam quantias entre 50 e 100 mil reais,
dependendo do tamanho do templo. No entanto, para o dinheiro ilícito voltar
para as mãos dos traficantes de forma “legal”, o Comando Vermelho indicava os
locais em que o capital deveria ser gasto pelos pastores. Os bandidos
recomendavam lojas de materiais de construção e até supermercados, caso os
sacerdotes comprassem alimentos para fazer doações.
Essas aquisições eram extremamente superfaturadas, para lavar a maior
quantia possível. Para se ter uma ideia, em 2019, uma única operação da Polícia
Civil do Rio de Janeiro encontrou um mercadinho no Jacarezinho cujo caixa
movimentou 30 milhões de reais em um ano, sem ter lastro para tal cifra. Com os
desdobramentos das investigações, descobriu-se que o verdadeiro dono do
pequeno comércio era Marcus Vinicius da Silva, o Lambari, comandante-mor do
Comando Vermelho no Rio de Janeiro. Na década de 1990, a lavagem de
dinheiro do tráfico já era operada por Lambari, que tinha Sandra Sapatão como
sua assistente número 1. Era ela quem mandava os “soldados” levarem ao templo
de Zé da Igreja as mochilas com as notas amassadas de 5 reais, conhecidas na
simbiose do tráfico com os religiosos como “dinheiro sofrido”.
Já com dois filhos pequenos, conformada e até familiarizada com o entra e sai
de bandidos na tesouraria da Assembleia de Deus do Jacarezinho, Izabela
conheceu a carismática Sandra Sapatão, de quem virou amiga e confidente. A
traficante xavecava Izabela, mas não ultrapassava os limites do bom senso: seus
galanteios vinham sempre embalados por elogios e só. “Você é uma mulher
muito bonita para ficar trancada numa sala sem janelas, nos fundos de uma
igreja de favela”, dizia. Em outras ocasiões, Izabela tinha a perfeição do seu rosto
elogiada pela lésbica. Envaidecida, a esposa de Zé da Igreja agradecia o
enaltecimento e desconversava sutilmente, reafirmando sua predileção por
homens. Por uma questão de respeito, a traficante nunca fez uma investida mais
agressiva. “Valorizo muito mais a amizade”, dizia. Certo dia, os ventos mudaram
para Sandra Sapatão: a Polícia Civil fez uma investida no Jacarezinho para tentar
capturá-la. Por meio de uma denúncia anônima, os investigadores descobriram
as ruelas por onde a traficante andava sem a proteção dos “soldados”. Como já
tinha laços bastante estreitos com a bandida, Izabela ofereceu a própria casa para
esconder a amiga da polícia. Sandra aceitou o gesto de carinho sem pestanejar.
Como não havia sido consultado, Zé da Igreja teve uma síncope quando se
deparou com a malfeitora de alta periculosidade sentada bem à vontade no sofá
da sua sala dando papinha para seu filho mais novo, de 1 ano e meio de idade. O
pastor arrastou a esposa pelo braço até o quintal, onde tiveram uma conversa em
particular.
– Que porra é essa?! O que essa traficante está fazendo aqui?
– A polícia está caçando a Sandra na favela inteira e dei abrigo a ela. Tem
dois “fogueteiros” lá na entrada da rua de olho em tudo. Se a polícia chegar lá,
eles mandam avisar aqui.
– Você enlouqueceu? – questionou o marido.
– Olha, eu disse a você que queria distância do tráfico, lembra? Você me
provou que era impossível administrar uma igreja no Jacarezinho sem fazer
negócios com o Comando. E tinha toda a razão. Agora estamos aqui dando
abrigo a uma traficante! – argumentou Izabela.
Na juventude, Sandra Sapatão havia sido uma mulher atraente. Com o passar
do tempo, foi adquirindo expressão de gênero masculino. Sorridente, usava
camiseta regata para mostrar os braços musculosos e mantinha o cabelo sempre
curtinho. Sua aparência chamava a atenção das mulheres lésbicas do Jacarezinho.
Apesar de ser considerada pela polícia uma das bandidas mais procuradas e
violentas do Rio de Janeiro, era querida na comunidade. Tinha fama de ajudar as
pessoas mais necessitadas e chegava a poupar insubordinados das sentenças de
morte decretadas pelo tribunal do crime mantido pelo Comando Vermelho nas
quebradas do Rio de Janeiro, como fez com Carlos Ubiraci. Esses predicados
facilitavam sua vida, principalmente quando ela precisava de abrigo.
Todas as vezes que a polícia fazia investidas na favela, a maioria dos
traficantes escondia-se bem longe do Jacarezinho. Lambari chegava a fugir do
Rio de Janeiro. Com Sandra era diferente, pois a própria comunidade lhe oferecia
abrigo. Ela chegava a ser disputada por famílias carentes, pois onde escolhia se
hospedar não faltava nada: sua primeira providência era abastecer a despensa
com alimentos e bebidas de primeira qualidade. Com Izabela e Zé da Igreja não
foi diferente. Ainda assim, o pastor se mostrava incomodado com a presença da
bandida. “Quando ela vai embora?”, perguntou ele à esposa. “Não tem previsão”,
respondeu Izabela, confortavelmente. “Uma visita não pode se hospedar com
outras pessoas sem dizer a data da saída”, reclamava o marido. “Então use a sua
masculinidade e pergunte a data a ela, caso tenha coragem!”, devolvia a mulher.
A bem da verdade, Zé da Igreja se pelava de medo da traficante, que andava com
uma pistola na pochete e um fuzil poderoso pendurado nos ombros. Depois de
um mês, mesmo com a desistência da polícia em encontrá-la, Sandra permanecia
na casa. Saía para resolver pendências do Comando Vermelho no início da
manhã e voltava à noite para dormir. Para piorar a situação, ela começou a fazer
do endereço um bunker para conferir dinheiro do tráfico, mais tarde
encaminhado à “lavanderia” da Assembleia de Deus. Certa vez, Zé chegou da rua
e encontrou Sandra e Izabela conferindo notas na mesa da cozinha, escoltadas
por dois “soldados” armados com metralhadoras. Ele não falou nada, mas a
expressão de seu rosto denunciava indignação com a cena. Incisiva, a traficante
perguntou:
– Algum problema, pastor?
– Não! Imagina! Está tudo na paz do Senhor... – disfarçou ele.
Num dia em que estava sozinho com a esposa e as crianças, Zé da Igreja
iniciou uma discussão. Izabela carregava o filho caçula no colo, enquanto o
maiorzinho assistia à televisão na sala. O marido começou um embate acalorado,
atribuindo à mulher a responsabilidade pela estadia indefinida de Sandra.
Segundo ele, se Izabela não tivesse estreitado laços além do necessário com a
bandida, ela já teria ido embora. “Nosso lar virou uma filial do Comando
Vermelho. Daqui a pouco os traficantes vão enrolar papelotes de cocaína em
nossa mesa de jantar”, berrava Zé da Igreja. Num arroubo de sinceridade, Izabela
disse ao marido que, por ela, Sandra ficaria morando lá para sempre. Movido por
impulso, o pastor desferiu um murro tão forte no rosto da esposa que, por muito
pouco, a criança não caiu de seu colo. Izabela sentou-se no sofá com uma dor
imensurável. Em uma hora, seu rosto ficou com um hematoma enorme e o olho
direito desapareceu, engolido pelo inchaço roxo de sangue pisado. Ao ver a face
da esposa parcialmente deformada, Zé se ajoelhou arrependido e começou a
chorar copiosamente, dizendo não ter sido ele o autor de tamanha violência.
“Olha só o tipo de coisa que você me faz fazer”, justificou o pastor. Em seguida, o
agressor recorreu ao clichê barato de atribuir suas ações violentas ao Diabo, que
teria entrado no corpo dele num momento de fraqueza e desequilíbrio
emocional. “O estresse enfraquece o espírito e as portas da nossa alma se abrem
para o Satanás...”
Incrédula e em estado de choque, Izabela chorou calada. Pegou os dois filhos
e se trancou no quarto. À noite, Sandra Sapatão chegou para jantar e perguntou
pela amiga. Amedrontado, Zé da Igreja sustentou que ela estava com dor de
cabeça e se recolheu para dormir mais cedo. Na manhã seguinte, quando Sandra
já havia saído “para trabalhar”, Izabela deixou o quarto falando em separação. Zé
não aceitou o divórcio e culpou a hóspede inconveniente pela crise conjugal.
“Desde que essa mulher entrou aqui, nossa vida amorosa degringolou. Nem à
igreja você tem ido”, reclamou. A esposa insistiu no fim do casamento e levou
um segundo murro no rosto – testemunhado por Sandra, que acabara de voltar
da rua. Ao flagrar Zé da Igreja destruindo o rosto perfeito da amiga, a traficante
mirou uma submetralhadora na lâmpada do teto e disparou. Em seguida,
apontou a arma de grosso calibre para a cabeça do pastor. “Começa a rezar, servo
do Satã!”, mandou. Acuado, ele se ajoelhou, suando em bicas e implorando
desesperadamente pela vida. Izabela pediu à Sandra que não assassinasse o pai de
seus filhos. Apaixonada, a bandida obedeceu. “Você deve a vida a ela, seu pedaço
de merda! Nunca se esqueça disso! Anota o que vou te falar: se procurá-la sob
qualquer pretexto, você será carbonizado vivo!”. Izabela arrumou suas coisas,
passou a mão nos meninos e foi morar com Sandra Sapatão do outro lado do
Jacarezinho. Sem nunca terem tido qualquer tipo de contato sexual, as duas
tornaram-se melhores amigas. Izabela assumiu um cargo de confiança na
contabilidade do Comando Vermelho. Acabou namorando Lambari, o número 1
da contravenção no Jacarezinho. Zé da Igreja nunca mais esqueceu o dia em que
perdeu a mulher para o tráfico.
* * *
Para escapar do Juizado de Menores, da polícia e de traficantes do Comando
Vermelho, Anderson, com 18 anos, e Flor, com 34, executaram um conjunto de
ações ousadas, num plano inteiramente bolado por ele. Em 1995, havia na casa
da Rua Guarani uma miscelânea de mais ou menos trinta cabeças, entre filhos
biológicos, adotados, afetivos, agregados, encostados, emprestados, hóspedes
passageiros e até meninos cujas mães precisavam trabalhar o dia inteiro, mas não
tinham com quem deixar os rebentos. Insana, até essas crianças Flor chamava de
“filhos”. O primeiro passo do plano de Anderson foi “enxugar” a ninhada.
Orientada por ele, Flor devolveu para os respectivos pais três jovens com idade
entre 7 e 12 anos, consideradas “insubordinadas”. Para poupar os dois filhos
biológicos mais novos das intempéries e dos perigos da rua, a missionária deixou
temporariamente Flávio e Adriano, apelidado de Pequeno, com a irmã mais
velha, Laudicéia. “Para onde você está indo, sua louca?”, quis saber a moça. “Não
faço a menor ideia. [...] Vou para onde o destino me levar”, respondeu Flor. Em
seguida, o casal saiu em debandada pelas ruas do Rio de Janeiro, levando consigo
um grupo de 25 “filhos”, sendo três bebês de colo – dois deles retirados dos
braços de mulheres usuárias de drogas e o terceiro deixado temporariamente
pela mãe na Rua Guarani, como se ali fosse uma creche. A batida em retirada
começou na madrugada de terça-feira, 28 de junho de 1995, após um jantar bem
reforçado. “Comam bem, pois sabe-se lá quando faremos uma nova refeição”,
orientou Flor. No menu, pão com ovo, café com leite e mingau de amido de
milho para as crianças, carne com feijão-preto e farinha de mandioca para
adolescentes e adultos. Sempre em busca de referências religiosas, Flor comparou
a fuga do Jacarezinho à jornada de Moisés, personagem bíblico escolhido por
Deus para liderar a saída dos hebreus do Egito, onde eram escravizados, rumo à
terra prometida de Canaã.
Foi Anderson quem definiu o roteiro e guiou a marcha noturna. O grupo
saiu do Jacarezinho a pé, na madrugada, e seguiu sorrateiro pelas vielas escuras
da favela para não encontrar os “olheiros” dos traficantes. A maioria caminhava
calçando sandálias de borracha, num trajeto que levou à Rua Leopoldo Bulhões,
na comunidade de Manguinhos, e seguiu pela Avenida Dom Hélder Câmara e
pela Rua Luiz Gonzaga, até chegar a Benfica, bairro localizado na região de São
Cristóvão, zona norte do Rio. Durante a procissão, Flordelis e seu séquito
chamavam a atenção de populares, porque todos andavam de mãos dadas,
formando uma grande centopeia humana. Cobertos por mantas, os três bebês
eram carregados por Simone, Carlos Ubiraci e Cristiana. Para dar um tom ainda
mais dramático ao cortejo, a grande família entoava cânticos de louvor, como o
clássico Segura nas mãos de Deus. Um trecho diz: “Se a jornada é pesada e te
cansas da caminhada, segura na mão de Deus e vai orando, jejuando, confiando e
confessando”. Cantadas em coro por crianças e adolescentes, liderados pela voz
potente de Flordelis, as músicas sensibilizaram quem passava de carro. Alguns
motoristas ofereciam carona, mas eles recusavam, pois a romaria desumana fazia
parte do ritual de sacrifício. Quando o grupo chegou ao Largo do Machado, no
bairro de Laranjeiras, o dia estava clareando. Anderson organizou os meninos
em fila indiana, do menor para o maior, despertando a curiosidade de quem
seguia para rezar a missa matinal da igreja de Nossa Senhora da Glória. Na praça,
aos pés da estátua de Nossa Senhora da Conceição, mortas de fome, as crianças
maiores começaram a mendigar feito moradores de rua. Não demorou para
ganharem alimentos. Outros meninos – sem-teto e sem-rumo – juntaram-se à
família, aumentando o comboio. “Quanto mais ‘filhos’ de rua, melhor para
valorizar a nossa causa”, justificava Anderson.
No final da tarde, Flor e seus seguidores já haviam almoçado. Do Largo do
Machado, foram cantando pela Rua Senador Vergueiro até a praia de Botafogo.
Pararam embaixo do Viaduto San Tiago Dantas, uma edificação histórica
projetada por Affonso Eduardo Reidy, arquiteto autor do Museu de Arte
Moderna e do monumento dos Pracinhas no Aterro do Flamengo. Lá, juntaram-
se a um grupo de moradores de rua, onde recrutaram mais dois “filhos”: Ginaldo
Acioly, 16 anos, vulgo Orelhinha, e Adonai Xavier, 17, conhecido no submundo
como Xaropinho. Ambos moravam no Morro do Alemão, mas vadiavam pelas
ruas para escapar da polícia. A dupla praticava assalto à mão armada em
pequenas lojas de bairros nobres da cidade. Numa das investidas, os dois
entraram numa unidade franqueada de O Boticário, em Copacabana, e
apontaram uma pistola para a funcionária responsável pelo caixa. Levaram tudo.
Na saída, toparam com um estudante usando um celular Motorola, artigo de
gente endinheirada na época. Orelhinha já tinha guardado a arma e exigiu o
telefone da vítima. Como teve a solicitação negada, o ladrão sacou a pistola e
pediu mais uma vez. O estudante enfiou a mão no bolso e acabou levando um
tiro no ombro. A dupla pegou o celular e fugiu em disparada rumo ao Morro do
Pavão-Pavãozinho. Hospitalizado, o rapaz sobreviveu, mas os dois marginais
passaram a ser procurados insistentemente pela polícia. Ao se infiltrarem na
“família” de Flordelis, Orelhinha e Xaropinho logo se entrosaram com Selma, a
“filha” aprendiz na bandidagem. Com os novos membros, a gangue já somava
novamente trinta membros.
Na primeira noite sob o viaduto, chefiados por Carlos Ubiraci e Wagner, os
adolescentes maiores saíram pela redondeza em busca de papelão para servir de
cama. Extremamente cansada, a “família” dormiu ao relento, inclusive os três
bebês, cobertos por várias camadas de jornais. Estavam ali, lado a lado, Flordelis,
Anderson, Simone e seu irmão-namorado André Luiz, Carlos Ubiraci, Wagner,
Cristiana, Alexsander, Rayane, Selma e seu irmão-namorado Olival, Orelhinha e
Xaropinho, entre outros. No meio da madrugada, os bebês começaram a chorar
de fome. Flor, Simone e Cristiana os embalavam insistentemente, mas nada
adiantava. Mesmo sem um tostão no bolso, Selma e Olival saíram em busca de
alimento para os irmãozinhos. Caminharam três quadras pela beira-mar até
chegarem a uma pracinha escura frequentada por namorados em busca de
privacidade para transar ao ar livre.
Com experiência em pequenos assaltos à mão armada, Selma mantinha com
ela um canivete dentro da calça jeans justa no corpo. Desarmado, Olival resolveu
acompanhar a namorada. A menor infratora abordou um casal que namorava do
lado de fora do carro. Primeiro pediu uma ajuda financeira, que foi negada. “Por
favor! Me dê qualquer trocado. Minha família está dormindo embaixo do
viaduto com três nenês famintos”, insistiu. “Dê o fora daqui!”, retrucou o rapaz
da zona sul, irritado. Olival pegou a namorada pelo braço e quis deixar o local,
mas ela insistiu. “Se você me der uma moeda de 1 real já é alguma coisa. Ajuda
aí, vai...”. “Porra, já disse para você sumir!”, esbravejou. A jovem que estava com
ele enfiou a mão no bolso, em busca de uma nota para dar a Selma. “Vamos
embora”, reiterou Olival, amedrontado. Num ímpeto, Selma pegou o canivete e
cortou o ar – ao mesmo tempo ela viu uma pistola apontada para sua cabeça.
Olival saiu às pressas e atravessou a Avenida Repórter Nestor Moreira até chegar
ao estacionamento do Clube de Regatas Guanabara. De lá, ouviu gritos de
mulher seguidos de três disparos de arma de fogo. Apavorado, seguiu correndo
pela praia de Botafogo até alcançar o viaduto onde o grupo permanecia abrigado.
Olival estava aos prantos, acreditando na possibilidade de Selma ter sido
assassinada na reação das vítimas ao assalto. Flor sugeriu uma corrente de
orações.
Duas horas depois, a garota chegou ao viaduto sorridente, segurando seis
sacolas de supermercado com papinhas de bebê, pacotes de biscoitos doces e
salgados, latas de refrigerante, papel higiênico e até absorvente higiênico.
Orelhinha e Xaropinho ficaram boquiabertos com a atitude de Selma e
decepcionados com a falta de coragem de Olival. A assaltante escapou porque
seu algoz havia atirado para o alto. Apavorada, ela se acocorou e, com as mãos na
cabeça, começou a chorar desesperadamente. Segundo contou, o casal se
compadeceu ao ouvir toda a história dramática da sua “família”. “Debaixo do
viaduto tem mais de trinta crianças com fome”, dizia ela repetidamente. Os
namorados, então, a levaram até um supermercado 24 horas para fazer as
compras. Flordelis já conhecia a tendência de Selma para o crime. Anderson teria
nomeado a menina mais a dupla Orelhinha e Xaropinho como os provedores do
grupo. “Mas só vamos lançar mão desse expediente em casos extremos. [...] Aqui
ninguém faz coisas erradas sem a minha autorização”, alertou Anderson aos
“filhos” que tinham os pés enfiados no crime. Era comum o trio sair de baixo do
viaduto para cometer delitos pela redondeza. Com ciúme da irmã-namorada,
Olival também passou a praticar pequenos furtos nas praias da zona sul com os
marginais. Começou furtando telefone celular, carteira e óculos escuros de
turistas incautos que largavam suas coisas na areia da praia para mergulhar no
mar. Depois, anunciava assalto usando arma de brinquedo. Evoluiu para uma
pistola de pressão com munição de chumbinho.
Na época da fuga de Flor, os irmãos Werneck ainda mantinham o pagamento
semanal de meio salário mínimo para ajudar nas despesas da missionária. O
dinheiro era depositado na conta de Anderson no Banco do Brasil e usado em
gastos básicos, como pequenas compras de supermercado. Mas o recurso era
insuficiente para alimentar tantas bocas e todo o mundo tinha de batalhar
pedindo esmolas e intensificando a prática de pequenos furtos. Embaixo do
viaduto, Flor costumava pregar para seus filhos feito pastora, falando das
adversidades da vida em família imposta por Deus, segundo ela. Durante o
louvor, mendigos se juntavam para ouvir os sermões da missionária. Depois de
uma semana abrigada sob o viaduto de Botafogo, a “família” foi surpreendida à
noite durante um culto por uma aproximação da Polícia Militar. Quando cinco
viaturas encostaram no local, parte dos moradores de rua envolvidos em crime
andou lentamente rumo à praia. Flordelis, com medo de ser presa, interrompeu a
oração e cobriu-se com papelão. Os policiais acenderam um holofote na direção
dos sem-teto e seguiram adiante, sem ao menos descer do carro.
No dia seguinte, Wagner, Alexsander e Carlos Ubiraci saíram com os
meninos mais novos para mendigar pela orla da praia do Leme. No caminho,
recolhiam jornais e papelões das lixeiras. Parado perto de um quiosque, Ubiraci
quase desmaiou quando viu na televisão o noticiário RJTV, da TV Globo, usando
imagens da entrevista feita com Flordelis e sua prole numerosa numa
reportagem sobre a fuga. Encarando a câmera, uma repórter disse enfaticamente
que a missionária estava sendo procurada pela polícia. O telejornal também
mostrou imagens da casa da Rua Guarani, totalmente fechada, e entrevistas com
Carmozina, Rose e até com o pastor Zé da Igreja, que afirmaram não ter a menor
ideia do paradeiro da supermãe. Nos jornais impressos do dia seguinte, a grande
família estampava as manchetes policiais.
Na edição de O Dia de 12 de julho de 1995, um alto de página tinha o
seguinte título: “Procura-se Flordelis”. Algumas mães biológicas de crianças
levadas pela missionária foram até a polícia e contaram ter deixado os filhos na
Rua Guarani acreditando se tratar de uma creche. Essas mulheres acusaram
Flordelis diretamente de “roubo”. No dia seguinte, as reportagens sobre o sumiço
da missionária ganharam mais destaque, porque o assunto era abordado na
mídia feito novela. Com base em depoimentos de mães, o Jornal do
Brasil estampou uma foto da cantora, acusando-a de sequestro. “Dona de creche
desapareceu com 43 crianças”, escreveu O Dia, inflando o tamanho da centopeia
humana. Com tanta repercussão negativa sobre a “filantropia” da supermãe do
Jacarezinho, os Werneck resolveram suspender o repasse financeiro para a conta
bancária de Anderson. Quando percebeu que o dinheiro não havia caído, ele
telefonou para Pedro Werneck.
– Doutor Pedro, bom dia! Espero que o senhor esteja bem. Percebi que a sua
caridade não chegou à minha conta bancária. Aconteceu algum problema?
– Vocês estão sendo acusados de sequestro. Está em todos os jornais –
ponderou o empresário.
– A imprensa está mentindo. Estamos fugindo porque a Justiça simplesmente
quer tirar os nossos filhos.
– Onde vocês estão?
– Fixamos moradia debaixo de um viaduto e estamos passando fome. Se o
senhor não contribuir mais com esse dinheirinho, três bebês de colo vão morrer
de desnutrição. Pelo amor de Deus, doutor. Não deixe que isso aconteça. [...] A
vida desses anjinhos está em suas mãos!
Para checar se a história contada por Anderson era verdadeira, os irmãos
Werneck passaram discretamente de carro pelo viaduto. Comovidos com o que
viram, os empresários não só voltaram a colaborar como ainda aumentaram os
repasses para dois salários mínimos. Nessa época, eles vinham investindo no
terceiro setor, contribuindo com causas humanitárias voltadas para a defesa dos
direitos da criança e do adolescente e articulando doações com diversos
empresários do Rio de Janeiro. Em 1998, fundaram oficialmente o Instituto da
Criança, que mais tarde ficaria famoso a reboque da ascensão de Flordelis e sua
falsa vocação para a caridade. Com o tempo, o trabalho dos irmãos Werneck
cresceu e alcançou projeção internacional.
Em 2016, quando foi eleito uma das 100 melhores organizações não
governamentais do mundo pela publicação suíça The Global Journal, o Instituto
da Criança mantinha dezesseis projetos sociais, beneficiando mais de 3 mil
pessoas. Uma dessas ações construiu, na época, 24 casas de alvenaria para
desabrigados de uma das tradicionais enxurradas da região serrana do Rio, muito
comuns nas viradas de ano. Para esse projeto, os Werneck conseguiram levantar
4 milhões de reais com vinte empresários. No high society carioca, a família era
conhecida pela falta de vergonha na hora de passar o pires em busca de
colaboração financeira de empresários ricos para seu instituto. Certa vez, Pedro
caminhava pela praia do Leblon quando encontrou, por acaso, o amigo Mário
Pedro Moraes Rego, dono da grife Eclectic, e os dois sentaram-se
despretensiosamente para tomar uma água de coco. No meio da conversa, Pedro
engatou as histórias tristes dos menores abandonados, incluindo o trabalho
“filantrópico” de Flordelis em resgatar meninos do tráfico. A lamúria convenceu
o amigo a colaborar com os projetos do Instituto da Criança.
Com o dinheiro dos Werneck no bolso, Anderson foi às compras todo
sorridente. Chegou ao viaduto com sacolas cheias de marmitas com pratos feitos
e refrigerante. Ao contar a novidade sobre o aumento da doação dos
empresários, arrancou aplausos e gritos de euforia. Mas a alegria durou pouco.
Carlos Ubiraci chegou com os jornais cariocas e suas páginas policiais noticiando
a fuga alucinante de Flordelis, causando apreensão e medo. Nervoso, Anderson
foi até um telefone público ligar para os velhos amigos das orgias na praia –
Samir e Theo –, implorando socorro. “Me ajudem a salvar essas crianças”,
suplicou. Preocupada, Flor foi ao encontro de Rose na Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil, no Jacarezinho. Da amiga, ouviu outra notícia
aterrorizante: os traficantes do Comando Vermelho tentavam encontrá-la antes
da polícia para executá-la a sangue frio, conforme havia sido prometido por
Sandra Sapatão.
Os bandidos estavam irritados com Flordelis por ela ter atraído a polícia e a
imprensa à favela, atrapalhando as atividades criminosas. Todas as vezes que
uma viatura entrava na comunidade em busca de Flor, o comércio de drogas era
interrompido e os traficantes se entocavam. Só botavam a cara ao sol novamente
quando os policiais se retiravam. Da casa de Rose, Flor planejava visitar
Carmozina e Laudicéia. Com medo de ser assassinada, porém, preferiu sair da
favela imediatamente. A missionária caminhou a passos largos da igreja de Rose
até a Praça da Concórdia, no centro do Jacarezinho, subiu na garupa de um
mototáxi e seguiu até o estádio do Maracanã, onde pegou um ônibus rumo ao
Viaduto San Tiago Dantas, em Botafogo. Embaixo do monumento, ela, seu filho-
namorado e o núcleo duro da família, composto ali por Carlos Ubiraci, Simone,
Wagner, Cristiana e André Luiz, fizeram uma reunião para decidir seus
próximos passos. Com medo de perder a mãe, Simone propôs o retorno para a
Rua Guarani e sugeriu entregar ao Juizado de Menores quem não tinha registro,
como determinava o juiz Liborni Siqueira. Cerca de trinta crianças e adolescentes
ouviram a sugestão da irmã mais velha e começaram a chorar. “Nem pensar! São
todos meus filhos! Prefiro mil vezes a morte a me desfazer deles”, esbravejou
Mãe Flor. Anderson também descartou a possibilidade de entregá-los. “Nossos
filhos são o nosso ganha-pão. Sem eles, perderemos a ajuda dos Werneck. Sem
eles, adeus mídia”, argumentou o bancário.
À noite, Carlos Ubiraci pegou dinheiro com o “pai” e foi até a padaria.
Comprou noventa pães franceses, 250 gramas de manteiga e cinco garrafas de
refrigerante de dois litros, além de potinhos com papinhas para os três recém-
nascidos. Um deles, aliás, vinha rejeitando o alimento e começou a preocupar
Mãe Flor. Carlos Ubiraci, considerado o líder do rebanho, organizou o jantar.
Para cada um dos “filhos” mais chegados, ele abriu com as mãos dois pães
franceses, passou manteiga usando uma colher de plástico e serviu com
refrigerante no meio da calçada. Depois, deu a cada um dos “secundários” um
pão fechado e sem manteiga. Apesar de contribuir com o sustento da família
praticando assaltos nas redondezas, Selma teve a manteiga negada, gerando o
primeiro conflito no grupo. Marrenta, ela questionou em voz alta:
– Qual critério você usou para escolher quem deve ganhar pão seco e quem
deve ganhar pão com manteiga?
– Em primeiro lugar, abaixe esse tom! Em segundo lugar, não temos
manteiga para todo o mundo, então eu priorizo quem está conosco há mais
tempo – explicou o líder.
– Esse critério não me parece justo, pois nós saímos todos os dias para ajudar
no sustento da família – argumentou Olival.
– Também quero manteiga, porque eu trago uns bagulhos da rua pra cá! –
exigiu Orelhinha.
– Infelizmente, regras são regras! – insistiu o gerente da turma.
Anderson e Flordelis discordaram de Carlos Ubiraci, mas resolveram não
interferir para não tirar a autoridade do líder. Orientada sutilmente pela mãe,
Simone retirou oito pães da sacola, passou manteiga e deu discretamente aos
bandidos-mirins. Orelhinha e Xaropinho comeram e saíram para praticar
assaltos em Copacabana. Olival agradeceu a oferta e recusou. Ele pegou sua
namorada pelo braço e saiu para “jantar fora”. Os dois entraram em um táxi na
praia de Botafogo e pediram ao motorista que os deixasse na Central do Brasil.
Quando o carro entrou no Viaduto Engenheiro Noronha, Olival puxou a pistola
de pressão da cintura e apontou para a cabeça do motorista, anunciando o
assalto. A ousadia foi cometida a poucos metros do Palácio das Laranjeiras,
residência oficial do governador do Rio de Janeiro, uma área altamente vigiada
por policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar.
Apavorado, o condutor deu cerca de 200 reais, ou seja, todo o dinheiro de um dia
inteiro de trabalho. Olival e Selma desceram do táxi em frente ao Cemitério do
Catumbi, entraram numa lanchonete e comeram hambúrgueres com Coca-Cola.
Durante o jantar, o casal decidiu abandonar a grande família. Não pela treta
envolvendo pão com manteiga, mas por decidir enveredar definitivamente para
o crime. Com isso, não seria mais prudente ficar ao lado de Flordelis, que tinha a
Justiça em seu encalço.
Na mesma noite, uma outra viatura da Polícia Militar encostou no viaduto e
identificou Flordelis com os demais foragidos. Dois homens da lei chegaram bem
na hora em que a trupe se arrumava para dormir. Enfático, um dos policiais
ordenou que todos ficassem em pé, encostassem numa pilastra virados de costas
e com as mãos na cabeça. Flor começou a chorar copiosamente, implorando para
não machucarem ninguém. Um morador de rua conhecido na área se aproximou
e defendeu a supermãe, citando os cuidados dela com as crianças, principalmente
com os bebês. O sem-teto falou aos policiais que ela havia “adotado” até uns
garotos de rua cuja moradia era o concreto do viaduto. “Agora eles fazem duas
refeições por dia. Larguem ela em paz e vão procurar bandidos no morro!”,
gritava a testemunha. Sabendo da fuga de Flor e seus “filhos”, o policial a
interrogou:
– A senhora sabe que está sendo procurada pela Justiça?
– Sei, sim senhor! – admitiu a missionária.
– De quem são essas crianças?
– São todas minhas! – reiterou.
– Prove que elas são suas!
– [Silêncio]
– Por que a senhora não entrega todas ao Juizado e acaba logo com isso?
– O senhor entregaria um filho seu? – perguntou Flor, emocionada.
– [Silêncio]
– Responda!
– A senhora está presa! – anunciou o policial.
Como era de se esperar, cerca de trinta “filhos” de Flor se juntaram a ela e se
deram um abraço coletivo em meio a uma choradeira sem fim. Pelo rádio do
carro, um dos policiais pediu um micro-ônibus para conduzir a grande família
do viaduto à delegacia. No aglomerado de gente havia filha biológica, filhos
afetivos, criança roubada, criança emprestada, três bebês e até meninos de rua
agregados recentemente. Com dó, os moradores de rua também se juntaram e
abraçaram todo mundo. Um dos policiais foi informado pela base: o veículo só
chegaria dali a três horas. O choro coletivo continuava. Com os olhos ensopados,
Rayane perguntou para onde iria. “Provavelmente para o orfanato”, respondeu
Mãe Flor. Um dos policiais finalmente se comoveu com a cena triste, mas se
mostrou irredutível. Anderson tentou convencê-los a mudar de ideia usando
uma narrativa poderosa:
– Seu policial, deixa eu te falar uma coisa com toda a honestidade deste
mundo: essas crianças realmente não são nossas. Tem menino aí nesse meio que
não sei nem o nome, muito menos quem são seus pais, admito. Esses três bebês
nem sei como vieram parar aqui. Somente essa garota é filha biológica da Mãe
Flor [ele aponta para Simone]. O resto a gente recolheu da rua. Tá vendo aquelas
sacolas ali no chão? São alimentos. A gente comprou comida para esses meninos
com o nosso dinheiro. Sabe para onde eles vão depois que vocês os entregarem
ao Juizado? Vão todos para um abrigo. Ficarão lá esperando eternamente por
uma adoção. Mas quem vai acolher essas pobres criaturas? Ninguém, pois no
Brasil a maioria das famílias só quer adotar crianças de pele branquinha, olhos
clarinhos e cabelinhos loirinhos bem lisinhos, feito espiga de milho. Sem a
menor perspectiva de ganhar um lar, esses meninos pretos vão sair do abrigo
com 18 anos diretamente para a rua. Sem trabalho, vão assaltar, sequestrar,
traficar e matar. Olhem bem no rosto de cada um deles. É bem possível que
vocês, policiais, algemem um deles no futuro...
Morando na rua, Anderson amadureceu, desenvolveu a oratória e aumentou
seu poder de convencimento, tornando-se um líder. Ele já havia cultivado o
hábito da leitura, dando preferência a livros religiosos. Esse combo – leitura, boa
oratória e liderança – seria usado mais tarde para alavancar a carreira de
Flordelis como cantora e pastora, e até a sua própria como pregador. Depois de
ouvir Anderson falar, os policiais se convenceram: era muito melhor deixar
aquelas crianças sob os cuidados da dupla embaixo do viaduto do que levá-las
para uma casa de acolhimento. Na mesma madrugada, Samir e Theo chegaram
com um caminhão e resgataram a grande família. Houve festa quando a
molecada subiu na carroceria e seguiu pelas avenidas Atlântica, Vieira Souto e
Delfim Moreira, passando pelas praias de Copacabana, Ipanema e Leblon. Com
medo da perseguição policial, Selma, Olival, Orelhinha e Xaropinho
abandonaram a turma e se jogaram definitivamente na criminalidade.
Os amigos de orgia levaram a centopeia humana para uma casa ampla, de
alvenaria, no bairro do Irajá, na zona norte, próximo de onde Theo morava. Sem
proprietários conhecidos, o lugar estava abandonado desde 1985, quando o
marido do casal que alugava o imóvel morreu, aos 95 anos, e a viúva foi para um
asilo no Rio Comprido.
Para invadir a residência, Anderson, Theo e Samir arrombaram a porta de
madeira maciça da cozinha com chutes. Comparado com o casebre da Rua
Guarani, o endereço do Irajá era um paraíso. Recuada, a habitação tinha cinco
quartos grandes com camas de solteiro, suíte com cama de casal, garagem para
cinco carros e pátio descoberto com piso de cimento, além de três banheiros e
cozinha com fogão, geladeira, armário e mesa para seis pessoas. A sala espaçosa,
em L, contava até com sofá, poltronas e televisão.
Quando Simone se deparou com o “luxo”, pediu para Cristiana beliscá-la,
tamanho era o sonho. Os muros ao redor eram baixos e no quintal havia um
campo de futebol com acesso livre para a rua de trás. Nos finais de semana,
moradores da região jogavam peladas no terreno. Carlos Ubiraci organizou o
mutirão para capinar, lavar e faxinar o lugar. Parte das telhas de barro teve de ser
arrumada para eliminar as goteiras. Samir bancou os pequenos reparos, Theo
comprou o material de limpeza. No dia seguinte, a grande família estava
acomodada. Anderson e Flor ocuparam a suíte, de acesso restrito – às vezes,
André Luiz e Simone dormiam lá. Os três bebês foram acomodados num único
colchão, posto no chão para evitar que caíssem. Como não havia cama para
todos, alguns “filhos” acomodaram-se em papelões pelo chão da sala e outros
tiveram de dormir na garagem, ao relento, pois Flor não queria ninguém deitado
pelos corredores de sua casa nova, empatando a passagem.
No dia seguinte, como de praxe, uma parte saiu para mendigar nas ruas de
bairros nobres. Depois de fazer um “gato” no fornecimento de energia elétrica,
Anderson ligou a TV e se deparou com mais reportagens falando da fuga
fantástica de Mãe Flor e seus “filhos” roubados. No final da tarde, quando os
meninos chegavam da rua, a casa virava um pardieiro. Flor, Simone e Cristiana
gritavam com a prole, pedindo que não fizessem barulho, mas os mais velhos
batiam nos mais novos e a choradeira reinava. Quando o excesso de ruído
começou a incomodar a vizinhança, uma moradora do bairro, conhecida como
Dona Noberta, de 65 anos, bateu à porta para xeretar. “Você é a Mãe Flor, né? Eu
vi sua história na televisão”, anunciou. Desconfiada, a missionária não disse
“sim” nem “não”. Anderson pediu à senhora que entrasse e repetiu a ladainha de
sempre. “Tá vendo esse monte de meninos? São todos nossos filhos. A gente
precisa de comida...”. Dona Noberta contou 21 cabeças no dia dessa visita,
incluindo os três bebês. Um deles, inclusive, estava com sinais aparentes de
desnutrição e com o corpo quente de tanta febre.
– De quem são essas crianças de colo? – perguntou a visita.
– São minhas filhas! Elas não são lindas? – comentou Flor, emocionada.
– Como elas se chamam?
– Ainda não deu tempo de colocar nome. A gente chama a primeira de bebê,
a segunda de neném e a terceira de filhotinha. Mas nem sei quem é quem, porque
elas não têm roupinhas – contou Simone, que embalava uma delas no colo.
– Se essa menina não for levada ao pronto-socorro urgentemente, vai morrer
de tanta febre – alertou dona Noberta.
– Acontece que, se entrarmos num hospital público, seremos presos. A
polícia está atrás da nossa família. A Flor está estampada em todos os jornais
como foragida da Justiça – ponderou Anderson.
A bebezinha doente tremia e passou a babar e fazer cocô aguado. Para piorar,
teve candidíase oral, feridas popularmente chamadas de sapinho. Na correria da
polícia, os nenês estavam sem tomar banho havia dez dias, o que contribuía para
a proliferação de todo tipo de fungo e bactéria. Para aplacar a febre, Cristiana
esfregava uma fralda molhada no corpo da criança. Flor contou uma história
triste para Noberta: segundo ela, uma moradora de rua viciada em cocaína havia
parido a filha prematuramente num canteiro da Praça Procópio Ferreira, às
margens da Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio. Sem leite e sem a
menor vontade de ser mãe, a sem-teto teria colocado a menina para morrer
dentro de uma caixa de sapatos. “Isso mesmo! Era tão miudinha que cabia numa
caixa de sapatos. Dá para acreditar? A mãe fechou com a tampa como se fosse
um caixão. Eu a acolhi como filha”, reforçou Flor, debulhando-se em lágrimas.
Noberta também chorava com a história comovente. “Você é uma flor de
pessoa”, reverenciou a vizinha. “A senhora acha que ela tem quantos meses?”,
indagou a missionária. “Deve ter uns dois”, arriscou a visita. “Nada! Ela está
subnutrida porque nasceu prematura, no sétimo mês de gestação. Tem quase seis
meses, mas parece que nasceu na semana passada”, completou. Estarrecida com
tanta desgraça, Noberta saiu aflita e impressionada com a aparente benevolência
da supermãe. No dia seguinte, voltou com várias sacolas contendo macarrão,
arroz, feijão, leite, latas de carne em conserva, muitos ovos e três mamadeiras
para os nenês.
A vizinha pegou um termômetro e mediu a temperatura da bebê febril pelo
ânus: estava beirando os 41 graus. Nessa visita, chamou a atenção da vizinha o
fato de a nenê estar queimando em febre num colchão posto no chão do quarto,
ao mesmo tempo que adolescentes jogavam futebol no quintal e crianças maiores
assistiam à TV Colosso na sala. Enquanto isso, os mais velhos, Carlos Ubiraci,
Wagner e Alexsander, conferiam os itens das sacolas de supermercado levados
gentilmente por Noberta, como se as compras fossem uma encomenda. “Tá tudo
aqui”, atestou Carlos Ubiraci. “Eles eram todos meninos de rua, por isso ficam
ansiosos quando chega alimento”, justificou Anderson, meio constrangido.
Noberta saiu para providenciar um berço para os bebês. Flor entrou na cozinha e
assumiu o comando: “Simone e Cristiana, preparem o almoço! Rayane, dê as
mamadeiras para os bebês. Faça de tudo para a doentinha comer!” O bebezinho
com febre continuou rejeitando alimento e já não tinha mais forças nem para
chorar. No entanto, a vida na casa não parava. Do quintal, ouviam-se gritos de
marmanjos comemorando os gols, enquanto a cadela Priscila dançava na tela da
televisão, despertando risos na plateia.
Na hora de servir a refeição, Flor foi até o fogão e abriu panela por panela.
Percebeu que a carne em conserva preparada com molho de tomate levada por
Noberta não daria para todos. A missionária decidiu servir primeiro os mais
chegados: Simone, André Luiz, Carlos Ubiraci, Cristiana, Wagner e Rayane. Os
demais “filhos” deveriam esperar os mais importantes comerem para se servir
das sobras. A cena era humilhante, pois todos estavam com fome e o cheiro do
almoço impregnava a casa. Mas alguns realmente eram obrigados a aguardar. No
momento dessa divisão, Theo chegou com um saco contendo vinte pães
franceses e testemunhou como Flor era injusta na hora de repartir a comida.
Anderson defendeu o critério das refeições usando as regras da aviação civil.
“Quando a cabine do avião despressuriza, eles mandam pôr as máscaras de
oxigênio primeiro nos adultos. Só depois nas crianças”, disse, mesmo sem nunca
ter embarcado num voo. Theo tentou explicar a lógica dessa norma: a máscara
tem de ser posta antes no adulto para evitar que ele desmaie com falta de ar e
deixe os filhos pequenos sem socorro, até porque eles não conseguem alcançar a
proteção, que despenca do teto do avião e fica pendurada no alto. Flor foi mais
direta. “Theo, aqui as coisas não funcionam sem disciplina. Tem gente aí na sala
que até ontem era menino de rua. A gente adotou lá no viaduto. Você acha justo
eles almoçarem primeiro? Além do mais, na minha casa quem dita as regras sou
eu!”, avisou, meio irritada, encerrando a discussão. Em seguida, alternando suas
emoções bruscamente, ficou dengosa. Aproximou-se de Theo queixando-se de
estresse. No ouvido do amigo, pediu para ser levada dali até um motel, pois
precisava relaxar um pouco. “Quebra esse galho, amigo. Estou tão cansado, e a
Flor é insaciável, você sabe... Faz isso por mim”, esquivou-se Anderson. Theo
pediu um tempo. Saiu do Irajá dizendo que voltaria em meia hora com mais
comida e nunca mais retornou. De lá, seguiu até um telefone público e ligou para
o Juizado da Infância e Juventude, denunciando Flor e Anderson. Passou para
um oficial o local em que a missionária se escondia.
Na década de 1990, não era fácil chegar ao endereço do Irajá sem muitas
referências. O bairro enorme tinha muitas ruas homônimas. A numeração era
confusa, pois não seguia uma ordem lógica. Três viaturas e um ônibus da Justiça
do Rio de Janeiro circulavam pela vizinhança. Curiosa, dona Noberta perguntou
aos policiais como poderia ajudá-los. Ao ser questionada se havia visto Flordelis
e sua filharada pelas redondezas, a senhora fez sinal afirmativo. “Vi, sim! Ela
esteve aqui pedindo comida mais cedo. Mas está morando para os lados de
Turiaçu, do outro lado da Avenida Brasil. Vá até lá, seu guarda! Prenda essa
bandida, mas não diga que fui eu quem a dedurou. Pelo amor de Deus! Morro de
medo daqueles marginais de igreja”, falou Noberta. Era um blefe. As viaturas
estavam a duas quadras da casa e a vizinha só passou informação falsa aos
policiais para ganhar tempo. Assim que a radiopatrulha virou a esquina, ela
correu para alertar Flordelis. Não deu tempo nem de a grande família terminar a
refeição: os maiores pegaram os menores pelos braços, saíram pelo quintal,
cortaram o campo de futebol e alcançaram a rua de trás, formando novamente a
centopeia humana. Anderson e Flor resgatavam documentos das gavetas para
sair dali o mais rápido possível, enquanto Carlos Ubiraci e Alexsander trancavam
portas e janelas. Ainda havia gente na casa quando alguém esmurrou a porta.
– Quem é? – perguntou Alexsander.
– É a polícia. Abre ou vamos arrombar. Temos um mandado!
– Só um minuto. Estou nu. Vou pôr uma roupa e já volto – mentiu
Alexsander.
Enquanto ganhava um tempinho, Anderson levou o dedo indicador até a
boca, implorando silêncio. Flor pegou os últimos “filhos” pela mão sem fazer
barulho e saiu de mansinho, pisando na ponta dos pés. Noberta também escapou
às pressas pelo quintal. Em menos de três minutos, Alexsander abriu a porta da
sala e dois policiais entraram esbaforidos. Armados, vasculharam todos os
cômodos da casa. Abriram armários e gavetas. Levaram um susto quando
encontraram a bebezinha sem nome desnutrida e toda suja de fezes deixada para
trás. Alexsander tentou aplicar uma mentira, dizendo que era sua filha. “Mostre a
certidão de nascimento”, exigiu o policial. Não havia documento algum.
Chamaram uma ambulância pelo rádio e a menina foi levada à emergência de
um hospital público qualquer. Flor só sentiu falta da bebê quando alcançou a
Praça Caraguatá, ainda no Irajá. Simone carregava um dos nenês e Cristiana
levava o outro. “Esquecemos dela!”, justificaram-se. Flor ficou apavorada com a
possibilidade de a neném morrer e Alexsander ser preso. Desesperado, Anderson
ligou para Theo e Samir, suplicando ajuda aos amigos de orgia. Desconfiados das
intenções do casal protestante, porém, ambos haviam cortado relações para
sempre.
Para escapar do cerco policial, Flor e sua centopeia humana seguiram calados
pela estrada Padre Rose até alcançarem a Avenida Meriti, deixando o Irajá a pé e
sem parar nem mesmo para beber água. Cortaram o bairro Brás de Pina
inteirinho e, depois de uma longa caminhada, chegaram à favela Parada de
Lucas, já de noite. Rayane não conseguia mais ficar em pé, de tão cansada. As
tiras de suas sandálias Havaianas se romperam e ela fez um terço do percurso
descalça. Quando se queixava de dores, Flor associava seu sofrimento aos
tormentos de Jesus Cristo na Via Sacra, o trajeto percorrido por ele carregando a
cruz desde o pretório até o Calvário, onde, segundo a Bíblia, morreu crucificado.
No novo destino, Flor e Anderson pararam para descansar sob a marquise de um
prédio comercial numa noite de chuva. Para se livrar do frio, a filharada ficou
amontoada feito uma família de jacarés, lado a lado, até com uns por cima dos
outros. Wagner conseguiu papelão e plásticos de lixo para cobrir todo mundo.
Por volta das 20 horas, Flor fez um culto. Nesse momento, Carlos Ubiraci, com
22 anos, encoxou Cristiana. Já rolava uma atração sexual entre os dois, mas eles
resistiam a transar, com medo de pecar, já que eram “irmãos”. Mesmo assim, eles
deram o primeiro beijo. Apaixonados, prometeram nunca mais se largar. Mãe
Flor abençoou o casal fraterno, mas divulgou uma regra na família: os “filhos” só
poderiam se relacionar entre si com sua autorização prévia. Em seguida, todos
dormiram famintos, com sede e mortos de cansaço. Sem tirar toda a roupa,
Carlos Ubiraci e Cristiana teriam transado ali mesmo, na rua, cobertos por
papelões, ao lado de crianças.
Por volta das três da madrugada, Flor acordou e percebeu uma caminhonete
preta de vidros escuros parada com mais três carros logo atrás. Um dos vidros
das janelas do veículo desceu e ela pôde ver fuzis e metralhadoras apontados em
sua direção. A missionária cutucou Anderson por baixo dos papelões e ele pediu
à mulher que ficasse quieta. Depois de vinte minutos de sentinela, os carros
deram partida e embrenharam-se na parte mais distante da favela. O casal,
apavorado, não conseguiu mais dormir. Lentamente, Flor levantou-se, caminhou
deprimida até a esquina deserta e desabou no pranto. Chorou com medo de
morrer e com saudade de Flávio e Adriano, os filhos biológicos deixados com
Laudicéia e já morando com a avó, Carmozina. Sentiu-se culpada pelo destino da
bebê adoentada deixada para trás e com receio do que poderia ter acontecido
com Alexsander, que fora diagnosticado recentemente com autismo. Anderson
foi confortá-la. A missionária, então, começou a questionar a razão daquela fuga
sem pé nem cabeça, em sua avaliação:
– Para onde vamos, meu amor? Olha só para o nosso estado deplorável.
Estou faminta, fedida, com sede. Esses meninos estão passando fome. Eles não
têm colchão para dormir, nem teto para se proteger da chuva. Somos procurados
ao mesmo tempo pela polícia e por traficantes. Veja você, meu filho... tinha um
emprego no Banco do Brasil e morava com os seus pais. Eu dava aulas. Ou seja,
tínhamos nosso dinheiro. Era pouco, mas dava para sobreviver. Agora não temos
nada. Onde nós erramos ao tentar executar um plano tão nobre como tirar
meninos da rua e adotar como se fossem nossos filhos? [...] É melhor nos
entregarmos para a Justiça e acabar logo com isso de uma vez. Do fundo do meu
coração, acho que Deus nos abandonou definitivamente... Não tenho mais forças
para seguir, confesso. Nem acho justo continuar ao seu lado, nem como mãe,
nem como mulher, pois não tenho muito para te oferecer.
Emocionado, Anderson ajoelhou-se na calçada, segurou a mão da amada,
olhou em seus olhos e disse palavras que mudariam para sempre a vida de
ambos:
– Deus jamais desistiria da gente, minha mãe, minha mulher, minha vida!
Nem dos nossos filhos, nem dos meus irmãos. Estou ao seu lado e estarei para
sempre. Até o final. De perto de ti, meu amor, só saio morto. Um dia você me
ensinou que, às vezes, Deus nos leva por caminhos árduos até chegarmos ao
paraíso. Se cremos Nele, cremos também em milagres. Lembre-se que Ele abriu o
Mar Vermelho para Moisés, derrubou o gigante Golias para Davi, pôs Jesus no
ventre de Maria, concebido pelo Espírito Santo... Deus é fiel e justo, amor. Não
tem por que nos virar as costas. Há de haver um sinal, uma luz, um caminho.
Mãe Flor, acredite na força de Deus! Há de haver um milagre também para nós –
pregou Anderson.
Os dois se abraçaram de joelhos, molhados com a água da chuva e das
lágrimas. Na aurora, testemunharam o que acreditaram ser um “milagre”. Pelo
menos vinte “filhos” ainda dormiam sob a marquise quando as quatro portas
metálicas do comércio ali localizado foram abertas quase ao mesmo tempo,
despertando todo mundo com o barulho estridente. Mesmo cansada, a família
foi obrigada a se levantar para liberar a entrada do estabelecimento – uma das
maiores padarias do bairro, chamada Cantinho do Trigo. Simpático, seu Miro, o
proprietário, perguntou o que eles faziam deitados em sua calçada. “Nossa
Senhora de Fátima, tem até dois bebês!”, espantou-se o padeiro. Como era de se
esperar, Anderson contou com detalhes o drama de seus “filhos”, pontuando a
fome que estavam passando desde a saída do Irajá. Miro identificou Flordelis das
reportagens na televisão e mandou todos entrarem. No banheiro dos fundos,
onde os funcionários vestiam o uniforme de trabalho, todos tomaram uma
chuveirada. Depois de vestirem a mesma roupa suja, foram conduzidos a um
salão com mesas e cadeiras. Como se fosse um anjo, o comerciante permitiu que,
durante uma hora, pegassem o que quisessem na padaria. Incrédulos, Flor e
Anderson entreolharam-se estupefatos. Pediram calma aos “filhos”, que se
empolgaram. Dessa vez, a comilança não teve critério: eufóricos, pegaram pães
doces e salgados, sucos, café preto, café com leite e refrigerante. Exageravam na
manteiga. Fizeram sanduíches, usaram toda a variedade de queijos disponível,
consumiram tortas, bolos, crepes e tapiocas. Pediram ovos mexidos, cozidos,
poché. No meio do escarcéu, Flor inventou de fazer uma oração em
agradecimento, mas ninguém deu ouvidos. “Eles podem comer coisas finas,
como croissant, farinha láctea e Nescau?”, perguntou Anderson. “Por uma hora,
vocês podem comer tudo que tiver aqui dentro. E corram, que o tempo tá
passando”, reiterou seu Miro. Avançaram nas frutas, cereais, geleias e vitaminas.
A euforia era tanta que os primeiros clientes do dia entravam na padaria e saíam
logo em seguida por causa da balbúrdia.
Encerrado o tempo da boca-livre, Miro chamou Anderson e Flor ao
escritório da padaria e tudo foi esclarecido. Não houve milagre coisa nenhuma. A
caminhonete da madrugada, exibindo metralhadoras e fuzis, era conduzida por
José Roberto da Silva Filho, de 35 anos, conhecido como Robertinho de Lucas, o
bandido mais procurado do Rio de Janeiro, ao lado dos líderes do Comando
Vermelho – como Marcus Vinícius da Silva, o Lambari, e a destemida Sandra
Sapatão. Robertinho comandava o tráfico de drogas na favela Parada de Lucas e
disputava o comércio de papelotes de cocaína na cidade com o Comando
Vermelho. Ou seja, era inimigo mortal de Lambari e Sandra Sapatão. Nessa
época, Flor era conhecida como “madrinha do tráfico” por ter resgatado meninos
das mãos dos criminosos, como ocorreu com Carlos Ubiraci e André Luiz. Desde
que a Polícia Militar passou a entrar de forma recorrente no Jacarezinho para
cumprir o mandado judicial contra Flor e seus infantes, os negócios do
Comando Vermelho na favela sofreram prejuízo, ao mesmo tempo que as vendas
das drogas de Robertinho de Lucas aumentavam. Mal tinha acabado o café da
manhã, Robertinho entrou para se apresentar a Flor e Anderson.
Armado até os dentes, o bandido contou ter arrumado uma casa de três
andares na favela para toda a família. A comunidade ajudou com mobília e
alimentação. Havia, porém, uma condição para que ele escondesse Mãe Flor da
polícia: que o casal não chamasse nenhum jornalista para a comunidade, por
motivos óbvios. “Se tiverem de dar entrevistas para a televisão, façam isso bem
longe da nossa favela”, alertou um bandido identificado como Príncipe do Pó,
braço direito de Robertinho de Lucas, que completou: deixaria os dois filhos
pequenos com Flor durante o dia, pois sua esposa trabalhava no cafofo onde era
feita a endolação da cocaína. Robertinho também levaria o herdeiro, Romulo
Oliveira da Silva, de 3 anos, para “brincar com as crianças da mesma idade”,
como justificou. Com o tempo, a nova casa de Mãe Flor virou uma creche para a
garotada das mulheres do tráfico e recebia até dez cabeças por dia. Sem nenhum
poder de argumentação, Anderson e Flor aceitaram as exigências, até porque o
comércio de drogas abastecia sua despensa.
Com a família instalada, a primeira providência foi resgatar a bebê doente
levada pela polícia. Para isso, Flor teria de encontrar Alexsander. Como Simone e
Cristiana se sentiam culpadas por ter esquecido a “irmãzinha”, saíram atrás de
pistas. Voltaram ao Irajá e encontraram Noberta, que havia acolhido Alexsander.
O jovem contou que a polícia levara a bebê para a emergência de um hospital
para os lados de Botafogo. Munidas de um telefone fixo e de uma lista telefônica
disponibilizados por Noberta, as duas ligaram para todos os pronto
atendimentos do bairro perguntando por um bebê sem referência familiar.
Depois de três horas ligando para lá e para cá, descobriram que a menina estava
no Hospital Municipal Rocha Maia. Os “irmãos” seguiram até o endereço com
um plano em mente. No balcão, Cristiana se identificou como mãe da nenê e
conseguiu falar com a médica responsável pelo tratamento da paciente. “Esse
bebê tem raquitismo, uma doença rara causada por deficiência nutricional de
vitamina D, cálcio ou fósforo e por fatores genéticos. Atinge principalmente os
ossos, comprometendo sua mineralização, deixando as pernas envergadas. (...)
Qual a idade dela?”, indagou a médica. “Seis meses”, respondeu Cristiana. “Você
está enganada. Essa criança tem quase 2 anos. Veja os dentes, já nasceram quase
todos, apesar de estarem subdesenvolvidos e tortos. Já era para ela estar andando
ou pelo menos engatinhando. No entanto, a doença impediu que seu corpinho se
desenvolvesse... Você realmente é mãe dessa menina?”, inquiriu a médica,
desconfiada. Cristiana ficou receosa e não respondeu.
Uma enfermeira que testemunhava a conversa ligou para sua chefe e foi
orientada a acionar a Delegacia da Criança e do Adolescente para averiguar o
caso. Enquanto isso, Simone foi ao encontro de Flordelis e informou o paradeiro
da bebê. A missionária correu para o local e ficou do lado de fora, com receio de
ser reconhecida. Então, ordenou que Cristiana roubasse a bebê sem nome ainda
naquela madrugada. A garota voltou ao hospital, passou despercebida pela
recepção e seguiu até o leito da emergência. Logo em seguida, uma equipe da
Polícia Militar chegou para averiguar a comunicação feita pela enfermeira. Como
a criança estava com hipofosfatemia, deficiência de cálcio e de vitamina D, a
médica havia aplicado nela um soro endovenoso. Mas Cristiana não pensou duas
vezes: arrancou a agulha do bracinho da “irmã”, enrolou-a num lençol, pôs
dentro de uma sacola e saiu pela porta dos fundos, sem se dar conta do risco
dessa ação. Quando os policiais chegaram ao leito, o berço já estava vazio.
Flordelis pegou a “filhinha” de Cristiana e seguiu para a nova casa na favela,
onde a polícia jamais chegaria. Lá, batizou a menina de Roberta e organizou uma
festa para celebrar seu retorno. As comemorações, porém, foram azedadas com a
aparição surpreendente de Carmozina, que estava com cara de poucos amigos.
Simone havia dado o endereço na Parada de Lucas para Flávio, que repassou as
diretrizes para a avó. A bruxa caminhou por todos os cômodos da nova casa,
olhando para teto, piso e paredes, observou cada móvel e conferiu quantos
“filhos” havia. Soltando fogo pelas ventas, a velha mostrou uma série de recortes
de jornais populares nos quais Flor era descrita como “bandida”, “sequestradora
de crianças”, “desclassificada”, “procurada pela polícia”, “foragida”, “fugitiva”,
“facínora”, “surucucu”, “ladra” e “malfeitora”. “Você está escandalizando o reino
dos céus e jogando a reputação da nossa família no lixo. Ainda por cima,
continua dormindo com um dos meninos que chama de filho!”, esbravejou.
Carmozina ordenou que Anderson e Flor se entregassem imediatamente. Caso
contrário, ela mesma os denunciaria à polícia. Com medo das ameaças da mãe,
Flor resolveu novamente levantar acampamento com sua comitiva. Mais uma
vez, Robertinho de Lucas estendeu a mão à missionária e emprestou uma casa às
margens da Avenida Brasil para abrigar toda a família. Mas o novo local era
perigoso, pois servia de base para ações criminosas do tráfico, principalmente
quando havia confronto de bandidos com policiais militares ao longo da via
expressa. Restou à centopeia humana ficar entocada lá por um tempo, escondida
principalmente de Carmozina, que havia se tornado uma ameaça.
Anderson não concordou com as interferências da bruxa do Jacarezinho no
destino da família, mas evitou entrar em confronto. Por ele, todo mundo
continuaria na primeira casa oferecida por Robertinho de Lucas, aparentemente
mais segura. Esperto e visionário, o bancário traçou um plano para capitalizar a
condição de foragido da Justiça. Com o aval da companheira, ligou para o Centro
de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), uma organização não
governamental, e pediu orientação para se entregar formalmente. Inspirado em
filmes policiais hollywoodianos, em que sequestradores exigiam falar com a
imprensa sobre resgate, quis que a ONG organizasse uma entrevista coletiva para
Mãe Flor. A ideia era fazer um acontecimento midiático do fim da perseguição
policial e transformar a matriarca em uma celebridade carioca. Desde a saída do
Jacarezinho, a centopeia humana já havia percorrido 57 quilômetros pelo Rio de
Janeiro em cinco meses. Ou seja, já era hora de parar. Via assessoria de imprensa,
o Cedeca se encarregou de chamar os jornalistas anunciando a tão esperada
rendição de Mãe Flor, agendada para dali a uma semana na sede da entidade.
No dia marcado, Flor e Anderson vestiram roupas novas, providenciadas
pelos funcionários da ONG. Diante de holofotes e de câmeras de televisão, a
fugitiva falou para toda a imprensa fluminense ao lado do companheiro e de
todos os “filhos”, incluindo os três bebês: “Sou mãe de todas essas crianças. Por
elas, sou capaz de enfrentar a polícia, traficantes, juízes e desembargadores. Nada
me detém! Sou capaz de matar para proteger a minha cria, como qualquer mãe.
Esses meses em que estivemos fugindo, moramos debaixo do viaduto, dormimos
na soleira da calçada cobertos pelas páginas dos jornais que me chamavam de
criminosa. Reviramos lixo em busca de comida. [...] Faria tudo de novo se
preciso fosse, porque meus filhos são tudo para mim!”, anunciou a pastora. No
final da coletiva, citou a Bíblia (Salmos 126:5-6): “Deus me disse que os tempos
difíceis não duram para sempre. ‘Aqueles que semeiam com lágrimas, com
cantos de alegria colherão. Aquele que sai chorando enquanto lança a semente
voltará com cantos de alegria, trazendo os seus feixes’. Até os tempos mais
difíceis passam. A alegria de Deus sempre vence. Essa é a maior lição que minha
família vai tirar da experiência de viver escapando da Justiça em nome do amor
incondicional que eu e meu companheiro sentimos pelos nossos filhos”.
Flor também despertou o interesse dos repórteres quando falou das ameaças
de morte feitas pelo Comando Vermelho. “Quem governa o Jacarezinho é o
Comando Vermelho!”, disse, enfática, como se isso fosse alguma novidade. No
dia seguinte, ela estava em todos os jornais com manchetes favoráveis, embora
alguns títulos ainda mostrassem equívocos: “Dona de creche teme ser morta”,
publicou o jornal O Dia; e “Flordelis ficou desaparecida com medo de ameaças”,
estampou o Jornal do Brasil. Anderson comprou todos os periódicos e lia em voz
alta, rindo de orelha a orelha e destilando orgulho por todos os poros. “Agora, o
céu é o limite!”, previu o pastor.
No fundo, Anderson era um frustrado. Toda a projeção alcançada por sua
mulher na mídia era desejada por ele para si, embora não tivesse carisma algum.
Seu talento era de estrategista de bastidor. Quando Flor estava dando entrevistas
para falar da fuga, ele tentava chamar a atenção de repórteres e fotógrafos para
também tornar-se famoso, mas os jornalistas só queriam saber dela. Em
determinada fase da vida, ele tentava competir com a mãe-namorada no
comando da família e até se arriscou no canto. No entanto, logo se deu conta de
que era impossível competir com o magnetismo da companheira. Decidiu
ocupar uma posição de mentor de Flordelis. Depois da fuga espetacular,
Anderson planejou sozinho levar a missionária a patamares inimagináveis. Seus
planos foram postos em prática já no dia seguinte.
Anderson telefonou para Zé da Igreja e acertou uma apresentação de
Flordelis, já conhecida como uma estrela da “bondade” e da “filantropia”. A
missionária pregou e cantou num culto dominical em sua homenagem na
Assembleia de Deus do Jacarezinho. Vestida com saia bege e blusa azul-bebê de
mangas compridas, com babados, subiu ao púlpito diante de uma multidão e
pegou um microfone sem fio. Nesse dia, desabava sobre o Rio de Janeiro uma
tempestade colossal, mas a igreja lotou mesmo assim. Todo mundo queria ver a
missionária famosa e seus “filhos”. O templo teve as portas cerradas e fechadas à
chave assim que atingiu a lotação máxima. Na pregação, Flor falou de mensagens
enviadas a ela por seres celestiais durante o tempo de sacrifício nas ruas e
terminou com uma profecia: “Houve um momento em que fraquejei, confesso.
Mas meu anjo Anderson segurou minha mão e me puxou do poço da
melancolia, onde jazem os fracassados. Então ouvi a voz poderosa de Deus
bradando dos céus: finalmente você e sua família chegaram à plenitude, à fina
flor. Minha vida agora será de salvação e poder. [Glória a Deus!]. A bem da
verdade, Jesus Cristo nunca soltou a minha mão nessa jornada pelas ruas escuras
da cidade, onde me escondi feito uma meliante. [Glória a Deus!]. Ele me disse
com todas as letras: sua saga ainda não acabou, filha! O Diabo será enviado à
Terra na pele dos meus acusadores. Mas Deus vai derrotar todos eles! Um por
um! [Glória a Deus!]. Jesus Cristo me disse! Ele fala comigo todos os dias!
[Glória a Deus!]. Sobre a Terra e o mar virá o terror, pois Satanás ainda vai
descer até o seio da minha família com grande fúria, sabendo que me resta pouco
tempo...”
No final da pregação, com o temporal ainda caindo, Mãe Flor fez um pocket
show com canções gospel e foi bastante aplaudida. O pastor Zé da Igreja, então,
aproveitou o engajamento da missionária, pegou o microfone da mão dela e
pediu ao seu rebanho uma ajuda financeira de forma nada sutil:
“Irmãos, prestem atenção no que vou lhes dizer agora: vivemos numa
carestia infernal. São dias difíceis. A nossa igreja está operando no vermelho faz
tempo. É uma sangria sem fim. Nem todo o mundo está pagando o dízimo, o que
é pecado. Deus está tão triste com esse calote profano que suas lágrimas estão
caindo do céu em forma de chuva desde cedo. Mas hoje é o dia de alegrar o reino
celestial. Vamos aproveitar que a igreja está lotada para promover o desafio da
fechadura. Todas as portas do templo foram trancadas. Passamos seis voltas de
correntes e fechamos com cadeados. Estamos presos na casa de Deus. Querem
privilégio maior do que esse? O Supra summum determinou que só devemos
abrir a fechadura para quem doar todo o dinheiro que carregar consigo. Eu disse
TODO. Esse dinheiro não é para a igreja, quero deixar isso bem claro. É para o
Todo-Poderoso! À medida que vocês forem doando, as lágrimas do Altíssimo
irão secando e a chuva cessará. Deus aceita dinheiro vivo, cédulas, moedas e
cheques. Também temos uma maquineta de plástico para passar cartão de
crédito. É uma tecnologia de ponta que imprime recibo com papel-carbono.
Quem não tiver dinheiro nem cartão de crédito vai assinar uma nota promissória
sagrada doando a Deus a posteriori. Nossas obreiras estão localizadas em pontos
estratégicos, perto de cada porta, para recolher a graça de cada um de vocês. Ah,
mais uma coisinha: Deus condena a vaidade! Estou vendo aqui do alto alguns
fiéis usando anéis, brincos, cordões, pulseiras e relógios. Não pode! É pecado!
Hoje é um dia propício para se livrar dessas indumentárias do Satã. Tem uma
lixeira especial no final do corredor para jogar isso tudo fora. Um aviso
importante: metade de tudo que for arrecadado hoje será repassado à causa dessa
mulher de alma nobre chamada Flordelis. Uma salva de palmas para ela...”
Os fiéis formaram uma fila indiana e a porta só era aberta quando alguém
pagasse alguma quantia. As doações variavam de 1 a 20 reais. Na tal lixeira,
foram jogados vários tipos de acessório. Ingênuos, Flordelis e Anderson
esperaram até o final do culto, acreditando que Zé da Igreja realmente repassaria
dinheiro para ajudá-los no sustento da família, conforme anunciado. “Não tem
nada para vocês, seus devassos!”, retrucou o pastor, acusando Flor de ofender a
igreja ao dormir com um de seus “filhos”.
O golpe de Zé da Igreja abriu os olhos de Anderson e Flor. Eles nunca mais
pisaram na Assembleia de Deus do Jacarezinho e passaram a sonhar com o dia
em que teriam o próprio ministério para colocar em prática esse tipo de
arrecadação. O bancário começou a estudar sobre empreendedorismo religioso e
não parava de pensar na forma como a Assembleia de Deus fazia dinheiro desde
a época do pastor Demóstenes. No dia seguinte ao culto, no entanto, o casal teria
de começar a descascar um abacaxi enorme, já que falar com a imprensa não
resolveu todos os problemas. A Vara da Infância e Juventude havia marcado uma
audiência para Mãe Flor se apresentar formalmente dali a três semanas. Com
medo de perder seus “filhos”, Anderson ligou para os irmãos Werneck pedindo
assessoria jurídica e relatando os dissabores de morar numa área de confronto
permanente entre policiais e traficantes. Os empresários e seus advogados
procuraram a Justiça com uma pergunta simples e objetiva: o que seria preciso
para regularizar a situação de Flordelis? Nessa época, o titular da Vara da
Infância e Juventude era o juiz Siro Darlan. Em seu gabinete, o magistrado foi
curto e grosso na resposta: “Basta ela andar na lei, legalizando a adoção das
crianças, oferecendo um lar estruturado, bem longe da favela, para todas elas, e
principalmente mantê-las bem alimentadas e matriculadas na escola”. A dupla de
irmãos se comprometeu com o juiz a oferecer dignidade à família, e Darlan deu
um prazo de trinta dias para os Werneck apresentarem a ele uma casa decente
para abrigar Flor e seus anjinhos.
Polêmico e midiático, o juiz Siro Darlan tornou-se figurinha batida no
noticiário nacional desde a segunda metade da década de 1990, quando teve
início o processo de ascensão de Flordelis como figura pública. O caminho dos
dois se cruzou pela primeira vez na Vara da Infância e Juventude do Rio,
comandada pelo magistrado por catorze anos. Suas canetadas ganhavam o
noticiário ora pela irreverência, ora pelo escândalo. Ainda juiz de primeira
instância, provocou perplexidade com decisões tidas como exageradas,
resvalando na censura – uma delas ocorreu no ano 2000, quando determinou
que a TV Globo fosse proibida de usar atores menores de 18 anos na
novela Laços de Família. Segundo o juiz, as cenas do folhetim apresentavam
“conotação sexual” e “violência” excessivas para as crianças, além de submetê-las
a “longas jornadas de trabalho”. No ano seguinte, Darlan proibiu a entrada de
adolescentes em um show da banda Planet Hemp promovido pela prefeitura do
Rio, argumentando que o grupo fazia apologia às drogas. O magistrado também
vetou a participação em um evento de moda promovido pelo Barra Shopping de
modelos menores de 18 anos que não comprovassem frequência escolar.
Em 2004, Darlan foi promovido a desembargador e as decisões polêmicas
continuaram na segunda instância. Em 2013, concedeu habeas corpus dando
liberdade a sete dos nove bandidos envolvidos na invasão ao Hotel
Intercontinental, em São Conrado, quando um bando armado com fuzis, pistolas
e granadas manteve 35 reféns, entre funcionários e hóspedes, por três horas. Na
ocasião, uma pessoa morreu e seis ficaram feridas. Entre os beneficiados estava
Rogério 157, que assumiu o comando do tráfico na Rocinha após a prisão do
megatraficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha. Seis anos
depois, Darlan continuava assinando decisões de grande repercussão na mídia.
Durante um plantão judiciário, mandou soltar os ex-governadores Anthony
Garotinho e Rosinha Matheus, que haviam sido presos um dia antes a pedido do
Ministério Público estadual – foram acusados de receber propina em dois
contratos superfaturados em 62 milhões de reais para a construção de casas
populares em Campos dos Goytacazes. Em 2015, Darlan manchou a própria
biografia: foi acusado de corrupção passiva, por ter supostamente vendido uma
decisão judicial por 50 mil reais. Teve bens bloqueados pela Justiça e sigilo
bancário quebrado, até que, em 9 de abril de 2020, o Superior Tribunal de Justiça
(STJ) resolveu afastá-lo de suas funções por 120 dias, algo humilhante para uma
autoridade de sua envergadura.
Na mesma data, a Polícia Federal prendeu seu filho Renato, acusado de
também participar do esquema de venda de sentenças supostamente orquestrado
pelo pai. Segundo a PF, o esquema teria beneficiado milicianos e pessoas
investigadas por crimes de corrupção e tráfico de drogas. “Sempre atuei com
seriedade e no rigoroso cumprimento dos mandamentos éticos da magistratura.
Repudio a associação do meu nome à prática de crimes. Refuto com toda a
indignação a alegação de que busquei benefícios através das minhas decisões.
Sigo de cabeça erguida, confiante de que tudo será esclarecido e que a justiça
prevalecerá”, afirmou o desembargador, na época. Em uma decisão monocrática
de habeas corpus, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin
determinou, em 3 de março de 2021, o retorno de Darlan às suas funções.
Em abril de 2022, o magistrado voltou a se defender das acusações, dizendo
ter sofrido perseguição da Rede Globo ao longo da carreira. Segundo ele, o
motivo teria sido o embate contra os interesses da emissora, referindo-se à
decisão desfavorável a Laços de Família. “A Globo se acha a rainha da cocada
preta. Até hoje ela me persegue por causa da minha decisão de vetar crianças
nessa novela das oito”, justificou. “Na época, a atriz Vera Fischer [protagonista
da trama] usou todo o seu charme para despachar com o então presidente
Fernando Henrique Cardoso. Mas não adiantou. A segunda instância manteve a
minha decisão. Desde então, a TV Globo colocou uma série de propagandas
negativas contra mim em todos os telejornais. Teve fake news no Fantástico, Bom
dia Rio, Bom Dia Brasil, Bom dia não sei o quê; RJ 1, 2, 3, 4, 5, 6... Era um
inferno. Fizeram comigo como se fez com Leonel Brizola e o que se faz até hoje
com Luiz Inácio Lula da Silva. Mas a Globo não conseguiu me destruir, porque,
do ponto de vista moral, eu sou maior do que ela”, completou.
Depois de despachar com o então juiz, em 1995, os irmãos
Werneck acionaram sua rede de solidariedade para conseguir com amigos
endinheirados uma casa ampla para Flor, Anderson e seus “filhos” no prazo
estipulado pelo juiz, de trinta dias. Enquanto isso, os dois evangélicos seguiram
sozinhos para o encontro com Siro Darlan. Aos 34 anos, a missionária entrou de
cabeça erguida no prédio da Justiça do Rio, segurando firme a mão do
companheiro, de 18 anos. A discrepância etária, no entanto, não era aparente: ela
parecia bem mais nova e o bancário demonstrava mais idade. Uma secretária
acomodou os dois numa antessala. Depois de esperar por uma hora e meia, eles
finalmente entraram no gabinete do juiz. Sentados em frente à mesa de Darlan,
ouviram o magistrado falar do rigor em adotar uma criança no Brasil, explicar as
razões para o processo ser demorado e comentar sobre o prazo estipulado para
Flor e sua turma saírem da favela.
O casal ouvia tudo calado quando, diante do juiz, a missionária entrou em
transe: olhou para os lados e viu o pai, Chicão, falecido havia dezenove anos,
tocando acordeom no gabinete do magistrado. A seu lado estavam os demais
integrantes do Conjunto Angelical, todos mortos violentamente no acidente da
Via Dutra. Vestida de terno preto e gravata, a banda cantava e dançava em volta
da mesa de Siro Darlan, liderada pelo finado pastor Joaquim Lima. João Januário
(contrabaixo) era o mais empolgado: dançava saltando pelo ar, como se fosse
leve feito uma pluma. José Gomes (tamborim) dava arrepios, porque atravessava
paredes. Geraldo Marçal (guitarra solo) foi ousado ao subir na mesa e tocar seu
instrumento pisando em documentos. Enquanto isso, Siro Darlan falava sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma das únicas coisas que
prestavam do governo de Fernando Collor de Mello. Para completar o show
gospel das assombrações, Aléssio Barreto (guitarra base) levitou e saiu de cena
atravessando o teto. No meio da apresentação, Darlan perguntou se Flor aceitava
as condições impostas por ele para ficar com sua grande família. Mesmo
hipnotizada pelos fantasmas, ela respondeu “sim”. Ao perceber a loucura da
“mãe-esposa”, Anderson pegou a missionária pelo braço, despediu-se meio
constrangido de Sua Excelência e deixou rapidamente o gabinete do juiz.
Flordelis saiu do prédio da Justiça deixando a impressão de não regular muito
bem.
Em três semanas, os irmãos Werneck conseguiram uma casa ampla para
abrigar Flordelis e sua centopeia humana. O imóvel tinha dois andares e estava
fechado havia cinco anos, todo tomado pelo mato. Ficava na parte mais
movimentada da Avenida Paulo de Frontin, bairro do Rio Comprido, zona
central do Rio de Janeiro. Nesse quesito, atendia a uma das exigências do juiz
Siro Darlan: estava longe da favela. Simpáticos à causa de Mãe Flor, os
proprietários alugaram a construção de oito quartos a um preço abaixo do
mercado. Os “filhos” pegaram na enxada, capinaram, pintaram as paredes e
depois fizeram uma faxina. Anderson e Carlos Ubiraci comandavam tudo,
lembrando aos novinhos a exigência do juiz. Flor não percebeu porque estava
fora de si, mas o bancário ouviu com todas as letras Siro Darlan dizendo que
faria uma vistoria quando tudo estivesse pronto. Assim, a pequena reforma era
feita com mais esmero. Os irmãos Werneck conseguiram três geladeiras novas,
um fogão de seis bocas, televisão, armários, cômodas, berços e quinze beliches
com colchões. O traficante Robertinho de Lucas não se esqueceu de Mãe Flor e
doou uma pilha de roupas novas de vários tamanhos: shorts, bermudas,
camisetas e fraldas, mais lençóis e cobertores, além de muitos brinquedos para a
molecada – a bandidagem havia assaltado uma série de carretas na Avenida
Brasil, saqueado toda a carga e abastecido a casa, tudo para impressionar o juiz
em sua visita. No dia marcado, Siro Darlan chegou e ficou de queixo caído
quando viu a estrutura montada para receber toda aquela gente, quase trinta
pessoas. Ousado, Robertinho de Lucas deixou novamente aos cuidados da
grande família seu caçula, Romulo, já com 4 anos, para brincar com as crianças
que ele chamava de “manos”. O menino sentia-se sozinho e o traficante achava
as asas de Mãe Flor seguras para ele.
Darlan aprovou tudo e houve uma gritaria de comemoração, mas logo o juiz
jogou um balde de água fria na fervura de felicidade: faltava legitimar o
acolhimento dos “filhos” menores de 18 anos. Flor e Anderson foram orientados
a procurar os pais biológicos de cada jovem e abrir processos de adoção. Era
impossível, pois havia ali crianças tiradas dos braços de mães usuárias de drogas,
bebês sem qualquer pista de quem os tinha parido e muitos meninos de rua
acolhidos ao longo da jornada pela cidade. Mesmo sabendo que a possibilidade
de isso acontecer era nula, Flor se comprometeu a resolver a questão. Ao decidir
pela permanência da garotada no Rio Comprido, Siro Darlan concedeu uma
guarda provisória a Flor – mesmo com parecer contrário do Ministério Público
do Rio de Janeiro, órgão que nunca engoliu a imagem de mãe dedicada e temente
a Deus que a missionária propagava na mídia.
Estabelecida na vida nova, Flordelis tomou um banho, arrumou-se toda,
pegou uma bolsa grande e seguiu até a casa de Carmozina para buscar algo sem o
qual não conseguiria mais viver. Na sala da avó, Flávio e Adriano já estavam
prontos à sua espera. A missionária abraçou seus filhos biológicos longamente,
cobriu-os de beijos e chorou bastante, sentindo-se culpada por tê-los
abandonado temporariamente. Nos primeiros minutos do encontro, percebeu
uma certa “marra” na personalidade de Flávio, que falava gírias de traficante e
mostrava-se impaciente e irritadiço. Flor deduziu que o garoto estava com
hormônios ferventes, em função da puberdade. Pouco antes de ir embora, ela
tentou lavar roupa suja com a mãe.
– A senhora teria mesmo coragem de me entregar à polícia?
– Teria, sim! Você está longe de Deus faz tempo!
– A senhora realmente seria capaz de entregar uma filha?
– Se ela for criminosa, não pensaria duas vezes – reiterou Carmozina.
Austera, Flordelis levantou-se do sofá e caminhou até o quarto da mãe com a
bolsa grande e vazia. Carmozina foi atrás. A missionária abriu o guarda-roupa da
bruxa sem pedir licença, pegou uma caixa da prateleira mais alta e pôs sobre a
cama. De dentro, tirou a imagem de Exu Caveira – a de São Cipriano, recolheu
de um altar. No lugar do cartaz de Baphomet, encontrou uma estatueta de gesso
da figura pagã toda pintada de preto. “Os policiais rasgaram o cartaz e acabei
comprando essa imagem”, justificou Carmozina, que havia recuperado os
apetrechos da Rua Guarani. “Pode levar tudo com você, pois seu destino está
diretamente ligado a esses seres”, completou. Flordelis colocou os objetos na
bolsa, fechou o zíper, passou a mão nos garotos e saiu da morada da mãe, no
Jacarezinho, prometendo para si mesma nunca mais aparecer por lá. Quando
chegou à sua nova casa, encontrou os filhos agitados. Anderson tinha saído para
resolver “problemas de igreja”, mas Simone e Cristiana receberam Flor ainda na
calçada.
– Mãe, a senhora tem visita.
– Quem é?
– Veja com seus próprios olhos.
Ao passar pela porta da sala, Flordelis teve um sobressalto. Sandra Sapatão
estava sentada no meio do sofá, bem à vontade, com as pernas abertas e um fuzil
pendurado no ombro. Em seu colo repousava Romulo, herdeiro do seu
arquirrival Robertinho de Lucas. A traficante provocou:
– Vim acertar as contas com você, sua pastora do Diabo!
“Meu sêmen é sagrado, porque foi santificado
por Deus.”
E
ngana-se quem pensa que abusos sexuais cometidos por líderes religiosos
são exclusividade dos pastores evangélicos. O cenário é o agreste alagoano.
Fabiano da Silva Ferreira e Anderson Farias Silva tinham 11 anos e eram
melhores amigos no ano de 2001. Raquíticos e serelepes, moravam na periferia
do município de Arapiraca, a 130 quilômetros de Maceió. Influenciados pelos
pais pobres e religiosos, alimentaram desde cedo o sonho de estudar Teologia e
ingressar no seminário, para, na vida adulta, serem ordenados padres. Deram o
primeiro passo frequentando a Paróquia de São José, no bairro Alto do Cruzeiro,
com capacidade para 1.800 pessoas sentadas. Aos 12 anos, os dois garotos se
matricularam num curso preparatório promovido pela Igreja Católica, onde
aprenderam a usar os objetos litúrgicos e leram todos os livros sacros utilizados
nas celebrações. Na sequência, foram integrados ao quadro de coroinhas. Nas
missas, Fabiano, Anderson e mais oito meninos tinham inúmeras atribuições.
Uma delas era ajudar o monsenhor Luiz Marques Barbosa, de 70 anos, a vestir
sua indumentária. A primeira peça posta no corpo dele era uma túnica branca –
por baixo, geralmente havia uma camiseta clara e uma calça comprida social. Em
seguida, por cima da túnica, os jovens colocavam em Luiz a estola, uma tira
comprida de pano vermelho simbolizando o poder sacerdotal. Por último, o
religioso vestia a casula, um traje reservado para ações sagradas. As crianças, por
sua vez, usavam apenas túnicas brancas para trabalhar nas cerimônias.
Militar e capelão do Corpo de Bombeiros, Luiz era um homem rígido no
trato com os fiéis, principalmente com os coroinhas. Usava o microfone para
passar carraspana em quem não parasse de falar durante as missas. Outro hábito
recorrente era expulsar as mulheres cujos trajes, segundo ele, eram inadequados
para frequentar a casa de Deus. Certa vez, ele conduzia um rito dominical
quando identificou, do presbitério, uma moça de blusinha sem alças, deixando o
colo dos seios à mostra. Primeiro, mandou que ela se retirasse. Diante da recusa,
o sacerdote desceu do palco, retirou a túnica do corpo, cobriu os seios da mulher
e a puxou pelo braço até a saída. A atitude de Luiz foi aplaudida pelos fiéis. Era
comum ainda ele bater com o microfone na cabeça dos ajudantes para
repreendê-los quando faziam algazarra.
Com o tempo, monsenhor Luiz passou a fazer atendimento espiritual na casa
paroquial, um ambiente anexo ao templo com entrada separada. Vestindo a capa
de acolhedor, ele chamava os coroinhas separadamente para conversar. No
início, o mais assíduo era Cícero Flávio Vieira, de 13 anos. O menino entrava na
casa, o sacerdote fechava a porta à chave e os dois ficavam lá dentro trancados
por cerca de uma hora. Fabiano e Anderson perceberam o movimento atípico e,
curiosos, perguntaram a Cícero o que tanto ele fazia ali. O garoto sempre
desconversava. Algumas semanas depois, Anderson foi chamado pelo líder
religioso e ficou com ele a sós por meia hora. Na saída, Fabiano inquiriu o amigo,
que garantiu não ter acontecido nada de mais. “Ele pergunta sobre as coisas da
igreja, quis saber da minha família, falou um pouco como é a vida dele. Essas
coisas simples do dia a dia...”, contou. No início, Fabiano chegou a ficar triste por
nunca ter sido escolhido. Sentia-se preterido. Alguns meses depois, ainda com 12
anos, ele foi surpreendido com a separação dos pais. O pároco Luiz percebeu sua
tristeza e finalmente o chamou para uma conversa particular na sacristia da
Paróquia de São José, onde eram guardados os objetos litúrgicos e as vestimentas
dos padres.
Logo na entrada, o local tinha uma imagem em tamanho real de Jesus Cristo
deitado e morto, representando a retirada de seu corpo da cruz. Nesse primeiro
ambiente havia um sofá grande e dois menores, todos marrons. Atravessando
uma porta, chegava-se a um cômodo mais reservado da sacristia, com armários
talhados em madeira maciça, uma mesa de escritório e duas cadeiras, para onde
Fabiano foi levado para receber aconselhamento. Monsenhor Luiz mandou as
outras pessoas saírem. A sós, introduziu a conversa perguntando como o menino
estava se sentindo em relação à separação dos pais. Fabiano detalhou o drama
familiar e falou da decisão de morar com o pai, pois sua mãe iria se mudar com a
irmã para a casa da avó, pequena para acomodar duas famílias. Em seguida, o
religioso perguntou ao menino sobre a escola. Ouviu como resposta que suas
notas eram altas e ele passaria de ano com facilidade. Os dois conversaram
sentados por mais de uma hora, separados pela mesa. Na despedida do
atendimento, ambos se levantaram e o sacerdote deu um abraço longo e
aconchegante em Fabiano, dizendo-lhe que ele poderia procurá-lo sempre que
tivesse vontade. “Agora que sua família está desmantelada, serei seu pai e você
será meu filho”, anunciou o religioso. Com tanto afeto, o sentimento de rejeição
do coroinha rapidamente se dissipou.
Na época, Fabiano não sabia, mas estava sendo arrastado para uma
armadilha cujas sequelas se estenderiam por toda a sua vida. Luiz vinha
abusando dos seus coroinhas fazia tempo. O primeiro passo era transmitir
confiança com falsas preocupações. Certa noite, Fabiano andava pelo salão da
igreja durante a missa das 19h30 balançando o turíbulo para espalhar a fumaça
do incenso, simbolizando a subida das orações aos céus. No meio da cerimônia, o
monsenhor pediu ao ajudante que comparecesse à casa paroquial para outra
sessão de aconselhamento assim que a celebração acabasse. Distraído com os
amigos, ele se esqueceu do chamado. O padre foi até o pátio e gritou com ele. No
final de uma conversa de quase duas horas, o sacerdote deu um abraço apertado
e um beijo no rosto do menino, que não entendeu o significado daquele gesto
aparentemente singelo. “Nessa época, eu era criança e não tinha a menor noção
de sexo, pois não tinha televisão em casa. Meus pais me criaram trancado. Saía
somente para ir à escola e à igreja, onde eu supostamente estaria protegido”,
relatou Fabiano, aos 33 anos, em 2022.
A investida seguinte do monsenhor Luiz foi marcada por violência física e
psicológica, ocorrida durante uma missa noturna. No momento do pai-nosso,
todos os fiéis fecharam os olhos. O sacerdote aproveitou a oportunidade para
passar a mão, por cima da roupa, no pênis de Fabiano, que o auxiliava no altar.
Pouco antes da comunhão, quando os fiéis se cumprimentavam no rito
conhecido como abraço da paz, o religioso escolheu o coroinha para
cumprimentar. Mesmo estando num palco sagrado e diante de centenas de fiéis,
monsenhor Luiz deu um apertão forte em Fabiano. Apesar das várias camadas de
tecido, foi possível sentir a excitação do padre. O menino começou a achar aquilo
estranho, mas não soube como interpretar e reagir. No final da cerimônia, o líder
pediu ao coroinha que não saísse sem antes falar com ele. O garoto não deu
muita bola para o aviso e foi brincar mais uma vez pelos corredores externos da
paróquia. Meia hora depois, o capelão foi até lá feito um ditador e perguntou aos
berros por que ele havia desobedecido a uma ordem sua. Na frente de outras
crianças, enfurecido, o clérigo pegou Fabiano pelo braço e o arrastou até a casa
paroquial, num percurso de 30 metros. O abusador tinha 1,78 m e era forte,
enquanto a vítima era magricela e fraca. Ou seja, apesar de oferecer resistência, o
menino foi levado com muita facilidade.
Rodeada por varandas e cercada por um muro alto, a casa tinha um jardim
todo florido e um portão metálico. Fabiano foi levado primeiro para a sala de
estar. A funcionária da casa, Maria Isabel dos Santos, percebeu sua aflição e lhe
ofereceu um copo de água. Ríspido, monsenhor Luiz mandou a mulher se
recolher. Obediente, ela seguiu para a casa dos fundos, onde morava. Eram quase
nove da noite e Fabiano ficou sentado no sofá enquanto o criminoso tomava
banho e se perfumava. Alguns minutos depois, o sacerdote pegou Fabiano
calmamente pelo braço e o levou até o quarto, onde havia uma imagem da
Sagrada Família e outra de Nossa Senhora de Fátima, ambas postas sobre a
cômoda. Na parede, repousava Jesus Cristo crucificado. O religioso trancou a
porta, tirou toda a roupa e fez do crucifixo um cabide, encobrindo o filho de
Deus. Fabiano ficou em pé, estático, tremendo dos pés à cabeça. Luiz pegou uma
garrafa de aguardente conhecida como Canelinha Rosa e tomou um shot.
Ofereceu a bebida à criança, que recusou. O adulto, então, abriu uma garrafa de
vinho e serviu à vítima, relacionando a bebida ao sangue de Jesus, conforme dizia
nas missas. Em seguida, delicadamente, a roupa do menino foi tirada até ele ficar
completamente nu.
Um mês depois, Fabiano e Luiz Marques Barbosa haviam estreitado os laços.
O garoto procurava por ele sempre que precisava de dinheiro. Cada encontro
rendia dividendos entre 2 e 20 reais. Todo o valor saía dos envelopes deixados
pelos dizimistas. Para as contadoras da instituição, o desfalque era marcado
como “despesas sem comprovantes”. Aos 14 anos, Fabiano começou a tirar notas
baixas na escola. Feito um pai, o monsenhor passou a pagar aulas de reforço e
conseguiu uma vaga para ele no Colégio São Francisco, administrado pela Igreja
Católica e considerado um dos melhores de Arapiraca. A escola particular pedia
roupas novas e tênis para as atividades físicas. Mão aberta, Luiz abriu o envelope
do dízimo, tirou 400 reais e deu ao menino, fazendo duas exigências: que ele
levasse a nota fiscal comprovando a compra e voltasse à noite para mais
encontros sexuais. “Esse será nosso segredo, meu filho. Você vem aqui todas as
noites, eu sustento você e a gente faz amor”, dizia.
Aos 15 anos, Fabiano sofreu fortes dores abdominais na região do umbigo,
febre alta e excesso de vômito enquanto dormia na casa paroquial. Monsenhor
Luiz o socorreu. Ligou para um amigo médico chamado Francisco e pediu um
atendimento de emergência em seu consultório para salvar o pupilo. De lá, o
coroinha seguiu para o centro cirúrgico do hospital público Nossa Senhora do
Bom Conselho, onde foi realizada uma intervenção de emergência para retirada
do apêndice. Logo após a cirurgia, o sacerdote fez uma visita ao paciente e deixou
claro: ele teria morrido se não tivesse dado entrada no hospital imediatamente.
“Quem conseguiu isso tudo para você fui eu, viu, meu filho? Nunca se esqueça
disso”, reforçou. Já em casa, depois da alta médica, Fabiano recebeu outra visita
do religioso. Sozinho no quarto, o adolescente ainda sentia incômodo com os
pontos da cirurgia. Impaciente com a inatividade sexual de sua presa, o
monsenhor insistiu em transar com o menino no pós-operatório. Fabiano pediu
um tempo para se recuperar, mas Luiz insistiu e ficou apalpando o sexo do jovem
até ele se dar conta de que seria impossível a vítima ter ereção.
A rotina de abusos praticada por monsenhor Luiz contra Fabiano se
perpetuou até ele completar 18 anos. O sacerdote confessou a amigos ter se
apaixonado perdidamente pelo coroinha, a ponto de ficar desequilibrado e
doente, mas negou ser pedófilo. O abusador mantinha amizade com outros dois
reverendos gays e pedófilos do interior de Alagoas: Raimundo Gomes
Nascimento, de 43 anos na época; e Edilson Duarte, de 35. Até o bispo diocesano
do município de Penedo, Dom Valério Breda, de 55, fazia parte desse círculo
social. Quando estavam a sós bebendo vodca e fuxicando sobre a beleza dos
ajudantes, os religiosos se chamavam por nomes femininos. Na fantasia sacra,
Luiz era “Simone”, Raimundo era “Mônica” e Edilson era “Leona”. O bispo
Valério, italiano de San Fior di Sotto, gostava de ser chamado de “Vera Fischer”.
Nesse tricô, “Mônica” ouviu tanta resenha positiva sobre Fabiano que pediu
permissão a “Simone” para aliciar o garoto. “Nem pensar!”, respondeu, irritado.
Mesmo assim, “Mônica” levou a criança para a cama e transou com ela por mais
de dois anos, pagando os estupros com dinheiro vivo.
No dia 26 de outubro de 2022, Fabiano deu o seguinte depoimento:
“Eu era virgem quando comecei a ser abusado sexualmente pelo monsenhor
Luiz. Sequer tinha pelos pubianos. Como as minhas primeiras relações sexuais
foram com ele, acreditava que fazer sexo era aquilo. Fui conversar com outros
coroinhas e eles revelaram que também transavam com padres e bispos. Então
achei que estava fazendo algo sagrado, pois ele era representante de Deus e uma
autoridade muito respeitada na cidade. Ainda tinha o título de capelão da polícia.
Quando entrei na puberdade, as relações se intensificaram. Então, achei que
poderia ser gay e continuei me deitando com ele quase todas as noites. Ao
completar 16 anos, uma menina mais velha se interessou por mim. Nós nos
beijamos, transamos e gostei muito. Minha cabeça deu um nó, pois não sabia
mais qual seria a minha verdadeira orientação sexual. Desde então, me interessei
somente por mulheres e o sexo com o padre passou a ser algo infame, asqueroso,
violento e vil. Como eu era pobre, transava com ele somente pelo dinheiro, pois
ajudava no sustento da minha família. Certo dia, não quis mais dormir com ele
nem pelo pagamento. Monsenhor Luiz me chamou no confessionário para dizer
que, se eu o deixasse, não poderia mais pôr os pés na igreja dele. Sendo assim,
não fui mais lá. Era um ótimo motivo para eu me livrar daquele demônio. Estava
enganado. Um mês depois, ele fez uma visita à minha família e contou que Deus
não cuidava mais de mim porque eu havia abandonado sua casa. Religiosa,
minha mãe mandou eu voltar e eu obedeci, até porque o dinheiro que ele me
dava começou a fazer falta. Os encontros sexuais voltaram. Ele me beijava e me
chamava de ‘meu amor’. Fiquei com trauma da palavra ‘amor’. Com o tempo, a
relação tornou-se escabrosa. Eu ficava de bruços na cama e ele se deitava por
cima de mim, tentando me penetrar. Esse era o pior momento. Eu travava as
pernas para impedi-lo. Em seguida, penetrava a contragosto no monsenhor e
meu pênis ficava todo sujo de fezes, produzindo um odor insuportável no
quarto. Sentia vontade de vomitar, mas ele insistia para eu continuar até ele
gozar. A minha sorte – se é que isso pode ser chamado de sorte – é que Luiz
tinha ejaculação precoce e esse inferno acabava rapidamente. Depois de tudo,
tomava um banho, mas o fedor não saía do meu corpo. Até hoje, 15 anos depois
de ter me livrado dessa aberração, ainda sinto esse futum no meu nariz. Tenho
alucinações com ele quase todas as noites. Às vezes, nos piores pesadelos,
enxergo esse Diabo deitado na minha cama, nu, me chamando de ‘meu amor’.
Esse monstro destruiu a minha vida para sempre”.
Anderson, o melhor amigo de Fabiano, também começou a ser molestado
por sacerdotes antes de entrar na puberdade, em Arapiraca. Mas só aos 14 anos
ele veio a entender o tipo de violência à qual era submetido. Na adolescência, era
muito cortejado pelos padres. O primeiro abuso ocorreu de forma sutil, logo
após uma missa, quando Raimundo Gomes o chamou à sacristia. “Você está
ficando um homem muito bonito”, elogiou, dando um beijo suave e inadequado
no rosto do garoto. A segunda investida ocorreu após uma rodada de orações em
uma das capelas da Paróquia de São José. O monsenhor levou o coroinha até a
casa paroquial e beijou longamente a sua boca. Enojado, o adolescente manteve
os lábios cerrados o tempo inteiro. O religioso, então, começou a lamber seu
rosto, avançando para orelhas e nuca. No final, Raimundo repassou-lhe um
envelope com dinheiro. “Esse é o dízimo que os fiéis idiotas pagam para ajudar a
manter o clero. É todo seu, meu filho”, anunciou, com voz máscula. Eram 20
reais em notas de 2. “É pouco, eu sei. Se quiser que eu aumente a oferta sagrada,
vamos ter de passar da fase dos beijinhos de boca fechada”, avisou. Apesar de
Anderson ainda querer ser padre, ele já sabia que não conseguiria praticar a
castidade, pois tinha a sexualidade muito aflorada e desejava mulheres. Quando
seu corpo ganhou massa muscular, os sacerdotes de Arapiraca começaram a
disputá-lo. Era comum os pedófilos organizarem encontros nos finais de semana
para ouvir música e beber vinho, cachaça e drinques feitos com vodca. Nessas
baladas, ouviam músicas católicas gravadas pela Comunidade Canção Nova em
ritmo eletrônico. Embriagados, falavam com voz anasalada, botavam brincos de
pressão na orelha, passavam pó compacto nas bochechas e batom vermelho nos
lábios. Na fala, os religiosos misturavam gírias da comunidade LGBTQIA+ com
termos religiosos, criando um dialeto bem particular. No petit comité,
chamavam-se pelos codinomes femininos. A beleza de Anderson foi assunto na
roda:
– Poc do céu! Vocês viram como esse bofe tá ficando todo trabalhado na
beleza? A mala é um luxo! Tô bege como o pano umeral! – exclamou Leona
(Edilson), gargalhando alto.
– Desaquenda, sua mona pintosa! Meu edí é desse cafuçu faz tempo! –
reivindicou Mônica (Raimundo).
– E desde quando a senhora respeita os ocós das amigas, sua maricona pão-
com-ovo? Você já furou o meu olho porque ‘fez’ o Fabiano quando eu ainda
estava ‘casada’ com ele... Pensa que esqueci, meu bem? – reclamou Simone
(Luiz).
Regados a bebida, os encontros dos padres para debater seus crimes sexuais
ocorriam num espaço da casa paroquial onde havia um bar e aparelho de som. O
bispo Dom Valério, a “Vera Fischer”, aparecia em algumas reuniões, mas não há
denúncias de abusos de coroinhas contra ele. No entanto, o bispo era cúmplice
dos crimes porque sabia dos estupros, apesar de negar. “Vera Fischer” tinha
posição de comando na Igreja Católica de Alagoas. Em 30 de julho de 1997,
nomeado pelo Papa João Paulo II para responder pela diocese de Penedo,
escolheu como lema Caritas Christi Urget (O amor de Cristo pede) na cerimônia
de ordenação. Também chegou a presidir a Comissão Regional Pastoral Bíblico-
Catequética da Regional Nordeste 2 da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB). Outra cúmplice dos estupros de Arapiraca era a empregada,
Maria Isabel, que providenciava gelo e ingredientes para os drinques, como
alecrim, canela e flores de hibisco. No rega-bofe religioso, os petiscos também
eram preparados e servidos por ela. No cardápio, constavam geralmente frango a
passarinho, iscas de peixe e linguiça toscana. Tudo feito na mais absoluta
discrição, para não incomodar os estupradores de batina. Maria Isabel nega. José
Reinaldo Bezerra, motorista da Paróquia de São José, era quem levava os amigos
bêbados de volta para casa. No dia seguinte, o funcionário comprava Engov e
Sonrisal para que os salafrários aplacassem a ressaca santa. Segundo
testemunhas, o motorista ainda conduzia crianças e adolescentes até a casa
paroquial para satisfazer o desejo sexual dos pedófilos. Ele também nega. Mas
tanto o motorista quanto a empregada foram presos, acusados de acobertar os
crimes sexuais dos seus patrões.
Ao perceber que “Leona” estava de olho em sua presa, “Mônica” fez
investidas mais agressivas. Levou Anderson para casa, sob o velho pretexto de
dar aconselhamentos espirituais, e declarou sua paixão avassaladora. Assustado,
o garoto quis escapar, mas o religioso o segurou pelos braços. Nesse dia, usou as
mãos para abrir sua boca e o beijou à força. No início, Anderson rejeitava
Raimundo, mas foi cedendo com o tempo. Segundo ele, o monsenhor ficava
muito afeminado entre quatro paredes, dizendo que “era uma mulher” chamada
“Mônica”. “Havia outra ‘vantagem’ em ser abusado pelo padre: ele tinha um
micropênis que media três centímetros ereto e era tão fino quanto uma caneta
Bic. [...] O fato de ele ter trejeitos e voz feminina na cama me fazia acreditar que
eu não estava com um homem”, disse Anderson, aos 33 anos, em outubro de
2022. As violações se estenderam por cinco anos. Raimundo e sua vítima ficaram
tão envolvidos emocionalmente que dormiram no mesmo quarto por mais de
dois anos: o religioso, numa cama de casal, e o jovem num colchão de solteiro
posto no chão. “A casa paroquial era aconchegante e a comida, deliciosa.
Inconscientemente, eu vivia uma relação afetiva, mas nem me dava conta de que
estava enredado psicologicamente por um criminoso. [...] Eu nunca me deitei na
cama do padre. Era sempre ele quem descia para o meu colchão”, contou. Para
manter sua presa por perto, o sacerdote matriculou o rapaz numa escola
particular e bancou tudo, inclusive o material de estudo. No entanto, o ex-
coroinha, heterossexual, passou a namorar uma menina. O monsenhor teve
surtos de ciúme. Para puni-lo, parou de pagar os estudos. Anderson voltou a
estudar em escola pública aos 17 anos. Hoje ele é policial militar em Alagoas e
prefere ver o Diabo em sua frente a se deparar com um padre. “Nem sei se sou
ateu ou agnóstico. O que sei é que tenho nojo – muito nojo – da Igreja Católica e
de tudo que ela representa”, definiu.
Os abusos em série de Arapiraca vieram à tona em 2008, quando Fabiano
entrou em depressão e procurou pelo ex-coroinha Cícero, que já havia
abandonado a Paróquia de São José, cansado do assédio do monsenhor Luiz.
Segundo seu relato, Cícero foi estuprado entre 1999 e 2006, desde os 12 anos de
idade. O religioso primeiro o abraçou, deu um beijo em sua boca dizendo “amá-
lo como se ama Deus” e ainda deixou 2 reais para o menino guardar o “segredo
de confissão”. A convite do padre, Cícero dormia na casa paroquial, com
consentimento dos pais. Primeiro ele era alojado num aposento para hóspedes.
No meio da noite, o sacerdote do Satanás levava a criança para seu quarto, onde
ocorriam carícias, sexo oral e cópula anal. “Meu sêmen é sagrado, porque foi
santificado por Deus”, proferiam os religiosos aos coroinhas.
Quando Fabiano procurou Cícero para falar sobre os abusos dos párocos,
chorou tanto que as frases ficavam incompletas e nem sempre seu relato era
compreendido. Nessa época, ao contrário do amigo, Cícero e Anderson já
estavam livres da violência – mas nem por isso haviam esquecido a
monstruosidade da qual foram vítimas. Os dois, então, bolaram um plano e
incluíram Fabiano na história sem consultá-lo. Com parte do dinheiro guardado
que recebera do monsenhor Raimundo, Anderson foi às Lojas Americanas e
comprou uma câmera digital por 400 reais. A ideia era armar um flagrante. Os
dois jovens seguiram o motorista Bezerra até ele pegar Fabiano na escola e levá-
lo à casa paroquial. Depois de pular o muro, os amigos seguiram até a janela da
suíte de Luiz. Agachados, puseram a câmera no batente para filmar o interior do
quarto. O equipamento gravou por cerca de dez minutos, até que Anderson
levantou-se para ajustar o foco da lente e foi surpreendido pelo padre. “Quem
está aí?”, gritou ele. Para não serem pegos, os rapazes saíram correndo e só na
casa de Cícero conferiram a gravação, que havia registrado nitidamente o
monsenhor transando com Fabiano. O flagrante foi entregue ao Ministério
Público Federal em 2009 e ao jornalista Roberto Cabrini, que fez a denúncia em
rede nacional no programa Conexão Repórter, do SBT. Fabiano ainda passou o
vexame de ter o vídeo praticando sexo com Luiz gravado em DVD e vendido em
feiras de Alagoas como um filme pornô intitulado Senhor dos anéis, com a foto
do religioso na capa. Os três ex-coroinhas chegaram a relatar os abusos
formalmente ao bispo diocesano Dom Valério Breda, a “Vera Fischer”. “Minha
Nossa Senhora! Que horror! Vocês têm certeza disso? Vou tomar providências
rigorosas, porque esse tipo de absurdo deixa Deus muito triste”, anunciou o
sacerdote, como se não fosse cúmplice dos seus pares de batina.
Por incrível que pareça, pedofilia não é crime no Brasil. O capítulo do Código
Penal sobre crimes sexuais pune o estupro de vulnerável; a indução de menor de
14 anos a satisfazer a lascívia de outrem; a satisfação da lascívia mediante
presença de criança ou adolescente; o favorecimento da prostituição e a
divulgação de cenas de estupro de vulneráveis. No entanto, essa falha pode ser
corrigida. Há um projeto de lei (4299/20) de autoria da deputada Rejane Dias
(PT-PI) tramitando no Congresso para tipificar o crime de pedofilia. Se
aprovada, a nova lei acrescentará um artigo ao Código Penal classificando como
pedofilia o ato de constranger criança ou adolescente, corromper, exibir o corpo
apenas com roupas íntimas ou tocar partes do corpo para satisfazer a lascívia,
com ou sem conjunção carnal, utilizando criança ou adolescente. A pena, nesses
casos, será de quatro a dez anos de reclusão, o que ainda é considerado pouco
para um crime horrendo contra crianças e adolescentes. O projeto prevê ainda
que a punição seja aumentada em até um terço se o abusador se prevalecer de
relações domésticas, de coabitação, de dependência econômica ou de
superioridade hierárquica inerente ao emprego. Se o agressor for parente da
vítima ou tiver mantido relação de afeto com ela a fim de se vingar de qualquer
membro da família, a pena poderá ser acrescida em dois terços. Outro projeto de
lei (1776/2015) que tramita na Câmara dos Deputados inclui a pedofilia no rol de
crimes hediondos, também com aumento de pena do abusador, e prevê o início
da prisão do criminoso em regime fechado. Esse projeto é de autoria dos
deputados federais Paulo Freire (PL-SP) e Clarissa Garotinho (União-RJ).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pedofilia é transtorno da
“preferência sexual”, ou seja, refere-se a pedófilos adultos que têm “preferência
sexual” por crianças, geralmente pré-púberes ou no início da puberdade. Para o
Vaticano, pedofilia é uma infração universal punida com demissão. A denúncia
pode ser feita por qualquer pessoa, sendo ela a vítima ou não. Inicialmente, o
caso deve ser relatado ao superior do clérigo acusado. Se o criminoso for o padre,
por exemplo, deve-se falar com o bispo. A autoridade que recebeu a denúncia
ouve o acusado. Se o bispo considerar a denúncia verídica, ele a manda para o
Tribunal Eclesiástico. Resultado: as denúncias sempre são varridas para debaixo
dos tapetes das igrejas. A bem da verdade, sempre foi comum a cúpula do
catolicismo acobertar crimes sexuais de seus clérigos contra crianças e
adolescentes, como fez o bispo Valério, a “Vera Fischer”. No entanto, em 2021,
ocorreu uma pequena mudança.
Para debater a pedofilia dentro da igreja de forma aberta, o Papa Francisco
presidiu um evento no Vaticano intitulado “A proteção de menores na Igreja”,
com 150 titulares de congregações espalhadas pelo planeta – incluindo o
presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Walmor
Oliveira de Azevedo. O encontro apresentou depoimentos de vítimas de abusos
cometidos por padres para mostrar à sociedade o horror dessa prática e clamar
que esse tipo de crime cessasse imediatamente. Três meses depois, o Vaticano
mudou as regras internas, obrigando seus membros a denunciar às autoridades
religiosas, o mais rápido possível, todos os casos de pedofilia. Na nova regra, as
denúncias, mesmo sendo apenas suspeitas, devem ser enviadas sigilosamente
para a Congregação da Doutrina da Fé, seja por integrantes da instituição, seja
por funcionários das sacristias. A nova orientação, porém, não determinou que
as denúncias fossem enviadas também ao Ministério Público e à polícia, que é
bem mais ligeira em investigação do que os burocratas dos tribunais eclesiásticos.
O escândalo de Arapiraca só saiu do cercadinho da igreja porque foi
mostrado na televisão, chocando o país inteiro. De lá, foi parar na Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado que apurava crimes sexuais
praticados por pedófilos. Para políticos, Edilson confessou tudo, inclusive os
apelidos femininos dos sacerdotes. Monsenhor Luiz admitiu a prática sexual com
Fabiano, mas teve a cara de pau de levar uma Bíblia no dia de seu depoimento.
Segurando o livro sagrado, contou que a relação com o coroinha não
caracterizava abuso, muito menos crime, porque ele (Luiz) era homossexual e
estava apaixonado pelo garoto. “Até onde eu sei, ser homossexual e se apaixonar
não é crime no Brasil”, defendeu-se. Em seguida, “Simone” se comparou a Jesus.
“Renova-se em mim o que ouvi na Sexta-Feira Santa, que foi Jesus dizendo:
‘Tiraram a minha roupa, cuspiram em mim e me crucificaram’. É isso que estou
passando com essas acusações levianas”, proclamou. O apelo não surtiu efeito.
Luiz saiu de lá preso. Em 2011, foi condenado pelo juiz da Vara da Infância e
Juventude, João Luiz de Azevedo Lessa, a 21 anos de prisão. Monsenhor
Raimundo, a “Mônica”, e padre Edilson, a “Leona”, pegaram 16 anos no mesmo
processo.
No entanto, nenhum dos três estupradores cumpriu um dia sequer da pena,
porque seus advogados recorreram da sentença. Benevolente, a Justiça dos
homens deu a eles o direito de esperar pela morosidade das instâncias superiores
gozando de liberdade. Raimundo morreu em 2014, em decorrência de um
acidente vascular cerebral (AVC). Mesmo expulso da Igreja Católica pelos crimes
sexuais, ele foi sepultado com honras religiosas logo após uma missa de corpo
presente lotada, realizada na Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em Arapiraca.
O sepultamento, no cemitério Pio XII, arrastou uma multidão de fiéis.
Monsenhor Luiz tinha 91 anos em 2022. Durante a pandemia, beirou a morte ao
ficar internado com covid-19 por oito dias na Santa Casa de Misericórdia de
Maceió. Em novembro de 2022, sobrevivia com sequelas graves da doença. Padre
Edilson está foragido da polícia. Bispo Valério, a “Vera Fischer”, nunca foi
cobrado pela cumplicidade com os pedófilos, mas morreu em 2020 vítima de
insuficiência renal crônica causada por crise alérgica contraída quando usava um
respirador mecânico. Fabiano, Anderson e Cícero movem uma ação milionária
na Justiça contra a Igreja Católica. Cada um quer 1 milhão de reais para reparar
danos morais. “Sabe o que é revoltante nessa história toda? Nunca nenhum
integrante do clero nos procurou para se desculpar ou para prestar qualquer tipo
de assistência. Nunca!”, disse Fabiano, que faz terapia há mais de dez anos para
tentar se livrar do trauma de ter sido abusado por quem deveria zelar pela sua
paz espiritual. Em 2022, ele era casado, trabalhava com vendas e tinha uma filha
de 5 anos.
Também em 2022, outro padre criminoso caiu nas garras da Justiça dos
homens e foi condenado a 19 anos de prisão, acusado de violação sexual contra
pelo menos uma dezena de coroinhas com idade entre 11 e 17 anos. O abusador
era Pedro Leandro Ricardo, com 32 anos quando fez a sua primeira vítima. O
cenário do crime foi o município de Araras, interior de São Paulo. Cassiel Lima e
Silva, de 17 anos, era órfão de pai e vivia com a mãe em estado de miséria,
fazendo apenas uma refeição precária por dia. Para escapar da pobreza, resolveu
tornar-se padre e ingressou como coroinha na Paróquia de São Francisco de
Assis, administrada por Pedro Leandro. Certa vez, o religioso pediu a Cassiel que
o ajudasse num trabalho social feito na zona rural de Araras. Eles seguiriam bem
cedinho na caminhonete da igreja com alimentos para serem doados a famílias
carentes. Na condução do veículo, o sacerdote pegava na perna do jovem,
sentado no banco do carona, sempre que trocava as marchas. Mesmo
estranhando, o garoto não fez comentário – tratava-se, afinal, de uma autoridade
muito acolhedora e respeitada na comunidade. Na segunda vez, Pedro Leandro
avançou um pouco mais: pediu ao coroinha que dormisse na casa paroquial, pois
fariam nova viagem pela zona rural na manhã seguinte. Cassiel aceitou o convite
na hora, pois teria a oportunidade de fazer mais uma refeição naquele dia. O
abuso ocorreu logo após o jantar, quando o religioso apareceu de banho tomado,
excitado, usando uma cueca samba-canção e apalpando o próprio pênis. Sentado
no sofá, Cassiel recebeu uma ordem: “Chupa aqui!”. Ele recusou, mas, diante da
insistência do outro, propôs o contrário: receber sexo oral do padre. No final do
ato, trancou-se no quarto. No dia seguinte, o sacerdote serviu o café da manhã
como se nada tivesse acontecido. Na outra semana, repassou ao jovem um
envelope contendo 500 reais. Pobre, Cassiel pegou o dinheiro e entendeu o
pagamento como um “cala-boca” ou “se quiser mais, basta transar comigo”. Com
medo de a cena se repetir, o rapaz foi embora, abandonou seu sonho e mudou-se
de Araras.
Pedro Leandro era um predador de batina. Outra vítima, Eduardo, de 12
anos, contou na Justiça ter sofrido nas mãos do pai alcoólatra. Em 2003, acabou
acolhido pelo padre na Paróquia de São Francisco de Assis. Na época, o coroinha
não sabia, mas era uma mulher trans: apesar de ter nascido num corpo
masculino, se autoidentificava com o gênero feminino. O religioso acompanhou
o início do processo de readequação sexual do indivíduo, que passou a ser
chamado de Bella ao completar 14 anos. A adolescente entrou para o coral da
igreja e sofreu violência psicológica, com reações agressivas e preconceituosas
dos amigos, que não entendiam sua transformação. Bella pediu ajuda a Pedro
Leandro, e este a responsabilizou pelo bullying, pois “ela dava muita pinta e
confundia a cabeça das pessoas”. Certo dia, o sacerdote pediu à menina que fosse
até a casa paroquial para falar “do seu problema”. A sós, pediu que ela tirasse
toda a roupa, pois queria ver se “ainda tinha pênis”. A garota ficou estática com a
abordagem. O religioso aproveitou para lhe dar um beijo na boca. Num ímpeto,
Bella deu um empurrão no padre, derrubando-o no chão. No dia seguinte, sua
mãe foi chamada à sacristia e soube que a filha havia sido expulsa da paróquia
por ser transexual e agressiva. “Ela tem uma ‘opção’ de vida diferente da esperada
pela Igreja. Isso tem causado tumulto aqui dentro”, justificou o pároco.
Segundo o Ministério Público, Pedro Leandro praticou abuso contra uma
dezena de coroinhas entre 2002 e 2006. Ele jura inocência e atribui as denúncias
a funcionários do departamento financeiro da sua paróquia, que teriam sido
flagrados desviando recursos. Eles foram demitidos e, desde então, teriam
armado contra ele com o intuito de macular sua reputação. Quando a queixa se
espalhou por Araras, o bispo emérito da diocese de Limeira, Dom Vilson Dias de
Oliveira, transferiu o subordinado para o município de Americana – onde,
mesmo acusado, atuou rezando missas e fazendo batizados. Mais tarde, Dom
Vilson foi afastado das funções pelo Vaticano sob suspeita de cobrar propina de
Pedro Leandro para manter as delações contra ele em segredo. O padre só foi
demitido pelo clero dez anos depois de cometer a primeira violência. “O réu
praticou as condutas delitivas utilizando-se da autoridade religiosa que exercia
na comunidade em que atuava, fazendo com que todos o obedecessem,
eternizando abusos”, escreveu o juiz Rafael Pavan de Moraes Filgueira na
sentença que condenou o monstro de Araras. Assim como os criminosos de
batina de Arapiraca, porém, Pedro Leandro seguia em liberdade aos 50 anos, em
2022, graças – como sempre – à boa vontade da Justiça brasileira.
Em 1995, outro assombro eclesiástico atacou crianças. Dessa vez, o crime
começou no município mineiro de Mariana, a 110 quilômetros de Belo
Horizonte. Bonifácio Buzzi, de 36 anos na época, era responsável por uma
pequena igreja no distrito rural de Mainart. No que parecia uma intenção nobre,
ele iniciou um programa educacional, como voluntário, para ensinar os filhos
dos lavradores a ler, escrever e fazer contas. O que ele queria mesmo, porém, era
ficar rodeado de crianças para estuprá-las. Os pais, operadores de máquinas
agrícolas, deixavam os filhos com o religioso por volta das 4h e só retornavam
para buscá-las às 17h. Dependendo do dia, o sacerdote ficava com vinte meninos
e meninas. Mas, para saciar seu desejo macabro, preferia garotos entre 10 e 12
anos. Quando suas vítimas cresciam, ele as trocava por outras mais novas. A
substituição geralmente ocorria quando nasciam pelos pubianos na criança.
Padre Buzzi dava aulas usando lousa de giz. No intervalo, levava seus
“alunos” para tomar banho num córrego próximo. Segundo os meninos, todo
mundo ficava nu, mas não acontecia nada. O pedófilo agia no meio da
madrugada. Quando os pais chegavam para levar os filhos para casa, ele escolhia
sua presa dizendo que o menino precisava de aula de reforço e pedia que ficasse
para dormir na casa paroquial. Inocentes, os pais deixavam. Na calada da noite,
Buzzi beijava o menor e se masturbava enquanto a vítima dormia. No início, os
abusos paravam por aí. Certa vez, Pedro, de 10 anos, foi o escolhido para as aulas
de reforço. Sua mãe, Doralina, admiradora do trabalho do padre, concordou.
Dessa vez, Buzzi avançou. À noite, a casa estava infestada de muriçocas. Com a
desculpa de espalhar repelente no corpo da criança, o religioso mandou que ela
ficasse nua. Na sequência, o garoto foi penetrado. Durante o estupro, o sacerdote
percebeu uma certa desenvoltura de Pedro em fazer sexo oral e, principalmente,
quando o menino assumia posições sexuais passivas na hora da penetração. Com
o tempo, apaixonado, o padre descartou outras vítimas. Passou a transar
somente com Pedro, mesmo depois de ele entrar na fase da adolescência,
rompendo o padrão de abusar somente de crianças. Na escola rural, já com 13
anos, o garoto contou para um coleguinha de 15 que namorava o religioso. O
coleguinha contou para a mãe, uma senhora chamada Grinalda, da Associação
de Mulheres da Agricultura Familiar. Ela denunciou a violência ao pároco da
Arquidiocese de Mariana. Buzzi foi transferido para uma igreja próxima à
localidade de Sumidouro, a dez quilômetros do local onde ocorriam as aulas de
alfabetização. Um mês depois, Grinalda foi até lá e ficou surpresa quando viu,
numa quermesse, padre Buzzi, Pedro e sua mãe, Doralina, de 39 anos, sentados à
mesma mesa tomando quentão. Grinalda conhecia Doralina do trabalho rural e
só não havia contado a ela sobre os abusos contra seu filho porque ficou com
medo de acontecer uma tragédia, pois a mulher tinha dado golpes de machado
em outra agricultora numa disputa por um pedaço de terra para a plantação de
pimenta-biquinho. “Fiquei com receio de ela esquartejar o homem e acabar
presa. Mas, dessa vez, não podia mais esconder a verdade”, justificou Grinalda.
Ela foi até a mesa, pediu licença e chamou Doralina para uma conversa em
particular:
– Nem sei como começar essa prosa.
– Vá direto ao ponto!
– Você tem de afastar o seu filho do padre Buzzi!
– E por que eu faria isso?
– Porque ele é um pedófilo! Já o denunciei na paróquia e mandaram ele pra
cá.
– Ah! Então foi você quem fez essa fofoca?
– Mulher, tu não tá entendendo, o padre tá comendo seu filho.
Doralina se afastou da amiga sem falar nada e seguiu até uma barraca para
pegar mais bebida. Insistente, Grinalda foi atrás, anunciando que faria uma nova
denúncia, dessa vez na delegacia. A mãe de Pedro deu um gole longo na mistura
de cachaça, canela e gengibre e encarou Grinalda.
– Não faça isso! Meu filho não vai suportar ficar longe do padre. Pedro
caminha dez quilômetros para visitá-lo uma vez por semana depois que Buzzi foi
transferido. [...] Agora você vem me dizer que é a autora dessa falsa denúncia.
[...] Ele aprendeu a ler graças ao padre, não sabia nem as vogais...
– Acho que você não entendeu. Buzzi está violentando o seu filho! – alterou-
se Grinalda.
– Você não sabe o que diz. Pedro foi abusado pelo pai desde os 8 anos. Todos
os dias, inclusive na nossa cama, na minha frente! Eu me separei dele para evitar
o incesto, que é pecado. Depois, o Pedro passou a ser molestado pelo padrasto,
uma desgraça de homem que conheci na roça e levei para casa porque não tinha
onde dormir. Agora que meu filho foi escolhido por um representante de Deus,
você vem dizer que é estupro? Que devo impedir? Você está doida?
Com medo do machado de Doralina, Grinalda deixou a acusação para lá.
Cinco anos depois, porém, as denúncias contra padre Buzzi finalmente chegaram
à delegacia de Três Corações. Pedro já estava com 17 anos e se recusou a
classificar como estupro a relação sexual mantida com o sacerdote por três anos
consecutivos, iniciada ainda na infância. “Foi consentido. Nós nos amávamos. Eu
terminei com ele porque me apaixonei por um pastor”, disse o jovem ao policial.
Em sua defesa, o religioso alegou ser doente mental. Não lhe deram ouvidos: foi
condenado a 20 anos de cadeia. Depois de ficar cinco anos no xilindró, migrou
para o conforto da prisão domiciliar. Em casa, cumprindo pena, conseguiu atrair
dois menores, de 8 e 10 anos, e fez sexo com eles. Foi parar num manicômio
judiciário. No hospital psiquiátrico, mesmo vigiado, convenceu um paciente de
13 anos a chupá-lo. De lá, o pedófilo incorrigível mudou-se para Barbacena, na
região metropolitana de Belo Horizonte, onde cometeu novos abusos e foi preso
mais uma vez. Quando migrou para o regime semiaberto, em 2012, desapareceu.
Em 2015, Buzzi foi o único brasileiro a ter o nome incluído na lista
internacional de padres autores de crimes sexuais contra crianças e adolescentes
acobertados pelo Vaticano. A lista da vergonha foi divulgada no filme
hollywoodiano Spotlight – Segredos revelados, ganhador do Oscar de melhor
filme em 2016. Só depois dessa publicidade de alcance mundial a polícia de
Minas saiu atrás dele. Buzzi estava para os lados do município de Barra Velha,
em Santa Catarina, abusando de outras vítimas. Foi capturado e levado para o
presídio de Três Corações. No traslado, disse aos policiais que não adiantava
prendê-lo, pois sua doença estava na alma, e não em seu corpo. Quando deu
entrada na penitenciária pela terceira vez, em 5 de agosto de 2016, padre Buzzi
aparecia nas páginas policiais de todos os jornais por causa da repercussão do
filme Spotlight. A população carcerária agitou-se com sua chegada. Ele foi para a
solitária. Houve uma disputa entre os presos mais violentos para ver quem iria
assassiná-lo. No entanto, o religioso ganhou a aposta: dois dias depois, Buzzi
pegou o lençol da cama, fez uma teresa (corda improvisada) com o tecido,
amarrou uma das pontas na parte mais alta da grade, passou a outra ponta no
pescoço e fez um nó. Em seguida, enforcou-se com o peso do próprio corpo,
ajoelhando-se lentamente. Dentro do universo religioso, o suicídio é um dos
temas mais controversos. A maioria das doutrinas afirma que o destino de quem
tira a própria vida é o inferno. Se for verdade, padre Buzzi, o pedófilo contumaz,
está sentado no colo do Satanás.
Nômade, o Demônio também troca os templos da Igreja Católica pelos falsos
terreiros de candomblé. O suposto líder religioso Pai Vagner Meleiro, de 40 anos,
manteve por quase uma década o que chamava de “casa espiritual”, onde
realizou atendimentos no Jardim Zulmira, zona oeste de Sorocaba (SP). Segundo
relatos das clientes, ele fazia previsões e promovia curas por meio de relações
sexuais. Na hora de estuprar mulheres, dizia obedecer ordens de entidades
superiores. Branco, de estatura mediana, com cavanhaque, nem gordo nem
magro, Vagner fazia nas noites de domingo um ritual coletivo chamado “roda de
esquerda”, no qual, segundo ele, ocorria uma “passagem de almas vagantes para
o lado da luz”. Tudo começava com uma consulta individual, com preço a partir
de 300 reais. O charlatão recebia homens e mulheres, mas enredava somente as
clientes mais vulneráveis. Uma de suas vítimas foi a professora Débora Rangel,
de 42 anos. Num curso de escrita criativa, ela conheceu a funcionária pública
Mallu Ribeiro, de 29. As duas ficaram amigas já nas primeiras aulas. O instrutor
sugeriu que as alunas lessem Capitães da Areia, de Jorge Amado, para discutir a
obra no próximo encontro, marcado para dali a uma semana. Débora e Mallu
compraram juntas o livro, cujo enredo retrata a vida de um grupo de
adolescentes abandonados que cresceram roubando pelas ruas de Salvador, e
leram as 280 páginas em quatro dias. Marcaram um encontro num café para
trocar impressões pessoais sobre o texto do escritor baiano. Entre xícaras e
torradas, Mallu comentou que frequentava o terreiro do Pai Vagner havia dois
anos. Curiosa, Débora quis saber um pouco mais sobre o lugar. No ritual da
“roda de esquerda”, segundo a funcionária pública, o suposto candomblecista
incorporava alternadamente duas entidades divinas. Uma era chamada por todos
de “Irmãozinho”, um homem atencioso e empático. O outro espírito era uma
mulher voluptuosa conhecida pelo apelido de “Dama da Noite”. Segundo Mallu
relatou à amiga, o ambiente tinha um magnetismo ímpar, capaz de tocar o
íntimo das pessoas. Débora foi convidada a participar do ritual. Com medo de
feitiçarias, recusou. No dia marcado para defender Capitães da Areia em sala, as
duas amigas arrasaram, numa turma com 40 pessoas. Falaram sobre o fato de a
obra ainda causar impacto nos dias atuais, apesar de ter sido escrita há quase um
século. Lembraram que exemplares do livro chegaram a ser queimados em praça
pública, tamanho o escândalo provocado pelo conteúdo. Em seguida, a turma
escreveu uma resenha interpretando o clássico do escritor baiano.
Na última semana do curso, Débora não compareceu. Mallu e outras colegas
mandaram mensagens pelo WhatsApp, mas ela nem sequer as visualizava.
Preocupada, a funcionária pública foi até a casa da amiga ver o que havia
acontecido. Numa consulta com um oncologista, Débora havia descoberto um
câncer no ovário esquerdo. Três semanas depois, estava internada numa clínica
particular para retirar o tumor. Mallu fez questão de acompanhá-la na cirurgia e
no pós-operatório. Quatro meses depois, já curada, Débora agradeceu o apoio da
amiga. Enfática, Mallu creditou o sumiço da doença aos poderes de Pai Vagner.
“Foi o ‘Irmãozinho’ quem te curou. Imprimi uma foto sua do Instagram, escrevi
seu nome no verso e contei com detalhes para o Pai Vagner o que estava
acontecendo com você. Ele consultou a entidade e ouviu dela, com todas as
letras, que você ia morrer, pois sua doença estava em estado avançado. Mas foi
feito um ritual de cura na ‘roda de esquerda’ quando você estava internada. Hoje,
você está 100% livre do câncer, conforme seus exames comprovaram”, relatou
Mallu. Ela pediu à Débora que comparecesse ao terreiro pelo menos uma vez,
para agradecer. A professora ficou impactada com o relato da amiga. Passou uma
semana sem dormir direito pensando sobre a tal “roda de esquerda”. Num
domingo à tarde, Mallu ligou para avisar que buscaria a amiga em casa, às 18h.
Juntas, elas iriam ao terreiro de Pai Vagner. Assombrada, Débora declinou do
convite e ouviu de Mallu que ela não deveria virar as costas para o tal
“Irmãozinho”. Três meses depois, uma notícia tirou o chão de Débora pela
segunda vez. Outro exame mostrou que um novo câncer estava instalado no
ovário direito, em estado inicial. Apavorada, resolveu marcar uma consulta com
Pai Vagner. Numa terça-feira, foi recebida no terreiro por Juliana de Moura
Corcini, esposa de Vagner e autodenominada “filha de santo”. Débora falou do
câncer e pediu para conversar com Vagner. Como ele estava repousando, não
pôde atendê-la. Ela foi instruída a voltar no domingo à noite, quando ocorreria a
“roda de esquerda”, com ingresso a 600 reais.
Casada e mãe de uma adolescente de 14 anos, Débora procurou Mallu para
saber mais sobre o ritual. A amiga disse tratar-se de uma experiência incrível e
aconselhou a novata a vestir roupas bonitas, pois “Irmãozinho” tinha bom gosto.
A professora não conseguiu mais dormir. No domingo, Pai Vagner a recebeu
numa sala com diversas mulheres, incluindo Mallu. A consulta foi bem mais
simples do que ela imaginava. Vagner pegou na barriga de Débora e falou que o
câncer sumiria de lá em alguns meses caso ela enrolasse um tecido vermelho em
seu ventre todas as noites, na hora de dormir. Débora saiu de lá com
pensamentos positivos. Por semanas, enrolou o pano em seu corpo ao mesmo
tempo que fez tratamento com quimioterapia e radioterapia. Curada mais uma
vez, procurou por Pai Vagner querendo agradecer. Foi marcada mais uma
incursão pela tal “roda de esquerda”. Dessa vez, Débora ficou apreensiva. Eram
19 horas e o terreiro estava com todas as luzes apagadas. Ela foi conduzida por
Juliana até uma área reservada, iluminada apenas por uma vela preta fincada
num pedaço de carne crua. Débora perguntou pelo “Irmãozinho”. A esposa de
Vagner disse que, dessa vez, ela seria recebida pela “Dama da Noite”. No meio da
penumbra, Débora percebeu que Pai Vagner estava sentado num trono, usando
um vestido longo vermelho e um chapéu feminino preto, além de bijuterias e um
leque. Juliana deixou a cliente em pé diante da “entidade” e desapareceu no breu.
Débora tremeu dos pés à cabeça:
– O senhor é o Pai Vagner, né? – questionou, tímida.
– Não! Sou a “Dama da Noite”. Tem um “Egun” irritado por causa de uma
dívida. Você foi curada de um câncer e não veio agradecer.
– Estou aqui para dizer “muito obrigada”! – adiantou-se ela.
– Gratificar a “Dama da Noite” não é algo simples!
– O que devo fazer?
– Tire a roupa! – ordenou a “entidade”, sentada no trono e fumando um
cigarro comprido.
– Como?! – perguntou Débora, incrédula.
– Eu mandei tirar a roupa! – insistiu o homem.
Débora olhou para os lados e não viu ninguém por perto. Contrariada,
respirou fundo e tirou a blusa. A “Dama da Noite” resmungou e ela se desfez da
saia. Ficou apenas de calcinha e sutiã. Envergonhada, Débora cobriu o que pôde
usando os braços e as mãos. Na sequência, a “Dama da Noite” levantou-se e foi
até um canto da sala escura pegar um facão, posto ao lado da vítima para
intimidá-la. Débora percebeu que Vagner estava excitado. Ele se aproximou e
cochichou:
– Se eu fosse você, tiraria toda a sua roupa e chuparia o meu pau. Pois “Egun”
é de veneta, tem acessos de loucura. Ele é cheio de surpresas. Tanto pode ficar
violento agora como pode trazer o seu câncer de volta mais tarde. Pode até fazer
mais, já que esse tipo de doença passa de mãe para filha...
– Pelo amor de Deus! Minha filha, não! – suplicou.
– Faça tudo o que eu mandar para você não ser machucada e para manter a
sua filha longe do câncer.
Débora tirou as roupas íntimas. Fez sexo oral em Vagner. Foi penetrada na
vagina e no ânus por mais de uma hora numa cama posta ao lado do trono.
Vagner não usou preservativo e ejaculou na vagina da vítima. Débora chorou
durante toda a relação sexual forçada. “A sua vida depende desse segredo”,
ameaçou a “Dama da Noite” tomando uma lata de cerveja. No final, Vagner saiu
do personagem e perguntou à vítima o que tinha acontecido. “Por favor, me
conte tudo, porque não lembro de nada. Quando a ‘entidade’ entra no meu
corpo, eu saio dele e não respondo pelos meus atos, sabe? Me desculpe por
qualquer coisa”, disse o estuprador. Débora estava tão estarrecida que nem
sequer conseguiu sair da cama. Após o estupro, ainda levou mais um susto.
Todas as lâmpadas do terreiro se acenderam e ela percebeu que pelo menos dez
mulheres estavam sentadas em cadeiras de plástico, formando um círculo,
assistindo ao ritual, formando a tal “roda de esquerda”. Estavam na plateia Mallu
e Juliana, além de outras que passaram pelo mesmo processo. Débora ficou em
estado de choque. Semanas depois, porém, com medo de desobedecer a “Egun”,
voltou a participar da “roda de esquerda” sentada no círculo enquanto Vagner
estuprava outra mulher.
Pai Vagner manteve esse ritual de estupros por quase dez anos. Segundo
relatos das mulheres que passaram pelo terreiro, ele mandava as próprias vítimas
recrutarem novas presas, como fez Mallu quando abordou Débora no curso de
escrita criativa. Era comum ele transar com mais de uma mulher
simultaneamente. Também exigia que elas fizessem sexo entre si. Na hora de
“incorporar” as entidades, ele alternava o espírito do “Irmãozinho” e da “Dama
da Noite”. Os crimes de Vagner só cessaram depois que uma vítima se cansou
dos abusos e foi denunciá-lo na 1ª Delegacia de Investigações Gerais de
Sorocaba. Vagner foi preso no dia 17 de janeiro de 2022 em uma operação
policial batizada de “Hemera”, a deusa da persuasão. Na hora de justificar seus
crimes sexuais, o estuprador teve a cara de pau de dizer que todas as 12 mulheres
que o denunciaram transaram com ele por livre e espontânea vontade. “Elas
gostavam tanto que pediam para repetir”, relatou aos policiais. Para sustentar
essa tese, Vagner mostrou fotos das vítimas bem à vontade em churrascos que
promovia no terreiro e mensagens de WhatsApp em que pediam para ser
atendidas pelas entidades, além de outras querendo fazer sexo.
O criminoso também justificou que parte das suas presas era formada por
mulheres com curso superior, ou seja, não eram ignorantes nem ingênuas, a
exemplo de Débora e Mallu. As desculpas não surtiram o efeito esperado. No dia
2 de agosto de 2022, o juiz Cesar Luís de Souza Pereira, do Tribunal de Justiça de
São Paulo, condenou o autointitulado Vagner Meleiro a 136 anos de prisão por
crimes sexuais envolvendo 12 mulheres, incluindo duas menores de idade. Na
hora de calcular a sentença do pai de santo, o juiz levou em conta que dez
mulheres foram estupradas por ele de forma contínua. O magistrado considerou
uma pena inicial de 8 anos por vítima e adicionou outros 2 anos pela
continuidade dos atos. Outras duas vítimas disseram que foram estupradas
apenas uma vez, acumulando assim os 136 anos de reclusão. Ao conceder
sentença tão pesada, o juiz entendeu que Vagner usava o pavor como maior
arma para estuprar suas vítimas. “O terror é uma sensação de medo muito
intensa. O medo define-se como uma perturbação angustiante do espírito devido
a um risco real ou imaginário. A partir do momento em que o medo se apodera
do controle cerebral, o indivíduo já não consegue pensar de forma racional. Ele
está perante uma situação de profunda angústia. Foi exatamente assim que as
vítimas se sentiram”, escreveu o promotor Welington dos Santos Veloso na
denúncia do Ministério Público. Um pai de santo de verdade ajudou a condenar
Vagner. O “babalorixá” Leandro Nunes Lial contou ao juiz o seguinte: os
espíritos que incorporam nos pais de santo não têm necessidade carnal ou sexual.
“Isso não existe na religião”, reforçou.
Passaram pela cama de Pai Vagner pelo menos 100 mulheres. Apenas 12
tiveram coragem para denunciá-lo e sentaram no banco das testemunhas para
contar detalhes dos estupros ao juiz. Outras dez disseram que Pai Vagner foi
vítima de um complô. Mallu estava entre as mulheres que tentaram inocentá-lo.
Segundo disse, transou com o pai de santo várias vezes porque quis. Ela foi parar
no terreiro recrutada por Juliana, quando trabalhava como vendedora, em 2015,
antes de se tornar funcionária da prefeitura de Sorocaba. Mallu estava na feira
das flores da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo
(Ceagesp) escolhendo orquídeas quando foi abordada pela esposa de Vagner,
perguntando onde ficavam os vendedores de espada-de-são-jorge. As duas
fizeram amizade. Com o tempo, Mallu teve depressão e passou a tomar remédios
controlados. Um ano antes, sua irmã mais velha havia se jogado do 10º andar,
vítima da mesma doença. Juliana conseguiu convencer a amiga a frequentar a
“roda de esquerda” para se livrar dos seus tormentos. Na primeira consulta, Pai
Vagner mandou Mallu tomar um banho “para cortar as energias trazidas da rua”.
Em seguida, Juliana fez um círculo no chão de terra e Mallu deitou nua no meio
da roda, cercada de velas pretas. O “pai de santo” incorporou o tal “Irmãozinho”
e, com voz cavernosa, deu um diagnóstico: a mulher não tinha depressão coisa
nenhuma. Mallu estava possuída por um espírito perigosíssimo chamado “Zé do
Boi”. Para afastá-lo, Wagner ordenou que ela ficasse de joelhos e chupasse seu
pênis. Mallu obedeceu. Em seguida, ele penetrou a vítima na vagina e no ânus.
Depois de uma hora, “Irmãozinho” teria deixado o corpo de Vagner.
Recomposto, ele pediu desculpas pela grosseria da entidade, que pede as coisas
sem falar “por favor”. No final, Vagner cobrou 1.200 reais de Mallu. E fez um
alerta: “Zé do Boi” voltaria, pois ele é insistente. Se Mallu sentisse tristeza
novamente, não era para tomar os medicamentos. Bastava voltar para mais uma
sessão na “roda de esquerda”. Dois anos depois de pisar pela primeira vez no
terreiro de Vagner, Mallu se formou em Administração e passou no concurso
público da prefeitura de Sorocaba. Creditou seu êxito profissional aos trabalhos
do falso pai de santo. Com o tempo, ela se integrou definitivamente ao grupo de
mulheres do harém de Vagner.
Depois de julgado, Pai Vagner foi parar na Penitenciária Orlando Brando
Filinto, no município de Iaras, a mesma prisão onde está Francisco Assis Pereira,
o Maníaco do Parque. Em abril de 2023, oito meses depois da condenação, Pai
Vagner recebeu uma carta na penitenciária. Mallu escreveu para o estuprador
pedindo permissão para visitá-lo aos domingos, pois estava com saudade do
“Irmãozinho” e da “Dama da Noite”.
No dia 27 de abril de 2023, outros líderes religiosos receberam penas por
crimes graves. Os pastores Joel Miranda e Fernando Aparecido da Silva, da Igreja
Universal do Reino de Deus, foram condenados pelo Tribunal do Júri a 21 anos
de prisão em regime fechado pela morte do adolescente Lucas Terra, que foi
queimado vivo e teve o corpo abandonado em um terreno baldio em Salvador,
em 2001. Lucas tinha 14 anos quando flagrou os dois pastores transando dentro
de um templo da Universal. Joel e Fernando correram atrás do garoto e o
capturaram. Os dois estupraram Lucas e depois o torturaram. Na sequência,
colocaram o adolescente dentro de uma caixa de madeira e o carbonizaram
mesmo com os apelos da vítima, que prometia desesperadamente jamais contar o
que havia testemunhado. Os pastores Joel e Fernando chegaram a ser julgados
em 2013, mas foram inocentados pela Justiça. Inconformada com a sentença, a
família de Lucas recorreu da decisão e conseguiu um novo julgamento, do qual
saíram condenados.
Quando o tema é abuso sexual cometido por líderes religiosos, o maior
emblema do Brasil atende pelo nome de João de Deus. Autointitulado médium
curandeiro, o falso espírita montou um esquema criminoso no interior de Goiás
– tão grandioso que foi capaz de sustentar uma cidade inteira por quatro
décadas. Localizado no caminho entre Goiânia e Brasília, o município de
Abadiânia tinha 4 mil habitantes em 1976, ano em que João de Deus abriu sua
casa de cura, chamada Dom Inácio Loyola. Em 2018, quando surgiu a primeira
denúncia de abuso sexual contra ele, a cidade já tinha 14 mil habitantes. A
economia local funcionava praticamente em função dos cerca de 2 mil pacientes
vindos do Brasil e do exterior todos os meses em busca de ajuda do líder
religioso. Hotéis, supermercados, postos de gasolina e restaurantes faturavam em
função do centro espírita de John of God, como João Teixeira de Faria era
conhecido entre os gringos. Um levantamento da prefeitura de Abadiânia
apontou uma redução de 72% na economia local um ano (2018/2019) após
estourar a primeira denúncia contra o médium. O maior impacto foi na
hotelaria, com queda de 85% na taxa de ocupação. João de Deus responde a
dezenas de processos movidos individualmente e coletivamente por quase 400
mulheres estupradas dentro do seu espaço. Aplicadas a conta-gotas, as sentenças
contra o médium-monstro somavam 370 anos, 9 meses e 15 dias de reclusão até
julho de 2023. Para efeito de comparação, a condenação do estuprador já é
superior ao castigo imposto a Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola,
apontado como principal líder do Primeiro Comando da Capital. O traficante foi
condenado a 342 anos de prisão em uma série de sentenças proferidas entre 1990
e 2022. João de Deus ainda tem quatro ações penais tramitando na Justiça de
Goiás, podendo lhe render mais algumas décadas de cadeia.
Apesar da sentença de mais de três séculos, o médium só passou 15 meses
preso desde que foi capturado pela polícia. Durante a pandemia do coronavírus,
seus advogados fizeram a Justiça de Goiás operar um milagre: João deixou o
Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, onde fazia atendimentos
espirituais para colegas de cela, e foi cumprir a pena infinita no conforto do lar.
Preso em sua mansão, aos 81 anos, “João do Diabo”, como era chamado na
penitenciária, casou-se com a advogada Lara Cristina Capatto em abril de 2022.
O caso dos padres pedófilos condenados e mantidos livres pela Justiça e o
escárnio da prisão domiciliar de João de Deus são as maiores evidências de que o
Brasil é realmente um Estado laico.
“Ele é minha vida, meu bálsamo, minha loucura.
Sou totalmente dependente dele.”
A
nderson do Carmo sempre desejou ser pastor, cantor e político. Com o
tempo, ele foi descobrindo que não tinha carisma nem talento suficientes
para brilhar em nenhuma dessas funções. Certo dia, um jornalista ligou
para Anderson querendo levar Flordelis ao programa de Hebe Camargo, no SBT.
Ao receber o convite, ele mentiu, dizendo que a missionária estava adoentada, e
sugeriu que fosse com as crianças em seu lugar. “Posso até cantar, se vocês
quiserem”, ofereceu-se. Do outro lado da linha, o produtor agradeceu a oferta e
pediu a Anderson que ligasse de volta quando Flordelis estivesse boa de saúde.
Depois de decepções semelhantes com outras emissoras de TV, as pretensões
profissionais de Anderson foram transferidas definitivamente para Flordelis. Ela,
sim, reunia características para se tornar um fenômeno nas funções almejadas
por ele. Ou seja, Anderson passou a realizar seus sonhos através da companheira,
numa relação ora simbiótica, ora parasitária, exatamente como ocorreu com a
apresentadora Xuxa Meneghel e a produtora Marlene Mattos, na segunda
metade da década de 1980.
Para se tornar o cérebro por trás do sucesso de Flordelis, Anderson passou a
se preparar profissionalmente no início da década de 1990. Começou
aprimorando o empreendedorismo religioso. A duas quadras da casa do Rio
Comprido onde morava a grande família havia um pequeno estúdio musical. Lá,
foi gravada a primeira fita demo de Flordelis. Assim como sua amada, Anderson
tinha lábia de pastor. A princípio, tentou convencer os donos da pequena
empresa, os irmãos Salim e Samir, a arcarem totalmente com os custos da
produção, pois Mãe Flor era uma estrela das reportagens de televisão. Ele então
mostrou recortes de jornais em que ela aparecia em destaque como supermãe e
propôs um disco com poucas canções, conhecido no mercado como EP
(extended play) – ou seja, algo maior do que um single e menor do que um LP
(long play). Outro cartão de visitas que o filho-empresário apresentou foi a capa
de um compacto supostamente feito pela missionária, intitulado Ninguém se
esconde, com a canção Azul do céu registrada no lado B. “Eu entro com a artista,
vocês bancam a gravação da fita demo e dividimos os lucros meio a meio. O que
acham?”, propôs Anderson. Salim pediu para ouvir o compacto de Flordelis,
gravado em 1979. Até hoje, a família da cantora guarda a capa desse disco – com
uma foto do rosto dela de cabelos curtos, aos vinte e poucos anos, em tons de
sépia – como se fosse uma relíquia. Nos créditos, consta que a produção teria
sido bancada pelo pastor Paulo Rodrigues Xavier, primeiro marido de Flor, e por
João José Correr, outra liderança da Assembleia de Deus do Jacarezinho. Pela
ficha técnica, os acompanhantes eram músicos da nova formação do Conjunto
Angelical. Esse single foi gravado no estúdio Angelical II, em Belford Roxo, mas
nunca foram prensadas mais de 200 cópias, por falta de recursos. “Por isso, hoje
é uma raridade preciosa. Vale milhões”, acredita o irmão de Flor, Fábio, um dos
músicos do disco, detentor de uma das cópias do compacto. Para passar uma
camada de verniz artístico em Flordelis, Anderson andava com a capa desse
single para cima e para baixo, contando uma mentira: o compacto tinha vendido
tanto, mas tanto, que se esgotara rapidamente nas lojas.
Depois de Anderson convencer Salim e Samir, Flordelis entrou no estúdio
para gravar seu primeiro EP. A cantora esteve acompanhada por Fábio Snak
(guitarra solo), Jamil (guitarra base e trompete), Paulo Roberto (contrabaixo),
César, Sérgio e Silas (trombones), Jorge Aguiar (teclado) e Osmar (bateria
eletrônica). Ficaram 10 dias confinados no estúdio. No final do último dia de
trabalho, ela ainda pregou com os músicos para um público de trinta pessoas,
afirmando ter tido uma visão sobrenatural: “Deus veio até mim enquanto eu
gravava esse disco. Estou toda arrepiada, gente! Ele falou ao pé do meu ouvido,
irmãos! Ele me disse que aqui, neste estúdio tão humilde quanto o coração de
Jesus, minha carreira de cantora dará o primeiro passo profissional. [Aleluia!]
Quando estiver no topo da montanha com meu marido e meus filhos – bem
pertinho do céu –, não esquecerei de nenhum de vocês!”.
Quando Flordelis gravou seu primeiro disco, em 1991, o Brasil já fabricava
CDs em escala industrial. Mas, por causa do preço alto, poucos consumidores
tinham acesso ao aparelho, o CD player, para tocá-lo em casa ou no carro.
Portanto, o EP demo de Flordelis foi registrado numa fita cassete – e com um
belo desconto, graças à conversa mole do aspirante a pastor. Cada uma das seis
canções de louvor custou 200 reais, em valores atualizados, quando o valor
médio da gravação, na época, era de 600 reais por faixa. Com a mercadoria em
mãos, Anderson investiu em sua artista: comprou um reprodutor de cassete, fez
400 cópias do EP, colocou na capa uma foto de Mãe Flor com a filharada e
passou a vender as fitas de porta em porta no Jacarezinho, onde sua estrela era
bem conhecida, e na saída dos cultos da Assembleia de Deus, onde ela se
apresentava aos domingos.
Duas semanas antes de gravar sua primeira fita demo, Flordelis enfrentou a
destemida Sandra Sapatão pela última vez. A missionária tinha acabado de
chegar à casa do Rio Comprido na companhia de Flávio e Adriano, os dois filhos
biológicos que havia resgatado dos cuidados de Carmozina após passar quatro
meses fugindo da polícia pelas ruas da cidade. Na sala, foi surpreendida pela
traficante armada de fuzil e com o pequeno Romulo, de 4 anos, no colo – o
menino era filho de Robertinho de Lucas, bandido rival de Sandra e protetor de
Flordelis. A bandoleira do Comando Vermelho estava lá para um acerto de
contas. Frente a frente com a inimiga, Flor não se mostrou abalada. Mandou as
crianças saírem da sala, pegou Romulo do colo da inimiga e perguntou:
– Meu nome é Flordelis. Como é mesmo o seu nome, querida?
– Que palhaçada é essa, sua crente do caralho?
– Aceita um copo de água? Café? Chá? – ofereceu, lânguida.
Não se sabe se era princípio de Alzheimer, sequelas de um acidente vascular
cerebral (AVC), demência simples ou puro fingimento. Desde o parto de Flávio,
em 1981, Flordelis passou a ter lapsos recorrentes de memória. Logo após o
nascimento do bebê, ela ficou uma semana sem lembrar o nome do filho. Às
vezes, perguntava às irmãs mais velhas como ela própria se chamava. Era comum
Flor sair da casa da mãe, no Jacarezinho, e esquecer o caminho de volta – ou até
o motivo de ter saído na rua. A família encarava o problema como simples
distração, mas a transitoriedade (tendência para esquecer pessoas, fatos e
eventos) foi aumentando com o passar do tempo. Quando Sandra Sapatão
encarou Flor, ela insistiu não se recordar das pendências com a criminosa
sanguinária. A bandida ficou sem entender a reação da inimiga e teve de bater
em retirada tão logo Anderson apareceu, avisando que o juiz Siro Darlan
chegaria dali a uma hora. E o magistrado se deslocava acompanhado de policiais
fortemente armados, reforçou. Sandra saiu às pressas do Rio Comprido e nunca
mais procurou a missionária.
Em 21 de maio de 2021, Sandra Sapatão estava tomando sol na praia de
Saquarema, região dos Lagos, quando foi presa pela polícia e levada para o
Instituto Penal Santo Expedito, em Bangu, na zona oeste do Rio. Em outubro de
2022, o juiz Rudi Baldi Loewenkron inocentou-a da acusação de ser chefe do
tráfico de drogas no Jacarezinho. “Entendo que o acervo probatório é por demais
frágil, que não houve interceptação, apreensão de anotações, ou testemunha de
viso que pudesse confirmar a participação de Sandra no tráfico local. A prova
produzida nos autos é insuficiente e não autoriza um decreto condenatório. A
absolvição impõe-se”, escreveu na sentença. Sandra Sapatão, personagem
recorrente na lista dos bandidos mais procurados pela Polícia Civil do Rio de
Janeiro – a recompensa para quem a encontrasse era de 1.600 reais –, ganhou o
mundo para voar livre feito uma ave de rapina.
Enquanto Anderson atuava nos bastidores para catapultar Flordelis ao
sucesso, a grande família só fazia aumentar. Na casa de Rio Comprido, chegavam
“filhos” novos resgatados da rua e outros nem tão desconhecidos assim. Depois
de outra reportagem no RJTV para mostrar o lar da missionária, o casal Selma e
Olival procurou Mãe Flor pedindo abrigo novamente. Ambos estavam foragidos
da polícia após cometerem latrocínio no Centro do Rio. Uma semana depois foi
a vez de Orelhinha e Xaropinho, integrados ao último escalão do quadro de
traficantes de Robertinho de Lucas. Um mês mais tarde voltou Aldeci, membro
de uma quadrilha de assalto a bancos. O ex-namorado de Selma tinha sido
recolhido ao Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo e posto em
liberdade assistida por bom comportamento. Sem referência familiar, contou a
uma assistente social do governo que era “filho” de Flordelis e conseguiu voltar
para a casa da “mãe” disposto a recuperar a antiga paixão, Selma, agora “noiva”
de Olival. Entre os personagens novos estavam Ariovaldo, apelidado de Ari, e
Pascoal, que chamavam atenção pela beleza. Ambos tinham 16 anos e chegaram
por conta própria, dizendo que os pais moravam no interior. Nessa época,
Flordelis já havia abandonado o ritual do banho de batismo, comum na Rua
Guarani, mas nem por isso deixou de sentir atração sexual por alguns “filhos”
novatos. Ari e Pascoal, por exemplo, receberam atenção especial da matriarca
simplesmente por serem atraentes. Não demorou para a missionária transar com
os dois.
Em 1998, a grande família já possuía cerca de quarenta “filhos”, mas nem
todos moravam na casa. Uns passavam temporadas e desapareciam. Outros
tinham pais e moradia fixa, mas ficavam lá durante o dia. Alguns não se
acostumavam com a rotina, principalmente depois de Anderson e Flordelis
imporem regras rígidas, que passavam pela dinâmica familiar e pela logística. O
núcleo principal – composto pelos herdeiros biológicos (Simone, Flávio e
Adriano) e pelos agregados mais antigos (Alexsander, André Luiz, Carlos
Ubiraci, Cristiana, Rayane e Wagner) – acomodava-se no piso superior do
imóvel, com quartos confortáveis, camas macias e ventiladores giratórios, e tinha
acesso a uma geladeira exclusiva, trancada com cadeado na maior parte do
tempo. A chave ficava com Carlos Ubiraci, o gerente. Os demais “filhos”,
considerados cidadãos de segunda classe, dormiam em beliches, no piso inferior.
No meio da muvuca, havia cerca de dez crianças e três bebês, que mais tarde
seriam adotados legalmente pelo casal.
No piso de cima, um cômodo amplo, batizado de quarto secreto, foi
reservado aos rituais satânicos de Flordelis e Anderson. No aposento havia um
guarda-roupa, cama, duas cômodas, uma cristaleira e dois altares com as
imagens de Baphomet, Exu Caveira e São Cipriano, usadas separadamente em
cultos e bruxarias. O critério usado para escolher os personagens que seriam
adorados nas cerimônias macabras era bem particular. Quando o rito envolvia
sexo, por exemplo, o casal colocava no chão a imagem de Baphomet,
considerado por Anderson um homem viril, mas ambíguo, por ter braços fortes
e seios de mulher. Exu Caveira entrava em cena quando a magia envolvia
trabalhos de quimbanda, uma religião autônoma – nessas celebrações, Flordelis
supostamente conversava com uma entidade chamada Maria Padilha, também
conhecida como “Dama da Noite”, a mesma pomba-gira evocada por Pai
Vagner. Se a feitiçaria envolvesse questões familiares ligadas diretamente ao
destino dos “filhos”, incluindo Anderson, São Cipriano tornava-se presente.
Em alguns desses universos ocultistas, Flor dizia ser um querubim chamado
Queturiene, uma suposta variação da personagem bíblica Quetura, a amante de
Abraão. A história da concubina é mencionada en passant no livro de Gênesis
(25:1-6). Quetura também é citada numa genealogia, no primeiro livro de
Crônicas (1:32,33) do Antigo Testamento da Bíblia. Segundo a teologia, o nome
Quetura significa “envolvida em fragrante incenso”. Após ser possuída por
Queturiene numa sessão reservada, ela resolveu exercer um suposto poder
sobrenatural para rebatizar a prole com nomes de anjos. Para essa ocasião foi
convidado somente o núcleo principal. Todos ficaram nus, sentados em círculo
no quarto secreto, diante da imagem de São Cipriano. Houve banho de sal grosso
para afastar espíritos malignos. A missionária explicou que todos ali eram
criaturas terrenas custodiadas pelo Diabo. Fez um resumo da vida pregressa de
cada um, para que se lembrassem de suas desgraças e de como foram “salvos” das
entranhas do inferno por Queturiene. Emocionada, lembrou os serviços sujos
prestados por Carlos Ubiraci ao Comando Vermelho e as crises terríveis de
abstinência; falou da violência doméstica sofrida por Cristiana e do destino cruel
que Satanás havia reservado para Rayane, resgatada das mãos de um demônio
chamado Cara de Cadáver.
Flor também tinha uma “filha” chamada Vânia, que não fazia parte do núcleo
principal. A narrativa de sua vida era tão espetacular que servia de exemplo para
reforçar os “poderes” da supermãe. Quando a menina tinha 3 anos, dormia
coberta com papelão na calçada da Central do Brasil. Nesse cenário inóspito, foi
vítima de uma chacina e levou um tiro no abdome. A bala, segundo essa
fabulação, ficara alojada em seu fígado. “Só quem estava na Central do Brasil
sabe o que eu passei. Tenho essa bala até hoje no meu organismo. É meu
amuleto”, assegurava ela, mesmo sem nunca ter visto uma radiografia provando
que o projétil estava mesmo em seu corpo. Em uma roda mística comandada por
Flordelis no quarto secreto para passar a limpo seus “milagres”, ela contou que
Vânia foi atingida por um tiro certeiro disparado pelo Demônio e só sobreviveu
porque foi salva pelas mãos espiritualistas da missionária.
Em rituais realizados separadamente, os “filhos” mais queridos foram
rebatizados e passaram a ter nomes de anjos. Anderson tornou-se “Daniel”,
codinome abreviado mais tarde para “Niel”. “Ele é o meu filho mais importante.
Somos unidos pelo amor, pelo sangue e pela carne”, proferiu Queturiene. Nessa
quimbanda, segundo testemunhas, Flor vestia um caftan preto, fino e
transparente, sobre uma calcinha fio dental da mesma cor. Não usava sutiã.
Simone, que recebeu o codinome de “Hebreia”, era chamada no círculo íntimo
de “Bebê” ou simplesmente “Bê”. Carlos Ubiraci ganhou o apelido de “Neném”,
apesar de já ser chamado assim desde que chegou à família. Wagner tornou-se
“Misael”. Flávio, Adriano, Cristiana, Rayane e Alexsander nunca foram
rebatizados, porque, segundo a bruxa, ainda não haviam alcançado merecimento
divino. Certa vez, num ritual coletivo, Queturiene pegou a imagem de Exu
Caveira e, diante dela, fez uma feitiçaria simples usando um pote de mel. Num
pedaço de papel, escreveu a lápis os nomes completos dos irmãos Werneck,
desenhou ao lado o símbolo do cifrão ($) diversas vezes e mergulhou no mel até
o rabisco desaparecer. “Que essas duas almas continuem nos ajudando”, pediu
Niel. “Glória a Deus!”, repetiam os jovens. A família também realizava trabalhos
usando frutas. No dia do batismo dos “filhos”, Flordelis pegou um melão e
colocou dentro dele duas alianças, para renovar os votos do seu amor pelo seu
companheiro. Depois, as frutas foram jogadas na mata. Ocasionalmente, os
rituais eram macabros. Certa vez, Queturiene recrutou seus querubins para uma
sessão especial de magia no quarto secreto. Ela pegou uma galinha preta viva,
usou uma faca de cozinha para cortar o pescoço da ave e a deixou se debatendo
até o sangue escorrer pelo chão, como fazia seu finado tio Miquelino. Nessa hora,
parte dos “filhos” – incluindo Flávio e Cristiana – saiu do quarto, assustada. Com
a mesma faca usada para decapitar a galinha, Queturiene cortou o papo do bicho
e colocou um papel lá dentro todo molhado de sangue. Nele estava escrita a
seguinte frase: “Que o juiz Siro Darlan esqueça do nosso endereço para sempre”.
Mãe Flor pediu a Simone que costurasse o papo da galinha e a carbonizasse no
quintal sem a cabeça.
A bruxaria parece ter dado certo. Alguns meses depois, o juiz concedeu a
guarda provisória de quase toda a filharada para a supermãe e nunca mais
apareceu. Com o tempo, a guarda tornou-se permanente. Para comemorar a
bênção da justiça dos homens, Anderson e Flor fizeram amor até o amanhecer,
sob os olhos atentos de Baphomet.
Em 10 de abril de 2022, Siro Darlan falou sobre sua decisão: “Na década de
1990, resolvi deixar todas as crianças com a Flordelis porque era muito melhor
elas ficarem na casa do que voltarem para as ruas. Na época, briguei com todos
os promotores do Ministério Público que foram contra. Não me arrependo de
nada, até porque a Flordelis fazia com aquelas crianças o que o Estado não fazia.
[...] Essa mulher sempre foi julgada injustamente, como todas as pessoas
faveladas, pretas e pobres. Claro que eu não sabia o que se passava na intimidade
daquela casa. Todas as vezes em que fui lá, todo mundo estava muito feliz. Era
isso que me interessava. [...] A Flordelis pegava essas crianças em todos os
lugares: na rua, na favela, na vizinhança, nas praças da capital e do interior... Só
quem tem filhos sabe. Primeiro, nasce o Abel. Depois, nasce o Caim. Em seguida,
começam os conflitos familiares dentro de casa, pois um irmão quer matar o
outro. No caso da família da Flordelis e do Anderson, não poderia ser diferente.
Agora, vamos deixar de ser hipócritas! Em um lugar com dez, vinte, trinta,
quarenta, cinquenta crianças e adolescentes de origem, desejos e sentimentos tão
diferentes, pode rolar de tudo: amor, afeto, carinho, ciúme, intriga, inveja, ódio,
raiva, tesão...”
À luz das ciências sociais, as atitudes de Flordelis e Anderson ganham
análises curiosas. Lidice Meyer, doutora em Antropologia pela Universidade de
São Paulo, avaliou os relatos dos rituais do casal, assim como a relação
estabelecida por eles ao juntar Baphomet, Exu Caveira e São Cipriano ao mesmo
tempo que se apresentavam como evangélicos tementes a Deus. “Acredito que,
na verdade, eles não cultuassem nenhuma dessas entidades, até por falta de
conhecimento. Flordelis e Anderson faziam uma mistura de elementos de
umbanda com quimbanda, conhecida no Rio de Janeiro como macumba. A
umbanda já possui elementos do cristianismo, o que facilitou a entrada de
Flordelis no meio evangélico, já que sua mãe frequentava terreiros. A quimbanda
é tida como prática de magia perversa e lida com os exus, incluindo o Exu
Caveira. A intenção é agradar essas entidades para que elas venham a colaborar
com o indivíduo que realiza o ritual. Seria errado definir a umbanda e a
quimbanda como práticas satanistas, pois seus adeptos não se veem assim. Para
eles, são rituais que envolvem seres sem corpos (incorpóreos). [...] A classificação
dos exus como demônios vem de uma interpretação cristã sobre suas práticas. O
fato de Flordelis relacionar o Exu Caveira com Baphomet e satanismo revela seu
total desconhecimento da umbanda e da quimbanda, além de uma forma bem
pessoal e popular de como cultuar os demônios. [...] Nos rituais de Flordelis
também existe uma mistura de elementos de bruxaria folclórica. Ou seja, práticas
criadas sem muita profundidade com o uso de materiais e livros populares. Não é
uma prática organizada de satanismo, embora talvez ela achasse que fosse”,
definiu a especialista.
O antropólogo Wagner Gonçalves, da Universidade de São Paulo, explica
como se dá a mistura de figuras tão antagônicas como Deus e o Diabo no mesmo
ritual. “As religiões evangélicas e as de matrizes africanas são iguais, apesar de se
atacarem mutuamente. Uma acusa a outra de cultuar deuses que, na verdade, são
o Diabo. Muitos estudiosos classificam as igrejas pentecostais de ‘cristianismo
macumbeiro’, pois eles usam a mesma lógica do sistema mágico religioso afro-
brasileiro, como banho de descarrego e uso de sal grosso, além de uma série de
outros elementos. [...] O que difere essas religiões é que, nas protestantes
pentecostais, como a Assembleia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus,
os pastores falam muito mais no Diabo do que em Deus como forma de
amedrontar os fiéis com esse tipo de maniqueísmo e, assim, mantê-los dentro da
igreja. Até porque exercer o medo sobre as pessoas é uma forma eficiente de
constituir poder”, discorreu o antropólogo.
Flordelis e Anderson sempre foram adeptos do relacionamento aberto, assim
como boa parte dos seus “filhos”. Em mais uma cerimônia secreta, o casal
investiu em Pascoal. Musculoso, o jovem chamava atenção das “irmãs” porque
andava só de cueca pela casa. Primeiro ele transou com Simone, apesar de ela
namorar seu “irmão” André – que, por sua vez, estava transando também com
uma “irmã” chamada Vanúbia, então ficavam elas por elas. Simone teria elogiado
a performance do rapaz para as “irmãs” e a resenha positiva chegou aos ouvidos
de Mãe Flor. Para advertir a adolescente, a missionária reforçou uma de suas
regras mais rígidas: seus “filhos” não poderiam se relacionar sexualmente sem
seu expresso consentimento, mesmo que de forma casual. Simone, então, pediu
desculpas pelo “incesto” não autorizado. “Não estou dizendo que você não pode
transar mais com o Pascoal. Não é isso. Estou apenas pedindo para você me
consultar antes. Vai que você pega barriga de um irmão”, observou Flor. Da boca
para fora, a supermãe justificava esse controle pelo receio de sua casa se tornar
“um antro de luxúria”, descambando para um excesso de bebês indesejados. Os
cuidados com a taxa de natalidade interna, no entanto, não surtiram efeitos
positivos. Cristiana acabou engravidando duas vezes do “irmão” Carlos Ubiraci –
primeiro, sofreu um aborto espontâneo, depois teve Raquel. Simone, a Hebreia,
namorou Alexandre, de breve passagem na família, e teve três crianças com o
“irmão” André Luiz: Lorrane, Rafaela e Ramon. Novos casais foram se formando
e se desfazendo ao longo do tempo. Adriano, o “Pequeno”, caçula biológico de
Flordelis, foi galã na adolescência. Teve um namorico com Roberta,
supostamente encontrada na caixa de sapatos, e, mais tarde, se envolveu
simultaneamente com as “irmãs” Nylaine e Lorrana (não confundir com
Lorrane, herdeira de Simone). Outros dois “filhos” de Flor e Anderson, Iago e
Francine, começaram a namorar, mas foram expulsos de casa porque sua
primeira noite de amor ocorreu sem o aval de Queturiene.
Enquanto Flor repreendia Simone pela prática sexual com Pascoal, Anderson
o recrutava para uma sessão de bruxaria no quarto secreto. Usando a autoridade
de “pai”, pediu ao rapaz de 16 anos que se apresentasse discretamente no
cômodo à noite, logo depois do jantar. O jovem foi todo empolgado, achando
que seria batizado com nome de anjo e promovido ao núcleo principal, apesar de
ter acabado de chegar à casa. Na hora marcada, Pascoal bateu na porta do quarto
vestindo apenas um short. Anderson o recebeu na penumbra. Numa mesa de
canto, repousava a imagem de São Cipriano, cercada por quatro velas vermelhas.
Flor apareceu usando uma camisola azul transparente, sem nada por baixo.
Pascoal ficou impressionado com a beleza do corpo da “mãe”, mas travou com a
presença de Anderson.
– Fique à vontade, meu “filho”. Tire o short e deite-se no chão! – ordenou a
missionária.
– Não entendi, Mãe Flor.
– Me chame de Queturiene!
Nu, Pascoal começou a acreditar que teria de transar com Anderson, que
também havia tirado a roupa. O mal-entendido foi esclarecido pelo “pai”, que
comandava o ritual.
– Neste momento, você não vai transar com nenhum de nós. Vai ficar
trancado aqui no quarto por 72 horas, sozinho, refletindo sobre seus pecados. De
madrugada, Queturiene virá lhe fazer uma visita para avaliar seu merecimento e,
quem sabe, purificar o seu corpo e sua alma. Sinta-se privilegiado, pois a mulher
que vai te atender é uma entidade superior com linha direta com Nosso Senhor.
Pascoal aceitou o sacrifício. Anderson deixou no quarto uma cesta contendo
pão e frutas, além de uma garrafa grande com água. Durante três dias, Flor, ou
melhor, Queturiene, passava lá para transar com o jovem. Na semana seguinte, o
ritual se repetiu com Olival e Aldeci, os assaltantes de rua agregados quando a
família andava pelas ruas do Rio de Janeiro. Orelhinha e Xaropinho pediram
para passar pela alcova de Queturiene, mas foram barrados por Anderson, por
terem uma lista de pecados enorme, já que atuavam no tráfico de drogas da
favela Parada de Lucas. Usando a desculpa de “purificar” a prole, Anderson e
Flordelis transaram com todos os “filhos” por quem sentiam atração. Quando
fizeram investidas sexuais em Ari, amigo de Pascoal, descobriram que o jovem
era gay. “Se a senhora quiser, posso ir embora, pois minha tia da Igreja Universal
disse que Deus não perdoa homem que faz sexo com homem”, adiantou-se. Flor
e Anderson se entreolharam e anunciaram que Ari poderia ficar, desde que não
adquirisse “trejeitos de mulher”. Um mês depois, Ari transou com Anderson
diversas vezes, sem que ninguém soubesse. Na cama, segundo ele, “Niel” era
“selvagem”. “Quando a gente transava, ele me dava tapas fortes no rosto,
amarrava os meus braços com tecidos, puxava meu cabelo por trás e apertava
meu pescoço com força na hora de gozar”, relatou.
Ari tinha 16 anos quando morou no Rio Comprido e ficou por lá até
completar 18. Em 2021, aos 42 anos, fez questão de deixar claro que todas as
relações sexuais com Anderson, inclusive as mais violentas, foram consentidas.
“Ele era muito bom de cama e tinha um pau enorme. Por isso, a mulherada
ficava doida por ele. Só paramos de transar porque ele não quis mais”, contou.
Certa vez, Ari perguntou se Anderson era “gilete”, gíria comum nos anos 1980
usada para classificar homens bissexuais. Ele garantiu que era heterossexual,
porém transava com gays, segundo ele, porque nem todas as mulheres da casa
gostavam de fazer sexo anal. Ele também teria dito ao “filho” que homens fazem
sexo oral infinitamente melhor do que as mulheres. Sobre os rituais ocorridos no
quarto secreto, Ari disse que a prática parecia mais um fetiche sexual de
Anderson e Flor do que algo propriamente satânico. “Aquele antro era
literalmente a casa da mãe-joana, pois parecia uma seita desorganizada. Tinha
muita bagunça. Um comia o outro. As crianças gritavam de dia pela sala, e os
adultos gemiam à noite pelos quartos. Tipo prostíbulo, sabe? No meio desse
pardieiro, a gente era proibido de fumar e de tomar bebidas alcoólicas por causa
da igreja. Muita hipocrisia”, relatou.
Paralelamente aos rituais envolvendo sexo, Anderson levava adiante o
projeto de transformar Flordelis em uma estrela gospel e resgatou o antigo plano
de ordená-la pastora da Assembleia de Deus. O casal procurou a regional mais
próxima da organização e descobriu que naquela época, segunda metade da
década de 1990, a instituição protestante só aceitava líderes com diploma do
curso de Teologia, algo muito distante da realidade da missionária. Anderson,
porém, percebeu que algumas unidades da Assembleia de Deus no entorno do
Jacarezinho fugiam a essa regra e voltou a procurar Zé da Igreja, que recebeu
Flor em seu gabinete e lhe deu um passa-fora. “Nós realmente estamos
ordenando pastores sem diploma de Teologia, mas exigimos dos candidatos o
dom para o ofício, pois cansamos de charlatanismo barato. Que tipo de profecia
você já teve? Que tipo de voz você ouve dentro de si? Nem para herdar os
poderes da mãe você serviu. Perdeu tempo recolhendo marginais da rua, fugindo
da polícia. A Carmozina previu a morte do filho [Amilton], do marido [Chicão]
e até a sua desgraça. E você? Sabe quando o Anderson vai morrer? [...] Também
estamos exigindo dos novos pastores evidências irrefutáveis de poderes de cura.
Quando você for uma bruxa completa, volte para a gente conversar”, descartou o
ministro.
Sem ver a menor chance de emplacar Flordelis na Assembleia de Deus,
Anderson resolveu criar uma instituição religiosa para ela. Comprou sessenta
cadeiras de plástico usadas, a R$ 1,99 cada – algumas estavam quebradas –, e
arrumou-as lado a lado na garagem da casa do Rio Comprido. Batizou o
ministério de Atalaia da Última Hora e criou um slogan: “O ponto mais alto de
onde Deus te protege”. Também equipou o espaço com microfones e
amplificador para repercutir as canções gospel que Alexsander tocaria num
teclado eletrônico. Por estratégia do mercado religioso, o primeiro culto foi
realizado em uma tarde de sábado, com metade dos assentos ocupada pela
grande família – no restante dos lugares estavam coleguinhas de classe dos
“filhos”, recrutados por ordem de Anderson, e alguns familiares. Michelle, irmã
do aprendiz de empresário evangélico, apareceu na inauguração do templo e
chamou a atenção de Carlos Ubiraci, com quem teria trocado beijos.
Arrependido por trair Cristiana, o jovem teve uma recaída e cheirou uma
carreira de cocaína – levada por Xaropinho e Orelhinha, os traficantes
adolescentes, que pretendiam subornar o gerente da casa com pó para obter
regalias, como a comida guardada na geladeira especial. Outra barafunda
ocorrida na inauguração do ministério foi causada por Vanúbia, que usava
roupas muito curtas e desfilava pelo ambiente balançando os quadris.
Repreendida por Simone, ela rebateu: “Deus olha para a alma, não para as nossas
vestes”. A data ainda foi marcada por outra confusão. Aldeci, latrocida, ex-
presidiário e ex-namorado de Selma, tomou escondido umas latas de cerveja e
tentou beijar a garota, que a princípio evitou. Mais tarde, no entanto, cedeu e foi
flagrada por Olival. O bandido traído puxou uma arma da cintura e apontou
para a cabeça do rival. A briga só não manchou a estreia de Flordelis nos púlpitos
porque Flávio e Carlos Ubiraci contiveram o fuzuê.
No meio do espetáculo, sob muitos aplausos, Flordelis finalmente ordenou-se
pastora. A essa altura, sua igreja particular estava lotada, pois os gritos fervorosos
de louvor ecoavam na vizinhança e atraíam quem passava pela rua. Mais de 200
pessoas se espremiam na área externa da casa, perguntando quem era aquela
mulher. Anderson subiu ao púlpito, cochichou no ouvido da amada e Flor
anunciou, aos berros, que acabara de ter uma visão profética sublinhada por
Deus. Pediu silêncio, mandou todos fecharem os olhos e ouvir atentamente o que
tinha para dizer. Por cinco minutos, então, falou com uma voz incompreensível,
como se rugisse. O público reagiu levantando as mãos para o alto e alguns fiéis
seguraram Bíblias. Num ato teatral, ela apontou o dedo indicador para a plateia e
gritou: “Você, irmão!”. “Quem? Eu?”, respondeu um anônimo. “Não! Ele aí ao
seu lado!”, devolveu a pastora. Era Carlos Ubiraci, que pescou na hora a
encenação. Flor continuou a pregar: “Você andava no inferno. Lambuzava-se na
sujeira do Satanás. Foi tirado do mundo porco das drogas e trazido para uma
vida de glória. Mas parece que andastes novamente flertando com o Demônio.
Meu filho, não te preocupes. Como todo cristão, pagarás teus pecados com
sacrifício e serás acolhido novamente. Porque quem está do meu lado está ao
lado Dele!”, bradou com fervor. Mais uma chuva de gritos e aplausos. Mãe Flor
encerrou o culto cantando hinos evangélicos, inclusive a música Ninguém se
esconde, e anunciando uma nova pregação para o dia seguinte. Com o tempo, sua
pequena igreja passou a receber mais de mil ovelhas.
Apesar do sucesso, as receitas dos cultos ficavam aquém do esperado, pois
Flordelis era tímida ao pedir dinheiro aos fiéis. “Precisamos comprar cadeiras
novas, gente. Quem puder colaborar, eu agradeço de coração”, anunciava ao
microfone. Com tanta polidez, o caixa fechava com menos de 200 reais por dia –
e só chegava a esse valor porque alguns “filhos” ficavam na porta vendendo fitas
cassete com as músicas de Mãe Flor, ao preço de 5 reais. Mas poucas pessoas
compravam. Todo o dinheiro arrecadado pela família, incluindo o auxílio dos
irmãos Werneck, era depositado na conta de Anderson, no Banco do Brasil.
Depois da abertura da igreja, o patriarca começou a traçar estratégias com
Wagner, o Misael, para melhorar a arrecadação religiosa e os donativos de
simpatizantes da causa da adoção.
Logo depois do culto inaugural, algumas demandas urgentes foram
resolvidas. Flordelis ficara revoltada com as brigas no meio da sua pregação.
Enquanto todos jantavam sopa com pão numa mesa enorme, posta na varanda,
Carlos Ubiraci detalhava em voz alta as confusões de cada um durante a tarde.
“O Aldeci puxou até uma arma, mãe”, dedurou. Nessa lavação de roupa suja,
Cristiana disse que o namorado não tinha moral para acusar ninguém, pois
beijara a “tia” Michelle, irmã biológica de Anderson. Aldeci, por sua vez, revelou
que o gerente havia “cafungado pó”. Diante do silêncio sepulcral instalado no
ambiente, Flordelis incorporou Queturiene. Furiosa, pegou um martelo de carne
e bateu com violência na cabeça de Carlos Ubiraci, um de seus “filhos” mais
importantes. O golpe provocou traumatismo craniano e o sangue do rapaz
esguichou sobre a mesa, respingando na panela de sopa. A cena horripilante
assustou toda a família, principalmente as crianças. “Foi essa a visão divina que
ela teve?”, debochou Vanúbia. Carlos Ubiraci caiu no chão e começou a
estrebuchar, repetindo diversas vezes: “Mãe, por que a senhora fez isso? Logo eu
que te amo tanto. Por quê?”. Aos prantos, Anderson levou o jovem ao pronto
atendimento. Flor chegou em seguida e pediu perdão, com o rosto ensopado de
lágrimas. Carlos Ubiraci a perdoou e nunca mais tocaram no assunto. A vítima
ficou com afundamento no crânio e teve sequelas mentais. No entanto, ninguém
sabe se seus problemas psiquiátricos são consequência do uso excessivo de
drogas, da pancada com o martelo ou das duas coisas juntas. Quando alguém
pergunta por que sua cabeça é achatada, ele responde que foi atingido por uma
panela de pressão. Depois desse episódio, os “filhos” passaram a temer a “mãe”
como o cristão teme o Diabo.
Do Rio Comprido, a grande família mudou-se para Jacarepaguá por causa da
chegada de mais “filhos”. Eles brotavam de todos os lugares: continuavam sendo
deixados pelas mães biológicas e resgatados das ruas. No final da década de 1990,
a pastora tentava desesperadamente engravidar de Anderson. Sem sucesso, ele
passou a considerar a possibilidade de ser estéril. No meio desse dilema, Flor
contou ao companheiro ter tido uma visão celestial na qual ela seria mãe da
mesma forma que Maria engravidou do Espírito Santo – na verdade, estava
planejando roubar mais um bebê para satisfazer a vontade do casal de ter uma
criança biológica. Nessa época, a casa de Jacarepaguá recebia visitas de muitas
mulheres que queriam deixar ali seus filhos adolescentes. Por meio de uma delas,
Flor soube de uma moça chamada Janaína Barbosa, de 18 anos, grávida pela
segunda vez. A gestante teria dito a amigas que, tão logo seu nenê nascesse, ela o
mataria, pois não tinha mais paciência para cuidar de recém-nascidos. Flor ouviu
a história horrorizada e perguntou onde Janaína morava. Com o endereço em
mãos, seguiu com Anderson até lá e, em meio a orações, disse à jovem que Deus
a havia mandado para impedir uma tragédia. No dia do parto, ocorrido em 18 de
janeiro de 1998 na Casa de Saúde Santa Helena, o casal foi para a maternidade e
saiu de lá com o menino e a guia de nascido vivo, documento essencial para o
registro em cartório. Puérpera, Janaína tentou impedir, argumentando que sentia
vontade de amamentar. Flor a convenceu do contrário, dizendo que Deus dera
um prazo muito curto para abençoar o garotinho num ritual secreto. Após ouvir
a promessa de que poderia ver o filho quantas vezes quisesse, concordou.
Na primeira visita, Janaína participou de um culto de Mãe Flor e não viu o
bebê, que estaria com Carmozina. Na segunda, a criança teria sido levada ao
médico. Na terceira, estaria passeando na praia. Como todas as vezes havia
combinado os encontros com o casal, a moça resolveu dar uma incerta. Na
aparição surpresa, finalmente encontrou o menino – mas, ameaçada de forma
velada por Orelhinha e Xaropinho, que estavam armados, não pôde pegá-lo no
colo. Ao contar a Flor sobre a presença de bandidos na porta, ouviu: “Armas
aqui? Imagina. Meus filhos são uns amores”. Janaína anunciou que levaria o seu
bebê, mas a missionária começou a chorar, dizendo que um empresário muito
rico bancava o aluguel e a alimentação daquelas mais de cinquenta crianças. “Ele
ficou encantado com o seu bebê. Se você o levar embora, ele vai suspender a
ajuda e todos voltarão a morar debaixo do viaduto”, mentiu. Sem querer carregar
a culpa pelo desmanche da casa de acolhimento, a garota abriu mão do filho.
Houve festa na grande família. Para comemorar a chegada do primeiro “filho
biológico”, Anderson e Flor foram a um cartório no Méier (10ª Circunscrição do
Registro Civil) no dia 24 de abril de 1998 para selar a união civil. Quando
assinaram a papelada do casamento, ela tinha 37 anos, e ele, 21. Dois meses
depois, o casal voltou ao cartório com o bebê no colo para cometer um crime. No
dia 18 de junho de 1998, Anderson e Flor registraram o menino de cinco meses
como se fossem pais legítimos. Deram-lhe o nome de Daniel dos Santos Souza. O
Artigo 242 do Código Penal prevê pena de dois a seis anos de cadeia para quem
registra como seu o filho de outra pessoa. Quem assinou como testemunha da
fraude foi Carlos Ubiraci. Na família, houve uma ordem expressa para que o
roubo da criança fosse um segredo inviolável. Danielzinho, como era
carinhosamente chamado, cresceu cercado de amor e mentiras.
Ao longo dos anos, Anderson continuava empenhado na transformação de
Flordelis em estrela gospel. Com seus contatos, agendou uma série de
reportagens com a esposa – mas queria mais do que os noticiários locais, como o
RJTV. Conseguiu colocar a família no Jornal Hoje, Jornal da Globo, Fantástico,
Planeta Xuxa, É de Casa e Mais Você, todos da TV Globo, além do Programa da
Hebe (SBT), Hora do Faro (Record) e Sem Censura (TV Cultura – SP). Tantos
holofotes deixaram a turma eufórica. Quando esteve no sofá de Hebe, Flor foi
questionada sobre quem era o homem por trás do seu sucesso. “O Anderson é a
coisa mais linda de Deus. Nós nos conhecemos na rua e depois nos encontramos
na igreja. Ele é a minha vida, meu bálsamo, minha loucura. Sou apaixonada por
ele. Sou totalmente dependente dele. Sem o ‘Niel’, não seria o que eu sou. Somos
uma dupla imbatível”, definiu. Emocionado com a declaração, Anderson
derramou lágrimas. No programa de Hebe, Flor levou só os “filhos” mais
importantes.
Para a entrevista com a apresentadora Ana Maria Braga, em 2009, a grande
família passou por um perrengue. O Mais Você era apresentado ao vivo em uma
casa suspensa, construída num sítio dentro da área da Globo, em Jacarepaguá. A
produção ficou de enviar um ônibus com 50 lugares para buscar a grande
família. Na véspera da entrevista, porém, Anderson e Flordelis ficaram
desesperados. A pastora era conhecida na mídia como “a mãe de cinquenta”, e
não havia gente suficiente com ficha limpa para completar as cinco dezenas.
Nessa época, quase 70 crianças, adolescentes e adultos transitavam pela casa. No
entanto, depois de uma operação pente-fino feita na prole, descobriu-se que
somente 27 “filhos” poderiam pôr a cara na TV, já que mais da metade da família
era composta por infratores procurados pela polícia. Para fazer número, Simone
e Carlos Ubiraci saíram pela vizinhança pedindo crianças emprestadas para levar
à TV. Aflita, Flordelis ligou para as irmãs convidando os sobrinhos para
participar do programa matinal, prometendo que virariam artistas de novela.
Com muito sacrifício, conseguiram juntar 42 cabeças. “Já pensou se a Ana Maria
resolve conferir quantos filhos a gente levou?”, questionou a pastora. “Um
minuto na TV corresponde a uma hora. Imagina se ela vai perder todo esse
tempo conferindo crianças”, ponderou o marido, demonstrando intimidade com
a mídia televisiva. À porta do estúdio, uma produtora recebeu a família e passou
um comando aos convidados:
– Fiquem todos do lado de fora, em fila indiana. A Ana Maria vai contar um
a um para saber se vocês realmente têm cinquenta filhos! – anunciou num
megafone.
Flor e Anderson se entreolharam e deram um sorriso amarelo. Sem graça, o
casal subiu uma escada ao encontro da apresentadora, que cumprimentou os
dois com beijos no rosto e foi lá fora pedir para a centopeia humana entrar.
– Vamos lá, pessoal! Aqui, ninguém se esconde. Vou começar a contar: um,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze... quarenta,
quarenta e um, quarenta e dois. Ué, cadê o resto? – questionou Ana Maria.
“Faça silêncio, por favor! Deus está falando
comigo, mas não consigo escutar.”
“M
ãe é aquela que cuida, educa, ampara e corrige. Que alimenta, dá
carinho e enfrenta junto os desafios e os problemas. [pausa
dramática] Olha, gente, ela morava na favela do Jacarezinho e
começou a trabalhar com crianças dependentes de drogas. Quando procurava
por uma delas na Central do Brasil, encontrou uma adolescente que havia jogado
seu filho, um bebê de 15 dias, no lixo! Ela levou mãe e filho para casa. A mãe não
ficou, mas o bebê está com ela até hoje. Foi o primeiro filho especial que ganhou.
[...] Em fevereiro de 1994, houve uma chacina na Central do Brasil. Os
sobreviventes pegaram o seu endereço e, de uma hora para outra, essa mulher
ganhou 37 crianças. Flordelis é uma mãe de verdade! Uma mãe especial de 44!
Vamos conhecê-la?”.
Foi com essas palavras melosas e os olhos marejados que a apresentadora
Xuxa Meneghel abriu seu programa especial do Dia das Mães de 2002, na TV
Globo. As personagens centrais da atração eram Mãe Flor e sua centopeia
humana. Metade do que Xuxa leu no teleprompter era falso, mas a apresentadora
não sabia. De tanto repetir na televisão a ladainha da matriarca sofrida,
Queturiene amoleceu o coração do Brasil. A comoção nacional se refletiu
diretamente em seu rebanho de ovelhas: nos anos seguintes, o número de fiéis da
pastora aumentou feito as pragas do Egito.
Com tantos discípulos chegando, a Atalaia da Última Hora deixou de ser
uma igreja de fundo de quintal. Depois de uma pesquisa de mercado feita por
Anderson para descobrir onde seria mais vantajoso erguer uma sede, o
ministério ganhou um templo com capacidade para 1.200 pessoas na periferia do
município de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, logo após a
entrevista no programa da Xuxa. No novo endereço, a instituição passou a ter
uma placa bem grande na fachada, com letras garrafais: Ministério Flordelis. Na
mesma época, Anderson fez o curso de Teologia, autoproclamou-se ministro
evangélico e também começou a realizar os cultos de abertura da sua estrela. Ele
subia nos púlpitos para anunciar Flordelis sempre com o mesmo texto: “Eu sou o
Deus que levanta. Eu sou o Deus que derruba. E faço vocês se assentarem entre
os grandes, entre os príncipes...”. Em seguida, ele saía e Flordelis entrava
continuando a introdução: “Assim diz o Senhor. Esse é o templo de dar a volta
por cima”.
Mas não bastava apenas ter boa oratória para crescer no meio evangélico.
Com o intuito de aumentar a arrecadação religiosa do Ministério Flordelis, o
casal se inspirou nos pastores Demóstenes e Zé da Igreja, líderes emblemáticos
dos tempos da Assembleia de Deus do Jacarezinho nas décadas de 1980 e 1990.
Flor e Anderson cobravam o dízimo e pediam dinheiro de forma descarada e
agressiva. No púlpito, diziam precisar de recursos para concluir as obras de
acabamento do ministério e, lógico, para ajudar na alimentação das criancinhas
sem pai nem mãe que ainda recolhiam das ruas. Inspirado no “desafio da
fechadura” feito por Zé da Igreja, Anderson elaborou um jeito desonesto de
arrancar dinheiro dos fiéis. No culto inaugural do Ministério Flordelis, na noite
de 16 de novembro de 2002, um sábado, ele mandou fechar todas as portas do
templo. As luzes foram apagadas por Vanúbia e Pascoal, seus “filhos” e
cúmplices. Mais de mil pessoas gritaram na escuridão. Enfático ao microfone,
Anderson anunciou que a energia elétrica fora cortada pelo Diabo por falta de
pagamento. “Irmãos, a Casa de Deus não vive de vento. Temos contas divinas a
pagar. Sem a colaboração de vocês, não temos como manter o nosso ministério
de pé. Mas há uma luz! Estou vendo uma luz! Vocês não podem enxergar, mas
Deus está passeando no meio desse breu, entre as fileiras. Ele está abençoando
cada um de vocês!”.Nessa hora, houve um grito de histeria e os fiéis começaram a
abraçar o vento, acreditando agarrar Nosso Senhor. Mulheres da primeira fila
desmaiaram. A maioria dos presentes subiu na cadeira e gritou “aleluia!”.
Anderson fez uma pausa para as ovelhas delirarem um pouco mais. Em seguida,
continuou a pregação. “Façam silêncio, por favor! Deus está falando comigo, mas
não consigo escutar. [silêncio] Pessoal, é o seguinte: Deus mandou mais um
recado importante. Ouçam bem o que eu vou falar, porque Ele está me usando
para dirigir a palavra a vocês”.
O truque barato era banal em certos templos evangélicos, mas sempre
funcionava. Anderson mudou o tom da voz, recorrendo a um timbre grave.
Como se tivesse uma procuração de Deus, arregalou os olhos e falou
pausadamente: “Agora, meus irmãos, vou fazer um pedido. Um pedido, não,
uma súplica sagrada, um apelo celestial. Temos de sair da escuridão imposta pelo
Demônio agora! Para isso, vocês têm de se desfazer de todo o dinheiro que
possuem nas bolsas e carteiras. Fiquem apenas com o necessário para a passagem
de ônibus. Quem veio a pé ou de bicicleta tem de doar tudo, porque não
precisará pagar transporte. Deixem até as moedas, pois o amor divino também
está nos detalhes. Esta é a minha vontade. Só assim vocês conseguirão a minha
graça em forma de luz”. Enquanto Anderson finalizava o comando espúrio, os
“filhos” Ari e Pascoal colocaram uma caixa de papelão perto do altar e os fiéis
fizeram fila indiana para entregar notas de 1, 2 e 5 reais. Do alto, o pastor
percebeu que suas ovelhas estavam econômicas e reagiu, já com o tom de voz
habitual: “Não sejam mãos de vaca na hora de doar, pois Deus sabe que vocês
gastam muito dinheiro na mesa do bar bebendo com Satanás!”. A caixa com todo
o dinheiro foi recolhida por Wagner “Misael”, responsável pela contabilidade do
ministério. A noite rendeu uma receita de quase 2 mil reais, quantia excelente
para os padrões de uma igreja de favela. No final, as luzes foram acesas sob gritos
de regozijo e o famoso clichê bíblico “Deus é meu pastor, nada me faltará”. Para
coroar a noite, Flordelis subiu ao palco e fez um show gospel.
Com os negócios religiosos crescendo no início da década de 2000 e com a
cara de Flordelis estampada na televisão, o casal tentou dar um passo maior do
que as pernas. Em 2004, Queturiene se filiou ao Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB) e candidatou-se a uma vaga na Câmara
Municipal de São Gonçalo, mas não se elegeu por causa do resultado pífio: 2.262
votos. Em seu quarto de oração, ela teria conversado com Deus para discutir a
baixa popularidade. Nosso Senhor, então, teria dito para ela esperar mais um
pouco até se enveredar na política.
Em Jacarepaguá, a vida parecia a estação de trem descrita na música
Encontros e despedidas, de Milton Nascimento. Todos os dias era um vaivém:
gente chegando para ficar e gente saindo para nunca mais voltar. Selma, Olival,
Aldeci e mais doze agregados foram embora no mesmo mês. “Vocês estão
vomitando no prato em que comeram. Escondi vocês da polícia. Dei abrigo,
afeto, cama macia e comida. Seus ingratos do inferno!”, gritou Queturiene.
Vanúbia também anunciou sua partida, porque era constantemente censurada
por Simone por causa das suas roupas minúsculas. “Se sair por aquela porta, sua
alma será sugada pelo inferno e você morrerá atropelada!”, profetizou a Mãe
Flor. Com medo de morrer, Vanúbia resolveu ficar.
Anderson e Flordelis não se enfureciam à toa com a evasão de seus “filhos”.
Eles temiam que a pastora perdesse o título “Mãe de 50”, base de sustentação de
seus negócios. Depois da primeira grande debandada de rebentos, foi promovido
um intensivão de novas adoções. Num curto intervalo de tempo, uma nova leva
de integrantes – entre bebês, crianças, adolescentes e até adultos – entrou para a
seita de Flordelis. A lista era enorme: Alex Vigna, Erick, Erika, Gerson, Iago,
Kelly, Kikita, Lucas, Lúcio, Luiz, Maria, Marzy, Monique, Nilane, Paulo
Alexandre, Paulo Roberto, Paulo Silva, Renato, Ricardo, Tayane, Viviane e
Welberth, a maioria aliciada na igreja da família e seus arredores. Alguns já
conheciam a dinâmica daquele grupo e, mesmo tendo casa, batiam à porta de
Jacarepaguá para pedir abrigo. Mães também procuravam pela pastora para lhe
entregar seus filhos voluntariamente. Na mesma época, chamou atenção um
combo de novos membros da turma com nomes terminados em EL. Em um ano,
chegaram Abel, Adriel, Anabel, Claribel, Eliel, Isabel, Ismael, Joel, Josebel, Mabel,
Manuel, Maxwel, Michel, Oziel e Samuel. No auge, a “estação de trem” chegou a
ter um fluxo de setenta passageiros.
Com tanta gente debaixo das asas de Queturiene, havia variações de humor,
inimizades, punições e, principalmente, intrigas amorosas. A regra de os “filhos”
só cometerem “incesto” mediante autorização da matriarca estava mantida, mas
era impossível controlar um aglomerado de pessoas sob o mesmo teto. Vânia
engravidou duas vezes de dois “irmãos” diferentes. As duas gestações acabaram
em briga, pois ela se recusou a revelar com quem havia transado. Como punição,
levou três tapas no rosto desferidos por Anderson. Machucada, a moça quis ir
embora daquele covil, mas acabou ficando porque não tinha para onde ir. Com
medo de apanhar durante a segunda gravidez, ela cobria a barriga com faixas
apertadas. Não teve jeito. No oitavo mês, a gestação foi descoberta e a jovem
levou mais uma surra, dessa vez aplicada por Queturiene. “Vagabunda! Cadela!
Piranha!”, gritava a pastora, possuída.
A relação sexual entre os “filhos” deixava Flor e Anderson extremamente
irritados. Mas não havia problema quando os biológicos transavam com as
“irmãs” adotivas. Flávio namorou cinco delas no período de um ano. Só parou de
xavecar as meninas quando passou a morar com Tatiana, que conheceu em um
aplicativo de paquera. Depois de uma série de agressões, porém, ela o denunciou
à Delegacia da Mulher e uma medida restritiva tentava impedi-lo de procurar a
ex. Com o fim do casamento, Flávio foi morar com a avó Carmozina. Mais para a
frente, bêbado, ele violou a medida judicial e acabou denunciado à polícia pela
ex-companheira, tornando-se um foragido. Simone também gostava de
conquistar “irmãos”. Em dois anos, teria transado com pelo menos dez. Já os
membros do segundo escalão ficavam entre si, sempre escondidos. Vanúbia, de
figurino provocante, era a mais requisitada em Jacarepaguá. Certa noite, ela
dormia na cama de cima de seu beliche quando acordou com Maxwel apalpando
seus seios. Com a casa cheia, os dois só conseguiram uma oportunidade de ficar
sozinhos na semana seguinte. Depois de uma hora ininterrupta de sexo, ele
vestiu-se às pressas, com medo de ser flagrado e denunciado à Mãe Flor. Quando
estava prestes a sair do quarto, Vanúbia o interpelou:
– Aonde você vai tão ligeiro?
– Você quer dar mais uma?
– Não! Quero mesmo é fazer a cobrança!
– Como assim? Que cobrança?! – assustou-se o rapaz.
– Sou garota de negócios e minha hora custa 50 reais! – anunciou Vanúbia.
– Tá louca? Não tenho esse dinheiro. E você nem vale isso tudo! Além do
mais, você teria que ter dito que é puta antes de tirar a roupa!
– Você tem 24 horas para me pagar o que me deve. Caso contrário, eu vou
contar à Mãe Flor que você forçou uma situação! – ameaçou a garota de
programa.
– Você não teria coragem!
– Capaz de meus irmãos cortarem seu pinto fora! – previu Vanúbia,
enquanto esfregava uma lixa nas unhas.
Não era segredo para ninguém que o grupo de Queturiene tinha toda sorte
de marginais, inclusive traficantes, como Orelhinha e Xaropinho. Com medo de
ser castrado, Maxwel arrumou dinheiro com um agiota e pagou pelo programa.
Na semana seguinte, espalhou-se na casa que Vanúbia era prostituta. Ela já tinha
transado com uns dez “irmãos” quando Carlos Ubiraci, o gerente da casa, levou a
informação até Anderson. “Não conte isso à Flordelis!”, ordenou o pastor. O
patriarca chamou Vanúbia para uma conversa. Ela não só confirmou a denúncia
como se propôs a transar com o “pai”. Os dois se relacionaram por três meses e a
garota nunca cobrou um real pelo serviço. No entanto, para manter segredo,
Vanúbia fez uma chantagem sutil: pediu ao “cliente” que custeasse um implante
de silicone, pois seus seios estavam caindo. Anderson bancou a cirurgia e fez
questão de ser o primeiro a fazer amor com ela depois do procedimento. Como
nada escapava aos ouvidos de Queturiene, não demorou para ela descobrir que
Anderson vinha transando com as meninas da família. Para não ficar por baixo,
a bruxa intensificou seus rituais sexuais com os “filhos” mais atraentes. O
primeiro a cair em suas garras foi Ricardo, um cantor de pagode gospel
recrutado junto com a namorada, Viviane. Os dois frequentavam os cultos da
igreja de São Gonçalo. Durante um jantar, Flor pediu a Ricardo que
comparecesse às 3 horas da madrugada ao quarto secreto, vestindo roupas
brancas. Segundo ela, o jovem participaria de uma sessão de purificação. Na hora
marcada, ele bateu suavemente à porta da bruxa de mãos dadas com Viviane,
achando que o convite se estendia a ela. Anderson o colocou para dentro do
cômodo, fechou a porta e levou a garota até a varanda do primeiro andar, onde
explicou as regras do ritual de purificação. “Queturiene só depura almas
masculinas, meu amor. Se você quiser ser santificada, podemos fazer isso juntos”,
sugeriu. Viviane, uma das mulheres mais bonitas da casa, agradeceu o convite
educadamente, mas recusou. Ressabiada, preferiu aguardar seu namorado
sozinha na cama.
Enquanto isso, Queturiene transava com Ricardo, que acreditava fazer amor
com um ser celestial. Flordelis e o músico fizeram sexo todos os dias por duas
semanas. Viviane perguntou a ele inúmeras vezes que tipo de coisa acontecia
entre as quatro paredes do quarto de orações. “A gente fica orando para a minha
carreira de cantor decolar”, mentia o músico. Desconfiada dos encontros
noturnos, Viviane foi até o cômodo e tentou invadir o ritual, mas a porta estava
trancada à chave. A jovem encostou o ouvido na madeira e ouviu gemidos e
sussurros. Descontrolada, desceu as escadas gritando e quebrando objetos,
acordando a grande família. Em estado de choque, Viviane não contou o que
tinha ouvido. No dia seguinte, porém, colocou o namorado contra a parede na
frente de outro “filho” da pastora, Alex Vigna. Ricardo continuou negando que
tivesse transado com a “mãe”. Lutador de muay thai e boxeador, Alex relatou ao
casal que também havia sofrido abuso sexual ao ficar trancado com Flordelis, nu,
por mais de cinco horas no quarto secreto. “Você é um anjo sem memória e eu
sou a sacerdotisa-mãe. Você tem de me obedecer”, teria determinado ela.
Apavorado, Alex correu para o banheiro. Feito uma serpente, Queturiene
rastejou-se pelo chão em sua direção. Segundo ele relatou, seus olhos não tinham
a parte branca.
“Lavei meu rosto acreditando que aquela cena de filme de terror fosse um
pesadelo”, contou Alex em outubro de 2022, aos 50 anos, já ordenado pastor
evangélico. “Falar da Flordelis é mexer no vespeiro do inferno, no ninho de
marimbondos de Satanás. Vim do baixo clero. Já li a Bíblia inteira 35 vezes. O
mundo não se resume às quatro paredes que vemos ao nosso redor. Existe um
mundo espiritual que os nossos olhos não podem ver, a não ser que Deus os abra
para que possamos enxergar além. Se Deus abrir os nossos olhos de verdade,
contemplaremos a fúria de Satanás na pele de Queturiene e de todos os seus
asseclas, todos os seus demônios do inferno e da magia negra, do vodu, daqueles
que fazem atrocidades malignas como ela. [...] A função dessa mulher na Terra
foi desgraçar a vida de muitas pessoas, inclusive dos seus filhos. Acontece que o
Diabo não brinca de ser Diabo. Essa falsa pastora mexia com satanismo, seguia
os preceitos do livro de São Cipriano e Baphomet. Impossível ela escapar das
garras de Satanás”, profetizou Alex Vigna. Ele, Ricardo e Viviane fugiram de
Jacarepaguá em 2002, bem na época em que Anderson selecionava quem
participaria do programa Planeta Xuxa.
Em meio às idas e vindas da casa, a supermãe disse ter tido certo dia uma
visão. Um anjo cairia do céu para transformá-la numa outra mulher. “No meu
sonho, vejo esse ser iluminado me pondo num pedestal onde jamais imaginaria
estar. Mas algo me diz que, lá no final, ele mesmo vai me decepcionar”, contou.
A previsão não demorou a se concretizar. A participação de Flordelis no Planeta
Xuxa chamou a atenção do produtor de moda Marco Antônio Ferraz, que já
tinha assinado editoriais em revistas de prestígio, como Marie Claire, GQ e
Vogue. Sensibilizado pelo drama de Flordelis, ele a procurou e se ofereceu para
cuidar de sua imagem, como personal stylist, sem cobrar um tostão pelo trabalho.
“Você não pode frequentar programas de televisão com essa aparência triste de
dar dó”, justificou. Anderson, já empresário da esposa, adorou a ideia, pois a
proposta do profissional casava com o projeto de levar Queturiene ao estrelato.
Da noite para o dia, o produtor apresentou um outro mundo a Mãe Flor,
conforme profetizado por ela. A mudança foi radical e repentina: a pastora
passou a frequentar desfiles de moda vestindo peças de grife como Calvin Klein e
Alexander McQueen. Marco Antônio também introduziu as perucas icônicas na
cabeça de Queturiene. A primeira, um modelo básico levemente ruivo,
comprado por 3.500 reais, foi confeccionada com fibra sintética e tinha fios
praticamente idênticos aos do cabelo natural. O profissional ainda conseguiu
para sua musa diversos vestidos de luxo que sobravam de ensaios de moda. Aos
poucos, ela perdia a aparência de pobre coitada, ao mesmo tempo que passava
por um processo de branqueamento racial. A maquiagem deixava a pele de seu
rosto alva e as perucas tinham cabelos extremamente escorridos.
O pulo do gato de Mãe Flor para a glória veio em 2009, também pelas mãos
do seu “anjo”. Com seus contatos, Marco Antônio conseguiu realizar uma
cinebiografia em forma de docudrama, protagonizada pela pastora como
intérprete de si mesma. Intitulada Flordelis – Basta uma palavra para mudar,
dirigida pelo personal stylist e pelo cineasta Anderson Corrêa, tinha personagens
reais representados por uma constelação de astros globais, como Bruna
Marquezine (Rayane), Cauã Reymond (Carlos Ubiraci) e Deborah Secco
(Simone). Todos os artistas envolvidos na produção trabalharam de graça e
depois se disseram arrependidos. O filme era cheio de passagens fantasiosas
contadas por Flordelis em suas entrevistas. Apesar do elenco estrelado, a
produção era amadora e hoje se mostra constrangedora pela péssima atuação,
pela direção fraca e irregular e, principalmente, pelo destino de Flordelis. A
captação de som ficou tão ruim que não havia capacidade técnica para o filme ser
exibido nas salas comerciais de cinema. O combinado era que 100% da
arrecadação com as vendas do DVD e dos CDs com a trilha sonora, cantada por
Flordelis, seria revertida para o bolso do casal evangélico, que compraria uma
casa própria para a grande família. Anderson, entretanto, ficou decepcionado
quando viu valores irrisórios pingando em sua conta a cada três meses. Para
aumentar os lucros, Adriano, Orelhinha e Xaropinho pegaram o DVD original e
fizeram mais de mil cópias piratas para vender à porta do Ministério Flordelis.
Badalado por causa dos famosos, o filme colocou a missionária nos cadernos de
cultura dos grandes jornais e, novamente, em diversos programas de televisão,
nos quais ela turbinou suas lorotas dramáticas.
Empresário dedicado, Anderson acompanhava a transformação da esposa de
perto, opinando e dando a palavra final em tudo: cor do vestido, tipo de perucas
e programas aos quais valia a pena comparecer para divulgar o filme. A
intromissão incomodava Marco Antônio. O pastor começou a ficar preocupado
com o excesso de retrofit aplicado em sua artista. Para se livrar do profissional,
Anderson fez uma intriga. Ele espalhou que Marco Antônio havia se encantado
com a beleza de Erick, “filho” de 16 anos. Os dois viviam grudados e surgiram
maledicências na casa sobre tanto chamego entre os rapazes. Para evitar um
possível romance homoafetivo no seio familiar, Anderson sugeriu à esposa
dispensar o produtor. Ela não aceitou. Mas, por precaução, chamou Erick para
uma conversa. O “filho” disse que Marco Antônio havia elogiado sua beleza e
prometido introduzi-lo no mundo da moda. Para isso, o jovem precisaria fazer
um book fotográfico. Flor o proibiu de posar para as lentes de seu assistente de
moda, mas era tarde. Marco Antônio já havia levado Erick para sua casa sem
autorização dos “pais” e feito com ele um ensaio sensual, segundo relatos da
família. Quando soube, Queturiene foi soltando fogo pelas ventas até o
apartamento do profissional, em Copacabana. A bruxa ficou enfurecida ao ver
fotos do “filho-modelo” sem roupa num álbum, na mesa de centro da sala.
Houve muito bate-boca e, desde então, não trabalharam mais juntos. Em 2022, o
produtor de moda foi procurado para comentar o suposto affair, mas não quis se
pronunciar.
Enquanto Flor ascendia, Anderson e Wagner cuidavam dos negócios
religiosos. Em 2010, apenas com o dinheiro do dízimo e das doações financeiras,
o casal construiu a segunda unidade do Ministério Flordelis, intitulada Cidade
do Fogo, o principal templo da família. Também erguido em São Gonçalo,
funcionava numa área de 15 mil metros quadrados e tinha capacidade para
receber 7 mil almas em um único culto. A casa vivia lotada, e as colaborações dos
fiéis em dinheiro vivo se multiplicavam no caixa como os milagres de Jesus. Com
projeto de som e luz típicos das arenas de shows, era lá que Anderson mais
pregava e Flor soltava a voz. Um painel de LED enorme e colorido fazia
projeções, elevando a congregação a outro patamar. Quase todos os agregados
eram funcionários dos templos – mas só os prediletos recebiam pagamento.
Carlos Ubiraci, Alexsander e Wagner foram ordenados pastores e ministravam
cultos remunerados nas duas igrejas. Danielzinho tocava teclado para
acompanhar Flordelis e também recebia pela função artística. Tayane tinha
talento para cantar e abria os shows da “mãe”. Sua voz poderosa e afinada
começou a chamar a atenção do público quando ela tinha 20 anos. Com o
sucesso de suas apresentações, a jovem cantora procurou Wagner para pedir
salário, já que era ele quem cuidava do caixa. O “irmão” achou justo, mas
aconselhou Tayane a pedir a Anderson. Após uma performance arrebatadora, ao
ser aplaudida por milhares de fiéis, ela aproveitou a oportunidade:
– Pai, o senhor não acha que mereço um salário, que nem o Danielzinho?
Meus shows fazem muito sucesso.
– Você é talentosíssima, filha. Cubra-se de glórias!
– Obrigada. Mas não teria como eu ser remunerada? Nem que seja com um
dinheirinho...
– Não sei se você percebeu, filha. Você já é remunerada faz tempo.
– Como assim? O Wagner nunca me pagou nada.
– Seu salário é pago todo dia, pois você mora e come de graça na nossa casa
faz anos.
Essa era a desculpa dada por Anderson a quem pedia para receber pelos
trabalhos realizados nas igrejas da família. Mesmo as “filhas” que pegavam
pesado diariamente, feito domésticas – faxinando, cozinhando, lavando a roupa
e o banheiro –, não recebiam nada. Tayane ficou tão decepcionada que resolveu
arrumar suas coisas e ir embora. Num arroubo materno, porém, Flordelis passou
a pagar cachê sempre que a “filha” subia ao palco para se apresentar e, mais
tarde, acomodou-a no conjunto vocal que lhe dava apoio. Por outro lado,
Danielzinho recebia dinheiro do pai sempre que pedia e era presenteado com
telefones celulares de última geração, brinquedos eletrônicos e instrumentos
musicais de valor, para se aprimorar na música. Às vezes, o pastor ouvia os
demais reclamando dos privilégios dados ao jovem. Certa vez, irritada com esse
excesso de regalias, Vanúbia fez nova chantagem com o “pai”: pediu um
tratamento odontológico, uma escova progressiva e uma limpeza de pele com
peeling facial. Diante da negativa do patriarca, a moça ameaçou dizer a Daniel
que ele não era filho biológico de Anderson e levar o garoto para conhecer
Janaína, sua verdadeira genitora, que dava expediente num salão de beleza em
Copacabana. Incrédulo, Anderson virou as costas e deixou a chantagista falando
sozinha. De repente, Vanúbia soltou um grito: “Danielzinho, corre aqui! Acabei
de descobrir o terceiro segredo de Fátima!”. Despachada, atrevida, insubordinada
e espaçosa, Vanúbia havia ido parar em Jacarepaguá porque não tinha onde
morar. Cria de mãe solteira, saiu de casa aos 12 anos, depois de sofrer abuso
sexual do padrasto, e pediu abrigo a uma tia. Aos 14, trabalhava como doméstica,
mas não parava em emprego algum. Quando completou 16 anos, a mãe morreu e
a parente se mudou para o interior. Sozinha no mundo, procurou Flordelis e
acabou “adotada”. Quando viu que a “filha” estava disposta a revelar que Daniel
fora roubado, Anderson bancou os tratamentos estéticos da moça. Na semana
seguinte, Vanúbia estava com aparelho ortodôntico, os cabelos escorridos e a
pele macia feito um pêssego.
O passar dos anos levou mais prosperidade aos negócios religiosos da dupla e
à carreira artística de Flordelis. Em 2010, ela assinou contrato com o grupo MK,
um conglomerado de rádio (93 FM), portal de notícias (Pleno News) e gravadora
especializada em música gospel de propriedade do então deputado federal
Arolde de Oliveira (PSD-RJ), morto em 2020, aos 83 anos, vítima de covid-19. O
político e a esposa, Yvelise, procuraram os pastores para colaborar com a
cinebiografia de Flordelis. Solidários à causa da adoção e comovidos com o
melodrama da grande família, os dois cederam músicas do catálogo da gravadora
para o filme e se encarregaram de registrar e distribuir o CD com a trilha sonora,
sem cobrar pelo serviço. Arolde e Yvelise aproximaram-se dos evangélicos depois
de uma tragédia familiar. Em 6 de fevereiro de 2010, o filho dos empresários,
Benoni Assis Vieira de Oliveira, de 45 anos, pegou seu ultraleve e levou o
cunhado, Sérgio Ribeiro de Menezes, de 44, para sobrevoar o Rio de Janeiro. No
final da tarde, a aeronave caiu numa lagoa atrás do Autódromo de Jacarepaguá e
ambos morreram afogados. Para confortar os pais, Flordelis comandou sessões
diárias de oração na mansão de Arolde durante um mês. De tão agradecido pelo
gesto, o casal ofereceu a ela um contrato para gravar seus discos – que venderam
feito água, embalados pelas performances nas igrejas e pela promoção de
videoclipes produzidos pela MK Music. Agenciada pela gravadora, Flordelis
começou a fazer shows por todo o Brasil e até no exterior. Ao longo de sua
carreira, ela gravou oito álbuns de estúdio e dois ao vivo, vendendo um total de
10 milhões de cópias. Todo o dinheiro arrecadado era administrado por
Anderson. Se Flor quisesse 1 real para comprar uma bala, tinha de pedir a ele,
como faziam todos os outros parentes. Esse controle era exercido com mãos de
ferro.
Numa viagem a Miami, a pastora entrou numa loja de luxo e viu uma peruca
loira, comprida, confeccionada com cabelo humano. Segundo a vendedora, a
peça de fios sedosos e brilhantes era assinada pela mesma artesã que trabalhava
para a cantora Beyoncé. Quando viu o preço na etiqueta (4,5 mil dólares),
Anderson disse: “Jamais!”. Flor saiu da loja com um modelo bem mais simples,
de 200 dólares. Ele só começou a investir muito dinheiro nos acessórios da
esposa quando Yvelise reclamou das perucas vagabundas usadas por sua estrela
gospel. A empresária também exigiu que Flordelis colocasse porcelana nos
dentes, que eram escuros e tortos. Muquirana, Anderson pagou um
procedimento estético-bucal com resina, bem mais em conta, de qualidade
infinitamente inferior. Perto do ensaio fotográfico para a capa do CD Questiona
ou adora, em 2012, Yvelise deu à artista uma peruca de 2 mil dólares e fez
questão de informar o valor a Anderson. “Sua mulher precisa estar sempre
arrumada com o que tem de melhor no mercado. Faça isso, que ela vai longe”,
orientou Arolde depois de ouvir reclamações de Flor sobre a avareza do pastor.
Desde então, Anderson não economizou mais com as perucas e a missionária
passou a colecioná-las.
Logo após o lançamento do álbum Questiona ou adora, a grande família teve
um baque. Num exame de rotina, Simone descobriu estar com câncer. Uma
primeira radiografia identificou 20 tumores espalhados pelo fígado, cervical,
mediastino, pulmão, pélvis e peritônio – um tempo depois, num retorno ao
laboratório, ela foi diagnosticada também com melanoma grau 4, o estágio mais
avançado da doença.
Com 32 anos na época, a jovem fez quimioterapia e radioterapia no Instituto
do Câncer (Inca) do Rio de Janeiro, mas as células malignas não diminuíram.
Pelo contrário, avançaram para 35 tumores. Em 2017, ainda doente, Simone se
inscreveu como voluntária num tratamento oncológico experimental do
Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Para custear as passagens aéreas,
hospedagem e alimentação na capital paulista, a primogênita pediu ajuda ao
“pai”, que controlava a verba da casa. Anderson liberou o dinheiro, mas teria
imposto como condição voltar a transar com ela, com quem havia namorado no
início da década de 1990. Simone pegou o dinheiro e foi para São Paulo. Quando
estava supostamente curada, Flordelis lançou pela MK Produções uma canção
chamada A volta por cima, com versos que dizem: “Olham para mim, já julgando
o meu final / Esquecendo que o meu Deus é um Deus sobrenatural”. O
videoclipe da música, com 2 milhões de visualizações no YouTube em 2023, tem
imagens de Simone raspando a cabeça, chorando e apegada aos filhos – Lorrane,
Rafaela e Ramon. Nos púlpitos da sua igreja, Flordelis pregava de mãos dadas
com a moça, dizendo que ela estava curada graças às suas orações. Um laudo
médico do Albert Einstein, no entanto, assegurou que a doença era incurável,
apesar de estar sob controle na época. De volta para casa, ainda em fase de
recuperação, Simone teria sido procurada por Anderson e voltado a transar com
ele. Na sequência, assim como Vanúbia, ela pediu dinheiro para colocar silicone
nos seios, prejudicados pelo tratamento pesado contra a doença. Anderson
concordou. Para não magoar a mãe, Simone diz que escondeu de Flordelis seu
relacionamento com o pastor. Quando o caso entre os dois veio a público,
porém, ela classificou as investidas de “abuso sexual e estupro”, apesar de nem
sempre as relações terem sido forçadas.
A escalada dos evangélicos ao topo da montanha seguia de forma fantástica,
assim como a promiscuidade sexual intrafamiliar. Com uma avalanche de fiéis, o
casal inaugurou mais quatro unidades do Ministério Flordelis: em Niterói,
Maricá, Itaboraí e Rio Bonito, somando seis no total. Havia uma sétima filial em
obra. No entanto, Flor era residente na igreja-sede, a Cidade do Fogo – onde,
segundo dizia, ficava mais próxima de Deus. O crescimento das instituições
religiosas acompanhou outra mudança de endereço. Mantenedores da moradia
da grande família desde a época do Rio Comprido, os irmãos Werneck
propuseram dar entrada em uma casa financiada pela Caixa Econômica Federal.
As prestações seriam pagas por Flordelis, já que os negócios religiosos
prosperavam.
O imóvel escolhido ficava na Rua Cruzeiro, 45, bairro do Badu, em Niterói.
Tinha três andares, doze quartos, dezenas de camas, piscina, sótão e porão. Uma
residência de três quartos localizada no mesmo terreno foi cedida para Carlos
Ubiraci e Cristiana, que já tinham uma menina, Raquel, e acabaram adotando
mais duas por imposição de Flordelis e Anderson: Roberta, a garota raquítica
supostamente encontrada em uma caixa de sapatos e esquecida por Cristiana na
fuga do Rio Comprido, e Rebeca. Essa menina, na verdade, era filha biológica de
Michelle, irmã de Anderson. Quando o pastor repassou a sobrinha para o casal
criar, comentava-se que Rebeca seria fruto da relação extraconjugal de Carlos
Ubiraci com Michelle.
Outro arranjo familiar envolveu o segundo bebê de Vânia, a mulher da bala
no fígado. Queturiene tomou a criança dos braços da mãe assim que ela
completou três dias de vida e a entregou para Simone criar, como se fosse seu
filho biológico. Vânia ficou revoltadíssima, mas não teve escolha. “Aqui quem
manda sou eu!”, gritou a missionária. O bebê recebeu o nome de Moisés. “Você
ganhou um presentão de Deus: a chegada do seu filho. Isso é uma bênção
maravilhosa”, anunciou a matriarca na hora de repassar a criança a Simone, com
a naturalidade de quem bebe um copo de água. Essa adoção foi registrada em
vídeo e postada na internet. Por decisão de Flordelis, Simone e o marido-irmão
André Luiz também assumiram Rayane e legalizaram sua situação em cartório. A
jovem era a filha afetiva número 1 de Mãe Flor e fora arrancada dos braços de
Joana Cara de Cadáver, usuária de drogas, no Centro do Rio, no início da década
de 1990. Mas Flor mentia sustentando que ela fora tirada do lixão da Central do
Brasil. Em tempo: todos os envolvidos negam esse passa-repassa de gente na casa
de Queturiene.
As mentiras de Mãe Flor ganharam projeção nacional nas manhãs da TV
Globo quando a grande família esteve no programa Mais Você. A apresentadora
Ana Maria Braga percebeu, no início da entrevista, que não havia ali 50 filhos,
pois a contagem à porta do estúdio só revelou 42 cabeças. Flordelis justificou a
ausência dos oito: “Quando se tem tantos filhos, Ana, é difícil juntar todos ao
mesmo tempo agora, sabe? Três foram à escola fazer prova. Outros três estão
doentes e foram ao médico fazer exame. Dois ficaram em casa porque estão com
gripinha”, mentiu a supermãe, ao vivo na televisão. Para não dar um tom
dramático demais ao programa, Ana Maria pôs uma criança no colo e começou a
fazer comentários descontraídos sobre a enorme quantidade de “filhos” que se
espremiam no cenário. Na hora em que o cameraman tentava buscar um ângulo
panorâmico, Orelhinha e Xaropinho, procurados pela polícia, esconderam-se
atrás de uma coluna. Ingênua, Ana Maria comentou: “Olha ali os grandões se
escondendo atrás da pilastra”. Depois, a apresentadora fez perguntas engraçadas
à Mãe Flor. “Me diz aqui uma coisa, alguém já convidou você e sua família para
um almoço?”. Rindo, Flor respondeu que não. Com tantos filhos, a
apresentadora quis saber como a mãe fazia para decorar o nome de todo mundo.
Flordelis respondeu que, com o tempo, acabava memorizando. Ana Maria a
desafiou e começou a perguntar, apontando aleatoriamente:
– Como é o nome dessa menina que está aqui no meu colo?
– Ágatha! – respondeu Flordelis de pronto.
– E essa que tá sentadinha no chão?
– Sara!
– E aquele outro ali? – apontou Ana Maria para um menino de cabelos
crespos.
– Esse é o Ramon.
– E aquela outra?
– Raquel!
Daquelas crianças apontadas por Ana Maria Braga, apenas a que estava no
colo da apresentadora poderia ser chamada de “filha” por Flordelis. Os demais
tinham outras mães. Ramon, por exemplo, era filho biológico de Simone e André
Luiz. Raquel, de Carlos Ubiraci e Cristiana. Ou seja, as duas crianças eram, na
verdade, netas de Flor. Mitômana, ela insistia em dizer nos programas de TV que
eram todos seus filhos. Sara era filha de uma vizinha e foi pega emprestada para
fazer número no cenário do Mais Você. Ágatha tinha sido deixada na casa de
Flor por uma mãe sem condições de criá-la, mas acabou fugindo da casa de
Queturiene aos 14 anos, por não suportar os maus-tratos. Durante uma refeição,
Carlos Ubiraci serviu para ela um prato contendo apenas arroz. A menina
reclamou que não aguentava mais comer somente aquele tipo de alimento e foi
reclamar com a matriarca. Flor retrucou dizendo que, se morasse na rua, Ágatha
não teria nem arroz para comer. A adolescente pediu para ser devolvida à família
original e levou uma bofetada tão forte que caiu no chão. “Sabe o que você é?
Uma ingrata. Um lixo!”, esbravejou Flordelis. Traumatizada, Ágatha se trancou
no quarto. Pegou um estilete e cortou a pele do antebraço com a lâmina até
escrever em letras garrafais “EU SOU UM LIXO”.
* * *
À
medida que Flordelis prosperava, Anderson se transformava num homem
violento dentro de casa. Segundo relatos dela, na hora do sexo o pastor
apertava seu pescoço enquanto a penetrava. Era comum ele usar um
travesseiro para sufocá-la, como havia feito com o “filho” Ari, com quem transou
por dois anos. Certa vez, o casal estava fazendo sexo no quarto secreto, rodeado
pelas imagens de Baphomet, Exu Caveira e São Cipriano, para comemorar o
sucesso da vida. Pouco antes de gozar, ele deu dois murros no rosto da mulher e
ela caiu da cama. O barulho despertou a atenção de Simone, que já conhecia o
perfil violento do “pai-amante”. Hebreia bateu à porta do quarto, mas ninguém
abriu. Do lado de fora, ela perguntou para a mãe se estava tudo bem. Flor
respondeu positivamente e disfarçou os hematomas com maquiagem. “Mãe, por
que a senhora aceita tudo isso calada? A senhora é deputada federal, uma mulher
empoderada. Não precisa mais desse demônio dentro de casa. Por que não se
separa?”, perguntou a primogênita. André Luiz também sugeriu o divórcio. “Não
posso. Uma separação escandalizaria a igreja”, respondeu Flor.
Mesmo sendo submetida a violência, conforme relatava para os “filhos”, a
pastora continuava subindo ao púlpito da Cidade do Fogo e se declarando em
público ao marido agressor. Uma vez por mês, ela falava apenas para casais. “Se
você tem problemas conjugais, venha amanhã à minha igreja que vou fazê-los
desaparecer”, anunciava na véspera das sessões de reconciliação. Em março de
2019, ela pregou: “Mulheres de Deus que estão aqui, prestem atenção! Ainda hoje
uma profetisa do cão me falou. Uma profetisa do cão coisa nenhuma. Era uma
mulher sem eira nem beira. Ela me parou ali atrás para dizer que isso tudo aqui
está perto do fim. Teria profetizado que o meu ministério vai acabar, que virará
um estado de fogo. Ela disse que eu tenho um calcanhar de aquiles. Eu fiquei
parada olhando para a cara da infeliz. Ela disse que meu ponto fraco é o meu
casamento. Que basta destruir meu casamento que isso tudo aqui acaba. Tá
amarrado, Satanás! Meu casamento é de Deus. Meu marido, foi Ele quem me
deu!”, gritou e pulou ao mesmo tempo. Anderson estava na plateia e aplaudiu a
esposa com fervor. À noite, teria dado mais uns sopapos na cara dela.
Depois dos cultos das sextas-feiras, Anderson, Flordelis, Simone e André
Luiz costumavam seguir para casas de swing. As preferidas eram o Paris Café
Club, na Barra da Tijuca, e 2A2, em Botafogo. Foi numa dessas orgias que o
pastor conheceu a travesti Sabrinne Crystal Tranca-Tudo, uma agenciadora de
garotas de programa. No início, para não ser identificada nessas casas, Flordelis
usava máscaras venezianas. Com o passar do tempo, a gerência dos lugares
começou a reservar ambientes exclusivos para eles. Geralmente, Anderson e
Simone saíam pelo salão recrutando casais para fazer a troca de pares. As
aventuras sexuais da família nas casas de sexo coletivo produziram situações
embaraçosas no Ministério Flordelis. A primeira delas ocorreu em 2018, quando
a diaconisa Karla Evelyn de Oliveira, de 31 anos, levou uma amiga para visitar a
Cidade do Fogo. De repente, Flordelis subiu ao palco para pregar e a moça levou
um susto.
– Karla, quem é aquela mulher lá no púlpito?
– É minha pastora. Chama-se Flordelis.
– Essa mulher frequenta a mesma casa de swing em que vou, na Barra.
– Não pode ser! Ela é uma pastora famosa!
– Estavam lá sábado passado: ela, o marido e mais um casal, no maior troca-
troca. Essa senhora, inclusive, desceu as escadas bêbada, carregada, vestindo
calça jeans e jaqueta branca.
No dia seguinte, Karlinha, como era conhecida na igreja, foi tirar satisfações
com Flor e Anderson. Eles negaram e ela descreveu a roupa de cada um,
inclusive de Simone. O pastor, então, tentou convencê-la de que o Diabo cria
falsas visões e fofocas para destruir as coisas de Deus. Quando a denúncia veio a
público, Flordelis ficou revoltadíssima e mandou um recado à diaconisa pelas
redes sociais. “Tudo que você fala tem de ser provado, lindona. Que eu e meu
marido frequentávamos casa de swing? Ah! Misericórdia, Senhor. E se fosse
verdade? Infelizmente não é verdade! Olha, minha cara, se eu fosse você, iria na
Barra agora na tal casa de swing procurar por uma filmagem! Mas tem de ter
euzinha trêbada, sendo carregada! Porque se não tiver nenhum videozinho, meu
amor, você vai ter de me pagar por danos morais. Tem dinheiro não? Começa a
fazer faxina. Tem dinheiro não? Vende tudo que tem dentro da sua casa”,
sugeriu.
Simone também protagonizava escândalos sexuais homéricos na Cidade do
Fogo. Frequentadora assídua dos cultos de Anderson, a ovelha Priscila Bessa ia
na companhia do marido, Márcio da Costa Paulo, o Buba, assessor parlamentar
de Flordelis. Simone estreitou laços com o casal e conseguiu convencer Buba a ir
à casa de swing. Os dois transaram na 2A2 diversas vezes. Apaixonada, Simone
avisou que terminaria o casamento com André para ficar com o amante. Buba
sugeriu que ambos permanecessem casados e se encontrassem clandestinamente,
pois ele não estava disposto a se separar, uma vez que Priscila o amava. Simone
fingiu que concordou e fez uma maldade. Escondeu um celular com a câmera
ligada e filmou uma noite de sexo com Buba. Em seguida, mandou o vídeo
anonimamente para Priscila. Revoltada, a mulher traída expôs o caso
extraconjugal nas redes sociais. Simone ficou sem André e sem Buba, mas não se
manteve sozinha por muito tempo: logo engatou namoro com um taxista
chamado Valtinho Porto, de 45 anos, cujo maior sonho era ser vereador em Rio
das Ostras. Numa eleição para o posto, teve só 18 votos.
O escândalo sexual do pastor Anderson com a cafetina Sabrinne Crystal
Tranca-Tudo teve um desfecho misterioso. A parceria dos dois começou às
vésperas do Congresso Internacional de Missões (CIM), um evento gospel criado
por Anderson em 2006 que reunia todos os anos mais de 10 mil evangélicos. Na
edição do CIM de 2017, o pastor receberia cerca de 200 autoridades religiosas
internacionais e precisava de muitas garotas de programa para entretê-los.
Anderson contratou diversas cafetinas para fornecer as prostitutas, entre elas
Sabrinne Crystal. Desde então, Anderson passou a procurar pela travesti sempre
que queria sair com uma garota de programa. O ponto delas era um logradouro
da Avenida Brasil na altura de Bangu. Inúmeras prostitutas agenciadas por
Sabrinne Crystal saíram com Anderson. Nem a travesti, nem as profissionais
sabiam que aquele cliente era um pastor famoso, casado com uma cantora gospel
de sucesso. Certa noite, ele passou no ponto da Avenida Brasil e pegou duas
mulheres agenciadas por Sabrinne. Na manhã do dia seguinte, ele as deixou de
volta e desapareceu sem pagar. Sabrinne ligou para o cliente, mas ele havia
trocado de celular. A cafetina procurou por Anderson na casa de swing para
fazer a cobrança, mas não o encontrou. Até que foram afixados painéis de
propaganda do CIM de 2018 em viadutos da Avenida Brasil com o rosto de
Anderson e Flordelis. “Puta merda! O cara é casado com uma deputada federal e
me dá um calote de 400 reais!”, indignou-se Sabrinne Crystal. Foi a partir dessa
descoberta que a travesti resolveu procurar pelo pastor na seita de Queturiene. A
ideia não foi boa. Sabrinne Crystal foi retirada de lá violentamente. Primeiro,
Anderson deu uma rasteira na travesti na frente de todos, no meio da sala. Em
seguida, segurou a vítima pelo aplique capilar e arrastou-a para fora. Para não
perder os cabelos falsos e machucar o couro cabeludo, a vítima se segurou no
braço do pastor e teve as costas machucadas. Houve um corre-corre na casa.
Anderson só cessou a agressão quando Sabrinne Crystal foi jogada na rua. “Se
você ousar me procurar mais uma vez, seja por telefone ou aqui em casa, não
responderei por mim”, ameaçou ele, apontando uma arma para a travesti.
Ousada, Sabrinne teria ido atrás do pastor mais algumas vezes e feito ameaças.
“Imagine se o Brasil todo descobrisse que o marido da deputada Flordelis está
inadimplente com uma travesti? O que aconteceria?”, mandou por mensagem
para o novo celular de Anderson. Com medo de escândalo, o pastor pagou sua
dívida e mudou de número mais uma vez.
Como toda chantagista que se preze, Sabrinne Crystal quis mais e mais.
Procurou por Anderson na Cidade de Fogo. O marido de Flordelis fez mais um
pagamento. Mas ele estava decidido a pôr um fim naquela extorsão. Ele acionou
seus filhos criminosos, Xaropinho e Orelhinha. Naquela altura da vida, a dupla
revezava a segurança de Anderson com dois milicianos. Certa noite, um carro
preto com vidros escuros passou pelo ponto de Sabrinne Crystal na Avenida
Brasil, parou perto dela e abriu o vidro da janela do banco do carona. Alguém
perguntou quanto custava o programa. A travesti negociou, entrou no carro e
não voltou mais. Uma semana depois, seu corpo foi encontrado perfurado de
balas numa vala em Bangu, zona oeste do Rio. O assassinato nunca foi
investigado porque nenhum familiar procurou por Sabrinne. A polícia nem
sequer descobriu seu nome de batismo, e ela acabou enterrada como indigente,
sem direito a velório, numa cova rasa do cemitério do Caju.
Ninguém ousava falar, em casa, sobre o dia em que uma travesti procurou
por Anderson. Tinham medo de o escândalo resvalar na carreira política de
Queturiene. Separado de Simone, André Luiz foi morar no apartamento
funcional da deputada, na Asa Norte, em Brasília. No entanto, o ex-casal dormia
junto sempre que se encontrava. “Não consigo me desapegar, ele é muito bom de
cama”, justificava a moça, ao ser questionada sobre as recaídas sexuais. Com a
mudança de parte da prole para a capital do país, novas chegadas e partidas
movimentaram Niterói. Vânia, Vanúbia, Rayane e Wagner “Misael” saíram por
motivos diferentes. As duas primeiras se cansaram da dinâmica ditatorial da
casa. “Misael” casou-se com Luana Vedovi, produtora de conteúdo digital. Aos
25 anos, Rayane saiu para viver com o namorado, André Felipe. Mais tarde, os
dois também se mudaram para o imóvel de Brasília. Em 2019, ela atuava como
assistente pessoal de Flordelis: cuidava das perucas, da alimentação, fazia as
unhas e passava as roupas de Flor. Acertou com Anderson um salário de 15 mil
reais. No primeiro mês, porém, recebeu apenas 2,5 mil reais. “Mãe, o Anderson
não está me pagando direito”, queixou-se. “Você sabe como ele é. Mas deixa
comigo, vou falar com seu avô”, prometeu a deputada. Certo dia, a moça se
deitou na cama com o namorado, enrolada em uma toalha de banho, dentro do
quarto fechado. Flor transava com Anderson no cômodo ao lado, mas ele não
teria gozado porque a esposa estava cansada. Só de cueca preta, o pastor chamou
André Felipe à sala e o mandou levar um documento ao gabinete da deputada.
Em seguida, entrou no quarto de Rayane. Segundo relato dela, puxou a toalha e
tocou sua vagina enquanto se masturbava. Para evitar que ele a penetrasse com
os dedos, ela virou o corpo para o lado. “O seu salário está baixo, né? Você se
queixou para sua avó. Ela me contou. Não quer ganhar 15 mil, sua piranha do
evangelho? Então facilita a minha vida, liberando a bocetinha...”. Rayane deixou-
se ser penetrada – até porque, como contou, não era a primeira vez que sofria
esse tipo de violência. Anderson teria abusado da “filha”, que depois virou
“neta”, desde a adolescência. Quando tinha 11 anos, a garota surgiu na cozinha
do Jacarepaguá vestindo uma blusa folgada e o pastor teria posto a mão em seus
mamilos. “Deixa o papai ver se já nasceu peitinho na filhinha”, disse, tocando-a.
“Olha, tá bem pequenininho, mas já tem uma uvinha aí”. Em seguida, pegou-a
pelo braço e a arrastou para o banheiro, onde a estuprou.
No seio da grande família, outros dois “filhos” de Queturiene deixaram de
fazer figuração e passaram a ter destaque durante a campanha eleitoral: Lucas
Cezar dos Santos de Souza, então com 22 anos, conhecido como “Pirulito”, e
Marzy Teixeira da Silva, com 34, uma das mais dedicadas, prestativas, submissas
e subservientes a Mãe Flor. Sua história é de partir o coração. Quando ela tinha 8
anos, a pessoa mais importante em sua vida era o tio-avô, José Nisolino, de 49
anos na época. Distante da mãe, a menina criou laços afetivos com ele, porque
recebia carinho e era presenteada com brinquedos, bonecas e material escolar.
Nos finais de semana, José a pegava em casa para ir ao parque com outras primas
da mesma idade. Em comparação com o ambiente doméstico infernal, a
felicidade de Marzy nessas atividades recreativas era uma válvula de escape. O
pai, Maurício Nunes da Silva, batia todos os dias na mãe, Maria Lúcia Teixeira da
Silva. “As melhores horas de minha vida eram quando estava com meu tio-avô,
os únicos momentos em que eu conseguia rir. Quando os passeios estavam
acabando, já me batia uma angústia, pois tentava imaginar de que forma meu pai
iria espancar minha mãe”, contou ela a uma assistente social. Aos 11 anos, Marzy
acordou e viu o pai, bêbado e nu, entrando no banheiro. A mãe, também sem
roupa, estava toda ensanguentada no sofá da sala, embriagada, segurando uma
garrafa de pinga. Maria Lúcia levantou, caminhou cambaleando até a cozinha,
abriu uma gaveta e pegou uma faca. O casal esteve bebendo por dois dias
seguidos. Marzy olhou fixamente para a mãe, que seguia rumo ao banheiro com
a arma branca em punho. Dentro de casa, a filha parecia invisível aos olhos do
casal. Do lado de fora, porém, um carro soou a buzina: era José Nisolino,
chamando a sobrinha-neta para mais um passeio. Sem se despedir dos pais, ela
saiu de casa em jejum, vestindo pijama. Contou ao tio-avô detalhes sobre a
violência doméstica, pontuando o desejo de um deles morrer para ter paz dentro
de casa. José ficou o dia inteiro com a menina, na tentativa de confortá-la. Levou-
a à praia, almoçaram, passearam no shopping e seguiram ao parque de diversões
já no finalzinho da tarde. Na roda-gigante, o tio-avô de quase 50 anos
aproveitava o momento em que a cadeira oscilante estava na parte mais alta para
pôr a mão na vagina da criança. Marzy não viu malícia no abuso sexual de José e
até riu quando a roda panorâmica enfeitada com luzes coloridas girava
rapidamente, levando-a para os ares.
Na semana seguinte, aconteceu algo bom: os pais de Marzy se separaram.
Quem saiu de casa foi a mãe, que nunca mais deu sinal de vida. Marzy e seu pai
fizeram um pacto de cuidar um do outro para sempre, mas ele nunca cumpriu
sua parte no acordo. Incentivada por Maurício, que queria a casa livre para
receber as amigas do bar, a menina saía com o tio-avô quase todos os dias. Nos
passeios, sempre que houvesse oportunidade, José Nisolino pegava no sexo da
garota, que não fazia qualquer objeção, deixando o abusador ainda mais à
vontade. Certo dia, ao se ver preterida diante de uma coleguinha da mesma
idade, Marzy ficou irritada e disse que só sairia outra vez com o parente se
estivessem sozinhos. Pediu para ir de novo à roda-gigante. Lá em cima, colocou a
mão do tio-avô sobre seu sexo. A partir daí, começou a ser violentada de forma
sistemática até completar 15 anos. Só veio a entender o tipo de atrocidade que
sofria perto de completar 18. Aos 22, saiu de casa. “O mais absurdo é que eu era
abusada na infância e gostava, porque não entendia como aquilo impactava em
mim. Quando meu tio-avô desapareceu, eu me sentia atraída por ele. Ele me
tocava e eu adorava, porque não era um estranho. Me sentia até segura. Só vim
entender que estava sendo estuprada quando me relacionei com outras pessoas
de forma espontânea”, contou a uma psicóloga. Confusa, deprimida e com vários
transtornos mentais, Marzy foi morar de favor na casa de amigas até parar nos
braços de Flordelis, em 2009. Quando a pastora se elegeu deputada federal e
passou a viajar para o exterior, como celebridade, Marzy ficou deslumbrada e
concluiu: é essa a mãe que sempre sonhei ter para mim. Desde então, passou a
venerar a missionária como se ela fosse uma rainha. “Minha fidelidade será
canina! Farei qualquer coisa para protegê-la! Eu disse: qualquer coisa!”, decidiu.
Na cozinha da Cidade do Fogo, Marzy foi assediada sexualmente por
Anderson. Adulta e com a experiência de quem morou na rua e ciente do
conceito de abuso, ela deu um chega pra lá no pastor apontando uma faca de
cozinha para ele. “Nunca mais encosta em mim!”, ameaçou Marzy. Segundo
relatos, ele teria tentado outras vezes. Certa vez, a jovem preparava o almoço
para os funcionários da igreja e Anderson a agarrou por trás, esfregando na
“filha” o pênis ereto por cima da calça. Marzy pediu para ele sair, mas o “pai”
continuou bolinando-a. Para se vingar, ela aproveitou uma distração de
Anderson e roubou 5 mil reais do dízimo da igreja. Quando ele deu falta do
dinheiro, houve um escândalo. Marzy confessou e acabou expulsa de casa.
“Aceito até filho veado e filha sapatão, como tem aos montes aqui em casa. Mas
não tolero ladrão!”, esbravejou. Flor intercedeu por Marzy. Anderson manteve-
se irredutível. A larápia pediu desculpas ao “pai”, disse que não sobreviveria sem
o amor de Mãe Flor e prometeu nunca mais mexer nas coisas dele. Foi perdoada
e voltou a morar na casa de Niterói exclusivamente para servir aos interesses de
Queturiene.
Lucas chegou à grande família levado pela dupla de traficantes Orelhinha e
Xaropinho, em 2012. Os três se conheceram na época em que roubavam
telefones celulares nas ruas do Rio de Janeiro. Depois de ver Flordelis no
programa da Xuxa, Lucas pediu para os amigos arrumarem uma vaga na casa.
Xaropinho falou da facilidade em se esconder da polícia estando sob as asas de
Mãe Flor, citando o abrigo dado a Selma, Olival e Aldeci por vários anos. Os dois
marginais deram boas e más referências da casa ao companheiro:
– Mãe Flor é protegida por um juiz e tem moral com policiais e chefes do
tráfico – disse Orelhinha.
– Mas não vai achando que lá é um paraíso. A casa parece o Titanic. Tem
gente que viaja na primeira classe, comendo do bom e do melhor. Mas tem os
pobres-diabos que nem nós, que seguem no porão, sendo humilhados,
apanhando na cara, trabalhando feito pessoas escravizadas e comendo o pão que
Satanás amassou e cuspiu – definiu Xaropinho, rindo.
– Mas vocês acham que vale a pena? – quis saber Lucas.
– Cara, a família é toda torta, esquisita. O pai come filha, come filho, come
neta e dizem que sai até com travesti. Tem irmã que dá para o irmão e a mãe
transa com o filho. Também tem casal de sapatão que dorme na mesma cama e
se dizem irmãs. Aí depois todo mundo vai fazer oração. Tem ainda um quarto
secreto com imagens sinistras. Se você não ligar para essas coisas, vale a pena,
sim. Pelo menos a gente tem a quem chamar de mãe.
Assim como Orelhinha e Xaropinho, Lucas passou a morar esporadicamente
na casa de Mãe Flor. Saía para traficar, praticava pequenos furtos e voltava para
se esconder na casa de Niterói. Já acumulava passagens pela polícia desde a
adolescência e falava com as gírias da bandidagem. Certa vez, testemunhou
Anderson brigando com Wagner “Misael”. O pai pegou uma cadeira e jogou
contra o “filho” por causa de uma discussão que envolvia planos políticos e
dinheiro. Misael queria seguir os passos da mãe e se candidatar a deputado
federal. O pastor o humilhou, dizendo que o “filho” não tinha brilho para
almejar um posto tão alto na vida pública. “Você nasceu para ser vereador de
favela”, encerrou.
Na primeira refeição, Lucas sentiu cheiro de carne assada e foi olhar na
cozinha, por volta do meio-dia. Viu três fogões de seis bocas com dezoito panelas
cozinhando alimentos a todo o vapor. Havia arroz com brócolis, bife, batata frita,
macarrão, purê de batata, farofa, feijão-preto bem temperado, maionese, salada
de legumes... Voltou meia hora depois, pegou um prato e abriu cada panela, sem
saber por onde começar. A cozinheira, Débora Vianna, o interpelou: “Você ficou
doido? Ponha-se no seu lugar. Os filhos afetivos são os últimos a comer”, avisou.
Flor, Anderson, Simone, Adriano e Danielzinho serviram-se de filé-mignon,
feijão, arroz e fritas. Depois foi a vez de Carlos Ubiraci, Wagner, Cristiana,
Alexsander e os filhos biológicos de Simone, para quem havia salada, bife de
alcatra e macarrão com molho de tomate. Às 15 horas, os mais de trinta
integrantes da “terceira classe” foram chamados. A cozinheira fez um mexidão
com arroz, feijão, ovo e salsicha, misturou com sobras da “primeira classe” e
serviu em vários pratos de plástico. Uma ajudante avisou: “Usem farinha de
mandioca à vontade, porque ela faz o rango render”.
Era Simone quem fazia as compras da casa. Ela ia ao supermercado três vezes
na semana e voltava cheia de coisas. Mas havia um código para não misturar os
alimentos. As sacolas fechadas com nó deviam ser levadas para a geladeira de
cima ou acomodadas numa despensa trancada à chave. E a discrepância no
tratamento dos moradores não se restringia só ao cardápio. Os quartos
destinados aos “filhos” inferiores ficavam no primeiro andar e não tinham
janelas. Os aposentos do núcleo principal, no segundo andar, exibiam janelões,
camas macias e ar-condicionado. “Aqui, a promoção é por merecimento”, dizia
Flor.
A agressividade dentro de casa refletia-se nas igrejas. Todas as unidades do
Ministério Flordelis tinham uma boa receita porque as cobranças ficavam cada
vez mais intensas. Num culto, Anderson pediu aos fiéis com dízimo atrasado que
evitassem sair de casa, pois Deus não cuidava de ovelhas inadimplentes e
acidentes poderiam acontecer com os caloteiros. “Outro dia, uma senhora levou
uma bala perdida na favela e os parentes vieram aqui choramingar. Fomos olhar
nos relatórios e o dízimo estava atrasado. Não adianta ficar perguntando se a bala
foi disparada por traficantes ou policiais. Quem leva as almas da Terra é Deus.
Por isso, vocês têm de manter o dízimo em dia”, pregou. Na mesma ocasião, uma
mulher procurou o pastor para justificar por que sua mãe, frequentadora assídua
da Cidade do Fogo, estava com a contribuição religiosa atrasada. “Ela é fanática
pela Flordelis. Não tem vindo porque está internada com câncer terminal. O
médico disse que ela vai morrer em breve. Gastamos todo o nosso dinheiro com
o tratamento. Assim que as coisas melhorarem, a gente paga o dízimo atrasado,
tá?”, explicou a fiel. Anderson não deixou barato. “Irmã, pague o dízimo pela sua
mãe. Vende essa bicicleta que te trouxe até aqui e paga a sua dívida com o
dinheiro. Se sua mãe está quase morrendo, o dízimo tem de estar em dia, porque
ele é essencial para Deus recebê-la em seus braços na sua mais pura luz. Se a
coitada morrer com o dízimo atrasado, nem sei onde ela vai parar depois de
morta, pois no céu ela não vai entrar”, avisou. “Não posso vender a bicicleta
porque uso para trabalhar”, chorou a mulher. “Então venda algum
eletrodoméstico, faça uma vaquinha na vizinhança, mas não deixe sua mãe sem
amparo num momento crucial da vida como esse. A senhora será
responsabilizada pelo destino dela após a morte”, determinou Anderson. Com
cobranças controversas, o pastor conseguia arrecadar mensalmente, em média,
600 mil reais nas oito igrejas do ministério. Uma parte era investida na
construção de mais um templo e na manutenção das unidades em
funcionamento. Outra parte servia para as despesas da casa, incluindo as parcelas
do financiamento da Caixa Econômica Federal. Para sonegar impostos, o pastor
costumava levar semanalmente cerca de 30 mil reais em dinheiro vivo da igreja
para casa, dentro de uma mochila de couro. Os valores eram guardados em dois
cofres, no quarto secreto, atrás de Baphomet, Exu Caveira e São Cipriano. Ele
também colocava notas de 100 reais sob as imagens, como forma de
agradecimento. Ele também mantinha dois cofres na Cidade do Fogo contendo
dinheiro vivo. Depois que passou a andar com valores, Anderson começou a
andar armado e nomeou Orelhinha e Xaropinho como seguranças particulares,
além de dois milicianos.
Desde 1991, quando deram o primeiro beijo, Anderson e Flordelis
mantiveram uma relação aberta. Ela era adepta do amor livre desde a década de
1970, quando namorou simultaneamente um padeiro e um alfaiate. Ele saía com
várias mulheres, e a partir de 2019, quando esse modelo de convivência se
intensificou, engatou romance com uma ovelha da igreja chamada Regina.
Apaixonado, o casal não escondia o envolvimento. Queturiene, por sua vez,
perpetuava as características da velha “vassourinha”. Num culto na Cidade do
Fogo, ela conheceu outro Anderson, casado com Debora Vilela. Em crise
conjugal, ambos recorreram à bruxaria de Mãe Flor para tentar remendar o
matrimônio. Mas o casal acabou desfeito pela própria Flordelis, que transou com
Anderson Vilela, de 46 anos na época, com a velha desculpa de purificá-lo. “Fui
lá na Cidade do Fogo tentar salvar o meu casamento e acabei saindo sem
marido”, reclamou Debora ao portal Metrópoles, em junho de 2021. Romântica,
Flor deu de presente ao amante um carro zero-quilômetro e ainda conseguiu
para ele uma sinecura em seu gabinete. Tanto a ex-parlamentar quanto seu ex-
assessor negaram o affair.
Flor ficou três anos com Anderson Vilela, mas trocou-o pelo jovem Allan
Soares, de 22 anos – ou seja, 38 anos de diferença –, mantendo a sua predileção
por novinhos. O rapaz trabalhava organizando agendas de cantores gospel e logo
se mudou para a casa de Niterói. O romance começou secreto, para não causar
mais um escândalo na Cidade do Fogo. No auge da paixão, Flor, Allan e
Anderson do Carmo fizeram uma foto juntos, sugerindo um relacionamento a
três. A imagem foi publicada numa rede social. Allan nega que tenha namorado
Queturiene enquanto ela estava casada com o pastor. “Existe uma Flordelis que
só eu enxergo. Uma mulher que a mídia não mostra, que as pessoas não veem. É
essa mulher que eu amarei incondicionalmente até o fim dos meus dias”, disse o
rapaz, em abril de 2021.
Com a vida amorosa extraconjugal de vento em popa e com ódio mortal do
marido tirano e controlador, Flor resolveu finalmente se libertar de Anderson.
No entanto, seu plano para se livrar do pastor não envolvia separação, desquite,
divórcio ou qualquer outro sinônimo para o fim do matrimônio. Queturiene
queria sua vida de volta e sabia que não existia outra possibilidade de isso
acontecer se não assassinando Anderson. O desejo de liquidar com ele começou
depois de uma miniturnê com três apresentações dela na Bélgica, entre 17 e 19 de
maio de 2019. Todos os shows e cultos da cantora eram acertados por ele, que
repassava em média 10% do cachê à mulher e embolsava o restante. Como todo
artista, Flor nunca falava em valores e sempre se contentava com o que recebia. A
apresentação em Bruxelas, por exemplo, rendeu 5 mil reais. Pela primeira vez,
porém, ela achou pouco e resolveu se inteirar das finanças da sua carreira
artística.
– Amor, quanto eles pagaram por esses shows?
– Uma miséria, minha linda. Só 50 mil reais. Mas achei que valeu a pena
aceitar, porque a gente conheceu um país diferente – ponderou Anderson.
De fato, o casal aproveitou a viagem: visitaram a Grand-Place, viram a
estátua de Manneken Pis, estiveram nas Galeries Royales Saint-Hubert. De volta
ao hotel, Anderson tomava banho enquanto Flordelis arrumava a bagagem para
regressar ao Brasil. Ao se deparar com uma pasta na mala do pastor, encontrou a
cópia do contrato dos três shows feitos em Bruxelas: o valor negociado havia sido
de 120 mil reais, e não 50 mil. Anderson, portanto, havia gatunado 115 mil reais.
Esperta, Flor não confrontou o esposo. Mas, dali em diante, decidiu que jamais
seria explorada novamente pelo mercenário.
No retorno ao Rio de Janeiro, ela se reuniu com os filhos biológicos, Simone,
Flávio e Adriano. Contou a eles que não aguentava mais viver com o marido –
pintado como Satanás, pois a ludibriava desde a época do Jacarezinho. Adriano
sugeriu a separação, mas a mãe ponderou que essa alternativa traria prejuízos
enormes à sua reputação e ao seu patrimônio, pois ele levaria junto pelo menos
metade do Ministério Flordelis, cujas finanças eram inteiramente administradas
por Anderson e seu grupo de “filhos”, liderados por Wagner “Misael”,
Alexsander “Luan” e Danielzinho. Em um segundo momento, Flordelis
comentou sobre os golpes do marido contra Marzy e Rayane. A princípio, não
falou abertamente “vamos matar o pastor”. Mas ficava claro, nessas primeiras
reuniões familiares, que assassiná-lo seria a única saída.
A decepção sofrida em Bruxelas foi só a gota d’água. Alguns meses antes,
durante a campanha eleitoral, Flordelis se sentiu sufocada como nunca. Eleita
deputada, quis começar uma vida nova bem longe do companheiro. Logo depois
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmar sua eleição, ela resolveu
envenenar Anderson. Para as suspeitas não recaírem sobre ela, fingiu amá-lo e
não economizava nas demonstrações de afeto, principalmente nas redes sociais e
no púlpito da Cidade do Fogo. Para colocar o plano do envenenamento em ação,
Queturiene cooptou seus principais querubins: Simone, André Luiz, Rayane e
Marzy. Quando Anderson saía de casa, o grupo se reunia no quarto secreto, sob
os olhos de Baphomet, São Cipriano e Exu Caveira. Prestativa e obediente, Marzy
usou o Google para pesquisar sobre a substância que seria mais eficaz. Digitou na
barra de buscas: “veneno para matar pessoa que seja letal e fácil de comprar”.
Não se sabe se usaram arsênico, cianeto, chumbinho – o famoso raticida – ou
outra substância. O veneno era administrado de forma insidiosa e gradual nas
refeições da vítima, em pequenas doses, e devia agir devagar no organismo do
pastor. Inicialmente, Simone e Marzy assumiram a função de fazer o “pai”
ingerir os alimentos contaminados. Anderson tinha o hábito, no café da manhã,
de tomar bebidas feitas à base de leite fermentado, como Yakult e Chamyto,
indicadas para equilibrar a flora intestinal. Orientadas por Flordelis, na
madrugada, as moças usaram uma seringa com agulha fina para injetar o veneno
pela tampa do produto, evitando a violação do lacre.
Anderson acordou, agitou a garrafinha e bebeu de uma só vez. À tarde, estava
no pronto atendimento do Hospital Niterói D’Or com vômito, diarreia, sudorese
e uma terrível dor abdominal. Cínica, Flordelis ficou orando no leito do marido e
ainda comemorou quando ele recebeu alta médica. Alguns dias depois, o veneno
foi colocado numa jarra de suco de laranja. O pastor tomou um copo na hora do
almoço e ofereceu um pouco a Cristiana, que deu somente três goles. A coitada
deu entrada na emergência e ficou internada por cinco dias, com suspeita de
intoxicação alimentar. Tayane também quase morreu ao tomar por engano um
Chamyto batizado. “Filha, bebe leite urgente que você melhora”, receitou Mãe
Flor à sua “filha” cantora. A essa altura, a família inteira já sabia do plano de
Queturiene, mas ninguém disse nada. Pelo contrário, mantiveram segredo e até
se articularam para evitar que os alimentos da geladeira destinados a Anderson
fossem parar no estômago de pessoas erradas.
Certa vez, no carro, a caminho do cinema, Carlos Ubiraci alertou Wagner:
“Misael, quando você for lá em casa, não bebe nem come nada porque ela
[Flordelis] está tentando matar o Niel [Anderson]”. Alexsander “Luan” também
tomou conhecimento da tentativa de homicídio e se calou. “Estou botando
remédio na comida do Niel. Mas ele é tão ruim que não morre”, confessou
Simone ao “irmão”. Numa mensagem enviada para o celular de André Luiz,
Flordelis chega a ser debochada ao pedir para o “filho” tentar eliminar o “pai”:
“Faz o Niel comer um arrozinho ou um franguinho porque falta pouco para a
gente se livrar desse traste”. De tanto ser envenenado, o pastor foi internado seis
vezes, mas resistiu. “Meu ‘pai’ é um touro”, comentou Carlos Ubiraci com
Wagner ao se referir à resistência de Anderson. Ele atribuía as dores no estômago
a uma gastrite aguda por causa do estresse da campanha eleitoral da esposa.
Ao falar dos planos para matar o marido, Flordelis deixava rastros pelo
caminho que serviriam de provas contra ela. No dia 13 de outubro de 2018, um
sábado, Flamengo e Fluminense entraram em campo no Maracanã, às 17h, pela
28ª rodada do Campeonato Brasileiro. Rubro-negro fanático, Anderson foi ao
estádio com Flordelis e pelo menos 20 “filhos”. O placar finalizou 3 a 0 para o
Flamengo. O pastor ficou eufórico. Na hora de voltar para casa, no entanto, disse
que só a esposa e Danielzinho entrariam no carro. O resto que se virasse para
voltar como pudesse. Flor tentou interceder, pedindo que dessem carona pelo
menos aos mais chegados, como André Luiz, ex-marido de Simone. O pastor se
mostrou irredutível. Ao lado do esposo, no veículo, Flordelis pegou o telefone
celular e iniciou uma conversa por mensagem com André Luiz, indignado com a
postura do “pai”. “André, estou revoltada!”, escreveu Flor. “Calma, mãe. (...) Na
boa, eu não tenho pena dele. Se ele morrer hoje, acho que nem choro de tanta
raiva que estou”, disse o “filho” pelo celular. “Pelo amor de Deus, André. Vamos
pôr um fim nisso. Estou implorando. Me ajuda. Será a nossa independência
financeira. (...) Até quando vamos ter de aguentar esse traste no nosso meio?”,
questionou. “Mãe, estou com a senhora. Não dá para eu fazer muita coisa. Mas
estou com a senhora!”, respaldou André. “Filho, vou te explicar o que vamos
fazer. Vem comigo que é algo simples. É só focar que a gente acaba com isso de
uma vez. Em uma semana a gente consegue pôr um ponto-final nessa história”,
finalizou Queturiene.
Depois do jogo do Maracanã, os planos de executar Anderson ganharam
outros contornos. Flordelis teve a ideia de contratar um matador de aluguel.
Marzy entrou em cena e escalou Lucas para a missão, oferecendo um cachê de 5
mil reais, mais a coleção de relógios do pastor, para ele dar cabo do “pai”. “O Niel
está atrapalhando a vida da minha mãe. Aqui em casa ninguém mais está
aguentando. Você não quer dar fim nele? Finge um assalto, faz qualquer coisa...
Podemos contar com você?”, perguntou a moça pelo celular. Apesar de viver do
crime, Lucas ficou estarrecido com a proposta e se negou a participar do plano.
Marzy mandou outras mensagens para o “irmão” com prints da tela de um
telefone em que era possível ver que a ordem de matar Anderson vinha de
Flordelis – e o escolhido para a missão era Lucas. Para se certificar de que a
“mãe” realmente havia dado aquele comando, o traficante mostrou tudo a Flor,
que fingiu espanto. “Olha que absurdo! Isso é coisa de Marzy!”, desconversou.
Em seguida, Queturiene pegou o aparelho das mãos de Lucas e apagou as
mensagens comprometedoras. “Esquece isso, filho!”, ordenou a matriarca.
Toda a conversa entre Marzy e Lucas acabou no tablet de Anderson,
sincronizado com o celular dela. Um texto digitado por Flordelis falando dos
planos de assassinato foi escrito no bloco de notas do iPad e apagado na
sequência. Mesmo assim, ele viu. É incrível que Anderson tenha feito tão pouco
caso do complô diabólico para assassiná-lo. “Misael, estão querendo me matar.
Você acredita? A Marzy ofereceu 5 mil reais ao Lucas para me matar. Olha aqui
no meu iPad”, falou, com naturalidade.
Anderson acreditava que a “filha” queria eliminá-lo por ter sido expulsa de
casa após o furto dos 5 mil reais, que, por ironia, seriam usados para executá-lo.
“Pai, se liga! A Marzy não tem onde cair morta”, ponderou Wagner, escondendo
do religioso as tentativas de envenenamento ocorridas havia pouco. Anderson
reuniu toda a família em casa e falou que estava sabendo do plano sórdido. Disse
que tinha sido duro em alguns momentos, mas que faria um esforço para
melhorar como “pai” e marido. No final, teve abraço coletivo e até lágrimas. Mas
nada faria Queturiene mudar de ideia. Flordelis repassou 5 mil reais em dinheiro
vivo a Simone e ordenou que Rayane fosse aliciada para o crime. Hebreia deu o
dinheiro à “filha” e orientou: “Convida o Lucas mais uma vez. Ele já tem ficha
suja mesmo, já foi preso. Mais um crime nas costas dele não fará a menor
diferença”. Obediente, Rayane entrou em contado com o “tio”. “Você não quer
matar o pastor? Esse crápula tá fazendo um monte de coisa ilícita aqui em
Brasília. Tenho 5 mil reais para o serviço. Você pode contratar um matador por
2,5 mil e ficar com o restante”, sugeriu Rayane, reiterando que Lucas ficaria
também com a coleção de relógios. O jovem recusou mais uma vez. “Fala para
Mãe Flor que sou traficante, não assassino!”, retrucou. Rayane, então, contratou
pessoalmente um assassino de aluguel. No acerto, o criminoso receberia 5 mil
após eliminar o pastor na saída da igreja, simulando um latrocínio. Mas o plano
não deu certo, porque Anderson havia trocado de carro e o pistoleiro ficou
confuso com as coordenadas. Mesmo sem fazer o serviço, o bandido fez a
cobrança. Rayane se recusou a pagá-lo e foi ameaçada de morte. Flordelis, então,
deu 2 mil reais a André Luiz e mandou o “filho” pagar o bandido.
Depois de várias tentativas fracassadas, Flordelis encontrou uma solução
definitiva para se livrar do marido: ela teria repassado 8.500 reais a Flávio, filho
biológico, que foi com Lucas até Nova Holanda, complexo de favelas da Maré,
onde compraram uma pistola Bersa de 9 milímetros. O plano, dessa vez, era bem
simples. Flordelis teria que tirar Anderson de casa na noite de 16 de junho de
2019, um domingo. Na volta, ele seria alvejado. Queturiene usou como isca uma
comemoração atrasada de Dia dos Namorados, regada a muito sexo na praia. O
pastor se empolgou e os dois saíram num Honda esportivo. Segundo relatos da
assassina, atravessaram a ponte Rio-Niterói e chegaram a Copacabana.
Passearam pelo calçadão, comeram iscas de peixe num quiosque e se beijaram
ardentemente. Molharam os pés na água do mar e se beijaram com intensidade
mais uma vez. Queturiene estava com um vestido preto esvoaçante e Anderson
usava bermuda e camiseta branca. Na narrativa romântica da missionária, ele
teria perguntado: “Amor, já disse hoje que eu te amo?”. Flor respondeu “não”.
“Eu te amo!”, teria dito ele. “Não ouvi!”, devolveu a criminosa. Anderson subiu
numa cadeira em pleno calçadão e, de braços abertos como o Cristo Redentor,
gritou três vezes: “Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo!”. Em seguida, foram para
uma praia deserta e transaram no capô do carro. Nunca se saberá se essa
narrativa poética é verdadeira ou falsa. A polícia acredita que a história seja
fictícia, pois o trajeto do carro feito por eles não aparece nas câmeras de
segurança instaladas na Avenida Atlântica, por exemplo.
No caminho de volta para Niterói, Flor mandou uma mensagem a Marzy
pedindo que Flávio se preparasse para o bote. Por volta das 3h30 da madrugada,
Anderson, de 42 anos, entrou com o carro na garagem. A mulher desceu
rapidamente, para deixá-lo morrer sozinho. Ao lado da garagem, havia uma
porta de acesso ao closet da casa. Anderson entrou no compartimento e tirou a
roupa, ficando apenas de cueca. O pastor voltou ao carro e Flordelis seguiu para
o quarto do neto Ramon Oliveira, de 20 anos. Flávio foi até a garagem e disparou
quatro vezes contra o “pai”. Atingido a curta distância na cabeça – dentro do
ouvido direito – e no peito, ele morreu na hora. Depois de cair no chão, recebeu
mais dois tiros na genitália, sugerindo vingança pela série de abusos sexuais que
cometera ao longo dos anos. Como o calibre da pistola Bersa é transfixante, cada
disparo produziu mais de uma perfuração, totalizando mais de trinta orifícios no
corpo da vítima. Logo após os disparos, a casa festejou a morte do patriarca. “Ele
morreu! Ele morreu!”, gritavam e pulavam em círculos Simone, Flávio, André
Luiz e Flordelis. Ramon, filho de Simone com André Luiz, teria ido até a poça de
sangue ao lado do corpo e catado, com as mãos, as cápsulas do cartucho. “Sem
bala, não há crime”, comentou, ingênuo. André Luiz foi encarregado de ligar
para a emergência. Ao telefone, às 3h40 da madrugada, ele falou com o médico
socorrista Lucas Silva Camargo:
– Samu Rio, bom dia! Qual a sua urgência? – perguntou o médico.
– O nosso pai, seu moço. Ele foi baleado! – disse André Luiz, forçando o
choro.
– Desculpa, seu pai foi o quê? Baleado?
– Baleado!
– Nome do paciente?
– Anderson do Carmo.
– Mas ele está vivo?
– Não sei, moço!
– Então vai lá ver para mim, por favor!
– Não tenho coragem!
Nesse momento, André Luiz passou o telefone para o filho, Ramon, que
continuou a conversa com o atendente sem demonstrar qualquer emoção:
– Fala comigo! Pode falar. Meu nome é Ramon!
– Você é o que do Anderson?
– Ele é meu avô! Então, pelo que eu tava vendo ali, ele já foi. Já se passaram
mais de dez minutos. Então não adianta nem fazer ritual de ressuscitação –
explicou o filho de Simone.
– Mas ele está com o corpo quente, não tá?
– Sim!
– Está bem. Então vou pedir uma viatura para ele.
Enquanto a ambulância não chegava, o atendente do Samu instruiu Ramon a
fazer procedimentos de primeiros socorros. Ele se recusou, insistindo que o avô
já estava morto e que alguém tinha de retirar o cadáver de lá o mais rápido
possível, pois a garagem estava encharcada de sangue. O senso prático do neto da
vítima chamou a atenção do atendente do Samu. “Ele estava muito calmo”,
reiterou Lucas Silva Camargo, médico socorrista, em maio de 2022. A frieza de
Ramon ao anunciar a morte do avô tinha explicação num fato do passado.
Homossexual assumido, ele tinha 14 anos quando contou à mãe gostar de
meninos. Apavorada com o perfil violento de Anderson, Simone pediu ao filho
que escondesse o quanto pudesse sua orientação sexual, pois tanto o “pai” quanto
Flordelis pregavam na igreja que homossexualidade era coisa do Diabo. Num
culto na Cidade do Fogo com toda a família na plateia, incluindo Ramon,
Queturiene disse com toda a veemência do mundo: “Podem me prender. Eu vou
para a cadeia satisfeita. Mas vou continuar dizendo que prostituição e
homossexualidade não são de Deus! O meu Deus fez homem e mulher. O que
passar disso é procedência maligna. Me processem! Me prendam! Mas eu não
vou negar Jesus!”. No final, todo mundo bateu palma, menos Ramon e duas
garotas de programa que pernoitavam na casa de Niterói disfarçadas de “filhas”
de Mãe Flor. Quando Anderson descobriu que o neto era gay, para surpresa de
toda a grande família, ele não falou nada. No entanto, ele passou a assediá-lo.
Quando tinha 14 anos, Ramon estava tomando banho e Anderson entrou no
banheiro para urinar. O pastor pôs o pênis para fora da bermuda e ficou
observando o corpo nu do adolescente. Excitado, Anderson trancou a porta e se
masturbou enquanto encarava o neto. Na casa de Niterói, o melhor amigo de
Ramon era Danielzinho, o falso filho biológico de Flordelis e Anderson. Os dois
adolescentes tinham a mesma idade e andavam grudados. Não demorou muito
para surgirem burburinhos de um possível relacionamento homoafetivo entre
eles, já com 16 anos. “Você acha que eles estão se pegando?”, perguntou
Anderson a Flordelis. “Não! Imagina! O Danielzinho é heterossexual”,
respondeu a pastora. “Mas você sabe como são esses veados. Eles conseguem
desviar o nosso caminho”, ponderou Anderson, prometendo acabar com o
suposto caso entre os rapazes. Numa noite de domingo, Anderson passou em
casa com dois amigos pastores e levou Danielzinho e Ramon, dizendo que ia dar
uma volta. Num terreno abandonado, os três começaram uma sessão de tortura.
Armados, eles perguntavam se os meninos eram um casal. Chorando,
Danielzinho disse ao “pai” que gostava de meninas. Ramon ficou calado.
Anderson levou o “filho” de lá e deixou o “neto” com os dois pastores adultos,
que o violentaram sexualmente.
Anderson foi velado no Ministério Flordelis no dia 17 de junho de 2019. O
sepultamento ocorreu no mesmo dia, no Memorial Parque Nycteroy, em São
Gonçalo, região metropolitana do Rio. No funeral, Flordelis chorou feito viúva
de novela. Cínica, falou em latrocínio e disse que o marido morreu para salvar a
família. A polícia, porém, já desconfiava de uma execução, pois não havia sinais
de roubo na casa. O primeiro a ser capturado foi Lucas. Flávio foi detido ainda
no cemitério, por causa de um mandado de prisão referente aos espancamentos
contra a ex-mulher. Na cadeia, ele confessou ter matado o “pai” em razão dos
abusos sexuais cometidos contra Simone, sua irmã biológica, e outras mulheres
da casa. Adriano, o Pequeno, também foi preso por envolvimento no crime. Na
sequência, foram encarcerados André Luiz, Marzy, Carlos Ubiraci e Rayane.
Flordelis só não teve a prisão decretada porque tinha imunidade parlamentar,
mas ganhou uma tornozeleira eletrônica para ser localizada rapidamente pela
delegada Bárbara Lomba todas as vezes em que era intimada a depor no
inquérito.
A morte do pastor Anderson causou um racha na grande família. Wagner
“Misael” e Alexsander “Luan” passaram a colaborar com a Justiça. Flordelis
acusou “Misael” de ter sumido com todo o caixa 2 da igreja, avaliado num
montante de 6 milhões de reais. Esse dinheiro seria composto pela arrecadação
dos templos do Ministério Flordelis, cuja receita anual seria de 2 milhões de
reais.
Danielzinho saiu da casa logo após o crime e foi morar com “Misael”. No
bojo do inquérito que investigava a morte do “pai”, ele ficou em estado de
choque ao descobrir, aos 21 anos, que havia sido roubado da mãe biológica. Na
casa de Niterói restaram apenas os “filhos” que defendiam a inocência da
supermãe. Em 2022, o financiamento do imóvel ainda estava em nome dos
irmãos Werneck, que já haviam pedido para o que restou da centopeia humana
dar um jeito de assumir a dívida ou cair fora de lá.
Solta, Flordelis não parou de causar. Assumiu o relacionamento com o
produtor musical Allan Soares e gravava vídeos beijando o jovem à noite, na
praia. “Oi. Ai, gente! Estou no Recreio dos Bandeirantes com o meu amor. O
lugar é lindo como o Allanzinho”, declarou. Até então, esses vídeos eram
publicados em perfis sociais com acesso privado. No entanto, quando Flordelis
completou 60 anos, ele postou uma foto de rostinho colado com ela em seu
status do WhatsApp e a imagem saltou de lá para o noticiário. O romance de
Flordelis com o jovem irritou sua banca de advogados, liderada pela criminalista
Janira Rocha. Mas a advogada fez uma ponderação: “Esse romance é um
escândalo porque a sociedade é muito conservadora. Mas também é um alento
para a Flordelis, porque foi no novo amor que ela encontrou forças para
enfrentar o que estava por vir. Sem esse rapaz, ela teria sucumbido”, justificou.
Oficialmente, o romance de Mãe Flor com Allan começou em agosto de 2021,
dois anos após a morte do pastor Anderson. Com receio de perder sua amada
para uma sentença condenatória, o produtor musical levou Queturiene para o
alto do Monte Raiz da Serra para, junto com a grande família, fazer um apelo aos
céus. Flordelis vestiu-se de preto, pôs uma peruca ruiva e pregou lá do alto,
pedindo um milagre. “Receba o meu sacrifício. Estou subindo esse monte em
busca do Teu socorro. (...) Ainda que um Exército se levante contra mim, cuida
da minha família”. Na sequência, foi feito um pedido para Deus intervir no
processo de cassação do mandato de Flordelis. “Meu Deus, intervenha na
Câmara dos Deputados. Causa confusão no meio dos homens, Pai, para dar
vitória à Tua filha (...). Meu Deus, visita todos os tribunais de Justiça da Terra
agora neste Rio de Janeiro e neste país chamado Brasil. Não é amanhã, Jeová.
Também não é depois de amanhã, Jeová! É hoje! É agora! Eu não sou estrela! Eu
sou a Tua serva. Eu estava num beco de uma favela onde ninguém me enxergava.
Mas o Senhor me enxergou. Eu subo a este tribunal para pedir de novo: quero a
Tua presença na minha vida!”.
Ao mesmo tempo que afirmava amar Allan, Flordelis dizia sentir falta de
Anderson. Esse paradoxo ficou mais evidente no documentário sobre o crime –
Em nome da mãe, da HBO –, no qual a assassina deu diversas entrevistas e se
deixou filmar mediante pagamento de cachê. Numa das tomadas, ela surge no
cemitério agarrada à sepultura do pastor. Feito atriz mexicana, Flordelis se
esparramou sobre o túmulo do ex-marido que ela mesma mandou matar. No
auge da cena, tentou arrancar a lápide. “Metade minha está aqui com você. Eu
não tenho mais paz de tanto pensar nas coisas que descobri depois que você
morreu. [...] Vem me ajudar, amor. Eu não matei você! Diz que é mentira tudo o
que estão falando! Diz que é mentira, amor!” Depois da tomada, ela saiu
sorridente para jantar com o namorado.
Prestes a ser presa, Flordelis fazia cultos em seu ministério exibindo a
tornozeleira eletrônica e pregando inocência. “Puseram na minha perna o
acessório do Diabo. Acontece que Deus é mais e esse tipo de energia negativa não
bate em mim”, pregava, rindo. Orientada pelos primeiros advogados de defesa,
escreveu de próprio punho uma carta de três páginas passando-se pelo filho
Lucas e assumindo exclusivamente a autoria do crime. “Contratei pessoas para
matar o pastor a mando de Misael (Wagner) e Luan (Alexsander)”, diz um
trecho da correspondência. A ideia de Flor era incriminar os querubins
preferidos do religioso, que àquela altura das investigações já acusavam a
matriarca em depoimentos. Para fazer Lucas assumir tudo, Flor havia prometido
ao jovem traficante os melhores advogados do mundo para defendê-lo de todos
os crimes, um carro zero-quilômetro e uma passagem só de ida para os Estados
Unidos. Para a carta falsa chegar até ele, entrou em contato com Andrea Santos
Maia, de 45 anos, esposa do miliciano Marcos Siqueira, de 49, condenado a dois
séculos de prisão por ter participado da chacina da Baixada Fluminense, em
2005, com saldo de 29 mortes. O bandido e Lucas estavam na mesma cadeia; por
exercer a função de faxineiro, Marcos circulava em todas as galerias. Por 2 mil
reais – valor pago por Flordelis com transferência bancária e comprovante
enviado por celular –, Andrea repassou a carta para o marido, que a fez chegar
até Flávio para que a entregasse ao “irmão”. Lucas, então, copiou o texto, e a
mensagem com sua caligrafia fez o caminho de volta. Na sequência, a pastora
deu uma entrevista ao Fantástico dizendo que tinha recebido uma carta muito
triste, na qual o filho Lucas confessava tudo. “Meu coração está dilacerado”,
lamentou a impostora. O plano não deu certo: Flordelis, Andrea e o miliciano
foram descobertos e indiciados por fraude processual.
A família de Anderson, enquanto isso, parecia viver uma maldição. Três
meses após o assassinato, sua irmã, Michelle, morreu aos 39 anos vítima de uma
anemia provocada pelos efeitos devastadores da Aids. Em abril de 2020, a mãe,
Maria Edna, teve um infarto aos 65 anos, enquanto via televisão em casa. Chegou
a ser hospitalizada, mas não resistiu. O terceiro a partir foi o pai, Jorge de Souza,
que enfartou em dezembro de 2021. Tinha 81 anos e atuava como assistente de
acusação no processo movido contra Flordelis e seus filhos.
Quatro meses antes da morte do sogro, Flordelis teve o mandato cassado por
seus pares em 11 de agosto de 2021. Para ela perder o posto de deputada e,
consequentemente, sua imunidade parlamentar, seriam necessários 257 votos
(maioria absoluta) dos 513 deputados federais. No dia da votação, 437 votaram a
favor da perda de mandato, 7 foram contrários e 12 se abstiveram. Para tentar
salvar o cargo da mãe, Simone confessou na Câmara dos Deputados ter mandado
Flávio matar o pastor. “Fiz tudo sozinha. Minha mãe não tem nada a ver com
isso”, mentiu. Com a cassação, a prisão de Queturiene foi decretada pela Justiça
dois dias depois, na sexta-feira, 13 de agosto de 2021. Na cultura ocidental, tanto
o número 13 quanto a sexta-feira são associados ao azar por causa da morte de
Jesus Cristo – a última ceia aconteceu em uma quinta-feira, um dia antes da
crucificação, na presença dos 12 apóstolos, totalizando 13 pessoas na refeição.
Entre eles, porém, estava Judas, discípulo traidor, comparado por Flordelis a
Wagner “Misael”.
No intervalo de 12 horas entre a juíza Nearis dos Santos Arce assinar o
mandado de prisão da deputada federal cassada e sua captura, houve um ritual
de preparação, algo tão surreal quanto sua biografia desde a adoção do primeiro
“filho”. O ato inicial foi retirar a lace, um tipo de peruca (prótese) feita sobre uma
tela de microtule. Os fios eram colocados um a um sobre o tecido, o que permitia
um efeito semelhante ao couro cabeludo. Flor levou quase uma hora para retirar
o acessório e outra para alisar, à base de ferro quente, seus cabelos naturais. Em
seguida, uma esteticista aplicou botox em seu rosto para ela debutar no sistema
prisional com a pele esticada. O momento em que a profissional pintava seu
rosto com o lápis branco para saber onde aplicar a agulha soou irônico. “Faz cara
de raiva! Faz cara de nojo! Faz cara de medo! Faz cara de susto! Agora sorri
forte!”, pedia a esteticista. “Já que vou ser presa, entrarei na cadeia bonita”,
decidiu. Em seguida, chegaram um podólogo e uma manicure para tratar da
beleza das unhas. Quando finalizava os cabelos, já no início da noite, os policiais
bateram à sua porta com um oficial de Justiça e a ordem de prisão, Queturiene se
desesperou. “Acabou! Acabou! Acabou!”, gritava aos prantos e descontrolada
pela casa. Só sossegou depois de tomar três remédios: alprazolam, bromazepam e
diazepam.
Flor pediu um momento aos policiais para se recompor, pegou uma Bíblia e
dirigiu-se a seu quarto para gravar um vídeo de despedida. “Olá, povo de Deus.
Eu quero clamar por todos os cristãos do Brasil inteiro. Que orem pela minha
vida, que façam uma corrente poderosa de orações. Estou indo presa. Mas estou
indo de cabeça erguida, porque não fiz nada! Não cometi nenhum crime! Não
sou uma assassina! Não mandei matar o meu marido! Não sou mandante de
nenhum crime. Não sei por que Deus está permitindo que eu passe por tudo isso.
Para tudo, Nosso Senhor tem um propósito. [...] Clamem ao Altíssimo pela
minha vida! Vou presa com a força de Deus! Vamos embora, gente, porque eu
sei que no final disso tudo vai ter uma volta por cima!”.
Levada à penitenciária Talavera Bruce, Queturiene continuou aprontando
traquinagens enquanto aguardava pelo julgamento. Pastora das detentas, foi
alojada na cela das presidiárias grávidas. Começou a fazer cultos nas galerias,
atraindo fiéis. Dava autógrafos em Bíblias, cantava suas canções e trocava cartas
de amor com Allan Soares. Para manter visitas íntimas com o rapaz, tentou se
casar com ele. Mas sua advogada, Janira Rocha, desaconselhou o enlace para não
prejudicar o julgamento. “Você é acusada de matar seu marido e quer se casar
com outro. O que você acha que a opinião pública vai pensar?”, alertou. “Mas é
ele quem quer”, insistiu Flor. Na cadeia, recebia a visita da “filha” Isabel, da mãe
Carmozina e da irmã Laudicéia, que pedia dinheiro em todos os encontros. “Bem
que eu te avisei que seu destino seria trágico, lembra? Não há oração capaz de te
tirar desse inferno. E suas desgraças estão só começando”, previu Carmozina.
Quando Flordelis chegou à penitenciária, quem mandava e desmandava lá
dentro era a bandida conhecida como dona Idalina Cabeluda, de 75 anos,
condenada a um século de prisão por uma série de crimes, como tráfico, assaltos
a bancos e latrocínios. Ela estava na Talavera Bruce havia 20 anos e era respeitada
porque tinha cinco filhos ligados ao Comando Vermelho e a milicianos. Num
domingo de sol, Flordelis passeava pelo pátio da penitenciária quando viu de
longe sua arquirrival dos tempos do Jacarezinho. Sandra Sapatão fora visitar uma
colega chamada Jerusa Rabiola. Para evitar confusão, Flor não se aproximou da
inimiga, que estava em liberdade. A traficante cochichou com sua parceira ao
mesmo tempo que encarava Queturiene de forma sinistra. À noite, Flordelis fez
um culto na sua galeria, que lotou de criminosas. Entre elas estava um trio de
traficantes e a tal Jerusa Rabiola. Quando as detentas fecharam os olhos para
orar, a parceira de Sandra Sapatão se aproximou de Flordelis e deu um empurrão
nela. O trio de traficantes, então, deu uma rasteira em Jerusa e atacou-a com
chutes e socos até ela desmaiar. Como punição, as três agressoras foram para o
chapão, como é conhecida a solitária. No dia seguinte, Flordelis soube que
Idalina Cabeluda estava acamada por causa de uma trombose. A pastora se
ofereceu para liderar uma roda de orações que curasse a criminosa. Com
autorização da diretoria da penitenciária, passou 24 horas fazendo o ritual com
outras mulheres do bando da líder. Ao final desse período, um milagre
aconteceu: Idalina se curou e todos os créditos foram atribuídos a Queturiene.
Com isso, Flordelis passou a ser protegida da bandida e por todo o Comando
Vermelho. “Ai de quem encostar um dedo na bruxa do Talavera Bruce”, avisou
Idalina. Aconselhada pela direção da penitenciária, Flordelis estreitou laços com
Jerusa e as duas ficaram amigas. Quando o trio de traficantes saiu do chapão e
viu Flordelis com a cabeça no colo da ex-rival, houve uma ameaça de morte
concreta: “Sua crente filha da puta! Nós fomos parar na solitária para te proteger
dessa ordinária e agora você está de conversinha com ela. À noite, quando as
luzes se apagarem, seu CPF será cancelado!”. Enquanto o trio ameaçava
Queturiene, Dona Idalina se aproximou e deu um recado curto e grosso. “Se
vocês tocarem num fio de cabelo da Flor, mando um ‘salve’ para a rua e amanhã
a família das três estará no necrotério, suas piranhas de cadeia”, avisou. O trio
escafedeu-se de perto de Mãe Flor, a protegida da líder.
Com poder na cadeia, Flordelis passou a ter regalias. Morta de saudade do
namorado, ela pegou um celular emprestado de uma bandida e ligou para Allan.
Flagrada, foi punida: com aval de Idalina, as detentas a espancaram pelo vacilo.
“Dá uma sova para ela aprender a ser discreta”, justificou a líder. Em outra
ocasião, ela foi pega com 70 reais escondidos na genitália. Seus advogados
disseram que o dinheiro serviria para pagar uma extorsão da qual Florzinha era
vítima. Para a pastora não ficar sem proteção dentro da Talavera Bruce, seus
advogados tiveram de costurar um acordo com o Comando Vermelho.
Deprimida na prisão, ela mandou uma carta de amor para Allan dizendo que
a pior coisa da cadeia era a abstinência sexual. Como eles não se casaram, não
podiam ter visitas íntimas. Allan respondeu para a amada com um texto cheio de
esperança: “Você transformou a minha vida. És uma mulher forte, guerreira,
incrível e por quem eu me apaixono todos os dias. Estamos há praticamente 1
ano e 6 meses sem convívio. Mas como é bom poder, depois de Deus, cuidar de
você mesmo de longe. Essa luta não vai nos fazer parar, vai passar! Eu te desejo
vida, saúde, muita saúde, e que Deus continue te abençoando e te sustentando. A
volta por cima vai chegar e está próxima. Deus vai nos surpreender. Obrigado
por ser a mulher da minha vida. E mesmo com todas as nossas diferenças, posso
dizer que eu te amo!”. Meses depois, o produtor musical fez uma adaptação dessa
carta e postou em suas redes sociais como mensagem de aniversário pelos 62
anos da namorada. Como retribuição, Flordelis pediu autorização ao sistema
penitenciário do Rio de Janeiro para se casar oficialmente com ele. O primeiro
passo nesse sentido foi excluir da sua carteira de identidade o sobrenome do
marido, que ela mesma mandou matar. O segundo passo foi selar a união estável.
No seio familiar de Flordelis, o namoro dela com Allan divide opiniões. O
rapaz se apropriou das redes sociais da pastora tão logo ela foi presa, gerando
desconfianças em suas intenções. Desde que começou a namorá-la, Allan se
esforça para ganhar seguidores nas redes sociais e ganhar fama. Seu maior sonho
depois de se casar com Flordelis é se apropriar dos direitos autorais das
gravações da cantora. Tanto que ele já procurou por um advogado para saber o
que, de fato, ele ganha ao se casar com Queturiene.
* * *
C
umprindo pena em regime fechado, Flordelis está atirando para todos os
lados na tentativa de deixar o cárcere. Às vezes, diz que quer um novo
julgamento porque houve inúmeras nulidades nos rituais de condenação.
Entre elas estaria a apresentação, pela acusação, de um documento que não
estaria no processo, o que dificultou a sua defesa. Outra nulidade seria a menção
ao silêncio dos acusados – segundo o Código do Processo Penal, isso “não
poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. Com base nesse argumento, seus
advogados, liderados por Janira Rocha e Rodrigo Faucz, pedem um novo
julgamento para a assassina. Como esse pedido de anulação do júri estava em
análise, os defensores da pastora entraram com um pedido de liberdade
provisória em julho de 2023.
Outra tentativa de tirar Flordelis do xadrez é fazer a Justiça crer que ela pode
morrer na cadeia vítima de arritmia cardíaca. Por causa da suposta doença, seus
advogados querem que a pastora cumpra pena em casa, como ocorre com outro
líder religioso, João de Deus. Na contramão dessas intenções, Flordelis pediu à
administração penitenciária do Rio de Janeiro para se casar dentro da cadeia com
o produtor musical Allan Soares. “Não vivo sem ele”, justificou.
No dia 30 de março de 2023, Flordelis deu sua primeira entrevista depois de
condenada. De dentro da cadeia, Mãe Flor jurou inocência e clamou aos céus por
um novo julgamento e liberdade. Disse ter medo de morrer no presídio, onde
alterna a rotina cantando louvores e lavando roupas sujas de outras detentas.
Também falou do sonho em se casar com Allan e de pôr a vida nos trilhos
novamente. “Em liberdade, vou consertar os erros que cometi na igreja e na
vida”, prometeu. Na época, a viúva dividia a cela de 10 metros quadrados com
outras seis detentas na Penitenciária Talavera Bruce, uma das maiores do Rio de
Janeiro. Depois da sentença, passou a ter a companhia da filha Simone na cadeia.
Prisioneira, Flordelis alternava euforia com extrema tristeza. Ela tentava
convencer a Justiça de que está doente, para poder cumprir a pena em casa:
5 – Por que não confessa logo que mandou matar o seu marido
para, quem sabe, ter uma pena menor num possível novo
julgamento?
Jamais confessarei o que não fiz! Não matei Anderson do Carmo!
Nem mandei matá-lo! Prefiro ficar na prisão por 50 anos sendo
inocente do que bem menos tempo confessando o que não fiz.
Campbell, Ullisses
Elize Matsunaga: a mulher que esquartejou o marido / Ullisses Campbell. - 2. ed. - São Paulo: Matrix, 2023.
400 p.; 23 cm. (Mulheres assassinas)
ISBN 978-65-5616-360-4
ISBN 978-65-5616-357-4 (coleção)
1. Matsunaga, Elize, 1981-. 2. Enfermeiras - Biografia - Brasil. 3. Criminosas - Brasil - Biografia. 4.
Matsunaga, Marcos, 1970-2012 - Assassinato. I. Título. II. Série.
23-85396
CDD: 364.1523092
CDU: 929:343.611
APRESENTAÇÃO
CA PÍ TU LO 1
A ESQUARTEJADORA
CA PÍ TU LO 2
VÊNUS NUMA CONCHA
CA PÍ TU LO 3
É LUXO SÓ!
CA PÍ TU LO 4
A VOLÚPIA DA MULHER DISCRETA
CA PÍ TU LO 5
AS VITRINES
CA PÍ TU LO 6
A FLECHA VENENOSA DO CIÚME
CA PÍ TU LO 7
QUER PAGAR QUANTO?
CA PÍ TU LO 8
ONDE NASCE O PERDÃO
CA PÍ TU LO 9
A MORTE PEDE PASSAGEM
CA PÍ TU LO 10
PEDAÇOS DA VIDA
CA PÍ TU LO 11
SOM DE ASSOMBRAÇÃO
A VIDA EM PRETO E BRANCO
Para a minha mãe, Doraci Campbell, meu pai, Evandro
Campbell (in memoriam), e aos meus irmãos Marcello,
Wellington e Michelle, e sobrinhos.
Gratulação eterna aos meus guardiões jurídicos
Alexandre Fidalgo
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Thiago Maragno (praticante de caça de javali)
VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade
Uma salva de palmas
A
maioria das mil almas aprisionadas nas duas penitenciárias femininas de
Tremembé, no interior de São Paulo, matou com crueldade integrantes da
própria família. Com a bênção da Lei de Execuções Penais, cerca de 200
mulheres do regime semiaberto nessas unidades deixam a cadeia cinco vezes por
ano. Elas ganham a rua para andar por sete dias em datas festivas como
Natal/Ano Novo, Páscoa, Dia dos Pais, Dia das Mães e Dia da Criança. Em 10 de
outubro de 2019, Elize Araújo Kitano Matsunaga saiu pela primeira vez para dar
uma volta, depois de ficar sete anos encarcerada. Ao passar pelo portão de chapas
metálicas do presídio, às 8h23, ela foi aplaudida por colegas de cela e populares.
A cena foi emocionante. Uma bandida gritou: “Vai, Elize! Vai cuidar da vida, que
você merece!”. A partir dessa salva de palmas, decidi esquadrinhar a vida da
mulher que matou e esquartejou o marido.
A pesquisa começou nas 3.500 páginas do seu processo penal e seguiu até
Chopinzinho, onde ela nasceu e foi estuprada pelo padrasto aos 15 anos. Em
Curitiba, estudou, trabalhou e se prostituiu nas horas vagas. Ao chegar a São
Paulo, casou-se e tornou-se criminosa. Também mergulhei nas quase 3 mil
páginas do seu processo de execução penal, um material precioso porque traça
minuciosamente o perfil psicológico da assassina. Toda a pesquisa durou dois
anos e o resultado dela está nas páginas seguintes.
Batalhadora, Elize tem certificado em contabilidade, técnica em enfermagem,
leiloeira e diploma de bacharel em Direito. Ambiciosa, não se contentou com o
salário de profissional da área da saúde quando atuava em um dos maiores
hospitais privados de Curitiba. Nem sossegou no emprego de assessora
parlamentar na Assembleia Legislativa do Paraná. Subiu na vida ao se conectar
com o empresário Marcos Matsunaga, um predador sexual extremamente
violento. Excêntricos, amantes de armas e exímios caçadores, Elize e Marcos
foram feitos um para o outro. A simbiose entre os dois era tão poderosa quanto
explosiva. Impossível aquela história de amor não acabar em tragédia.
Elize matou o marido no dia 19 de maio de 2012 com um tiro certeiro na
cabeça disparado num piscar de olhos, como ela mesma definiu. Passou seis
horas esquartejando a vítima em sete partes usando uma faca de cozinha. Em
seguida, distribuiu o corpo cortado em três malas e fez a desova na mata. Na
sequência, visitou os sogros e contou, vertendo lágrimas, que Marcos havia
fugido com uma amante. Ainda se deu ao trabalho de enviar um e-mail se
passando pelo marido morto, dizendo para ninguém ficar preocupado porque
estava tudo bem. Com esse enredo de filme de terror, o crime tornou-se um dos
mais emblemáticos do país.
Alguns personagens do livro, principalmente prostitutas e cafetinas, tiveram
o nome trocado porque impuseram o uso de codinome como condição para
colaborar com entrevistas e depoimentos. Amigos de Marcos e Elize também
pediram anonimato para fornecer informações importantes. Com base nesses
depoimentos, foi possível reconstituir momentos privados entre Elize e Marcos e
boa parte dos diálogos contidos no livro. Elize não foi ouvida porque não quis
falar. Por outro lado, sua versão para o crime, aqui apresentada, foi extraída dos
seus depoimentos à polícia e à Justiça.
Existe uma pergunta tão importante quanto nebulosa nesse enredo. Afinal,
por que Elize matou o marido? Ela sempre sustentou que foi em nome da filha,
pois Marcos ameaçava internar a esposa num hospício e temperava o prenúncio
dizendo que juiz nenhum daria a guarda da menina a uma prostituta louca e sem
dinheiro. No entanto, amigos e parentes do empresário asseguraram que ele
nunca cogitou ficar com a criança após uma possível separação. A própria Elize
narrou num e-mail que Marcos se afastou da filha quando o casamento começou
a desandar. Solteiro, o empresário levava uma vida mundana, promíscua,
perigosa e libertária, ou seja, totalmente incompatível com o perfil de pai. Ele
também nunca fez questão da guarda da filha do seu primeiro casamento. No
entanto, na narrativa deste livro, a versão de Elize – “matei para não ficar longe
da minha filha” – se sobrepôs porque essa tese foi levada ao Tribunal do Júri e é
sustentada por ela de forma peremptória até hoje.
Elize sempre foi defendida nas ações penais e cíveis por dois ex-professores,
Luciano e Juliana Santoro, casal de advogados talentosos e combativos. Segundo
o defensor, sua cliente matou o marido num rompante e o esquartejou para se
livrar do corpo. É uma explicação muito simples para algo tão brutal. Cinco
psicólogas analisaram a mente de Elize em 2012, 2017 e 2018. Três profissionais
concluíram que ela é psicopata. O diagnóstico decorre principalmente do seu
comportamento glacial nos 17 dias decorridos entre matar e esquartejar o
marido e confessar o crime. Outras duas psicólogas refutaram o diagnóstico de
psicopatia. Em comum, as especialistas encontraram nela traços de narcisismo,
imaturidade, autoestima baixa e estrutura psíquica infantil.
O psiquiatra forense Guido Palomba, uma das maiores autoridades do país
em mentes criminosas, também traçou o perfil de Elize. Em seu relatório,
escreveu: “Para agir dessa forma, obrigatoriamente a pessoa tem que ser fria. Em
outras palavras, sem ressonância afetiva com o próximo, uma vez que a ação de
esquartejamento pressupõe a ausência de sentimentos altruístas. Isso porque o
ato em si é deveras violento e chocante. Se Elize tivesse um mínimo de
sentimento superior de piedade e de compaixão, próprios do altruísta, o
esquartejamento não chegaria a ocorrer. Se chegasse, seria a duras penas para ela,
pois o seu psiquismo pagaria um preço muito alto. Nenhum ser humano
mentalmente equilibrado deixa de se chocar ao ver uma carnificina”.
No dia 30 de maio de 2022, Elize ganhou liberdade condicional e foi
trabalhar como motorista de aplicativo e fiscal de obras. Os detalhes da sua vida
fora da cadeia, marcados por uma série de perrengues que, por pouco, não a
levaram de volta para a penitenciária, estão na atualização desta obra. Para
entender o que leva uma mulher a dar cabo da vida do marido, a nova edição traz
também outras histórias de esposas que mataram seus cônjuges, suas motivações
e arrependimentos – ou a falta deles.
Quando estava engrenando no ramo da prostituição, em 1999, Elize era tão
carente de afeto que costumava se apaixonar perdidamente pelos clientes. Nessa
época, uma cafetina experiente lhe fez um alerta: “Você nunca vai mudar de vida
se envolvendo com fregueses. Sabe por quê? Porque eles vão te ver eternamente
como prostituta”. Quando subiu ao altar com um cliente, em 2009, Elize
concluiu que a cafetina estava enganada. Mas ela não estava. No ano em que foi
assassinado pela esposa, Marcos comentava com amigos: “Me casei com uma
puta e minha relação com ela é um programa sem fim”. Ele também estava
enganado. O programa teve fim. Marcos está morto. Elize está fora da cadeia
cuidando da vida.
Às vezes, a morte merece ser festejada
S
ilêncio absoluto no meio da noite. De olhos bem abertos, Elize Araújo
Kitano Matsunaga, então com 29 anos, estava disposta a mostrar do que
era capaz. Emocionalmente fria, não sentia nada. Nem medo, nem amor,
nem compaixão, nem dor. Seu inimigo poderia entrar em cena a qualquer
momento, e ela estava determinada a matá-lo. Aquela morte tinha sido planejada
havia meses. No entanto, faltava uma janela de oportunidade. Não seria uma
tarefa fácil. Caucasiana, magra, cabelos soltos, 1,65 m de altura, Elize sabia que o
seu algoz era forte, grosseiro, desagradável, furioso e bom de briga. O corpo dele
era atarracado, com mais de 100 quilos de ossos, músculos e muita estupidez.
Estrangeiro, tinha cabeça grande, pernas curtas e olhos miúdos.
Elize vestia calça de jeans escuro, blusa de malha de algodão marrom terroso
e, por cima, uma jaqueta da mesma cor, porém em tom mais claro. Nos pés,
botas rústicas de couro cru. Nas mãos, um rifle semiautomático CZ 512 de quase
três quilos, calibre .22, coronha de madeira e cano forjado. Essa carabina é
famosa pelo fácil controle e excepcional precisão de tiro. Avaliada em 13 mil
reais em 2012, a arma foi importada legalmente dos Estados Unidos e registrada
em nome dela. Foi um presente do marido, Marcos Kitano Matsunaga, de 40
anos na época.
A calmaria da cena foi rompida bruscamente, quando o antagonista surgiu
por trás dela de forma inesperada. Elize levou um susto, virou-se e olhou
diretamente em seus olhos. Destemido, o adversário avançou para atacá-la. Nesse
momento, a adrenalina reduziu a atividade cerebral de Elize nas estruturas
relacionadas às emoções e aumentou nas regiões da cognição, dando a ela uma
capacidade maior de raciocínio. Em fração de segundos, ergueu a arma tão
apressadamente que nem deu tempo de ajustar a poderosa mira de ferro com
lente e fibra óptica. Fixou o alvo a olho nu. O rifle semiautomático tinha
capacidade para dez tiros seguidos, mas Elize disparou apenas uma vez. Nas
inúmeras aulas no Clube Calibre de Tiro, em São Paulo, ela aprendeu que bala
eficiente é aquela que acerta órgãos vitais, como coração, pulmão ou rins –
matando de forma instantânea. Naquela situação, porém, ela preferiu acertar a
cabeça.
O projétil entrou pela região da fronte anterolateral da vítima, deixando uma
queimadura na pele conhecida como zona de tatuagem. Percorreu o crânio
cônico numa trajetória de cima para baixo, causando traumatismo
cranioencefálico. A bala ficou alojada na linha mediana, bem próximo da união
dos hemisférios cerebrais. O sujeito foi ao chão, debatendo-se e grunhindo de
forma estridente. Agonizante, começou a se afogar com o próprio sangue, o que
os médicos legistas denominaram de broncoaspiração sanguínea, ou seja,
quando o sangue é aspirado e vai parar nos pulmões.
Gélida, Elize largou o rifle e se ajoelhou para se aproximar do corpo imóvel,
que vertia uma torrente volumosa de sangue pelo buraco na testa e pelo canto da
boca. A atiradora ficou estática, apreciando a vida se dissipar pelos olhos da
vítima. Chegou a comemorar o sucesso da execução com um grito abafado. Ao se
levantar, ela levou outro susto. A criatura passou a estrebuchar no chão, como se
levasse uma descarga elétrica. Elize, então, pegou na mochila uma faca japonesa
da marca Deba, cuja lâmina mede 21 centímetros, e perfurou o pescoço maciço
do seu desafeto. O golpe acertou em cheio as artérias carótidas primitivas da
esquerda, responsáveis por irrigar o cérebro, causando um derramamento ainda
maior de sangue. Aproveitando a faca encravada, Elize tentou decapitá-lo. Teve
dificuldades. A arma branca não foi feita para partir ossos. Todas as vezes que era
mergulhada no corpo, a lâmina encontrava um obstáculo e entortava. É difícil
acreditar: aquele ser ainda respirava ofegante, agarrado a um fiapo de esperança
de sobreviver.
Para matar com as próprias mãos, são necessários três elementos básicos:
desejo, coragem e força física. Elize tinha só os dois primeiros. Mas seguiu em
frente. Com a mesma faca, plenamente decidida, conseguiu concluir a degola
cortando primeiramente a pele e os músculos do pescoço, passando o
instrumento afiado de aço inoxidável lentamente pelos tendões que unem os
ossos aos músculos. O desmembramento da cabeça ocorreu na última vértebra
cervical. A habilidade com objetos cortantes era fruto das aulas práticas no curso
de técnica de enfermagem, e principalmente observando médicos cortando
pacientes no centro cirúrgico do Hospital Nossa Senhora das Graças, em
Curitiba, onde trabalhou entre outubro de 2001 e abril de 2003.
Como não podia deixar o corpo estendido no chão, Elize decidiu esquartejá-
lo em sete pedaços. No entanto, não encontrou forças para seccioná-lo sozinha
usando apenas uma faca simples. Pediu ajuda a um cúmplice, que entrou em
ação com uma serra cirúrgica portátil com lâmina de aço-carbono de 40
centímetros. Com o acessório alimentado por uma bateria, o seu parceiro cortou
os ossos com precisão e facilidade de açougueiro. O ruído agudo da serra e o
espalhamento de sangue davam à cena um tom macabro. Ela continuou os
trabalhos usando somente a lâmina afiada. Os cortes de Elize eram uniformes e
limpos. Os dele não tinham padrão. Contudo, no final da carnificina, os pedaços
da vítima estavam limpos e organizados. As peças eram proporcionais, como se
eles tivessem usado uma régua. Parece loucura, mas aquele corpo todo fatiado
contava uma história de amor. Os dois, juntos, embrulharam os membros do
cadáver em sacos plásticos biodegradáveis de lixo.
O que parece a narrativa de um crime extraído das páginas policiais de um
jornal popular é, na verdade, uma caçada implacável. Na vastidão da noite, Elize
havia matado um javali selvagem nas matas de araucárias do município de Nova
Aliança do Ivaí, no nordeste do Paraná, em novembro de 2010. Após abatê-lo,
ela esquartejou e desossou o animal com a ajuda do marido, Marcos Matsunaga.
O animal desmembrado foi carregado num Jeep para o hotel-fazenda onde
estavam hospedados. Virou churrasco no dia seguinte.
O javali (Sus scrofa) morto pelo casal Matsunaga, como todos os outros que
vivem no Brasil, é uma espécie exótica nativa da Europa, Ásia e norte da África.
As primeiras cabeças chegaram por aqui há mais de 50 anos para criação em
cativeiro. Na década de 1990, porém, parte dos criadores soltou esses porcos
selvagens na natureza. Sem predadores naturais, multiplicaram-se criando uma
superpopulação. Em bando, eles destroem manguezais, nascentes de rios e
avançam sobre colheitas, tornando-se o terror do agronegócio. Uma manada de
100 animais destrói uma plantação de milho em menos de uma hora. Como os
javalis transformaram-se em praga agrícola, o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão ligado ao
Ministério do Meio Ambiente, autorizou a sua caça no Brasil mediante uma série
de regras.
Um ano depois de aniquilar o javali no interior do Paraná, Marcos e Elize
fizeram um curso avançado para aprender a matar alces no Canadá. Uma das
técnicas aperfeiçoadas foi justamente o esquartejamento de animal em campo. O
casal conseguiu licença para viajar com armas de fogo e perseguir bichos
selvagens na província de British Columbia, no extremo oeste do Canadá. O local
é marcado pela paisagem exuberante, composta por uma cadeia de montanhas
rochosas, rios, cachoeiras, fiordes, lagos e uma bela costa do Oceano Pacífico. E
também pela facilidade com que se encontram alces na floresta. Na época do
acasalamento, eles chegam a ir, inocentemente, ao encontro dos caçadores. Lá, os
bichos abatidos não poderiam ficar no meio do mato por questões sanitárias. A
regra era simples: matou? Esquarteja e embala para viagem.
Na primavera de 2011, época da reprodução dos animais, Marcos e Elize
partiram para uma jornada destemida de caça. Fizeram safári de carro e lancha
por duas semanas. Ele matou com um fuzil de caça um alce enorme, cuja galhada
em forma de taça media dois metros de comprimento. Elize não saiu do mato de
mãos abanando. Conseguiu abater um faisão de dois quilos e meio com a mesma
artilharia usada para matar o javali no interior do Paraná. Habilidosa com
lâminas, coube a ela esquartejar o cervo do marido. Depois de algumas aulas
particulares com um caçador experiente, ela corrigiu no Canadá um erro
cometido ao esquartejar o javali no Brasil. Nunca se deve dilacerar o animal logo
após a execução. O ideal é esperar algumas horas até o sangue coagular. Essa
espera, porém, não pode ser muito longa, principalmente em ambiente frio, pois
a carne enrijece rapidamente, dificultando o corte manual. Quando desmembrou
o alce na mata canadense, Elize já era uma exímia atiradora e esquartejadora. Ela
não tinha dó dos bichos mortos e mutilados pelas suas mãos. “Adoro ver o
animal me encarando com olhar triste antes de acertá-lo com um tiro”, dizia ela.
Definitivamente, caçar não é apenas um esporte no qual o homem se arma e
persegue um animal na floresta para matá-lo a sangue frio. Essa atividade tem a
ver diretamente com o que somos capazes de fazer com a vida dos outros.
Chopinzinho, Paraná
* * *
A
enfermeira Estella Arnault, de 27 anos, abriu os olhos às 11 horas, mas não
quis largar o aconchego das cobertas. Trabalhou por 12 horas
ininterruptas no dia anterior no Hospital Nossa Senhora das Graças, um
dos maiores da rede particular de Curitiba. Estava acabada. Às 14 horas, tinha de
fazer um atendimento no Nomaa Hotel, um dos mais luxuosos da cidade, com
diária acima de 500 reais. Estella é uma alcunha. Seu verdadeiro nome ela não
revela nem pendurada no pau de arara.
Natural de Horizontina, Rio Grande do Sul, a enfermeira era uma
personagem muito bonita. Sarcástica, altura mediana e cabelos castanho-claros
longos, volumosos e sempre esvoaçantes. Tinha o hábito de se maquiar para o
café da manhã e assim ficava até a hora de dormir, retocando o pó do rosto e o
batom ao longo do dia. Herdou do avô materno o costume de ler. Preferia
romances clássicos. Seus prediletos eram O amor nos tempos do cólera, de Gabriel
García Márquez; e Crime e castigo, de Dostoiévski. Cultivava um defeito
adquirido dos pais por osmose: falava muito palavrão. Porém, o vocabulário
chulo não saía da boca de Estella de forma agressiva. Pelo contrário, era até
engraçado e charmoso quando misturado ao sotaque gaúcho carregado. Seus
colegas de trabalho e até os pacientes do hospital já estavam acostumados com a
sua boca-suja.
Independente e carismática, Estella morava sozinha num flat de luxo na
Visconde de Rio Branco, no centro de Curitiba. A soma do aluguel, condomínio
e IPTU chegava a 5.800 reais mensais. Orgulhava-se de manter um bom padrão
de vida sem precisar pedir um centavo aos pais. Ela também dava assistência em
domicílio a pacientes. Era um tratamento VIP. Cada visita para aplicação de
injeção, curativo e retirada de pontos custava 600 reais. A maioria dos pacientes
da enfermeira era formada por idosos ricos.
Empreendedora, Estella era profissional da saúde e do sexo. Nesse dia em que
acordou tarde, ela desceu para se exercitar na academia do condomínio com um
personal trainer, almoçou rapidamente uma salada com filé-mignon, vestiu o
uniforme branco, pôs um sobretudo e seguiu para o compromisso no hotel.
Saciou os desejos de um cliente por duas horas e recebeu 800 reais em cash.
Em Curitiba, Elize Araújo tinha 18 anos em 2000. Nessa época, era aluna do
curso profissionalizante da Escola Vicentina Técnica de Enfermagem Catarina
Labouré, uma entidade religiosa mantida pela Província Brasileira da
Congregação das Irmãs Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. A maioria
das alunas era pobre. A escola administrada por freiras mantinha um alojamento
com diversos beliches. Cada cama saía a 120 reais mensais. Elize dormia num
quarto amplo com outras seis estudantes. Por causa das boas notas, a jovem
ganhou das freiras uma indicação para estagiar como técnica de enfermagem no
Hospital Nossa Senhora das Graças. Sobre sua atividade no hospital, Elize falou
em 2016: “Eu trabalhava no centro cirúrgico. Não participava [diretamente] de
cirurgias porque essa não era a minha função. A minha tarefa era receber o
paciente, relatar como ele chegou, se estava bem, se não estava, se estava sedado
ou não [...] Eu presenciava [todas] as incisões [feitas nos pacientes]”. Nesse
centro cirúrgico, a vida de Elize cruzou com a de Estella. As duas participavam
de um procedimento vascular realizado por uma equipe médica em um paciente
de 48 anos.
No início, o linguajar grosseiro da gaúcha chocou Elize. Mas rapidamente a
paranaense se acostumou. Após um plantão no hospital, as duas saíram no final
da tarde para tomar um drinque. No estacionamento, o queixo de Elize foi ao
chão. Estella tinha um Jeep Cherokee avaliado em 300 mil reais na época.
Enquanto comiam, falavam da vida. Elize fez um resumo da sua biografia: era
pobre, família desestruturada, pai alcoólatra, mãe louca, e se referiu à tia Rose
chamando-a de anjo. Também falou do coração bondoso da avó Sebastiana. Para
não chocar a nova amiga, evitou contar a história dos abusos cometidos pelo
padrasto e omitiu a passagem envolvendo a prostituição nas estradas do Sul.
Em pouco tempo, as duas tornaram-se amigas íntimas. A enfermeira
convidou Elize para tomar um vinho em seu flat, e o queixo dela caiu pela
segunda vez. O apartamento era incrível. Tinha piso de porcelanato, bancadas de
granito preto e um sofá escuro enorme de couro bovino superconfortável. Estella
abriu uma garrafa de vinho San Marzano Passito e o serviu em taças de cristal. Já
eram íntimas e estavam levemente bêbadas quando Elize resolveu abrir os seus
segredos de família. Falou aos prantos do pai ausente que apareceu em casa só
para levar a TV, da violência sexual cometida pelo padrasto, pontuando inclusive
a atitude negligente da mãe, e da experiência traumática em vender o corpo pelos
postos de gasolina aos 15 anos. Finalizou com a história da mãe se humilhando
em busca de remissão na rodoviária:
– Você acredita que ela teve coragem de pedir perdão na rodoviária? –
indignou-se Elize.
– Barbaridade! Tu perdoou, caralho?
– Não consegui!
Para Elize, aceitar o perdão de Dilta naquele momento era uma provação
ainda fora do seu alcance. Enquanto sua mãe estava ajoelhada na plataforma de
embarque da rodoviária de Chopinzinho, implorando por uma indulgência, Elize
bateu na porta do ônibus já em início de manobra para partir. A jovem suplicou
ao motorista para entrar. Ele parou o coletivo e Elize embarcou, deixando a mãe
e Chopinzinho para trás.
Não faltavam motivos para Dilta ter sido desprezada pela filha na rodoviária.
Os abusos sexuais sofridos por Elize, o desdém da mãe num dos momentos em
que ela mais precisava de apoio e a vida aviltante de prostituta na adolescência
deixaram sequelas psicológicas que assombravam as noites de Elize. Sozinha no
mundo, ela passou a ter distúrbios do sono, depressão, sentimento de degradação
e perda da autoestima. Carregava consigo culpa, ansiedade e temor de andar ou
ficar só. Elize tinha medo de pessoas estranhas e pesadelos repetidos
recapitulando a violência sexual, além de síndrome do pânico e problemas com
relacionamentos íntimos. A jovem passou a nutrir um sentimento de
despersonalização e começou a desenvolver lentamente uma segunda
personalidade para se proteger. Essas sequelas começaram ainda em
Chopinzinho e se acentuaram em Curitiba.
Também egressa de um lar disfuncional, Estella sabia que alguns boletos
sentimentais envolvendo família não eram quitados facilmente. Aos 14 anos,
tinha beleza de modelo de capa de revista. Foi descoberta por um “olheiro” que
prometeu catapultá-la dos cafundós do Rio Grande do Sul para as passarelas de
Milão, Paris e Nova York de forma meteórica, feito uma Gisele Bündchen, sua
conterrânea. Conseguiu se emancipar aos 15 e se mudou para São Paulo. Estella
fez vários ensaios fotográficos, uns testes aqui, outros ali e acabou nas páginas do
book rosa de uma grande agência de modelos localizada no bairro dos Jardins,
um dos mais nobres da capital paulista. Um primo agropecuarista de Estella, de
28 anos, morador do município de Santa Rosa (RS), foi a São Paulo assistir a uma
corrida de Fórmula 1 em Interlagos. No camarote do autódromo, recebeu de um
promoter a oferta de sair com mulheres de luxo. Ao consultar o catálogo com
fotos de modelos nuas em poses sensuais, o jovem descobriu que a sua prima
estava no cardápio. Ele teve a coragem de marcar um encontro para transar com
ela. Mas Estella recusou e implorou para que ele mantivesse segredo. O
pecuarista fez o oposto. Foi até Horizontina e marcou uma reunião familiar com
tias, avós e primos. Anunciou que Estella era “puta de luxo”.
Soltando fogo pelas ventas, a mãe de Estella foi buscá-la em São Paulo e a
levou de volta para casa. A garota tinha 16 anos quando levou uma surra de cinta
no meio da rua. Os vizinhos acompanharam o escarcéu. No alvoroço, alguém
perguntou em voz alta por que a adolescente apanhava tanto. A mãe respondeu
para todo o mundo ouvir que ela havia jogado o sobrenome da família na lama.
Aos 18 anos, Estella mudou-se para Curitiba com um único propósito:
esquecer a família e alcançar a sua independência financeira. Passou a se
prostituir para juntar dinheiro, mas traçou uma meta: aos 30 anos deixaria de
vender o corpo e abriria um negócio digno aos olhos da sociedade. Cursou
enfermagem na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e tornou-
se uma excelente profissional.
Depois de ouvir a história triste da amiga, Elize foi até a sacada do flat de
luxo. Olhou para o infinito da noite e tentou enxergar o futuro. Naquele
momento, ela vivia com um salário de 1.200 reais, mais 300 reais que tia Rose e a
avó Sebastiana mandavam de Chopinzinho com muito sacrifício. Quando voltou
para a sala, a jovem se serviu de mais um pouco de vinho. O telefone de Estella
tocou. A enfermeira saiu da sala para atender a chamada com privacidade. Elize
conseguiu ouvir parte da conversa:
– Por onde tu andava, seu merda?
– [...]
– Faz o de sempre, guri. Entra pela garagem e sobe pela escada de incêndio.
– [...]
– Até mais tarde, seu puto!
A carteira de clientes de Estella era invejável. Ali figuravam deputados
estaduais do Paraná, vereadores de Curitiba, prefeitos do interior paranaense,
empresários, executivos, advogados e uma infinidade de pais de família ricos e
integrantes da tradicional família brasileira. Enquanto Estella se arrumava para
receber o próximo cliente, Elize perguntou se levava jeito para “esse negócio de
luxo”. Cheia de deboche, a profissional veterana parou o que estava fazendo,
olhou fixamente para aquela figura triste e se aproximou. Passou a ponta dos
dedos nos contornos do rosto pálido e delicado da amiga. Na época, Elize usava
os cabelos naturais de cor castanho-escuro. Estella levantou as madeixas
ressecadas da técnica de enfermagem pelas pontas e as soltou logo em seguida:
– Puta que pariu, Elize! Sério que você perguntou isso? Olha, vou ser honesta:
você teria de morrer e nascer de novo para dar certo como uma profissional
classe A!
Elize pescou a ironia fina e deu uma risadinha de canto de boca. Pegou a
bolsa, despediu-se da amiga e saiu pensativa e desconcertada ao mesmo tempo.
No alojamento das freiras vicentinas, deitou-se na cama de beliche e olhou em
volta, fitando o rosto de cada uma das colegas de quarto. Era impossível apontar
qual delas tinha o semblante mais sofrido. Uma de 16 anos era egressa da roça. A
coitada pegou tanto sol no rosto que ficou com a pele toda enrugada. Sonhava
com o magistério. A outra tinha 18 e era órfã de pai e mãe desde os 9. Viera de
um abrigo para jovens disponíveis para adoção. Adulta, já não tinha mais
expectativa de encontrar uma família para chamar de sua. No meio de tanto
infortúnio, Elize resolveu seguir o conselho de Estella: nascer novamente. A
primeira providência era sair daquele pensionato horroroso. Seus planos eram
pra já.
Enquanto isso, Estella recebia em seu flat um velho cliente. Gilberto era
narcotraficante do Primeiro Comando da Capital (PCC). Atuava numa rota
internacional por onde escorriam toneladas de maconha prensada do Paraguai
até o Porto de Paranaguá, no litoral do Paraná. Tinha 36 anos, era alto e magro.
O cliente era adepto de um fetiche cada vez mais comum, o BDSM, práticas
sexuais envolvendo disciplina, dominação, submissão, sadismo, masoquismo,
além de bondage (amarrar alguém ou ser imobilizado). No BDSM raiz há
consenso entre o casal praticante. Gilberto tinha ainda como hobby o polo, um
esporte praticado a cavalo. Era vistoso, mas caminhava pela sombra em razão da
atividade criminosa. Só transava com prostitutas de confiança e mulheres do
tráfico. Não frequentava motéis nem hotéis, pois tinha pavor de câmeras de
segurança. Ele se dizia apaixonado por Estella. A cada pernoite no flat da
profissional, deixava entre 800 e mil reais em dinheiro vivo, além de presentes
caros, como joias, perfumes, bebidas e acessórios para a prática de BDSM. No
acordo entre o casal, Gilberto jamais poderia entrar com armas e drogas na casa
de Estella. A relação era de extrema segurança. Ele tinha o controle remoto para
abrir o portão da garagem e subir sem passar pela portaria. Para escapar das
câmeras, nunca usava o elevador. Subia sempre pela escada de incêndio e
chegava ao apartamento pela porta da cozinha.
Certa vez, Gilberto foi à casa de Estella e implorou para deixar duas malas
grandes por uma semana. Estava até disposto a pagar bem pelo favor. A
enfermeira nem quis saber o conteúdo da bagagem. Enérgica, deixou claro que o
apartamento não era guarda-volumes. Em outra ocasião, o narcotraficante queria
levar uma amiga para fazer sexo a três. Estella mais uma vez recusou a proposta,
já sabendo que a terceira pessoa era do mundo do crime. Gilberto respeitava as
negativas da amiga. Brincando, dizia que ela era a única puta de Curitiba com
código de ética.
Do outro lado da cidade, Elize colocou o seu plano de renascimento em ação.
O primeiro passo foi aumentar o limite do cartão de crédito para ter o capital
necessário para dar início à carreira de garota de programa de luxo. Ela lançou
mão de um cambalacho: falsificou o contracheque de 1.200 reais do Hospital
Nossa Senhora das Graças. O valor dos rendimentos ficava descrito abaixo, à
direita do documento. Ela pegou o holerite do mês anterior e recortou dele só o
número 1. Com a habilidade de técnica em enfermagem, usou uma pinça de
sobrancelha para colar o algarismo no contracheque mais atual no campo do
salário líquido. Após a falcatrua, seus rendimentos do hospital naquele papel
saltaram de 1.200 para 11.200 reais. Para a conta bater, ela teve de fazer outras
colagens no campo destinado aos ganhos com adicionais noturnos e horas
extras. Também houve adulterações nos descontos. Depois de completar a
fraude, Elize tirou uma fotocópia do documento para camuflar as marcas
discretas dos recortes. Em seguida, ligou para a administradora do cartão e pediu
para aumentar o limite. A operadora solicitou um comprovante de rendimentos
por fax e a técnica de enfermagem mandou sua obra de arte. Duas semanas
depois, recebeu um cartão de crédito American Express categoria platinum com
limite de 35 mil reais. Também ganhou uma maquineta de crédito da Visanet
Brasil, hoje chamada de Cielo.
Elize ligou para Estella dizendo estar pronta para renascer e combinou de
encontrar a amiga no Shopping Crystal. Foram às compras. Escolheram
minissaias e vestidinhos pretos, sapatos de salto agulha, calcinhas e sutiãs de
grife. Elize selecionava só peças caras, enquanto Estella a repreendia dando dicas
importantes:
– As roupas de uma guria de luxo não podem custar muito. Tem de parecer
caras, mas custar pouco, entende? Tipo as peças da Zara: bonitas e tribaratas.
A professora falava e a aluna obedecia. Nada de gastar muito. Em três horas,
a técnica de enfermagem já havia investido quase 5 mil reais apenas em roupas,
sapatos e acessórios, mas nas sacolas só havia itens imprescindíveis. Estella teve
de deixar a amiga no meio das compras e foi fazer um curativo em domicílio
num paciente que havia sido submetido a um transplante cardíaco. As duas
ficaram de se encontrar no flat à noite para jantar. Como Elize chegaria primeiro,
ficou com a chave da porta. Ela ainda deveria passar num salão e mudar o visual.
Estella ligou para um cabeleireiro de confiança e deu as coordenadas:
– Veado do céu! Estou mandando uma amapô. Faz um extreme makeover na
racha. Mudança radical mesmo! Corta, pinta, repica, hidrata, harmoniza,
cauteriza, arruma as sobrancelhas... Faz o diabo aí. Estamos em cima do laço!
Deixa a caipira com cara de rica!
O salão escolhido era uma unidade do tradicional Torriton Beauty & Hair,
considerado um dos mais cafonas da cidade. Orientada pelo profissional, Elize
tingiu os cabelos castanho-claros de louro sueco e fez um corte moderno para
ressaltar a beleza do rosto. Manteve a base reta e as pontas assimétricas. Deixou a
franja repicada à altura dos olhos, proporcionando um visual arrojado. Em
seguida, fez as unhas dos pés e das mãos. A conta ficou em 900 reais (valores da
época), mas ganhou um desconto de 30%. No final do dia, Elize estava
estupidamente linda. A nova aparência, no entanto, era apenas uma capa
protetora. Os traumas e as feridas emocionais da garota tímida do interior
continuavam escondidos embaixo daquele verniz.
Depois do banho de loja, Elize passou no supermercado e comprou com o
seu cartão de crédito duas garrafas de vinho chileno Gato Negro, um cabernet
sauvignon popular frutado e de taninos macios, cuja unidade à época custava
29,90 reais. Partiu para o flat de Estella. Usou uma de suas roupas novas.
Escolheu um vestido preto sem alças e curtíssimo. Subiu num sapato scarpin
vermelho de salto fino médio da Arezzo de 270 reais e abriu o vinho. Estella
chegou em casa vestida de enfermeira e teve um espanto quando se deparou com
a nova Elize. Tapou a boca com as duas mãos e destapou em seguida para soltar
frases que deixariam as freiras vicentinas sem ar:
– Nossa Senhora do Cacete, a mãe de todas as fodas! Tu realmente nasceu de
novo, guria!
– O que você achou? – quis saber Elize, tímida.
– Puta que pariu! Os homens vão saudar você como Vênus numa concha –
brincou Estella, fazendo referência à pintura O nascimento de Vênus, do italiano
Sandro Botticelli.
Estella tinha motivos para ficar boquiaberta. De fato, Elize parecia a Vênus, a
deusa romana que emergiu do mar. Era outra mulher. Exalava sensualidade aos
19 anos. As duas brindaram com vinho a nova fase da estudante de técnica de
enfermagem e bolaram planos. Estella lhe fez uma proposta para começar a
carreira: passaria clientes para a aprendiz em troca de uma comissão de 60%.
Elize topou, pois não queria fazer anúncio em jornais de grande circulação com
receio de a família descobrir sua nova atividade. Mas, antes de começar a
atender, a jovem teve aulas de expressão corporal com Estella. Sua postura era
muito acanhada. “Uma garota do nosso naipe usa mais o corpo do que a fala para
se comunicar. Por exemplo, braços cruzados podem indicar descontentamento.
Ombros contraídos revelam insegurança, tudo o que uma acompanhante não
pode transmitir. Até a forma como você se senta dará informações sobre você.
Quando receber o cliente, fique sempre ereta e sente-se com as pernas cruzadas.”
Estella também repassou para Elize ensinamentos dos cursos de modelo feitos
em São Paulo. “Trabalhe as expressões faciais. Deixe a cabeça erguida, mas o
queixo apontado levemente para baixo. Mantenha os olhos focados no cliente.
Ao caminhar, coloque sempre um pé na frente do outro e siga a passos largos.
Nunca exagere nos movimentos com os braços, mas também não deixe eles
duros. Faça sempre poses levemente sensuais.”
A mentora também deu uma aula de etiqueta para Elize debutar no mundo
da prostituição de luxo. Alguns dos conselhos de Estella repassados à novata
eram: “Nunca dê o seu nome de batismo, isso a deixa vulnerável. Quando estiver
com um cliente, não se refira ao seu trabalho com termos vulgares. Diga apenas
que você é uma ‘profissional’. Nunca tire a roupa antes do pagamento. Beba
sempre com moderação em serviço. Prefira o vinho, pois ele deixa a mulher leve
e solta. Se o cliente perguntar se você faz anal, diga ‘não’ logo de cara. Ele vai
pressionar bastante. Depois de muita insistência, você cede dizendo que vai abrir
a ele uma exceção pra lá de especial. Aí você valoriza o serviço cobrando a mais.
Na nossa categoria, anal custa 500 reais. Higiene é fundamental. Camisinha
sempre. Não aceite sexo sem proteção nem por todo o dinheiro do mundo. Se
você contrair uma doença sexualmente transmissível (DST) ou engravidar, vai
ficar parada e gastará muito dinheiro em tratamento médico, remédios, aborto...
Finja sentimentos pelo cliente. Seja carinhosa, pois a maioria dos homens é
carente. Alguns nem fazem questão de sexo, querem apenas um pouco de afeto e
conversar, falar da vida... Entre nessa para empreender. Junte todo o dinheiro
que conseguir para abrir um negócio decente. Mas marque no calendário uma
data para abandonar a profissão. Quanto antes, melhor”.
Os conselhos de Estella foram repassados para Elize em 2000. Atualmente, o
termo “doenças sexualmente transmissíveis”, assim como a sigla DST, está em
desuso. A nomenclatura adotada pelos médicos passou a ser “infecções
sexualmente transmissíveis”, ou IST.
Madrugada adentro, as duas jovens beberam e conversaram amenidades.
Elize dormiu no sofá. Quando acordou, às 9 horas, percebeu o quanto Estella era
batalhadora. Ela já tinha passado num condomínio de luxo para dar assistência a
um paciente com câncer, encontrava-se em São José dos Pinhais participando de
uma cirurgia plástica e à tarde estaria no hospital. Na porta da geladeira havia
um recado escrito num post-it verde-limão: “Seu primeiro cliente chegará no flat
às 15 horas. Esteja linda feito Vênus na concha”, dizia o texto enfeitado com o
desenho de um coração.
Às 15 horas em ponto Elize estava com o mesmo figurino usado para
surpreender Estella no dia anterior. Ansiosa, ficou plantada perto do interfone,
aguardando o porteiro anunciar a visita. Mas o aparelho não tocou. De repente, a
campainha da cozinha soou feito uma cigarra. Elize abriu a porta sentindo um
frio na barriga. Era Gilberto, o narcotraficante. A neófita ficou encantada com a
beleza do primeiro cliente. Habitué do flat, ele entrou sem fazer cerimônia e
preparou dois drinques, um para ele e outro para Elize:
– Prazer, meu nome é Gilberto. E o seu?
– Kelly! – anunciou.
Gilberto era procurado pela Polícia Federal e até por traficantes de facções
rivais do PCC. Mas a sua alta periculosidade destoava de sua persona. Era um
homem educado, charmoso e carinhoso. A pistola calibre 38 presa no tornozelo
não combinava com o seu excesso de gentileza. Ele percebeu o nervosismo de
Kelly quando acariciou o rosto da garota. A jovem estava trêmula a ponto de o
gelo sacolejar e bater nas laterais no copo de uísque, fazendo um barulho
incômodo. O casal ficou conversando por horas sobre sexo. O bandido
perguntou quais acessórios a garota de programa tinha. Ela respondeu nenhum.
“Nem uma algema?”. “Nada”. Ele então se aproximou para dar um beijo. Kelly se
lembrou dos ensinamentos da mestra e do caminhoneiro evangélico caloteiro:
– Vamos primeiro falar de negócios? – sugeriu a jovem.
– Claro!
Gilberto tirou de uma mochila 20 notas de 50 reais e pôs sobre o vidro da
mesa de centro. No mesmo móvel, ele desenhou duas carreiras de cocaína.
Ofereceu uma delas a Kelly, que recusou. O bandido, então, inspirou as duas de
uma vez só. Transaram por uma hora e depois ficaram agarradinhos na cama
feito namorados. O narcotraficante recebeu uma ligação inesperada e vestiu-se às
pressas. Na despedida, o cliente aconselhou a garota de programa a providenciar
acessórios sexuais. Ele deu um beijo longo e romântico nela, prometeu voltar e
saiu em disparada pela mesma porta que entrou.
Kelly tomou um banho, pôs o uniforme branco, encarnou a técnica de
enfermagem Elize Araújo e seguiu para o hospital, onde bateu ponto às 18 horas
no centro cirúrgico para participar de uma cirurgia complexa. Nessa noite,
acompanhou uma toracotomia posterolateral em um paciente de 42 anos com
câncer de pulmão.
Sedenta por novos conhecimentos, Elize observou atentamente o passo a
passo daquele procedimento complexo e agressivo. Sua função começava com o
preenchimento de prontuários. O cirurgião torácico começou os trabalhos
anestesiando o paciente e ajeitando o corpo dele na posição lateral.
Os braços do doente foram imobilizados para o alto com ataduras. Em
seguida, o cirurgião cortou a porção lateral do tórax, abaixo do mamilo, usando
um bisturi. A incisão se estendeu até o ângulo inferior da escápula, passando por
entre as costelas. Posteriormente, a borda anterior do músculo grande dorsal foi
identificada, dissecada, descolada e separada por um instrumento chamado
afastador autoestático, mantendo o talho aberto permanentemente, perfazendo
no paciente uma incisão enorme de 20 centímetros. O afastador é um
instrumento rústico que lembra uma chave inglesa e tem como finalidade
ampliar o campo operatório, evitando lesão em outros órgãos.
Sem se dar conta, Elize aprendia no hospital técnicas cirúrgicas que seriam
úteis no futuro. Ela observava fascinada o procedimento. Os médicos removeram
a quinta costela do paciente para melhorar o acesso e proteger elementos
neurovasculares intercostais. Aprofundaram a incisão com um bisturi elétrico até
chegarem à pleura, que foi aberta. Seguiram o procedimento aumentando o corte
até alcançarem o pulmão. Depois dissecaram a artéria pulmonar e seus ramos
que escoam direto do coração. Nessa hora, um vaso foi lesionado, provocando
sangramento excessivo. A equipe médica ficou apreensiva. O paciente perdeu um
litro de sangue e teve de fazer uma transfusão de emergência.
Depois de contornar o incidente, parte do pulmão foi removida para tentar
salvar a vida do doente. O que restou do órgão foi suturado com grampeadores
cirúrgicos. Antes de fechar a incisão, os médicos drenaram o ar e o líquido da
região. A toracotomia é uma das incisões mais doloridas da medicina. Em alguns
casos, o paciente sente fortes dores no pós-operatório por meses. A cirurgia
descrita acima durou aproximadamente quatro horas. Em 2021, a técnica para
cirurgias pulmonares era mais avançada e podia ser realizada com vídeo e até por
robôs.
Elize ficou chocada com a quantidade de sangue que o paciente verteu
durante a operação. Coube a ela, como técnica de enfermagem, ajudar o
enfermeiro-chefe em toda a cirurgia. Foram sua incumbência, por exemplo, a
conservação e a manutenção dos equipamentos, inclusive dos instrumentos
usados para cortar o paciente. Elize também etiquetou e encaminhou ao
laboratório de análise o pedaço de pulmão retirado do paciente. No final, ela
lavou alguns dos instrumentos usados na cirurgia: um bisturi de lâmina número
10 para incisão da pele e tecidos moles, uma faca e uma tesoura de curva mayo
para dissecação em geral. Depois de limpar cada um desses instrumentos, ela os
armazenou na estufa para esterilização. No final, a jovem recebeu elogios dos
médicos pelo empenho e a forma delicada com que guardava os instrumentos
cortantes.
Do hospital, a técnica em enfermagem seguiu para o flat de Estella. As duas
tomaram vinho e Elize contou detalhes do programa feito com Gilberto. Ela usou
adjetivos como “respeitador”, “cortês” e “distinto” para descrever as qualidades
do cliente narcotraficante. Repassou 600 reais à amiga a título de comissão e
ouviu da cafetina um alerta:
“O Gilberto é um excelente cliente. Mas fazer um programa com ele é o
mesmo que dormir com satanás! Toma cuidado, guria”.
Ainda uma trainee na profissão, Elize sonhava em se encontrar só com
clientes atraentes, educados e ricos. Estella tentava – em vão – mostrar que a vida
na prostituição, mesmo na de luxo, não era tão encantadora como na
imaginação. “Nesse tipo de trabalho, tu não tem a opção de fazer escolha nem o
direito de ter nota de corte. Se quiser fazer dinheiro, tu tem de encarar o feio e o
bonito, o alto e o baixo, o sujo e o limpo, o magro e o gordo, o cheiroso e o
fedido, o rico e o pobre – desde que eles tenham dinheiro para pagar pelo
programa”, ensinou a veterana. Estella também aconselhou Elize a encontrar um
local o mais rápido possível para atender com privacidade os clientes VIPs
encaminhados futuramente. A novata já tinha, inclusive, um novo programa
agendado para dali a dois dias.
Na manhã seguinte, a jovem foi ao curso de técnica em enfermagem e na
hora do almoço alugou por 3.800 reais um loft mobiliado de 70 metros
quadrados no bairro Cabral, um dos mais familiares de Curitiba. A moradia era
moderna, combinando com a personalidade de Kelly. Pé-direito duplo na sala e
uma vista de tirar o fôlego. Tinha conceito open living, ou seja, todos os
ambientes eram integrados e ideais para reuniões sociais. O apartamento tinha
móveis planejados, venezianas, aquecimento a gás, banheiros com ventilação
natural e lavabo. No piso inferior havia uma sala ampla conjugada à cozinha. No
piso superior, uma suíte com closet. O condomínio oferecia duas vagas de
garagem, salão de festas, churrasqueira na cobertura, espaço fitness e portaria 24
horas. Tudo isso a poucos metros da Igreja Bom Jesus, onde Elize passou a
acompanhar as missas de domingo à noite.
Para oferecer conforto aos clientes, ela caprichou nas roupas de cama e de
banho. Gastou quase 4 mil reais comprando lençóis de fios egípcios, toalhas
bordadas com gramatura 500 e roupões aveludados. Para proteger o sofá preto &
rosé gold de quatro lugares, providenciou uma capa em tecido acquablock. Quem
estreou o loft foi Josemar, o segundo freguês da novata. Ele foi anunciado pelo
interfone ao meio-dia.
Ao abrir a porta pivotante de três metros de altura, Elize quase caiu para trás.
Estella havia enviado um velho sexagenário. A ideia era mostrar a ela que a vida
real no mundo da prostituição não era nem um pouco colorida. Os pelos do
nariz do cliente eram tão grandes que se misturavam com o bigode. Josemar já
entrou com a calça aberta e o pênis ereto à mostra, dizendo ter pressa porque o
estimulante sexual (citrato de sildenafila) que havia tomado estava fazendo
efeito. Agitado, o idoso sentia dor de cabeça, ondas de calor e a visão estava
embaçada. Segundo ele, tudo à sua volta era azul. Elize, ou melhor, Kelly, teve
vontade de evaporar. Ele era grotesco:
– Anda, vadia. Corre que não posso esperar. Tira a roupa! – exigiu.
– Mil reais! – cobrou.
– Tá louca? Com esse dinheiro passo a vara em atriz pornô!
O infeliz jogou no chão 200 reais em notas amassadas de 20 e 50, tirou a
roupa toda, inclusive a fralda geriátrica. Kelly nem teve coragem de juntar o
dinheiro. Foram direto para a cama super king novinha em folha. Josemar estava
agitado. Quando ficou por cima da jovem, ele teve hiperemia ocular e congestão
nos seios nasais. A frequência cardíaca disparou. Os olhos vermelhos assustaram
a garota. Resiliente, ela continuou. Até que uma baba espessa começou a escorrer
lentamente pelo canto da boca de Josemar. Quanto mais ele movimentava o
corpo sobre a prostituta, mais a secreção asquerosa descia. Para evitar que a
gosma pingasse em seu rosto, Kelly mudou de posição. Ele acabou se livrando da
baba esfregando a boca na fronha de seda branca do travesseiro de plumas de
ganso.
Entre uma posição e outra, Josemar tinha palpitações e reclamava de dor nas
costas. Depois de tanto perrengue, acabou o serviço em meia hora de sexo sem
ejacular. Por incrível que pareça, o festival de constrangimentos não havia
acabado. Quando o velho se levantou da cama, Kelly percebeu que ele havia
urinado no colchão. O cliente pareceu não se importar. Vestiu-se rapidamente e
saiu com a mesma pressa com que chegou. Quando ele bateu a porta, Kelly
concluiu o óbvio: não existe glamour no universo da prostituição. Decidiu
desistir daquela vida e investir na carreira de enfermagem. Porém, lembrou-se da
fatura do cartão de crédito, do aluguel do loft, das dívidas do dia a dia e até dos
vinhos que bebia. Tomou um banho, passou um batom vermelho e seguiu em
frente vendendo o corpo para qualquer um com o objetivo de pagar as contas e
subir na vida.
Decidida a se aperfeiçoar na profissão, Elize seguiu um dos conselhos de
Gilberto e foi a um sex-shop, no centro de Curitiba. Comprou um kit fetiche
contendo chicote com tiras de couro, chibata de aço e cabo anatômico, algemas
de metal, palmatória com rebites, coleira, venda e mordaça. Tudo de primeira.
Gastou quase 3 mil reais na compra. Como bem escreveu Sigmund Freud, “todo
mundo oculta a verdade nos assuntos sexuais”.
* * *
* * *
Três meses depois do enterro de Glória, Elize recebeu uma mensagem do
filho dela, Cláudio, pelo celular. Era um convite para sair. Casado, ele pediu sigilo
e falou do seu fetiche por enfermeiras. A jovem supôs que o executivo havia
descoberto a sua outra atividade e marcou um encontro em seu loft para a hora
do almoço. Cláudio aceitou e exigiu que a garota o recebesse de branco. A
pegação começou com beijos no sofá. Esquentou rapidamente e o casal foi para a
cama. Quando ele começou a tirar a roupa, Elize anunciou:
– São 800 reais!
– O quê?! – espantou-se.
– Meu trabalho custa 800 reais!
– Como assim? Que trabalho?!
– Sou garota de programa! Meu nome é Kelly...
Enfurecido, Cláudio abotoou a camisa social enquanto esbravejava, dizendo
não transar com prostitutas – “em hipótese alguma”, reforçou. Ele afivelava o
cinto quando ameaçou denunciar Elize ao Conselho Regional de Enfermagem
(Coren) por usar a profissão como canal para arrumar clientes. Kelly, ou melhor,
Elize, implorou para ele não levar a história adiante. O executivo lembrou-se do
escândalo envolvendo Rovênia e avisou que iria à delegacia – mesmo sem haver
crime algum naquele apartamento. Para resolver o conflito, a jovem propôs
transar de graça. Ele aceitou e tirou a roupa novamente.
O homem fez de tudo um pouco com a garota: sexo convencional, anal, oral,
beijo grego, chuva negra (defecar no parceiro), chuva de prata (ejacular no rosto)
e ainda pediu para a profissional realizar fetiches como ballbusting (levar chutes
nos testículos) e o tão desejado fio terra (introduzir o dedo no ânus do homem
durante o ato sexual). Eles transaram no chão, no sofá, na cama, na sacada, na
parede... No final, após quatro horas, Cláudio havia gozado três vezes. Com
medo dele, a garota fez tudo sem reclamar. Cláudio tomou uma ducha
demorada, enquanto Elize arrumava o loft, pois ainda teria outro cliente às 23
horas.
Quando o executivo saiu do banheiro e começou a se vestir, Elize havia se
transformado na destemida Kelly. O alter ego da enfermeira vestia apenas duas
peças curtíssimas de couro preto. A calcinha era modelo string fio dental com
tiras duplas de elástico nas laterais. Na frente, havia uma gravata borboleta em
fita de cetim. Cláudio chegou a se empolgar, achando que haveria um novo
round. Ledo engano. Kelly, tal qual uma dominatrix, pegou uma chibata com tira
de couro e sentou um golpe vibrado e sonoro no braço do sofá, bem perto de
Cláudio, assustando-o. Ela puxou um assunto espinhoso. Falou de Glória, a mãe
dele falecida recentemente sob seus cuidados. A acompanhante contou das suas
desconfianças envolvendo a possibilidade de a paciente ter tido a vida abreviada
pelo médico a pedido do filho. Cláudio ficou pálido quando foi questionado:
– Afinal, o que aquele geriatra fez com a sua mãe?
– Que história é essa, sua cadela?! – esquivou-se.
Na pele de Kelly, a técnica em enfermagem alternava a personalidade em dois
extremos. Ora era delicada, ora era agressiva. Ela aproveitou que Cláudio estava
nervoso e deu outra chibatada estrondosa no chão de granito. Em seguida, Kelly
exigiu que o cliente pagasse a quantia de 8 mil reais pelo programa especial e
saísse do loft mudo como uma girafa. Ele aceitou sem contestar, mas ponderou
que iria a um caixa eletrônico sacar o dinheiro. Nem precisou. Kelly foi até o rack
da sala e abriu uma gaveta. De lá, tirou a máquina de cartão e perguntou:
– Débito ou crédito?
– Puta que pariu. Era só o que me faltava! – espantou-se Cláudio.
Esperta, Kelly enfiou o cartão do cliente no equipamento, digitou 8.160 reais
nas teclas e selecionou a opção débito. Quando surgiu na tela o pedido da senha,
passou a máquina para ele. Cláudio digitou o segredo numérico para finalizar a
operação. Depois perguntou por que o acréscimo de 160 reais. Elize imprimiu a
via do cliente e teria dado a ele a seguinte explicação:
– A sua tentativa de transar comigo de graça me trouxe uma lembrança
desagradável. Quando eu tinha 15 anos, subi na boleia de um caminhoneiro tão
escroto quanto você. Ele me comeu a noite inteira e fazia pausas para ler
versículos da Bíblia. No final, ele deveria me pagar 120 reais mais 40 da conta do
motel. Mas o safado desapareceu enquanto eu dormia. Nunca achei que aquela
noite tivesse sido um total desperdício, porque falar em Deus enquanto eu era
subjugada parecia reconfortante. Mas, hoje, decidi repassar esse pequeno
prejuízo a você.
Cláudio ejetou-se do loft feito foguete e esqueceu aquele dia. Elize descobriu
que seu alter ego era uma mulher de várias camadas e contrastes. Seu sexo era
sem culpa e emoção. A matuta de Chopinzinho tinha tom pastel, enquanto Kelly
era vermelho-sangue. A partir dali, todas as vezes que vendesse o corpo, a sua
segunda personalidade entraria em cena. Não era uma maneira muito
texturizada de pensar. No entanto, se não fosse assim, Elize Araújo jamais
sobreviveria num universo altamente tóxico e insalubre como o da prostituição.
* * *
Em 2003, Elize tinha 22 anos e seguia cada vez mais linda. Com uma agenda
sólida de clientes e pacientes, saldava suas dívidas com facilidade. Comprou um
Fiat Palio zero-quilômetro, enviava dinheiro todos os meses para a família, em
Chopinzinho. Seu registro no Conselho Regional de Enfermagem do Paraná
como auxiliar de enfermagem era 473.708. Quando concluiu o curso de técnica,
mudou a matrícula para o número 148.419. Mesmo ganhando quase 8 mil reais
por mês vendendo o corpo, mantinha ativa a paixão pelo trabalho de profissional
da saúde. Seguia cuidando de pacientes e atuando em centros cirúrgicos de dois
hospitais em Curitiba. A jovem administrava a vida dupla com habilidade. Os
colegas de profissão não desconfiavam da existência da Kelly. Muito menos seus
familiares. Naquela época, Estella era a melhor amiga, confidente e continuava
aconselhando Elize nos negócios, além de encaminhar clientes a ela. Em troca de
comissão, a gaúcha apresentou à amiga deputados estaduais do Paraná e
vereadores de Curitiba e do interior chegados aos serviços de garotas de
programa de luxo. Raramente os políticos entravam em contato diretamente
com as profissionais. Quem se encarregava da abordagem inicial eram os chefes
de gabinete. Eles marcavam os encontros e faziam os pagamentos. Assim, os
políticos tentavam se blindar de escândalos.
Prestando serviços sexuais para parlamentares, Elize conheceu o então
deputado estadual do Paraná Mário Sérgio Zacheski, do antigo PMDB.
Conhecido como delegado Bradock, ele tinha 50 anos quando seu assessor fez o
primeiro contato com Kelly. No início, os dois se encontravam no loft dela uma
vez por semana ao preço de 800 reais o programa. Desse cachê, a jovem ficava
somente com 320 reais. O restante (480 reais) era repassado para Estella. Com o
passar do tempo, o delegado se apaixonou e ficou mais assíduo, chegando a
visitar a garota por até quatro vezes na semana. Os dois, então, passaram a
manter um romance sob sigilo. O deputado-delegado pediu para Elize largar a
profissão e tornar-se exclusiva. A jovem pediu uma mesada de 10 mil reais para
ser só dele. O político prometeu mais à prostituta: um cargo comissionado de
meio expediente na Assembleia Legislativa do Paraná. Elize aceitou. Eles
comemoraram a nova fase. Elize finalmente largaria a vida de call girl e passaria a
conciliar a vida de funcionária pública e técnica de enfermagem.
Estella não apoiou o romance de Elize com Bradock, muito menos sua
nomeação como funcionária da Assembleia Legislativa. O local era um covil,
segundo a veterana definiu. Sem falar que o deputado era casado. Elize dizia-se
apaixonada e tentava mudar de vida mantendo um relacionamento “estável”
com o parlamentar. A amiga resolveu deixá-la quebrar a cara para ela aprender
com as próprias burradas.
A primeira briga do casal aconteceu quando saiu a nomeação de Elize no
Diário Oficial. Bradock empregou a “namorada” no próprio gabinete como
secretária com salário mensal de 800 reais, bem inferior aos 10 mil reais
combinados. Elize ficou possessa quando recebeu o primeiro contracheque.
Houve um chilique. “Sou mulher de luxo para trabalhar todo dia e receber só
oito notas de 100 no final do mês. [...] Ontem comprei quatro garrafas de vinho a
2,4 mil reais”, esbravejou. O político-delegado conseguiu amansar a garota
pagando um extra por fora e dando um mimo aqui, outro ali. O primeiro deles
teria sido um Honda Fit novinho em folha.
No gabinete do delegado-cliente, Elize assumiu o papel de primeira--dama.
Dava ordens a subordinados, exigindo limpeza, café quente e reclamava do
excesso de pedintes que batiam na porta do deputado. A maioria era de eleitores
cobrando promessas de campanha. O tempo fechou quando um dossiê
conhecido no mundo político como “relatório de crise”, descrevendo denúncias
graves contra Bradock, sumiu da principal gaveta de sua mesa, mesmo trancada à
chave. O documento tinha sido elaborado por advogados e assessores do
parlamentar, apontando justamente seus pontos sensíveis que certamente seriam
explorados publicamente por inimigos políticos. Entre as denúncias contra
Bradock relatadas no dossiê constavam acusações de tortura, tentativa de
homicídio, fraude processual e porte ilegal de arma. Todas tinham como fonte a
Promotoria de Investigação Criminal do Ministério Público do Paraná e corriam
sob sigilo. Bradock teve um faniquito quando deu pela falta dessa papelada.
Imediatamente, a suspeita recaiu sobre Elize.
À noite, Bradock foi ao loft da “namorada” na expectativa de resgatar o dossiê
e ficou surpreso quando viu um cliente saindo da alcova de Elize. Os dois
discutiram e a jovem reiterou que recebia muito pouco para manter
exclusividade. Irritado, o delegado vasculhou o apartamento dela em busca do
dossiê, mas não o encontrou. Bradock teria encerrado a conversa e a relação,
dando uma bofetada em Elize e demitindo-a do cargo comissionado e dos
serviços sexuais.
No outro dia, ela passou no gabinete para pegar suas coisas e assinar a
papelada da demissão no departamento de Recursos Humanos. Pouco depois, o
ex-casal se encontrou nos corredores da Assembleia Legislativa e houve outro
bate-boca, inclusive na presença de jornalistas. Segundo funcionários da Casa, o
affair teria sido pontuado por brigas em público. Apaixonado, o político deu a
Elize, além do carro, joias e roupas caras. Uma reportagem da revista Veja,
publicada em 8 de junho de 2012, assinada pela repórter Thais Arbex, relata
detalhes do romance de Bradock com a garota de programa.
O deputado-delegado jurou de pés juntos que essa história foi “uma
montanha de mentiras”. Segundo ele, a injúria foi arquitetada por inimigos
políticos em 2004, ano eleitoral. “Essa mulher nunca trabalhou no meu
gabinete!”, jurou o parlamentar. Entretanto, consta no setor de Recursos
Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná que Elize foi contratada em 1o de
junho de 2004 e lotada no gabinete de Bradock para assumir a função de
secretária comissionada para trabalhar meio expediente. Em abril de 2021, o RH
confirmou que o salário de Elize era, de fato, de 800 reais, e sua matrícula na
época era de número 301.735.
Apesar de Bradock negar com veemência seu envolvimento com Elize, a
briga do casal ocorrida nos corredores da Assembleia também foi relatada com
detalhes no jornal Folha de Londrina, em 25 de junho de 2004. Em entrevista ao
periódico, Elize acusou o ex-namorado de violência doméstica numa fúria de
ciúme. “Ele me bateu na cara várias vezes”, denunciou. Em sua defesa, na mesma
edição do jornal, o político garantiu que Elize era histérica, agressiva, recalcada,
descontrolada e promíscua.
Em outro barraco, Bradock foi visto aos berros nos corredores da Assembleia
exigindo que Elize devolvesse o carro dado de presente, as chaves e os
documentos do veículo. Ao contestar o romance, o deputado disse de forma
enfática: “Nunca namorei essa mulher, até porque sou casado. E não sou Papai
Noel para dar carro de presente para amantes”. Quando foi pedido para o
político contar a sua versão da história, ele se contradisse: “A verdade é que ela
[Elize] trabalhava no meu gabinete. Vou assumir. Mas foi demitida quando
descobrimos que era prostituta. Ela também havia furtado documentos das
minhas gavetas”. Apesar de sustentar não ter se relacionado com Elize, Bradock
demonstrou conhecê-la bem. “Ela era muito fechada, meio fria, sabe? Era
estranha e individualista. Tá muito na cara que ela não terá um final feliz”, previu
na época.
Estella repreendeu Elize pelo escândalo sexual na Assembleia Legislativa.
Ressabiados, os políticos do Paraná fugiram das duas garotas de programa como
o diabo foge da cruz. Tinham pavor de ver suas estripulias sexuais estampadas
nas páginas dos jornais.
Algumas semanas depois, Estella completou 30 anos e chamou Elize para um
jantar especial no restaurante Ile de France, no centro de Curitiba. Entre beijos,
abraços e muito vinho, a enfermeira gaúcha anunciou, emocionada, estar
largando a prostituição. Na sua nova fase de vida, ela não teria mais contato com
nenhuma garota de programa, incluindo Elize. Estella iria se mudar para o
município de Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana de Curitiba. Na
cidade, montaria um posto de gasolina com seis bombas de bandeira branca. O
investimento na época foi de 800 mil reais. Elize chorou de tristeza e alegria, pois
a amiga repassaria a ela todos os clientes. As duas estavam embriagadas quando
Estella relatou ter juntado muito dinheiro ao longo de doze anos na prostituição
de luxo. Conseguir uma concessão para explorar o posto de combustível era um
sonho antigo. O sucesso da amiga fez Elize ter esperança de um dia também
escapar da vida degradante que levava. Estella, bêbada, passou a dar conselhos
para a jovem como se fosse sua mãe:
– Você não tem ideia de quanto pau nojento eu tive de chupar para chegar
até aqui. [...] Olha, eu não lembro quando foi a última vez que dei um beijo de
amor num homem. A minha vida era uma merda daquelas que não descem com
a descarga, sabe? [...] Sim, estou chorando e vou deixar rolar. É um choro de
liberdade, porra!
Elize se levantou da cadeira oposta e sentou-se ao lado da amiga para
ampará-la. Estella continuou despejando verdades com palavras chulas em meio
a mais lágrimas:
– Mete uma coisa na sua cabeça, sua arrombada! Uma prostituta só tem dois
destinos na vida: a glória ou a desgraça. Não tem meio-termo, caralho! [...] Eu
cheguei ao cume da montanha, cacete! Vou abrir um negócio decente. Cada
centavo dessa merda foi conquistado com muito suor. Vou empregar 12
funcionários, filho da puta! – gritava com o rosto encharcado.
Um garçom pediu para Estella falar baixo e evitar palavrões, pois havia
famílias na casa. Desobediente, fez o contrário: falou ainda mais alto para todo o
mundo ouvir:
– Pau no cu das famílias! Já tenho todas as licenças exigidas, seus bostas! O
tanque subterrâneo é todo de aço-carbono e tem capacidade para até 30 mil litros
só de gasolina! Sabe quando vou me vender para um homem? JAMAIS!
Por fim, Estella já estava na mão do palhaço quando citou o romance de Elize
com o deputado Bradock para dar mais um conselho à amiga:
– Você nunca vai mudar de vida se envolvendo com clientes! Sabe por quê?
Porque eles vão te ver eternamente como uma prostituta. Mesmo dormindo
agarradinha a ele todos os dias numa cama de casal confortável, você será sempre
uma vadia sem valor.
As palavras de Estella mexeram emocionalmente com Elize. Ela saiu do
restaurante francês cambaleando. Antes de se despedir de forma definitiva, a ex-
garota de programa reforçou ter repassado a todos os seus clientes fixos o
contato da amiga. Estella fez um resumo do perfil de cada um, das preferências
deles na cama e dos horários, pois boa parte era casada e gostava de ser atendida
na hora do almoço. Estella fez uma série de ressalvas sobre Gilberto, o
narcotraficante. “Ele é um homem muito inteligente, bonito e carinhoso. Mas é
perigosíssimo. Quando ele pedir para deixar pacotes na sua casa, recuse de forma
incisiva porque ele é insistente. Também não permita a entrada de amigos dele
no seu loft. Se eu fosse você, na verdade, nem o atenderia mais. Você é muito
bobinha e ele é um barril de pólvora com pavio aceso”, finalizou Estella,
desaparecendo tal qual uma estrela cadente.
Um mês depois, Elize estava deprimida no sofá com saudade de Estella,
quando recebeu a ligação de um cliente. Era Gilberto, o narcotraficante.
Marcaram um encontro para as duas da manhã. Ele disse que levaria bebida, dois
amigos e uma amiga. Elize orçou a orgia em 5 mil reais. Na hora marcada, eles
fizeram uma balada no loft. Tinha cocaína, uísque, cerveja, vodca, música alta,
trenzinho e muito sexo. Todo mundo beijava todo mundo. Elize teria transado
com os dois bandidos e com a garota, mas não usou drogas. Exageraram no
álcool, misturando bebidas destiladas com fermentadas. Aspiravam maconha e
ópio pela mangueira de um narguilé. O vapor das drogas empesteou o loft e
invadiu os apartamentos vizinhos. O telefone celular de Gilberto tocou e ele foi
atender na varanda. Incomodados com o barulho, moradores ligaram pelo
interfone para reclamar. Os bandidos atendiam e mandavam os condôminos à
merda. Elize estava bêbada, caída nua no tapete. Quase cinco da manhã, a balada
ainda fervia. Havia pistolas e metralhadoras espalhadas pela casa e fileiras de
cocaína na mesa de centro. O interfone tocou novamente. Dessa vez, Elize
despertou desorientada e pediu silêncio. Ela reduziu o volume do som e foi
atender a chamada. Era o porteiro, apreensivo:
– Dona Elize da minh ‘alma, tá cheio de polícia aqui embaixo. Eles
mandaram avisar que estão subindo!
O programa aqui custa 8 mil reais, filha
E
vangélica da Igreja Cristã Discípulos de Cristo, Tatty Chanel, de 28 anos,
era uma prostituta bastante conhecida no centro de São Paulo, apesar de
nunca ter feito programas em calçadas. Prospectava a maioria dos clientes
pela internet. Na década de 2000, mantinha no ar um blog profissional com 36
fotos sensuais bem produzidas e divulgava um número de telefone celular para
contato. Tatty tinha borogodó para os negócios. Era baixinha, 1,50 m de altura e
cabelo originalmente crespo, mas todo alisado à base de chapinha. Espinhas da
adolescência deixaram seu rosto marcado com protuberâncias. As cicatrizes em
sua face lhe renderam o apelido maldoso de “areia mijada”. Nunca foi magra e
ganhou mais um pouco de peso depois de abandonar as atividades físicas diárias.
Seu maior trunfo na profissão, segundo ela mesma fez questão de ressaltar, era a
bunda grande e cheia, dura e redonda. Nela não havia nenhuma marca de estria
ou celulite. “Se tivesse, não seria problema, pois os meus clientes não eram
exigentes”, frisou Tatty, rindo.
Para atrair clientes estrangeiros de passagem pelo Brasil, a prostituta
anunciava seus serviços sexuais em classificados de jornais. Nessa parcela
específica de fregueses, ela aplicava toda sorte de golpes. Quando os homens
pediam fotos por telefone, por exemplo, Tatty costumava enviar imagens de dez
anos antes, quando era bem mais atraente. A desonestidade era impulsionada
pelo Photoshop. No programa de computador, ela afilava falsamente o corpo e o
rosto. Até seus dentes quebradiços, tortos e amarelados ficavam inteiros,
alinhados e reluzentes por obra de efeitos especiais. Às vezes, suas picaretagens
iam além.
Certa noite, um cliente norte-americano de 50 anos leu o anúncio de Tatty e
pediu-lhe fotos. A profissional enviou imagens tão modificadas que ele duvidou
se tratar da mesma pessoa quando a viu pessoalmente na esquina da Rua Bela
Cintra com a Avenida Paulista. Mas o gringo não se importou com a
discrepância. No ponto de encontro, afoito, ele agarrou a garota sem a menor
cerimônia e passou a mão por onde alcançou. Tatty interrompeu as preliminares
em público e pediu 100 dólares conforme combinado previamente. Após o
pagamento, seguiram para a suíte do Hotel Renaissance, nos Jardins, um dos
bairros mais nobres de São Paulo. Ousado, o casal passou pelo hall do hotel de
luxo de mãos dadas.
Apesar de ser uma mulher corajosa, Tatty cultivava um receio assombroso de
sua família cristã descobrir a sua profissão pecaminosa aos olhos de Deus.
Natural do município de Ananindeua, Região Metropolitana de Belém do Pará,
ela seguiu para São Paulo em 1999, com a bênção dos pais protestantes.
Prometeu entrar na faculdade de medicina, trabalhar em hospitais e servir ao
Senhor. Frequentemente, Tatty mandava fotos para os pais fazendo poses em
cadeiras da Universidade de São Paulo (USP) e estudando em bibliotecas
públicas rodeada de pilhas de livros. Tudo fake. Na verdade, ela nunca foi
aprovada no vestibular, apesar de ter tentado três vezes.
A agenda profissional de Tatty era eclética. Havia contatos de pastores
evangélicos, delegados, investigadores e escrivães, além de uma variedade de
comerciários do centro de São Paulo conquistada em aulas noturnas de forró.
Apesar de ter uma clientela vasta e fiel, a garota investia mesmo era na
desonestidade. Ela furtava dinheiro em momentos de descuido dos clientes.
Quando não tinha sucesso com esse tipo de artifício, fazia pequenos escândalos
em recepção de hotéis para forçar o homem a abrir a carteira em troca de
silêncio. Se houvesse oportunidade, surrupiava dados de cartões de crédito dos
incautos e fazia compras pessoais. O “boa-noite Cinderela” era manjado em sua
lista de fraudes. Nas poucas vezes em que foi pega, Tatty recorria aos amigos
policiais. Beneficiada com esses laços de amizade, a vigarista nunca foi fichada
nem sequer passou mais de 24 horas no xilindró, apesar de ser tão suja quanto o
pau do padre.
Na suíte de 30 metros quadrados do Renaissance, cuja diária custava 194
dólares, Tatty e o gringo se beijavam loucamente quando ela reclamou de sede.
Por telefone, o cliente pediu duas garrafas de vinho La Joya Gran Reserva
Carménère e pegou água mineral no frigobar. Hidratado, o casal transou por
duas horas. A profissional recebeu adicional de 100 dólares pelo tempo extra.
Exausto, o cliente cometeu a tolice de adormecer. A estelionatária não perdeu a
oportunidade. Tatty abriu a carteira dele e subtraiu mais uma nota de 100
dólares. Pegou um cartão de crédito internacional, tirou fotos da frente e do
verso e o devolveu. Em seguida, tomou um banho, matou uma taça de vinho,
vestiu-se e saiu de fininho. No dia seguinte, Tatty entrou em sites de lojas virtuais
e comprou louças para a casa e presentes para os pais com os dados do turista.
Para evitar investigação das empresas de cartões, essas compras fraudulentas
nunca passavam de 700 reais. A garota também se beneficiava do fato de nem
toda vítima ter coragem de confessar numa delegacia que dormiu com uma
prostituta e ainda foi passada para trás.
Faltavam poucos minutos para a meia-noite de uma quarta-feira quando
Tatty recebeu mais uma mensagem pelo celular. Do outro lado do telefone, um
novo cliente fazia sondagens:
– Quanto você cobra? – quis saber.
– Duzentos reais a hora – respondeu.
– Tem fotos para enviar?
A jovem recorreu às suas artimanhas e mandou três fotos ao interlocutor. Em
todas as imagens Tatty estava nua e com o rosto à mostra. Ele duvidou da beleza
estonteante da prostituta e a questionou ainda por mensagem:
– Essa na foto é mesmo você?
– Sim, amor. Sou eu!
– Não acredito!
– Juro pelo que há de mais sagrado! – insistiu.
– Vamos fazer o seguinte: vem ao meu local. Se você estiver idêntica à foto,
eu te pago os 200 reais e a gente transa por uma hora. Caso contrário, te dou 50
reais e você vai embora.
– Combinado!
A astúcia de Tatty nos negócios era conhecida entre as colegas de profissão.
Certa vez, ela foi ao Shopping Eldorado, no bairro de Pinheiros, e comprou uma
dezena de roupas novas em diversas lojas de apelo mais popular, como C&A,
Renner e Riachuelo. Pagou tudo com o próprio cartão de crédito. Passou uma
tarde inteira com outra garota de programa experimentando e escolhendo
sainhas e miniblusas. Das lojas, as duas seguiram para um estúdio em Santa
Cecília e fizeram diversas fotos com um profissional usando as roupas novas.
Nenhuma etiqueta foi retirada das peças. O ensaio varou a madrugada. Tinha
produção com luz, rebatedores e muita maquiagem. No dia seguinte, ela voltou
com a mesma amiga em todas as lojas para devolver tudo. Para algumas
vendedoras, alegava que sofria de um transtorno chamado de oneomania,
caracterizado pelos gastos compulsivos seguidos de crise de arrependimento e
depressão. A amiga ajudava contando que Tatty estava em tratamento com
psiquiatra para se curar. Algumas lojas aceitavam e faziam o estorno da compra.
Quando os gerentes botavam empecilhos, a prostituta puxava da bolsa o Código
de Defesa do Consumidor e citava o Artigo 49, que prevê devolução do dinheiro
em até sete dias sem precisar expor os motivos. Volta e meia, as funcionárias do
departamento de troca alegavam que tal benefício só valia para compras feitas na
internet. Tatty, então, iniciava uma confusão e a devolução acabava se
consumando. Às vezes, nenhuma desculpa dava certo e ela acabava ficando com
a compra.
Depois de enviar fotos para o cliente pelo celular, Tatty seguiu para encontrá-
lo. O lugar marcado era um apartamento na Rua Almirante Marques Leão, no
bairro da Bela Vista, região central de São Paulo. O prédio de quatro andares não
tinha porteiro nem elevador. Ela tocou o interfone. Quem atendeu e liberou a
entrada foi o empresário Marcos Kitano Matsunaga, de 31 anos na época.
Educado, ele cumprimentou a garota com um beijinho no rosto. O local era
amplo, arejado e limpo. Tinha um único ambiente de cerca de 80 metros
quadrados com uma cama de casal, banheiro, frigobar, TV de 29 polegadas
afixada na parede, duas poltronas e um armário grande, além de refrigerador de
ar. Cabeças de diversos animais empalhados, como cervos, antílopes e veados,
ficavam penduradas nas paredes escuras, dando um aspecto macabro ao
ambiente. No meio da sala aberta era possível ver uma mesa de sinuca de seis pés
toda confeccionada em madeira maciça com pranchas de quatro centímetros de
espessura. Os tacos artesanais com telescópio de alumínio ficavam pendurados
no suporte da parede, ao lado de um conjunto completo de dardos profissionais
com alvo feito de sisal. Dois janelões davam acesso à mesma varanda. Olhando
em volta, era fácil concluir que o local era uma garçonnière. Tatty entrou, sentou-
se numa poltrona e Marcos ocupou a outra no lado oposto. Havia uma garrafa de
vinho aberta na mesa lateral e duas taças. Apenas uma estava com bebida. Por
alguns minutos, reinou um silêncio incômodo naquele lugar. Tatty quebrou o
gelo levantando-se e fazendo um pedido retórico:
– Posso me servir?
– Então... Você é bem diferente da foto, né? Vou pagar os 50 reais e você vai
embora, conforme o combinado – anunciou Marcos.
– Pois é, querido... Você tinha de ter dito isso tão logo abriu a porta e me viu.
Agora que entrei, terá de pagar o preço cheio.
Atrevida, a garota de programa pegou a garrafa de vinho e serviu-se. Deu um
gole grande. Sentou-se na poltrona novamente. Marcos levantou-se, tomou a
taça da mão de Tatty e insistiu que ela saísse. Abriu a carteira, tirou uma nota de
50 reais e jogou sobre o colo da moça. A profissional guardou o dinheiro na bolsa
e bateu pé: só iria embora se recebesse os 150 reais restantes. A tensão aumentou
quando Marcos se negou de forma categórica a fazer o pagamento. Tatty, então,
se levantou, passou por uma das portas e alcançou a varanda, onde fez uma
ligação pelo celular. Fez questão de falar em voz alta, dando as costas para
Marcos:
– Delegado Gusmão? Como vai o senhor? [...] Preciso de um favorzinho.
Poderia me mandar uma viatura aqui na Bela Vista para resolver um BO? [...]
Um homem me contratou e está se recusando a pagar, acredita? [...] Anote o
endereço...
Antes mesmo de falar o local da ocorrência, Tatty sentiu um objeto
pontiagudo e gelado espetando a sua nuca. Marcos embicou na altura da terceira
vértebra cervical da garota o cano comprido de um fuzil AR-15, o mesmo
modelo usado pelas polícias Civil e Militar de São Paulo. Era também um
armamento muito comum em poder de bandidos do crime organizado. A arma
portátil custava na época 45 mil reais e fazia parte do acervo bélico de 33 itens do
empresário, avaliado até então em 300 mil reais. Só as munições do fuzil
custavam 10 mil reais. Parte desse arsenal pesado ficava guardada em armários
do apartamento usado como garçonnière. Considerado de uso restrito, o AR-15
pode ser adquirido no Brasil por colecionadores, beneficiados graças à
benevolência do Estatuto do Desarmamento (Lei Federal nº 10.826/2003).
Tatty virou-se de frente e levou um susto tão grande quando viu o fuzil que
não conseguiu pronunciar uma palavra. Pálida feito uma defunta, passou a
tremer, suar em bicas e chorar ao mesmo tempo. Marcos tomou o celular da mão
dela e o jogou com tanta força contra a parede que o aparelho se desmantelou.
Em seguida, mirou a arma de grosso calibre em seu peito a uma distância de dois
metros. Tatty se ajoelhou de tanto pavor. “Não faça isso, eu imploro!”.
O fuzil estava carregado. Para deixá-lo pronto para o disparo, o empresário
puxou a alça de manejo. Essa ação produziu um estalo forte. Tatty repetia aos
prantos: “Deus misericordioso, eu não quero morrer!”. Marcos soltou a alça do
fuzil, fazendo a primeira bala subir até a câmara. Houve outro estalo mais forte
ainda. O armamento estava a ponto de bala. As lágrimas de desespero jorradas
dos olhos da mulher diluíram o rímel barato que contornavam seus olhos
arregalados. A água descia pelo rosto com coloração escura.
O empresário seguiu com a tortura psicológica contornando o rosto molhado
da estelionatária com o cano de 16 polegadas. Tatty começou a rezar em voz alta.
A prece da prostituta foi atendida. Marcos baixou o fuzil e rasgou a parte de cima
da roupa da garota, deixando-a nua da cintura para cima. Em seguida, ele a
pegou à força pelos braços. Desceu dois lances de escada até a portaria,
deixando-a na calçada da rua deserta. Do alto da sacada, ele jogou os seus
pertences, incluindo a blusa. Com medo de morrer, Tatty decidiu nunca mais
enganar seus clientes com fotos adulteradas no Photoshop.
* * *
Tal qual um disco de vinil, a vida de Marcos Matsunaga tinha dois lados. Na
face nobre, assumia a identidade de pai de família e empresário de respeito. No
lado B, era extremamente violento e viciado em prostitutas. Seu apelido no
meretrício era Whore Rider, algo como “montador de putas”, em tradução livre.
Na hora de escolher uma profissional, o executivo ia do luxo ao lixo. Saía tanto
com garotas baratas, a exemplo de Tatty Chanel, quanto com as de alto padrão,
cujas despesas diretas e indiretas poderiam chegar a 10 mil reais num único
encontro. Ele também apreciava as de nível intermediário com perfis mantidos
em sites de acompanhantes. Marcos recebia as mulheres de preço baixo no
apartamento simples mantido no centro de São Paulo. Já as modelos sofisticadas
eram levadas ao em seu flat, de número 156, no Transamerica Classic Victoria
Place, localizado na Rua Pedroso Alvarenga, 1.088, no bairro do Itaim Bibi, zona
sul de São Paulo. Por uma questão de segurança – ele tinha pavor de sequestros
–, o empresário não abordava prostitutas em calçadas e raramente frequentava
motéis.
No lado A da vida, Marcos era o filho mais velho dos empresários Mitsuo e
Misako Matsunaga – casal que, juntamente com Yeda Kitano Cherubini, irmã de
Misako, detinha a maior parte das ações da indústria de alimentos Yoki. A
fábrica produzia pipoca, amendoim, farinha, farofa, fubá, bebidas de soja, além
de uma infinidade de outros itens alimentícios. A sede da empresa localizava-se
na capital paulista, mas a produção se espalhava por oito cidades: Marília e São
Bernardo do Campo, em São Paulo; Cambará, Paranavaí e Guaíra, no Paraná;
Nova Prata, no Rio Grande do Sul; Campo Novo do Parecis, em Mato Grosso;
Pouso Alegre, em Minas Gerais; e mais uma unidade no Recife.
Na década de 2010, a Yoki faturava, em média, 1,1 bilhão de reais por ano e
empregava 5.200 trabalhadores. Os negócios da família de orientais começaram
diminutos. A pedra fundamental foi lançada pelo avô materno de Marcos, o
imigrante japonês Yoshizo Kitano, em 1960. Mas a marca Yoki surgiu, de fato,
na década de 1980, derivada da junção da primeira sílaba do seu nome (Yo-
shizo) com a primeira sílaba do sobrenome (Ki-tano). Cinquenta e dois anos
depois, em 2012, a empresa foi vendida por 1,75 bilhão de reais para a americana
General Mills, considerada a quinta maior empresa de alimentos do mundo e
dona de marcas importantes no mercado, como o sorvete Häagen-Dazs.
Antes de trabalhar na Yoki, Mitsuo era diretor da joint venture Nakata-
Tokico e atuava no mercado com fabricação de amortecedores para veículos
leves, pesados e motocicleta. Com o tempo, ele se desfez do negócio e investiu o
capital na empresa da família da esposa, tornando-se sócio – ele tinha 12,5% das
ações. Mais tarde, foi elevado ao posto de CEO (Chief Executive Officer) da Yoki.
Segundo ex-executivos da companhia, foi a visão vanguardista de Mitsuo e do
vice-presidente da empresa, Gabriel Cherubini, ex-executivo da Unilever e
marido de Yeda Kitano, que transformou a fabriqueta de fundo de quintal da
família de Marcos numa das maiores empresas do ramo alimentício do país.
Yoshizo morreu depois de bater a cabeça na carroceria de um caminhão
enquanto andava na rua, em 6 de setembro de 1992, aos 77 anos.
No conglomerado da família Matsunaga, Marcos exercia a função de diretor-
executivo, com foco na área agrícola. Tinha uma participação simbólica – menos
de 1% – nas ações das empresas subsidiárias do grupo, ou seja, ele não
participava das tomadas de decisões importantes. Segundo funcionários da
diretoria da Yoki, ele era um chefe metódico, organizado e respeitador. Falava
baixo e costumava ser calmo, mas se alterava com facilidade principalmente
quando seus subordinados cometiam erros. Fora do prumo, ele esmurrava a
mesa e gritava com funcionários. Mantinha a vida pessoal reservada. No
trabalho, por exemplo, só os executivos mais próximos sabiam se ele estava
solteiro ou namorando.
Já o caçula da família, Mauro Kitano Matsunaga, dois anos mais novo, foi
diretor de logística e depois encarregado da área industrial. Os irmãos tinham
personalidades absolutamente opostas. Marcos era o preferido da mãe, que tinha
conhecimento das loucuras do filho e as acobertava. Na adolescência, por
exemplo, o primogênito usava o cartão de crédito de Misako para bancar viagens
e farras com prostitutas de luxo. Mauro, por sua vez, era um homem discreto,
sério e bem mais próximo do pai. Enquanto o mais velho era extrovertido, cheio
de saúde e hábil em alternar uma vida mundana na noite com a de pai de família,
o mais novo era caseiro, tímido e tinha a saúde frágil. Antes de completar 40
anos, Mauro já tinha feito duas cirurgias cardíacas para tratar uma arritmia
grave. Ele não bebia, estava casado com uma namorada da adolescência e
raramente saía à noite.
A forma diferente com que os irmãos levavam a vida acabou criando um
abismo entre eles. Marcos e Mauro não frequentavam a vida um do outro,
raramente se falavam por telefone e só se encontravam nas reuniões de diretoria
da Yoki, ainda assim trocavam poucas palavras. Na empresa, o salário bruto de
ambos era de 31 mil reais. Esse valor não bancava nem 1% da vida nababesca de
Marcos. Para engordar os rendimentos, o executivo montou escondido da
família uma empresa de exportação dentro da própria Yoki. Era com o dinheiro
dessa empresa, cujo faturamento médio anual chegava a 32 milhões de dólares,
que ele custeava a compulsão por garotas de programa e hobbies caros, como
colecionar armas de fogo, relógios de luxo, vinhos nobres, charutos, além de
viagens excêntricas ao redor do mundo.
Bem antes de fundar a Yoki, a família de Marcos era dona da marca Kitano,
cujo catálogo continha cereais, chás e farináceos. A marca foi a primeira a vender
temperos embalados em sacos plásticos no Brasil, o que impulsionou os
negócios. Todo o processo de seleção, secagem e embalagem era feito
manualmente, e os produtos eram armazenados na fazenda da família japonesa,
no município de Ibiúna (SP). Em 1989, a Kitano foi vendida por 10 milhões de
dólares para a Refinações de Milho Brasil (Unilever), fabricante da famosa
Maizena. Como a marca Kitano era denominação do sobrenome da família do
fundador e o clã se sentia incomodado em ver seu nome numa empresa de
terceiros, ela foi recomprada em 1997 por 7 milhões de dólares, ou seja, 30% a
menos em relação ao valor da venda. Com a aquisição, o selo passou a ser apenas
uma linha de produtos no portfólio da Yoki. Em 2018, quando estava nas mãos
da General Mills, a Kitano passou por um vexame no mercado. Um lote
(D17BRMP08-5) de pimenta-do-reino preta em pó teve de ser recolhido das
prateleiras e das casas dos clientes por causa da presença de uma bactéria
conhecida como Escherichia coli, causadora de diarreia, gastroenterite e até
infecção urinária. Na época, a Kitano aconselhou os consumidores a não
utilizarem o tempero.
No papel de chefe de família, Marcos morava com a esposa, Lívia de Sousa
Pontes, numa mansão no Alto de Pinheiros, área nobilíssima de São Paulo. O
casal tinha uma filha pequena. Depois de uma tentativa de assalto na residência,
o executivo passou a andar armado o tempo todo e iniciou a sua coleção bélica,
além de frequentar aulas de tiro. Nos programas familiares, no trajeto de casa
para o trabalho ou mesmo quando ia ao encontro de garotas de programa de alto
padrão, ele dirigia uma BMW 850i preta e blindada, cujo preço do modelo novo
beirava os 800 mil reais. O Rolex no pulso do executivo, modelo GMT Master II,
custava 60 mil reais. Os itens de luxo eram deixados de lado quando Marcos
seguia ao encontro de prostitutas em seu apartamento no centro de São Paulo ou
na boate Love Story, na Praça da República, também na região central. Nesses
momentos, a BMW era substituída por uma Pajero TR4 – 4x4 blindada, avaliada
em 100 mil reais. O executivo era hábil na vida dupla. Mantinha dois números de
telefone celular, sendo que o aparelho usado para marcar encontros com
prostitutas nunca era levado para casa. Seus amigos da alta roda e os colegas de
trabalho, assim como os seus familiares, não sonhavam com a existência do
Whore Rider. Já os amigos do meretrício, por sua vez, tinham perfil ambíguo
parecido com o de Marcos. Com isso, o segredo entre eles era mantido sob o
mais imperioso sigilo até por uma questão de sobrevivência da vida em família.
O vício de Marcos em prostitutas escondia uma patologia conhecida como
ninfomania – obsessão com pensamentos, impulsos ou comportamentos sexuais
que causam sofrimento e afetam negativamente a saúde, o trabalho e os
relacionamentos. Nos homens, esse transtorno é chamado de satiríase –
referência aos sátiros, figuras da mitologia grega metade homem, metade bode.
Já as mulheres viciadas em sexo são chamadas de ninfomaníacas, em alusão às
divindades conhecidas pelo nome de ninfas, cuja função era saciar a luxúria dos
sátiros. Recentemente, os manuais de psiquiatria rebatizaram a ninfomania com
o nome de “impulso sexual excessivo”. No livro Psicopatologia e semiologia dos
transtornos mentais, o psiquiatra e doutor em antropologia social pelo Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp),
Paulo Dalgalarrondo, descreveu a ninfomania da seguinte forma: “É a busca
incessante do indivíduo pelo prazer nas relações sexuais, tendo como
consequência o consumo excessivo de pornografia, masturbação de forma
exagerada e uma intensa e insaciável vontade de se realizar sexualmente,
principalmente com pessoas desconhecidas”.
Marcos também era portador de uma síndrome chamada “timidez do amor”,
cuja maior característica é a incapacidade de seduzir uma pessoa de forma
natural por causa de ansiedade crônica e excesso de acanhamento. O termo foi
criado pelo psicólogo americano Brian G. Gilmartin justamente para descrever
um tipo específico de vergonha que inibe a capacidade de conquista amorosa.
Segundo o psicólogo Ailton Amélio da Silva, coordenador do Centro de Estudos
da Timidez do Amor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(USP), os portadores dessa síndrome podem apresentar na hora do approach
sintomas como gagueira, coração disparado, aumento da pressão sanguínea,
tremedeira, preocupação e, principalmente, medo de ser rejeitado. Esses
problemas acabam atrapalhando o início de uma relação amorosa. A timidez
excessiva de Marcos, somada ao impulso sexual excessivo, explicaria o seu
envolvimento com garotas de programa. “Quem sofre de ‘timidez do amor’
geralmente tem aversão ao ritual da conquista”, observou o psicólogo da USP.
Segundo amigos de infância de Marcos, ele pagava sistematicamente pela
companhia de mulheres desde os 15 anos.
Convivendo diariamente com prostitutas, o empresário da Yoki costumava
se apaixonar por elas. As profissionais também se envolviam emocionalmente
com o executivo. Em meados de 2002, ele contratou por 600 reais uma
profissional chamada Luzia Savoia, mais conhecida na zona pelo singelo
codinome de Luluzinha. Seu currículo era invejável. Ela já havia posado na seção
Pimentinha da revista Sexy e atuava como dançarina do Programa Raul Gil,
atração popular exibida na época pela TV Record. Depois do quinto encontro,
Luluzinha e Marcos estavam enlaçados de amor. Afrodescendente, a profissional
era adepta do candomblé. A jovem tinha 27 anos e o empresário, 33, quando o
romance começou. Luluzinha era filha de Iansã, o orixá dos fenômenos
climáticos que se materializa quando o céu se precipita em água e ventania para
formar tempestades colossais. Ela jurava incorporar a pomba gira, a entidade
símbolo da mulher livre da submissão imposta ao sexo feminino por uma
sociedade machista ao longo dos séculos. “Sou uma força da natureza. Homem
nenhum me segura”, dizia a profissional em um anúncio publicado nos
classificados do jornal Folha de S. Paulo, em 2002.
Luluzinha era linda, simpática e extrovertida, mas tinha um defeito
considerado grave num mercado onde a discrição valia ouro: a moça se
descontrolava com facilidade. Fazia escândalos em público, tal qual Tatty Chanel.
Ela recorria às divindades do candomblé para conter as emoções mais básicas,
como ciúme, raiva e possessão. Mas essas entidades vinham fracassando na
missão. Marcos, literalmente, relevava os barracos da sua “amada” no início da
relação. Romântico, ele conduzia a sua Lulu ao Parque Ibirapuera para tomar
sorvete. Faziam compras juntos no shopping e frequentavam até salas de cinema.
Quando o “namoro” completou seis meses, ele deu de presente a ela uma Pajero
TR4 novinha em folha. Luluzinha quase desmaiou tamanha era a emoção
quando recebeu as chaves do utilitário esportivo da Mitsubishi. Para agradecer o
mimo, ela levou o empresário em seu carro novo a uma festa litúrgica no templo
de candomblé de Itapecerica da Serra, na Região Metropolitana de São Paulo.
No pequeno dicionário amoroso de Marcos não constavam palavras como
“fidelidade”, “honestidade”, “sinceridade” ou “retidão”, principalmente quando
se falava em relacionamentos com garotas de programa. Mesmo saindo
frequentemente com uma call girl e fazendo-lhe juras de amor, o empresário
encontrava-se escondido com outras profissionais e ainda conseguia tempo para
se dedicar ao casamento com Lívia. Por outro lado, ele exigia exclusividade das
prostitutas quando o “namoro” engatava. Ou seja, elas não poderiam sair com
outro cliente. Essa fidelidade custava caro. O executivo pagava mesadas de até 30
mil reais para bloquear a agenda das prostitutas. O “salário” era uma forma de
compensar o prejuízo que elas tinham ao deixar de fazer outros atendimentos.
Enrabichada com Marcos, Luluzinha teve oportunidade de fuçar o celular
dele enquanto jantavam na churrascaria NB Steak House. Lendo mensagens, ela
descobriu estar sendo “traída”. Fez um escândalo homérico. Num ataque de
ciúme e fúria, ela socou fortemente a mesa. Talheres foram jogados no chão,
chamando a atenção de outros clientes. A garota gritava para quem quisesse
ouvir que aceitava o fato de o seu “namorado” ser casado, mas não admitia “de
jeito nenhum” encontros com outras prostitutas. Quando ouviu a palavra
“prostituta” dita em voz alta e em público, Marcos quis evaporar da mesa. A
marcação cerrada da garota e os vexames foram aumentando com o passar do
tempo, fazendo o empresário perder o encanto. Aos poucos, ele foi se afastando e
acabou trocando o número do celular para não ficar ao alcance imediato de
Luluzinha. Ela ficou com a TR4, mas perdeu a mesada. Mesmo rejeitada, dizia
para as colegas de profissão amar Marcos eternamente. Admitia ser possessiva,
ciumenta e altamente descontrolada. Mas estava disposta a mudar para
reconquistá-lo. Luluzinha estava agarrada num fiapo de esperança: Marcos
nunca havia verbalizado o ponto final no “relacionamento”.
* * *
* * *
* * *
E
lize Araújo tinha 16 anos quando conheceu o seu primeiro namorado, um
jovem da mesma idade chamado Pedro. O casal se viu pela primeira vez
numa festa em Chopinzinho, terra natal de ambos. Na época, ela havia
acabado de ser resgatada das estradas do Sul pela Polícia Rodoviária Federal e
devolvida ao lar pelo Conselho Tutelar. A experiência traumática de se prostituir
com caminhoneiros e os abusos sexuais sofridos nas mãos do padrasto fizeram
de Elize uma jovem calada e retraída dentro de casa e extrovertida na rua. Essa
segunda característica marcou a primeira fase do seu namoro com Pedro.
Segundo a psicóloga Isabela Qader, adolescentes vítimas de abuso podem ter
comportamentos antagônicos quando se trata de sexualidade. “Ou eles se
fecham, ou desenvolvem uma hipersexualização”, destaca a especialista. Isabela
atendeu Elize logo após a jovem passar 35 dias longe de casa.
A balada em que Pedro e Elize se conheceram ocorreu na casa de um amigo
em comum. Extremamente tímido, ele não foi ousado o suficiente para se
aproximar. Os dois passaram a noite inteira trocando olhares e sorrisos. Mas
nenhum deles tomava a iniciativa. Já na hora de ir embora, quase 3 da manhã, ele
se aproximou. Respirou fundo e lançou a primeira pergunta:
– O que você faz da vida?
Como já havia bebido cerveja, Elize respondeu o questionamento trivial com
um beijo longo no rapaz. Pedro ficou assustado, mas correspondeu. Ela logo
percebeu se tratar de um garoto inexperiente. “Eu era virgem quando conheci a
Elize. O nosso primeiro encontro me deixou sem ar”, contou Pedro, em
dezembro de 2020. O aprendiz tinha outro problema. Era ansioso, estressado e
ciumento. Depois da festa, o casal marcou de tomar sorvete. No banquinho da
praça, no dia seguinte, Elize avançou para beijar Pedro e ele recuou. Ela quis
saber o motivo da recusa e ouviu uma resposta inusitada: só a beijaria depois de
tomar todo o sorvete. Na verdade, ele protelou porque estava uma pilha de
nervos. Alguns minutos depois, Elize aproximou novamente seus lábios. Quando
ele começou a se esquivar, ela segurou o seu queixo firmemente e tascou-lhe um
beijo de língua. O jovem correspondeu do jeito que pôde. Depois da troca de
carícias, Pedro disfarçou. Virou o rosto para o lado e limpou a boca
discretamente. Elize percebeu. Na sequência, ela segurou a cabeça dele
firmemente com as duas mãos e deu outro beijo no mesmo estilo. Já no primeiro
encontro houve a primeira DR (discussão da relação):
– Você tem de controlar a sua baba – ensinou Elize.
– É você quem está babando em mim – devolveu ele.
– Quantas garotas você já beijou?
– Duas!
– Só duas? – riu a jovem.
– Contando com você... – acrescentou.
A discussão foi interrompida quando um colega da escola de Elize passou
perto do casal e perguntou por que ela havia faltado às aulas por mais de um mês.
A garota inventou uma desculpa qualquer. Pedro teve um ataque de ciúme e
chegou a ser grosseiro:
– E você? Com quantos caras já ficou? Um? Dois? Três? Dez? Cem?
– Você não faz ideia... – ironizou Elize.
Pedro era um jovem charmoso. Alto, corpo atlético e cabelos pretos
ondulados. Tinha os olhos tão grandes e arregalados que pareciam estar sob
efeito permanente de um susto. As sobrancelhas eram bem grossas e o nariz,
adunco, aquele tipo proeminente e curvado para baixo feito bico de falcão. Já no
segundo encontro na praça, Elize se dispôs a ensinar o namorado a beijar. Na
primeira aula, ao tocar os lábios dele com a sua boca, ela pediu que ele relaxasse e
explorasse o beijo. A princípio, o novato travou tal qual uma tela azul. Deixou a
boca dura e mexeu somente a língua. Lá pelo final da lição, Pedro deu uma
mordida nos lábios da menina e Elize desistiu. Ele, então, começou a treinar em
casa usando frutas, como maracujá e caqui. Algumas semanas depois, Pedro já
estava expert. Na praça, ele ficava excitado todas as vezes que era beijado. Elize
percebeu e sugeriu transar. Combinaram de se encontrar na casa dele na noite do
dia seguinte. Virgem, Pedro teve receio de decepcioná-la. No dia D e na hora H,
ele entrou em pânico e começou a tremer. Elize o empurrou na cama e assumiu o
controle. Segundo relatos dele, foi a noite mais impactante de toda a sua vida.
“Nunca estive nas mãos de uma mulher tão inflamável”, resenhou.
O namoro dos dois engatou mesmo envolto em adversidades. Pedro tinha
choques de insegurança e ciúme. Apesar de ele ser um jovem atraente, achava a
namorada muito acima das suas possibilidades. “Elize tinha uma energia sexual
muito forte e eu era um ‘bananão’ virgem que se masturbava todos os dias vendo
revistas de mulher pelada. Ela era um mulherão. Os caras olhavam como se
quisessem comê-la e eu não segurava a onda”, relatou Pedro. O excesso de
sentimentos possessivos do rapaz a incomodava. Elize trabalhava na função de
secretária no escritório do advogado Eládio Luiz Roos, um dos mais conhecidos
de Chopinzinho. O emprego foi conseguido graças à indicação de sua psicóloga,
Isabela Qader, amiga da família Roos. No escritório, um dos seus chefes era o
filho de Eládio, o estudante Diego Roos. Enciumado, Pedro teria feito uma cena
ao perguntar no meio da rua se Diego estava de olho em sua namorada. Elize
ficou chocada e constrangida com a atitude, mas como já estava com planos de se
mudar para Curitiba, resolveu não pôr um ponto final na relação naquele
momento. O namoro, aliás, nunca teve um fim oficial. Elize fazia juras de amor
ao mesmo tempo que planejava deixar Chopinzinho para trás. Certa vez, ele
passou na floricultura, comprou um buquê de pinóquio marsala e foi entregar à
sua amada todo contente. Na porta da casa dela, Pedro fez uma descoberta
indigesta: Elize havia se mudado de vez para a capital. A garota foi embora sem
se despedir do namorado. Não deixou nem um bilhete. Pedro ficou destruído
emocionalmente.
Seis meses após a partida de Elize e rasgando-se de paixão, Pedro resolveu
viajar para Curitiba atrás da amada. Quando ele desembarcou na capital do
Paraná, a jovem já morava no flat alugado para atender clientes. Depois de muita
pesquisa, ele descobriu o endereço. Foi até lá sem avisá-la. Não passou da
portaria. Pedro pediu para falar com Elize, e o funcionário do prédio garantiu
não ter ninguém com esse nome entre os moradores. Da calçada, ele viu sua
namorada saindo rapidamente de carro pela garagem. Ela estava com novo
visual, tinha os cabelos presos e usava óculos escuros. Pedro teve dúvida se era
mesmo Elize naquele carro. Ele gritou, mas não foi ouvido porque as janelas
estavam fechadas. O jovem queria fazer apenas uma pergunta: “Por que você não
terminou antes de ir embora?”. A resposta só veio alguns anos depois, quando os
dois se encontraram em São Paulo. Pedro, já adulto, tornou-se representante
comercial de equipamentos médicos e foi a um evento no Centro de Convenções
Anhembi, na zona norte da capital paulista, em 2003. Na saída, foi abordado por
uma cafetina disfarçada de recepcionista oferecendo diversão numa boate do
Baixo Augusta. Solteiro, ele pegou o folder e foi até lá. Na hora mais fervida da
noite, o rapaz viu uma moça muito parecida com Elize tomando um drinque no
balcão. Joel, o gerente da casa, aproximou-se e Pedro perguntou o nome daquela
mulher. A resposta o deixou intrigado:
“Chama-se Kelly. Cobra 300 reais a hora. É uma das melhores garotas da
casa. Lindíssima, bumbum de ouro, nível universitário, educadíssima e
supercarinhosa. Tem tantas qualidades que nem sei por que virou mulher da
vida...”, descreveu Joel, agente de Elize.
Bêbado, Pedro não acreditou quando se aproximou do seu primeiro amor.
Elize estava irreconhecível aos seus olhos. Quando eles namoravam, ela fazia a
linha acanhada e fogosa; mantinha os cabelos castanhos e usava roupas cafonas.
Kelly era altiva, estava loiríssima e bem vestida. Tinha pele diáfana, quase
transparente. Os olhos eram claros e desbotados naquela noite, graças a uma
lente de contato gelatinosa. O olhar da garota estava um pouco gelado, mas fazia
os homens derreterem. Kelly tinha várias personalidades. Na boate, era uma
mulher de volúpia discreta e reservada na aparência. Usava um vestido de festa
de malha com aplicações de paetês com decote e fenda profundos, emprestando
um ar sexy. O batom era escuro. Pedro se aproximou e Kelly o reconheceu. Ele
ficou ruborizado. Ela fingiu ser outra pessoa. Não colou. Embriagado, o rapaz
teve um faniquito na boate:
– Então é isso? Você é prostituta? Bumbum dourado? Fala, porra! Trezentos
reais a foda?
– Para! – implorou Elize, já fora da personagem.
– Vou contar para Chopinzinho inteira que você virou puta! – ameaçou aos
prantos.
Elize levou Pedro para o flat e resolveu abrir o seu baú de segredos. Contou
os reveses da vida desde que era abusada sexualmente pelo padrasto.
Confidenciou em prantos e com riqueza de detalhes como foi humilhada por
caminhoneiros nas estradas do Sul enquanto passou 45 dias fora de casa. “Eu me
vendia de manhã para comprar o almoço à tarde. E me oferecia de tarde para
tentar jantar à noite. Dormia em cemitérios...”, relatou. À família, Elize havia
contado ter sido acolhida por uma família enquanto esteve fora de casa por um
mês e meio. A conversa com Pedro foi tão triste e pesada que não sobrou clima
para namoro. Pedro perguntou insistentemente por que ela tinha ido embora de
Chopinzinho sem se despedir. Elize respondeu à pergunta com um balde de
lágrimas. Os dois foram dormir na aurora. Quando ela acordou, seu ex-
namorado havia sumido sem dizer tchau. Ficou em suspense se ele cumpriria a
promessa de propagar em Chopinzinho o fato de Elize ser garota de programa
em São Paulo. Compadecido, ele manteve a revelação sob o mais absoluto sigilo.
Nunca contou nem à sua sombra ter iniciado a vida sexual com uma profissional.
“A população de Chopinzinho é muito conservadora. Ter namorado uma
prostituta prejudicaria a minha imagem na cidade. Por isso fiquei calado. [...]
Pensava o seguinte: Deus vai se encarregar de mostrar quem ela foi a vida toda”,
justificou.
Pedro pôs em xeque a tese de que Elize fora abusada pelo padrasto. “Ela
mente com a mesma naturalidade com que respira. [...] Essa história não é
consenso nem na família dela. Suas irmãs duvidam desse estupro”, acusou o
rapaz. Religioso, o jovem evocou a Bíblia para justificar a decepção amorosa com
a mulher com quem aprendeu a beijar: “Deus é nosso refúgio e força, uma ajuda
sempre presente em tempos de angústia”. [Salmos 46:1]. Ele se casou, teve um
filho, se separou, casou-se novamente e já se divorciou da segunda esposa. Estava
namorando uma enfermeira em 2020. Amigos de longa data arriscaram um
palpite: Pedro jamais tirou Elize do coração. Ele riu dessa afirmação, apesar de
ter cancelado um compromisso com a atual namorada para falar de Elize por
mais de três horas com os olhos marejados, em Chopinzinho, em dezembro de
2020. “Mentir para si mesmo é sempre a pior mentira”, cantou Renato Russo na
canção “Quase sem querer”, da banda Legião Urbana.
* * *
Uma semana depois de ter reencontrado Pedro, Elize foi até a casa de
Chantall e ficou chocada quando viu a amiga com os hematomas no rosto, frutos
das porradas desferidas por Salim. As marcas primeiro apresentaram uma
coloração roxo-escura quando o local estava inchado. Compressas de água
morna ajudaram a remover coágulos e deixaram a pele esverdeada. As marcas se
concentravam ao redor dos olhos, na lateral do queixo e próximo aos lábios.
Elize sugeriu denunciar o agressor na Delegacia da Mulher. A prostituta goiana
confessou ter consentido com o espancamento, pois havia recebido 1.900 reais
pelo programa especial com Salim. Mas ela se dizia “meio arrependida” porque
teve de ficar parada por uma semana até seu rosto desinchar, amargando
prejuízo.
Quando Chantall voltou a atender, as marcas em seu rosto lindo ainda
estavam meio marrons. Ela marcou um programa com um engenheiro civil
chamado Mathias, de 37 anos. Era um cliente antigo e o encontro ocorreu numa
suíte do Hotel Ibis, no Ibirapuera, zona sul de São Paulo. Para tentar disfarçar os
hematomas, a profissional abusou da maquiagem. Ela passou primeiro uma
demão de corretivo mais claro do que o tom natural da sua pele, seguido de uma
camada de base e um pouco de pó compacto translúcido. O truque não deu
muito certo. É muito comum os clientes exigirem que as garotas de programa
tomem banho momentos antes de transarem. Chantall foi para o chuveiro
sozinha e Mathias chegou logo depois. Ela evitou molhar o rosto, mas ele jogou
água e sabão na face machucada da parceira. A maquiagem se esvaiu pelo ralo e
revelou as marcas da violência do último programa. Mathias ficou surpreso e
excitado quando viu os hematomas. Ele perguntou quanto ela cobrava para levar
uns murros. Constrangida, a jovem avisou que estava de saída. O cliente a
segurou pelo braço e pediu desculpas pela abordagem, mas insistiu no assunto.
Ele se revelou sadomasoquista e dominador. Propôs pagar 2 mil reais para
transar com ela e dar um único murro em seu rosto no momento em que
estivesse gozando. Ainda debaixo do chuveiro, a profissional contrapropôs um
cachê de 2.500 reais. Mathias aceitou, levou a mulher para a cama e fez o
combinado. Chantall, a profissional dona de um dos rostos mais belos do Baixo
Augusta, voltou para casa com 25 notas de 100 reais na bolsa e mais um
hematoma enorme no rosto.
Após ser espancada por dois clientes num intervalo de dez dias, Chantall
passou a achar que não valeria a pena ficar parada à espera do sumiço das
marcas, mesmo ganhando entre 2 mil e 3 mil reais pelo sexo regado a pancadas.
Depois de apanhar de Mathias, ela aproveitou o intervalo no trabalho para visitar
a mãe, Damiana, em Aporé (GO). Em casa, descobriu que a genitora estava com
Alzheimer. A jovem ficou estarrecida quando abriu a porta da sala e se deparou
com uma das cenas mais tristes de toda a sua vida. A casa da mãe, onde passou a
infância e a adolescência, estava toda bagunçada, imunda e fedida. Havia um mês
que não se fazia uma faxina no local. As galinhas do quintal ciscavam pelo chão
da cozinha e defecavam em cima da mesa de refeições. A idosa não tomava
banho fazia cinco dias. O cabelo estava seboso. Já com 63 anos de idade,
Damiana encontrava-se sentada numa cadeira de balanço no quintal na
companhia de Edna, uma vizinha desempregada de 42 anos. Ao ver a filha, a mãe
não esboçou nenhuma reação. Abatida, perguntou para a amiga cuidadora:
“Quem é essa mulher?”
Chantall começou a chorar, mas não perdeu muito tempo com o pranto.
Levou a mãe ao banheiro e deu-lhe um bom banho. Fez uma limpeza pesada na
casa e foi às compras para abastecer a geladeira e a despensa. Pegou duas aves do
quintal e preparou uma galinhada goiana com pequi para o almoço, servido
quase às 16 horas. No dia seguinte, levou a mãe ao neurologista e descobriu que
ela estava na fase 3 do Alzheimer, quando já há declínio cognitivo moderado.
Nesse período, considerado intermediário, os pacientes apresentam problemas
no pensamento e raciocínio. Damiana, por exemplo, já esquecia detalhes sobre si,
não reconhecia quem não a visitava com frequência e era incapaz de andar de
transporte público desacompanhada. Ela esquecia datas e só reconhecia Lucas
como filho, que a visitava nos fins de semana. O médico explicou ser mais
comum o paciente primeiro se esquecer dos parentes que moram longe. Quando
ouviu isso, Chantall caiu em prantos mais uma vez. O neurologista aconselhou a
não deixar Damiana usar o fogão. A família também deveria ficar atenta aos
golpistas, pois os pacientes de Alzheimer da fase 3 são os mais vulneráveis e
costumam ser vítimas de desfalques financeiros.
Comovida, Chantall teve vontade de nunca mais sair de perto da mãe, mas se
lembrou que faltava apenas um ano para o irmão, Lucas, formar-se em
Odontologia. Em São Paulo, a vida de garota de programa era muito mais
promissora financeiramente. Ela, então, se endividou em nome da família.
Contratou Edna para cuidar da mãe em tempo integral por 900 reais ao mês.
Depois dessas providências, a jovem viajou para Goiânia para encontrar o irmão,
cujo sustento dependia dela. O jovem já sabia da doença de Damiana, mas havia
decidido não contar à irmã para não preocupá-la. Lucas propôs parar o curso
universitário para trabalhar de protético no interior e ficar junto da mãe doente.
Chantall o impediu. “Você tem de terminar esse curso logo. Aí a gente monta um
consultório para você trabalhar e, juntos, passaremos a cuidar da nossa mãe. Esse
plano depende do seu diploma”, afirmou a irmã, que continuou a sustentá-lo
como se pagasse uma promessa.
Havia um outro problema na família de Chantall. A casa de três quartos em
que Damiana morava estava com Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU)
atrasado fazia 20 anos e a dívida já havia sido ajuizada. Eles deviam quase 20 mil
reais para a prefeitura. Se o tributo acumulado não fosse pago em um mês, o
imóvel seria leiloado. Lucas havia ouvido de um vizinho o conselho de ir até a
Divisão de Cadastro e Tributação da prefeitura de Aporé para tentar negociar a
dívida. Chantall conseguiu parcelar os valores atrasados em 24 prestações de 850
reais e assim evitar o leilão da casa. Com Edna, a vizinha, ficou combinado o
envio do dinheiro para pagamento da dívida mais o serviço de cuidadora,
somando um total de 1.750 reais a cada mês. A profissional também enviava
dinheiro extra para uma dieta especial da mãe e ainda ajudava Lucas, o irmão.
Depois de passar duas semanas em Goiás resolvendo problemas de família, a
garota de programa com rostinho de boneca viu a sua conta bancária minguar.
Com tantas dívidas assumidas, ela pegou um avião e voltou para São Paulo
decidida a se especializar nas técnicas de masoquismo. Trata-se de uma pulsão
sexual derivada do sadismo na qual o indivíduo se propõe a ser objeto de dor,
sofrimento e prazer causados não por si, mas por outra pessoa.
Para levantar capital o mais rápido possível, Chantall ligou para Salim, um
dos seus clientes mais excêntricos e ricos. O programa foi tenebroso. Num
quarto de motel, ela se deitou nua sobre a cama na posição de bruços. Para
mostrar poder e posse, o cliente pôs nela uma coleira de couro bem justa. Em
seguida, imobilizou os braços da garota com algemas e as pernas com duas
tornozeleiras. Usou uma mordaça para abafar os gritos. Por fim, pôs uma venda
nos olhos dela para envolvê-la numa aura de mistério, tensão e surpresa. Todos
os acessórios faziam parte de um kit de bondage. Chantall estava trêmula. Salim
tomava uísque enquanto acendia um charuto culebra, um modelo feito com três
charutinhos trançados. O homem começou o ritual com um beijo suave nas
costas da prostituta. No mesmo ponto onde tocou seus lábios, Salim apagou o
charuto de ponta grossa, deixando uma ferida em carne viva na profissional, que
se contorcia com gritos sufocados. Em seguida, para completar a violência, Salim
urinou sobre o ferimento.
Sofrendo feito burro de carga, Chantall queria parar. Mas não conseguia se
comunicar porque estava imobilizada e usava a mordaça cuja bola de plástico do
tamanho de um ovo de galinha estava enfiada em sua boca. Depois de apagar a
terceira bituca, Salim finalmente transou com a jovem. No final da sessão de
tortura, ele pagou 2.500 reais à vista. O casal se encontrava toda semana para
realizar todo tipo de fetiche envolvendo sexo e dor. Mais tarde, ela estudou o
tema e tornou-se especialista em sadomasoquismo. Sua posição era sempre de
dominada, ou seja, cabia a ela dar prazer sexual ao parceiro por meio de castigos
físicos e morais. Trocando em miúdos, a garota de programa recebia cachê para
ser torturada, espancada e humilhada pelos clientes. Desse tipo de trabalho,
Chantall tirava todo o dinheiro enviado para Edna cuidar da mãe, para quitar a
dívida de IPTU da casa em Aporé e para bancar os estudos de Lucas em Goiânia.
Santo Agostinho ensinara: não é o suplício que faz o mártir, mas a causa.
* * *
* * *
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* * *
A
briram-se as cortinas vermelhas. Entrou novamente em cena Tatty Chanel,
a profissional do sexo mais trambiqueira das cercanias do Baixo Augusta.
Um ano depois de ter ficado sob a mira do fuzil de Marcos Matsunaga, ela
conseguiu dar uma guinada na vida. Com 29 anos, estava “namorando” firme
com Santiago, de 52, um ex-cliente português, alto, cabelos castanhos, lábios
finos, olhos esverdeados, nem gordo, nem magro. Santiago era dono de uma
panificadora e confeitaria de médio porte no bairro do Tatuapé, zona leste de São
Paulo. Tatty fez programas com o comerciante por seis meses antes de o casal
selar “compromisso”. Foi ele quem a pediu em “namoro”, prometendo uma vida
de conto de fadas ao estilo Julia Roberts no filme Uma linda mulher. Sem
esperanças e dona de um coração maltratado pela prostituição, Tatty, a princípio,
não acreditou nas palavras açucaradas do padeiro, embora ele fosse romântico
como nenhum cliente havia sido até então. Santiago nunca foi de mãos abanando
a um encontro com a profissional. Levava sempre doces típicos de sua terra natal.
Foram esses agrados, aliás, que fizeram Tatty derreter-se aos poucos. O
confeiteiro costumava fazer para a sua amada trouxas de ovos, aqueles rolinhos
amarelos brilhantes mergulhados em calda de açúcar. Num desses encontros, ele
levara pudim abade de priscos, uma iguaria dulcíssima em formato de quindim
feita com toucinho. Os doces portugueses eram sempre saboreados a dois no
apartamento de Tatty depois de noites e noites de muito amor.
Certa vez, Santiago e a prostituta estavam se deliciando com natas do céu, um
doce com camadas de bolacha triturada, chantilly com claras em neve e creme de
gemas. Entre uma mordida e outra, ele reclamou de sua esposa, Matilde, com
quem se relacionava havia 20 anos. A titular era brava e ciumenta. A queixa do
padeiro nem era exatamente sobre o temperamento da mulher. O maior
problema era a falta de interesse sexual entre o casal. Os dois não transavam fazia
três anos, apesar de dormirem na mesma cama todas as noites. “Eu olho para
aquela mulher nua e não sinto nada. Nem nojo. Quando a beijo, parece que estou
a lamber o corrimão de uma escada”, dizia ele para a sua “namorada”. Na
padaria, Matilde era responsável pelas compras e contabilidade. Com receio de
ser passada para trás, ela costumava fiscalizar os dois caixas nas horas de maior
movimento. Adorava acompanhar de perto o dinheiro entrando na máquina
registradora. O casal tinha dois filhos gêmeos de 20 e poucos anos, ambos atletas
de MMA (Artes Marciais Mistas), uma luta violenta envolvendo técnicas de judô,
caratê, boxe, jiu-jítsu, muay thai, kickboxing e wrestling.
Mesmo ouvindo as lamúrias de Santiago sobre a esposa, Tatty não se via no
lugar de Matilde nem nos seus maiores delírios de amante apaixonada. A
profissional tinha muitos anos de estrada para criar planos fundamentados nas
queixas de clientes. Tudo começou a mudar quando o confeiteiro pediu para
Tatty se matricular no curso técnico em confeitaria do Senac para aprender a
preparar doces e sobremesas. Sozinha em casa, fechou os olhos e viu a vida
melhor no futuro. Chorou por horas com a oportunidade concreta de sair
definitivamente da prostituição. Já com as lágrimas secas, inscreveu-se numa
turma do Senac, localizado no bairro da Aclimação, região central de São Paulo.
No ato da matrícula, teve de assinar o seu nome verdadeiro, Deusarina. Ela
aproveitou que ganhou uma carteirinha da instituição para sepultar Tatty Chanel
de vez e passou a ser chamada de Deusa, uma versão abreviada. No início,
Santiago estranhou a nova alcunha de sua amante, mas acabou se acostumando.
Enamorados, os dois só falavam de amor, sexo e doces. Ele jurou por Nossa
Senhora de Nazaré o seguinte: quando a sua Deusa concluísse o curso de
confeiteira, daria a ela um emprego na cozinha de sua padaria. Até lá, segundo
seus planos, ele já teria dado um chute no traseiro de Matilde. O curso teria 800
horas divididas em 50 semanas. Deusa foi até a Paróquia Santa Rita de Cássia, no
bairro do Pari, ajoelhou-se aos pés da padroeira das causas impossíveis,
agradeceu pela graça de abandonar a prostituição e pediu muita luz na nova fase
da vida.
O destino de Deusa realmente estava mudando. Ela tirou o seu blog do ar,
parou de anunciar em classificados e mudou o número do telefone celular para
não ser encontrada por ex-clientes, nem pelas amigas da zona. Até a sua vida de
cambalacheira havia ficado para trás. Deusa ligou para a família paraense e
contou sobre os novos planos profissionais. Os pais ficaram frustrados porque
sonhavam em ter uma filha médica, mas apoiaram a decisão. Lá pelo meio do
curso, Deusa já havia aprendido a usar os principais ingredientes da confeitaria,
sabia selecionar alimentos e aplicar técnicas de preparo, finalização e decoração.
Fazia doces portugueses em casa sob a supervisão de Santiago numa cozinha
toda equipada por ele. Ela tinha batedeira, liquidificador, fogão, forno e até uma
panela automática de mexer massas. Deusa também contava com utensílios
especiais, como tigelas, medidores, espátulas, fouet e bico de confeitar. “Parecia
que eu vivia um sonho. Estava deixando de ser um pano de chão para me
transformar numa toalha felpuda”, contou, emocionada, em agosto de 2020.
Santiago também estava feliz. Não via a hora de recomeçar a vida ao lado da
amante doceira. Fazia planos com Deusa e passava o dia falando dos filhos
lutadores, porém dóceis como meninas, segundo frisava. Na rua, Deusa
encontrou-se com uma velha amiga do meretrício. Ela contou as novidades e
recebeu um alerta indigesto. A tal amiga pediu para Deusa não sonhar muito alto
porque Santiago já havia prometido algo semelhante a outras prostitutas. “Ele
não está me prometendo nada. A minha vida de doceira já está acontecendo.
Logo mais vamos morar juntos e vou trabalhar com ele. E tem mais: se não der
certo com ele, pelo menos eu saio desse relacionamento com uma profissão.
Estou vivendo o momento!”, ponderou Deusa, apaixonada e cega, mas com um
dos pés firmes no chão. “Então, tá. Depois você me conta”, agourou a amiga. Esse
encontro foi suficiente para a semente da desconfiança corroer as certezas da ex-
prostituta.
Certa vez, Santiago arrumou as malas e foi passar um mês em Portugal
visitando parentes. A viagem estava marcada fazia tempo. Ele assegurou à
amante que iria sozinho, pois não aguentava mais a companhia desagradável de
Matilde, a esposa. Deusa confiava nele, mas, depois do alerta da amiga, resolveu
conferir se o padeiro falava a verdade. Com ele em terras lusitanas, a jovem
arrumou-se numa tarde de sábado e foi até a padaria. Ficou impressionada com
o tamanho do comércio. Havia mais de 20 mesas e um fluxo grande de clientes.
Ela pegou uma comanda de consumo, passou por uma roleta e foi até o balcão
lateral. Pediu café preto e um pastel de Belém. Os filhos lutadores de Santiago
ajudavam no atendimento. Quando a amante foi ao caixa pagar a conta, viu
Matilde agitada, recebendo dinheiro vivo e operando máquinas de cartão
juntamente com outras funcionárias. Ficou aliviada. Santiago realmente havia
viajado sozinho.
Faltando um mês para Deusa acabar o curso de técnica em confeitaria,
Santiago começou a ser cobrado pela separação. O padeiro estava com
dificuldade para terminar porque sua esposa havia descoberto recentemente um
câncer de mama, deixando toda a família abalada emocionalmente. “Meus filhos
estão destruídos. Choram feito duas mariconas. Não conseguem mais lutar. É de
partir o coração”, justificou, choroso. Apaixonada, porém sem qualquer
esperança, Deusa pediu para terminar com o comerciante e seguir a vida longe
dele. Planejou pegar o certificado de confeiteira do Senac e voltar para
Ananindeua, no Pará, onde abriria uma pequena padaria com a ajuda dos pais.
Santiago ficou apavorado com a possibilidade de perdê-la e cometeu uma
loucura como prova de amor. Empregou a ex-prostituta na padaria. Deusa só
acreditou no devaneio quando teve a carteira assinada.
No novo posto de trabalho, a amante aproximou-se de Matilde,
acompanhando o drama pessoal da esposa do seu “namorado”. Na padaria de
Santiago, Deusa atuava na gestão da cozinha, calculava estoque e
armazenamento de mercadorias, além de ajudar na fabricação de doces. No dia a
dia, de fato, não percebia sinais de amor entre Matilde e Santiago. Resiliente,
acomodou-se no papel de amada-amante por mais um ano. Já Matilde era traída
enquanto encarava tratamento pesado contra o câncer. O triângulo amoroso era
rodriguiano. Deusa chegou a acompanhar a sua rival ao hospital. Numa das
sessões de quimioterapia intravenosa, Matilde comentou com a ex-prostituta
sobre uma desconfiança:
– O Santiago tem outra mulher!
– O que você disse?! – perguntou Deusa, apreensiva.
– Meu marido tem uma amante.
– De onde você tirou isso?
– Ele sai faz tempo com uma prostituta chamada Tatty...
Cansada pela fadiga do tratamento e tonta com os efeitos colaterais dos
medicamentos, Matilde se calou. Deusa ficou com medo do desdobramento
daquela relação triangulada. Uma semana depois, ela marcou um encontro com
Santiago às 18 horas no Bar Brahma, no centro de São Paulo. A princípio, a
pauta da discussão seria a descoberta de Matilde. Pela primeira vez, a ex-
prostituta foi para o tudo ou nada. Pôs o confeiteiro contra a parede e exigiu dele
a separação, caso contrário iria embora definitivamente. Ela disse viver a
plenitude de amar, mas estava cansada de ser a outra. Deusa chegou a ser
maldosa quando argumentou que Matilde sobreviveria às dores da separação,
pois já estava deprimida com o câncer. Sentados numa mesa de canto, os dois
bebiam cerveja. A amante tentou beijar o padeiro várias vezes, mas ele esquivava-
se. A todo momento Santiago olhava para o relógio. Parecia ter algo marcado.
Quando faltavam 15 minutos para as 7 da noite, o tradicional bar já estava
começando a lotar. O padeiro, então, descartou Deusa definitivamente da sua
vida. Pragmático, ele levou consigo uma pasta com documentos e decretou a
demissão da funcionária na mesa do bar, forçando-a a assinar os papéis. Em
seguida, Santiago mandou a alguém uma mensagem pelo telefone celular e pediu
para Deusa sumir da sua vida e nunca mais pôr os pés no seu estabelecimento
comercial. Nem deu tempo de ela derramar a primeira lágrima. De repente,
Matilde adentrou o bar ladeada pelos dois filhos lutadores. A presença do trio
surpreendeu somente Deusa. Pela reação de Santiago, ele esperava a chegada da
família. Debilitada pelo câncer, Matilde se apoiou numa pilastra, apontou para
Deusa e anunciou aos filhos:
– É essa a puta que está destruindo a nossa família!
Os dois brutamontes agiram como se estivessem num ringue. Sem dizer uma
palavra, partiram para cima de Deusa mesmo estando em um lugar público e
badalado. Um deles, com pelo menos 1,90 m de altura, pegou a amante do pai
pelo cós da calça jeans e a arremessou, feito um saco de batatas, por cima do
balcão. Ela atingiu uma parede enorme de neon contendo nichos com dezenas de
garrafas de bebidas. A brutalidade com que Deusa foi parar na instalação fez as
lâmpadas incandescentes se apagarem. Começou um corre-corre. Os clientes
saíram às pressas do local. O gerente chamou a polícia. Santiago pegou Matilde
pela mão e foi esperar os filhos no carro. Os dois lutadores não se intimidaram
com o tumulto. Deusa estava caída no lado de dentro do balcão e toda cortada
pelos cacos de vidro das garrafas, derramando sangue. Atrozes, os filhos do
padeiro a levantaram pelos braços e a jogaram contra as mesas do salão. A vítima
já estava perdendo os sentidos quando um dos lutadores a levantou do chão pela
blusa. O segundo elemento tirou a parte de cima da roupa da mulher para
desferir uma série de socos. Com o diafragma parcialmente paralisado, ela teve
dificuldade de respirar. Impiedoso, o criminoso sentou mais um golpe na região
do abdome de Deusa, atingindo diretamente o fígado e, consequentemente, o
nervo vago, espalhando a dor pelo resto do corpo. O cérebro de Deusa entrou em
curto-circuito, provocando um desmaio. Santiago voltou ao bar e ordenou que
seus filhos deixassem o local imediatamente, caso contrário seriam presos em
flagrante. Eles obedeceram.
Mal saíram do bar, os dois lutadores voltaram aflitos à cena do crime. Cruéis,
eles pegaram Deusa do chão e a jogaram na carroceria da caminhonete cabine
dupla da família. Santiago dirigiu o carro até a esquina da Avenida Celso Garcia
com a Rua Tuiuti, no Tatuapé, zona leste de São Paulo. Lá, os dois lutadores
desceram da caminhonete, retiraram Deusa da carroceria e a despejaram num
contêiner de lixo. Ela foi encontrada desacordada por garis do serviço de limpeza
urbana de São Paulo e levada ao pronto-socorro do Hospital Municipal do
Tatuapé. A ex-prostituta ficou duas semanas internada. Teve quatro costelas
quebradas, uma fratura exposta no braço direito e passou por uma cirurgia
bucomaxilofacial dois meses depois para consertar a mandíbula. Os médicos
encarregados do primeiro atendimento chamaram a polícia. Deusa contou aos
investigadores que foi atropelada e não registrou ocorrência porque não se
lembrava de nada. Como os policiais conheciam Deusa da época em que era
Tatty Chanel, o caso foi deixado para lá. “Vão por mim, não vale a pena”, pediu a
vítima. Na verdade, ela temia pela vida. Aquele evento extremamente violento
selou a morte definitiva de Tatty Chanel.
No hospital, Deusa descobriu ter perdido um bebê de quatro meses de
gestação que nem sabia estar esperando. Santiago pagou o estrago feito no bar
pelos filhos, mas a família ficou impune, pois nunca foi denunciada. Depois da
tragédia, Deusa recomeçou a vida no Pará ao lado dos pais evangélicos.
Recuperada fisicamente, montou uma padaria modesta no bairro da Cidade
Nova, município de Ananindeua. Nasceu nela uma fobia a homens casados. Na
parede do seu pequeno comércio havia um quadro no qual se liam conselhos
motivacionais da poetisa Cora Coralina: “Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras, planta roseiras e faz doce. Recomeça”.
* * *
* * *
A
s atrizes Fernanda Montenegro, Nathália Timberg, Beatriz Segall (1926-
2018) e outras dezenas de estrelas do teatro, do cinema e da TV sempre
reclamaram que eram frequentemente confundidas com prostitutas. A
bem da verdade, essa confusão não ocorria à toa, segundo relatou a atriz Berta
Zemel, morta de broncopneumonia em fevereiro de 2021 aos 86 anos. “No
teatro, por exemplo, nós éramos criticadas e tachadas de meretrizes, pois a nossa
conduta e os figurinos com muitas plumas e paetês não eram apropriados para
uma moça de família. O preconceito era fortíssimo, principalmente nas décadas
de 1950 e 1960. Parte da sociedade via nas nossas manifestações artísticas algo
impuro e imoral, além de servir de fomento à prostituição. Nos bastidores da TV
Tupi (1959-1980), era comum os executivos da emissora perguntarem para as
atrizes quanto custava o programa”, contou a atriz, em outubro de 2020. Mas não
foram só as roupas e o comportamento extravagante que puseram atrizes e
profissionais do sexo na mesma página. Todos os artistas do teatro, da música,
do rádio e da televisão e garotas de programa em atividade durante o regime
militar (1964-1985) foram obrigados pela polícia a confeccionar uma carteirinha
de identificação para lá de inusitada. O documento de cor salmão, obrigatório
para o artista exercer a profissão e andar na rua à noite, tinha foto e quatro
campos a serem preenchidos com máquina de datilografar. No primeiro espaço
ficava o nome verdadeiro da profissional acompanhado do nome artístico ou de
guerra, no caso das mulheres da vida. Na terceira linha constava o número de
registro e, na sequência, a descrição da profissão, que poderia ser atriz, músico
ou prostituta. Uma última linha era destinada à assinatura do(a) portador(a).
A carteirinha, de simplória não tinha nada. Era emitida numa sala secreta da
sede do Departamento de Investigação da Polícia Federal, em todos os estados. O
objetivo era, na verdade, identificar artistas com inteligência, poder de influência
e coragem suficientes para questionar e subverter a nova ordem estabelecida com
o golpe de 1964, uma conspiração das Forças Armadas arquitetada para derrubar
o governo civil de João Goulart (1961-1964). No entanto, assim como os artistas,
as prostitutas foram intimadas a emitir o mesmo cadastro na tal sala secreta da
polícia, caso quisessem permanecer na calçada batendo ponto à noite. “Quando
fui fazer a minha carteirinha, havia um cantor e três prostitutas sentados no
mesmo banco na sala de espera. [...] Como o documento era obrigatório para
exercermos a nossa profissão, acabou virando motivo de zombaria na classe
artística. Quando uma atriz encontrava uma colega na coxia do teatro ou no
estúdio da televisão, era comum perguntar: ‘E aí? Já tirou a carteirinha de
prostituta?”’, relembra Berta Zemel. Sobre o documento, Fernanda Montenegro
comentou na revista Época, em maio de 2013: “Pertenço à geração de artistas que
tirou carteirinha de prostituta na polícia. Naqueles tempos sombrios, artista era
considerado prostituta, veado ou gigolô”. Outra estrela dos tablados lembrou da
tal carteirinha. “Naquela época, quem fazia teatro era puta. Então, eu era puta.
Sou putíssima até hoje, porque eu defendo a profissão”, comentou a atriz Laura
Cardoso, aos 95 anos, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em junho de
2023.
Além da carteirinha obrigatória no regime militar, outro fator pôs o trabalho
das atrizes e o das prostitutas no mesmo balaio. Ambas fingem ser outra pessoa
quando entram em ação. Elize, a garota do interior descrita como tímida, por
exemplo, transformava-se na destemida Kelly quando atendia os clientes. Sua
segunda persona era uma mulher magnética, dominadora e retumbante. Alícia –
atriz profissional – incorporava a Estrela D’Alva, o astro mais brilhante da noite,
costumava dizer. Já Deusarina, moça de família religiosa, virava a devassa e
trambiqueira Tatty Chanel. As três mudavam completamente a personalidade
quando estavam em atendimento. “Ser outra pessoa era até uma forma de elas se
protegerem das armadilhas da vida”, justificou Violeta, a cafetina piauiense.
Uma infinidade de trabalhos acadêmicos explica como a prostituição e a arte
dramática caminharam de mãos dadas ao longo do tempo. Em 1996, os
pesquisadores Maria Alves de Toledo Bruns e Osvanir Pereira Gomes Júnior, do
Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), publicaram
um estudo feito com 15 acompanhantes com idades entre 18 e 33 anos. A
pesquisa teve o objetivo de compreender a prática do meretrício a partir de como
as mulheres vivenciavam a própria sexualidade enquanto exerciam a profissão. O
trabalho foi feito basicamente com entrevistas e procurou fazer análises da
prostituição a partir de um fenômeno para determinar as estruturas, gênese e
essência – metodologia conhecida pelo termo “fenomenologia”. O estudo
também usou de parâmetro as teses do filósofo e teólogo austríaco Martin Buber
(1878-1965), notório pela defesa do diálogo como ferramenta de estabelecimento
da verdade.
Para melhor entender o resultado do estudo, é preciso partir do seguinte
ponto: ontologicamente falando, o ser humano é diferente das demais espécies
do reino animal porque recebe em sua jornada condições específicas para dar
conta da própria vida, sustentá-la e ampliá-la. Ou seja, o indivíduo é um feixe de
possibilidades sempre em aberto, podendo transcender e surpreender a si
mesmo. Ainda de acordo com a ontologia, somos lançados no mundo sem o
controle da nossa existência e sem qualquer certeza sobre o próprio destino. Isso
fomentaria o seguinte debate: prostituir-se é escolha, vocação ou alternativa de
sobrevivência? Ou pode ser tudo isso junto? “Ninguém escolhe ser prostituta.
Isso é fato. Somos empurradas para essa vida pela necessidade, ambição e falta de
perspectiva. Além disso, muitas meninas têm traumas pessoais e vêm de famílias
totalmente desestruturadas. Foram vítimas de abuso sexual, espancamento e
rejeição. Nesses casos, prostituir-se, além de sobrevivência, é uma forma de
enfrentamento e resistência. [...] As mulheres que dizem gostar dessa vida estão
mentindo para o mundo e para elas mesmas. Se o gênio da lâmpada aparecer
para uma prostituta dizendo que ela pode fazer três pedidos, o primeiro deles
seria uma súplica imediata: me tira dessa vida o quanto antes!”, relatou a cafetina
Violeta, 55 anos de idade e 33 de atividade no meretrício.
Já a obra do filósofo Martin Buber, usada de base para analisar as entrevistas
acadêmicas com as garotas de programa, sustenta que a trajetória do indivíduo
no mundo depende unicamente da forma como ele se coloca diante da realidade,
que sempre lhe solicita um posicionamento. A partir dessa premissa, os
pesquisadores da USP concluíram que a mulher prostituta mantém um
distanciamento afetivo quando está dando expediente, isto é, ela faz do corpo o
seu instrumento de trabalho em troca de dinheiro, assim como fazem as atrizes.
Ainda segundo o estudo da USP, ao manter relações sexuais com os seus
clientes, a prostituta se porta feito um objeto, ou seja, ela presta serviços
utilizando o seu corpo como ferramenta de trabalho, dissociando-o de qualquer
acontecimento emocional. Com base nas entrevistas feitas com as garotas de
programa paulistas, os pesquisadores concluíram que o único prazer que elas
sentem estaria diretamente relacionado à remuneração pelo serviço prestado.
Dessa forma, o pagamento pelo trabalho legitima a forma de a prostituta ser no
mundo. “Ela seria, então, como uma atriz que encena uma personagem em busca
da satisfação dos seus clientes pagantes. Quando sai de cena, volta a ser a mulher
que sempre foi. Ou seja, separando a vida profissional da afetiva. Assim, ela se
torna capaz de negociar seu corpo de forma superficial e distante, não
estabelecendo laços com os seus fregueses, já que a performance sexual seria
completamente mecânica e em série”, assinalou a psicóloga Claudia Waltrick
Machado Barbosa num trabalho intitulado “Um estudo sobre a prostituição”, do
Centro Universitário Unifacvest. Como qualquer estudo qualitativo, cuja
investigação atinge o mundo privado e subjetivo do indivíduo, há de se
considerar as exceções. Ou seja, seria possível, sim, uma prostituta se envolver
emocionalmente com um cliente, assim como uma atriz e um ator estão sujeitos
a se apaixonar pelos colegas que beijam e com quem fingem fazer sexo em cena.
Violeta nunca estudou filosofia, mas tinha profundo conhecimento dos
conflitos existenciais da mulher prostituta, principalmente as negras e
nordestinas como ela. “Sou mulher forte, combativa, de grelo duro mesmo, sabe?
Sobrevivi na vida graças a essas características. A mulher de grelo duro é
imbatível”, reforçou, lembrando a forma com que o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva se referiu às feministas do PT em um áudio vazado no âmbito da
Operação Lava Jato, em 2016. Na botânica e na definição dos dicionários, “grelo”
é o gomo que germina das sementes das plantas e brota da terra. É também uma
das formas chulas que homens e mulheres se referem ao clitóris. Quando ocorre
a excitação feminina, o clitóris fica rígido. Vem daí a expressão vulgar “grelo
duro”. No caso do ex-presidente, ele usou o termo vulgar e machista para se
referir às mulheres do PT. Numa conversa com o ex-ministro dos Direitos
Humanos, Paulo Vannuchi, Lula defendeu que as mulheres feministas do partido
teriam de se manifestar contra o procurador de Rondônia Douglas Kirchner, que
o investigava na época. No mesmo áudio, o petista citou as parlamentares Maria
do Rosário e Fátima Bezerra. “Ele [Kirchner] batia na mulher, levava a mulher no
culto religioso, deixava ela sem comer, dava chibatada nela, sabe? Cadê as
mulheres de grelo duro lá do nosso partido?”, disse Lula, na época.
Precoce, Violeta fez o primeiro programa aos 9 anos e só parou de se vender
aos 30, para passar a terceirizar o corpo de outras mulheres em troca de
comissão. Desde que parou de se prostituir, 27 anos atrás, ela nunca mais transou
com homem algum. “A realidade é que a minha vida foi excessivamente dura. Fiz
tantos programas que fiquei seca, sem libido, sabe? Sexo não me faz a menor
falta. Para você ter ideia, eu olho para um homem nu e não sinto nada. Já passou
pela minha cabeça que poderia ser lésbica. Mas o sexo feminino também não me
atrai. Segundo a minha ginecologista, faço parte do grupo de pessoas assexuais
estritas, aquelas que não sentem atração sexual por nenhum gênero, em
nenhuma situação específica”, contou. Para escapulir da depressão, Violeta bebia
vodca todos os dias e cheirava cocaína esporadicamente. Levava uma vida de
classe média. Tinha apartamento próprio no bairro da Aclimação, uma sala
comercial em seu nome no bairro do Ipiranga e dirigia um Jeep Renegade pelas
ruas de São Paulo. Usava roupas de lojas de departamentos e gostava de
bijuterias. Tinha anéis em praticamente todos os dedos das mãos.
Apesar de bem-sucedida, Violeta não conseguiu desviar-se dos trilhos da
solidão. Nunca foi casada, nem sequer viveu um romance de verdade e,
consequentemente, não teve filhos – apesar de ter transado com uma quantidade
imensurável de homens. “O destino fez de mim uma mulher fria e bem prática
na vida. Faz 40 anos que não choro, acredita? [...] Quando tinha 15 anos, estava
na escola e a professora me pegou chorando de soluçar no recreio. Ela perguntou
o que tinha acontecido. Um colega havia falado que o meu cabelo era idêntico à
piaçava da escova usada na limpeza da privada. A professora não acreditou que
eu estava em prantos por uma ‘bobagem como essa’. Ela me mandou engolir o
choro e disse algo que jamais esqueci: ‘guarde as suas lágrimas para quando
morrer alguém da sua família’. Nunca mais chorei depois desse episódio. Nem
quando meus pais morreram num acidente eu me emocionei. Hoje sou uma
mulher sem empatia. Não gosto de cumprimentos com beijinhos no rosto,
abraços nem apertos de mão. A pandemia foi uma desgraça para toda a
humanidade. Mas se teve uma coisa que gostei foi do distanciamento social.
Adoro essas saudações feitas de longe, em que ninguém toca em ninguém”,
relatou em maio de 2021. Numa autoanálise, Violeta concluiu que os
sentimentos de rejeição, abandono familiar e discriminação fizeram com que ela
adotasse uma postura cética diante da vida.
Experiente, a cafetina ensinava as suas artimanhas às 20 garotas com idades
entre 18 e 21 anos que se prostituíam sob a sua tutela. Um dos truques sugeridos
às profissionais era justamente assumir uma personagem infantilizada na hora de
atender um cliente. Essa estratégia caía feito uma luva principalmente com as
meninas tímidas vindas do interior, chamadas por ela de “caipiras da zona”.
“Algumas raparigas lindas e tímidas, com cara de adolescente, chegam da roça
sem falar nada, como se fossem mudas. Só abrem a boca se for perguntado algo e
ainda assim elas respondem de cabeça baixa, usando monossílabos. Alguns
clientes gostam, mas a maioria quer conversar. Por isso, eu ensino as minhas
meninas a fingirem espontaneidade, como se fossem uma atriz”, ponderou
Violeta. Na verdade, a maioria delas lança mão desse expediente, conforme
concluiu o estudo da USP relatado anteriormente. Luluzinha, a profissional que
“namorou” Marcos Matsunaga antes de ele engatar o romance com Elize, por
exemplo, descreveu o seu alter ego bem diferente do seu verdadeiro eu. “Minha
personagem é desavergonhada, obscena, descarada e engraçada. A Luluzinha só
entra em cena quando estou trabalhando como profissional [do sexo] ou
dançando nos programas de auditório. Na vida real, sou o oposto”, pontuou.
Foi também usando ferramentas da arte dramática que Berbella, de 20 anos,
enredou cada vez mais o seu principal cliente, o bancário Kaul, de 40. Os dois
estavam “namorando” firme fazia seis meses e ela recebia dele um salário mensal
de mil reais por uma suposta exclusividade. Orientada por Violeta, Berbella, na
verdade, nunca foi fiel ao bancário, pois ela atendia na surdina outros clientes
sob o pretexto de receber um valor muito baixo para ser honesta. A garota era
requisitadíssima no mercado por ter se tornado expert em sexo anal e por
começar a praticar pompoarismo, uma técnica de contração voluntária dos
músculos do períneo e da vagina cujo maior benefício é massagear o pênis do
parceiro com a vulva. “Enquanto o Kaul não te der casa, comida e um carro
novinho em folha, a dedicação exclusiva será apenas em sentido figurado.
Principalmente porque já se passou o estágio probatório e nada de ele falar em
união estável”, ponderou a alcoviteira e sem escrúpulos. “União estável” nesse
métier significa uma relação em que o cliente sustenta o lar para uma prostituta
mesmo sem ele se separar da esposa, como já ocorria com Marcos e Elize.
Com o passar do tempo, Kaul começou a emitir sinais de que poderia estar se
apaixonando de verdade pela garota agenciada por Violeta. Certa vez, o bancário
a levou para uma viagem de trabalho ao Rio de Janeiro. Berbella ficou extasiada
com o passeio. Mas se manteve infiel até em terras cariocas. Enquanto o bancário
trabalhava o dia todo, a profissional passava o tempo sensualizando no deck da
piscina do hotel. Quando não, dizia sair para conhecer pontos turísticos
importantes da cidade maravilhosa. Tudo mentira. Ambiciosa, Berbella entrava
em salas de bate-papo virtual para prostitutas e marcava encontro com clientes.
Numa única tarde, fez quatro atendimentos em hotéis e motéis, enquanto o seu
“namorado” dava expediente num seminário para aperfeiçoamento profissional.
Volta e meia, Kaul mandava mensagens pelo celular perguntando onde estaria o
seu amor. Berbella respondia estar em um ponto turístico qualquer, mandava
pelo celular fotos de paisagens da cidade feitas da janela do táxi e finalizava
dizendo morrer de saudade – mesmo estando nua ao lado de outros homens. Se
batesse peso na consciência, Berbella aliviava a culpa contabilizando o fato de
Kaul ser casado, pai de família e muito mão de vaca. “Enquanto ele tiver a
mulher dele e me pagar pouco, terei os meus homens”, raciocinava.
Dos homens que Berbella dizia serem seus, eram cobrados 300 reais a hora
pelo programa. Imprudente e irresponsável, ela transava sem proteção quando o
cliente pedia. No universo da prostituição, transar sem camisinha era comum. A
prática era chamada de “sexo no pelo” ou “cavalo de índio”, em alusão a uma
montaria em que a pessoa cavalga nua num cavalo sem sela, ou seja, com o sexo
em contato direto com o pelo do animal. Quando o cliente queria saber se a
profissional transava sem preservativo, ele geralmente perguntava: “faz no pelo?”
ou “faz cavalo de índio?”, ou simplesmente “faz sem capa?”. Já os clientes
vulgares usavam gírias chulas do tipo: “posso leitar?”, em referência à ejaculação
diretamente no ânus sem qualquer tipo de proteção. Berbella sempre dizia “sim”
para essas questões, acrescentando fazer anal como ninguém. Era cobrado um
acréscimo de 100 reais pela especialidade desprotegida. No Rio de Janeiro, todos
os quatro programas feitos pela garota, incluindo um turista sueco e outro
jamaicano, ocorreram sem preservativo. As transas com Kaul também eram sem
capa. Apesar de estar bem longe dos olhos de Violeta, o respeito por ela era tão
grande que Berbella continuava lhe repassando metade do cachê a título de
comissão e agradecimento pela mentoria.
Na volta da viagem, Kaul seguiu para Campos do Jordão. Berbella ficou um
tempo hospedada na casa de Violeta para aperfeiçoar os planos de “se casar” com
o bancário. Um mês depois do passeio pelo Rio, a garota começou a sentir
tontura. A cafetina esboçou um sorriso maroto. “Deus ouviu as nossas preces e
você há de estar grávida do Kaul”, festejou, preparando uma taça de gim-tônica e
cheirando uma carreira de cocaína. As duas seguiram imediatamente até uma
farmácia e um teste de gravidez simples confirmou as suspeitas de Violeta, que
comemorava o feito como se tivesse acertado na loteria. A felicidade de Berbella
era fingida. No fundo, ela estava mesmo era apreensiva porque havia transado
com dezenas de outros clientes sem preservativo. Mas, por ora, a garota preferiu
esconder a informação relevante para não jogar água fria na fervura de sua
mestra.
Como o resultado do teste de farmácia não era prova irrefutável de gravidez,
Violeta marcou uma consulta para a garota em um ginecologista de confiança
para obter o pedido de um exame laboratorial chamado beta HCG. Trata-se de
uma coleta de sangue cujo resultado quantifica a presença do hormônio,
revelando se existe gravidez ou não. Com o resultado positivo na mão, Violeta
ficou com ideias flutuando em sua cabeça. Depois de pensar bastante, orientou
Berbella a procurar Kaul e anunciar a gravidez o quanto antes, exigindo do
bancário logo de cara pelo menos 30 mil reais para custear o início da gestação.
Metade do valor ficaria com a cafetina. Ela ainda ensinou a garota a chantageá-lo
de forma sutil, caso ele enrolasse para fazer o pagamento. Berbella deveria
perguntar, delicadamente, se ele conseguiria imaginar qual seria a reação da sua
esposa se um dia ela soubesse de uma notícia desse tamanho.
Com receio de passar um vexame típico de novela e com medo de apanhar –
Kaul costumava espancar as prostitutas –, Berbella resolveu contar à mestra que
havia transado com outros clientes sem preservativo, ou seja, o filho poderia não
ser de Kaul. Ao ouvir aquela verdade dolorida, Violeta deu uma bofetada de
surpresa com o dorso da mão no rosto da jovem. O tabefe foi tão forte que ela
quase caiu no chão. Os anéis da cafetina deixaram quatro cortes profundos em
linha reta e com muito sangramento no rosto de Berbella. Violeta explodiu de
tanto ódio:
“Além de puta, você é estúpida. Suma da minha frente antes que eu enfie um
cabo de vassoura no seu rabo! Sua burra do caralho!”, gritou a cafetina,
espatifando a taça de gim na parede.
Revoltada, bêbada e drogada, Violeta humilhou ainda mais Berbella e a
expulsou da sua casa aos berros. A garota se hospedou temporariamente na casa
do tio Joel, o gerente da boate do Baixo Augusta. Uma semana depois, Kaul
procurou por ela e os dois passaram a noite numa suíte do Apple Motel, na Barra
Funda. O bancário, que costumava ser violento nas suas transas, estava no modo
romântico naquela noite. Ele perguntou sobre os ferimentos no rosto da
“namorada” e ouviu uma resposta criativa: ela teria sido vítima de um ataque de
fúria do gato meio selvagem do tio. Kaul acreditou. Pelo interfone, ele pediu uma
garrafa de vinho tinto e duas taças para agradar Berbella. Enquanto esperavam
pela bebida, o bancário repassou à jovem os mil reais em notas de 100 referentes
à exclusividade que ele imaginava ter. Um funcionário do motel entregou o
vinho por uma janela giratória da suíte. Ele sacou a rolha e serviu as duas taças.
Berbella conferiu o dinheiro bem devagar, passou a unha para sentir o alto-relevo
das cédulas e até espiou algumas delas na contraluz para atestar a autenticidade.
– Tá desconfiada que o meu dinheiro é falso, sua cadela?
– Imagina. Jamais desconfiaria de você, seu safado. Acontece que uma vez
peguei notas falsas num caixa eletrônico do Banco do Brasil. Aí passei a não
confiar mais em dinheiro nenhum – justificou Berbella, enquanto guardava as
notas na bolsa.
Vestindo apenas cueca, Kaul então propôs um brinde. A garota aproveitou o
momento especial, tirou toda a roupa e anunciou, nervosa, ter algo importante
para falar. Os dois brindaram e ele deu um gole:
– O que você tem a me dizer de tão especial?
– Estou grávida!
– Olha que legal! Um bebê é uma bênção. Parabéns! Fico muito feliz por
você! – comemorou Kaul.
Demonstrando um contentamento incomum para aquela situação, o
bancário retirou imediatamente a taça de vinho das mãos da “namorada” e a
acomodou em cima da mesa. Em seguida, comentou demonstrando
preocupação:
– Você não pode beber!
– Ah! É verdade! Obrigada por se importar.
– Mas me fale, Berbella. Quem é o pai do seu bebê?
– Como assim? É você, meu amor. Desde que começamos a sair não
encontrei mais ninguém. E nunca fiz sexo sem camisinha com homem algum.
Exceto com você – sustentou.
Dessa vez, foi Kaul quem parou de beber. Para ficar com as duas mãos
desocupadas, deixou a taça numa bancada da suíte. Antes mesmo de ele reagir,
Berbella começou a chorar. “Se você não quiser o nosso filho, posso tirar, viu?
Até porque me acho muito nova para ser mãe. E a gravidez ainda está bem no
comecinho. Acho que nem tem uma vida do jeito que as pessoas dizem...”
Enquanto ela falava, Kaul sentou um murro forte no rosto da garota bem em
cima das marcas deixadas por Violeta. O gesto violento também aconteceu de
surpresa, como a bofetada da cafetina. Berbella foi ao chão com o impacto da
pancada, batendo a cabeça na quina de um móvel de madeira. Ficou prostrada
no carpete aos prantos, com o rosto inchado e sem poder enxergar com um dos
olhos. O bancário se vestiu e pegou os mil reais na bolsa da profissional. Antes de
sair, fez uma ameaça:
– Esse filho pode ser de todo mundo, sua vagabunda, menos meu. Sou
vasectomizado há anos justamente para me proteger desse tipo de mau-
caratismo. Faça desse bebê o que bem entender. Mas se quiser abortá-lo sem
gastar dinheiro, basta me procurar novamente. Vou te dar tanta porrada que esse
feto será cuspido das suas entranhas à força. Vigarista! Vagabunda! Lixo! Verme!
Enfurecido pela traição, Kaul deixou a “ex-namorada” sozinha e ferida no
motel. Pelo menos pagou a conta antes de ir embora. Nunca mais ele deu
notícias. Desiludida com a profissão e com novos planos, Berbella voltou para
Campo Grande e foi morar na casa da mãe, Nazaré, uma feirante devota de
Nossa Senhora de Fátima, de 45 anos. Num rompante de honestidade, ela se
abriu para a família: contou ter virado garota de programa em São Paulo e que
estava grávida sabe-se lá de quem. Queria abortar, mas lhe faltava dinheiro.
Religiosa, Nazaré descartou a interrupção da gravidez com um alerta: “Se você
fizer isso, filha, a sua entrada no paraíso estará cancelada para sempre. Sua alma
vai apodrecer no purgatório porque esse tipo de pecado não tem perdão. Nem o
diabo aceita no inferno mulher que faz aborto”. “Deixa de bobagem, mãe. O
corpo é meu e faço dele o que quiser”, rebateu a jovem. “Não é seu, não. É de
Deus. Ele pôs esse filho aí e só Ele pode tirar”, contra-argumentou a feirante
cheia de fé. Para resolver a questão, Nazaré recorreu à filha mais velha, Belmira,
uma professora de 28 anos, casada com o corretor de imóveis Vivaldo, da mesma
idade. O casal de classe média vivia bem e já tinha dois filhos, mas desejava desde
o casamento ter uma menina. Belmira não poderia engravidar, pois havia
retirado as trompas e os ovários por causa de uma hemorragia ocorrida no parto
do filho mais novo.
Berbella procurou Belmira e contou o seu dilema – deixando claro ainda não
saber quem era o pai da criança. “Preciso fazer as contas. Mas o pai pode ser um
engenheiro civil, um médico, um gringo sueco, um jamaicano naturalizado
brasileiro, um piloto de avião...”, contabilizava. A irmã mais velha ficou de
consultar o marido e daria uma resposta em 15 dias. Duas semanas depois,
Belmira foi até a casa da mãe e anunciou que ficaria com o bebê, caso fosse uma
menina branca e nascesse 100% saudável. Berbella topou. Na 17a semana de
gestação, um ultrassom revelou se tratar de um nenê do sexo feminino. Houve
festa na família. As duas irmãs choraram abraçadas quando a mais nova ofereceu
oficialmente o seu bebê para a mais velha. Nazaré acendeu velas para todos os
santos para agradecer o desfecho daquele dilema em família e passou uma noite
inteira em oração, pedindo a Deus para o bebê nascer sadio. Belmira e Vivaldo
impuseram ainda uma condição sine qua non para ficar com a criança: o casal a
registraria como filha legítima num cartório logo após o parto e ninguém jamais
poderia saber desse segredo. Berbella aceitou, mas pediu 2 mil reais por mês até o
dia do parto em troca desse agrado, totalizando 18 mil reais. “É um preço
razoável para um bebê”, argumentou a garota de programa. Belmira e Vivaldo
acharam justo. Eles também teriam de bancar todas as despesas da jovem
durante a gravidez.
Depois de acertos financeiros, Berbella encarou sua gravidez como negócio e
ficou na casa da mãe esperando pelo parto enquanto dormia, comia e via TV.
Orgulhosa, Nazaré dizia para as amigas feirantes que, do ponto de vista da
espiritualidade, uma irmã doar um filho para outra criar era um gesto benévolo e
indescritível no plano terreno. Nos primeiros meses da gravidez de Berbella,
Belmira e o marido visitavam a irmã todos os dias depois do trabalho. Eles
levavam alimentos saudáveis e agradeciam o presente, segundo ela, vindo
diretamente do colo de Deus. No clássico escrito por Jorge Ben Jor, “Tenha fé,
pois amanhã um lindo dia vai nascer”, eternizado nas vozes dos Originais do
Samba, um dos versos soava como advertência: “Nem tudo que cai do céu é
sagrado”.
* * *
Quando Elize se deparou com a esposa de Marcos à sua porta, o ar que ela
respirava simplesmente desapareceu dos pulmões, tamanho o susto. A garota de
programa nunca tinha visto – nem em fotos – o corpo e o rosto de Lívia, a
mulher que dividia diariamente a cama de casal com o seu “namorado”. Jamais,
nem nos seus sonhos mais loucos, imaginou um dia vê-la cara a cara – ao vivo e
em cores. E que cores! Lívia estava linda e luminosa num vestido com estampa
floral de algodão da famosa grife Dolce & Gabbana. Chamavam a atenção na
peça de roupa o decote em V profundo e a saia rodada. Por outro lado, a esposa
de Marcos não fazia a menor ideia de quem eram aquelas duas mulheres vestidas
com roupas casuais instaladas no apartamento do empresário. Elize estava
paralisada e muda. Chantall assumiu as rédeas da situação. Mesmo com um
hematoma na maçã do rosto e outro sobre o arco da sobrancelha esquerda, ela se
aproximou educadamente de Lívia e inventou uma história:
– Não sei se a senhora sabe, mas o Marcos alugou este flat para nós duas por
uma temporada. Somos universitárias. A locação foi feita por intermédio de uma
imobiliária – mentiu Chantall.
– Ele me avisou que poria alguns dos nossos imóveis para locação, mas eu
achava que este flat estivesse desocupado – rebateu Lívia.
– Se quiser, podemos mostrar uma cópia do contrato... – arriscou a jovem.
– Não precisa. Imagina... Eu nem tenho o direito de entrar no imóvel, apesar
de a propriedade ser do meu marido. O aluguel dá a vocês a posse legal do flat.
Peço até desculpas pela intromissão.
– Você quer entrar e fazer um lanche conosco? – ofereceu Chantall.
Meio acanhada, Lívia aceitou o convite. Entrou, sentou-se à mesa
timidamente e foi servida de espumante. A visita estava perfumada com uma
fragrância francesa caríssima e ostentava joias discretas. Camuflando a tensão,
Elize pediu licença, pegou disfarçadamente o porta-retrato com a foto de Marcos
do aparador da sala e trancou-se no banheiro da suíte. Enquanto Chantall
distraía a intrusa criando histórias para justificar os machucados em seu rosto,
Elize falava com o “namorado” pelo celular tremendo de tão nervosa. Incrédulo
com a notícia de que a esposa estava em sua garçonnière com duas prostitutas, o
empresário da Yoki perdeu o prumo. Depois de refletir, ele decidiu sustentar a
história do aluguel do flat. No entanto, Marcos pediu que Elize desse um jeito de
tirar a mulher do apartamento imediatamente, pois convidá-la para entrar não
havia sido uma boa ideia. Na sala, Chantall atribuía seus hematomas a um
suposto relacionamento abusivo no qual o namorado lhe dava murros possuído
por ciúme. Acreditando na conversa da moça, Lívia ficou estarrecida e
sensibilizada. Aconselhou-a a denunciar o suposto agressor. Elize surgiu na sala e
interrompeu a conversa das duas. Pediu licença mais uma vez, pegou a bolsa e a
chave do carro ainda demonstrando aflição. Disse ter de sair às pressas com
Chantall por causa de uma emergência. Educada, Lívia levantou-se e caminhou
rumo à porta. Perguntou se podia ajudar com algo. Ouviu um “não” seco como
resposta. Na despedida, a mulher do empresário reclamou da falta de companhia
para sair em São Paulo e trocou contato com Chantall, sugerindo uma happy
hour qualquer dia desses. A prostituta ficou empolgada com a nova amizade.
“Gostei muito de você”, reforçou a esposa de Marcos para a jovem goiana, saindo
em seguida.
Bonita, gentil e com uma timidez típica de gente do interior, Lívia nasceu
pobre no município de Nova Prata, na região serrana do Rio Grande do Sul.
Filha de um balconista com uma professora de Educação Moral e Cívica,
melhorou de vida depois de fazer um curso técnico industrial e conquistar uma
vaga à fábrica da Yoki supervisionando a operação das máquinas de empacotar
grãos. Seu salário era de 1.800 reais no início dos anos 2000. Em 2003, sua vida
mudou do vinagre para o vinho. Marcos fez uma visita de rotina à fábrica de 350
funcionários e se deparou com a beleza da “funcionária de chão”, como eram
denominados os integrantes do baixo escalão nas unidades da Yoki. Tal qual um
enredo de novela mexicana, patrão milionário e empregada bonita de baixa
renda trocaram olhares sedutores entre maquinários de fabricar paçoca. Na
mesma semana, ele a convidou para jantar. Quando soube do encontro da filha
com um dos donos da empresa, a mãe de Lívia começou a traçar planos. A ideia
era que Lívia fisgasse Marcos custasse o que custasse. Nem precisou de esforço
materno para o casal engatar um romance. Duas semanas depois, fugazes,
Marcos e a operária estavam namorando firme. O empresário levou o
relacionamento tão a sério que foi pedir a bênção aos pais da jovem. A mãe quase
desmaiou. No início, Marcos, de 33 anos na época, passou a visitar a fábrica do
interior do Rio Grande do Sul mais vezes para encontrar com a namorada, de 28.
Por ordem dele, Lívia era promovida na empresa à medida que a relação se
consolidava. Deixou a supervisão operacional e passou a cuidar de um conjunto
de equipamentos, como tanques e bombas, essenciais na linha de produção da
Yoki. Mais tarde virou gerente de produção. O salário saltou – por ordem dele –
para 3.500 reais, considerado alto na época para quem tinha apenas o curso
técnico.
Com seis meses de namoro, Marcos e Lívia se casaram. Para Lincoln e Paolo,
o empresário assegurou que largaria todas as prostitutas do mundo para se
dedicar exclusivamente ao seu novo amor. Por um longo período ele parou de ir
às cobiçadas festas semanais na mansão de Arethuza, e de fato cortou relações
com todas as prostitutas com as quais saía frequentemente. Com todas elas, uma
vírgula. Havia uma garota que Marcos considerava essencial e não largava de
jeito nenhum: Gizelle, sua fiancée devota de Nossa Senhora Aparecida. “Dessa
princesinha eu não abro mão nem sob a mira de um fuzil”, justificava a amigos.
Os dois mantinham encontros esporádicos e ultrassecretos em suítes de hotéis de
luxo de São Paulo. “O fato de sair com uma profissional não significa que eu não
amo a minha noiva”, ponderava.
A festa de casamento para 400 pessoas ocorreu em Nova Prata e custou quase
meio milhão de reais. Da família de Marcos compareceram os pais, irmão, tios,
tias e primos, além de todo o primeiro escalão da Yoki e centenas de funcionários
da fábrica gaúcha. Amigos do lado A e B da vida dupla de Marcos também
marcaram presença. Lincoln e Paolo foram os principais representantes do lado
alternativo. O casório foi realizado num final de tarde, numa vinícola com vista
deslumbrante da Serra Gaúcha. Tudo bancado pelo noivo. A vida de Lívia
mudou feito conto de fadas. De reles operária de chão de fábrica, passou a ser
casada com o filho da proprietária de uma das maiores indústrias alimentícias do
país.
O primeiro deslumbre ocorreu na lua de mel. Marcos levou a esposa para
uma mansão em Atenas, na Grécia. Depois seguiram para um hotel de luxo na
ilha de Creta, encravada na imensidão do mar Egeu. Marcos alugou um iate de
luxo e passeou com Lívia por dez dias pelo Cabo Sounion, que detém uma das
águas azuis mais belas e misteriosas do mundo. O executivo já havia se
aventurado pelo arquipélago grego outras vezes. Coube a ele ciceronear a mulher
pelo passeio histórico. Na embarcação, ele explicava com dedicação e amor a
origem do nome do famoso mar. De acordo com a mitologia, Egeu era rei de
Atenas, cidade-estado da Grécia Antiga. Seu filho, o herói Teseu, havia partido
para a ilha de Creta para matar o monstro mitológico Minotauro, uma criatura
humana horripilante com cabeça de touro, habitante de um labirinto mal-
assombrado. Egeu acreditava que seu filho havia sido devorado pelo Minotauro
durante uma luta. Inconsolável, atirou-se nas águas e morreu afogado. No
entanto, o desfecho da batalha teria sido o oposto: Teseu matou o Minotauro
com um único golpe em sua cabeça. Em sua homenagem, o mar ganhou o nome
do rei ateniense. O local onde o pai de Teseu se jogou no mar ficou conhecido
como Templo do Poseidon. Marcos e Lívia banharam-se nus nas águas
cristalinas do Egeu, no mesmo ponto onde o pai de Teseu teria desaparecido.
A ex-operária ficava cada vez mais inebriada pelo espírito aventureiro do
marido e por seus conhecimentos sobre História Antiga, gastronomia e vinho.
Da Grécia, eles seguiram para Tóquio, no Japão, onde ficaram por quinze dias.
Todas as viagens eram feitas na primeira classe e as hospedagens se deram em
hotéis caríssimos. A mudança de status de Lívia era apoteótica. Na volta da lua de
mel, os dois foram morar na mansão no Alto de Pinheiros, em São Paulo,
avaliada em 15 milhões de reais. De funcionária da Yoki, ela passou a ser
dondoca. Nos meses seguintes, o casal seguia trocando juras de amor eterno e
jantando e bebendo grudadinhos praticamente todo dia num restaurante
diferente. Às vezes, eles tinham a companhia de Lincoln. Fizeram outras viagens
para praias do Nordeste. Era como se o romantismo não tivesse fim. Mas teve.
Nove meses depois do casamento, a relação azedou sem que um motivo
específico e concreto pudesse ser apontado. Como na canção de Maysa, o mundo
de Lívia caiu antes das bodas de papel, quando o casal completaria um ano de
união. Um abismo entre ela e o marido se abriu. Os dois chegavam a ficar na
mansão cercados por empregados em pleno domingo à tarde lendo jornal e
tomando café – cada um sentado em uma poltrona – sem trocar uma palavra. No
entanto, o empresário continuava a tratá-la bem, chamando-a de “meu amor”,
“meu bem” e “paixão da minha vida”.
Nos primeiros meses de monotonia no casamento, Marcos voltou a sair com
Lincoln e Paolo durante a semana à noite. No início iam a bares e boates, e ele se
mostrava fiel – por incrível que pudesse parecer. Era comum nessa época ele
chegar embriagado em casa. Certa vez, os três amigos alugaram uma mansão na
região serrana da Mantiqueira e ficaram lá quatro dias bebendo e jogando sinuca,
praticando tiro ao alvo com armas de fogo sem a companhia de mulher. Era
como se o trio fizesse um detox do vício em prostitutas. Enquanto o marido
estava sabe-se lá por onde, Lívia ficava sozinha em casa lendo revistas e vendo
novelas, filmes e seriados na TV. Alegando problemas na empresa, o executivo
passava até 14 horas fora de casa. Ele também viajava muito a trabalho, segundo
sustentava para a mulher. Quando ela se queixava da falta da companhia do
marido, era cortada por ele: “Não reclama, meu bem. Foi graças a uma dessas
viagens a Nova Prata que a minha vida encostou na sua”, dizia ele. Às vezes, a
mulher pedia para acompanhá-lo. Marcos até a levava no início, mas passou a
inventar desculpas para se livrar da sua companhia. Na verdade, segundo
amigos, no terceiro ano de casamento, o empresário já queria distância da esposa
nas viagens de negócios porque teria voltado a andar com prostitutas a tiracolo.
Mergulhada numa vida de ócio, Lívia passou a viajar com frequência para a
casa dos pais, em Nova Prata, pois se sentia deprimida com a vida solitária na
mansão de 3.000 m2 e oito empregados. No colo da mãe, ouvia conselhos
amorosos equivocados, do tipo “volte para cuidar do seu marido” ou “salve o seu
casamento porque homem como ele você não vai arrumar novamente”. Lívia
rebatia falando da impossibilidade de manter o seu casamento, uma vez que o
amor havia acabado. A mãe, persuasiva, recorria a metáforas de folhetim para
provar que a filha estava enganada. “O amor é uma estrela tão brilhosa quanto o
Sol. Poderoso, ele não se apaga nunca. Apenas some dos nossos olhos por um
tempinho, mas volta a mostrar a sua luz no dia seguinte. Quando o Sol
desaparecer diante dos nossos olhos, filha, isso não quer dizer que ele deixou de
existir. O amor também é assim”, justificava. Convencida com esse tipo de
conselho, a esposa de Marcos arrumava as malas e voltava para casa para tentar
consertar o que não tinha conserto.
Mergulhada numa vida cada vez mais vazia, Lívia teve a ideia de trabalhar
para passar o tempo. Começou fazendo um levantamento de todos os imóveis
em nome do marido para administrá-los como se fosse uma corretora. Foi na
esteira dessa atividade que ela chegou até o flat do Itaim e se deparou com Elize e
Chantall. No entanto, depois do encontro perigoso, Marcos ordenou que a
mulher deixasse a administração dos seus imóveis somente nas mãos da
imobiliária. Sozinha em casa e sem nada para fazer, a esposa do executivo tentava
descobrir o ponto exato em que o seu casamento havia trincado. Não conseguia.
Nem tinha como. Um belo dia, Marcos a cobriu com beijos ardentes de amor.
No outro, ele simplesmente acordou, escovou os dentes, deu um beijo seco na
testa da mulher e passou a tratá-la com indiferença. No entanto, o sexo não ficou
raro entre o casal em nenhum momento. Continuava frequente e intenso, até
porque ele tinha um apetite sexual hiperativo em função do seu transtorno
psiquiátrico (satiríase). Lívia, por sua vez, mostrava-se disponível na cama
mesmo sendo tratada com frieza ao longo do dia. Partindo dessa premissa sexual,
ela resolveu insistir no casamento muito por incentivo da família. “Filha, se ele
não te quisesse mais, ele não te procuraria na cama. A falta de sexo é o começo
do fim. [...] Lembre-se que o Sol sumiu no final da tarde somente diante dos seus
olhos...”, insistia a mãe.
De fato, o Sol nascia luzente no dia seguinte, mas a vida de Lívia continuava
triste como o silêncio da noite. Quando estava no fundo do poço da solidão, ela
passava um batom vermelho, pegava o seu carro, uma Toyota SW4 avaliada em
300 mil reais, e percorria as ruas da cidade. Às vezes, parava em um restaurante e
jantava sozinha. O preferido era o Antiquarius, no bairro dos Jardins, cujo teto
retrátil permitia ver as estrelas no céu, que sua mãe chamava de “gotículas de
amor”. Num desses encontros consigo mesma, ela pensou em se separar. Mas
mudou de ideia imediatamente ao se lembrar das palavras maternas: “Você acha
que eu amo o seu pai todo dia? Não, não amo. Aliás, ninguém ama diariamente
com a mesma força. Seria horrível se um romance se desenvolvesse num clímax
sem fim. Viva os baixos sem se deixar abater, pois logo o amor renascerá com
uma força muito mais avassaladora”. Houve uma reviravolta no casamento, e o
sol de Lívia voltou a brilhar aparentemente de forma definitiva. Quatro anos
depois de casada, ela engravidou e deu à luz uma menina. A paternidade
transformou o empresário num bom marido. Mas, feito uma bandeja de iogurte
fresco, seu amor pela família teve prazo de validade curtíssimo. Um mês depois
de sua filha nascer, o executivo da Yoki selava “namoro” com Elize.
Hábil na arte de enganar, Marcos não teve dificuldade para administrar a
interseção amorosa. Ele conciliou o casamento e a relação adúltera com Elize por
pelo menos três anos. A princípio, ocupada com o bebê, a esposa-mãe não
desconfiava de nada. Ou fingia-se de cega para criar a filha em paz. Já Elize
sempre exerceu o papel de amante com talento e discrição. Certo dia, no meio do
jantar, Lívia resolveu provocar o marido remexendo coisas do passado.
Recapitulou exatamente o dia em que ela esteve no flat do Itaim, onde conheceu
Elize e Chantall:
– Marcos, deixa eu te perguntar, você conhece aquela mulher chamada Elize
que está até hoje no flat do Itaim? – quis saber.
– Não. Você já tinha me perguntado isso na época. Por que esse
interrogatório novamente?
– É que nunca encontrei o contrato de locação desse imóvel. O porteiro me
disse que ela mora sozinha lá há mais de um ano.
– Já disse para você deixar os meus imóveis de lado. Esquece isso! – gritou
ele, batendo fortemente com a palma da mão no vidro da mesa.
Se tinha algo que deixava Marcos profundamente irritado e até agressivo era
justamente ser pressionado com perguntas conhecidas como “casca de banana”,
comuns em delegacias para fazer o acusado cair em contradição. Sem se
intimidar com a voz alta do marido, Lívia avançou:
– No dia em que eu estive lá, eu vi a Elize esconder um porta-retrato com
uma foto sua...
– Aonde você quer chegar? – perguntou o executivo, ainda agressivo.
A partir daquele momento a máscara de Marcos começou a derreter. Sem
qualquer explicação, a esposa deixou de ser pacífica no casamento. A sua
amizade com Chantall engrenou depois daquele encontro no flat. As duas
passaram a sair uma vez por semana. Em um café-bar, a garota de programa teria
contado a Lívia em tom de segredo que Elize era sustentada por Marcos havia
mais de dois anos. Chantall nega até hoje ter feito tal revelação, apesar de admitir
que ficara “muito amiga” da esposa de Marcos por muito tempo. “Eu jamais
trairia a Elize. Até onde eu sei, a Lívia descobriu que o apartamento não estava
alugado fazendo uma consulta na imobiliária”, sustentou Chantall em novembro
de 2020. Esse imbróglio envolvendo o flat do Itaim teria sido o pivô do fim do
casamento de Marcos. Numa discussão, a esposa pediu que o marido provasse
que Elize era inquilina. Num ímpeto, aos berros, Marcos teria posto uma verdade
dolorosa para fora:
– Quer saber mesmo? Então toma: a Elize é minha amante há três anos. Eu
jamais largaria você para ficar com ela porque você vale muito mais do que uma
prostituta, apesar de ser uma operária de piso de fábrica. Não há nem
comparação. Mas agora quem não te quer mais sou eu. Odeio mulher que fica no
meu pé com esse tipo de investigação. Arruma as suas coisas e suma dessa casa
ainda hoje. Suma da minha frente! Saia da minha cidade! Desapareça da minha
vida para sempre! Volte para a sua vida triste de pobre naquele cu de mundo!
Diante do comportamento explosivo do marido, Lívia começou a perceber
que o seu sol, ao contrário do que pregava a mãe, havia se apagado de vez. Com
medo de ser espancada e apavorada com o arsenal bélico do empresário, ela
arrumou as malas, pegou a filha pequena e foi para um hotel naquela mesma
noite. No dia seguinte, partiu para Nova Prata. Mas, antes da viagem, Lívia fez
uma visita a Elize no flat do Itaim. Na segunda vez em que esteve frente a frente
com a amante do seu marido, ela estava com sua filha no colo. A conversa
aconteceu no meio da sala e foi tensa:
– O Marcos me contou que você é garota de programa. Ele te sustenta, né?
Tirou você da calçada e pôs aqui nesse apartamento. Ele também me tirou do
chão da fábrica...
– O que você quer? – interrompeu Elize.
Cuidadosamente, Lívia acomodou a filha no sofá e Elize recuou com medo de
apanhar. A mulher a tranquilizou:
– Fique calma. Eu não vou bater em você. Nem me passa pela cabeça fazer
isso porque o Marcos não merece ter duas mulheres se espancando por ele...
– O que você veio fazer aqui? – insistiu Elize.
Lívia se aproximou da garota de programa. Face a face, olho no olho,
continuou:
– Vou dar um conselho que eu sei que você não vai seguir. Mesmo assim vou
falar: eu vim te avisar para pular desse barco enquanto há tempo. O Marcos se
apresenta como um homem romântico e amoroso. Mas, na verdade, ele é
altamente perigoso, cruel, desequilibrado, doente, egoísta, machista, misógino,
tóxico, escroto e muito violento. Ele vai te mostrar um mundo maravilhoso e
você ficará cega. Depois ele vai destruir a sua vida. Quando você perceber, será
tarde demais.
– A minha história com ele será diferente... – ponderou Elize.
– Ah é? Será diferente? Por quê? Você se acha especial? Não se engane. O
Marcos é um homem deplorável. Não precisa jogar cartas de tarô para prever
que ele vai te trocar por outra garota de programa em pouco tempo. Vai
descartar você feito um lixo não reciclável. É uma questão de tempo.
– Obrigada por me avisar – encerrou Elize.
Depois de fazer profecias na sala da amante do seu marido, Lívia pegou a
filha e foi embora. Elize encarou o discurso da esposa do empresário como
recalque de mulher traída e rejeitada. Mas ficou um pouco mexida. Não contou
para Marcos sobre a visita indigesta da ex-operária. Preferiu comemorar.
Chamou Chantall para festejar com champanhe o fim do casamento do
empresário. Com Marcos livre e desimpedido, Elize passou a operar a vida com
um mundo de possibilidades que se abriria a partir daquela separação. “Amiga,
vai com calma. O Marcos pode ser isso tudo que ela falou”, alertou Chantall.
Elize deu de ombros.
Colocada diante do destino, Lívia não encontrou a felicidade depois da
separação. Teve uma fase vingativa, na qual criava junto com a mãe obstáculos
para o ex-marido ver a filha. Apontou o temperamento explosivo do empresário
como motivo para mantê-lo longe da criança. Por Chantall, a gaúcha soube que
Marcos assumira o namoro com Elize na sequência. Os dias passavam e as
angústias da ex-operária aumentavam. Amando Marcos e distante dele, afundou-
se em depressão, engordou e foi internada em uma clínica particular
especializada em prevenção de suicídio. Marcos e Lívia haviam se casado com
regime de separação total de bens. Sendo assim, ela saiu da relação com uma mão
na frente e outra atrás. Dele, recebia uma pensão de 8 mil reais para custeio das
despesas da filha. Esse valor não pagava, na época, suas contas médicas nem o
IPVA do seu carro de luxo. O valor da pensão havia sido calculado com base no
salário bruto de diretor da Yoki, 31 mil reais na época. A título de comparação,
vale relembrar: as mesadas que Marcos pagava às prostitutas eram de quase 30
mil reais.
Separada, Lívia contraiu colite ulcerativa crônica, uma doença inflamatória
no aparelho digestivo cuja causa é desconhecida, mas que alguns especialistas
associam a distúrbios do sistema imunológico provocado por abalos emocionais.
O medicamento receitado para tratar essa enfermidade, Remicade (Infliximabe),
custava 12 mil reais e era de uso contínuo. Sem dinheiro e abandonada, ela
recorreu à Defensoria Pública para forçar a prefeitura de Nova Prata e o governo
do Rio Grande do Sul a lhe darem o remédio gratuitamente.
Separado, Marcos deletou Lívia da sua vida. O empresário passou a
apresentar Elize para os amigos como “namorada” legítima. Ela já não se
prostituía mais com outros homens. Mas é bom frisar: mesmo se relacionando
livremente e apaixonados, Marcos e Elize continuavam mantendo uma relação
remunerada, pois ele ainda pagava a ela a mesada líquida de 20 mil reais a título
de exclusividade. Das amizades da zona, ela só mantinha contato com Chantall e
Joel, o gerente da boate do Baixo Augusta. Marcos implicava com os dois, mas
Elize argumentava não ter como viver somente em função dele.
Depois da separação de Marcos, Elize continuou instalada no flat e ele voltou
para a casa dos pais. Na nova fase, segundo Lincoln e Paolo, o executivo parou de
contratar prostitutas, apesar de Gizelle, sua fiancée, garantir que eles nunca
deixaram de se encontrar. Segundo ela, os dois saíram “profissionalmente” por
oito anos – entre 2001 e 2008. “Foi um dos meus melhores parceiros. Carinhoso,
generoso e demonstrava preocupação. Era muito ‘mão aberta’. Me deu um carro
novo e pagou a minha faculdade até eu me formar”, disse Gizelle em março de
2021. Eles só pararam de se encontrar quando a acompanhante de luxo
abandonou a profissão para morar com um ex-cliente norte-americano por
quem se apaixonou perdidamente. Gizelle é dona de casa e tem dois filhos. Mora
na cidade de Kokomo, no oeste do estado de Indiana, nos Estados Unidos.
No quarto ano de “namoro”, Marcos foi morar com Elize no flat do Itaim. Na
fase em que dividiam o mesmo teto, ele ainda manteria o pagamento da mesada
de 20 mil reais. No entanto, o empresário passou a desenvolver um ciúme
doentio da companheira, principalmente em relação ao gasto desse dinheiro.
Basicamente, a prostituta comprava roupas, fazia tratamento estético – ela fez
rinoplastia para mudar o formato do nariz –, vivia em salões de beleza e passava
o dia fazendo musculação. Inseguro, o empresário acreditava que ela se
embelezava para outros homens. Com isso, ele também passou a se cuidar mais e
dedicava-se integralmente ao “namoro”. Começou a fazer musculação, tratar da
pele e do cabelo. “A partir de agora, serei outro homem. Não quero mais saber de
garotas de programa. Resgatei a minha princesinha e vou cuidar dela como se
fosse única”, pontuou aos amigos numa mesa de bar. Lincoln teria dito que Elize
só deixaria de ser uma prostituta quando o pagamento mensal de 20 mil reais
fosse suspenso. Marcos ficou pensativo quando ouviu tal ponderação e
argumentou com uma oração subordinada substantiva completiva nominal:
“Tenho medo que ela vire garota de programa novamente”. E manteve a mesada.
Apaixonado por armas e caça, Marcos levou Elize para aprender a atirar no
Clube Calibre de Tiro Esportivo, na Lapa. O empresário já frequentava o local
fazia cinco anos e era um excelente atirador. Já no nível avançado, ele praticava
tiro em alvos móveis e fixos usando pistolas e fuzis. Nas aulas, Marcos esbanjava
conhecimentos sobre o uso de armas de fogo e aprimorava algumas técnicas e
performances. O executivo também trabalhava com instrutores o fator
psicológico, ao desenvolver a capacidade de agir com armas em situações de
pressão e forte estresse, como num assalto, por exemplo.
Elize começou o curso com o básico do básico. Foi primeiro introduzida à
nomenclatura das peças, aos princípios essenciais de segurança e aos aspectos da
lei de armas vigente no país. Na segunda semana, aprendeu a manusear armas
simples e deu entrada na papelada para obter porte. Um mês depois, Elize
ganhou de presente de Marcos uma pistola Taurus modelo G2C, 9 mm,
compacta, ergonômica e leve, comprada na época por 5.500 reais. Já na fase
intermediária, ela passou a treinar simulando situações mais realistas. Trabalhava
aspectos essenciais na prática de tiro, como postura, agilidade e reflexo. Os
instrutores ficaram boquiabertos quando Elize passou a atirar no alvo central
mesmo sob pressão psicológica (em alguns treinos, eram simulados ataques
repentinos para o aluno se defender atirando). Ela também aprendeu
rapidamente a fazer recarga de munição, troca de pequenas peças e até limpeza
das pistolas.
Obcecada por armas e sem trabalho, a prostituta passou a frequentar o stand
de tiro diariamente, enquanto Marcos dava expediente na Yoki. Com tanta
dedicação, seis meses depois de muito treino ela acabou se tornando uma
atiradora mais eficiente do que o empresário. Competitivo, ele não ficou muito
contente com a ascensão meteórica da “namorada” no esporte bélico. Certa vez,
Elize levou Chantall numa dessas aulas. A amiga deu uns disparos, mas não
acertou nenhum alvo. Para mostrar a sua habilidade, Elize pôs uma latinha de
Coca-Cola a 10 metros de distância para usá-la como alvo. Em seguida,
perguntou para Chantall em qual letra deveria acertar. A amiga escolheu “A” de
amor. A jovem carregou a arma, acertou a mira e disparou. Atingiu justamente a
vogal escolhida. “Elize tinha um enquadramento de mira perfeito. Ela sacava a
arma da cintura com agilidade e ajeitava a empunhadura em fração de segundos.
Também corrigia as alavancas num piscar de olhos. Alcançava um ponto de
equilíbrio e eficiência como poucos atiradores na época. Além disso, sua precisão
de alvo era extraordinária. Mostrava-se fria e segura na hora de disparar”, contou
um dos seus instrutores, em agosto de 2020. Segundo ele, o aperfeiçoamento dela
também era fruto de muito treino com tiro a seco praticado em casa depois de
ganhar a pistola de Marcos. Tiro seco é a prática de “disparar” a arma de fogo
para treino de manejo sem que ela esteja municiada.
Excelente atiradora, Elize passou a pressionar Marcos para mostrar a ele o
potencial dela em caças. Queria visitar as florestas do Sul e o Pantanal do Mato
Grosso, onde a Yoki tinha uma fábrica no município de Novo Campo do Parecis.
Ela tinha fome de abater animais com tiros certeiros. O “namorado” prometeu
levá-la nas próximas férias a uma mata no Paraná, onde a caça esportiva de
javalis era permitida. Enquanto isso, o casal passou a frequentar assiduamente o
Zoológico de São Paulo para ver bichos em cativeiro. Esse fetiche acabou se
tornando uma obsessão. Eles iam praticamente toda semana e faziam passeios no
Zoo Safári para sentir a emoção de estar perto de dezenas de animais selvagens,
como leão, girafa, camelo, hipopótamo e avestruz. No passeio, Elize mirava os
animais com os dedos e fazia gestos de arma com as mãos para simular tiros,
marca registrada do ex-presidente Jair Bolsonaro em suas campanhas eleitorais.
Quando a mira dos dedos estava ajustada, Elize fingia disparar e soltava uma
onomatopeia – pááá! – em alusão ao som do estampido. Em seguida, soprava a
ponta dos dedos como se deles saísse fumaça. Marcos ria daquele gesto infantil e
a cobria de beijos molhados de amor.
O passeio na selva de mentirinha do zoológico era feito em um Jeep
Wrangler de Marcos. Eles percorriam 2,9 quilômetros em uma área total de 80
mil m². Elize costumava alimentar algumas espécies dentro do carro com ração
vendida no próprio zoológico. De tão encantada com a vida selvagem, ela passou
a frequentar o parque durante a semana sem a companhia do empresário.
Algumas dessas visitas eram feitas com Chantall. As duas passavam a tarde
inteira no local. Na época, elas tinham verdadeiro fascínio pelos macacos e pelas
serpentes. Até que esse excesso de visitas ao zoológico foi motivo para a primeira
briga séria do casal.
Certo dia, Elize estava com Chantall no zoológico quando se deparou com
um macaco novato no viveiro dos primatas. Elas pararam para olhar. Era um
chimpanzé macho alfa, batizado pelos treinadores de Pepe. Ele tinha sete anos,
1,60 m de altura e pesava 80 quilos. Brincalhão e sedutor, era egresso do jardim
zoológico de Lisboa, em Portugal. De repente, Pepe parou perto de Elize e passou
a olhá-la fixamente através do vidro. O bicho estava encantado por ela. Chantall
foi a primeira a fazer chacota. “Esse macaco está apaixonado por você”, brincou.
As duas riram e seguiram com o passeio pelo parque. Dois dias depois, Elize
voltou sozinha ao zoológico e lá estava Pepe cortejando-a. O primata olhava para
a prostituta querendo se comunicar. Elize fez várias fotos de Pepe. À noite,
mostrou as imagens para Marcos:
– Olha esse macaco que chegou ao zoológico. Chama-se Pepe – empolgou-se.
– O que é que tem ele? – desdenhou o empresário.
– Você não achou ele bonito?
– Não! Nem um pouco – revidou, irritado.
Para amigos, Marcos confessou ter ciúme de Pepe. “Acho que a minha
‘namorada’ está apaixonada por um macaco”, reclamou para Lincoln. “Eu li não
sei onde que os chimpanzés seduzem as mulheres”, contou o amigo, deixando o
empresário mais intrigado. Na semana seguinte, Elize voltou com Chantall ao
zoológico para visitar Pepe, que era um macho extremamente dominante. Seu
bando de macacas tinha oito fêmeas e ele cruzava na hora que bem entendesse,
independentemente de elas estarem ou não no período fértil. Em pouco tempo,
Pepe se apaixonou por uma chimpanzé chamada Maria Pia e teve um filhote, o
Petit. Elize acompanhou toda a formação da família do novo amigo primata,
registrando tudo pela câmera do seu celular ao longo de um ano. Numa outra
visita, as duas amigas flagraram o momento em que Pepe cruzou com uma outra
macaca. Elize conseguiu filmar o ato sexual. A fêmea no cio mostrou-se
disponível para a cópula ao apresentar ao parceiro o órgão genital inchado e cor-
de-rosa. Pepe não perdeu tempo e cobriu a parceira. Animada com o flagrante de
amor, a jovem foi mostrar os vídeos novos a Marcos e ainda ponderou que Pepe
fazia sexo seis vezes ao dia, segundo um tratador havia dito. Quanto mais Elize
contava para o “namorado” detalhes da vida sexual de Pepe, mais ele espumava
de ciúmes. Num ataque de fúria, o empresário disse não querer mais saber das
macaquices de Pepe e a proibiu de ir ao zoológico sem a sua companhia.
No dia seguinte, Marcos foi sozinho ao zoológico ver o macaco com os seus
próprios olhos. O primata costumava interagir com o público. Quando viu o
empresário, ele se aproximou para cumprimentá-lo. O executivo encarou o gesto
cortês de Pepe como provocação. Seu ciúme só fez crescer. Ao sair do parque, ele
passou numa loja clandestina de animais e comprou por 5 mil reais um filhote de
jiboia recém-nascido de 50 centímetros e 150 gramas, além de uma dezena de
camundongos. Embrulhou a cobra, que tinha escamas nas cores cinza-claro e
dois tons de marrom, puxando também para o preto. Levou a serpente para casa
numa caixa com furinhos nas laterais. Na hora do jantar, ele deu o mimo para
Elize. Ao abrir o presente, ela quase caiu para trás com a surpresa. Elize batizou a
jiboia de Gigi e a deixou passear pelo seu colo. Os ratinhos foram postos num
viveiro. Enquanto isso, Marcos pediu para a sua “namorada” prestar muita
atenção para o que ele tinha para falar:
– Às vezes, o homem entra na vida de uma mulher no momento errado...
– Ai meu Deus! – interrompeu ela, chorando, agarrada à cobra.
– ...Elize, você é muito linda. Algumas vezes, quando você está dormindo e a
luz da janela se reflete no seu rosto, eu fico paralisado, sem fôlego. Eu fico sem
respirar por causa do tamanho da sua beleza.
– Eu te amo! – declarou-se Elize pela primeira vez.
– Eu também te amo, meu amor. Não tem como não te amar. Você é uma
mulher deliciosa. Derruba qualquer um!
– Marcos, você é o homem mais importante da minha vida! – interrompeu
mais uma vez, já com Gigi passeando pelos seus ombros e pelo seu busto.
– Cheguei à conclusão de que você é a mulher que vai passar o resto da vida
ao meu lado. [...] Você quer casar comigo?
– É tudo que eu mais quero nessa vida!
– Prometa que você nunca mais irá ao zoológico visitar nenhum macaco.
– Prometo por tudo que é mais sagrado nessa vida! Só terei olhos para você e
para a nossa filha, Gigi!
Ato contínuo, Elize beijou a cobra no nariz e a colocou dentro de uma caixa
de madeira. Pegou um rato branco da cesta segurando-o pelo rabo e o ofereceu
ao réptil. Apavorado, o roedor correu, chiando de um lado para o outro. Gigi
manteve-se imóvel até a presa se cansar. Quando o rato finalmente ficou sem
fôlego, a cobra se aproximou lentamente. Imobilizou o bicho com um bote
certeiro no pescoço e enrolou-se nele rapidamente para sufocá-lo e quebrar seus
ossos. A esmagadura violenta interrompeu o fluxo de sangue e, em consequência,
o fornecimento de oxigênio aos órgãos vitais do roedor. Essa falta de oxigênio
causada por sufocamento, conhecida como isquemia, destruiu rapidamente os
tecidos do cérebro, fígado e coração. Alguns minutos depois, a serpente abriu a
bocarra e começou a engolir a presa pela cabeça. Marcos e Elize apreciaram com
devoção a cena asquerosa. Excitado, o casal trocou beijos de amor e desejo.
Fizeram amor no tapete da sala. Enquanto isso, Gigi, devidamente alimentada,
saiu da caixa e rastejou sem rumo pelo chão do apartamento à procura de um
lugar tranquilo para fazer a digestão.
“Não me mande meninas problemáticas, dessas
que a mãe fica enchendo o saco”
F
altavam poucos minutos para as 16 horas de uma quarta-feira quando
tocou o telefone celular de Violeta, a cafetina piauiense especializada em
garotas de programa de pouca idade. Do outro lado da linha estaria Lúcia
Amélia Inácio, assessora particular de Samuel Klein, empresário bilionário e
fundador das Casas Bahia. O magnata era conhecido no Brasil pelo pomposo
título de O Rei do Varejo. A metonímia foi-lhe atribuída na esteira da sua
gloriosa biografia, cujo enredo continha drama na infância, suor e trabalho
escravo na adolescência e muito sucesso profissional na vida adulta. O
empresário polonês nasceu pobre em 1923, em uma família judia. Perdeu a mãe e
cinco irmãos executados em campos de concentração. Enquanto esperava na fila
para também ser assassinado pelo Estado nazista, Samuel se destacou com
carpintaria no trabalho forçado e conseguiu escapar do Holocausto. Em 1951,
aos 27 anos, emigrou para a Bolívia. No ano seguinte, chegou ao Brasil e
começou a trabalhar exaustivamente como vendedor ambulante. Seu negócio era
bem simplesinho. Ele comprava artigos de cama, mesa e banho no tradicional
comércio do Bom Retiro, em São Paulo, e revendia de porta em porta usando
uma carroça puxada por um burro, no município de São Caetano do Sul,
mesorregião metropolitana de São Paulo. A maioria dos seus clientes era
formada por retirantes nordestinos, apelidados na cidade de “baianos”, embora
muitos deles fossem egressos do Ceará, Maranhão, Pernambuco, Pará e Piauí.
Mesmo sem falar português e com pouco dinheiro no bolso, Samuel
conseguiu abandonar a carroça e abriu uma lojinha um ano depois de chegar ao
solo brasileiro. Em homenagem aos seus clientes nordestinos, batizou o
empreendimento de Casas Bahia. A empresa recém-inaugurada tinha um
importante diferencial: não havia nenhuma restrição de crédito para quem quer
que fosse. Muitos dos seus clientes eram velhos conhecidos da época da carroça e
moravam na vizinhança. Sendo assim, eles compravam fiado na loja. A dinâmica
era típica de comércio do interior: o consumidor entrava, passeava por entre as
prateleiras, escolhia artigos para a casa e o vendedor anotava em um caderninho.
Na extensa lista de fregueses, havia gente analfabeta, sem documento e sem
nenhum centavo no bolso. Na loja de Samuel eles pegavam principalmente
colchão e cobertor. Os que não sabiam escrever o próprio nome reconheciam a
dívida esfregando o polegar numa almofada umedecida com tinta de carimbo
azul e imprimindo a digital no tal caderninho, no campo para assinatura. No
final do mês, honestíssimos, os “baianos” voltavam às Casas Bahia para honrar a
dívida e o nome. Na mesma toada, eles faziam novas compras, oxigenando o
negócio de Samuel. Com esse esquema prosperando, o empresário teve uma
ideia visionária: inventou a compra por crediário usando carnê de pagamento.
Anos mais tarde, ele inovou o varejo brasileiro ao conceder indiscriminadamente
crédito mesmo para quem tivesse nome sujo na praça. Meio século depois,
Samuel Klein administrava mais de 500 unidades das Casas Bahia, cujo
faturamento anual alcançava a casa dos 10 bilhões de reais em meados dos anos
2000. Na mesma época, sua rede varejista empregava 57 mil funcionários e
mantinha uma carteira com 26 milhões de clientes cadastrados. Infelizmente, por
trás da capa de empresário de sucesso de Samuel Klein, escondia-se um monstro.
Assim como Marcos Matsunaga, Samuel era viciado em prostitutas, com o
agravante criminoso de praticar pedofilia. A fama de gostar de meninas fez o
empresário ganhar no mercado da prostituição outro apelido: O Rei das
Novinhas. Samuel manteria na folha de pagamento das Casas Bahia uma equipe
de 12 funcionários formada por seguranças particulares, motoristas, secretárias e
até uma enfermeira encarregada de contratar garotas de programa menores de
18 anos para o patrão satisfazer as suas taras sexuais. Quando a equipe não
encontrava prostitutas inéditas – ele evitava repetir uma profissional –, o
pedófilo “mandava buscar” meninas virgens com idades entre 10 e 12 anos em
bairros da periferia. Ele as estuprava sem dó nem misericórdia dentro do seu
escritório na sede das Casas Bahia, no município de São Caetano do Sul, em suas
propriedades apoteóticas do litoral paulista e em uma mansão de praia
luxuosíssima, em Angra dos Reis. Na tarde em que ligou para Violeta em busca
de novas presas para o seu chefe, Amélia estaria organizando uma festa na
mansão do empresário em Alphaville, município de Barueri, Região
Metropolitana de São Paulo. Amélia teria pedido à cafetina três garotas para se
juntarem a um grupo de oito candidatas:
– O bode velho ainda dá no couro? – quis saber Violeta.
– Você não faz ideia do quanto. Tem noites que são dez numa única festa.
– Eita, ferro!
– Agora ele tá com essa presepada de não repetir puta. Acredita? Isso nos dá
trabalho dobrado... – reclamou Amélia.
– Eu não mexo com menores de 18 anos...
– Eu sei, amiga. Mas algumas das suas garotas têm cara de criança. Vou
precisar de três putinhas bonitas com seios pouco desenvolvidos e bem
magricelas. [...] Manda elas virem vestidas com roupas de adolescente que o
velho vai pensar que são piranhas de 13, 14 aninhos... – orientou Amélia pelo
celular.
– Vou ver o que tenho disponível por aqui e te aviso.
– Outra coisa: não me mande meninas problemáticas, dessas que a mãe fica
enchendo o saco no dia seguinte. Quanto menos problema, melhor pra gente –
alertou Amélia.
Samuel só transava sem preservativo. Era praxe uma enfermeira de sua
confiança submeter as garotas a exames laboratoriais para detectar doenças,
como aids, gonorreia, hepatites virais e sífilis. Logo após o ato sexual, essa mesma
enfermeira obrigava as meninas a tomarem pílulas do dia seguinte. No início,
esse trabalho seria feito somente por Amélia, que começou a carreira profissional
nas Casas Bahia na função de enfermeira do departamento de Recursos
Humanos, nos anos 1970, na sede da empresa. Quando Samuel começou a aliciar
e estuprar menores, Amélia teria sido promovida a assessora pessoal e de estrita
confiança do empresário. Com isso, foram contratadas outras duas enfermeiras
para dar suporte ao diagrama criminoso de Samuel. Violeta conhecia o zelo com
a saúde do empresário das Casas Bahia. Ela escolheu três prostitutas
aparentemente sadias dentro do perfil exigido por Amélia. No dia seguinte, o
técnico de um laboratório de análises clínicas passou no escritório da cafetina
para coletar o sangue das candidatas. Três dias depois, saiu o resultado negativo
para todas as infecções.
Samuel Klein tinha 80 anos quando Amélia estava organizando a tal festa
com as profissionais de Violeta. Segundo uma dezena de inquéritos policiais, ele
foi acusado de se beneficiar de um esquema de aliciamento de crianças e
adolescentes para saciar seus desejos sexuais de forma predatória durante
décadas. O Ministério Público de São Paulo sustentou que o seu filho mais velho,
Saul Klein, de 50 anos na época da tal festinha, teria herdado esse traço perverso
do pai e também usufruiria de uma rede particular para aliciar e estuprar de
forma violenta mulheres adultas e menores de idade. No caso dos dois
empresários das Casas Bahia, o modus operandi era semelhante. Segundo a
investigação, eles contratavam cafetinas para arregimentar suas vítimas. Depois
de abusar delas sexualmente de forma vexatória, usavam o poder econômico
para calar tanto as vítimas quanto seus familiares. Ficou constatado também que
algumas prostitutas extorquiam tanto o pai quanto o filho depois dos programas.
No dia combinado com Violeta, Amélia mandou um carro de luxo ao
escritório da cafetina, no bairro do Ipiranga. Um motorista particular de Samuel
ficou encarregado de transportar as encomendas do patrão. Violeta havia
selecionado três meninas: duas de 19 anos e outra de 18 recém-completados. As
três, conforme exigido pelo contratante, tinham cara de novinhas. Roupas de
adolescente, maquiagem leve e penteados com trancinhas ajudavam a
rejuvenescê-las. Uma delas, Gina, a de 18 anos, tinha seios tão minúsculos que
nem faziam volume na blusa. No carro rumo à mansão, as garotas seguiam pela
Rodovia Castelo Branco, enquanto o motorista lhes dava instruções. “Vocês têm
de ficar caladas o tempo todo na festa. Só abram a boca se o doutor Samuel
perguntar algo. E se tiverem que falar, usem voz infantil. Quem conseguir
seduzir o velho receberá mais dinheiro”, prometeu. Perto da chegada, o
motorista repassou pirulitos de cereja para elas chuparem assim que entrassem
na mansão. A ideia era passar uma imagem de sedução inocente com o gesto
pueril.
Novata nesse tipo de aventura, Gina estava com medo, apesar de vender o
corpo em boates havia um ano. As outras duas garotas, Mariá e Rebeca, pareciam
mais à vontade. Ao chegarem à mansão de Samuel, elas foram recepcionadas por
Amélia, toda emperiquitada com roupa e acessórios de festa. A assessora especial
confiscou os celulares das garotas de programa e as levou até um ambiente amplo
que servia de antessala da suíte master da mansão. Lá, havia outras cinco
meninas sentadas em sofás e poltronas. Uma delas parecia ter 12 anos, segundo
relato de Gina. Três seguranças armados estavam em pé vigiando a porta da suíte
e o ambiente onde as meninas aguardavam. Em seguida, Amélia passou uma
orientação a elas: “Vocês fiquem sentadinhas aqui até o doutor Samuel adentrar
por aquela porta. Quando ele se aproximar, vocês fiquem de pé e façam gestos
sensuais. Ele vai olhar para cada uma de vocês e selecionará primeiramente duas.
As escolhidas seguem com ele para a suíte e ganham logo de cara mil reais pela
disposição. Depois teremos os bônus. Quem não trabalhar, volta para casa com
vale-compras, tá?”.
Na sala de espera havia uma mesa com salgados, doces, refrigerantes e baldes
de gelo com bebidas alcoólicas. Ao lado funcionava uma pista de dança privê
iluminada com luzes piscantes de boate. Um DJ animava a festa e pelo menos 30
pessoas dançavam no local. Amélia circulava por todos os ambientes segurando
uma taça de bebida e sempre voltava para falar com as meninas. “Sirvam-se à
vontade, meus amores, mas não exagerem para não atrapalhar a performance de
vocês”, teria pedido a secretária de Samuel. Uma hora depois, uma enfermeira
toda vestida de branco cruzou a sala segurando uma bandeja de inox,
cumprimentou as prostitutas rapidamente e entrou na suíte master, onde Samuel
estava deitado na cama apenas de roupão. A enfermeira limpou a genitália do
empresário com algodão e álcool. Na sequência, aplicou uma injeção de
Alprostadil no dorso lateral do seu pênis. Pela bula do medicamento, uma ereção
completa ocorreria dali a pelo menos 10 minutos e duraria uma hora. Com
pressa, Samuel foi até a antessala escolher as suas primeiras presas. Sem dizer
uma palavra, ele fitou o rosto de cada uma delas. Aproximou-se de Gina e pediu
que ela tocasse em seu pênis pela abertura do roupão. Ela obedeceu e ele
perguntou:
– Você gostou?
– [silêncio]
– Eu perguntei se você gostou! – insistiu.
– Sim... – respondeu a garota, trêmula.
– Então fique de joelhos e me chupe! – ordenou o empresário.
Humilhada e com medo dos seguranças armados, Gina obedeceu. Fez sexo
oral em Samuel Klein na frente de uma dezena de pessoas. Entre as testemunhas,
havia garçons circulando e até uma senhora de serviços gerais uniformizada
recolhendo copos e taças vazios deixados pelos móveis da mansão. As demais
meninas ficaram apreensivas com a dinâmica vexatória do programa. “Foi uma
das cenas mais sujas e asquerosas que testemunhei em toda a minha vida. Não
posso dizer que fui ingênua em estar ali naquela casa. Eu sabia que teria de
transar com um velho em troca de dinheiro. Mas, quando vi aquele circo de
horrores, tentei desistir e não tive como fazer isso. Não havia jeito de escapar. E o
pior ainda nem tinha acontecido”, relembrou Gina em março de 2021.
Gina era um codinome escolhido por ela para se prostituir no anonimato.
Nascida em Maringá, no Paraná, em 1986, era filha de uma cabeleireira com um
motorista de táxi. Teve uma infância comum ao lado de um irmão um ano mais
velho. A família morava em uma casa de madeira com quintal amplo e muitas
árvores. Quando ela completou 12 anos, os pais se separaram. Gina ficou
morando com a mãe. O pai desapareceu de sua vida, apesar de continuar no
mesmo bairro com outra mulher. Sentindo falta de afeto paterno, Gina resolveu
procurá-lo quando estava prestes a completar 15 anos. O encontro foi
perturbador, segundo a sua própria definição. O taxista acreditava que a filha
queria dinheiro para fazer uma festa de aniversário. “Não tenho um tostão para
lhe dar”, foi logo dizendo assim que a viu. Ela tentou abraçá-lo, mas ele se
esquivou. Emocionada, Gina disse que desejava carinho e não dinheiro, pois
sentia muito a falta dele. “Pai, eu queria que você simplesmente gostasse de mim.
Que se preocupasse comigo. Que me perguntasse como estou na escola, essas
coisas de família, sabe?”. A garota teve um choque quando ele disse não ser esse
tipo de pai – que abraça, beija e afaga. “Eu nunca quis ter filhos, nem família,
nem nada. Por isso eu caí fora. Siga a sua vida e esqueça de mim”, encerrou o pai.
Depois do encontro, revoltada com a rejeição, Gina resolveu virar prostituta. A
mãe ficou sem chão. Os primeiros clientes da garota foram justamente os taxistas
do ponto em que o pai trabalhava.
A vingança de Gina contra o pai durou pouco. Aos 16 anos, ela logo saiu de
casa para se prostituir em São Paulo. Dividiu apartamento com uma amiga e
fazia ponto na boate Love Story, no bairro República. “Minha amiga ganhava
muito dinheiro fazendo programas. Isso me incentivou. Conheci muita gente
interessante, comprei roupas de marca e vivia no salão de beleza para ficar
sempre linda. Eu acordava e já me maquiava, pois tinha clientes logo cedo. Que
menina não iria querer esse tipo de vida?”, contabilizou. Aos 17 anos, Gina
cobrava 400 reais por um encontro de uma hora e fazia até oito atendimentos no
dia. Boa parte dos seus programas, nessa época, era encaminhada por um
cafetão. Os cabelos loiros bem lisos e corte chanel com franja cobrindo toda a
testa renderam a ela o apelido de Gina, em referência à mulher estampada na
caixinha do famoso palito de dente. A garota tinha aparência frágil por causa da
magreza e por ser tão baixinha. Tinha 1,48 m de altura e pesava 35 quilos no
início da carreira de profissional do sexo. Na entrevista de recrutamento feita por
Violeta, Gina quase foi reprovada por causa da aparência cadavérica. “Falta
saúde nesse corpo, menina”, criticou a cafetina ao examiná-la nua, em 2003,
quando tinha 17 anos. Em seguida, a velha perguntou: “Você aguenta o peso de
um homem?”. Gina respondeu “sim”. No ano seguinte, aos 18 anos, ela
finalmente entrou no cobiçado catálogo da rufiona piauiense. O comércio do
sexo na vida de Violeta era tão institucionalizado que ela deu as boas-vindas a
Gina com o seguinte comentário: “Você vai receber dinheiro para fazer o que
muitas mulheres estão loucas para fazer de graça e não conseguem”.
Na noite em que estava com outras garotas de programa na antessala de
Samuel Klein, Gina foi escolhida para entrar na suíte master do velho juntamente
com outra garota conhecida como Vik, de 20 anos. Quando Samuel ficou nu,
Gina descobriu o quanto aquele sujeito era decrépito. Segundo mulheres que
passaram pela sua cama, ele tinha pelancas pelo corpo todo, bunda flácida e pênis
torto. Havia nele um aspecto repulsivo em todos os sentidos. “A feiura era
assustadora não só pela forma física, mas também por ser grosseiro e violento.
Falava com a gente como se fosse um ditador”, definiu Vik. De fato, quem
conheceu a intimidade de Samuel relata que, além de lhe faltar beleza, havia nele
ausência de elegância, cavalheirismo e espiritualidade – elementos que o dinheiro
dele não comprava. Segundo amigos íntimos do empresário, sequelas de
passagens violentas vividas por ele em campos de concentração durante a
adolescência o teriam transformado em um homem de coração duro e bastante
cruel, principalmente à medida que foi envelhecendo.
Mesmo diante de uma criatura horrenda, Vik encarou a adversidade feito
trabalho. Ela tirou a roupa, pulou em cima dele e o beijou como se o mundo
fosse acabar dali a instantes. O empresário ordenou que Gina também tirasse a
roupa e fizesse sexo oral nele enquanto a outra garota o beijava. Quando se
aproximou novamente do pênis de Samuel, a menina teve uma crise de choro.
– Por quem derramas essas lágrimas? – quis saber ele, irritado.
– Me desculpa, mas eu não consigo.
– Como é que é?! – gritou.
– Quero sair daqui! – implorou a garota.
Gina correu para a porta da suíte e tentou abri-la, mas estava trancada por
fora. A profissional iniciou um escândalo gritando “me tire daqui!”. Samuel
puxou a prostituta pelo braço e a jogou na cama com força bruta. Um segurança
entrou na suíte rapidamente por uma outra porta e o empresário pediu ajuda
para violentar Gina. As luzes da suíte foram apagadas. O funcionário chamou
um outro colega e os dois imobilizaram a garota. Um a segurou pelos braços e o
outro, pelas pernas, que estavam abertas. Segundo relato de Vik e Gina, Samuel a
estuprou intensamente por mais de 40 minutos. “Ele fez sexo anal e vaginal em
mim enquanto estava sendo segurada por dois brutamontes. Quando eu gritei,
um dos seguranças tapou a minha boca com a mão. Tive um sangramento forte
no ânus e mesmo assim ele não cessava. O remédio parou de fazer efeito e o
pênis dele ficou flácido. Acho que ele introduziu algum objeto na minha vagina e
no meu ânus, pois senti muita dor. [...] Uma enfermeira foi me buscar na cama e
me levou para um outro ambiente, onde havia uma maca. Ela usou água
oxigenada e um tipo de ácido [tranexâmico] para estancar o sangramento no
meu ânus. Depois, enfiou na minha goela uma pílula do dia seguinte e ainda se
certificou de que eu havia engolido. Eu estava tão assustada que não conseguia
nem chorar”, contou Gina em fevereiro de 2021.
Ao ver tamanha brutalidade, Vik tentou sair da suíte, pois acreditava que
também seria estuprada com violência. Um segurança a imobilizou. Depois de
Gina ser levada pela enfermeira, as luzes foram acesas e Samuel entrou no
banheiro para tomar uma ducha. Havia manchas de sangue na cama. Duas
funcionárias entraram para trocar os lençóis. O segurança deu uma sugestão para
Vik:
– Não ofereça resistência. Deite-se e abra as pernas. Faça tudo o que ele
mandar. Você não será violentada se for obediente. Amanhã você vai me
agradecer pelas dicas...
De volta do banho, Samuel perguntou pela “próxima piranha”. O segurança
apontou para Vik, que estava deitada na cama. A garota olhou o pênis flácido do
cliente e imaginou que não haveria penetração. Estava enganada. A enfermeira
entrou novamente na suíte com a tal bandeja de inox e aplicou mais uma dose de
estimulante sexual no empresário. Calmo, ele se disse “cansado” e fez um pedido:
“Vamos logo acabar isso?”. As luzes foram apagadas mais uma vez. Com medo
de ser espancada, Vik seguiu o conselho do segurança e ficou quietinha para
saciar a sede do Rei das Novinhas. Depois de mais de 30 minutos de sexo sem
proteção, ela deixou a suíte e seguiu para a sala onde era servido o comprimido
contraceptivo de emergência. No meio da madrugada, Gina e Vik foram
acomodadas num dos quartos da mansão para descansar. “O que mais me deixou
chocada foi a conivência daqueles funcionários. Com medo de apanhar, fiquei
muda na cama enquanto o Samuel transava comigo. No meio do ato, entrava um
segurança e perguntava se estava tudo bem e se ele estava precisando de algo. Ele
respondia e o funcionário saía como se aquilo fosse a coisa mais normal do
mundo”, relatou Vik em março de 2021.
No dia seguinte pela manhã, as meninas desceram para a varanda da mansão.
Havia uma mesa de madeira rústica com doze lugares. Em outra mesa, foi
servido por garçons um brunch completo para todas elas, inclusive para as que
não transaram com o empresário. Havia cestas de pães, café solúvel, leite quente,
achocolatado, cappuccino, diversos tipos de queijo, presunto, ovos mexidos com
trufas negras, risoto, panquecas, tiras de bacon, waffles e muitas frutas da estação.
Samuel não apareceu para comer. Ninguém tocava na comida. Amélia surgiu na
varanda com sorriso largo para uma reunião com as garotas. Antes de começar a
falar, Gina se levantou e denunciou aos prantos:
– O doutor Samuel me violentou! Dois seguranças me seguraram...
– Nossa, minha filha, que absurdo! Depois você me conta como foi –
comentou Amélia, fingindo indignação.
Prática e objetiva, a secretária particular de Samuel Klein pegou uma caixa de
sapatos e botou sobre a mesa do café. “Quanto cada uma quer receber pelo
trabalho?”, perguntou em voz alta. Em seguida, abriu a caixa e pegou de dentro
uma pilha de notas de 100 reais. Houve um burburinho no ambiente. Vik foi a
primeira a se manifestar: pediu mil reais. A funcionária de Samuel disse que a
garota merecia bem mais e deu-lhe 1.500 reais. Vik pegou o dinheiro e levou uma
bronca da assessora de Samuel porque começou a conferir as notas. “Não seja
indelicada, menina!” Em seguida, a prostituta guardou o dinheiro na bolsa. Na
sua vez, Gina falou em voz alta que também merecia 1.500 reais. “Não, não, não!
Imagina! Você vai receber muito mais do que isso, filha”, anunciou a
funcionária. No mesmo café da manhã, Gina ganhou um envelope já separado
com 2 mil reais. As duas prostitutas não sabem dizer se as outras cinco garotas
transaram com Samuel, apesar de cada uma delas ter recebido 800 reais. Todas
também ganharam vale-compras no valor de mil reais para gastarem em
qualquer loja das Casas Bahia. “Eu comprei uma máquina de lavar roupa”,
recorda-se Vik. “Eu dei os meus cupons para a minha mãe. Ela foi na loja da
Avenida Brasil, no centro de Maringá, e comprou uma geladeira nova e um sofá
enorme de oito lugares. O cupom não deu para pagar tudo e a gente dividiu a
diferença no carnê”, contou Gina. Até Violeta ganhou bônus do velho. A cafetina
recebeu 3 mil reais em dinheiro vivo e Amélia ainda mandou entregar uma
televisão 29 polegadas e um refrigerador de ar na casa da cafetina.
No final da distribuição de dinheiro na mansão de Samuel Klein, Amélia
perguntou: “Quem aqui já andou de helicóptero?”. Houve uma agitação entre as
oito garotas quando uma aeronave de doze lugares pousou no gramado da
mansão, causando uma forte ventania. Elas tomaram café da manhã às pressas,
receberam o celular de volta e embarcaram. Fizeram um voo panorâmico pelo
céu de São Paulo numa manhã ensolarada e pousaram num heliponto da
Avenida Paulista. Com remuneração tão boa, Vik encontrou Samuel mais duas
vezes sem que ele percebesse a repetição. Gina não teve coragem. Com sequelas
emocionais, resolveu abandonar a profissão. Voltou para a casa da mãe, em
Maringá, duas semanas depois de ser violentada pelo empresário. Numa crise de
choro, contou para a mãe sobre o estupro, pontuando a fortuna do criminoso.
Revoltada, a cabeleireira pegou um ônibus com a filha e seguiu até São Paulo
para denunciar Samuel na Delegacia da Mulher. Antes, as duas passaram no
escritório de Violeta para pegar o nome completo do estuprador. A cafetina as
recebeu sorridente. Quando ouviu as intenções da mãe de Gina, a velha quase
caiu da cadeira. Ponderou para a senhora:
– Não seja estúpida de procurar pela polícia! A sua filha dormiu com um dos
homens mais ricos do país.
– Ela foi estuprada! – esbravejou a mãe.
– Isso é bem relativo... Olha aqui, minha senhora! Deitar-se com Samuel
Klein é como ganhar na loteria. Deixe de ser tonta. Que futuro a sua filha terá
como prostituta?
– Vou à delegacia!
– Não seja radical, criatura. Esteja aberta a um acordo, pois o que a senhora
vai ganhar denunciando um homem poderoso? – perguntou Violeta, servindo
um suco de maracujá.
Não se sabe se a mãe de Gina já saiu de casa disposta a faturar com o crime
no qual sua filha era a principal vítima. Ela jura que não. No entanto, mal saiu do
escritório de Violeta, Amélia ligou no celular da cabeleireira para tentar evitar
um escândalo. A cafetina fez um relatório verbal:
– O velho fez um estrago na menina. Ela tá toda dilacerada. Melhor resolver
por aqui – aconselhou Violeta.
Na semana seguinte, chegava à casa da mãe de Gina, em Maringá, um
caminhão das Casas Bahia contendo geladeira, freezer, micro-ondas, estante,
sofá, TV de 29 polegadas, aparelho de ar-refrigerado, máquina de lavar roupa,
máquina de lavar louça, aquecedor, liquidificador, uma batedeira de bolo, entre
dezenas de outros itens, como telefones celulares. Um advogado de Samuel Klein
chegou pouco antes da entrega e fez mãe e filha escreverem o nome em diversos
documentos. Em resumo, as duas asseguravam com as assinaturas que o sexo na
suíte de Alphaville fora feito de forma consentida. Depois, uma outra advogada
procurou Gina para incluí-la numa lista de outras 15 garotas de programa que
foram estupradas por Samuel Klein. Essas mulheres fizeram um outro acordo
extrajudicial e receberam uma indenização de 80 mil reais em 2007. Uma
cláusula do contrato determinava confidencialidade. Toda a papelada foi
registrada num cartório de Maringá. Gina ficou calada até 2014, quando Samuel
Klein morreu, aos 91 anos, vítima de uma parada cardiorrespiratória. “O
dinheiro me trouxe conforto, confesso. Mas minha vida não existe mais desde
aquele estupro. [...] Nunca consegui manter uma relação estável e adquiri uma
depressão que parece não ter mais fim”, contou Gina em março de 2021.
No dia 15 de abril de 2021, a Agência Pública, especializada em jornalismo
investigativo, revelou em seu site extensa reportagem de caráter documental
contando com riqueza de detalhes o esquema criminoso de Samuel Klein. “O
fundador das Casas Bahia teria usado seu poder como empresário bem-sucedido
para manter durante décadas um esquema de aliciamento de crianças e
adolescentes para a prática de exploração sexual dentro da icônica sede da
empresa, em São Caetano do Sul, além de outros locais em Santos, São Vicente,
Guarujá e Angra dos Reis. Mas a história desses crimes não envolvia apenas o
patriarca da família Klein. Seu filho Saul Klein é investigado por aliciamento e
estupro de mais de 30 mulheres. Segundo relato de dezenas de fontes, há
semelhanças na forma de agir de pai e filho”, denunciou a Agência Pública. A
reportagem é de autoria dos jornalistas Ciro Barros, Clarissa Levy, Mariama
Correia, Rute Pina, Thiago Domenici e Andrea Dip.
Na verdade, o rol de mulheres que denunciaram Saul Klein por aliciamento e
estupro já passava de 500 em maio de 2021. É bom deixar claro feito água
cristalina: nem todas as vítimas, tanto de Samuel quanto de Saul, eram
prostitutas. Muitas foram parar nas festas organizadas pelos empresários
milionários atraídas por promessas de emprego. A isca geralmente eram
propostas de trabalho em congressos e feiras de exposição promovidos pela
empresa dos Klein.
“No final de 2010, fui indicada por uma agência de modelos para trabalhar
como recepcionista num evento chamado Super Casas Bahia, no Pavilhão de
Exposições do Anhembi, em São Paulo. Na época, eu tinha 19 anos. Os testes
foram feitos numa mansão em Alphaville. Quando cheguei lá, havia dez garotas
para a mesma entrevista. Ficamos esperando numa sala ampla no piso inferior.
Nós éramos chamadas a uma outra sala, onde ficava o senhor Saul Klein e uma
assistente. Ambos sentados a uma mesa de vidro enorme. Eu me sentei numa
poltrona e ele se levantou e veio sentar-se ao meu lado. Começou a entrevista me
perguntando se eu era cliente das Casas Bahia. Falei que alguns meses atrás havia
comprado um telefone celular Samsung e dividido em 24 prestações fixas no
carnê. A tal moça, uma senhora na verdade, anotava tudo o que eu falava num
bloco de papel. Depois, o Saul me pediu para ficar de pé e dar uma volta pela sala
como se estivesse numa passarela. Eu fiz o que ele mandou e me sentei
novamente na poltrona, meio envergonhada. Ele disse que o meu movimento foi
frígido, sem carisma e emoção. Eu vestia uma saia pouco acima dos joelhos
conhecida como godê, daquelas rodadas e soltas. Ele me mandou ficar de pé
novamente e falou para levantar a saia para ver as minhas coxas. Achei aquilo
estranho e olhei para a senhora sentada à mesa, um pouco distante da gente. Ela
balançou a cabeça em sinal afirmativo. O Saul disse que o meu teste seria
remunerado em 2 mil reais, caso fizesse até o final. Eu levantei a saia só um
pouco, pois estava bastante nervosa. Ele mandou eu levantar ainda mais para ver
a minha calcinha. Olhei novamente para a assistente, que falou suavemente ‘tudo
bem’. Mirei os olhos num ponto fixo da parede e levantei a saia de uma vez até a
altura da cintura. Ele então se levantou, me deu um beijo na boca e pegou no
meu sexo. A tal senhora me pagou os 2 mil reais de cachê pelo processo seletivo.
Disse que havia sido aprovada e alguém me ligaria. Na saída, ela me pediu
discrição e lealdade. Fui embora para casa tremendo dos pés à cabeça.”
“Na semana seguinte, recebi uma ligação dizendo que havia sido aprovada no
teste. Achei estranho porque eu tinha lido na internet que o evento do Anhembi
havia sido cancelado naquele ano. Eu voltei à mansão para uma festa de
celebração da cultura polonesa, a convite da senhora do teste. Era um evento
esquisito em que as pessoas tinham que jogar cinzas quentes na cabeça. Algumas
das modelos que conheci na seleção também estavam lá. O Saul e alguns
convidados vestiam trajes típicos do folclore polonês [stroje ludowe]. Havia
muito álcool, comida e uma banda fazendo show no palco. Acho que puseram
algum aditivo na minha bebida. Tomei duas taças de champanhe e me deu muito
sono. Fui parar numa cama de casal enorme em uma das suítes. Quando acordei,
estava nua e o Saul estava em cima de mim, me penetrando. O ambiente era
meio escuro. Como estava dopada, não tive forças para sair da cama. Olhei para
o lado e vi três mulheres nuas, caídas no chão. Elas pareciam estar desmaiadas,
pois estavam meio empilhadas – uma por cima da outra. Um outro homem se
masturbava em pé, vendo o Saul me estuprando. [...] Depois de ejacular, ele saiu
de cima de mim. Estava tão fraca que não tive condições físicas para sair do
colchão. Uma outra garota entrou na suíte e começou a tirar a roupa. Para liberar
a cama, o Saul me empurrou e caí nua no chão. Acabei desmaiando por cima das
outras mulheres. Fui acordar no dia seguinte no mesmo local às 17 horas, sendo
que eu havia chegado lá às 20 horas do dia anterior. A tal senhora me pagou 6
mil reais e ainda perguntou se a noite tinha sido boa. Fiquei com tanta vergonha
daquela humilhação que prometi a mim mesma que apagaria esse dia da minha
memória. Gastei todo o dinheiro que ele me deu com terapia. Hoje eu me sinto
uma mulher imunda”, relatou Ana Meeussen. Ela também fez acordo
extrajudicial com o empresário para não denunciá-lo.
Na maioria das ações movidas na Justiça envolvendo os crimes da família
Klein, as vítimas sustentavam que foram violentadas por Samuel e Saul quando
eram menores de idade. Uma delas conta no processo que foi estuprada pelo
patriarca quando tinha 9 anos. Mais tarde, adultas, elas passaram a cobrar
indenização por danos morais. Com a morte de Samuel, as vítimas dele tentaram
reparar perdas e danos obtendo indenização junto aos herdeiros. A disputa pela
herança do fundador das Casas Bahia, no entanto, virou um drama familiar à
parte. Como Samuel morreu sem deixar testamento, seu filho mais velho,
Michael Klein, nascido em 1951, foi nomeado inventariante do espólio do pai.
Saul Klein, três anos mais novo que o primogênito, mesmo todo encrencado com
a polícia, entrou com uma ação na Justiça para tomar do irmão a função de
administrador dos bens do pai. Michael usou justamente as denúncias de crimes
sexuais contra Saul para mantê-lo longe da gerência do patrimônio deixado por
Samuel, avaliado em cerca de 6 bilhões de reais. Na ação judicial, Michael e Eva,
irmã mais nova, argumentavam que Saul não merece o posto de inventariante
por ter “manchado” a imagem da família Klein com escândalos.
No bojo da disputa pelos bens de Samuel Klein, Saul foi até uma delegacia e
disse que seus irmãos haviam falsificado a assinatura do pai para passá-lo para
trás. A polícia instaurou inquérito para apurar crime de estelionato envolvendo
os documentos usados na divisão da herança, que inclui o controle das Casas
Bahia. Segundo Saul, a assinatura do pai foi falsificada no contrato social da rede
de lojas e também nos papéis da sucessão. Depois das supostas fraudes, os
principais beneficiados da herança foram Michael e seus filhos. Segundo a lei
brasileira, a herança pode ser dividida livremente de acordo com o desejo do
testamentário. A defesa de Saul também cita uma série de alterações societárias
das Casas Bahia que permitiram a Michael se tornar o maior acionista da
empresa. Os documentos em questão serão analisados pelo Instituto de
Criminalística, que emitirá uma avaliação independente sobre as assinaturas. Se a
fraude for comprovada, haverá um rearranjo dos recursos financeiros e do
patrimônio deixados por Samuel Klein.
Além de batalhar por um naco maior na herança do pai estuprador, Saul
Klein já foi dono da Associação Ferroviária de Esportes, um tradicional time de
futebol do município de Araraquara, interior de São Paulo. Com as denúncias de
violência sexual subindo até o pescoço, ele acabou se afastando das atividades
esportivas. Em 2020, mesmo acusado de estupro, foi candidato a vice-prefeito do
município de São Caetano do Sul pelo PSD e declarou à Justiça Eleitoral, na
época, um patrimônio de 61,6 milhões de reais.
Os supostos crimes de Saul começaram a brotar na mídia às vésperas do
Natal de 2020. Na edição de 23 de dezembro daquele ano, o jornal Folha de S.
Paulo publicou uma denúncia na coluna da jornalista Mônica Bergamo, com
chamada na primeira página, sob o título “Filho do fundador das Casas Bahia é
acusado de estupro e aliciamento por 14 mulheres”. A reportagem, assinada pelo
jornalista Bruno B. Soraggi, revelou que o empresário estava proibido de entrar
em contato com as mulheres que supostamente foram estupradas por ele desde
2008. Na sequência, o jornal informou que Saul teve o passaporte apreendido
pela Polícia Federal para evitar uma possível fuga do país. A violência sexual teria
ocorrido em festas também organizadas numa mansão em Alphaville. Um dos
inquéritos que investigavam os crimes do filho de Samuel corria sob sigilo na
Delegacia da Mulher de Barueri. No dia 27 de dezembro de 2020, o Fantástico, da
TV Globo, exibiu uma reportagem de 14 minutos mostrando em horário nobre
imagens das festas de Saul e apresentando depoimento de pelo menos sete das
mulheres que denunciaram o empresário. “Ele ficava cada vez mais bêbado e
louco. Nós tínhamos de falar com voz fina como se fôssemos crianças. Tinha
menina que andava pela casa segurando uma boneca”, contou uma das vítimas.
Na reportagem, uma ex-funcionária de Saul revelou que o empresário recebia em
suas festas, em média, 200 mulheres por ano. Segundo a advogada das vítimas,
Gabriela Souza, elas eram submetidas a cárcere privado na mansão de Saul –
uma teria ficado presa lá por uma semana. Eram também coagidas a ingerir
bebida alcoólica e a vestir biquínis mesmo em ambientes com temperatura muito
baixa. A reportagem do Fantástico é de autoria dos jornalistas Estevan Muniz,
James Alberti e Iuri Barcelos.
No dia 30 de abril de 2021, outra reportagem especial descortinou o esquema
criminoso de Saul Klein. O site Universa, hospedado no portal UOL, revelou
depoimentos de mais nove mulheres que teriam sido vítimas do empresário.
Segundo a reportagem, uma garota de 17 anos, chamada pelo pseudônimo de
Sabrina, teria recebido uma mensagem pelas redes sociais de uma agência
chamada Íris Monteiro Eventos. A princípio, era um convite para a garota
trabalhar como divulgadora de uma marca de biquínis. A jovem aceitou. Uma
semana depois de prestar esse serviço, ela teria sido convidada pelas donas da
agência a participar de um evento promovido por Saul Klein. Com receio,
recusou. Depois de dizer “não”, Sabrina passou a ser procurada insistentemente
por uma das sócias da agência, de prenome Íris. Essa mulher perseguia a garota
até na porta da escola para tentar convencê-la a aceitar o “trabalho” com Saul
Klein. Ele seria dono da marca divulgada pela jovem. Depois de ouvir muitos
convites, ela acabou convencida por Íris. No tal evento, Sabrina teria sido
estuprada pelo empresário de forma recorrente e sem preservativo. Em várias
ocasiões, segundo consta na reportagem do Universa, a jovem era mantida em
cárcere privado. A garota teria se juntado a outras vítimas de Saul para denunciá-
lo. Traumatizada pelos abusos, passou a desenvolver problemas psiquiátricos.
Cinco anos depois de ser estuprada, Sabrina acabou se matando. A reportagem
do Universa contando essa história teve a assinatura dos jornalistas Pedro Lopes
e Camila Brandalise.
Em julho de 2023, Saul Klein teve uma importante derrota na Justiça do
Trabalho. Ele foi condenado a pagar uma multa de R$ 30 milhões por aliciar
jovens mulheres e adolescentes com promessas mentirosas de emprego e, na
sequência, explorá-las sexualmente. O julgamento atendeu aos pedidos feitos
pelo Ministério Público do Trabalho (MTB), que investigou o caso e confirmou
os crimes, pedindo uma indenização inicial de R$ 80 milhões. Segundo o MPT,
Klein “cooptava adolescentes e jovens entre 16 e 21 anos, em situação de
vulnerabilidade social e econômica, com a falsa promessa de que iriam trabalhar
como modelos, submetendo-as a condição análoga à escravidão”. Ainda de
acordo com o órgão, essa é a maior condenação por tráfico de pessoas já feita do
Brasil. A decisão também revela que Saul montou um esquema criminoso para
“satisfazer seus desejos pessoais, ferindo aspectos íntimos da dignidade da pessoa
humana, e causando transtornos irreparáveis nas vítimas. Os crimes mudaram
definitivamente o curso da vida de cada uma delas”. Além do valor de R$ 30
milhões, Saul ficou proibido de praticar tráfico de pessoas, especialmente de
mulheres e adolescentes, incluindo “agenciar, aliciar, recrutar, transportar,
transferir, comprar, alojar, acolher mulheres”. Como a decisão não é da área
criminal, não há condenação com pena de prisão. Uma curiosidade: a
indenização de R$ 30 milhões não será concedida às vítimas. O dinheiro será
entregue a três instituições sem fins lucrativos, seguindo as normas da legislação
trabalhista do país.
Ao longo do tempo, os administradores das Casas Bahia tentaram
desvencilhar a imagem da empresa dos escândalos sexuais de Samuel e Saul. A
família Klein teria sido afastada do comando da empresa em 2011, quando foi
criada uma holding batizada de Via Varejo para gerir as marcas Casas Bahia,
Pontofrio, Extra.com.br e Barti. Em abril de 2021, Via Varejo teve seu nome
encurtado para Via. Quando as primeiras denúncias contra Saul surgiram na
mídia, a Via divulgou um comunicado dizendo que o empresário “nunca possuiu
qualquer vínculo ou relacionamento com a companhia”. Saul Klein, por sua vez,
negou veementemente todas as acusações de aliciamento e estupro feitas contra
ele. Encarregado de defender o empresário, o advogado André Boiani e Azevedo
afirmou que seu cliente é a vítima e não o criminoso desse caso policial. A sua
tese de defesa era, no mínimo, curiosa. Segundo Azevedo, nas relações com essas
mulheres, Saul fazia papel de sugar daddy, termo usado para definir velhos que
sustentam “namoradas” novas em troca de companhia, carinho e sexo. “O Saul
vem sendo vítima de um grupo organizado que se uniu com o único objetivo de
enriquecer ilicitamente à custa dele, por meio de realização de ameaças e da
apresentação de acusações falsas em âmbito judicial, policial e midiático.” Já a
família de Samuel Klein enviou uma nota de pesar para rebater as acusações
póstumas contra O Rei das Novinhas: “É com enorme tristeza que a família Klein
tomou conhecimento da publicação de matérias sobre Samuel Klein, fundador
das Casas Bahia, falecido em 2014. Imigrante polonês, judeu e sobrevivente do
Holocausto, ele sempre ensinou que é preciso muito trabalho e coragem para
enfrentar os desafios da vida. É uma pena que ele não esteja vivo para se defender
das acusações mencionadas [...]”.
Então, tá.
* * *
À
medida que a gestação de Berbella avançava, um ódio emanava por todos
os seus poros. No final do sexto mês, ela detestava a ideia de ser mãe,
mesmo decidida a repassar a sua bebê para a irmã mais velha, Belmira, de
28 anos. A garota de programa de 22 anos abominava a barriga grande e os seios
crescidos por causa do excesso de gordura sob a pele e também em razão do
desenvolvimento dos dutos mamários, que preparam a mãe para a
amamentação. Sem qualquer apego à filha, ela já havia deixado claro não estar
disposta a alimentá-la no peito. Tinha receio de ficar com os seios caídos.
Berbella contava no calendário ansiosamente o dia de parir e voltar à prostituição
o mais rapidamente possível. O combinado era repassar a nenê à irmã ainda na
sala de parto. A entrega direta de crianças pela mãe, prática muito comum no
interior do país, é conhecida como “adoção à brasileira”.
Até então, a gestação não havia despertado o sentimento maternal em
Berbella. Os infortúnios da gravidez também contribuíram para o desejo de se
livrar da filha. Ela desenvolveu uma síndrome chamada de túnel de carpo,
ocasionando uma forte dor no nervo do antebraço. Em crises, ela gritava como se
já estivesse parindo. Também sofreu com o peso da barriga, dor na coluna e nos
tornozelos; reclamava do excesso de gases, pontadas na vagina, incontinência
urinária e principalmente das visitas recorrentes que os futuros pais adotivos lhe
faziam a qualquer hora do dia ou da noite. Muitas delas sem prévio aviso.
Vivaldo, marido de Belmira, saía no meio do expediente duas vezes ao dia e
seguia rumo à casa da sogra, Nazaré, onde Berbella estava morando
temporariamente. No caminho, ele comprava presentes para a bebê e flores para
a cunhada. No quarto da grávida, o corretor se deitava na cama ao lado de
Berbella, lambuzava nas mãos um gel usado por médicos em ultrassom e
acariciava a imensa barriga da moça por baixo da roupa por horas e horas.
Belmira morria de ciúme desse tipo de cena, mas achava importante a conexão
paternal com a futura filha. Nessas visitas incômodas, feito bobo, o futuro pai
também se botava a conversar com a bebê. Nos monólogos, o corretor usava uma
voz infantilizada e fanha. Berbella ficava irritadíssima com o que ela chamava de
“doidice”. Às vezes, Vivaldo fazia uma pergunta em voz alta do tipo “a
bizunguinha cuti-cuti ama o papai?”. Em seguida, ele encostava o ouvido na
barriga da gestante e tentava ouvir algum barulhinho como resposta. Nos finais
de semana, ele levava os dois filhos pequenos para conhecer o local onde a
irmãzinha deles aguardava para ganhar o mundo. A gota d’água foi o dia em que
o cunhado chegou com um aparelho de som portátil. Vivaldo pediu que a
grávida deitasse na cama e deu play num CD com canções que, segundo ele,
faziam uma espécie de sintonia mágica entre o bebê e o pai. Na lista das canções
estavam a clássica “Aquarela”, de Toquinho; “Pra você guardei o amor”, de
Nando Reis; e “O filho que eu quero ter”, de Chico Buarque. A essa última
música, Vivaldo se deu ao trabalho de cantar em voz alta. Berbella perdeu a
paciência com o cunhado desafinado:
– Chega dessa palhaçada! Estou com dor nas costas e essas músicas estão me
irritando!
– É para o bem da criança! – argumentou o corretor.
– Mas esse bebê é meu e ele me disse que também não está gostando dessa
cantoria. Quando ele nascer, vocês fazem o que quiserem. Agora só quero ficar
em paz!
Um dia depois de Vivaldo ser maltratado por Berbella, Belmira, mulher dele,
foi entregar 2 mil reais à irmã. A quantia mensal acertada entre elas deveria ser
paga todo dia 5 do mês até o parto, totalizando os 18 mil reais distribuídos em
nove parcelas. Aquela seria a sétima prestação, pois a gravidez estava entrando
no sétimo mês, equivalente à 30a semana. Nessa fase, a bebê já pesava cerca de 3
quilos e media em torno de 40 centímetros, segundo um ultrassom feito na mãe.
Berbella ainda estava com a barriga em pleno crescimento e as dores só
aumentavam. Sem o menor apego, ela passou a maldizer a própria filha, cujo
apelido era Pequeno Alien, justamente por causa das chacoalhadas no útero,
provocando fortes dores e cólicas. A alcunha era uma referência ao filme de
ficção científica do cineasta britânico Ridley Scott, Alien, o 8º passageiro, no qual
uma pessoa gerava no ventre uma raça de alienígena conhecida como
xenomorfo. Com uma gravidez complicada, Berbella peregrinava por médicos
obstetras. Cabia a Belmira e Vivaldo também bancar essas despesas, além de toda
a alimentação da futura mãe. No final do mês, o casal terminava com uma conta
aproximada de 6 mil reais. Ainda estava programada a despesa com o parto,
orçado em 9 mil reais numa clínica particular. Na hora de pagar os 2 mil reais à
irmã, Belmira se queixou do tratamento dispensado a Vivaldo no dia anterior,
quando ele pôs músicas para a bebê escutar. A jovem mercenária rebateu a
reclamação dizendo ganhar muito pouco dinheiro para se submeter às
esquisitices do corretor:
– Dois mil reais para o fardo de carregar esse alien, na verdade, é quase nada
para tudo. Principalmente para os fetiches do seu marido – argumentou Berbella,
irritada.
– Foi o valor que você pediu!
– Não! Não! Foi o valor que você ofereceu e eu aceitei. Mas estou
profundamente arrependida por causa dessa aporrinhação de ele vir conversar
com a minha barriga, trazer música para a bebê ouvir. Decidi que vou vender a
criança para um casal de italianos. Eles vão me pagar 50 mil euros – anunciou
Berbella.
Belmira entrou em desespero quando se deparou com a possibilidade de a
irmã quebrar o pacto familiar em nome do dinheiro. Nazaré, mãe das duas, foi
chamada lá na feira, onde estava trabalhando, para resolver o impasse fraternal.
Berbella encontrava-se irreconhecível aos olhos da família. Na explicação da
jovem, os 2 mil reais mensais correspondiam à gestação. Faltava acertar o valor
da bebê, orçado por ela em 30 mil reais, pois a profissional “não sabia que um
nenê valia muito dinheiro,” principalmente porque nasceria um anjinho loirinho
e com olhos bem azuis. Pelas contas de Berbella, sua filha “com certeza” tinha
como pai um ex-cliente sueco “tão lindo quanto um príncipe”, em sua opinião.
Belmira, fora de si, chamou a irmã repetidas vezes de “vagabunda”, “piranha” e
“puta”. A garota nem se abalou, pois não achava os termos tão ofensivos. No
calor do bate-boca, Berbella disse estar arrependida de não ter abortado o alien
nos primeiros meses, pois já estaria de volta ao meretrício e ganhando muito
mais dinheiro.
Desnorteada, Belmira foi lá no quintal pegar um ar, chorou bastante e se
recompôs. Voltou ao quarto bem calma e pediu desculpas à irmã com voz
aveludada. Uma enxugou as lágrimas da outra e selaram as pazes. Combinaram
nunca mais falar coisas tão deploráveis, pois a bebê ouvia tudo lá de dentro da
barriga. Mas o impasse financeiro continuava. Nazaré sugeriu à filha mais velha
aumentar o valor da prestação para 3 mil reais nos dois últimos meses da
gestação. Berbella regateou. Pediu 15 mil reais pelos três meses e mais uma
parcela única de 20 mil reais para repassar a bebê na maternidade. No total, a
criança custaria a bagatela de 47 mil reais.
Belmira e Vivaldo estavam longe de serem ricos, mas os dois ganhavam bem
porque trabalhavam muito. Ele tinha uma corretora e fazia bastante dinheiro
administrando condomínios e imóveis alugados em Campo Grande. Também
comandava uma equipe de corretores eficientes na venda de apartamentos na
planta. Seu escritório ocupava um andar inteiro de um prédio comercial no
centro da cidade. Ele ainda era sócio de uma firma de contabilidade. Inteligente e
batalhadora, Belmira começou a trabalhar aos 14 anos dando aula particular de
reforço para adolescentes com dificuldade de aprendizagem. Fez faculdade de
Pedagogia e começou a lecionar português e redação em escolas privadas.
Melhorou os rendimentos depois de complementar a graduação com um curso
de Administração Escolar e tornou-se coordenadora pedagógica de uma das
maiores instituições de ensino da cidade. Também dava aulas numa universidade
privada. Com tantas fontes de receita, o casal tinha capital aplicado em diversos
investimentos. Era com esse dinheiro que eles bancavam a obsessão doentia de
ter uma menina.
A relação de Belmira e Berbella nunca foi amistosa. A caçula sempre teve o
corpo e o rosto bem mais bonitos, provocando ciúme, recalque e insegurança na
mais velha. Desde a adolescência, Berbella tinha uma energia sexual potente,
enquanto Belmira era mais apagada e sem sex appeal. A diferença de idade entre
elas era de seis anos. As duas brigavam por namorados porque os pretendentes
de Belmira sempre se encantavam pela beleza de Berbella. A mãe conta uma
história de um noivado da mais velha, aos 18 anos, desfeito em meio a um
barraco típico de novela mexicana, porque o rapaz se apaixonou perdidamente
pela caçula, com 12 na época. As duas trocaram tapas pelo moço. Belmira acusou
a irmã de seduzir o noivo. A relação teria azedado de forma definitiva porque
Berbella namorou o tal rapaz algumas semanas depois de ele desmanchar o
noivado com a irmã.
Sem muitas expectativas com homens, Belmira mergulhou nos estudos e
subiu na vida. Casou-se com Vivaldo, colega da faculdade, aos 24 anos. A outra
parou na oitava série e virou feirante ao lado da mãe. Na fase adulta, as brigas
continuaram. A bem-sucedida humilhava a caçula chamando-a de periguete
verdureira e fracassada. O arranca-rabo só parou quando Berbella mudou-se
para São Paulo, aos 20 anos. A falta de afeto entre elas, segundo Nazaré, foi
fundamental para a negociação da bebê. “Se elas se amassem, não haveria
dinheiro na adoção”, ponderou. Segundo seu relato, Belmira sempre foi uma
mulher equilibrada e cheia de juízo. Mas ela teria começado a “enlouquecer”
quando engravidou do primeiro filho. Já no início da gestação, Belmira desejou
profundamente uma menina. Comprou equivocadamente roupinhas cor-de-
rosa, decorou o quarto do bebê com motivos femininos e planejava batizá-lo de
Ayla, a luz da Lua.
Na oitava semana, Belmira fez um exame de sexagem fetal e o resultado
revelou se tratar de um menino. Ela não aceitou e começou a rezar todos os dias
na igreja para vir uma garotinha. A mãe, extremamente religiosa, alimentou a
ideia de orar para Deus mandar uma menina, mesmo com o exame mostrando o
contrário. “O Criador pode tudo. Até mesmo mudar o sexo de um bebê no
ventre da mãe, independentemente de um exame de laboratório”, argumentava
Nazaré. Vivaldo também delirava com o nascimento de uma menina e embarcou
na loucura da mulher. Movido pela fé cega, ele entrou na corrente de orações. A
natureza, cética, prevaleceu e nasceu um garoto, conforme o anunciado pelos
médicos. O cúmulo do absurdo foi eles tentarem batizar o bebê do sexo
masculino de Ayla. Com a recusa do cartório, o casal optou por um nome
considerado neutro. Na segunda gravidez, houve novas orações para nascer uma
menina, mas Deus novamente não deu ouvidos ao casal e mandou mais um
menino. Esse segundo filho teve as orelhas furadas e era vestido com roupinhas
de menina nos primeiros meses de vida. Uma amiga de Belmira percebeu a
insanidade do casal e sugeriu terapia. A partir das sessões com um psicólogo,
Belmira e Vivaldo passaram a dar uma criação correspondente ao gênero (sexo
físico) da criança. Como não podia mais ter filhos e não cogitava adotar, Belmira
arquivou o desejo incontrolável de ter uma filha, até que Berbella surgiu grávida
e disposta a doar, ou melhor, a vender. Vivaldo também reacendeu os devaneios
com a possibilidade de ser pai novamente.
Certa vez, Vivaldo bateu à porta de Berbella pela enésima vez com o gel
lubrificante à base de água para acariciar o barrigão da grávida. Quando ele
estava esfregando o produto oleoso nas mãos, Berbella pediu desculpas pelas
grosserias do passado. Justificou o mau humor com a falta de sexo e noites mal
dormidas. Empolgado, o corretor começou a ler um texto em seu celular sobre os
benefícios do sexo na gravidez: “Transar durante a gestação, além de ser ótimo
para a autoestima dos pais, controla a ansiedade, melhora o humor da mãe,
aumenta a produção de anticorpos, libera endorfina, traz bem-estar, ajuda a ter
um sono mais profundo e fortalece não só a imunidade, mas também a
musculatura da vagina e do ânus”. A mãe estava na feira. Berbella então trancou
a porta do quarto, tirou toda a roupa e pediu 600 reais para transar com o
cunhado. Trezentos reais pelo sexo e 300 pelo sigilo. Ele topou e os dois
passaram a ter relações sexuais remuneradas pelo menos duas vezes por semana
até o fim do oitavo mês de gestação. No início, Belmira achou peculiar o marido
parar de se queixar das grosserias de Berbella, mas – enganada – acreditou que os
dois haviam se acertado por causa do reajuste nos repasses financeiros pela
gravidez.
Cansada de ser explorada pela irmã e sem desconfiar da traição do marido,
Belmira fez uma reunião com ele e chamou um amigo advogado para opinar
sobre o caso. Esse, logo de cara, classificou a compra do bebê como “um negócio
criminoso”, principalmente porque o casal estava pensando em lavrar a adoção
em cartório de forma clandestina. De fato, registrar o filho de outra pessoa como
se fosse seu ou atribuir parto alheio como próprio é crime previsto no artigo 242
do Código Penal, podendo resultar em pena de até seis anos de reclusão. Mesmo
ouvindo falar em “condenação” e “prisão”, Belmira e Vivaldo resolveram levar os
planos adiante, pois, segundo eles disseram na época, o desejo pela bebê estava
acima da lei. O defensor sugeriu, então, que os repasses em dinheiro a Berbella
não deixassem qualquer tipo de vestígio, como transferência bancária e
mensagens pelo celular.
Antes de entregar os 5 mil reais combinados com a irmã, referentes ao sétimo
mês de gestação, Belmira teve mais uma conversa com a mãe. Quando soube que
tinha até advogado envolvido na transação entre as filhas, Nazaré ficou nervosa
com o possível desfecho daquela novela e aconselhou a mais velha a desistir da
adoção, pois não havia mais ternura naquele enredo:
– Filha, estou preocupada, porque achei que seria um gesto de amor. Não
concordo com essa “venda”. Deus não vai abençoar o que vocês estão fazendo.
– Agora é tarde, mãe.
– Depois que você pagar o dinheiro que a sua irmã está exigindo, ela vai
querer mais e mais. É assim que os chantagistas se comportam – advertiu a
feirante.
– A senhora acha que ela pode vender a minha filha para outro casal mesmo
depois de todo esse pagamento?
– Quem vende um filho é capaz de tudo – avisou Nazaré.
No quarto, Belmira mostrou os 5 mil reais à irmã. Antes de entregar o
dinheiro, contrariando a orientação do advogado, ela obrigou Berbella a assinar
um documento no qual a prostituta se comprometia a doar a bebê logo após o
parto. Berbella rubricou sem pestanejar, mas fez um alerta: “Você sabe que esse
documento não serve de nada, né? Para a Justiça, a mãe sou eu”. “Você que
pensa”, provocou Belmira. Em seguida, ela desobedeceu mais uma vez o
advogado. Sacou da bolsa uma nota promissória com valor de 11 mil reais,
referente à soma das sete prestações pagas até aquela data pela bebê. A pedagoga
revelou seu receio: “Não estou segura de que você vai me entregar a criança
quando ela nascer. Sendo assim, não estou disposta a ficar no prejuízo. E
também vou falar a verdade. Não sei mais se eu ainda quero a sua filha, pois você
não dá nenhum tipo de afeto a ela e nos impede de fazer isso. Se você não quiser
assinar, fique à vontade”. Berbella nem esperou a irmã terminar o colóquio e
assinou a promissória rapidamente. Confessou se tratar de um blefe quando
falou da proposta do casal gringo. “A minha rejeição por esse filho é muito maior
do que o seu desejo desesperado de ser mãe. [...] Fique tranquila que a bebê será
sua assim que nascer. Não faço questão nem de ser a tia”, disse Berbella, rindo
cinicamente. O encontro terminou novamente com elas se abraçando
emocionadas. No dia seguinte, Vivaldo foi visitar a grávida e os dois transaram
mais uma vez. O corretor pediu para mamar em Berbella e ela cobrou um extra
de 200 reais pelo leite direto na fonte. Depois do ato, ele ligou o som portátil para
embalar a sua futura filha e deitou-se de conchinha com a cunhada. Berbella já
não o olhava com o desdém de outrora. Vivaldo deu o play no CD. A primeira
música a tocar foi “Boas vindas”, de Caetano Veloso, com trechos que dizem:
Venha conhecer a vida / Eu digo que ela é gostosa / Tem o sol e tem a lua / Tem o
medo e tem a rosa / Tem a morte e tem o amor.
O último mês de gestação foi o pior período da vida de Berbella. As transas
com Vivaldo foram suspensas porque ela não tinha mais libido. A bebê estava
encaixada em sua bacia, posicionada para o momento do parto. As dores eram
tão medonhas que faziam a futura mãe gritar de manhã, de tarde e de noite.
Pelos cálculos do obstetra, havia mais de dois litros de líquido na bolsa
amniótica, quando o normal naquela fase da gravidez seria apenas um. O excesso
de água trouxe ainda mais complicações, como desenvolvimento fetal excessivo e
dificuldade respiratória. Berbella não via a hora de parir, mas evitava uma
cesariana para não ficar com cicatrizes no ventre. A produção de leite deixou
seus seios ainda maiores e doloridos. Na última visita feita ao médico antes de
dar à luz, soube que a bebê nasceria enorme, com quase 5 quilos, e mediria cerca
de 50 centímetros. O ultrassom mostrou a pele do nenê sem as tradicionais rugas
e suas mãos já agarravam com firmeza, ou seja, ela podia nascer a qualquer
momento. Era possível a ele detectar a luz, pois a sua pupila aumentava e
diminuía de tamanho com a intensidade de um projetor focado na barriga da
mãe. “Sua bebê é grande e saudável”, disse o médico. Belmira e Vivaldo
acompanhavam todos os exames vertendo lágrimas com essas informações.
Berbella também chorava, mas de dor, agonia e desespero. Ela urinava na cama
todos os dias, tinha corrimento vaginal, coceiras pelo corpo todo e um distúrbio
hormonal fez crescer uma penugem em seu rosto. Nenhuma das posições na
cama era confortável na reta final da gestação.
Sofrendo dores insuportáveis, Berbella se internou para parir e Ayla veio ao
mundo quando completou 40 semanas no ventre da mãe. Belmira e Vivaldo
perderam o momento do parto. Sorte a deles, pois o nascimento da criança não
foi motivo de comemoração na família. A menina não era filha do cliente sueco,
como todos imaginavam. Provavelmente o pai era um freguês jamaicano, pois
ela nasceu preta. Uma enfermeira levou a criancinha enrolada numa manta para
Berbella acariciá-la. A mãe se recusou segurá-la. Virou o rosto para o lado e
vomitou. Meia hora depois, a enfermeira voltou pedindo que Berbella
amamentasse. O gesto criaria vínculo afetivo da mãe com a filha. Berbella não
quis, mandou chamar o diretor da maternidade e começou a reclamar: “Essa não
é a minha filha. Houve um engano. Ela foi trocada. A minha é branquinha e
loira”. A garota de programa começou a chorar desesperadamente quando foi
avisada que aquele era o único parto do dia. Na sequência, Belmira e Vivaldo
chegaram à sala de pós-parto e encontraram a bebê com três pulseirinhas, duas
nas pernas e uma no bracinho. Os dois ficaram chocados quando viram a cor da
pele da recém-nascida. Enfurecido, o corretor esmurrou a parede e sentou no
chão para chorar. Belmira, por sua vez, ficou muda e estática. Ao chegar perto da
bebê, reagiu arregalando os olhos e levando a mão à boca. A pedagoga se
aproximou ainda mais do berço, encostou o nariz na nenê e fez uma careta de
nojo quando sentiu o cheiro dela. Sem dar uma palavra, Belmira saiu do centro
obstétrico amparada pelo marido. Na recepção da maternidade, Nazaré
perguntou a Belmira se ela ficaria com a criança. A resposta foi curta: “Nem
pensar!”. Em casa, revoltada, a pedagoga quebrou vasos decorativos na parede.
Com receio de ficar no prejuízo, ela procurou pelo amigo advogado para tentar
recuperar o dinheiro “emprestado” à irmã. Sua ideia seria fazer uma cobrança
judicial. Só desistiu quando foi alertada da possibilidade de um escândalo na
imprensa ocasionar sua demissão por justa causa e até prisão. “Joguei meu
dinheiro fora”, resignou-se Belmira.
Sem saída, Berbella deixou a maternidade com Ayla no colo, em companhia
da mãe. Em casa, ela também se recusou a amamentá-la. Perturbada, pensou em
anunciar a adoção nos classificados de um grande jornal. Com medo de a neta
morrer de fome, Nazaré comprou uma lata de leite em pó para bebês recém-
nascidos ao preço de 160 reais na época. A mãe de primeira viagem não se deu ao
trabalho nem de preparar o alimento da filha. Tempos depois, em meio a uma
briga com a mãe por causa da bebê, Berbella anunciou sua partida em breve para
São Paulo. Nazaré mandou-a levar a filha, já com dois meses.
Numa tarde de domingo, a garota de programa estava arrumando a mala e
Belmira chegou para acertar as contas. Estava disposta a conseguir pelo menos 10
mil reais guardados pela irmã no banco. Num bate-boca, as duas se feriram mais
uma vez com palavras ácidas. A mais velha chamou a caçula novamente de
“vagabunda”, “piranha” e “puta” e ainda amaldiçoou a vida amorosa de Berbella.
“Homem nenhum vai querer você, uma prostituta barata com um bebê negro no
colo fruto de um programa”, praguejou. A prostituta soltou uma gargalhada
teatral e revidou: “Será mesmo que os homens vão me virar a cara? O seu
marido, por exemplo, me comeu deliciosamente todo esse tempo aqui nesta
cama. Foi incrível, viu?”. Belmira ficou fora de si e deu um tapa no rosto da irmã.
Só não bateu mais porque foi impedida por Nazaré. Ainda com uma sobra de
cinismo na cara, Berbella pegou a mala, o bebê e saiu rindo sem se despedir.
Nazaré ficou com o coração apertado, porém aliviado. Teve palpitações e
pressentimentos ruins, mas achou que Deus estava no comando. Deixou o futuro
da filha em mãos divinas.
No dia seguinte, um programa policial da TV Record em Campo Grande
exibiu uma reportagem sobre um bebê encontrado numa lata de lixo do passeio
público, no bairro de Carandá. A criança estava suja, enrolada numa manta,
desnutrida e tinha ferimentos e queimaduras de sol no rosto. Chorava de soluçar
pela vida. Resgatada por catadores, foi levada à Santa Casa. Vingativa e separada
do marido, Belmira ligou para a polícia e denunciou a irmã. Berbella foi presa
dois dias depois no Aeroporto Internacional de Campo Grande tentando
embarcar para São Paulo. Nazaré, a feirante branca, religiosa, devota de Nossa
Senhora de Fátima, temente a Deus, assídua nas missas de domingo na Catedral
Metropolitana Nossa Senhora Abadia, também não quis ficar com a criança.
Alegou que a neta “era muito escurinha”. Ao juiz, Berbella disse ter jogado a filha
fora impulsionada pela depressão pós-parto. A justificativa não vingou no
tribunal. Foi condenada a cinco anos de prisão pelo crime de abandono de
incapaz com um agravante por causa de ferimentos no rostinho da vítima.
Disponível para adoção, a criança foi levada a um abrigo e uma família alemã de
coração bondoso a levou para Berlim.
Berbella saiu da cadeia em 2009 aos 28 anos. Ela continuava uma mulher
linda e sensual. Voltou a São Paulo. Com o dinheiro da venda da filha, colocou
silicone nos seios, clareou o cabelo e comprou roupas novas para trabalhar.
Voltou a se prostituir na boate administrada pelo tio Joel, no Baixo Augusta. Seu
programa custava 400 reais a hora. Ela também fez um anúncio no MClass, onde
se lia um texto de varejo: “Boneca gulosa maluca por leite. Oral até a última gota.
Especializada em anal giratório. Fio terra. Prazer total e infinito. Você não vai se
arrepender. Vamos nessa?”.
* * *
E
ntregues a uma paixão sem fim, Marcos e Elize viviam num platô sexual
além da lua de mel, em meados de 2010. Faziam amor todos os dias: de
manhã, à tarde e à noite. Logo após se casarem, visitaram a tribo indígena
Kamayurá, no Xingu. Armados com rifles e metralhadoras, acompanharam o
ritual de adolescentes indígenas se preparando para perder a virgindade. O casal
ficou impressionado com esse tipo de turismo, feito no Brasil, principalmente
por estrangeiros. A aldeia, localizada em Mato Grosso, tinha malocas cobertas de
sapê do telhado ao chão. As indígenas virgens ficavam em silêncio e isoladas no
escuro por um ano, sem ver o sol até conhecerem seus pretendentes. Nesse
período, elas aprendiam a cozinhar e a fazer artesanato. A reclusão ocorria logo
após a primeira menstruação e marcava a transição da fase infantil para a adulta.
O ritual envolvia sacrifício tanto das meninas quanto dos rapazes da aldeia. Elas
amarravam tornozeleiras e joelheiras fortemente para engrossar as pernas. As
avós davam a elas uma mistura conhecida como pirão, beiju, mingau e peixe. A
alimentação era uma espécie de engorda para a criança ganhar corpo de mulher
rapidamente. Já os meninos indígenas que se candidatavam para desvirginar as
garotas tinham de subir numa árvore e pegar lá na copa ninhos de vespas
selvagens. Dos 15 com idades entre 15 e 20 anos que se aventuravam na gincana,
apenas dois ou três garotos suportavam as picadas dos insetos. Alguns deles
chegavam a despencar lá do alto, tamanha era a violência das ferroadas. Como
prêmio para os vencedores, as indígenas virgens cuidavam deles e se entregavam
posteriormente.
Depois de testemunhar os rituais, Marcos e Elize viajaram em primeira classe
por todos os seis continentes do planeta. Passearam, pularam de paraquedas e
praticaram turismo de caça. Levaram na bagagem rifles, facas e munições para
abater antílopes, catetos, cervos, coiotes, focas, patos, porcos-do-mato e veados
em diversas florestas dos Estados Unidos. Depois seguiram para a Austrália,
onde era permitida a caça temporária de cangurus em razão da superpopulação
que ameaçava a biodiversidade. Numa única noite, mataram a curta distância
dois da espécie cinzento-ocidental. No Canadá, o casal se especializou em
executar alces selvagens a longa distância. Boa de mira, Elize se vangloriava de ter
acertado com um único tiro um exemplar a mais de 300 metros, na província de
British Columbia, no extremo oeste do país.
Nas selvas canadenses, Marcos e Elize ficaram obcecados pelo alce, um
cervídeo de 2 metros de altura, meia tonelada e chifres enormes. Os dois fizeram
um curso de cinco semanas na província de Ontário e obtiveram uma licença
especial para caçá-los feito profissionais. Contrataram guias, alugaram aviões,
barcos e Jeep. Embrenharam-se na floresta vestidos com roupas camufladas e
equipados com facas e binóculos, além de armas. Caminhavam horas e horas
desde cedo por trilhas e pântanos. Marcos batia com pedaços de chifre do
próprio animal nos caules das árvores na tentativa de atraí-los pelo olfato. O
empresário da Yoki imitava o mugido dos alces soltando ar por entre as mãos em
formato de concha. Pelo caminho, também eliminavam coiotes, gansos e
guaxinins. Quase todos esses bichos eram esquartejados e desossados por Elize.
Os alces recebiam tratamento especial. Marcos e Elize decepavam a cabeça e
depois a levavam a laboratórios especializados em taxidermia, uma técnica
avançada de empalhamento. Algumas das cabeças com chifre e busto foram
trazidas como bagagem e penduradas nas paredes do apartamento do casal como
troféus de caça. Segundo Marcos dizia, cortar as cabeças e exibi-las em casa
simbolizava a soberania da humanidade sobre os animais. “Fui criada no mato,
no interior do Paraná. Lá é normal abater animais e esquartejá-los. Muitas vezes,
a caça é um meio de sobrevivência. As pessoas da cidade ficam chocadas, mas na
zona rural isso é comum”, declarou Elize em junho de 2021.
Outro hobby de Marcos e Elize era colecionar vinhos caros. Frequentemente
faziam viagens internacionais para abastecer a superadega do apartamento. Os
destinos preferidos eram Argentina, Espanha, França, Itália e Portugal. Eles
chegaram a trazer num único voo 300 mil reais em caixas com o produto. O
empresário também contrabandeava garrafas nos contêineres da Yoki usados
para importação e exportação da empresa. Marcos entendia tudo sobre vinhos e
não economizava quando ia às compras. Consumiam garrafas de 30 mil reais em
uma única refeição. Elize sempre gostou de vinho, mas seus conhecimentos e seu
bolso eram limitadíssimos. Ou seja, ela só consumia rótulos comprados em
supermercados. Dedicado à sua companheira, o empresário passou a ensiná-la
sobre o assunto. Encantada com a cultura milenar do vinho, a jovem fez cursos
básicos de sommelier e enologia. Também assinou publicações especializadas e
aprendeu mais e mais. Parou de consumi-lo de forma amadora e dava
verdadeiras palestras sobre o tema. Quando pedia uma garrafa num restaurante,
por exemplo, Elize perguntava com propriedade pela origem, safra e tipo de uva.
Não demorou muito para ela entender de vinhos mais do que o marido.
Dominava os aspectos envolvendo aroma, paladar, visual e tinha experiência
afetiva ao degustá-lo. Sabia até qual tipo de água deveria ser harmonizada com a
bebida servida.
Sonhadora, Elize cogitou abrir uma adega de luxo em São Paulo para
importar, comercializar e realizar leilões de vinhos nobres no Brasil e no exterior.
Levou o projeto tão a sério que chegou a fazer curso de leiloeira e pediu
autorização à Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) para realizar
pregões. Na sessão do dia 22 de novembro de 2011, a Jucesp concedeu a ela o
título de leiloeira oficial (matrícula nº 890). Marcos apoiou a ideia e se
prontificou a bancar o negócio da esposa. Juntos, abriram duas empresas de
importação, sendo uma delas com sede em Portugal. Em novembro de 2009, o
empresário começou a comprar e contrabandear vinhos de diversas
importadoras e estocar num dos cômodos climatizados do apartamento. No
início da década de 2010, o casal tinha pelo menos 30 garrafas do italiano
Sassicaia, um toscano tinto encorpado, suculento, macio, aveludado e com final
marcante, cuja garrafa de 700 ml na época custava, em média, 5 mil reais. Marcos
e Elize também tinham itens mais em conta. Um deles era o português Vintage
Port, preço médio de 200 reais na época. Esse rótulo, segundo especialistas, é
ótimo com carne de vaca e queijos maduros.
Sobre o acúmulo de vinhos no apartamento do casal, a confeiteira Cecília
Yone Nishioka, a Ciça, madrinha de casamento, comentou em 2016: “Eles
tinham uma adega considerável com vinhos caríssimos. Uma vez fizeram um
jantar e me convidaram. O Marcos falou que ia abrir um vinho do Porto
qualquer. Fomos todos até a adega procurá-lo. Tinha caixas empilhadas até o teto
com garrafas nobres. Nós não conseguimos entrar no cômodo por causa da
montanha de caixas e acabamos tomando um Petrus porque estava mais à mão”.
Para se ter uma ideia do valor da adega de Marcos e Elize, o Chateau Petrus
aberto por acaso era da safra de 1982 e custava na época 25 mil reais. Em 2021,
podia ser adquirido por 35 mil reais. Esse rótulo francês é uma verdadeira lenda
no mercado de vinhos. Figura na primeira divisão dos mais cultuados, raros e
caros do mundo. Tinto, é rico em aromas de fruta madura e carnuda, como
framboesa, evoluindo para notas de especiarias e chocolate. Concentrado,
estruturado e com taninos finos, destaca-se pela extraordinária elegância e
pureza. À mesa, o Petrus vai bem com carnes vermelhas, desde que não tenham
molhos muito intensos; combina ainda com aves levemente adocicadas, a
exemplo de pato e ganso. Especialistas sugerem só abrir a garrafa do Petrus se ela
tiver sido envelhecida por mais de dez anos. Uma outra declaração de Ciça
ilustra a suntuosidade da adega do casal Matsunaga: “Uma vez o Marcos e a Elize
me convidaram para ir a um leilão de vinhos. Eu falei que iria apenas para dar
um apoio moral porque havia rótulos de 100 mil reais”.
Os planos de montar uma adega para atender gente endinheirada em São
Paulo foram suspensos temporariamente depois de uma viagem do casal à
fábrica da Yoki em Campo Novo do Parecis, em Mato Grosso. Em uma folga do
trabalho, Marcos levou a esposa para conhecer as belezas naturais do município.
O empresário já havia feito esse mesmo passeio anos atrás com a garota de
programa de luxo Alícia, a modelo-atriz-manequim da mansão de Arethuza.
Com Elize, ele passeou de lancha por rios, pescaram e praticaram esportes
radicais. O casal fez rapel a 85 metros de altura na cachoeira de Santo Utiariti.
Também escalaram as rochas de 20 metros no Chapadão do Parecis. Depois de
um fim de semana inteiro de aventura, o casal voltou ao hotel de águas termais
onde estavam hospedados. À noite, Marcos abriu o computador para trabalhar e
Elize recebeu de um funcionário do hotel as roupas lavadas. Uma calça jeans dela
da grife Diesel foi entregue com manchas brancas feitas por uso equivocado de
água sanitária. Irritado, Marcos pegou a peça e foi até a recepção reclamar com o
gerente. Enquanto isso, ela seguiu para o banho. Antes de ligar o chuveiro,
porém, a jovem ouviu inúmeros sinais sonoros vindos do computador do
marido, avisando a chegada de novas mensagens. A princípio, ela não deu bola.
Até que o interlocutor pediu insistentemente uma conexão por vídeo. Curiosa,
Elize saiu do banheiro, enrolou-se numa toalha, abriu o laptop e aceitou a
chamada. Do outro lado estava uma secretária-executiva da unidade da Yoki do
município de Marília (SP), chamada por Marcos pelo apelido carinhoso de
Claudinha. Ao ver a cara da esposa do patrão na tela, a funcionária primeiro
levou um susto e depois ficou desconcertada. Pediu desculpas e desligou sem
dizer “tchau”.
Bisbilhoteira, Elize aproveitou que o computador do marido estava
conectado com senha e leu as conversas dele com Claudinha no programa de
bate-papo Windows Live Messenger. Começou a leitura desde o início para
entender todo o contexto. Para sua surpresa, os dois se falavam havia meses. No
diálogo, o empresário chamava Claudinha de “Delicinha” e ela devolvia o
carinho se referindo a ele como “Bebezão”. Ao rolar o mouse de cima para baixo
até chegar à conversa do dia, Elize encontrou uma mistura de assuntos íntimos
com profissionais. Depois de ler tudo, concluiu que “Bebezão” ainda não tinha se
encontrado com “Delicinha” fora da empresa. No entanto, os dois tinham
marcado um date num hotel para dali a uma semana em Marília. Elize relia as
mensagens quando o marido entrou no quarto e arrancou o computador do colo
da esposa de forma abrupta. Houve uma discussão. Ela começou a chorar com a
iminência de ser traída. Marcos jurou de pés juntos se tratar de um
relacionamento estritamente profissional e usou como argumento o fato de
Claudinha ser comprometida com um rapaz chamado Marcelo, também
funcionário da Yoki. Incrédula, Elize pediu para ler todas as mensagens
existentes no computador do marido para saber se ele se encontrava com outras
mulheres, mas a resposta foi negativa. Marcos pediu um voto de confiança.
Em São Paulo, as brigas continuaram. Marcos começou a sentir saudade da
filha que teve com Lívia. A menina tinha 8 anos na época. Elize sentiu ciúme e
reagiu violentamente. Segundo o empresário falava para amigos, ele amava a
menina, mas Elize o impedia de vê-la por causa da ex-esposa. Em uma das
viagens do empresário para a fábrica de Nova Prata (RS), onde a garota morava
com a mãe, ele a visitou. Elize acabou descobrindo e fez um escândalo em casa.
Ela nega até hoje ter criado obstáculos para o marido visitar a filha do primeiro
casamento.
Um outro motivo de briga entre os dois foi a impressão do álbum de
casamento, oito meses após a festa. A fotógrafa Adri Felden havia editado uma
galeria com mais de 100 imagens e enviado um link pela internet para o casal
escolher quais fariam parte do fotolivro. Ao olharem imagem por imagem,
Marcos e Elize bateram boca. Alícia, a atriz-modelo-manequim da mansão de
Arethuza, aparecia em vários closes, toda sensual e usando um vestido vermelho
sem alça. Ciumenta, Elize fez um barraco. Para resolver a questão, Marcos
telefonou para Adri pedindo a exclusão da prostituta do álbum virtual antes da
impressão. Para não verbalizar o nome da moça, o empresário se referiu a Alícia
como um “problema”. A fotógrafa atendeu ao pedido do cliente, deletou o
“problema” e enviou um novo link sem as fotos da dita cuja. “Olá, Marcos.
Seguem em anexo as páginas que deverão ser retiradas do álbum. Favor
confirmar o cancelamento destas, pois ele seguirá para impressão em breve”,
escreveu a fotógrafa por e-mail. As páginas em questão tinham fotos de Elize
jogando o buquê, as mulheres se engalfinhando para pegá-lo e, no meio delas, a
prostituta de luxo bem à vontade. Marcos confirmou a retirada das imagens do
álbum e fez outro pedido: “Só mais uma coisinha, Adri: você poderia retirar as
fotos também do site, pois o ‘problema’ ainda aparece em várias imagens. Um
abraço, Marcos”. O álbum seguiu para a gráfica sem a presença de Alícia, que
também desapareceu da galeria virtual. “A mulher em questão era uma das mais
bonitas da festa e chamava a atenção de todo o mundo. Cheguei a fazer fotos só
dela”, recorda-se Adri Felden.
As discussões entre o casal Matsunaga afloravam quando eles exageravam no
vinho. Certa noite, estavam na terceira garrafa e Elize desenterrou o affair de
Marcos com a tal Claudinha, a funcionária da Yoki. Insegura, ela se comparou
com a oponente. Bêbada, perguntou o que o marido vira na outra mulher.
Marcos respondeu, também embriagado, tratar-se de belezas diferentes. Possessa
com a resposta, a jovem saiu da sala decidida a se separar. Sairia de casa naquele
mesmo instante e levaria Gigi, a cobra considerada filha do casal. Alguns
minutos depois, ela voltou à sala com a jiboia de 10 quilos e 3 metros de
comprimento enrolada no corpo. Marcos ficou desesperado, jogou-se no chão e
implorou por uma nova chance. “Não consigo viver sem a cobra”, chorava. A
esposa se mostrou irredutível e anunciou a partida para logo mais. No entanto,
ela não fazia nenhum movimento concreto nesse sentido, como abrir armários e
arrumar malas, por exemplo. A única atitude de Elize foi agarrar-se à cobra. O
executivo tinha um amor doentio pelo animal dado de presente por ele quando o
casal selou o noivado. Elize olhava para a serpente, dava beijinhos em seu nariz e
dizia com voz infantilizada: “O papai está traindo a mamãe com uma tal de
Claudinha e isso vai destruir a nossa família”. Marcos ouvia e gritava
enlouquecido. Ela tentou arrancar uma confissão do marido:
– Assume que essa Claudinha é sua amante! Assume!
– Não tem nada a ver. Você é louca de pedra!
– Assume! Senão vou sair por aquela porta e você nunca mais verá a nossa
filha!
– Eu não tenho amante, amorzinho! Juro por Deus!
– Assume! Acaba logo com essa agonia!
– Tá bom! Eu assumo!
Não se sabe se Marcos assumiu o affair para não ficar longe de Gigi ou se
realmente mantinha um caso extraconjugal com a funcionária da Yoki. Depois
da confissão, ele arrancou o réptil dos braços da esposa e contou o que seria a sua
verdade. Segundo disse, havia um interesse por parte da funcionária, mas nunca
teria ocorrido nada entre eles além de xavecos pelo bate-papo do computador.
Na empresa, eles não se cortejavam por causa do namorado dela, um rapaz
ciumentíssimo. Para provar estar falando a verdade, o empresário finalmente
deixou a esposa ler todas as mensagens no computador. Atrevida, a funcionária
tinha oferecido pelo e-mail da Yoki uma massagem tântrica ao patrão. “Essa
massagem vai melhorar a sua resistência sexual e a qualidade dos orgasmos.
Você vai gozar na hora que você quiser, Bebezão. Vai fazer você aliviar a dor,
aliviar o estresse, melhorar seu sono, e até desbloquear as suas emoções. Depois
de gozar, você vai se sentir outra pessoa”, prometeu “Delicinha”. Marcos
respondeu: “Só quero ver se essa massagem é isso tudo mesmo”.
Ao ler as segundas intenções de “Delicinha” no computador do marido, Elize
exigiu a demissão sumária da “sirigaita”. Marcos disse não poder dispensá-la
porque Claudinha conhecia os segredos da empresa e poderia levá-los à
concorrência. “Ela é uma funcionária de confiança e valorizada no mercado”,
argumentou. Nervosa, Elize partiu para cima de Marcos. Forte e praticante de
lutas, ele conteve a mulher segurando-a pelo braço. Muito branca, ela ficou com
hematomas pronunciados, mesmo sem ser agredida diretamente pelo marido.
Transtornada, ela arremessou objetos decorativos da sala contra a parede. Depois
desse conflito, o casal dormiu em quartos separados por uma semana. Em
seguida, eles fizeram as pazes como se nada tivesse acontecido. No caso da briga
cujo pivô foi a funcionária da Yoki, os dois fizeram um acordo: Marcos teria de
escrever e enviar na frente de Elize um e-mail cortando de forma definitiva
qualquer possibilidade de os dois se encontrarem. O empresário então mandou à
subordinada a seguinte mensagem:
“Olá! Infelizmente esse e-mail não será nada agradável. Eu fiz coisas que uma
pessoa na minha condição não deveria ter feito. Por isso combinei com a Elize,
minha esposa, que irei cortar todas as relações que envolvam mais do que uma
simples amizade. O meu casamento é a coisa mais importante da minha vida e
não quero que isso seja afetado. Então, a partir de agora não vou mais manter
contato contigo. Espero que você entenda e respeite a minha decisão. Desejo que
você seja muito feliz com o seu namorado. Assinado: Marcos”.
Mesmo depois de o empresário enviar o e-mail a Claudinha, Elize continuou
com cara de poucos amigos e evitava o marido na cama. Para recuperar o humor
da esposa, o empresário deu a ela de presente uma pistola semiautomática Imbel
calibre .380 GC, comprada na época por 2.500 reais. Na cor preta, o modelo
tinha armação e ferrolho em aço-carbono, cano do tipo leve e rampado. A arma
tinha capacidade para três carregadores, cujo poder de fogo chegava a 17 tiros. O
mimo reacendeu o amor. Para recompensar o marido, Elize fez um curso de
massagem tântrica e aplicou a técnica nele. “Com raízes profundamente
espirituais, o tantra vai trazer equilíbrio e entrelaçamento de energias entre nós.
Vai ajudar a fortalecer nosso vínculo e nos levar a um entendimento mais
profundo do nosso próprio corpo, da nossa vida afetiva e sexual. Quero ver agora
uma piranha vagabunda se interpor entre nós, Bebezão”, disse Elize ao marido,
levando-o à loucura na cama.
Um ano depois de refazerem os laços por meio da massagem tântrica,
Marcos e Elize voltaram a brigar. Os dois passaram a nutrir mutualmente um
ciúme doentio. No meio das discussões ela sempre ameaçava se separar e ele
implorava perdão. Quando estavam de bem, o casal seguia no fim de semana
para o haras do empresário argentino Horácio Ruben D’Abramo, no bairro Santa
Paula, zona rural do município de Cotia, Região Metropolitana de São Paulo. O
local tinha o nome de Don Juan. Amigos de Horácio, Marcos e Elize cavalgavam
durante o dia na propriedade, praticavam tiro e, à noite, bebiam vinho. O casal
tinha planos de comprar uma chácara em Cotia. “Uma vez eu fiz um churrasco e
convidei Marcos e Elize. Ele me apresentou como esposa. No início, estava tudo
normal. De repente, ela começou a ter ataques de ciúme a ponto de puxar o
marido de perto de outras mulheres”, relatou Horácio em 2016.
Elize reclamava do casamento para tia Rose, prevendo o fim do matrimônio a
médio prazo. A amiga então aconselhou-a a engravidar. “Um bebê não vai
segurar o casamento. Mas pelo menos você cria um vínculo eterno com ele e sua
fortuna”, teorizou a tia. Em meio às tempestades do casamento, Marcos e Elize
tentaram ter um filho. Como não conseguiram de forma natural, recorreram à
ciência. Elize iniciou um tratamento para engravidar na clínica particular do
médico Nelson Antunes Júnior, especializado em reprodução humana,
tocoginecologia e manipulação de gametas. Ela gastou 15 mil reais (valores da
época) para realizar duas punções de óvulos e quatro transferências
embrionárias, feitas entre dezembro de 2009 e abril de 2010. Querendo ser pai
novamente, Marcos também recorreu a um tratamento numa clínica
especializada em fertilidade masculina, onde teria gastado 20 mil reais. Nessa
esteira, ele também procurou fitoterapia chinesa, acupuntura e auriculoterapia
para tratar estresse, disfunção erétil e uma inflamação no fígado provocada por
excesso de álcool. Um dos três suplementos prescritos a ele pelo médico Shingo
Nagashima, em 11 de maio de 2009, chamava-se Da huang mu dan pi tang. Era
uma fórmula receitada para tratar síndrome de calor acompanhada de
estagnação de sangue na região do baixo ventre. Marcos e Elize acabaram
abandonando os tratamentos por causa de discussões que sempre terminavam
em períodos longos sem sexo, reduzindo as chances de ela engravidar. Com o
retorno das desavenças, o casal passou a dormir frequentemente em quartos
separados por períodos longos. Era sempre o empresário que seguia para outro
cômodo. Certa noite, ele voltou à suíte do casal e os dois fizeram amor.
Elize engravidou naturalmente em agosto de 2010. Era uma menina. Com
um anjinho a caminho, o casal resolveu pavimentar uma trégua mais longa para
preservar a família. Nos primeiros meses de gravidez, a futura mãe voltou a
investir no projeto de abrir uma importadora de vinhos nobres. No mesmo
período, a Yoki passou a ser assediada por multinacionais com ofertas bilionárias
para compra da companhia. Nessa época, as nove fábricas empregavam 5.200
funcionários em seis estados e processavam juntas 610 itens – de salgadinhos a
sucos prontos, passando pelas famosas pipocas de micro-ondas e uma linha de
cereais. O Brasil vivia a explosão da classe C e os produtos industrializados de
baixo custo estavam em alta. Davam tanto dinheiro que a Yoki faturava 1,1
bilhão de reais por ano quando começou a ser negociada. Segundo Mitsuo
Matsunaga, foi Marcos quem lhe apresentou os executivos da General Mills para
iniciar as negociações de compra e venda da companhia.
Uma reportagem publicada em O Estado de S. Paulo no dia 19 de dezembro
de 2011 jogou luz sobre a decisão da família de se desfazer da indústria de
alimentos. Segundo o jornal, os fundadores da Yoki resolveram passá-la adiante
porque enfrentavam dificuldades para encontrar no seio familiar sucessores
competentes e interessados em administrar a empresa. Na época das
negociações, o presidente da companhia era Mitsuo Matsunaga, pai de Marcos.
Ele era casado com Misako Matsunaga, filha de Yoshizo Kitano, fundador da
marca. Mitsuo dividia o comando da empresa com o vice-presidente, Gabriel
Cherubini, ex-executivo da Unilever. Gabriel, por sua vez, era casado com Yeda
Kitano Cherubini, a outra filha de Yoshizo. Misako e Yeda herdaram do pai 77%
das ações da Yoki, ou seja, cada uma tinha 38,5% do capital da companhia. Com
duas famílias no comando da empresa, eram comuns as divergências internas
regadas a muitas brigas e bate-boca. “O problema é que as famílias Matsunaga e
Cherubini nunca se deram bem. A rixa familiar resultou em duas facções dentro
da Yoki. Não há como fazer sucessão com uma parte querendo passar a perna na
outra”, disse na época uma fonte da empresa ao Estadão. A reportagem era
assinada pela jornalista Lílian Cunha.
As divergências familiares aceleraram o processo de venda da Yoki. No meio
de uma série de auditorias feitas pela General Mills na contabilidade da empresa,
veio à tona a companhia de exportação aberta por Marcos à revelia da família
para vender produtos da fábrica ao exterior, cujo faturamento anual chegava a 39
milhões de dólares. Documentos internos revelaram uma dívida de 15 milhões
de reais só em créditos de exportações atrasados em nome dessa empresa secreta.
O rombo foi assumido mais tarde por Mitsuo.
Pelos planos da família Matsunaga, depois da venda da Yoki, caberia a
Marcos um bônus de 100 milhões de reais para ele recomeçar a vida profissional.
Era o mesmo valor programado ao seu irmão Mauro. Levando em conta a sua
dedicação à empresa, Marcos teria achado o valor do bônus muito baixo. Mesmo
contrariado, ele e Elize começaram a fazer planos com a futura fortuna. Ele dizia
a ela que queria morar em Miami tão logo o bebê nascesse. Sem falar inglês, ela
pensava em ficar no Brasil e abrir a tão sonhada importadora de vinhos. Para
amigos, no entanto, o empresário cogitava abandonar Elize e viajar sozinho para
o exterior.
De tanto falar em cifras altas, o empresário passou a imaginar de forma
obsessiva a possibilidade de ser assaltado ou sequestrado. Seu maior pavor era ser
surpreendido por um bandido dentro de casa, pois as duas coberturas dúplex
tinham seis portas de entrada, sendo três sociais e três de serviço distribuídas em
dois pavimentos. Para proteger a família, Marcos montou uma estratégia de
segurança. Com a ajuda de Elize, ele pegou cerca de 20 armas guardadas no
cômodo secreto do apartamento e as escondeu pelos móveis da sala, quartos,
cozinha e até corredores. O armamento selecionado estava carregado e pronto
para atirar. Elize pegou a sua pistola Imbel e pôs na gaveta de um aparador usado
no corredor como charuteira. O casal também escondeu armas brancas: espadas
samurai, martelo de guerra, porrete de combate, canivetes, punhais, soco-inglês e
facas de caça. Marcos e Elize chegaram a simular um assalto para calcular quanto
tempo eles levariam até alcançar a pistola mais próxima.
Na mesma noite da camuflagem das armas pelo apartamento, Marcos tentou
transar com a esposa, mas ela estava sem libido. Elize sentia enjoo e cólicas fortes
por causa da gravidez. A princípio, ele entendeu e a consolou. No entanto, seu
vício em sexo falou mais alto. Certa noite, Marcos procurou a mulher na cama e
ouviu uma resposta negativa pela enésima vez. Houve uma discussão com frases
ditas para machucar:
– Quando você era puta, bastava eu abrir a carteira que você abria as pernas.
Agora é essa frescura de hoje não, dor de cabeça, boceta ressecada, gravidez...
– Amor, agora sou sua esposa. Serei mãe da sua filha. Não sou mais garota de
programa.
– Quem disse que você não é mais puta? Quem?
– Para com isso, por favor!
– Uma vez puta, sempre puta. Puta sempre hei de ser! – concluiu o
empresário fazendo trocadilho com o hino do Flamengo.
As ofensas de Marcos faziam de Elize uma mola encolhida. Mesmo assim,
segundo dizia, ela insistia em tentar salvar o casamento em nome da filha e em
busca de segurança financeira. Marcos oscilava emocionalmente entre o carinho
e a indiferença. Ora ele a deitava no colo e acariciava os cabelos loiros de Elize,
ora ele acordava circunspecto, tomava café e saía sem dar “bom dia”.
No oitavo mês de gestação, a jovem se deparou com um problemão. Marcos
chegou em casa com um filhote de porco vivo e o levou ao quarto de Gigi. O
empresário amarrou o bicho pelos pés para imobilizá-lo. A cobra fez o de
sempre: enrolou-se na presa para matá-la asfixiada. O suíno, resistente,
demorava a morrer. Dava gritos agonizantes e tão estridentes que até os vizinhos
se incomodaram. A sequência era abominável e atroz. À medida que a serpente
apertava o porco, ele guinchava e expelia jatos de fezes e urina pelo chão. Marcos
acompanhou o banquete fazendo registros com uma filmadora. O empresário só
saiu do cativeiro depois de Gigi terminar a refeição e cuspir o barbante usado
para imobilizar o porco.
Outrora Elize também se divertia junto com o marido assistindo a esse tipo
de cena. O casal adorava acompanhar as presas agonizando e com medo da
cobra. Vibrava com o bote de Gigi. E delirava com o momento em que os bichos
eram asfixiados lentamente e tinham os ossos esmagados pela mandíbula da
serpente. No dia desse festim, porém, ela não achou a menor graça na morte do
porquinho. Pelo contrário, o grunhir agonizante do leitãozinho suscitou mais
uma discussão acalorada em casa. A futura mãe manifestou o receio de Gigi
engolir a nenê tão logo ela nascesse, dali a mais ou menos um mês e meio.
Marcos bateu o pé e disse que não se desfaria da jiboia porque a amava também
como filha. A esposa grávida começou a arrumar as malas para cair fora de casa.
Numa sexta-feira, contrariado, Marcos pôs a cobra numa caixa e a levou à casa
de campo de Lincoln, em São Lourenço da Serra (SP). O supermercadista aceitou
ficar com o animal. Quando ouviu o motivo da doação, Lincoln cobriu Elize de
razão. “Se um dia vocês esquecerem de alimentar a cobra, ela não vai pensar duas
vezes em comer o bebê”, imaginou.
Marcos aproveitou a casa de campo do amigo e relaxou por todo o final de
semana, mesmo sem ter avisado Elize. Quando as mensagens da esposa
começaram a pipocar no telefone, o empresário desligou o aparelho e começou a
reclamar. A Lincoln, ele desabafou em meio a uma bebedeira: “Nunca envolva
emoções ao negócio. Foi o que eu fiz quando resolvi levar uma puta ao altar.
Nunca cometa esse erro, Lincoln. Puta é puta, esposa é esposa, vaca é vaca. [...]
Imagina que ela pensa que não é mais piranha só porque está casada. [...] O que
define a prostituta é o sangue e não o dinheiro pelo sexo. [...] Acontece que ela
não é a única mulher com boceta para vender. [...] A Lívia também era chata pra
caralho, mas pelo menos era moça de família”. Nesse dia, Marcos justificou para
Lincoln a “loucura” de Elize com traições “inexistentes”.
Em outro momento da bebedeira, Marcos teria falado com pesar das brigas
envolvendo discussões e até agressões físicas. Também chorou no ombro do
amigo a falta de prestígio na família por ter sido excluído do processo de venda
da Yoki. “Não me deixaram nem opinar. Eu também ajudei a fazer daquela
empresa de fundo de quintal uma das maiores potências do país”, reclamou
enquanto bebia uísque. Para aplacar a tristeza, os dois amigos contrataram duas
modelos de Arethuza ao custo de 20 mil reais. “Minha esposa já pensa que tenho
amantes. Então que venham as piranhas mercenárias!”, gritou o empresário. A
festinha privê teve um contratempo. Uma das garotas enviadas pela cafetina de
luxo entrou em pânico quando viu Gigi passeando pela sala e caiu fora antes de
tirar a primeira peça de roupa. A outra encarou o desafio de transar com os dois
mesmo com a serpente por perto. Mas, esperta, ela cobrou o cachê da colega
fujona.
Marcos e Lincoln fizeram do fim de semana uma farra sem fim e reviveram
os velhos tempos. No sábado, Paolo compareceu ao sítio para ver Gigi. Foram
chamadas mais garotas. Para evitar imprevistos, elas foram avisadas da presença
da jiboia. Na hora de ir embora, domingo à noite, Marcos não conseguiu se
despedir de Gigi e levou a cobra de volta para casa. Assim que o marido pisou no
apartamento, Elize perguntou por onde ele tinha andado. Ainda embriagado e
odiando a esposa por causa da rejeição à serpente, o empresário a encarou: “Você
sempre está com essa carinha de coitada, demonstrando preocupação. Eu nunca
me deixei enganar. Por baixo desse olhar não flexionado está quem você é de
verdade”. Depois desse enigma, Marcos foi dormir no cativeiro de Gigi. Na
manhã seguinte, saiu de casa mudo e com a cara fechada. Nem café ele tomou.
Um mês depois, o casal fez as pazes e Gigi acabou sendo doada ao Instituto
Butantan.
Elize pariu no dia 15 de abril de 2011 e concluiu o curso de Direito da
Universidade Paulista (Unip) no dia 20 de outubro do mesmo ano. Atribulada
com as tarefas de mãe e mirando o projeto da importadora de vinhos, ela
preferiu não fazer prova para obter registro na Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB). Milagrosamente, Marcos voltou a demonstrar carinho pela esposa, como
fazia anteriormente. Três cômodos do apartamento foram reformados para a
chegada da criança. Um deles virou o quarto da nenê. Outro espaço foi
transformado em brinquedoteca e um terceiro servia de apoio para guardar
fraldas, carrinhos de bebê e cadeirinhas. Havia ainda uma cozinha exclusiva com
fogão, geladeira, estufa e louças da criança. Marcos babava pela filha. O amor
obsessivo por Gigi foi transferido à menina e a duas cadelinhas compradas pelo
casal – uma poodle batizada de Sofia e outra da raça shih-tzu chamada Fiona.
Com uma bebê e dois bichos de estimação em casa, Marcos voltou a ser um
homem afetuoso. Elize chegou até a comemorar a nova fase do marido.
Quando o casal tinha a jiboia, nenhuma empregada parava em casa e a
limpeza das duas coberturas era feita por firmas especializadas. Sem a cobra e
com uma bebê, Marcos e Elize contrataram cinco empregadas ao custo de quase
20 mil reais ao mês. Havia governanta, babá, cozinheira e faxineiras. Todas
trabalhavam uniformizadas e eram proibidas de circular em determinados
ambientes da casa. As babás, por exemplo, só podiam passar do quarto da
empregada, no piso inferior, para a cozinha. E da cozinha aos cômodos do bebê,
no segundo pavimento. Passar pela sala ou abrir armários sem autorização, nem
pensar. O casal tinha receio de uma das funcionárias do lar se deparar com as
armas escamoteadas pelos móveis. A única com passe livre para circular por todo
o apartamento era a governanta, Neuza Gouveia da Silva, de 47 anos na época.
Discreta, ela chegou a encontrar pistolas e facas no guarda-roupa e num
aparador. Mas não fez nenhum comentário. “Eles eram ótimos patrões. Pagavam
bem e sempre em dia. Não tenho nada para falar”, declarou a governanta em
2016.
A vida da família Matsunaga parecia ter entrado nos eixos. Marcos acordava
cedo, brincava com a filha todos os dias e só ia para a Yoki depois de dar banho
na menina junto com Elize. Chegava em casa com brinquedos. Parecia outro
homem. O casal voltou a fazer sexo com frequência. Mas, tal qual ocorreu com
Lívia, sua ex-mulher, um belo dia o empresário acordou e deu um beijo frio na
esposa. Alegando compromissos profissionais, não brincou mais com a filha pela
manhã, muito menos acompanhou o banho dela, como era habitual. Nem beijo
na testa da mulher ele dava. O fantasma da separação voltou a rondar o lar, mas
Elize mantinha a esperança eterna de recuperar o casamento.
Naquela época, Marcos usava o processo de venda da Yoki como desculpa
para sair cedo de casa e voltar tarde. Viajava muito a trabalho para acompanhar
as auditorias da General Mills em fábricas do interior, segundo dizia. Solitária no
casamento, Elize ficou com o coração num leva e traz. Chorava todos os dias.
Mais tarde, desenvolveu transtorno de ansiedade generalizada (TAG),
caracterizado pela aflição excessiva e preocupação exagerada com os eventos da
vida cotidiana sem motivos óbvios. Ela concentrou seus medos na possibilidade
de perder a filha para a morte. A jovem chegou a ficar sem dormir por quatro
dias seguidos com receio de algo grave acontecer com a criança. Quando
conseguia dormir, tinha sobressaltos no meio da madrugada e corria até o berço
para ver se a filha estava viva. Também tinha pesadelos medonhos com Gigi
engolindo a nenê pela cabeça. O sono irregular e o excesso de preocupação
causavam irritabilidade e falta de libido. No meio desse turbilhão de emoções, ela
insistia em proteger o casamento. Sugeriu ao marido terapia de casal com uma
psicóloga. Marcos se recusou categoricamente. “Nosso conselheiro é o reverendo
François”, sustentou o empresário. Elize insistiu até a exaustão para ele
comparecer ao menos a uma sessão. “Podemos ir primeiro à psicóloga e depois
ao reverendo. Se você não gostar dela, a gente não vai mais. O importante é a
gente descobrir como preservar o nosso matrimônio”, sugeriu a esposa. Marcos
concordou a muito custo.
Primeiramente, os dois procuraram a psicóloga Neusa Vaz Márcia, membro
do Instituto Junguiano de São Paulo e reconhecida pela Associação Internacional
de Psicologia Analítica. As sessões eram semanais e a primeira delas ocorreu no
dia 15 de março de 2012 na casa de Neusa, na Vila Madalena. “O casal me
procurou porque estava enfrentando uma crise conjugal. Não estavam se
entendendo, mas eles queriam ficar juntos. Iniciamos uma terapia. Disseram que
brigavam por motivos generalizados. Elize se dizia sempre nervosa. Aconselhei
os dois a procurarem um psiquiatra para obter medicação apropriada. Marcos
disse que Elize não o deixava procurar pela filha do primeiro casamento. Essa
negativa acionava brigas entre os dois. [...] Ele se mostrava muito preocupado
com Elize e queria que ela ficasse melhor”, relatou Neusa.
Marcos chegou a ir a pelo menos três sessões de terapia de casal. Na última
delas, houve uma discussão entre os dois na frente da psicóloga. Tudo começou
quando Elize estava falando sobre o abismo emocional existente entre ela e o
marido e foi cortada por ele, que começou a falar de como a vida de Elize
melhorou com o casamento. A terapeuta o repreendeu pelo manterrupting:
– Desculpe, mas a sua esposa não terminou de falar. Estou interessada em
ouvir o resto da frase da sua esposa. Devemos escutá-la até concluir o raciocínio.
Só depois você fala!
Irritado, Marcos se calou. Passou a olhar insistentemente para o relógio,
querendo encerrar a sessão. Elize começou a falar de como sonhou em ter uma
família e, agora que tinha, não abriria mão facilmente. Depois de desabafar por
quase 15 minutos, a terapeuta perguntou a Marcos:
– Você quer falar algo?
– Não senhora! – respondeu.
– Vocês estão prontos? – indagou a psicóloga.
– Estou! – respondeu Elize, empolgada.
– Pronto pra quê? – quis saber Marcos.
– Para falar dos seus sentimentos mais íntimos. Um vai falar para o outro
sobre o que está sentindo – respondeu a terapeuta.
Marcos ficou mudo e fechou a cara. Elize pegou a palavra para si mais uma
vez:
– Eu amo você, Bebezão. Sei que o nosso casamento está se desmanchando,
mas acho que tem conserto. Eu amo quando você chega em casa. Quando cuida
de mim e da nossa família. Quando faz planos. Quando a gente viaja...
– Marcos, o que você sente quando ouve essas palavras? – provocou a
psicóloga.
– Eu não estou confortável aqui – respondeu.
– Eu acho que você não ama mais a sua filha – cogitou a esposa.
– Nunca mais diga isso! – gritou Marcos.
– Você me faz sentir uma pessoa suja – concluiu Elize, aos prantos.
– Como assim? Por que suja? Fale mais sobre isso – quis saber a terapeuta.
Considerando a possibilidade de Elize revelar na terapia ter sido garota de
programa, Marcos levantou-se e caminhou apressadamente rumo à porta. A
terapeuta o interpelou:
– A sessão ainda não acabou!
– Pra mim essa palhaçada acabou, minha senhora! Estou sempre dando,
dando e dando. A Elize quis viajar para o exterior para caçar. Eu a levei. Ela
sonhava com um apartamento amplo, eu dei. Quis ser advogada, eu paguei o
curso pra ela. Dei um carro novo, uma filha, joias, uma cobra, uma adega de
vinhos, um seguro de vida, dinheiro, muito dinheiro... E o que ela me deu?
– Eu dei a você os últimos cinco anos da minha vida – respondeu Elize.
– Não estamos chegando a lugar algum. Talvez seja a hora de reiniciarmos.
Vocês já pensaram em passar um tempo longe um do outro? Isso poderá ajudar
– sugeriu a terapeuta.
– Uma separação? – perguntou Elize.
– Não seria uma separação. Seria um tempo para vocês descobrirem quem
são e o que querem do casamento – explicou.
– Eu acho melhor – concluiu Marcos.
– Você quer terminar? – quis saber a esposa.
Calado Marcos estava, calado ele continuou. Aos prantos, Elize pôs para fora:
– Eu te amo. Você é o meu salva-vidas. Foi um longo caminho até aqui. Sinto
que ainda temos muita coisa pela frente. A vida sem você me assusta. Sem você, o
mundo não faz mais sentido. Você é a única coisa de que preciso...
Marcos deixou Elize falando sozinha, saiu da casa da terapeuta e nunca mais
voltou lá. Alegou falta de tempo para justificar o sumiço do divã. Depois da
última sessão, ele escolheu ser um homem completamente livre, segundo teria
dito a Lincoln. Em casa, o empresário passou a dormir definitivamente no quarto
de hóspedes. Elize continuou na terapia sozinha. Sobre as sessões com a paciente,
Neusa Vaz declarou: “Ela não amava seu marido. Amava o mundo que ele
proporcionava. Com o tempo, Elize passou a demonstrar um distanciamento
emocional, como se separasse a emoção da razão. Ela tem um comportamento de
manipulação, sem nenhuma preocupação com o outro. O único vínculo que
conseguiu estabelecer de forma genuína foi com a filha. Ela tinha um exagero nos
cuidados com a garota. Não pregava os olhos com medo de acontecer algo com a
menina enquanto estivesse dormindo. Existia uma ligação simbiótica muito
grande entre mãe e filha. Elize tinha uma fantasia de persecutoriedade [quando o
indivíduo acredita estar sendo perseguido por pessoas e objetos]. Contou que
tinha a senha do computador do marido e, sem que ele soubesse, ela lia e-mails e
mensagens de bate-papo”.
Confuso e afogado dentro do casamento, Marcos procurou pelo reverendo
François e reclamou da esposa. Conselheiro espiritual do casal Matsunaga, o
sacerdote aproveitou o encontro com o empresário e reclamou de uma
infiltração nas paredes de sua igreja. Sensibilizado, o executivo fez um cheque de
3 mil reais. Em seguida, Marcos desfiou um rosário de reclamações do
matrimônio. Falou repetidamente da insanidade da mulher, apontada por ele
como o principal motivo da crise conjugal. “Acho que vou ter de interná-la num
hospício”, cogitou.
No dia seguinte foi a vez de Elize visitar François. Antes de ouvir as ladainhas
da jovem, o religioso a levou até a creche e mostrou como as crianças estavam
desnutridas. Elize repassou um cheque de 1.500 reais e pediu para ser ouvida.
Falou das grosserias do marido e da possibilidade de estar sendo traída. François
agendou uma visita ao casal. Queria promover uma sessão espiritual para
resgatar a harmonia da relação. Marcos e Elize ofereceram um jantar ao
sacerdote. No dia combinado, François chegou debaixo de chuva com uma hora
de atraso e se desculpou entregando aos anfitriões um buquê de flores. Para
celebrar a terapia religiosa, o casal abriu uma garrafa de vinho tinto Chateau
Latour Pauillac, cujo preço na época era de 10 mil reais. François disse nunca ter
provado algo tão delicioso em toda a sua vida. Quando soube o valor do rótulo,
quase caiu da cadeira. Passou a beber mais depressa, com goladas maiores. Antes
de ficar embriagado, o reverendo justificou por que chegara depois da hora
marcada. “Meu carro é muito velho. Deus do céu! O motor está batido e o freio
nem sempre funciona. Outro dia eu dirigia na chuva e uma moça desatenta
atravessou na minha frente empurrando um carinho de bebê. Vocês acreditam
que pisei firmemente no pedal e o carro não parou? O nenê, coitadinho, não foi
atropelado por um triz”, contou embargando a voz para carregar na emoção.
“Que horror!”, espantou-se Elize. Abalado com a história, Marcos prometeu doar
a François uma TR-4 novinha em folha na semana seguinte. Era o mesmo
modelo de carro dado por ele de presente para prostitutas, incluindo Elize. Na
sequência, o casal fez um brinde e falou dos obstáculos da vida a dois. Ela
começou:
– Nem eu nem ele somos mais as mesmas pessoas. Ele está diferente. Sinto
que o meu coração ficou para trás. [...] Nem sei se temos como manter nosso
casamento.
– Sempre tem uma saída – anunciou François, entre um gole e outro de
vinho caro.
– Eu ainda acho que deveríamos dar um tempo para um sentir falta do outro.
Nesse vácuo, poderemos redescobrir o amor – sugeriu Marcos.
O casal começou a falar da época de namoro, quando visitavam o zoológico
de São Paulo. Lembraram com humor até de Pepe, o chimpanzé que teria se
apaixonado por Elize. No meio da conversa, para surpresa de todos, ela foi até o
escritório e pegou o computador do marido. Abriu na frente da visita, logou com
a senha e acessou a caixa de entrada de e-mail. Elize leu em voz alta de forma
irônica uma mensagem enviada por Marcos a uma funcionária da Yoki lotada no
escritório do Recife chamada Francisca. Deu ênfase à forma como o marido se
despedia da moça: “Um beijo, Chiquinha!”. Houve constrangimento porque foi
revelado um fato bombástico naquele instante: Elize tinha a senha do
computador de Marcos. O casal iniciou uma discussão e François interveio
ríspido:
– Brigas não resolvem nada! – repreendeu o religioso, virando a taça de uma
vez.
– Me diga, reverendo: mandar beijo para uma funcionária não é traição? –
questionou Elize.
– Isso é bem relativo, querida – ponderou o sacerdote, bêbado.
A terapia já durava três horas, mas François não se incomodava com o
tempo, pois já havia sido aberta a quinta garrafa de vinho nobre. De repente, o
religioso foi ao banheiro da sala principal. Depois de urinar, ele lavou as mãos e
sentiu falta de toalha para enxugá-las. Ao abrir uma gaveta do lavabo, deparou-se
com uma pistola carregada. Nervoso, soltou um grito histérico e saiu às pressas.
O casal ainda batia boca na sala enquanto a sexta garrafa de vinho estava sendo
aberta por Marcos. Nervosa, Elize jogou o laptop do marido no chão da sala e
pisou em cima até despedaçá-lo. Com medo da arma no banheiro e chocado com
o surto da jovem, François recusou a bebida e aconselhou um tempo na relação.
“Não há mais plenitude nem harmonia nesse casamento”, justificou. Despediu-se
agradecendo pelo jantar e frisou esperar a visita de Marcos na semana seguinte
em sua igreja para, juntos, comprarem o carro novo.
No dia seguinte, Elize pegou a filha e viajou na companhia de uma babá para
a Costa do Sauípe, litoral da Bahia. A ideia era dar um tempo no casamento.
Hospedou-se num resort de luxo. De lá, trocava mensagens a todo o momento
com o marido. No dia 23 de março de 2012, Elize enviou um e-mail a Marcos.
Na mensagem, ela falava de como havia um muro entre os dois, da apatia do
esposo no casamento e cogitava a separação, além de tecer comentários sobre a
filha de Marcos com a ex-mulher:
Oi amor
Estou te escrevendo para a gente conversar sem brigar porque não
quero mais isso. Não quero mais ouvir você dizendo que fez tudo certinho
e que eu estou acabando com o nosso casamento. Quero te dizer que faz
tempo que eu me sinto totalmente sozinha. Pareces viver no mundo da
lua. Não consegues simplesmente perceber as coisas que estão à sua frente.
Se isso tem ocorrido por causa do seu trabalho, acho que deverias viver
sozinho. Talvez devesses pensar se você conseguiu superar o seu divórcio.
Me parece que não. Acho que não consegues encarar essa situação e
entender que a sua outra filha não mora mais contigo e nem sempre será
possível vê-la na hora que desejar. Se for por causa das visitas, a gente
pode até resolver. Mas se for por conta de culpa, eu não poderei te ajudar
em nada.
A sua filha não é a única criança que viveu, vive e viverá sem o pai.
Separação e divórcio acontecem. Eu também cresci sem um pai e nem por
isso eu destruí a minha vida. Não me tornei drogada nem alcoólatra, não
caí em depressão achando que nada daria certo. Pelo contrário. Não perdi
os meus valores e princípios que formaram o meu caráter. Tampouco
deixei de dar importância na educação que recebi da minha família, em
particular da minha avó Sebastiana. Pelo que me parece, a sua filha está
lidando muito bem com isso. Ela já não é mais filha única. Isso é bom
para ela entender que o mundo não gira em torno dela. Sou mãe agora.
Sei que jamais vou conseguir defender a minha filha de uma decepção na
vida. E nem quero, porque alegrias e tristezas constroem o ser humano.
A sua outra filha está bem. Convive com a família dela. Não fique se
sentindo culpado. Você tem outra filha agora. Olhe para ela também.
Entre em sintonia. Não fique apenas na presença física. [...] Erga a cabeça,
encare a situação e as escolhas que fizestes na vida. Não fique colocando a
culpa nos outros. Encare a vida como o homem que dissestes ter se
tornado. Você não fica bem nem com a sua outra filha, nem comigo nem
com a nossa filha. Acho que ela [outra filha] está encarando a situação
melhor do que você. E olha que ela tem só 8 anos. Nós temos a nossa
história também. A vida não é só o passado. E a gente?
Ontem, olhei umas casas e uns apartamentos em Curitiba. Caso a
gente se separe, eu vou morar lá. A nossa filha terá uma boa educação
escolar sem o estresse de São Paulo. Sem contar que estarei bem mais perto
da minha família, em especial da minha avó, que só conhece a nossa filha
por foto. Longe de você, eu ficaria aliviada porque deixaria essa vida onde
o dinheiro resolve tudo. Também terei a chance de conhecer alguém e não
ficar sozinha. E mais aliviada ainda porque não precisaria mais ligar o
botão no robô chamado Marcos para lembrá-lo que ele tem outra filha.
Nem fotos mais você tira com ela, a não ser que eu peça. Você passa todo
dia na frente dela, dá um “alô bebê”, sai pra rua e não traz nada para ela,
nem uma fralda...
Acorda!!! Estou te suplicando. Acorda antes que você fique longe das
suas duas filhas, pois daqui a pouco estaremos longe. Aí serás um homem
com duas ex-mulheres e dois casamentos fracassados. Um porque você
tinha uma mulher que não te amava. O seu primeiro casamento acabou
porque a sua ex-mulher não fez nada. O nosso está se acabando também.
Mas estou lutando para evitar esse fim simplesmente porque eu te amo!
Elize, sua esposa.
Na resposta, Marcos se dispôs a remendar o casamento e lembrou dos velhos
tempos. Paradoxalmente, ele copiou na mensagem a letra de uma música
internacional cujo trecho final sugeria a separação:
Meu amor,
Realmente você fez de mim um homem. Estou resgatando esse
sentimento agora. Lembrando de como eu era e como eu me senti quando
comecei a te amar. Foi muito bom. Tomei uma decisão, enfrentei o meu
medo e resolvi ficar com você. Não desista de mim, por favor. Ainda temos
muito o que viver. Temos também muita coisa para acertar. Cometi
muitos erros e fui muito fraco. Mas você também fez muitas coisas que me
magoaram. Vamos esquecer tudo o que aconteceu e recomeçar? Podemos
voltar para aqueles dias mágicos em que estar ao seu lado era a coisa mais
importante da minha vida. Estava ouvindo essa música e a letra dela diz
muito do que estou sentindo agora.
Na sequência da mensagem, Marcos enviou a Elize a letra completa da
música “Still loving you”, um clássico da banda alemã Scorpions. Um dos trechos
da canção diz, em tradução livre: “Eu poderia tentar mudar as coisas que
mataram nosso amor. Sim, eu feri seu orgulho e eu sei o que você está passando.
Você deveria me dar uma chance. Isso não pode ser o fim. Eu ainda estou te
amando”. Outra estrofe da mesma música, porém, diz o seguinte: “Seu orgulho
construiu uma barreira tão forte que eu não consigo atravessar. Realmente não há
chance para começar mais uma vez”.
Depois das trocas de mensagens carinhosas e das brigas recorrentes por
ciúme, Elize finalmente fez um movimento concreto de separação. No dia 21 de
maio de 2012, ela bateu na porta da advogada Priscila Corrêa da Fonseca,
conhecida em São Paulo pelo título de “a rainha dos divórcios”. Seu trabalho
geralmente é requisitado quando o término envolve litígio, mágoa, ódio e
grandes fortunas. Primeiro Elize fez uma consulta simples, na qual teria pago 700
reais (valores da época). No encontro inicial, de uma hora de duração, a jovem
falou da deterioração do casamento motivada por brigas, traições e falta de amor.
A advogada teria perguntado se ela tinha provas da infidelidade de Marcos. Elize
não tinha. “Eu gostaria que a senhora não contasse a ninguém que eu vim até
aqui. Eu preciso que seja feita urgentemente uma separação de corpos. Queria
que um oficial de Justiça chegasse em casa e o tirasse de lá imediatamente. Nesse
dia eu nem quero estar presente. [...] Eu não sei qual vai ser a reação dele quando
descobrir que eu tomei essa atitude. Eu tenho muito medo”, relatou Elize, em
2016, sobre a conversa com a advogada.
Priscilla aconselhou Elize a conseguir uma prova concreta de que Marcos era
adúltero. Uma semana depois, a advogada enviou um e-mail à possível futura
cliente. “Prezada Elize Araújo Kitano Matsunaga. Viemos pela presente
esclarecer que aceitamos, honrados, o patrocínio de seus interesses para a
propositura das ações de separação de corpos com guarda [da filha] e
regulamentação de visitas, alimentos, arrolamento de bens e divórcio em face de
Marcos Kitano Matsunaga. Em razão do patrocínio de seus interesses, far-se-ão
devidas ao escritório a título de honorários as seguintes quantias: 70 mil reais de
pró-labore (importância líquida e irrestituível) a partir da aceitação da presente”.
Priscila pediu ainda como pagamento 10% de tudo que Elize conseguisse
arrancar do marido por meio da ação judicial, além de uma quantia líquida
equivalente a seis vezes o valor da pensão alimentícia a ser paga pelo ex-marido.
A mensagem de Priscila para Elize termina projetando mais um boleto – dessa
vez de 3 mil reais – para custos com xerox, condução, hospedagem e incidentes.
Dizendo-se preocupado com a segurança da família Matsunaga, o reverendo
François convidou Marcos para almoçar. O religioso mal sentou à mesa do
restaurante e já foi falando de problemas hidráulicos em sua creche de crianças
carentes. As queixas acabaram quando o empresário preencheu um cheque de 6
mil reais e o repassou ao sacerdote para troca das tubulações e torneiras da
entidade. Enquanto François guardava o cheque na batina, Marcos avisou já ter
encomendado o carro novo do conselheiro espiritual, mas ele só chegaria na
semana seguinte. Depois de agradecer pelas caridades do empresário, François
falou da pistola encontrada no lavabo. O executivo da Yoki se desculpou pelo
constrangimento e contou do medo de ser assaltado e da estratégia de esconder
armamento pelo apartamento. François se mostrou angustiado com os surtos de
Elize e aconselhou Marcos a pegar todas as armas da casa, guardá-las dentro de
um dos cômodos do apartamento, trancar a porta e esconder a chave da esposa.
“Se possível, quebre a chave dentro da fechadura para ninguém ter mais acesso às
armas da casa. A sua mulher realmente está perturbada. Está tendo surtos
psicóticos. Precisa de ajuda médica. Pode estar com esquizofrenia. Eu temo com
a possibilidade de ela atentar contra a vida da filha, da babá ou mesmo contra a
própria vida. Ela está fora de si”, desabafou. Em seguida, François fez uma
profecia fúnebre:
“Escute bem o que eu vou te dizer: a sua mulher está perturbada
espiritualmente. Fora de si. Ela vai pegar uma dessas armas e vai matá-lo”.
Marcos ficou pensativo e classificou o prognóstico do religioso como um
exagero. Saiu do almoço antes da sobremesa. Marcou um novo encontro com o
religioso para dali a uma semana numa concessionária da Mitsubishi, localizada
no Jardim Europa, onde seria feita a entrega da Pajero TR-4. François agradeceu
antecipadamente pela graça supostamente alcançada.
Com o casamento em queda livre e cada vez mais distante emocionalmente
de Elize, Marcos ressuscitou o Whore Rider (montador de putas, em tradução
livre). O empresário mergulhou no submundo da prostituição com força total.
Feito sátiro, figura mitológica metade homem e metade bode, ele voltou a sair
com todas as categorias de profissionais. Frequentava a mansão de Arethuza,
boates, prostíbulos. Reativou o flat do Itaim para receber as profissionais de 300
reais do MClass e o apartamento da Bela Vista usado em programas com
mulheres mais baratas. Repetindo o mesmo padrão do passado, Marcos assumia
para as garotas de programa ser casado e dizia amar a esposa acima de tudo.
Passeando pelo MClass, o executivo da Yoki deparou-se com Lara, uma
prostituta cearense linda de 24 anos na época. Ela atendia no flat de número 163
do Hotel Mercure São Paulo JK, na Rua Funchal 111, Vila Olímpia. Nas fotos do
prostíbulo virtual, Lara estava em pé com os seios à mostra e deitada num sofá
com o bumbum para o alto. Seu nome verdadeiro era Nathalia Vila Real. Antes
de vender o corpo em São Paulo, ela fazia trabalhos de modelo em Fortaleza.
Nessa época, o jornal Gazeta do Nordeste publicou uma foto da beldade. O texto
a descrevia: “Seu olhar tem um quê tristonho, mas isso não vem ao caso. Nathalia
está apenas começando a viver. Ela assume todas as responsabilidades pelas
escolhas que está fazendo. Ela sabe que o mundo é exigente, que as preferências
são cruéis. Mas é preciso assumir os caminhos, os becos, as vielas, o destino.
Nathalia lembra a Lady Di e a atriz Guilhermina Guinle. Mas ela é apenas ela
mesma. Com olhar açucarado, boca amanteigada e ar de poesia”. Ao jornalismo
de A Gazeta, Nathalia deu uma singela declaração: “Ah, o mundo... Esse imenso
tribunal, essa inquisição persistente, esses dedos acusadores, essas mentiras, essas
hipocrisias... Ah, o mundo! É preciso viver e não se incomodar...”
Depois de fazer um programa com Nathalia a 400 reais, Marcos fez uma
resenha sobre o test drive no fórum chamado Guia de Garotas de Programa
(GGP). “Fui na Lara. Estava com o pé atrás achando que era muito bom para ser
verdade. Como ainda não havia ocorrido o desbravamento [primeiro encontro],
a ansiedade era grande. Seu flat, na Rua Funchal, tem uma burocracia meio
estranha. Tive de preencher o raio de uma ficha na portaria. Pelo menos não fui
obrigado a bater foto. Vocês sabem que o meu negócio nunca foi decoração. Mas
o flat da moça é bacana. Tem toalhas lacradas no plástico, sabonete líquido e
bebidas. Tudo muito profissional e organizado. Por falar em organização, ela me
enviou uma mensagem antes para confirmar o programa. Gostei dessa parte.
Mas vamos ao que interessa. A mulher é uma das mais lindas que já vi. As fotos
não são manipuladas em computador. Pelo contrário. Ela continua bonita
mesmo depois de tirar a maquiagem e tomar banho. É o tipo de mulher para
você levar em uma reunião. Os caras vão babar por ela na frente das esposas.
Comigo ela foi supersimpática, carinhosa, namoradinha, com direito a beijos
muito bons, oral bem-feito com duas gozadas. Os seios turbinados são muito
bons para chupar. E a bocetinha dela tem um grelo de bom tamanho e muito
gostoso. Ela tem uns pelinhos dourados na coxa de enlouquecer qualquer um.
Sinto muito pelas outras garotas de programa de São Paulo. Vou voltar muitas
vezes ao flat de Lara. Mulher inteligente. Não é fingida como as outras. Pensei
duas vezes em postar esse comentário aqui para não atiçar a concorrência. Como
vocês sabem, estava sem fazer test drive fazia tempo, então resolvi passar aqui
para resenhar a Lara. Ela cobra 300 reais a hora, mas paguei 400 porque ela não
fica olhando para o relógio regulando o tempo. Não sei se os colegas aqui do
fórum vão na Lara. Eu irei muitas e muitas vezes. Foi a garota que mais me
agradou até o momento. Acho que rolou a tal química. Para ser perfeito, só
faltou liberar o cuzinho...”
Em uma semana de encontros diários com a prostituta, Marcos passou a
chamar Lara de Nathalia e pediu para “namorá-la”, mesmo sendo casado com
Elize. O romance seguiu o mesmo padrão dos outros relacionamentos com
garotas de programa. Ele a levava aos mesmos restaurantes, perguntou quanto
ela ganhava por mês fazendo atendimentos sexuais, combinou uma mesada de 27
mil reais para ser só dele e exigiu que a profissional retirasse o anúncio do
MClass. A chegada da Pajero TR-4 comprada por Marcos para dar ao reverendo
François coincidiu com o início do namoro com Nathalia. Apaixonado, o
empresário decidiu profanar sua promessa. Deu de presente à prostituta o carro
destinado ao religioso.
À medida que a paixão de Marcos por Nathalia aumentava, crescia a barreira
emocional entre ele e Elize. O empresário dormia fora de casa mais de uma vez
na semana e dava como desculpas viagens a trabalho. Certa noite, ele chegou em
casa alterado. Elize estava preparada para abandoná-lo no dia seguinte, segundo
anunciou. Marcos teria aceitado a separação, mas teria feito uma exigência: a
filha ficaria com ele – segundo a versão de Elize. Houve uma discussão violenta
seguida de uma ameaça:
– Você não tem para onde ir, sua vagabunda!
– Vou morar no Paraná.
– Vai, mas deixa a minha filha porque não quero ela morando com uma
qualquer!
– Não fala assim! – implorou Elize.
– Aliás, você é uma sanguessuga que não consegue parar de me chupar. Diz
que vai embora e não sai de casa! Quer ajuda para arrumar as malas?
– Não precisa!
– Vai embora o quanto antes! Suma da minha frente!
– Vou embora amanhã! – anunciou Elize.
– Sempre assim, né? “Vou amanhã!” Por que não vai hoje! Ou melhor: vai
agora, sua cadela!
– Vou quando eu quiser!
– Vai! Mas se você levar a minha filha, vou dar um tiro bem no meio da sua
cara. A bala será tão rápida que você não saberá nem de onde veio! – ameaçou,
segundo a versão de Elize.
Essa seria a primeira e única vez que Marcos teria feito uma ameaça de morte
concreta à esposa. Elize ficou apavorada porque as outras advertências eram
feitas por ele sempre quando bêbado e pareciam da boca para fora. Depois da
discussão ele saiu de casa para encontrar amigos. A jovem acionou a polícia. A
chamada foi feita na noite do dia 24 de abril de 2012:
– Polícia Militar. Emergência.
– Boa-noite – saudou Elize.
– Boa-noite – devolveu o policial.
– Eu nem sei se deveria ligar aí na emergência. O meu marido me ameaçou e
saiu de casa. Gostaria de saber se eu posso trocar a fechadura das portas para ele
não entrar mais aqui em casa.
– Senhora, eu não compreendi. Fale um pouco mais alto, por gentileza.
– Meu marido saiu de casa e me ameaçou. Queria saber se eu posso trocar a
fechadura.
– Vocês estão casados há quanto tempo?
– Há cinco anos.
– Ele tem o direito de entrar na residência também – avisou o policial.
– Mesmo me ameaçando?
– Eu não sei o que está acontecendo no local. Se a senhora quiser, pode
registrar uma ocorrência para conversar com o policial. Não acha melhor? Fica a
critério da senhora.
– [Silêncio]
– Senhora? Quer que cadastre a ocorrência?
– Por favor!
– Qual o seu nome?
– Elize.
– Denise?
– Não! Elize com E!
– Qual o nome da rua, dona Elize?
– Rua Carlos Weber, 1.376.
– Uma referência?
– Paralela à Imperatriz Leopoldina.
– Senhora, o seu pedido foi cadastrado na Polícia Militar. Se ele retornar à
residência, informe no 190 imediatamente.
– Obrigada.
Duas horas depois da chamada, por volta das 21 horas, uma viatura da
Polícia Militar estacionou em frente ao prédio do casal Matsunaga. O porteiro
interfonou. Elize estava sozinha em casa com a filha. Ela ouviu o chamado e foi
até a sacada do apartamento. Lá do alto, viu as viaturas com luzes azul e
vermelha piscando. O interfone continuava tocando. Ela resolveu não atender.
Os policiais foram embora e retornaram uma hora depois. O interfone tocou
novamente e Elize não atendeu. Como a queixa nunca foi levada adiante, a
polícia arquivou a denúncia de ameaça.
Na mesma noite, Marcos voltou para casa mais calmo. O porteiro falou das
viaturas policiais. Com medo, ele resolveu fazer as pazes com a esposa. Mas o
casamento estava fadado a acabar. Em outra ocasião, o empresário viu Elize
arrumando as malas aos prantos. Comovido, pediu que ela ficasse. Os dois se
abraçaram, mas não se reconciliaram, pois continuaram dormindo em quartos
separados. No mês seguinte, Elize decidiu viajar a Chopinzinho para finalmente
mostrar a filha à avó Sebastiana. Antes de embarcar, porém, ela ligou no dia 16
de maio de 2012 para o número de um anúncio de detetive particular
especializado em casos extraconjugais, publicado na revista Veja São Paulo.
Quem atendeu a chamada foi o dono do escritório, o investigador particular
William Coelho de Oliveira, um homem calvo de 50 anos. Ela compareceu à sede
da Activa Detetives, no centro de São Paulo, no mesmo dia da ligação. A firma
tinha o slogan “suas dúvidas acabam aqui”.
Sentada no escritório de William, Elize falou das suas suspeitas. O detetive
perguntou se ela desconfiava especificamente de alguma mulher. Elize falou o
nome e as características de Claudinha, uma mulher, segundo ela, tão bonita
quanto a atriz Maria Fernanda Cândido. O trabalho foi orçado em 8.500 reais
(valores da época). Ela deu um sinal de 1.750 reais em cheque do talão da sua
conta conjunta com Marcos. Ficou acertado o pagamento de 5 mil reais quando
houvesse um relatório com fotos e filmagens revelando a tal amante. Elize deixou
claro que precisava de imagens nítidas porque as usaria em um processo de
separação. Depois de encerrada a missão do detetive, ela deveria pagar mais
1.750 reais. Elize falou de sua viagem ao Paraná, programada para o dia seguinte.
No entanto, mesmo longe, ela exigiu relatórios por telefone em tempo real a
qualquer hora do dia ou da noite. Para facilitar a espionagem, a jovem ficou de
repassar o momento exato em que Marcos sairia de casa. O outro braço da
investigação seria feito pelas empregadas do casal.
William trabalhava com detetives freelancers, contratados somente quando
havia serviço. Com o sinal de 1.750 reais, ele recrutou dois arapongas juniores
para seguir Marcos pela cidade de São Paulo. O plano era fazer campana desde
cedo no portão da garagem do casal, na Vila Leopoldina.
A investigação começou no dia seguinte à visita da cliente ao escritório do
detetive. Na manhã da quinta-feira (17/5), um motorista da Yoki levou Elize, sua
filha e a babá Mauricéa José Gonçalves dos Santos de casa para o Aeroporto
Internacional de Guarulhos. O carro era uma SUV Captiva de luxo prata, de
propriedade da Yoki. Desde 2010, esse carro era usado no dia a dia por Marcos.
Na sequência, ele pegou a TR-4 da esposa e seguiu ao Hotel Mercure, onde
encontrou Nathalia. Os dois investigadores já estavam em seu encalço sentados
na mesma moto. Segundo o relatório dos detetives, Marcos ficou no hotel das 9
às 11 horas e saiu de lá sozinho. Passou numa agência do Itaú Personnalité e
seguiu para a sede da Yoki, em Pinheiros. Já em Chopinzinho, na casa da tia
Rose, Elize ligava de hora em hora em busca de informações com William. Não
havia nenhuma novidade até o fim da tarde, pois os detetives ainda não tinham
avistado a amante do empresário.
Ainda na quinta-feira (17/5), Elize ligou às 19 horas para o chefe dos espiões
e passou uma pista quente. Marcos estava em casa se arrumando e sairia todo
perfumado. Era um sinal de que a noite prometia. A informação havia sido
repassada por uma das empregadas. Os detetives correram de moto até o portão
do prédio do casal. Chegaram a tempo de vê-lo saindo, dirigindo a Captiva. O
empresário seguiu ao flat de Nathalia com os investigadores em seu rastro. “No
hotel, ele pegou uma mulher muito bonita. Cabelos longos e negros. Alta, magra
e elegante. Estava bem vestida com roupa de couro e botas longas. Tem mais ou
menos 25 anos. Os dois parecem namorados. Eles seguiram ao restaurante
Fasano, no bairro dos Jardins. Eram quase 20 horas”, escreveram os detetives no
relatório. O casal não havia feito reserva e teve de esperar no balcão do bar. Uma
hora e meia depois, a hostess do restaurante acomodou Marcos e sua “namorada”
numa mesa no meio do salão. Os dois detetives iniciantes não tinham registrado
o flagrante porque estavam com medo de se aproximar com uma filmadora em
punho. Audaciosos, resolveram entrar no restaurante disfarçados de clientes. A
hostess, no entanto, os olhou dos pés à cabeça e eles foram obrigados a dar meia-
volta.
Os dois detetives ligaram para o chefe da missão e relataram a dificuldade de
entrar no Fasano, um dos restaurantes mais caros da cidade. Estavam
malvestidos. William pôs um terno completo e seguiu até lá. Pegou a filmadora,
camuflou-a na roupa e entrou no salão do restaurante com a desculpa de
procurar por um amigo. Ele viu Marcos e Nathalia sentados, mas o local estava
tão lotado que era impossível registrar um flagrante lá dentro. Ele saiu e
atravessou para o outro lado da calçada. Ansiosa, Elize ligou querendo um
relatório instantâneo. William disse ter visto a amante do empresário, mas ainda
não tinha as imagens. Do outro lado da linha, a esposa traída ficou nervosa e
agressiva. Exigiu o registro do flagrante, pois a prova era essencial para o sucesso
de seu divórcio. Vale ressaltar aqui o seguinte: faz muito tempo que não se
exigem mais provas de adultério num processo de separação litigiosa, pois pouco
importa para a Justiça de quem é a culpa quando um casamento chega ao fim.
No entanto, orientada pela Rainha dos Divórcios, Elize pretendia processar o
marido por dano moral e arrancar dele indenização financeira, pois a pulada de
cerca violaria os direitos legais dela, como sua dignidade e sua honra. Por isso
Elize estava empenhada em conseguir uma prova irrefutável da traição.
Na madrugada da sexta-feira, 18 de maio de 2012, o tão esperado flagrante
foi produzido. Marcos saiu com Nathalia do restaurante. Os dois estavam
agarradinhos feito casal em lua de mel. O empresário pediu o carro ao
manobrista. Enquanto esperava pelo veículo, beijou sua “namorada”, acariciou as
suas costas, os cabelos, pegou em seu rosto com delicadeza e deu beijos atrás de
beijos em sua boca. Marcos agarrou Nathalia por trás, para deleite dos detetives,
que filmaram as cenas românticas. “Ele era muito cordial com a moça, sempre a
tratando com muita gentileza”, escreveram os investigadores no relatório. Depois
do jantar, os pombinhos seguiram ao flat da garota de programa.
Elize ligou mais uma vez querendo saber onde os dois estavam. William
repassou as informações com detalhes. A esposa tentava descobrir pela descrição
quem era a mulher que estava roubando o coração do seu marido. Quanto mais
o detetive a descrevia, mais ela ficava confusa. Lá pelas tantas, Elize perguntou se
ela era bonita. William respondeu não saber porque as imagens eram noturnas.
No dia seguinte, Marcos levou Nathalia ao Vipiteno Gelato & Caffè, no bairro do
Itaim. Finalmente o detetive pôde ver a prostituta à luz do dia. Elize ligou mais
uma vez e perguntou como era a amante do marido. “É uma das mulheres mais
belas que já vi”, respondeu. “Mais bonita do que eu?”, perguntou Elize. “Não me
faça esse tipo de pergunta, senhora”, pediu o detetive. Revoltada, ela suspendeu a
investigação e bateu o telefone na cara do detetive.
Na manhã de sexta-feira, 18 de maio, Elize seguiu de carro com a filha até o
município de Cascavel (PR), onde pegaria o avião para Guarulhos. Antes de
embarcar, ela foi a um shopping e comprou uma serra elétrica tico-tico, mesmo
modelo usado por seu padrasto Chico da Serra em trabalhos em Chopinzinho.
No mesmo dia, Elize ligou para a advogada contando ter provas cabais da traição
do marido. Foi orientada a ficar quieta até o pedido de separação de corpos ser
protocolado na Justiça. Ficou marcada uma outra reunião para assinar o contrato
e iniciar o processo de divórcio. A ideia era arrancar até as cuecas do marido
milionário e adúltero. Esse encontro entre a esposa traída e a defensora, apesar
de marcado, não ocorreu.
O retorno de Elize de Chopinzinho a São Paulo se deu na tarde chuvosa do
dia 19 de maio de 2012, um sábado. Marcos foi buscá-la no aeroporto na Captiva
da Yoki. Ele estava uma pilha de nervos. A venda da empresa se aproximava dos
momentos finais. No trajeto de Guarulhos para casa, ele falava com o pai, Mitsuo
Matsunaga, por telefone. Haveria uma reunião dali a poucos minutos para
comunicar como seria o desligamento da família Matsunaga da companhia e
Marcos chegaria muito atrasado. Irritado, ele jogou o telefone no painel do carro,
acelerou na pista escorregadia da Marginal Tietê e esmurrou fortemente o
volante. A atitude violenta assustou a filha do casal e a babá. Elize pegou o
telefone e ligou para o sogro. Assumiu a culpa pelo atraso do marido, pois o voo
havia pousado uma hora depois do horário previsto. O pai avisou que não era
mais preciso o filho comparecer à tal reunião. “Manda ele nem vir porque
estamos acabando aqui”, disse Mitsuo.
Pelas imagens do circuito de segurança do prédio, o casal chegou em casa às
18h35. Marcos continuava alterado. Elize deu um banho na filha, colocou-a no
berço para dormir e dispensou todas as empregadas da casa. Por volta das 19
horas, ele pediu uma pizza por telefone e abriu uma garrafa de vinho tinto
italiano Brunello Di Montalcino, cuja garrafa na época custava 900 reais. O sabor
levemente adocicado desse vinho era perfeito para harmonizar com massa e
molho de tomate. Enquanto o casal esperava pela entrega da pizza, o telefone de
Marcos tocou. Em busca de privacidade, ele foi atender na varanda. Elize não
conseguiu ouvir a conversa. O empresário voltou à sala falando de uma nova
reunião marcada em cima da hora para tratar da venda da Yoki, programada
para ser concretizada dali a três dias.
Elize usava calça jeans desbotada com dois rasgos na altura da coxa direita e
mais dois na altura dos joelhos. Vestia blusa branca por baixo de um casaco
marrom-escuro com flores coloridas bordadas numa das mangas e calçava
sandálias cor-de-rosa. Marcos usava óculos e vestia camisa polo Ralph Lauren
azul-escuro de mangas compridas e calça jeans azul-escuro da Diesel. Elize
colocou sobre a mesa de oito lugares dois sousplats, dois pratos, dois talheres,
duas taças de cristal e posicionou a garrafa de vinho. O porteiro interfonou
avisando a chegada da pizza. Marcos desceu para buscá-la às 19 horas. No
elevador, ele falava ao telefone. Estava irritado e chutava as paredes metálicas. De
volta ao apartamento, pôs a pizza sobre a mesa. Usou o saca-rolhas para abrir a
garrafa de vinho. Em seguida, retirou a tampa da caixa, pegou o cortador e
dividiu a pizza em oito pedaços. No meio do ritual, a esposa começou a
questioná-lo:
– Onde você vai depois do jantar?
– Já disse, tenho uma reunião.
– Reunião onde?
– Na casa dos meus pais.
– Num sábado à noite?
– É uma emergência! – insistiu Marcos.
– Não vem com essa. Eu sei que você tem uma amante. Por que você não
confessa que vai encontrá-la no Hotel Mercure da Vila Olímpia...
– Do que você está falando, sua louca?
Marcos estava sentado numa das cabeceiras da mesa. Elize estava na posição
perpendicular a ele. Ninguém havia tocado na pizza nem no vinho. Até então a
conversa era tensa, mas nenhum dos dois tinha alterado o tom da voz. Elize
contrariou a orientação da rainha dos divórcios e encurralou o marido:
– Todas as vezes que eu falo que você tem uma amante, você se defende
dizendo que sou louca varrida. Chega! Desta vez não tem como você dizer que
estou inventando. Contratei um detetive para seguir você no fim de semana e eu
agora sei de tudo. Você foi ao Fasano com a sua amante...
Nesse instante, Marcos levantou-se alterado:
– Com que dinheiro você contratou um detetive para me espionar? Com o
meu, né? Até porque você não trabalha, sua vagabunda. Que audácia da sua
parte!
Elize também se levantou para discutir em pé de igualdade. A partir desse
momento, o bate-boca ficou acalorado. Ela lançou mão do seu clichê preferido
nessas horas e anunciou mais uma vez que estava saindo de casa. Marcos
avançou sobre a esposa, mas ela escapou rodeando a mesa:
– Vai embora! Vai agora, sua vadia neurótica! Puta!
– Eu não sou mais garota de programa. Já lhe disse isso mil vezes!
– Deixa de ser idiota. Você nunca deixou de ser!
– Para com isso, por favor! – implorou Elize.
– A única coisa boa que você faz é abrir as pernas.
– Eu imploro! Pare!
– Abre as pernas e, em seguida, gasta o meu dinheiro!
– Por favor!
– Nosso casamento é um programa que não acaba nunca! – definiu Marcos.
– Chega! Vou embora para Chopinzinho amanhã cedo – anunciou Elize.
– Vai, mas deixa a minha filha aqui porque não quero ela sendo criada pelo
lixo de família que você tem!
Enquanto falava para Elize palavras que matam como bala de revólver,
Marcos tentava alcançá-la na sala. Ela seguia às pressas pelos corredores. Em
certo momento, a jovem parou de correr. Ele a segurou pelo braço e deu uma
bofetada forte em seu rosto, segundo relato dela. Continuamente, ela se
desvencilhou e saiu da sala pelo corredor de acesso à cozinha. O empresário
prosseguiu com as ofensas:
– Você é uma vagabunda de quinta categoria. Filha de pai alcoólatra, mãe
doida, padrasto estuprador. Gente doente. Volta para aquele esgoto cheio de
ratos, mas a minha filha você não vai levar porque não quero que ela seja criada
dentro de um vaso sanitário cheio de merda!
– Não fala assim! Não posso ficar longe da minha filha...
– Que juiz daria uma criança para uma caipira, puta de calçada, louca e sem
dinheiro?
Ao dar a volta pelos labirintos estreitos do imenso apartamento para escapar
das garras do marido, Elize entrou na antessala. Próximo ao bar, ela abriu
rapidamente a gaveta do móvel onde Marcos guardava charutos. Pegou a pistola
Imbel carregada com 15 balas que ganhou de presente do esposo. Pelo barulho
das pisadas no chão, ela imaginou seu algoz vindo a passos rápidos em sua
direção. Elize deu mais uma volta pelas passagens delgadas, seguiu por um outro
corredor e chegou ao hall da sala principal. Marcos não estava lá. A tensão e o
medo tomaram conta do ambiente. De repente, ele surgiu por trás, refletido na
imagem de um espelho grande pendurado na parede. Elize tomou um susto. Ela
afastou-se do espelho e acabou se aproximando do marido enfurecido.
Desorientada, ficou mais ou menos a uma distância de 4 metros dele. O
empresário continuava verborrágico e desmedido. Ele não percebeu a pistola
semiautomática com a esposa porque a arma estava nas mãos dela junto às costas
e apontada para o chão. Marcos ainda a machucava com palavras de gosto
amargo ao mesmo tempo que dava passos em direção à mulher. Acuada, Elize
empunhou a arma em sua direção:
– Fique onde está! – ordenou ela, firme.
Marcos teve um sobressalto com a surpresa, mas não se abalou. Pelo
contrário. Começou a rir de forma debochada. A poucos metros de Elize, ele
abriu os braços e deu dois passos curtos em direção a ela, que não recuou. O
desdém do empresário prosseguiu:
– Olha que palhaçada! A piranha está armada! Atira, sua fraca! Atira! Vai!
Atira! – desafiou.
– Cala a boca! – mandou Elize, em tom autoritário.
– Vem calar, sua vagabunda! Verme! Vadia! Ordinária! Cadela! Lixo de
mulher!
– Cala a porra dessa boca!
– Calo nada, sua prostituta!
– O que você falou?! – perguntou Elize, incrédula.
– Vou repetir bem devagarinho para você ouvir o som de cada parte dessa
palavra: sabe o que você foi, é e sempre será? PROS-TI-TU...
Marcos Kitano Matsunaga, de 41 anos, não teve tempo de soletrar
inteiramente o substantivo feminino de quatro sílabas. Elize Araújo Kitano
Matsunaga, de 31 anos, mirou a cabeça do marido, fechou os olhos e disparou
um único tiro em direção a ele. A bala entrou pela fronte anterolateral e seguiu
uma trajetória de frente para trás, de cima para baixo, da esquerda para a direita.
Dentro do crânio, percorreu o hemisfério cerebral esquerdo e se alojou no
cerebelo. Marcos tombou para trás com os olhos fechados e a boca bem aberta,
como se ainda tivesse um amálgama de coisas danosas para falar. Com o impacto
do tiro, seus óculos de aro prateado fino e lentes bifocais foram parar do outro
lado da sala. Uma torrente de sangue misturada a pedaços de miolo queimado
esparramou-se lentamente pelo piso de madeira escura da sala. Parte do sangue
desceu pela traqueia e foi parar nos pulmões da vítima. O estampido não chamou
atenção dos vizinhos, mas acordou a filha do casal, que se pôs a chorar. No
atestado de óbito do empresário, consta como causa da morte “hemorragia
intracraniana traumática” e “traumatismo cranioencefálico causado por projétil
de fogo”. Quando foi perguntada por que disparou aquela arma na noite de
sábado, 19 de maio de 2012, Elize respondeu com uma sinceridade comovente:
“Eu queria apenas que ele se calasse”.
“Você sabe o cheiro que tem a cela de uma
prisão?”
M
el era uma cadelinha da raça blue heeler. Entre as maiores características
da cachorra de origem australiana estão amorosidade, fidelidade ao dono
e disposição para o trabalho. Hábil, a espécie costumava pastorar
rebanhos mordendo o calcanhar do gado sem machucá-lo. Mel, porém, nunca
havia mordido ninguém nem de brincadeira. Dócil, tinha 4 anos em 2012, pesava
20 quilos e media 50 centímetros de altura. Seus pelos acinzentados eram
mesclados nas cores branca, marrom e preta. Brincalhona, vivia solta com outros
dois machos da mesma raça e quatro vira-latas numa chácara de 5.000 m2 toda
arborizada e banhada por córregos, localizada na zona rural do município de
Cotia, Região Metropolitana de São Paulo. O tutor era o argentino Gastón
Fangio, de 42 anos, comerciante e criador de cavalos árabes. No local, os
cuidados dispensados aos equinos nobres se estendiam aos cães. A cada 15 dias,
veterinários os examinavam cuidadosamente. Amante dos animais, o
comerciante tratava os bichos “a pão de ló”, expressão antiga copiada da avó de
sua esposa brasileira. Ele não estava exagerando. Mel, por exemplo, comia
diariamente uma ração premium orgânica de grãos médios sabor carne de
cordeiro e mandioca, além de legumes de horta própria, como abóbora, cenoura,
chuchu e inhame. Os bichos de Gastón bebiam apenas água filtrada. Um luxo!
No entanto, a cadela não era muito chegada às coisas boas da vida. Em um
exame de rotina, os veterinários diagnosticaram nela um mau hálito
insuportável. Também encontraram manchas de sangue nos pelos abaixo da sua
boca. Uma investigação simples desvendou o mistério macabro. Mel fugia de
casa e caminhava 3 quilômetros por uma estrada de terra até chegar a um lixão
clandestino onde eram despejados restos mortais de bois e cavalos. Seu gosto por
carniça virou caso de polícia. Na manhã do dia 21 de maio de 2012, segunda-
feira, Gastón cavalgava pela chácara quando viu a sua cachorra preferida deitada
ao pé de uma jabuticabeira sabará. O comerciante se aproximou e teve vontade
de vomitar quando viu Mel devorando um braço humano contendo a mão. Mais
de perto era possível ver que o membro estava esverdeado, já em processo inicial
de decomposição. Gastón gritou para a cadela soltar a peça de carne, mas ela
respondeu rosnando. A polícia foi chamada. Peritos do Instituto Médico Legal
(IML) de Cotia vasculharam a redondeza e fizeram uma descoberta ainda mais
horripilante. Com a ajuda de outros cachorros, a blue heeler havia devorado o
outro braço do cadáver humano, deixando apenas pedacinhos de ossos. Gastón
compareceu à delegacia de Cotia às 15h24 do dia 21 de maio e registrou um
boletim de ocorrência (Nº 3616). Mel era suspeita de homicídio. “A minha
cadelinha é inocente. Pelo amor de Deus! Ela jamais atacaria alguém. É um
animal afetuoso. Incapaz de fazer mal a uma mosca. Meto a minha mão no fogo
por ela. [...] Certamente alguém desovou um cadáver pelas proximidades. Ela só
o comeu porque a pessoa estava morta”, defendeu-se Gastón na delegacia. Para
se reeducar, a cadela carniceira foi passar uns dias na casa dos pais do argentino,
numa fazenda em Presidente Prudente, a 560 quilômetros de São Paulo.
A acusação contra Mel durou menos de 24 horas. No dia 22 de maio,
moradores de Cotia encontraram na estrada das Palmeiras, perto de um
orquidário, a 7 quilômetros da chácara de Gastón, um saco plástico de lixo azul
contendo uma perna humana com o pé. Próximo, foi achada ainda uma calça de
jeans escura toda ensanguentada com o cinto preso nela. No dia seguinte, o
telefone da delegacia tocou mais uma vez. Uma senhora caminhava pela estrada
na divisa de Cotia com o município de Vargem Grande Paulista e quase
desmaiou quando viu urubus disputando um tronco humano. Foram recolhidos
a poucos quilômetros dali, na Rua Bragança, um quadril e mais uma perna com o
pé. Juntando os membros encontrados até então, faltava apenas a cabeça. Já era
possível concluir, porém, que o corpo fora seccionado em sete pedaços. As partes
recolhidas foram montadas sobre uma bancada de inox no IML de Cotia. A cena
medonha intrigava investigadores porque o cadáver estava incompleto. Até
então, ninguém sabia quem era aquela pessoa.
Marcos Matsunaga era mais próximo da mãe, Misako Matsunaga, do que do
pai, Mitsuo. Os dois se viam praticamente todos os dias e trocavam muitas
mensagens pelo celular. Na segunda-feira, 21 de maio de 2012, ela tentou entrar
em contato com o filho, mas não conseguiu. O silêncio do primogênito
incomodou a matriarca. À tarde, preocupado, Mitsuo ligou para Elize em busca
de notícias de Marcos. Apesar de tê-lo assassinado dois dias antes, ela contou
uma lorota ao sogro: o marido havia saído de casa usando táxi no domingo,
carregando algumas peças de roupa e uma mala com 20 mil reais em espécie sem
dizer o destino. Como a Yoki estava em processo final de venda e a operação
havia sido vazada aos jornais, foi cogitado um possível sequestro. Ainda na
segunda-feira, Elize se reuniu com a família do marido na mansão dos
Matsunaga para revelar o “verdadeiro motivo” do sumiço do empresário. Em
determinado momento, ela fez um movimento cênico. Cínica, Elize levantou-se
do sofá cheia de empáfia e tirou da bolsa o DVD produzido pelo detetive com
imagens de Marcos agarrado a Nathalia em frente ao restaurante Fasano.
Ousada, a jovem ligou os equipamentos eletrônicos dos sogros e mostrou para
quem quisesse ver as cenas do escândalo sexual. As imagens foram exibidas
numa TV de 50 polegadas. “Que sequestro, que nada! Olhem isso! O Marcos
fugiu com uma amante!”, revelou Elize. Em seguida, ela chorou feito mulher
traída. Houve um choque na família. Solidários, os pais do empresário a
consolaram. Apesar de um caso extraconjugal ser algo deprimente, Mitsuo e
Misako ficaram aliviados, pois era muito melhor ter um filho adúltero do que
vítima de sequestro.
Orientada pelo advogado Luiz Flávio Borges D’Urso, um dos mais
respeitados de São Paulo, a família de Marcos registrou um boletim de
ocorrência comunicando à polícia o sumiço do empresário, independentemente
de ele ter fugido com uma amante. Na terça-feira, 22 de maio, três dias após o
crime, Mauro Matsunaga, o caçula, foi à delegacia denunciar o sumiço do irmão.
Um diretor da Yoki, Luiz Carlos Lózio, o acompanhou a pedido de Mitsuo. Aos
policiais, os dois descreveram Marcos fisicamente com detalhes e mostraram
algumas fotos recentes dele. Também falaram de Nathalia, o affair do executivo.
Para reforçar a tese de que Marcos se refestelava na alcova da amante e não num
cativeiro qualquer, Elize teve uma ideia. Ela ligou o computador do marido, pôs a
senha dele, acessou o seu e-mail e enviou mensagens como se fosse o empresário.
Escolheu como destinatário o reverendo François, o irmão Mauro e uma das
secretárias da presidência da Yoki. O texto mandado à família era um alento:
“Avisa a Elize e a mamãe para não se preocuparem. Estou bem. Assinado:
Marcos”. O alívio durou poucas horas. No mesmo dia, o programa Brasil
Urgente, apresentado pelo jornalista José Luiz Datena na TV Bandeirantes, fez
uma chamada de impacto. “Um quebra--cabeça macabro: pedaços de uma vida
abandonados em estrada de terra em Cotia, na Grande São Paulo, formando um
grande mistério”. A notícia deixou a família Matsunaga envolta num misto de
aflição e desespero.
Apesar de ter matado e esquartejado o marido, Elize levava uma vida normal
de dona de casa. Na manhã seguinte, após jogar o corpo de Marcos no mato, por
exemplo, ela tomou café da manhã como se nada tivesse acontecido. A
governanta Neuza Gouveia da Silva fez suco de laranja, ovos mexidos, serviu pão
de fôrma e passou um café. A patroa fez a primeira refeição do dia com apetite. A
funcionária perguntou se o patrão desceria para comer e Elize respondeu que ele
não dormia em casa havia duas noites. Em seguida, a viúva pediu a ajuda de
Neuza para arrumar a cama do quarto onde o marido vinha dormindo nos
últimos dias. A governanta contestou a ordem da patroa:
– Se ele não está dormindo em casa, a cama está arrumada, dona Elize.
– Mas quero que os lençóis sejam trocados mesmo assim, pois estão
empoeirados.
– Não seria melhor esperar pela arrumadeira? – sugeriu Neuza.
– Não! Vamos fazer isso nós duas logo após o café.
À tarde, na hora de arrumar a mesa do almoço, a governanta perguntou
novamente se deveria pôr um lugar para Marcos. Elize respondeu
negativamente. Neuza pôs apenas um prato. “Não notei qualquer preocupação
dela em relação ao marido. Nem nunca a vi chorando”, disse Neuza. Na quinta-
feira, 24 de maio de 2012, cinco dias após o assassinato, Elize foi à terapia à tarde.
Antes, deu uma ordem inusitada à governanta. “Vá ao banco Bradesco agora e
deposite 10 mil reais na conta do Marcos”, ordenou a patroa. Neuza nunca havia
feito esse tipo de serviço. Nervosa e obediente, pegou uma sacola contendo
dinheiro vivo e foi sozinha até a agência mais próxima.
Na terapia com a psicóloga Neusa Vaz Márcia, Elize também falou do sumiço
do marido como se fosse inocente. Na sessão, ela voltou à lenga-lenga da fuga de
Marcos com a amante. “Você é testemunha de quanto eu lutei tentando salvar o
nosso casamento. Noites e noites de lágrimas no travesseiro. Pra quê? Pra nada!
Eu dei minha vida na mão desse covarde. Ele me abandonou e fugiu com outra
mulher. Você acha isso justo?”, desabafou pela última vez no divã. Após a
terapia, Elize teve mais um encontro com a família do marido e incrementou a
farsa de que ele estaria vivo. Ela mostrou aos pais do empresário o extrato
bancário da conta de Marcos com o depósito de 10 mil reais feito pela
governanta na manhã. “Vocês estão vendo! Ele não foi sequestrado coisa
nenhuma. Movimentou a conta bancária hoje. Tenho certeza de que ele está com
uma amante”, declarou Elize. Para dar credibilidade à encenação, a assassina
derramou algumas lágrimas. No mesmo dia 24, a General Mills anunciou ter
comprado a Yoki por 1,75 bilhão de reais.
Na saída da casa dos sogros, Elize passou no banco e fez uma retirada de
8.000 da conta de Marcos. Pegou o extrato e mostrou à família da vítima. Mitsue
e Misako acreditaram mais um pouco na hipótese de o executivo ter ganhado o
mundo com a amante, conforme Elize sustentava reiteradamente. A tese da fuga
parecia convincente por causa das mensagens que a homicida enviou em nome
da vítima, da movimentação bancária e o DVD entregue pelo detetive. No
entanto, quando a polícia encontrou a cabeça do empresário, no dia 28 de maio,
o enredo de terror começou a indicar uma reviravolta. Mauro e Lózio foram
chamados ao IML para tentar identificar o cadáver pela cabeça. O primeiro a
olhar foi Lózio. Ele saiu do necrotério com a certeza absoluta de ser Marcos o
dono daquele crânio decapitado, mas ele preferiu não falar nada para não chocar
o irmão da vítima por antecedência. O amigo deixou Mauro tirar as suas
conclusões olhando o cadáver com seus próprios olhos. No entanto, ele foi até a
câmara mortuária, viu a cabeça de Marcos com a boca aberta e saiu de lá
aliviado:
– Não é meu irmão!
– Tem certeza? – questionou Lózio.
– Absoluta! – respondeu Mauro, ainda na porta do IML.
No carro, Mauro perguntou a Lózio se passava pela mente do diretor a
possibilidade de aquela cabeça ser de Marcos. Ele respondeu positivamente e
comentou sutilmente sobre como traumas emocionais podem deixar as pessoas
cegas diante da verdade. Mauro ficou intrigado, mas se manteve incrédulo. No
dia seguinte, porém, corroído pela dúvida, ele voltou ao IML na companhia do
amigo e pediu para ver a cabeça do cadáver pela segunda vez. Passou alguns
minutos olhando. Ficou bastante emocionado, mas disse “não”, “não” e “não”
em voz alta. No entanto, dentro de si, uma voz oculta dizia “sim”, “sim” e “sim”.
Com os olhos molhados, Mauro quis ver o braço do cadáver. “O Marcos tinha as
unhas idênticas às minhas”, justificou com a fala embargada. Ao ver a mão da
vítima, ele concluiu: aquela pessoa esquartejada de forma cruel era, de fato, seu
irmão. No mesmo instante, ele assinou um termo fazendo o reconhecimento
oficial do corpo, mas só liberariam o cadáver para sepultamento após o exame de
DNA.
Em choque, Mauro entrou em contato com o pai pelo telefone celular e deu a
notícia triste. Marcos não havia fugido com a amante. Tinha sido brutalmente
assassinado. Mauro ligou para a viúva ainda do IML. Do outro lado da linha,
Elize reagiu à notícia da morte do marido com frases negacionistas: “Não pode
ser. É um engano. Não é possível. Não acredito. Isso não é verdade”. E chorou no
ouvido do cunhado. Na sequência, ela procurou por Ciça, prima de Marcos e
madrinha do seu casamento. Na confeitaria, as duas choraram pela morte do
empresário. A prima ficou tão nervosa que não conseguia mais dormir à noite
por causa da atrocidade. Cáustica, Elize a consolou aos prantos. As duas foram
até a mansão da família Matsunaga e lá Elize chorou copiosamente. Mesmo
afogada em lágrimas, a viúva encontrava forças para acalentar Mitsuo e Misako.
Nem depois de receber a notícia do esquartejamento de Marcos, Elize mudou
sua rotina. Quando a filha completou 1 ano, um mês antes do crime, o casal
havia contratado novamente a fotógrafa Adri Felden para registrar a festa
infantil. A profissional já conhecia os Matsunaga da festa de casamento. No dia
29 de maio de 2012, nove dias após Elize ter matado o marido, Adri procurou
pela esposa de Marcos e falou sobre o álbum com as fotos da menina, prestes a
seguir para impressão. Havia uma questão a ser definida e a fotógrafa enviou um
e-mail à cliente: “Oi Elize. Tudo bem com você? Segue anexo em PDF as fotos do
álbum do aniversário da sua filha. Estou te mandando duas sugestões de capa.
Essa na versão cereja fiz baseada na cor das flores do vestidinho dela. Espero que
você goste. Também segue outra versão na cor laranja para você ter opção de
escolha”. A mãe assassina respondeu dois dias depois: “Oi, Adri. Realmente a
capa na cor cereja é a mais bonita. Pode usar ela. Obrigada”.
O cinismo de Elize parecia não ter limites. No mesmo dia em que definiu a
cor do álbum de fotos da filha, ela fez uma visita à igreja do reverendo François e
contou chorosa sobre a forma como Marcos foi morto e esquartejado.
Interesseiro, o religioso perguntou se o empresário havia deixado uma TR-4 em
seu nome. Não havia carro nenhum, pois Marcos morreu antes de cumprir a
promessa. A viúva pediu ao sacerdote uma missa em homenagem ao marido
falecido. François se ofereceu para fazer um funeral maior, mas a família,
discreta, vetou a ideia. Queria escapar do assédio da imprensa. Nem por isso a
morte de Marcos ficou sem as exéquias. Em uma de suas missas coletivas na
periferia de São Paulo, François fez as honras fúnebres à sua ovelha caridosa. A
igreja estava lotada e quente e todo o mundo se abanava. Na plateia apinhada de
anônimos estavam Elize e os personagens do meretrício: Lincoln, Paolo, Joel,
Alícia, Arethuza, Ely, Lulu, Gizelle e outras prostitutas. Todos suando em bicas
de tanto calor. Até Chantall compareceu e consolou Elize. O religioso desculpou-
se pela quentura e ligou o único ventilador da igreja. Ele se emocionou ao falar
de Marcos e dos mistérios envolvendo a morte: “Foi uma das pessoas mais
generosas que passaram pela minha igreja. Homem solidário e espirituoso. Uma
vez, Marcos confessou ter muito medo da morte. Eu perguntei por que esse
pavor todo. Ele disse que o seu medo de morrer estava ligado exclusivamente ao
sofrimento. Achava que sentiria uma dor angustiante na hora da partida. Esse
tipo de medo é muito comum em pessoas que vivem plenamente a vida. E eu
posso dizer que Marcos viveu intensamente cada minuto da sua existência nesse
plano [...]”.
O reverendo continuou com palavras de conforto: “Quando alguém morre, o
espírito retorna para Deus, e o corpo, que foi feito do pó da terra, decompõe-se e
volta para a própria terra porque nós somos pó e ao pó voltaremos. Essa é a
verdade de todas as verdades”. François aproveitou a presença dos amigos ricos
de Marcos em sua igreja para faturar. Estrategicamente, comentou sobre o calor.
“A minha igreja tem seis ventiladores, mas só um está funcionando. O Marcos
era generoso. Ficou de mandar instalar um sistema de refrigeração de ar, mas ele
nos deixou antes de realizar essa caridade à Casa de Deus”, comentou. No final,
Lincoln foi até o sacerdote, perguntou reservadamente quanto custariam os
aparelhos de ar-condicionado. François orçou em 80 mil reais (valores da época)
e recebeu um cheque do supermercadista. “O Marcos teria muito orgulho dessa
atitude”, agradeceu o religioso.
Elize não sabia, mas enquanto fingia rezar pela alma de Marcos,
investigadores da Polícia Civil já estavam em sua cola, inclusive na missa do
reverendo. O Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP)
havia escalado o delegado Mauro Gomes Dias para descobrir quem matou
Marcos Matsunaga. Com 50 anos na época, o policial havia se projetado
profissionalmente com o caso conhecido como crime da pedra da macumba,
cujo enredo contava a história de uma mulher de 54 anos encontrada morta no
quilômetro 8 da estrada de Santa Inês, no município de Mairiporã, na Grande
São Paulo. A vítima estava sem os olhos e a pele da face havia sido totalmente
arrancada. A suspeita era de assassinato para rituais satânicos. Depois de dois
anos ficou provado que a mulher se suicidou e seu rosto fora devorado por
animais. Mauro Dias foi tirado do caso antes do encerramento do inquérito para
desvendar o assassinato do empresário da Yoki. Quando o delegado viu pela
primeira vez o corpo esquartejado no IML, concluiu: quem matou esse homem
tinha muito ódio no coração.
Mauro Dias teve dois aliados importantes no início da investigação. Lózio e
Mauro Matsunaga estavam empenhados em descobrir o nome do assassino. Os
três ligaram para Elize e marcaram uma visita. Ela os recebeu com cordialidade.
O delegado quis saber de quem a viúva suspeitava. Sem pestanejar, ela apontou a
amante de Marcos, filmada pelo detetive particular em cenas românticas com o
empresário. O policial conseguiu informações dos arapongas e encontraram
Nathalia no hotel Mercure. Apavorada com a visita dos homens da lei, a
prostituta negou qualquer participação no crime. Apresentou um álibi – ela
estava no hotel no fim de semana em que Marcos desapareceu – e falou em
depoimento as impressões de Marcos sobre Elize. “Ele dizia que ela era louca e
muito ciumenta. Falava em separação”, contou. Na delegacia, um policial chocou
Lózio e Mauro com uma pista quente: a pessoa que esquartejou Marcos entendia
de anatomia, era organizada e tinha levado mais de seis horas para seccionar o
corpo. O delegado Mauro Dias mostrou aos dois o laudo da perícia feita no
cadáver. O saco plástico biodegradável de lixo com capacidade de 100 litros
usado na embalagem dos membros e das roupas da vítima era da marca Dover-
roll. Tinha cor azul cintilante e fita vermelha fosca usada como lacre. No final da
conversa, o delegado perguntou qual a profissão de Elize. Os rapazes disseram
que ela era bacharel em Direito. Até então eles não sabiam da sua formação em
técnica de enfermagem, da sua passagem por centros cirúrgicos de hospitais de
Curitiba e muito menos da sua habilidade em esquartejar animais.
Passada uma semana do assassinato, Mauro Matsunaga entrou em contato
com Elize. Estava inconformado com a morte do irmão. Pediu à cunhada para
verificar no condomínio as imagens do elevador e ver Marcos saindo do prédio
com a tal mala de dinheiro. Ela não se opôs. A visita ocorreu na tarde de sábado,
26 de maio. No mesmo dia, o delegado Mauro Dias descobriu que a viúva havia
sido garota de programa e tinha curso de técnica em enfermagem com atuação
em centros cirúrgicos. Ou seja, as suspeitas sobre ela aumentaram. O policial
pediu à Justiça um mandado de busca e apreensão no apartamento. À noite,
Mauro Matsunaga e Lózio bateram na porta de Elize. A dupla de amigos foi
recebida com simpatia mais uma vez. Acionado para colaborar, o síndico do
prédio deu acesso a todas as imagens gravadas pelas câmeras internas do
condomínio. Numa cabine no térreo, eles passaram horas em frente a monitores
de TV. Mauro ficou intrigado porque as câmeras mostravam apenas o irmão
chegando com a esposa do aeroporto, descendo pelo elevador, pegando a pizza
na portaria e subindo novamente. Não havia nenhuma imagem registrando sua
última saída do edifício. O síndico assumiu uma postura de investigador. Pelo
interfone, pediu para Elize fazer o favor de comparecer urgentemente à sala dos
monitores. Lá ela foi questionada:
– Qual dia seu marido saiu de casa? – interrogou o síndico, ríspido.
– Domingo à noite – respondeu ela, com voz de choro.
– Que horas exatamente, minha senhora?! – continuou.
– Acho que foi por volta das 20 horas...
– Quero saber por qual elevador ele desceu – insistiu.
– Pelo social...
– Impossível! Já olhamos todas as imagens gravadas das 12 horas do
domingo até as 6 da manhã da segunda-feira e ele não aparece no elevador.
O tom policialesco do síndico deixou Elize nervosa. Lózio e Mauro a levaram
de volta ao apartamento. O síndico não se comoveu e avisou que começaria a
olhar as imagens do elevador de serviço naquele instante. Em casa, mais calma, a
viúva ofereceu vinho às visitas. Lózio pediu uma pizza e os três falavam de
Marcos enquanto comiam e bebiam. Já era madrugada quando o síndico bateu à
porta e passou um relatório da sua investigação. Disse ter visto Elize descer
sozinha com três malas de viagem pelo elevador de serviço às 11h32 do domingo
e só voltando às 23h50 com as mãos vazias. A impetuosidade do síndico fez a
mulher derramar lágrimas e soluçar. Ele não se comoveu e saiu do apartamento
avisando já ter acionado a polícia e falado sobre as suas descobertas. Mesmo sem
ser questionada por Mauro e Lózio, Elize justificou a sua saída com as malas:
teria ido entregar uma encomenda de vinhos a um cliente da sua futura empresa
de importação de bebidas.
Cansada, Elize começou a bocejar. Prestativo, Lózio pegou algumas louças
sujas da mesa e as levou até a pia. Elize tentou impedi-lo, pois as empregadas
arrumariam tudo no dia seguinte. Ele insistiu e continuou pegando os pratos e
jogando os restos de pizza fora. No fundo da cozinha, Lózio sentiu um frio na
espinha quando acionou o sensor para abrir a lixeira eletrônica de aço
inoxidável. À medida que a tampa automática subia, era revelado o saco plástico
de revestimento azul e fita vermelha como lacre da marca Dover-roll. Ou seja,
idêntico ao usado para embrulhar o corpo de Marcos. Mesmo nervoso, Lózio
abriu um armário na despensa, pegou um saco limpo da embalagem e enfiou no
bolso. De lá, ele seguiu com o amigo até a delegacia.
Sentindo o cerco se fechando à sua volta, a assassina procurou seu ex-
professor de Direito Penal, Luciano Santoro, de 33 anos na época. A ele, Elize
repetiu a história fantasiosa da fuga do marido com a amante. Na primeira
reunião, o defensor quis saber:
– Onde o seu marido foi visto pela última vez?
– Em casa.
– Então será na sua casa que a polícia vai procurá-lo – avisou o advogado.
O prenúncio de Santoro não terminou por aí. Apesar de sua cliente negar a
autoria do crime, ele previu a sua detenção para os próximos dias. Dito e feito.
No dia 4 de junho de 2012, dezesseis dias depois do crime, o delegado Mauro
Dias bateu à porta da criminosa com um mandado de prisão temporária
(1496/12) em mãos, no qual se lia “suspeita de prática de crime de homicídio”.
Elize manteve-se calma, mesmo depois de ouvir a voz de prisão. Pediu um
momento e foi tomar um banho, trocou de roupa e despediu-se da filha. Àquela
altura, a tia Rose havia chegado de Chopinzinho para dar apoio à sobrinha. A
viúva foi algemada dizendo-se inocente e sem derramar uma lágrima. Na
delegacia, os policiais já tinham a sua ficha corrida. Sabiam do seu passado de
prostituta, do caso extraconjugal com o ex-deputado do Paraná, Mario Sergio
Zacheski, conhecido popularmente como Delegado Bradock, e até das passagens
por casas de prostituição na capital paulista. Antes de levá-la a uma cela, os
policiais sugeriram uma confissão:
– Você foi garota de programa. Isso diz muito sobre você. Confessa logo que
você matou e esquartejou o seu marido porque ele te trocou por uma outra
prostituta! – iniciou um investigador.
– Não sei do que o senhor está falando – esquivou-se Elize.
– Você já parou para pensar sobre a natureza da culpa? – questionou o
delegado Mauro Dias.
– Vou esperar o meu advogado chegar – anunciou a assassina.
– Eu também faria o mesmo no seu lugar – disse o delegado.
– Você sabe o cheiro que tem a cela de uma prisão? – perguntou outro
policial.
Irredutível, Elize ficou calada. Foi conduzida a uma cela fétida na delegacia
de Itapevi, no município de Osasco, Região Metropolitana de São Paulo.
Acostumada a dormir em colchões macios, cobrir-se com edredons de luxo e
encostar a cabeça em travesseiros de penas de ganso, a jovem se viu obrigada a
deitar-se no chão de um cubículo repugnante, molhado com uma mistura de
água, fezes e urina. O espaço de 6 m2 tinha goteiras. Quando debutou no
xilindró, Elize já tinha tido a cara exposta em todos os jornais e programas de
televisão. Havia um agravante. As fotos das partes do corpo de Marcos haviam
vazado da polícia e circulavam desfocadas em programas populares, chocando
ainda mais a opinião pública. Na internet, as imagens estavam nítidas. Todos os
programas policiais contavam diariamente um capítulo da história da prostituta
caipira que matou e esquartejou o marido milionário. No pátio da cadeia, Elize
foi abordada por Tânia, outra homicida indignada com o modus operandi da
viúva. “Como você é burra, minha filha. Se tivesse contratado alguém por 10 mil
reais, o trabalho seria muito melhor. Matariam o seu marido e ninguém jamais
encontraria o corpo do salafrário”, comentou. “E você? Tá fazendo o que aqui?”,
perguntou Elize. “Matei a amante do meu namorado”, resumiu a colega de cela
de 26 anos. Em seguida, Tânia sugeriu que a viúva confessasse tudo para
barganhar benefícios no julgamento, assim como ela havia feito dois dias antes.
“Nós estamos na merda. Já era!”, previu a homicida.
As investigações avançaram e Elize não tinha mais como negar a autoria do
crime. A quebra do sigilo do seu telefone celular revelou por onde ela andou
quando saiu na Pajero TR-4 na manhã do domingo. A geolocalização do
aparelho mostrava com detalhes a assassina passando de carro pelas estradas de
Cotia. Esses dados só foram descobertos via operadora de celular porque ela
ligava praticamente a cada hora querendo saber da babá se a filha estava bem.
Com essa descoberta, Elize foi chamada mais uma vez para depor:
– Você matou o seu marido... Como pôde achar que existiria um universo
onde sobreviveria a isso? – acusou o delegado Mauro Dias.
– Eu não matei! – esquivou-se.
– Confessa logo. Tira essa culpa das suas costas. Fala a verdade! Depois de
confessar, você se sentirá tão leve quanto uma pluma...
Acuada, Elize pediu para falar com Santoro, seu advogado. Ela anunciou
estar disposta a assumir ter matado o marido. “Estou preocupada com toda essa
repercussão. Estou sendo retratada como uma assassina fria e cruel. Eu quero
confessar porque eu tenho medo de a minha filha nunca ficar sabendo o que
aconteceu de verdade dentro daquele apartamento”, justificou a criminosa. O
defensor apoiou a decisão e pontuou o seguinte: o fato de ela ter desmembrado o
corpo do marido após assassiná-lo a poria numa posição muito difícil, ou seja,
ela seria condenada com 100% de certeza. “Embora o esquartejamento não seja
um crime grave – tem pena de um a três anos de prisão –, a sociedade não
aceita”, explicou Santoro à sua cliente. Em seguida, ele a advertiu: “Se é para
confessar, fale exatamente o que aconteceu. Não esconda nada, nenhum detalhe”.
Após Santoro mostrar os cenários possíveis diante de uma confissão, Elize se
preparou para contar a sua versão do crime. A assassina entrou na sala do
delegado Mauro Dias, no Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa
(DHPP), às 12h45 do dia 6 de junho de 2012. Na véspera, Marcos havia sido
enterrado sem o braço esquerdo, na sepultura 66 A da quadra 35 do Cemitério
São Paulo. A cerimônia fúnebre ocorreu numa manhã chuvosa, durou só dez
minutos e contou com a participação de apenas dez pessoas: o pai Mitsuo, o
irmão Mauro, os amigos Lózio, Lincoln e Paolo e o advogado Luiz Flávio Borges
D’Urso, além de quatro funcionários da Yoki.
Frente a frente com o delegado Mauro Dias, Elize pegou um lenço para
enxugar as lágrimas. Com receio de ser acusado de arrancar verdades por meio
de tortura, o policial resolveu filmar todo o depoimento. Durante oito horas,
Elize contou diante de uma câmera como matou o marido e dividiu o corpo dele
em sete partes. Depois embrulhou cada pedaço em sacos de lixo e arrumou em
três malas pretas de viagem. Pegou a sua Pajero TR-4 e seguiu na noite escura
por uma estrada de terra para desová-lo no matagal de Cotia. Os detalhes da sua
confissão são de arrepiar.
* * *
O
crime cometido por Elize Araújo Kitano Matsunaga chocou o município
de Chopinzinho e levou notoriedade à sua terra natal a partir de 2012.
Repórteres, fotógrafos e cinegrafistas, além de muitos curiosos,
aglomeravam-se em frente à casa humilde onde a homicida foi criada, próximo à
região central. O radialista Marcos Monteiro, um dos mais populares da cidade,
falava da ex-prostituta famosa o dia inteiro numa emissora de frequência
modulada. À noite, o Jornal Nacional contava a cada edição um capítulo da
novela cujo enredo envolvia sexo, dinheiro, traição e sangue. Os telejornais
policiais vespertinos das redes Record e Bandeirantes dedicavam a edição inteira
somente ao caso. A audiência ficava nas alturas, tamanho era o interesse do
público pela história da caipira paranaense que se casara com um milionário e
acabou matando-o.
Na época do julgamento, Chopinzinho voltou a ser invadida por jornalistas.
Mas a família de Elize já estava desmantelada quando a assassina sentou-se no
banco dos réus. Dilta, sua mãe, morreu aos 59 anos em 2016 sem conhecer a
sentença da filha. Ela teve um câncer no intestino iniciado com um inocente
pólipo retirado numa colonoscopia de rotina. Mais tarde, o tumor reapareceu de
forma agressiva. A senhora fez três cirurgias e várias sessões de quimioterapia e
radioterapia. A doença chegou a entrar em remissão, mas progrediu alguns
meses depois do tratamento de forma avassaladora. Na nova fase, as células
cancerígenas se espalharam pelo estômago, fígado, rins e bexiga. Dilta se
internou bastante debilitada no Hospital do Câncer de Cascavel, a 214
quilômetros de Chopinzinho. Definhou para um quadro de pele e osso em uma
semana. Sem protocolo de tratamento, foi levada aos cuidados paliativos. Em seu
leito de morte, Dilta começou a delirar perguntando se Elize havia, de fato, lhe
perdoado. Nos momentos finais, ela pediu uma chance de se despedir da filha
criminosa. Não havia condições, pois Elize estava encarcerada no regime fechado
da Penitenciária Santa Maria Eufrásia Pelletier, a P1 de Tremembé. Dilta morreu
três meses antes do julgamento de Elize. A Justiça não autorizou a sua saída da
penitenciária para velar o corpo da mãe.
O padrasto, Chico da Serra, também teve final melancólico e morreu um ano
após o julgamento. Fazia tempo que ele vivia perambulando quase cego pelas
ruas de Chopinzinho feito indigente. Nem Dilta, quando estava viva e com
saúde, nem a sua outra mulher deram abrigo ao serralheiro. Certa vez, ele foi
encontrado pelo radialista Marcos Monteiro todo sujo num logradouro do
município. Foi levado à casa da filha, Eliana, de 22 anos na época. A jovem era a
única filha dele com Dilta, ou seja, meia-irmã de Elize. Eliana passava o dia fora
de casa porque estudava e trabalhava. Não tinha como oferecer cuidados em
tempo integral ao pai. O jeito foi interná-lo em um abrigo privado, localizado no
município paranaense de Saudade do Iguaçu, a 25 quilômetros de Chopinzinho.
A instituição era especializada em acolher doentes terminais e sem referências
familiares. Na época, o serralheiro tinha uma aposentadoria no valor de um
salário mínimo e a casa de acolhimento ficava com todo o dinheiro a título de
pagamento das despesas de moradia e alimentação. Eliana internou o pai doente,
de 61 anos, com o coração apertado. O incentivo e conforto vinham da tia Rose,
pois a jovem não podia parar de estudar e viver só em função dele. “Deixe seu pai
com as cuidadoras e o visite todos os finais de semana”, aconselhou Rose na
época.
Certo dia, Eliana acordou apreensiva. Ela tinha sonhado com o pai com o
rosto coberto de flores e se despedindo num túnel de fumaça branca. Ainda pela
manhã, a filha ligou na casa de repouso e ouviu das cuidadoras que Chico estava
bem, apesar de ter perdido quase toda a visão e já apresentar falta de memória
em razão dos três acidentes vasculares cerebrais (AVCs) sofridos nos últimos
anos. Com saudade do pai, a jovem resolveu pedir folga no trabalho para visitá-lo
naquele mesmo dia. Eliana tomou café, pegou o carro e seguiu ao abrigo de
doentes. Não deu tempo de ela encontrar Chico da Serra com vida. No meio do
caminho, Eliana recebeu uma ligação no celular. Uma enfermeira avisou que seu
pai havia acabado de morrer. “Foi tão rápido quanto um relâmpago. O Chico
estava sentado à mesa tomando café com os outros doentes, ali na varanda. Ele
ficava em silêncio porque não reconhecia as pessoas nem tinha noção de tempo e
espaço. Passava o dia com um rádio de pilha colado à orelha. Mas quase sempre
o aparelho estava mudo. Da mesa, ele se levantou. Deu um gole na xícara de café
e saiu andando. Aos poucos, começou a correr pelo gramado do campo de
futebol. De repente, ele deu um salto bem grande com o peito virado para o alto
como se fosse aparar uma bola no ar e gritou pausadamente o nome da filha. E-
LI-A-NA. Foi uma das poucas vezes que ouvimos a voz dele. Depois de saltar, ele
despencou no chão, estrebuchou por alguns segundos e morreu”, narrou a
cuidadora. Após fazer o relato emocionante, a funcionária do abrigo entregou à
jovem uma sacola pequena de supermercado com os pertences de Chico: cinco
peças de roupa, um par de sapatos, sandálias Havaianas, uma garrafa térmica,
uma caneca e o rádio mudo. Era tudo que ele tinha no momento final da vida.
A morte de Chico da Serra gerou uma discussão em família. Eliana queria
enterrá-lo no túmulo dos Araújos, onde estavam sepultados a mãe, Dilta, e o seu
avô materno, Balduíno Araújo, morto em 6 de junho de 1992 aos 56 anos em
decorrência de uma cirrose. Dona Sebastiana, esposa de Balduíno, avó de Elize e
proprietária do mausoléu, não autorizou. Mesmo assim, Eliana mandou
engavetar o corpo do pai na capela mortuária sem o conhecimento da família,
seguindo orientação da tia Rose. Apesar de ter três corpos no túmulo dos
Araújos em 2021, na parede havia apenas a foto de Balduíno. “Eu não sabia que o
traste do Chico está lá na minha sepultura. Toda a desgraça da minha família
começou depois da chegada desse diabo em nossas vidas. Vou tirar ele de lá e
jogar seus ossos numa vala comum. É o que ele merece”, anunciou Sebastiana em
dezembro de 2020, quando tinha 86 anos.
Em Tremembé, a matrícula de Elize tem o número 759.138-1. Pelos cálculos
feitos em seu processo de execução penal, ela só estará quite com a Justiça em 14
de fevereiro de 2028. Mas ela tentava abreviar a volta à liberdade graças à
benevolência de programas sociais criados com o objetivo de melhorar a vida de
criminosos. Elize se inscreveu no projeto de literatura Lendo a Liberdade,
desenvolvido pelo sistema penal para estimular a cultura entre os apenados. Pelo
programa, os presos podem usar até 12 leituras por ano e ganhar redução da
pena em até 48 dias. O detento provava a leitura fazendo resenhas da obra. Elize
deu preferência aos títulos estrangeiros: Os homens que não amavam as
mulheres, de Stieg Larsson; O lobo, de Joseph Smith; e Carta ao pai, de Franz
Kafka. Depois de ler as três obras, ela pediu à Justiça 12 dias de remissão, mas
teve o pleito negado em primeira instância porque os livros escolhidos não eram
objeto de estudo no sistema penal. Ela recorreu e acabou ganhando a remissão
em segunda instância. Elize também trabalhou em Tremembé para ganhar
desconto na pena. Foi auxiliar da biblioteca e chegou a exercer dupla função –
operadora de máquina de costura e coordenadora da unidade fabril – na
Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap). A cada três dias
trabalhados, os condenados têm um dia abatido em sua pena. Desde o seu
ingresso em Tremembé até março de 2021, Elize já havia conseguido abreviar sua
estada na cadeia em um ano e sete meses graças ao trabalho e à leitura.
No cárcere, a assassina confessa quase não recebia visitas. Às assistentes
sociais, ela reclamava de pesadelos recorrentes com animais selvagens e até com
o corpo do marido todo mutilado. Gigi também habitava seus sonhos medonhos.
Tia Rose conseguiu viajar pelos quase 1.000 quilômetros que separavam
Chopinzinho de Tremembé pouquíssimas vezes. Nos encontros, a sobrinha
também falava para a tia das noites assombradas com cobras, alces e javalis.
Dificuldades financeiras e a falta de tempo fizeram Rose deixar de frequentar a
prisão logo após a condenação da sobrinha. Já as irmãs de Elize e seus amigos
nunca a visitaram. Abandonada ainda no regime fechado, onde as detentas não
têm muito contato entre si, a viúva começou a se adaptar ao cotidiano da
penitenciária. Carente, envolveu-se com colegas de cela a partir de 2014, aos 33
anos. Certa noite de frio, Elize tremia debaixo das cobertas quando recebeu
oferta de uma outra criminosa para esquentá-la. A assassina aceitou e Sandra
Regina Ruiz, uma sequestradora de 32 anos na época, passou a dividir o colchão
com ela. Essa não seria a primeira experiência homoafetiva de Elize. Há relatos
dando conta de que, tanto em Curitiba quanto em São Paulo, a ex-prostituta
fazia programas sexuais com homens e mulheres. Na primeira noite de amor
entre Elize e Sandra, o casal não perdeu tempo e já selou namoro. Três meses
depois, elas conseguiram um privilégio e foram transferidas à “gaiola do amor”,
uma galeria especial da penitenciária destinada às mulheres com relacionamento
estável declarado no papel. A partir desse namoro, Elize voltou a sorrir para a
vida.
Sandra era conhecida pela alcunha de Sandrão e simplesmente ocupava o
cobiçado posto de rainha de Tremembé. Era chamada pelas detentas de
presidente da penitenciária e piloto, em alusão ao comando exercido por ela.
Le ́sbica com expressão de gênero masculino, Sandrão era violentíssima. Estatura
alta, robusta e braços musculosos enfeitados com tatuagens. A “piloto” abria mão
de sutiã e usava cuecas por baixo da calça cáqui. Maquiagem, brincos e esmaltes,
nem pensar. A sequestradora odiava esse tipo de vaidade. O corte de cabelo era
raspado nas laterais, espetado em cima e todo trabalhado no gel fixador. Até as
agentes de segurança penitenciária se borravam de medo da bandida. Ela já havia
sido punida por ter espancado violentamente uma funcionária do presídio que a
repreendeu por ter beijado Elize no pátio da penitenciária, o que era proibido.
Sandrão cumpria pena de 24 anos por ter sequestrado e matado junto com dois
comparsas um garoto de 14 anos em Mogi das Cruzes (SP). Ela executou o
menino mesmo depois de ter recebido o dinheiro do resgate dos pais, que eram
seus vizinhos. O adolescente morreu vestindo uniforme escolar, com um tiro na
boca cuja bala lhe varou o crânio. Depois teve o corpo jogado num pântano. Esse
tipo de crime nunca foi aceito pela comunidade carcerária. Mas ninguém ousava
enfrentar Sandrão. Em Tremembé, por conta da ficha criminal e da aparência
assustadora, ela era cobiçadíssima por mulheres em busca de proteção.
O enlace de Elize com a sequestradora durou somente duas primaveras. A
rainha de Tremembé ainda se dizia apaixonada pela esquartejadora quando
começou a arrastar asas para outra assassina famosa, Suzane von Richthofen, de
31 anos na época. O triângulo amoroso pegava fogo na oficina de costura da
penitenciária, onde as três trabalhavam oito horas por dia juntamente com
outras 40 detentas confeccionando cerca de 10 mil peças de roupas por mês.
Elize e Suzane operavam máquinas de costura industrial das marcas Sansei (SA-
MQ1) e Siruba (DI720-m) no fundo da sala. Confeccionavam os uniformes dos
agentes de segurança penitenciária lotados nas torres das muralhas. Mecânica de
maquinário, Sandrão trabalhava carregando um suporte com ferramentas e
sempre estava suada e suja de graxa. Com segundas intenções, Suzane fingia
pequenas panes em sua máquina no meio do expediente. Meiga, chamava
Sandrão para consertá-la usando voz de menininha. Na manutenção, a lésbica
parruda agachava-se por entre as pernas de Suzane e espiava as engrenagens
internas do equipamento. Elize assistia às cenas espumando de ódio e ciúme.
Certo dia, a viúva foi alertada por uma colega de cela: se não abrisse os olhos,
perderia a namorada para a parricida. Nessa época, Elize estava com aparência
desleixada. Os cabelos haviam perdido o brilho e a tintura ficara desbotada. As
unhas sem esmalte estavam quebradiças. Uma depressão fez seu corpo ganhar
excesso de peso. Já Suzane continuava feminina, bonita, extremamente sedutora
e com energia sexual em alta voltagem. Não demorou para Sandrão trocar uma
assassina por outra. A partir desse episódio, a mulher que esquartejou o marido
não dirigiu mais a palavra à menina que matou os pais. E vice-versa.
Com sexualidade fluida, Elize namorou outras mulheres em Tremembé.
Depois de esquecer Sandrão, ela iniciou um romance com Tânia, a assassina que
conheceu na delegacia logo após confessar ter matado Marcos Matsunaga. Tânia
tinha 36 anos quando se envolveu com a viúva, em 2014. Era uma mulher
carinhosa e se dizia apaixonada por Elize. Sua credencial na seara amorosa era
seu crime violentamente passional. Ela namorava um rapaz chamado Saymon
desde os 12 anos. O casal tinha a mesma idade. Aos 19 anos, Tânia resolveu
encerrar o namoro. Na conversa definitiva, alegou que nunca tinha beijado a
boca de outro homem, muito menos transado com outras pessoas. “Toda a
experiência amorosa que acumulei na vida foi ao seu lado. Isso não está certo.
Nós somos muito novos para ficar presos a uma só pessoa. Às vezes, sinto que
estou dentro de uma garrafa só com você. Temos de viver outras aventuras. A
vida é muito curta”, justificou a jovem no dia do término, alegando ainda
bissexualidade. Contrariado, Saymon reiterou que amava Tânia para sempre e
era adepto da monogamia tal qual as ararinhas-azuis, que ficam com o mesmo
parceiro a vida toda. “Tenho até preguiça de construir tudo o que temos com
outra pessoa. Eu gosto da pasmaceira”, justificou. “Tá vendo? Eu gosto do
revezamento, da variedade, da coisa sortida”, pontuou ela. Tânia era estudante de
engenharia civil e Saymon trabalhava como vendedor de roupas na Galeria do
Rock, no centro de São Paulo. Depois de muita conversa, o casal pôs um fim no
relacionamento. Como era previsto, ela saía pelas baladas beijando vários
homens e mulheres. Transava com parceiros(as) variados(as). Saymon engatou
um romance novo com uma garota de 17 anos logo após o término. Namorou a
mesma menina por dois anos e já falava até em casamento. Um ano depois,
Tânia se cansou da alternância amorosa e mandou uma mensagem para Saymon,
pedindo para conversar. Marcaram numa praça no centro de São Paulo. Aos
prantos, ela revelou estar “morta de arrependida”. “Não era nada disso que eu
imaginava. Só me deparei com boy-lixo. Nenhum deles se compara a você”,
disse. Saymon ouviu tudo calado, enquanto fumava um cigarro atrás do outro.
Ele era um jovem magro e todo tatuado. Fazia estilo skatista. Tânia era bonita e
gostava de roupas curtas, como blusinha e minissaia, além de saltos altos. Depois
de contar suas experiências desastrosas como solteira, ela perguntou ao ex-
namorado se ele estava disponível. Saymon falou do seu novo amor, frisando
estar apaixonado e pensando em morar junto. “Nossa! Então você já me
esqueceu?”, perguntou ela. “Não. Mas eu avisei que gosto de namoro firme”,
ponderou o vendedor. Tânia pediu desesperadamente para voltar. Saymon se
recusou a terminar com a nova namorada, pois havia prometido a ela o amor das
ararinhas. A estudante pôs-se a chorar copiosamente, alegando que eles foram
feitos um para o outro. “Olha, serei uma nova mulher. Vamos voltar para dentro
da nossa garrafa, por favor!”, implorou ela. “Eu não vou terminar”, insistiu ele.
Desiludida, Tânia encerrou a conversa e se afastou. Na semana seguinte, foi a vez
de Saymon pedir para conversar. “A única forma de nosso namoro ser reatado é
se a minha atual namorada morrer, pois não tem como eu terminar. Você seria
capaz de assassiná-la?”, perguntou Saymon de forma direta. “Sou capaz de
qualquer coisa para ter você de volta”, fechou Tânia, cega de amor. O rapaz então
bolou o seguinte plano: ele iria atrair a namorada para a casa dos pais na tarde de
sábado. Tânia ficaria escondida dentro do guarda-roupa do quarto dele. Saymon
transaria com a namorada para se despedir. Em seguida, o vendedor sairia do
cômodo para que Tânia a matasse. No dia combinado, os pais de Saymon
estavam viajando. A estudante foi ao supermercado comprar uma faca de
cozinha novinha em folha, pois as que tinha em casa estavam com a lâmina cega.
Escondeu-se no armário. A namorada de Saymon chegou na sequência e os dois
foram para o quarto. Beijaram-se e ele começou a tirar a roupa da garota.
Enciumada, Tânia não esperou o sexo passar das preliminares. De repente, ela
abriu a porta do guarda--roupa. A vítima levou um susto e tentou escapar vestida
só de calcinha. Saymon a segurou com uma chave de braço e se jogou na cama
engatado à jovem, já completamente imobilizada. Enfurecida, Tânia avançou
sobre ela e passou a faca várias vezes no pescoço da garota até sua cabeça ficar
pendurada por um pedaço de ligamento. Saymon apavorou-se com o banho de
sangue. Tânia propôs uma fuga alucinante. Ele não aceitou. Decidido, foi até o
telefone fixo da casa e ligou para um tio e, depois, para a polícia, relatando o
acontecido. Os dois foram presos em flagrante e condenados a 26 anos de
reclusão. Saymon cumpriu pena na Penitenciária Nelson Marcondes do Amaral,
em Avaré. Em Tremembé, Tânia contava essa história vangloriando-se de ter
matado por amor. Ela namorou Elize por três anos no regime semiaberto. Passou
no vestibular e conseguiu terminar o curso de engenharia civil enquanto cumpria
pena. O romance com Elize só teria acabado porque Tânia migrou para o regime
aberto, no qual o criminoso cumpre o restante da pena em liberdade. Foi morar
em Sorocaba com Saymon, já em livramento condicional por bom
comportamento. Em 2019, ela montou com o companheiro assassino uma
empresa de construção civil para cuidar de reformas em condomínios da região.
Perto do Natal de 2020, Elize começou a namorar em Tremembé com Tiago
Cheregatte Neves, um presidiário trans de 23 anos condenado a cinco anos e 11
meses por ter tentado matar o avô, Adão Rui Valensuela Pinto, de 71, com golpes
de martelo na cabeça. Apesar de ter expressão de gênero masculino, Tiago
cumpria pena na penitenciária feminina porque correria risco de ser rejeitado e
até mesmo violentado se fosse posto na unidade destinada aos homens. Na
cadeia, o rapaz de estatura baixa e magro chamava a atenção porque se tornava
cada vez mais bonito à medida que as fases da readequação de sexo e gênero
avançavam. Ele saía esporadicamente da casa penal e se submetia a tratamentos
hormonais e sessões com fonoaudiólogo para engrossar a voz. Quando Tiago deu
o primeiro beijo em Elize, ele apresentava avançado processo de redesignação. O
rapaz nunca escondeu da namorada o crime cometido.
Segundo disse em depoimento, Tiago tentou matar o avô porque a vítima
reclamava constantemente do fato de ele não trabalhar nem ajudar nos afazeres
domésticos. De acordo com a denúncia da família, o rapaz estava na cozinha e o
avô sentado na sala, assistindo ao primeiro capítulo da reprise da novela Fina
estampa, da TV Globo. No intervalo, o senhor reclamou com outros parentes de
como o neto era folgado dentro de casa. Não trabalhava, acordava tarde e se
recusava a lavar até o prato e os talheres usados no almoço. Num ataque de fúria,
Tiago pegou um martelo de unha com cabo de madeira de 31 centímetros de
comprimento. Chegou por trás e sentou um golpe colossal na cabeça do avô,
causando afundamento no crânio e hemorragia. O sofá e o chão ficaram
banhados de sangue. A mãe e o irmão do criminoso testemunharam a cena e
gritaram assustados. Com a força da primeira martelada, o idoso foi jogado do
sofá ao tapete. Mesmo com a vítima caída e agonizando, Tiago ainda desferiu
mais duas marteladas, uma na lombar e outra na mão esquerda. Em seguida, o
jovem pegou a arma do crime, pôs na mochila e fugiu. Foi preso em flagrante
logo em seguida. Adão foi socorrido pela filha e outro neto. O crime ocorreu em
23 de março de 2020 no município de Santa Bárbara D’Oeste, a 140 quilômetros
de São Paulo.
A história de amor entre Elize e Tiago foi revelada pelo portal Metrópoles e
pela TV Record no dia 18 de maio de 2021. Na época, o casal negou o romance,
apesar de trocar carícias no pátio da penitenciária e dormir no mesmo beliche.
Segundo fontes, Tiago e Elize negavam veementemente o enlace porque o rapaz
namorava outra assassina de Tremembé quando começou a se envolver com a
viúva de Marcos. A presidiária preterida não lidava bem com a rejeição do
detento trans e passou a representar uma ameaça a Elize. “Com relação ao
suposto namorado de Elize, não haveria nenhum problema se o fato fosse
verdadeiro, mas não é. Essa informação coloca em risco a sua integridade física
porque ela mora com 80 reeducandas em um único galpão, sendo que o Tiago é
namorado de outra presa”, rebateu o advogado da criminosa, Luciano Santoro,
em julho de 2021.
Os amores de Elize afloraram no cárcere depois de ela progredir do regime
fechado para o semiaberto, no dia 28 de junho de 2019. Ou seja, ela deixou de
cumprir pena encarcerada em celas e foi dormir no alojamento coletivo, onde era
mais fácil flertar. Na nova fase de punição, a viúva teve direito de sair da cadeia
cinco vezes por ano em datas especiais: Natal/Ano Novo, Páscoa, Dia das Mães,
Dia dos Pais e Dia da Criança. Em cada uma dessas saidinhas, a assassina passava
sete dias em liberdade. No entanto, na primeira vez em que os portões de
Tremembé se abriram para ela ganhar a rua, em 8 de agosto de 2019, a
prisioneira preferiu não sair. O motivo seria não ter onde ficar, pois tia Rose se
recusou a receber a sobrinha assassina porque tinha um filho adolescente em
casa. Quando teve nova chance de passear, no entanto, Elize não perdeu a
oportunidade. Sete anos após matar o marido, a viúva deixou a cadeia pela
primeira vez. Surgiu em público vestida com uma bata branca, calça preta e
carregando uma sacola de feira colorida, em 10 de outubro de 2019. Quem a
aguardava do lado de fora era sua advogada e fiel escudeira, Juliana Fincatti
Santoro.
Em dia de saidinhas, as ruas próximas à penitenciária de Tremembé ficavam
movimentadas. Dezenas de familiares, vendedores ambulantes, policiais,
advogados e jornalistas aglomeravam-se no local à espera das criminosas, que
saíam em grupos a partir das 8 horas. A maioria delas passava pelo portão, mas
não ia embora imediatamente. Eufóricas, elas continuavam em frente à cadeia à
espera das amigas e cumprimentando parentes. Homens da unidade masculina
também aproveitavam a saidinha das mulheres e seguiam à entrada da cadeia
feminina para xavecá-las. Tão logo Elize atravessou o portão de Tremembé,
todas as atenções se voltaram para ela. A viúva andou pela calçada em passos
curtos, livre e sorridente. Suzane von Richthofen e Anna Carolina Jatobá, a título
de comparação, escapavam da cadeia e do assédio da imprensa correndo
sinuosas pela rua, feito ratazanas. Elize, não. Saiu acenando para colegas e fãs.
Sim, ela tem fãs, e a maioria das suas admiradoras é formada por mulheres
vítimas de relacionamentos abusivos.
Na primeira saidinha de Tremembé, Elize estava a caminho do carro de sua
advogada quando ocorreu algo inusitado em frente à cadeia. No meio do
aglomerado, uma presa começou a bater palmas timidamente, parabenizando-a
pela liberdade de sete dias. Depois de alguns minutos, outras três detentas
engrossaram o coro de palmas. Elize agradeceu pelo carinho e continuou
caminhando. Rapidamente, o aplauso contagiou as demais pessoas. Até quem
não a conhecia congratulou a assassina batendo palmas. No momento de ela
entrar no carro, praticamente todo o mundo ovacionava a mulher que disse ter
matado o marido em nome da filha. No meio da aclamação, uma bandida
empostou a voz e gritou bem alto, no meio da rua, para todo o mundo ouvir:
“Vai, Elize. Vai cuidar da vida, que você merece!”. As palmas foram misturadas a
gritos e assobios de louvor.
Em liberdade temporária, Elize ficava no município de Campos do Jordão,
onde alugou uma quitinete para recomeçar a vida. Na primeira saidinha, ela foi
ao Colinas Shopping. Entrou no Luciana’s Esthetic Center, um salão tradicional
da cidade, e fez uma escova nos cabelos loiros, pagando 90 reais pelo serviço.
Depois foi às compras em lojas e seguiu para São Paulo, hospedando-se no Hotel
Ibis do Morumbi, cuja diária em 2021 custava 169 reais. Fora da cadeia,
obstinada, a assassina se empenhou na reaproximação da filha. Como é impedida
judicialmente de entrar em contato com a criança, ela aceitou o convite para
protagonizar a minissérie Elize Matsunaga – Era uma vez um crime, dirigida por
Eliza Capai.
Segundo a homicida, participar do programa da Netflix seria uma chance de
contar com as próprias palavras por que teve de interromper a vida do pai da sua
filha. Uma das entrevistas seria feita pela produtora Boutique Filmes dentro da
penitenciária de Tremembé. No entanto, a família de Marcos conseguiu uma
ordem judicial impedindo a gravação. Os Matsunaga alegaram que, ao falar da
filha, a esquartejadora causaria exposição e constrangimento à menor, com 8
anos na época. Os defensores de Elize recorreram. Usaram como contra-
argumento uma entrevista concedida pelo advogado Luiz Flávio Borges D’Urso
em nome da família de Marcos na série documental Investigação criminal,
disponível em 2021 no serviço de streaming Amazon Prime Video. No capítulo
destinado ao caso Matsunaga, D’Urso voltou a acusar Elize de matar o marido
motivada por ódio, vingança e dinheiro, e repetiu a tese de que o empresário
estava vivo no início do esquartejamento. No mesmo episódio, o promotor José
Carlos Cosenzo reafirmou o comportamento frio de Elize diante da filha: “O
esquartejamento teve detalhes fúnebres e repugnantes. Elize estava retalhando o
marido no quarto quando a filha, que estava com a babá, sentiu fome. A
funcionária também precisava se alimentar. Nessa hora, Elize parou de cortar o
marido, se lavou e foi lá ficar com a menina. Deu comida e amor à criança.
Esperou a babá lanchar e devolveu a nenê. Em seguida, voltou ao quarto para
terminar de retalhar o pai da sua filha”, contou o promotor no documentário.
Por decisão própria, Elize e seus defensores não tiveram voz no
documentário da Amazon, produzido pela Medialand em 2018. “Se a família do
Marcos estivesse com interesse em proteger a criança, o advogado Luiz Flávio
Borges D’Urso não deveria ter dado entrevista ao programa Investigação criminal
acusando a minha cliente. Agora é a vez de Elize contar a sua versão do ocorrido.
Ela não pode ter esse direito negado”, argumentou na Justiça Luciano Santoro,
advogado da criminosa. Para resolver o impasse, foi marcada uma audiência de
conciliação no gabinete da juíza Sueli Zeraik Armani, em São José dos Campos,
em 10 de abril de 2019. Nesse dia, Elize e o sogro Mitsuo Matsunaga ficaram
frente a frente pela primeira vez desde a prisão, havia quase sete anos. Sentados à
mesma mesa, eles não se cumprimentaram nem se encararam. Mesmo assim, a
assassina ensaiou um pedido de perdão ao pai de Marcos. Ele fingiu não ter
escutado. Ela insistiu e foi ignorada mais uma vez. Diante das negativas do
patriarca dos Matsunaga, a juíza Sueli Zeraik resolveu interceder a favor de Elize.
“Os senhores têm de trabalhar o perdão. Têm de ensinar a menina a perdoar a
mãe”, sugeriu a juíza. Irritado, Mitsuo rebateu: “Vossa Excelência fala em perdão
porque não foi Vossa Excelência que teve o filho morto e esquartejado por uma
prostituta, que depois jogou os pedaços do corpo no mato para os cachorros
comerem!”. Elize saiu da audiência com a autorização judicial para dar entrevista
dentro da penitenciária, mas sem a clemência do sogro.
Por causa da pandemia do coronavírus, ela acabou não gravando dentro de
Tremembé. No entanto, em todas as saidinhas da cadeia, deu entrevistas aos
documentaristas. Mostrou pessoalmente o local onde desovou o corpo do
marido, caminhou pela estrada deserta de Cotia, adentrou a mata fechada e até se
deixou filmar envolta em um véu vermelho, como se estivesse banhada de
sangue. Elize cedeu à produtora um vídeo do seu acervo pessoal mostrando a
cobra Gigi matando e engolindo um rato vivo. Nessa imagem, considerada uma
das mais repugnantes do documentário, a viúva conversa com Marcos sobre o
banquete da serpente. O rato é posto perto da cobra e o empresário pergunta se o
roedor não seria muito grande para ela engolir. “É muito pequenininho, amor,
você vai ver. É que você não viu o outro que eu dei a ela”, disse Elize ao marido
no vídeo caseiro. Em seguida, ela percebeu que o roedor urinou de tanto
nervosismo. “Fez xixi o filho da mãe. Fez lá no canto. Que raiva!”, comentou
Elize. No filme, ela mostrou-se admirada com a reação negativa das pessoas à
jiboia: “Ah, Gigi! Oh, meu Deus, como isso causou polêmica. Eu adoro animais”.
No documentário, Elize tentou explicar a sensação de ter atirado em Marcos.
A assassina encarou a câmera e pontuou: “Ainda não sei dizer que tipo de
emoção me fez apertar aquele gatilho. Estava sentindo tanta coisa: medo, raiva,
alívio de não estar louca...” No entanto, ela não revelou o sentimento aflorado no
momento do esquartejamento. “Há segredos que levarei para o túmulo”,
anunciou. A viúva aproveitou o programa para refutar mais uma vez a tese do
crime planejado. Bem à vontade, ela falou: “Não premeditei aquela situação. Agi
por desespero. Aquilo aconteceu e eu não estava esperando. Se eu tivesse
premeditado, por exemplo, teria feito algo lá no Mato Grosso, quando
estivéssemos caçando. Teria dado um tiro de 12 nele no meio da aldeia indígena.
Duvido que alguém o acharia”. Doze, no caso, era o calibre da espingarda usada
por ela em caçada de animais na selva.
Ainda no programa da Netflix, Elize falou um pouco da técnica de
esquartejar bichos. “Tem que ser num lugar apropriado. A gente tira os órgãos
que não serão usados. Lava a carne e corta. Também tem toda uma técnica para
retirar a pele. Caso você queira fazer um troféu da caça, a pele não pode ser
cortada no lugar errado. Se cortar no lugar errado, vai estragar tudo. Eu peguei
um veadinho na mata e fiz dele um troféu. Ele era bem bonitinho. As pessoas
ficariam impactadas se o vissem. Tadinho do bichinho. Meu objetivo não era
matá-lo. Meu objetivo era comê-lo, pois sou carnívora. Esse veadinho, em
especial, a gente comeu com molho de ervas. O lombo de veado com molho de
ervas é muito bom. Eu recomendo”, declarou, lânguida, como se estivesse num
programa de culinária.
O documentário protagonizado por Elize foi uma ideia do seu advogado,
Luciano Santoro. Ele tentou emplacar na Netflix um seriado ficcional contando a
história da sua cliente. A assassina seria interpretada por uma atriz. O canal não
aceitou e fez uma contraproposta: que Elize se sentasse diante de uma câmera e
contasse tudo o que aconteceu. Ela topou, mas impôs como condição que a
família de Marcos Matsunaga não tivesse voz no documentário. Seu desejo não
foi aceito. Elize teria recebido um cachê de 1 milhão de reais. No entanto, a
maior parte desse dinheiro teria ficado com seus advogados para quitar dívidas
com honorários nas causas cíveis. No programa, Elize disse que só estava
botando a cara na TV por causa da filha. A advogada da família Matsunaga,
Patrícia Kaddissi, aproveitou a sua participação no programa para refutar a
assassina. “Se realmente tivesse pensado na filha, ela não teria feito o que ela fez.
E sequer aceitaria participar desse documentário”, rebateu Kaddissi.
Como era de se esperar, no último dos quatro episódios, Elize pediu perdão à
filha, com 10 anos na época. “Gostaria de falar a ela que não tem um dia da
minha vida que eu não me sinta culpada pelo que fiz. Se ela não conseguir me
perdoar, tudo bem. Irei respeitá-la”, desabafou, vestida de preto e com as unhas
pintadas de vermelho.
Desde a reconstituição do crime, em 6 de junho de 2012, Elize não viu mais a
filha. Nem por fotografias. Na última vez em que esteve com ela, a criança tinha
1 ano e 2 meses. Em julho de 2021, a garota já era pré-adolescente e a mãe não
sabia como era a sua fisionomia. Logo depois do crime, a menina ficou por três
meses na cobertura do casal, em São Paulo, sob os cuidados da tia Rose e de uma
babá. Nesse período, uma questão importante foi resolvida pela família de
Marcos. Os bens da viúva e do marido falecido foram catalogados. Deserdada
pelo assassinato do marido, Elize perdeu logo de cara a cobertura doada pelo
empresário e a apólice no valor de 600 mil reais do seguro de vida deixado por
ele. Mas nem por isso a viúva saiu do casamento de mãos abanando. Elize ficou
com metade da adega de luxo do apartamento, avaliada na época em 3 milhões
de reais. Isso porque o casamento deles era em regime de comunhão parcial de
bens, ou seja, ela tinha direito à metade do patrimônio adquirido durante o
casamento. No entanto, como boa parte do vinho havia sido contrabandeada, o
valor da coleção de bebidas nobres despencou para 1,8 milhão de reais. Houve
um acordo na hora de dividir as garrafas. A família de Marcos comprou a parte
dela por 900 mil reais. Esse acerto ocorreu entre os advogados da assassina e os
representantes da família de Marcos, em segredo, justamente por causa da
sonegação de tributos. Com o dinheiro, Elize pagou outra parte dos honorários
dos advogados e guardou o restante para recomeçar a vida após obter a
liberdade. Ela também ficou com joias e a Pajero TR-4 conduzida na desova do
corpo. Durante 10 anos, o carro esteve na garagem do prédio onde o casal
morava. Em 2020, ela gastou 15 mil reais para quitar o IPVA atrasado do veículo.
Em 2022, o carro tinha 10.000 quilômetros rodados e foi vendido por 50 mil
reais.
Como Marcos morreu antes da concretização da venda da Yoki, os 100
milhões de reais prometidos a ele verbalmente pelos pais não chegaram a ser
depositados em sua conta corrente. Logo, o valor ficou fora do inventário. Em
bancos, as contas de Marcos tinham cerca de 2 milhões de reais após a sua morte.
O dinheiro estava distribuído em duas agências do Bradesco e Itaú Personnalité.
No exterior, ele teria cerca de 4 milhões de dólares. Os valores depositados em
solo brasileiro foram bloqueados pela Justiça e serão divididos em partes iguais
entre as suas duas filhas, assim como as duas coberturas onde o casal morava, no
bairro da Vila Leopoldina, em São Paulo. Insatisfeita com a divisão do espólio do
marido, em 2021, Elize ainda brigava em instâncias superiores da Justiça para
tentar recuperar pelo menos um trocado e quiçá a cobertura que um dia esteve
em seu nome.
A última prostituta com quem Marcos se relacionou, Nathalia Vila Real
Lima, de 24 anos no ano do crime, também tentou abocanhar um naco da
herança do executivo da Yoki. Pivô da discussão entre Elize e o empresário,
Nathalia contratou o advogado Roberto Parentoni, o mesmo defensor dos
interesses do bandido Marcola, chefão do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Segundo Parentoni, sua cliente não era mais garota de programa na época do
assassinato e mantinha um relacionamento estável com Marcos quando ele
morreu. À Justiça, a garota de programa garantiu ter conhecido o empresário
numa feira de vinhos e não pelo site MClass. “O Marcos tinha dado à minha
cliente 27 mil reais porque eles tinham planos de morar juntos”, contou o
advogado em entrevista à revista Veja, em junho de 2012. Ao programa
Fantástico, da TV Globo, Nathalia sustentou em janeiro de 2013 ser apenas
amiga do empresário. “Vamos dizer que tínhamos uma amizade colorida. Qual
mulher não gosta de um homem agradável? O Marcos era uma pessoa muito
romântica, me tratava superbem. Muito bem mesmo, como ninguém nunca me
tratou. Tínhamos planos de morar nos Estados Unidos”, resumiu a moça, que
saiu de cena sem ver a cor do dinheiro do “amigo”.
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