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Sumário

SUZANE: ASSASSINA E MANIPULADORA


INTRODUÇÃO
CA PÍ TU LO 1
A SANGUE FRIO
CA PÍ TU LO 2
ENCONTRO DE ALMAS
CA PÍ TU LO 3
REAÇÃO EM CADEIA
CA PÍ TU LO 4
NATUREZA DA OCORRÊNCIA: LATROCÍNIO
CA PÍ TU LO 5
OLHAR GLACIAL
CA PÍ TU LO 6
OS MORTOS DE SUZANE
CA PÍ TU LO 7
A VIDA NA ESCURIDÃO
CA PÍ TU LO 8
UM BONDE PARA TREMEMBÉ
CA PÍ TU LO 9
QUALQUER MANEIRA DE AMOR VALE A PENA
CA PÍ TU LO 10
O TESTE DO BORDÃO
A RESSONÂNCIA DA TRAGÉDIA
FLORDELIS: A PASTORA DO DIABO
APRE SEN TA ÇÃO
A GÊNESE DA MENTIRA
CA PÍ TU LO 1
A BRUXA DO JACAREZINHO
CA PÍ TU LO 2
VARRE, VARRE, VASSOURINHA
CA PÍ TU LO 3
CALADA NOITE PRETA
CA PÍ TU LO 4
FORMAÇÃO DE QUADRILHA
CA PÍ TU LO 5
LÁGRIMAS DE CROCODILO
CA PÍ TU LO 6
CENTOPEIA HUMANA
CA PÍ TU LO 7
CICATRIZES DA FÉ
CA PÍ TU LO 8
NINGUÉM SE ESCONDE
CA PÍ TU LO 9
A ESTRELA SOBE
CA PÍ TU LO 10
O CORPO DESCE
EN TRE VIS TA
O OLHO DA SERPENTE
ÁLBUM DE FAMÍLIA
ELIZE MATSUNAGA: A MULHER QUE ESQUARTEJOU O MARIDO
APRESENTAÇÃO
CA PÍ TU LO 1
A ESQUARTEJADORA
CA PÍ TU LO 2
VÊNUS NUMA CONCHA
CA PÍ TU LO 3
É LUXO SÓ!
CA PÍ TU LO 4
A VOLÚPIA DA MULHER DISCRETA
CA PÍ TU LO 5
AS VITRINES
CA PÍ TU LO 6
A FLECHA VENENOSA DO CIÚME
CA PÍ TU LO 7
QUER PAGAR QUANTO?
CA PÍ TU LO 8
ONDE NASCE O PERDÃO
CA PÍ TU LO 9
A MORTE PEDE PASSAGEM
CA PÍ TU LO 10
PEDAÇOS DA VIDA
CA PÍ TU LO 11
SOM DE ASSOMBRAÇÃO
A VIDA EM PRETO E BRANCO
© 2023 - Ullisses Campbell
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Fotos
Página 312: Emiliano Capozoli - Reprodução do processo
Página 313: Álbum de família - Reprodução do processo
Página 314 (1ª foto): Emiliano Capozoli - Reprodução do processo
Página 314 (2ª foto): Álbum de família - Reprodução do processo
Páginas 315 a 317: Emiliano Capozoli - Reprodução do processo
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Página 323: Reprodução do YouTube
Página 324: Arquivo do autor
Página 326 (1ª foto): Arquivo do autor
Página 328 (1ª foto): Arquivo do autor
Página 335: Arquivo do autor
Demais fotos: Redes sociais
Foto do autor: Jonne Roriz

CIP-BRASIL - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Campbell, Ullisses
Suzane: assassina e manipuladora / Ullisses Campbell. - 2. ed. - São Paulo: Matrix, 2023.
336 p.; 23 cm. (Mulheres assassinas)
ISBN 978-65-5616-358-1
ISBN 978-65-5616-357-4 (coleção)
1. Richthofen, Suzane von - 1983-. 2. Criminosas - Brasil - Biogra a. 3. Prisioneiras - Brasil -
Biogra a. I. Título. II. Série.
23-85395
CDD: 364.1523092
CDU: 929:343.611

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária CRB-7/6439


Sumário

INTRODUÇÃO
CA PÍ TU LO 1
A SANGUE FRIO
CA PÍ TU LO 2
ENCONTRO DE ALMAS
CA PÍ TU LO 3
REAÇÃO EM CADEIA
CA PÍ TU LO 4
NATUREZA DA OCORRÊNCIA: LATROCÍNIO
CA PÍ TU LO 5
OLHAR GLACIAL
CA PÍ TU LO 6
OS MORTOS DE SUZANE
CA PÍ TU LO 7
A VIDA NA ESCURIDÃO
CA PÍ TU LO 8
UM BONDE PARA TREMEMBÉ
CA PÍ TU LO 9
QUALQUER MANEIRA DE AMOR VALE A PENA
CA PÍ TU LO 10
O TESTE DO BORDÃO
A RESSONÂNCIA DA TRAGÉDIA
Para a minha mãe, Doraci Campbell, meu pai, Evandro
Campbell (in memoriam), meus irmãos, Marcello,
Wellington e Michelle, e sobrinhos.
Gratulação eterna aos meus guardiões jurídicos
Alexandre Fidalgo
Juliana Akel Diniz
Agradecimentos especiais
Alvino Augusto de Sá - in memoriam (psicólogo)
Augusto de Arruda Botelho (advogado)
Beto Ribeiro (jornalista)
Cíntia Tucunduva (delegada de polícia)
Clarissa Oliveira (jornalista)
Eduardo Caamaño (escritor)
Fábio Martinho (jornalista)
Guido Palomba (psiquiatra forense)
Ivan Miziara (médico legista)
Jonne Roriz (fotógrafo)
José Giocondo (psiquiatra forense)
Luiz Marcelo Negrini Mattos (promotor)
Mário Sérgio Oliveira (advogado)
Paulo José de Palma (promotor)
Pierpaolo Cruz Bottini (advogado)
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Se o conhecimento que pode ser extraído dos crimes permite fazer
o bem, não há por que deixar de usá-lo. É até um modo de honrar
as vítimas.

Hélio Schwartsman
Suzane está queimada

O
meu primeiro contato com Suzane Louise von Richthofen foi no
alvorecer do dia 11 de agosto de 2016, uma quinta-feira. Na época, eu
fazia uma reportagem para a revista Veja. Ali, naquela manhã
ensolarada, tive a ideia de estender a pesquisa para escrever um livro sobre a
presa lendária. O portão da Penitenciária Feminina de Tremembé foi aberto
cedinho e ela ganhou a rua, radiante. Estava acompanhada de suas melhores
amigas, Amanda e Vanessa, outras criminosas do regime semiaberto.
Alegando experiências negativas no passado com jornalistas, ela não
concede entrevistas.
Inspirado na icônica reportagem Frank Sinatra está resfriado, do repórter
Gay Talese, publicada na revista norte-americana Esquire, em 1966, decidi
sair em busca das pessoas próximas da mulher que planejou matar os pais a
pauladas. Talese tentava marcar uma entrevista com Sinatra. Os assessores
do cantor agendaram o encontro diversas vezes e desmarcaram em cima da
hora, dando sempre a mesma desculpa: Frank Sinatra está gripado. Sem
qualquer contato com o artista, o repórter fez um per l dele em 55 páginas
apenas entrevistando os seus amigos e inimigos. Hoje, a reportagem de
Talese é considerada pioneira do jornalismo literário.
Para reconstituir a vida de Suzane dentro e fora do cárcere, entrevistei 56
presas que cumpriram pena junto com a parricida ao longo de dez anos,
tanto no regime fechado quanto no semiaberto. Conversei com 16 agentes
de segurança penitenciária lotados nas casas penais por onde a assassina
famosa passou ao longo de 16 anos de reclusão. Essas entrevistas foram
fundamentais para reconstituir a sua vida desde a primeira incursão na
cadeia, em 2002.
Os irmãos Cravinhos também tiveram a vida esquadrinhada para
compor as suas histórias na narrativa. Cristian colaborou com oito
entrevistas. Nesses longos encontros, o criminoso contou com riqueza de
detalhes como entrou no plano sórdido de Suzane e Daniel e revelou até o
que sentiu na hora de dar pauladas em Marísia von Richthofen. Para
escrever sobre os irmãos Cravinhos, visitei a Penitenciária Masculina de
Tremembé doze vezes e falei com quinze detentos amigos dos dois
assassinos confessos.
As vidas de Suzane e dos irmãos Cravinhos antes do crime foram
reconstituídas a partir de entrevistas com amigos da adolescência e com
parentes. Duas pessoas tiveram os nomes trocados a pedidos. A maioria dos
agentes carcerários de Tremembé e oito presidiárias colaboraram na
condição de anonimato.
O processo penal que condenou os três assassinos tem quase 6 mil
páginas. O material serviu como ponto de partida para a pesquisa. Uma
peça jurídica dessa envergadura tem um mundo de informações. Desde
cartas trocadas entre Suzane e seu ex-namorado até grampos telefônicos,
além de dezenas de depoimentos.
Uma fonte rica de informações sobre Suzane é o seu processo de
execução penal, cujo acesso era liberado para consulta pública até maio de
2016. Nesses autos, a parricida conta dos seus amores, suas angústias, o
medo de sair na rua e relata principalmente como lida com o crime que
cometeu, confessando motivações nanceiras. Fala até dos planos para a
vida em liberdade. Mas isso tudo não foi su ciente para entender a cabeça
da presa mais famosa do Brasil. Em busca de respostas na seara psicológica,
entrevistei doze pro ssionais especializados em Psicologia Forense, além de
psiquiatras estudiosos de mentes criminosas. Esses especialistas foram
fundamentais para me fazer compreender o que leva uma menina bonita,
inteligente e com toda a vida pela frente a dar cabo dos próprios pais.
É difícil um leigo entender o universo complexo da Psicologia, a ciência
do comportamento e das funções mentais. Não entrava na minha cabeça,
por exemplo, como terapeutas escreviam com toda a verdade do mundo que
Suzane é “manipuladora”, “dissimulada”, “narcisista” e “egocêntrica” após ela
olhar por duas horas para dez pranchas com desenhos de tintas borradas.
Depois de ler três livros técnicos sobre a teoria de Rorschach, entrevistar
oito psicólogos especializados no exame e ser submetido ao teste, pude
compreender que o método é tão e caz quanto envolvente. Imagens
semelhantes aos desenhos de Hermann Rorschach, que ilustram a abertura
dos 10 capítulos do livro, são até assustadoras.
Quem comete um crime de qualquer natureza precisa de advogados
desde a fase da investigação, passando pelo julgamento até a execução da
pena. Uma dezena deles me ensinou como funciona um Tribunal do Júri e
principalmente os meandros da execução penal, um ramo do Direito
Criminal multifacetado. Quatro promotores de Justiça e dois peritos
forenses também enriqueceram o trabalho.
A atualização deste livro passa pelas novidades nas vidas de Suzane e dos
irmãos Cravinhos fora da cadeia. Ao todo, me encontrei com Suzane três
vezes. Ela deixou claro não ter o menor interesse em fornecer informações
para o livro. Na última vez que a procurei, em abril de 2019, a criminosa
estava na casa do noivo, Rogério Olberg, em Angatuba, interior de São
Paulo. Bati em sua porta e quem atendeu foi a cunhada, Josiely Olberg, uma
moça educadíssima. Josi, como gosta de ser chamada, foi lá dentro e voltou
minutos depois dizendo que Suzane não podia falar. A justi cativa: ela havia
cado o dia anterior na piscina com as crianças e se esqueceu de passar ltro
solar. Estava toda queimada de sol. No dia seguinte, encontrei Suzane,
pálida, tomando sorvete na praça central de Angatuba.
Um esqueleto, mandíbulas, um cálice e uma
flor

T
remembé (SP), sexta-feira, 6 de dezembro de 2013. O portão cinza-
medieval e azul de ardósia todo talhado em chumbo maciço da
Penitenciária Feminina Santa Maria Eufrásia Pelletier foi aberto às 9
horas para o psicólogo iago Luís da Silva entrar. A pedido da juíza Sueli
Zeraik Oliveira Armani, o terapeuta tinha a missão de aplicar na criminosa
mais famosa do país um teste projetivo conhecido como Rorschach, cujo
método induz o indivíduo a revelar seu mundo privado ao ponto de
expressar seus sentimentos ocultos e os instintos mais primitivos da
natureza humana. iago carregava na mão direita uma pasta de couro
preto e caminhava apressado pelo pátio com vista deslumbrante para o
bosque às margens do rio Paraíba do Sul, todo arborizado por eucaliptos,
palmeiras, samambaias e bromélias. Por cima dessa paisagem era possível
contemplar o in nito do rmamento graças aos acidentes geográ cos
comuns naquela região serrana. Nas laterais e ao fundo da prisão feminina
não havia muralhas. O único obstáculo era um cercado de cinco metros de
altura feito de arame liso trançado em forma de losango, na parte de baixo, e
espiral de aço inox todo farpado com lâminas a adas, no alto. Apesar de
remeter a um campo de concentração, o lugar em nada lembrava uma casa
penal com 260 almas femininas presas nos regimes fechado e semiaberto.
A paisagem era bucólica. O silêncio, volta e meia, era quebrado ora pelo
canto de pássaros, ora pelo som horrendo do ferrolho do portão de acesso à
rua. De tanto aplicar exames criminológicos em bandidos, iago tornou-se
habitué no complexo de quatro penitenciárias de Tremembé, na região do
Vale do Paraíba, a leste do estado de São Paulo. Naquele dia, ele levava
dentro da tal pasta 10 pranchas com as imagens abstratas usadas no exame
de Rorschach. Em Tremembé, o teste é indicado somente para assassinos
que matam de forma violenta pessoas da própria família, autores de crimes
sexuais, pedó los e quem comete homicídios em série. Se bem aplicada, a
avaliação revela como é a organização básica da personalidade do
criminoso, incluindo características da afetividade, sexualidade, vida
interior, recursos mentais, energia psíquica, traços gerais e particulares do
estado intelectual, além dos elementos sobre o caráter que o indivíduo não
deseja trazer à luz. Com esse exame, a juíza queria saber o que se passava
pela cabeça de Suzane Louise von Richthofen, 30 anos de idade na época,
doze depois de ela abrir a porta de casa na calada da noite para guiar os
assassinos dos seus pais.
O teste psicológico era necessário porque Suzane queria migrar para um
regime mais brando de prisão. Só um laudo de Rorschach poderia revelar se
ela estaria, de fato, arrependida da monstruosidade cometida no passado e,
principalmente, se havia o risco de voltar a matar quando pusesse o pé fora
da cadeia. Ou seja, a avaliação psicológica era fundamental para veri car a
sua aptidão para viver em sociedade.
Ansiosa à espera de iago, Suzane mantinha autocontrole das suas
emoções. Não precisou fazer nenhum esforço para disfarçar a angústia e o
nervosismo comuns àquele tipo de situação. Magra, solteira e muito bonita,
apresentou-se toda perfumada e com as unhas feitas ao psicólogo. Os
cabelos loiros-champanhe estavam soltos, brilhosos e esvoaçantes. Vestia
uniforme de presidiária: camiseta branca e calça cáqui. Mas o gurino pobre
não escondia a beleza do seu corpo longilíneo. O comportamento exemplar
diante daquele pro ssional seria fundamental para ganhar a rua em datas
especiais. Suzane sabia disso. Na época, a parricida estava privada de
liberdade fazia uma década.
iago era um homem atraente. Moreno, 28 anos no dia daquele
encontro. Altura mediana, nem gordo, nem magro. Usava camisa social
clara e calça jeans justa e bem cortada. Cabelos escuros, repicados e
penteados para o lado direito. Ao entrar na sala, foi recebido por Suzane. Ela
estava sentada, mas se levantou da cadeira com sorriso aberto e olhar vívido
para dar as boas-vindas ao psicólogo. Estendeu a mão para cumprimentá-lo,
xando o seu olhar no dele. iago correspondeu à saudação formalmente.
O especialista acredita que a presidiária havia ensaiado aquelas cenas, pois
mantinha a postura ereta feito um robô e era econômica nos gestos. Voz
mansa e aveludada. Português corretíssimo na fala e na escrita.
A sala onde o teste foi aplicado era ampla. Tinha uma mesa de tamanho
médio e duas cadeiras. A porta cou aberta e lá de fora uma agente de
segurança vigiava discretamente o ambiente a uma distância su ciente para
garantir privacidade à paciente. Suzane estava em casa, literalmente.
Ofereceu café e água ao psicólogo. Ele agradeceu a gentileza, mas preferiu
recusar a oferta. Acomodou-se em uma das extremidades da mesa. Suzane
puxou a cadeira e sentou-se no lado oposto, cruzando as pernas, bem à
vontade. Usou as duas mãos para enrolar o cabelo por trás da cabeça e,
habilidosa, deu um nó para deixá-lo preso em um coque meio bagunçado. O
gesto apurado chamou atenção pela sensualidade. Em seguida, Suzane
lançou mão da arma mais poderosa disponível em seu arsenal: a sedução.
Encarou iago rmemente, investiu na sua graça de mulher e disparou um
elogio sutil para quebrar o gelo:
— Como você é jovem! – disse com voz macia.
— Obrigado! – devolveu ele, seco.
iago conhecia a cha corrida da moça em questão. Àquela altura,
Suzane já era uma gura lendária dentro das penitenciárias e fora delas. Na
comunidade carcerária de São Paulo, ela é célebre pelo potencial de seduzir
com alta voltagem quem lhe interessa, descartar sumariamente as pessoas
quando a utilidade termina e ignorar friamente quem não lhe traz proveito
algum. O elogio feito ao psicólogo, por exemplo, teve o único objetivo de
conquistar simpatia, na esperança de que o terapeuta fosse benevolente na
aplicação do teste e principalmente na hora de escrever o laudo e enviá-lo à
juíza. Experiente em car frente a frente com criminosos psicopatas, o
pro ssional não caiu na armadilha da moça de aparência frágil. Abriu a
pasta, pôs sobre a mesa a primeira das dez pranchas de Rorschach e explicou
a dinâmica do teste. Suzane observou atentamente o desenho, idêntico ao
que abre este capítulo do livro. O psicólogo pediu, então, que a paciente
dissesse o que enxergava naquela gura enigmática. Sem titubear, a assassina
teria respondido:
— Um esqueleto, mandíbulas, um cálice e uma or.
São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2002
As mãos ao volante do Gol dourado tremiam mais do que vara verde na
noite do dia 30 de outubro de 2002. Completamente desatinado, Daniel
Cravinhos de Paula e Silva, de 21 anos, já não possuía re exo su ciente para
parar o carro quando o sinal fechava nas ruas de São Paulo. Dava freadas
bruscas e acelerava subitamente, elevando a tensão à sequência macabra por
vir, protagonizada por ele, sua namorada, Suzane Louise von Richthofen, de
18 anos, e seu irmão mais velho, Cristian Cravinhos de Paula e Silva, de 26.
Quando o carro chegou ao bairro de Campo Belo, zona sul de São Paulo,
faltavam 10 minutos para as 23 horas. Daniel estava fora de si, a ponto de
quase provocar um acidente de trânsito e pôr o plano a perder por causa do
seu descontrole emocional. Suzane, no banco carona, concentrada, percebeu
a fraqueza de espírito do namorado e interveio de forma ríspida.
— Pare o carro agora! – ordenou.
Daniel obedeceu ao comando imediatamente com outra freada
repentina. Desceu trêmulo. Quase não conseguia car de pé. Suava frio. Ao
dar a volta pela frente do veículo, agachou-se diante do capô e teve uma
crise de tosse seca. Os raios luminosos dos faróis evidenciavam a expressão
de medo estampada na cara de Daniel. Queria falar, mas a voz não saía.
Respirou fundo, acendeu um cigarro de maconha para se acalmar, soprou a
fumaça e voltou ao carro, sentando-se agora no banco do carona. Com
tranquilidade, Suzane assumiu o volante e dirigiu rumo à sua casa. No
trajeto, deu uns tragos no baseado e aproveitou para repassar as instruções
aos irmãos Cravinhos. Cristian, no banco de trás, também fumava maconha
e cou calado a maior parte do tempo. Quando explica algo, Suzane tem o
cacoete de repetir a última palavra da frase três vezes, como se quisesse
reforçar uma ideia.
— Vocês têm de entrar em casa sem fazer barulho! Tem de ser tudo
muito rápido, rápido e rápido! Não podemos car na casa por mais de meia
hora. Entenderam?
Tenso, Daniel ouviu as ordens da namorada sem dizer uma palavra.
Cristian tentou dissuadir o casal daquela ideia funesta:
— Por que vocês vão fazer isso? Ainda dá tempo de pensar no que estão
fazendo. Vocês vão acabar com a vida de vocês, com a minha e com a vida
de nossas famílias!
Suzane e Daniel ignoraram a quase evidente profecia de Cristian e
seguiram para o palco do crime. Ainda assim, ele continuava a ladainha que
parecia não ter m. Cristian falava frases soltas, sem nexo, típico de quem
está chapado:
— A morte é a morte. É a desaparição do ser vivo. Na minha opinião,
nada justi ca o decesso. Não há nada que justi que, sabe? A morte é a
morte. Matar os seus pais não é justo.
— Cala a boca, Cristian! – irritou-se Suzane.
Em seguida, ela contra-argumentou:
— Não sei se é justo ou não. Só sei que enquanto não matá-los, não serei
uma pessoa feliz!
Por volta das 23 horas, o trio chegou à Rua Zacarias de Góis, 232,
endereço de Suzane. A via estava vazia e escura. Pairava o receio de serem
vistos por algum vizinho ou mesmo pelo vigia da cercania, Francisco
Genivaldo Modesto Diniz. Apesar de estar entretido assistindo à televisão na
guarita a 300 metros dali, viu a garota ao volante entrando na rua. Suzane
embicou rapidamente o carro na entrada da garagem e usou o controle
remoto para abrir o portão basculante de ferro, do tipo em que uma única
chapa metálica sobe inclinando metade por sobre a garagem e metade por
cima da calçada da rua. Como o motor elétrico funciona com mecanismo de
contrapesos e cabos de aço, o movimento de abertura foi rápido – levou oito
segundos –, mas pareceu durar uma eternidade, deixando o trio ainda mais
tenso.
— Rápido! – gritou Daniel, alterado.
— Calma, está abrindo. E fala baixo! – ordenou Suzane, friamente.
Com o portão totalmente suspenso, o carro adentrou na garagem da
mansão dos Richthofen com os faróis apagados. A casa estava
completamente escura. Ainda dentro do veículo, feito líder, Suzane repassou
os comandos parte a parte com uma riqueza de detalhes impressionante. Em
seguida, desceu do carro sorrateiramente.
— Vou subir para ver se eles estão dormindo! Esperem aqui no carro até
eu voltar. Não façam barulho!
Suzane vestia calça de algodão cinza, blusa de moletom vermelha com
estampa de urso e sapato de camurça marrom. Contornou a piscina pela
calçada lateral e passou pelo jardim com plantas de porte médio
diversi cadas – entre elas, espadas-de-são-jorge, dasilírios de folhas
serrilhadas, nas e compridas, agave, pacová e alguns cactos. No meio desse
caminho havia uma placa baixa em forma de caracol onde se lia em letras
com motivos infantis: “Aqui mora gente feliz”. Ao atravessar esse caminho
verde, entrou calmamente pela porta da sala. Subiu as escadas. No piso
superior, seguiu pelo corredor escuro até alcançar o quarto dos pais. Abriu a
porta lentamente, sem fazer ruído. Manfred Albert von Richthofen, de 49
anos, alemão radicado no Brasil, engenheiro, dormia à esquerda da cama de
casal. Marísia von Richthofen, de 50 anos, médica psiquiatra, brasileira de
José Bonifácio, interior de São Paulo, dormia no lado direito. Ambos
estavam sob um cobertor xadrez nas cores vermelha e branca. Após se
certi car de que o casal dormia um sono profundo, Suzane voltou à garagem
rapidamente, abriu a porta do carro e deu a ordem aos irmãos Cravinhos:
— Estão dormindo. Venham!
Trépido, Daniel desceu do carro. Cristian, do banco de trás, levantou o
tampão de acesso ao porta-malas e pegou sob o carpete dois porretes de
ferro cilíndrico com as pontas dobradas feito pé de cabra, com formato
idêntico a um acessório de lareiras conhecido como atiçador, usado para
espalhar brasas. A arma foi construída por Daniel. O jovem foi tão
meticuloso ao ponto de se dar ao trabalho de fazer numa das extremidades
do instrumento um cabo com pequenas ondulações para dar mais aderência
às mãos. Habilidoso em trabalhos artesanais, preencheu a parte oca do
instrumento com fragmentos de bálsamo, uma madeira usada na construção
de aviões de aeromodelismo, e um tipo de massa epóxi, o que conferiu
densidade à arma, ou seja, um poder mais letal. Suzane abriu a bolsa e tirou
três pares de luvas cirúrgicas e duas meias-calças de micro bra anatômica e
entregou aos irmãos Cravinhos. Deu o comando em tom de ordem:
— Vistam isso! Não podemos deixar nenhum vestígio dentro da casa!
Mais tarde, em depoimento à polícia, Suzane e Daniel confessaram que,
na tentativa de não deixar pistas pela casa, o casal se inspirou na famosa
série de televisão CSI (Crime Scene Investigation). A ideia de usar a meia-
calça para evitar a queda de pelos e os de cabelos dos irmãos pelo chão da
casa e as luvas cirúrgicas que impediriam o registro de digitais em
maçanetas e corrimões, por exemplo, saiu da maratona que o casal fez para
assistir, em duas semanas, aos 43 episódios da primeira e segunda
temporadas do seriado. O CSI mostra como cientistas forenses desvendam
crimes obscuros envolvendo mortes em circunstâncias misteriosas e pouco
comuns na cidade de Las Vegas (EUA). Saiu desse seriado, também, a
sugestão de gurino que os assassinos usaram na noite do crime. Daniel
vestia calça bege folgada, tênis branco e vermelho e camisa cinza. Carregava
uma mochila nas costas. Cristian optou por um gurino camu ado de
exército. Os dois usaram os acessórios repassados por Suzane. As meias-
calças foram postas por cima da roupa e na cabeça. Vestido para matar,
Cristian, ainda na garagem, decidiu desistir da empreitada e se justi cou em
voz alta:
— Não vou! Não consigo! Não sou assassino!
— É tarde demais para desistir! E fala baixo, seu lho da puta! – retrucou
Suzane.
— Cris, se você não for, eu vou sozinho! – avisou Daniel.
Sabendo que o irmão não daria conta de matar duas pessoas sem a sua
ajuda, Cristian resolveu acompanhá-lo. No entanto, na expectativa de melar
o plano diabólico, o irmão mais velho bateu a porta do carro com força para
tentar despertar o casal Richthofen. A atitude irritou Suzane. Seguiram em
frente. Cada um dos Cravinhos tinha um porrete na mão. Dentro da
mansão, Cristian fez uma segunda investida para fazer tudo dar errado. Na
sala, começou a pisar forte no chão de madeira. Suzane perdeu a paciência
novamente. “Que porra é essa que você tá fazendo?!”, questionou ela.
“Desculpa. Estou nervoso!”, justi cou ele. A sequência de barulhos poderia
ter acordado os pais. Suzane pediu para o namorado conter o irmão
enquanto ela subia para conferir mais uma vez se Manfred e Marísia não
haviam despertado.
O plano do momento era assim: se o casal continuasse dormindo,
Suzane piscaria três vezes lá de cima a lâmpada da escada como sinal de
ação. Ela entrou no quarto escuro pisando na ponta dos pés. Lado a lado,
Manfred e Marísia dormiam o sono dos anjos. A jovem voltou para o hall da
escada e acionou o interruptor de luz três vezes, conforme o combinado. Ao
abrir e fechar os circuitos elétricos, Suzane dava ali, naquele momento, o
comando de nitivo para os irmãos Cravinhos assassinarem os seus pais.
Daniel foi o primeiro a obedecer. Furioso e apreensivo, subiu a escada de 16
degraus distribuídos em dois lances saltando de três em três. Cristian seguiu
logo atrás. Assim que os irmãos entraram na suíte, Suzane desceu as escadas
e sentou-se no sofá vermelho da biblioteca.
No quarto, Daniel se posicionou ao lado esquerdo da cama para matar
Manfred. Cristian cou no lado oposto, perto de Marísia. O local estava
escuro, mas era possível ver o casal deitado, graças à iluminação indireta
projetada do corredor. Raios de luz vindos da rua pelos vidros transparentes
da janela também ajudavam a quebrar o breu. Por alguns segundos, os
irmãos caram imóveis, em silêncio, observando as vítimas respirando,
entregues ao sono profundo. Naquele instante, passou pela cabeça de
Cristian a possibilidade de Daniel desistir por falta de coragem. Ficou
estático, olhando para o caçula. Decidiu desferir o primeiro golpe só depois
de Daniel.
Para desespero de ambos, Manfred, que estava deitado de lado, mexeu-
se lentamente na cama, virando de peito para cima. Repentinamente, o
engenheiro abriu os olhos e cou cara a cara com o seu assassino. Numa
fração de segundo, Daniel trincou os dentes, mordeu o lábio inferior com
força e ergueu os braços para dar a primeira porretada na cabeça do pai da
namorada. Suzane ouviu o som da primeira pancada lá de baixo. Cristian foi
tomado por um susto e agiu imediatamente sobre Marísia. O casal não teve
a menor chance de defesa.
O primeiro golpe em Manfred provocou afundamento na região parietal
direita do crânio, causando-lhe sofrimento agudo. O segundo atingiu a
têmpora anterior direita. Como os irmãos Cravinhos nunca haviam matado,
tudo aquilo era uma novidade horripilante para eles. A cada desdobramento
da execução, uma surpresa inesperada acontecia.
Em crimes envolvendo força bruta, por exemplo, é impossível se livrar
do sangue. Já nas primeiras cacetadas, o sangue da cabeça do casal
esguichou em Daniel e Cristian, respingando inclusive no rosto dos
assassinos. Isso ocorre porque o couro cabeludo é uma área muito
vascularizada e há artérias importantes sob essa camada espessa de pele.
Após as primeiras cacetadas, Manfred tentou escapar da morte
sentando-se na cama. Imediatamente, recebeu uma sequência de pancadas
na cabeça e na região do tórax o bastante para matá-lo em poucos minutos.
Pelas contas de Daniel, o engenheiro só morreu “mais ou menos” após a
décima paulada.
Ao contrário do marido, Marísia agonizou muito mais antes de morrer.
Cristian começou os trabalhos acertando a médica levemente. O primeiro
ataque atingiu-lhe a cabeça de raspão, fazendo a mulher acordar
desesperada a ponto de ver o marido sendo assassinado. Marísia deu um
grito abafado, mas alto o su ciente para Suzane ouvir do piso inferior.
Para se livrar da trilha sonora que embalava a morte dos pais, Suzane
resolveu simplesmente tapar os ouvidos com as mãos. Cristian continuava a
bater devagar em Marísia. Em determinados momentos, o assassino fechava
os olhos para não ver as cenas de horror que protagonizava. Sem a visão,
errava o alvo e acertava a cabeceira da cama, arrancando lascas da madeira e
produzindo ainda mais barulho. Marísia tentou proteger o rosto com a mão
direita. Os golpes então passaram a quebrar os seus dedos.
Cristian estava com di culdade para matar. Daniel pediu mais força ao
irmão. O incentivo extra deixou Cristian cego, potente e obtuso. A partir da
quarta porretada desferida na cabeça da vítima, a violência foi tão grande
que a ponta do ferro, dobrada em forma de L, cou enganchada em sua
calota craniana. Apesar da atrocidade, para espanto dos Cravinhos, Marísia
continuava viva e se mexendo na tentativa de se livrar do seu algoz. Para
desenganchar a arma, Cristian afundou rapidamente o bastão no crânio da
mãe de Suzane e puxou fazendo um movimento brusco, espalhando massa
encefálica pelo colchão da cama. Tal qual um lme de terror, Marísia
continuava viva.
Frenético, Cristian ergueu a arma e desferiu uma sequência de golpes
ainda mais violentos, des gurando completamente a face da médica. O
movimento do porrete ensopado de sangue para cima e para baixo tingia o
teto de gesso branco de vermelho. A adrenalina daquela ação fazia Cristian
gemer enquanto esfacelava os ossos de Marísia.
Depois de cerca de 20 pancadas, a vítima cou estática. Só então Cristian
parou, aliviado, e caiu deitado no chão, soltando o porrete no tapete. Daniel
se ajoelhou e, fatigado, deitou parte do corpo sobre o colchão da cama. Os
dois irmãos se entreolharam e trocaram poucas palavras:
— Acabou! – sussurrou Daniel.
Não havia acabado. Para surpresa dos Cravinhos, mesmo imóveis na
cama e banhados de sangue, os pais de Suzane não estavam mortos.
Repentinamente, o casal começou a emitir um som alto e medonho,
semelhante a um gargarejo. Segundo os médicos legistas autores do laudo
cadavérico, o ruído ocorreu porque o casal teve morte agônica. Como houve
lesão na base do crânio, o sangue escorreu para a nasofaringe, a parte mais
alta das vias aéreas, situada logo atrás do nariz e acima do palato mole. A
nasofaringe serve justamente para a passagem do ar das narinas à garganta,
levando oxigênio até a traqueia, brônquios e pulmões. Com essa região
entupida por sangue, Marísia e Manfred passaram a gargarejar por alguns
minutos antes de morrer.
Os irmãos Cravinhos caram apavorados com aquela sinfonia fúnebre.
Cristian entrou em desespero e acendeu a luz, levando um susto com a
imagem iluminada à sua frente:
— Minha Nossa Senhora! – espantou-se.
— Olha só o estrago! – comentou Daniel.
— Que porra de barulho é esse? – perguntou Cristian.
— Não sei. Temos de fazer parar! – avisou o irmão.
No andar de baixo, Suzane percebeu que algo dava errado e correu até a
porta da suíte. Sem entrar no cômodo, perguntou se os assassinos
precisavam de ajuda. Para conter o grunhido das vítimas, Daniel pediu uma
jarra à namorada. Obediente, ela desceu até a cozinha e voltou com o
recipiente, mas não entrou no quarto. Deixou no chão da porta e voltou para
o sofá da sala principal.
Daniel então pegou a jarra de cor alaranjada, usou a torneira da pia do
banheiro para enchê-la de água e despejou o líquido nos rostos
irreconhecíveis de Marísia e Manfred. O ruído não cessou. Pelo contrário,
com o excesso de líquido na garganta, o som aumentava.
— Faz essa merda parar! – gritou Cristian.
Depois de alguns minutos, Manfred nalmente se calou. No entanto,
Marísia continuava roncando. Cristian teve a ideia de pegar uma toalha
branca no banheiro e en ar na boca da vítima até ela parar de emitir aquele
som inquietante. Depois de ter a traqueia obstruída, Marísia nalmente veio
a óbito. Minutos depois, Daniel teve um rompante de culpa. Pegou outra
toalha, molhou na pia da suíte e limpou calmamente o rosto de Manfred.
Quando a face da vítima estava sem sangue, aos prantos, Daniel fez
carinho nele. De joelhos, pediu perdão a Deus pela crueldade de seus atos e
insistiu em se desculpar em voz alta enquanto acariciava o rosto do cadáver:
— O que eu z, meu Deus?! O que eu z?! Perdão, Senhor! Perdão!
Marísia cou tão deformada que era impossível limpá-la apenas com
toalha. Para amenizar aquela imagem repugnante, Cristian tomou
providências. Desceu até a metade da escada e pediu a Suzane que pegasse
sacos de lixo. A garota foi até a despensa e pegou uma unidade de cor preta e
a entregou ao assassino, sem entrar no quarto.
Em seguida, Cristian ensacou a cabeça da médica, dando um nó bem
apertado no pescoço para conter a água e o sangue que vertiam do corpo
pelos buracos do crânio.
Daniel foi mais delicado: cobriu a face de Manfred com uma toalha
limpa. Ao ver o cadáver do engenheiro coberto com tecido, Cristian resolveu
imitar o irmão e também estendeu uma toalha por cima do plástico envolto
na cabeça da mãe de Suzane.
Os Cravinhos revelaram depois, em depoimento, ter ocultado o rosto
das vítimas para que o irmão de Suzane, Andreas von Richthofen, de 15
anos na época, não se deparasse com os pais completamente des gurados.
De acordo com o laudo assinado pelos legistas André Ribeiro Morrone e
Antônio Carlos Ferro, do Instituto Médico Legal de São Paulo, Manfred e
Marísia morreram por meio cruel, vítimas de traumatismo cranioencefálico
causado por vários golpes aplicados por instrumento contundente. O exame
necroscópico feito na mãe de Suzane relata sofrimento antes da morte e
emprego de violência além do necessário para executá-la, provocando
sofrimento extra.
Para os médicos, é um mistério Marísia ter resistido bem mais do que o
marido. Os legistas a rmaram ter havido sofrimento extra por causa das
congestões encontradas no fígado e nos pulmões das vítimas. Segundo a
necropsia, esse detalhe indica ter havido intervalo de tempo longo entre o
início da ação e a morte do casal.
Matar duas pessoas a pauladas não é tarefa fácil. É um trabalho
desgastante sicamente e mentalmente. Na hora das porretadas, os irmãos
Cravinhos puseram para fora muita adrenalina. Depois de assassinar o casal
von Richthofen, a dupla estava esgotada e emocionada. Mas havia uma
segunda parte do plano para pôr em ação imediatamente.
Mesmo sujos de sangue, sob o comando de Suzane, que naquele
momento não despejou uma única lágrima pela morte dos pais, Daniel e
Cristian começaram a montar uma farsa na mansão: encenar um latrocínio
(morte seguida de roubo) cometido por ladrões pro ssionais.
Usando luvas, Daniel correu ao closet da suíte, abriu uma das portas e
retirou a tampa do fundo falso do armário. Dentro havia uma arma Rossi
calibre 38 com cano oxidado preto e cabo de madeira com capacidade para
seis balas, mas carregada com cinco. Ele pôs o revólver sobre a cama.
Cristian achou melhor colocá-la no chão, sobre o tapete, próximo à mão
direita de Manfred, estendida para fora da cama. Sempre citando cenas do
seriado CSI, Daniel explicava que tentava passar a ideia de uma reação do
pai de Suzane ao suposto assalto.
E a bagunça na mansão dos Richthofen continuava. Cristian abriu duas
gavetas de uma cômoda dentro da suíte e jogou todo o conteúdo dela no
chão. Ao vasculharem a suíte, os irmãos Cravinhos acharam um porta--joias
com mais de 100 peças. Daniel pegou as doze maiores, acreditando serem as
mais valiosas – entre elas, um colar de pérolas, um pingente, braceletes e um
par de brincos de ouro puro com a letra M de Marísia – e as repassou
imediatamente ao irmão. Na sequência, espalhou as peças menores pelo
chão para incrementar a cena do falso assalto na mansão.
Depois de encerrar os trabalhos no andar de cima, os Cravinhos
desceram para, juntamente com Suzane, revirarem a biblioteca. Jogaram
livros e revistas pelo chão. Do armário baixo, Suzane pegou uma pasta estilo
007 de couro marrom-escuro fechada com segredo numérico. Como sabia a
combinação de três números (953), ela abriu a pasta com facilidade e pegou
envelopes contendo 8.000 reais, 5.000 dólares e 1.000 euros. Tudo em
dinheiro vivo.
Daniel raciocinou rapidamente: se estavam simulando um assalto, não
faria sentido abrir a pasta acionando o segredo. Fechou imediatamente e,
com uma faca de cozinha, cortou a lateral para fazer crer que o dinheiro
tinha sido roubado pelo rasgo. Posteriormente, jogaram a pasta no chão
com o lado cortado virado para baixo.
Segundo o Ministério Público, pelo acerto feito entre Suzane e os irmãos
Cravinhos, todos os objetos de valor encontrados na casa, incluindo
dinheiro, cariam com Cristian como recompensa pelo assassinato da mãe
de Suzane. Sendo assim, ele começou a esconder pelos bolsos da calça todas
as cédulas retiradas da pasta. Nessa hora, Suzane encontrou 300 reais na
gaveta do escritório do pai, que foram guardados imediatamente no cós da
calça sem que Cristian percebesse.
Para nalizar, o trio abriu todas as portas e gavetas dos armários de
quase todos os cômodos da casa. Só não entraram no quarto de Suzane e no
de Andreas. Quando acabaram, Daniel e Cristian trocaram de roupa.
Colocaram as sujas de sangue em uma sacola plástica. Apagaram todas as
luzes da casa, exceto as da sala principal. Eles já estavam na garagem indo
embora quando se lembraram dos bastões deixados na suíte. Daniel correu
para pegar e os lavou na piscina, guardando-os na sacola. Suzane começou a
apressá-los para deixar a mansão antes de chamar a atenção dos vizinhos.
Para reforçar a tese de assalto, Daniel teve uma ideia. Entrou novamente na
casa, dessa vez pela janela, para deixar marcas na parede e confundir a
futura investigação policial.
O nervosismo dos Cravinhos antes do crime já havia se dissipado após o
assassinato. Ao entrarem no carro, Daniel e Suzane se deram um beijo longo
e seguiram às pressas para a casa de Cristian, na Rua Graúna, 422, no bairro
de Moema, onde morava com a avó. Esse trajeto, à noite, a partir da casa de
Suzane, dura doze minutos. No caminho, ao passarem pelo cruzamento da
Avenida Vereador José Diniz com a Rua Vieira de Morais, no bairro nobre
do Campo Belo, a um quilômetro e meio da cena do crime, Daniel parou o
carro. Desceu e jogou num contêiner de lixo a sacola contendo roupas,
sapatos, bastões, luvas e outros apetrechos usados no duplo homicídio.
Depois, seguiram viagem.
Dentro do carro, minutos depois do crime, o trio já fazia planos para o
futuro. Suzane sonhava herdar a mansão dos pais e se casar com Daniel.
Imaginava que viveria certo período com di culdades nanceiras, pois
caria sem a renda familiar e os processos de sucessão de bens costumam se
arrastar na Justiça. Cristian ouvia tudo calado como se estivesse em transe.
Daniel pensou mais à frente. Sugeriu à Suzane vender a casa e, com o
dinheiro, montariam um negócio e empregariam o irmão. Assim, todos
sairiam ganhando. Ela cou de pensar com carinho no assunto.
Na porta de casa, Cristian desceu do carro e desejou feliz aniversário à
Suzane, que faria 19 anos dali a quatro dias. Para comemorar a data e
celebrar o sucesso do plano de matar o casal Richthofen, Daniel e Suzane
resolveram terminar a noite bem ao estilo das tragédias de Nelson
Rodrigues. Foram ao Motel Colonial Palace, no bairro da Saúde. Na época,
logo na entrada havia uma frase de nindo a loso a do lugar:
“Respondemos às exigências da vida moderna preservando o charme e o
bom gosto da tradição, tornando único cada um de nossos clientes”. Suzane
e Daniel eram assíduos do local. Sempre cavam em quartos baratos. Nesse
dia, eles chegaram à recepção do motel à 1h36. Ela olhou para a atendente e
exigiu categoricamente:
— Quero a suíte presidencial!
Daniel estacionou calmamente o carro no box exclusivo, entrou de mãos
dadas com a namorada no quarto de luxo-cafona todo decorado com luz
indireta e suave nas cores vermelha, verde e roxa. A suíte tinha paredes
brancas, sofá de couro tipo marquesa, mesa de mármore, candelabros
dourados e piso brilhoso de tábua corrida. Uma ta de neon vermelha
circundava o pedestal de sustentação da cama. O teto solar móvel com vista
para as estrelas dava um toque romântico ao lugar. Outros atrativos: piscina
térmica, sauna, banheira de hidromassagem, ducha dupla, cachoeira e
equipamento de som individual. Suzane planejou pagar a noite especial com
os 300 reais surrupiados do escritório do pai. O casal assassino estava
eufórico, sob a mais absoluta felicidade. Daniel tirou a roupa de Suzane
lentamente e despiu-se de corpo e alma. Beijaram-se longamente. Tomaram
banho juntos. Suzane se jogou nos braços do namorado e começou a
contemplar o que para ela seria o crime perfeito. Ao pé do ouvido, disse ao
amado trans gurada de amor:
— Agora, sim, a nossa vida vai acontecer de verdade!
Nus, seguiram para a banheira de hidromassagem. Depois foram se
refrescar na piscina aquecida com iluminação subaquática. Durante a fase
de investigação enfrentada pelo casal e até no julgamento, Daniel a rmou
ter transado com Suzane no motel. Não para comemorar o duplo homicídio,
segundo sustenta até hoje, mas sim para festejar o aniversário da namorada.
Suzane nega ter feito sexo naquela madrugada. Ainda na suíte, Daniel teve
uma crise de pânico que, por muito pouco, não estragou a noite. Acendeu
um cigarro de maconha, pegou uma lata de Coca-Cola no frigobar e
começou a chorar, ao mesmo tempo que dizia umas palavras proféticas à
namorada:
— Nós seremos descobertos! Não tem jeito! Seremos presos! – disse ele
aos prantos, enquanto soprava a fumaça pelos ares.
Suzane o tranquilizou com palavras doces, algumas recomendações e
um toque de realidade, além de muito carinho:
— Calma, amor! Você é muito emotivo! Para de chorar! Você não fez
nada de mais! O pior já passou! Agora já era! O mais difícil você já fez!
Agora é tudo comigo! Tente apenas ser frio! Não se comporte como se
tivesse matado alguém!
A tragédia atroz cometida algumas horas antes uniu ainda mais aquelas
duas criaturas. Daniel e Suzane caram por muito tempo abraçadinhos na
cama, em um frêmito de vida e sonho, provando uma tese rodriguiana: na
adversidade, o vínculo entre um casal se fortalece.
Assim como Daniel era o único homem para Suzane, ela era para ele a
única mulher em todo o universo. A cena de romantismo bizarra se desfez
às 3 horas da madrugada, quando o telefone celular de Suzane tocou,
assustando o casal de assassinos. Daniel deu um salto e perguntou,
apavorado:
— Ai, meu Deus! Quem está te ligando?!
Dois pássaros, um coração, uma serpente e
um rato

A
ndreas von Richthofen abriu os olhos por volta das 9 horas da manhã
no sábado, 3 de julho de 1999, mas se recusou a sair de baixo das
cobertas. Virou-se de um lado para o outro na tentativa de esticar um
pouco mais o sono naquela manhã de inverno. Mesmo com a vista
desfocada pela sonolência, conseguiu enxergar um pacote grande embalado
com papel de presente repousado sobre o tapete colorido do quarto. Em um
ímpeto, deu um pulo da cama seguido de um grito e rasgou sem a menor
cerimônia a embalagem na feita com muito esmero. Dentro da caixa havia
um avião para prática de aeromodelismo de um metro de comprimento,
porém inteiramente desmontado. Presente dos seus pais, Manfred e Marísia.
Naquele dia, o garoto completava 12 anos. Com um pé na adolescência, a
voz de Andreas já começava a engrossar. Aos poucos, vinha perdendo
interesse pelos brinquedos de criança, a exemplo de carrinhos e bonecos. A
miniatura de avião era movida pelo combustível conhecido como glow, uma
mistura de metanol com nitrometano; levantava voo alcançando até dezoito
metros de altura e possuía autonomia para car no ar por até 20 minutos.
Comandado por controle remoto, o avião foi projetado para acrobacias de
alto desempenho. Um sonho para quem passou a infância ouvindo do pai as
histórias de patriotismo do avô, um aviador alemão e combatente da
Segunda Guerra Mundial, cujo maior mérito foi bombardear o Reino Unido
em 1940 e 1941. Manfred também tinha o mesmo nome de quem ele dizia
ser seu tio-avô, notável na Europa pela alcunha de Barão Vermelho, o maior
piloto alemão de caças militares de todos os tempos. Na Primeira Guerra
Mundial, o Barão abateu 80 aviões inimigos de seu país. Por causa dos
méritos dos supostos parentes na aviação, Manfred resolveu presentear o
lho com o aeromodelo.
— Combater naquela época era uma atividade nobre e so sticada.
Quando a munição do inimigo acabava, os combatentes rivais os esperavam
se reequiparem. Era um sinal claro de respeito aos adversários – contava
Manfred com orgulho para o lho.
Existia ainda um motivo particular para aquele presente especial.
Andreas era um garoto extremamente tímido e calado. Com problemas de
relacionamento na escola, enfrentava di culdade de fazer amigos e passava
as horas de lazer trancado no quarto, solitário, entretido com jogos
eletrônicos. O avião de aeromodelo seria um estímulo para o adolescente
sair de casa e interagir com outros jovens amantes do esporte. Alegre como
poucas vezes se viu, o menino magro, cabelos loiros e rosto de traços nos,
correu à sala de pijama abraçado à caixa do avião com um sorriso
estampado no rosto. Agradeceu aos pais pela maravilha de presente. Embora
festivo, o ritual de gratidão não teve beijos, abraços nem qualquer outro tipo
de calor humano. Foi frio, formal e distante, como eram, aliás, as relações
interpessoais na família. O distanciamento e a falta de demonstração de
afeto naquele lar, mesmo em momentos de comemoração, era o traço mais
forte da origem alemã dos Richthofen. Mas não havia nenhuma sombra de
dúvida: naquela manhã, o ambiente estava coberto de alegria e Andreas
sentia-se tomado por uma felicidade rara, essencial e profunda.
A tarde estava ensolarada e Andreas pediu aos pais que o levassem ao
Clube Escola de Aeromodelismo, no Parque Ibirapuera. Lá, um instrutor
poderia montar o avião e ensiná-lo a pilotar. Manfred e Marísia decidiram
testemunhar de perto o júbilo do caçula. Enquanto vestia o casaco, Marísia
perguntou à Suzane von Richthofen, de 15 anos na época, se ela queria ir:
— Vamos, lha?
— Nem pensar! – respondeu a garota, enquanto estudava alemão na
mesa da cozinha.
Por volta das 16 horas, o casal e o lho Andreas – agarrado ao seu
presente – entraram na luxuosa Chevrolet Blazer verde-metálico da família e
seguiram para o Ibirapuera, distante seis quilômetros da casa. No parque, ao
ouvir o barulho estridente dos aviões cortando os ares freneticamente,
Andreas cou em estado de graça. Na porta da escola de aeromodelismo,
havia dezenas de jovens e adultos com controle remoto na mão conduzindo
aviões, olhando para o alto. O cenário deixou Manfred e o lho
boquiabertos. Marísia, contudo, não parecia nem um pouco fascinada com o
ambiente tumultuado e a poluição sonora do lugar. Encarregou-se de tomar
uma iniciativa para se livrar daquele pandemônio. Ao trombar com um
homem carregando um aeromodelo nas mãos, foi prática e objetiva e, de
quebra, deixou escapar uma leve arrogância:
— Quem é o melhor professor desta escola?
O aluno anônimo apontou para um instrutor a cerca de 200 metros dali.
Ele controlava um avião vermelho e branco modelo T-25 com mais de um
metro e meio de envergadura. Vestia calça jeans larga, camiseta branca e um
casaco azul e amarelo, as duas cores da bandeira da Ucrânia. A roupa era
exclusiva de atletas competidores, na qual se lia “Campeonato Mundial de
Aeromodelismo”. Marísia chamou Andreas e Manfred para perto de si,
aproximou-se do jovem instrutor e fez uma síntese da sua demanda:
— Boa tarde! Meu nome é Marísia von Richthofen e esse é meu lho
Andreas. Ele ganhou de aniversário este avião. Gostaria que você montasse o
brinquedo e o ensinasse a pilotar. Me disseram que você é o melhor.
O instrutor pediu um minuto para aterrissar o avião na pista de asfalto.
Tão logo o aeromodelo taxiou, cumprimentou educadamente a família von
Richthofen.
— Obrigado pelo elogio! Não posso montá-lo agora. Mas se a senhora
deixar o avião comigo, amanhã pela manhã estará pronto para voar.
Marísia passou ao instrutor a caixa com mais de 100 peças do avião,
acertou o preço e marcou para voltar no dia seguinte, um domingo.
Entusiasmado, Manfred aproveitou para contar a ele as histórias dos seus
supostos ascendentes famosos na aviação. O instrutor simpatizou logo de
cara com o alemão. Depois de quase meia hora de conversa, o aeromodelista
agradeceu ao casal e já se preparava para decolar novamente o protótipo de
aeronave, quando foi interrompido mais uma vez por Marísia:
— Desculpe. Como é mesmo o seu nome?
— Daniel Cravinhos – respondeu o rapaz.
Aos 19 anos, Daniel Cravinhos de Paula e Silva não era apenas o melhor
instrutor de aeromodelismo da pista do Ibirapuera. Com 16, o atleta cou
em quinto lugar no quesito acrobacia da categoria juniores no Mundial de
1998, realizado em Kiev, capital da Ucrânia, numa disputa com mais de 500
competidores de 120 países. Foi lá que o piloto ganhou o casaco exclusivo
com as cores da bandeira ucraniana. Para se ter uma ideia, nesse páreo
internacional, o atleta brasileiro atrás dele no ranking terminou em
quadragésimo lugar.
Além de bom competidor, Daniel cou famoso pela habilidade com as
mãos. Era um dos poucos aeromodelistas a conseguir montar aviões a partir
de plantas americanas e inglesas. Considerado caprichoso no acabamento
dos modelos, ele sempre estava cheio de encomendas. Para trabalhar com
esse esporte, o jovem montou um ateliê no quintal da casa dos pais e
chegava a cobrar entre 500 e 3.000 reais em valores da época por um
protótipo feito desde o desenho das peças até a pintura da fuselagem,
passando pela montagem dos motores. O preço variava de acordo com o
modelo.
Daniel também era talentoso no conserto de controles remoto. Na arte
de pilotar, o atleta chamava atenção pelas manobras arriscadas, fazendo o
avião dar piruetas no ar bem próximo do chão, arrancando aplausos de
quem costumava assistir às suas performances. Com todos esses predicados,
construir o avião de Andreas seria tarefa corriqueira. Ao chegar em casa, à
noite, Daniel armou o presente do garoto em menos de meia hora e ainda
incrementou o modelo com peças extras, acessórios e cores exclusivas.
Na manhã do domingo, Andreas acordou ansioso. Tomou café às pressas
e pediu aos pais para levá-lo ao parque novamente. Marísia se lembrou de
quão tumultuado era o Ibirapuera aos domingos e concluiu não estar
disposta a um sacrifício tão grande. Não saía da cabeça da médica o som
irritante dos aviões comandados do chão. Já prevendo que Andreas passaria
a frequentar o parque todos os nais de semana para ter aulas com Daniel,
Marísia pediu à Suzane uma gentileza:
— Minha lha, por favor, vamos levar o Andreas para aprender a pilotar
o avião? Tem muitos jovens da sua idade no parque. Você vai gostar.
— Jamais! – respondeu Suzane, cortante, enquanto tomava o café da
manhã.
Manfred nasceu em 1953 na cidade alemã de Erbach, num castelo às
margens do rio Danúbio. No ano seguinte, a família se mudou para o
município de Santa Cruz (RS). Em 1970, seguiu para São Paulo. Quatro anos
depois, entrou no curso de Engenharia Civil na Universidade de São Paulo,
onde conheceu uma estudante de Medicina de ascendência libanesa,
Marísia, com quem se casou em 1979. Em 1983, teve a primeira lha.
Manfred mantinha hábitos da cultura alemã em casa. Aos domingos, por
exemplo, ele levava a sério o que os alemães chamam de Ruhetag, o dia do
descanso. O primeiro dia da semana era marcado por um silêncio absoluto.
O único som ouvido na mansão dos Richthofen era música clássica e mesmo
assim bem baixinho. A família também cultivava o hábito típico da sua terra
natal de deixar as janelas sempre fechadas, mesmo em dias de sol.
Uma entrevista com Manfred feita na década de 1990 pelo repórter
Claudio Júlio Tognolli, do nado Jornal da Tarde, ajuda a revelar um pouco
os hábitos da família. O jornalista ligou para o engenheiro e marcou um
encontro para fazer um per l do homem que poderia ser parente do piloto e
herói de guerra Barão Vermelho. Antes de receber em casa a equipe de
reportagem, na manhã do dia 1o de março de 1996, Manfred exigiu que o
repórter e o fotógrafo José Diório jogassem as suas credenciais de jornalistas
por debaixo do portão. O engenheiro devolveu os crachás meia hora depois
e abriu o portão armado com uma pistola semiautomática Mauser C96. A
reportagem com o pai de Suzane foi publicada no dia 31 de março de 1996.
Manfred costumava beber uísque caro em casa todos os dias, inclusive
nos nais de semana pela manhã. Geralmente, tomava a primeira dose
quando começava a ler relatórios do trabalho no sofá da sala. Engenheiro
competente, ocupava o cargo de diretor de engenharia da Dersa
(Desenvolvimento Rodoviário S/A), empresa de economia mista com
patrimônio líquido de 1,4 bilhão de reais, administrada pelo governo de São
Paulo. Manfred era responsável pela construção do primeiro segmento do
anel viário de 176 quilômetros de extensão ao redor da Região
Metropolitana de São Paulo, conhecido como Rodoanel. O trecho foi
inaugurado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. No
palanque badalado havia uma dezena de autoridades, entre elas o
governador Geraldo Alckmin, além de Manfred. Essa cerimônia ocorreu
onze meses antes de ele ser assassinado. Mais tarde, em investigação no
âmbito da Operação Lava Jato, descobriu-se que a Diretoria de Engenharia
da Dersa era a base de um propinoduto de 40 milhões de reais escoados de
um cartel formado por empreiteiras diretamente ligadas à construção do
Rodoanel. O dinheiro, segundo o Ministério Público, abastecia o caixa 2 do
PSDB.
Orgulhoso do Rodoanel, Manfred costumava dizer a quem estivesse
ouvindo que a “sua obra” iria melhorar o trânsito caótico de São Paulo.
Naquele domingo, o engenheiro largou a papelada do Rodoanel e resolveu
levar o lho ao parque. Prepotente como uma autoridade pública, exigiu a
companhia de Suzane. A nal, a incumbência de acompanhar Andreas nas
aulas de aeromodelismo caria com ela. Suzane, porém, batia o pé se
recusando e Manfred lançou mão da supremacia paterna:
— Venha conosco! É uma ordem!
Sem saída, a garota largou o café pela metade e subiu contrariada até o
quarto para se arrumar. Marísia cou em casa. Manfred levou os lhos ao
parque e carregou consigo uma garrafa de uísque escocês Glenlivet 12 anos.
Enquanto dirigia o carro, falava com Suzane:
— Vou te apresentar o professor que a sua mãe contratou para dar aulas
ao seu irmão. Na próxima vez, vocês já vêm sozinhos.
— Que saco! – resmungava Suzane. Andreas seguia calado.
O céu estava limpo na manhã daquele domingo. A bagunça do dia
anterior no Ibirapuera se repetia em dobro. A muito custo, os três chegaram
à escola de aeromodelismo. Daniel já os aguardava próximo à pista com o
avião de Andreas pronto para voar. O garoto deu pulos de alegria e ria pelos
cotovelos. Daniel começou a lhe dar instruções básicas e Manfred o
interrompeu para apresentar Suzane ao instrutor:
— Daniel, essa é a minha lha Suzane. É ela quem vai trazer o Andreas
para as aulas de aeromodelismo.
Foi impossível Daniel não reparar na beleza da jovem. Suzane tinha um
olhar vivo, doce e penetrante. Vestia bermuda jeans curta e blusa cor-de-
rosa. Mas a garota não deu nenhuma trela para o aeromodelista. Daniel
tinha estilo nerd. Baixinho, corpo franzino, lábios nos, nariz grande, queixo
proeminente e olhar caído de peixe morto. Para o grupo do Ibirapuera, ele
ainda era virgem naquela época. A suspeita tinha fundamento. Os atletas de
aeromodelismo frequentavam prostíbulos toda semana. Daniel era o único a
se esquivar da luxúria. Quando os colegas perceberam o interesse dele em
Suzane, houve risos de zombaria. Enquanto isso, ela virava a cabeça para os
lados como se procurasse por algo ou alguém, até se deparar com o
aeromodelista Vinícius Soares, amigo de Daniel. Com 17 anos, chamado de
Vinas pela turma do parque, era o galã do Clube de Aeromodelismo. Bonito
como galã de novela, chamava a atenção de todas as garotas e despertava
ciúme na galera. Suzane cou encantada com Vinas. Manfred percebeu a
troca de olhares entre a lha e o bonitão e resolveu cortar:
— Filha, venha cá! Esse aqui é o Daniel! Ele é o instrutor do seu irmão.
Com sorriso angelical e rápido beijinho no rosto, Suzane saudou Daniel
com voz meiga. O aeromodelista viu na garota um quê misterioso. Mas logo
ele se convenceu: aquela boneca bela e rica para os padrões dele era um
sonho impossível. Manfred tentava forçar uma amizade entre a lha e
Daniel. O alemão, porém, jamais imaginaria que, ao promover esse
encontro, naquela bela manhã de domingo, em um dos maiores cartões-
postais de São Paulo, ele estava, na verdade, assinando a própria sentença de
morte. Manfred unia as duas pessoas que, dali a três anos, estariam
planejando de forma obcecada assassinar friamente ele e sua esposa.
Suzane começou a conversar com Daniel, mas deixou claro logo de cara
não vê-lo como um possível namorado. Nas primeiras prosas, ela quis saber
quem era o tal Vinas. Daniel passou a cha do rapaz, pontuando inclusive o
fato de o amigo ter uma namorada. A informação não foi su ciente para ela
desistir do piloto de olhares sensuais. A princípio, Vinas correspondeu aos
encantos de Suzane com a única intenção de turbinar seu currículo de
galanteador.
As horas foram passando. Enquanto Suzane exercia a sedução para
tentar conquistar Vinas, Daniel ensinava Andreas a pilotar o avião. Manfred
conversava na lanchonete com o pai do instrutor, Astrogildo Cravinhos, um
homem de 55 anos na época, cujo hábito era apresentar-se como juiz, apesar
de ser, na verdade, escrivão do Fórum João Mendes, no Centro de São Paulo.
Ao falar com Manfred, Astrogildo bebia cerveja e usava a empá a de
homem da lei. O engenheiro ofereceu-lhe uísque, e o pai de Daniel
descartou a cerveja imediatamente. Perderam a hora bebendo e conversando
sobre lhos, Rodoanel, mulheres e aviação.
Por volta das 15 horas, Marísia apareceu no parque para levar a família à
churrascaria. A essa altura, apesar de ter desdenhado do programa
dominical mais cedo, Suzane não queria sair dali por nada deste mundo.
Estava encantada com o cenário de céu azul cortado por aviões coloridos, e
com a sensação ímpar de liberdade que tomava conta do seu espírito. A
garota corria pelo gramado de braços abertos como se fosse livre tal qual um
pássaro no céu. Teve uma sensação estranha e tão curiosa quanto
inexplicável. Parecia começar a viver, de verdade, naquele exato instante.
Repentinamente, a autoridade dos pais a fez voltar para o mundo real.
— Suzane, vamos embora agora! – esbravejou Manfred.
Ela caiu em si e sumiu da vista de Daniel.
Na semana seguinte, Suzane estava no parque com o irmão. Os dois,
aliás, caram assíduos no Clube de Aeromodelismo. Era período de férias
escolares e Andreas fazia aula praticamente todos os dias. Numa tarde de
calor insuportável, Vinas resolveu tirar a camisa para aliviar a temperatura
elevada do ar. Suzane cou ainda mais interessada ao ver o corpo musculoso
do piloto. A namorada de Vinas raramente dava as caras no Ibirapuera.
Suzane aproveitou essa ausência para investir pesado pela primeira vez no
galã. Aproximou-se e fez um pedido com voz infantil:
— Sempre quis aprender aeromodelismo. Você me ensina a pilotar?
— Claro!
Segurando o controle remoto com as duas mãos, de pé, Vinas se
posicionou atrás de Suzane e deu o equipamento a ela. O avião estava no ar.
Suzane segurou o controle enquanto o rapaz a abraçava por trás. Tão logo a
aeronave pilotada a quatro mãos pousou, Suzane se virou para arriscar o
primeiro beijo. Para sua surpresa, Vinas esquivou-se e justi cou a recusa:
— Suzane, tenho namorada. Não vou sacaneá-la.
— Só um beijo! – insistia ela.
— Não.
— Por favor! – implorou.
— Não quero! – respondeu ele, de nitivo.
A recusa de Vinas não foi su ciente para Suzane esquecê-lo. Só parou de
investir nele quando a tal namorada, tão linda quanto ela – ou até mais –,
passou a frequentar o parque para marcar território. Rejeitada, Suzane
nalmente jogou a toalha. A partir dessa frustração, passou a olhar para
Daniel com outros olhos. Em uma tarde de agosto, já próximo do pôr do sol,
sentados perto da pista dos aviões, começou a fazer perguntas sobre o
instrutor:
— O que você faz além de dar aula de aeromodelismo? – ela quis saber.
— Eu tenho uma o cina onde monto aviões. E você?
— Estudo. Meu sonho é ser diplomata.
A conversa uiu e o casal nem viu o tempo passar. Andreas aprendeu
rapidamente a pilotar e a fazer acrobacias com o seu avião. Para se fazer
notado por Suzane, Daniel também usou a estratégia de pilotar a quatro
mãos. Perguntou se a jovem queria aprender. A menina fez sinal positivo
com a cabeça. O instrutor então lhe passou o equipamento, mas fez questão
de segurar junto. Ao contrário de Vinas, Daniel foi respeitoso. Limitou-se a
tocar as mãos de Suzane com as suas num gesto delicado.
Depois disso, as coisas passaram a acontecer aos poucos, meio à revelia
da vontade de um e de outro. Já se haviam passado alguns meses e o laço de
união entre os dois só se fortalecia. Mas não havia evoluído a ponto de
ocorrer um beijo, muito por causa da timidez excessiva de Daniel. Eles
andavam grudados feito amigos, quando, em novembro de 1999, o destino
se encarregou de juntá-los de forma categórica.
Haveria uma competição de aeromodelismo em Campinas no m de
semana e Daniel participaria como atleta. Pensando na companhia de
Suzane, o piloto teve a ideia de convidar Andreas, o seu pupilo. Em casa, o
adolescente pediu permissão aos pais para assistir ao seu treinador competir
no interior de São Paulo. Manfred se comprometeu a levá-lo, mas Marísia foi
contra porque a nova mansão da família Richthofen estava em fase nal de
construção, e justamente naquele m de semana o casal teria de inspecionar
a obra para acertar os detalhes nais do acabamento. A família morava em
uma casa modesta de três quartos, com paredes envelhecidas e portão
enferrujado, num terreno de 300 metros quadrados, na Rua Barão de Suruí,
Vila Congonhas. A casa nova era imensa e foi erguida num terreno de 1.000
metros quadrados e comprado pela família à vista por 600 mil reais (valor
corrigido) da metalúrgica Kanthal Brasil. O novo endereço cava a dois
quilômetros da atual residência, num bairro mais nobre, o Campo Belo.
Manfred e Marísia não se des zeram da casa antiga e gastaram quase 1,5
milhão de reais na construção da mansão, na qual viveriam somente por três
anos.
Para liberar a viagem de Andreas a Campinas, Manfred impôs uma
condição: Suzane teria de acompanhá-lo. Ela aceitou de pronto. Por cautela,
crendo que o pai de Daniel realmente fosse um juiz, o engenheiro ligou para
o falso magistrado e fez uma série de recomendações, pois Suzane e Andreas
nunca haviam viajado sozinhos. Astrogildo prometeu cuidar de Suzane e
Andreas como se fossem seus lhos. Manfred cou aliviado. A viagem a
Campinas era um bate-volta e foi feita no Maverick prata envenenado de
Astrogildo. Na ida, ele conduziu o carro e Daniel seguiu sentado ao seu lado.
Atrás, estavam Suzane e Andreas.
Na apresentação esportiva, Daniel se empenhou nas acrobacias com o
seu avião para vencer a competição e impressionar Suzane, mas ele cou em
terceiro lugar. O aeromodelista não precisava de troféus ou medalhas para
chamar a atenção da moça meiga e delicada. Àquela altura dos
acontecimentos, ela já estava completamente envolvida emocionalmente.
Para embarcar no jogo de sedução de Daniel, Suzane recorria à voz infantil
anasalada quando se dirigia a ele e andava pelo gramado da pista dos aviões
dando galopes, sacudindo a cabeleira ao vento. Daniel correspondia com
excesso de zelo. A todo momento perguntava se estava tudo bem ou se a
garota precisava de algo. Esse cuidado era estendido a Andreas. O
adolescente via em Daniel um misto de melhor amigo, cúmplice, herói,
parceiro e irmão. Sempre que o piloto de aeromodelo se mostrava diligente,
Andreas fazia um comentário elogioso com a irmã.
— O Daniel é muito gente boa, Suzane. Ainda por cima é uma fera no
aeromodelismo.
— É verdade! – concordava ela, jogando charme para o treinador o
tempo todo.
Havia outro forte motivo para Daniel se mostrar preocupado com os
irmãos Richthofen. Nessa época, Suzane havia acabado de completar 16
anos e Andreas estava com 12. Daniel era maior de idade – tinha 18 anos –,
estava prestes a completar 19 e já se sustentava com a atividade de
aeromodelismo. Espontaneamente, o piloto era cativante e querido, apesar
de ser excessivamente inibido e reservado. Em campeonatos, ajudava os
atletas concorrentes, algo raro em esportes de competição envolvendo
vaidade. Tinha o hábito de falar pouco, apesar de ser enturmado e bastante
solicitado pelos amantes de aeromodelismo. Em Campinas, Andreas virou
uma espécie de mascote e Daniel assumiu com empenho o papel de irmão
mais velho, sentindo-se responsável pelo adolescente. Suzane cava
maravilhada com aquele carinho fraternal dispensado ao caçula.
Na volta para casa, dentro do Maverick, alguns lugares foram alterados.
Andreas viajou ao lado de Astrogildo e Daniel veio atrás com Suzane.
Extrovertido e brincalhão, Astrogildo chamava o casal de pombinhos.
Suzane cava corada de vergonha e Daniel soltava sorrisos amarelos. No
nal da tarde, já no meio da viagem de retorno, começou a escurecer.
Fatigado, Andreas apagou. Suzane e Daniel conversavam baixinho coisas da
vida sentimental. Ele investigava a vida amorosa da moça:
— Você tem namorado? – ele quis saber.
— Não. E você? – devolveu.
— Também não.
Sentados lado a lado, face a face, Daniel e Suzane se conheciam cada vez
mais e melhor dentro daquele carro de motor barulhento. A proximidade do
rosto de Suzane fez Daniel ver de perto o quanto ela era linda. E toda aquela
beleza estava ali, à sua frente, ao alcance de um gesto. Vítima da timidez, não
tomou nenhuma atitude. O leve chacoalhar do carro antigo aliado à
paisagem bucólica exibida pela janela fez Suzane adormecer com o rosto
virado para o vidro. Daniel passou a apreciar o sono da sua princesa. O sol já
estava posto, mas uma claridade frouxa persistia, proporcionando um lusco-
fusco anunciando o anoitecer. Num rompante, Daniel pôs sua mão
levemente sobre a dela, que descansava num espaço da poltrona posto entre
eles. Ao se sentir tocada, Suzane despertou bem devagar, virou-se, cou
ainda mais próxima de Daniel e fechou os olhos estrategicamente. Já era
noite quando ele nalmente criou coragem e deu o primeiro beijo na boca
da garota. Foi um toque longo e afetuoso. Astrogildo, discreto, agrou o
casal pelo retrovisor e não fez nenhum comentário.
Daniel e Suzane desceram do carro em São Paulo de mãos dadas, com
“uma certeza plena e absoluta vinda do lugar mais escuro do coração:
estavam perdidamente apaixonados”. O trecho está entre aspas porque foi
escrito por Suzane em uma carta enviada a Daniel descrevendo com
detalhes essa viagem e o primeiro beijo do casal.
Com dois meses de namoro, já no ano 2000, Daniel e Suzane se viam
todos os nais de semana. Inicialmente, Manfred e Marísia não zeram
nenhuma restrição ao relacionamento. Pelo contrário, Daniel tinha a
credencial de melhor (e único) amigo de Andreas para ser aceito pelos pais
da namorada. O garoto, por sinal, já vinha abandonando a característica de
lho recluso graças ao fantástico mundo apresentado a ele por Daniel.
Estava mais alegre, mais falante. Ou seja, amigo de Andreas e namorado da
lha mais velha, Daniel passou a ser bem-vindo na casa dos Richthofen.
Todo nal de semana ele estava lá. Quando a mansão cou pronta, Marísia
resolveu não levar os móveis da casa velha. Tudo seria comprado novinho
em folha. No dia da mudança, a família toda fez um mutirão para arrumar o
novo lar. Daniel, solícito, ofereceu ajuda. As caixas de papelão com
documentos e objetos pessoais de Manfred e Marísia foram abertas por
Suzane e Daniel. Eles arrumaram roupas, sapatos e joias nas gavetas do
closet da suíte. Ao ver aquele excesso de objetos de valor, Daniel comentou
com Suzane sem a menor parcimônia:
— Nossa! Seus pais são ricos, né?
— Minha mãe ganha mais do que ele – con denciou Suzane enquanto
desencaixotava pertences dos pais.
Em três dias, a mansão de estilo neocolonial de dois pavimentos estava
toda arrumada. E que mansão! Da rua, a muralha de alvenaria de cinco
metros de altura e os portões de ferro – um para entrada de carros e outro
para acesso de pedestres – impediam a visão daquele imóvel suntuoso,
avaliado na época em 3 milhões de reais. Cinco pés de palmeiras-imperiais,
dois plantados na frente, dois na lateral e um na calçada, do lado de fora do
terreno, davam charme especial ao lugar. Quem entrava pelo portão
principal rumo à porta da sala era obrigado a caminhar sobre pedras
amarelas de São Tomé, depois contornar a ampla piscina revestida com
ladrilhos azuis e borda externa trabalhada em cerâmica terracota de três
cores. A porta principal era toda esculpida em madeira de lei e tinha entalhe
do brasão da família Richthofen, sobrenome nobríssimo na Alemanha. Ao
atravessar essa porta, havia uma ampla sala social com piso de tábua corrida
dividida em dois ambientes, com três sofás e uma poltrona marrom-trufa.
Toda a decoração do palacete foi feita em tons escuros, oscilando entre
as cores preta, avelã e carvalho profundo, dando um aspecto sombrio ao
ambiente. A área conjugada da sala continha uma estante feita de madeira
rústica, duas cadeiras pretas, mais um sofá coberto com tecidos de retalhos
nas cores vermelha, amarela e verde, além de diversos adornos. Todos
escuros. Da sala, duas escadas permitiam acesso ao piso superior. Uma delas
era ampla e ligava a sala ao corredor de passagem para os dormitórios. A
outra, em forma de caracol, seguia até um mezanino social onde havia mais
dois sofás. Haja sofá! Dois corredores da sala do piso inferior uniam outros
compartimentos da mansão. Um direcionava ao escritório, usado por
Manfred e Marísia para ler jornais e revistas. O outro dava acesso à espaçosa
cozinha, com um enorme balcão ao centro.
Na parede, ao lado da geladeira, havia um monitor exibindo imagens em
tempo real de toda a área externa da casa e até da calçada da rua, captadas
por quatro câmeras de segurança. Esses equipamentos não faziam gravações.
A mansão dos Richthofen possuía ainda sensores de infravermelho. Ligados,
esses dispositivos disparavam alarme sonoro quando alguém caminhava
pela casa. No alto das muralhas havia cercas elétricas de quatro os.
No piso superior cavam as três suítes da mansão. A mais ampla era de
Manfred e Marísia. Suzane e Andreas ocupavam as outras duas. A casa tinha
ainda uma despensa e uma churrasqueira na área externa, com cobertura,
além de um quintal espaçoso. No fundo havia uma garagem coberta com
vaga para dois carros e mais o quarto da empregada. Outra garagem coberta
com vaga para dois carros cava na lateral da casa, próxima à sala principal.
No dia da mudança, Daniel conheceu cada canto da mansão dos Richthofen
e suspirava, deslumbrado, como se estivesse no paraíso.
O primeiro ano de namoro de Suzane e Daniel foi todo abençoado por
Manfred e Marísia. No Natal de 2000, Daniel deu a Andreas um avião de
aeromodelo enorme – um dos maiores já montados por ele, avaliado em 5
mil reais. Esses gestos faziam o prestígio de Daniel aumentar junto à família
Richthofen. Marísia costumava fazer compras em um supermercado Extra
próximo à casa dos Cravinhos. No caminho, deixava Suzane na casa do
namorado. Nos nais de semana ensolarados, Daniel fazia churrasco com
Manfred na mansão. No entanto, aos poucos, o engenheiro e a médica
começaram a car incomodados com o excesso de intimidade do namorado
da lha. O pai foi o primeiro a verbalizar a queixa, em meados de janeiro.
— Marísia, esse namoro não está indo longe demais? Esse rapaz está
todo nal de semana en ado aqui em casa.
— Isso é namoro de adolescente, Manfred! Daqui a pouco as aulas
recomeçam e a relação esfria – previu Marísia, lembrando que Daniel foi
prestativo na mudança e que deixava Andreas mais alegre.
A matriarca estava enganada. O namoro não esfriava. Pelo contrário.
Esquentava cada vez mais e mais. A cada dia, os laços de união entre Daniel
e Suzane se fortaleciam. Quando estavam juntos, falavam em amor eterno.
Ela costumava perguntar a ele: “Até onde vai o seu amor por mim?”. Daniel
respondia sem pestanejar: “Até o in nito”. O exagero da relação poderia ser
medido pelas inúmeras cartas trocadas entre o casal quando cavam sem se
ver.
“Quando era criança, fazia uma ideia infantil do amor. Pensava
maravilhas desse sentimento. Mas não sabia nem o que era. Hoje eu sei o
que é o amor. Descobri com você. Agora, sim, sou uma mulher feliz. Esse
sempre foi o meu sonho, meu desejo mais profundo. Ser feliz”, losofou
Suzane numa carta enviada ao namorado em junho de 2000, quando viajou
com os pais para a Alemanha. Em resposta a uma dessas correspondências,
Daniel se revelava trágico ao escrever à amada. “Eu te amo tanto... mas tanto,
que a simples ausência da minha princesa faz eu ter ideias estranhas, como a
morte.” Os pensamentos fúnebres, segundo Daniel, eram incentivados pelo
espírito de um amigo morto há um ano que insistia em atormentá-lo. Ao ler
as demonstrações exacerbadas de amor do namorado, Suzane se via ainda
mais enredada e perdidamente apaixonada. Andreas era testemunha ocular
e conivente com aquela relação que, aos poucos, cava turva.
O atleta de aeromodelismo Edson Luiz Gaona, de 32 anos na época, foi
outra testemunha da relação obsessiva do casal. Amigo de longa data de
Daniel, ele o descreve como um rapaz retraído e acanhado. Ao conhecer
Suzane, sua personalidade teria mudado. Passou a ter uma devoção doentia
pela moça e se afastou dos amigos. Por ser onze anos mais velho do que
Daniel, Edson resolveu dar uns conselhos a ele. Quando estavam pilotando
lado a lado no Ibirapuera numa manhã de sábado, Edson iniciou um
diálogo:
— Daniel, você não acha que está se afastando do aeromodelismo?
— Não. Tanto que estou aqui.
— Os seus amigos estão se queixando que você não se dedica mais ao
esporte como antes. Não participa mais de campeonatos...
— É que antes eu estava solteiro. Agora estou namorando – justi cou,
interrompendo o amigo.
— Todo mundo aqui no parque está comentando que você está
obcecado pela Suzane. Cuidado. Você pode se machucar – advertiu Edson.
— Obrigado pelo conselho. Mas deixa que da minha vida cuido eu! –
cortou Daniel, pousando o avião e saindo de perto de Edson.
Caminhando para pegar o seu avião da pista, Daniel avistou Suzane
chegando ao parque. A jovem observou Edson de longe e perguntou ao
namorado o que eles tanto falavam. Daniel deu um beijo na garota e falou
sobre a reclamação dos amigos em relação ao namoro deles. Suzane
justi cou a fofocada com uma suposta inveja do amor que um sentia pelo
outro. Na primeira oportunidade, ela provocou Edson com racismo. Em
uma roda com dez pilotos, aproximou-se do amigo de Daniel. Ela o
cumprimentou com sarcasmo e em voz alta para todo mundo ouvir:
— Como vai, boi?
— Do que você me chamou? – perguntou Edson, indignado.
— Você é surdo? Te chamei de “boi”. Não é esse o seu apelido? –
retrucou ela, esboçando um sorriso de escárnio.
Quando Suzane chamou Edson de “boi”, todos – inclusive Daniel –
riram. Era um riso malicioso. Ao ser o centro de uma chacota
aparentemente pueril, Edson sentiu sua energia desaparecer. A gargalhada
parecia não ter m. Trêmulo, ele quis sentar no chão e chorar. Para não
passar recibo de fraqueza em público, preferiu se afastar. Foi à lanchonete
beber um copo de água para se recompor. O piloto tinha motivos de sobra
para refutar o apelido jocoso. Um ano antes, no auge da carreira no
aeromodelismo, Edson conseguiu o patrocínio da marca Bad Boy,
especializada em artigos esportivos. Para honrar o apoio da marca, ele
batizou o seu avião de Bad Boy. Como é negro, passou a ser chamado de
“boi” pelos pilotos, em alusão à cantiga popular Boi da cara preta.
O apelido já estava colado em Edson quando resolveu tomar uma
providência. Chamou seus amigos separadamente para uma conversa séria.
Revelou car extremamente ofendido, incomodado, constrangido e triste ao
ser chamado por essa alcunha. Para os mais íntimos, confessou car com a
autoestima debaixo do chão ao ter a cor da sua pele usada como
instrumento para diminuí-lo. Fazer as pessoas cessarem com o apelido
ofensivo era uma questão de honra para Edson. Dez anos antes, quando o
piloto tinha 22 anos, um senhor branco muito rico que ia ao Clube de
Aeromodelismo do Ibirapuera disse a ele que o local não deveria ser
frequentado por pessoas pretas, a não ser que se ocupassem da limpeza dos
aviões ou da segurança. Depois da ofensiva, os amigos deixaram de se referir
a Edson com termos racistas. Até Suzane desenterrar o apelido. No entanto,
o piloto não deixou barato. Com tom de voz rme, esbravejou:
— Suzane, não me chame assim. Se você não conseguir me chamar pelo
nome, pre ro que não me dirija mais a palavra.
— Nossa, desculpa. Fica calmo. Não sabia que isso tirava um boi do
sério. Ops! Desculpa mais uma vez! – continuou provocando.
Para não dar uma bofetada na cara de Suzane, Edson resolveu sair.
Daniel foi atrás dele e o abordou:
— O que está pegando, boi? – desa ou Daniel.
— Daniel, olha, você é muito novo. Vai descobrir que mulheres como a
Suzane entram e saem da nossa vida. Quem ca são os amigos.
— Não. A Suzane é a mulher da minha vida. Vou morrer ao lado dela! –
exagerou Daniel.
Edson e Daniel nunca mais se falaram. O namoro com Suzane o isolou
de tudo e de todos.

* * *

Na última semana das férias, Suzane e Andreas frequentavam


assiduamente a casa dos Cravinhos. Nesse período, zeram uma descoberta:
apesar do conforto da mansão dos Richthofen, a humilde residência de
Daniel – um sobrado localizado numa vila simples ao lado do Aeroporto de
Congonhas – era muito mais aconchegante. Havia uma explicação para esse
paradoxo. Manfred e Marísia impunham hora para os lhos acordarem,
tomarem café, almoçarem e estudarem mesmo nos nais de semana. Não
era permitido ouvir som alto nem pôr os pés no sofá. Nas raras vezes em que
Andreas saía de casa, os pais marcavam a hora exata para ele voltar. Nunca
depois das 18h. Já na casa dos Cravinhos, podia-se tudo sem restrição de
horário. Foi onde Suzane fumou maconha pela primeira vez junto com o
irmão de Daniel, Cristian Cravinhos, de 24 anos na época.
Extrovertido e sensual, Cris, como era chamado pelos amigos, era o
oposto de Daniel. Arruaceiro, ensino fundamental incompleto, usava drogas
e bebia todos os dias na frente dos pais. Fazia aulas de bateria, surfava e
orgulhava-se de ser informante da polícia e poder passear com os
investigadores nas viaturas. Tinha espírito aventureiro e vivia em academia
trabalhando o corpo. Des lava em motos potentes pela cidade. A cada m
de semana, Cristian mergulhava numa aventura eletrizante diferente.
Quando não estava saltando de paraquedas, arriscava-se em pulos de bungee
jump. Para ter mais liberdade, abriu mão da casa dos pais e foi morar com a
avó em Moema. No campo amoroso, vivia uma relação extremamente tensa
com a sua namorada, Nathalia. No primeiro ano de namoro, ela engravidou
e Cristian festejou a ideia de ser pai. Apaixonado e radiante, foi até a
oricultura e comprou um buquê de rosas para dar à sua amada. Ao chegar
na casa dela, quis fazer uma surpresa. Abriu a porta da sala e entrou na
ponta dos pés para não fazer barulho.
Do corredor, Cristian ouviu uns gemidos. Intuitivamente, soltou as rosas
no chão. Caminhou pelo corredor até a porta do quarto, que estava
entreaberta. Lentamente, foi entrando em silêncio. Para seu espanto,
Nathalia estava transando com um amigo dele. Flagrado, o casal levou um
susto. Cristian, então, pegou uma pistola da cintura e, nervoso, alternava a
mira entre as cabeças dos dois traidores, numa dúvida cruel para decidir
quem deveria levar o primeiro tiro. Destruído emocionalmente, começou a
chorar feito uma criança e resolveu não disparar. Ao terminar o namoro
com Nathalia, exigiu a interrupção da gravidez. Ela não aceitou. Com medo,
Nathalia se mudou para Londrina, no Paraná, onde teve o bebê.
Fascinada, Suzane ouvia as histórias de Cristian como quem nunca havia
experimentado emoções semelhantes e passou a achar sua vida vazia.
Começou a cultivar ideias para tornar a sua existência no mundo mais
intensa e, involuntariamente, levou o irmão de carona nessa viagem pessoal.
Em uma dessas visitas à casa de Cristian, Suzane fumou maconha como
nunca tinha fumado antes. Por volta das 20h, recebeu uma ligação da mãe
no telefone celular perguntando por onde ela andava e dando ordens para
voltar para casa imediatamente. Sob efeito de drogas, cou apavorada com a
possibilidade de a mãe perceber o cheiro forte de maconha.
Daniel arrancou o cigarro da mão dela e os dois saíram para tomar um
ar. Uma hora depois, o casal estava a caminho da casa de Suzane. De
repente, Daniel parou o carro e agarrou a namorada de uma forma
arrebatadora. Ela correspondeu. Inesperadamente, o piloto en ou a mão por
dentro da bermuda da garota e acariciou o seu sexo com agressividade.
Suzane se contorceu de prazer e apalpou o namorado por cima da roupa. O
clima quente esfriou quando Suzane se lembrou da bolsa esquecida na cama
de Daniel. Voltaram para buscar. A casa estava vazia. Ele decidiu tomar um
banho e pediu a ela que o acompanhasse até o quarto. Obediente, Suzane
não contestou. Daniel entrou no banheiro e deixou a porta entreaberta.
Suzane tirou a roupa e cou de calcinha e sutiã, esperando o namorado na
cama de casal. Subitamente, Daniel saiu do banho apenas de toalha, todo
molhado. Sem ao menos beijá-la, ele tirou a calcinha dela, a jogou de costas
sobre a cama, arrancando-lhe a virgindade e deixando uma imensa mancha
de sangue no lençol branco. Logo em seguida, ele voltou ao banheiro para se
lavar, largando a garota prostrada na cama, chorando em silêncio.
Cinco anos depois, em juízo, quando foi questionada sobre a perda da
virgindade, Suzane relatou como foi a sua primeira experiência sexual:
“Como toda menina, eu sonhava com um príncipe encantado, uma noite
linda e algo romântico. De repente foi assim. Pensava que seria algo bonito e
não assim, de qualquer jeito”. Tanto Suzane quanto Daniel sustentam não ter
havido estupro na cena relatada anteriormente. Após o banho, Daniel cou
com a alma lavada, como se tivesse renascido. Cobriu Suzane com beijos de
amor. Abraçado à amada, sussurrou em seu ouvido:
— Queria que o mundo parasse agora e que nele só existissem nós dois.
Sua pele, seu cabelo, seu cheiro...
Calada, Suzane enxugou as lágrimas. Ficou olhando intensamente para o
namorado. A partir daquele momento, começou a pensar e sonhar em
sincronismo com Daniel. Em uma carta, ela escreveu que, depois daquela
noite, estava fechada em si mesma. Decidiu que seria para sempre só de
Daniel, e Daniel seria para sempre só dela. “E nada no mundo jamais
separaria aquele casal. Ninguém segura o verdadeiro amor.” No dia seguinte,
passaram a usar anel prata de compromisso no dedo anelar da mão
esquerda.
O casal parou o carro em frente da mansão dos Richthofen por volta das
23h. Entraram de mãos dadas na sala e enfrentaram Marísia juntos. A
médica estava calma, para espanto de Suzane. Pediu educadamente para
Daniel se retirar da sua casa, pois precisava falar a sós com a lha.
Provocativo, ele deu um beijo longo e molhado na boca da amada na frente
de Marísia e saiu com um ar de deboche. Manfred estava descendo as
escadas quando Marísia começou a interrogar:
— Você e o Daniel estão namorando sério?
— Sim! – respondeu ela com a mais absoluta das certezas.
— Pois então acabe esse namoro o mais rápido possível! – determinou
Marísia.
— Não posso! Eu o amo! – justi cou.
— Eu não quero mais o Daniel aqui em casa! – ordenou Marísia.
Manfred reforçou a proibição e justi cou:
— Suzane, o Daniel não é homem para você. Ele está em outro nível
social, muito abaixo do nosso. Olhe para você e olhe para ele. Você já foi à
Europa, aos Estados Unidos. Fala uentemente inglês e alemão e ele mal fala
português. É um tal de “nós vai” pra cá, “a gente vamos” pra lá. Não estuda
nem trabalha. É um vagabundo! Descobri até que o pai dele não é juiz coisa
alguma! Você merece um namorado com um nível socioeconômico igual ao
nosso.
Em silêncio, Suzane subiu as escadas de acesso ao quarto e deixou os
pais falando sozinhos na sala. Mais tarde, do corredor do pavimento
superior da mansão, ela ouviu os dois discutindo enquanto bebiam uísque
na biblioteca. Manfred culpava Marísia por ter deixando a relação de Suzane
e Daniel evoluir até aquele ponto. Entre um gole e outro, debatiam:
— Eu avisei que essa relação estava cando séria e você disse que era
coisa de criança! – esbravejou o pai.
— Não tinha como prever! – defendeu-se Marísia.
— Esse namoro vai acabar nem que a gente mande a Suzane estudar na
Alemanha! – decidiu Manfred.
Na verdade, após a inauguração do primeiro trecho do Rodoanel,
Manfred e Marísia planejavam se mudar para Berlim. Com o namoro de
Suzane e Daniel evoluindo a passos largos, o casal pensava na hipótese de
mandar a lha para o exterior antes. Esse plano de vida foi compartilhado
por Manfred com o colega de trabalho Walter Nimir. “Ele estava
profundamente incomodado com esse namoro pelo fato de o Daniel não
estudar e falar português errado. Parecia um marginal, dizia o Manfred”,
recordou-se Nimir.
Ao ouvir escondida os planos dos pais, Suzane traçou uma estratégia:
envenenar a relação de Manfred e Marísia para forçar uma separação. Certo
dia, chamou a mãe num canto e fez uma revelação surpreendente:
— Mãe, o papai tem uma amante! Eu vi ele com uma mulher no carro!
— O quê?! Você tem certeza? – perguntou Marísia.
— Tenho! Certeza absoluta! – disse a lha, enfática.
A melhor amiga de Marísia era uma ex-paciente chamada Cláudia Sorge,
de 53 anos na época. Ela fez tratamento psiquiátrico com a médica durante a
década de 1990. Num domingo de sol, encontrou Marísia na praia e
começaram uma amizade. As duas passaram a frequentar restaurantes e
salas de cinema, gerando burburinhos de viverem uma relação homoafetiva.
À amiga íntima, Marísia comentou a acusação feita pela lha e lamentou o
fato de Manfred ter perdido o interesse sexual por ela. Ele bebia todos os
dias e passava a noite em frente à televisão. Cláudia contemporizou o drama
da médica sugerindo um engano por parte de Suzane. Na semana seguinte, a
lha voltou a acusar o pai de traição, aumentando inclusive o tom da
denúncia:
— Mãe, agora eu vi ele entrando num motel com uma moça jovem!
— Isso não é verdade! Aliás, não quero saber – esquivou-se a psiquiatra.
— Isso, tape o sol com a peneira! – provocou a lha.
Em seguida, Suzane foi fazer fuxico com o Manfred.
— Pai, tá todo mundo comentando que a mamãe tá tendo um caso com
uma paciente dela. Será que ela virou lésbica?
— O quê?! Você está louca, menina?!
Manfred não levou a informação a sério. Pelo menos não demonstrou.
Com a suspeita de estar sendo traída, Marísia passou a sair à noite na
companhia de Cláudia, enquanto Manfred cava bebendo em casa,
descon ado. Os novos hábitos de Marísia provocaram desavenças com o
marido. Suzane ouvia as discussões dos pais torcendo para haver uma
separação. Ela comparava o ambiente familiar na sua casa com o lar dos
Cravinhos, onde não ocorriam brigas. Para ela, a casa de Daniel era o
paraíso. A sua, o inferno.
Suzane só não teve mais tempo para sofrer por amor porque no ano
seguinte teria de enfrentar o vestibular. Meteu na cabeça que, se passasse em
Direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC), os pais não a mandariam
para o exterior. Propôs ao namorado verem-se apenas uma vez por semana e
mergulhou num curso preparatório para o vestibular. Quando Manfred e
Marísia estavam no trabalho, Daniel ia escondido à mansão dos Richthofen
só para “dar um beijinho” na amada e brincar um pouco com Andreas. Em
algumas ocasiões, Daniel levava o adolescente para andar de moto pelas ruas
de São Paulo. Quando Andreas fez 14 anos, o namorado de Suzane montou
uma mobilete com parte das peças compradas com o dinheiro do garoto.
Para esconder dos pais, Andreas manteve o ciclomotor na casa do cunhado.
O mergulho nos estudos fez Suzane passar no curso de Direito na PUC
em 2002, cobrindo os pais de orgulho. Com o êxito, a jovem ganhou um Gol
dourado novinho em folha. Manfred e Marísia não viam a cara de Daniel
havia muito tempo, embora ele e Suzane continuassem se encontrando às
escondidas. Em maio, os pais contaram aos lhos os planos de uma viagem à
Escandinávia para julho. O casal deixou com Andreas e Suzane a decisão de
acompanhá-los ou não. Os dois se entreolharam descon ados. Nunca eles
tiveram esse tipo de opção. Pediram para car no Brasil durante as férias e
os pais aceitaram. A notícia da viagem dos Richthofen para o exterior foi
festejada por Suzane e Daniel. O plano secreto do casal era morar junto feito
marido e mulher na mansão por um mês.
— Imagine nós dois juntos naquele casarão! – sonhava Daniel.
— E sem os meus pais por perto, em plenas férias... – completava
Suzane.
— Você já reparou que quanto mais os seus pais proíbem o nosso
namoro, mais a gente se apega? – observou Daniel.
Para não levantar nenhuma suspeita, Suzane retirou do dedo o anel de
compromisso e passou a se encontrar com Daniel às escondidas. Ela saía de
casa para ir à faculdade pela manhã, mas desviava o caminho praticamente
todos os dias, rumo à casa de Daniel. A lista de desculpas inventadas por
Suzane para se ausentar de casa era extensa. Mentia ao dizer aos pais ser
monitora do curso e contava fazer trabalhos intermináveis na casa de
colegas. Quando as justi cativas cavam repetidas, ela os enganava forjando
aulas de reforço. Suzane fazia caratê duas vezes por semana – chegou a ser
faixa preta –, mas passou a trocar os treinos por visitas ao namorado. Na
casa dos Cravinhos, além de maconha, ela já usava ecstasy, LSD e cheirava
até os solventes usados pelo namorado na fabricação de aeromodelos, além
de beber cerveja e vodca. Astrogildo acobertava os encontros e fazia
discursos de ode ao amor. “Essa união é indissolúvel”, comentava dentro de
casa com a esposa, Nadja Cravinhos. Sensata, ela era mais cautelosa e
conseguia prever sinais de perigo iminente naquela relação obsessiva. “Em
minha opinião, uma mulher consegue tudo de um homem. Ela pode levá-lo
ao sucesso e à glória. Ou à desgraça total”, comentou quando foi perguntada
o que achava do namoro do lho.
Na faculdade, Suzane só tinha uma amiga, Amanda Costa, de 18 anos.
Ela percebeu o isolamento da colega e se encarregou de tentar enturmá-la.
As duas frequentavam o bar em frente à PUC, onde os alunos veteranos
bebiam cerveja e tocavam violão. Ao ser cortejada por um colega, Suzane
sentiu-se incomodada, despediu-se da amiga e saiu às pressas. No dia
seguinte, explicou à Amanda que amava Daniel de forma tão intensa a ponto
de não conseguir car longe dele um minuto sequer. Confessou viver esse
amor às escondidas porque os pais eram terminantemente contra. Sob efeito
de drogas, Suzane disse à Amanda que, às vezes, os acontecimentos de uma
vida têm caminhos misteriosos e incompreensíveis. A amiga, apesar de se
dizer sensitiva, não entendia patavina e também não pedia explicações para
essas frases enigmáticas. Uma das cenas mais marcantes envolvendo as duas
remete ao aniversário de 18 anos de Suzane. Não houve festa, mas Amanda a
cumprimentou na faculdade com um abraço bem apertado e um carinho
fraternal. Até então, apesar de muito próximas, as duas só se
cumprimentavam com um beijo mecânico no rosto. Impactada com o afeto
caloroso, Suzane pediu a Amanda que nunca mais zesse aquilo. As duas
chegaram a discutir sobre aquele abraço na saída da aula. A aniversariante
foi direta:
— Eu queria pedir a você para nunca mais me abraçar. Fiquei sem graça.
Constrangida, Amanda cou calada por uns segundos. Após o rápido
silêncio, questionou:
— Desculpa! Fiz algo de errado? Tá tudo bem?
A réplica de Suzane deixou Amanda chocada e comovida:
— Amiga, não tem nada de errado com você. O problema é comigo. Os
meus pais nunca me abraçaram, nunca me beijaram dessa forma. Aí co
sem saber como reagir quando alguém me dá um abraço mais caloroso. Não
sei se devo dar um beijo de volta, se tenho de agradecer ou se devolvo o
carinho. Não sei nem quanto tempo dura um abraço, acredita?
— Sua mãe nunca te deu um abraço? – perguntou Amanda, incrédula.
— Nunca! Nunca! Nunca! – respondeu Suzane.
Amanda sentiu uma profunda pena da estudante. Mas o clima pesado
daquela conversa foi quebrado rapidamente com um pedido inusitado de
Suzane. Ela disse à amiga que, para viver o amor proibido com Daniel,
precisaria de ajuda:
— O que eu posso fazer? – quis saber Amanda.
— Preciso que você minta.
— Isso eu não posso fazer – avisou a amiga.
— Você não vai me ajudar? Então você é contra o amor – advertiu
Suzane.
— Eu não sou contra o amor.
— É sim. Por isso você está sozinha, encalhada – provocou.
O poder de convencimento e de manipulação de Suzane era
extraordinário. Para provar não ser contra o amor, Amanda começou a
ajudar a amiga a enganar Marísia. Nessa época, Cristian estava com 27 anos
e namorava Maria Lúcia, uma garota de 16 anos. A relação deixava os pais
da menina apavorados por causa da diferença de idade. Mas havia um
consenso na família da adolescente: proibir a relação seria pior. Mesmo
comprometido, Cristian cou encantado com Amanda. Para “juntar” o
casal, Daniel e Suzane inventaram uma viagem à Praia Brava, no litoral
norte de São Paulo. A ideia era fazer uma aventura. Pegaram barracas e
partiram de carro nas primeiras horas do sábado. Fizeram trilhas,
mergulharam, tomaram sol e à noite acenderam uma fogueira. Na hora de
dormir, segundo Cristian, Amanda foi para a barraca dele e transaram.
Daniel e Suzane caram na outra. Ao amanhecer, zeram uma sopa. Ao
redor de uma fogueira, Daniel contou que o balneário era deserto e
perigoso. Por isso, havia levado uma Beretta calibre 22 carregada. Suzane e
Cristian reagiram naturalmente ao ver o revólver, mas Amanda levou um
susto.
— Essa arma é de brinquedo? – quis saber.
— Não! É de verdade! – atestou Daniel.
Após o almoço, descontraídos, Suzane e Daniel chegaram a um
consenso: estavam cansados das artimanhas operadas para driblar os pais
dela. Cristian sugeriu à Suzane sair de casa. No meio daquele programa de
pobre, ela ponderou não suportar a vida sem conforto. Para aliviar o calor,
os quatro mergulharam nus no mar.

* * *

Os laços de amizade entre Daniel e Andreas se estreitavam à medida que


o tempo passava, principalmente quando ambos cometiam atos
imprudentes e extremamente reprováveis. O namorado de Suzane
costumava passar na calada da noite de carro na mansão dos Richthofen
para apanhar o cunhado. Sorrateiramente, Andreas pegava quatro
travesseiros grandes, os alinhava sobre a cama e jogava a coberta por cima
para fazer crer que ele estava lá, dormindo feito um querubim. E ganhava a
rua. Cada madrugada era um programa diferente. Para um garoto de 15
anos, a fuga noturna parecia um delírio. Numa noite, o moleque passeava de
mobilete pela cidade. Na outra, jogava games violentos em lan houses.
Quando não, passava horas fumando maconha com a irmã, Daniel e
Cristian. Por volta das 4 horas da madrugada, ele era deixado em casa sem
que os pais suspeitassem.
Um dos passatempos preferidos de Daniel e Andreas era pegar a
espingarda de pressão do namorado de Suzane e atirar chumbinho nos
passarinhos do quintal da mansão dos Richthofen. Os dois orgulhavam-se
de, numa única tarde, abater 20 aves. Fascinado com o poder avassalador de
uma arma de fogo, Andreas con denciou a Daniel que o pai mantinha um
revólver escondido num fundo falso do closet da suíte principal. Nessa
seara, a irresponsabilidade de Daniel não tinha limites. Quando Andreas
completou 15 anos, o piloto presenteou o garoto com a Beretta levada por
ele à Praia Brava. O adolescente explodiu de tanta felicidade. Andreas e
Daniel abandonaram a espingarda e passaram a usar a minipistola para
matar passarinhos. Para esconder a arma dos pais, o garoto resolveu guardá-
la dentro de um urso de pelúcia, no quarto da irmã. A veneração de Andreas
por Daniel era indescritível e in nita. A vida extraordinária proporcionada
pelo cunhado fez o adolescente tomar uma decisão: defenderia o namoro do
amigo com a sua irmã de forma cega e incondicional. E foi o que fez por um
longo tempo.
Era comum ver Daniel no pátio da PUC à procura de Suzane. Os colegas
de classe cavam incomodados com a excessiva demonstração de afeto do
casal em lugares públicos. Quando Suzane apresentava Daniel a uma colega,
o piloto fazia declarações de amor melosas e dramáticas. Dizia, por exemplo,
preferir a morte a perder a namorada. Com Amanda, Suzane compartilhava
planos para o futuro: sonhava em casar e ter lhos com o namorado, mas
não via essa possibilidade ocorrer tão cedo por causa do controle dos pais.
Certo dia, a estudante saiu de casa dizendo à Marísia que iria à faculdade.
No entanto, ela foi mais uma vez para a casa do namorado. De delidade
canina e manipulada, Amanda chegava a falsi car a assinatura da amiga nas
folhas de frequência das aulas. Nos trabalhos em grupo, Suzane não
pesquisava, não escrevia uma linha sequer, muito menos fazia defesas orais.
Mas Amanda sempre colocava o nome dela como se tivesse participado das
tarefas. Como os demais alunos passaram a condenar a fraude de Amanda,
Suzane foi obrigada a frequentar as aulas para não ser reprovada.
Enciumado, Daniel usava o telefone para repreendê-la durante as aulas.
— O que tanto você faz nessa faculdade? Vem aqui para casa!
— Não posso. Estou quase reprovando – justi cava Suzane.
— Você não está olhando para outros caras aí, está? – questionava ele,
enfurecido.
Certa vez, Daniel deu uma incerta na faculdade e arrancou Suzane do
meio da aula, deixando a turma de queixo caído. Emocionado, contou ter
acabado de ouvir de uma cartomante uma previsão linda para os dois: eles
eram tão apaixonados que, num curto intervalo de tempo, passariam a ter
uma só alma. Enlouquecido, falava aquelas palavras com tanta convicção
que era impossível a namorada não acreditar. Daniel implorou para Suzane
também visitar a vidente para se certi car se ouviria as mesmas palavras.
Em um primeiro momento ela hesitou, argumentando não acreditar nessas
coisas, mas a insistência do aeromodelista foi tão grande que Suzane acabou
cedendo. A estudante foi sozinha à cartomante. Durante a consulta, ouviu da
feiticeira que viveria uma união eterna com Daniel. A velha senhora mexia
no baralho e puxava uma carta, sempre pronunciando frases de efeito na
sequência: “Você e o Daniel estão numa catástrofe sentimental”. No nal da
consulta, a bruxa aconselhou Suzane a valorizar pequenos gestos de grande
valor.
Na saída do congá da vidente, Daniel a esperava na calçada com uma
or, deixando-a comovida. No dia seguinte, Suzane comentou as previsões
com Cristian. Rindo, o cunhado revelou em tom de segredo: o Daniel estava
com tanto medo de perdê-la que pagou à cartomante para ela fazer aquelas
falsas previsões. Suzane cou indignada, mas encarou a insensatez do
namorado como mais uma prova desesperada de amor. Era incrível como, a
cada atitude insana de Daniel, mais Suzane o amava.
Acontece que o cerco começava a se fechar para aquele amor proibido.
Uma semana depois de consultar a cartomante, Suzane foi surpreendida no
café da manhã do Dia das Mães de 2002. Marísia perguntou se a lha tinha
notícias de Daniel. Suzane mentiu de forma convincente. Disse não vê-lo
desde o (suposto) término do namoro. Marísia percebeu que a lha não
usava mais o anel de compromisso e suspirou aliviada. Mesmo não sendo
vidente, a médica fez previsões para a lha:
— Você vai encontrar um homem à sua altura. Do seu mesmo nível
social e intelectual. É uma questão de tempo, lha.
Com um riso debochado no rosto, Suzane saiu da mesa dizendo precisar
encontrar Amanda. Fariam um trabalho da faculdade em pleno domingo.
Mas, como sempre, pegou o carro e seguiu rumo à casa de Daniel. Marísia,
movida pela descon ança e usando o seu feeling de terapeuta, começou a
re etir. Percebeu que a lha nunca demonstrou, em tempo algum, um apo
de sofrimento pela suposta falta de Daniel e passou a suspeitar dessa
ausência de tristeza em Suzane. A mãe começou a investigar a vida da lha.
Primeiro, perguntou a Andreas se Suzane e Daniel estavam se encontrando.
O garoto respondeu peremptoriamente que “não”. Jamais Andreas entregaria
o casal. Até porque ele faturava alto com aquela relação clandestina.
Receosa com a possibilidade de a lha e Daniel estarem juntos, Marísia
ligou para desabafar com Cláudia. Por telefone, a amiga-paciente
tranquilizou a médica mais uma vez, dizendo acreditar em Suzane. Ainda
assim, Marísia resolveu tirar a prova dos noves. Telefonou para Amanda e
perguntou se a lha já havia chegado por lá. Cúmplice das armações, a
estudante respondeu convincentemente que Suzane estava lá e ainda
arriscou alto ao blefar:
— A senhora quer falar com ela? Posso chamá-la...
— Não, não! Não precisa – respondeu Marísia, desligando o telefone.
A ita, Amanda ligou para o celular de Suzane para alertá-la. Marísia
estava próxima da verdade. Suzane agradeceu o empenho da amiga em
sustentar as suas histórias falsas e elogiou a estratégia inteligente usada por
ela para enganar a mãe. Amanda confessou estar incomodada com o novelo
de mentiras. Suzane então combinou de passar na faculdade no dia seguinte
para conversar com a amiga sobre esse desconforto. Ao desligar o telefone,
foi transar com Daniel no quarto dele e caiu no sono. Por volta das 19 horas,
levou um susto ao ver mais de dez ligações não atendidas da mãe no celular
e uma mensagem curta e direta: “Onde você está?”. Suzane não respondeu e
resolveu ir embora imediatamente. Ao caminhar até o carro, estacionado na
entrada da vila onde residia o namorado, sentiu um arrepio na espinha
quando viu de longe uma folha de papel-ofício branca presa no vidro por
uma das palhetas do limpador de para-brisa. Nervosa, Suzane arrancou o
papel e conseguiu reconhecer a caligra a da mãe. No bilhete, estava escrito
em letras garrafais a seguinte exclamação: TE PEGUEI!
Um fantasma, um jardim, diabos e um corpo
de cara virada

A
o ver o bilhete escrito por Marísia colado no para-brisa do carro,
Suzane cou estática feito o Cristo Redentor. Atônita, não soube o que
fazer nem para onde ir. Depois de pensar bastante, resolveu enfrentar
a mãe e foi para casa. Marísia a recebeu aos berros na sala, chamando-a de
mentirosa e desonesta. Esbravejou, acusando a lha de só lhe dar desgosto.
Em outro ato, a médica foi dramática.
— Suzane, esse rapaz está te levando cada vez mais para um caminho
ruim. Agora você deu para mentir. Abra os olhos, pelo amor de Deus! Esse
vagabundo vai te levar ao fundo do poço. E quando você estiver lá, será
tarde demais. Sua vida estará arruinada de forma de nitiva!
Suzane ouvia calada. Não chorava nem esboçava qualquer emoção.
Apenas olhava xamente para o chão. Manfred chegou da rua quando
Marísia estava no nal do sermão. Aos prantos, a médica fez um resumo da
sua decepção ao marido:
— Eles não estão rompidos! Ela passou o dia na casa daquele ordinário.
Saiu de casa dizendo que ia estudar e foi para a casa dele – relatava Marísia,
fumando e bebendo uísque.
Na verdade, a mãe já investigava a lha fazia tempo. Havia descoberto
inclusive o sumiço de Suzane da academia de caratê. Manfred pediu para a
esposa se acalmar, pegou um copo de uísque no bar e engoliu a bebida de
uma só vez. Ergueu a cabeça de Suzane pelo queixo usando o polegar e fez
uma ameaça derradeira. O tom foi suave, porém rme:
— Ouça bem o que vou dizer porque não vou falar duas vezes: se você se
encontrar novamente com aquele malandro, você será deserdada. Ouviu
bem? Isso signi ca que eu vou te excluir da minha herança! Não vai receber
um tostão!
— Eu não tenho medo das suas ameaças! – retrucou Suzane, agressiva.
Tomado por uma intensa emoção jamais experimentada, Manfred cou
fora de si. Numa fração de segundo, o engenheiro estava totalmente
descontrolado. Tão rápido quanto um relâmpago, o pai ergueu o braço
direito e sentou uma bofetada colossal no rosto da lha em pleno domingo,
12 de maio de 2002, Dia das Mães. O tapa foi tão forte que ela quase se
desequilibrou e por pouco não foi ao chão. Era possível ver os dedos do pai
gra tados em vermelho no rosto branco da lha. Reinou um silêncio
inquietante na casa. Incrédula, Marísia cou tão impactada com a cena
violenta jamais vista naquele lar que parecia estar anestesiada. Inerte, soltou
o copo de bebida ao chão e levou as duas mãos à boca, espantada. O pai,
sem ação, parecia ter congelado.
Uma das características mais marcantes da personalidade de Suzane é a
capacidade de dominar os nervos e manter as emoções inteiramente sob
controle e ocultas. Dessa vez, porém, não conseguiu. Trêmula e colérica,
encarou o pai vertendo lágrimas. Estava sufocada num choro contido.
Manfred nunca havia batido nos lhos, tanto que cou desnorteado após o
ato irracional. Suzane subiu as escadas sem falar uma palavra, entrou no
quarto, fechou a porta e trancou à chave. Na madrugada, já recomposta, saiu
de casa e foi encontrar Daniel na casa dele. Chegou com uma mochila
contendo mudas de roupas, mostrou a marca da violência paterna e
anunciou:
— Nunca mais piso naquela casa! Nunca! Nunca! Nunca! Vou morar
aqui com vocês!
Astrogildo e Nadja se entreolharam e consolaram Suzane. Ponderaram
que fugir de casa não seria a melhor solução para a crise. Astrogildo, o falso
juiz, argumentou como se fosse um profundo conhecedor das leis:
— Suzane, não é bem assim. Você tem menos de 21 anos. Pela legislação
vigente, você ainda é menor. Só poderia sair de casa se fosse emancipada.
Seu pai vai mandar te buscar e pronto! Acabou! Você pode car tranquila
que o Daniel tem grandes planos para você.
Na cabeça de Suzane, os planos do namorado eram aqueles de todas as
mulheres apaixonadas da sua idade: casar, morar no paraíso e ter lhos
lindos. Daniel endossou o argumento dos pais e implorou para a amada
voltar. Fez questão de levá-la de volta para casa. No carro, em frente à
mansão dos Richthofen, Daniel fez uma promessa à namorada:
— Em breve viveremos juntos para todo o sempre.
A jovem desceu do carro e subiu para o quarto. Passou a madrugada em
claro pensando na vida de casada e na liberdade em não mais depender dos
pais. No café da manhã, encarou a família ainda com a marca do tapa na
bochecha. O hematoma apresentava-se numa coloração roxa esverdeada. A
refeição parecia um funeral. O pai quebrou o silêncio pedindo desculpas. A
mãe cou imóvel e Andreas parecia não ter língua. Suzane estava revoltada.
Apesar do seu tremendo autocontrole, custou-lhe esforço disfarçar a própria
raiva. Dissimulada, ngiu ter feito por merecer aquela bofetada. Aos pais, fez
um juramento com uma convicção tocante, porém extremamente falsa.
— Eu juro, juro, juro! Juro a vocês. Nunca mais vou encontrar o Daniel.
Nunca! – anunciou ela, ngida.
A passos curtos e cabisbaixa, Suzane foi para a faculdade. Do caminho,
mandou uma mensagem ao namorado com a sugestão de não se
encontrarem por pelo menos um mês. Daniel respondeu que não suportaria
a separação e ainda ameaçou abandoná-la. Suzane pediu calma e o jovem
falou pela enésima vez em suicídio. Ela contabilizava em silêncio a
possibilidade de car desamparada nanceiramente, caso realmente fosse
deserdada pelos pais. Se tinha algo do qual Suzane e Andreas não tinham
queixa era da falta de recursos. Manfred era mão aberta com os lhos e
ambos ganhavam mesada. Além do valor xo mensal, o pai dava dinheiro
vivo aos lhos sempre que pediam. Às vezes, não precisavam dizer onde e
nem como iriam gastar.
Manfred havia passado por uma experiência terrível no início de 2002.
Um assaltante o sequestrou em plena luz do dia. Com uma arma camu ada
e apontada para ele, o bandido o obrigou a passar em vários caixas
eletrônicos para fazer saques, até conseguir, na época, quase 10.000 reais em
dinheiro vivo, retirados de quatro contas diferentes. A partir desse episódio,
Manfred passou a ter aversão aos bancos 24 horas, comprou uma arma e
começou a guardar dinheiro em casa. Toda a família tinha acesso à carteira
do pai e a uma gaveta do closet abarrotada de cédulas para as despesas do
dia a dia. Com esse dinheiro, Suzane passou a cobrir Daniel de presentes
caros. Comprava óculos de grifes famosas, como Oakley, uma das marcas
esportivas preferidas por jovens da classe média, e celulares so sticados.
Pagava as contas de telefone do piloto e mandou trocar até o piso de carpete
do quarto dele por porcelanato. Apaixonada, usou recursos depositados
pelos pais em sua caderneta de poupança para dar entrada em um Fiat Palio
novo para Daniel. O restante do valor do veículo foi parcelado em inúmeras
prestações, todas pagas por ela. Certa ocasião, Amanda viu Suzane quitando
um boleto de Daniel. A sós, questionou a amiga:
— Su, o Daniel não trabalha e tem carro novo, celular novo e viaja. Onde
ele arruma dinheiro?
— Eu pago tudo – revelou.
Era verdade. Suzane bancava Daniel. À medida que mergulhava na
relação doentia, o piloto foi largando a prática de aeromodelismo e as
encomendas de aviões começaram a minguar em seu ateliê. Certo dia, ele
comprou para a sua cama dois travesseiros de plumas e mandou pôr nas
fronhas estampas da foto do casal. Suzane adorou o carinho. Na sequência,
porém, ele pediu dinheiro a ela para pagar a compra. A jovem não
reclamava de sustentá-lo. Pelo contrário. Era a forma de manter-se no
controle da relação. Quando o pai ameaçou privá-la da herança, Suzane só
pensava na penúria em que sua vida seria transformada. Um dia após levar o
tapa, a garota ouviu os pais tendo o seguinte diálogo no quarto, por volta das
21 horas:
— Ela tem um futuro brilhante, mas o Daniel está afastando a nossa lha
desse caminho – disse Marísia.
— Eu não vou deixar. Vamos mandá-la para a Alemanha já no nal do
ano. Amanhã mesmo vou pedir para a minha secretária cotar as passagens
áreas – planejou Manfred.
A ita, Suzane esperou o relógio marcar duas da madrugada. Enquanto
todo o mundo dormia, a estudante desceu para encontrar Daniel, que a
esperava dentro do carro em frente à mansão. O rapaz estava angustiado e
ensopado de suor. Beijaram-se e Daniel a interrompeu. Confuso e chorando
muito, a rmou estar morrendo lentamente e mostrou à namorada um corte
super cial no peito ainda sangrando. Parecia um ferimento feito de raspão
por objeto cortante. Suzane se assustou e perguntou quem tinha feito aquilo.
Não houve resposta. O piloto ameaçou tirar a própria vida caso eles não
pudessem mais car juntos. Daniel passou a ter cada vez mais ideias
obsessivas sobre suicídio envolvendo morte violenta.
— Pensa comigo, Su. Se morrermos juntos, viveremos felizes em algum
outro lugar. Sem os seus pais por perto – planejava ele, soluçando.
— Você está enlouquecendo, Dan – repetia Suzane ao mesmo tempo que
o consolava e o beijava.
Há casos raríssimos nos quais duas pessoas têm a mesma ideia quase
simultaneamente. Naquele dia, ali, dentro daquele carro, de madrugada,
Suzane encarou os olhos perturbados de Daniel. Ele sussurrou uma certeza
vinda do fundo da sua existência:
— Nós só seremos felizes no dia em que os seus pais não existirem mais.
— Eu estava pensando nisso agora mesmo, acredita? Eles acabaram de
dizer que vão me mandar para a Alemanha no m do ano – disse ela,
espantada com a transmissão de pensamento.
Era uma conclusão bastante óbvia: Daniel e Suzane jamais seriam felizes
com os pais dela operando contra. A princípio, quando o casal condicionou
a “felicidade a dois” à “não existência” dos pais de Suzane, não se falava
claramente em assassinato. A ideia era abstrata. “Seria ótimo se Manfred e
Marísia não zessem mais parte do mundo”. Foi assim, em tom quase
poético, que Suzane e Daniel passaram a trabalhar para pôr um m àquela
agonia. A partir daquele momento, tornaram-se de nitivamente uma só
criatura. Um só cérebro comandava aqueles dois espíritos doentes. Suzane
cou com Daniel no carro até as 5 horas da manhã lucubrando como seria a
vida em liberdade longe dos pais. Bolaram um plano e começaram a agir.
O primeiro passo foi investir novamente na ideia de terem rompido
de nitivamente. Para incrementar essa farsa, Suzane passou a dizer em casa,
durante as refeições, que Daniel era um aproveitador. “Esse picareta não
paga uma conta sequer. Vocês estão cobertos de razão”, disse à mesa de
jantar. Chegou ao cúmulo de agradecer aos pais por eles terem aberto os
olhos dela para essa verdade. Com isso, as relações familiares na mansão dos
Richthofen voltaram a car harmônicas. Naquela semana, Suzane
frequentou a faculdade assiduamente, estudou de verdade para as provas de
nal de semestre e tirou notas altas. Em julho, Manfred e Marísia viajaram
para a Escandinávia.
Quando viajavam juntos, para evitar que os lhos cassem órfãos de pai
e mãe em caso de acidente aéreo, Manfred e Marísia sempre embarcavam
em voos diferentes. No trajeto de São Paulo à Finlândia, eles foram
obrigados a embarcar no mesmo avião porque todos os outros voos estavam
lotados. Antes de saírem de casa, os pais zeram mil e uma recomendações
aos lhos porque eles nunca tinham cado tanto tempo sozinhos. Manfred
deu a Suzane o número de uma conta bancária, um cartão de saques e a
senha anotada em um papel. Deixou ainda uma boa quantidade em
dinheiro vivo na gaveta secreta do closet.
Foi Suzane quem levou os pais ao aeroporto. Tão logo desceram do carro
com seis malas, Suzane tirou do bolso o anel símbolo do amor que sentia
por Daniel e o pôs de volta, dessa vez no dedo anular da mão direita.
Quando ela chegou em casa, Daniel já estava lá com uma mala de roupas
para 30 dias. O piloto estava matando passarinhos com Andreas no quintal.
Foi o mês mais feliz do casal. Tudo era incrível. Nos nais de semana,
tinham a companhia de Cristian e faziam churrasco. Passavam o dia inteiro
na piscina ouvindo música eletrônica. Amanda também foi a algumas das
festas na mansão. As baladas eram regadas ao cardápio de sempre: muitas
drogas (maconha, cocaína, ecstasy, solventes e lança-perfume) e bebida.
Daniel se comportava como se fosse o dono da casa. Volta e meia, ele
martelava feito um diabo na cabeça de Suzane palavras que entravam no
coração:
— Olha que maravilha, Su! Imagina se fosse assim para sempre. Olha
que beleza. Olha como é bom. Olha como a gente está sendo feliz.
Suzane ouvia calada, e Daniel continuava a vislumbrar o futuro:
— Pensa se isso aqui durasse muito. Não só um mês, mas a vida toda.
Seria perfeito.
Num domingo de sol, Daniel e Suzane estavam deitados na pérgola da
piscina olhando juntos o mesmo céu. A mansão dos Richthofen era próxima
do Aeroporto de Congonhas e era comum avistar aviões voando baixo sobre
o teto. Ao ver uma aeronave passando, Daniel perguntou:
— Viu esse avião?
— Sim. Eu vi! – respondeu.
— Imagina seus pais dentro desse avião.
— Sim... E aí?
— Agora imagina esse avião caindo...
Sob o efeito de drogas e álcool, Suzane cou em silêncio, pensativa.
Daniel prosseguiu:
— Se isso acontecesse, nós caríamos juntos nessa mansão para sempre
– concluiu, alucinado e eufórico.
Ela, calada estava e calada continuou.
Na véspera do retorno de Manfred e Marísia, Daniel e Suzane zeram
uma despedida dramática. A estudante chorou copiosamente ao retirar pela
segunda vez a aliança de prata do dedo. Enquanto arrumava a mala para
voltar para casa, o piloto fez questão de lembrar à namorada que a sua
aliança nunca havia saído do dedo. Em seguida, Daniel voltou para a casa
simples dos pais. Na primeira semana de agosto, o casal voltara à antiga
rotina e a saudade dos dias da vida em liberdade na mansão dos Richthofen
provocava angústia. Suzane sofria por não poder mais passar 24 horas ao
lado do namorado:
— A minha vida não tem o menor sentido longe de você – reclamou ela.
— Eu disse a você. Nós só teremos aquela vida novamente se os seus pais
desaparecerem do mundo – reforçou Daniel.
Até mesmo as mentiras inventadas por Suzane para passar o dia na casa
de Daniel começaram a car sem graça. O casal só via alegria na vida se
morasse na mansão. Fazendo festa, fumando e bebendo, como foi em julho.
Para pressionar a namorada a tomar uma iniciativa, Daniel começou a
atormentá-la. Suzane estava assistindo à TV na sala junto com o pai, por
volta das 22 horas, quando o celular tocou. Era Daniel, aos prantos.
— Preciso falar com você agora! – suplicou.
— Não posso! – sussurrou Suzane tapando a boca com a mão para
Manfred não perceber.
— É só para dizer para você car bem. Que eu te amo. Não posso mais
falar. Mas, se eu morrer, saiba que vou te amar para sempre – disse Daniel,
enigmático.
— Como assim, morrer? – quis saber ela, apavorada.
Daniel desligou o telefone antes de ouvir a pergunta da namorada.
Suzane cou com os nervos à or da pele tentando ligar de volta.
Caminhava pela casa de um lado para o outro feito uma fera enjaulada. Às 3
horas o piloto ligou novamente, para alívio de Suzane. Ele estava na porta da
mansão. A estudante foi ao seu encontro. Depois de uma conversa
interminável, os dois juntos, numa sintonia macabra de pensamento,
decidiram ser felizes. A primeira providência seria tomada na semana
seguinte.

* * *

Marísia era exigente e rigorosa com as empregadas domésticas. O


excesso de ordens da patroa e a suntuosidade da casa as assustavam e elas
desistiam do emprego antes de completar o primeiro mês. Após a viagem
para a Escandinávia, a médica contratou uma senhora chamada Diana para
limpar o imóvel. Mal fechou o mês, Marísia a dispensou alegando fraco
desempenho nas tarefas domésticas. A empregada queria receber uma
indenização pela demissão. Por telefone, Diana passou a cobrar
insistentemente uma dívida de 1.700 reais, na época, dos Richthofen.
Irritada, Marísia pediu a ela, aos berros, que não ligasse mais. Mas Diana
não desistiu. A inconveniência da ex-funcionária fez Manfred trocar todas
as fechaduras da casa. Também foi instalado um identi cador de chamadas
nos aparelhos de telefone para saber quando a empregada estivesse ligando
e, assim, ter a opção de não atendê-la. Com o recurso ultratecnológico para
a época, os telefonemas de Diana passaram a ser evitados. Certo dia, Marísia
abriu o portão às sete da manhã para sair com o carro e Diana estava lá, de
sentinela. A janela do carro estava fechada e a empregada bateu com a mão
fortemente no vidro.
— Abaixa esse vidro, sua vaca! Quero falar com a senhora! – ordenou a
empregada.
Marísia obedeceu e enfrentou a ex-funcionária:
— O que você quer?
— A senhora vai se arrepender se não pagar o que me deve!
— Eu não lhe devo nada! Você estava em período de experiência.
Procure um advogado, caso ache que está sendo lesada – sugeriu a médica,
de dentro do carro.
— O meu marido vai lhe procurar. Aguarde! – reforçou a ameaça.
— Se você continuar importunando a minha família, vou chamar a
polícia! – anunciou a médica, fechando o portão pelo controle remoto e
arrancando com o carro em disparada.
Do seu consultório, Marísia ligou para desabafar com Cláudia,
queixando-se de estar sem empregada em casa e ainda viver assombrada
pela antiga funcionária. A amiga-paciente prometeu ajudá-la. Ficou de
mandar uma candidata ao consultório de Marísia ainda naquele dia. Era
uma pro ssional excelente, mas a médica teria de ser generosa na oferta
salarial, pois ela estava feliz em outra residência. Por volta das 16 horas,
Rinalva de Almeida Lira, de 40 anos na época, surgiu diante de Marísia.
Baixinha e nordestina de Caetité, no sertão baiano, Rinalva mantinha o
hábito de cobrir a boca com a mão direita quando falava. Marísia e a
candidata tiveram química logo de cara, mas a forma acanhada de falar da
empregada incomodava a médica. Ela dizia saber cozinhar e cuidar da casa.
A futura patroa perguntou quanto pretendia ganhar por mês. Rinalva pediu
um salário mínimo e Marísia ofereceu o dobro. Nessa hora, a muito custo, a
mulher deu um sorriso e a médica percebeu que ela não tinha nenhum
dente na boca.
— Como a senhora pode viver assim, desdentada? – perguntou a
médica, indignada.
Profundamente constrangida, Rinalva olhou para o chão em silêncio por
um longo tempo. Marísia desculpou-se e indagou se ela poderia começar a
trabalhar no dia seguinte, às 7 horas da manhã. Rinalva con rmou
balançando a cabeça, levantou-se, virou as costas e saiu. No entanto, ela não
apareceu na mansão dos Richthofen. Preocupada com a possibilidade de tê-
la humilhado, Marísia ligou para Cláudia e pediu o endereço da funcionária.
À noite, a médica bateu na porta da empregada. Rinalva morava com o
marido e três lhos num casebre de alvenaria alugado no Jardim São Bento
Novo, Capão Redondo, periferia de São Paulo. Ao se deparar com aquela
senhora elegante e vestida de branco, Rinalva levou um susto. A família
estava toda na sala e rapidamente desapareceu, deixando as duas a sós.
Marísia apelou:
— Dona Rinalva, me perdoe por algo que eu tenha dito. Eu jamais tive a
intenção de ofendê-la.
— Não precisa se desculpar. A senhora não disse nada de mais –
devolveu a empregada.
— Então aceite o emprego e vá trabalhar amanhã – pediu a médica.
— Eu não posso trabalhar nesta semana. Estou com o aluguel atrasado e
ameaçada de despejo. Tenho de arrumar um canto para morar
urgentemente – revelou Rinalva.
Marísia olhou atentamente aquela casa modesta por todos os ângulos
possíveis. Espiou até o forro do teto. Era um lar humilde, limpo e todo
arrumado. A médica cou estática, sem saber o que dizer ou fazer diante
daquele drama familiar. Despediu-se dizendo à Rinalva para primeiro
resolver o problema pessoal e só depois comparecer ao emprego novo. Duas
semanas depois, a empregada surgiu na mansão dos Richthofen. Continuava
falando com a mão na boca, envergonhada pela falta de dentes. Manfred foi
o primeiro a perceber. Marísia tomou uma atitude que mudaria a vida de
Rinalva para sempre. Ligou para um amigo dentista e pediu uma dentadura
para dar de presente à funcionária. Depois de algumas visitas ao protético,
Rinalva estava com os dentes cintilantes. Todos na casa perceberam a
mudança tanto na aparência quanto no comportamento da empregada. A
arcada dentária, mesmo postiça, deu à nordestina uma nova personalidade.
Ficou risonha e atrevida. Andreas foi o primeiro a sentir na pele os efeitos da
nova mulher. Sentado sozinho à mesa do café da manhã e pronto para ir à
escola, pediu em tom de ordem um suco de laranja com pão, ovos mexidos e
manteiga derretida.
— Qual é mesmo aquela palavrinha mágica? – ironizou Rinalva.
— “Por favor” – rendeu-se Andreas. Só então ela preparou o alimento.
Com dentes novos, Rinalva adquiriu o hábito de dar respostas
atravessadas até mesmo para Marísia. Mas a patroa não reclamava, pois via
na altivez da funcionária uma forte aliada. A empregada começou a exercer
certa autoridade tanto com Suzane quanto com Andreas. Como passavam
boa parte do dia no trabalho, Marísia e Manfred con aram os cuidados dos
lhos a ela. No mês seguinte, Rinalva alertou Marísia que faltaria ao trabalho
por tempo indeterminado. O seu casebre havia sido colocado à venda por
17.000 reais (em valores da época) e a sua família cou mais próxima do
despejo. A patroa aceitou a folga, mas deixou claro o desconto do salário.
Rinalva desapareceu. Preocupados, Marísia e Manfred foram ao seu
encontro. Depararam-se com Rinalva sendo despejada. Abraçada aos lhos,
ela explicava não ter para onde levá-los. Comovida com a cena dramática,
Marísia fez uma proposta: compraria a casa por 17.000 reais e daria para ela
morar. Mas o valor seria descontado do salário em suaves prestações de 300
reais até a dívida ser quitada. Rinalva aceitou, Marísia começou a
providenciar a papelada e a funcionária pôs na patroa a alcunha de santa.
Quando voltou a trabalhar, a empregada recebeu de Marísia uma missão.
A médica disse estar descon ada de que a lha vinha tendo encontros
escondidos com Daniel, o suposto ex-namorado. Argumentava sentir uma
clarividência materna equivalente a uma certeza absoluta. Pediu a Rinalva
que casse de olhos bem abertos e lançasse mão até mesmo de meios
escusos para dar um agrante. Chegou a citar um exemplo: ouvir conversas
de Suzane pela extensão telefônica. Se a campainha tocasse e Suzane fosse
atender, a empregada teria de inventar uma desculpa e ir até lá fora na cara
dura para ver quem era a visita. No nal do expediente, a funcionária
passaria um relatório verbal completo. Rinalva aceitou a tarefa da Santa
Marísia.
Mesmo sendo esperta, a funcionária jamais agraria Daniel e Suzane
juntos. Até porque o casal se encontrava mais na calada da noite do que à luz
do dia. Certa manhã de sábado, Marísia foi ao supermercado com a
empregada. Manfred e Andreas levaram o cachorro para tomar vacina.
Sozinha em casa, Suzane agiu rapidamente. Desceu até o quintal, pegou um
bloco de paralelepípedo e enrolou em um pano de chão. Colocou a pedra
sobre a cama dos pais, bem no centro. Como se um furacão estivesse a
caminho daquela casa, ela fechou todas as portas e janelas, travando-as com
trancas. Cerrou até as cortinas. Desceu e abriu o portão para Daniel entrar.
Eram cerca de 10 horas da manhã e o sol estava a pino.
— A casa está vazia? – perguntou ele.
— Sim, sim, sim! Temos de ser rápidos! – avisou Suzane.
— Calma! Vai dar certo! – garantiu ele, afoito.
A passos largos, o casal foi ao closet da suíte de Manfred e Marísia, abriu
a porta e arrancou o fundo falso, revelando a arma de calibre 38 do
engenheiro. Daniel checou o tambor e viu seis balas dentro dele. Suzane
fechou Daniel no quarto dos pais e saiu correndo para o meio da rua,
travando as portas por onde passou até deixar a mansão. Havia movimento
de carro e pedestres onde Suzane estava. Pelo celular, mandou uma
mensagem ao namorado dizendo “ok”. De repente, ouviu-se um estampido
idêntico a uma bomba de São João. No leito dos Richthofen, Daniel havia
dado um tiro na pedra envolta no pano de chão. Suzane entrou na casa
rapidamente e encontrou o namorado guardando a arma no closet.
Encarregou-se de tirar a pedra da cama dos pais, trocou a coberta da cama e
limpou vestígios do cartucho e pólvora. Pensando em sintonia, chegaram à
seguinte conclusão:
— Não podemos usar arma. Mesmo com a casa fechada e toda a
barulheira da rua, eu consegui ouvir o tiro lá de fora. Com o silêncio da
noite, os vizinhos certamente vão ouvir – calculou Suzane.
— Então vamos ter de estudar outra forma de fazer isso! – decidiu
Daniel.
Ao acabar o teste diabólico, Daniel deu um beijo na namorada e saiu da
mansão feito um foguete. Uma semana depois de ensaiar o assassinato dos
pais com arma de fogo, Suzane descia a escada de casa quando agrou a mãe
chorando ao telefone. Marísia falava com Cláudia. Ao desligar, a médica se
levantou e deu um abraço apertado na lha como nunca havia feito. As duas
caram mudas por um longo tempo, entrelaçadas. Suzane agarrou a mãe
com força. Encaixou a cabeça no espaço entre o ombro e o pescoço materno.
Suzane nunca havia sentido a temperatura do corpo de Marísia, o cheiro da
pele da mãe, do perfume. Empática, a lha enxugou as lágrimas da mãe.
Depois de consolá-la, a estudante cou circunspecta. Entristecida, Marísia
saiu a pé de casa. Suzane viu pela janela da biblioteca, no segundo andar,
quando a médica abriu o portão de pedestres lentamente. Antes de ganhar a
rua, a mãe, vestida de branco, olhou para trás e tou Suzane na janela.
Marísia beijou a palma da mão num gesto delicado e soprou um beijo
suavemente ao vento em direção à lha.
Num raro momento da vida, Suzane teve compaixão. Nunca se soube o
motivo do pranto de Marísia. As lágrimas maternas serviram para fazer a
lha desistir de assassiná-la. Pelo menos naquele momento. À noite,
comunicou ao namorado o cancelamento do plano por telefone. A decisão
não foi aceita:
— Você não quer mais voltar àquela vida que tivemos quando seus pais
não estavam aqui? – reagiu Daniel, nervoso.
— Não. Não quero! – rebateu ela.
— Tem certeza? – insistiu.
— Sim! Não farei isso com a minha mãe! Minha mãe, não! Minha mãe,
não! Minha mãe, não! Não! Não! Não! – encerrou Suzane, desligando o
telefone na cara do namorado.
Daniel sabia qual era o ponto fraco de Suzane e investiu pesado nele. Na
madrugada seguinte, o casal se encontrou. A estudante ainda estava
atormentada com a cena da mãe indo embora vestida de branco como se
fosse um fantasma. Estrategicamente, Daniel ngiu ser melhor abortar o
plano. E passou um cigarro de maconha para Suzane:
— Vai fumando – sugeriu ele.
Ela pegou o cigarro e deu uma tragada forte.
— Eu não quero, não quero, não quero matar os meus pais! Minha mãe
me abraçou...
— Calma! Esquece isso. Faz de conta que nada aconteceu – tranquilizou
o aeromodelista.
Dois dias depois, Daniel surgiu novamente em frente da casa de Suzane
às 3 horas da madrugada. Pelo celular, pediu que a jovem descesse
imediatamente. Anunciou o m do mundo. “O apocalipse surgirá por trás
das montanhas e ninguém escapará das cinzas”, declamou emocionado.
Suzane não entendeu nada. Chorando copiosamente, Daniel voltou à
ladainha de sempre. Desta vez, o drama estava carregado de tinta marrom.
Entre uma baforada e outra num cigarro, disse o seguinte:
— Se não é possível vivermos juntos, pre ro mil vezes a morte! –
advertiu ele.
Alucinado, Daniel contou a história de um amigo assassinado no ano
anterior numa favela com seis tiros na cabeça. Segundo relatou, essa alma
vivia em um lugar encantado, cheio de amor e vida. Era incrível como
Suzane acreditava nele – ou ngia acreditar. Daniel revelou seus planos para
aquela noite: matar-se atirando o carro em alta velocidade contra um muro
de concreto. Assim, teria uma passagem rápida, instantânea, uma morte sem
tempo para sofrimento. Ele nem sequer teria saudade da vida triste que
levava.
Suzane também fumava maconha enquanto ouvia o chororô do
namorado. Era como se uma loucura possuísse o casal. Suzane pediu “pelo
amor de Deus” para o jovem não desistir da vida, pois o amava. Daniel
replicava dizendo que “o amor era um sentimento ligado de uma maneira
secreta à emoção da morte”. Para o piloto, a vida só faria sentido se eles
cassem juntos como ocorreu em julho, o mês mais feliz de suas vidas. A
jovem sonhava todos os dias da sua existência com um futuro ao lado do
amado na mansão dos pais, mas não tirava a imagem da mãe da cabeça.
Em sincronia, o casal recobrou a ideia obsessiva de matar Manfred e
Marísia. Como se fosse possível ter um tipo de compaixão quando se planeja
a morte dos pais, ela fez dois pedidos a Daniel. O primeiro: que os pais
morressem de forma indolor. Daniel enxugou as lágrimas e acariciou o rosto
de Suzane, concordando com a ideia. Depois houve um beijo. Não foi um
beijo trivial. Mas sim um beijo em que se pôs para fora todo o desespero,
toda a febre, todo o delírio. Suzane abriu a porta do carro e saiu. Do lado de
fora, pela janela, a jovem fez o segundo pedido ao namorado. Não um
pedido, uma exigência:
— Eu não vou matar nenhum deles! Você fará tudo sozinho!
Em casa, recomposto, Daniel contou para Cristian em tom de segredo os
planos para assassinar os pais de Suzane. O irmão levou um susto. Tentou
demover a ideia da cabeça do caçula:
— Vocês são loucos! Esquece isso!
— Preciso da sua ajuda. A Su não tem coragem.
— Nem pensar! Olha, você não é assassino pro ssional. Você não saberá
o que fazer, como se comportar depois. Vai dar bandeira e será logo
descoberto – profetizou Cristian.
Daniel ouviu atentamente o irmão mais velho, mas nada o fazia mudar
de ideia. Cristian lançou mão de um argumento poderoso: ameaçou contar a
Astrogildo o plano macabro. Assustado, Daniel então recuou. Suzane cou
decepcionada quando o namorado ligou para avisar ter desistido. Sóbria, foi
até a casa dele e o chamou para uma conversa de nitiva. Longe de tudo e de
todos, o casal se trancou no ateliê onde Daniel fabricava os aviões de
aeromodelismo. Em nada o piloto lembrava aquele personagem com
ideação suicida que planejava se matar por amor. Para Suzane, não haveria
mais a menor possibilidade de recuo. Já conhecendo de cor o desequilíbrio
emocional do namorado, a jovem fez uma revelação bombástica, porém
totalmente inverídica:
— Dan, nunca pensei que um dia eu te contaria isso. O meu pai abusa de
mim desde que eu tinha 9 anos. Toda noite, depois que a mamãe dorme, ele
vai até o meu quarto. É uma coisa nojenta, nojenta, nojenta! – revelou,
fazendo um esforço sobre-humano para chorar.
Descontrolado, Daniel começou a esmurrar a parede e arremessar
ferramentas pelo chão. Garantiu matar Manfred ainda naquela noite. Frágil
emocionalmente, ele era uma peça perfeita na engrenagem perversa
controlada por Suzane. Naquele mesmo instante começaram a pensar em
como assassiná-los o mais rapidamente possível. Cogitaram incendiar o sítio
da família, em São Roque, com os pais dentro ou arrancar a mangueira do
freio do carro para vazar o óleo e provocar um acidente. Enquanto Daniel
destruía o ateliê, o casal acabou descobrindo sem querer a arma perfeita. No
meio da fúria, o piloto havia arrancado da parede e mantinha na mão direita
uma barra de ferro usada para sustentar prateleiras, conhecida como mão-
francesa. Suzane encarou o namorado, deu um beijo em sua boca e foi para
casa.
Em seguida, o piloto aprimorou as barras de ferro para torná-las ainda
mais letais. Fez o trabalho com o mesmo capricho, as mesmas minúcias do
artista habilidoso em construir aviões de aeromodelo. Cristian foi até a
o cina ver como o irmão estava e o encontrou nervoso e agitado. O ateliê
estava parcialmente destruído. Na cabeça de Daniel, não havia mais como
desistir do plano. Contou a Cristian as novas revelações feitas por Suzane e,
abraçado ao irmão, fez um apelo dramático:
— Cris, me ajuda a matar esse estuprador! Por favor. Se você não for, eu
vou sozinho. E não tem como eu matar os dois sem a sua ajuda.
— Dan, você sempre foi o meu irmão. Eu sempre contei com você para
tudo na vida e nunca pude retribuir. Eu vou entrar nessa com você, mas a
gente vai ser pego. A gente vai afundar no barco juntos, mas vou com você
mesmo assim porque eu te amo – disse Cristian.
Abraçados e afogados em lágrimas, os dois irmãos caram um bom
tempo contemplando aquela cumplicidade. Daniel pegou a barra de ferro e
serrou para dividi-la em duas. Com as mesmas ferramentas usadas na
construção dos aviões de aeromodelismo, o piloto fabricou os porretes. Para
o irmão e cúmplice, fez uma promessa:
— Naquela mansão tem muito dinheiro. Tudo o que tiver lá de valor será
seu – combinou.
— Não estou entrando nessa por dinheiro – reiterou Cristian.
Ficou acertado o seguinte: Cristian mataria Marísia, e Daniel, revoltado
com a notícia do abuso de Manfred contra Suzane, aniquilaria o pai. Daniel
ligou para Suzane e comunicou a adesão do irmão. Fizeram os últimos
acertos. Caberia à jovem conseguir as meias de nylon e as luvas para os
assassinos não deixarem vestígios dentro da casa. Para Andreas não
testemunhar o duplo homicídio, cou decidido tirá-lo da mansão.
Tomado pela falsa notícia de que a sua namorada era abusada, Daniel
mergulhou numa ira implacável. Estava apaixonado, cego e surdo para tudo
aquilo que não fosse o próprio sentimento. Fraco, passou a ser dominado
ainda mais por Suzane. A fragilidade espiritual, o efeito das drogas e a
ambição desmedida levavam Daniel para o lado mais escuro da vida.
Insidiosa e narcisista, Suzane conseguiu agendar a morte dos pais. A data
escolhida foi 30 de outubro de 2002, uma quarta-feira, quatro dias antes do
seu aniversário. A garota faria 19 anos no domingo, dia 3 de novembro.
No dia D, Daniel convidou Andreas para mais uma jornada na
madrugada. Deixou claro, no entanto, que não o acompanharia na noitada,
pois iria comemorar antecipadamente o aniversário de Suzane num motel de
luxo. Andreas topou na hora. Ficou acertado o seguinte: depois de Manfred
e Marísia caírem no sono, Andreas avisaria por telefone e Daniel passaria
para apanhá-lo.
A agenda de Suzane no dia do crime foi trivial. Tomou café com a
família às 6h30 da manhã e foi à faculdade. Ao meio-dia, encontrou Daniel
para acertar os detalhes dos planos de executar os pais. Passou no Colégio
Vértice, a dois quilômetros de casa, para buscar Andreas. Às 13 horas já
estava sentada à mesa, almoçando na companhia de Marísia pela última vez.
Comeram salada, carne assada na panela de pressão e arroz de forno
acompanhado de suco de melancia. Tudo preparado por Rinalva. Manfred
não costumava almoçar em casa em dias úteis.
Às 14 horas, Suzane se despediu da mãe e saiu de carro para levar
Andreas à aula de inglês. De lá, foi encontrar Daniel mais uma vez na casa
dele. Às 16 horas, o casal foi buscar Andreas na escola de língua estrangeira
e os três foram ao Shopping Ibirapuera comprar o presente de aniversário de
Suzane. A estudante queria ganhar um par de óculos escuros da Oakley.
Experimentou vários modelos, mas não gostou de nenhum.
Por volta das 17 horas, os três tomaram sorvete. Suzane pôs de volta no
dedo o anel prata de compromisso, levou o namorado para a casa dele e
seguiu para a mansão com o irmão, onde chegaram às 17h30. Os pais
estavam no trabalho e Rinalva encerrava o expediente.
Às 18h, ela pegou o carro e seguiu pela terceira vez no dia para a casa de
Daniel. Juntos, assistiram a mais episódios de CSI na TV e foram à locadora
Blockbuster atrás da terceira temporada da série. Não havia em DVD. De lá,
foram à casa de Cristian, onde discutiram os últimos detalhes do plano a ser
executado mais tarde. Os três fumaram maconha.
No início da noite, Suzane passou em casa, mas não encontrou os pais.
Tomou banho, trocou de roupa e saiu para encontrar o namorado pela
quarta vez. Juntos, esperaram o contato de Andreas. Nesse intervalo, as duas
barras de ferro foram colocadas no porta-malas do carro de Suzane.
Pelo relato de Andreas, naquele dia ele acordou às 6h, tomou café em
família e foi levado à escola pelo pai, como todo dia. Suzane foi buscá-lo. À
noite, por volta das 20h, Manfred e Marísia se reuniram para jantar. No
menu havia salada, bife e espaguete. O adolescente estava sem apetite e não
saiu do quarto para comer. Ficou lá assistindo desenho animado na TV.
Às 21h30, Manfred despediu-se do lho, que já estava sob o chuveiro.
Da porta do banheiro, Manfred disse “boa noite” ao garoto. Foram as
últimas palavras ouvidas do pai por Andreas. Logo em seguida entrou
Marísia. Ele já estava na cama vendo mais desenhos. Seca, a mãe disse em
tom enfático: “Desliga essa TV! Agora!”.
Às 22h30 Andreas foi até o quarto dos pais e viu os dois dormindo. Na
sequência, o adolescente pôs cinco travesseiros sobre a cama e os cobriu
com um edredom ngindo estar ali deitado sob a coberta.
Em seguida, o irmão de Suzane fez a tão esperada ligação para Daniel
dizendo apenas duas frases: “Meus pais dormiram. Venham me buscar”.
Daniel pegou o carro e foi ao seu encontro dirigindo o Fiat Palio
comprado pela namorada. Suzane cou na companhia de Astrogildo. Antes
de levar o garoto à lan house, Daniel voltou em casa para apanhar Suzane.
Andreas aproveitou para pegar a sua mobilete, que cava guardada no
quintal dos Cravinhos, e seguiu de ciclomotor à casa de jogos. Por
segurança, Daniel e Suzane seguiram o adolescente no carro dela até ele
entrar na lan house. O garoto abriu uma comanda de consumo na casa de
jogos às 22h46. A duas quadras dali, Cristian já esperava o casal na esquina.
O relógio estava prestes a marcar 23 horas na noite do dia 30 de outubro
de 2002. O combinado era Andreas telefonar no celular da irmã quando a
lan house fechasse. O que o menino não sabia era que, nos minutos
seguintes, Suzane, a sua querida irmã, Daniel, seu ídolo, e Cristian, um
grande amigo, estariam matando seus pais a pauladas.
Às 2h40 da madrugada do dia 31 de outubro, a casa de jogos cerrou as
portas. Andreas, sozinho, já órfão de pai e mãe, deu mais uma volta de
mobilete pela cidade. Andou pelas avenidas Brasil e 23 de Maio, passando
pelas alamedas estreitas dos Jardins.
Andreas telefonou para a irmã por volta das 3h. Suzane estava deitada na
cama do motel, abraçada ao namorado, quando o telefone celular tocou,
assustando o par de latrocidas. Daniel deu um salto e perguntou, apavorado:
— Ai, meu Deus! Quem está te ligando?
Era Andreas. Sintético, pediu à irmã:
— Vem me buscar!
Uma bruxa, um morcego e uma âncora

O
s mortos não eram problema para Suzane e Daniel. Enquanto os
cadáveres de Manfred e Marísia esfriavam sobre a cama, o casal
delirava sob o efeito de cocaína e maconha no motel. Eufóricos, felizes
e sem qualquer noção de tempo e espaço, os dois continuavam trocando
juras de devoção e amor como se estivessem em lua de mel.
— Diga que me ama na minha cara! – implorava Daniel na cama do
motel.
— Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo! – revidava Suzane repetidamente,
cobrindo o namorado de beijos.
— Quero sentir o seu amor queimando os meus ossos! – desatinava ele,
chapado.
Após receberem a ligação de Andreas, Suzane e Daniel vestiram-se
rapidamente e pediram a conta da noitada no motel pelo interfone. Em
poucos minutos, a atendente Angélica da Silva tocou a campainha com som
de cigarra. O cálculo estava anotado à mão num pedaço de papel posto
sobre um prato de metal junto com duas balas de canela. A conta foi passada
pela janela discreta usada para os clientes se comunicarem com os
funcionários. Para surpresa do casal, as despesas totalizaram 318 reais. Eles
só tinham três notas de 100 e nenhum cartão de débito ou crédito.
— Só temos 300 reais. E agora? – questionou Daniel pela janelinha, sem
ver o rosto da atendente. Ela pediu um minuto, afastou-se e logo veio com a
resposta:
— Deixe a sua identidade e venha buscá-la quando tiver os 18 reais
restantes – propôs a funcionária.
— Tudo bem. Poderia emitir uma nota scal?
— Oi? Você falou em nota scal? Você está num motel! – espantou-se
Angélica.
— Sim, preciso de uma nota scal! – exigiu Daniel.
O casal saiu do Colonial Palace às 2h56 para buscar Andreas na Red Play
com a nota scal no bolso. O trajeto do motel até a casa de jogos durou dez
minutos. No caminho, Daniel e Suzane criaram um roteiro para pôr em
prática tão logo ela chegasse à mansão com o irmão, onde encontrariam os
pais mortos. O espetáculo teria três atos. No primeiro deles, Suzane ngiria
surpresa ao descobrir que a casa “havia sido invadida”. Paradoxalmente, logo
depois de protagonizar cenas tão bárbaras de homicídio, o casal teve um
arroubo de humanidade. Suzane e Daniel estavam preocupados com o
choque emocional que Andreas levaria ao se deparar com os corpos dos pais
destroçados sobre a cama encharcada de sangue. Caberia a Suzane impedir o
garoto de acessar o piso superior da residência. Como parte do teatro, ela
deveria fazer uma ligação para o namorado ngindo contar sobre o suposto
assalto. Daniel simularia orientações.
Antes de ser levado para casa, Andreas pediu à irmã para dar mais uma
volta de ciclomotor pela cidade. Daniel e Suzane seguiam o adolescente no
Gol dourado presenteado pelos pais tão logo ela passou no vestibular.
Andreas deixou a pequena moto na casa dos Cravinhos e Daniel desceu do
carro. Ele deu um beijo na namorada e Suzane seguiu com o irmão para
casa. Em frente à mansão dos Richthofen, ela acionou o controle para abrir o
portão. Quando viu a sala toda iluminada, Suzane entrou em ação e encenou
o primeiro ato do espetáculo, forjando um sobressalto:
— Ué?! Quem acendeu as luzes?! – perguntou ao irmão.
— Que luzes?... Ai, meu Deus! – exclamou Andreas, boquiaberto.
Na cabeça do adolescente, ele estava numa fria. Imaginou os pais
acordados e se lembrou imediatamente da farsa dos travesseiros cobertos
sobre a cama. Andreas desceu às pressas do carro e seguiu ao hall da
entrada. Suzane foi atrás e pediu para o irmão não entrar correndo. Ela cou
parada no meio da sala principal. Andreas seguiu em passos rápidos até a
cozinha e voltou à sala no mesmo instante sem entender nada. Entrou na
biblioteca e viu as janelas abertas e objetos jogados no chão, entre eles a
pasta 007 onde Manfred guardava dinheiro vivo. O adolescente começou a
subir as escadas esbaforido e Suzane interveio rapidamente com um grito de
alerta:
— Andreas, para! Não sobe!
Ele parou.
— Por quê? O que está acontecendo? – quis saber.
— Acho que a casa foi assaltada. Não sobe, por favor! Pode ter um
ladrão armado lá em cima! Vamos sair da casa agora! – ordenou.
Já apavorado, Andreas desceu lentamente do meio da escada e os dois
saíram da mansão na ponta dos pés. Do meio da rua, Suzane ligou para
Daniel e começou a encenar o segundo ato, conforme havia combinado com
o seu cúmplice assassino.
— Daniel, chegamos em casa e acho que fomos assaltados – resumiu.
— Sai da casa agora! Fica lá fora e liga para a polícia. Estou indo aí! –
representou Daniel do outro lado da linha.
— Já estamos do lado de fora – avisou ela.
Suzane e Andreas caram calmos, sentados na calçada à espera de
Daniel. Ela ligou para o 190 e chamou a polícia. Enquanto esperava pelos
agentes, a jovem resolveu improvisar e fez uma cena fora do script: ligou do
seu celular para o telefone de casa falsi cando para o irmão uma
preocupação com os pais.
— Ninguém atende! – disse ela a Andreas.
— Será que eles estão lá dentro?
Dissimulada, Suzane repetia a chamada telefônica suplicando
cinicamente para si em voz alta:
— Atente! Atende! Atende!
Quinze minutos depois de Suzane ligar para o 190, o policial Alexandre
Paulino Boto estacionava a viatura da Polícia Militar de número 12.192 em
frente à mansão dos Richthofen. Segundo o seu registro, eram 4h09 quando
ele chegou ao palco do crime e deparou-se com Suzane e Andreas no meio
da rua. Boto fez inicialmente só uma pergunta (O que houve?) e recebeu de
Suzane um prólogo narrado num único fôlego:
— Eu e meu irmão chegamos em casa agora há pouco e vimos as luzes
acesas. Entramos na casa e percebemos que a porta da sala, que deveria estar
trancada, encontrava-se aberta. A biblioteca está toda revirada. Mexeram em
tudo, tudo, tudo! As janelas estão abertas. Liguei para o meu namorado e ele
me mandou car aqui fora e ligar para a polícia. Foi o que eu z: liguei para
o 190.
O primeiro relato feito por Suzane sem cortes chamou a atenção do
policial “meio de leve”, conforme ele mesmo observaria dias depois. Mas até
ali, qualquer tipo de previsão seria prematura. Boto, que estava
acompanhado de um motorista, ergueu uma pistola PT 24/7 calibre .40 e
entrou na mansão na expectativa de agrar assaltantes dentro dela. Fez
primeiro uma varredura na área externa e só depois passou pela porta da
sala. Viu a biblioteca bagunçada, foi à cozinha – intacta – e subiu ao quarto
de Suzane, que estava todo arrumado. No quarto de Andreas, ao ver a cama,
imaginou ter alguém sob as cobertas. O policial puxou o edredom e avistou
os travesseiros representando uma pessoa. Na suíte do casal Richthofen,
Boto enxergou primeiro um cadáver. Em um relatório, o policial escreveu:
“De imediato, iluminado somente pela luz da rua, vi o corpo de um
homem deitado na cama com a barriga virada para cima, as pernas cruzadas
e uma toalha cobrindo a cabeça. O braço direito estava estendido para o chão
em direção a uma arma calibre 38 caída no solo, próxima à mão dele. Faltava
uma bala no tambor da arma. Logo pensei em suicídio. Acendi a luz e vi o
segundo cadáver enrolado em um lençol com a cabeça ensacada. Havia
algumas joias espalhadas pelo tapete”.
Depois de atestar o óbito de Manfred e Marísia, Boto voltou para a rua e
foi abordado por uma Suzane demasiadamente ansiosa:
— Como estão meus pais? – quis saber.
— Seus pais estão bem – projetou Boto.
Impactada pelo imprevisto daquele comunicado, Suzane saiu do
personagem e esboçou uma cara real de surpresa quando ouviu do policial
que seus pais estavam vivos. Andreas pediu para entrar na mansão e Boto
disse “não”. Orientou que esperassem do lado de fora. O policial foi até a
viatura e pediu reforço pelo rádio, comunicando em voz baixa a até então
suspeita de homicídio seguido de suicídio. A história construída naquele
momento pelo policial era a seguinte: Manfred assassinou Marísia com uma
arma branca e depois se matou com um tiro. A arma caída perto do corpo
dele e a falta de uma bala reforçavam essa tese. Da calçada, a poucos metros
dali, Suzane ouviu o retorno de um agente da base emitido pelo rádio da
polícia em viva-voz, informando que havia um crime com vítimas na Rua
Zacarias de Góis. Incrédula, a jovem perguntou a Boto mais uma vez pelos
pais:
— Você tem certeza de que meus pais estão bem?
— Sim, eles estão deitados na cama.
— Você olhou direito? O quarto deles ca no m do corredor – insistiu
ela.
— Positivo!
Bem-intencionado, o policial mentiu. Boto não queria ser mensageiro de
uma notícia tão trágica. Sustentou que Manfred e Marísia estavam vivos. O
comportamento de Suzane chamou a atenção de Boto pela segunda vez. Na
tentativa de entender mais sobre a dinâmica daquele crime, o policial
começou a fazer perguntas informais para ela, ali mesmo, no meio da rua.
E ciente na arte de representar, Suzane voltou rapidamente ao personagem:
— Seus pais têm arma em casa? – indagou Boto.
— Tem um revólver escondido num compartimento secreto do closet.
— Você acha que os ladrões levaram algo da sua casa?
— Na biblioteca havia uma mala 007 com dinheiro. Tinha lá dentro
8.000 reais, 5.000 dólares e 1.000 euros. Os ladrões levaram tudo, seu
guarda! – fez questão de frisar.
— Sua casa tem sistema de alarmes?
— Tem sim, mas está desligado – advertiu Suzane.
— E aquelas câmeras de segurança? – apontou Boto para um
equipamento instalado no muro, do lado de fora do terreno da mansão.
— Ah! Essas câmeras não fazem gravação – lamentou ela, pragmática.
A rapidez com que Suzane respondia às perguntas fez Boto descon ar
dela pela terceira vez, mas até então o policial não sabia especi car de forma
concreta os motivos das suas suspeitas. Depois de o policial entrar pela
segunda vez na mansão, a tese de suicídio foi descartada e passou-se a
acreditar em latrocínio (assassinato motivado por roubo). Para ver como
Suzane reagiria à notícia da morte dos pais, Boto resolveu contar a verdade:
— Suzane é o seu nome, né?
— Sim!
— Fique calma, por favor. Me ouça com atenção. Tenho algo importante
para lhe dizer...
— Pode falar! – pediu Suzane, calmíssima.
Boto já começava a narrar a tragédia quando Daniel chegou e
interrompeu a fala do policial, querendo saber o que havia acontecido. Antes
de obter a resposta, o piloto fez questão de dar um beijo longo em Suzane.
— Quem é você? – quis saber Boto.
— Sou da família! – respondeu Daniel, encarando o policial e mantendo
um dos braços por cima dos ombros da namorada.
De certa forma, a chegada de Daniel trouxe alívio a Boto. Era mais
adequado uma pessoa próxima da família dar uma notícia espinhosa como
aquela. O agente chamou o namorado de Suzane até a viatura e contou que
os pais dela estavam mortos sobre a cama e era preciso fazer essa revelação
aos lhos das vítimas. Daniel pediu um momento e se afastou do policial,
que cou observando de longe o desenrolar daquela cena. Daniel
comunicou a Suzane e Andreas numa única tomada a morte de Manfred e
Marísia. Em seguida, os três se abraçaram por alguns segundos, sem chorar.
Suzane desfez o abraço a três e foi até o policial. Amarrou o cabelo para trás,
ajeitou a roupa e fez uma pergunta de ordem prática:
— Seu policial, meus pais estão mortos! Quais procedimentos devemos
tomar agora?
Boto cou mudo, afastou-se indignado, deixando Suzane no vácuo.
Acostumado a fazer esse tipo de diligência, o policial sempre se deparava
com pessoas altamente alteradas ao descobrir que um parente foi morto de
forma inesperada, como em latrocínios ou atropelamentos. A maioria só
acredita depois de ver o corpo. É comum, por exemplo, parentes sacudirem
o cadáver numa atitude desesperadora de tentar acordá-lo. Outros não
resistem à forte emoção e desmaiam. Há os que gritam de dor. Suzane não
teve nada disso. Nem Andreas, a bem da verdade. Com ceticismo pirrônico,
Boto entrou na viatura da polícia. Ao colega de pro ssão sentado no banco
do carona, comentou:
— Como pode? Ela acabou de saber que os pais estão mortos e nem
sequer chorou. Nem uma lágrima. Já veio me perguntar quais os
procedimentos. Você acredita?
— Sim, acredito. Às vezes, a pessoa chora por dentro – ponderou o outro
policial.
— É verdade – admitiu Boto.
— Você acha que esses garotos mataram os pais? – arriscou o colega.
— Tenho dúvidas. Aqui, tudo é estranho e sinistro – respondeu Boto.
A dúvida, às vezes, pode ser um elo tão poderoso e sustentável quanto a
certeza. Boto suspeitava daquela menina fria que economizou lágrimas
quando soube da morte dos pais. Em minutos, a Rua Zacarias de Góis foi
tomada por carros da polícia, do Instituto Médico Legal (IML) e da imprensa.
O excesso de luzes vermelhas e azuis emitidas pelo giro ex das viaturas
acordou a vizinhança. Astrogildo, o pai de Daniel e Cristian, surgiu no meio
da balbúrdia após receber uma ligação do lho. Ele cumprimentou o casal
de assassinos e entrou na mansão para ver a cena do crime. Depois foi até o
policial Boto se inteirar dos fatos. Com receio de ser preso em agrante por
falsidade ideológica, Astrogildo não ousou se apresentar a um policial como
juiz. Também quis saber de Boto quais seriam os próximos passos.
— E agora? Como vai ser?
— Vamos todos para a delegacia registrar a ocorrência. A Suzane vem
comigo na viatura – advertiu Boto.
— Não, não e não! Ela não vai entrar em carro da polícia. Ela é vítima.
Acabou de perder os pais, tadinha! Está abalada. Ela vai comigo! – insistiu
Astrogildo.
São Paulo estava agitada na manhã daquela quinta-feira, 31 de outubro
de 2002. Feito de carro, o trajeto da mansão até a Primeira Delegacia do
Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) durou 20
minutos. O prédio imponente de 20 andares do DHPP ca no Centro Velho
de São Paulo, próximo à Rua Santa I gênia, o paraíso dos artigos eletrônicos
da capital. Suzane, Daniel, Andreas e Astrogildo caminharam conduzidos
por Boto por corredores apertados até chegarem a uma sala de espera no
terceiro pavimento. Sonolenta, Suzane deitou no colo do namorado e
cochilou enquanto recebia carícias nos cabelos. Por volta das 6h da manhã, o
casal cou frente a frente com a delegada Cíntia Tucunduva Gomes. Na sala,
havia pelo menos uma dezena de policiais e investigadores, entre eles o Boto.
Antes de Cíntia fazer as perguntas, Suzane fez uma súplica:
— Posso pedir uma coisa à senhora?
— Pode, claro.
— Tudo o que mais quero nesta vida é que a polícia prenda quem matou
os meus pais. Prenda! Prenda! Prenda! – reforçou, enfática, com voz
aveludada.
— Prometo a você que quem fez isso será capturado – pressentiu a
policial civil.
Na delegacia, enquanto registravam a ocorrência de número 1.657/02,
Suzane e Daniel chamaram a atenção dos policiais pelo excesso de cenas
românticas. Ela começou a relatar como recebeu a notícia da morte dos pais
e detalhou a sua agenda no dia do crime. Entre uma pergunta e outra feita
pela delegada, Suzane fechava os olhos e dava um beijo romântico em
Daniel. Às vezes, Cíntia fazia uma pergunta trivial, do tipo “quando você viu
seus pais pela última vez?”. A jovem se virava para o namorado e repassava a
pergunta: “Eu não sei direito. Quando foi mesmo, amorzinho?”. E sentava
outro beijo nele. O namoro fora de contexto começou a irritar os policiais.
Astrogildo assistia àquelas cenas sem tecer nenhum comentário. Foi ele,
inclusive – com autoridade de falso juiz –, quem encerrou o procedimento.
Alegou o raiar do sol e cansaço coletivo. Levantou-se da cadeira e interveio:
— Delegada, é o seguinte: a ocorrência está registrada. Agora cabe à
polícia investigar quem matou. Olha para a cara dessas crianças. Elas estão
sem dormir desde ontem. Vou levá-las para casa. Se precisar de mais
esclarecimentos, ligue outro dia.
Ligeira, Suzane levantou-se da cadeira, e Cíntia pediu para ela assinar o
boletim como testemunha. No campo “natureza da ocorrência” estava
escrito “latrocínio”. Mesmo exausta, Suzane sentou-se novamente para ler o
documento com atenção antes de pôr o seu nome nele. Cautelosa, passava a
ponta da caneta em cada linha do texto para não deixar escapar nada.
Quando acabou de ler as quatro páginas descrevendo as circunstâncias do
duplo homicídio, a jovem balançou a cabeça de um lado para o outro em
sinal de discórdia. Na última folha, constava que os investigadores
encontraram na biblioteca a mala 007. Quando leu essa parte, Suzane pediu
para a delegada mencionar o dinheiro roubado, citando novamente a
quantia com exatidão (8.000 reais, 5.000 dólares e 1.000 euros). Ousada, a
assassina fez outro apontamento:
— Tem outra coisinha, delegada: meu sobrenome está escrito de forma
errada. O correto é Suzane von Richthofen. Aqui tá “Richtofen”, sem o H
depois do T. Conserte, por favor – exigiu.
Após as devidas correções, Suzane assinou o boletim de ocorrência. A
assassina já estava passando pela porta de saída de mãos dadas com Daniel
quando a delegada conseguiu lhe fazer uma última pergunta:
— Me diga uma coisa, Suzane: quem você acha que matou os seus pais?
— A empregada! – respondeu ela, determinada e seca, surpreendendo a
todos.
Astrogildo, Daniel, Suzane e Andreas seguiram para a residência da
família Cravinhos. Tomaram café e dormiram por volta das 8h. Enquanto
descansavam, peritos e policiais faziam uma varredura na mansão dos
Richthofen. Legistas levaram o corpo de Manfred e Marísia para o IML e lá
esquadrinharam os cadáveres em busca de informações úteis à elucidação
do crime. Pistas coletadas na mansão cruzadas com dados colhidos dos
corpos das vítimas levaram os investigadores a tirar a primeira conclusão:
mais de uma pessoa matou o casal simultaneamente, pois se fosse apenas
um assassino daria tempo de uma das vítimas pelo menos tentar escapar da
cama. Quando se depararam com o fundo falso do closet aberto, os policiais
chegaram a outra conclusão importante: quem acessou aquele
compartimento secreto conhecia os segredos da casa. A arma caída no chão
próximo da mão de Manfred ajudou os investigadores a chegarem a outra
certeza: não foram ladrões pro ssionais que entraram ali. Esse tipo de
bandido jamais deixaria uma arma calibre 38 nova com cinco balas para
trás. Jamais!
Na biblioteca da mansão, os peritos encontraram caída no piso a tal
pasta 007. Só ao suspendê-la do chão, no entanto, eles atestaram, pelo rasgo,
que a valise estava vazia. Os policiais caram surpresos. A nal, como Suzane
sabia que o dinheiro não estava lá se a mala estava fechada a segredo e caída
no chão com o corte lateral virado para baixo? O golpe na mala também
suscitou outro enigma. Os peritos encontraram devidamente guardada
numa gaveta da cozinha a faca serrilhada usada para cortar a pasta. Na
lâmina, havia vestígios do couro de revestimento da valise. Dedução dos
peritos: quem fez o rasgo sabia onde estava a faca e ainda se deu ao trabalho
de guardá-la depois do uso. Sabe quando um ladrão faria isso? Nunca,
nunca, nunca!
Outros elementos levaram os policiais a crer que pessoas próximas da
família seriam autoras do crime: 1) Os quartos de Suzane e de Andreas não
foram vasculhados; 2) Sobre a mesa da biblioteca havia um celular e dois
talões de cheques; 3) Não levaram da mansão os dois carros novos de luxo
das vítimas (uma Blazer e um Santana) e nenhum eletrônico de valor; 4)
Não havia sinal de arrombamento. Entretanto, aquele monte de conclusões
formava apenas uma montanha de indícios. Não havia evidências revelando
autoria com nome e sobrenome. Enquanto os investigadores trabalhavam na
mansão dos Richthofen, a campainha tocou. Era Rinalva chegando para
trabalhar. Ao se deparar com os policiais dentro da casa, a empregada levou
um susto. Os policiais a intimidaram:
— Quem é a senhora? – quis saber um agente.
— Meu nome é Rinalva. Sou empregada da casa.
— A senhora tem a chave?
— Tenho.
— Então por que tocou a campainha?
— Porque a porta está lacrada e tem muitas viaturas lá fora.
— A senhora precisa prestar esclarecimentos na delegacia.
Rinalva, uma empregada nordestina e pobre cujo sonho era ter uma casa
própria, que conseguiu realizar com a ajuda de Santa Marísia, tornou-se
suspeita de matar os patrões. Foi levada para a delegacia imediatamente. No
caminho, chorou pela morte da médica e do engenheiro e chorou por medo
de ser presa acusada de duplo homicídio. Rinalva depôs para a delegada
Cíntia no DHPP. Deu detalhes da rotina do casal, de Andreas e de Suzane e
a rmou ser comum os patrões beberem cerveja, vinho e uísque diariamente,
principalmente durante o almoço. Contou que as vítimas eram tão exigentes
ao ponto de obrigá-la a entrar pelo portão de serviço e sempre ter acesso à
mansão pelas portas dos fundos. Apesar dessas formalidades, Rinalva
a rmou que eles eram ótimos chefes. A doméstica dissipou as suspeitas ao
levar o namorado e uma irmã como álibi. Os dois con rmaram à delegada
que Rinalva estava em casa na noite do crime. Cíntia revelou então que foi
Suzane quem apontou a empregada da casa como suspeita. Imediatamente,
Rinalva se lembrou de Diana, a autora de ameaças à Marísia no portão:
— Conte como foram essas ameaças – pediu a delegada.
— A Diana era muito indiscreta e fofoqueira, e dona Marísia não gostava
disso. Ela foi demitida após um mês de trabalho e passou a ligar todos os
dias cobrando uma dívida. Até que ela foi ameaçar dona Marísia
pessoalmente – resumiu.
Dispensada pela polícia, Rinalva passou a ser seguida por investigadores
a todo lugar que ia, mesmo depois de jogar a suspeita nas costas de Diana.
Num depoimento seguinte, dado pela ex-paciente de Marísia, Cláudia Sorge,
Diana foi apontada novamente como possível assassina. Como já se sabia
àquela altura do tempo, Marísia costumava estreitar laços de amizade com
suas pacientes, prática abominada pelo Conselho Federal de Medicina
(CFM). Cláudia admitiu em depoimento que, nas terapias, a conversa
sempre escapava para o lado pessoal. “Durante uma sessão, a Marísia me
contou que a Diana costumava fazer comentários maldosos de cunho sexual
sobre Andreas para os vizinhos”, relatou na polícia.
Outra paciente de Marísia, Maria Isabel Smith Junqueira, foi à polícia
con rmar as ameaças feitas por Diana à médica psiquiatra, detalhando o
episódio em que a ex-empregada a abordou de forma agressiva na saída de
casa para cobrar a dívida de 1.700 reais. Diana passou a ser caçada
freneticamente pela polícia. Em depoimento, ela con rmou as ameaças, no
entanto apresentou um álibi tão forte – ela estava internada em um hospital
público na semana do crime – que a polícia a excluiu sumariamente da lista
de suspeitos. A bem da verdade, o crime nem sequer precisou das
funcionárias da casa para ser esclarecido. Uma semana depois, uma moto
Suzuki de 156 cavalos se encarregou de jogar luz sobre os verdadeiros
assassinos.

* * *

O casal Richthofen foi enterrado na sexta-feira, 1o de novembro de 2002,


na sepultura 97 da quadra XII do Cemitério do Redentor, no bairro do
Sumaré, em São Paulo. O jazigo é simples. Além deles, foram sepultados lá,
ao longo de 70 anos, oito entes da família Richthofen e quatro pessoas de um
braço genealógico de Manfred, conhecido como família Matheis. Todos que
morreram antes de Manfred e Marísia foram exumados na década de 1970.
Os nomes dos mortos estão escritos na lápide de granito ornamental
marrom, mas nenhum deles tem epitá o.
No dia 15 de março de 2005, o jazigo recebeu o corpo de Margot Gude
Hahmann, avó paterna de Suzane, morta aos 82 anos. Apesar de a ossada de
Margot ainda estar no túmulo, seu nome não é citado na lápide. Nos anos
2000, por muito pouco os corpos de Manfred e Marísia não foram
desenterrados e despejados em vala comum por causa de dívidas com o
município. A família Richthofen simplesmente deixou de pagar por dois
anos a taxa de 432 reais referente à manutenção da sepultura. A
administração do cemitério chegou a preparar o edital para leiloar o
sepulcro, mas a família quitou a dívida quando recebeu o último aviso. Em
junho de 2019, a sepultura já acumulava nova dívida, dessa vez de 1.295
reais, segundo cálculos da prefeitura de São Paulo. Há dez anos nenhum
parente visita o túmulo, nem mesmo no Dia de Finados.

* * *

Na noite em que matou dona Marísia, Cristian saiu de casa às 21h30, no


bairro de Moema, para se encontrar com Daniel e Suzane e seguirem juntos
para a mansão dos Richthofen. No elevador, topou com a amiga e vizinha
Cristiane Santos Silveira, de 23 anos na época. Esteticista, ela gostava de
moda, música e programas radicais. Convidou Cristian para assistir a dois
amigos em comum, Guimil e Marcos, disputarem naquela noite uma queda
de braço no Nectar Bar, localizado na esquina da Avenida Brigadeiro Faria
Lima com a Juscelino Kubitschek. Cristian agradeceu o convite e recusou,
justi cando que havia marcado com Daniel e Andreas uma disputa de jogos
na Red Play. Cristiane insistiu, mas ele foi irredutível. Ela se despediu do
amigo e foi assistir à queda de braço no bar. Cristian foi matar dona Marísia.
Guimil era um homem musculoso e o seu rival, magrelo. Ou seja, estava
na cara quem sairia vencedor daquele embate. Apesar de ser uma luta
amadora, os jogadores seguiam regras de competições pro ssionais. Não
podiam usar anéis, relógios e pulseiras. O braço usado na luta deveria ter a
mão colada na do adversário e alinhada no centro da mesa. Nem os dedos
escapavam do regulamento. Os polegares sempre unidos e entrelaçados; a
falange distal do pólex tem de estar sempre à vista. A mão livre segura a
lateral da mesa. Já os pés não podem perder contato com o chão, caso
contrário é marcada uma falta. Ganha quem tiver força su ciente para fazer
o braço do oponente desabar sobre a mesa.
O tempo da partida é indeterminado, mas a luta entre Guimil e Marcos
durou poucos segundos. Logo no início do embate, Marcos usou uma
técnica conhecida como gancho. Trata-se de uma artimanha básica desse
esporte. Marcos, o magrelo, girou o pulso para dentro e trouxe o próprio
braço para próximo de si. Assim, ele usou toda a energia do corpo num
único movimento de ataque, enquanto Guimil passou a se defender usando
apenas o braço. O golpe foi tão rápido quanto uma piscada de olhos. Para
derrotar Guimil, o oponente empregou uma força tão bruta que o braço do
amigo quebrou na altura do úmero. O coitado sentiu tanta dor que desabou
no chão, contorcendo-se e fazendo caretas. Cristiane e Marcos o levaram às
pressas à emergência do Hospital São Paulo. Lá eles descobriram que a
potência do golpe de Marcos resultou numa fratura tipo helicoidal, quando
o osso quebra por torção em espiral. Cristiane percebeu que o atendimento
médico a Guimil iria demorar. Ela resolveu passar em casa para pegar
dinheiro e voltar ao hospital.
Quando chegou de carro ao prédio em que mora, à 1h45 da madrugada,
Cristiane viu Cristian na janela do apartamento fumando um cigarro. A essa
altura, o jovem havia assassinado Marísia fazia duas horas. Como ele morava
no terceiro andar, ela puxou conversa da calçada da rua. Contou que Guimil
estava no hospital com o braço quebrado. Cristian desceu e se pronti cou a
ajudar. Cristiane pegou dinheiro e os dois seguiram ao hospital no carro
dela. Guimil passava por uma série de exames e radiogra as. Cabisbaixo,
Marcos sentia-se culpado por ter machucado o amigo. Cristian, apesar de ter
matado a mãe de Suzane a pauladas há poucos instantes, encontrou forças
para consolar o amigo na sala de espera.
— Esse tipo de acidente é comum em esportes de luta. Você não tem
culpa – confortou Cristian.
— Eu sei. Mas acho que exagerei – insistiu Marcos.
Os três falavam banalidades enquanto Guimil recebia tratamento
médico. De repente, Cristian se afastou e caminhou sozinho pelo amplo
corredor de piso azul-celeste do hospital. Avistou uma cadeira de rodas
largada num canto, sentou-se nela combalido e baixou a cabeça, levando as
duas mãos ao rosto, comprimindo as bochechas. Feito criança, Cristian
verteu lágrimas copiosamente. Era um pranto sonoro de desespero.
Cristiane ouviu o choro do amigo de longe e foi até ele:
— Nossa, Cristian! Você está soluçando. O que houve?
— Não sei. Não estou legal. Estou com uma sensação estranha. Um
pressentimento ruim. Mau presságio. Sei lá...
— Deve ser o clima pesado de hospital.
— Pode ser... – encerrou Cristian, enxugando as lágrimas.
Ainda no corredor azulado, afastado de Marcos, Cristian abordou a
amiga com o olhar xo:
— Cristiane, que horas são?
— São quase 4h da manhã – respondeu ela.
— Que horas a gente se encontrou lá no prédio para vir ao hospital?
— Sei lá. Acho que era entre 1 e 2 horas da madrugada. Por quê?
— Não, não. Não era entre 1h e 2h da madrugada. Você está enganada!
Era por volta de meia-noite! – corrigiu ele.
— Acho que não. Meia-noite era a hora que eu e o Marcos chegamos
com o Guimil aqui no hospital – informou Cristiane.
Angustiado, Cristian segurou fortemente os ombros de Cristiane e fez
um apelo dramático, deixando-a assustada:
— Cristiane, olha só: se alguém perguntar desde que horas estamos
juntos, preciso que diga “a partir de meia-noite” – suplicou o assassino.
— Ok, ok! – respondeu a amiga sem entender nada.
Guimil foi liberado por volta das 5h da manhã. Saiu com o braço
engessado e apoiado por uma tipoia. Era levado em uma cadeira de rodas
empurrada por Marcos, que se desculpava a cada cinco minutos. Com
exceção de Cristian, todos passaram a rir, descontraídos com a situação. De
lá, foram comer sanduíche no McDonald’s da Avenida dos Bandeirantes já
com o dia clareando. Ainda em clima de alegria, Cristiane e Marcos
pegaram uma caneta e passaram a escrever frases exaltando a amizade no
gesso branquíssimo que moldava o braço quebrado de Guimil. Cristiane
escreveu: “Que a sua recuperação seja rápida”. Marcos registrou o seu
remorso com o clichê: “Se arrependimento matasse...” Cristian, por sua vez,
pegou a caneta e escreveu lentamente um trecho da música “Como uma
onda”, de Lulu Santos e Nelson Motta: “Nada do que foi será de novo do jeito
que já foi um dia”. Ninguém entendeu. Da lanchonete, cada um seguiu para
a sua casa. No primeiro telejornal do dia transmitido em rede nacional, a
notícia mais importante foi anunciada pelo apresentador assim: “Um
mistério para a polícia paulista: o assassinato de um casal dentro de casa
num bairro nobre de São Paulo”. Era só o começo da cobertura massi cada
que a imprensa faria do caso Richthofen.
Em casa, Cristian não conseguiu dormir, apesar de ter virado a noite
acordado. Ele tomou um banho gelado, subiu até o 14o andar e bateu na
porta do apartamento do amigo Jorge Ricardo March, de 24 anos na época.
Jorge era estudante de Direito e estagiava em um renomado escritório de
advocacia. A ele, Cristian disse guardar dólares em casa há muito tempo e
tinha visto na TV que era o momento propício para gastá-los, pois a moeda
norte-americana estava em alta. Queria aproveitar a oportunidade para
comprar uma moto potente. Mas havia um porém. Ele não podia pôr o
veículo em seu nome por questões pessoais envolvendo sua ex-namorada,
Nathalia, que morava em Londrina e criava um lho seu. Cristian também
alegou ter dívidas em bancos. Ou seja, ao adquirir um bem em seu nome,
poderia perdê-lo em ações de arresto movidas por credores.
Jorge se comoveu com aquele poço de lamúria e foi naquela manhã com
o amigo à loja Nahime Motos, no Brooklin. Lá, Cristian escolheu uma
Suzuki usada modelo GSX 1.100, comprada à vista por 3.600 dólares (cerca
de 12.000 reais na época) e paga com 36 notas de 100 dólares. Conforme
acertado, a moto cou em nome de Jorge, mas quem saiu de lá pilotando foi
Cristian. No escritório, Jorge viu no noticiário uma reportagem sobre a
morte de Manfred e Marísia falando justamente sobre o roubo de moedas
estrangeiras. Ele sabia que o irmão de Cristian namorava a lha das vítimas.
Aventureiro, Cristian encheu o tanque da sua possante e andou pela
cidade por mais de quatro horas. Foi mostrar o brinquedo novo aos amigos.
Cristiane, Guimil e Marcos foram os primeiros a ver. A Suzuki escolhida por
ele é uma das máquinas mais cobiçadas por motociclistas do mundo e tem
até fã-clubes espalhados pela Europa, Japão e Estados Unidos. A moto
consegue fazer de 0 a 100 quilômetros por hora em menos de três segundos,
transformando a Suzuki num verdadeiro monstro de duas rodas. Os
amantes de motociclismo apelidaram esse modelo de “bandida” e se referem
a ela com o seguinte predicado: “A verdadeira estupidez em forma de
máquina”. Inebriado, Cristian acelerava a sua moto e dava cavalos de pau no
meio da Rua Graúna, em Moema, onde morava. Àquela altura do dia, só se
falava na morte do casal Richthofen e no roubo na mansão. Os amigos de
Cristian passaram a descon ar dele. Cristiane se lembrou da conversa no
hospital e o confrontou:
— Cristian, desce dessa moto! Quero falar com você!
— Fala daí – e continuou dando piruetas.
— Você tem alguma coisa a ver com a morte dos pais da Suzane? –
questionou ela na frente de Guimil e Marcos.
Submetido a uma pergunta tão indigesta, Cristian teve náuseas. Parou a
moto, tirou o capacete e se aproximou de Cristiane. Com a boca seca e
trêmula, perguntou se a amiga estava doida. Cerca de dez vizinhos cercaram
os dois na rua para ouvir a conversa:
— Eu tenho cara de assassino? – ousou perguntar Cristian.
— De onde veio o dinheiro para comprar essa moto? – replicou
Cristiane.
— Ela não é minha. É do Jorge. Foi ele quem comprou. Só estou
guardando – justi cou, tirando do bolso a nota scal da moto em nome do
amigo e mostrando-a para quem quisesse ver.
— Não acredito em você! – nalizou Cristiane.
Pela cara dos amigos e vizinhos, Cristiane não era a única incrédula ali.
Cristian sentiu uma inquietação tomar conta do seu corpo. A moto
reluzente chamava muita atenção. Quanto mais o noticiário falava do crime
da Rua Zacarias de Góis, mais ele cava perturbado e se revelava
incompetente na arte de dissimular. A casa da sua namorada, Maria Lúcia,
de 16 anos na época, era no mesmo prédio em que morava, no sexto andar.
Do alto, ela o viu se exibindo na moto e resolveu descer. Estava acertado que
o casal passaria o m de semana na chácara da família dela, no município de
Mairinque, a 60 quilômetros da capital. Eles viajariam à noite. Apesar da
pouca idade, a adolescente era astuta. Ao ver Cristian ao lado da Suzuki,
Maria Lúcia foi logo ordenando:
— Tira essa moto daqui!
— Vamos para o sítio na moto, amor – anunciou ele.
— Nem pensar!
— Por que não? – quis saber.
— Cristian, eu não sou mais criança. Eu sei como você comprou essa
moto! – especulou Maria Lúcia para desespero do namorado.
— Eu vou te explicar...
Antes de ele começar a ladainha da moto comprada pelo amigo, Maria
Lúcia virou as costas, deixou o namorado falando sozinho no meio da rua e
voltou para casa. Não havia ninguém no apartamento. Ela ligou a TV e viu
no jornal o enterro de Manfred e Marísia. A cena de Suzane toda
descabelada usando uma blusinha preta com a barriga chapada à mostra em
pleno cemitério chamou mais atenção do que as lágrimas falsas que
escorriam pelo rosto torto por excesso de caretas. Pela TV, era possível ver
Daniel vestido de camisa social e gravata consolando a namorada enquanto
os caixões seguiam cova abaixo cobertos por uma chuva de pétalas. As
câmeras de televisão captaram Andreas arrasado. De dentro do campo-
santo, o repórter Valmir Salaro, da TV Globo, narrava o funeral assim:
“O casal foi enterrado num cemitério da zona oeste de São Paulo na
presença dos dois lhos. O duplo assassinato ainda é um mistério para a
polícia. Foi nessa mansão que Manfred von Richthofen e sua mulher, Marísia,
foram mortos com pancadas na cabeça. Os dois lhos disseram que tinham
saído de casa. Andreas a rmou que estava numa casa de jogos eletrônicos até
as três da madrugada. Suzane contou à polícia que estava num motel com o
namorado. Do motel, ela passou para buscar o irmão. Ao chegarem em casa,
encontraram os pais mortos e chamaram a polícia. Suzane disse que foram
roubados dólares da mansão. Para os investigadores, os ladrões conheciam a
casa, pois os alarmes de segurança foram desativados e não havia sinal de
arrombamento”.
Alarmado, Cristian estacionou a moto na garagem do prédio e subiu até
o apartamento da namorada. No trajeto, começou a derreter com medo de
ser descortinado. Das profundezas da sua alma, veio naquele momento o
sentimento de que ser preso era só uma questão de tempo. Ele até já se
imaginava algemado dentro de um camburão da polícia e sendo despejado
em uma penitenciária. Vulnerável diante de Maria Lúcia, na sala, começou a
chorar. Tentava falar e não conseguia. Estava tão fora de si que babava
enlouquecido e gemia como se fosse parir. Trôpego, jogou-se no tapete
felpudo da sala diante da garota e começou a se expressar com muita
di culdade. Segurando as mãos de Maria Lúcia, de joelhos, Cristian abriu o
coração:
— Amor, z uma coisa horrível... – anunciou, desmanchando-se em
lágrimas.
— O que você fez? – ela quis saber.
— Você já sabe...
— Quero ouvir da sua boca! Fala!
— Eu matei a mãe da Suzane – confessou.
— Tá escrito na sua cara! – anunciou a namorada, revoltada.
— Serei preso! – previu Cristian, já um assassino confesso.
Maria Lúcia cou muda, prostrada no meio da sala vendo o namorado
desmantelado.
— E agora? O que eu faço? – interrogou Cristian.
— Devolva essa moto! – sugeriu a adolescente.
O pai de Maria Lúcia, Sílvio Rodrigues Peixoto, o cial de Justiça, andava
armado e era considerado um pai severíssimo. Com medo da reação dele, a
garota resolveu não compartilhar a con ssão do namorado assassino. Ela
também passou a ter medo de Cristian, uma vez que ele revelou-se um
homem cruel, capaz de matar. O receio de Maria Lúcia a fez guardar aquele
segredo para si. À noite, foi para o sítio da família com Cristian, conforme o
combinado. Lá, já recomposto, o homicida mostrou à namorada as joias
roubadas da mansão dos Richthofen. Maria Lúcia pegou duas peças (um par
de brincos prateados em forma de elefante e um anel de ouro) e
experimentou. Gostou tanto que resolveu car com as joias. Mandou o
namorado dar um sumiço com o restante. Cristian resolveu enterrá-las no
quintal. Jantaram, tomaram vinho e zeram amor.
Um vampiro, uma senhora sentada, um
homem deitado e o demônio com chifres

F
undado em 1922 para sepultar protestantes estrangeiros e com
tamanho equivalente a um campo de futebol, o Cemitério do Redentor
cou pequeno para o funeral do casal Richthofen. Apesar de Manfred
e Marísia terem poucos amigos, a imprensa acabou atraindo uma legião de
curiosos. Eles se apinhavam sobre as sepulturas e subiam até em árvores
para espiar o caixão do casal passar pelas vielas apertadas do local. No meio
da muvuca, Amanda, a melhor amiga, tentou encontrar Suzane para
consolá-la, mas foi impossível chegar perto dela por causa do tumulto. Logo
após o enterro do casal, Suzane e Daniel foram para a mansão. Era uma
sexta-feira e Rinalva estava em casa, chorosa, sem saber o que fazer. Foi
Suzane quem deu as primeiras instruções à empregada:
— Dona Rinalva, tudo bem com a senhora? – perguntou.
— Sim. Ainda trabalho nesta casa?
— Claro que sim! Só que agora eu e o meu irmão somos os seus patrões.
— O que devo fazer? – quis saber.
— Me acompanhe! – ordenou a nova ama.
Pela primeira vez Suzane seguiu até o quarto dos pais depois do duplo
homicídio. Acompanhada da funcionária, a jovem cou uns instantes em
silêncio dentro do cômodo. A órfã olhava atentamente para as paredes, para
o chão e esticava o pescoço para enxergar o teto, como se inspecionasse o
palco do crime. Depois, arregaçou as mangas e começou a agir. Puxou as
cortinas, abriu as janelas. Havia sangue ressecado sobre a cama, nas paredes
e até no gesso branco do forro. Enfática, Suzane ordenou:
— Dona Rinalva, limpe tudo, tudo, tudo! Até o m da tarde não quero
ver nenhuma manchinha de sangue neste quarto. A senhora ouviu bem?
— Mas, Suzane...
— Dona Suzane! Agora sou dona! – corrigiu a patroa de quase 19 anos.
— Desculpe! Dona Suzane, esse tipo de trabalho é complicado. Não seria
melhor chamar uma empresa especializada em limpeza pesada?
— Nem pensar. Limpe a senhora sozinha! – insistiu.
Contrariada, Rinalva passou a esfregar as paredes com água e sabão.
Com muita di culdade, removeu as manchas maiores. A empregada estava
pondo a coberta da cama na máquina de lavar, quando Daniel interveio:
— O que a senhora está fazendo?
— Vou lavar os lençóis!
— Nem pensar. Jogue tudo fora no lixo! – mandou.
Em seguida, Suzane decidiu jogar a cama toda fora. No nal da tarde,
quando a empregada estava de saída, Suzane pediu um momento. E seguiu à
suíte para conferir se a limpeza estava do seu agrado. Não estava.
— Dona Rinalva, ainda tem mancha de sangue no teto! – observou.
— Eu z o que pude, dona Suzane. Tinha muito sangue.
— Limpe tudo. É uma ordem! Não quero uma gota vermelha aqui!
A funcionária usou água sanitária e removedor para eliminar todos os
vestígios do crime. Foi embora às 22h. No trajeto para casa, da porta da
mansão até o seu casebre, na periferia de São Paulo, Rinalva percebeu ser
seguida discretamente pelo mesmo investigador de outrora. Ela subiu no
ônibus, pagou a passagem e escolheu um assento duplo vazio. O policial foi
atrás e sentou-se ao seu lado.
— Boa noite, dona Rinalva. Sou policial.
— Eu sei.
— Vamos conversar?
Mesmo receosa, ela respondeu a todas as perguntas feitas por ele sobre a
nova rotina na mansão dos Richthofen. Rinalva revelou a ascensão da
menina que mandou matar os pais ao matriarcado e deu detalhes da
di culdade em sumir com as manchas de sangue das paredes. Quando falou
que Suzane e Daniel jogaram a cama fora, os olhos do investigador se
arregalaram.
No sábado pós-funeral, Suzane completou 19 anos. A assassina
dispensou o luto e resolveu comemorar o aniversário com um churrasco.
Para não chamar muita atenção, convidou só amigos íntimos. Encheu a
piscina, pôs música alta e serviu cerveja e vodca com energético. Daniel
cou encarregado de assar a carne. Amanda foi convidada, mas resolveu não
comparecer alegando ter medo de assombração. De volta do sítio, Cristian
levou Maria Lúcia. Ousada, a adolescente usou os brincos em forma de
elefante de Marísia. Suzane reconheceu os acessórios da mãe e pegou
levemente nas orelhas da garota: “ caram lindos em você!”.
No início da tarde, no auge da festa, a campainha tocou. Acreditando
serem repórteres à porta, Suzane decidiu não atender. Da cozinha, pelo
sistema de câmeras, Daniel viu seis policiais no portão. A aniversariante,
vestindo biquíni, foi lá fora com um cigarro em uma mão e uma lata de
cerveja na outra. A delegada Cíntia Tucunduva, acompanhada de
investigadores e peritos, pediu para entrar. Do portão, Suzane fez sinal para
Andreas abaixar o volume do som e permitiu o acesso dos policiais. Feito
uma guia de turismo, Suzane ciceroneou os investigadores por dentro da
mansão, enfatizando se tratar de um cenário de crime.
— Aqui é a sala, por onde os ladrões entraram – mostrou.
— Onde ca a suíte? – quis saber a delegada.
— Por aqui. Venham! – subiram a escada de dois lances.
No quarto dos pais, simpática, Suzane estendeu o braço lentamente para
anunciar:
— Foi aqui que tudo aconteceu. As paredes e o teto estavam sujos de
sangue, mas mandei limpar tudo, tudo, tudo.
— Onde está a cama? – interrogou a delegada.
— Mandei jogar fora, pois trazia lembranças ruins.
— Oi?!
Os policiais se entreolharam descon ados. O assassinato ainda não tinha
completado 48 horas. Suzane quebrou o clima tenso ao revelar que a cama
ainda estava no quintal. Os peritos recolheram a cabeceira, onde havia
marcas das porretadas dadas pelos irmãos Cravinhos. Cíntia fechou a cara e
fez perguntas de forma ríspida à Suzane:
— Quero saber onde você guarda o material de limpeza, menina!
— Na despensa.
— Mostra onde ca! – pediu a delegada, enfática.
Solícita, Suzane levou Cíntia e os peritos até o local, um compartimento
afastado da casa, próximo à churrasqueira, na área externa. Andreas e
Cristian se mostravam indiferentes à presença dos policiais na casa. Andreas
pôs fones de ouvido, ouviu música e viajou para outro mundo, dançando e
pulando. Daniel viu o movimento dos policiais rumo à despensa e foi atrás.
Lá dentro, as perguntas embaraçosas da delegada continuaram:
— Quero ver onde cam os sacos de lixo!
— No armário – apontou Suzane, incomodada.
Cíntia pôs luvas, abriu o armário e viu vassouras, panos de chão e
dezenas de garrafas plásticas contendo sabão líquido, água sanitária,
amaciante de roupa e detergentes. Nada de sacos de lixo. Na parte de baixo
do móvel, havia seis nichos com panos de chão e outros apetrechos. A
delegada remexeu um por um até encontrar um rolo de 100 unidades de
sacos pretos de 60 litros. Pelo tamanho da embalagem, foi possível concluir:
poucas unidades haviam sido retiradas do rolo. A delegada arrancou um
saco de lixo do rolo, levantou com a ponta dos dedos e fez uma a rmação
desagradável, porém proposital:
— Tá vendo esse saco, menina?
— Sim!
— Olhe bem para ele! Foi num saco como este que a cabeça da sua mãe
foi amarrada.
— Não sei. Foi? Eu não tive coragem de ver – desconversou Suzane.
Para os peritos, a delegada fez o seguinte comentário: “Os assassinos
conheciam tanto a casa que vieram buscar saco de lixo aqui na despensa,
neste armário, dentro desse nicho”. Suzane cou lânguida e Daniel
transpareceu nervosismo. Nenhum deles replicou a especulação da
delegada. Em seguida, a equipe guardou o rolo consigo sem dar qualquer
satisfação e foi embora. Inabalada, ainda com cigarro e bebida nas mãos,
Suzane se despediu dos policiais com um “até logo” e fechou o portão.
Daniel cou apreensivo.
— Essa delegada está descon ando de nós.
— Deixa ela descon ar. Quero ver ela provar! – desa ou Suzane.
— Estou começando a car com medo – admitiu Daniel.
— Já disse a você um milhão de vezes, mas vou repetir mais uma: para
de se comportar como um assassino. Você tem que ser frio. Senão, vai
acabar dando mancada e pondo tudo a perder – insistiu a jovem.
— Acho justamente o contrário. Essa sua frieza é que está dando
bandeira – ponderou o namorado.
— Não vou mais discutir. O tempo vai dizer quem está com a razão –
nalizou Suzane.
A presença dos policiais não conseguiu estragar a festa de aniversário da
parricida. A balada seguiu até o m da tarde com todos dançando música
eletrônica, bebendo e fumando maconha, inclusive Andreas. Na noite de
domingo, Suzane, Daniel e Andreas foram jantar na casa do tio Miguel
Abdalla Netto, irmão de Marísia. Ele estava preocupado com o fato de os
sobrinhos estarem em casa sozinhos. O crime foi pauta da refeição:
— Tomara que encontrem os assassinos – torceu Miguel.
— Ouvi dizer lá na polícia que os assaltantes fazem parte de uma
quadrilha pro ssional de fora do estado. Eles nunca serão presos – enfatizou
Daniel.
— Seja o que Deus quiser – nalizou o tio.
Miguel não quis prolongar o assunto mórbido. Após o jantar, durante o
cafezinho no sofá, tentou consolar Suzane com um abraço, mas ela estava
arredia. O tio viu naquela noite uma frieza nunca percebida antes na
sobrinha. Como a morte dos pais era muito recente, ele acreditou que aquela
reação inédita seria consequência de um choque emocional. No entanto, o
excesso de carícias trocadas entre Daniel e Suzane naquele encontro social
acendeu uma luz de alerta em Miguel. No nal do jantar, ele lembrou a
sobrinha de que os funcionários do consultório de Marísia precisavam ser
avisados o cialmente por alguém da família sobre o encerramento das
atividades. Na manhã do dia seguinte, Suzane e Daniel foram até lá. O casal
entrou sem cumprimentar as duas atendentes. Seguiram diretamente para o
gabinete de Marísia. Suzane abriu gaveta por gaveta e pegou dinheiro e
cheques assinados pelas pacientes, totalizando 8.500 reais em valores da
época. Na saída, a jovem comunicou em voz alta a demissão coletiva.
Irritada, uma das atendentes ligou para a polícia dando detalhes da visita do
casal.
Dois dias depois de dispensar as funcionárias de Marísia, Suzane
começou a receber uma série de intimações para depor na delegacia junto
com o namorado. O último convite foi feito no dia 20 de novembro. Suzane
teve um feeling de que esse seria um depoimento terminal. Amanda se
comprometeu a ajudar Suzane a escolher uma roupa adequada, pois ela
ainda recebia muitas críticas por causa do gurino de pouco pano usado no
enterro dos pais e replicado na primeira página de todos os jornais do dia
seguinte. Mas havia um problema. Amanda estava com medo de entrar na
mansão. Acreditando piamente que o casal Richthofen foi morto por
bandidos, a amiga vislumbrava o retorno dos assassinos para matar Suzane e
Andreas. Amanda também argumentava ter medo dos mortos. Com muito
esforço, Suzane a convenceu a entrar na casa. Na sala, Amanda sentiu um
frio na espinha. À medida que subia as escadas, o calafrio só aumentava.
Estar no local onde duas pessoas foram mortas brutalmente deixava a
estudante dominada pelo pavor. Ainda assim, ela acompanhou a amiga até o
quarto.
Suzane tinha pouquíssimas peças de vestuário para uma garota da classe
média alta de 19 anos. Para se ter uma noção, o guarda-roupa dela tinha
apenas duas portas e duas gavetas pequenas. Diante de tão poucas opções,
não havia muito o que escolher. Para ir à delegacia, Suzane vestiu calça jeans
azul-claro, jaqueta desbotada no mesmo tom e uma blusa amarelo-cajá.
Enquanto a jovem se arrumava, Amanda foi tomada por uma força externa
inexplicável no plano terreno. Deu uns passos – contra a sua vontade – e
saiu do quarto de Suzane. Movida por uma curiosidade mórbida e avessa,
virou o corredor à esquerda e entrou na suíte do casal Richthofen. Ficou
paralisada no cômodo. Quis sair dali, mas não teve forças. Começou a sentir
tremores. De repente, Amanda sentiu uma mão pesada repousar em seu
ombro direito e soltou um grito histérico. Era Daniel, com ar de dono da
porra toda. Os dois caram frente a frente:
— O que você está fazendo aqui? – quis saber Daniel.
— Eu? Nada! – respondeu Amanda, lacônica.
Intrigada com o berro da amiga, Suzane adentrou às pressas o quarto
dos pais. Amanda já estava recomposta do susto, mas ainda parecia distante.
De pé, no meio do quarto, a sensitiva fechou os olhos e construiu o seguinte
cenário em sua imaginação: a cama com o casal morto sobre ela, coberta de
sangue. Como Daniel estava lá, ao seu lado, ela o introduziu
inconscientemente na cena do crime fantasiada em sua cabeça. Amanda teve
um impulso arrebatador, abriu os olhos e falou para si: “Meu Pai eterno! Foi
ele!”. Sem se despedir, Amanda saiu correndo da mansão, tropeçando pelos
tapetes e degraus. Não mais com medo dos mortos. Dessa vez, ela fugia dos
vivos. Suzane e Daniel caram sem entender aquela cena.
— A sua amiga enlouqueceu? – quis saber Daniel.
— Ela tem medo de espíritos – contemporizou Suzane.
Enquanto dirigia sem rumo pelas ruas da cidade, Amanda relembrava as
cenas de ciúme protagonizadas por Daniel e Suzane na faculdade; de como
ela bancava as despesas dele; das queixas da amiga por causa do namoro
proibido e da arma mostrada por Daniel quando eles acamparam na praia.
A empá a do piloto na casa da namorada logo após a morte do casal
aumentava as suas descon anças. Três horas depois de sair esbaforida da
mansão, Amanda ligou para Suzane, mas ela não atendeu. Na mesma hora,
as duas passaram a trocar mensagens de texto pelo celular. Amanda iniciou
a conversa: “Preciso falar com você urgentemente”. De imediato, veio a
resposta: “Agora não posso, estou indo para a delegacia”. Amanda investiu um
pouco no suspense: “Temos de conversar antes de você depor. É sobre o
assassinato dos seus pais. Descobri algo importante”. Curiosa, Suzane não
resistiu: “Me encontre, então, em meia hora, no estacionamento do
supermercado Extra, perto da Avenida dos Bandeirantes”. Seguiram para lá.
No estacionamento, Amanda avistou o carro de Suzane e parou ao lado.
Não havia ninguém dentro do Gol da amiga. Amanda desceu e Suzane
apareceu por trás, assustando-a involuntariamente. Trêmula, começou a
falar:
— Suzane, não sei nem como começar. Estou muito nervosa. Olha, você
corre perigo. Tive uma visão quando estava no quarto dos seus pais. Uma
visão, uma premonição, uma clarividência, sei lá... Eu fechei os olhos e vi o
assassino dos seus pais lá dentro. Você não vai acreditar quem é...
— Do que você está falando, sua louca? – questionou Suzane, irritada.
— Vou te contar...
Quando se preparava para revelar à Suzane ser Daniel o assassino,
segundo a sua quimera, ele apareceu no estacionamento com sacolas de
supermercado e fumando um cigarro tranquilamente, interrompendo a
conversa. O piloto encarou Amanda, que deu três passos para trás, muda.
Suzane lançou a Daniel um olhar de cumplicidade. Em seguida, estimulou a
amiga a continuar falando:
— Amanda, você estava dizendo que teve uma visão e acabou
descobrindo quem matou os meus pais. Então diga quem foi para eu contar
à polícia – pediu Suzane.
Daniel encarou Amanda com um olhar de bala de carabina. Intimidada,
resolveu suspender a revelação. Desconversou dizendo ter tido um devaneio
e não uma visão. Suzane, aparentemente irritada, despediu-se
argumentando estar atrasada para depor. Daniel pediu para Amanda não
ligar mais para eles, pois todos os telefones estavam grampeados pela
polícia.
— É verdade, Amanda. Não ligue mais para o meu celular. A polícia está
investigando todo mundo que frequentava a minha casa. Se você car
ligando, mandando mensagem, vão colocar você na lista de suspeitos –
advertiu a jovem.
— Meu Deus! Tudo bem. Pode deixar. Nunca mais vou te ligar –
concordou Amanda.
Sem se despedir, Suzane entrou no carro, deu a partida e seguiu em
direção à saída do estacionamento com o namorado ao lado. Amanda cou
estática, incrédula, olhando o carro desaparecer. Sem entrar em qualquer
estado de arrebatamento, transe ou fantasia, ampliou a sua certeza incluindo
Suzane: “Minha Nossa Senhora! Não foi só ele. Foram eles!”.
Repentinamente, Suzane parou o carro um pouco antes de sair da área
interna do supermercado e deu ré para se reaproximar de Amanda, que
ainda estava no mesmo lugar. Ao parar ao lado da amiga, Suzane abriu a
porta e desceu. A tensão entre as duas se dissipou completamente. Sem dizer
nenhuma palavra, Suzane, que até então era avessa aos abraços de Amanda,
deu nela um bem longo, apertado e aconchegante abraço. As duas caram
entrelaçadas por um longo tempo, emocionadas. Ainda muda, Suzane
ajeitou o cabelo da amiga num gesto de carinho e se despediu como se não
fosse mais vê-la. Entrou no carro e seguiu para a delegacia. A tradução
daquele gesto extraordinário de ternura veio bem mais tarde, numa carta
escrita à mão por Suzane e endereçada à Amanda, na qual se lia em um
trecho:
“Amiga, por favor, acredite, eu não sou um monstro. [...] Me desculpa pela
decepção e me perdoa, se for capaz, por eu não ser a pessoa que você
imaginava que eu fosse. Queria te pedir um favor: cuida do Andreas como se
ele fosse o seu irmão mais novo. Ele é a coisa mais preciosa que tenho no
mundo. Por último, queria te fazer um pedido especial: nunca se esqueça de
mim”.

* * *

De mãos dadas, Suzane e Daniel seguiram para a delegacia. No caminho,


dentro do carro, agarrados, o casal fez um pacto de jamais se acusarem,
mesmo se submetidos às mais terríveis das torturas. Na TV, os programas
policiais mostravam detalhes do homicídio da Rua Zacarias de Góis. Sem
citar nomes, os policiais concediam entrevistas coletivas dizendo que o rol
de suspeitos havia se afunilado, sobrando apenas pessoas próximas da
família Richthofen. A concorrência acirrada entre as emissoras de TV fazia
os repórteres investigarem o crime por conta própria para obter informações
exclusivas. Nessa toada, o repórter da TV Globo Joaquim de Carvalho estava
conversando com Astrogildo Cravinhos na rua sobre a morte do casal
Richthofen, quando se deparou com Cristian e sua potente Suzuki. O jovem
chamava muita atenção montado na moto usando capacete preto de bra de
carbono e roupas de couro preto brilhoso com detalhes em metal prateado.
Todo o mundo olhava e comentava no bairro.
Esperto, o repórter seguiu a pista da Suzuki e chegou ao empresário
Marcos Nahime. Os dois zeram um link entre os dólares roubados da
mansão, Cristian e a moto. Pelo jornalista, o comerciante descobriu que o
seu cliente era irmão de Daniel, namorado de Suzane, ou seja, a lha das
vítimas. No mesmo dia, Cristian foi à loja implorar para desfazer o negócio.
Nahime aceitou a moto de volta e devolveu os dólares. Na sequência, ele
ligou para a polícia. Em menos de uma hora, investigadores con scavam a
moto e Cristian recebia de policiais uma intimação para depor já como
suspeito. Ele chegou à delegacia num camburão praticamente junto com
Suzane e Daniel.
Naquela fase da investigação, com todas as perícias concluídas e com o
comportamento apático de Suzane, a polícia já tinha todo o quebra-cabeça
montado. Com base em pequenas contradições (Daniel dizia ter transado
com a namorada no motel, enquanto ela assegurava não ter passado das
preliminares), a delegada Cíntia Tucunduva havia pedido para redigir o
pedido de prisão temporária do casal para enviar à Justiça. Com o
telefonema de Marcos Nahime para a delegacia, Cristian passou a ser o
personagem principal da novela policial.
Suzane, Daniel e Cristian foram acomodados em uma sala de espera no
terceiro andar do DHPP. As horas arrastavam-se, fazendo aquela demora
parecer eterna. Daniel e Suzane pareciam siameses, de tão coladinhos. A
delegada Cíntia encarregou-se de separá-los. Avisou que eles seriam ouvidos
simultaneamente, mas em salas distintas e por policiais diferentes. O casal
cou inquieto. Com a boca seca, Daniel começou a tremer. Suzane apertou a
sua mão gelada e pediu calma ao namorado.
A ideia dos investigadores era pressioná-los até se afogarem num mar de
contradição. Ou, na melhor das hipóteses, fazer com que se acusassem
mutuamente. Quando Suzane e Daniel foram isolados, o piloto transpareceu
nervosismo ao insistir em não soltar a mão da namorada. Equilibrada
emocionalmente, Suzane se despediu dizendo amá-lo. Ele, angustiado, deu
um beijo em sua boca e disse amá-la também. Cristian, por sua vez, suava
frio de tão nervoso. Suzane foi ouvida por Cíntia Tucunduva. Na sala, a
delegada anunciou de forma direta:
— Suzane, é o seguinte: você é suspeita de ter matado os seus pais.
— Jura? – reagiu calmamente e cheia de deboche.
— A casa caiu, querida! – a rmou a delegada, irônica.
Estudante do primeiro ano de Direito, Suzane já argumentava feito
advogada:
— A casa caiu? Não diga! Caiu pra quem? Onde? Como? Cadê as provas,
delegada? Traga provas irrefutáveis e não esses indícios questionáveis, como
saco de lixo! – exigiu Suzane, rme.
De fato, não havia provas, só convicção. Suzane venceu o primeiro
round. Na sala ao lado, Daniel fazia um esforço sobre-humano para se
manter seguro diante do interrogatório feito pelo delegado Domingos Paulo
Neto, diretor do DHPP na época. O policial começou perguntando onde o
piloto estava na hora do crime. Daniel respondeu ter passado a noite no
motel com a namorada e puxou do bolso a nota scal na tentativa
desesperada de mostrar provas da verdade. Os policiais chegaram a rir,
perguntando-se entre eles: a nal, quem guarda nota scal de motel? Para
tentar arrancar uma con ssão, o delegado resolveu blefar. Pegou o telefone e
ngiu falar com Cíntia Tucunduva. Ao desligar, disse que Suzane havia
incriminado Daniel naquele instante. O suspeito cou pálido, em silêncio. O
policial investiu na estratégia:
— Foi duplo homicídio. Motivo torpe. As vítimas não tiveram chance de
defesa. Meios cruéis. Você está na merda! Vai pegar pena máxima. Mas, se
confessar, poderá ter atenuantes...
— Não tenho nada para confessar! – cortou Daniel.
— Na verdade, nem precisa. Sua namorada já confessou e cou com os
benefícios que você acabou de recusar – bigodeou o delegado.
— Não acredito em você! Ela me ama! – enfatizou Daniel.
Enquanto o namorado assassino era espremido pelos policiais, Suzane
mantinha-se inabalada. Como a delegada já presumia que a jovem não havia
participado do assassinato de forma evidente, tentou comovê-la:
— Nós sabemos que você não matou ninguém. Se confessar, pode ter
uma pena bem menor, já que não tem sangue nas mãos...
— Não tenho nada a dizer – interrompeu Suzane.
— Você não quer acusar o seu namorado porque você o ama, né?
Quanto tempo você acha que dura o amor? Um ano? Dois anos? Cinco
anos? Quero ver durar uma pena de 30 longos anos, pois é o tempo que
vocês carão presos se não confessarem... Você na penitenciária feminina,
ele na masculina.
Suzane, apática, ouvia a tudo. O telefone tocou e Cíntia atendeu,
aumentando a tensão. Ao desligar, a delegada virou para Suzane e tentou a
estratégia do blefe feita pelo colega anteriormente:
— Seu namorado acabou de contar tudo com uma riqueza de detalhes
impressionante! – anunciou.
— Jamais! Ele me ama! Ele me ama! – reiterou Suzane.
— É incrível como as pessoas decidem o próprio destino num piscar de
olhos – losofou a policial, sem conseguir arrancar a verdade da depoente.
— Estou cansada! – retrucou Suzane.
— Você está sabendo da moto comprada por Cristian com dólares...
— Não, senhora! Que moto?
Os depoimentos já duravam quatro horas quando foi proposto um
intervalo. Daniel e Suzane conseguiram dar um jeito de se encontrar no
corredor da delegacia e trocaram carícias, abraços e beijos. O casal percebeu
que o m da linha estava próximo por causa da Suzuki comprada por
Cristian e intensi cava o afeto como uma forma de se despedir. Abraçados,
Daniel e Suzane teriam travado uma conversa tensa ao pé do ouvido para
não alcançar nenhuma testemunha.
— O seu irmão é um idiota. Comprou uma moto com os dólares no dia
seguinte – comentou Suzane, ríspida.
— Ele é uma criança ingênua – defendeu Daniel.
— Ingênua fui eu em con ar nesse idiota!
— Não fala assim do meu irmão – pediu.
Estrategicamente, Suzane mudou o tom e passou a falar com o
namorado usando a tradicional voz infantil, na esperança de se livrar do
pior:
— Olha, amorzinho. Aconteça o que acontecer, lembre-se sempre que eu
te amo agora e te amarei para sempre.
— Eu também te amo! – devolveu Daniel, beijando-a.
Suzane continuou com a voz anasalada, doce e romântica mesmo
naquele cenário hostil. Ela deu o último abraço caloroso no namorado.
Daniel baixou a cabeça para chorar. Suzane pegou em seu queixo e o ergueu
para encará-lo. O casal travou o diálogo derradeiro:
— Meu amor, preste atenção: se acontecer algo, preciso que você diga
que eu não z nada. Entendeu? Nada! Nada! Nada! – invocou Suzane,
enquanto fazia um carinho ardiloso em Daniel.
— Como assim?
— Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo! Depois de tudo que passamos, eu
amo mais ainda. Não podemos nos separar por nada neste mundo!
— Eu também te amo! – retrucou Daniel com os olhos molhados.
Abraçadíssima ao namorado, manipuladora ao extremo, Suzane deu a
cartada nal:
— Se você e eu formos presos, nunca mais nos veremos. Se só você for
preso, eu prometo visitá-lo todos os dias na cadeia e continuaremos juntos
para todo o sempre, entendeu? Por isso você tem que dizer que eu não z
nada. Até porque, vamos combinar, eu não matei ninguém, né? – ponderou
Suzane.
Daniel soltou a namorada assassina dos seus braços. Sem pestanejar,
disparou à queima-roupa:
— Às vezes, passa pela minha cabeça que fui usado por você!
Antes de iniciar ali no corredor da delegacia uma espécie de DR

(discussão da relação) sobre o crime, o casal foi interrompido e chamado


para continuar a depor.
Na sala em que Cristian estava, no quarto andar, o enredo também
seguia melodramático. Perturbado psicologicamente, o suspeito sucumbia à
medida que os ponteiros do relógio avançavam. Depois de cinco horas de
depoimento, o acusado estava esgotado, mas ainda se recusava a falar do
crime. O delegado convocado para ouvi-lo, José Masi, era experiente em
lidar com criminosos transtornados e loucos para desabafar. Mas ele tinha
um defeito pro ssional. Era impaciente, irritava-se com muita facilidade.
Em determinado momento, o policial perguntou pela origem dos dólares
usados na compra da moto:
— Onde conseguiu esse dinheiro, caralho?
— Minha avó me dá dólares desde criança e fui juntando...
— Como assim, seu merda? Nunca vi um meliante envolvido com
drogas fazer um caixa como esse – ironizou o delegado.
— Eu também sou músico. Toco bateria. Fui juntando...
— Deixa de ser mentiroso, seu picareta. Você não é músico porra
nenhuma. Você ajuda uma banda a carregar o equipamento. Faz trabalho
braçal! Deve ter matado os pais da Suzane para fazer um troco! Deve ter
recebido 8.000 dólares para matar dois senhores indefesos – provocou o
delegado.
Na réplica, Cristian elevou a tensão do interrogatório ao falar de
dinheiro:
— O senhor só quer saber de dólar, dólar e dólar. Parece que o dinheiro
aqui é mais importante do que o crime – enfatizou o acusado.
Quando ouviu de Cristian o comentário tão inapropriado, Masi cou
fora de si. Alguns policiais chegaram a car apreensivos quando o acusado
teceu esse comentário. Irritado, Masi deu um murro forte na mesa e gritou:
— Olha aqui, seu lho da puta! Você é suspeito de latrocínio e quer fazer
gracinha? Não vou admitir esse tipo de comentário, seu meliante! Aqui não
tem moleque! Nos respeite! – exaltou-se o delegado.
Com a explosão de Masi, Cristian cou impactado e emudeceu. Foi lhe
dado um tempo para se recompor. O delegado saiu e fechou a porta,
deixando o acusado na companhia do investigador Arapiam Tumani, o
policial mais boa-praça do DHPP.
— Fica calmo, Cristian. O Masi é assim mesmo: esquentado. Mas já, já
ele voltará de cabeça fria.
— Eu não aguento mais! — exclamou o assassino, chorando.
A sala ampla onde Cristian era ouvido tinha três janelões escancarados,
com vista para os fundos do prédio. Ficou latente: o acusado estava a um
passo de confessar. Era só uma questão de tempo. Tumani usou a lábia para
dar um empurrãozinho. Começou ligando discretamente um gravador e
escondeu o equipamento sob uma papelada, perto do acusado. Em seguida,
o policial passou a elogiar os criminosos que fazem delação e ajudam a
solucionar um crime de grande repercussão. “Os repórteres da televisão
dizem que o casal foi assassinado por duas pessoas. Se você confessar, vai
sair assim na TV: ‘Cristian confessou porque se arrependeu. Ele foi corajoso
e falou a verdade’. Se você não confessar, os jornalistas vão te massacrar
dizendo que você é um assassino cruel e sem coração”, tergiversava Tumani.
“E tem outra coisa”, continuou o policial.
Enquanto o investigador falava, falava e falava, Cristian continuava
calado, como se não estivesse ali. Circunspecto, o irmão de Daniel passou a
olhar xamente para o horizonte através dos vãos dos janelões. Tumani
percebeu no depoente uma vontade implícita de se matar – atirando-se do
quarto andar. Lentamente, o policial fechou as janelas.
Tumani aproveitou a vulnerabilidade emocional de Cristian e insistiu na
pressão psicológica. No meio da narrativa, o investigador pontuou que
Suzane e Daniel haviam matado Manfred e Marísia por amor, pois queriam
namorar em paz:
— E você? Por que matou?
— [Silêncio]
— Você assassinou o casal friamente por dinheiro. Essa que é a verdade!
Esse era o seu único interesse naquele crime hediondo. Olha, tenho pena da
sua alma! – falava Tumani.
Ao ouvir palavras com gosto amargo de fel, Cristian caiu em desgraça.
Tomado por uma loucura, saltou da cadeira e confessou de forma
destemperada para o investigador ter matado Marísia, como se quisesse se
livrar de um peso insuportável das costas. Gritou:
— Matei! Matei, sim! Mas não matei por dinheiro! Pelo amor de Deus,
nunca diga isso! Não matei por dinheiro! Matei por amor ao meu irmão!
Eufórico com a revelação, Tumani pegou o gravador e saiu correndo
pelos corredores do DHPP gritando como se fosse uma vitória do Brasil na
nal da Copa do Mundo: “Ele confessou! Ele confessou! Ele confessou!”. Os
policiais comemoraram com uma salva de palmas e abraços mútuos a
con dência que solucionava um crime de enorme repercussão. O festejo não
ocorria à toa. Havia um forte receio por parte da cúpula da Polícia de São
Paulo de que o caso Richthofen acabasse sem solução, como ocorreu com o
crime da Rua Cuba, em que o assassino do casal Jorge e Maria Cecília
Bouchabki nunca foi capturado. Esse crime guardava semelhanças com o
assassinato da Rua Zacarias de Góis. Jorge e Maria Cecília foram executados
enquanto dormiam, na véspera do Natal de 1988. A arma do crime, uma
pistola, também nunca foi encontrada, assim como as barras de ferro usadas
pelos Cravinhos para assassinar Manfred e Marísia. No caso da Rua Cuba, o
Ministério Público de São Paulo acusou o lho mais velho das vítimas, Jorge
Bouchabki, o Jorginho, então com 18 anos, de ser o autor dos disparos que
mataram o casal.
Os promotores sustentavam que Jorginho matou os pais porque eles não
aprovavam o namoro dele com uma moça pobre. “Minha mãe não gostava
do namoro, mas isso não era nada demais. Chegaram a dizer que minha
mãe teria me batido com um taco de sinuca nas costas durante uma
discussão. Isso é um absurdo. Eu nunca briguei com a minha mãe”, revelou
Jorginho, em 2018, ao repórter Walter Nunes, do jornal Folha de S. Paulo.
Submetido ao Tribunal do Júri, o acusado acabou absolvido por falta de
provas. O caso é uma página vergonhosa na história policial de São Paulo.
Hoje, Jorge é um advogado criminal bem-sucedido.
No caso Richthofen, o desfecho foi bem diferente. A con ssão de
Cristian fez a casa dos três acusados desabar de uma só vez. Ele foi o
primeiro a receber voz de prisão e um par de algemas.
— Você está preso por latrocínio, seu assassino! Agora quero saber se
você vai segurar essa barra sozinho. Ou vai contar o que cada um fez – falou
o delegado Masi, de volta à cena, já com a voz calma.
Mergulhado numa inquietude, Cristian descortinou o mistério policial e
contou a história com prólogo, vários atos e epílogo. Iniciou relembrando
como soube dos planos de Suzane e Daniel para liquidar o casal Richthofen,
as motivações de cada um e por que aceitou participar da empreitada. “A
ideia de matar os pais partiu da cabeça doente da Suzane”, pontuou. Os
policiais perguntaram se Andreas havia participado do crime e ele negou
veementemente. “Ele nem sequer sabia do plano”, a rmou Cristian.
O segundo a se entregar foi Daniel. O delegado Domingos Paulo falou
que seu irmão havia revelado como foram os ensaios do assassinato,
envolvendo até tiros em uma pedra. Detalhou como o piloto construiu os
porretes. Nesse momento, Daniel foi tomado por um ataque de riso. Ele
gargalhava em cena aberta, para espanto dos policiais.
— Do que você está rindo, rapaz? Enlouqueceu? – quis saber o delegado.
Feito o Coringa, Daniel respondia com mais riso. Domingos Paulo pôs
um par de algemas abertas sobre a mesa e a emoção de aparente alegria do
assassino foi se transformando em um choro de a ição. Não foi possível
perceber o momento exato em que o escárnio estampado no rosto do
namorado de Suzane virou pranto, pois o piloto ainda ria quando as
primeiras lágrimas começaram a cair. Só depois de ter os olhos encharcados
é que Daniel esboçou uma anteface de pânico. O jovem pediu um copo de
água para se recompor, desculpou-se pelo descontrole e nalmente começou
a falar as suas verdades:
— A ideia não foi minha nem dela. Foi nossa! Nós não estávamos felizes
porque os pais da Suzane não queriam mais que a gente namorasse. Teve
muitas brigas e chegamos à conclusão de que só seríamos felizes se eles
desaparecessem...
— Erga os braços, por favor. Vou pôr as algemas – avisou o delegado.
Com Suzane, o enredo foi bem diferente. A moça resistiu até onde pôde.
Mesmo com voz de prisão decretada, mesmo depois de algemada, ela disse à
Cíntia não ter nada para falar. A delegada argumentou nem precisar de mais
informações, já que os dois assassinos haviam detalhado o crime. Suzane
ainda não acreditava na con ssão dos seus cúmplices. Para tirar a prova real,
a jovem pediu para ler os depoimentos de Daniel e Cristian. Cíntia fez
questão de mostrá-los. Os papéis ainda estavam com a tinta da impressora
matricial fresca quando foram dados a ela. Suzane leu atentamente cada
linha cochichando. Descrente, ela lia e relia. Quando terminou a leitura,
encarou a delegada com um olhar glacial e disparou, segura de si:
— Eu admito que sou uma pessoa horrorosa! Eu matei os meus pais!
Sensata, Suzane contou a história sob a sua ótica. Começou dizendo
como conheceu Daniel; falou que os pais abençoaram o namoro no início,
mas desaprovaram o romance no auge da paixão. Suzane fez questão de
lembrar do tapa emblemático dado pelo pai em seu rosto no Dia das Mães.
Deu detalhes de como planejou o crime e nalizou confessando ter aberto a
porta da sala para guiar os assassinos de seus pais pela casa. Finalmente,
Cíntia Tucunduva viu escorrer uma lágrima solitária do olho direito de
Suzane.
Depois de indiciados, os três foram chados e fotografados pela polícia
para ilustrar o registro criminal de cada um. O santinho (mugshot) – como é
conhecida a foto 3 x 4 de bandidos feita pelos policiais – de Suzane estampa
a capa deste livro. Esse registro fotográ co ocorre por força da lei e tem
como objetivo original identi car o criminoso às vítimas, aos investigadores
e ao público em geral. Depois da sessão de fotos, o trio foi apresentado à
imprensa, algemado como assassinos confessos, com as mãos para trás, lado
a lado.
Para exaltar o trabalho dos policiais do DHPP, os criminosos foram
postos em frente ao brasão verde, amarelo e vermelho do departamento, o
mais respeitado da Polícia Civil de São Paulo. Suzane, posicionada à direita,
era a única com o braço seguro por um policial. Daniel, ao centro, usava
uma camiseta de decote em V, nas cores verde e bege, e calça jeans folgada.
Cristian, posicionado à esquerda, vestia calça preta e estava sem camisa,
mostrando o corpo trincado pela musculação e tatuado no peitoral e nos
braços. Os Cravinhos encararam as câmeras. Suzane cou o tempo todo
com a cabeça baixa. Aliás, nessa primeira sessão de fotos, ela descobriu uma
nova utilidade para os seus longos cabelos loiros: cobrir o belo rosto nos
momentos de constrangimento e vergonha. Essa estratégia ainda seria muito
usada no futuro, em momentos cruciais da sua vida de presidiária.
Do lado de fora do DHPP, quando estava entrando no camburão da
polícia com o irmão, Daniel se emocionou ao ver os pais inconsoláveis em
pé, na calçada. Já Suzane, mesmo depois de admitir ser a mandante do
assassinato dos pais e de ter recebido de advogados os piores prognósticos,
continuava estável. Os assassinos foram indiciados por homicídio
triplamente quali cado. A polícia fez questão de deixar claro que Andreas
não teve participação no crime.
Do DHPP, Suzane foi levada para a Penitenciária Feminina da Capital.
Daniel foi conduzido para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Belém II,
enquanto Cristian seguiu para o CDP I. No Jornal Nacional daquela noite, a
matéria sobre o crime começou assim:
“A Polícia de São Paulo desvendou o assassinato do casal Von Richthofen.
A lha deles, Suzane, disse que planejou o crime por amor ao namorado”. A
reportagem evidenciava a diferença social entre o casal homicida. “A
caminho do presídio, Suzane von Richthofen, 19 anos, estudante de Direito e
uente em três línguas. Daniel Cravinhos de Paula e Silva, 21 anos,
desempregado. Namorados há três anos, eles agora dividem a responsabilidade
pelo assassinato brutal dos pais dela. A partir da con ssão de Cristian, a
polícia passou a ter as respostas que procurava”.
No nal da reportagem de César Tralli, o delegado Domingos Paulo
Neto emitiu um juízo de valor em rede nacional:
“A Suzane mostrou-se uma pessoa fria, impetuosa e até calculista. Ela
demonstrou ter muita raiva dos pais”.
Uma igreja, Cristo crucificado, pênis ereto e
uma vagina

A
ngustiada, Suzane debutou na prisão com um par de algemas nos
pulsos em 20 de novembro de 2002, dia de Santo Edmundo, o
protetor dos órfãos e das viúvas. Sua primeira moradia foi a
Penitenciária Feminina da Capital (PFC), um complexo de 11.717 metros
quadrados de área construída no coração do bairro do Carandiru, zona
norte de São Paulo. Na época, a casa penal tinha capacidade para 410
mulheres, mas hospedava 664, deixando a atmosfera do local altamente
in amável. Oitenta por cento das prisioneiras cumpriam pena por trá co e
10% por crimes passionais. Detalhe: onde há tra cantes con nados
imperam facções criminosas e as suas tradicionais rixas. Na PFC, a disputa
de poder, na época, ocorria entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e
um grupo dissidente, batizado de Terceiro Comando da Capital (TCC), as
duas organizações rivais mais sangrentas do país até então.
A Penitenciária Feminina da Capital foi inaugurada no dia 4 de
setembro de 1973, dia de Santa Rosália, uma mulher religiosa de vida
extremamente solitária, segundo a hagiogra a. Por 29 anos, a instituição foi
vizinha da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida internacionalmente
pela rebelião de 1992, cujo saldo foi o massacre de 111 detentos pela Polícia
Militar. Em 2002, os nove pavilhões do Carandiru começaram a ser
implodidos. Na área de 240 mil metros quadrados foi construído o Parque
da Juventude, um ponto turístico importante da capital. Para preservar a
história do lendário presídio, foram mantidas no parque parte das ruínas das
galerias, das muralhas e algumas torres usadas para vigilância. Reza a lenda
que o local era assombrado pelas almas dos 111 presidiários mortos na
chacina. Um terço do terreno era ocupado por uma mata fechada, colada ao
muro de 9 metros de altura da PFC. No bosque viviam árvores de grande
porte, como o guapuruvu (Schizolobium parahyba), uma espécie de 30
metros de altura com folhas bipinadas de 1 metro e ores amareladas que
eclodiam na primavera-verão. Havia ainda o pau-ferro (Caesalpinia ferrea),
uma espécie frondosa de 28 metros com copa arredondada e vistosa; além
de carnaúba (Copernicia prunifera), a palmeira sertaneja de 15 metros e
folhas verdes e azuladas, conhecida como árvore da vida. Segundo contam
as carcereiras da PFC, as almas dos homens mortos no massacre do
Carandiru encarnam justamente nas árvores gigantes desse bosque,
principalmente em dias chuvosos e de muita ventania. As ruínas do
Carandiru e a vegetação imponente da redondeza fariam parte da vida de
Suzane durante dois anos de estada na PFC.
Quando a jovem botou os pés na casa penal, o dia estava chuvoso em
São Paulo. A condução da presa famosa ocorreu sob forte esquema de
segurança, incluindo batedores da Polícia Militar. A imprensa perseguia
freneticamente pelas ruas e até pelo céu a menina rica que mandou o
namorado matar os pais. Ao vivo no Cidade Alerta, da TV Record, o
jornalista José Luiz Datena acompanhava a chegada de Suzane do estúdio.
Um repórter falava de um helicóptero:
— Datena, São Paulo está sendo castigada por uma tempestade com raios,
trovões e ventos fortes. Estou nesse momento aqui do alto acompanhando a
polícia, que leva Suzane von Richthofen do DHPP rumo à Penitenciária
Feminina da Capital, uma das cadeias mais violentas de São Paulo. O
comboio com dezenas de viaturas está cruzando a Marginal Tietê pela
Avenida Santos Dumont. Eles seguem agora pela Ponte das Bandeiras com
destino ao bairro do Carandiru, onde ca a penitenciária. Datena, vou
devolver para você aí no estúdio porque o helicóptero está trepidando. É com
você.
No estúdio, o apresentador continuou:
— Diretor, foca em mim! Para quem está sintonizando o Cidade Alerta
agora, vou explicar: Suzane von Richthofen acabou de confessar à delegada
Cíntia Tucunduva que mandou o namorado Daniel Cravinhos matar os
próprios pais a pauladas na calada da noite. Foi um crime horroroso que
chocou a nação. O Daniel convidou o irmão, Cristian Cravinhos, para o crime.
Os dois vagabundos também confessaram tudo. Ou seja, a menina rica, de
rostinho angelical e voz meiga, deixou de ser mera suspeita do crime. Agora,
Suzane é uma assassina confessa! Vou repetir para ela car com essa marca
para sempre: Suzane é ASSASSINA! A parricida e os irmãos Cravinhos vão
aguardar o julgamento na cadeia. Gente, quando eu falo desse crime, co com
o estômago embrulhado. Como pode uma lha matar os próprios pais?
Ao chegar ao departamento de inclusão do presídio, Suzane sustentou a
mesma altivez usada para enfrentar a delegada Tucunduva. Ela encarou os
policiais na recepção e manteve a cabeça erguida até quando fez mais uma
foto para o registro de sua entrada no sistema penal de São Paulo, onde teve
as algemas retiradas. Em uma sala especial, recebeu com empá a as
primeiras ordens, dadas por uma agente de segurança penitenciária:
— Tira a roupa!
— Não entendi – rebateu Suzane.
— Você é surda, garota? Eu mandei tirar a roupa! – repetiu a agente,
demonstrando impaciência.
— Espera um pouco! – suplicou a presidiária.
— Você está me dando ordens?
— Não! Não! Não!
Contrariada, Suzane se despiu do gurino escolhido no dia anterior com
ajuda da amiga Amanda para depor na delegacia. Três agentes femininas
testemunharam a cena íntima, todas com a cara amarrada. Primeiro, Suzane
tirou bem devagarinho a jaqueta desbotada. Dobrou a peça lentamente e a
acomodou com todo o cuidado sobre uma mesa de ferro. Tirou os sapatos.
Despiu-se da calça jeans combinada com a jaqueta e da camiseta amarela. À
medida que Suzane tirava a roupa, seu espírito se desarmava. Quando cou
apenas de calcinha e sutiã, abaixou a cabeça e abraçou o próprio corpo,
olhando xamente para o chão, com a postura curvada. Estática, Suzane se
entregou a um choro contido, repetindo várias vezes a expressão “Pelo amor
de Deus!”. Ao ouvir o apelo divino, a agente levantou a voz ordenando que a
criminosa cumprisse as regras da penitenciária. Quando Suzane estava nua
em pelo, a funcionária determinou:
— Agora se agache!
— Como?
— Mandei car de cócoras!
— Pra quê?
— Não me faça perguntas, menina!
— Isso é humilhante! – reclamou a assassina.
— Você tem razão. É vexatório! Mas se você não tivesse matado seus
pais, não passaria essa vergonha! – retrucou.
A revista íntima é praxe na entrada em presídios. Nuas, as presas faziam
agachamento em um chão espelhado para provar que não carregavam
drogas ou telefone celular escondidos no reto ou na vagina. Nessa época, as
prisões paulistas não tinham máquinas de raio-X. Só depois do ritual de
revista Suzane recebeu o uniforme de presidiária – calça cáqui e camiseta
branca. Ainda na sala de inspeção, ganhou um kit levado pelo seu advogado,
composto por escova de dentes, creme dental Colgate, chinelo de dedo,
xampu, toalha branca, um rolo de papel higiênico Sublime e sabonete Dove.
Em seguida, foi acomodada na cela de inclusão de número 4, uma das
solitárias nas quais toda presa neó ta é obrigada a se hospedar por dez dias
até se adaptar à rotina do cárcere. Na época, o cubículo de 10 metros
quadrados tinha somente uma cama de concreto e um vaso sanitário
embutido apelidado pelos presos de “boi”. A tradicional privada de
cerâmica, chamada de “pote” no glossário da cadeia, é evitada na cela de
inclusão porque é comum que presas de primeira viagem a quebrem.
Atormentadas com a privação da liberdade, costumam usar os cacos para se
matar com golpes na jugular.
Sozinha com os seus botões, Suzane tentou dormir à noite naquele
ambiente hermético. Tentou. Na calada da noite, era torturada pelo som
horripilante das árvores frondosas do bosque ao lado. Nas noites de
ventania, os guapuruvus, os paus-ferro e as carnaúbas faziam tanto barulho
que pareciam estar saindo do lugar. Ao ouvir árvores uivando pela primeira
vez, Suzane sentiu pavor. Desabou a chorar copiosamente pela segunda vez,
assombrada pela curva acentuada que a sua vida fazia naquele momento.
Em uma carta escrita para Amanda um mês depois de dar entrada na PFC,
contou nunca ter chorado tanto na vida como nos primeiros dias na
solitária. “Amiga, estou chorando tanto que me sinto fraca espiritualmente
[...]. Tenho sido assombrada aqui dentro [...]. Só agora, sofrendo nesse
limbo, tenho noção da merda que eu z”, escreveu.
Logo depois do assassinato, Suzane recebeu em casa a visita do advogado
Denivaldo Barni, do quadro jurídico da Dersa, onde o pai trabalhava como
engenheiro. Manfred e Barni eram amigos íntimos. Às vezes, costumavam
sair para jantar depois do expediente. Assim que o crime começou a
estampar as manchetes dos jornais, a empresa nomeou Barni para
acompanhar as investigações da polícia. O advogado acabou criando um
afeto paterno pela acusada, a quem chamava de lha. Ela devolvia o carinho
tratando Barni como pai. Na primeira visita do tutor à cadeia, a jovem estava
com o rosto inchado de tanto chorar. Ele levou pizza e Coca-Cola. Os dois
lancharam e conversaram no parlatório da PFC:
— Não consigo dormir à noite! – queixou-se Suzane, enquanto mordia
um pedaço de margherita com borda de catupiry.
— Você vai sair logo daqui – prometeu Barni, dando um gole no copo de
refrigerante.
— Não vejo a hora. Tem umas árvores horríveis que fazem barulho na
madrugada.
— Não ligue para essas besteiras – aconselhou Barni.
— Como está o Daniel?
— O quê? Esquece ele. Aliás, você só vai se livrar de uma pena pesada se
acusá-lo pela morte dos seus pais.
— Nunca farei isso! Eu o amo! Amo! Amo! Amo! – nalizou ela,
comendo mais uma fatia de pizza.
Em um dos encontros diários com Barni, para surpresa do advogado,
Suzane pediu uma cópia do seu processo criminal para ler na solitária. A
presidiária queria entender o tamanho da encrenca na qual estava metida.
Barni tentou demover essa ideia, já que as peças jurídicas continham
centenas de fotos de Manfred e Marísia destroçados sobre a cama e até nus,
costurados sobre as mesas metálicas do Instituto Médico Legal (IML), junto
de outros cadáveres. Suzane insistiu, justi cando ser parte no processo e
estudante de Direito. Ou seja, ela tinha poder legítimo de acessar a peça
jurídica para saber com exatidão quais provas pesavam contra si. Barni
prometeu fazer uma cópia sem as fotos. Suzane bateu o pé, deixando claro
querer ver tudo, inclusive as tais fotogra as. Por último, alegou precisar
preencher o tempo ocioso com leitura.
Ainda no primeiro mês de reclusão, Suzane saiu algumas vezes da cadeia
para depor no inquérito aberto para investigar a morte dos seus pais. Uma
das saídas de muita repercussão ocorreu a convite da delegada Cíntia
Tucunduva, para participar da reconstituição do crime, tecnicamente
chamada de reprodução simulada.
Quando envia um inquérito bem elaborado para o Ministério Público, a
polícia conta uma história com enredo amarrado, apontando inclusive a
dinâmica do crime e as motivações de cada um dos acusados. Refazer o
assassinato numa investigação é fundamental para reforçar a tese defendida
pelos policiais e principalmente para esclarecer dúvidas. Como Suzane e os
irmãos Cravinhos eram réus confessos, eles não se recusaram a reproduzir a
noite em que o casal Richthofen foi assassinado.
O primeiro a mostrar aos policiais como tudo ocorreu foi Cristian. O
acusado manteve-se sóbrio e respondeu a todas as perguntas, apontando
onde os porretes estavam escondidos (no porta-malas do carro de Suzane)
quando o trio chegou à mansão. Cristian também mostrou como desferiu os
golpes em Marísia.
Em seguida, foi a vez de Suzane. Impressionada com a quantidade de
curiosos e jornalistas do lado de fora, ela cou tensa. O quarteirão foi todo
isolado. Na rua, pessoas gritavam de longe “assassina!”, “assassina!”,
“assassina!”. Mas todos dentro da casa ouviam o xingamento. Aos policiais,
Suzane indicou como acendeu a luz do corredor dando sinal verde aos
Cravinhos para seguirem até a suíte e executar seus pais. Depois sentou-se
no sofá para demonstrar como se sentou e tapou os ouvidos para não ouvir
as porretadas. O curioso é que ela representava o crime como se não tivesse
participado dele, narrando cada cena de forma dissertativa. Enquanto
ocorria a reconstituição da morte dos pais, Andreas estava na mansão
assistindo a um desenho animado na TV do quarto de Rinalva, nos fundos.
O garoto não saiu de lá momento algum. Suzane pediu a um policial para
dar um abraço no irmão, mas o garoto se recusou a recebê-la.
Quando chegou a vez de Daniel reconstituir o crime, surgiu um impasse.
Abalado, disse não ter estrutura emocional para subir até a suíte. Pediu um
tempo para tomar água e se recompor. Uma hora depois, o jovem pegou o
porrete cenográ co feito de papelão e seguiu até a cama, onde o policial
Francisco Pandolpho estava deitado, representando Manfred. Daniel deveria
simular os golpes no policial-ator. O piloto percebeu uma leve semelhança
entre Pandolpho e o pai de Suzane. Perturbado, o jovem chorou
copiosamente e se ajoelhou por causa de uma súbita fraqueza nas pernas. A
reconstituição teve de ser interrompida. Só continuou depois que os policiais
zeram um círculo e rezaram um Pai-Nosso de olhos fechados. Em toda a
reprodução simulada, os três assassinos não tiveram nenhum contato entre
si.
Após a reconstituição do crime, Suzane e os irmãos Cravinhos voltaram
para o xilindró. Ela regressou para a PFC e Daniel foi levado novamente ao
Centro de Detenção Provisória (CDP), uma cadeia bomba-relógio. Quando
o piloto esteve lá, o local tinha capacidade para abrigar 876 presos, mas
havia o dobro. Sua cela era a de número 9, no pavilhão 7, com lotação para
doze homens. No entanto, 40 bandidos espremiam-se no cubículo,
incluindo matadores de aluguel, tra cantes e integrantes do PCC egressos
do Carandiru. Ficavam misturados no mesmo espaço os presos provisórios à
espera de julgamento, como Daniel, e os criminosos condenados e até
sentenciados do regime semiaberto reincidentes no crime. Não havia cama
para todos nem artigos de higiene. O banho era frio e regrado. Os
funcionários da cadeia distribuíam aos presos somente três escovas de
dentes e cinco sabonetes por xadrez a cada 15 dias. Astrogildo Cravinhos
levou itens de higiene para o lho. Mas ele foi obrigado a dividir tudo com
seus colegas de cela, inclusive a sua escova de dentes e o aparelho de barbear.
Certo dia, Daniel pegou seu sabonete Lux Luxo novinho e foi tomar banho
no chuveiro coletivo. Um tra cante do PCC, que se enxaguava sem nada ao
lado, pediu a barra de sabão emprestada. O piloto não tinha como negar esse
favor. O bandido esfregou o sabonete no corpo todo, inclusive na cabeça
feito xampu. Ingênuo, Daniel cou lá esperando. Quando acabou o banho,
em vez de devolver o sabonete ao dono, o bandido repassou o item de
higiene para o preso do chuveiro ao lado, que repassou a outro, mais outro e
mais outro. De mão em mão, de corpo em corpo, o sabonete de Daniel
simplesmente derreteu até desaparecer.
A direção do CDP considerava Daniel um preso vulnerável, pois ele
aparecia excessivamente na televisão. Mas não havia cela especial –
conhecida como “seguro” – para acomodá-lo. Com isso, ele era
constantemente ameaçado de morte nos pavilhões. Angustiado, voltou a ter
ideação suicida. A tentativa ocorreu logo após ele testemunhar uma briga
violenta dentro da cela, bem no início da manhã. Três presos dormiam
dividindo o mesmo colchão. Um deles cou excitado e encoxou o colega por
trás sem querer. Houve uma confusão generalizada no ambiente. O detento
pivô do barraco tentava explicar ao colega que a ereção matinal não vinha
acompanhada de desejo sexual. Ninguém quis saber e ele levou uma facada
na virilha. Quando viu o excesso de sangue, Daniel se lembrou do momento
em que matava Manfred e vomitou no chão da cela, respingando restos de
comida nos demais presos. Irritados, eles empurram o piloto de um lado
para o outro até o jogarem num espaço privado, onde havia um vaso
sanitário cercado por uma cortina de plástico. Aos prantos, Daniel se sentou
na latrina. Em seguida, tentou arrancá-la do chão. A peça estava fortemente
chumbada no concreto. Daniel olhou as paredes, o teto e xou a visão na
janela alta com grades espessas. Depois, tirou a calça e prendeu uma das
pernas do tecido jeans no ferro da janela. Na outra ponta ele fez um nó e
apertou no pescoço. Um dos presos afastou um pouquinho a cortina e
percebeu o movimento suicida de Daniel. Depois de observar, saiu calado
para o piloto se matar em paz. Com uma das pernas da calça amarrada na
grade e a outra no pescoço, ele pulou do vaso sanitário. O peso do seu corpo
pendurado na corda improvisada provocou uma esganadura. Daniel se
debateu, embolando-se na cortina de plástico, que despencou com o cano de
sustentação. Com a queda, todos os presos viram o namorado de Suzane
agonizando. Três deles correram para tentar salvá-lo. O suicida estava com
os olhos revirados, o rosto esverdeado e babava quando foi retirado pelos
colegas.
Daniel desmaiou e só foi acordar numa maca, na enfermaria do CDP. O
pescoço estava tomado por hematomas escuros. Uma algema prendia o seu
pulso direito ao ferro lateral da cama. Um médico se aproximou com uma
lanterna clínica. Usando os dedos, o pro ssional arregalou os olhos do
paciente e mirou a luz forte em sua pupila:
— Tente olhar para o foco da lanterna – pediu.
Daniel mexeu o globo ocular para acompanhar o feixe de luz. Ou seja,
sua atividade cerebral estava perfeita.
— O que houve? Por que você tentou tirar a própria vida, rapaz? –
perguntou o pro ssional da saúde.
— Minha jornada acabou, doutor. Eu matei uma pessoa a pauladas por
causa de uma vagabunda. Eu vou ser condenado e passar o resto da vida
preso. Pre ro a morte!
— Para de falar bobagem. Encare os seus erros de frente, por mais
terríveis que eles sejam. Assuma o que você fez e pague sua penitência com
dignidade. Não leve mais sofrimento à sua família — aconselhou.
Arrasado, Daniel se levantou da cama e cou em pé. Seu pulso
continuava preso à algema e à maca. Nadja e Astrogildo invadiram o local
esbaforidos. Ao ver o lho vivo, ela o agarrou aos prantos. O piloto abraçou
a mãe usando apenas um dos braços. Nervosa, Nadja perguntou ao médico
como estava a saúde do lho. “Ele teve sorte. Os exames mostram que não
houve ruptura das vértebras cervicais e a medula espinhal foi preservada”,
diagnosticou. Só de pensar na morte do caçula, Nadja teve um princípio de
desmaio. Daniel chorou ao ver a mãe sucumbindo. Astrogildo levantou a
esposa do chão com auxílio das enfermeiras. Daniel também tentou ajudar,
mas a algema o impediu. Astrogildo segurou o rosto do jovem fortemente
com as duas mãos. “Meu lho, pelo amor de Deus. Não faça mais isso com
você. Não faça mais isso com a sua mãe. Não faça isso com a nossa família”,
suplicou o pai. Um policial soltou uma das algemas da cama e prendeu nos
pulsos de Daniel, por trás. No caminho para a cela, o assassino perguntou ao
agente de segurança penitenciária que o conduzia: “Será que a Suzane cou
sabendo que tentei me matar?”

* * *

No primeiro contato com o advogado Denivaldo Barni logo após a


reconstituição do crime, Suzane aproveitou para cobrar o seu processo penal
para ler na cadeia. Na banca de advogados de defesa da jovem estava o lho
de Barni, Denivaldo Barni Júnior, que era perdidamente apaixonado por ela
desde o dia do crime. Ele jura que não, mas confeccionou um álbum de
fotos de Suzane, de criança até aquele momento. Foi Barni Jr. quem levou ao
presídio a cópia do processo criminal de quase 700 páginas na época. Nessa
fase, Suzane não tinha contato com outras presas. Sozinha, fumando maços
e maços de cigarro, começou a devorar a papelada durante o dia e acabou
varando a noite. Entre um apenso e outro, a presidiária adormecia. Já era
madrugada quando despertou de um cochilo com o som apavorante dos pés
de guapuruvu, carnaúbas e paus-ferro. Ao ouvir o chacoalhar dos galhos e
alguns estalos de madeira quebrando, teve a impressão de que as árvores
estavam caminhando ao seu encontro. A a ição aumentou com um assobio
agudo saído do bosque, acompanhado do farfalhar dos morcegos e do canto
das corujas que sobrevoam o presídio durante a alvorada.
Sem conseguir dormir, a assassina aproveitou a luz arti cial vinda da
grade da janela externa, no alto da parede, para avançar na leitura do
processo. Na página 590, começou o horror. A assassina se deparou com as
fotos dos cadáveres dos pais, deformados pelas pauladas dadas por Daniel e
Cristian. Olhou com apuro cada imagem e sucumbiu vencida pelo sono
profundo mais uma vez. Momentos depois, Suzane acordou pela enésima
vez naquela noite – o ruído das árvores foi quebrado por um estampido
metálico no meio do breu. Assustada, a jovem abriu os olhos e percebeu pela
penumbra uma mão feminina com anéis grandes destrancando lentamente
o ferrolho da porta de sua cela. A escuridão a impedia de identi car quem
tentava entrar. Num ímpeto de coragem, levantou-se. A porta foi se abrindo
bem devagarinho. O ranger ecoava no silêncio sombrio da galeria. Quando a
grade cou escancarada, Suzane teve um sobressalto. Viu o vulto de uma
mulher de cabelos ondulados na altura dos ombros entrando no cubículo de
costas, a passos curtos. O espectro usava um vestido esvoaçante branco e
longo. Pela roupa, Suzane reconheceu sua mãe. Marísia estava com o mesmo
vestido usado quando a lha a viu saindo de casa, no momento em que
desistiu temporariamente de matá-la por causa de um abraço. Determinada,
a presidiária tocou nos ombros do fantasma para virá-lo de frente. Suzane
fez uma pergunta:
— Mãe, como a senhora está?
— Não sei lhe dizer, lha!
— Onde está o papai?
— Espere um pouco, lha. Ele está a caminho – respondeu Marísia, sem
mostrar o rosto.
— Eu tenho tanta coisa para dizer à senhora! Nem sei por onde começar.
— Por que você fez isso, lha? Por quê? – interrogou a vítima.
— Me perdoa! Me perdoa! Me perdoa! – implorou a assassina, sem
derramar uma lágrima.
Ao ouvir a invocação da lha, Marísia virou-se de frente e Suzane deu
um grito. A médica estava com o rosto todo des gurado, tal qual as fotos
vistas por ela no processo. Era possível observar por entre os cabelos úmidos
de sangue o buraco no crânio da médica deixado por Cristian. Como
algumas porretadas acertaram a sua arcada dentária, a boca estava toda
deformada. Aterrorizada, Suzane gritou ainda mais alto e desmaiou. Foi
acordada do pesadelo pela agente de segurança penitenciária (aspe) Marisol
Nunes Ortega, uma senhora de 40 anos, católica apostólica romana
praticante e fervorosa.
— Você vai ter de aprender a conviver com os seus mortos, lha –
aconselhou a funcionária.
— Quero a minha vida de volta! – pediu a detenta.
Os vivos também passaram a assombrar Suzane na PFC. Na segunda
semana da fase de inclusão, a jovem passou a tomar banho de sol no pátio
da penitenciária juntamente com outras detentas. O primeiro contato foi
traumatizante. Uma mulher de cabelo vermelho de 28 anos, conhecida como
Maria Bonita, foi a primeira a abordá-la. Baiana de Paulo Afonso, cumpria
pena de 26 anos por formação de quadrilha, assalto a banco e associação ao
trá co. Mantinha o apelido em homenagem a uma conterrânea famosa, a
primeira-dama do cangaço, Maria Bonita (1911-1938), bandoleira, mulher
do lendário Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
A Maria Bonita da penitenciária feminina trabalhava para o PCC. Tinha
1,80 de altura, falava baixo quando queria algo e gritava quando precisava
impor respeito. Andava rebolando o bumbum avantajado. Tinha o hábito de
manter as unhas das mãos pintadas de vermelho-sangue, a adas e
pontiagudas para cortar o rosto das suas rivais do TCC. Na estrutura
montada pelo PCC dentro da cadeia feminina, Maria Bonita exercia a
função de assessora de Quitéria Silva Santos, de 36 anos na época,
simplesmente a rainha da penitenciária. Durante as visitas íntimas, a
criminosa costumava receber de um namorado comandos da cúpula da
facção para repassar à Quitéria. No pátio, a cangaceira aproximou-se de
Suzane. Educadamente, pediu-lhe um cigarro. A jovem encarou a detenta e
passou o maço inteiro.
— Pode car com todos – disse Suzane.
— Quero apenas um – insistiu Maria Bonita, devolvendo o maço.
— Diga logo o que você quer! – ordenou a parricida.
— Você sabe que não vai durar aqui dentro, né, amorzinho? As bolachas
[lésbicas] não perdoam quem mata pai, mãe, lho... Já estão todas de olho
em você! – disse Maria Bonita.
Calada, Suzane deu vários tragos fortes no cigarro, jogou a bituca no
chão e amassou com o sapato. Virou-se para Maria Bonita e usou a
estratégia da voz infantil:
— Eu não tenho medo, querida.
— Tem, sim, dá para ver na sua cara, sua vagabunda! Você é um cookie
[lésbica re nada] lindo. Mas olha... [deu um trago no cigarro], se não quiser
ser assassinada, posso proteger você do mundo mau. Basta dormir comigo –
propôs Maria Bonita, passando as unhas agudas feito pontas de prego
carinhosamente na bochecha da pretendente.
Suzane não disse sim nem não. Ficou muda, como se tivesse dúvida. De
longe, a temida Quitéria observava o galanteio de Maria Bonita sobre a
novata. Com um olhar fulminante, ordenou que a cangaceira do PCC se
aproximasse. As duas discutiram. Como Maria Bonita não havia feito o
combinado, Quitéria sentou uma sequência de três bofetadas no rosto da
subordinada e seguiu até Suzane. Sem ao menos dizer “bom-dia”, a rainha da
penitenciária repassou um pedaço de papel com dados bancários à jovem:
— Olha aqui, putinha, é o seguinte: você vai morrer aqui dentro em uma
semana. Para evitar que isso aconteça, mande o seu advogado depositar
imediatamente 5.000 reais de luvas nessa conta e 1.800 reais [em valores da
época] todo mês até o quinto dia útil. É o pedágio que o Comando cobra
para proteger gente na feito você. Pagou, você vive. Não pagou, CPF
cancelado. Simples assim! Entendeu? – em seguida, a bandida saiu sem se
despedir.
Não faltavam motivos para temer Quitéria na cadeia. Ligada à alta
cúpula do PCC, a tra cante participou da fundação do comando. Era uma
mulher sem estudos, estúpida e violentíssima. Cumpria pena de onze anos
por homicídio. Baixinha, falava pelos cotovelos e sempre em voz alta,
irritando as agentes penitenciárias e até mesmo as presas do PCC. Como
todo autoritário em posição de comando, faltava-lhe paciência para ouvir a
base. Quitéria mantinha o hábito de tossir de forma purulenta, cuspindo
nacos de catarro amarelo-esverdeado pelas paredes e pelo chão, perto das
colegas. Sem higiene, a líder passava até três dias sem tomar banho. Mas
nem era a nojeira de Quitéria o que mais incomodava as detentas. Seu
passatempo preferido era sentar bofetadas na cara das presas. Às vezes, dava
um tapa na cara de uma mulher por uma bobagem qualquer e repetia o
gesto alegando que o sopapo anterior não havia feito um barulho bom. As
mais subservientes já sabiam a hora de apanhar e ofereciam o rosto
antecipadamente. Havia dias em que Quitéria dava tantos tabefes que
chegava a se queixar de dores no ombro e no pulso. Essa tortura era
reprovada até pelas suas aliadas mais próximas. Vingativa, Maria Bonita
guardava rancor da líder sem noção na geladeira. “A batata dessa escrota tá
assando”, anunciava a cangaceira para as amigas.
A maior rival de Quitéria na PFC era a tra cante Aurinete Félix da Silva,
a Netinha, de 48 anos na época, líder do TCC na penitenciária feminina.
Netinha também havia participado da fundação do PCC ao lado do seu
nado companheiro, César Augusto Roriz Silva. No entanto, ao ser
capturada pela polícia, tinha uma cha corrida tão comprida que um cálculo
feito por alto resultava em uma pena de, no mínimo, 100 anos. Para
encolher o tempo na cadeia, Netinha resolveu fazer delação premiada,
entregando inclusive crimes do poderoso chefão do PCC, Marco Willians
Herbas Camacho, o Marcola. Conseguiu o benefício. Por causa da delação, o
marido de Netinha foi assassinado com uma lança feita de madeira na
Penitenciária de Avaré, a 262 quilômetros de São Paulo. Com isso, Netinha
passou a ser jurada de morte por dois motivos: por ter dado com a língua
nos dentes e por ter entrado na facção rival. A incumbência de executá-la
estava nas mãos de Quitéria e seu bando. Mas era raro encontrar Netinha
dando pinta no pátio da penitenciária.
Suzane tentava sobreviver na cadeia em meio a essa guerra travada entre
o PCC e o TCC. A experiência no sistema penal a fortalecia, mas também a
tornava vulnerável. De tanto ser importunada, a parricida foi se queixar da
vida no colo quentinho de Marisol. Falou do convite para dormir com Maria
Bonita em troca de proteção e da ameaça de morte recebida de Quitéria.
Marisol pediu a Suzane que casse longe das mulheres do PCC.
Nas penitenciárias, a religião é um aspecto importante. A maioria dos
presos entra católica ou sem nenhuma religião. Lá dentro, há uma
verdadeira guerra santa. Pastores de igrejas evangélicas fazem visitas diárias
na tentativa de cooptar os presos sem crença. Em abordagens agressivas,
também tentam convencer católicos a pastar em seu rebanho. A Pastoral
Carcerária da Igreja Católica, por sua vez, tem presença marcante em todas
as grandes cadeias do país. A entidade desenvolve trabalhos sociais, cristãos,
e atua principalmente no enfrentamento às violações de direitos humanos e
da dignidade humana, práticas comuns dentro do cárcere.
Na Penitenciária Feminina da Capital, cabia a Marisol engrossar o
número de éis católicos. Quando Suzane contou ter recebido uma cantada
de Maria Bonita, a agente logo frisou que sexo lésbico era pecado. A jovem
pediu ajuda da agente para registrar uma queixa de ameaça contra Quitéria
na direção do presídio, mas Marisol cortou o plano.
— Você está louca? Presidiárias como você são alvo fácil das facções.
Nunca registre queixa contra elas. Também não peça para o seu advogado
fazer depósito algum para o PCC. Esqueça o mundo lá fora. Você tem de se
impor aqui dentro para conquistar respeito. Livre-se dessa imagem de
menina frágil e assuma uma postura rme, de poder. Enfrente as bandidas
com a sua maior arma, a inteligência, pois essas bandidas são estúpidas! –
aconselhou Marisol.

* * *

Assim que Suzane foi presa, Rinalva procurou Miguel, irmão de Marísia,
para saber como deveria proceder, já que na casa dos Richthofen havia
restado apenas Andreas como morador. Miguel tentou convencer o garoto a
passar uma temporada em sua casa, mas ele bateu o pé, insistindo em morar
sozinho na mansão. Entre os argumentos do adolescente de 16 anos
constava que dali a dois anos seria maior de idade e passaria a ser dono da
casa e de outros bens deixados pelos pais, avaliados na época em 10 milhões
de dólares. Miguel passou a bancar a moradia do garoto, e Rinalva foi
mantida na mansão para dar assistência a ele. A convivência da empregada
com Andreas foi amistosa nos primeiros dias. O jovem, no entanto,
encarnou o papel de patrão exigente e passou a implicar com a sua única
funcionária. Reclamava do excesso de sal na comida, da limpeza e até de
camisetas que desejava usar, mas estavam no cesto de roupas para passar. A
gota d’água ocorreu no terceiro mês de convivência com Rinalva. Ela estava
em casa com seus familiares, assistindo à novela Mulheres Apaixonadas, da
TV Globo, quando recebeu um telefonema de Andreas. Ríspido, acusou-a
de furto.
— Dona Rinalva, cadê o perfume importado que estava no meu quarto?
— Eu vi em cima da cômoda – respondeu a empregada.
— Não está mais lá. Será que ele bateu asas e voou? – ironizou.
— Se não está mais lá, não saberia dizer por onde ele anda.
— Como não?
— Não sei se você sabe, mas estou no meu horário de descanso – rebateu
Rinalva.
— Não me importa! Amanhã, quando voltar da escola, quero esse
perfume no mesmo lugar. Entendeu? Caso contrário, eu vou à delegacia dar
queixa de furto e a senhora será presa. Nem preciso lhe contar que de
delegacia eu entendo, né? – ameaçou o rapaz, fazendo alusão à quantidade
de depoimentos que havia dado à delegada Cíntia Tucunduva durante as
investigações da morte dos pais.
— Pois então vá à delegacia! Agora, se você me zer uma acusação sem
provas, quem vai à delegacia sou eu, seu fedelho! Aí meto um processo por
danos morais no seu rabo! – encerrou Rinalva, áspera, batendo o telefone na
cara do projeto de sinhozinho.
No dia seguinte, a empregada passou na casa de Miguel e pediu as
contas. No período em que teve estômago para trabalhar na mansão dos
Richthofen após o crime, Rinalva recebeu três cartas de Suzane contando os
perrengues na prisão com as mulheres do PCC e pedindo notícias do irmão.
Semianalfabeta na época, ela pedia para uma irmã ler as cartas, mas nunca
as respondeu. Com a demissão de Rinalva, Andreas foi obrigado a morar
com o tio Miguel, que havia cortado relações com Suzane desde a con ssão
de ter mandado matar os pais. Antes de se mudar, o adolescente foi até o
quarto de Suzane, pegou o ursinho de pelúcia da irmã no qual estava
escondida a Beretta calibre 22 que ganhou de Daniel e a levou para a casa do
tio. O primeiro con ito entre Miguel e Andreas ocorreu mais tarde,
justamente por causa dessa arma. O segundo embate entre tio e sobrinho foi
travado porque o garoto decidiu visitar a irmã na penitenciária. Miguel se
negou a levá-lo. Andreas resolveu pedir esse favor à Amanda. Quando
recebeu um telefonema do garoto, lembrou-se do apelo da amiga para
cuidar de Andreas como se ele fosse seu irmão e resolveu levá-lo à
penitenciária num domingo pela manhã. Para conseguir uma senha, os dois
tiveram de madrugar numa la com mais de 500 pessoas.
Amanda e Andreas caram em pé por mais de três horas. Uma senhora
na la puxou conversa, dizendo ter viajado 500 quilômetros para visitar a
sua melhor amiga, assaltante pro ssional de bancos. A mulher não parava de
falar. Entediada, Amanda começou a prestar atenção no que ela dizia:
“Não existe la mais humilhante do que essa. A gente em pé aqui até o
diabo dizer chega, castigada pelo frio. Pra quê? Para visitar assassinas,
tra cantes e toda sorte de criminosas. Mas sabe por que estamos aqui? Porque
amamos incondicionalmente. E não existe maior prova de amor do que essa.
Amor em estado bruto. Eu amo a minha amiga como se ela fosse minha irmã.
Por isso estou aqui...”, pregava a mulher de cerca de 50 anos.
Amanda cou re exiva ao ouvir aquele sermão e tentou preparar o
espírito de Andreas para o encontro com a assassina dos seus pais. A nal, o
garoto iria enfrentar o ambiente pesado de uma prisão pela primeira vez.
— Andreas, essa visita pode fazer mal a você. Quer desistir?
— Nem pensar! Não vai me fazer mal, não. Pode deixar! Eu não tenho
raiva da minha irmã.
— Tem certeza?
— Sim. Eu perdi o meu pai, a minha mãe e o meu melhor amigo
[Daniel]. Agora só tenho a Suzane. Vou car ao lado dela – anunciou.
Quando chegaram à sala de inspeção, onde os visitantes são revistados,
Andreas e Amanda foram separados. O garoto foi revistado por um homem
e ela por uma mulher. Os dois tiveram de tirar a roupa e se agachar. Andreas
não estranhou, pois o tio já havia advertido quão humilhante era visitar uma
pessoa presa na cadeia. Amanda cou incomodada com a ordem de se
acocorar nua diante do espelho.
— Isso é mesmo necessário? – quis saber a estudante de Direito.
— Não, garota! Não é necessário. Você pode não se submeter a esse
vexame. Basta dar meia-volta e cancelar a visita – sugeriu a agente
penitenciária, irônica.
Amanda enfrentou a revista íntima, mesmo contrariada. Ela carregava
um bolo de chocolate com recheio de morango feito com carinho pela sua
mãe, dona Estelita, para dar de presente à amiga. Como a iguaria estava
dentro de uma caixa de papelão, a agente pediu que Amanda abrisse a
embalagem. Ao puxar as abas da caixa, só era possível ver a parte de cima do
bolo, coberto com ganache amargo, onde se lia a frase bíblica “A fé move
montanhas” escrita com chantili. Sem retirar o produto da caixa, a agente
meteu a mão com toda a força e remexeu o bolo molhado com os dedos até
virar um mingau empapado impossível de ser fatiado. No nal, a agente
lambeu os dedos com pedaços da cobertura e devolveu à visitante. “De-li-ci-
o-so. Depois me passa a receita”, sacaneou.
Indignada, Amanda pegou a caixa, encontrou-se com Andreas no pátio
e caminhou até Suzane, que estava sentada em um banco, sozinha, fumando
e lendo. Estava tão ansiosa que nem sequer abriu o presente. Abraçou o
irmão por muito tempo e agradeceu à amiga por ter levado Andreas para
visitá-la. O garoto fez questão de deixar claro que o tio o proibiu de vê-la. Os
três falaram de vários assuntos, exceto do crime. Era como se a tragédia não
tivesse acontecido. Andreas passou para a irmã uma carta escrita por Daniel.
Em um dos trechos, o piloto dizia manter na cadeia uma luta diária para
preservar a sanidade mental, assumia ter atentado contra a vida três vezes e
que também vinha sendo assombrado pelos fantasmas do casal Richthofen.
Suzane não se comoveu, guardou a carta no bolso e começou a falar das
ameaças recebidas dentro da cadeia e da necessidade de sair dali para provar
a sua inocência:
— Eu não posso car aqui por muito tempo. Não posso! Não Posso! Não
posso! Aqui tem muitas tra cantes perigosas. Elas repetem todos os dias que
vão me matar! Uma delas tem lâminas no lugar das unhas! Além do mais,
preciso de advogados bons e eles são caros. Ou seja, preciso de dinheiro –
avisou Suzane.
— O tio Miguel disse que você vai apodrecer aqui dentro sem nada, pois
não terá direito à herança – argumentou o irmão.
— E o que você acha disso? Ele está certo? Eu mereço morrer aqui
dentro? Mereço?
Andreas abaixou a cabeça e não respondeu. Amanda quebrou o clima
pesado abrindo a caixa com o bolo destruído. Suzane olhou e riu, explicando
que as agentes metem a mão nas comidas para ver se tem arma branca ou
celular no recheio. Os três comeram o bolo amassado descontraídos. No
nal da visita, Suzane perguntou a Andreas sobre a Beretta dada a ele por
Daniel:
— Onde você escondeu essa arma?
— Dentro do seu ursinho de pelúcia!
— Tire de lá sem o tio Miguel perceber e dê um sumiço nela. Se a polícia
encontrá-la, vão achar que você está envolvido no crime – advertiu a
assassina.
Suzane implorou para Amanda e Andreas voltarem no próximo
domingo, pois precisaria de um favor importante. E ainda aconselhou a
amiga a levar um creme e não um bolo, pois a consistência da sobremesa se
manteria mesmo depois de remexida pelas agentes. Assim que Amanda e
Andreas saíram da cadeia, Suzane recebeu a visita dos advogados Denivaldo
Barni e de seu lho, Barni Jr. Os dois também levaram um bolo de presente,
que por sinal não estava destruído. Suzane deixou o presente de lado e foi
logo falando de negócios:
— O meu tio não vai me deixar receber a herança.
— Imaginei que isso aconteceria. Convença o Andreas a impedi-lo.
— Como faria isso?
— Consiga dele uma carta escrita de próprio punho dizendo que é
contra a sua exclusão da herança – sugeriu o advogado.
— Já havia pensado nisso... – concordou Suzane.
No meio da semana, Andreas acatou a ordem da irmã. Foi até o quintal
da casa de Miguel e começou a cavar um buraco perto de um pé de limão.
Ao ser agrado pelo tio, o adolescente disse que estava fazendo uma cova
para enterrar um dos seus cachorros, que havia morrido supostamente
intoxicado por material de limpeza. Miguel cou descon ado, mas não fez
nenhuma repreensão. Deixou o sobrinho trabalhando freneticamente com
uma pá. No dia seguinte, porém, Miguel foi até o local e revolveu a terra.
Para sua surpresa, não havia cachorro na cova. Miguel encontrou a Beretta
sepultada e um estojo de balas. Pressionado pela família, Andreas confessou
que ganhara a arma de presente de Daniel quando zera 15 anos. Para se
livrar da Beretta e incriminar ainda mais Suzane e Daniel, Miguel levou a
arma até o Ministério Público e contou a história repassada pelo sobrinho.
No domingo seguinte, conforme o combinado, Andreas e Amanda
voltaram à penitenciária. O irmão de Suzane, dessa vez, seguia calado.
Amanda tentava puxar conversa, mas ele não interagia. Na la de espera, a
senhora tagarela fazia novamente apologia à amizade verdadeira para quem
quisesse ouvir:
“A minha amiga presidiária é uma assaltante e assassina que matou cinco.
Quando a conheci, era mulher honesta. Hoje, é bandida perigosa. Uma pessoa
pode perfeitamente ser amiga de uma assassina. Isso é uma escolha. Eu escolhi
o errado e por isso estou aqui nessa la degradante à espera de uma senha
para me agachar nua para as agentes verem se carrego um telefone celular no
rabo. Vou fazer uma pergunta a vocês: nós gostamos e desgostamos das
pessoas por fatores alheios à nossa vontade? Não! Tudo na vida é uma escolha.
Várias portas se abrem à sua frente e você escolhe em qual entrar...”
A mulher falava tão ininterruptamente que mal fazia pontuação. Mas
Amanda não desejava que ela se calasse. Só parou de ouvir o sermão quando
chegou a sua vez de entrar no presídio.
Amanda não seguiu o conselho de Suzane e levou dessa vez dois bolos
recheados e duas garrafas de refrigerante de dois litros cada uma. Ao passar
na inspeção, não esperou a ordem para tirar a roupa. Foi logo se despindo e
agachando-se três vezes diante do espelho. A mesma agente que havia
destruído o bolo no m de semana anterior em busca de objetos pegou as
caixas e abriu para ver o que tinha dentro. Quando se preparava para meter
a mão e destroçar a iguaria, Amanda interrompeu:
— Um bolo é para a Suzane. O outro é para você.
— Para mim? – espantou-se a agente.
— Isso mesmo! Um bolo é seu. Fique também com uma garrafa de
refrigerante!
— Que gentil da sua parte. Muito obrigada!
Com o mimo, a agente cou sorridente! Foi Barni quem deu essa dica à
Amanda. A funcionária fechou as caixas e devolveu um dos bolos à amiga
de Suzane sem encostar o dedo. Guardou o outro no armário com a garrafa
de Coca-Cola para o lanche da tarde com as colegas. Amanda seguiu até o
pátio, onde Suzane a aguardava com um caderno e uma caneta na mão.
Andreas, dessa vez, parecia entupido de perguntas e antes mesmo de
cumprimentar a irmã, disparou à queima-roupa:
— Por que você fez isso? Por que você matou os nossos pais? Por quê? –
perguntou com a voz embargada, trêmulo de emoção.
Em silêncio Suzane estava, em silêncio permaneceu por um longo
tempo. Cabisbaixa, começou a chorar de soluçar. Parecia um pranto ngido.
Ao testemunhar cena de tamanho constrangimento e intimidade familiar,
Amanda resolveu dar uma volta pelo pátio da penitenciária para deixar os
dois à vontade. Suzane passou a mão no rosto como se enxugasse as
lágrimas. Mas não havia lágrimas. Ela começou a falar. Contou para o irmão
que estava sendo ameaçada de morte pelas mulheres do PCC. O adolescente
não se comoveu e insistia nas respostas da irmã para as motivações do
crime. Suzane então começou a velha história de que foi manipulada por
Daniel. Disse não ter matado Manfred e Marísia, jogando a responsabilidade
do duplo homicídio para os irmãos Cravinhos. “Eu nem entrei naquele
quarto. Eu juro, juro, juro!”. Andreas abraçou a irmã, numa cena dramática,
mas sem lágrimas de ambos. No ápice da emoção, Suzane repassou ao irmão
o caderno e a caneta azul e pediu que escrevesse uma carta naquele
momento. O adolescente aceitou. Suzane então começou a ditar, enquanto o
irmão ia escrevendo:
“Querida Su, estou morrendo de saudades. Você sabe que eu não tenho
vindo te visitar porque o tio Miguel me proibiu de te ver. Eu sou contra isso.
Também sou contra que você seja excluída da herança. Isso foi ideia dele e da
doutora Cida [advogada do Miguel]. Eu continuo do seu lado. Eu te amo. Do
seu irmão, Andreas”.
Depois de re etir um pouco, Suzane pediu para o adolescente riscar o
“eu te amo”. “Você jamais diria isso”, observou ela. O irmão obedeceu e
substituiu o “eu te amo” por “um beijo”.
Suzane arrancou a página do caderno e guardou a carta no bolso,
expressando alegria. Em depoimento, Andreas disse ter escrito aquilo sob
efeito de forte chantagem emocional. Amanda voltou a tempo de agrar a
ambivalência de Suzane ao manipular as emoções de Andreas, mas não
teceu nenhum comentário. Os três comeram bolo de chocolate com
refrigerante. Um bolo cortado em fatias e não amassado, frise-se.
Enquanto lanchava no pátio, Amanda olhou ao redor e enxergou o
maior número de criminosas que a sua vista pôde alcançar. Lembrou-se das
palavras da senhora na la da penitenciária dizendo ser possível escolher as
pessoas que entram e saem de sua vida. Ali, olhando para aquele pátio
repleto de bandidas recebendo visitas de gente inocente, incluindo crianças,
em pleno domingo de sol, Amanda prometeu a si mesma afastar-se de
Suzane e do imbróglio da família Richthofen e suas camadas de desavenças,
cizânia, rixa e discórdia. Nunca mais ela pisou naquela clausura. Cumpriu a
promessa com a nco e desapareceu da vida de Suzane para sempre. Não
escrevia nem respondia mais às cartas enviadas pela amiga. Andreas, dando-
se conta de como a irmã era insidiosa, também decidiu cortar relações e não
foi mais lá. “Ela manipula até a nossa alma”, disse ele ao tio. Mas o conceito
de Andreas sobre a irmã mudava como as fases da Lua.
Ao ser confrontado pelo Ministério Público ainda sobre a arma
enterrada no quintal, Andreas deixou claro estar ao lado de Suzane. “Nunca
quis obstruir as investigações nem o processo que investiga a morte dos
meus pais. Mas também não quero prejudicar a minha irmã. A prisão me
custa muito sofrimento. Vou ajudá-la no que for preciso, pois esse é o meu
dever como membro da família”, declarou após escrever a carta ditada por
Suzane. Em seguida, o adolescente repassou aos membros do Ministério
Público o ursinho de pelúcia com um rasgo no ventre, por onde havia
retirado a Beretta presenteada por Daniel. A compaixão de Andreas por
Suzane não duraria muito tempo. Convencido pelo tio, ele rompeu
de nitivamente com a assassina. “Andreas, você não é mais criança. Abra
seus olhos para a realidade. A Suzane matou os seus pais para car com a
herança. Quem faz isso por dinheiro é capaz de qualquer coisa. O herdeiro
será você. Mas se você morrer, quem cará com tudo será ela. Uma coisa já
está clara: Suzane é assassina e manipuladora”, teria dito o tio Miguel. Com
essa verdade jogada na cara, Andreas rompeu de nitivamente com a irmã.
Passou a ter medo dela.
Sem visitas do irmão e da melhor amiga, Suzane passou a fazer amizades
no cárcere. A primeira a se aproximar foi Maria Cecília Santiago, de 40 anos,
a Ciça. As duas eram colegas de cela. Assim como a jovem, a detenta dizia
“ter matado para se libertar”. Suzane logo se identi cou. O crime de Ciça
escandalizou a cidadezinha de Monte Aprazível, no interior de São Paulo.
Ela era mãe solteira de Tatiana, de 6 anos, quando conheceu o padeiro Chico
do Pão. O casal engatou um namoro e cinco anos depois estavam dividindo
o mesmo teto. Chico era mulherengo e essa característica irritava Ciça. Na
rua, ele chegava a dar em cima de mulheres da vizinhança até mesmo na
frente da companheira. Ciça fazia vista grossa porque, à noite, era na cama
dela que ele se refestelava para fazer amor.
Tatiana completou 14 anos quando Ciça e Chico comemoravam bodas
de algodão. Aplicada, a garota costumava fazer grupos de estudos em casa
com outras meninas da sua idade. Certa vez, Ciça pegou o caderno escolar
da lha e na contracapa se deparou com uma mensagem escrita dentro de
um coração pintado com canetinha colorida, onde se lia: “Pode haver
centenas de obstáculos, mas nada fará o meu amor por você morrer”. A
mensagem não tinha destinatário. Ciça acreditou na possibilidade de a lha
estar apaixonada por um colega de escola. Um mês depois, a mãe pegou
novamente o caderno de Tatiana e viu outra declaração, dessa vez explícita:
“Chico, meu amor, te amo tanto que chega a doer”. Em um diálogo franco
com a lha, Ciça ouviu da garota um balde de honestidade. A enteada estava
perdidamente apaixonada pelo padrasto. A menina ainda deixou claro que
Chico não sabia de nada. O padeiro foi chamado para a conversa. Defendeu-
se argumentando sempre ter olhado a adolescente como se sua lha fosse.
Para se livrar da relação triangular, a mãe mandou Tatiana à casa da avó, no
município vizinho de Votuporanga. Ciça deu a seguinte justi cativa para se
livrar da lha: “Ela era uma mulher feita, com os peitos duros e a vida toda
pela frente. E eu era uma mulher de meia-idade chegando à velhice. Entre o
amor pela minha lha e a necessidade de ter um homem em casa, quei com a
segunda opção”.
No dia 24 de junho de 2001, um domingo, três meses depois de Tatiana
ter sido despachada, Chico fez uma festa de São João no quintal de casa para
amigos do trabalho e chamou toda a vizinhança. No cair da noite, foi acesa
uma fogueira de dois metros de altura. Comida típica e bebida à vontade.
Ciça e Chico embriagavam-se e dançavam felizes. Por volta das 20h, Tatiana
chegou à festa com um grupo de amigas. A adolescente estava de mãos
dadas com um jovem de 17 anos. A mãe mandou a lha dar meia-volta e
regressar para a casa da avó, mas Chico interferiu:
— Para com esse ciúme bobo! A sua lha tá namorando! Veio
acompanhada...
— Eu a proibi de pisar aqui! – esbravejou Ciça.
Tatiana acabou cando. Cecília, de longe, observava a lha bebendo
quentão e dando uns beijos no rapaz. Ficou aliviada. Passou a car
preocupada com as olhadas de Chico para uma sirigaita risonha, dançarina
pro ssional. Por volta das 23h, havia dez gatos pingados na festa e todos
alcoolizados. Perto de meia-noite, a bebida acabou e Ciça se pronti cou a ir
até o bar da esquina pegar cerveja. No caminho de volta para casa ela
encontrou uma amiga e as duas caram proseando. Quando se deu conta, já
era quase 1h da madrugada. Correu para casa.
A fogueira ainda estava incandescente quando Ciça passou pelo quintal.
Pôs a bebida na geladeira e seguiu até o quarto. Lá, agrou o marido
transando com Tatiana na cama do casal. Os três estavam muito bêbados.
Ciça correu até a cozinha e pegou a maior faca que encontrou na gaveta.
Voltou ao quarto e parou por um instante, consumida pela dúvida: quem
deveria morrer? Numa fração de segundo, escolheu assassinar a lha. Saltou
sobre a cama e cravou a faca nas costas da menina. “Na hora, pensei: ela
tinha o meu sangue. Não podia fazer isso com a própria mãe”, justi cou Ciça
em 2016.
Golpeada, Tatiana caiu da cama nua, com a faca enterrada nas costas. A
poça de sangue encharcou o tapete bege do chão do quarto. A vítima ainda
se debateu antes de morrer.
Chico cou apavorado com a fúria da mulher e correu enrolado em um
lençol pela rua, pedindo para os vizinhos chamarem a polícia. Em nenhum
momento Ciça socorreu a lha. Sentou-se na beirada da cama, aos prantos,
à espera dos policiais. Na delegacia, confessou o crime. No Tribunal do Júri,
recebeu uma pena de 30 anos de cadeia.
O crime bárbaro não desfez os laços entre Ciça e o padeiro. Ele nunca
abandonou a companheira na prisão. Por cinco anos a criminosa o recebia,
mas deixava claro sentir ódio no coração. Anos mais tarde, aconselhada por
Suzane, Ciça esqueceu a lha, perdoou Chico e se casou com o seu amado
no pátio da penitenciária. Os dois planejam renovar votos de casamento tão
logo ela conquiste a liberdade, prevista para 2024. No regime semiaberto,
quando tem direito às saidinhas, é para a cama quente do marido que Ciça
corre.

* * *
Geralmente, quem mata o pai e a mãe consegue de uma só vez romper
os laços afetivos com a totalidade dos parentes, de todas as rami cações,
tanto de primeiro quanto de segundo grau. Os primos cortam a relação
porque perderam os tios. Os tios viram as costas porque tiveram os irmãos
assassinados. Os avós perdem os lhos. Ou seja, não sobra ninguém. Foi
assim com Suzane, que passou a receber apenas visita de advogados depois
que o irmão e a melhor amiga desapareceram. Sozinha na cadeia, estreitou
laços afetivos com Marisol, a agente de segurança penitenciária. Foi a
funcionária quem conseguiu uma vaga de trabalho para Suzane no Posto de
Saúde da cadeia. Sua tarefa era abrir prontuário para as prisioneiras antes
das consultas com o médico João Paulo Oliveira.
João, de 25 anos na época, acabou se tornando con dente de Suzane. Foi
para ele que a assassina se abriu pela primeira vez depois do crime. Em
alguns momentos, a jovem chorava seco, segundo dizia, de arrependimento.
Em outras ocasiões, o pranto ocorria por saudade de Daniel. João e Marisol
passaram a ser o porto seguro de Suzane na PFC. Todas as vezes que a
agente via Suzane deprimida, a levava à capela da penitenciária. Luterana, a
jovem torceu o nariz para os sacramentos católicos, como batismo, crisma e
principalmente con ssão dos pecados. No entanto, aos poucos, foi
encontrando conforto na nova experiência religiosa. Na capela da
penitenciária, a jovem começou a rezar para Santa Rosália. Com a imersão
no catolicismo, Suzane ganhou de Marisol dois presentes para marcar a
transição religiosa: uma Bíblia e um terço.
— Você sabe rezar o terço? – perguntou a agente.
— Não! Nem quero aprender! O terço concede uma dignidade à Maria,
que não tem fundamentação bíblica. No luteranismo, ela não é uma
intercessora junto a Jesus – justi cou Suzane.
— Minha lha, aqui na prisão, você chegará mais perto de Deus no
catolicismo.
— Será?
— Comece aprendendo a rezar o terço.
— Então me ensine, por favor!
— Antes de mais nada, você precisa saber que o rosário é uma tradição
milenar da Igreja Católica. Você tem de puri car o seu coração para
compreender o valor de uma oração e se perdoar – aconselhou.
Atenta e vulnerável espiritualmente, Suzane pegou o terço e passou a
acompanhar a oração declamada por Marisol com credulidade. Didática, a
agente pediu que a amiga acompanhasse o movimento com os dedos no
rosário enquanto rezava. “Comece segurando pela cruz, recitando a oração
do Credo. Depois você reza um Pai-Nosso, seguido de três Ave-Marias.
Recite também Glória ao Pai e ao Filho.” Suzane acompanhava a aula de
terço como se a salvação da sua alma dependesse desse rito. Marisol falou
como a matemática fazia parte da liturgia: “Veja que o terço possui cinco
dezenas. A cada dezena contempla-se um mistério, seguido de um Pai-
Nosso e dez Ave-Marias. Ao concluir as cinco dezenas, você faz os
agradecimentos”, explicou.
Confusa, Suzane achou complicado rezar o terço inteiro, mas fechou os
olhos e conseguiu fazer o primeiro ritual, conhecido como “oferecimento”.
Marisol deixou a nova pupila sozinha na capela e pediu que ela re etisse
sobre a vida, pedisse perdão a Deus e lesse os salmos 103: 10-12. Abriu a
Bíblia e leu em voz alta: “Ele não nos trata segundo os nossos pecados, nem
nos castiga segundo as nossas iniquidades. Porque, assim como o céu está
elevado acima da Terra, assim é grande a sua misericórdia para com aqueles
que o temem. Tanto quanto o oriente está longe do ocidente, tanto tem Ele
afastado de nós as nossas transgressões”.
Marisol cou observando Suzane orando de longe, emocionada. A
agente vibrou com o recrutamento da noviça famosa e acreditava piamente
que estava livrando a alma da criminosa do inferno. No entanto, mal a
funcionária saiu da capela, o diabo entrou para atormentar a ovelha novata.
Maria Bonita invadiu o recinto religioso acompanhada de três bandoleiras.
Na casa de Deus, debochada, a cangaceira travou o seguinte diálogo com
Suzane:
— Rezando pra que, garota? Você acha mesmo que tem salvação?
— Todo mundo merece uma segunda chance – argumentou Suzane,
ajoelhada.
— Acorda pra morte, sua putinha! Você é uma assassina impiedosa!
Matou os próprios pais! Sua alma é do demônio faz tempo! O diabo está só
esperando você ser assassinada para cair de boca!
Sem demonstrar medo, Suzane levantou-se. Calmamente, pôs a Bíblia
sobre um banco de madeira e encarou Maria Bonita:
— Não me lembro de ter pedido a sua opinião! A nal, o que você
deseja?
— O seu advogado não transferiu o dinheiro para a conta do PCC. Você
sabe quantas presas já foram mortas aqui dentro por causa de dívidas com o
Comando? – ameaçou Maria Bonita, mostrando uma faca artesanal grande,
a ada e toda enferrujada, feita na cadeia usando lâmina, madeira, adesivo
epóxi e arame.
Jamais uma presa novata com apreço pela vida daria calote no PCC. A
cobrança dessa dívida geralmente acaba em morte nos presídios dominados
por facções. Corajosa e desobediente, Suzane se aproximou da oponente e
peitou Maria Bonita dentro da capela:
— Eu não tenho medo de você nem das suas capangas.
Maria Bonita apontou a faca para Suzane e já se preparava para golpeá-la
quando Quitéria entrou às pressas e cochichou por uns segundos ao pé do
ouvido da subordinada. Ao escutar o segredo, a presa de unhas a adas
guardou a arma branca na calcinha e aproveitou o ambiente religioso para se
ajoelhar aos pés de uma imagem de Santa Rosália, evocando com os braços
para o alto:
— Obrigado, Nossa Senhora! Era esse salve que tinha pedido aos céus!
Em seguida, as tra cantes saíram da capela cantarolando e pulando de
tanta alegria. Da porta, Maria Bonita virou-se para Suzane e deu um riso
cínico, deixando um enigma no ar. Duas das características indeléveis da
personalidade de Suzane são a agressividade camu ada e o excesso de
coragem para enfrentar situações de perigo. Isso explicaria a audácia da
jovem de aparência frágil ao confrontar a gangue do PCC dentro da capela.
No dia seguinte, ao acordar, Suzane recebeu uma correspondência de
Daniel. Ao ver o envelope, cou tão emocionada que nem sequer teve
apetite para tomar o café da manhã. A carta, no entanto, não trazia boas
notícias. Daniel terminava o namoro em apenas uma página. Em
determinado trecho, escreveu: “Como fui idiota! Como fui usado por você!
Espero do fundo do coração que você morra na cadeia e que a sua alma
carbonize no inferno, sua manipuladora do caralho”. Estarrecida, Suzane
escreveu uma dezena de folhas de papel dizendo amá-lo para sempre. A
carta de Suzane nunca teve resposta e ela assumiu o status de solteira. Partiu
para a guerra. Seu primeiro ataque ocorreu no Posto de Saúde onde
trabalhava como atendente. Suzane passou a dar em cima de João Paulo.
Certo dia, o médico levou um pastel de queijo para a parricida, que retribuiu
a gentileza com um beijo no rosto. Complementou fazendo poses sensuais e
dizendo sonhar em um dia poder agradecer à altura por aquele gesto de
carinho. João percebeu o xaveco e riu. Suzane investiu mais um pouco
usando a sua tradicional voz infantil:
— Você tem namorada?
— Não. E você?
— Também não – respondeu ela, sorridente.
Atrevida, a jovem aproveitou que João estava em sua estação de trabalho
e foi lá, maliciosamente, tirar uma dúvida sobre o prontuário de uma
detenta. Para seduzi-lo, amarrou os cabelos para trás e se pôs bem próxima,
repousando a sua mão direita sobre a do médico, na mesa, entrelaçando os
seus dedos nos dele. João retribuiu a investida, apertando suavemente a mão
da jovem. A cena romântica foi interrompida com a chegada fortuita da
próxima paciente. Era Maria Bonita, sangrando, implorando por um
curativo em seu rosto, onde havia um corte super cial desferido por
Quitéria. A cangaceira do PCC era amiga de longa data de João. Os dois
entraram em uma ala reservada do Posto de Saúde e conversavam com
cumplicidade, enquanto ela recebia atendimento. Excluída, Suzane
espumava de ciúme. A assassina quase não se conteve quando os dois
passaram a falar baixinho. A “consulta” estava demorando demais e Suzane
adentrou na sala, percebendo que a conversa entre os dois era íntima e
pessoal. Maria Bonita saiu esbaforida, com esparadrapo na bochecha,
deixando Suzane e João a sós.
— Você faz parte da facção? – quis saber Suzane, já com a voz de mulher.
— Tá louca? Claro que não! – rebateu o médico, visivelmente apreensivo.
— O que tanto você falava com essa tra cante?
— Vou te contar algo sobre a cadeia, garota. Informação exclusiva aqui
vale mais do que ouro. Pode valer uma vida! – ensinou o médico.
Atenta aos conselhos de João, Suzane se encantava com tamanha atenção
a ponto de não perceber a sutil a ição do rapaz. O médico era um homem
bonito. Alto, cabelos castanhos, corpo atlético e tatuagens aparentes no
braço. Educado e sempre bem-humorado, era querido tanto pelas presas do
PCC quanto pelas do TCC. Por causa da intimidade do médico-galã com
Maria Bonita, testemunhada há pouco, Suzane resolveu se declarar para não
perdê-lo para a cangaceira de garras a adas. Ela modulou a voz mais uma
vez e falou bem menininha:
— Acho que estou me apaixonando – insinuou Suzane.
— Jura? Por quem?
— Por um homem de branco.
— Não diga! – ironizou o médico, desligando o computador.
— Mas não sei se serei correspondida...
Enquanto a parricida falava, o médico olhava para o relógio a todo
momento e arrumava as coisas do posto às pressas. João percebeu o jogo de
sedução e resolveu dar o toco em Suzane pelas entrelinhas, enquanto
trancava gavetas e esvaziava um armário onde estavam armazenados álcool,
medicamentos e instrumentos cirúrgicos para primeiros socorros. João
estava nervoso, mas disfarçava. Houve uma provocação da parte dele:
— Será que esse homem é quem estou pensando?
— Se o homem que você está pensando for bonito e divertido, é ele, sim
– disse Suzane com voz anasalada.
— Então sou eu! – abreviou João, pondo em sua mochila todas as
seringas e os instrumentos cortantes do Posto de Saúde.
— Tenho chance? – perguntou a detenta com um apo de voz.
João parou, fechou a mochila e puxou todos os os de equipamentos
elétricos da tomada. Em seguida, cou cara a cara com Suzane.
— Você é linda. Tem rostinho angelical. Mas a possibilidade de termos
algo além de uma amizade é nula. Primeiro, porque isso é contra as regras
da penitenciária. Eu não posso me envolver com detentas. Segundo, porque,
assim como você, eu gosto de homens.
As palavras do médico cortaram o coração de Suzane. Quando João
assumiu ser gay, a jovem estava em pé. Impactada com a notícia, procurou a
primeira cadeira vazia e sentou-se para não cair no chão, ngindo um
pequeno desmaio. Já estava ensaiando uma careta de choro quando João
correu para ampará-la. No lugar de palavras de conforto, o médico preferiu
dar à amiga um choque de realidade, ao fazer um prognóstico devastador:
— Suzane, esquece essa bobagem de namoro. Preste atenção ao que eu
vou te dizer e guarde esse segredo só com você, pois a sua vida a partir de
agora depende dele. Amanhã vai estourar uma rebelião violenta aqui na
penitenciária. Eu não posso fazer nenhum tipo de alerta, entende? O PCC
vai se rebelar e você será usada como refém!
Maria Bonita alertou João como uma prova de amizade, para que ele não
pusesse os pés lá no dia seguinte. Mas nem deu tempo de o médico repassar
mais detalhes. Quando ouviu as palavras “rebelião” e “refém”, pronunciadas
na mesma frase dentro de uma penitenciária apinhada de tra cantes
sanguinárias, Suzane teve vertigens. De cara, lembrou-se com arrepios do
arsenal de facas em poder das mulheres do PCC e das ameaças de morte que
vinha sofrendo diariamente. Até a tosse cavernosa de Quitéria lhe veio à
cabeça. Mesmo zonza, a parricida concluiu ter sido essa a mensagem
repassada à Maria Bonita quando estavam na capela. Com medo de morrer,
Suzane pegou o terço do bolso, soltou um “nossa senhora!” e desmaiou de
verdade nos braços de João.
Bailarinas, uma pedra de gelo, um palhaço e
um duende

N
a ambiência do cárcere, os criminosos fazem as suas próprias leis.
Apesar de essas regras não estarem escritas em nenhum papel, elas
são cumpridas à risca. Os presos condenam à pena de morte e
executam a sangue frio dentro da cadeia, na primeira oportunidade,
estupradores, pedó los, sequestradores que assassinam reféns depois de
receber o dinheiro do resgate, lhos que matam os pais e pais que matam os
lhos. Quem tem dívida com facções criminosas também é executado. A
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) atribui aos criminosos
fadados à morte o termo “detento vulnerável”. Suzane já estava com a
sentença de morte assinada pelas mulheres do PCC, mas a direção da
Penitenciária Feminina da Capital (PFC) havia recebido recomendações
vindas do gabinete do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin na época,
determinando um cuidado especial com a garota. Principalmente porque ela
era considerada uma “presa de mídia”, ou seja, sua simples presença na
cadeia jogava luz sobre o sistema penal. Além disso, seu pai, Manfred von
Richthofen, foi um alto funcionário da Dersa. Para garantir sua proteção, a
direção da PFC acomodou Suzane em uma cela com outras seis detentas
autoras de crimes passionais, de comportamento exemplar. A galeria em que
essas presas cavam era chamada de “gaiola do bem”.
Fazia parte de uma estratégia vital de sobrevivência ter uma amiga el na
cadeia. A escudeira, de preferência, deve ser da mesma cela. Assim é possível
uma cuidar da outra, inclusive enquanto dormem. A primeira e única
criminosa aliada de Suzane durante a sua passagem pela PFC foi So a, uma
detenta educadíssima de 28 anos. Os gestos delicados e o rosto bonito
renderam a ela o apelido de “Bonequinha de Luxo”, dado pelas agentes de
segurança penitenciária. Como as presas não abrem a vida pessoal para as
colegas no primeiro contato, Suzane só conheceu a intimidade de So a
depois do quarto mês de convivência, quando ouviu uma história de amor
sofrida. Goiana de Anápolis, a Bonequinha foi prostituta dos 12 aos 21 anos
na rodovia Belém-Brasília. Sua clientela era formada preferencialmente por
caminhoneiros. Na primavera de 1997, a garota de programa subiu na boleia
da carreta de Eduardo, de 33 anos, carinhosamente chamado de Dudi. Foi
amor à primeira vista, daqueles inexplicáveis no campo racional, como ela
mesma de niu. Certa vez, So a e Dudi zeram um programa especial num
motel de beira de estrada. Cansada do dia pesado de trabalho, a garota
adormeceu nos braços do cliente. Quando acordou, por volta do meio-dia,
viu que Dudi havia deixado um bilhete de despedida junto com uma nota de
50 reais, dizendo que a noite tinha sido incrível.
Por causa do carinho incomum na relação envolvendo sexo e dinheiro, o
rapaz passou a habitar os pensamentos de So a dia e noite. Um mês depois
do encontro especial, o cliente reapareceu e pediu a acompanhante em
casamento. A ex-prostituta passou em casa, pegou uma sacola com roupas e
sapatos e subiu no caminhão do noivo. Foi morar no município natal do
amado, Atibaia, interior de São Paulo. Dudi era romântico, do tipo que
manda ores. Passava quinze dias na estrada fazendo frete em seu próprio
caminhão do Porto de Santos para capitais do Centro-Oeste e sempre
voltava com um ramalhete nas mãos. So a virou dona de casa dedicada e
engravidou do primeiro lho, o pequeno José.
A vizinha da casa ao lado se chamava Edileusa, uma mulher solteira,
amarga e fofoqueira de 50 anos. Todas as vezes em que batia na porta era
para pedir açúcar ou falar mal da vida alheia. O repertório de maledicência
da víbora parecia in nito. So a também era amiga de Marilene, uma ex-
garota de programa de 23 anos moradora da rua de trás. Ela havia trocado a
calçada pela atividade de diarista tão logo engravidou. So a se identi cava
com a história de vida da amiga, muito parecida com a sua. Para ajudá-la,
So a a contratou para fazer faxina em sua casa de quatro cômodos uma vez
a cada 15 dias. As duas praticamente haviam engravidado na mesma época.
Para os íntimos, Marilene contava “ter pego barriga” de um cliente casado. O
pai misterioso prometeu bancar o lho bastardo, mas deixou claro que faria
um exame de DNA e jamais abandonaria a esposa. Quando Edileusa, a
amiga fofoqueira, viu Marilene lavando roupa na casa de So a, o seu veneno
saiu com uma porção de vulgaridade:
— Como você teve coragem de botar essa puta dentro da sua casa, um
lugar sagrado? Seu marido vai passar a vara nela!
— Deixe de ser maldosa, dona Edileusa. Ela está grávida. Precisa
trabalhar.
— Homem é tudo igual, minha lha! Se eu fosse você, caria de olho. Só
estou dizendo isso porque sou uma mulher boa – advertiu a vizinha.
So a não deu ouvidos à maldade de dona Edileusa. Dudi continuava
romântico mesmo depois de três anos de casamento e nem sequer sabia o
nome da diarista, fazia ele questão de frisar.
Em um nal de semana de sol, Dudi ensinou So a a dirigir sua carreta,
uma Scania de cabine branca modelo 360 trucada 6x2, uma das mais belas e
potentes da época. Ao dirigir aquele veículo imenso pela Rodovia Fernão
Dias, So a sentiu uma sensação autêntica de poder e nostalgia, pois o pai e o
avô foram caminhoneiros e costumavam levá-la com os irmãos para passear
nas carretas. So a gostou tanto da experiência que resolveu tirar carteira de
motorista para dirigir veículos pesados e passou a sonhar em ser
caminhoneira pro ssional. “Outro dia eu vi uma reportagem na TV sobre
mulheres que levam cargas por todo o Brasil sem perder a feminilidade. É
isso que eu quero para a minha vida”, decidiu. Dudi aprovou a ideia, mas
pediu para a esposa, grávida de quatro meses na época, esperar o lho
nascer e completar 10 anos.
No sábado, 22 de julho de 2000, pela manhã, So a chamou Marilene
para fazer uma faxina e ajudá-la a preparar um jantar especial para Dudi,
prestes a chegar de uma longa viagem de trabalho. Por telefone, a diarista
falou de enjoos e avisou não estar disponível. So a comprava legumes na
feira para o jantar quando encontrou Edileusa por acaso. Solícita, a
fofoqueira se ofereceu para ajudar na faxina e nos preparativos da refeição.
À tarde, enquanto varria o chão da cozinha da amiga, Edileusa fazia
perguntas inconvenientes a So a:
— O que você fazia da vida quando conheceu o seu marido?
— Eu era vendedora – disse So a, enquanto cortava cenoura com uma
faca de cozinha.
— Vendia o quê? – insistiu Edileusa.
— Cosméticos – mentiu a ex-garota de programa.
De vassoura na mão, Edileusa aproximou-se de So a, que já passava a
faca a ada nos tomates. Fulminante como uma metralhadora, a fofoqueira
estufou o peito e disparou uma rajada de verdades na cara daquela de quem
se dizia amiga:
— Todo mundo aqui na cidade sabe que você era garota de programa,
assim como a Marilene é até hoje. Você é prostituta, né? Fala a verdade. Só
estamos eu e você aqui!
Chocada, So a parou de cortar os legumes, ncou a faca na tábua de
madeira, posta sobre a pia, e começou a sentir tremores. Continuou a ouvir
Edileusa falando sem parar:
— Olha, eu não tenho nada contra. Juro por Deus. Cada um vende o que
tem. Agora vou te contar uma novidade: o seu lindo marido, para quem
você está preparando esse jantar, tem um caso com a Marilene muito antes
de você aparecer na vida dele.
Incrédula e fora de si, So a largou os legumes pra lá, pegou a faca e
avançou sobre Edileusa.
— O que a senhora está falando?
— Quer saber mais? É dele o lho que aquela puta carrega na barriga.
— A senhora está mentindo! – repetia So a, soltando a faca no chão.
— Ah, estou? Então vai hoje à noite, às 23h em ponto, no quilômetro 61
da Fernão Dias. Vai lá, se tiver coragem. Vai e você verá com os seus
próprios olhos.
— Quero que a senhora saia da minha casa agora, sua cobra!
Dona Edileusa largou a vassoura, tirou o avental com uma sensação de
dever cumprido, pegou a faca do chão e a pôs sobre a pia. Em seguida, saiu
desejando “bom jantar”. Fria, So a terminou de preparar a salada e cozinhou
macarrão com almôndegas para Dudi, que chegou em casa por volta das
18h. Ele estacionou a carreta num terreno baldio ao lado e jantou
tranquilamente com a esposa por volta das 19h. Duas horas depois, o
caminhoneiro tomou um banho, vestiu uma roupa limpa e passou Seiva de
Alfazema no pescoço. À So a, o marido disse que iria visitar um amigo em
Mairiporã, cidade vizinha, para falar de uma carga a ser transportada de São
Paulo para Imperatriz, no Maranhão. Descon ada, So a se pronti cou a
acompanhá-lo. Dudi concordou de pronto e ela cou imediatamente
aliviada, pois era a prova de que o marido falava a verdade. Resolveu deixá-
lo ir sozinho. Ele pegou o carro do casal, um Fiat Uno, e saiu. So a estava se
preparando para dormir, por volta das 22h, quando Edileusa, intrometida,
bateu à sua porta. Pediu um café. Na sala, a vizinha perguntou:
— Cadê o seu marido?
— Está em Mairiporã. Por quê?
— Com quem? – quis saber a fofoqueira.
— Com um amigo.
— Sei...
— Eu me ofereci para ir junto e ele se pronti cou a me levar. Se fosse um
encontro amoroso, desistiria de ir...
— Deixa de ser ingênua, menina. Você é mulher rodada! Vai lá no
quilômetro 61 e tira a prova dos noves. Não durma com essa dúvida. Vai lá!
Não lhe custa nada. Vai lá e descubra se eu sou uma mentirosa ou se você é
uma idiota.
Irritada, So a expulsou Edileusa de casa e voltou para a cama. Não
conseguiu dormir. Angustiada, trocou de roupa, pegou a chave da carreta do
marido e partiu para a Rodovia Fernão Dias.
Na estrada, So a tinha tanta pressa de chegar ao quilômetro 61 que
acelerou a carreta. Com a carroceria vazia e um eixo suspenso, a jamanta
desenvolvia mais velocidade. Rapidamente o velocímetro marcou 110
quilômetros por hora.
No ponto indicado por Edileusa, So a viu Dudi e Marilene abraçados
em pleno acostamento. Possuída por uma agitação violenta, ela teve frieza
para desligar os faróis e fúria para acelerar o caminhão com toda a força
disponível no pé direito. No ponto exato, So a jogou a carreta em alta
velocidade sobre o casal.
Dudi escapou da morte por pouco, dando um salto com impulsão de
goleiro para o matagal. Marilene não teve esse re exo e foi atropelada de
forma tão violenta que o seu corpo desmembrou em dois, amassando a parte
da frente do caminhão do marido e manchando a lataria branca de sangue.
A cabeça da vítima se desprendeu e cou presa na grade protetora do motor.
Ré confessa, a ex-prostituta foi condenada a 36 anos de prisão. Ela pariu
o lho José na penitenciária. A tragédia não separou o casal. Pelo contrário,
uniu ainda mais. Dudi cria o lho sozinho e nunca deixou de visitar a esposa
na cadeia.
Ao ouvir a história trágica de So a com riqueza de detalhes, Suzane
chorou de emoção. A aprendiz de caminhoneira deixou claro ter matado a
amante do marido por amor e fazia questão de frisar: faria tudo novamente,
se preciso fosse.
— É incrível você ter perdoado o seu marido. Queria ter o espírito
evoluído assim – comentou Suzane.
— Quem ama sempre perdoa – losofou So a.
Suzane adorava falar dos seus sentimentos com a con dente de cela.
Quando ouviu da colega pregação tão comovente sobre amor e perdão, a
jovem vislumbrou o dia em que seria perdoada pela família, principalmente
pelo irmão Andreas. Naquela época, antes de enfrentar o Tribunal do Júri, a
presidiária repetia às amigas da “gaiola do bem” ter mandado matar os pais
por amor a Daniel. À So a, con denciou que, se Cristian não tivesse
cometido a estupidez de comprar a moto, ela e o namorado jamais seriam
presos. “Meu maior arrependimento foi deixar esse estúpido entrar naquele
quarto!”, reiterava. No meio de assassinas cruéis, suas colegas de cadeia
davam razão a ela.
So a e Suzane ainda conversavam na cela sobre a vida quando ouviram
uma explosão vinda do pátio da penitenciária e uma sucessão de gritos de
guerra ecoando pelas galerias. Assustada, Suzane saiu às pressas pelo
corredor.
A explosão vinha de um botijão de gás incendiado para simbolizar o
início da rebelião planejada pelo PCC. Para escapar da morte, Suzane
improvisou um capuz usando um lençol rasgado e escondeu a cabeça. As
presas do comando faziam festa no pátio pedindo, paradoxalmente, paz,
justiça e liberdade. Rebeladas, aproveitaram para beber como se fosse suco a
tradicional maria-louca, uma aguardente de alto teor alcoólico, comum nos
presídios, feita clandestinamente nas celas com cascas de frutas cítricas,
fermento em pó, milho, açúcar e água. Dependendo do preparo, essa bebida
alcança teor alcoólico de 70%. Apavorada, Suzane correu com a cabeça
coberta até o posto médico, onde trabalhava com João. No caminho, passou
por uma in nidade de mulheres armadas e bêbadas, todas encapuzadas.
Ninguém conseguiu reconhecer ninguém. Ao chegar na porta do posto
médico, Suzane encontrou Marisol.
— Minha lha, corre e se esconde que o PCC está atrás de você –
advertiu a aspe.
— Me ajuda! O João falou para eu me esconder no almoxarifado.
Marisol abriu o depósito de materiais de limpeza e Suzane entrou nele.
Escondeu-se de cócoras dentro de um armário de ferro estreito. Em seguida,
a agente fechou o móvel com dois cadeados. Ao sair do almoxarifado, ainda
trancou a porta. A agente pôs todas as chaves dentro do cesto de lixo do
posto médico, na pia. Quando estava saindo da sala de João, a carcereira foi
abordada por Maria Bonita, armada com uma faca e uma marreta. A
cangaceira encostou a ponta da lâmina no abdome de Marisol,
pressionando-a:
— Onde está a Suzane, sua vaca?
— Não sei.
— Chega de mentiras! – gritou Maria Bonita, endemoniada.
— Acho que ela está na cela com a So a – despistou Marisol.
Com a ajuda de outras seis presas, Maria Bonita imobilizou a carcereira
e a arrastou pelos corredores rumo à “gaiola do bem”. Ao chegarem à cela de
Suzane, as presas do PCC se revoltaram por terem sido enganadas pela
agente e resolveram levá-la ao pátio da penitenciária, onde estava
concentrado o comando da rebelião. Cerca de 50 presas haviam capturado
outras cinco agentes e todas foram feitas reféns. As detentas pegaram 12
cilindros de gás industrial e puseram lado a lado no meio do pátio. Marisol
foi a primeira a ser amarrada a um deles. Quando estava presa no artefato
explosivo, Quitéria surgiu, plena, com uma faca em punho. Tossiu e deu as
três tradicionais cuspidas nas agentes. Uma das gosmas verdes acertou em
cheio o rosto de Marisol. A líder interrogou as agentes:
— Onde está aquela loira assassina?
— Eu não sei – respondeu uma delas.
Quitéria se dirigiu a Marisol e perguntou mais uma vez pela detenta
famosa. A agente repetiu não saber. A líder do PCC na cadeia sentou uma
bofetada em Marisol e repetiu a pergunta: “Onde está Suzane?”. A agente
manteve a resposta dada anteriormente e levou mais dois tapas. Ao perceber
que Marisol era resistente à tortura física, Quitéria pegou um litro de álcool
e despejou ao redor das reféns enquanto gargalhava. Uma das agentes entrou
em pânico e suplicou para Marisol entregar a jovem e salvá-las. Marisol se
recusou. Quitéria deu uma hora para ela pensar, ameaçando matá-las
carbonizadas.
A rebelião já durava dez horas e Suzane permanecia trancada no
armário do almoxarifado, com di culdade para respirar por causa do ar
rarefeito e estava fraca, sem comer e beber água. Para não morrer de sede,
ela tirou a calça e fez xixi diretamente no armário. Em seguida, bebeu a
própria urina.
As presas do PCC zeram uma verdadeira operação pente- no para
localizá-la, mas não tiveram êxito logo de cara. Helicópteros da imprensa e
da Polícia Militar sobrevoavam a penitenciária. Na pauta repassada ao
governo, as detentas pediam melhorias nas instalações do presídio, mais
frutas no café da manhã e banho quente. Mas as reivindicações eram de
fachada. O PCC se rebelou mesmo para matar Suzane e Aurinete, a líder do
TCC, a facção rival. A primeira deveria morrer por causa do crime cometido
e para dar visibilidade ao PCC; a segunda, por ser considerada traidora.
Esperta, Aurinete conseguiu escapar com a ajuda da direção da
penitenciária logo após a explosão que deu largada ao motim. Ela foi
acomodada no parlatório e retirada de lá por uma viatura da polícia.
Quando Quitéria e seu bando perceberam que a rival já estava fora da
cadeia, o foco era capturar Suzane. Elas zeram um mutirão para encontrá-
la. Maria Bonita voltou ao posto médico com uma gangue de 40 presas
bêbadas e munidas de marretas e facas. Depois de abrirem à força todas as
portas do lugar, as bandidas suspeitaram do almoxarifado ao lado. Correram
para lá. A porta de madeira foi arrombada com facilidade. Dentro do
depósito, começaram a martelar com selvageria o armário de ferro onde
Suzane se escondia. A cada pancada, a porta do móvel entortava lentamente.
Com 100% de certeza de que Suzane estava ali dentro, as sanguinárias do
PCC passaram a rolar o armário pelo chão até levá-lo ao pátio da
penitenciária. Debilitada por inanição, debatendo-se e abalada
psicologicamente pela iminência de ser assassinada, Suzane começou a
passar mal. Teve forças para ouvir a voz assustadora de Maria Bonita:
— Eu sei que você está aí dentro, sua cadela! Vou cortar a sua garganta! –
ameaçou a detenta de garras a adas.
Quando viu o armário com a sua pupila dentro rolando pelo chão de
cimento, Marisol começou a rezar em voz alta. Finalmente, Maria Bonita
conseguiu fazer furos na parede do móvel de ferro. Por uma das fendas foi
introduzida a ponta de uma mangueira metálica de um lança-chamas
caseiro. Num ímpeto, Suzane puxou a mangueira com força bruta para
dentro do armário até arrancá-la da base, deixando o lança-chamas
inoperante e as bandoleiras ainda mais furiosas.
— Você vai pagar caro por isso! – ameaçou Quitéria.
A tropa de choque da Polícia Militar, posicionada na entrada principal
da PFC, passou um aviso ao comando da rebelião por megafone. Se em uma
hora o motim não acabasse, a penitenciária seria invadida por homens
armados. Maria Bonita percebeu que só abriria o armário se usasse as
chaves. Ela correu até Marisol, que ainda estava amarrada ao botijão de gás,
e perguntou pelo molho. A carcereira manteve-se irredutível. Irritada,
Quitéria jogou álcool na cabeça das reféns e acendeu um palito de fósforo,
ameaçando incendiá-las.
— Marisol, salve a sua vida. Diga onde está a chave do armário –
implorou Maria Bonita, compadecida com a aspe.
— Eu não sei onde está! – reiterou a agente, aos prantos.
Havia dezenas de presas alcoolizadas e armadas em volta das agentes,
que ainda estavam amarradas aos botijões de gás. Duas carcereiras chegaram
a urinar de tanto medo. As detentas gritavam palavras de ordem contra a
opressão carcerária. Marisol estava encharcada de álcool e começou a rezar
pela própria vida. O tumulto generalizado provocou um empurra-empurra.
Quitéria soltou uma gargalhada medonha e anunciou a morte de Marisol.
Maria Bonita cou com dó e interveio pela última vez:
— Marisol, pelo amor de Deus, por que a senhora vai morrer no lugar
daquela assassina? Basta dizer onde está a chave do armário e estará a salvo.
Onde está a chave? – insistiu a cangaceira.
Como se quisesse morrer, Marisol permaneceu calada. De repente, no
meio da confusão, Quitéria parou de rir e soltou o fósforo aceso no chão. O
palito apagou na queda. Subitamente, a rainha da cadeia ajoelhou-se com a
boca aberta e caiu calada no chão, no meio da multidão. As detentas
gritavam, eufóricas. Maria Bonita percebeu que Quitéria havia sido atingida
violentamente com uma facada na jugular. Como estavam com o rosto
encoberto, era impossível identi car a autora daquele golpe certeiro. Ainda
mais no meio da balbúrdia. A facada foi tão forte que a lâmina cou
inteiramente cravada, deixando somente o cabo curto e no do lado de fora
do pescoço, expelindo um jato de sangue.
Odiada pelas mulheres do PCC e do TCC, a presa de riso frouxo e
catarro no peito ainda agonizava no chão, tentando arrancar a faca do
próprio pescoço. Houve festa ali mesmo para comemorar a morte da rainha
da penitenciária. Ainda estrebuchando no chão de cimento, Quitéria levou
um tapa no rosto de uma detenta qualquer. Começou um coro frenético de
“bate mais!”, “bate mais!”, “bate mais!”. Impulsionada pela pressão social,
outra presa se abaixou para dar mais uma bofetada na bandida. Quitéria
passou a levar inúmeros chutes, bofetadas e cuspidas das inimigas. A apatia
dos espectadores daquela cena chocou Marisol, que assistia a tudo
imobilizada. Maria Bonita, que ainda tinha no rosto a marca de um
ferimento feito por Quitéria no dia anterior, entrou na la e desferiu com
gosto uma bofetada sonora na ex-líder. Ainda debochou: “Não ouviu o
barulhinho, né? Vou dar mais duas!”.
A gênese do linchamento só encerrou quando o Batalhão de Choque
invadiu a penitenciária, soltou as reféns e arrombou o armário onde estava
Suzane, pondo m à rebelião. Apesar de ter sido massacrada, Quitéria foi
levada com vida para o hospital, mas morreu tão logo deitou-se num leito da
Santa Casa de Misericórdia. Suzane e as seis agentes também receberam
atendimento médico dentro da penitenciária. A assassina chegou a tomar
soro siológico na veia para se reidratar.
No dia seguinte à rebelião, a Secretaria de Administração Penitenciária
fez uma varredura na PFC e encontrou mais de 100 facas. Para evitar outro
motim, as detentas com posição de liderança do PCC, incluindo Maria
Bonita, foram transferidas para cadeias do interior de São Paulo. Ao chegar à
cela, ainda debilitada, Suzane foi consolada por So a. Mal ela se deitou para
descansar na cama de concreto, uma agente abriu a porta e mandou Suzane
arrumar suas coisas, pois seria transferida imediatamente. A jovem teve uma
crise de pânico e cou abraçada a So a. A amiga deu seus últimos conselhos
motivacionais à presa famosa:
— Suzane, se você se entregar à tristeza, vai morrer nesse purgatório.
Não deixe isso acontecer. Acorde todos os dias, passe um batom, mantenha
as suas unhas limpas e pintadas. Esteja sempre bonita...
— Eu tenho medo de ser abandonada nesse inferno! – confessou Suzane.
De todas as angústias que assolam as mulheres presidiárias, o abandono
dos familiares é a maior delas. Ser esquecida na cadeia chega a ser desgraça
pior do que a morte. E elas não escapam dessa desventura. Em todos os
presídios femininos, a maioria das detentas cumpre pena sozinhas,
rejeitadas pelos esposos, lhos, pais e irmãos. Ao receber visita do marido
todos os nais de semana, So a era a exceção con rmadora da regra. As
suas cinco colegas de cela, incluindo Suzane, não recebiam visitas de
parentes havia mais de dois anos.
Ao ser levada a uma sala no prédio da administração da PFC, Suzane
recebeu a noti cação da transferência para o Centro de Ressocialização
Feminino (CRF), no município de Rio Claro, a 175 quilômetros da capital. A
um funcionário, a jovem pediu para se despedir do médico João Paulo e de
Marisol, o que foi negado. O médico, por sinal, foi denunciado por agentes
de segurança carcerária por não ter avisado da rebelião e por ter protegido
Suzane, ao indicar o almoxarifado como esconderijo. João também foi
acusado de ter dado proteção a outras detentas.

* * *

No dia 27 de agosto de 2004, Suzane deu entrada no CRF, um verdadeiro


luxo em se tratando de casa penal. O centro de ressocialização em nada
lembra uma penitenciária. Não havia celas nem mesmo no regime fechado.
Os muros eram baixos e as detentas passeavam livres pelo pátio e corredores
na maior parte do dia. Mas não era fácil conseguir uma das 120 vagas
oferecidas na cadeia de Rio Claro, localizada numa rua com o sugestivo
nome de Saudade. A Secretaria de Administração Penitenciária fazia uma
seleção rigorosa entre as candidatas ao paraíso. Tinham mais chances de
cumprir pena por lá criminosas com bom comportamento e quem
trabalhava com a nco, como era o caso de Suzane. O local tinha oito
alojamentos. Suzane dormia numa das camas mais altas do alojamento de
número 3. Um ventilador de teto alivia o calor insuportável que as
criminosas sentem no verão. Elas também usam armário individual e
assistem à TV. “Aqui, a principal diferença é o tratamento que elas recebem.
Oferecemos cama, chuveiro quente e comida boa”, de niu Maura Batista da
Cruz, diretora da unidade em 2018. Suzane gostou da nova moradia e não
queria sair de lá por nada neste mundo.
No entanto, mal começou a usufruir o conforto da cadeia-modelo, a
jovem recebeu uma notícia desagradável, porém esperada. O Ministério
Público a denunciou à Justiça juntamente com os irmãos Cravinhos por
duplo homicídio, com três quali cadoras: motivo torpe, meio cruel e
impossibilidade de chance de defesa às vítimas. Ao receber do seu
advogado-pai-postiço, Denivaldo Barni, a estimativa de pena entre 24 e 64
anos, Suzane cou desesperada. Usando do pouco que aprendeu na
faculdade de Direito, a assassina pediu a seus advogados que dessem um
jeito de eliminar a quali cadora “motivo torpe” para reduzir a sentença. No
seu universo particular, Suzane pensava assim: seus pais só morreram
porque se puseram contra o namoro dela com Daniel, ameaçando-a de
privação da herança. Partindo dessa premissa, segundo a sua cabeça, o
motivo não teria sido torpe (desonesto, sórdido, indecoroso). Ainda de
acordo com a teoria de Suzane, ela só participou do crime para se libertar da
vida sufocante e opressora que levava.
Os argumentos, lógico, não foram comprados pelo Ministério Público,
que rebateu: “O namoro com Daniel era o centro nervoso de todo o
rompimento do equilíbrio familiar. A perspectiva da deserdação e da
pobreza, ainda que remota, fez o casal atuar decisivamente para a morte de
Manfred e Marísia. A piegas chorumela de Suzane não passa de um
arremedo de argumentação. Ela pretende com algum verniz de falsa
erudição inverter as responsabilidades ao concluir que só atuou na morte
dos autoritários pais para se libertar do jugo que lhe impunha o
distanciamento de seu amado. Com isso, a ré quase concluiu que, se
Manfred e Marísia fossem a favor do romance, eles não teriam morrido”,
assinalou o promotor de Justiça Roberto Tardelli.
Na época em que Suzane estava no CRF de Rio Claro, a unidade
prisional era comandada por Irani Torres e Andressa Inácio. Por ser
considerada presa vulnerável, a jovem passou a gozar de privilégios, como
entrar e sair dos gabinetes da direção quando bem entendia. Lanchava e
tomava chá das cinco com as funcionárias. No auge da intimidade com a
diretoria, Suzane passou a usar a Internet em um computador instalado na
administração do presídio, com anuência das servidoras públicas. Abusada,
a detenta lia notícias no site do UOL e trocava mensagens com advogados e
amigas ex-presidiárias postas em liberdade. A gota d’água foi um per l no
Orkut feito por ela na época em que morava no CRF, denunciado
posteriormente à Justiça.
A poucos meses do julgamento, o casal que matara por amor parecia
inimigo, pois Suzane e Daniel acusavam-se mutuamente. A jovem se dizia
manipulada por Daniel. Ele, por sua vez, sustentava que fora Suzane quem
planejara a morte dos pais. Segundo a tese do piloto, ele só executou o plano
porque, além de manipulado, estava cego por ela. Daniel também se
defendia do crime alegando que era assombrado por espíritos. Quatro meses
antes de serem submetidos ao Tribunal do Júri, Suzane, Daniel e Cristian
tiveram uma audiência preliminar com o juiz Alberto Anderson Filho. Esse
encontro é de praxe e serve para o juiz ouvi-los em depoimento e decidir
o cialmente pela formação do Júri. No dia dessa prévia, Daniel e Cristian
foram os primeiros a chegar ao Fórum da Barra Funda e postos numa cela
de custódia no segundo andar. Suzane apareceu logo em seguida. Algemada,
foi acomodada em uma cela em frente, distante cerca de seis metros dos seus
cúmplices. Pela primeira vez, Suzane e Daniel caram frente a frente desde a
prisão, ocorrida três anos antes. O trio de assassinos permaneceu sob a
vigilância de dois policiais militares armados. Suzane e Daniel caram cerca
de meia hora se olhando em silêncio. Mesmo em lados opostos, o ex-casal,
segundo testemunhas, travou o seguinte diálogo:
— Como você está? – perguntou Suzane.
— Você destruiu a minha vida, sua vadia! – acusou Daniel.
— Eu? – desdenhou Suzane.
— Silêncio nessa porra! – gritou um dos policiais.
Depois da carraspana, os dois tentaram continuar a lavagem de roupa
suja falando baixinho:
— Me desculpa, Su. Estou sem perspectivas. Minha vida acabou! – falou
Daniel.
— Você disse que o seu amor por mim iria até o in nito, mas me
mandou uma carta mostrando o contrário – falou Suzane.
— A carta é de mentira, sua boba. Escrevi orientado pelo meu advogado.
Eu ainda te amo. Mas olha, nós só vamos nos livrar dessa e car juntos se
dissermos no tribunal que o seu pai estuprava você, entendeu? – explicou
Daniel.
— Eu mandei calar a boca, caralho! – gritou o mesmo policial.
Suzane e Daniel caram mais uns minutos em silêncio e passaram a falar
mais baixo ainda.
— Meu pai nunca fez isso. Não vou contar uma mentira dessas –
argumentou.
Desobediente e revoltado, Cristian, que estava sentado de cabeça baixa,
levantou-se e começou a gritar:
— Você mesma disse isso, sua cretina. Foi assim que você nos convenceu
a matar os seus pais, sua psicopata manipuladora!
Por causa do barraco no fórum, os três foram postos em corredores
separados para evitar comunicação até o encontro com o juiz.
Após a audiência preliminar, Suzane voltou para o CRF, e os irmãos
Cravinhos, para o Centro de Detenção Provisória de Belém II para aguardar
o julgamento. Na semana seguinte, a jovem nalmente recebeu uma notícia
boa: alegando que a cliente não oferecia risco à sociedade, seus advogados –
liderados por Denivaldo Barni – conseguiram junto ao Superior Tribunal de
Justiça (STJ) um habeas corpus permitindo à Suzane a graça de aguardar o
julgamento em liberdade. O benefício foi concedido por três votos a dois,
pela 6ª Turma do tribunal superior. A corte considerou “insu ciente” a
fundamentação apresentada nas ordens de prisão expedidas contra Suzane.
A assassina confessa cou livre, leve e solta por nove meses. Usando
basicamente o argumento “se ela pode, nós também podemos”, os irmãos
Cravinhos conseguiram soltura por onze semanas.
Suzane estava usando o computador da direção do CRF, por volta do
meio-dia, quando leu em primeira mão na Internet ter conseguido o direito
de sair da prisão. Imediatamente, soltou um grito histérico de alegria e
correu saltitando feito uma gazela pelo corredor até o alojamento,
acreditando que bastava arrumar as suas coisas, dar um “até logo” e partir.
Irani chamou a jovem em seu gabinete e esclareceu não ser bem assim. Para
sair, a diretora precisava receber da Justiça o alvará de soltura, previsto para
chegar só no dia seguinte via fax.
Segundo funcionárias do CRF, assim que Suzane saiu da sua sala, Irani
se deu ao trabalho de ligar para todos os veículos de comunicação
considerados importantes e convocou uma coletiva para o dia seguinte, para
apresentar Suzane no pátio da prisão. Em seguida, ainda segundo relatos de
colegas, a diretora marcou hora no salão para fazer cabelo e unha. Foi a uma
butique comprar roupa nova e fez até uma limpeza de pele para aparecer
bonita na televisão. Irani nega veementemente que tenha feito ritual de
beleza. Na manhã do dia seguinte, 28 de julho de 2005, um batalhão de
jornalistas aguardava a presa famosa no portão da penitenciária, fazendo
tumulto. Desavisada, Suzane saiu e deu de cara com centenas de repórteres e
uma in nidade de ashes de máquinas fotográ cas. Assustada, resolveu
voltar. Irani, maquiada como se fosse a um baile e com cabelos escovados,
enfrentou os jornalistas para pedir paciência, anunciando uma entrevista
coletiva com Suzane para as 17 horas.
— Quem avisou a imprensa? – quis saber Suzane.
— Eu, lógico! A gente tem de aproveitar a mídia que você atrai para ter
visibilidade – teria argumentado Irani.
Vestida com um moletom vermelho com estampa do coelho Pernalonga,
Suzane disse não ter concordado com o aviso de pauta feito à imprensa, mas
– pelo sim, pelo não – também resolveu passar uma escova no cabelo e um
batom vermelho para enfrentar os fotógrafos e cinegra stas. O aglomerado
de jornalistas na porta do CRF atraiu populares. Na hora em que Suzane ia
começar a dar entrevista ao lado de Irani, populares começaram a gritar
“Assassina! Assassina! Assassina!” em coro, forçando o portão externo de
acesso ao centro de ressocialização. Com medo, Suzane bateu o pé dizendo
que não daria entrevistas. Irani teria insistido, conforme consta num
processo movido pela criminosa contra o Estado:
— Ou você aparece [para a imprensa], ou vou abrir o portão e jogá-la na
rua! – teria dito Irani.
Sem saída, Suzane enfrentou os repórteres, mas não respondeu às
perguntas. A assassina entrou no carro da Polícia Militar e partiu rumo à
casa do advogado-pai-postiço, Denivaldo Barni, no bairro do Morumbi,
onde cou hospedada durante a sua liberdade provisória.
Presa ou livre, Suzane recebia cerca de cem cartas por semana de fãs e de
homens interessados em namorá-la. Controlador, Denivaldo Barni ltrava
as correspondências que a jovem deveria ler e as que iriam parar na lata de
lixo. Enciumado, o advogado-pai-postiço, cujo apelido era Barni Pai, não
repassava as missivas escritas por jovens apaixonados, enviadas de todo o
canto do país. Em liberdade, Suzane aproveitou para responder a essas
cartas. Uma das que chegaram às mãos de Suzane quando ela ainda estava
presa foi escrita pela advogada Luzia Sanchez, de 31 anos na época. Luzia
viu a presidiária na TV pela primeira vez ainda na fase de investigação.
Antes mesmo de ela ser apontada o cialmente como suspeita pelo crime, a
advogada intuiu ser Suzane a mandante do crime. Após a prisão, Luzia
resolveu escrever uma carta prestando solidariedade à assassina órfã de pai e
mãe. Para surpresa da advogada, Suzane respondeu com outra
correspondência, dizendo levar uma vida vazia na cadeia e lamentou estar
num oceano de depressão tão fundo que parecia não ter m. As duas
trocaram tantas missivas que se tornaram amigas.
Posta em liberdade, Suzane costumava passar nais de semana na casa
da nova amiga. Ela também recuperou o tempo perdido fazendo programas
triviais. Foi ao cinema, passeou no parque e mergulhou no mar de Ubatuba,
litoral norte de São Paulo, vestindo um biquíni cor-de-rosa. Também
preencheu o tempo livre participando das reuniões com a sua banca de
advogados para de nir a estratégia de defesa no julgamento. Em um desses
encontros, no apartamento de Barni, a jovem teve de falar com detalhes
sobre a relação com Daniel desde o primeiro encontro até o dia do crime.
Ao dizer que ainda o amava e narrando como perdeu a virgindade com o
ex-namorado, Barni Jr., lho do Barni, levantou-se da mesa e saiu batendo a
porta, demonstrando incômodo e ciúme. Suzane percebeu o desconforto e
parou de falar. Os demais advogados pediram a ela que continuasse a
narrativa, usada com detalhes no tribunal.
Crente de que seria inocentada pela Justiça, Suzane disse aos advogados
precisar imediatamente de dinheiro para “recomeçar a vida” fora da cadeia.
Para angariar fundos para a sua “ lha”, Barni teve a ideia de entrar com dois
processos de danos morais contra o governo de São Paulo, pedindo
indenizações num total de 950 mil reais na época. Ao fazer o cálculo do
valor pedido, Barni teria levado em conta o alto padrão de vida da sua lha-
cliente. Na primeira ação, Suzane pedia 190 mil reais alegando ter cado
traumatizada com o terror vivido durante a rebelião na Penitenciária
Feminina da Capital. Segundo seus argumentos, o Estado foi omisso e
negligente ao não lhe garantir proteção durante o motim.
Na outra ação, Suzane acusava a direção do Centro de Ressocialização de
Rio Claro de tê-la exposta feito um “animal exótico” a jornalistas, causando
constrangimento e danos irreversíveis à sua imagem. Nessa ação, ela foi mais
ambiciosa: queria embolsar 760 mil reais dos cofres públicos. Suzane
a rmou ter sido coagida por Irani a dar entrevista, caso contrário seria
jogada à multidão feroz que gritava “Assassina!”, postada do lado de fora da
cadeia para posterior linchamento. Suzane perdeu os dois processos em
todas as instâncias. Ao negar indenização pelas intempéries da rebelião, o
desembargador Evaristo dos Santos argumentou não ter como falar em dano
moral indenizável para Suzane e tampouco em responsabilidade civil do
Estado, pois ela esteve o tempo todo em local seguro indicado justamente
por dois funcionários públicos, o médico João Paulo e a agente de segurança
carcerária Marisol Ortega. Já o desembargador Ricardo Feitosa negou
indenização à Suzane no caso da entrevista ao concluir que ela mentiu, em
se tratando da ameaça de linchamento. Para o desembargador, ao decidir
espontaneamente participar de um crime de enorme repercussão, Suzane
escolheu por livre-arbítrio ser exposta à mídia. “Não é possível que a sua
imagem tenha sofrido abalo maior em virtude das imagens e fotogra as
feitas na saída da cadeia”, observou o desembargador.
Ainda no período de liberdade, sem dinheiro, Suzane começou a cobrar
da família a sua parte na herança. Pronti cou-se a ser inventariante do
espólio deixado pelos pais. A primeira providência foi fazer uma lista de
tudo que havia dentro da mansão dos Richthofen. Suzane etiquetou móveis,
eletrodomésticos, tapetes, almofadas e até talheres e xícaras, alegando que
toda a louça da casa era importada. Com receio de ser furtada, a jovem
fotografou os quadros da parede. Indignado com a ousadia da sobrinha, tio
Miguel resolveu entrar com uma interpelação. Suzane telefonou para
Andreas, com 17 anos na época, para tentar sensibilizá-lo da sua penúria. A
assassina ligou para o telefone xo da casa do tio Miguel e seu irmão
atendeu, mas o garoto cou mudo durante quase toda a conversa:
— Andreas, aqui é a Suzane.
— [Silêncio]
— Eu sei que você está aí. Olha, estou sem dinheiro para pagar os
advogados. Eu serei condenada e passarei 70 anos na cadeia se eu não tiver
uma boa defesa. Me ajuda!
— [Silêncio]
— Por favor, meu irmão. Vamos acelerar o processo de partilha da
herança.
— [Silêncio]
— Já mandei fazer um levantamento de tudo que temos para dividir.
— [Silêncio]
— Fala comigo, por favor.
— [Silêncio]
— Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo!
— [Silêncio]
— Vamos nos encontrar para falar sobre a herança, por favor!
— [Silêncio]
— Vou passar aí na casa do tio Miguel hoje à noite...
Ao ouvir o anúncio dessa visita, Andreas resolveu falar com a irmã:
— Eu tenho medo de você! Escutou? Medo! – respondeu, batendo o
telefone na cara de Suzane.
O pânico de Andreas pela irmã não ocorria à toa. Tio Miguel se
empenhou em fazer a caveira de Suzane para o garoto. O argumento era o
seguinte: ela mandou matar os pais para car com metade da herança. Por
essa lógica, ela poderia também matar o irmão para car com tudo sozinha.
Essa ameaça se tornaria mais evidente agora, com o desejo da família de
excluí-la do testamento. Andreas, então, passou a ter medo de ser
assassinado.
Quando estava na cadeia, Suzane trocava cartas com a avó paterna,
Margot Gude Hahmann, de 80 anos na época. Em uma dessas
correspondências, a idosa disse perdoar a neta por ter assassinado Manfred,
lho caçula de Margot. A avó morava sozinha em um apartamento avaliado
em 1 milhão de reais e chegou a ir à Justiça deixar registrado não ter
nenhum ressentimento de Suzane. A neta aproveitava a liberdade para fazer
visitas à avó. Nesses encontros, Suzane se queixava de Miguel, que é tio por
parte de mãe. Margot achava um absurdo impedir o acesso da neta à
herança. Usando uma câmera Polaroid, aquela que revela a imagem tão logo
é batida, Suzane fez diversas fotos de rostinho colado com a avó e as levou
consigo.
No dia seguinte, Andreas, ao descer do ônibus escolar, viu um carro de
vidros escuros nas proximidades da casa do tio Miguel. Ele andava pela
calçada e o carro se aproximava. O garoto acelerou os passos e o veículo
aumentou a velocidade para alcançá-lo. Andreas correu e o carro avançou,
freando bruscamente em sua frente. Suzane, rindo, abaixou o vidro e
revelou-se ao volante. O garoto a ignorou e entrou em casa. Sozinho, foi até
a cozinha pegar um copo de água para se recompor do choque. Ao se
aproximar da geladeira, Andreas sentiu calafrios. Suzane havia entrado na
casa e pregado com ímã na porta da geladeira uma foto sua com a avó
Margot. Em pânico, o adolescente ligou para o tio e os dois foram a uma
delegacia de polícia registrar um boletim de ocorrência alegando que
Andreas estava sendo ameaçado pela irmã. Suzane cou então proibida, por
uma ordem de restrição, de entrar em contato com o irmão.
Na semana seguinte, Andreas entrou na Justiça para excluir Suzane
de nitivamente do testamento, alegando que a jovem matou os pais por
motivos nanceiros. O adolescente venceu a ação e acabou herdando
sozinho todo o patrimônio dos pais. O caso envolvendo a disputa pelo
espólio do casal Richthofen serviu de modelo para uma mudança na
legislação. Em 2017, foi sancionada a Lei 13.532, dando poder ao Ministério
Público para excluir do rol de herdeiros quem comete homicídio doloso ou
tentativa de homicídio contra vítimas que deixam bens para os assassinos.
Antes, a exclusão só ocorria se algum membro da família se manifestasse
nesse sentido, e a ação se arrastava por anos na Justiça. Hoje, o impedimento
é imediato.
A defesa de Suzane era toda custeada por Denivaldo Barni. Uma das
últimas reuniões de advogados feitas na casa dele antes do julgamento
dividiu a sua banca de defensores. Levando em conta que a imprensa
mostrava Suzane como ambiciosa e um fator de risco para Andreas, Barni
sugeriu uma entrevista da lha-cliente para o Fantástico, da Rede Globo, e
outra para a revista Veja. Ele alegava que a ré precisava ser humanizada
diante da opinião pública. Parte dos advogados, entre eles Mário Sérgio de
Oliveira, defendia que a imagem da acusada fosse poupada da exposição.
A nal, Suzane já havia surgido nos programas policiais da TV Record
pulando ondinhas no mar, tranquilamente, enquanto esperava pelo
julgamento. Barni venceu e agendou a entrevista. No dia da gravação,
Suzane vestiu uma roupa infantil cor-de-rosa com estampa da Minnie,
calçou pantufas em forma de coelhinhos, desgrenhou os cabelos e pôs três
calopsitas domesticadas nos ombros para passar uma imagem de garotinha
frágil e desprotegida. Barni orientou a lha-cliente a chorar durante a
conversa com a repórter Fabiana Godoy, na tentativa de sensibilizar os
telespectadores do programa. A primeira gravação foi feita na sala do
apartamento de Barni. Conforme combinado anteriormente, a jovem não
falaria sobre o crime. Limitou-se a mostrar à jornalista fotos da família e dos
amigos. Na entrevista, a assassina disse estar arrependida e sonhava poder
voltar aos 15 anos de idade para não se envolver com Daniel.
A entrevista no Fantástico foi ao ar no dia 9 de abril de 2006. Na
conversa, ela joga toda a culpa pelo assassinato dos pais no ex-namorado.
“Você acha que se não tivesse conhecido o Daniel nada disso teria
acontecido?”, perguntou a repórter. “Não! Nada disso! Nada disso! Nada
disso!”, respondeu Suzane, com 22 anos na época. “Como era a sua relação
com o seu namorado?”. “Ele sempre me dava muita droga, muita droga,
muita droga! Ele me mandava usar muita droga. Era cada vez mais e mais e
mais. Isso foi acabando comigo. Ele falava: ‘se você me ama, usa. Se me ama,
faz aquilo.’ E eu ia...” Em alguns momentos, Suzane respondia às perguntas
segurando a mão de Barni. Volta e meia, interrompia a gravação para
cochichar com os advogados, que lhe passavam instruções. Em um intervalo
de meia hora, a acusada chorou forçadamente onze vezes e ngiu até um
desmaio.
No dia seguinte, a repórter do Fantástico ligou para Barni argumentando
que precisava complementar a entrevista, pois só emplacaria a reportagem
na revista eletrônica dominical se Suzane falasse do crime. O segundo
encontro com a ré ocorreu na casa da amiga Luzia Sanchez, no município de
Itirapina, a 213 quilômetros de São Paulo. Dessa vez, Suzane vestia uma
blusa clara com estampa de ursinho e já não estava mais tão falante como na
ocasião anterior. A equipe técnica do programa instalou um microfone na
blusa dela pouco antes da entrevista começar. Fabiana Godoy perguntou
sobre o crime e a acusada cou incomodada. Suzane pediu um tempo e se
distanciou da repórter para pegar orientações de Barni. Irritado, o advogado
mandou Suzane chorar e encerrar a entrevista. Mesmo longe das câmeras, o
microfone da TV Globo captava toda a conversa entre o advogado e a
cliente:
— Começa a chorar e diz “não quero falar mais!” – orientou Barni.
— Eu não vou conseguir – avisou Suzane.
Enquanto Barni orientava Suzane, Luzia chegou ao local. Mesmo sendo
lmada, a jovem mudou o temperamento em fração de segundo. Ao ver a
amiga, Suzane soltou um grito e saiu galopando feito uma adolescente para
cumprimentá-la com beijinhos e abraços apertados. A câmera e o áudio do
Fantástico captavam tudo. No minuto seguinte, a assassina resolveu encerrar
a entrevista voltando a aparentar tristeza e fragilidade. Com voz infantil e
olhar xado no chão, argumentou:
— Eu não quero mais. Eu não quero mais. Eu não quero mais. Ontem eu
passei super, super, supermal depois da entrevista. Todas as vezes que eu
tento falar sobre isso, sinto uma dor muito forte. Não aguento mais lembrar
daquele maldito de novo... – disse Suzane, referindo-se a Daniel.
À repórter Juliana Linhares, da revista Veja, Suzane concedeu uma
entrevista às vésperas do julgamento. A matéria de capa destacou a rejeição
familiar e o destino incerto da assassina. “Repudiada pela família, com medo
de sair às ruas e manipulada por advogados, a jovem que participou do
assassinato dos pais está mais perdida do que nunca.” Ao ser questionada
sobre quais lembranças tinha dos pais, Suzane respondeu como se não
tivesse participado do crime: “Meu pai é muito lindo. Minha mãe também.
São os melhores pais do mundo. Esses dias, estava na cozinha e senti meu
pai me abraçando por trás [...]. Dói muito falar deles. É tudo muito triste.
Queria voltar naquele dia e apagar tudo”. Sobre o futuro, a jovem especulou:
“Entreguei tudo para Deus. Seja o que Ele quiser”.
Não foi só Suzane que deu entrevista para comentar o caso enquanto
estava em liberdade. Ao vivo na rádio Jovem Pan, em janeiro de 2006,
Daniel e Cristian já tinham falado feito celebridades sobre como mataram o
casal Richthofen. Descontraída, a dupla disse ter decidido executá-los só
depois de Suzane revelar a eles ser estuprada pelo pai desde os 14 anos. Os
criminosos também a rmaram na entrevista que Manfred e Marísia eram
alcoólatras. Eles con rmaram que o assassinato foi ensaiado com tiros.
Logo após a desastrosa entrevista, o Ministério Público pediu à Justiça a
revogação da liberdade dos irmãos Cravinhos, argumentando que eles
estavam manchando a reputação das vítimas e fazendo do crime um
espetáculo midiático. No dia 24 de janeiro de 2006, os dois voltaram à cela
do Centro de Detenção Provisória Belém II para aguardar o julgamento. O
MP aproveitou a queixa registrada por Andreas na delegacia contra Suzane
para também pedir o seu retorno ao cárcere. No dia 11 de abril de 2006, a
jovem voltou ao alojamento número 3 do Centro de Ressocialização de Rio
Claro.
Considerado o julgamento mais importante do ano de 2006, o Tribunal
do Júri foi constituído no dia 17 de julho e durou cinco dias. A banca de
advogados de Suzane era composta por seu pai-postiço-tutor Denivaldo
Barni, Eleonora Nacif, Mário de Oliveira, Mário Sérgio de Oliveira e Mauro
Otávio Nacif. A defesa dos Cravinhos era formada pelos advogados Geraldo
Jabur e Gislaine Haddad Jabur. A acusação cou a cargo dos promotores
Roberto Tardelli e Nadir de Campos Júnior. Para defender os interesses de
Andreas, tio Miguel contratou o hoje famoso advogado Alberto Zacharias
Toron para dar assistência à acusação. Nesse caso, a família Richthofen, ou o
que sobrou dela, tinha interesse em condenar Suzane para que ela se
tornasse legalmente indigna à herança.
No banco dos réus, Suzane sentou-se no meio, ladeada por Daniel e
Cristian. Eles se acusaram mutuamente, conforme o esperado. Em comum,
os três – aos prantos – disseram ter agido sob efeito de drogas e se diziam
completamente arrependidos. Depois de falar de forma prolixa como era sua
vida e em que circunstâncias conheceu Daniel, Suzane respondeu a algumas
perguntas do juiz Alberto Anderson Filho:
Deixa eu lhe fazer uma pergunta a respeito dos fatos propriamente
ditos, que é o que mais interessa aqui. O Daniel e o Cristian usaram
luvas?
Sim!
A senhora também pôs luvas?
Era a minha casa.
A pergunta não é essa. A senhora pôs luvas?
Não. Posso falar de uma outra coisa?
Sobre o fato em si?
Não. Quero falar da minha avó Margot. Olha, Excelência, quero deixar
uma coisa bem clara aqui. Eu nunca, nunca, nunca, em momento algum, z
qualquer tipo de ameaça ao meu irmão. Dizem que eu voltei a ser presa por
causa dessas ameaças. Mas é mentira. Eu sempre amei o meu irmão. Todas
as conversas que eu tive com ele depois que meus pais morreram foram
pací cas. Outra coisa: sabe aquela entrevista polêmica que eu dei ao
Fantástico? Disseram que eu estava vestida feito criança, com o cabelo no
rosto, cercada de passarinhos... Eu quero explicar isso.
Não é necessário, até porque essa entrevista não consta nos autos a
pedido da sua defesa.
Mesmo assim, eu quero falar porque eu acho que a minha imagem cou
muito...
Não podemos falar de algo que não está nos autos.
Suzane se recusou a responder no tribunal às perguntas da acusação e
dos advogados dos irmãos Cravinhos. No entanto, ela não conseguiu
escapar dos questionamentos dos jurados. A primeira a interrogar foi Cleide
Clares. No ritual do Tribunal do Júri, essas perguntas foram encaminhadas
ao juiz, que as repassou à ré:
A senhora declarou que fazia uso contínuo de entorpecentes até o dia
do fato. Como interrompeu o uso, já que estava dependente?
Logo que fui presa, conheci a Marisol, uma pessoa muito católica. Ela
me falou uma coisa linda: “Su, agora, seus pais estão vendo tudo o que
acontece com você. Eles vêm lá de onde eles estão. Você já decepcionou eles
com tudo o que você fez de errado. Não decepciona eles de novo. Por favor!
Nunca mais chegue perto de nenhuma droga”. Depois desse conselho, eu
nunca mais pus nenhuma droga na boca.
Mas a senhora fez algum tratamento, usou alguma medicação? Como
enfrentou a abstinência?
Não z tratamento. Me curei com a força de vontade de não mais
decepcionar os meus pais. Lá na cadeia me ofereceram drogas, sim. Não vou
mentir. Mas nem cheguei perto.
Em que momento a senhora viu pela primeira vez as barras de ferro
usadas na execução do crime?
Foi quando eles estavam dentro de casa. Eles entraram com essas barras
de ferro horrorosas segurando com as mãos. [...] Aí eu subi as escadas. Fui lá
em cima ver se meus pais estavam dormindo. Quando eu desci, eles subiram
com essas barras de ferro. Cruzei com eles na metade do caminho. Desci
assustada, apavorada, confusa, sem saber direito o que estava acontecendo.
Não sei, não lembro. Foi horrível, horrível, horrível. Era uma sensação
estranha, um aperto no peito. Não sei.
Como a senhora acha que os irmãos Cravinhos se bene ciariam do
crime?
Olha, na época achava que era tudo por amor, que eu era a pessoa mais
importante. Hoje, tenho certeza de que estava enganada. Eles zeram tudo
por dinheiro. O Daniel não estava contente com o que eu dava. Ele queria
mais e mais. Ele queria tudo, tudo, tudo. Queria tudo o que os meus pais
levaram uma vida inteira para construir. O Daniel me falava que não queria
ser empregado. Queria ser patrão. Queria chegar na vida por cima.
No tribunal, Daniel deu detalhes do crime ao responder às perguntas do
juiz. Mas o assassino mentiu para proteger o irmão. Disse que ele matou o
pai e a mãe de Suzane:
O senhor disse que golpeou o Manfred e depois Marísia?
Sim, senhor.
A dona Marísia acordou enquanto o senhor acertava o Manfred? Ela
se movimentou?
Eu percebi que ela se mexeu para os lados, como se estivesse se virando.
Ela não falou nada, não se mexeu. Aí eu avancei sobre ela. Na hora, me deu
um desespero. Fiquei com medo que as coisas não dessem certo, que a
Suzane brigasse comigo por eu não conseguir fazer as coisas do jeito que ela
queria.
O senhor usou o mesmo bastão para acertar o Manfred e a Marísia?
Sim, senhor.
Logo após os golpes foram utilizados toalhas úmidas e um saco
plástico. Quem aplicou isso nas vítimas?
A Suzane pediu para eu fazer isso porque ela não queria que o Andreas
visse o que tinha acontecido. Aí eu pedi o pano, as sacolas e a jarra com água
ao meu irmão. Mas quem pegou tudo foi a Suzane. Eu me arrependi depois
de olhar o nal. Não gostei do resultado. O senhor não imagina o tamanho
da minha emoção. Eu me ajoelhei e rezei sem parar.
O Cristian não fez nada?
Não, senhor.
A Suzane disse que o senhor dava drogas a ela.
Isso é mentira. Ela já fumava maconha e cigarro antes de me conhecer.
Eu não usava drogas e passei a usar depois que eu a conheci. [...] No
primeiro ano de namoro, ela já veio com a ideia de matar os pais. Pra ela, a
vida já estava perdida. A todos os lugares que a gente ia ela falava que os pais
não prestavam, vislumbrava como seria a vida com os pais dela mortos.
Em seu depoimento, Cristian sustentou a mentira do irmão. Disse que
não teria participado do crime. No entanto, orientado por advogados, ele
voltou ao tribunal e confessou ter matado Marísia. O réu chorou quase todo
o tempo em que apresentou a versão. Pediu desculpas por ter mentido
anteriormente e falou que “voltava atrás” pelo amor que tinha à família, ao
irmão, aos amigos e ao lho.
Para massacrar a trinca de assassinos diante do Júri, o promotor Tardelli
fez uma metáfora: “Suzane e Daniel montaram uma empresa para matar
Manfred e Marísia. As ações dessa empresa tinham cotas iguais. Suzane era a
mais organizada. É inteligente e se expressa bem. [...] Daniel é o mais
emotivo. Apaixonado e descontrolado. Foi o casamento perfeito. O cérebro e
a coragem”. O momento mais tenso foi quando o promotor Nadir fazia as
considerações nais e elevou o tom da voz para, aos berros, acusá-los
de nitivamente. Apontando o dedo bem próximo do rosto de Daniel, o
acusador vociferou: “Você bateu, bateu e bateu! O que o senhor fez é abjeto,
nojento e repugnante! Matar alguém, seguir a um motel e pedir a suíte
presidencial! Isso é nojento! É asqueroso!” Daniel e Cristian verteram
lágrimas e Suzane manteve-se rme com o rosto seco.
Um momento especí co do julgamento fez defesa, acusação, juiz, plateia
e jurados se emocionarem. Nadja Cravinhos, mãe de Daniel e Cristian,
subiu ao púlpito para depor como testemunha de defesa. Falou como criou
os lhos com dignidade, amor e muito carinho. No meio do testemunho,
Nadja, que é artesã, falou com a voz embargada: “Eu me sinto de luto e
muito triste em relação à tragédia que se abateu sobre as duas famílias
envolvidas”. No momento nal, surpreendeu a todos ao pedir o que mãe
nenhuma pediria para um lho: a condenação. “Essa justiça é necessária.
Dói muito em mim, mas é necessária. Só peço a Deus que essa justiça
imposta pelos homens seja na medida certa.”
Nadja teve o pedido atendido. Suzane e Daniel foram condenados a 39
anos e seis meses de prisão em regime fechado por duplo homicídio
quali cado. Cristian pegou 38 pelo mesmo crime. Nos cinco dias de
julgamento, o juiz Alberto Anderson Filho passava de manhã cedo numa
igreja para rezar e pedir aos céus equilíbrio à sua alma e serenidade na
condução daquele júri de fortes emoções.
Após a pronúncia da sentença, o promotor Tardelli comemorou:
“Suzane e Daniel nunca se arrependeram do que zeram. A prova disso é
o comportamento do casal após o crime, fazendo festas e levando uma vida
normal. São dois jovens que agiram de forma egoísta e ambiciosa. Mataram
sem piedade. O Cristian se uniu ao casal por estupidez, pelo dinheiro e pela
ganância – o maior defeito da alma humana”.
Ao anunciar a decisão do Júri, o juiz fez o seguinte relato sobre a
condenação de Suzane:
1. Em relação à vítima Manfred Albert von Richthofen, por
unanimidade, foi reconhecida a materialidade do delito e, por maioria, a
coautoria do homicídio.
Por maioria de votos, negaram que a ré tivesse agido em inexigibilidade
de conduta diversa, bem como, também por maioria, negaram que tivesse
agido sob coação moral e irresistível.
Por maioria de votos, reconheceram a quali cadora relativa ao motivo
torpe e, por unanimidade, reconheceram as quali cadoras do recurso que
impossibilitou a defesa da vítima e do meio cruel e, ainda, por maioria, as
atenuantes existentes em favor da acusada.
2. Vítima Marísia von Richthofen: por maioria, foi reconhecida a
materialidade do delito de homicídio e, também por maioria, reconheceram
a coautoria, sendo negada a tese da inexigibilidade de conduta diversa, por
maioria de votos, assim como a tese relativa à coação moral e irresistível.
Por maioria de votos, reconheceram a quali cadora relativa ao motivo
torpe e, por unanimidade, reconheceram as quali cadoras do recurso que
impossibilitou a defesa da vítima e do meio cruel e, ainda, por maioria, as
atenuantes existentes em favor da acusada.
3. Por maioria de votos, foi reconhecida a coautoria do crime de fraude
processual e também as circunstâncias atenuantes existentes em favor da
acusada.
No nal do julgamento, o juiz também explicou como foi calculada a
pena de 39 anos de Suzane:
Pelo homicídio praticado contra Manfred Albert von Richthofen, atento
aos elementos norteadores do artigo 59 do Código Penal, considerando a
culpabilidade, intensidade do dolo, clamor público e consequências do
crime, incidindo três quali cadoras, uma funcionará para xação da pena-
base, enquanto as outras duas servirão como agravantes para o cálculo da
pena de nitiva. Assim, xo a pena-base em 16 anos de reclusão, à qual
aumento 4 anos, totalizando 20 anos de reclusão. Reconhecida a presença de
circunstâncias atenuantes, que no caso deve ser considerada a menoridade à
época dos fatos, reduzo a pena de 6 meses, resultando em 19 anos e 6 meses
de reclusão.
Pelo crime no tocante à vítima Marísia von Richthofen, atento aos
elementos norteadores do artigo 59 do Código Penal, considerando a
culpabilidade, intensidade do dolo, clamor público e consequências do
crime, incidindo três quali cadoras: uma funcionará para xação da pena-
base, enquanto as outras duas servirão como agravantes para o cálculo da
pena de nitiva. Assim, xo a pena-base em 16 anos de reclusão, à qual
aumento 4 anos, totalizando 20 anos de reclusão. Reconhecida a presença de
circunstâncias atenuantes, que no caso deve ser considerada a menoridade à
época dos fatos, reduzo a pena de 6 meses, resultando em 19 anos e 6 meses
de reclusão.
Pelo crime de fraude processual, artigo 347, parágrafo único do Código
Penal, xo a pena em 6 meses de detenção e dez dias-multa, xados estes no
valor mínimo legal de 1/30 do salário mínimo vigente no país à época dos
fatos, devidamente corrigido até o efetivo pagamento.
Com efeito, a ré participou de dois crimes de homicídio, mediante ações
dirigidas contra vítimas diferentes, no caso seus próprios pais. Além desses,
também praticou o crime de fraude processual.
Assim, as penas somam-se, cando a ré SUZANE LOUISE VON
RICHTHOFEN condenada à pena de 39 anos de reclusão e 6 meses de
detenção, bem como ao pagamento de dez dias-multa no valor já
estabelecido, por infração ao artigo 121, §2º, inciso I, III e IV (por duas
vezes) e artigo 347, parágrafo único, c.c. artigo 69, todos do C. Penal.
Torno as penas de nitivas à míngua de outras circunstâncias.
Por serem crimes hediondos os homicídios quali cados, a ré cumprirá a
pena de reclusão em regime integralmente fechado e a de detenção em
regime semiaberto, primeiro a de reclusão e nalmente a de detenção.
Estando presa preventivamente e considerando a evidente
periculosidade da ré, não poderá recorrer da presente sentença em
liberdade, devendo ser expedido mandado de prisão contra a ré SUZANE
LOUISE VON RICHTHOFEN.
Após o trânsito em julgado, lancem-se os nomes dos réus no rol dos
culpados.
Nada mais!
Fantasia de carnaval, uma montanha, uma
cabeça de boi e uma pomba

D
e volta para a cadeia, condenada, Suzane foi jogada feito um saco de
batatas num camburão da Polícia Militar estacionado no pátio do
Fórum da Barra Funda. Deitada, algemada e tremendo de frio, a
jovem vestia um casaco azul-celeste com listras brancas e tinha os cabelos
repicados na altura dos ombros. Os policiais zeram questão de deixar a
porta traseira da viatura aberta para expor a assassina à imprensa. Depois de
cinco minutos de holofotes, ashes e lmagens, a barca – como são
chamados os carros o ciais de transporte de presos – partiu pela Rodovia
dos Bandeirantes com sirene ligada por 180 quilômetros rumo ao Centro de
Ressocialização de Rio Claro. Ao chegar à moradia-paraíso, a jovem foi
hostilizada pelas presas porque tinha gozado de privilégios em sua primeira
passagem pelo local e por causa da natureza do crime cometido. E também
pelos funcionários, já que as regalias anteriores da criminosa famosa
vazaram para a imprensa, provocando o afastamento de parte da direção do
presídio. Como punição, Suzane foi transferida para a Penitenciária
Feminina de Ribeirão Preto, a 320 quilômetros da capital. Lá, mergulhou no
inferno pela segunda vez.
Inaugurada em 2003, a nova moradia de Suzane era tão “luxuosa”
quanto a cadeia de Rio Claro. Não havia superlotação e a calmaria reinava. A
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo escolheu
justamente essa unidade prisional para ser transformada em modelo de
ressocialização do nordeste do estado. Focou na humanização da pena e na
oferta de trabalho e educação, além de projetos voltados para a saúde mental
e cursos. Tudo para devolver a mulher presa ao convívio social. Lá, todas
trabalhavam, fosse em empresas parceiras do presídio, fosse na manutenção
dentro da unidade, como limpeza, cuidados com a horta e reformas. Eram
oferecidos cursos pro ssionalizantes voltado para aptidões diversas, como
empreendedorismo, nanças e até marketing. A penitenciária mantinha
ainda um espaço com hortifrútis orgânicos cultivados pelas detentas. Os
produtos eram usados nas refeições das criminosas e dos funcionários.
As qualidades da Penitenciária de Ribeirão preto não foram su cientes
para fazer Suzane sorrir. Ao chegar, ela cumpriu os ritos de inclusão. Ficou
sozinha na cela destinada ao regime de observação por dez dias. No início,
não conseguia comer nem as refeições com legumes orgânicos cultivados
pelas colegas. Quando foi solta no pátio para o primeiro banho de sol, estava
esquálida e abatida. Nesse contato inicial com as outras presas após o
julgamento, Suzane percebeu ter sido transformada em celebridade. Sua
imagem estava em todos os jornais, revistas e, principalmente, na televisão.
Esse tipo de exposição dá prestígio ao criminoso dentro das penitenciárias.
As demais detentas e até as agentes de segurança olhavam para Suzane como
se ela fosse artista. Elogiavam a sua beleza. “Você é muito mais bonita
pessoalmente. As fotos não te valorizam”, disse uma carcereira. Os elogios
não eram capazes de reanimar a estrela da cadeia. Ela estava deprimida com
o castigo pesado de 39 anos de reclusão. A sentença-base, a bem da verdade,
era de 18 anos. Mas os agravantes do crime (meio cruel, motivo torpe e
ausência de chance de defesa às vítimas) zeram a pena mais do que dobrar.
Nessa época, seus advogados tentavam reanimá-la, prometendo conseguir
em instâncias superiores da Justiça um novo julgamento. No entanto, é mais
fácil a Irmã Lúcia revelar o terceiro segredo de Fátima do que anular a
sentença de um réu confesso no tribunal do júri. Sem esperança e
deprimida, Suzane sentou-se numa soleira e passou a olhar o céu azulado,
quando foi abordada por uma presa:
— Veja só quem veio comer farelo com os porcos! Seja bem-vinda,
querida! – ironizou.
— Nossa Senhora! – assustou-se Suzane, levantando-se rapidamente.
A interlocutora era Maria Bonita, a cangaceira sinistra de garras a adas.
Por causa do seu envolvimento na rebelião na Penitenciária Feminina da
Capital, a tra cante havia sido transferida para Ribeirão Preto. Nessa época,
meados da década de 2000, a vigilância interna das galerias era feita pelas
próprias detentas. Poderosa, Maria Bonita era uma das novas “seguranças”
do presídio. Ela carregava todas as chaves das celas de um bloco onde
cavam 30 presas do regime fechado. Desde que chegara à unidade, a
bandida havia feito seis cursos, incluindo os de segurança, primeiros
socorros, jardineiro e pedreiro. Foi nesse período que a bandoleira ganhou a
con ança das colegas e da administração – graças a tantas regalias, ela
conseguiu gerenciar de dentro da penitenciária uma pequena quadrilha
especializada em sequestro relâmpago e extorsão.
Egressa da Bahia, Maria Bonita chegou a São Paulo com a família em
1990, aos 14 anos. O pai conseguiu emprego de gari na prefeitura da capital,
enquanto a mãe vendia cosméticos de porta em porta. Para ajudar no
sustento do lar, a lha começou a trabalhar honestamente como faxineira
numa empresa especializada em serviços gerais. Aos 16, conheceu um
assaltante de supermercados e se apaixonou por ele e, principalmente, pelo
universo perigoso do rapaz, sempre metido em tiroteios e fugindo da
polícia. Aos 18, Maria Bonita já se intitulava “cangaceira urbana” e gurava
na lista dos bandidos mais perigosos de São Paulo. Aos 21, levou um tiro na
perna disparado por um segurança de banco durante um assalto, mas
conseguiu escapar. A mãe e uma vizinha enfermeira zeram os curativos.
Curada, ela mesma resolveu se afastar da família para não colocar os pais em
perigo. Um ano depois, Maria Bonita foi cooptada pelo PCC junto com o
namorado. Na facção, o casal intensi cou a atividade criminosa, praticando
inclusive sequestros. Sua casa caiu em 2000, quando ela tinha 24 anos,
denunciada anonimamente à polícia. O namorado foi para a penitenciária
de segurança máxima de Presidente Venceslau, enquanto ela foi parar na
Penitenciária Feminina da Capital, onde tentou matar Suzane.
Respeitada dentro da Penitenciária de Ribeirão Preto, Maria Bonita foi
eleita “presidente da cadeia”, gíria para de nir quem “governa” ou “pilota” a
prisão. Nesse cargo, a bandoleira adorava exibir o molho com cerca de 30
chaves preso à cintura. Na hora que quisesse, ela conseguia abrir as portas
do almoxarifado e até da despensa de alimentos. No entanto, a sua
autoridade ia muito além dessas coisas miúdas. Maria Bonita tinha poder de
decidir quem deveria viver ou morrer dentro do con namento,
administrando um tribunal do crime intramuros. A líder nunca estava
sozinha. Por onde andava, era sempre acompanhada por um grupo de seis
seguidoras, formando à sua volta um e ciente escudo de proteção. Ai de
quem a encarasse no pátio da cadeia. Suas seguranças eram detentas
violentas, envolvidas com trá co e latrocínio. Como tinha conexão com
assassinos perigosos do mundo lá fora, Maria Bonita era temida até pelas
agentes de segurança penitenciária, chamadas pelas detentas de “pé de
porco”. Certo dia, uma carcereira tentou repreender a “presidente” da cadeia
em público porque ela tinha ameaçado uma rival com uma enxada na horta.
No dia seguinte, a bandoleira chamou a funcionária num canto e lhe
repassou um papel contendo anotações. “Pela ordem, sua funça? [Tudo bem
com a senhora?]. Leia essa pipa [bilhete] com molejo [atenção]. Nela tem o
ninho [endereço] da sua família e até o nome da escola do seu piá [ lho
homossexual]. Pense duas vezes antes de me fazer passar vergonha no meio
das baratas [colegas de cela]. Caso contrário, pego um graham-bell
[telefone], passo um o para os meus parças pularem a fogueira [espancar]
da sua lha, copiou?”. Depois desse recado, nunca mais a carcereira ousou
levantar a voz para a presidente da cadeia.
Suzane não precisou de muito tempo para perceber a dimensão do
poderio da sua velha rival. Sem a menor cerimônia, Maria Bonita resgatou
das profundezas da calcinha um celular minúsculo. Fez uma ligação
pressionando um único botão e engatou o aparelho numa engenhoca feita
de arame, prendendo-o perto do ouvido, sob a cabeleira cheia de cachos cor
de fogo. O truque deixou as suas mãos livres. Falando baixinho, Maria
Bonita misturou as gírias da cadeia com as usadas em conversas por rádio
amador:
— QAP? Me dá um break? [...] Não posso comer barbante porque estou
debaixo do sol. [...] Vou modular rápido: o batom tá aqui na minha frente!
[...] Ela dorme no seguro, mas tem um peixe nosso lá no aquário! [...] O
batente tá agendado, copiou? [...] Beleza, ca com PX-D Maior. Câmbio,
desligo!
Traduzindo, Maria Bonita passou a seguinte mensagem por telefone:
“Estás na escuta? Posso falar? [O interlocutor pediu um momento] Não
posso esperar porque estou na hora do banho de sol. Vou falar rápido: a
Suzane está aqui na minha frente! Ela dorme num pavilhão especial, mas
tenho uma amiga na mesma cela. O trabalho tá agendado, entendeu? [...]
Beleza, ca com o diabo. Até mais!”
Quando a cangaceira desligou “o radinho”, como os presos chamam os
aparelhos celulares tra cados para dentro do presídio, Suzane tentou
negociar. Começou fazendo uma sondagem:
— Você ainda trabalha para o PCC? – perguntou.
— Pedi demissão! Agora presto serviços diretamente para o Satanás, o
pai das trevas! – debochou Maria Bonita, gargalhando e mostrando as garras
vermelhas.
— Olha, meus advogados têm muito dinheiro. Eu topo pagar uma certa
quantia a você em troca de proteção.
— Topa mesmo? Não me diga! Se enxerga, sua puta! Você está na
miséria. Foi deserdada. Matou os pais para car com o dinheiro e acabou
sem um real na bolsa! Pensa que não leio jornal aqui dentro?
— Eu posso te pagar! Juro! Juro! Juro! Juro por Deus! Quanto você quer
para me deixar em paz?
— Jura por Deus? – ironizou a detenta satânica.
Irredutível, Maria Bonita não abriu canal para negociação. Outras
bandidas integrantes da quadrilha infernal mostraram à Suzane facas
artesanais de cabos vermelhos em plena luz do dia, no pátio da cadeia. Com
medo de morrer, a jovem teve coragem de formalizar à direção do presídio
uma denúncia contra a cangaceira. Orientada por advogados, Suzane
limitou-se a relatar só as ameaças de morte, omitindo ter visto a criminosa
usando um celular e armas brancas. A queixa foi encaminhada ao Ministério
Público. Semanas depois, ao ver o promotor de Justiça Eliseu José Bernardo
Gonçalves andando pelos corredores da penitenciária, fazendo uma
inspeção de rotina, Suzane não titubeou em abordá-lo. Lançou mão da
postura infantil e da voz de menina:
— Doutor, pelo amor de Deus! Me ajude!
— O que houve, Suzane?
— Uma presa vai me matar aqui dentro!
Eliseu era promotor da Vara do Júri e de Execuções Criminais em
Ribeirão Preto. Sua tarefa era scalizar a execução da pena das detentas e
encaminhar parecer à Justiça sobre concessão de benefícios. A autoridade
também apurava denúncias de maus-tratos nos presídios. Sendo assim, era
comum ter audiências com as presidiárias. Dentro da unidade penal, no dia
a dia, Eliseu já via Suzane com outros olhos, segundo relatos de
funcionários. No dia em que a jovem falou das ameaças de morte, o
promotor fez questão de estender a conversa:
— Quem quer matar você, sua linda?
— Uma presa satânica chamada Maria Bonita. O senhor sabe quem é?
—Todo mundo a conhece. Mas olha, cão que muito late não morde.
— Aqui dentro ela ameaça até as carcereiras. O senhor precisa ver! –
entregou Suzane.
— Por que ela quer matar você?
— Ela se diz mensageira do Satanás ou sei lá de quem. Me tire daqui, por
favor. Não estou pedindo, estou implorando! – suplicou Suzane.
— Para onde você quer ir?
— Tremembé!
Na semana seguinte, Maria Bonita encontrou Eliseu na penitenciária. A
cangaceira foi objetiva quando questionada por ele:
— É verdade que você vai matar a Suzane?
— Sim! – assumiu.
— Por quê?
— Porque quem mata os pais não merece viver. O senhor conhece as
regras, né?
— Quem mandou você matá-la?
— Não posso falar! Aliás, todo mundo aqui na comunidade sabe que o
senhor paga o maior pau por ela. Se eu fosse o doutor, tiraria ela daqui
quanto antes! – sugeriu Maria Bonita.
— Quero que você pare com essas ameaças, caso contrário você será
denunciada à Justiça e receberá um aumento na pena – avisou o promotor.
A cangaceira diabólica não era o único problema de Suzane na
penitenciária de Ribeirão Preto. Dois anos depois de mandar matar os pais,
ela passou a ser investigada pelo Ministério Público de São Paulo por causa
de duas contas supostamente abertas em seu nome e de sua mãe no
Discount Bank and Trust Company (DBTC), hoje Union Bancaire Privée, na
Suíça. As contas haviam sido descobertas em 2003 por meio da CPI do
Banestado, que identi cou também uma ordem de pagamento de número
310035 no valor de 500 mil dólares para o banco JP Morgan Chase, de Nova
York. De lá, o capital foi enviado para o DBTC. Na época, o procurador
Eduardo Reingantz suspeitava que o dinheiro transferido para o exterior por
meio de uma offshore tenha sido desviado da obra do Rodoanel Mario
Covas, gerenciada por Manfred von Richthofen. O Ministério Público
acreditava que o advogado de Suzane, Denivaldo Barni, sabia dessas contas e
por esse motivo cou colado a ela – ora feito advogado, ora feito tutor – por
mais de uma década após o crime.
Outro indício que alimentava a suspeita de que Manfred operava
dinheiro sujo vinha do padrão de vida da sua família, considerado elevado
para um rendimento de aproximadamente 30 mil reais (do casal) em valores
da época. A outra suspeita veio do fato de Suzane ter desistido com muita
facilidade da herança milionária deixada pelos pais. Segundo uma tese da
investigação, ela teria planejado matar os pais de olho nessa fortuna. A
renúncia à herança ocorreu bem antes de a Justiça declarar a assassina como
indigna do espólio de Manfred e Marísia. Denivaldo Barni chegou a depor
no MP no inquérito aberto para apurar os caminhos desse dinheiro, mas
nunca foi provado que as contas no exterior, de fato, pertenciam à família
Richthofen. A investigação do MP foi arquivada quando o procurador Nadir
de Campos Júnior, que atuou no julgamento de Suzane, surgiu no programa
Super Pop, da Rede TV!, em 2 de março de 2015. Em entrevista à
apresentadora Luciana Gimenez, ele a rmou categoricamente que a jovem
mandou os irmãos Cravinhos matarem os pais de olho na fortuna oculta.
Andreas, irritado com as suspeitas sobre Manfred, escreveu uma carta
aberta ao procurador, publicada no dia 7 de março de 2015, no jornal O
Estado de S. Paulo:
Prezado Dr. Nadir de Campos Jr.
É em nome do excelente trabalho do qual o Sr. participou, ao condenar a
minha irmã Suzane Louise von Richthofen e os irmãos Cristian e Daniel
Cravinhos, e também por toda sua história na Justiça brasileira, que me sinto
compelido a abordá-lo.
Escrevo-lhe esta mensagem por vias igualmente públicas às quais o Sr. se
vale para comentar o caso da minha família. Entendo que sua raiva e
indignação para com esses três assassinos sejam imensas e muito da sociedade
compartilha esse sentimento. E eu também. É nojento. Encare da perspectiva
existencialista. No entanto, observo que o Sr. faz diversos apontamentos
referindo-se a um suposto esquema de corrupção, do qual meu pai, Manfred
Albert von Richthofen, teria participado e cujos resultados seriam contas no
exterior em enormes montantes.
Gostaria que o Sr. esclarecesse essa situação: se há contas no exterior, que o
Sr. apresente as provas, mostre quais são e onde estão, pois eu também quero
saber. Entendo que sua posição e prestígio o capacitam plenamente para tal.
Mas se isso não passar de boatos maliciosos e não existirem provas, que o Sr. se
retrate e se cale a esse respeito, para não permitir que a baixeza e crueldade
desse crime manchem erroneamente a reputação de pessoas que nem aqui
mais estão para se defender, meus pais Manfred Albert e Marísia von
Richthofen.
Respeitosamente,
Andreas Albert von Richthofen
Desde então, o Ministério Público nunca mais se pronunciou
publicamente sobre as supostas contas da família Richthofen no exterior.

* * *

Depois de ser advertida pelo promotor Eliseu, Maria Bonita passou a


não ter mais acesso à Suzane no pátio da penitenciária de Ribeirão Preto. A
cangaceira foi transferida de pavilhão e tomava banho de sol em horários
distintos. No entanto, num procedimento de rotina para contagem geral das
presas, todos os portões foram abertos e dezenas de las indianas compridas
seguiam pelos corredores. As detentas caminhavam com as mãos para trás,
como se estivessem algemadas. Suzane seguia com um grupo de 40
mulheres para a área externa. A cangaceira caminhava pela galeria no
sentido contrário – também em la indiana – com outro agrupamento de
criminosas. As las andavam, faziam curvas e paravam a todo momento. A
famosa lei de Murphy diz: “Se alguma coisa pode dar errado, dará”. No caso
de Suzane, deu muito errado. A sua la parou bem ao lado da la em que
estava a sua antagonista de unhas vermelhas. Maria Bonita aproveitou a
coincidência e deu dois passos à frente para car mais próxima da sua rival.
Mesmo advertida pelo promotor e cercada de testemunhas, inclusive de
carcereiras, Maria Bonita ameaçou Suzane mais uma vez. O prenúncio,
dessa vez, beirava o terrorismo:
— O Satanás me mandou uma mensagem. Eu li, mas não respondi...
— Do que você tá falando, sua louca? – questionou Suzane.
— Não pensa que você escapou, sua vagabunda! Presta atenção no que
eu vou te falar: na sua cela tem seis detentas. O Anhangá já está incorporado
em uma delas. Você nem faz ideia de quem seja. À noite, quando você fechar
os olhos, será para sempre! – ameaçou a cangaceira.
— E quem é Anhangá? – quis saber Suzane.
— O Satanás, sua idiota! – esbravejou Maria Bonita, arrancando risadas
de quem ouviu a conversa.
Perplexa por ser ameaçada na frente de diversas testemunhas, Suzane
cou sem ação. À noite, quando a galeria foi trancada, ela tou o rosto de
cada uma das suas colegas de cela na tentativa de identi car quem, a nal,
havia incorporado o tal Anhangá. A jovem passou a descon ar de uma
nigeriana radicada no Brasil chamada Latasha, de 28 anos na época.
Circunspecta, a estrangeira foi condenada a 46 anos de prisão por ter jogado
o lho, um bebê de dois meses, num panelão de água fervente. Sem uência
na língua portuguesa, a nigeriana não falava com ninguém. Latasha
chamava atenção das colegas porque parecia dormir sem respirar, na mesma
posição a noite inteira e sem fazer nenhum barulhinho, tal qual um defunto.
Das suas companheiras de cela, Suzane só con ava em Celeste, a famosa Tia
do Fogo, que havia conhecido quando passou pela Penitenciária Feminina
da Capital. Suzane falou da ameaça de Maria Bonita, das suas descon anças
em relação à Latasha, e pediu à amiga para vigiá-la durante o sono. Celeste
riu:
— Menina, para com essa bobagem!
— A Maria Bonita disse que um tal Anhangá vai encarnar em uma das
detentas aqui do barraco (cela). Estou achando que vai ser no corpo da
Latasha – arriscou Suzane.
— Por que justamente na pobre da Latasha, tadinha? Ela não mexe com
ninguém. Passa o dia dormindo – ponderou Tia do Fogo.
— Sei lá, de todas nós, ela é a que tem o pior crime. Só pode ser ela, né?
– argumentou Suzane.
— Faz o seguinte: aproveita que o promotor está com os quatro pneus
arriados por você, marca uma visita no gabinete dele e insista no bonde para
Tremembé – aconselhou a amiga.
— Bonde?
— Bonde, na gíria dos presídios, signi ca mudar de cadeia – ensinou a
veterana.
Celeste era uma viúva de riso frouxo e carismática. Com 48 anos,
convertida ao espiritismo dentro da cadeia, fazia atendimentos na cela em
uma mesa branca. Garantia falar com os mortos. Sua credibilidade era tão
grande que presidiárias de todas as religiões disputavam a tapa uma hora
para entrar em contato com parentes desencarnados por intermédio da
espírita. A maioria queria encontrar com suas vítimas para pedir perdão.
Uma senhora de 46 anos chamada Isabel havia matado o lho de 16 porque
ele era dependente químico e estava destruindo a família, vendendo até os
eletrodomésticos da casa para comprar cocaína. Certa noite, a mãe acordou
de madrugada com ele e dois amigos arrancando a televisão de 29 polegadas
da parede da sala. Isabel tentou impedir, mas seu lho a empurrou com
tanta força que ela caiu no chão. Movida por uma forte emoção, a mãe foi
até o quintal, pegou um machado pequeno e deu um único golpe na cabeça
do jovem, afundando a ferramenta em seu crânio, atingindo o lobo parietal,
responsável pela sensação e percepção, pela informação sensorial e os
campos visuais. O adolescente caiu no chão, estrebuchou e morreu meia
hora depois numa poça de sangue à espera de socorro. Isabel foi condenada
a 33 anos de reclusão. Na Penitenciária de Ribeirão Preto, sua maior
angústia nem era a privação da liberdade. Era a falta de comunicação com o
lho morto de forma trágica por ela. Numa sessão espírita com Tia do Fogo,
Isabel teria nalmente falado com ele. Na conversa sobrenatural, o lho teria
perdoado a mãe associando a sua morte ao seu vício. “Ele disse que está
num lugar lindo, cheio de ores. Por ele, eu nem estaria na prisão. Mas não
me importo em estar presa. Saber que meu lho me perdoou já é libertador”,
disse Isabel. Cínica, Suzane também fez consulta com Tia do Fogo para
acessar a alma dos pais. “Fechei os olhos e encontrei a mamãe. Ela também
disse já ter me perdoado, pois a culpa toda é do Daniel. Ele, sim, é um
assassino. O papai ainda não quis conversar. Pediu um tempo”, contou a
parricida sobre a sua experiência sobrenatural.
Com sobrepeso, Celeste, a Tia do Fogo, pesava cerca de 100 quilos e
tinha 1,72 de altura. Mãe de três lhos adultos, trabalhava na cozinha da
penitenciária e era elogiadíssima por fazer arroz de panela soltinho e pela
criatividade em combinar temperos. A cozinheira lidava bem com o
sobrepeso, mas adorava mostrar fotos de biquíni, feitas na época em que era
magérrima, na juventude. A parede de sua cela era repleta dessas imagens.
Antes de ser privada de liberdade, Celeste ganhava a vida cozinhando em
um restaurante de comida brasileira. Esperta, nunca se envolveu em
confusão na cadeia. Seu defeito, como costumava dizer às colegas, foi amar
demais um lixo de homem. Suzane logo se identi cou, pois àquela altura da
vida ela ainda justi cava o seu crime com a paixão cega por Daniel.
Celeste foi casada com Pascoal, um professor de Educação Física jovem,
alto e a cionado por esportes. Em uma foto do casamento, era possível ver a
noiva com uma cintura de pilão. O casal morava em Ribeirão Preto. Com o
passar do tempo, a cozinheira desenvolveu um distúrbio alimentar
provocado por alterações hormonais combinadas com excesso de cortisol no
organismo. O sedentarismo e o metabolismo lento também agravaram o seu
quadro clínico. Celeste passou a ganhar peso lentamente. O receio de perder
o marido a fez procurar ajuda médica. Mas a compulsão por comida só
aumentava. Pascoal passou a repreendê-la. No início, ele fazia alertas sutis,
como se estivesse preocupado com a saúde da companheira. Depois, os
avisos foram evoluindo para comentários abusivos. Quando Celeste repetia
o prato no jantar, por exemplo, Pascoal dizia na frente dos lhos que a mãe
estava cando gorda feito um hipopótamo. E complementava a chacota
simulando com os dois braços abertos a bocarra do mamífero de grande
porte. Os meninos riam e Celeste, lógico, cava envergonhada.
Certo dia, a família recebeu Manuella, uma sobrinha de 16 anos vinda
do interior de Minas Gerais. Quando viu Celeste, a menina comentou em
tom jocoso: “Nossa, tia, como a senhora engordou!”. Angustiada com a
aparência, a cozinheira comia mais e mais. A princípio, Manuella passaria só
uma semana, mas foi cando, foi cando, e a estada na casa dos tios já
somava três meses. Magra, a garota usava o excesso de calor como desculpa
para usar roupas curtíssimas. Ao pôr uma blusinha folgada e abrir mão do
sutiã, a sobrinha foi repreendida por Celeste. Pascoal defendeu Manuella,
alegando que a juventude estava mais liberal.
A adolescente de seios fartos começou a despertar a cobiça dos homens
da vizinhança. O lho mais velho de Celeste, de 15 anos na época, se
interessou pela prima, mas ela o rejeitou dizendo gostar de homens mais
velhos, citando Pascoal como exemplo. Triste com o fora, o garoto falou para
a mãe das preferências de Manuella. Celeste teve uma intuição e
providenciou o retorno da sobrinha para a casa dos pais. Ela mesma
arrumou a mala da jovem e a levou até a rodoviária para se certi car da sua
partida. Só arredou pé do terminal quando viu o ônibus com Manuella virar
a esquina. Naquela mesma noite, Pascoal não chegou para o jantar. Celeste
cou intrigada. Às duas da madrugada, a porta da sala abriu e Pascoal
entrou, bêbado. O excesso de álcool emprestou ao marido uma coragem pra
lá de imprudente:
— Quer saber a verdade? Eu namoro a Manuella desde o ano passado,
acredita? Por isso mandei ela vir morar conosco.
— Como assim? O que você está falando?! – espantou-se Celeste.
— Isso mesmo que você ouviu! Olha, e ela nem tem culpa de nada,
tadinha. Eu que dei em cima. Ela nem queria nada comigo. Insisti, insisti,
insisti até que ela não resistiu – orgulhava-se Pascoal.
— Por que você está fazendo isso comigo?
— Se olha no espelho que você terá a resposta! Você está gorda, pesada,
envelhecida e gasta. Uma baranga! Impossível ter desejo por um bucho feio
feito você... Aí resolvi namorar uma novinha magra e bonita...
Quanto mais Pascoal botava as suas verdades ácidas para fora, mais
Celeste sucumbia emocionalmente. Mal se aguentando em pé, o bêbado
falava enquanto tirava a roupa no quarto do casal:
— Você nem se deu conta de que reforcei o estrado da nossa cama com
chapas de aço porque a madeira não aguentava mais o seu peso. Você parece
aquela mulher que explodiu na novela de tanto comer. Você é saco de
gordura. [...] Seu tempo já passou. Mas o meu, não. Estou em forma e você
está feia, derrubada...
— Para com isso, Pascoal! – suplicou Celeste.
— Eu bem que implorava para você parar de comer e dar um jeito nessa
barriga. [Nesse momento, Pascoal apertou com os dedos as dobras de gordura
do abdome de Celeste]. Mas você nunca me ouviu! Só fazia engordar,
engordar e engordar. Agora tá aí, redonda, andando pela casa que nem um
elefante.
— Por favor, para! Por favor... – implorava a cozinheira.
— Paro não! Espero que essa minha sinceridade faça você dar um jeito
nessa sua vida triste! Começa fazendo uma dieta! – sugeriu.
Com as duas mãos sobrepostas na boca e os olhos esbugalhados, Celeste
passou a ouvir as ofensas do marido estática, chorando em silêncio. Pascoal
nunca havia encostado um dedo na companheira. Em compensação, falava
absurdos para a mulher – inclusive na frente de amigos – desde que ela
engordou. Antes, Celeste dizia que suportava as ofensas do marido por
amor. “Ele me falava coisas horrorosas. Mas nunca tinha me traído. Mesmo
depois que adquiri sobrepeso, o sexo era bom. Até que um dia ele arrumou
outra...”, recorda. Hoje, ela diz que nunca soube – de verdade – o que era o
amor. “Estava doente”, concluiu.
No fatídico dia, Pascoal, mais pra lá do que pra cá de tanta bebedeira,
abriu uma gaveta da cômoda com roupas da esposa e pegou uma calçola
plus size de cor violeta. Em seguida, ele pôs a peça íntima no próprio
pescoço para zombar da coitada, comentando em tom de escárnio: “Olha
para isso!” Ao fazer à esposa um anúncio embalado com mais humilhação,
Pascoal assinou a sua sentença de morte:
— Eu vim arrumar as malas. Vou morar com a Manuella. Estou de
mudança para Minas amanhã cedo. Se quiser vir conosco, venha. Já
conversei com ela. Você é habilidosa no fogão, lava e passa roupa bem. Será
a nossa empregada. Aliás, vai lá na cozinha, faz um café quente e traz um
copo de água que preciso me hidratar... Vai lá, saco de banha! Mas pisa no
chão devagarinho para não acordar as crianças!
Mesmo sóbria, Celeste parecia embriagada de tão desnorteada. Ela saiu
do quarto de mansinho e caminhou pelo piso de madeira da casa sem fazer
barulho, conforme o marido havia pedido.
Pascoal tirou toda a roupa – deixou a calçola de Celeste no pescoço – e
se jogou no meio da cama de peito para cima, completamente nu, com as
pernas e os braços totalmente abertos. Seu corpo fazia um X sobre o
colchão. Sob forte efeito de álcool, apagou.
Nervosa, Celeste acendeu um cigarro, deu vários tragos seguidos e
certi cou-se de que os lhos dormiam. Obediente, foi até a cozinha. Em vez
de café, pegou uma corda comprida e usou uma faca para cortá-la em quatro
pedaços iguais.
No lugar da água, a cozinheira apanhou um galão com cinco litros de
gasolina no depósito. Voltou ao quarto. Deu mais uns tragos e pôs o cigarro
aceso em um cinzeiro sobre a cômoda. Depois, imobilizou o marido,
amarrando os pés e as mãos do coitado na madeira da cama.
Celeste despejou lentamente boa parte do combustível in amável sobre
o colchão, ao redor do traidor boquirroto, encharcando a cama inteira. Ali,
naquela cena, Celeste se transformou na Tia do Fogo. Pegou o cigarro, bateu
as cinzas e continuou fumando.
O vapor do benzeno expelido pela gasolina acordou Pascoal da
bebedeira. O marido recobrou a lucidez e tentou sair da cama. As amarras o
impediram. Debateu-se. Imóvel, Tia do Fogo só olhava a angústia da vítima.
Pascoal suplicou pela vida:
— Que porra é essa, amorzinho? Não me leva a mal. Tudo o que eu te
falei foi da boca para fora! Me desamarra, por favor!
— Agora eu sou seu “amorzinho”, né? – ironizou.
— Eu te amo! Só falei aquelas merdas da boca pra fora. Nem vou mais
me mudar. Me solta! Eu serei outro homem, juro! – prometia Pascoal.
Ao narrar as próximas cenas, em 2018, Celeste chorou de soluçar e
encharcar os olhos. “Como eu queria ter tido forças para parar ali. Acho que
ele já havia aprendido a lição. Mas a emoção me anestesiou. As pessoas não
têm noção do poder das palavras. Elas podem te enaltecer se vierem em
forma de elogio. Mas elas ferem, sangram e deixam marcas profundas se
forem ditas para humilhar”, justi cou.
Mesmo ouvindo os apelos de Pascoal, Celeste foi tomada por uma
descarga de adrenalina. Possuída, a Tia do Fogo retirou a calçola do pescoço
do marido e derramou o restante da gasolina, inclusive sobre o seu rosto,
fazendo-o fechar os olhos de tanta ardência. Ela deu a última tragada no
cigarro, soprou a fumaça para o alto e jogou a bituca sobre o marido, que
gritava. Furiosa, vociferou:
— Vai gritar no inferno, desgraçado!
Foi num piscar de olhos. A ponta de cigarro triscou o colchão e o
fogaréu explodiu até o teto, provocando um incêndio, acordando toda a
vizinhança. Com o estrondo, os lhos do casal despertaram e correram para
a rua. Tão logo pegou fogo, Pascoal se contorceu sobre o colchão, numa
tentativa eloquente de se livrar das amarras.
Ao ver a pele do marido derretendo, Celeste teve um arroubo de
arrependimento e jogou um edredom sobre ele. O esforço desesperado da
esposa para salvar o marido foi em vão. O edredom desapareceu
rapidamente em meio às chamas.
No primeiro momento, carbonizaram a epiderme, a derme e as
estruturas mais profundas da pele. Quando o fogo queimou as cordas que
prendiam Pascoal na cama, ele já estava irreconhecível. Quando a última
fagulha se apagou, toda a cama havia virado um montueiro de cinzas. Só a
lâmina de aço usada para reforçar o estrado sobrou intacta.
Os restos mortais do professor que tanto se vangloriava da forma física
caram sobre essa chapa, torrados feito um carvão. Segundo o laudo do
IML, ele morreu vítima de queimadura de quarto grau, aquela que destrói
pele, músculos e até os ossos. Celeste foi condenada a 36 anos de cadeia, e
das colegas da prisão recebeu o notório apelido de Tia do Fogo, a mulher
que tudo pode.
Celeste se diz arrependida, pois os lhos a abandonaram na cadeia. O
seu rol de visitantes cou zerado por mais de dez anos. Até que um dia uma
funcionária anunciou que um rapaz havia pedido para visitar Tia do Fogo
no próximo domingo. Ela foi às pressas à secretaria ver o nome da pessoa.
Quase desmaiou quando viu o nome do seu lho mais velho escrito na sua
lista de visitantes. Emocionada, ela não dormiu de quarta até domingo.
Parecia um zumbi de sono atrasado. Não conseguia trabalhar na cozinha
nem nas sessões espíritas. Suas colegas de cela tentavam acalmá-la. No
sábado, véspera da visita, Tia do Fogo fez com carinho um bolo de morango
enorme com três camadas separadas, com leite condensado. A massa era
macia; já o recheio foi feito de uma combinação irresistível de mousse
branca e creme belga. Ela foi ao mercadinho da cadeia e comprou
refrigerantes para receber o lho no pátio da penitenciária no dia seguinte.
Era incrível o carisma de Tia do Fogo na penitenciária. As mulheres –
inclusive as carcereiras – apoiavam a mulher que matou um marido tóxico e
abusador numa época em que essa sororidade nem estava em voga. Todo o
mundo ajudava a detenta a se preparar para o grande dia. Na madrugada de
sábado para domingo, Tia do Fogo cortou e fez escova no cabelo; fez as
unhas dos pés e das mãos. Passou uma maquiagem leve no rosto. Queria
estar bonita. “Será que ele vai me reconhecer? Meu lho tinha 14 anos
quando fui presa. Agora ele tem 24. Nossa! Agora que me dei conta! Nem sei
como é a sua aparência atualmente. Nunca mais vi nem por fotogra a. Deve
estar um homem lindo!”, criava expectativas enquanto se arrumava.
Nas penitenciárias de São Paulo, só podem visitar presos na cadeia
familiares de segundo grau com quem ele mantém vínculo familiar. Podem
ser pai, mãe, lhos, irmãos, avós, esposa/companheira. Se o detento não
tiver referências familiares, ele pode adicionar nomes de amigos. Já a
entrada de crianças e adolescentes é permitida somente quando o menor de
idade for lho ou neto da pessoa a ser visitada. O horário para a visita
permanecer dentro da cadeia vai das 8h às 16h. Mas o parente só tem acesso
ao pátio se chegar até duas horas antes do horário de encerramento. Tia do
Fogo foi para o pátio com o bolo de morango às 8h. Ela levou uma canga e
estendeu no chão. Ficou sentada lá. Ao meio-dia, seu lho ainda não havia
aparecido. As amigas observavam Celeste de longe, parada feito uma estátua,
com o olhar xo no portão. Às 13h, o bolo já estava derretido e o
refrigerante havia esquentado. Se o rapaz não chegasse até as 14h, ele não
entraria mais. Às 13h50, ele nalmente entrou. Realmente era um homem
lindo, forte como o pai e cheio de saúde. Ele caminhou pelo pátio no meio
de outros familiares. Sua mãe fez sinal com os braços. O rapaz a viu e
caminhou a passos largos. Celeste cou tão emocionada com a aproximação
do primogênito que não teve forças para se levantar do chão. Começou a
chorar. Perto da mãe, o lho tirou um documento e uma caneta do bolso.
Foi econômico com as palavras. Seco, ele justi cou a visita:
— Eu vou me casar e preciso de dinheiro. Tem um terreno enorme na
Reserva Macaúba. A propriedade está em seu nome e no do meu pai. Para
vendê-lo, preciso da sua assinatura nessa procuração. Faz favor de assinar –
pediu.
Em estado de choque, Celeste pegou o papel e a caneta.
— Filho, me ajude a levantar. Fiz um bolo para você!
— Obrigado, mas não posso demorar. Assine a procuração – pediu,
calmo.
— Como está o seu irmão? Me fale da sua noiva! Me fale de você!
— Assine a procuração! – insistiu.
Celeste escreveu seu nome no papel, muda. O lho nem olhou em seu
rosto. Muito menos a chamou de mãe. De posse do documento assinado, ele
virou-se de costas sem dizer “muito obrigado” ou pelo menos “tchau” e
desapareceu tão rapidamente quanto entrou. Tia do Fogo foi consolada pelas
amigas e só conseguiu se recuperar do baque emocional três meses depois.
Ela entendeu com o tempo que, ao jogar aquela bagana de cigarro em
Pascoal, não estava matando o seu marido, mas o pai dos seus lhos. “O
Pascoal era um companheiro de merda. Mas a verdade seja dita: ele era um
bom pai. Meus lhos o amavam”, disse em 2018.
O abandono pelos familiares era outro ponto em comum entre Celeste e
Suzane. A Tia do Fogo contou à amiga ter matado o marido por um impulso
causado pelas palavras violentas ditas por ele naquela noite. No entanto, ao
ver Pascoal crepitando sob as labaredas, a cozinheira se lembrou de todo o
sofrimento vivido desde que começou a perder as curvas do corpo. “Ele me
humilhava até na frente dos meus lhos”, recorda-se. A detenta só entendeu
o que aconteceu depois de se converter ao espiritismo. “Meu marido
cumpriu a missão dele neste plano e eu estou cumprindo a minha. Quem
sabe não nos encontraremos em outras encarnações”, resumiu.
Ao ouvir o relato triste da colega de cela, Suzane pegou carona na
história e contou ter elaborado o plano para matar os pais motivada pela
opressão familiar sofrida dentro de casa desde criança. “Eu sonhava em ser
livre. Em poder viajar. Queria ter poder sobre a minha vida. Agora estou
aqui, presa, abandonada”, reclamou para Celeste.
De madrugada, todas as detentas do “seguro” estavam dormindo, exceto
Suzane, que não pregava o olho à espera do tal Anhangá. Por volta das 3
horas da madrugada, a jovem foi vencida pelo sono e adormeceu. Celeste
roncava alto na cama de baixo enquanto Suzane dormia no mesmo beliche,
na cama de cima. Latasha jazia no beliche ao lado. No meio da noite, Suzane
acordou e olhou em direção à cama da nigeriana. Mesmo na escuridão,
percebeu que Latasha não estava mais no beliche. Suzane deu um grito de
terror e acordou todas as presas do pavilhão. A detenta africana estava no
banheiro da cela, urinando. Celeste deu um jeito de contornar a situação,
dizendo que a amiga havia tido um pesadelo. Latasha cou sem entender e
voltou a dormir feito uma múmia em sua cripta.
Semanas depois, Suzane se maquiou, entrou em um carro da Polícia
Militar e foi ao Ministério Público pela primeira vez para se encontrar com o
promotor. Essa visita foi no dia 5 de janeiro de 2007. Ela queria falar das
ameaças de Maria Bonita. Ao entrar no gabinete, algemada, Suzane foi
cumprimentada pelo promotor com “um beijinho no rosto”. Em seguida,
acomodou-se em uma cadeira no lado oposto da mesa onde o promotor
despachava. De Eliseu, a detenta famosa recebeu oferta de água e café. Ela
aceitou os dois.
Para puxar assunto, Eliseu pediu a Suzane que falasse do assassinato dos
pais. A criminosa bateu na tecla de que só fez o que fez por ter sido
manipulada por Daniel e acabou “confessando” um fato nunca levado a sério
pela polícia: Suzane a rmou que, além dela e dos irmãos Cravinhos,
Astrogildo, o pai de Daniel e Cristian, havia participado diretamente do
assassinato de Manfred e Marísia. O promotor colheu o depoimento de
Suzane e já imaginava as luzes dos holofotes da mídia sobre si caso
conseguisse reabrir as investigações da morte dos Richthofen. No entanto,
orientada por Denivaldo Barni, a jovem se recusou a assinar o testemunho.
Por causa desse depoimento, Suzane passou cerca de dez horas no gabinete
de Eliseu – sempre com algemas. Preocupado, o promotor providenciou um
lanche. Mais para a frente, os holofotes da mídia realmente se acenderiam
para Eliseu, mas por outros motivos.
No nal da audiência com o promotor, Suzane falou das suas angústias
no presídio de Ribeirão Preto. Contou passar noites em claro com medo do
diabo e da sua emissária, Maria Bonita. A jovem implorava por uma
transferência de cadeia. Chegou ao cúmulo de reclamar das olheiras escuras
e enormes estampadas no rosto. “Essa Demônia me persegue desde a
Penitenciária Feminina da Capital. Sabe aquela rebelião em que quase
morri? Foi ela quem organizou!”, recordou-se.
Depois de ouvir com detalhes como Maria Bonita atazanava Suzane
dentro do presídio, Eliseu teria a rmado à detenta poder mandá-la para
Tremembé. Mas haveria uma condição sine qua non. Nesse momento, ele
teria se levantado da cadeira e contornado a mesa para se aproximar de
Suzane. A detenta perguntou qual seria essa cláusula. O promotor, então,
teria levado o seu rosto para perto da moça e anunciado a tal condição
indispensável: um beijo. Suzane teria se levantado rapidamente e seguido
algemada de maneira sensual rumo à porta do gabinete. Momentos antes de
sair, anunciou charmosamente com a sua voz de criança: “Primeiro a
transferência, depois o pagamento”. E escafedeu-se.
Em uma visita de rotina ao presídio, Eliseu teria dito à Suzane que a
requisição da transferência dela para Tremembé já estava assinada por ele.
Faltava apenas encaminhar à Justiça para sacramentá-la. Suzane cou
empolgada e pediu ao promotor que a enviasse ao fórum de Ribeirão Preto
imediatamente, pois poderia morrer assassinada por Maria Bonita ainda
naquele dia. Eliseu, segundo relatos de funcionárias da penitenciária, já
demonstrava intimidade com Suzane ao se referir à moça com apelidos
carinhosos:
— Suzi, você tem certeza que quer ir mesmo para Tremembé? Aqui
posso proteger você – teria ponderado o promotor.
— Tenho certeza, sim! – sustentou Suzane.
— Olha a minha dívida, hein...
— Ainda estou neste inferno, ou seja, por enquanto não há dívida
alguma – ironizou a detenta.
Foi abraçada à Tia do Fogo e pulando em círculos no pátio da
Penitenciária Feminina de Ribeirão Preto que Suzane comemorou a notícia
da transferência, o cializada três semanas depois do encontro com o
promotor. A mudança estava marcada para dali a três dias. Enquanto
celebrava, a jovem foi surpreendida. No dia 15 de janeiro de 2007, uma
ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi
buscá-la na cadeia. Mesmo sem estar doente, Suzane foi algemada e entrou
no furgão rumo ao Ministério Público.
No gabinete de Eliseu, de número 207, as algemas de Suzane foram
retiradas por um policial a pedido do promotor. Segundo relato dela, a sala
onde a autoridade analisava processos de execução penal das detentas
estaria transformada em boate, com som dançante e um globo de luzes
coloridas conhecido como bola-maluca. A jovem não teve dúvida: estava ali
para quitar a sua dívida. Em determinado momento, Eliseu teria tirado o
CD de música agitada e posto um com a canção romântica de Tom Jobim e
Vinicius de Moraes “Chega de saudade”, cantada por João Gilberto, o pai da
bossa nova. Um dos trechos dessa música diz “Mas se ela voltar, se ela voltar
/ Que coisa linda, que coisa louca / Pois há menos peixinhos a nadar no mar /
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca”. Segundo Suzane, o promotor
teria se declarado apaixonado nesse segundo encontro e lido diversas
poesias de sua autoria. “Eu não consigo mais viver sem você. Eu sonho com
você todos os dias e acordo todo melado”, teria se derretido. Eliseu teria se
aproximado de Suzane para dar um beijo em sua boca, mas a assassina
esquivou-se. O promotor teria desa velado o cinto e aberto a calça. Ao ver
tal cena, Suzane pediu um tempo para ir ao banheiro. Ela saiu do gabinete
de Eliseu, caminhou por um corredor estreito, dobrou à esquerda e
atravessou pela primeira porta que viu aberta. Era justamente a sala de outro
corregedor dos presídios. Lá, foi prática e objetiva. Com a voz rme de
mulher adulta, anunciou:
— Quero registrar uma denúncia de assédio sexual...
Eliseu não era um homem bonito nem feio. Tinha cabelos escorridos e
partidos ao meio. Usava óculos de aro grosso e estava sempre bem-vestido.
Aos 45 anos na época, sendo 19 de carreira no Ministério Público, mantinha
postura séria. Ele vivia uma união estável e foi abandonado pela mulher tão
logo o suposto affair com Suzane ganhou a mídia. Repórteres ligavam de
cinco em cinco minutos perguntando se ele estava apaixonado pela detenta.
Eliseu negava, aborrecido. “A minha mulher acreditou em mim. Mas acabou
pairando uma dúvida”, comentou. O promotor foi investigado em um
procedimento interno e punido com 22 dias de suspensão das atividades,
algo humilhante para uma autoridade dessa envergadura. Ao optar pela
sanção, a Corregedoria do Ministério Público escreveu que Eliseu “não teve
uma conduta compatível com o cargo que ocupa”.
A punição de Eliseu foi publicada no Diário O cial do Estado de São
Paulo no dia 15 de setembro de 2010. Ele recorreu da decisão junto ao
Conselho Nacional do Ministério Público, em Brasília, mas o castigo foi
mantido. Funcionários da Penitenciária de Ribeirão Preto disseram em
depoimento que o promotor tinha “um certo encantamento” por Suzane. Há
relatos de que ele batia fotos com a presa famosa e a chamava
carinhosamente de Suzi, em referência à boneca jovem de cintura na e
pernas delineadas, da Estrela. Um promotor, colega de Eliseu, recorda-se do
dia em que ele comentou numa roda de amigos achar Suzi “muito linda”.
No mesmo procedimento que puniu o promotor, as acusações foram
rebatidas. “Nunca a chamei de Suzi. [...] Nunca tive aparelho de som na
minha sala. [...] Não havia clima romântico algum. [...] Nunca houve nada
entre nós. Nossa relação foi toda pro ssional. [...] Nunca escrevi poesias.
Nem poeta eu sou. [...] Nego tudo com veemência!”. O beijinho no rosto de
Suzi e o lanchinho em seu gabinete ele admite. E se justi cou na época: “Eu
também dava beijinhos no rosto das outras detentas. Eram beijinhos
pro ssionais. [...] O lanche foi uma questão humanitária, pois ela estava há
dez horas sem comer”. A amigos, Eliseu a rmou que foi seduzido por Suzi.
À revista Veja, em 31 de agosto de 2016, o promotor encerrou o assunto:
“Pre ro ouvir falar do diabo, mas não quero ouvir o nome dessa moça”.
Depois desse fuzuê, Suzane pegou o bonde para Tremembé e se livrou do tal
Anhangá e das garras a adas tanto de Maria Bonita quanto de Eliseu.
Algas marinhas, fontes luminosas, pélvis e um
brasão

D
ez entre dez criminosos condenados pela Justiça almejam cumprir a
pena numa das quatro penitenciárias do complexo prisional de
Tremembé, no Vale do Paraíba, região do interior paulista. Entretanto,
não é fácil conseguir uma das 3.283 vagas oferecidas nas celas dos
concorridos pavilhões. A seleção é rigorosa. O primeiro pré-requisito para
passar pelo crivo é ter cometido atrocidades rejeitadas pela comunidade
prisional, como estupro, executar refém, feminicídio, infanticídio, corrupção
ou matar membros da própria família com brutalidade. Ser autor de crime
de impacto na mídia também é garantia de um colchão no local. Advogados,
médicos, pedó los, ex-policiais, ex-promotores, jornalistas e políticos
guram na lista da clientela preferencial de Tremembé.
Um dos maiores atrativos do presídio-sensação é não abrigar membros
de facção criminosa. Esse detalhe reduz para quase zero a possibilidade de
extorsão, motim e rebelião. Como o sistema lá é diferenciado, 75% da
população carcerária trabalha com remuneração sem pôr os pés para fora da
cadeia. Nas penitenciárias de Tremembé há empregos em ateliê de corte e
costura, de reforma de carteiras escolares, de usinagem e montagem de
torneiras. Dentro do complexo existem vagas também para criminosos em
setores de lavanderia, rouparia, marcenaria, barbearia e manutenção predial,
além de serviços de pedreiro e pintor. Na cozinha e nas o cinas, assassinos
manuseiam ferramentas letais, como facas, martelos, chaves de fenda e
serrotes. Os presos trabalhadores recebem 1 salário mínimo mensal e mais
um benefício pra lá de generoso: para cada três dias trabalhados na cadeia, é
abatido um na pena.
Por abrigar réus envolvidos em casos de grande repercussão, Tremembé
recebeu o inusitado epíteto de O Presídio dos Famosos. A lista de
celebridades do crime que estão ou estiveram hospedados por lá incluem o
médico Roger Abdelmassih (estuprou 37 pacientes); o ex-goleiro Edson
Cholbi Nascimento, lho do Rei Pelé (lavagem de dinheiro e associação ao
trá co); o ex-senador e proprietário do portal Metrópoles Luiz Estevão
(corrupção ativa, estelionato e peculato); o jornalista e ex-diretor de redação
do Estadão Antônio Marcos Pimenta das Neves (executou a namorada
Sandra Gomide com um tiro pelas costas); Gil Rugai (assassinou o pai e a
madrasta); Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá (estrangularam e
jogaram a pequena Isabella Nardoni pela janela do sexto andar);
Lindemberg Alves Fernandes (sequestrou e matou a ex-namorada Eloá
Pimentel com um tiro na cabeça e outro na virilha); Elize Matsunaga (matou
o marido com um tiro na cabeça e esquartejou o corpo); além de Suzane e os
irmãos Cravinhos. Por pouco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não foi
parar no Presídio dos Famosos. Em agosto de 2019, a Justiça de São Paulo
conseguiu um beliche para o petista no pavilhão mais nobre de Tremembé.
Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu mantê-lo na carceragem da
Polícia Federal de Curitiba, onde cou preso por 580 dias no regime fechado
por lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Lula foi liberado no dia 8 de
novembro de 2019 depois de a Suprema Corte decidir ser inconstitucional a
prisão em segunda instância. O petista foi eleito presidente do Brasil pela
terceira vez em 2022.
Na recepção da entrada principal de Tremembé II, onde moram os
presos famosos do sexo masculino, uma frase de autoria desconhecida
convida à re exão: “Este presídio só recebe o homem. O delito e seu passado
cam nesta portaria”. Uma regra de convivência respeitada à risca tanto na
cadeia feminina quanto na masculina ilustra a mensagem subliminar
contida nesse aviso. Recomenda-se nunca perguntar o que o colega de cela
fez de errado. Pela etiqueta do presídio, deve partir do próprio criminoso a
iniciativa de falar de si. A princípio, quando questionados, eles respondem
com o número do artigo do Código Penal correspondente ao delito. Os mais
comuns em Tremembé são 121 (assassinato), 148 (sequestro), 155 (furto),
157 (latrocínio), 213 (estupro) e o terrível 217 (estupro de menor). Só depois
de criar intimidade e con ança os detentos relatam com detalhes as
barbaridades praticadas no passado. No entanto, todo o mundo sabe da vida
alheia por causa do “corre”, como os detentos se referem às fofocas de
corredor.
Em todos os pavilhões das quatro penitenciárias, o dia começa antes de
o sol nascer. Em Tremembé II, um galo se encarrega de despertar os presos
com um canto nervoso ainda na aurora. Às 5h30 é feita a primeira contagem
de detentos. Os agentes chamam um por um pelo nome para identi car
possíveis fugas na madrugada. Logo após a conferência, recebem ainda na
cela o café da manhã (pingado com pão francês e margarina). A refeição é
servida pelos próprios presos. Depois, seguem para o banheiro, onde tomam
a primeira ducha fria do dia. Com recomendação médica é possível usar o
chuveiro especial de água quente. Quem tem emprego troca o uniforme
bege pelo azul-escuro e assume o seu posto de trabalho. Quem não tem vai
para a musculação em uma academia improvisada, estuda na biblioteca,
entrega-se ao ócio ou namora por correspondência.
Sem contato com o mundo externo e con nados com pessoas do mesmo
sexo, os presos solitários da penitenciária masculina de Tremembé criaram
uma espécie de “Tinder raiz” para se relacionar com as mulheres da cadeia
feminina, distante 5 quilômetros. Por intermédio de visitantes, os rapazes
descobrem quem são as detentas solteiras e atraentes da casa penal vizinha e
mandam cartas com galanteios e declarações de amor. Para agilizar a
paquera, costumam anexar fotogra as de corpo inteiro para enredar as
pretendentes. Em média, cartas de uma penitenciária a outra levam uma
semana para ser entregues pelos Correios. (Por uma questão de segurança,
todas são lidas por agentes carcerários.) Se a moça gostar do rapaz, ela
responde. Se não houver retorno, signi ca que não houve interesse, ou seja,
não deu “match”.
Em abril de 2018, Vinícius Nunes, um preso do semiaberto de 38 anos
pra lá de carismático, enviou uma carta para Jaqueline Moraes, de 42, com
uma foto dele tirada na praia. Há dez anos, Vinícius matara o irmão com um
tiro na testa por ele ter transado com sua esposa. Magro e alto, o detento se
disse interessado em Jaqueline. A presidiária era bonita, sorridente e magra
nas fotos enviadas. Em uma das cartas, ela respondeu dizendo tê-lo achado
“um gato” e muito gentil com as palavras. Selaram namoro por
correspondência sem nunca terem cado frente a frente.
Adeptos da leitura na cadeia, os presos de ambos os sexos acabam
chamando a atenção pela qualidade do texto dessas missivas. “Nunca te vi,
nem nunca te beijei. Mas a tua ausência me faz imaginar-te perfeita. [...] No
retrato enviado na última epístola – recebida com muita alegria – pareces-
me dona de beleza imprecisa ou, quem sabe, imprevista. [...]Se ansiedade
fosse um câncer, teria morrido eu de metástase...”, escreveu Vinícius à
Jaqueline às vésperas do primeiro encontro.
Na saidinha seguinte, Vinícius tomou um banho longo, vestiu roupa
nova e fez a barba, além de caprichar na colônia. Saiu da cadeia às 7h da
manhã e seguiu apressado para o encontro da amada, condenada a 35 anos
por ter assassinado o marido com 56 facadas 16 anos antes. Depois de uma
hora de espera, o portão da penitenciária feminina de Tremembé se abriu
para Jaqueline sair. A detenta estava impecável em uma roupa apertadíssima
e toda maquiada. Mas houve decepção por parte dele. Jaqueline “o enganou”.
As fotos enviadas por ela nas cartas eram muito antigas. De um tempo em
que era jovem, magra e com rosto de pele macia. Bravo, Vinícius aconselhou
a detenta a não mentir, pois acabava criando falsas expectativas. Jaqueline
justi cou não ter na cadeia fotos recentes para mostrar como estava na
época daquele encontro: com sobrepeso e excesso de rugas ao lado dos
olhos, conhecidas como pés de galinha. Vinícius a dispensou no portão da
penitenciária e aproveitou a oportunidade para catar, ali mesmo, durante a
saída das detentas, uma nova pretendente. Escolheu Marlene, uma ex-
empregada de 24 anos que matou o patrão com 20 facadas, segundo ela, por
tentativa de estupro. Vinícius e Marlene passaram a trocar cartas e caram
noivos. Pretendiam se casar em 2023, quando ambos estivessem gozando do
regime aberto.
Desde 2020, quando as visitas nos presídios foram suspensas por causa
da pandemia, os detentos das cadeias de São Paulo passaram a se
corresponder com familiares também por correio eletrônico. Para
possibilitar as interações, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP)
criou uma ferramenta on-line para atender as 176 unidades prisionais de
São Paulo, permitindo aos familiares escrever até duas mensagens por
semana. As cartas podem ter até 2 mil caracteres – o que dá uma página do
Word no padrão Times New Roman tamanho 12 – e são enviadas para um
servidor que as redistribui, por e-mail, para a unidade prisional do
destinatário. Na secretaria de cada unidade, uma equipe faz a triagem tanto
das cartas físicas quanto das digitais para veri car se os presos não estão
articulando novos crimes com pessoas do lado de fora. A equipe de
checagem trabalha com o mesmo rigor dos agentes do departamento de
censura federal do Ministério da Justiça na época do regime militar. Eles
leem todas as linhas, jogam no lixo as que são consideradas suspeitas e
riscam termos tidos como chulos, a exemplo de palavrões. O critério é
meramente subjetivo. Fotos de pessoas sem roupa ou em poses ousadas
também são vetadas. Depois de passar por esse crivo, as cartas digitais são
impressas e entregues aos destinatários. Quem quiser escreve de volta num
papel, que então é digitado e encaminhado. Em 2021, o uxo de
correspondências eletrônicas chegou a 1 milhão de cartas. Com o m da
pandemia, as visitas retornaram e esse número caiu pela metade.

* * *

Desde que foram condenados pelo Tribunal do Júri, Daniel e Cristian


Cravinhos sempre cumpriram pena juntos. Os dois irmãos eram unidos
desde a infância, mas a vida enclausurada estreitou ainda mais os laços
fraternos. Daniel era mais calmo, introspectivo, reservado e racional.
Cristian, o inverso: extrovertido, extravagante, emotivo e destemperado. Na
cadeia, esses traços da personalidade nortearam a vida de cada um. Daniel
acabou fazendo poucos amigos, enquanto o irmão era extremamente
popular e vivia metido em confusão.
Quando os Cravinhos estavam em liberdade, em 2005, graças ao habeas
corpus concedido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), Cristian conheceu
por meio de um amigo sur sta a bancária Sherminne, de 26 anos na época.
Mesmo depois de voltar para a prisão, em 2006, o relacionamento continuou
rme. Como prova de amor, o assassino de Marísia tatuou em seu peitoral o
nome da amada. Sherminne retribuía tamanha devoção visitando o seu
amor todos os nais de semana. Por volta das 4h da manhã de todo santo
domingo, pegava o carro e seguia religiosamente pela Via Dutra (BR-116),
percorrendo os 150 quilômetros que separam o portão da sua casa, em São
Paulo, da entrada da penitenciária de Tremembé.
Sherminne trabalhava na gerênciade um banco privado. Bem-sucedida
nanceiramente, era uma mulher atraente. Tinha cabelos loiros cacheados e
pele tratada. A executiva sempre estava bem-vestida, apesar de usar roupas
curtas e decotes profundos. No trabalho e no convívio social, a bancária era
educada, doce, charmosa e cortês. Quando irritada, porém, tornava-se
grossa, amarga, vulgar e barraqueira. Por mais de uma década, ela conseguiu
operar o milagre de manter o namoro com o assassino confesso em segredo
da família e dos colegas de trabalho. Às amigas íntimas, Sherminne falava
ter sido Cristian o único amor de sua vida. Nas visitas dominicais a
Tremembé, fazia questão de levar comidas so sticadas para almoçar com o
namorado no pátio da prisão. Em um desses banquetes, carregou no jumbo
(sacola de mantimentos para os presos) uma marmita contendo lagostas
douradas na manteiga feitas ao forno com azeite de manjericão e castanha-
do-pará, comprada no restaurante Don Curro, um dos mais so sticados da
Rua Oscar Freire.
As extravagâncias de Sherminne pareciam sem limites. Numa visita,
levou lençóis de os egípcios e travesseiro de pena de ganso para dar
conforto ao sono de Cristian. Como o casal tinha um contrato de união
estável, era permitido o uso da ala destinada a encontros sexuais. Depois das
refeições, Sherminne e Cristian passavam o resto da tarde trancados em uma
sala fazendo sexo em Tremembé. Esses encontros íntimos eram barulhentos
a ponto de chamar a atenção do agente de segurança penitenciária Firmino
Júnior. Certa vez, os gemidos de Sherminne foram ouvidos pelos visitantes
no pátio. O funcionário teve de interromper. Bateu na porta e advertiu
Cristian, lembrando haver crianças e senhoras na área externa da cadeia.
Ao imaginar a performance sexual de Sherminne, Firmino se interessou
por ela. O agente começou a provocar a bancária quando a encontrava na
portaria. Certa vez, a namorada de Cristian teve o jumbo revistado por
Firmino. Atrevido, ele abriu as marmitas e cheirou cada uma delas para se
deliciar com o aroma da comida cara. Enquanto fazia a conferência,
comentou:
— Às vezes me pergunto por que uma mulher bonita como você, com
todo o chão da rua para andar, perde o domingo inteiro com um criminoso
tão covarde que matou uma senhora enquanto ela dormia – provocou,
enquanto destampava e cheirava potes de plástico com lé mignon e molho
madeira.
— Quando amar de verdade, você entenderá – sentenciou Sherminne.
Após a revista, Firmino pediu a ela o número do seu telefone celular,
alegando uma possível emergência com o seu namorado na prisão. Apesar
de ter certeza naquele momento de que jamais teria qualquer tipo de
envolvimento afetivo com o carcereiro, ela passou seu contato. Os dois
começaram a trocar mensagens. A bancária sempre deixou claro se tratar de
amizade. Ficou até aliviada quando o agente passou a chorar as dores de
outro amor.
Firmino era um catarinense de 28 anos. Alto e cheio de sardas no rosto,
o jovem chamava a atenção das mulheres. Quando atuou na penitenciária
feminina, recebia dez cartas por mês de detentas apaixonadas. Orgulhava-se
de ter se formado bacharel em Direito na Universidade de Taubaté. Já
escolada no ambiente prisional, Sherminne recebia as investidas do agente –
e até de outros presos – e as guardava para si. A bancária conhecia o
temperamento explosivo do namorado. Inteligentemente, ela previa que,
num possível confronto entre o presidiário e Firmino, Cristian levaria a pior.
De forma discreta, Firmino passou a ouvir com frequência os sons
emitidos pelo ato sexual de Cristian e Sherminne. Num desses encontros,
ocorreu um acidente. O casal estava mantendo relação de forma violenta
quando se ouviu um estalo seguido de um grito. Cristian havia fraturado o
pênis durante o coito e precisou receber atendimento médico. O tratamento
foi cirúrgico. Ele sofreu um rompimento na estrutura cartilaginosa que
mantém o pênis ereto, conhecida como túnica albugínea. A laceração teve
de ser fechada por meio de uma sutura com os (costura) e rendeu ao
paciente um mês de privação sexual. Na semana seguinte, Cristian recebeu
uma das melhores notícias da sua vida no cárcere: a namorada estava
grávida de uma menina. Nessa época, ele já era pai de um adolescente que o
rejeitava por causa do crime e pelo relato da mãe, dando conta que Cristian
havia sugerido um aborto. Quando completou 18 anos, o jovem foi até a
Justiça pedir para retirar o sobrenome “Cravinhos” de todos os seus
documentos. “Tenho vergonha de ser lho de um assassino. Não aguento
mais ser olhado com ar de indignação quando apresento minha carteira de
identidade nos lugares públicos. Não matei ninguém! Não escolhi ser lho
de criminoso”, justi cou o rapaz. Revoltado, ele abriu mão de receber
qualquer tipo de pensão ou herança. “Tenho nojo de tudo que vier desse
verme”, pontuou.
Antes de excluir Cravinhos do sobrenome, o jovem viveu con itos
internos. Ele pegava o telefone e ligava semanalmente para a penitenciária,
na tentativa de lavar roupa suja com o pai. Cristian atendia e o lho cava
em silêncio. Em outro momento, pediu à mãe que o levasse até a cadeia. Ela
se negou, lembrando de como Cristian se comportou quando descobriu a
sua gravidez. Aos 18 anos, o rapaz pegou um ônibus em Maringá, onde
morava, e seguiu rumo a Tremembé. No pátio da cadeia, pai e lho se
encararam. Aos prantos, Cristian tentou abraçá-lo, mas o jovem recuou.
Sem derramar uma lágrima, a visita disse ter ido lá só para olhar pela última
vez para o rosto do pai assassino. Despediu-se, prometendo para si mesmo
esquecê-lo para sempre.
Com um bebê a caminho, Cristian e Sherminne faziam planos para se
casar no religioso e constituir uma família. A bancária comprou um amplo
apartamento no bairro da Bela Vista, em São Paulo, e o decorou para esperar
o amado migrar para o regime semiaberto. Sherminne enfrentou uma
gravidez de risco e as visitas à penitenciária caram escassas. A partir do
sexto mês, a gestante interrompeu as viagens a Tremembé e os dois
passaram a se corresponder por cartas. A mulher dizia sentir muita falta do
amado, e ele respondia não suportar tanta saudade. Uma das missivas
enviadas pela bancária dava notícias da gravidez:
“Estou entrando no oitavo mês, amor. O médico me recomendou repouso
absoluto. Sinto cólicas horrendas. Consegui antecipar a minha licença-
maternidade para car em casa cuidando da nossa lhota. [...] Sabe que eu
morro de ciúmes do meu carequinha lindo, né? Te amo. Sherminne”.
Na resposta, Cristian desejou saúde à namorada e prometeu se casar tão
logo saísse da clausura. Dizia-se ansioso para conhecer o mundo livre ao
lado da futura esposa. Ainda brincou com a namorada. “Ciúmes de mim?
[Risos]. Estou preso aqui e você está solta aí fora. Quem deveria estar com
ciúmes? Quem?” Sem as visitas de Sherminne, Cristian sentiu uma carência
afetiva nunca antes experimentada. As mágoas do detento foram choradas
no divã da penitenciária, sob os cuidados da psicóloga Scheyla Maria
Miranda Precioso.
Em julho de 2011, a juíza Sueli Zeraik Oliveira Armani, da 1a Vara de
Execuções Penais de Taubaté, pediu à Scheyla um per l psicológico de
Cristian para decidir se o detento merecia promoção do regime fechado
para o semiaberto. Nessa fase, o condenado pode deixar a cadeia cinco vezes
por ano e passar sete dias fora a cada saída. No laudo, Scheyla fez uma
resenha positiva do presidiário: de niu-o como calmo, participativo,
educado, simpático e inteligente. Ainda no relatório enviado à Justiça, a
terapeuta escreveu palavras elogiosas do tipo “reeducando dedicado ao
trabalho”. Aos olhos da pro ssional, Cristian era generoso, pois ensinava os
presos de Tremembé a tocar violão, teclado e bateria. “Ele está tão
arrependido pelo crime cometido que confessou espontaneamente na época
das investigações a autoria, tanto que colaborou com as investigações”,
ressaltou Scheyla.
No regime fechado, quem acompanhava a execução penal dos irmãos
Cravinhos era o promotor Luiz Marcelo Negrini Mattos. Quando leu o
relatório favorável assinado pela psicóloga da penitenciária, Mattos fez
contrapontos: “É necessário mencionar a crueldade do sentenciado na
prática dos delitos. O detento desferiu sucessivos golpes com um porrete
contra uma vítima que estava dormindo, empregando extrema violência,
produzindo sofrimento inútil e desnecessário. Em ato contínuo, o
sentenciado a estrangulou, en ou-lhe uma toalha na boca e envolveu a sua
cabeça num saco de lixo. Fez isso tudo embalado pela promessa de
recompensa nanceira, efetivamente recebida. Trata-se, sem sombra de
dúvida, de um dos mais graves crimes da história recente do país”. Na
sequência, o promotor descreveu todas as faltas cometidas por Cristian
dentro da cadeia, como desobediência, indisciplina, envolvimento em brigas
e desacato. A Justiça só foi conceder o regime prisional mais brando ao
preso dois anos após o promotor assinar esse parecer.
Os irmãos Cravinhos debutaram em Tremembé no dia 22 de julho de
2006. Cristian tinha 30 anos e seu irmão, 25. Eles caram na mesma cela do
regime fechado por 7 anos e progrediram juntos para o semiaberto no dia 21
de fevereiro de 2013, quando completaram um sexto da pena. No novo
regime, passaram a sair da cadeia em datas especiais. Na primeira saída, na
Semana Santa, Daniel preferiu car sete dias em casa com a mãe, Nadja.
Cristian saiu da cadeia diretamente para o apartamento de Sherminne,
para car junto da lha de 5 anos na época. A criança sempre o visitou na
cadeia, mas a mãe omitia da menina inocente que o pai era presidiário.
Quando a menina questionava por que só o encontrava aos domingos e
longe de casa, Sherminne dizia uma meia-verdade à lha: “O papai trabalha
dirigindo um trator”. O trator em questão era usado por Cristian para levar
ferramentas para o trabalho na jardinagem da penitenciária. Em um
domingo de visitas, ele chegou a fazer uma foto com a lha nesse veículo.
Como nem de longe o semiaberto de Tremembé lembra uma penitenciária,
a mentira colava com facilidade.
Saindo esporadicamente da cadeia, Cristian logo se cansou de bancar o
pai de família exemplar no apartamento de Sherminne e foi para a casa da
mãe, alegando ter uma demanda reprimida por liberdade. Na segunda noite
de alforria, encontrou-se com Marco Terremoto, um velho amigo de
xilindró. Os dois foram parar em uma boate em Campinas, violando o
regime semiaberto, pois eles não podiam deixar a cidade-domicílio – no
caso, São Paulo. Na boate, os dois beijaram várias mulheres.
Descon ada, Sherminne ligou à noite para a mãe dos Cravinhos. Ao
descobrir que o namorado estava na rua, a barraqueira teve uma síncope:
— Como assim não está em casa, dona Nadja? São 11 horas da noite!
— O Cristian está na vida, minha lha!
— Com que vagabunda ele saiu? – quis saber Sherminne, possessa de
ciúme.
— Não faço a menor ideia. Aliás, a minha preocupação nem é essa. O
meu lho pode perder o benefício do semiaberto, caso seja descoberto –
observou Nadja.
— Quero mais é que o Cristian se foda e volte para a prisão, caralho! –
esbravejou a bancária, batendo o telefone na cara da sogra.
Cristian e Terremoto se conheceram no Centro de Detenção Provisória
(CDP) Belém II, em 2004, dois anos antes do julgamento dos irmãos
Cravinhos. Com 53 anos, 1,90 de altura, forte, usuário de maconha e dono
de uma cha criminal assustadora, Terremoto foi guarda civil municipal
(GCM) de São Paulo na década de 1990. Nas horas vagas, atuava como
assassino de aluguel. Já havia executado a sangue frio dez pessoas em troca
de dinheiro.
Na penúltima vez que foi contratado para matar, Terremoto levou a
vítima (um homem de 38 anos endividado com um agiota) a um terreno
deserto em São Bernardo do Campo e o executou sem dó. O coitado
implorava de forma histérica pela vida. A gritaria irritou o assassino. O
bandido passou ta crepe na boca da vítima e o amarrou sentado no caule
de uma árvore. Em seguida, sem qualquer piedade, Terremoto pegou um
martelo de pedreiro, aqueles usados para quebrar pedras na construção civil,
e golpeou a cabeça da vítima seis vezes, perfazendo buracos no crânio, por
onde saltava massa encefálica. O sujeito resistia a tamanha violência e levou
mais vinte marteladas, deixando a cabeça totalmente destruída.
Terremoto foi pego pela polícia tempos depois ao incendiar um cliente
inadimplente do mesmo agiota. Por essas e outras barbáries, foi condenado a
76 anos de cadeia. Apesar da frieza quando estava matando a trabalho,
acredite, Terremoto era boa-praça, sorridente, delicado e gentil com os
amigos na cadeia e fora dela. Charmoso, fazia sucesso com as mulheres
quando estava na balada.
A casa noturna escolhida pela dupla para comemorar a saidinha era um
point de jovens em busca de diversão. Dinheiro não era problema para
Cristian. Com o consentimento do restante da família, sua avó lhe deixou
uma herança de pouco mais de 800 mil reais. O dinheiro foi dividido com o
irmão quando eles ainda estavam no regime fechado.
Na casa noturna, Cristian e Terremoto beberam cerveja e se acabaram de
tanto dançar. O assassino de aluguel foi o primeiro a beijar uma mulher de
cerca de 30 anos. Cristian também era bastante paquerado em baladas. A
noite estava no meio quando ele mirou numa mulher na faixa dos 20 anos.
Embalada pelo álcool, a pretendente não fez cerimônia no approach.
Começou a dançar perto dele e sorriu para cumprimentá-lo. Cristian
devolveu a saudação com outro sorriso. A garota então se aproximou e falou
ao pé do ouvido dele:
— Sem a menor dúvida, você é o homem mais interessante deste lugar.
— Você sabe quem eu sou? – advertiu ele.
— Claro. Você é o famoso Cristian Cravinhos!
Com mais um pouco de conversa, Cristian e a tal garota se beijaram e
foram parar em um motel. Quando chegou em casa, por volta das 10h da
manhã do dia seguinte, o presidiário foi advertido pela mãe. Nadja manteve
a serenidade, já mostrada no Tribunal do Júri, quando pediu a condenação
da prole, sete anos antes:
— Isso são horas de chegar em casa?
— Quero aproveitar a liberdade, mãe. Logo mais terei de voltar para a
cadeia.
— Espelhe-se em seu irmão, que não sai de casa nem para ir à padaria
comprar pão...
— Mãe, eu estraguei a minha vida por causa do Daniel, lembra? Ele me
implorou para matar a mãe da namorada dele. Agora a senhora vem me
pedir para me espelhar nele? Faça-me o favor! [...] Não me impeça de viver –
argumentou Cristian.
— Meu lho, a sua pena acaba só em 2041 e ainda estamos em 2013.
Lembre-se do que você fez no passado e veja essas saídas provisórias como
algo extraordinário, um milagre. Não deboche da Justiça, lho. Não cometa
esse tipo de estupidez!
Nadja ainda dava sermão quando Cristian caiu bêbado no sofá da sala
com a roupa de balada. Decepcionada, ela se trancou no quarto. Daniel
ouviu toda a conversa entre a mãe e o irmão e chorou na cozinha. O jovem
carregava uma culpa colossal por ter arrastado Cristian para um crime cujos
únicos bene ciados seriam ele e Suzane. Apesar da intimidade, os irmãos
Cravinhos nunca lavaram essa roupa suja. Daniel cobriu o irmão com um
edredom e cou perto dele por horas. Para se livrar das censuras de Nadja e
dos ataques histéricos de Sherminne, Cristian passou a morar sozinho no
apartamento deixado pela avó, em Moema, mas fazia as refeições
diariamente na casa da mãe, no Campo Belo. No almoço de domingo de
Páscoa, Nadja falou reservadamente a Daniel que Cristian ainda não estava
preparado psicologicamente para viver do lado de fora da cadeia. A
matriarca estava coberta de razão, pois o destino dele foi sendo costurado
com linhas inconsequentes a partir daquele ponto.
O regime semiaberto é a primeira porta de entrada para a liberdade
de nitiva do presidiário e funciona como um teste. Sua função é permitir ao
detento o retorno à sociedade de forma regrada. Com isso, o apenado tem a
oportunidade de conseguir um emprego e restabelecer vínculos afetivos com
familiares e amigos. As saídas intermediárias têm regras rigorosas. O preso
só recebe o benefício se provar arrependimento pelo crime cometido, se
tiver vínculo familiar e bom comportamento na cadeia, além de fornecer
endereço xo à Justiça. Fica obrigado a estar recolhido entre 20h e 8h da
manhã e proibido de frequentar bares, boates e casas de jogos ou sair dos
limites da cidade-domicílio.
Imprudente, Cristian nunca respeitou as normas de nenhum regime
prisional. Um funcionário da Justiça ligava, pelo menos uma vez, no telefone
xo para veri car se ele realmente estava em casa após as 20 horas. No
início, Cristian esperava o telefonema para ganhar a rua no horário
proibido. Esperto, instalou no aparelho da residência um dispositivo
conhecido como “siga-me”. O apetrecho desviava a ligação do telefone xo
para o seu celular. Com esse truque, passou a ludibriar a Justiça.
O período de sete dias que os presos de Tremembé passam em liberdade
no regime semiaberto é conhecido como “saidinha”. Em outros presídios do
país, esse período varia. Na Papuda, em Brasília, por exemplo, o preso do
semiaberto sai todos os dias para trabalhar, mas volta para dormir na cadeia.
No caso dos Cravinhos, eles deixaram Tremembé 25 vezes, totalizando 175
dias de liberdade esporádica. Em suas saidinhas, Daniel raramente botava o
nariz para fora de casa. Ele morria de vergonha de encarar as pessoas na rua
e só perdeu esse medo quando migrou para o regime aberto. Ainda preso,
conheceu a biomédica Alyne Bento no pátio da cadeia. A garota visitava
frequentemente um irmão criminoso envolvido com roubo de carros de
luxo. Os dois começaram a namorar durante as visitas dominicais e
noivaram em uma cerimônia feita em Tremembé. Segundo laudos
psiquiátricos anexados em seu processo de execução penal, Daniel sofria de
depressão severa quando passou a desfrutar do regime semiaberto. Já
Cristian sempre aparentou felicidade e tinha fome de viver. Seu espírito
aventureiro o fez comprar, em uma dessas saídas provisórias, uma moto
Yamaha modelo MT-09 ABS por 40.000 reais na época.
Depois de fazer as pazes com Sherminne, Cristian passeava com a
namorada pelas ruas de São Paulo na moto envenenada. A cumplicidade do
casal fez a relação prosperar. Os dois frequentavam bares, boates e
shoppings. Com receio de perder o namorado, Sherminne começou, aos
poucos, a abrir mão do per l discreto mantido no início da relação. Cristian
nunca quis viver à sombra. Extravagante, usava jaquetas de couro preto
brilhoso, cordões e pulseiras grossas de prata reluzente. Frequentava com a
moça restaurantes caros e movimentados para provar a sua capacidade de
voltar a viver em sociedade. Volta e meia era abordado por um garçom ou
mesmo um popular perguntando se, de fato, era um dos irmãos Cravinhos.
Ele fazia questão de se identi car como tal e deixava claro estar pagando a
sua dívida com a sociedade em grande estilo. Em casa, dizia à mãe que na
rua era celebridade. Seu maior sonho era ser entrevistado no programa Roda
Viva, da TV Cultura.
Em 2017, os irmãos Cravinhos entraram na Justiça com pedido para
migrar para o regime aberto, no qual o sentenciado passa a cumprir pena
integralmente fora da cadeia. No último ano do semiaberto, Cristian sofreu
um revés emocional na prisão ao experimentar uma forma de amar inédita,
segundo de niu. Começou em fevereiro de 2015, com a entrada em
Tremembé do detento Rafael de Pádua do Amaral, um homossexual
conhecido como Duda, um jovem de 26 anos, 1,79 de altura e 79 quilos
distribuídos num corpo bonito.
A vida de presidiário de Duda começou na madrugada do dia 26 de
setembro de 2006, quando entrou pela primeira vez num camburão
juntamente com outros quatro criminosos presos em agrante no Baixo
Augusta, centro de São Paulo. O jovem ngia fazer programas vestido de
mulher. Na verdade, sua missão na noite era roubar clientes incautos. “Eu
me montava para assaltar à noite. Era um disfarce. Não me identi cava
como travesti porque de dia me vestia com roupas de cafuçu. Gosto do
artigo masculino”, frisou. Montado, Duda tinha cabelos compridos,
ondulados, repicados e xados com spray. Ele debutou no xilindró com
gurino de festa. Vestia short jeans curtíssimo, camiseta preta colada,
brincos de argola dourada. Nos pés, um par de sapatos de salto emprestava a
ele uma altura de respeito. Duda carregava bolsa de mão toda trabalhada no
brilho. Com essa indumentária, assaltou um homem ao lado de quatro
amigas, à mão armada. No entanto, a vítima também estava armada e reagiu
com disparos de uma pistola. Os tiros não acertaram os assaltantes, mas
Duda e duas garotas de programa foram capturados.
Duda sonhava em ser ator. Ao entrar no prédio centenário do 8o DP,
começou a delirar com as artes cênicas. Imaginava-se em uma cena de lme.
Sentia no fundo da alma “ter nascido para viver numa prisão”. Lunático,
contemplava as paredes e o teto do antigo casarão de estilo eclético que
abrigava 80 presos provisórios naquela época. Conseguia ver glamour
naquele cenário pesado, hostil e deprimente. Fichado, Duda estava
algemado quando atravessou o corredor amplo de acesso aos pavilhões do
presídio.
Na cela de inclusão, foi obrigado a abandonar a maquiagem, cortar o
cabelo bem curto, aparar as unhas, retirar o esmalte e vestir roupas
masculinas. No cárcere da 8a DP, não há uniforme. Ele optou pelo básico:
bermuda e camiseta branca. Condenado por assalto à mão armada, pegou 2
anos, 9 meses e 16 dias. Mas conseguiu o benefício de recorrer da sentença
em liberdade. O Ministério Público recorreu da pena branda e a apelação foi
julgada em menos de três meses. Com isso, a sentença de Duda foi refeita e
dobrada. Os quase três anos se transformaram numa pena de seis anos em
regime fechado. Pela decisão do juiz, a sentença deveria ser executada
imediatamente. Ou seja, Duda teria de voltar para a cadeia no mesmo dia.
Apesar da sensação de ter nascido para viver numa prisão, sentida ao
adentrar na 8a DP, ele preferia viver em liberdade. E fugiu.
A Polícia foi à casa de sua mãe, dona Ana Clara, mas Duda não estava
mais lá. Havia se mudado para uma pensão no bairro da República e passou
a viver a vida como se não devesse nada à Justiça. Conseguiu emprego na
casa noturna Danger Dance Clube, tradicional reduto gay, no Centro de São
Paulo. Era o hoster, aquele funcionário encarregado de dar as boas-vindas
aos clientes e veri car se o nome deles está na lista. Na boate, conheceu seu
futuro marido, Heitor da Silva. Dos amigos e até mesmo do patrão, Duda
nunca escondeu ser foragido, mas resolveu omitir essa detalhe do
namorado, com medo da reação dele. Heitor era bem de vida e acabou
casando com Duda um ano depois de conhecê-lo. Mudaram-se para
Pindamonhangaba, interior de São Paulo, e foram morar num casarão de
quatro suítes e piscina. Nessa época, Duda descobriu que preso anônimo
feito ele com crime leve nas costas não era procurado de forma recorrente
pelas autoridades. No seu caso, a polícia foi apenas uma vez no endereço
fornecido no processo. Como ele não estava lá, cou por isso mesmo. Duda
viveu como fugitivo por oito anos. Nesse período, viajou a passeio para as
praias de Pernambuco e Bahia, abriu um salão de beleza, trabalhou muito,
frequentava festas, boates, movimentou conta bancária, obteve cartão de
crédito. Ou seja, estava longe de levar uma vida sossegada. No réveillon de
2014 para 2015, sua sorte mudou.
Duda e o marido viviam a vida intensamente. Tudo era motivo de festa.
A entrada do ano novo foi celebrada com 100 pessoas em casa. A
mãe ajudou nos preparativos. Era uma comemoração de família, mas Duda
convidou apenas dois dos seus três irmãos. Ailton Júnior, o caçula, não era
bem-vindo. Duda achava-o invejoso e recalcado. Certa vez, sorrateiramente,
Júnior chegou a dar em cima do marido de Duda, causando um problema
doméstico. Heitor resolveu contar com detalhes a investida do cunhado, mas
houve quem duvidasse da história. Ainda nos preparativos, Duda teve uma
conversa séria com a mãe:
— Mãe, não quero que o Júnior venha.
— Meu lho, é ano novo. Deixe as desavenças no passado.
— Ele tem energia ruim. Não quero começar o ano com ele aqui em
casa.
— Por favor, Duda. Deixa ele vir. Ainda estamos no espírito natalino.
Faça isso por mim.
Mãe e lho se abraçaram e Júnior foi liberado para o réveillon. No dia 31,
todo o mundo começou a beber pela manhã. À tarde, boa parte dos
familiares já estava embriagada. Heitor pedia para Duda conter a bebedeira,
muito embora ele também tomasse intensamente espumante e vodca. O som
rolava nas alturas e Júnior fazia uma mistura explosiva: alternava cerveja,
vodca e fumava pasta de crack, além de engolir pílulas de ecstasy. À noite,
ele deixou seu copo de bebida cair no chão. Bêbado e possuído pelas drogas,
Júnior começou a causar:
— Quem derrubou a minha bebida?
— Você mesmo, lho – disse a mãe, juntando os cacos de vidro.
— Limpa esse chão direito, sua vaca leiteira!
— Para com isso, Júnior. Olha os convidados.
— Que se fodam os convidados! – berrou o jovem.
Júnior continuou xingando a mãe e as pessoas em volta com todo tipo de
palavrão. Duda e o marido levaram o parente inconveniente para o quarto,
na ilusão de que ele dormisse. Preocupada, Ana Clara foi cuidar do lho.
Júnior estava ainda mais violento. Numa discussão com a mãe, sentou-lhe
uma bofetada tão forte que arremessou a senhora ao chão. Duda e alguns
convidados presenciaram a cena e tentaram conter o Júnior. No entanto, o
rapaz conseguiu se desvencilhar. Ora se debatia no chão descontrolado, ora
esmurrava quem se aproximasse. No auge de uma luta corporal, Júnior foi
jogado de encontro ao guarda-roupa. O puxador metálico e pontiagudo da
porta central cortou o seu supercílio, jorrando sangue para todos os lados,
deixando uma mancha vermelha na sua roupa branca.
Ana Clara, mesmo com a marca da bofetada em seu rosto, tentou
socorrer o lho. Ele a empurrou mais uma vez e saiu às pressas pela janela.
Desapareceu pelas ruas do bairro. De certa forma, a saída de Júnior trouxe
paz ao ambiente. Como ainda não havia dado meia-noite, Heitor e Duda
resolveram continuar com a festa. A confusão logo foi esquecida. A família
de Duda e seus convidados soltaram fogos de artifício no quintal e
brindaram a virada do ano dançando axé music. Por volta da 1h da manhã, a
campainha da casa tocou. Era a polícia, certamente chamada pelos vizinhos.
A luz vermelha do rotolight da viatura varava o vidro da janela da sala,
estourando na parede branca como se fosse um pisca-pisca natalino. Ana
Clara diminuiu o volume do som e recepcionou os agentes na calçada, do
lado de fora:
— Há uma denúncia de que houve briga aqui – introduziu calmamente
um policial militar.
— Ah! É verdade, seu guarda. Teve sim. Mas era discussão de família e
está tudo resolvido – justi cou ela, bem tranquila.
— Podemos entrar para olhar?
— Claro. Entrem!
Três guardas da Polícia Militar passaram pelo portão, caminharam por
uma calçada de pedras redondas e pararam no meio do caminho, antes de
chegar até a porta da sala, que estava fechada. Foragido, Duda cou
misturado entre os convidados com as pernas bambas. Fazia tempo que não
se deparava com os homens da lei. Da área externa da casa, os policiais
pediram que não deixassem o som da festa com volume muito alto e
sugeriram desligar os equipamentos antes das 5h da manhã. Os agentes
decidiram dar meia-volta e sair. No portão, se depararam com Júnior, que
chegou da rua de surpresa. Ele estava todo de branco, sujo de sangue e lama
e com o rosto ferido. Com uma das mãos, apertava o supercílio para tentar
conter a hemorragia.
— Boa noite, policiais!
— O que houve com o seu rosto? – perguntou um dos PMs.
— Meu irmão Duda tentou me matar.
Ana Clara quis esclarecer, assumindo a culpa pelo ferimento:
— Não! Nada disso. O Júnior é meu lho. Estava agitado e tentei contê-
lo. Aí ele bateu com a cabeça no guarda-roupa. [...] Entra, meu lho. Vamos
fazer um curativo nesse corte.
Júnior não arredou pé e disse em tom enfático, meio alterado:
— Não é verdade! Minha mãe mente para proteger o meu irmão. Foi o
Duda quem tentou me matar. Ele é foragido da Justiça há muito tempo. É
condenado por assalto à mão armada. Entrem lá e peguem ele.
Ao ser denunciado pelo irmão, Duda começou a tremer. Os policiais
pediram sua carteira de identidade. Duda subiu as escadas calmamente
dizendo que ia buscar o documento, mas não voltou. Do quarto, desceu pela
janela para tentar ganhar o quintal, mas escorregou embriagado. Os policiais
perceberam a fuga e saíram atrás dele. O foragido pulava cercas e muros
tentando alcançar a mata. Combalido pelo álcool, caiu numa trilha e foi
apanhado, algemado e levado novamente para a cadeia. Duda foi parar em
Tremembé, onde começou a cumprir pena. Por carta, Heitor rompeu o
relacionamento.
No Presídio dos Famosos, Duda deu entrada primeiramente na cela de
inclusão, onde viveu uma das experiências mais traumáticas da vida. O
cubículo, onde teve de passar 30 dias isolado para adaptação, cava em
frente à cela de Francisco das Chagas, um senhor de 60 anos preso por ter
matado a mulher com uma única facada no pescoço, a pedido da própria
vítima. Ela estava em estado terminal por causa de um câncer que começou
no peritônio e se espalhara por todo o corpo. Chagas havia contraído
dívidas para tentar salvar a mulher com tratamentos caros dentro e fora do
país. O casal havia vendido o carro, um terreno e até a casa onde moravam
na Mooca para honrar empréstimos bancários. Segundo contou, o
combinado com a esposa era matá-la e se suicidar logo em seguida para se
encontrar com ela no paraíso. O homicida foi preso pelos enfermeiros logo
depois de matar a mulher e levado a uma delegacia. Estava aguardando
julgamento em Tremembé por ser policial aposentado. Na cadeia há dois
meses, Chagas pensava noite e dia em métodos para dar cabo da própria
vida. Já havia tentado se enforcar com a calça cáqui do uniforme prisional,
mas foi socorrido a tempo por carcereiros. Em outro ensaio suicida, passou
a bater insistentemente a cabeça contra a parede até cair desacordado. Era
impossível Duda não assistir às cenas de horror, pois de onde estava tinha
visão panorâmica da cela do colega. Essa proximidade fez os agentes
pedirem um favor a Duda: vigiá-lo e avisar com gritos caso Chagas zesse
algum movimento suspeito. Para o socorro chegar mais rápido, os agentes
resolveram deixar a cela de Chagas destrancada.
Nos dois primeiros dias, Chagas não tentou nada. Duda começou a
interagir com o colega. O senhor contava sobre o combinado com a mulher.
“É horrível a sensação de fazer um acordo com a pessoa que você ama e não
poder cumprir. Eu tenho o direito de fazer o que bem entender com a minha
vida”, reclamava. Duda falava a Chagas sobre a possibilidade de começar a
sua jornada do zero, pois era muito novo para morrer. Também tentava
incutir na cabeça dele que não havia nenhuma garantia de que ele
encontraria a sua esposa, pois suicidas “não entram no céu”. Uma semana
depois, Chagas parecia mais calmo. Sua cela voltou a ser trancada, seguindo
as regras da penitenciária. No cubículo dele havia apenas colchão, sacolas
plásticas de supermercado, sabonete, escova de dentes, pasta e rolo de papel
higiênico. Para não fazer das roupas instrumento de morte, Chagas vestia
apenas cueca e camiseta.
No momento mais tranquilo do dia, por volta das 14h, quando os presos
do regime fechado fazem a digestão cochilando, Chagas começou uma
tarefa artesanal, acompanhada atentamente por Duda. Lentamente, ele
começou a puxar pequenos pedaços da esponja do colchão até formar um
montinho meio alto no chão. Misturou creme dental e sabonete derretido
com água. Acrescentou papel higiênico picado até formar uma espécie de
argamassa de quase meio quilo. Antes de o composto enrijecer, ele o dividiu
em três partes e passou a usar as mãos para fazer daquilo pequenas bolas,
como se fossem massa de modelar. Duda não sabia como tudo ia terminar.
Levantou-se para acompanhar mais de perto os desdobramentos daquela
cena de suspense.
Numa fração de segundo, Chagas en ou uma bola menor da mistura em
cada narina e usou o cabo da escova feito estaca para socar o material fossa
nasal adentro com uma força brutal. À medida que a massa era injetada, o
rosto de Chagas ia se deformando. Ao ver aquela cena arrepiante, Duda
começou a gritar de pavor. Chagas estava num princípio de as xia quando
encontrou coragem para en ar o bolo maior da massa no fundo da garganta
para obstruir de nitivamente a respiração. A pele do seu rosto estava com
coloração azulada e escurecia mais a cada segundo em virtude de
oxigenação insu ciente do sangue. Suas pupilas dilataram rapidamente e os
olhos pareciam querer saltar fora quando ele conseguiu en ar um saco
plástico na cabeça. Duda cou mais agitado, sacudia a grade de ferro, pulava
e gritava ainda mais alto por socorro. Queria poder sair correndo dali e se
livrar daquela cena horripilante. Para impedir a retirada inconsciente dos
obstáculos das vias respiratórias, Chagas usou a camiseta e imobilizou as
suas mãos para trás. Fez da peça de roupa uma corda trançada em forma de
oito e armou um nó cego apertando os pulsos de forma irreversível. Tudo
aconteceu muito rápido. Em seguida, ele caiu no chão, debatendo-se e
contorcendo o corpo como se levasse um choque. Pela força que fazia para
tentar tirar os braços do nó, passava a impressão de ter mudado de ideia.
Tarde demais. Os carcereiros chegaram para socorrê-lo três minutos depois
de Chagas iniciar o processo de as xia. No entanto, impactados, não
conseguiram acertar a mira da chave no buraco da fechadura. Quando
nalmente entraram na cela, a oclusão das vias respiratórias havia impedido
a oxigenação do organismo por tempo su ciente para matá-lo. Ao ver o
cadáver, Duda, estarrecido, desmaiou.
Mesmo depois de levarem o corpo de Chagas, Duda continuava
atormentado. A cela do suicida cou vazia por uma semana. Nela havia um
par descartado de sapatos e restos do material usado para ele se matar
espalhados pelo chão de cimento corrido, além da escova de dentes. Os
peritos demoraram para inspecionar e fotografar o ambiente para compor o
laudo pericial da morte do detento. Apesar de Chagas não estar mais no
palco daquela tragédia, as cenas fortes insistiam em car impressas na
memória de Duda. Quando fechava os olhos para dormir, ele via Chagas
ainda vivo, debatendo-se com os olhos arregalados e o rosto roxo e inchado.
Duda só se livrou do trauma quando saiu de lá diretamente para o galpão do
semiaberto, já que a sua pena de 6 anos era considerada baixa perto da
condenação da clientela de Tremembé.
No semiaberto, Duda chamou logo a atenção de Marco Terremoto.
Certo dia, ele estava com outros detentos no banheiro coletivo quando o
assassino de aluguel entrou. Com medo, os presos evacuaram do ambiente
imediatamente, exceto Duda. Nu, Terremoto puxou conversa:
— Boa tarde, meu nome é Marco – cortejou.
É muito comum indivíduos heterossexuais se relacionarem com gays
dentro dos presídios sem abrirem mão da orientação sexual. Segundo o
cientista social e antropólogo canadense Erving Goffman (1922-1982), autor
de um respeitado estudo sobre interação simbólica, o comportamento do ser
humano é situacional, inclusive no sexo. De acordo com essa tese, o sujeito
muda provisoriamente a orientação sexual em situações de con namento
por ausência de pessoas do sexo oposto nas proximidades. O fenômeno seria
frequente em quartéis, navios da Marinha, concentrações esportivas,
presídios, conventos e internatos. Ao deixar a reclusão, ou seja, ao mudar
novamente o contexto, mudariam também as margens de agenciamento. Na
prática, isso quer dizer que a pessoa volta a se relacionar com o sexo oposto.
Essa tese valeria para homens e mulheres. O professor do Departamento de
Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB), Alexander Hochdorn,
ajuda a entender essa lógica. “A sexualidade é um aspecto relevante na esfera
experiencial humana. A penitenciária é um contexto fortemente
institucionalizado, o qual prevê a presença de um só sexo para cada
condição de detenção. Se o contexto prevê a presença de um sexo só, as
interações – qualquer tipo de interação – só podem ocorrer entre aqueles
mesmos atores sociais.”
Apesar de ser corriqueiro presos do mesmo sexo se relacionarem na
cadeia, a abordagem inicial é delicada e cheia de regras. Quando o par a ser
formado é composto por um gay assumido e outro autoidenti cado como
heterossexual, por exemplo, a iniciativa nunca deve partir do homossexual.
Até porque qualquer movimento errado descamba para a violência e pode
acabar em morte. No banheiro coletivo de Tremembé, foi Terremoto quem
abordou Duda. Sendo assim, o sinal estava verde para o jovem:
— Boa tarde! Como vai você? – disse Duda, enquanto se ensaboava.
— Queria um favor. É algo meio esquisito, mas você vai entender. Eu
sempre gostei de mulheres, mas acho que posso ter “virado gay” na cadeia.
Então queria uma ajuda sua para tirar essa dúvida.
— O que posso fazer? – quis saber Duda.
— Quero que você me chupe para ver se co excitado. Se car, sou gay
ou bi, sei lá. Caso contrário, terei certeza de que sou hétero – argumentou
Terremoto.
Com uma queda por homens mais velhos, o novato fez sexo oral no
parceiro. Em alguns minutos, o matador de aluguel assumiu a condição
homossexual dentro da prisão. Duda morria de medo de assassinos.
Terremoto con denciou para Cristian a experiência “deliciosa” ocorrida no
banheiro e ouviu do amigo todo tipo de chacota usada para ofender quem
sente atração pelo mesmo sexo. Brincalhão, Terremoto não dava a menor
bola para o escárnio. No dia seguinte, Duda foi ao banheiro e Terremoto foi
atrás. Lá dentro, pediu ao novato mais um sexo oral para tirar a prova dos
noves:
— Cara, ainda tenho dúvida, saca? Poderia fazer mais um boquete? –
pediu o assassino.
— Nem pensar! Você já sabe que é maricona. Agora assume essa
condição e se joga na vida – aconselhou.
Nas primeiras semanas, Duda estreitou laços com Gil Rugai, de 30 anos,
de quem cou amigo e con dente. Estudante e ex-seminarista, Gil foi
condenado a 33 anos e 9 meses de prisão por ter assassinato com nove tiros
seu pai, Luiz Carlos Rugai, e sua madrasta, Alessandra de Fátima Troitino. O
crime ocorreu em 28 de março de 2004, dentro da residência do casal, no
bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo. Gil Rugai era um jovem
esquisito, nerd, inteligente, articulado, de fala mansa e gestos delicados.
“Antes da prisão, ele era um jovem taciturno. Vestia-se quase sempre de
terno e um sobretudo preto. Nunca ia a baladas ou barzinhos, tinha
pouquíssimos amigos e orgulhava-se do seu celibato voluntário”, descreveu o
jornalista João Batista Jr. em um per l do assassino publicado na revista
Piauí, em abril de 2022. Em setembro de 2008, quando Gil Rugai pisou em
Tremembé pela primeira vez, era ex-seminarista. Interessou-se por aquilo
que já conhecia e foi trabalhar com a Pastoral Carcerária. Suas atribuições
eram rezar, administrar a palavra de Deus e dar conselhos e conforto aos
colegas por meio da Bíblia. Como não havia a presença regular de um padre
rezando a missa na prisão, Rugai mandou uma carta à Diocese de Taubaté,
que atende a região, e se ofereceu para realizar atividades litúrgicas em
Tremembé. O pedido foi acatado. Um padre passou a rezar missas semanais.
Rugai tornou-se seu acólito, termo eclesiástico que designa o sacerdote que
auxilia os atos litúrgicos.
Gil Rugai tinha o hábito de convidar Duda para tomar chá em xícara de
acrílico na área comum da cadeia, sempre às 17h. O ex-seminarista segurava
a alça da xícara com os dedos indicador e polegar, enquanto mantinha os
demais dedos bem esticados, apontados para a frente. Num desses chás, a
sós com Duda, Gil Rugai teria aproveitado para abrir o coração.
Emocionado, jurou por Deus não ter disparado nenhum dos tiros que
mataram o pai e a madrasta, apesar de ter sido condenado pelo Tribunal do
Júri nove anos depois. Em tom de con ssão, contou ao amigo saber a
identidade do verdadeiro assassino, mas estava disposto a pagar pelo ato
desse criminoso secreto por causa de um segredo de família. As
investigações na época do duplo homicídio concluíram, de fato, haver outra
pessoa na cena do crime. Em todas as fases da investigação e até o
julgamento, Gil Rugai sempre negou a autoria do duplo homicídio, mas
pesou contra um desfalque de 100 mil reais dado por ele na empresa do pai.
Um vigia da rua chegou a con rmar em depoimento tê-lo visto entrando na
casa no dia do crime juntamente com um rapaz, mas essa pessoa nunca foi
identi cada. Como não apontou quem era a sua companhia, Gil Rugai
pagou pelo duplo homicídio sozinho. No chá das cinco, esse tema era
recorrente:
— Gil, por que você não pede para reabrir o caso e entrega essa pessoa?
– perguntou Duda.
— Jamais! Já cumpri mais da metade da minha pena. Pre ro arcar
sozinho.
Poliglota, Gil Rugai falava uentemente inglês, espanhol e italiano e dava
aula para os demais presos. Ensinava também Redação e Matemática aos
candidatos à prova do Enem. Cuidava da biblioteca. Mas o preso não era
uma unanimidade na casa penal. Gil Rugai era considerado presunçoso e
“porco” por alguns presos. Quando ele completava cinco dias sem tomar
banho, Duda tentava levá-lo à força ao chuveiro. O ex-seminarista resistia,
alegando ter aversão a água. Para se livrar da pressão, chegava a entrar no
box, puxava a cortina plástica e ligava o chuveiro. Cinco minutos depois,
saía de lá seco. Duda e Gil Rugai começavam a discutir porque ele não havia
cado sob a ducha. O “porquinho” se defendia dizendo não ter se adaptado
ao banho frio de Tremembé. Depois de muita insistência dos colegas e
reclamações na diretoria, Gil Rugai passou a tomar um banho a cada três
dias.
Na primeira visita da mãe, Duda ganhou xícaras de porcela e palitos de
chocolate. Os chás do ex-seminarista caram mais so sticados e divertidos.
Eles pareciam duas comadres tricotando sobre a vida dos demais presos. Gil
dizia achar Daniel Cravinhos bonito, com quem disputava partidas de
xadrez desde que estiveram na mesma cela do regime fechado. Duda contou
do sexo oral em Terremoto e dizia não achar atraente nenhum daqueles
criminosos.
Três meses antes da Páscoa, Gil Rugai foi encarregado pela direção do
presídio de escrever o roteiro e assinar a direção do espetáculo teatral A
Paixão de Cristo, previsto para ser encenado pelos presos de Tremembé na
Semana Santa. Havia uma expectativa muito grande nessa apresentação,
porque Sueli Armani, a temida juíza-corregedora dos presídios, iria assistir,
assim como todo o staff do complexo penitenciário e mais os parentes dos
presos. Na primeira reunião para escalar o elenco, o médico Roger
Abdelmassih cou com o papel de José. Yuri, um estuprador de crianças,
encenou Jesus, o protagonista. Coube a Alexandre Nardoni, assassino da
lha Isabella Nardoni, interpretar Pôncio Pilatos. Os demais presos
dividiram os apóstolos entre si. Ali, ninguém estava interessado em artes
cênicas. Todos queriam mesmo era remir dias na pena. Para cada três dias
de ensaio, a Justiça abatia um dia na condenação. Com isso, os presos
passaram a ensaiar todos os dias, durante três meses.

* * *
Quando os irmãos Cravinhos estavam no semiaberto de Tremembé, não
havia superlotação na penitenciária. Pelo contrário. No espaço onde Daniel e
Cristian dormiam havia dois beliches, mas só duas camas estavam ocupadas.
Duda e Gil Rugai cavam ao lado, em outro local com dois beliches,
dividindo o dormitório com Juliano Castro de Souza, de 32 anos na época.
No pátio da penitenciária, Duda foi apresentado a Daniel por Gil Rugai. O
novato reclamou da falta de armário e relatou a audácia de outro preso, que
teve a pachorra de cobrar 80 reais para ceder o móvel no dormitório de
Duda. Daniel aconselhou o amigo a não pagar propina e ainda lhe ofereceu
uma porta no armário do seu alojamento.
Daniel estava trabalhando na marcenaria de Tremembé, e Cristian
operava o trator na área externa quando Duda foi até o alojamento dos
irmãos Cravinhos guardar os seus pertences no armário cedido pelo ex-
namorado de Suzane. Ao abrir a porta do móvel, levou um susto com o
tamanho da bagunça. Resolveu arrumar todo o cômodo e ainda fez uma
faxina no local. Quando os irmãos Cravinhos se depararam com o
alojamento totalmente limpo, convidaram Duda para se instalar em uma das
camas desocupadas.
O colega agradeceu a oferta, mas recusou o convite. “Eles eram muito
legais, mas como tinham matado duas pessoas enquanto elas dormiam,
quei com medo”, justi cou Duda em 2018. No dia seguinte, o novato
conseguiu um emprego de auxiliar em uma das salas da direção da
penitenciária. No nal do expediente, voltou para o alojamento e percebeu
que suas coisas não estavam mais lá. Daniel e Cristian haviam levado tudo
para o espaço deles.
— A partir de agora, você vai dormir aqui conosco – anunciou Daniel.
— Só se o Juliano e o Gil vierem junto! – ponderou o rapaz.
— O Juliano tudo bem. O Gil é muito estranho. Deixa esse projeto de
padre pra lá – vetou Cristian.
Duda fazia questão de levar os colegas de beliche à nova moradia para se
sentir seguro ao lado de dois assassinos. Mas logo passou a ter encanto pelos
irmãos Cravinhos. A química entre os quatro presos aconteceu rapidamente.
O primeiro a falar da vida foi Juliano. Em 2008, era estudante universitário
de 24 anos e tão bonito quanto um modelo de revista. Na época, namorava a
colega de classe Camilla, de 22 anos, modelo pro ssional desde os 17. Para
capitalizar a beleza, Juliano resolveu fazer programas. Com vergonha da
família, da namorada e dos amigos, manteve a atividade sob o mais absoluto
sigilo. Fez um anúncio na Internet, postou fotos ocultando o rosto e
choveram clientes. Na labuta clandestina, o modelo conheceu o advogado
Aurélio Pinheiro Dias, de 65 anos. Segundo vizinhos, o senhor mantinha o
hábito de receber rapazes em sua casa na calada da noite. No primeiro
encontro, Aurélio fez sexo oral em Juliano e pagou 200 reais em dinheiro
vivo. Na segunda vez, o cachê subiu para 300, mas o atendimento foi
completo. Após dezenas de encontros, Aurélio se apaixonou pelo garoto de
programa e passou a encontrá-lo, em média, três vezes por semana. Em um
mês, Juliano conseguia arrancar do advogado 3.600 reais prestando serviços
sexuais. Cego de amor, além de dinheiro, Aurélio passou a dar presentes
caros ao estudante, como perfumes, relógio, roupas e aparelhos celulares. Ele
chegou a ganhar o perfume de luxo Van Cleef & Arpels Pour Homme,
comprado na época por 2.700 reais.
Certa vez, Juliano estava na biblioteca da faculdade estudando com dois
amigos. Levantou-se para ir ao banheiro e logo em seguida Camilla se
aproximou. Resolveu sentar-se à mesa para esperar pelo namorado. De
repente, uma vibração no celular de Juliano anunciou a chegada de uma
mensagem. Mesmo com a tela bloqueada, Camilla conseguiu ler um texto
enviado por Aurélio, mas recebido no celular com o nome de Flávia: “O meu
maior dilema é te amar e não te ter todos os dias. Quando vamos nos ver
novamente?”. Juliano voltou e Camilla perguntou em tom de indignação
quem era a tal Flávia, a autora daquela mensagem de amor. Ele respondeu se
tratar de uma antiga namorada inconveniente por não aceitar o m do
relacionamento. Camilla acreditou, deu um beijo no bem-amado e os dois
foram lanchar. Discretamente, Juliano respondeu à mensagem do advogado:
“Hoje à noite vamos matar toda essa saudade, seu velho tarado”. O estudante
levou Camilla em casa e seguiu para encontrar Aurélio. Antes de transarem,
o estudante narrou ao advogado o sufoco enfrentado para esconder o caso
homoafetivo da namorada. Por uma questão de cautela, cou combinado
que só marcariam programas por e-mail. Aurélio já demonstrava
impaciência com a condição de “amante” à qual estava submetido. Deixou
claro não aceitar mais viver uma relação comercial com Juliano. Houve uma
discussão em meio a uma bebedeira:
— Então a nossa relação é de consumo? É isso? – questionou Aurélio.
— Se quiser, será assim. Se não quiser, poremos um ponto nal agora!
— E o investimento nanceiro feito em você?
— Considere fundo perdido!
— Sou o quê? Um caixa eletrônico? Você me conquista com a sua
juventude, saca o meu dinheiro e me descarta?
— Vamos terminar?! – questionou Juliano em forma de ultimato.
— Eu te amo! – revelou o advogado, aceitando as condições impostas
pelo acompanhante.
Após o embate entre o gigolô e seu cliente, os dois transaram. Bêbado,
Juliano dormiu ao lado de Aurélio e acordou atrasado para a aula. O
advogado havia preparado um café da manhã especial para o jovem, com
frutas, sucos, ovos mexidos e pão, mas não houve tempo para a refeição.
Apressado, Juliano abriu a carteira de Aurélio, pegou quatro notas de 100
reais e correu para a universidade.
Sem qualquer domínio das suas emoções – e consequentemente das suas
ações –, Aurélio passou o dia inteiro enviando mensagens a Juliano. Sem
respostas, o velho decidiu procurar pelo jovem na faculdade. Ao vê-lo na
lanchonete com Camilla, aproximou-se. O estudante entrou em pânico
quando viu o idoso em seu ambiente social, mas conseguiu disfarçar. Aurélio
foi discreto. Cumprimentou o casal com um singelo “oi” e pediu um misto-
quente com uma Coca-Cola no balcão, deixando o local logo em seguida.
Camilla cou curiosa:
— Quem é esse senhor?
— Acho que é professor-visitante – desconversou o estudante.
Apavorado com aquela visita inesperada, Juliano resolveu tirar satisfação
com Aurélio. À noite, os dois tiveram uma conversa tensa:
— Como você tem coragem de ir à universidade? Você está louco? –
irritou-se Juliano.
— Eu não cheguei aos 65 anos para ser humilhado por um michê de
merda. Não vou mais me submeter a esse vexame! A fonte de dinheiro fácil
do vovô secou! – anunciou Aurélio.
— Dinheiro fácil? Você não imagina o sacrifício que foi transar com
você todos esses meses. [...] Eu tomava estimulante sexual, fechava os olhos
e ngia que sentia prazer para você acreditar que era loucamente desejado.
Fiz muito sacrifício para receber essa sua mixaria!
— Saia da minha casa agora, seu lixo!
Juliano já estava passando pela porta da sala, quando Aurélio suplicou,
bêbado, por uma transa de despedida ao preço de 500 reais. O estudante se
negou e o advogado lançou mão de uma ameaça:
— Vou contar à sua namorada e à sua família quem realmente você é!
Mostrarei ao mundo o seu anúncio na Internet, as nossas mensagens! Tudo!
— Assim você não me deixa alternativa. Mil reais de cachê pela saideira.
Topa?
O advogado foi para a suíte preparar a cama. Juliano seguiu para a
cozinha com a desculpa de pegar outra garrafa de vinho. Abriu a gaveta do
armário e retirou uma faca asiática conhecida como Santoku, ideal para
cortar carnes e legumes. A lâmina de aço inoxidável e a ponta a adíssima
proporcionam cortes com precisão. O cabo em brox com três rebites
confere aderência à mão até quando está molhada.
Furtivamente, Juliano pôs a arma branca sob o travesseiro. Os dois
beberam vinho e investiram bastante nas preliminares. Aurélio se despiu
lentamente enquanto recebia beijos carinhosos do michê. Ambos já estavam
nus na cama quando o jovem pediu para o cliente virar de costas com o
propósito de beijá-las. Aurélio obedeceu. Juliano, então, sentou-se sobre a
lombar do senhor, pegou a faca sorrateiramente e mirou na nuca da vítima,
segurando o cabo rmemente com as duas mãos.
Primeiro triscou a ponta a ada sobre a pele enrugada de Aurélio. Antes
mesmo de o advogado reclamar da espetada, Juliano empregou toda a sua
força juvenil e afundou a lâmina inteiramente no pescoço de Aurélio por
duas vezes. A primeira perfuração destruiu a vértebra cervical de número
um, conhecida como atlas. O segundo corte atravessou o pescoço de um
lado ao outro. Aurélio morreu instantaneamente.
Após o assassinato, Juliano pegou uma mala e pôs dentro dela todos os
objetos de valor encontrados na residência da vítima. Foi para a casa dos
pais todo sujo de sangue. A polícia desvendou o mistério rapidamente,
lendo as mensagens no celular do advogado. Acuado, o estudante confessou
tudo. Camilla, a família e toda a faculdade descobriram numa tacada só que
Juliano era gay, garoto de programa, ladrão e assassino. Condenado, pegou
26 anos de cadeia.
Quando Juliano contou no alojamento de Tremembé essa história para
Cristian, Daniel e Duda, houve comoção. O latrocida comparou o seu crime
com o cometido pelos irmãos Cravinhos e defendeu uma tese tão curiosa
quanto singular:
— Sabe qual foi o nosso maior erro? Não foi assassinar! Foi furtar
bobagens após matar as vítimas. Com esses roubos seguidos de morte, o
nosso crime deixou de ser homicídio e passou a ser visto como latrocínio.
Isso fez as nossas penas triplicarem por causa de agravantes. Se nós
tivéssemos só matado e saído sem nada, já estaríamos livres! – teorizou o
presidiário.
Apesar de estapafúrdio, o comentário de Juliano faz sentido. Pelo Código
Penal Brasileiro, o acusado de homicídio simples pode pegar entre 6 e 20
anos de reclusão, enquanto o latrocida sai do tribunal com uma pena
variada entre 20 e 30 anos. Quando o homicídio vem com agravantes, a
sentença varia entre 12 e 30 anos. No entanto, os autores de homicídios são
submetidos ao Tribunal do Júri, enquanto os latrocidas geralmente são
julgados apenas por um juiz. Essa distorção ocorre porque o Código Penal
Brasileiro vê o homicídio como um crime contra a vida, enquanto o
latrocínio é considerado crime contra o patrimônio.
Em Tremembé, Juliano passou por uma situação pitoresca. Para tentar
aliviar a culpa de ter matado Aurélio, o jovem começou a frequentar a capela
da penitenciária em busca de salvação. Orientado por Gil Rugai, ele fez uma
promessa para São Dimas, o padroeiro dos presos arrependidos. Na
tentativa de alcançar o perdão divino, Juliano passou a fazer trabalho
voluntário dentro da cadeia. Durante três meses, pronti cou-se a empurrar a
cadeira de rodas do médico Roger Abdelmassih da cela para o banho de sol,
do banho de sol para a cela e da cela até o parlatório, quando havia visita de
advogados. Juliano não ganhava um tostão pelo sacrifício. Quando
Abdelmassih começou a ngir estar doente para enganar a Justiça e ganhar o
direito de cumprir a pena em casa, Juliano continuou o trabalho benevolente
sem saber dos planos sórdidos do médico-monstro. Ao conduzir o doutor, o
jovem ainda ouvia em público todo tipo de grosseria do estuprador,
principalmente quando a cadeira descia bruscamente um degrau ou
esbarrava nas portas de ferro do presídio. No entanto, o jovem relacionava as
ofensas do médico a um tipo de provação, um teste para a sua fé.
Certo dia, Juliano deu um banho quente em Abdelmassih e o acomodou
na cama. Mas o advogado do médico o chamou no parlatório por volta das
16h. O detento promesseiro levou o cadeirante até lá, percorrendo 300
metros de calçadas, rampas e pequenas escadas.
Na sala especial, Abdelmassih recebeu uma notícia indigesta. A Justiça
havia lhe negado o privilégio da prisão domiciliar. Abdelmassih cou tão
enfurecido com o comunicado que abandonou a farsa, levantando-se da
cadeira de rodas. O médico seguiu caminhando a passos largos e sadios
pelos corredores da penitenciária rumo à cela, atravessando portões e
esbravejando palavrões ao vento. Sem o menor pudor, ele próprio revelou a
farsa de esconder há meses a capacidade de estar de pé. Juliano cou
estático, segurando a cadeira de rodas vazia, pasmo com a descoberta
surpreendente. Ficou revoltado por estar sendo misericordioso à toa. Nesse
dia, Juliano prometeu a São Dimas engasgar Abdelmassih na primeira
oportunidade. Mas essa graça nunca foi alcançada. O médico estuprador
juntou uma série de laudos falsos alegando sofrer de insu ciência cardíaca
crônica e entregou à Justiça. Os laudos foram assinados pelo colega de cela
Carlos Sussumo, médico preso por extorsão e associação criminosa. Sem
fazer nenhuma promessa, em junho de 2017 o estuprador recebeu o
privilégio de cumprir a pena no conforto do lar, graças à caneta milagrosa
da juíza Sueli Zeraik de Oliveira Armani.
Em uma audiência com a magistrada, em agosto de 2019, Sussumo
confessou ter assinado laudos “que não condiziam com a verdade” para
ajudar Abdelmassih a forjar doenças. Sussumo atuava como médico no
Presídio dos Famosos, o que facilitou a assinatura dos laudos falsos. A alegria
de Abdelmassih durou 1.110 dias. Em 13 de agosto de 2019, a juíza Andrea
Barreira Brandão cancelou o privilégio do estuprador e o mandou de volta
para a cadeia.

* * *

No semiaberto de Tremembé não há grades nem celas. Os presos cam


em alojamentos distribuídos em imensos galpões. O compartimento usado
pelos irmãos Cravinhos, Duda e Juliano era chamado de “beco”. Nos nais
de semana à noite, Marco Terremoto batia ponto por lá. Àquela altura, era
pública a sua condição de “maricona”, como são chamados na prisão os
detentos com mulher e lhos do lado de fora, mas que acabam vivendo
relacionamento gay do lado de dentro. O assassino de aluguel começou a
namorar Tieta do Agreste, de 19 anos, um cabeleireiro que matou a mãe
depois de ser expulso por ela a pauladas da cidade de Borá (SP), onde o
crime ocorreu. A rejeição foi porque a família, evangélica, havia descoberto
a orientação sexual do jovem. Tieta era um preso magro e espalhafatoso,
com corpo coberto por tatuagens. No “beco”, ninguém suportava a afetação
do parceiro de Terremoto. Mas todos o toleravam porque ele fazia na cadeia
uma maria-louca (aguardente) como ninguém.
Num m de semana agitado, os irmãos Cravinhos zeram uma festa no
“beco”. Tieta levou salgados, uma cachaça altamente forte e doces. Cristian
pôs música num aparelho de som e cerca de dez presos foram convidados
para a bagunça. Beberam, conversaram, contaram piadas e dançaram até
altas horas. Bêbado, Tieta foi o primeiro a deixar o “beco”. Por volta das duas
da madrugada, só restavam na balada os irmãos Cravinhos, Duda, Juliano e
Terremoto. Um carcereiro pediu que reduzissem o volume do som. Cristian
então pôs uma música lenta bem baixinho. Daniel “desmaiou” na cama de
baixo do beliche, protegido por uma cortina de lençol chamada pelos
detentos de “cabana”. Os quatro restantes, alcoolizados, resolveram dançar
de rostinho colado. Cristian rodopiava com Duda e Terremoto com Juliano.
Uma hora depois, alegando cansaço, Duda subiu no beliche e se acomodou
na cama de cima.
— Posso me deitar aí com você? – pediu Cristian.
Os dois caram na mesma cama numa posição denominada pelos presos
de “valete”, quando um está com a cabeça virada para os pés do outro.
Embriagados, Terremoto e Juliano “dormiram na praia”, de nição para
quem se entrega ao sono no chão da cela. Cristian e Duda caram
conversando até as luzes do pavilhão se apagarem. Cristian falava da vida,
contava como se sentia solitário na cadeia, comentou sobre o
relacionamento turbulento com Sherminne, chorou pela lha e divagava
sobre o crime. “Olho para trás e sinto vergonha... O que eu z não tem
justi cativa nem conserto”, assumiu. Para o amigo, revelou ter pesadelos
todos os dias com Marísia. Duda, entediado, adormeceu com aquela
conversa enfadonha. Cristian passou a falar sozinho. O preso saiu da
posição de valete e deitou-se por trás do colega, mantendo uma certa
distância. Pelos sussurros vindos “da praia”, Cristian concluiu que Terremoto
e Juliano estavam transando sutilmente no chão do alojamento. Criou
coragem e fez um carinho de leve com a ponta dos dedos no rosto de Duda.
O novato reagiu ao afeto virando-se de frente. Cristian então deu um beijo
no colega. Os dois aproveitaram os efeitos do álcool da maria-louca e
transaram. Daniel, “apagado”, não percebeu que o seu “beco” havia se
transformado em um ninho de amor.
Tieta acordou por volta das 5h, foi até o alojamento onde o Terremoto
dormia e se deparou com a cama dele vazia e toda arrumada. Seguiu até o
“beco” e agrou o seu namorado dormindo agarrado com Juliano. Tieta
soltou um grito estridente, acordando todos os presos do semiaberto. Tentou
bater em Juliano, mas foi contido por um grupo de presos. Incontrolável, o
cabeleireiro começou a derrubar armários no chão. Como não se conteve
em seu ataque histérico, foi levado pelos agentes de segurança para um
castigo no “pote”, como é conhecida a cela solitária de Tremembé. Tieta saiu
de cena por 15 dias. Quando ele voltou, Terremoto e Juliano estavam
namorando. O casal andava de mãos dadas pelo pátio e dormia no mesmo
compartimento. Três meses depois, Juliano conseguiu uma vitória e um
benefício dignos de comemoração. Passou no vestibular para Administração
no Instituto Taubaté de Ensino Superior. A juíza Wanda Regina Gonçalves
da Cunha, da 1a Vara de Execuções Penais de Taubaté, concedeu-lhe o
direito de sair todas as noites da penitenciária para estudar no município
vizinho. Juliano estava festejando na biblioteca, quando Tieta se aproximou.
Estava em paz, segundo frisou:
— Parabéns, Juliano. Desejo muita sorte na sua vida de estudante...
— Olha, se você quiser falar sobre o Marco... Posso dizer como tudo
aconteceu.
— Esquece isso! Terremoto é coisa do passado!
— Ótimo que você superou.
— Olha, a bem da verdade, não superei. Eu bem que tentei, mas não
consegui. Mas estou tranquilo. Sabe por quê? O Terremoto vai destruir a sua
vida. Essa será a minha grande vingança. Ele te levará para o inferno! É só
uma questão de tempo. Quando esse dia chegar, estarei aqui, plena,
assistindo à sua desgraça de camarote.
As palavras ácidas de Tieta não estragaram a alegria de Juliano, que se
apaixonava cada vez mais por Terremoto. Cristian e Duda também
engataram um romance. Passaram a dormir praticamente todos os dias na
mesma cama. No início, o casal era discreto. Daniel foi o primeiro a
perceber.
O tempo passava e o namoro de Duda e Cristian cava cada vez mais
descarado. Na penitenciária de Tremembé, todas as vezes que um preso
passa de uma ala para outra, ele é obrigatoriamente revistado por um agente
de segurança penitenciária. Segundo registro de uma ocorrência feita no dia
6 de julho de 2015, um carcereiro teria apalpado Duda além do necessário
em uma inspeção de rotina. Nas palavras do preso, o funcionário meteu a
mão dentro da sua calça para ver se ele escondia uma navalha entre as
nádegas e na região entre a raiz do pênis e o ânus, conhecida como períneo
masculino. Quando soube do abuso, Cristian deu um chilique na cadeia em
defesa do namorado. Só parou o escândalo quando o agente Firmino o
interpelou:
— Cristian, contenha-se! Você está passando recibo à toa!
Como Duda já estava pleiteando o regime aberto, onde cumpriria pena
em liberdade, o casal fez um pacto de namorar por nove meses. Apaixonado,
o assassino de Marísia escrevia cartas e mais cartas ao amado em folhas de
papel cor-de-rosa e todas desenhadas com corações e ores. Na intimidade,
Cristian chamava o companheiro de Dudinha e Lua, e dele recebia o apelido
carinhoso de Pavão, em referência à sua vaidade exacerbada. Em 12 de
junho de 2016, Dia dos Namorados, Cristian escreveu uma carta romântica
de duas páginas para a sua Lua. Um trecho todo dedicado à gratidão dizia o
seguinte:
“Dudinha, obrigado por passar meses, dias, horas, minutos e segundos ao
meu lado. Estar contigo é um privilégio que Deus me proporcionou. Você é um
presente mais valioso do que todo o dinheiro do mundo. Obrigado por deixar
eu sentir o teu cheiro, o teu carinho, a tua atenção e o teu amor. Obrigado por
ser o meu sol nos dias frios e a minha brisa nos dias de calor. [...] Você
conquistou algo em minha vida que jamais pensei ser possível conquistar. Eu
sei que vou te amar por toda a minha vida! Feliz Dia dos Namorados”.
Para manter o namoro intramuros na mais plena harmonia, Duda
raramente comparecia ao pátio da penitenciária aos domingos, dia de visita.
Sherminne não podia descon ar do envolvimento de Cristian com um
homem dentro da cadeia. Num domingo de sol, a bancária chegou a
Tremembé com o tradicional “jumbo” de comidas so sticadas para o
marido. Vestida com uma minissaia, passou pela recepção. Foi atendida por
Firmino. Como sabia do envolvimento do Pavão com a Lua, o carcereiro
investiu pesado no jogo de sedução:
— De zero a dez, qual a chance de eu ganhar um beijo hoje?
— Zero! – respondeu Sherminne, rindo.
A mulher de Cristian saiu da recepção e caminhou para o pátio até ser
alcançada por Firmino. Seco, o carcereiro lançou mão de uma revelação
bombástica como última tentativa de conquistar o coração de Sherminne:
— O Cristian não te merece! Ele está namorado um detento chamado
Duda aqui dentro. Eles estão apaixonados. Em lua de mel. Você é uma otária
em ainda trazer comida para ele. (...) Eu sei que você não vai acreditar, mas
pergunta para qualquer preso lá no pátio que todos vão con rmar. O
assassino com quem você desperdiça o seu domingo é uma maricona!
Ao ouvir aquela verdade, Sherminne largou as sacolas contendo bife à
parmegiana, arroz de forno e fritas no chão. Descontrolada, correu até o
pátio. Quando viu Cristian de longe, gritou para que todos à sua volta a
ouvissem:
— Que história é essa que você namora um tal de Duda aqui dentro?
Quem é essa vagabunda?
— Se acalma, amor! Quem disse essa mentira? – quis saber Cristian.
— Não interessa quem é o mensageiro! Me aponta quem é Duda, seu
veado lho da puta!
— As pessoas aqui dentro são muito maldosas! A Dudinha, ou melhor, o
Duda, é só um amigo! – justi cou Cristian.
O pátio estava apinhado de presos e familiares em visita. Fora de si,
Sherminne saiu perguntando aos detentos e seus parentes quem era Duda.
Cristian seguia atrás tentando conter a fúria da mulher. Um supervisor pôs a
bancária para fora da cadeia e mandou Cristian de volta para o alojamento.
Sherminne entrou no carro toda descabelada e voltou para casa. Ficou três
meses sem dar as caras em Tremembé. Pelo barraco, seu namorado foi
punido com um castigo de 15 dias no “pote”.
Ao sair da solitária, Cristian estava carente de afeto. O distanciamento de
Sherminne fez os laços entre ele e Duda se fortalecerem ainda mais. O Pavão
já falava em casamento com a Lua tão logo eles saíssem da cadeia. Em uma
visita de dona Ana Clara, mãe de Duda, Cristian se declarou apaixonado. No
mesmo dia, perguntou à nova sogra, no meio do pátio da cadeia, se aquela
relação homoafetiva era abençoada. Ana Clara não só louvou o casal, como
também declarou apoio incondicional aos pombinhos. No entanto, a sós
com o lho, a senhora disse uma frase marcante: “Assim como existe amor
de verão, tem também amor de cadeia. Não voe muito alto, Duda, porque a
ventania lá em cima é muito forte”.
Por um momento, a relação de Cristian e Duda esfriou. O Pavão sentia
falta de uma gura feminina. Sugeriu ao namorado que providenciasse uma
calcinha para apimentar o sexo. Duda recorreu à mãe durante uma visita.
No pátio, ordenou:
— Tire a sua calcinha!
— O quê?! – espantou-se Ana Clara.
— Anda, tira logo!
Mesmo sendo evangélica da Assembleia de Deus, Ana Clara obedeceu
ao lho e retirou a peça íntima. Ao ver a calçola da mãe, nada sensual, ele a
devolveu e pediu uma lingerie sexy para o próximo domingo. Quando Ana
Clara declarou “apoio incondicional” ao casal, ela não estava brincando. A
mãe de Duda, de 46 anos na época, passou numa loja Marisa, pagou 29 reais
por uma calcinha preta cavada e com renda e vestiu a peça. No domingo de
visitas, teve de passar pela revista íntima de Tremembé e todas as
funcionárias encarregadas da vistoria riram. “O que uma mãe não faz por
um lho...”, comentaram. Seguiu ao pátio, deu um jeito de tirar a roupa
íntima discretamente e repassou a Duda. À noite, Lua tomou um banho de
Cleópatra, caprichou no perfume e vestiu com esmero a calcinha preta para
satisfazer o namorado ávido por uma gura feminina. Quando agrou Duda
usando a peça no alojamento, Cristian tomou um susto que lhe abriu a boca:
— Quem disse que a calcinha era pra você? – Pavão questionou.
— Oi? Como assim?
— Tire! – ordenou Cristian, enfático.
Para surpresa de Dudinha, o seu Pavão vestiu a roupa íntima feminina e
cou horas des lando no “beco”. Em seguida, os dois zeram amor em sua
“cabana” até o sinal apitar pela manhã avisando a hora de acordar para o
trabalho. Cristian seguiu para o trator, e Duda assumiu o seu posto de
trabalho na secretaria da penitenciária. Lá, soube em primeira mão que a
Justiça havia expedido o seu alvará para seguir para o regime aberto. Em vez
de festejar, começou a chorar de tristeza por ter de se separar do Pavão
justamente quando a relação estava sendo oxigenada com acessórios
femininos.
Pelos trâmites burocráticos, Duda ainda caria três dias na
penitenciária, mas a direção resolveu mandá-lo embora ainda naquele dia. A
contragosto, foi arrumar as suas coisas. A notícia de sua soltura rapidamente
se espalhou na cadeia. Quando soube da novidade, Pavão largou o trator no
meio da prisão e saiu voando ao encontro da sua Dudinha. No caminho,
pegou um cravo no jardim e deu ao amado como prova de amor eterno.
Duda retribuiu o carinho entregando-lhe uma rosa. A despedida do casal foi
marcada por muito choro. Cristian prometeu procurar pelo namorado na
próxima saidinha. Duda enxugou as lágrimas e acreditou piamente na
promessa.
Enquanto um casal se separava em Tremembé, outro se juntava ainda
mais. Marco Terremoto e Juliano não se desgrudavam. Eles não chegavam a
falar em casamento, mas planejavam montar um negócio juntos quando
saíssem da cadeia. Juliano era o melhor aluno do curso de Administração.
No último ano, o estudante conseguiu entrar num projeto de ressocialização
de detentos promovido pela Prefeitura de Taubaté e conquistou condução
gratuita da porta da cadeia até a universidade. Também havia sido aprovado
em um estágio remunerado e era apontado como um exemplo de como
aproveitar o tempo ocioso na prisão para estudar e crescer na vida. Juliano
conquistou respeito e con ança em Tremembé. Ao voltar da faculdade, por
volta das 23h30, passava direto pela portaria com o seu material escolar sem
ser submetido a nenhum tipo de revista. Só os presos especiais gozam desse
privilégio. Orgulhoso, Terremoto esperava o namorado todas as noites para
cobri-lo de beijos. Certo dia, o matador de aluguel fez um pedido a Juliano,
marcando a vida do preso exemplar para sempre:
— Você me ama? – quis saber Terremoto.
— Claro que eu amo! Por que duvida?
— Porque você nunca me deu uma prova do seu amor.
— Então me peça uma.
— Hoje à noite, um amigo meu vai te procurar na faculdade. Ele vai te
entregar um bagulho e você me traz. Essa será a maior prova de amor que
você poderia me dar.
— Mas que bagulho é esse? – quis saber o estudante.
— Não me faça perguntas. O amor não permite esse tipo de
questionamento. Apenas pegue a encomenda, esconda no lugar mais seguro
do seu corpo e traga até mim.
Não foi fácil convencer Juliano a aceitar o sacrifício. O jovem morria de
medo de ser agrado e já estava com um pé fora da cadeia, pois dali a seis
meses também passaria para o regime aberto. O embate entre o casal durou
semanas e evoluiu para uma discussão séria. Terremoto então pôs o
namorado contra a parede. Se o estudante não zesse esse favor em nome do
amor, não valeria a pena continuarem juntos. Juliano cedeu à pressão.
Terremoto e Juliano se trancaram no banheiro coletivo de Tremembé para
acertar os detalhes do trá co. Por causa de uma coincidência daquelas que
só feitiçaria explica, Tieta estava em um dos boxes e conseguiu testemunhar
as instruções repassadas pelo seu ex-namorado a Juliano.
Com sede de vingança, Tieta esperou o rival sair para a faculdade e foi
até a portaria fazer uma denúncia a Firmino. Ao m da aula, conforme o
combinado, o estudante foi procurado por um tra cante, que lhe entregou
240 gramas de maconha prensada e um preservativo. A droga estava paga.
Juliano seguiu até o banheiro da universidade, despejou a maconha numa
camisinha, deu um nó na abertura e modelou a embalagem para assumir
um formato cilíndrico. Em seguida, tirou a roupa e introduziu a encomenda
do namorado no ânus, deixando somente o nó para o lado de fora.
A operação para esconder a droga quase fez Juliano perder a condução
escolar. Se isso ocorresse, ganharia uma falta grave em seu histórico
prisional. Seguiu numa Kombi velha com outros oito alunos pelos 15
quilômetros entre a faculdade e a penitenciária de Tremembé II. Foi a última
viagem escolar do estudante de notas altas do último ano de Administração.
Às 23h45, ele desceu da condução e bateu no portão azul da cadeia. Firmino
abriu a tranca e Juliano tentou passar reto, como de costume, mas o agente o
interpelou:
— Hoje você vai passar pelo aparelho de raio-X! – anunciou.
Tremendo dos pés à cabeça, Juliano deixou os livros e os cadernos sobre
a mesa dos guardas. Vestido, submeteu-se à máquina que tudo vê. Na
imagem re etida na tela do monitor, Firmino e outros três agentes avistaram
o pacote de maconha oculto nas entranhas do estudante. Com um riso
cínico, Firmino quis saber:
— Que porra é essa?
— Droga! – assumiu Juliano, já chorando.
— É para o seu namorado?
— Não! É para uso pessoal – mentiu o estudante por amor a Terremoto e
com medo de morrer.
— Quero ver esse bagulho agora! – pediu um dos agentes.
Constrangido e chorando copiosamente, Juliano tirou toda a roupa.
Ficou em pé, completamente nu, suando em bicas. Ele já ia se agachar
quando Firmino o mandou esperar. Pelo rádio, o agente chamou dezenas de
funcionários para assistir àquela cena triste. Quando a sala estava lotada,
Firmino mandou Juliano se agachar. Pelo nó da camisinha, o estudante
retirou lentamente a maconha do ânus e pôs sobre o chão. Todos riram,
enquanto o detento chorava. Da portaria, seguiu direto para o “pote”. Como
punição primária, Juliano perdeu todos os benefícios, inclusive o direito de
estudar e as regalias do regime semiaberto. Quando estava na solitária, Tieta
deu um jeito de visitá-lo:
— Quando eu disse que o Terremoto te levaria para o buraco, você não
acreditou. Agora está você aí, chafurdando na merda!... Aprenda a nunca
mais dar em cima de homem casado.
A desgraça de Juliano estava só começando. O coitado foi transferido
para o Cadeião de Pinheiros, na capital paulista, onde permaneceu
misturado com tra cantes do PCC, no regime fechado. Era estuprado
diariamente por toda sorte de bandidos. O jovem ainda teve um acréscimo
de seis anos na pena, fruto de uma condenação por trá co. Em um exame de
rotina feito no posto médico da nova casa penal, descobriu ser portador do
vírus HIV e começou a sentir os efeitos da aids por ter tido rejeição ao
tratamento com os antirretrovirais. No auge da depressão, o ex-estudante
nem sequer fazia a higiene pessoal. Juliano morreu em dezembro de 2022
com doenças decorrentes da aids.
Cristian e Daniel sofreram com o desfecho reservado a Juliano. Covarde,
Marco Terremoto nunca contou aos colegas a sua responsabilidade no
destino do namorado que ele dizia tanto amar. Mas seu m também foi
trágico. Firmino contou a Terremoto ter sido Tieta o autor da denúncia. O
carcereiro ainda complementou a história revelando que a maconha
prensada seria para o matador de aluguel, segundo a acusação de Tieta. Para
se vingar, Terremoto avançou com um trator pra cima do cabeleireiro na
frente de várias pessoas.
Tieta percebeu a máquina se aproximando e correu pela área externa de
Tremembé. Terremoto acelerou para alcançá-lo. Apavorado, o preso
fofoqueiro caiu no chão e Terremoto passou por cima sem a menor pena.
Uma das rodas do maquinário, a menor delas, passou por cima de Tieta, e
por pouco ele escapou da morte. Teve uma perna quebrada e escoriações.
Terremoto foi denunciado por tentativa de homicídio e transferido para a
penitenciária de Presidente Venceslau. Em uma saidinha em 2016, foi
julgado e decapitado por dívida num tribunal do crime organizado pelo
PCC.
O destino de Cristian também foi insólito. Ao ganhar o tão esperado
regime aberto, em agosto de 2017, resolveu viver intensamente, como se o
mundo fosse acabar no dia seguinte. Pavão foi procurado tanto por Duda
quanto por Sherminne, mas o criminoso dispensou ambos para começar
uma vida do zero. Duda aceitou o m do relacionamento lembrando as
palavras sábias da mãe: “Amor de cadeia não sobrevive do lado de fora”. No
regime aberto, os dois chegaram a jantar juntos em um restaurante japonês
em São Paulo feito amigos. No nal, beijaram-se. Mas Cristian não quis
transar. Concluiu, segundo diz, que a vontade de car com homens limitava-
se à cadeia.
Duda guarda como souvenir a calcinha preta usada por Cristian e todas
as cartas de amor enviadas por ele. “São as minhas maiores lembranças”,
de ne. Hoje ele está casado com outro rapaz e se diz feliz.
Sherminne estava com 42 anos quando foi abandonada. Sobre Duda, faz
questão de frisar: “Eu nunca vivi um triângulo amoroso. Quando o Cristian
estava com ele na cadeia, nós estávamos separados. Ou seja, nunca fui
chifrada”. Sherminne já havia perdido as curvas de outrora e não aceitava ser
escanteada depois de uma década de relacionamento. Para monitorar os
passos do ex, a bancária instalou um rastreador na moto Yamaha. O
equipamento mostrava no aparelho celular dela a localização do veículo de
Cristian em tempo real.
Na nova fase em liberdade, Pavão fez um per l no Facebook e outro no
Tinder, uma rede social para encontros amorosos. No dia 17 de abril de
2018, uma terça-feira, oito meses depois de sua saída de nitiva da cadeia,
Cristian combinou de se encontrar às 22h com uma garota chamada Kelly,
de 18 anos, no Red Bar, na cidade de Sorocaba, a 97 quilômetros de São
Paulo. Ao ver pelo mapa do celular o ex-namorado e sua possante moto
seguindo viagem pela Rodovia Castelo Branco (SP-280) a mais de 200
quilômetros por hora, Sherminne se arrumou rapidamente, pegou o carro e
seguiu atrás dele. Cristian sentou-se a uma mesa na calçada com Kelly. Ela
pediu uma caipirinha e ele foi de cerveja. Havia uma tábua de frios na mesa.
O clima de romance corria solto entre o casal. Sherminne passou de carro na
avenida e agrou o momento exato em que Kelly espetou uma azeitona com
um palito e levou até a boca de Cristian. Impetuosa, a bancária largou o
carro na contramão com a porta aberta, deixando o motor ligado e
atrapalhando o tráfego da Rua General Osório, e seguiu em disparada até a
mesa. Aos berros, dirigiu-se à garota com a mão em riste, pronta para
disparar uma bofetada:
— Tá sabendo que ele é casado, sua piranha?! – esbravejou.
— Ele me contou que está separado, mas a senhora não aceita... –
retrucou Kelly, calmíssima.
Aquele “senhora” dito por uma jovem de 18 anos soou como ofensa para
uma mulher quarentona maltratada pelo tempo. Sherminne avançou sobre a
garota, mas Cristian a conteve antes de Kelly ser espancada. Copos, pratos,
garrafas e talheres caíram no chão, assustando os frequentadores do bar.
Houve um princípio de tumulto. Populares ligaram para a polícia,
denunciando a hostilidade. “Não houve agressão física. Nossas discussões
sempre foram intensas, com grito e muita gesticulação. Mas nunca houve
socos, como dizem por aí”, defendeu-se Sherminne. Quando a viatura
chegou, o casal não estava mais lá. Os dois discutiam, falavam palavrões aos
berros e se empurravam mutuamente em um posto de gasolina próximo. No
bar, os policiais perguntaram pelo agressor e um dos clientes apontou para a
moto Yamaha, estacionada bem em frente. Ao digitar a placa do veículo
num tablet, os policiais leram na tela “Proprietário: Cristian Cravinhos de
Paula e Silva. Condenado a 36 anos de prisão por homicídio hediondo.
Cumpre pena em regime aberto”. Dois policiais militares – um homem e uma
mulher – encontraram Cristian no posto:
— Você é o Cristian Cravinhos?
— Sim, eu mesmo! O senhor já ouviu falar de mim?
— Já! O senhor não está cumprindo pena no regime aberto?
— Sim! – disse Cristian, enquanto arrumava a roupa.
— Então o senhor está violando as regras, pois não deveria estar fora da
sua cidade-domicílio. Também não poderia estar em um bar, muito menos
neste horário...
— Olha, seu policial, eu tenho aqui comigo 1.000 reais!
— Ah! Você tem 1.000 reais? – ironizou o policial.
— Mas posso conseguir mais 2.000 ainda hoje com o meu irmão Daniel
Cravinhos. O senhor já ouviu falar dele, né?
— Então agora o senhor tem 3.000 reais? – continuou o policial,
sarcástico.
— Pelo amor de Deus, eu não posso ser preso! Tá vendo aquela moto?
Ela vale 40.000 reais. Eu posso vendê-la e dividir o dinheiro com vocês...
— O senhor está preso por tentativa de suborno! – anunciou o policial,
algemando Cristian pelas costas.
Em minutos, o quarteirão estava cercado por dezenas de viaturas. Por
uma ironia do destino, Cristian foi preso pela segunda vez na vida graças a
uma moto. Em uma revista, os policiais encontraram na jaqueta de couro do
Pavão um projétil de 9 milímetros de uso restrito das Forças Armadas.
Cristian jura que a bala foi “plantada” em sua roupa para incriminá-lo. No
dia seguinte, seguiu de volta para o regime fechado de Tremembé. Em
outubro de 2018, o aventureiro foi condenado a mais quatro anos e oito
meses de cadeia por corrupção ativa, totalizando uma pena de 42 anos.
Como já havia uma sentença pesada nas costas, não lhe foi dado o direito a
um regime mais brando. Na nova decisão condenatória, a juíza Margarete
Pellizari escreveu que Cristian “não merece e não pode retornar ao seio da
sociedade”.
Ao voltar para Tremembé, Cristian cou uma semana no “pote”.
Sozinho, sentiu falta do irmão Daniel, com quem cumpriu pena sempre
junto por quase vinte anos. Quando a noite caía, gritava nos porões da
prisão: “Daniel! Daniel! Daniel! Onde está você, meu irmão?”. Em 2022,
Cristian migrou novamente para o regime aberto e passou a andar na
sombra.
Um ano antes de ganhar a liberdade do regime aberto, Daniel passou por
um perrengue em Tremembé. Segundo reportagem da revista Veja de
setembro de 2017, o ex-namorado de Suzane foi agrado por agentes
penitenciários vendendo anabolizante a outros presos no pátio da
penitenciária na manhã do dia 3 de setembro de 2017. Cada seringa,
segundo o relato de detentos, era vendida a 100 reais dentro da casa penal.
Desde que migrou para o semiaberto, Daniel passou a ser instrutor de
musculação dentro de Tremembé e seu corpo extremamente musculoso
chamava atenção. “Durante o dia, quando não está trabalhando nas o cinas
da cadeia, ele está fazendo exões ou paralelas em umas barras instaladas lá
dentro”, denunciou na época um detento que pediu para não ser
identi cado. Cabia a Daniel passar a série de treinos e acompanhar a
atividade física dos seus “alunos” criminosos. Segundo essa denúncia, um
preso, conhecido como Nezão, foi agrado em Tremembé II tra cando no
pátio do semiaberto seringas de anabolizantes de uso restrito. Para se livrar
de um castigo mais severo, ele acabou entregando o nome do funcionário da
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) que vinha facilitando a
entrada das tais seringas no presídio e revelou ainda os demais presos que
compravam e vendiam essas drogas típicas de marombeiros. Após a
denúncia de Nezão, o ex-namorado de Suzane foi monitorado e agrado
repassando uma seringa para outro preso. Já o funcionário foi transferido.
Na época, tanto a SAP quanto Daniel negaram o comércio de anabolizantes
em Tremembé. Mas o detento foi punido mesmo assim com uma infração
média.
Pouco antes de deixar a cadeia, Daniel enfrentou outra denúncia. A SAP
tentou – em vão – descobrir como uma moto de corrida entrou em
Tremembé II para que ele zesse a manutenção e pintura. Presos sustentam
que ela pertencia ao lho de um gerente de segurança penitenciária que
participava de competições. Segundo testemunhas, Daniel deixou a moto
feito nova, toda customizada. “Ele é um preso muito querido. Nunca esteve
em confusão”, relatou um detento. Mesmo com duas denúncias nas costas, o
ex-namorado de Suzane não teve problemas para ganhar a liberdade um ano
após essas acusações.
Fora da cadeia, Daniel escolheu viver a liberdade no anonimato. Em
dezembro de 2014, durante uma saidinha, casou-se com Alyne Bento – lha
de uma carcereira – numa igreja evangélica. E ainda deu um jeito de retirar
o cialmente dos documentos o Cravinhos do sobrenome, na tentativa de
sepultar o passado criminoso. A esposa emprestou o sobrenome ao marido.
O ex-namorado de Suzane se apresentava como Daniel Bento de Paula e
Silva. O ex-Cravinhos voltou a construir aeromodelos e a pilotar aviões no
céu do Parque Ibirapuera. Montou um ateliê para customizar motos e
caminhões. Em 2023, o assassino terminou com a mulher para engatar
romance com outra garota. Depois da separação, Alyne contou o que
aconteceu:
Por que vocês terminaram?
De uns tempos pra cá a relação esfriou e ele resolveu terminar tudo. Aí
ele conheceu outra pessoa.
Onde você o conheceu?
Em 2011, fui visitar um parente na penitenciária e vi o Daniel no pátio.
Foi amor à primeira vista. Algo arrebatador. Nos casamos em 2014 e nos
separamos nove anos depois.
A relação esfriou quando ele saiu da cadeia. Por quê?
Olha, é difícil concorrer com o mundo aqui fora. O Daniel tem fome de
liberdade. Ele é muito assediado por mulheres. [...] Ele percebeu que “além
de dois existem mais” [referência à música A maçã, de Raul Seixas].
O que leva uma mulher livre a namorar e se casar com um
presidiário?
Fetiche.
Como é dormir com um assassino? Dá medo?
De jeito nenhum. O Daniel é a pessoa mais afetuosa do mundo. É um
homem cheio de amor para dar. Fui muito feliz ao seu lado. Muito feliz
mesmo! Às vezes, acordava no meio da noite com ele me cobrindo de beijos.
Vocês já foram hostilizados na rua?
Fui hostilizada no trabalho. Quando andávamos no shopping, as pessoas
nos olhavam de forma diferente. Quando estávamos em lua de mel, fomos
expulsos de um restaurante. Mas eu sabia que pagaria esse preço.
Você foi feliz ao lado dele?
Muito! Passei ao lado do Daniel os anos mais felizes da minha vida.
Nunca vou amar outro homem como eu o amei. Fiz uma tatuagem com o
nome dele na lombar e ele fez uma com o meu nome no lado esquerdo do
peitoral.
Por que não tiveram lhos?
Não queríamos passar pelo constrangimento de ter de explicar ao nosso
lho o que o pai dele fez. Sem falar no drama que seria essa criança
frequentando uma escola.
O que falta resolver na separação?
Falta assinar o divórcio. Quero que ele pare de usar o meu sobrenome e
também quero que ele me devolva a minha cachorrinha, uma Bull Terrier
apelidada de Vaquinha.
Namoraria outro presidiário?
Jamais!
E se o Daniel pedir para voltar?
Eu volto correndo! Pois eu o amo mais do que tudo.
Fora da cadeia, Daniel Cravinhos também deu uma entrevista em 2023:
Se encontrasse a Suzane na rua, o que você diria a ela?
Acho que não tenho mais nada pra falar com ela. Minha história com a
Suzane acabou no dia 31 de outubro de 2002 [data do assassinato do casal
Richthofen]. Agora ela é vítima de si mesma. Antes, tinha muita mágoa,
raiva e tudo mais. No entanto, percebi que minha vida não andava para a
frente enquanto alimentava sentimentos negativos no coração. Sendo assim,
se a encontrasse na rua, falaria “boa sorte na sua caminhada”. E mudaria de
calçada.
Se o tempo voltasse, o que você não faria?
Tantas coisas… Não me envolveria com a Suzane, não chamaria o meu
irmão para o buraco. Não me deixaria levar pela manipulação… Mudaria
todas as minhas atitudes.
De quem foi a ideia de matar os pais da Suzane? Como você divide a
responsabilidade pelo crime?
A ideia foi dela, mas não me eximo da responsabilidade. Uma pena foi a
gente envolver o Cristian, que tentou melar o plano várias vezes.
Já pediu perdão ao Andreas?
Sinto muita dor ao falar do Andreas. Ele é a maior vítima disso tudo.
Tinha 14 anos quando me perdoou, na época do julgamento. Mas esse
perdão venceu porque ele era um garoto e hoje é adulto. Ainda não tive
oportunidade de encontrá-lo depois que saí de Tremembé. O Andreas era
meu irmão. Sonho com o dia em que terei um acerto de contas de nitivo
com ele. Ainda estou me preparando psicologicamente para procurá-lo,
abraçá-lo e beijá-lo. Nem sei se tenho essa coragem. Só de pensar nele, co
desestabilizado emocionalmente.
Quando estava preso, você disse em seu teste de Rorschach que tinha
pesadelos com o Manfred e a Marísia. Esses pesadelos ainda te
atormentam?
Não! Hoje o casal Richthofen aparece no meu sonho sempre fazendo
coisas boas para mim. Outro dia sonhei com o Manfred e a Marísia me
perdoando e apoiando o meu recomeço.
Você voltou a pilotar avião de aeromodelismo no Ibirapuera. O
parque despertou que tipo de sentimento?
São muitas sensações. Sem dúvida, a principal é a ausência do meu pai
[Astrogildo Cravinhos, morto em 2014 aos 69 anos, vítima de câncer no
pulmão]. Ele sempre ia comigo ao parque. Como eu estava em Tremembé,
não pude ir ao seu enterro.
O que mais?
Acho que é meio inconsciente, mas co tentando entender como me
deixei levar por uma energia ruim na época em que frequentava um lugar
tão mágico como o Ibirapuera. Parece algo idiota… Mas voltar ao parque é
uma tentativa de tentar mudar o passado. O fato é que, paradoxalmente, o
Ibirapuera ainda é um lugar que eu amo.
Qual é o maior desa o no seu processo de ressocialização?
Por causa do que eu z, meus amigos se afastaram de mim. Com o
tempo, eles estão voltando. Recuperar essas amizades tem sido fundamental
para o recomeço.
Fora da cadeia, a Suzane virou costureira. E você? Está trabalhando
com quê?
Trabalho com motovelocidade, algo que sonho desde menino. Quando
eu era criança, via corrida na televisão com meus pais e cávamos vibrando,
torcendo. Quando saí da cadeia, conheci pessoas incríveis que me ajudaram
muito na minha ressocialização. Graças a essa rede de apoio, virei piloto e
customizador de motos e designer. Pintamos qualquer tipo de coisa
personalizada, até caminhão.
Tem saudade de Tremembé?
De modo algum. A penitenciária é o local onde fui punido pelo crime
que cometi. Foi onde amadureci bastante. Foi lá que re eti sobre as minhas
atitudes, onde trabalhei o meu processo de arrependimento. Tremembé é
um lugar de transformação, que moldou o homem que sou hoje.
Pessoas brindando, crianças, alegria, flores e
várias máscaras

D
epois de sobreviver ao inferno de três casas penais, Suzane nalmente
chegou ao lugar mais perto do céu. No dia 2 de fevereiro de 2007, a
condenada deu entrada na Penitenciária Feminina Santa Maria
Eufrásia Pelletier de Tremembé, conhecida tecnicamente como Feminina
P1. Quando pisou no pavilhão destinado às detentas do regime fechado, a
assassina já era um verdadeiro mito no sistema penal de São Paulo. Não
apenas pela notoriedade do crime cometido, mas também pelo excesso de
exposição na mídia e por ter sobrevivido a uma rebelião do PCC. A
estratégia de seduzir o promotor Eliseu José Bernardo Gonçalves em troca
da tão sonhada transferência foi considerada uma jogada apoteótica.
Denunciá-lo por assédio na sequência, então, fez dela uma lenda da
criminalidade. Aos 24 anos, Suzane já estava calejada e esperta o su ciente
para sobreviver num ambiente hostil como a cadeia. Conhecia os truques,
sabia fazer intrigas, alianças, conchavos e amizades com as pessoas certas
para ter qualidade de vida e vantagens pessoais atrás das grades. Nos
momentos apropriados, mostrava-se frágil, recorrendo à voz infantil, sua
marca registrada. Também lançava mão do tom rme e olhares fulminantes
quando surgiam demandas importantes.
Marisol já havia cantado a pedra para Suzane lá atrás, na Penitenciária
Feminina da Capital: no cárcere, a inteligência é um instrumento poderoso.
Nesse quesito, a assassina tinha talento de sobra. Em testes de avaliação
cognitiva realizados dentro das casas penais, o seu quociente de inteligência
(QI) alcançou 117, uma pontuação considerada elevada. O QI mede os
talentos linguísticos, os pensamentos lógicos, matemáticos e analíticos do
indivíduo, além de aferir a facilidade em abstrair construções teóricas e
desenvolvimento escolar. Para efeito de comparação, as pessoas
consideradas normais têm QI em torno de 100.
Um dos exemplos do desenvolvimento cognitivo de Suzane vem dos
estudos. Em abril de 2016, a presa foi aprovada no vestibular para o curso de
Administração da Universidade Anhanguera de Taubaté. No entanto, a 2a
Vara de Execuções Criminais da mesma cidade a proibiu de fazer a
matrícula, alegando que ela seria repugnada no ambiente acadêmico por
alunos e professores. Suzane recorreu à segunda instância e conseguiu do
desembargador Damião Cogan um mandado de segurança garantindo o
direito de estudar fora de Tremembé. Na decisão, Cogan a rmou que a
“repulsa” a ser sofrida pela presa no curso superior, mencionada na decisão
de primeira instância, seria uma “ilação subjetiva”. Para o desembargador,
apenas a efetiva frequência dela às aulas poderia mostrar como seria sua
integração com a classe. “É inalienável o direito do preso ao estudo. [...]
Apenas 2% da população carcerária aprimora-se intelectualmente em curso
superior. Tal intenção deve ser respeitada e, inclusive, servir de exemplo
para os demais reeducandos, como demonstração de que a terapêutica penal
abriu novos horizontes para Suzane”, disse o desembargador.
Apesar da vitória nos tribunais, a criminosa resolveu não se matricular
na universidade em 2016, alegando justamente medo da hostilidade dos
demais alunos. No ano seguinte, Suzane tentou mais uma vez fazer o curso
superior. Foi pré-selecionada para obter empréstimo pelo Fundo de
Financiamento Estudantil (Fies) do governo federal para cursar
Administração na Faculdade Dehoniana de Taubaté, uma instituição
religiosa mantida pela Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus
no Brasil. A faculdade ofereceu apenas duas vagas para dezenas de
concorrentes. Suzane conquistou uma delas por seleção do Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem). Nas provas, a criminosa conquistou nota 675,08,
quando a média nacional naquele ano foi de 519,03. Também alegando
medo de represálias na rua e na sala de aula, Suzane preferiu mais uma vez
car em casa, isto é, na cadeia.
Em 2021, a vida acadêmica de Suzane nalmente deslanchou. Após
obter nota no Enem para ingressar no ensino superior, ela se matriculou na
Faculdade Anhanguera de Taubaté. A assassina passou no curso de
Farmácia, mas acabou mudando para Biomedicina porque não houve alunos
su cientes para preencher uma turma. Coincidentemente, Biomedicina foi a
graduação feita por Alyne Bento, ex-mulher de Daniel Cravinhos. Já a
primeira opção de Suzane, Farmácia, foi a escolha do irmão, Andreas, que
fez o curso na Universidade de São Paulo (USP). Depois, ele estudou
Bioquímica. Em 2023, Suzane pediu transferência para a Faculdade Sudoeste
Paulista (UNIFSP) de Itapetininga.
No cárcere, Suzane passou a usar o intelecto como estratégia de
sobrevivência. Descobriu rapidamente que em Tremembé, onde a maioria
dos presos encontrava-se na parte mais baixa da pirâmide social, seria fácil
chegar ao topo e se consolidar na liderança. Suzane passou a ter postura de
celebridade. Sua inspiração era Maria Bonita, a temida líder da Penitenciária
de Ribeirão Preto, que andava pelos pavilhões com suas unhas vermelhas
pontiagudas, ladeada por um grupo de seguidoras arrancando respeito até
das carcereiras. O fato de o Presídio dos Famosos não abrigar criminosos
pro ssionais facilitou os seus planos.
Nos primeiros banhos de sol na nova moradia, Suzane começou a
recrutar aliadas. A primeira cooptada foi Luciana Olberg das Dores, uma
boxeadora de 29 anos e cabelos loiros oxigenados, repicados à navalha. As
duas dividiam a mesma cela e começaram a trocar con dências. Autora de
crime de grande repercussão, a parricida famosa nem perdia tempo falando
do passado. Já a história da colega causou uma sensação terrível na boca do
estômago de Suzane.
Luciana vivia um romance a três no município de Itapeva, a 443
quilômetros de São Paulo. Dividia a cama de casal com o marido, Joel de
Almeida Campos, de 45 anos, com quem tinha um lho de 6 anos, e com
um amante também boxeador, de 32 anos e 1,95 metro de altura, chamado
Felipe Damasceno. O terceiro elemento da relação estava em uma relação
estável com outra mulher no município de Paranapanema, a 100
quilômetros da casa de Luciana e Joel. Com o tempo, ele largou a esposa e se
mudou para Itapeva para car mais perto dos amantes. O plano dos três era
abrir uma academia de boxe.
Luciana tinha duas meias-irmãs gêmeas de 3 anos. As crianças eram
lhas do seu pai com uma mulher chamada Marly. Volta e meia, as meninas
eram levadas pela mãe à casa de Luciana para elas brincarem com o lho da
boxeadora. A princípio, as gêmeas sempre estavam acompanhadas de Marly.
Com o tempo, Luciana começou a pegar as meias-irmãs e levá-las sozinhas à
sua casa pela manhã. Para passar con ança às meninas, a boxeadora dava-
lhes doces e brinquedos. A mãe buscava as meninas no nal tarde. Certo
dia, uma delas pediu para não ir, pois tinha “medo” do tio Joel. Luciana
tentou levá-la à força, mas a menina abriu um berreiro. Marly, então, liberou
só uma das gêmeas. Passado um mês, a mãe começou a notar um
comportamento estranho nas lhas. Uma delas acordou e cou muda o dia
inteiro. A outra falava sozinha pela casa de manhã. À tarde, a menina
arrancou a cabeça de todas as suas bonecas. Em poucas semanas, elas
estavam agressivas e reticentes.
No dia 3 de novembro de 2012, conforme descrito no inquérito policial
(178/2013), Marly levou as gêmeas à casa de Luciana. O combinado era que
o pai as buscasse à noite. Por volta das 17h, desabou um temporal em
Itapeva. A chuva foi noite adentro, acompanhada de ventania, raios e
trovoadas. O pai telefonou para Luciana dizendo que só buscaria as lhas no
dia seguinte. A boxeadora chamou seu amante Felipe para dormir em casa.
O trisal bebeu cerveja e tequila. No meio da madrugada, eles cometeram
uma monstruosidade.
Joel pegou a chupeta das meninas, mergulhou num copo de tequila e
dava para elas porem na boca. Ato contínuo, as gêmeas entraram em coma
alcoólico. Joel as acomodou lado a lado na cama de casal e tirou só a parte
de baixo da roupa das meninas. Em seguida, fez sexo oral e penetrou na
vagina e no ânus das duas crianças, dilacerando-as. Luciana pegou o telefone
celular do marido e lmou toda a violência sexual cometida contra as suas
duas irmãzinhas.
Depois de Joel ejacular, a boxeadora pediu para Felipe estuprá-las. A
princípio ele se negou, dizendo que tinha o pênis muito grande. Luciana
repassou o celular com a câmera ligada para Felipe continuar a gravação.
“Olha só, eu vou virar elas de ladinho. Aí você começa devagarinho. Faz
como estou dizendo que você consegue”, instruiu a pedó la. Felipe devolveu
o celular e penetrou nas duas meninas, que caram desmaiadas até o dia
clarear.
Luciana, Joel e Felipe frequentavam grupos de pedo lia nas redes
sociais. A lmagem foi postada numa dessas comunidades. Até os pedó los
repudiaram a violência contra as gêmeas. “Vocês passaram dos limites”,
escreveu um deles. De lá, o vídeo foi encaminhado de forma anônima ao
Conselho Tutelar de Ibiúna, que acionou a polícia. Um exame feito nas
vítimas comprovou a violência sexual. O curioso é que as duas crianças
foram devolvidas aos pais no dia seguinte ao estupro e ninguém percebeu
nada. Quando os investigadores bateram à porta de Marly para perguntar se
aquelas meninas no vídeo eram suas lhas, dez dias depois do crime, ela
respondeu positivamente. “Elas estavam reclamando de dor, coceira e
ardência nas partes íntimas. Mas jamais imaginei uma coisa dessas”, reagiu a
mãe, aparentemente calma. Assim que a polícia saiu de sua casa, Marly ligou
para Luciana tirando satisfação. A boxeadora bateu o telefone na cara da
madrasta e fugiu com o marido e o amante. Os três só foram capturados um
mês depois. Joel e Felipe caram presos à espera de julgamento na Cadeia
Pública de Pilar do Sul, enquanto Luciana seguiu para a Cadeia Pública de
Votorantim.
As gêmeas foram levadas para conversar com psicólogos infantis com o
intuito de incriminar o trio de pedó los. “O tio Joel beijava e passava o pinto
na nossa pepeca. Ele também mijava [ejaculava] na nossa cara durante o
banho. [...]. Um dia ele me jogou contra a parede e mostrou uma cinta. Fez
isso para a gente não contar o nosso segredo”, denunciou uma das crianças.
Mas as provas mais contundentes estavam no celular de Joel, que foi
apreendido após a sua prisão. Além da lmagem, havia áudios
comprometedores, todos transcritos no inquérito, presidido pelo delegado
Fabrício Lopes Ballarini, de Ibiúna (SP). Os áudios mais reveladores
referem-se às conversas travadas entre Joel e advogados criminalistas. O
primeiro deles era seu amigo. O estuprador pediu para ser representado por
ele:
“Olha, é difícil te defender, cara. No vídeo, aparece você colocando o pênis
na bunda das meninas. [...] O negócio é feio, feio, feio. Horrível pra caralho!
Aparece o seu rosto nas imagens. Aparece o pau enorme do seu amigo negão.
[...] A menininha estava dormindo, tadinha, com uma chupeta azul. Não sei
como vocês tiveram coragem... Cara, o certo era eu pedir para você morrer
negando, mas não tem como! Complicado, viu? Complicadérrimo!”
“Faz alguma coisa por mim. Me livra dessa encrenca! Se quiser, posso
negar até a morte! Faço tudo o que você mandar! Estou desesperado! Pelo
amor de Deus!”
“Cara, olha só. Não bota Deus nessa parada! É até ofensivo. É o seguinte:
eu só pego essa causa se você confessar tudo, entregar todo mundo. Não
esconder nada. Cara, você é doente. Você é um monstro. Você é inominável! É
isso que você tem de dizer ao juiz.”
“Faço o que você mandar!”
Três dias depois, o amigo advogado mandou o último áudio:
“Joel, é o seguinte. Eu não consegui mais dormir desde que vi a porra desse
vídeo asqueroso. Fiquei deprimido, pensando na vulnerabilidade das minhas
lhas pequenas. Minha esposa perguntou o que estava acontecendo e mostrei o
vídeo. Ela jogou meu celular na parede e vomitou na casa toda. Disse que vai
me largar se eu defender você no tribunal. Disse até que vai levar minhas
lhas de casa. Eu não vou pegar a sua causa, tá? Sinto muito. Não tem como.
Tenho medo de perder a minha família. Também tenho medo de perder
clientes. Entrei até em crise pro ssional, cara. Puta que pariu! Acho que o que
você fez não tem defesa. Se tivesse pena de morte no Brasil, você já era. Mas
não tem, né? Você tem o direito constitucional de ser amplamente defendido.
Foda, né? Mas olha: para você ter um julgamento justo, te aconselho a
procurar um defensor público. Não tem como ele recusar a causa porque essa
defesa é bancada pelo governo.”
Não foi difícil o pedó lo estuprador encontrar um outro defensor
particular, que também trocava áudios:
“Cara, é o seguinte: você está nas mãos da Luciana. Se ela abrir a boca e
contar tudo, você e o amante estão ferrados. Mas aí, se ela zer isso, você fode
com ela também. Até porque as vítimas são irmãs dela. Isso pesa muito mais
pro lado dela. Até porque as gêmeas estavam sob os seus cuidados”.
“O que devo fazer? Eu nego tudo, né? A gente tinha bebido muita cerveja e
tequila. Nós matamos uma garrafa inteira de tequila. Só zemos isso porque
estávamos bêbados. Você sabe, né?”
“Cara, as únicas vítimas aqui são as crianças. Se você colocar a culpa na
bebida, o promotor vai comer o seu cu no tribunal. Acorda! Nenhum juiz vai
aceitar um argumento infantil como esse. Para de falar merda, porra! Não
fode! Todo mundo sabe o que vocês zeram. Tá tudo bem esclarecido. As
gêmeas contaram tudo a uma psicóloga. Tá tudo escrito aqui. Cara, o vídeo é
claro porque mostra o que cada um fez. Nem tem como negar isso aí. A sua
sorte é que crime de estupro não vai para o Tribunal do Júri. Se fosse, vocês
seriam condenados a 500 anos de cadeia. E reza desde já para não te matarem
na prisão!”
Insatisfeito, Joel dispensou esse advogado e contratou outro. O novo
defensor nalmente disse, também por áudio, o que o pedó lo queria ouvir:
“O lance é o seguinte. Você é inocente! Nega tudo. Nega, meu irmão. Eu vi
o vídeo. Nem é tão chocante assim! Não dá para cravar com toda certeza que é
você na ta. Bora negar tudo, entendeu? Vamos inverter essa porra. Vou
mandar a Luciana livrar a cara do amante, que ca mais fácil inocentar vocês.
A cara dele não aparece mesmo. Outra coisa que ajuda: a lmagem não tem
áudio. Não tem voz. A imagem não tem qualidade. Isso é maravilhoso! No
fundo aparece uma TV passando um desenho do Pica-Pau. Dá m nessa TV,
entendeu? Outra coisa importante: vocês têm de queimar as roupas que usam
na lmagem antes de começarem a comer as meninas. Principalmente a
camisa que a Luciana está vestindo, pois tem umas letras na estampa que
podem identi cá-la facilmente. Vou te dizer a minha estratégia de defesa. Vou
lançar muitas incertezas sobre esse vídeo. Vai ser uma chuva de dúvidas e
imprecisões. Todo mundo vai car confuso. Aí, na sombra da dúvida, o juiz
prefere inocentar, entende? Você tem a manha de chorar com facilidade? Seria
legal você derramar umas lágrimas na audiência. Diz que você também tem
um lho pequeno e que jamais teria coragem de fazer isso com uma criança.
Cara, nós vamos brilhar na audiência, você vai ver.”
Luciana e Joel brilharam mesmo foi no banco dos réus. O casal de
pedó los foi condenado pelo juiz Wendell Lopes Barbosa de Souza, mas o
magistrado foi econômico na sentença: 25 anos para Joel e 29 para Luciana.
E justi cou: “O crime pelo qual os réus foram condenados é repugnante. [...]
Em suma, os delitos abalaram toda a comunidade onde vivem as vítimas e
os réus”. Felipe, o amante do casal – pasme –, foi absolvido por causa da
chuva de dúvidas que pairou no tribunal. Apesar de aparecer nu no vídeo
feito por Luciana e ser citado nos áudios, ele foi inocentado. Felipe se
bene ciou também porque a boxeadora negou que era ele na lmagem e
porque seu rosto não apareceu em momento algum na gravação. Entre
diversos argumentos, o juiz escreveu o seguinte para justi car a absolvição
do acusado de estupro: “No vídeo aparecem dois pênis. Um de cor mais
clara e outro de cor mais escura. No entanto, só dá para ver o rosto do que
tem o pênis mais claro, que é o Joel”. Cético, o juiz também não conseguiu
acreditar que Joel e Felipe pudessem estar fazendo sexo com a mesma pessoa
no mesmo ambiente porque um era casado com Luciana, enquanto o outro
era amante dela. “Concluí que eles não se dariam bem porque disputavam a
mesma mulher”, justi cou o magistrado.
Por causa do seu crime, Luciana tinha alto índice de rejeição em
Tremembé. Compadecida com a solidão da nova amiga, Suzane a recrutou
como sua primeira seguidora. As duas andavam juntas de mãos dadas e
riam alto pelos pavilhões do regime fechado. Certo dia, num banho de sol,
Suzane foi paquerada por uma presa conhecida como Sandrão, de 25 anos
na época. Lésbica, alta, robusta, agressiva e braços musculosos, a detenta
usava cuecas e fazia questão de deixar o cós da peça íntima para fora,
revelando marcas de grife, como Calvin Klein e Cavalera. Usava um corte de
cabelo masculino curto, espetado em cima e raspado nas laterais, conhecido
nos salões como fade comb. De longe, Sandrão encarou a jovem rmemente,
disparou um olhar sedutor e complementou o aliciamento com uma
ousadia: levantou a blusa, passou a ponta do dedo no mamilo direito e,
rápida, levou o mesmo dedo até a língua, nalizando com uma piscadela.
Suzane demonstrou nojo:
— Meu pai do céu! Quem é essa pessoa sem noção? – perguntou.
— Chama-se Sandrão! Ela é simplesmente a rainha de Tremembé!
Manda e desmanda aqui dentro! – informou a amiga.
— Ah, é? Que interessante... Ela é solteira?
— Sandrão namora Elize Matsunaga, a mulher que cortou o marido.
— Sério? Que mau gosto! – debochou Suzane.
Seguindo os planos de se tornar uma mulher poderosa, Suzane passou a
ver Sandrão por outra perspectiva. A lésbica marrenta se aproximou e as
duas iniciaram uma amizade. No início, passavam o tempo conversando
amenidades e jogando xadrez no pátio da penitenciária todo nal de
semana. Na tentativa de seduzir a pretendente, Sandrão contava as
vantagens de ser a capitã de Tremembé. As agentes de segurança
penitenciária lhe davam regalias, como cigarros, faziam vista grossa para
bebidas alcoólicas (maria-louca) e permitiam acesso à capela mesmo em
horário proibido. A fama de violenta assustava Suzane, mas também causava
deslumbramento. Para demonstrar poder, a bandida perigosa arrumava
brigas com agentes de segurança. Num desses embates, Sandrão estava
beijando Elize numa área em que esse tipo de afeto era proibido. A agente
pediu que as duas parassem. Irritada, Sandrão esmurrou a funcionária.
Acabou sendo castigada com a prisão no “pote” por 15 dias. Suzane sentiu
saudade.
Depois de três anos de amizade, as duas criminosas estavam
grudadinhas. Luciana, a pedó la, cou com ciúme da amizade, mas logo
superou. Suzane armou para tomar Sandrão de Elize. A estratégia era bem
simples. Como a líder estava prestes a ser transferida de Tremembé para o
Centro de Ressocialização Feminino de São José dos Campos, a jovem a
pediria em namoro imediatamente. Quando a bandida deixasse a prisão –
dali a alguns meses –, Suzane realizaria o sonho de se tornar presidente da
penitenciária por suplência. Havia outra vantagem em assumir o namoro no
cárcere. Um programa social desenvolvido em algumas cadeias do Sistema
Penal de São Paulo concede aos casais gays o benefício de dormir na mesma
cela. Em Tremembé, a ala especial destinada aos pares era chamada de
“gaiola do amor”. O compartimento era confortável e conferia privacidade às
detentas. Mas só tinha direito a esse privilégio quem mantinha parceiro xo
na prisão há pelo menos seis meses.
A partida de xadrez seguinte entre Suzane e Sandrão foi o grande dia. As
duas detentas surgiram luminosas no pátio da cadeia. Com a ajuda de
Luciana, Suzane abandonou o loiro-champanhe do cabelo e o tingiu de
marrom-escuro. Aplicou nas unhas pintadas de branco desenhos de ores
coloridas. Nos lábios, passou um batom vermelho-coral. Sandrão não cou
atrás. Fixou o cabelo com gel e caprichou na colônia masculina. Cara a cara,
a dupla começou o jogo de tabuleiro em silêncio. Depois de quase uma hora
movimentando bispos, cavalos, torres e peões, Suzane ensaiava coragem
para se declarar. Sandrão se antecipou:
— Não sei como será a sua reação ao que vou te dizer...
— Fala!
— Você já sabe, né?
— Acho que sei. Mas fala! – pediu Suzane.
— Eu estou apaixonada por você!
Com uma peça de xadrez na mão, Suzane olhou com sedução para a
adversária e cou calada. Arrumou o cabelo para trás, passou um elástico
para prendê-lo e lançou mão da sua energia manipuladora:
— O que você disse? Não ouvi direito – ngiu.
Irritada, Sandrão se levantou sem a menor paciência para jogos de amor.
Com receio de perder a oportunidade, Suzane pediu um momento e
Sandrão sentou-se novamente à mesa:
— É loucura! Mas eu também estou apaixonada por você. Nunca senti
isso antes, até porque sou heterossexual! – sustentou Suzane.
Diante da reciprocidade, Sandrão foi tomada pela emoção e chorou. A
líder contou um segredo à sua pretendente. Era um rinoceronte por fora, e
uma chinchila por dentro. Dura e frágil. “Essa minha brutalidade é uma
casca protetora. Sou romântica e delicada”, descreveu-se a mandachuva de
Tremembé. Como se diz no universo lésbico prisional, Suzane era
simplesmente a mina bife (mulher gostosa) mais bonita da cadeia. Na
tentativa de dar o primeiro beijo na amada, Sandrão curvou-se por cima do
tabuleiro. Uma carcereira agrou a demonstração de afeto e ensaiou
repreender o casal. Sandrão recuou e fez uma cara feia para a funcionária,
que engoliu a autoridade no mesmo instante. Suzane entrou em ação.
Aproximou o seu rosto com feições delicadas da carranca de Sandrão e deu
nela um beijo na boca longo, suave e molhado. Após a troca de carinho,
continuaram a partida de xadrez. Disfarçadamente, Suzane limpou a boca
com a manga da sua camiseta para se livrar da saliva de Sandrão. O casal
selou o namoro no mesmo dia, logo após a parricida derrubar o reinado da
líder com um xeque-mate dado pela rainha.
No dia seguinte, Sandrão terminou o namoro com Elize, que teve de
deixar a gaiola do amor. Seis meses depois, Sandrão e Suzane foram até a
secretaria declarar o relacionamento estável e o casal ganhou uma vaga na
ala dos casais. No aconchego da cama, Suzane e Sandrão faziam amor todas
as noites. Às vezes, mais de uma vez ao dia. Elas faziam a famosa cabaninha
com lençóis nos beliches e transavam gemendo alto na área restrita. O
barulho incomodava os demais casais homoafetivos, mas, como se tratava
de Sandrão, ninguém ousava reclamar.
Dentro da cadeia, Suzane falou sobre sua experiência gay com Sandrão
ao psiquiatra forense Rafael Dias Lopes, da Secretaria de Administração
Penitenciária (SAP). Contou ter achado estranho, no início, o envolvimento
com outra mulher, já que se considerava heterossexual. Mas disse que estava
carente e sentia necessidade de ter alguém ao seu lado. E Sandrão era o que
tinha ali, naquele momento. Suzane se disse arrependida do romance
homoafetivo por causa da exposição para todo o Brasil. Sobre a especulação
de ter se envolvido com a líder de Tremembé por interesse, a parricida
argumentou que, se quisesse proteção por meio de relacionamentos, teria
investido no promotor Eliseu José Bernardo Gonçalves, que tentou
forçadamente ter um envolvimento com ela. “Suzane contou que Sandra foi
o seu segundo relacionamento amoroso no presídio. As duas se conheceram
por volta de 2010 e caram como amigas por cerca de quatro anos. Por
insistência de Sandra, começaram a namorar”, escreveu o médico em um
laudo pericial psiquiátrico assinado em 30 de novembro de 2017.
Para as amigas de Tremembé, no entanto, Suzane dizia outra coisa.
Falava ter “asco” de Sandrão. Era comum ver Suzane evitando beijos da
namorada, alegando ser uma mulher reservada. Quando não, a beijava
rapidamente e limpava os lábios com as mãos imediatamente. Para Luciana,
a parricida dizia que a maior vantagem de namorar Sandrão é que ela era
facilmente manipulável. “A Sandra pensa que vamos nos casar lá fora. Muito
sem noção, né? Será que ela nunca se olhou no espelho?”, questionava
retoricamente.
Sandra Regina Ruiz Gomes tinha 32 anos quando conheceu Suzane.
Apesar de ter quase 90 quilos e aparência maltratada pelos anos de prisão, a
criminosa foi uma mulher bonita. Aos 20 anos, tinha cabelos ruivos longos e
rosto bem desenhado. Seu passado em nada lembra a mulher assustadora de
Tremembé. A vida da bandida mudou da água para o vinagre no dia 21 de
outubro de 2003. Sandra morava com os pais na periferia de Mogi das
Cruzes (SP) quando resolveu sequestrar – juntamente com o namorado,
Valdir Ferreira Martins – o adolescente Tallisson, de 14 anos. Com o
dinheiro do resgate, pretendia conhecer a ilha de Fernando de Noronha e
comprar um carro zero-quilômetro.
Tallisson era lho de Ana Maria, vizinha e amiga de Sandra. O garoto foi
escolhido porque a casa de seus pais era a mais bonita da rua, a única de
dois pavimentos e toda revestida com pastilhas de vidro colorido. Apenas
aquela moradia guardava dois carros na garagem. Mas nem de longe a
família de Tallisson era endinheirada. Um comparsa de Sandra, conhecido
como Formiga, capturou a vítima na saída da escola, por volta do meio-dia.
Improvisaram o cativeiro num imóvel desocupado da família de Valdir. Para
evitar contato com o resto da casa, onde circulavam os sequestradores, o
garoto cou trancado na suíte. À noite, na hora de levar comida à vítima,
eles apagavam todas as luzes da casa para o menino não reconhecer os seus
algozes.
A audácia dos sequestradores era digna de lme hollywoodiano.
Quando Formiga ligou para a casa de Tallisson para anunciar o sequestro,
foi Ana Maria, a mãe, quem atendeu. Ela cou desesperada e desmaiou. O
pai, Antônio, assumiu a negociação. Formiga garantiu que o adolescente
estava bem e exigiu 40.000 reais de resgate. Cínica, Sandra estava na casa da
vítima e testemunhou a a ição da família:
— Nós não temos todo esse dinheiro – argumentou Antônio.
— Tenta fechar por 30 mil – sugeriu Sandra, ngindo angústia.
— Não tem como! Só se eu vender a casa... – cogitou o pai.
Nos três dias de sequestro, Sandra seguia do cativeiro para a casa dos
pais do adolescente e de lá para o esconderijo novamente. Nos momentos
mais críticos, chegava a preparar água com açúcar para acalmar Ana Maria,
que não parava de chorar. No segundo dia, Antônio foi ao banco tentar um
empréstimo, e a mãe cou em casa na companhia da falsa amiga. No meio
da tarde, Formiga ligou para negociar pela segunda vez e Ana Maria
atendeu. Abalada, não conseguiu dialogar. Sandra assumiu as negociações
em nome da família e passou a falar com os próprios comparsas, numa
encenação digna de Oscar:
— Olha aqui, seus cretinos, os pais do Tallisson estão inconsoláveis! Isso
não se faz! É muito desumano! Vocês são uns monstros! [...] Esse valor está
fora de cogitação! Esquece! Podemos pagar 20 mil! Já sei, a polícia tem de
car fora, senão o menino morrerá... Essa parte eu entendi.
Mal Sandra bateu o telefone, Antônio chegou em casa com 2.000 reais
conseguidos com um agiota. Ana Maria entrou em desespero com a quantia
muito abaixo do exigido pelos sequestradores. Inescrupulosa, Sandra
sugeriu aos pais de Tallisson fazer uma vaquinha na vizinhança para
conseguir pelo menos mais 2.000 reais, já que o casal era muito querido
graças à prática de caridade na igreja do bairro. Na mesma noite, Sandra,
Antônio e Ana Maria saíram pela rua passando uma sacolinha de casa em
casa em prol da vida de Tallisson. Depois de percorrer quase o bairro inteiro,
conseguiram somar 4.500 reais. No dia seguinte, pela manhã, Formiga ligou
para negociar pela terceira vez. Antônio atendeu:
— Tudo o que temos é 4.500. Em nome de Deus, liberem o meu lho
por esse valor! – suplicou o pai aos prantos.
— Sério que a vida do seu lho vale só esse troco? Dez mil reais ou ele
morre ainda hoje! – anunciou o sequestrador aos risos.
Sem palavras para argumentar, Antônio largou o telefone no chão. Ana
Maria chorava tão alto que toda a vizinhança ouvia. Um aglomerado de
populares cou de sentinela na rua para acompanhar o desfecho do
sequestro. Os mais religiosos se deram as mãos e zeram uma roda de
oração. Um vizinho tirou o celular do bolso e sugeriu acionar a polícia.
Sandra interpelou, pediu um momento, pegou o telefone da casa e assumiu
mais uma vez as negociações em outro ato cênico. Falou com os seus
parceiros.
— A parada é a seguinte: você pediu para não ligarmos para a polícia. A
gente atendeu a essa exigência para preservar a vida do menino. Chegou a
hora de pôr um ponto nal. A gente não aguenta mais. Aceite os 4.500 e
solte o garoto!
— Um momento! – pediu Formiga.
Do outro lado da linha, Valdir e Formiga entenderam a mensagem: eram
os 4.500 reais ou nada. Resolveram aceitar. Antônio deixou o dinheiro numa
lata de lixo próxima da estação de trem Braz Cubas, nos cafundós de Mogi
das Cruzes, e os bandidos pegaram imediatamente. Sandra, Valdir e
Formiga foram até o cativeiro soltar o adolescente. Ao abrir a porta, para
surpresa do trio de sequestradores, o menino havia saído da suíte, mas não
conseguiu escapar da casa. Ficou na sala vendo TV. Quando se deparou com
Sandra e sua gangue, Tallisson levou um susto:
— Tia Sandra, você que me sequestrou? Bem que eu estava
reconhecendo a sua voz...
Tallisson também identi cou Valdir. O criminoso era amigo de seu pai e
os dois jogavam pelada juntos aos sábados. Sem saída, Valdir imobilizou a
vítima com um mata-leão. Sandra amarrou uma fronha de travesseiro na
cabeça do adolescente e passou um barbante para imobilizar os braços e as
pernas, jogando-o no porta-malas do carro do namorado.
Os três sequestradores seguiram para um local conhecido como Prainha,
um terreno deserto e pantanoso, afastado da cidade. Tallisson cou calado
durante o trajeto de quase uma hora, fazendo os sequestradores imaginarem
que ele havia morrido por sufocamento. Dentro do carro, chegaram a
comemorar. Entretanto, o menino continuava vivo.
Valdir arrancou a fronha da cabeça de Tallisson. O menino gritava por
socorro, mas ali, no meio do nada, ninguém ouvia os seus apelos. Por
precaução, Sandra pegou um lenço de cabeça todo orido e en ou na boca
de Tallisson. Valdir sacou uma arma Rossi calibre 38 com cabo de madeira e
apontou para a cabeça do adolescente. Sandra interrompeu:
— Espera! Espera! Espera! Não atira!
— Por quê? Tá louca? Ele vai contar tudo para os pais! – esbravejou
Valdir.
— Quem vai matar o menino é o Formiga! Ele tem 17 anos, é menor de
idade. Não pega nada pra ele! Já um de nós pegaria brincando 30 anos –
previu Sandrão.
Nem precisou de muita lábia para convencer Formiga a fazer aquela
barbaridade. Tallisson se ajoelhou involuntariamente, arregalou os olhos e
ouviu dos sequestradores que estava morrendo porque desobedeceu a
ordem de não sair da suíte.
O menino usou o olhar para implorar pela última vez, mas foi ignorado.
Formiga encostou o cano da arma na testa de Tallisson e deu um único
disparo. O projétil estourou o crânio. A vítima sucumbiu a tamanha
violência vestindo uniforme escolar. Atrozes, os assassinos só deixaram o
local depois de afundar o corpo dele na lama.
Com uma simples quebra de sigilo telefônico, a polícia chegou ao
número do celular de Formiga. Pressionado, confessou tudo e entregou os
comparsas. Sandra e Valdir fugiram. Como tinha 17 anos, conforme
previsto, Formiga foi apreendido, recolhido ao Centro de Atendimento
Socioeducativo ao Adolescente e punido com medidas socioeducativas,
como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O casal teve
um destino bem mais amargo. Por estarem foragidos, ela foi condenada à
revelia a 27 anos de cadeia e ele, a 30. Sandra foi julgada à revelia e
capturada um ano depois de ser sentenciada.
Enamoradas, Suzane e Sandrão trocavam carícias e beijos no pátio da
penitenciária, na capela e até na sala da direção, à qual tinham acesso a
qualquer hora do dia. No início, Elize teria tentado reconquistar Sandrão.
Suas amigas diziam que ela era tão bonita quanto Suzane, ou mais. Elize
cumpria pena de 16 anos. Na cadeia, fazia sucesso entre as mulheres.
Segundo fofocas de pavilhão, Sandrão chegou a car com as duas assassinas
simultaneamente. No entanto, depois de ser rejeitada, Elize parou de falar
tanto com Sandrão quanto com Suzane e engatou romance com uma
latrocida e depois com um homem trans que tentou matar o avô com uma
martelada.
Graças ao prestígio com a diretoria de Tremembé, Sandrão e Suzane
conseguiram emprego na o cina de costura da penitenciária. Suzane cou
com o disputado posto de coordenadora de produção. Sua tarefa era
scalizar se as demais detentas estavam costurando as roupas conforme o
desenho dos moldes. Lá eram fabricadas as calças beges dos presos e os
uniformes dos agentes penitenciários. Sandrão fazia a manutenção do
maquinário, uma tarefa braçal. Iludida, Sandrão começou a fazer projetos
para a vida pós-cárcere. Sonhava montar o próprio negócio com Suzane.
Planejava algo na indústria têxtil, já que as duas estavam experts em corte e
costura. Falsa, a parricida incentivava a namorada a fazer planos.
No primeiro ano de namoro, Suzane começou a reclamar da falta de
dinheiro. Com a exclusão da herança dos pais, dizia ter cado na miséria.
Denivaldo Barni, seu advogado e tutor, havia conseguido para a assassina,
junto ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), uma pensão de dois
salários mínimos pela morte dos pais. Segundo dados do INSS, a jovem
recebeu entre 31 de outubro de 2002 e 3 de novembro de 2004 o valor de
17.640 reais em valores da época pela morte de Marísia von Richthofen. No
mesmo período, recebeu 27.334 reais pela morte de Manfred. O benefício só
foi encerrado quando ela completou 21 anos, como prevê a lei. No entanto, o
Ministério Público pediu à Justiça o ressarcimento do dinheiro porque não
fazia sentido a homicida ser remunerada por uma morte de sua autoria. O
caso se arrastou por dez anos pelo sistema judiciário do país. Em 2013, a
ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou
que Suzane devolvesse aos cofres públicos 44.500 reais. Até aquele momento
a parricida tinha como fonte de renda seu salário na confecção de
Tremembé e um único patrimônio, o apartamento em São Paulo deixado
pela avó paterna, avaliado em 1 milhão de reais. Ambiciosa, Suzane achava
pouco para recomeçar uma vida depois dos 30.
Numa das visitas feitas pelo advogado-pai Denivaldo Barni em
Tremembé, em 2014, Suzane falou do seu namoro com Sandrão e o defensor
condenou veementemente o enlace homoafetivo e a tintura marrom no
cabelo da lha-cliente. “Você é linda com os cabelos loiros”, sustentou o
defensor. Barni só não implicou mais com o romance porque havia uma
notícia pra lá de boa. Já no mês seguinte, Suzane teria direito de pedir à
Justiça progressão para o regime semiaberto. Na nova fase, a detenta faria
“saidinhas” da cadeia no Natal, Ano Novo, Páscoa, Dia das Mães, Dia dos
Pais e Dia da Criança. Em cada uma dessas datas festivas, teria sete dias em
liberdade. No entanto, a detenta teria de ser avaliada antes por um exame
criminológico, conforme prevê a lei de execuções penais (LEP).
Para alcançar o semiaberto, Suzane também teria de informar à Justiça
onde iria passar os sete dias em liberdade a cada saidinha. Ficou pálida
quando soube o endereço. Barni teria adaptado o quarto do lho com uma
cama de casal para Suzane dormir de conchinha com o primogênito. A
assassina não gostou da proposta, mas resolveu não se manifestar naquele
momento. Pediu ao advogado-pai que desse entrada ao pedido de
progressão de regime. Barni saiu da cadeia comemorando. No dia seguinte,
a parricida deu um bote certeiro no defensor.
Suzane foi até o gabinete da juíza que executava a sua pena e fez um
pedido incomum: não queria progredir para o semiaberto. A magistrada
aconselhou a detenta a falar com o seu advogado, pois ele daria entrada no
pedido nos próximos dias. Costureira em Tremembé, Suzane não dava
ponto sem nó. Pediu à juíza uma folha de papel-ofício em branco e uma
caneta. Mesmo algemada, escreveu de próprio punho um documento
destituindo Barni da sua defesa e anexou o documento em seu processo de
execução penal. Quando foi questionada à época por que abriu mão do
regime mais brando, Suzane disse que não queria sair de Tremembé. Sem
Barni, a criminosa passou a ter assistência jurídica do defensor público
Saulo Dutra de Oliveira.
Uma semana depois, desavisado, Barni pediu no balcão do fórum de
Taubaté o processo de execução penal de Suzane para incluir nele o pedido
de progressão de regime. Um funcionário se negou a entregar os autos,
justi cando que ele não advogava mais para a detenta. Ímpio, impaciente,
irritado e iludido, Barni argumentou se tratar de um equívoco. “Eu
represento os interesses da Suzane há doze anos”, esbravejou, segundo
relatos de funcionários do fórum de Taubaté. Barni Jr. acompanhava o pai e
pedia calma. Do seu gabinete, a juíza ouviu os gritos no balcão e mandou
chamar Barni Pai. Ao advogado, a magistrada mostrou o documento feito à
mão por Suzane. Ao ler aquelas linhas azuis escritas com caneta Bic, o
advogado fez um escândalo. “Foi aquele sapatão dos infernos que convenceu
a minha Su a escrever essa merda!”, esbravejou. Barni Jr., contido, pediu ao
pai para ter modos, pois estava no gabinete de uma juíza. Descontrolado, o
advogado saiu do fórum e correu para Tremembé. Na portaria, segundo
relatos de agentes penitenciários, Barni suplicou para falar com Suzane. Ela
não o atendeu. Barni Pai então fez uma última tentativa. Ainda segundo
relatos de agentes, o advogado gritou do portão inúmeras vezes pela lha-
cliente: “Su, meu amor!”, “Su, meu amor!”, “Su, meu amor!”. O apelo foi
ouvido, mas não teve resposta. Su descartou da vida os dois advogados de
forma de nitiva. Barni Pai e Barni Jr. nunca mais a viram pessoalmente. Só
pela TV.

* * *

Era comum Suzane receber convites para programas de televisão.


Quando vivia sob tutela de Barni, a assassina recusava todos. Aconselhada
por Sandrão e pela diretora da penitenciária de Tremembé, Eliana de Freitas
Pereira, a assassina resolveu atender à imprensa. Quem fazia o ltro para os
pedidos era Eliana. Nessa fase, a criminosa deu uma entrevista grande para a
revista Marie Claire. Mas a diretora fez exigências à jornalista Maria Laura
Neves: Suzane não tocaria no passado, não falaria sobre a noite do crime e
muito menos sobre relacionamentos com outras presas. Na entrevista,
publicada na edição da Marie Claire de outubro de 2014, Suzane não tocou
no nome de Sandrão.
A jornalista Maria Laura Neves falou sobre as suas impressões a respeito
de Suzane e de Tremembé:
Fui recebida na sala da diretoria da penitenciária. A Suzane estava na
o cina de costura e foi chamada para a entrevista. Ela entrou tímida na sala
em que eu, o fotógrafo André Vieira e a doutora Eliana a aguardávamos. De
uniforme azul, Crocs nos pés, unhas vermelhas e cabelos soltos, nos
cumprimentou sorrindo e recusou a água e o café que lhe oferecemos.
Visivelmente tensa e insegura, sentou-se à nossa frente com as mãos entre as
pernas. De cara, pediu que não ligássemos o gravador. “Tive experiências
ruins no passado com outras entrevistas”, disse Suzane, temendo que o áudio
fosse divulgado na TV. Antes de responder às perguntas, buscava a
aprovação da diretora com o olhar. Negou-se a responder às mais delicadas,
hesitou em tantas outras ou as comentou laconicamente. Suzane não quis
falar sobre os irmãos Cravinhos. Em nenhum momento ela se emocionou,
mas disse que havia chorado naquela manhã com medo de dar entrevista.
Falou dos pais com carinho e, algumas vezes, como se não tivesse
participado da morte deles. Contou que algumas semanas antes levou um
tombo, bateu a nuca e cou desacordada. Quando despertou, não conseguia
falar nem se mexer. “Fiquei assustada”, a rmou. O episódio, segundo ela,
teria mudado a sua visão do mundo. “Percebi que a vida pode ir embora em
um minuto”, disse, como se fosse seu primeiro contato com a morte.
Também se referiu ao crime como se tivesse ‘acontecido’ e não sido
praticado por ela. Com um português correto e a voz doce, explicou o
motivo pelo qual decidiu falar. “Quero que as pessoas saibam que sou um
ser humano comum. Cometi um erro, estou pagando por ele e quero
recomeçar minha vida”. Segundo as colegas de cadeia, a ‘nova’ Suzane, mais
alegre e aberta, era fruto do rompimento com o advogado Denivaldo Barni,
amigo de seus pais que a acompanhou durante todos esses anos. De acordo
com a criminosa, Barni exerceria uma proteção obsessiva sobre ela, a ponto
de impedir amizades.
Suzane falou do seu ofício em Tremembé na entrevista à Marie Claire.
Ela trabalhava na mesa de distribuição de tarefas da o cina de costura da
Funap (Fundação Professor Dr. Manoel Pedro Pimentel, que emprega presos
dentro de cadeias paulistas), coordenando as funções de outras detentas.
Admitida em 2008, recebeu promoções e ocupava o cargo máximo na
hierarquia, pelo qual recebia 705 reais mensais. Disse que guardava boa
parte do dinheiro e gastava o restante com compras de supermercado
organizadas no presídio, que incluíam produtos de higiene pessoal e
alimentos, e também com consultas com um dentista particular que atendia
ali dentro. “Quando cheguei a Tremembé, z o caminho que todo mundo
faz: comecei varrendo o pátio, um trabalho que não tem salário, mas conta
para remissão da pena. Depois fui servir comida, com uma pequena
remuneração. Na sequência, virei monitora da educação, era a assistente da
professora e dei aulas de inglês para um grupo de presas, até que entrei na
o cina”. Suzane contou que aprendeu a fazer trabalhos manuais – bordou
toalhas de mesa, fronhas – e que lia muito. Gostava de obras de cção, como
as do americano Nicolas Sparks, e de autoajuda. Na época, disse estar lendo
Quem me roubou de mim?, do padre Fábio de Melo.
Nascida e criada em uma família de classe média alta, a rmou que se
surpreendeu com os hábitos e histórias de vida das colegas. “Outro dia uma
presa colocou a escova de dentes no chão. Ela não sabia que não podia fazer
aquilo por causa da sujeira. Isso me fez ver que as pessoas não sabem regras
básicas de higiene e valorizei ainda mais a educação que tive”, disse à revista
Marie Claire. A diferença social em Tremembé, segundo Suzane, não era um
problema. “Depois que me conhecem, as presas veem que não sou fresca e se
surpreendem quando sento no chão para comer com elas”, disse. Ela falou
da sua rotina na cadeia. Começava a trabalhar às 7h30, almoçava na cela das
11h30 às 13h e encerrava o expediente às 17h. Nos dois turnos, havia uma
pausa de 15 minutos para o café, momentos em que fazia caminhadas para
manter a forma. “Até na penitenciária dá para ter alguma vaidade”, frisou.
Entre os rituais de beleza, Suzane passava hidratante no corpo, pintava as
unhas, cortava e hidratava os cabelos. Segundo ela disse na entrevista, todos
os seus pertences da vida cam em uma prateleira perto de sua cama. “São
algumas cartas e uniformes. Se tenho algo fora da cadeia, não sei”, reforçou.
Na época da entrevista à Marie Claire, Suzane não recebia visitas.
Contou que deixara de falar com o irmão Andreas havia 11 anos, quando ele
ia vê-la aos domingos na Penitenciária Feminina da Capital, o primeiro
presídio em que morou. “Ele era um menino e nos despedimos como se ele
fosse voltar na semana seguinte. Nunca voltou”. O motivo da desavença seria
a disputa pela herança. Ela disse que Andreas se tornou professor
universitário e morava com a avó materna e o tio, os únicos parentes dos
Richthofen. “Meu grande sonho é me reconciliar com meu irmão”, pontuou.
“Sei que não tenho direito ao que era dos meus pais, nada daquilo me
pertence. Dele [Andreas], quero apenas o amor e o perdão”, reforçou a
parricida. Sobre a privação da liberdade, sentia falta da noite ao ar livre – as
presas voltavam para a cela antes do m do dia. “Fico paralisada quando
vejo o céu e as estrelas. A noite tem um cheiro característico que a gente não
percebe normalmente”, losofou a assassina. Suzane também contou que
não usava roupas comuns há anos. “Não sei mais o que é colocar uma calça
jeans ou vestir preto”, reclamou. Disse que tomava uoxetina, antidepressivo
prescrito pela psiquiatra do presídio. “Quando cheguei aqui só chorava, mas
nunca tive di culdade para dormir.” Suzane confessou que não conseguia se
perdoar, que seria muito difícil ser completamente feliz, mas que tentava
encontrar a felicidade na medida do possível. “Não tem como olhar no
espelho e não lembrar [do crime]. Cometi um erro, vou lembrar dele para
sempre. Todos os dias penso que queria acordar e ver que tudo foi um
pesadelo.” Contou que há pouco tempo esteve presa em Tremembé a mãe de
um amigo de infância, que lhe revelou os rumos de sua turma de escola.
“Um foi morar em Dubai, o outro, na Alemanha. Acho que [se não tivesse
cometido o crime] estaria morando fora, talvez tivesse lhos”, imaginou a
assassina. Na época, seus planos eram mudar-se para o novo pavilhão de
Tremembé e continuar trabalhando na Funap, onde ‘fazia o que gostava’.
Sonhava com a maternidade e construir uma família. “Estou pagando pelo
meu erro e quero a chance de recomeçar”, disse, com uma candura que não
combinava com o crime estarrecedor planejado por ela.
Após a repercussão da entrevista de Suzane à Marie Claire, outros
veículos de comunicação a procuraram. A produção do Fantástico e a revista
Veja tentaram falar com a assassina, mas ela cobrou cachê. As entrevistas
foram descartadas pelos dois veículos. Na mesma época, a produtora do
apresentador Gugu Liberato investiu na parricida e arrematou dela a sua
primeira entrevista para a televisão desde a condenação, ocorrida dez anos
antes. Sandrão tinha um irmão que trabalhava na produção da TV Record e
ele fez os primeiros contatos. O rapaz foi visitar a sequestradora. No pátio de
Tremembé, eles falaram de negócios:
— Gugu quer entrevistar Suzane!
— Ela cobra cachê! – advertiu Sandrão.
— Quanto?
— Cento e vinte mil reais! – propôs a bandida.
O rapaz levou a proposta à produtora de Gugu e eles concordaram com
o valor. Sandrão apresentou a ideia à namorada:
— A miséria acabou! – iniciou a conversa.
— Que miséria, sua louca?
— Você não estava reclamando que está sem dinheiro? Arrumei um
lance para você!
— O que é?
— Gugu Liberato quer te entrevistar.
— Rola cachê?
— Sim!
— Quanto? – perguntou Suzane.
— Cem mil reais! – mentiu Sandrão.
Desonesta, a sequestradora planejou passar a perna na namorada e
embolsar 20 mil reais a título de comissão. O encontro do apresentador com
Suzane ocorreu dentro da penitenciária de Tremembé, e a conversa foi
exibida em duas partes na TV Record. No primeiro bloco do programa, a
detenta caprichou no drama. Olhando para a câmera, pediu perdão ao
irmão. Disse sentir “muita, muita, muita” saudade dos pais, principalmente
aos domingos, quando as suas colegas de cadeia tinham visitas de familiares
e ela, coitada, não recebia ninguém. Jurou “por Deus” estar arrependida do
“erro do passado”. Contou sonhar muito com a mãe caminhando ora num
campo, ora no meio do mato. “Sinto que ela me protege aqui dentro da
cadeia”, frisou.
É raro Suzane trazer verdades. Para Gugu, a criminosa resolveu abrir o
coração. Pela primeira vez, por exemplo, a assassina deixou de lado a
cantilena de ter sido manipulada por Daniel no passado. Assumiu que a
ideia de matar Manfred e Marísia foi tanto dela quanto do ex-namorado.
“Quando um não quer, dois não fazem”, justi cou. No Tribunal do Júri,
orientada por advogados, ela tinha dito ter partido exclusivamente de Daniel
a iniciativa de exterminar o casal Richthofen. Desde o crime, Suzane sempre
sustentou ter matado para se livrar de uma vida opressora e sufocante. “Fiz
para ter liberdade”, contou diante do júri. Na entrevista para a TV Record,
essa tese foi desconstruída pela criminosa. No meio da conversa, Gugu faz
uma a rmação seguida de uma pergunta: “Você e o Daniel sonhavam em ter
liberdade. E vocês foram buscar essa liberdade. Eliminando os dois, vocês
teriam a casa, o carro e teriam dinheiro para seguir em frente. A verdade é
essa?”. Suzane cou calada por alguns segundos e olhou para o chão. Moveu
a cabeça para cima e para baixo em sinal positivo, encarou o apresentador e
verbalizou segura de si: “SIM!”.
Na sequência, fez um comentário espontâneo ao contabilizar o crime
como um prejuízo pessoal: “Depois [de mandar matar os meus pais], o que
eu descobri? Que perdi tudo!”. E concluiu com uma frase doce na boca dos
presidiários: “Eu errei e estou pagando”, repetindo o que havia dito na
entrevista à Marie Claire. Mesmo reabrindo feridas profundas e importantes
do passado, Suzane nem sequer verteu uma lágrima. Pelo contrário, sorriu
21 vezes durante o encontro com Gugu.
Na segunda parte da entrevista, Sandrão entrou em cena e deu um
depoimento. Disse ter se interessado por Suzane à primeira vista, em 2009,
ou seja, bem antes de o namoro começar. Mas ela acreditava que jamais teria
algo com a assassina pelo fato de, até então, a jovem ter demonstrado ser
heterossexual. As duas zeram planos de, em liberdade, montar juntas uma
confecção para fabricar calças jeans em escala industrial.
Suzane tinha 31 anos quando conversou com Gugu. Veja algumas
perguntas feitas a ela pelo apresentador:
Quais os piores momentos que você passou na vida desde 2002?
Nossa, não dá para escolher só um pior momento. Foram tantos...
Enfrentei uma rebelião. Não foi fácil. Fui ameaçada de morte. Foi horrível,
horrível, horrível. O momento do júri foi bem difícil. A saudade e a tristeza
que sinto aqui dentro também são momentos ruins.
Você é uma mulher vaidosa?
A vaidade faz parte de mim. Mulher tem de se cuidar em qualquer lugar.
Mas aqui na cadeia não dá para fazer muita coisa. Dá para pintar as unhas,
passar uma maquiagem. Aqui, o uniforme é uma calça de elástico. Olha,
Gugu, faz tanto tempo que não uso uma calça jeans que nem sei o número
que visto.
O que você vai fazer quando sair da prisão?
A Justiça me deu uma sentença e estou cumprindo direitinho. Mas,
quando eu sair daqui, quero uma chance de poder estudar e trabalhar.
Você abriu mão da herança?
Abri mão de tudo, tudo, tudo. A Justiça já até homologou a minha
desistência. Não tem mais nenhuma briga pelos bens que eram dos meus
pais. Ficou tudo com o meu irmão. Eu não falo mais com ele. Infelizmente
eu não consegui nenhum tipo de contato com ele.
Você sabe quanto em dinheiro o Andreas herdou?
Não sei. Esse dinheiro nunca foi meu. Nunca tive direito a nenhum
centavo desse dinheiro. Era dos meus pais e agora é do meu irmão. Não
quero nem saber desse dinheiro.
Você tem falado com o seu irmão?
Não. Ele nunca quis me visitar. Mas Deus sabe do meu coração. Deus
sabe do quanto eu o amo, do bem que eu desejo a ele. [...] Quando tudo
aconteceu, o Andreas era adolescente. Eu não sei o que aconteceu com ele
depois de tudo isso. Na época, ele tinha dito que não queria car longe de
mim. Durante muito tempo ele ia me visitar. Mas depois ele sumiu. Eu o
entendo. É constrangedor visitar alguém na cadeia. Tem o procedimento de
revista. É um lugar triste, pesado. Eu nunca quis isso para ele. Mas ele fez
isso por mim, pois foi me visitar na Penitenciária Feminina da Capital por
vários domingos. Só sei que ele deve ter sofrido pra caramba, porque eu
sofri também. Ele deve ter sido apontado na rua por causa do sobrenome.
Devem ter perguntado a ele assim “ei, você é o irmão da Suzane?”. Eu sei que
causei muito mal a ele. Mas queria que ele conseguisse me perdoar. Queria
que ele pudesse estar presente na minha vida.
Você lembra da conversa que teve com o seu irmão logo após o crime?
Lembro. Eu cheguei pra ele e contei tudo, tudo, tudo o que tinha
acontecido. Ele chegou pra mim e disse: “Su, eu perdi o meu pai. Perdi a
minha mãe. Perdi o meu melhor amigo [Daniel]. Eu não quero perder a
minha irmã. Eu te perdoo. Eu vou car com você”.
Você acha que ele te ama?
Não sei. Eu desejo que sim porque eu o amo. Mas, ainda que ele não me
ame, vou continuar a amá-lo. Gugu, nem sei como o meu irmão está hoje
sicamente.
Se o Andreas estiver nos assistindo, o que você diria a ele?
Eu te amo. Só Deus sabe o quanto eu te amo!
Como era a sua mãe?
Minha mãe era muito carinhosa. Muito presente. Ela conversava. Era
uma pessoa maravilhosa. Não tenho nada, nada, nada para falar dela. Só
coisas boas. Tanto que só tenho lembranças doces.
Do que você tem saudades?
Tenho saudades da minha família, do meu irmão. Tenho saudades da
vida que eu levava, pois agora levo uma vida bem diferente.
Você carrega algum tipo de culpa?
Tenho as minhas culpas, sim. Estou pagando por elas. E não estou
falando só de cadeia. Putz, eu não tenho mais a minha família. Eu não tenho
mais a minha mãe. Se eu tivesse mãe, tenho certeza de que ela viria me
visitar aqui na cadeia todos os domingos, como eu vejo as mães visitando as
minhas amigas aqui dentro. Eu não tenho mais os meus pais, o meu irmão,
minha vida, nada daquilo. Quando você está preso e recebe visitas, isso dá
um certo sentido, um conforto, uma ajuda. Quando você não tem quem te
visite, a vida é mais difícil. Eu estou sofrendo.
Você sonha com seus pais?
Sonho mais com a minha mãe. Outro dia sonhei que ela estava num
campo cheio de ores. Era um lugar lindo. Sinto que ela me protege aqui
dentro.
Sua mãe fala alguma coisa para você nesses sonhos?
Não.
Sobre o crime que você planejou, não passou pela sua cabeça que
iriam descobrir?
Não conseguia pensar em nada. Não conseguia pensar no depois. Fui
inconsequente, talvez. Pode ser que a culpa tenha sido das drogas, porque as
drogas tiram a gente do nosso equilíbrio, do eixo.
Como nasceu a ideia de matar os seus pais?
Gugu, eu e eles [irmãos Cravinhos] não fomos uma combinação legal.
Não foi bom. Não resolvemos tudo na véspera, sabe? Todos dizem que eu fui
a mentora intelectual, a mandante, o cabeça... Isso não é verdade. Gugu, uma
cabeça só não pensa em tudo. Foi uma junção de coisas, uma concorrência
de ideias. Tanto eu quanto o Daniel temos culpa. Mas diria que o Cristian
era o que menos sabia dos planos. Não tem mais como esquecer tudo o que
aconteceu. Isso faz parte da minha vida. Faz parte da minha história. Como
eu queria que as coisas tivessem sido diferentes.
Como estava a sua cabeça na hora do enterro dos seus pais?
Sabe quando você não acredita no que está acontecendo? Eu via aquilo e
parecia que não era comigo. Parecia que não era a minha vida. Parecia que
era um lme. Eu estava vivendo aquilo, mas parecia que não era de verdade.
Não sei te explicar. Acho que era um estado de choque. Eu me perguntava:
ei, sou eu que estou aqui? Esse é meu pai? Essa é a minha mãe? Era um
turbilhão dentro de mim.
Como você gostaria que a sociedade visse você quando sair da prisão?
Às vezes, nem eu acredito que estou presa há tanto tempo. Nem acredito
que tenho 31 anos, pois fui presa logo depois de completar 19. Eu envelheci
e amadureci muito nesses anos. Não é fácil estar presa. Ainda mais se você
estiver sozinha.
Se seus pais aparecessem aqui agora, o que você diria a eles?
Perdão, perdão, perdão. Vocês sempre tiveram razão. A minha mãe
falava que o Daniel ia me levar para o buraco e eu não acreditava. Queria
poder dizer que ela tinha razão. Gugu, é muito difícil viver a vida sem uma
parte, sendo que essa parte eu perdi por minha culpa.
Pelos dados consolidados do Ibope, o programa do Gugu na TV Record
alcançou 17 pontos (cada ponto equivale a 67 mil domicílios na Grande São
Paulo). Ao apresentar a primeira entrevista com Suzane, Gugu cou quase
duas horas na liderança entre as TVs abertas do país. Como agradecimento,
o apresentador comprou três máquinas de costura industrial da marca
Sansei, uma das melhores do mercado, e mandou uma carreta entregá-las
em Tremembé, para o casal recomeçar a vida após sair da cadeia.
Logo depois da entrevista, a relação de Suzane e Sandrão começou a
azedar. As duas passaram a discutir por bobagem. No dia 11 de maio de
2016, foi o cializada a transferência da sequestradora para a penitenciária
de São José dos Campos. Na véspera, as duas combinaram de manter o
namoro. “A partir de agora, seremos dois corações vivendo em mundos
separados”, escreveu Sandrão para Suzane na despedida. Três meses depois
de chegar na nova moradia, a sequestradora foi bene ciada pelo regime
semiaberto e rapidamente migrou para o aberto. Em 1º de agosto de 2016,
Sandra estava em liberdade. Ela foi morar com um irmão em Mogi das
Cruzes, no mesmo bairro onde viviam os pais de Tallisson.
Econômica no pranto, Suzane não chorou pela separação. Sem
namorada, saiu da gaiola das casadas e voltou para o pavilhão das solteiras.
Nesse retorno, fez um teste para saber se o poderio da sequestradora havia
sido transferido para a sua conta. Pediu à direção da cadeia para retornar à
mesma cela de antes, onde estava a sua seguidora número um, Luciana
Olberg, a pedó la. A exigência da assassina, incomum em presídios, foi
atendida imediatamente.
Satisfeita, Suzane caminhou sorridente pelos corredores com o nariz em
pé, como fazia a ex-namorada. Para marcar a liderança, voltou a ser loira e
andava com os cabelos sedosos balançando ao vento. Para realçar o ar de
superioridade, não olhou para a cara de nenhuma presa enquanto
borboleteava pelo pavilhão, exatamente como fazia Maria Bonita. Já as
demais presidiárias a olhavam admiradas de cima a baixo. Ao pôr os pés de
volta na cela, Suzane pediu – pediu não, ordenou – que as colegas de cárcere
zessem uma faxina geral e arrumassem o ambiente. Em seguida, passou
outra demanda às subordinadas: uma massagem caprichada no corpo todo.
Na mesma tarde, mandou as “assessoras” pintarem as unhas dela – dos pés e
das mãos – de vermelho-sangue. Linda e empoderada, Suzane realizou o seu
maior sonho da vida no cárcere: tornou-se a criminosa mais in uente de
Tremembé. Passou a andar com o molho de chaves na cintura, o maior
símbolo de prestígio na penitenciária.
O poder de Suzane só fazia crescer. Eliana, a diretora de Tremembé, por
exemplo, chamava a parricida de “ lha”. E a criminosa devolvia o carinho
chamando-a de “mãe”. A relação entre as duas causava ciumeira nas detentas
e estranhamento entre as funcionárias. Certa manhã, a assassina estava
trabalhando na o cina de costura, quando foi chamada pela “mãe”. Uma
carreta estava do lado de fora tentando entrar na cadeia com as três
máquinas de costura enormes enviadas por Gugu Liberato. Suzane abriu um
sorriso de orelha a orelha, mas Eliana cortou a alegria da moça:
— Su, minha lha, se essas máquinas entrarem na penitenciária, elas
serão tombadas e passarão a ser patrimônio do governo – advertiu a
diretora.
— Mãe, eu não tenho para onde mandá-las! – lamentou Suzane.
— Mande entregar na casa da Sandra – sugeriu Eliana.
A carreta deu meia-volta e seguiu para Mogi das Cruzes. Sandrão
recebeu as máquinas e viu nelas uma evidência de vida a dois quando
Suzane saísse da cadeia. Alegando estar em um relacionamento sério, a
sequestradora conseguiu uma permissão para visitar a namorada em
Tremembé. Vestiu-se feito homem. Pôs camisa social e calça jeans justa, uma
gravata, e não se esqueceu da cueca, o seu maior orgulho. No esperado
encontro, Sandrão se armou para dar um beijo de novela das nove na
amada, mas Suzane retribuiu com uma bitoca de novela das seis. Para
relembrar os velhos tempos, decidiram jogar uma partida de xadrez.
Sandrão queria conversar, e Suzane cou o tempo todo com a cara
amarrada, concentrada no movimento das peças do tabuleiro:
— Tá tudo bem com você, meu amor? – quis saber a sequestradora.
— Sim! – respondeu a jovem, monossilábica.
Sandrão estava apaixonada, mas não era do seu per l mendigar afeto.
Enquanto o jogo avançava no tabuleiro, a lésbica parruda tentou pela
segunda vez engatar uma conversa:
— Com qual peça do xadrez você se identi ca? – perguntou Sandrão.
— Com a rainha. Ela é a representação feminina no jogo. Assume uma
posição inferior à do rei, mas quando se movimenta vai bem mais longe –
losofou.
— Você quis dizer dama, né? – corrigiu Sandrão.
— Dama e rainha são a mesma coisa! – rebateu.
— Como rei começa com R, a sua esposa não pode ser chamada de
rainha para não ter duas pedras com a mesma inicial. Então chame de dama,
que é o correto! – ensinou a sequestradora.
O clima esquentou no tabuleiro e as seguidoras de Suzane se
aproximaram. Por uma questão de segurança, a partida foi suspensa. O
exército da parricida já era formado por Luciana e mais duas bandidas.
Sandrão entendeu que em Tremembé a sua namorada era a rainha e não
uma dama. A sequestradora pediu privacidade para falar de negócios e a
gangue recuou.
— Já depositaram o dinheiro da entrevista com o Gugu na sua conta? –
perguntou Sandrão.
— Sim.
— Qual o valor?
— Cento e vinte mil reais. Por quê? – questionou Suzane.
— Então... Você sabe que 100 mil são seus e 20 mil são meus, né? Foi um
acerto que z...
— Um acerto? Sério? Com quem? E onde estão esses 20 mil que você
reivindica?
— Na sua conta!
— Pois se estão na minha conta, são meus! – nalizou Suzane, virando
as costas e saindo.
Incrédula, Sandrão cou estática ao ver a rainha loiríssima e seus peões
batendo em retirada diante dos seus olhos. Mas deu tempo de a
sequestradora subir na torre e partir para o ataque:
— Suzane, espera!
A assassina parou e virou-se, mas não se aproximou. As duas eram
observadas de longe pelo bando de Suzane. Sandrão deu o xeque-mate:
— As três máquinas de costura que o Gugu me deu estão lá em casa!
Valem 36 mil reais!
— Elas não são suas! Você sabe disso! – rebateu Suzane.
— As máquinas estão na sua casa? Não, né? Até porque você não tem
casa. No seu prontuário está escrito “detenta sem referência familiar”. Sem
pai, nem mãe porque você os matou. Vou repetir para você não esquecer: as
máquinas estão na minha casa! Ou seja, são minhas!
Dito isso, Sandrão saiu da vida de Suzane para sempre.

* * *

Solteira e sem máquinas de costura, Suzane empenhou-se em aumentar


o seu exército de seguidoras para ter mais poder em Tremembé. Depois de
Luciana, arregimentou a ex-garota de programa Amanda Marques Trindade,
de 24 anos. No time da jovem assassina, a ex-prostituta era imprescindível.
Agressiva, sua função era fazer a segurança de Suzane. E ai de quem
chegasse perto da sua líder no pátio da cadeia.
Violenta, Amanda batia ponto num prostíbulo de luxo em São Paulo e
recebeu da cafetina do local 1.300 reais para matar uma travesti. O motivo: a
vítima havia pedido demissão para atuar em outra casa de prostituição. A
ex-funcionária trabalhava na contabilidade e a cafetina suspeitava que ela
havia levado os segredos do seu negócio para a concorrência. Amanda foi ao
supermercado Extra, comprou a maior faca de cozinha disponível na
prateleira e saiu atrás da sua vítima. Amanda encontrou a travesti num beco
escuro às 4h da madrugada, na cidade de Ferraz de Vasconcelos (SP). Com
uma rasteira, ela a derrubou no chão e aplicou-lhe 72 facadas. O exagero na
quantidade de golpes fez a lâmina da faca se desprender do cabo. Depois de
matá-la, a prostituta se deu ao trabalho de arrancar com a faca a língua da
vítima. No Tribunal do Júri, foi questionado o motivo dessa crueldade.
Amanda respondeu: “Essa travesti falava pelos cotovelos no trabalho, na
mesa do bar e até na hora de morrer”.
Depois de se tornar a rainha de Tremembé, Suzane passou a sentir
carência afetiva. A solidão implacável cou mais evidente depois de Sandrão
e Barni, tanto o pai quanto o lho, saírem de sua vida. Aos domingos, não
recebia mais visitas. Num m de semana qualquer, Luciana foi ao pátio
encontrar com o seu irmão, Rogério Olberg, um marceneiro de 36 anos na
época. Através de uma vidraça, ele viu Suzane de longe. Encantado com a
beleza da jovem, o rapaz tirou uma foto sua da carteira e mandou Luciana
entregar à rainha da cadeia. “Diga que ela é a mulher mais bonita de
Tremembé”, pediu o irmão. A jovem pegou a foto, ouviu a mensagem e deu
de ombros. “O seu irmão é muito feio para mim”, descartou. Nessa época,
Suzane recebia mensalmente centenas de cartas de pessoas apaixonadas
vindas de todo os cantos do país. As correspondências traziam declarações e
poemas escritos por homens e mulheres muito mais bonitos. Uma dessas
cartas foi escrita e enviada pelo subtenente do Exército Cristiano Lima da
Silva, de 25 anos na época, morador de Rondonópolis. Na epígrafe, ele pedia
para Suzane parar de fumar e avisava que esperava ansiosamente pelo dia
que ela saísse da penitenciária:
Querida Su
Não te conheço, mas te amo desde que você apareceu na televisão. Não me
importa o que você fez. Estou contando os dias para o momento em que você
nalmente vai ter uma saidinha. Não sei se você fez bem em dispensar o
advogado Denilvaldo Barni. Ele estava providenciando a papelada para você
progredir ao regime semiaberto, onde eu nalmente teria a chance de te ver. O
que ele fez? Por que vocês brigaram?
Meu sonho é poder te visitar na cadeia. Mas liguei aí em Tremembé e
disseram que só parentes de primeiro grau podem entrar no seu rol de
visitantes. Isso não é justo, pois você não tem parente nenhum, né? Seu irmão
lhe virou as costas. Eu bem que poderia te visitar.
Ontem sonhei com você a noite inteira. A gente ia ao cinema, depois saía
para tomar sorvete e se beijava. Seus lábios eram macios como um pêssego.
Depois a gente ia para casa e se amava até o dia seguinte. Essa parte não vou
contar porque as mulheres das cartas censuram, né? Você já me explicou.
Queria te pedir um favor, minha amada. Cuide da sua saúde. Soube que
alguém bateu em você aí na cadeia. Isso é verdade? Sobre os problemas de
colesterol alto e tireoide que você relatou na outra carta, posso dizer que quei
muito preocupado. Acho que isso tem a ver com o excesso de cigarros que você
fuma aí dentro. Tenta diminuir, meu amor. Cigarro não faz bem. Eu também
não gosto de mulher que fuma porque o beijo ca com gosto ruim. Mas nem é
por isso que você tem de parar de fumar. É pela sua saúde mesmo. Eu sei que
você fuma para aplacar a solidão e a vida triste que você deve ter aí na
penitenciária. Faça amizades que ajuda. Mas escolhe bem com quem você
anda aí na cadeia. Não faça amizades com qualquer uma, viu?
Estou torcendo pela sua progressão de pena. Quero você logo no regime
semiaberto para eu poder te ver, te abraçar. Assim que você sair, vou pedir
folga no quartel. Vou entrar num ônibus e sigo para Tremembé. Só de pensar,
quei nervoso. Tive palpitações. Será que não seria mais fácil você pedir
transferência para um centro de ressocialização? Tem muita gente lá. Acho que
a Justiça e a mídia perseguem você, pois o que você fez nem é tão grave assim.
Su, vou te dizer uma coisa do fundo do meu coração: pelas suas qualidades
e pelo meu jeito de ser, tenho certeza que a gente vai se encaixar perfeitamente.
É por causa dessa certeza que eu insisto em te escrever toda semana. Eu gosto
muito de você! Um super beijo, meu amor!
Pragmática, Suzane deixou o amor de lado e investiu energia na sua
progressão para o semiaberto, conforme aconselhou o militar do Exército.
Em um encontro com o defensor público Saulo Dutra de Oliveira, a
parricida agendou encontros com os psicólogos e assistentes sociais de
Tremembé para iniciar o exame criminológico. Suzane só migraria para o
semiaberto se tivesse um endereço xo para passar os dias fora da prisão
durante as saidinhas. Sem nenhuma referência do lado de fora da prisão, a
assassina não tinha para onde ir. Saulo aconselhou a detenta a se
reaproximar da família. Isso estava fora de cogitação. Da família havia
restado apenas Andreas e o tio Miguel, mas ambos não queriam ver Suzane
nem pintada de ouro. A jovem pediu para o advogado dar procedimento à
papelada pleiteando o novo regime e prometeu encontrar uma solução
rápida para a questão do endereço. De volta à cela, Suzane foi ardilosa.
Pegou a foto de Rogério e olhou xamente para o rapaz que havia achado
feio. Na imagem, ele estava com o dorso nu, vestindo apenas calção e
chuteiras de futebol. A assassina comentou com Luciana, a pedó la:
— Olhando bem, o seu irmão é até bonitinho, sabia?
— Eu te disse... Ele está solteiro e só fala de você – empolgou-se Luciana.
Suzane pegou uma caneta e escreveu no verso da foto de Rogério um
trecho da música “Velha infância”, dos Tribalistas: “Eu penso em você desde o
amanhecer até quando eu me deito” e mandou a imagem de volta ao
marceneiro por Luciana. Uma semana depois, eles se encontraram no pátio
de Tremembé e começaram a namorar. Duas semanas depois, Suzane passou
o endereço de Rogério à Justiça indicando o lugar onde passaria os sete dias
da sua primeira saidinha. Em seguida, a assassina foi submetida ao exame
criminológico, a primeira etapa para alcançar a porta da rua.
A Justiça considera essa prova fundamental para veri car se a detenta
está apta a voltar a viver em sociedade, se está arrependida de ter matado os
pais e, principalmente, se vai voltar a cometer crimes lá fora. Suzane foi
aprovada com louvor. Todos os pro ssionais que examinaram a assassina a
conheciam e conviviam com ela dentro da cadeia. Com essa prerrogativa,
era esperado um parecer favorável. Os laudos assinados pelas servidoras de
Tremembé elogiavam Suzane e conferiam aptidão à jovem para deixar a
cadeia em saídas temporárias. Os mais exaltados descreveram a rainha como
comportada, educada, estudiosa, aplicada, honesta, trabalhadeira, prestativa
e solícita. Num parecer técnico anexado a esse exame criminológico,
assinado por uma comissão de seis funcionários da penitenciária, incluindo
a diretora-mãe, Eliana, e duas psicólogas (Naja Santa Cruz Oliveira e Sueli
Aparecida Gonçalves de Souza), consta que Suzane “está arrependida” de ter
cometido duplo assassinato. Esse parecer foi anexado ao processo de
execução penal de Suzane em 5 de setembro de 2013.
A resenha favorável não convenceu o promotor Luiz Marcelo Negrini
Mattos, do Ministério Público, em Taubaté. Por causa da gravidade do crime
cometido por Suzane e alegando parcialidade no exame, Mattos pediu à
Justiça que a detenta passasse pelo temido teste de Rorschach, também
conhecido como “teste do borrão”. Essa avaliação desenvolvida pelo
psiquiatra suíço Hermann Rorschach no começo do século passado é
composta por dez pranchas com imagens abstratas de diversos formatos.
Cabe ao paciente examiná-las uma a uma e dizer o que enxerga nelas. Essas
imagens encontram-se na abertura dos capítulos deste livro. Embaixo delas
estão descritos alguns elementos que Suzane viu nas gravuras ao longo dos
três testes aplicados num período de seis anos.
Em tese, as respostas dadas pelo paciente durante o teste projetam
aspectos da personalidade, incluindo as características que eventualmente
ele não quer trazer à luz. Exemplo: falsidade, inveja, ódio, agressividade,
impulsividade, insensibilidade, imaturidade afetiva, frustração, traumas,
fantasias, fetiches, desejos sexuais, entre outros. O teste não é uma
unanimidade, algo raro de ocorrer num campo complexo como a psicologia,
mas é amplamente adotado no mundo todo. No Brasil, o exame é validado
pelo Conselho Federal de Psicologia e já foi obrigatório na admissão de
delegados no quadro da Polícia Federal. Grandes empresas privadas e
multinacionais também aplicam o teste em funcionários do alto escalão e
em líderes com muitos subordinados sob seus mandos e desmandos.
Segundo a teoria de Rorschach, o teste evidencia melhor a relação dos
diferentes componentes da inteligência do indivíduo, a forma como o
paciente se expressa usando os seus recursos do intelecto e também aqueles
de que dispõe, mas não usa por causa de bloqueios originados de problemas
emocionais.
Em uma das avaliações, Suzane pegou a prancha de número 4 e disse ter
visto nela uma bruxa, um morcego, uma âncora, entre outros elementos.
Essa prancha simboliza a gura do pai e, por extensão, a dos homens em
geral. Por ela ter imaginado a âncora, Suzane via na gura masculina
rmeza, estabilidade e segurança. Porém, por ter imaginado um morcego e
uma bruxa, a paciente enxergava no pai uma fonte de autoridade
ameaçadora e intimidadora. Ou seja, ela não conseguia conviver com a
opressão e necessitava romper a situação. O rompimento ocorre de modo
radical e irreversível.
Para tentar êxito no teste de Rorschach, Suzane recorreu a uma fraude.
Conseguiu com um advogado uma réplica das dez pranchas e um livro
sobre a teoria do teste. Determinada, passou a estudar na cadeia para dar
respostas positivas na avaliação. A “cola”, entretanto, nunca dá certo. Ao
dizer ao aplicador ter visto tal gura em determinada prancha, o paciente é
obrigado a localizar o ponto exato onde foi encontrado o objeto imaginado.
Os psicólogos especializados em testes projetivos também percebem a
tentativa de drible porque o paciente que usa de má-fé geralmente dá
respostas rápidas. Essa desonestidade do paciente acaba constando no seu
per l psicológico. No prontuário de Suzane, por exemplo, a especialista
escreveu que a criminosa cometia fraudes. Nem precisava do teste para
evidenciar esse traço da personalidade da assassina, visto que ela recebeu
indevidamente do INSS pensão pela morte dos pais e persuadiu Andreas a
assinar uma carta ditada por ela ainda na Penitenciária Feminina da Capital,
com o intuito de car com a herança da família.
Mesmo depois de Suzane ser reprovada duas vezes no Rorschach (ou
seja, os laudos feitos pelos psicólogos que aplicaram o teste descreveram um
per l negativo dela), a juíza Sueli Zeraik Oliveira Armani concedeu à jovem
assassina o semiaberto em 28 de outubro de 2015. A magistrada justi cou a
sua decisão: “Se a Justiça mantivesse no regime fechado todos os presos com
problemas psicológicos, não haveria prisão su ciente na face da Terra”. Para
efeito de comparação, Daniel e Cristian Cravinhos, e até Sandrão, também
foram submetidos ao Rorschach e conquistaram a liberdade após obterem
resultados positivos no teste.
Nunca se sabe quando Suzane está falando a verdade, nem quando está
mentindo. Na entrevista concedida a Gugu Liberato, por exemplo, a
assassina negou ter perdido o regime semiaberto, a princípio, por não ter
endereço xo para fornecer à Justiça. Alegou ter abdicado do benefício e
suas cobiçadas saidinhas porque, caso aceitasse, na época, teria de ser
transferida de cadeia, já que a penitenciária feminina de Tremembé ainda
não mantinha ala para esse tipo de progressão. Essa transferência resultaria
na perda de prestígio da criminosa junto à comunidade carcerária. Segundo
a Secretaria de Administração Penitenciária, o semiaberto na prisão em que
Suzane cumpria pena foi inaugurado em abril de 2015. Pelos autos do seu
processo de execução penal, o primeiro pedido de progressão feito por ela
ocorreu em março de 2013. Isso quer dizer que, dois anos antes de ser
inaugurada a ala do semiaberto em Tremembé, a criminosa já desejava
ganhar o olho da rua.
Em 2017, Suzane pediu pela primeira vez a progressão para o regime
aberto. Nele, o preso cumpre o restante da pena em liberdade. Antes de
tomar uma decisão, a juíza Wania Regina Gonçalves da Cunha mandou
fazer pela terceira vez o teste de Rorschach. Mas ela se negou. Para escapar
das temidas pranchas, a parricida recorreu à segunda instância da Justiça de
São Paulo. Suzane também reclamou na Justiça o fato de o teste de
Rorschach não ser aplicado em todos os presos de Tremembé. “Por que só
em mim?”, questionou. A 5a Câmara do Direito Criminal manteve a
avaliação psicológica, comum em autores de assassinatos cruéis. Alexandre
Nardoni, por exemplo, teve as saidinhas do semiaberto suspensas em agosto
de 2019 porque não havia passado pelo teste. Nardoni jogou a lha Isabela
pela janela do sexto andar em 2008. Suzane refez o teste mais uma vez e foi
novamente reprovada. No dia 17 de fevereiro de 2018, o Fantástico, da TV
Globo, apresentou ampla reportagem com o resultado desse terceiro exame,
destacando que Suzane era descrita no laudo como “vazia” e “egocêntrica”.
Suzane não tem medo à toa do teste de Rorschach. As centenas de
páginas contendo o resultado dos seus exames não lhe são favoráveis.
Segundo relatos de quem viu esses laudos, a criminosa não carrega culpa
pela morte de Manfred e Marísia. Quando alguém lhe pergunta: Você está
arrependida? Suzane responde: “Sim, estou! Muito! Muito! Muito!”.
Questionada em seguida por que está arrependida, a assassina emenda:
“Porque perdi a melhor fase da minha vida na cadeia. Eu podia ter estudado,
ter uma pro ssão, construído uma vida... O que eu z acabou comigo e com o
meu irmão, que eu amo tanto”. Ou seja, Suzane computa o crime como um
prejuízo pessoal, sem lamentar, por exemplo, o fato de os pais terem a
trajetória interrompida por ela na melhor fase pro ssional. Por causa desse
tipo de resposta, Suzane é de nida por pro ssionais como “insensível”.
Segundo especialistas, a criminosa mantinha “laços familiares frouxos,
precários e carentes de envolvimentos emocionais”. Dentro da cadeia,
Suzane con denciou ter mandado matar os pais “por motivos nanceiros”,
conforme reiterou na entrevista concedida à TV Record.
O processo de execução penal de Suzane cou aberto para consulta
pública até maio de 2016. A partir dessa data, passou a correr sob sigilo a
pedido de seu advogado. No entanto, quando a detenta famosa entra com
agravos de instrumentos na segunda instância, as peças geralmente seguem
do Fórum de Taubaté para o Tribunal de Justiça de São Paulo sem segredo, a
exemplo do recurso de número 9000455-81.2017.8.26.0625, uma peça
robusta que foi parar no gabinete do desembargador Damião Cogan em 24
de janeiro de 2018.
A revista Veja publicou ampla reportagem em abril de 2018 sobre esse
agravo, na qual constam os argumentos do Ministério Público para a Justiça
não conceder liberdade à Suzane. Nesses processos, os especialistas
descrevem a assassina com adjetivos típicos de vilã de novela: manipuladora,
dissimulada, egocêntrica, infantilizada, simplista, insidiosa, além de ter
agressividade camu ada. Ainda segundo esses pareceres, a criminosa utiliza
procedimentos primitivos e pouco elaborados na vida, tem fantasia de
onipotência e é desvalorizadora do ser humano. “Esses sentimentos criam
na paciente uma di culdade relevante para estabelecer relações interpessoais
signi cativas”, diagnosticaram os psicólogos iago Luís da Silva e Ana
Cristina Tomaz da Silva, em 2013. “A sentenciada expressa um mecanismo
de contato interpessoal voltado a mobilizar o mundo externo por meio de
uma conduta pueril”, completaram.
A dois especialistas, a Justiça fez a seguinte pergunta: “Suzane apresenta
valores éticos?”. Eles responderam: “Trata-se de sujeito com traços
marcadamente narcisistas, ou seja, ela enxerga o mundo a partir de si
mesma. Nesse sentido, seus valores éticos se mostram demasiadamente
prejudicados”.
Todos os 34 laudos – inclusive os de Rorschach – assinados por
psiquiatras e psicólogos durante as duas décadas em que Suzane esteve presa
atestaram categoricamente que ela é narcisista. Esse traço acentuado da sua
personalidade, combinado com a perversão, foi essencial para Suzane tomar
a decisão de mandar matar os pais; e nunca, de fato, ter se arrependido do
que fez. O transtorno de personalidade narcisista é uma condição
psiquiátrica complexa, que provoca no indivíduo um padrão generalizado
de grandiosidade (sentem-se superiores aos outros), necessidade de atenção
constante e adulação, além de falta de empatia. Esses comportamentos
costumam causar relacionamentos conturbados. “Não se sabe o que causa o
transtorno de personalidade narcisista. Ele é resultado de um conjunto de
fatores genéticos e ambientais que moldam as características do indivíduo
até a idade adulta”, explicou Antônio Geraldo da Silva, psiquiatra e
presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Sabe-se que esse
transtorno é mais frequente em homens e também em pessoas que sofreram
abusos na infância ou tiveram relacionamentos problemáticos com pais e
familiares. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos
Mentais (DSM-5) da Associação Americana de Psiquiatria, os narcisistas são
extremamente vaidosos e pretensiosos. Outras características: falta de
empatia (não conseguem ou não tentam reconhecer as necessidades e
sentimentos alheios); mania de grandeza (exageram nos relatos de
conquistas, buscam reconhecimentos mesmo sem merecer e diminuem o
outro constantemente); ego in ado (acreditam que são superiores e só
podem se relacionar com pessoas igualmente “especiais”); exigem privilégios
(querem tratamento VIP em todos os lugares que frequentam); são invejosos
e acreditam que todos sentem inveja deles; não têm limites (sonham com
possibilidades ilimitadas de poder, sucesso e conquistas); querem aplausos
(buscam admiração constante e excessiva, querem sempre elogios e
reconhecimento); exploram os outros (querem dedicação sem reciprocidade
e mantêm relacionamentos que aumentam a sua autoestima); e são
arrogantes (monopolizam as conversas e ignoram quem consideram
“inferiores”).
Em um laudo de Rorschach anexado ao processo de execução de Suzane
em 2018, a psicóloga Maria Cecília de Vilhena Moraes reiterou o narcisismo
da assassina e sua conduta infantilizada, além dos traços de personalidade
negativos já citados por outros pro ssionais. “Suzane entende que as suas
necessidades sejam centrais e se preocupa basicamente com elas.” Em outro
trecho, a especialista completou o per l da criminosa reforçando a sua
característica fronteiriça, ou seja, ela vive no limbo existente entre a loucura
e a sanidade. “Vazia e impessoal, Suzane depende fundamentalmente do
ambiente externo para se orientar na vida. Como é comum nas pessoas de
estruturação de personalidade fronteiriça, ela se mantém bastante atenta às
pistas que o ambiente fornece e procura se comportar de acordo com o que
capta nesse sentido.”
Sobre a possibilidade de Suzane voltar a cometer crime, caso seja solta,
os psicólogos não dizem “sim” nem “não”. Recorrem ao “talvez”. “Isso
depende unicamente das in uências do meio social e das necessidades
pessoais da sentenciada.” Ao ler os relatórios dos pro ssionais, o promotor
Paulo José de Paula pediu à Justiça para a assassina não ter acesso à
liberdade do regime aberto enquanto não passar novamente por mais um
teste de Rorschach. “Com alto nível de egocentrismo, Suzane possui a
tendência a superestimar o seu valor pessoal e a desprezar as necessidades
alheias. Esse aspecto aponta para a presença de condutas de potencial risco
para a sociedade em geral e para aqueles com quem convive”, descreveu o
promotor.
Suzane rebateu os diagnósticos negativos dos psicólogos forenses. Disse
que, em liberdade, não vai sair matando as pessoas por aí, mesmo tendo
matado os pais. “Eu mudei. Hoje tenho outra visão da vida. Estou aceitando
mais as coisas. Me sinto mais madura. Sou uma pessoa contida e não
agressiva. Não tem a menor chance de eu cometer um crime novamente. [...]
Não me considero uma psicopata”, disse a criminosa ao assistente social
Maurício Fernandes de Faria. É bom frisar: nas mais de 2 mil páginas dos
laudos criminológicos de Suzane, incluindo os resultados do teste de
Rorschach, não há indicação – em tempo algum – de comportamento ou
mesmo traços de psicopatia. No entanto, o psiquiatra forense Guido
Palomba elaborou um parecer sobre Suzane em 2014 no qual diz que
parricida tem grau elevadíssimo de narcisismo, egocentrismo e autocontrole
das emoções. “Alguns psicopatas têm grau tão elevado de sedução que
conseguem manipular até os psicólogos que aplicam testes projetivos”,
pontuou o médico. Foi lançando mão dessa estratégia de sedução que
Suzane elogiou o psicólogo iago Luís da Silva, quando a assassina o
elogiou pela sua juventude pouco antes de ele aplicar o teste de Rorschach.
Da Silva lembrou que, na segunda aplicação do exame, em Tremembé,
Suzane o recebeu batucando na mesa e cantarolando enquanto perguntava
pelo resultado do teste anterior:
– E aí, doutor? Sou ou não psicopata?
– Não sei! Me responda você! – devolveu o psicólogo.
– Eu acho que não – disse Suzane, rindo.
O doutor em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo Alvino
Augusto de Sá foi uma das maiores autoridades em mentes criminosas do
país. O especialista coordenou uma banca de peritos em criminologia que
estudou a mente de Suzane a pedido da Justiça de São Paulo, em 2013. Para
explicar o o condutor da tragédia protagonizada por ela e Daniel
Cravinhos, o psicólogo usou uma metáfora: “A Suzane era um pássaro
enjaulado. O Daniel era um pássaro livre. Quando dois pássaros se
encontram e vivem uma história de amor em liberdade, a ave enjaulada
jamais vai querer voltar à vida de antes. Cegos, eles farão de tudo para
eliminar os obstáculos postos entre eles”. Alvino de Sá levantou ainda uma
tese polêmica ao se referir ao caso Richthofen: “Pais amorosos jamais
morrem assassinados friamente pelos lhos”.

* * *

Uma década depois de receber a sentença de 39 anos de prisão e de


passar 14 anos encarcerada, Suzane deixou Tremembé em dezembro de 2015
para passar o Natal e o ano novo com Rogério Olberg, no município de
Angatuba, a 370 quilômetros de São Paulo. A festa para comemorar a
liberdade começou ainda no pavilhão bem cedinho. As presidiárias com
direito à saidinha acordaram antes das galinhas e montaram um salão de
beleza no xilindró. Elas ligaram um microsystem com o som nas alturas.
Alisaram o cabelo com chapinha, zeram escova usando secador, pintaram
as unhas e se maquiaram fazendo a maior algazarra. Nessas horas, uma
ajudava a outra para o processo de embelezamento ser rápido. Suzane foi
“montada” pelas suas assessoras. O auge dessa produção ocorria quando elas
nalmente trocavam o uniforme de presidiária pelo traje à paisana. O
capricho também ocorria porque sempre havia fotógrafos e cinegra stas da
imprensa registrando a saída das presas famosas no portão da penitenciária.
Suzane pôs os pés na rua vestindo pela primeira vez calça jeans skinny azul-
escura colada ao corpo, ressaltando as suas curvas; uma blusinha azul-
marinho e um casaco preto. Os cabelos estavam loiros e mesclados com tons
marrons.
Fora da cadeia, a vida foi tumultuada. Para escapar da perseguição de
jornalistas, Suzane resolveu não dar à Justiça o endereço do namorado.
Forneceu uma localização falsa. A Polícia Militar, porém, foi lá conferir e
descobriu a mentira. A jovem foi algemada no meio da saidinha e levada de
volta para Tremembé. Segundo relatos da detenta, os policiais a conduziram
na viatura pelos 347 quilômetros entre Angatuba e Tremembé de forma
violenta. Os militares mandaram a criminosa se acomodar no meio do
banco de trás para não escapar da vigilância pelo retrovisor. De acordo com
Suzane, os PMs dirigiam em alta velocidade e faziam curvas fechadas para
forçá-la a bater a cabeça na lateral do veículo. Por causa da infração, a
parricida cou sem pôr a cara na rua por oito meses.
Nas saidinhas, Suzane sempre se hospedava na casa de Rogério. O casal
foi ao cartório declarar união estável em 2017. Os pombinhos passeavam
por Angatuba de moto, tomavam sorvete na praça central, faziam compras e
frequentavam salões de beleza. No início, com medo de ser linchada pela
população, Suzane usava uma peruca preta estilo Chanel. O acessório foi de
uma tia de Rogério, que morreu de câncer. A jovem abandonou o disfarce
depois de adaptada à vida em liberdade. Para escapar do estigma de ter
mandado matar os pais, a assassina passou a se apresentar para os vizinhos
de Angatuba com o seu segundo nome, Louise. Na saidinha de maio de
2017, Louise recebeu em seu celular uma mensagem misteriosa:
— Oi! Tudo bem?
— Tudo e você? – respondeu ela.
— Tudo ótimo! Me fala uma coisa: você é quem eu estou pensando?
— Depende! Quem você pensa que eu sou?
— Huuuum. Não vou falar nomes – escreveu o interlocutor, enigmático.
— Se você tem o número do meu celular, deve saber quem sou eu! –
ponderou Suzane.
— Tenho dúvidas. Vou fazer uma pergunta. Se acertar a resposta, você é
quem eu estou pensando.
— Então faça!
— Qual o nome do cachorrinho que nós tivemos quando éramos
crianças?
Suzane caminhava pelas ruas de Angatuba e levou um choque quando
descobriu que do outro lado do celular estava Andreas, o seu irmão. A
tentativa de reaproximação entre os dois foi revelada pela primeira vez pela
revista Época, em outubro de 2019. Suzane e Andreas marcaram um
encontro 15 anos após terem se encontrado pela última vez, no pátio da
Penitenciária Feminina da Capital, quando ela o manipulou para escrever
uma carta e assim conquistar metade da herança dos pais. “A última vez que
vi meu irmão, ele era um garoto”, disse Suzane na entrevista com Gugu
Liberato.
Pelas regras do regime semiaberto, a jovem não podia deixar Angatuba
durante as saidinhas. Com essa restrição, ela combinou com o irmão de ele
seguir de São Paulo até o município de 20 mil habitantes. O jovem, com 29
anos na época, aceitou. Estudioso, ele já possuía graduação em Farmácia e
Bioquímica pela Universidade de São Paulo e doutorado em Química
Orgânica pelo Instituto de Química da USP. Ansiosa, Suzane arrumou a casa
e mandou preparar um almoço especial, mas Andreas não apareceu. O
jovem chegou a pegar a Rodovia Raposo Tavares rumo a Angatuba para
encontrar a irmã. No entanto, extremamente emocionado, sem coragem e
abalado psicologicamente ao remoer o passado trágico da família, Andreas
voltou no meio do caminho sem dar explicação para a irmã assassina.
Transtornado, o jovem bebeu, usou drogas até perder os sentidos e foi parar
completamente surtado no bairro Chácara Monte Alegre, na zona sul de São
Paulo. Ao tentar pular o muro de uma casa, Andreas foi contido pela Polícia
Militar e levado à delegacia. De lá, seguiu para um hospital psiquiátrico com
a roupa toda rasgada e ferimentos pelo corpo. Na época, foi noticiado que
Andreas havia sido resgatado da Cracolândia, a famosa zona de comércio
livre de drogas do Centro de São Paulo. O jovem, porém, nunca esteve lá.
Aconselhada por advogados, Suzane resolveu não procurar mais por
Andreas. No passado, o jovem já havia registrado queixa contra a irmã por
perseguição. Como a assassina matou os pais para car com a herança e o
irmão acabou herdando tudo, uma tentativa de reaproximação poderia
caracterizar ameaça, já que Suzane é hoje a única herdeira do irmão. Até
agosto de 2023, os dois não tinham se falado.

* * *
A alma de Suzane nunca sossegou quando se fala em religião. Era
luterana quando mandou matar os pais e migrou para o catolicismo assim
que foi presa. Quando era atormentada pela diabólica Maria Bonita, ertou
com o espiritismo e passou a acreditar em reencarnação e vidas passadas.
Em Tremembé, rendeu-se aos cultos evangélicos e passou a andar com uma
Bíblia na mão.
A maioria dos detentos autores de crimes contra a vida adota a religião
evangélica tão logo bota os pés no cárcere. Todos têm basicamente a mesma
justi cativa para se entregar a Deus durante o castigo imposto pela lei dos
homens. Sustentam que mataram guiados pelo Satanás. O pastor Fábio
Correa de Lima, da Comunidade Moriá, mantinha em seu rebanho 150
ovelhas-presidiárias de Tremembé em busca de salvação. O sacerdote reforça
essa tese: “Na teoria, quando a pessoa peca, ela favorece o diabo e se afasta
do Nosso Senhor”.
Em 2016, aos 33 anos, Suzane passou a assistir aos cultos do pastor
Fábio. Com a sua fé, a parricida cogitou seguir a carreira de líder religiosa.
Pretendia começar como missionária até ser promovida ao cargo de pastora.
Segundo Fábio, seu orientador espiritual, Suzane não estava arrependida de
ter matado os pais quando pisou em sua igreja. “Foi na minha comunidade
que ela, de fato, se redimiu do passado e conseguiu o perdão divino. [...]
Suzane aceitou ser transformada por Deus num todo – corpo, alma e
espírito. Para isso, teve de reconhecer os seus erros. Hoje, posso assegurar
que ela é uma mulher totalmente arrependida”, garantiu o religioso.
Suzane também ertou com a Igreja do Evangelho Quadrangular, onde
já deu um testemunho sobre arrependimento e perdão, em Itapetininga e
Angatuba. Na pregação, subiu ao púlpito e falou ao microfone sobre
redenção com uma Bíblia na mão para cerca de 300 pessoas: “Confessei-te o
meu pecado, reconhecendo minha iniquidade e não encobri as minhas
culpas. Então declarei: confessei minhas transgressões para o Senhor, e tu
perdoaste a culpa dos meus pecados”, proclamou. A igreja, lotada de éis,
quase veio abaixo com tanto aplauso e gritos de “aleluia, irmão!”.
No plano terreno, mesmo espiritualizada, Suzane continuou enfrentando
perrengues com a Justiça por violar as regras do regime semiaberto. No
Natal de 2018, a criminosa tinha 35 anos quando foi convidada para ser
madrinha de casamento da sua melhor amiga de cadeia, a seguidora Vanessa
dos Santos Martins, de 37 anos. O júbilo ocorreu na cidade de Taubaté, no
dia 22 de dezembro de 2018. A noiva estava toda vestida de vermelho; e o
futuro marido, de preto. O bolo de três andares tinha cobertura vermelha e
branca para combinar com o vestido da noiva. Pelas regras das saidinhas, do
portão da penitenciária, Suzane deveria seguir diretamente para o seu
domicílio, a cidade de Angatuba. No dia do casório, porém, a jovem resolveu
vestir roupa de gala e partir para a festa da amiga. Vanessa trocou alianças
com um pastor evangélico, com quem já havia sido casada dez anos antes
sob o teto de uma igreja católica e separada após um fato marcante em sua
vida.
A história de Vanessa parece uma novela mexicana, como de niu o
pastor Fábio, condutor do culto de casamento da detenta. Ela era casada
com Vanderlei Garcia Alves, pai de Allan, de 4 anos. O menino era lho da
sua ex-mulher e Vanessa o acolheu como se fosse seu. A detenta também
tinha um menino chamado Sandrinho, fruto de outro matrimônio. As duas
crianças brincavam feito irmãos. Com o tempo, Vanessa teve outro bebê e
começou a nutrir um ciúme doentio do marido, canalizando o sentimento
danoso para o enteado.
Era uma daquelas manhãs muito frias em São Paulo, no dia 1º de junho
de 2007, quando Vanderlei saiu para trabalhar às 6 horas. Vanessa acordou
logo em seguida, tirou à força Allan da cama quente e o deixou
completamente nu. Apesar da baixa temperatura, a madrasta pôs a criança
debaixo de uma ducha fria e fechou a porta do box. Allan sentiu calafrios e
deitou-se, trêmulo, no chão sob o jato de água gelado.
A perversidade da madrasta foi além. Vanessa levantou a criança do
chão e começou a aplicar uma sucessão de socos em sua barriga. Lá pelo
décimo golpe, o menino caiu desacordado no piso frio do box reservado
para o banho. Desumana, a madrasta investiu ainda mais na violência. Ela
levantou o garoto mais uma vez e bateu fortemente a cabeça dele contra a
parede. Da porta do banheiro, Sandrinho, o lho de Vanessa, testemunhou,
em estado de choque, o crime da mãe.
No laudo do Instituto Médico Legal (IML), o legista João Carlos D’Élia
escreveu: “A criança apresentava traumas e escoriações na região da face,
pescoço e couro cabeludo. As lesões provocaram ruptura do baço em dois
tempos, ocasionada por pancadas na região toracoabdominal esquerda.
Óbito por anemia aguda”. Vanessa negou o homicídio. Em juízo, relacionou
a morte de Allan a um acidente doméstico. Não colou. Foi condenada a 22
anos de cadeia. Hoje evangélica, a assassina põe a culpa pela barbaridade na
conta do diabo. “Eu estava possuída pelo Satanás”, justi cou.
Dez anos depois de cometer o crime hediondo, Vanessa se casou pela
segunda vez com Vanderlei, o pai do menino que ela mesma matou. O
pastor Fábio foi quem fez a detenta se arrepender do assassinato e
conquistar o perdão do ex-marido. Mas nem o líder religioso é capaz de
explicar no plano terreno um perdão dessa magnitude. “Explicação na letra
é difícil mesmo. Até porque esse perdão ocorre no campo espiritual”, tenta
justi car o pastor. Fábio recorre à Bíblia para se convencer de que tanto
Vanessa quanto Suzane estão transformadas em almas bondosas mesmo
depois de terem matado parentes de forma tão fria e cruel.
De forma anônima, uma outra detenta, convidada do casamento de
Vanessa, ligou para a Polícia Militar e denunciou a violação da saidinha de
Suzane. Em fração de minuto, o primeiro-tenente Fabiano Aparecido de
França chegou ao casório, sem ter sido convidado. O policial algemou
Suzane e a levou de volta à penitenciária de Tremembé. Em sua defesa, a
parricida jurou por Deus ter cado na festa da amiga além da conta porque
estourou o pneu do carro de Rogério. E foi “muito, muito, muito difícil
encontrar uma roda idêntica nas borracharias do interior, pois se tratava de
um veículo rebaixado”, justi cou. A lábia colou e a jovem foi liberada para as
novas saidinhas graças à benevolência divina da juíza Sueli Zeraik, a mesma
santíssima magistrada que bene ciou o médico Roger Abdelmassih a
cumprir temporariamente uma pena de 181 anos de prisão no conforto do
lar. Na decisão, a juíza escreveu que a detenção de Suzane “vislumbra
possível constrangimento ilegal”, o que abre brechas para a presidiária entrar
até com pedido de indenização por danos morais contra o Estado, como já
fez no passado. A caneta da magistrada perdoou com facilidade. Sobre
Suzane, Sueli escreveu: “Determino a imediata liberação da sentenciada,
anotando, por relevante, que a mesma vem sendo vítima, constante e
reiteradamente, da saga de vingança de expressiva parcela da sociedade civil
organizada, cruel e hipócrita, que projeta nela seus recalques e outras
mazelas”. Em seguida, a jovem voltou a ganhar a rua.
A alegria da liberdade fracionada de Suzane durou exatos dois anos. Em
dezembro de 2019, o ex-presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei
Anticrime (13.964). Um dos dispositivos proíbe saidinhas de autores de
crimes hediondos que resultam em mortes, como homicídios quali cados.
Ao justi car as novas regras, o deputado autor do projeto, Lafayette de
Andrada (Republicamos-MG), citou Suzane para justi car a nova medida.
“Não faz sentido ela sair da cadeia justamente no Dia das Mães e no Dia dos
Pais, se ela própria os matou”, declarou. O parlamentar também citou o caso
de Alexandre Nardoni, que matou a lha de 6 anos e saía da cadeia para
comemorar o Dia dos Pais em família. “Isso é um escárnio. Um tapa na cara
da sociedade”, comentou Lafayette.
A única referência familiar de Suzane fora da cadeia é a família Olberg.
Em entrevista para um exame criminológico, a parricida foi questionada
para onde iria, caso o seu noivado com Rogério fosse desmanchado.
“Buscarei apoio com a minha rede de amigas de Tremembé”, respondeu. Só
para constar, na rede de amigas de Suzane há assassinas, infanticidas,
latrocidas, estupradoras, pedó las e toda sorte de criminosas conhecidas
pelas formas cruéis de matar.
Testemunhar a cerimônia de casamento de Vanessa com Vanderlei
encheu o coração de Suzane de esperança. Na época, a assassina pensava em
se casar com Rogério Olberg tão logo fosse promovida ao regime aberto.
Metade da família do noivo festejava a união do marceneiro com a menina
que mandou matar os pais. A outra metade condenava o enlace por
acreditar que ela, ardilosa, iria abandoná-lo tão logo conquistasse a
liberdade.
Rogério se dizia perdidamente apaixonado por Suzane. Em entrevista à
TV Record, em maio de 2016, relatou ter conversado muito com a amada
por cartas antes de decidir namorá-la. “Percebi que as ideias que ela tinha de
relacionamento eram as mesmas que eu tinha, sabe? Teve uma química.
Bateu. Eu consegui enxergar na Suzane grande probabilidade de ela ser a
pessoa que eu quero para sempre. [...] Eu me vejo casado com ela. [...] Tenho
certeza de que ela me ama. [...] Temos muitas a nidades”.
Para ser aceita pela família de Rogério, em Angatuba, Suzane passou por
uma sabatina. Cerca de vinte parentes dele se reuniram na sala e puseram a
assassina no meio da roda. No momento mais tenso do debate, uma tia dele
fez uma pergunta espinhosa: “A nal, por que você matou os próprios pais?”
Para responder, Suzane respirou fundo e invocou a narrativa antiga de que
vivia oprimida por Manfred e Marísia. Em seguida, fez uma pausa dramática
e se esforçou para chorar. Não conseguiu. Ainda assim enxugou lágrimas
invisíveis. Com feições tristes, relatou ter dado cabo dos pais para ganhar
liberdade e que só fez o que fez porque, fraca emocionalmente, sucumbiu à
manipulação de Daniel Cravinhos, o ex-namorado. Depois de repetir esse
discurso batido, Suzane convenceu toda a família Olberg e foi,
de nitivamente, bem-vinda ao seio da família do namorado. A resistência
dos Olberg em aceitar Suzane chegava a ser curiosa, pois Luciana, a pedó la,
também passava suas saidinhas no mesmo endereço. E a família tinha ainda
uma tia indiciada pela polícia por falsi cação de remédios.
Não custa nada lembrar: nos laudos criminológicos e em entrevista ao
apresentador Gugu Liberato, Suzane admitiu ter matado por dinheiro.
Rogério preferia não acreditar na sinceridade dessa Suzane. “Em uma
conversa séria entre nós, cou bastante claro que não pode haver nenhuma
mentira, a menor que seja, no nosso relacionamento. Estou depositando
muita con ança nela. Se eu descobrir que a Suzane mentiu, haveria um
estrago grande. Não sei dizer nem o que eu faria”, previu Rogério ao
jornalista Geraldo Luís, da TV Record, em 2016. “Nós vamos nos casar e
constituir uma família”, anunciou o noivo. Na mesma conversa, disse existir
uma Suzane que só ele conhece e a mídia não consegue enxergar. Essa outra
mulher, segundo ele, é muito educada, delicada, sensível e romântica.
Detalhe: essas são as mesmas características atribuídas à assassina por
amigos da faculdade e professores na época do crime.
Suzane estava conectada a Rogério e totalmente em sintonia quando se
falava em planos a dois. Ao se casar, a criminosa aproveitaria a oportunidade
para mudar o nome: planejava excluir o “von Richthofen” da carteira de
identidade. A ideia era tentar descolar a sua atual imagem cristã do crime
diabólico cometido em 2002, quando chocou uma nação inteira. Se tudo
desse certo, seu novo nome seria Suzane Louise Olberg das Dores.
No dia 11 de janeiro de 2023, a parricida nalmente conseguiu migrar
para o regime aberto, onde o criminoso cumpre o resto da pena em
liberdade. Como era de se esperar, ela pôs m ao relacionamento estável
com Rogério. “Na verdade, eu terminei quando ainda estava no semiaberto.
Minha liberdade foi sendo postergada e o relacionamento acabou esfriando
por causa do distanciamento. O importante é que a família dele continuou
me acolhendo”, explicou Suzane ao psiquiatra Leandro Gavinier. Em 19 de
outubro de 2022, o médico assinou em Tremembé o último laudo sobre ela –
peça importante para credenciar a assassina a ganhar a tão sonhada
liberdade. Ao pro ssional, ela teve de relembrar pela enésima vez a morte
dos pais. Já com 38 anos, Suzane ainda culpava indiretamente Manfred e
Marísia pelo duplo homicídio, exatamente como sustentava antes do seu
julgamento, alegando que o crime não ocorreu por motivo torpe. “Tudo
começou quando completei 15 anos. Eu conheci o Daniel e um mundo novo
se abriu na minha vida. Era um mundo de liberdade, namoro íntimo e uso
de maconha. No início, o relacionamento transcorreu normalmente. Em um
determinado momento, minha família passou a rejeitar o nosso namoro por
achar que ele não era a pessoa certa para mim. Isso acabou gerando um
distanciamento entre mim e meus pais. Minha mãe não percebeu que eu
estava cando emocionalmente longe dela. O planejamento inicial do duplo
assassinato era envolto na ideia de viver uma paixão em paz com Daniel. O
foco não era a morte, e sim viver feliz uma paixão. Mas isso era uma ideia
completamente inconsequente, utópica, infantil e absurda”, desabafou a
parricida em seu último exame criminológico.
Antes de ganhar a liberdade, Suzane teve 20 saidinhas. Desde 2021, ela
deixava a prisão todos os dias às 17 horas usando uma tornozeleira
eletrônica para estudar, voltando às 23h. Usava transporte público. Nessa
época, fazia uso contínuo de dois medicamentos: Fluoxetina 20 mg
(antidepressivo) e Clonazepan 2 mg (ansiolítico). A combinação dessas duas
drogas geralmente é indicada para pacientes com depressão e síndrome do
pânico. Sobre seus planos fora de Tremembé, Suzane disse que pretendia
montar um ateliê de costura, já que trabalhava na penitenciária havia 15
anos, na Funap, confeccionando roupas.
Ainda em seu último laudo psiquiátrico, que serviu de base para Suzane
deixar a penitenciária de nitivamente, está escrito que durante o exame a
assassina “estava vígil (atenta), com postura franca, orientada globalmente,
pensamento organizado, impulsividade latente sob adequado controle,
tendência a busca ativa de estímulos, afeto ressoante e ansiosa com boa
empatia. Porém, às vezes super cial. Inteligência acima da média, sem
evidência de delírios ou alucinações. Traços de infantilidade mitigados pelo
amadurecimento natural”.
Conclusão do médico: “Suzane tem presença de traços de transtorno de
personalidade como charme super cial e necessidade de estímulo
(tendência ao tédio) que estão mitigados pelo amadurecimento pessoal. Não
há elementos su cientes para caracterização do transtorno de personalidade
antissocial. Presença de transtorno ansioso não especi cado em remissão de
sintomas mediante uso de medicação. Não há contraindicação psiquiátrica
neste momento para progressão de regime penal”, escreveu o psiquiatra
Leandro Gavinier em 19 de outubro de 2022.
Como era de se esperar, o Ministério Público deu parecer desfavorável à
parricida e pediu que a Justiça só concedesse a liberdade se ela zesse mais
um teste de Rorschach. A juíza Wania Regina da Cunha, da 2ª Vara de
Execuções Criminais de Taubaté, descartou essa possibilidade. “A
sentenciada foi submetida ao teste diversas vezes. Esse exame afere aspectos
da sua personalidade. Sendo assim, provavelmente não ocorreriam
alterações signi cativas no resultado do laudo. Até porque a personalidade
do indivíduo não muda de um ano para o outro”, escreveu a magistrada. E
justi cou: “Na época do cometimento das condutas criminosas, a previsão
para cumprimento máximo da reprimenda era de 30 anos. Até o presente
momento, ela cumpriu 20 anos da sanção. Logo, não seria justo e razoável
que a apenada fosse mantida em cárcere por mais tempo”.
Suzane está em liberdade, mas bem longe de pagar o que deve à Justiça
por ter matado seus pais. Sua sentença de 39 anos termina só em 2041. Posta
para cumprir o restante da pena na condição de mulher livre, ela tinha
regras a cumprir: manter-se trabalhando em ocupação lícita; comparecer a
cada três meses à vara de execução criminal para informar as suas
atividades; não mudar de cidade sem pedir à Justiça; car em casa das 20h às
6h. Não podia pisar em bares, boates, casas de jogos ou em locais
incompatíveis com o benefício.
Em agosto de 2023, Suzane tinha 39 anos e morava em Angatuba, na
casa da família do seu ex-namorado, Rogério Olberg. Foi acolhida por
Josiely e Luciana Olberg, a pedó la. “Eles são a minha família”, disse a
assassina antes de deixar de nitivamente a cadeia. Na nova fase da vida, a
bandida montou o seu tão sonhado ateliê e passou a customizar sandálias
Havaianas, vendendo um par por até 185 reais. Para facilitar o comércio,
abriu uma conta no Instagram e conseguiu 30 mil seguidores.
Em seu ateliê, Suzane recebia encomendas de todo o país. Costurava
capa para computadores portáteis, bolsas, pantufas e mochilas. Quase todas
as bugigangas tinham motivos românticos ou infantis. A homicida já postou
imagens em suas redes sociais enviando sua “arte” até para o Japão. Muitos
dos seus clientes se identi cavam como fãs e admiradores. Diziam apoiar a
ressocialização da criminosa, não o crime. Alguns desses simpatizantes
pediam que os artigos fossem autografados pela parricida. Descon ados,
alguns consumidores só faziam o Pix se a costureira-homicida enviasse um
vídeo provando que era ela mesma quem confeccionava os produtos. Para
não perder a venda, Suzane ligava o celular e fazia a transmissão ao vivo,
mas só com os clientes mais chegados. A assassina também mantinha um
site para vender suas quinquilharias. Na home, teve a ousadia de postar uma
foto das suas mãos sardentas com as unhas pintadas de vermelho-sangue.
São as mesmas mãos usadas em 2002 para tapar os ouvidos e não escutar a
sinfonia macabra produzida pelas porretadas que mataram seus pais.
Desde os seus primeiros contatos com psicólogos e assistentes sociais em
Tremembé, em meados da década de 2010, Suzane falava em ser mãe. Esse
desejo aumentou quando ela se tornou madrinha da lha mais nova de
Josiely, sua ex-cunhada. Suzane dizia às amigas ter pressa para engravidar
por causa da idade tardia: trinta e poucos anos. Ela sonhava até com os
nomes dos rebentos: “Se vier menino, se chamará Benjamin. Se for menina,
Isabela”, contou ao assistente social Maurício Fernandes de Faria, conforme
consta no parecer técnico assinado por ele em 20 de outubro de 2017. Seu
desejo se concretizou em julho de 2023, quando sentiu enjoos e vomitou
durante uma competição de motocross, em Angatuba. Nos dias seguintes,
teve outros sintomas, até descobrir que a sua menstruação estava atrasada.
Com medo da notícia sobre a gravidez vazar para a imprensa, Suzane
comemorou com seus amigos íntimos no rancho de Angatuba. Ela também
tinha medo de perder o bebê, já que a gestação estava bem no início. Por
exigência do pai, ela não revelou o nome do “felizardo”. Suspeita-se que se
trata de um amigo da faculdade, de um médico ou de um jovem nerd que
construiu a plataforma do seu e-commerce.
Certa vez, quando vislumbrava em Tremembé a possibilidade de ser
mãe, a parricida foi confrontada por uma colega de cela com uma pergunta
indigesta:
— Me conta uma coisa, Suzane: quando o seu lho lhe perguntar:
“Mamãe, onde estão os meus avós?”, o que você vai responder?”.
Sem saber o que responder, a assassina fechou-se em silêncio.
© 2023 - Ullisses Campbell
Direitos em língua portuguesa para o Brasil:
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Diretor editorial
Paulo Tadeu
Edição e checagem
Gabriela Erbetta
Capa, projeto grá co e diagramação
Patricia Delgado da Costa
Ilustrações
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Créditos das fotos
Pág. 342 (primeira): Fabiano Rocha / Agência O Globo
Pág. 344 (primeira): Ricardo Borges / Folhapress
Demais fotos: redes sociais e arquivos pessoais
Revisão
Cida Medeiros

CIP-BRASIL - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Campbell, Ullisses
Flordelis: a pastora do diabo / Ullisses Campbell. - 2. ed. - São Paulo: Matrix, 2023.
352 p.; 23 cm (Mulheres assassinas)
ISBN 978-65-5616-359-8
ISBN 978-65-5616-357-4 (coleção)
1. Flordelis. 2. Carmo, Anderson do. - Assassinato. 3. Políticos - Biogra a - Brasil. 4. Igreja protestante
- Clero - Biogra a. 5. Reportagens e repórteres. I. Título. II. Série.
23-85287
CDD: 923.2
CDU: 929:32(81)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439


Sumário

APRE SEN TA ÇÃO


A GÊNESE DA MENTIRA
CA PÍ TU LO 1
A BRUXA DO JACAREZINHO
CA PÍ TU LO 2
VARRE, VARRE, VASSOURINHA
CA PÍ TU LO 3
CALADA NOITE PRETA
CA PÍ TU LO 4
FORMAÇÃO DE QUADRILHA
CA PÍ TU LO 5
LÁGRIMAS DE CROCODILO
CA PÍ TU LO 6
CENTOPEIA HUMANA
CA PÍ TU LO 7
CICATRIZES DA FÉ
CA PÍ TU LO 8
NINGUÉM SE ESCONDE
CA PÍ TU LO 9
A ESTRELA SOBE
CA PÍ TU LO 10
O CORPO DESCE
EN TRE VIS TA
O OLHO DA SERPENTE
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Agradecimento eterno aos meus guardiões jurídicos
hoje e sempre: Alexandre Fidalgo e Juliana Akel Diniz
Agradeço também a
Allan Duarte (delegado)
Ana Clara Costa (jornalista)
Ana Paula Macedo (jornalista)
André Ricardo de Souza (sociólogo)
Beto Ribeiro (jornalista)
Edin Sued Abumanssur (cientista social)
Emílio Surita (jornalista)
Fábio Martinho (jornalista)
Fernando Bastos (procurador da República)
Guilherme Dudus (advogado)
Janira Rocha (advogada)
João Rafael Torres (psicoterapeuta)
Jorge Leite Junior (cientista social)
Lidice Meyer (antropóloga)
Marcelo Hojo (odontólogo)
Plínio Fraga (jornalista)
Roberto Tardelli (advogado)
Rogério Vilela (podcaster)
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Os deuses, quando querem nos castigar, atendem às nossas preces.

Oscar Wilde
A
mbição, amor, assassinato, Bíblia, cadeia, crime, dinheiro, escândalo,
fama, família, fé, feitiçaria, ilusão, intrigas, justiça, lealdade, luxúria,
magias, maternidade, orgia, poder, preconceito racial, religião,
romance, sangue, sentença, sexo, sucesso e traição. As etiquetas (tags)
sugeridas para classi car a biogra a de Flordelis dos Santos de Souza
parecem não ter m, assim como os arcos da sua trajetória. Sua biogra a
parece realismo fantástico, característica marcante dos livros de Gabriel
García Márquez. A vida, no entanto, dizia o próprio escritor colombiano, já
é fantástica por si. Ao sair pelas ruas do Rio de Janeiro “recolhendo” crianças
e adolescentes para montar uma organização criminosa dentro de casa,
Flordelis transformou sua existência em um enredo que mais parece cção
de folhetim barato, daqueles que se compravam em banca de revista. No
início da década de 1990, seu caminho se cruzou com o do jovem aprendiz
de bancário Anderson do Carmo, de apenas 14 anos, então namorado de sua
lha, Simone. De “genro”, o garoto logo passou a “ lho” – chamava Flordelis
de “mãe”. Mais tarde, envolveu-se afetivamente com ela e os dois acabaram
se casando. Sim, a relação é confusa mesmo. Visionário e centralizador,
Anderson traçou um plano ambicioso para sua amada: torná-la pastora
evangélica, cantora gospel famosa e deputada federal. Alçada ao estrelato,
porém, Flor perdeu o controle sobre seu destino e suas nanças. Anderson
vivia a vida de Flordelis como se fosse a dele. Para se livrar do “ lho-
marido”, portanto, a pastora acionou a prole para matá-lo. Primeiro, tentou
envenenamento. Não deu certo. Mandou contratar um matador de aluguel.
Não deu certo mais uma vez. Por último, pediu para Flávio, lho biológico,
assassiná-lo com arma de fogo na garagem de casa. Da pobreza na favela do
Jacarezinho ao plenário da Câmara dos Deputados, passando pelos púlpitos
das igrejas, Flordelis percorreu um roteiro pautado pela mentira. Não se
sabe, por exemplo, se o pai dos três lhos biológicos, nascidos na década de
1980, é realmente o homem que aparece nos registros de nascimento deles.
A carreira de supermãe, segundo ela, começou com o resgate de 37 crianças
de uma chacina na Central do Brasil – mas a matança nunca existiu. Para
rechear sua jornada de dramas, inventava passados trágicos para cada
criança que acolhia: Rayane foi achada no lixão, Cristiana foi resgatada de
uma enchente, Roberta estava morrendo em uma caixa de sapatos, Carlos
Ubiraci era responsável pelo paiol do Comando Vermelho, e por aí vai... Já
casada com Anderson do Carmo, disse ter engravidado em 1998 e dado à
luz Daniel. O bebê, na verdade, foi surrupiado da mãe, a dona de casa
Janaína do Nascimento Barbosa.
Na busca pelo sucesso, Flordelis e Anderson imitaram o Diabo,
pastorando em pele de cordeiro dentro de igrejas evangélicas. Expulsos da
Assembleia de Deus, montaram uma congregação só para eles. Ao mesmo
tempo, cultuavam guras satânicas e entidades da umbanda e quimbanda,
fazendo uma mistura fajuta de ocultismo. Como religiosa, Flordelis sempre
foi uma farsa: distorcia rituais, fraudava milagres, ngia curas e fazia falsas
profecias para ganhar fama e dinheiro. No entanto, para não estigmatizar
religiões evangélicas nem crenças de matriz africana, ainda tão
marginalizadas, esta obra revela também uma série de crimes sexuais
praticados por padres pedó los contra seus éis. São relatos de embrulhar
estômagos fortes. Ao mostrar com detalhes como líderes invocam o nome
de Deus para cometer toda sorte de perversidades, presta-se uma
homenagem a quem usa a religião honestamente, levando conforto
espiritual genuíno a quem precisa.
Na atualização do livro, foram inseridas novas histórias do mundo
extraordinário de Flordelis, incluindo sua vida conturbada na cadeia. A nova
edição também traz mais detalhes sobre o dia do crime e o ritual da pastora
no dia da sua prisão, além de um assassinato perturbador envolvendo o
pastor Anderson do Carmo. O capítulo dos padres pedó los de Arapiraca
ganhou histórias assombrosas de líderes religiosos condenados pela Justiça a
penas altíssimas por terem abusado de pessoas vulneráveis que estavam em
busca de conforto espiritual.
É difícil estruturar um compêndio com tantos personagens, tramas,
subtramas e intrigas entrelaçadas. Para facilitar a leitura, a narrativa central
segue em ordem cronológica. Por dois anos, o autor mergulhou no processo
de mais de 30 mil páginas do caso. Mas, como diz o jornalista Ricardo
Noblat, documentos não falam por si. Isto é, para a reportagem, o que está
fora dos autos também está no mundo, ao contrário do que dizem
operadores do Direito. Os autos do processo, nesse caso, serviram somente
como ponto de partida para a investigação. Foram mais de cem entrevistas
com pessoas que estiveram e estão no entorno de Flordelis, incluindo lhos
falsos e verdadeiros; parentes, vizinhos, ex-namorados, amigos, inimigos,
além de policiais, advogados, promotores e até tra cantes. Os diálogos
foram reconstituídos a partir desses depoimentos. Alguns personagens
tiveram os nomes trocados quando essa foi a condição imposta por eles para
colaborar. Todos os fatos recontados nos próximos capítulos são
verdadeiros? Provavelmente não. As pessoas mentem para embelezar suas
memórias, tornar a rotina mais interessante, satisfazer seus interesses, por
vaidade ou por hobby. Para coroar sua gloriosa biogra a, Flordelis publicou
um livro em 2011, cujo título é seu próprio nome. No subtítulo, ela escreveu:
“A incrível história da mulher que venceu a pobreza e o preconceito para ser
mãe de cinquenta lhos”. Quando Janira Rocha, sua advogada penal, leu a
obra, sugeriu usá-la no tribunal, na defesa da ré. “Dona Janira, esse livro é
um pacote de mentiras!”, confessou a pastora. O universo da assassina gospel
realmente é fantástico, como a imaginação de García Márquez. Porém,
Flordelis faz parte do Brasil de hoje, e não da Macondo ctícia do escritor
colombiano.
“Quem me segue não precisa de velas porque
nunca andará nas trevas.”

D
eus, pai todo-poderoso, despejava um dilúvio sobre o Rio de Janeiro
naquela noite de sábado, 27 de junho de 1970. Em meio à tempestade
que assombrava com relâmpagos e trovoadas, a casa de Calmozina
Motta, 37 anos, fazia água. Separados por paredes de tijolos aparentes, os
quatro cômodos estavam alagados – assim como muitas moradias vizinhas
da Rua João Pinto, no coração do Jacarezinho, favela na zona norte nascida
de um quilombo que, na época, abrigava mais de 20 mil pessoas.
Várias telhas de amianto do teto de Calmozina estavam partidas. Culpa
do abacateiro frondoso plantado no quintal da vizinha, Mariazinha Macêdo,
40 anos. Era uma telha a menos a cada fruta que caía. Sem forro, a água
escorria em cascata do telhado sobre os móveis da sala e dos quartos.
Naquela noite, ninguém tinha condições de dormir no Jacarezinho.
Francisco Jorge dos Santos, o Chicão, 36 anos, segundo marido de
Calmozina, subiu na mesa de madeira para tentar remendar os buracos pelo
lado de dentro da casa. Laudicéia, 19 anos; Amilton, 18; Abigail, 13;
Flordelis, 9; e Fábio, 8, ajudavam a mãe na luta contra o aguaceiro usando
vassoura, rodo e pano de chão. Com as chuvas fortes, transbordavam o rio
Jacaré e seus a uentes, que cortavam a comunidade de ponta a ponta. A
força das águas destruía móveis e levava na correnteza roupas e utensílios
domésticos. Para piorar, a companhia de fornecimento de energia elétrica
desligava as subestações e deixava a região às escuras. Em meio ao desespero
daquela hora, alguém chamou à porta da casa da família de Calmozina.
Com uma lamparina na mão, Chicão recebeu dona Conceição e o marido,
Lucivaldo. O casal tentava se proteger com um guarda-chuva, mas estava
ensopado. Eles conheciam Calmozina de vista, dos cultos da Assembleia de
Deus. Não partilhavam de intimidade alguma, por isso Conceição adiantou-
se às dúvidas:
– Calmozina do céu, me desculpe pela inconveniência. É uma
emergência. Meu marido está perdendo a vida. O médico disse que não
passa de hoje. Já tentei de tudo. Levei até a igreja católica. O padre disse que
nem Nossa Senhora de Lourdes, a protetora dos enfermos, pode salvá-lo.
Pelo amor do Altíssimo, não deixe meu marido morrer! – suplicou a mulher,
às lágrimas.
Conceição era dona de casa. Lucivaldo trabalhava na Guarda Portuária
do Rio de Janeiro, mas estava de licença médica. Há um ano tratava de um
câncer agressivo no pulmão, irradiado para outras partes do corpo numa
rapidez assombrosa. Desenganado, foi mandado para casa pelos médicos,
mas Conceição não se resignou. Nos últimos dez dias, já havia levado
Lucivaldo a um babalorixá, e depois a um médium, que dizia receber o
espírito do doutor Fritz, o médico alemão que teria atuado na Primeira
Guerra Mundial. Ofertas aos santos, banhos de descarrego e cirurgia
espiritual não trouxeram resultado algum. Numa visita ao padre Carlos
Ramos, que ganhara fama de milagreiro na Paróquia Nossa Senhora do
Bonsucesso, o clérigo se limitou a ofertar a bênção de extrema-unção. “Esse
não passa desse mês”, sentenciou.
Quanto mais Lucivaldo peregrinava em busca de salvação, mais
de nhava. Conceição estava ali para apelar a Calmozina, cuja fama se
espalhava: diziam que ela seria capaz de profetizar e curar. Chicão ofereceu
as cadeiras da sala para que se acomodassem. Lucivaldo não tinha forças
para falar e caminhava apoiado na mulher, com passos lentos e curtos.
Respirava com muito sacrifício.
A chuva e a escuridão continuavam. Na sala parcamente iluminada, os
cinco lhos de Calmozina seguravam velas de cera vermelha, sem conter o
burburinho. Amilton tinha medo dos supostos poderes sobrenaturais da
mãe. Flordelis e Fábio, as crianças mais novas da família, entendiam pouco
sobre aquilo. Laudicéia e Abigail, as mais velhas, cavam incomodadas com
o ritual. Além de provocarem um entra e sai a qualquer hora do dia e da
noite, as ditas sessões de cura deixavam a mãe mentalmente esgotada e a
casa toda suja por causa das visitas.
Em resposta ao apelo de Conceição pela saúde do marido, Calmozina
pediu silêncio, apagou as velas e começou a rezar. Em transe, a voz cara
mais grave e rouca:
– Este pobre homem não está morrendo por desejo do Criador! Ele está
sendo arrastado para um buraco sem fundo pelo Satanás. Mas o Senhor é o
nosso pai. Somos o barro, e Ele, o oleiro. Todos somos obras divinas. Ó, Pai,
mostre a sua soberania diante de tudo e de todos e deixe este servo aqui
junto de sua família. Afaste o poder maligno do Demônio deste corpo. É
uma súplica!
Calmozina emendou a falar em línguas estranhas.
– Mãe, estou com medo. Pode acender a vela? – interrompeu Amilton,
tremendo-se de medo.
– Não! Como Jesus, eu sou a luz do mundo. Quem me segue não precisa
de velas porque nunca andará nas trevas! – respondeu Calmozina, ainda
com os olhos fechados.
Mariazinha, a vizinha dona do abacateiro, era católica não praticante.
Enxerida, ouviu de longe a sessão de cura de Calmozina. Tratou de chamar o
marido e os lhos para testemunharem, mesmo sob chuva, o que acreditava
ser uma ação de exorcismo. A sala cou apertada para tanta gente. A
ventania derrubava mais frutas no telhado e Mariazinha cava
envergonhada com o barulho. Lucivaldo começou a estremecer na cadeira.
Uma saliva espessa escorreu da boca ao queixo e pingou em seu colo.
Calmozina revirava os olhos, enquanto Amilton chorava de pavor. Entre um
amém e outro, Flordelis, fascinada, observava a cena. Uma goteira enorme
caiu na cabeça de Lucivaldo no auge da pregação. Chicão se moveu para
afastar a cadeira, mas Calmozina interveio:
– Não mexa em nada! A entidade está derramando sua cura sobre o
doente por meio da água sagrada e límpida que vem do céu.
– Amém! – ouviu-se em coro.
A goteira engrossou. Calmozina ordenava aos gritos que o Diabo
deixasse o corpo de Lucivaldo. Pegou-o pelos cabelos e jogou-o ao chão
molhado. “Sai, Satanás! Sai, Satanás! Sai, Satanás!”, repetia com toda a
potência da voz. De acordo com os presentes, de uma hora para a outra
Lucivaldo ganhou forças e levantou-se com uma agilidade inesperada.
Conceição começou a chorar. Seu marido havia sido curado pela bruxa do
Jacarezinho, acreditava ela. Houve um alvoroço na casa. “Glória à vida!”,
gritavam os éis da família – exceto Amilton, que saiu de casa correndo,
desesperado, sob a chuva. Às pressas, Laudicéia providenciou um copo de
água para ajudar a mãe a se recuperar. Flordelis respondeu ao espetáculo
com risadas nervosas. De tanto ver a mãe “curando” doentes na sala de casa
em cenas dramáticas, ela passou a desejar esse “poder” para si. Na infância,
todas as vezes que alguém perguntava “Flor, o que você quer ser quando
crescer?”, ela respondia: “Quero ser bruxa que nem a mamãe!”.
Encerrada a sessão de exorcismo de Lucivaldo, Calmozina sentou-se no
sofá, olhou as telhas rachadas e o chão molhado pela chuva e, então, voltou-
se para Mariazinha, que estava em pé num canto da sala:
– Mariazinha, esse teto parece uma peneira por causa dos seus abacates...
– Pode deixar que vou cortar os galhos que estão sobre a sua casa e
providenciar o conserto do seu telhado! – prometeu a vizinha, saindo em
seguida, constrangida.
Lucivaldo deixou a casa de Calmozina dizendo-se bem-disposto. Nem
parecia o homem que chegara ali em estado terminal. No dia seguinte,
voltou de bicicleta à casa da bruxa, levando sacos de feijão, arroz e macarrão
como forma de agradecimento. Alguns meses depois, porém, Lucivaldo
perdeu completamente o apetite. Magro e fraco, foi novamente internado e
morreu em 3 de outubro de 1970, com o enterro realizado no Cemitério da
Ordem Terceira da Penitência. A surpresa da cerimônia fúnebre foi a
descoberta de que o falecido tinha outra família para os lados do Engenho
de Dentro, bairro vizinho do Jacarezinho. Houve bate-boca entre as duas
viúvas enquanto o caixão descia até o fundo da cova. Quando soube do
entrevero, Calmozina atribuiu o fracasso em salvá-lo à vida pecaminosa de
Lucivaldo. Ela ilustrou a infração divina lendo um trecho da Bíblia, selando
o destino do marido bígamo: “Os que morrem no Senhor gozarão de
felicidade eterna. Os que escolheram viver fora do propósito de Deus, que
optaram pelo caminho largo, irão para o lugar de tormento consciente e de
onde jamais poderão sair”. “Que o Diabo te carregue!”, balbuciou Calmozina.
– O que a senhora disse, mamãe? – quis saber Amilton.
– Que essa alma descanse em paz! – respondeu a bruxa.
Calmozina era preta, magra e media 1,58 metro. Na juventude, os
cabelos eram escuros, compridos e ondulados, inspirados na cantora Gal
Costa. Preferia deixar os os soltos e raramente os penteava. Os olhos eram
castanhos, com olheiras escuras que resultavam em um aspecto lúgubre.
Faltavam-lhe alguns dentes. Econômica nos gestos e na fala, era
semianalfabeta. Apesar da aparência frágil, a mãe de Flordelis era uma
mulher forte e poderosa. Em casa, comandava a família com rigor e
disciplina. Nem sempre fora assim. Comeu o pão que o Diabo mastigou no
primeiro casamento e, depois, nas mãos de um namorado que não valia um
centavo furado.
Filha do jagunço Eupídio Motta e da dona de casa Sebastiana Francisca,
Calmozina nasceu de parto caseiro em 19 de março de 1933 em Santo
Antônio de Pádua, cidade uminense a 262 quilômetros do Rio de Janeiro.
Caçula de uma prole de cinco crianças, viveu a infância e a adolescência em
Itaperuna, no noroeste do estado. Distantes um do outro por 60 quilômetros
de asfalto precário da BR-393 e por uma estrada de terra bastante
esburacada (RJ-198), os municípios de Pádua e Itaperuna tinham per l
rural. Eupídio chegou a trabalhar como “delegado” de fazenda em São José
de Ubá. Sua função era coordenar um grupo de jagunços encarregados de
expulsar à bala de carabina os posseiros das terras do patrão. No auge da
pistolagem, o pai de Calmozina conseguiu comprar cinco alqueires de terra
e oito cabeças de gado. Acumulou dívidas e perdeu todo o patrimônio para
agiotas a quem devia.
Empobrecido, Eupídio passou a oferecer Calmozina e as outras lhas
para que fossem levadas pelos solteiros da vizinhança – segundo acreditava,
só um casamento livraria a família de uma vida extremamente miserável.
Submissa, Sebastiana não se opunha aos planos do marido. Esse tipo de
relacionamento forjado e bruto era comum nos rincões do Norte e do
Nordeste e nas localidades rurais do Sul e do Sudeste do país. Eupídio
primeiro permitiu que a lha mais velha, Carmem Motta, com apenas 14
anos, seguisse sozinha com um caixeiro-viajante de 34. Ela foi levada para
uma fazenda em Palmas de Monte Alto, na Bahia, a 1.300 quilômetros de
casa. Trabalhava sob sol escaldante em plantações de feijão, algodão,
mandioca, sorgo, milho e arroz. Morreu de câncer de pele antes de
completar 30 anos.
Quando viu suas irmãs sendo “distribuídas feito lhotes de cachorro”, o
único lho homem de Eupídio e Sebastiana, Pedro Motta, primogênito de
16 anos, fugiu de casa. Trocou de nome num ritual religioso e apresentava-se
como um feiticeiro adepto de práticas macabras. Era conhecido em
Itaperuna e arredores como Pai Miquelino, autointitulado lho do Exu
Caveira. Adulto, ele se dizia representante terreno do que acreditava ser a
entidade das trevas. Em seu quintal, ora Miquelino atendia os clientes
vestindo indumentária masculina (calça e bata brancas) e falando com voz
grave, ora com saias brancas cheias de babados e um turbante na cabeça,
conhecido como ojá, e todo enfeitado com balangandãs, emitindo voz
anasalada e na. A variação na expressão de gênero de Miquelino era,
segundo ele, uma homenagem a Olocum, orixá das águas metade peixe, ora
identi cado com o feminino, ora com o masculino.
Com capacidade para receber 200 pessoas, o terreiro de Miquelino
parecia uma oca indígena rústica. Sem paredes, tinha pé-direito alto,
coberto com palhas sustentadas por troncos enormes. O chão reluzia com a
areia branca trazida da praia de Grussaí, em São João da Barra, a 170
quilômetros de distância. Na porta, lia-se uma placa anunciando seus
principais serviços: destruo inimigos, separo casais, amarrações amorosas,
faço e desfaço macumbas, organizo oferendas. Todo esse serviço era
cobrado.
A poucos metros do terreiro de Miquelino morava o pastor Possidônio,
da Assembleia de Deus. O líder religioso fazia cultos na sala da sua humilde
residência para 30 éis. Com o tempo, o número de ovelhas foi crescendo e
a pregação passou a ser feita no quintal. Como o terreiro de Miquelino
cava ocioso às terças e quintas, Possidônio pediu para alugar o espaço.
Selaram acordo. Nas celebrações evangélicas, as imagens talhadas em
madeira de Olocum, São Cipriano, Exu Morcego e Iemanjá eram camu adas
por lençóis e o pastor assumia o púlpito. Os éis sabiam que ali era um
terreiro dito de umbanda, mas não ligavam para esse “porém”. Não demorou
muito para Miquelino crescer os olhos sobre o negócio de Possidônio. O tio
de Flordelis percebeu que dava muito mais lucro receber dízimo e
contribuições de evangélicos do que fazer despachos em encruzilhadas.
Convenientemente, ele deixou Possidônio ministrar os cultos nos dias
combinados (terças e quintas) e passou a pastorar usando a Bíblia às
segundas, quartas e domingos. Na sexta, Pai Miquelino intensi cava os
rituais ao som dos atabaques, palmas e instrumentos de percussão, para
supostamente incorporar as entidades. Nas horas vagas, fazia atendimentos
diversos.
Nos dias em que assumia a identidade de Pai Miquelino, ele vestia
branco e se transformava num homem rabugento. Nesses ritos, as pessoas
tiravam os sapatos e os deixavam do lado de fora, à esquerda do acesso
principal. Pai Miquelino contava com auxiliares que guiavam o público até o
espaço de assistência, onde cavam mais próximos do altar e das imagens
dos pretos-velhos. Durante o processo, os clientes recebiam banhos com
ervas para facilitar a sintonia com as entidades da noite. Nos cultos
evangélicos, tudo mudava. Pastor Miquelino usava roupas sociais e subia ao
altar do terreiro para falar de Deus e do Diabo. Proferia testemunhos de fé,
superação e cura, erguendo uma Bíblia com fervor para pontuar a fala. Fazia
previsões e sessões de cura espiritual de forma teatral. Em poucos anos,
ganhou aval da Assembleia de Deus e pôs um letreiro na entrada do terreiro,
já transformado de nitivamente em templo evangélico. O local lotava de
crentes e cada el tinha de levar seu próprio banquinho, porque não havia
cadeiras su cientes para o público. As imagens dos pretos-velhos e de Exu-
Caveira foram postas num espaço menor, atrás da igreja.
Doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo, Lidice Meyer
observa que, na década de 1960, quando as igrejas evangélicas pentecostais
ainda estavam precariamente estruturadas no Brasil, era comum as
instituições dividirem espaços sagrados para exercer atividades religiosas,
mesmo que possuíssem doutrinas antagônicas. O compartilhamento dos
templos ocorria em comunidades pequenas, onde as pessoas se conheciam.
Com isso, cavam à vontade para exercer a fé de formas diferentes. “Até hoje
é possível encontrar, no interior do Brasil, igrejas dividindo o mesmo local.
Há casos de igrejas evangélicas de vertentes diferentes, como luteranas e
presbiterianas, fazendo cultos sob o mesmo teto, mas em horários distintos”,
ressalta a antropóloga. Segundo ela, o enlace entre igrejas evangélicas e
religiões de matrizes africanas fora do cristianismo (candomblé e umbanda),
como feito no espaço de Miquelino na década de 1960, geralmente ocorria
quando o pai de santo estava em processo de troca de religião. “Nos morros
do Rio de Janeiro há diversos templos evangélicos funcionando em espaços
onde antes era um terreiro, porque o pai de santo se converteu”, conta Lidice,
que também é professora de mestrado em Ciência das Religiões na
Universidade Lusófona, em Portugal.
Durante o processo de conversão, Miquelino recebia simultaneamente
evangélicos e seguidores do candomblé, como sua irmã Calmozina. Era
comum, por exemplo, ele pedir aos crentes que tirassem os sapatos ao entrar
na igreja, como exigia dos adeptos do candomblé. Por muito tempo,
conciliou atividades de pastor com o de suposto pai de santo. Na vizinhança,
as pessoas falavam à boca pequena que ele havia feito um pacto com o
Diabo. Para amedrontar a comunidade, ele não desmentia nem con rmava
essa fofoca.
Quem chegou a testemunhar o trabalho macabro de Miquelino relatou
que seus alvos se enforcavam, morriam atropelados, eram vítimas de
envenenamento com arsênico ou cianeto ou assassinados por armas de fogo.
Miquelino era magro, alto e negro. Tinha o hábito de deixar as unhas
grandes, como se fosse o personagem Zé do Caixão. Suas mãos se
destacavam ainda mais com o uso de acessórios chamativos, como anéis,
pulseiras e braceletes. Chegou a se casar com Zeferina, uma garota de 15
anos entregue ao suposto pai de santo pela própria mãe. A jovem era neta de
uma mulher escravizada que havia morrido durante uma tentativa de fuga
da fazenda onde era explorada. Para ser aceita como mulher de Miquelino,
Zeferina cou trancada num quarto escuro por uma semana, comendo
apenas vegetais, bebendo água e vestindo uma bata branca. Todas as noites,
Miquelino e um assistente a estupravam. Só depois desse ritual Zeferina foi
aceita como companheira do bruxo. No terreiro, ela fazia de tudo um pouco:
sacri cava animais, como bodes, porcos e pombos; limpava o espaço,
sempre sujo de sangue; cozinhava, lavava e passava a roupa do marido, além
de ajudá-lo no atendimento aos clientes. A faxina feita por ela e voluntários
era mais pesada às vésperas dos cultos evangélicos. Cabia ainda a Zeferina
fazer oferendas a Exu, de madrugada, em encruzilhadas da rodovia BR-393.
À mulher, Miquelino fez um pedido crucial no momento de selar o namoro:
que ela jamais engravidasse, porque um lho, disse, não seria bem recebido
pelas entidades cultuadas por ele. Quando foi ordenado pastor da
Assembleia de Deus, ele se casou com Zeferina.
A última lha negociada por Eupídio foi Calmozina – que tinha 10 anos
quando passou a viver com o soldado do Exército Benedicto Marcelino de
Paulo depois de ter sido abusada por ele. Sofria violência verbal e
psicológica, além de ser estuprada e frequentemente espancada pelo militar.
Aos 13 anos, na semana em que se comemorava o Natal, Calmozina
apanhou tanto do marido durante uma relação sexual que perdeu três
dentes e teve ferimentos dolorosos na vagina e no ânus. Depois disso, juntou
os trapos e voltou para a casa dos pais. Aos prantos, implorou para car por
lá pelo menos até o ano-novo. Sebastiana estancou o sangue da boca da lha
usando gelo e uma fralda. Para conter as hemorragias vaginal e anal, a mãe
encheu uma bacia com água e bastante sal grosso e pediu para Calmozina
sentar-se nela por uma hora. Depois, Sebastiana deu um banho na lha, fez
questão de pentear os cabelos da pré-adolescente e vesti-la com roupas
limpas, além de perfumá-la com água de colônia. Na sequência, levou-a de
volta para a casa do marido agressor, sob o argumento de que a brutalidade
do homem fortalece a mulher. No caminho, Sebastiana buscou justi car o
injusti cável:
– Filha, você acha que o seu pai não me bate? – questionou a mãe.
– Nunca vi ele encostar um dedo na senhora!
– O Eupídio me bate todos os dias. De manhã, de tarde e de noite. Levo
tapas, socos, chutes e empurrões. Principalmente na cama. A sina da mulher
é apanhar do marido, lha. O homem bate na esposa porque a ama. Por isso
a gente é agredida durante o sexo. Ouça o meu conselho: volte para o seu
marido. Faça tudo que ele mandar que você apanhará bem menos –
aconselhou a mãe.
Nem deu muito tempo de Calmozina re etir sobre as palavras absurdas
de Sebastiana. No caminho de casa, as duas toparam com Benedicto, o
marido, por volta das 20 horas. Ele pegou a menina do chão, deu um beijo
em sua boca e a colocou em cima dos ombros. “Como você está cheirosa”,
elogiou o agressor. Calmozina só conseguiu se livrar do abusador aos 17
anos, quando ele, com 27, interessou-se por uma criança de 12. Benedicto
levou a nova vítima para dentro de casa. Não estava trocando uma pela
outra: deixou claro que queria as duas. Algumas semanas depois, Calmozina
pegou suas roupas, pôs em uma sacola e fugiu de vez.
Para não voltar à casa dos pais e correr o risco de ser entregue a outro
monstro, ela se mudou para o terreiro de Miquelino, o irmão mais velho. Lá,
passou a ajudar Zeferina no trabalho doméstico e nas invocações do bruxo
evangelista. Uma das tarefas de Calmozina era limpar as imagens de Exu
Caveira e São Cipriano, além de auxiliar no culto das quartas-feiras.
Aos 18 anos, durante a estada na casa do feiticeiro, Calmozina
testemunhou uma tragédia que a marcaria para sempre. Contrariando o
desejo do marido, Zeferina engravidou. A gestação de uma menina só foi
descoberta no sétimo mês. Miquelino não queria a lha porque, segundo
suas crenças, a bebê não era abençoada pelo Exu.
Para forçar o aborto da esposa, ele primeiro deu uma sequência de socos
em seu abdome. Depois de espancada, a grávida foi forçada pelo marido a
tomar chás abortíferos feitos de uma mistura de alcaçuz, cáscara-sagrada,
prímula e quebra-pedra. Com tantos episódios violentos, a gestante sofreu
choque ana lático no oitavo mês de gestação. O bebê, ainda prematuro,
sobreviveu à morte da mãe. Miquelino, então, acendeu tochas e incendiou o
terreiro com a nenê dentro. Apavorada, Calmozina escondeu a criança em
uma casa vizinha. Quando perguntou pela lha, o pai foi informado de que
ela não havia sobrevivido ao fogaréu. Uma semana depois, aconteceu outra
desgraça no espaço de trabalho de Miquelino: um bando de jagunços
invadiu o terreiro na madrugada e, com tiros, pauladas e dezenas de facadas,
matou o pai de santo. Nunca se soube a real motivação do crime, apesar das
suspeitas de intolerância religiosa ou vingança. Miquelino teve o corpo
esquartejado em sete partes. O tronco com os braços foi pendurado em
ganchos de metal e amarrado em correntes nas pernas-mancas de
sustentação do telhado do terreiro. O couro cabeludo, os olhos, as orelhas e a
língua foram brutalmente extirpados. As unhas dos dedos dos pés e das
mãos foram arrancadas. O sangue do bruxo foi todo retirado e depositado
em uma tigela de barro, utilizada para sacri car animais. A cabeça da
imagem de Exu Caveira foi en ada no ânus da vítima.
Calmozina deparou-se na manhã seguinte com os pedaços do cadáver
suspensos no terreiro de areia branca. Antes de chamar a polícia, fez um
ritual de despedida e banhou-se com o sangue do irmão. Como lembrança
de Miquelino, guardou consigo as imagens de São Cipriano e Exu Caveira.
Nesse rito, segundo contou, Calmozina herdou a essência dos supostos
poderes sobrenaturais do bruxo, mais tarde aperfeiçoados e repassados a
Flordelis. A polícia nunca encontrou os assassinos de Miquelino. A lista de
seus desafetos tinha tantos nomes quanto os grãos de areia que havia
naquele terreiro.
Depois da morte trágica do irmão, Calmozina registrou a bebê como
lha e deu a ela o nome de Laudicéia. Começou a namorar um rapaz
chamado Amilton e com ele teve dois lhos: Amilton Filho e Abigail – como
não gostava do nome, porém, a moça passaria a ser chamada de Eliane após
um ritual religioso envolvendo sangue de bode preto. Com três lhos
pequenos e um passado marcado pela violência, Calmozina saiu de casa
assim que levou o primeiro tapa de Amilton. Prometeu para si mesma
transformar-se numa nova mulher e jamais admitiria apanhar de homem
algum. Jamais!

* * *

No m da década de 1960, Calmozina mudou-se do norte uminense


para a favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio. Conseguiu emprego
como operária numa indústria fabricante de tintas, ta adesiva, papel-
carbono e cola para blocagem. Rescaldada com o passado, adotou postura
fria diante da vida – e, principalmente, com os homens. Investiu seu tempo
em aprimorar rituais de bruxaria, mesclando-os com pregações evangélicas.
No trabalho, conheceu Francisco Jorge dos Santos, o Chicão, e com ele teve
Flordelis e Fábio. Chicão criou Laudicéia, Amilton e Abigail (Eliane) como
se fossem seus lhos.
No Jacarezinho, Calmozina passou a frequentar a Assembleia de Deus
por in uência do tempo em que trabalhava com o irmão Miquelino e, assim
como ele, manteve a simpatia pelo candomblé. Também cultuava São
Cipriano, santo polêmico que teria sido bruxo e vendido a alma ao Diabo
antes de se converter ao cristianismo. Segundo o livro biográ co atribuído a
ele, Cipriano nasceu em Antioquia, província romana na Síria, no século III.
Tornou-se sacerdote da religião romana, estudou loso a e magia nos
grandes centros da Grécia e desenvolveu feitiçaria com o próprio Demônio
durante o período em que morou numa caverna sagrada. Calmozina
guardava a imagem desse santo controverso, a quem chamava de Deus, num
compartimento camu ado de seu guarda-roupa.
Na nova fase da vida, casada com Chicão, a mãe de Flordelis alterou o
nome para Carmozina. Inicialmente, justi cou a troca alegando um erro no
cartório de Santo Antônio de Pádua, onde foi registrada. “Meus pais me
chamavam de Calmozina por causa do sotaque caipira. Mas, na verdade, eles
queriam dizer Carmozina, com ‘R’. Lá no cartório, perguntaram: como é o
nome desse bebê? Eles responderam Calmozina, com ‘L’, e datilografaram
assim na minha certidão”, explicou. Em seu documento de identidade, o
nome está grafado com ‘L’. Em junho de 2022, ela contou outra história para
justi car a alteração do nome: a troca se deu após um ritual religioso, feito
no meio de uma oresta, no qual teria aperfeiçoado o que chama de magia.
“Eu achava o meu nome feio e o meu Deus conversava diretamente comigo,
me chamando de Carmozina”, contou. Foi também esse Deus, segundo
observa, quem lhe deu poderes superiores à natureza para fazer curas e
prever desgraças, atividades chamadas por ela de “clarividência”, “profecia”,
“premonição” e “antevisão”. Certo dia, ela caminhava na aurora numa
estrada de terra batida, ainda em Santo Antônio de Pádua, quando ouviu um
assobio vindo da mata. Intrigada com o som, entrou na oresta já à noite e
caminhou por uma trilha fechada até perder as forças. Desmaiou na
escuridão. “Acordei dois dias depois, coberta de sangue, sob um forte clarão
e toda cercada por insetos luminosos de asas vermelhas. Ao lado havia
quatro bodes pretos decapitados pelo Pai Miquelino em minha
homenagem”, contou ela, em tom sério. A partir desse episódio, segundo
suas crenças, passou a ter “energias sagradas”. Nem todos os vizinhos,
obviamente, acreditavam nos poderes da bruxa do Jacarezinho. Carmozina
classi cou os céticos como anjos do Satanás. “Só quem acredita em Deus
sabe do que estou falando”, resumiu.
Com o passar do tempo, as mandingas zeram dela uma personalidade
conhecida, principalmente na comunidade evangélica. Mas a mistura dos
elementos do candomblé com os preceitos da Assembleia de Deus e a
devoção a São Cipriano eram incompreensíveis aos olhos dos éis mais
tradicionais – com isso, Carmozina passou a camu ar o canjerê. Cobriu-se
com o recato típico da mulher evangélica e intensi cou os atendimentos em
casa, a contragosto de Chicão. Viviam em dois quartos apertados, uma sala
estreita e cozinha conjugada. O banheiro era do lado externo, com uma
fossa subterrânea rudimentar localizada diretamente sob o vaso sanitário.
Próximo a ela havia um poço artesiano com tampa de tábuas de madeira.
Em frente à casa, um pinheiro; nas laterais, quatro coqueiros, além do
abacateiro destruidor de telhados da vizinha Mariazinha. A família tinha
geladeira, fogão a gás e TV em preto e branco. Apesar dos poucos recursos,
ninguém passava fome. No almoço, era servido o básico: arroz, feijão e
carne ou ovo. As contribuições em alimentos e até em dinheiro vivo dadas
pelas pessoas que se diziam bene ciadas pela feitiçaria de Carmozina
ajudavam no sustento da casa. Com o tempo, a vida melhorou: o telhado
deu lugar a uma laje de concreto e um segundo pavimento foi construído
para conferir mais privacidade aos trabalhos da bruxa.
Enquanto Carmozina atendia seus clientes, Chicão trabalhava pela
manhã numa assistência técnica de rádio e televisão e, à tarde, numa fábrica
de alegorias de carnaval. Músico, seu sonho era manter-se exclusivamente da
arte. Tocava acordeão no grupo da igreja, conhecido no meio evangélico por
Conjunto Angelical. A banda era liderada pelo pastor Joaquim Lima, um
dos mais carismáticos da congregação. Antenado com o que estava
acontecendo no mundo, Joaquim introduziu a música nas igrejas do
Jacarezinho como um atrativo para conquistar novos éis. O pastor havia
sido in uenciado pelo movimento carismático norte-americano, que
emplacava músicas gospel nas rádios comerciais. Na década de 1970,
praticamente todas as igrejas pentecostais do mundo já animavam seus
cultos com apresentações musicais. No Conjunto Angelical, além de Chicão
no acordeão, seu lho Fábio tocava bateria, caixa e prato. Volta e meia,
Flordelis assumia o vocal. Os demais músicos eram José Gomes (tamborim),
João Januário (contrabaixo), Geraldo Marçal Filho (guitarra solo) e Aléssio
Barreto de Freitas (guitarra base). O grupo se apresentava de roupa social.
Nas performances mais importantes, vestia o mesmo modelo de terno e
gravata de cores escuras ou xadrez, inspirado no gurino usado pelos
Beatles e outras bandas de sucesso desde o início dos anos 1960.
No começo da década seguinte, o uso da guitarra elétrica na música
brasileira era sinônimo de modernidade e polêmica. Quando o instrumento
chegou aos templos evangélicos, a cúpula da Assembleia de Deus começou a
reclamar, atribuindo o som pesado à sinfonia de Lúcifer. No entanto, o ritmo
envenenado e potente atraiu mais jovens, aumentando a oferta de dízimos e
das contribuições espontâneas. Nos dias de shows com guitarras, a
arrecadação nanceira da igreja praticamente dobrava. Por conveniência, os
pastores desassociaram o frenesi dos novos instrumentos da obra do
Tinhoso e passaram a chamar o novo estilo musical de “heavy metal do
Senhor”.
Sucesso absoluto, o Angelical começou a fazer turnês pelos templos da
Assembleia de Deus do Jacarezinho e passou a ser chamado para
apresentações em comunidades, como Cachambi, Del Castilho, Inhaúma e
Manguinhos. Na esteira da fama, os rapazes recebiam cartas de fãs
evangélicas e balançavam multidões de éis. Boa parte dos ensaios ocorria
no quintal da casa de Carmozina, onde Flordelis começou a aperfeiçoar a
voz poderosa em cânticos de louvor. Para facilitar o deslocamento pelo
interior do Rio, os angelicais conseguiram com os pastores da igreja uma
Kombi marrom com teto branco e portas com janelas de vidro corrediças.
De placa ZS-9381, o modelo corujinha ano 1969 tornou-se o xodó dos
músicos. Calígrafo pro ssional, o contrabaixista Januário, de 23 anos,
desenhou no painel do veículo frases bíblicas adaptadas do Salmo 62, com
temas que faziam uma re exão sobre a esperança. Uma delas dizia: “A
minha alma espera somente em Deus; Dele vem a minha salvação”. A frente
do carro ganhou um adesivo com o nome da banda por cima do símbolo da
Volkswagen – a letra C, de conjunto, foi estilizada com o desenho de uma
lua crescente.
Januário era o mais cuidadoso com a mascote do grupo. O
contrabaixista costumava lavar a Kombi todos os sábados, caprichando no
sabão e encerando a lataria. Nos pneus da corujinha, passava graxa preta de
sapato. As calotas prateadas com contornos de borracha branca chamavam a
atenção. Detalhista, Januário estilizou o interior da perua com motivos
religiosos. O teto arredondado de forro branco parecia o rmamento: foi
todo desenhado com nuvens, estrelas e anjinhos. As vigas sobre a janela
receberam enfeites, assim como os para-lamas nos quais se lia “Estamos a
serviço do Senhor”. Em cima do painel branco e rústico foi a xada uma
Bíblia aberta, e no retrovisor interno havia uma corrente dourada com uma
medalhinha da pomba do Espírito Santo.
Apesar do sucesso do Angelical, Carmozina não via a ascensão da banda
com bons olhos. Na época, a bruxa dizia existir uma nuvem escura sobre os
músicos. Certa vez, eles estavam ensaiando no quintal da casa e Chicão
pediu para Flordelis cantar, enquanto o vocalista titular, Odilon de Paiva
Reis, não chegava. Pré-adolescente nessa época, ela subiu numa caixa de
madeira e cantou feito pro ssional, usando uma voz típica de contralto
dramático, atraindo a atenção de pedestres e vizinhos. Carmozina não
gostou de ver a lha no meio dos artistas, apesar de seu irmão Fábio e seu
pai, Chicão, fazerem parte da banda. A bruxa dizia para Flordelis que Deus
reservara uma desgraça para os rapazes do Angelical. Ou seja, quanto mais
longe deles casse, melhor seria. Chicão se irritou ao ouvir da esposa
profecia tão agourenta. “Você está levando essa palhaçada de ver o futuro
muito a sério. Menos! Menos! Por favor!”, reclamou. “Quem ama Jesus pode
ter a certeza de que Deus está no controle e vai cuidar de sua vida agora e
futuramente”, devolveu Carmozina, recorrendo à Bíblia mais uma vez.
A crença nos poderes de Carmozina nunca foi unanimidade no seio
familiar. Chicão e Amilton duvidavam, mas não implicavam com os
supostos dons e com os atendimentos feitos na casa. Pelo contrário, as
ofertas em comida e em dinheiro feitas pelos clientes como pagamento pelos
serviços da bruxa ajudavam nas despesas domésticas e foram aumentando à
medida que a fama dela crescia na comunidade. Em 1976, Carmozina tinha
tantos clientes que precisou de uma assistente. Flordelis, então com 15 anos,
passou a ajudar a mãe nas atividades. Carmozina dizia aos mais próximos
que a menina também era uma bruxa, mas precisava aprimorar seus
poderes. “No momento certo, ela receberá um aviso, assim como eu também
recebi”, dizia a mãe, de forma ambígua. Com a voz cada vez mais
aperfeiçoada tecnicamente, Flor passou a cantar em cultos da Assembleia de
Deus do Jacarezinho ao mesmo tempo que sonhava em ter os poderes da
mãe. Como naquela época os templos não contavam com sistema de som
ampli cado, Flor tinha de cantar na força do gogó para os éis sentados na
última leira escutarem. Esse exercício quase diário fortalecia suas cordas
vocais.
A família inteira de Flordelis se dedicava à igreja, com exceção de
Amilton. Nessa época, o jovem alto, magro e charmoso mantinha o corpo
com músculos de nidos em sessões constantes de ginástica. Andava pelas
quebradas da favela sem camisa para chamar a atenção das meninas.
Galanteador, tentava escapar da sina religiosa imposta na família por
Carmozina, mas era sempre arrastado para o templo pela mãe. O interesse
de Amilton pelos cultos só começou depois de conhecer Rose da Silveira,
uma bela missionária. Ela sonhava em se tornar pastora, posição então
vedada a mulheres na Assembleia de Deus. Quando Rose falava aos líderes
sobre seus desejos de ascender na igreja, ouvia deles que a ordenação de
mulheres ao Santo Ministério Pastoral era antibíblica, ou seja, não tinha base
nas escrituras sagradas. Desiludida, a jovem largou mão dos planos
religiosos e, apesar de continuar congregando na igreja, passou a cuidar de
sua vida. Na adolescência, Rose usava saias longas, como outras mulheres
protestantes, mas tinha um truque para encurtá-las em determinadas
ocasiões. Com a roupa no corpo, ela puxava por dentro a parte de baixo até
prender a barra na cintura com al netes, reduzindo o comprimento da peça
pela metade e deixando os joelhos e parte das coxas à mostra. Se estivesse na
rua com a versão curta da saia e avistasse algum el da igreja a distância,
rapidamente soltava o tecido para cobrir as pernas grossas e sensuais. A
manobra fazia sucesso.
Rose e Amilton perderam a virgindade juntos, aos 16 anos. Nessa época,
ela vendia roupas numa feira livre e ele batia ponto numa grá ca industrial,
onde perdeu o dedo indicador da mão esquerda operando uma guilhotina
de cortar papel. No dia do acidente, foi Rose quem socorreu o namorado,
levando-o ao hospital. “Nunca vi tanto sangue em toda a minha vida”, disse
ela. Depois de ser submetido a uma cirurgia complicada para estancar a
hemorragia, Amilton foi levado para casa pela namorada. Ele tinha
curativos enormes na mão e gritava de dor, porque a anestesia estava
perdendo o efeito. Quando foi chamada para socorrer o namorado, Rose
usava a versão curta da saia. Nervosa e perturbada com a emergência
médica, acabou se esquecendo de soltar o pano para cobrir as pernas. Foi
Carmozina quem atendeu à porta quando a moça chegou com Amilton. A
bruxa olhou as vestimentas da nora com reprovação e botou o lho para
dentro de casa, puxando-o pelo braço. Irritadíssima, a matriarca expulsou
Rose de lá de forma grosseira, sob a acusação de levar Amilton para o
caminho da perdição. “Sai daqui, serpente do Satã! Deixa meu lho em paz,
puta do Belzebu!”, gritava a mãe da porta de casa, para todos os vizinhos
ouvirem. Humilhada e assustada com a baixaria, Rose prometeu nunca mais
pôr os pés na casa do namorado. Na noite seguinte, Carmozina chamou o
cordeiro desgarrado para uma conversa a sós no quarto dela. Amilton sentia
dores fortes no dedo que havia perdido, evento chamado pelos médicos de
“dor fantasma”, que acomete pelo menos 90% dos indivíduos que passam
pela amputação de alguma parte do corpo. Amilton reclamava de
queimação, formigamento, pontadas e até cócegas no dedo inexistente.
Vestindo uma bata branca, Carmozina pediu para o lho car sentado na
beirada da cama e olhou sua mão, coberta com gazes e esparadrapos
embebidos de sangue. Em seguida apagou a luz, acendeu uma lamparina
vermelha e começou uma pregação na qual todos os infortúnios do jovem
eram atribuídos a uma vida longe de Deus:
– Meu lho, essas coisas terríveis só acontecem na nossa vida quando a
gente se afasta Dele.
– Eu sei, mãe. Me desculpe.
– Você está cada vez mais distante do Altíssimo.
– Me desculpe – repetiu Amilton.
– Essa sua namorada saiu da igreja para dar assistência ao Diabo.
– Isso não é verdade! – rebateu Amilton.
– Você está me chamando de mentirosa? – perguntou, irritada.
– Não! – devolveu ele, cabisbaixo.
– Vocês já dormiram juntos? – quis saber Carmozina.
Amilton cou mudo e a bruxa interpretou o silêncio dele como uma
resposta positiva. Em seguida, pegou a mão de quatro dedos do lho, ainda
coberta com curativos ensanguentados, e comprimiu-a contra o próprio
peito, para manchar a bata de vermelho. Amilton gemeu de dor. A mãe
prosseguiu com o sermão:
– Filho, o Criador levou o seu dedo como punição pelo tipo de vida
errada que você está levando. Você sabe disso, né? Como você não vai voltar
para o caminho do bem, as suas dores vão se intensi car.
Amilton começou a chorar. Lentamente, Carmozina começou a descolar
a ponta do esparadrapo da mão do rapaz e ele gritou. Da sala, Chicão ouviu
o suplício do lho adotivo. Amilton implorou:
– Por favor, mãe. Não faça isso!
– Você sabe de quem a gente se aproxima quando se afasta de Deus? Não
sabe?
Ele não respondeu. Impaciente, Carmozina foi até o armário e pegou
uma vergasta na e comprida usada como chibata. Amilton viu o acessório
usado para castigos corporais e levantou-se imediatamente. Tentou escapar
caminhando em direção à porta. A bruxa se preparava para dar a primeira
cipoada quando ouviu o lho pecador, desesperado, recorrendo aos céus
para não apanhar:
– Pelo amor de Deus, mãe. Não me machuque!
– Agora você abre a sua boca suja para falar o nome Dele, seu
transgressor!
Chicão invadiu o quarto para salvar Amilton da agressão materna e
tomou a chibata das mãos de Carmozina:
– Enquanto eu for vivo, ninguém encostará um dedo nos meus lhos! –
gritou.
Não era comum ocorrerem espancamentos na casa de Flordelis.
Carmozina justi cou a surra que daria no lho como último recurso para
livrá-lo de um destino trágico traçado por Deus e profetizado por ela.
Chicão chamou a esposa de louca. Na semana seguinte, mais calma, a bruxa
teve nova conversa com Amilton. Dessa vez não houve violência. Tranquila,
a mãe repetiu a pergunta feita anteriormente:
– Filho, não vou desistir de você. Me responda novamente: você sabe de
quem a gente se aproxima quando se afasta de Deus?
– Sei, sim, mamãe! – respondeu ele.
– Então olhe dentro dos meus olhos e diga o nome do nosso inimigo em
voz alta para você mesmo ouvir e nunca se esquecer dele! – pediu a bruxa.
Amilton encarou a mãe, desviou o olhar para o chão e não respondeu.
Começou a chorar e a soluçar. O jovem se sentia afastado emocionalmente
da mãe. Atribuía a seu fanatismo religioso o abismo existente entre eles.
Carmozina deixou o lho verter lágrimas por alguns minutos, fez um
gancho com o dedo indicador e levantou a cabeça do rapaz pelo queixo, até
ele encará-la. Insistiu na pergunta.
– Responda, cordeiro de Deus: de quem a gente se aproxima quando se
afasta Dele?
– Do Diabo, né, mamãe? – respondeu ele, baixinho, entre soluços.
– Mais alto! – ordenou a mulher, agora com a voz rouca.
– Do Diabo, mamãe. Do Diabo! – gritou Amilton.
– Exatamente, lho. Temos de car longe do lado escuro da vida porque
é nas trevas que vive o Demônio! É de lá que vêm todas as nossas fraquezas!
– encerrou a matriarca.
Ao ouvir nomes satânicos vindos da casa de Carmozina, Mariazinha
correu para lá achando que haveria outra sessão de “exorcismo”. Estava
enganada. A vizinha encontrou Amilton chorando e recebendo sessão extra
de descarrego. Mariazinha aproveitou para dizer à amiga que cortaria os
galhos do abacateiro na semana seguinte e que as telhas quebradas seriam
substituídas.
Na mesma conversa com o lho, Carmozina falou sobre uma provação
importante à qual ele seria submetido num futuro próximo. O episódio a
que a bruxa se referia mudou para sempre a vida do rapaz, aos 18 anos.
Amilton sofria de epilepsia. Na infância, teve ataques esporádicos. Na
adolescência, passou a ter crises mais frequentes. Em casa, a evolução da
doença era atribuída à sua vida desregrada e cada vez mais distante da igreja.
Certo dia, Amilton acordou cedo e passou na casa de Rose para namorar. O
casal mantinha vida sexual ativa e pouco disfarçada. Carmozina, entretanto,
parou de repreender o lho. Chicão estranhou a vista grossa da bruxa para a
“luxúria” do rapaz e ouviu dela algo sobre a tal lição divina prestes a
acontecer. No mesmo dia, entre uma transa e outra com Rose, Amilton foi
soltar pipas com amigos. Uma delas caiu sobre o teto da igreja e coube a ele
subir para pegá-la.
O jovem escalou o templo por uma tubulação externa até alcançar a
calha do telhado, na altura de um prédio de três andares. A pipa estava sobre
as telhas de barro, numa cúpula íngreme chamada por arquitetos de tesoura
de mansarda. Para chegar até lá, Amilton caminhou rmemente sobre a
cobertura. Rapidamente alcançou a pipa e foi até a ponta do telhado, para
mostrar seu êxito aos amigos. De repente, perdeu os sentidos, soltou a pipa e
começou a ter um ataque epiléptico. Do chão, os colegas viram o lho de
Carmozina desequilibrar-se, despencar de uma altura de 12 metros, varar
entre galhos de um oitizeiro enorme e se estatelar na calçada, coberto por
uma chuva de folhas verdes. Às pressas, Amilton foi posto em um táxi e
levado desacordado ao pronto--socorro da Santa Casa de Misericórdia.
Ninguém sabia dizer se estava vivo ou morto. Esbaforida, Rose esqueceu as
desavenças com a sogra e correu para avisá-la do acidente. Dessa vez,
Carmozina a recebeu tranquila e serena. A bruxa estava no quintal
estendendo roupas no varal quando recebeu a notícia de que seu lho havia
caído do teto da igreja. “Já sei de tudo, lha. Deus me avisou faz tempo”,
disse. A família seguiu até o hospital e encontrou Amilton sem fraturas,
apenas com alguns arranhões pelo corpo. O dito milagre na proteção ao
lho aumentou o murmurinho sobre os poderes sobrenaturais da mãe.
Desde então, Amilton, a ovelha desgarrada e rebelde de nove dedos, passou
a se sentar todo domingo no primeiro banco da igreja cujo teto ele jamais
esqueceria.
Sozinha em seu quarto de orações, Carmozina cou meditando em
silêncio por mais de três horas ininterruptas. Adormeceu. No breu dos seus
sonhos, teria encontrado seu irmão Miquelino em sua versão adolescente. O
feiticeiro tinha apenas 15 anos e estava sorridente, com um álbum de fotos
em preto e branco nas mãos. Curiosa, Carmozina pediu para olhar as
imagens, mas o danado não deixou e correu por uma vasta plantação de
milho, em plena madrugada. A bruxa perseguiu o irmão, que se embrenhou
no milharal dando risadas. Ao perceber que Carmozina estava perdendo o
fôlego, ele jogou o álbum no chão, aos pés de um espantalho horrendo, e
desapareceu feito um fantasma. Carmozina pegou o livro de fotos e sentou-
se para folheá-lo. Ao virar a primeira página, arregalou os olhos e levou a
mão à boca: a imagem mostrava o corpo do marido morto e desmembrado
sobre o asfalto. Na outra página, deparou-se com seu lho Fábio agonizando
numa poça enorme de sangue. Se fosse uma mulher fraca, Carmozina teria
gritado de pavor. Mas não. Ela fechou o álbum da morte bem lentamente e o
jogou fora. Em seguida, caminhou pelo meio da plantação em silêncio sob a
luz da lua cheia em direção ao nada. Mais adiante, encontrou uma lápide
ncada na plantação. Mais perto, pôde ver um epitá o dedicado ao seu lho
Amilton.

* * *
Com o passar do tempo, as supostas profecias de Carmozina tornaram-
se assunto em todo o Jacarezinho. Os moradores, principalmente os éis da
Assembleia de Deus, falavam de seus poderes como se fossem verídicos. Um
evento marcante ocorrido em outubro de 1976, no entanto, elevou a fama da
bruxa a patamares inimagináveis. O Conjunto Angelical recebeu um convite
para se apresentar na inauguração de um templo em Guarulhos, na região
metropolitana de São Paulo. A banda faria um bate e volta: iria de Kombi na
madrugada de sábado, dia 23, tocaria na noite do mesmo dia e retornaria ao
Rio de Janeiro na sequência, pois não havia dinheiro para dormir na cidade.
Na tarde de sexta-feira, os músicos zeram um ensaio geral na casa de
Carmozina. Dos mais de vinte integrantes da banda que se revezavam a cada
show, Chicão e Fábio eram presença certa em Guarulhos. Enquanto o grupo
a nava os instrumentos sob o abacateiro de Mariazinha, Carmozina estava
“conversando com Deus” no quarto. Num rompante, ela foi até o quintal
toda vestida de branco, interrompeu o ensaio e puxou Chicão para um
canto. O diálogo transcrito abaixo foi relatado por ela aos 89 anos de idade,
em 18 de abril de 2022. Segundo conta, a conversa com o marido teria
ocorrido na tarde da sexta-feira, 22 de outubro de 1976, véspera da partida:
– Chicão, Deus acabou de me contar um segredo: vai acontecer uma
desgraça nessa viagem.
– Lá vem você com as suas profecias! – indignou-se o marido.
– Ele me con denciou que vai te levar deste mundo quando você estiver
na estrada. Eu enxerguei um clarão horrível como as labaredas do inferno! –
relatou, enfática.
– Sério?! Então quero um show gospel no meu funeral – debochou ele.
– Por favor, me ouça! Aproveite a chance de se despedir das pessoas que
te amam. Poucos cristãos têm essa oportunidade quando morrem
repentinamente!
– Se isso for verdade, por que você não pede para eu car?
– Jamais me poria contra um desejo de Deus!
– Quer saber? Estou de saco cheio dessa sua bruxaria! Se você realmente
acredita nessa bobajada, me faça um favor: esqueça que eu existo! –
encerrou a conversa.
Chicão deixou a esposa falando sozinha e voltou para o ensaio.
Laudicéia percebeu o clima pesado entre os pais, e Carmozina compartilhou
com a lha sua profecia nefasta. Assustada, a primogênita sugeriu impedir a
viagem do pai e do irmão caçula por causa do suposto acidente. A bruxa foi
contra. “Não se meta! Deus deixou claro que é a hora de seu pai partir. Não
podemos nos opor a uma decisão suprema”, insistiu. Laudicéia perguntou se
aconteceria algo com Fábio, já que ele iria na mesma viagem. Carmozina
não respondeu e permitiu a partida do garoto, com 14 anos na época.
A Kombi marrom e branca era tratada como se fosse um integrante da
banda. Ainda na sexta-feira, após o ensaio, Januário lavou o carro com
esmero, calibrou os pneus e encheu o tanque de combustível. “Nós não
podemos fazer feio em São Paulo, corujinha”, dialogava com a mascote.
Conforme o combinado, os músicos entraram na Kombi nas primeiras horas
do sábado. Januário sempre pedia para dirigir, mas o pastor Joaquim, líder
da banda, não deixava. Se pegasse a direção na estrada, o contrabaixista
estaria exausto no momento da apresentação. Lourival Reis era o motorista
o cial. No entanto, Januário fazia questão de seguir no banco do carona,
dando palpites na direção, como se fosse copiloto. Se Lourival forçasse o
motor da corujinha, o contrabaixista pedia para ele pegar leve.
A viagem de ida foi mais ou menos tranquila. A Kombi estava
abarrotada de instrumentos e sete pessoas seguiam espremidas entre eles.
No meio do trajeto de 450 quilômetros, o veículo começou a engasgar, em
plena Via Dutra (BR-116). Nunca a corujinha tinha percorrido tanto chão
com excesso de peso de modo ininterrupto. O motor simplesmente apagou.
Como se zelasse pela vida dos angelicais, a mascote só parava de funcionar
em locais seguros da estrada. Depois de meia hora desligada, esfriava, era
empurrada pelos rapazes e o motor funcionava outra vez. A danada ganhava
velocidade após o esforço coletivo, obrigando todos a serem ligeiros para
alcançá-la e subir pela porta lateral com o carro em movimento. Isso
ocorreu quatro vezes na ida. Os músicos já estavam acostumados com
aquilo, que atribuíam ao temperamento instável da Kombi: às vezes, ela
parecia ter vida própria e personalidade forte.
– Essa corujinha tá muito dengosa, precisando de carinho – brincou
Januário numa das paradas.
Depois do afago dos rapazes, a mascote ganhou fôlego e concluiu o
percurso até Guarulhos. A viagem, em geral de seis horas de duração, foi
concluída em doze horas por causa das falhas no motor. Na cidade paulista,
ainda zeram um ensaio geral. O show, na visão da banda, foi um sucesso. A
igreja estava decorada com balões e bandeirinhas coloridas. Mais de 5 mil
cristãos compareceram e ovacionaram a pregação do pastor Joaquim e o
som do Conjunto Angelical. No nal, teve chuva de confete e serpentina.
Exaustos, de volta à Kombi para regressar ao Rio, os músicos dormiram
apoiados nos ombros uns dos outros – exceto, claro, o motorista Lourival.
Compreensiva, a corujinha não pifou nenhuma vez durante o retorno. Pelo
contrário, seguiu viagem silenciosamente, sem falhas no motor. Chicão
estava no banco de trás, ao lado do lho Fábio. Nessa época, o uso do cinto
de segurança não era obrigatório no Brasil, nem mesmo para os passageiros
do banco da frente.
Na altura do município de Piraí (RJ), a 100 quilômetros de casa, a
profecia macabra de Carmozina começou a se materializar. Era uma noite
luminosa, banhada por uma chuva na e persistente. Pouco antes das 22
horas, a corujinha parecia calma na escuridão da estrada. Após uma curva
bem fechada, Lourival se surpreendeu com um caminhão (placa AQ-0551)
carregado de ferro, parado no acostamento. Parte da carroceria, entretanto,
ocupava a primeira faixa da rodovia. Ao desviar do obstáculo com uma
manobra brusca para a esquerda, a Kombi perdeu o controle, seguiu
desgovernada em zigue-zague e esbarrou na mureta de concreto que divide
as duas pistas.
Logo atrás, um ônibus da Viação Cometa (placa HX-0297) atingiu a
traseira da perua. Com o impacto na corujinha e a intensidade da frenagem,
quem estava atrás foi arremessado à frente do carro numa velocidade
assustadora. Nesse tipo de acidente, a desaceleração inesperada causa danos
aos órgãos, porque eles colidem com os ossos. O cérebro, por exemplo, é
amassado pela caixa craniana, causando sangramentos internos. Com o
choque, Fábio foi jogado violentamente em direção ao para-brisa e cuspido
para fora da Kombi.
Januário se atracou numa das alças da corujinha, como se desse as mãos
a ela diante de tanto pavor. Implacável, o ônibus sentou outra pancada forte
– dessa vez na lateral. A Kombi perdeu a estabilidade e capotou dez vezes até
parar no meio da estrada com as rodas viradas para o lado. Os músicos se
machucaram muito porque, além das duas colisões e da ausência do cinto de
segurança, os instrumentos musicais com pontas de metal cortante bateram
neles enquanto o veículo rodopiava. O teto branco da perua, ornamentado
com desenhos de anjinhos, cou imundo de sangue. Com medo de uma
explosão, os angelicais saíram rapidamente pelas portas da Kombi, todas
voltadas para o alto. O ônibus, sem passageiros, conseguiu parar mais
adiante, com pequenas avarias.
Sobreviventes e seguros em terra rme, os músicos religiosos já falavam
em milagre. Apressado, o pastor Joaquim Lima se ajoelhou no acostamento,
ergueu os braços para cima segurando uma Bíblia e começou a orar
enquanto chorava para agradecer pela vida dos músicos. Os mais
machucados eram Fábio, Odilon e o motorista, Lourival. O irmão de
Flordelis bateu a cabeça, cortou a boca e o supercílio direito, teve fraturas
expostas nos braços e nas pernas e uma intensa hemorragia. Chicão
sobreviveu com alguns arranhões. Januário machucou o ombro e teve
ferimentos no rosto.
Naquela hora de martírio surgiu o lavrador Antônio Donizete da Silva,
de 23 anos, que passava a pé pelo acostamento quando viu o acidente e
tratou de socorrer as vítimas. O motorista do ônibus, Maurício Ferreira da
Silva, também ajudou a cuidar dos feridos, amarrando panos para estancar
as hemorragias. Numa atitude perigosíssima, alguém teve a ideia de pedir a
alguns passageiros da Kombi – Fábio, Aléssio, Januário, Lourival e Geraldo –
que se sentassem no meio- o da Via Dutra até as ambulâncias chegarem.
Enquanto isso, Antônio Donizete e Maurício uniram forças e desviraram e
empurraram a Kombi até o acostamento. Januário, mesmo machucado,
também ajudou a socorrer a corujinha. Em pé, no acostamento, estavam
Chicão, Joaquim, Brás Fernandes e José Gomes.
Chegaram viaturas da Polícia Rodoviária Federal. Antes que os agentes
pudessem interditar o trânsito, surgiu uma carreta (placa NT-1491) da
empresa de transportes Grecco, abarrotada com 12 toneladas de enormes
lâminas de vidro. A jamanta corria com faróis altos clareando a escuridão,
em velocidade muito acima da permitida. Ao se deparar com o caminhão
atravessado na estrada, o motorista fez uma manobra precipitada e foi em
direção à Kombi, que ainda estava sendo retirada da pista. Com os freios
acionados subitamente, o veículo pesado começou a arrastar os pneus no
asfalto, levantando uma fumaça preta e produzindo um som que ensurdecia
a todos.
A carreta atingiu primeiro a corujinha, arrastando a perua de encontro
aos músicos que estavam em pé no acostamento. Levada por uma força
descomunal, a Kombi se chocou contra o ônibus da Viação Cometa parado
cerca de 100 metros adiante e cou totalmente destruída pela compressão.
A colisão dos três veículos matou sete pessoas por esmagamento. Alguns
corpos foram desmembrados em quatro partes. Para completar a tragédia, a
carga de vidro despencou da carreta, distribuindo estilhaços cortantes para
todos os lados.
Januário foi o primeiro a ser atingido. Seu corpo foi cortado brutalmente
em três pedaços – na altura do tronco e no pescoço. Com o choque, a cabeça
do contrabaixista foi catapultada ao matagal, como num lme de terror.
Chicão foi o segundo a morrer. A maior parte do corpo destroçado do
marido de Carmozina cou presa entre o maquinário da carreta e a Kombi.
Além de Januário e Chicão, morreram no local quatro integrantes da banda:
o pastor Joaquim Lima (57 anos), José Gomes da Silva (24), Geraldo Marçal
Filho (29) e Aléssio Barreto de Freitas (27). O lavrador Antônio Donizete
também morreu decapitado na tragédia.
Com 14 anos na época, Fábio sobreviveu, juntamente com o motorista
da corujinha, Lourival Reis. Os músicos Odilon e Brás Fernandes saíram do
duplo acidente com ferimentos leves, porque perceberam o movimento
insano da carreta e tiveram o re exo de saltar rapidamente para trás.
Curiosamente, Fábio foi dado como morto por dois dias. Ele estava a poucos
metros de Chicão quando a carreta surgiu. Ao testemunhar de perto a morte
violenta do pai, o jovem teve uma crise de pânico seguida de um ataque
histérico. Começou a se debater no chão. O caçula de Carmozina estava
muito ferido. Uma viatura da Polícia Rodoviária Federal o levou dali em
estado de choque para o hospital de Volta Redonda, onde foi internado
numa Unidade de Tratamento Intensivo. Como nenhum dos sobreviventes
viu Fábio ser resgatado pelos agentes, deduziram que o rapaz estaria entre os
mortos.
Quatro camburões do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro
passaram a madrugada toda retirando os pedaços de corpos da estrada e do
acostamento. Quando o sol clareou o céu azul, havia um rastro de morte na
Via Dutra. Misturados a tiras de pneus e cacos de vidro, foram encontrados
no asfalto pares de sapatos, um pandeiro, uma guitarra quebrada, uma
bateria totalmente dani cada, dois livros de cânticos e diversas bíblias. A
corujinha marrom e branca, irreconhecível de tão destruída, foi descartada
feito sucata no ferro-velho.
Trancada em seu quarto, concentrada em orações, Carmozina sentiu um
vento gelado nas costas quando a Kombi com o marido e o lho caçula
bateu no ônibus. Disse ter visto Deus agindo à sua maneira. “Eu soube que
eles não morreriam no primeiro momento porque havia outra ovelha para
acertar as contas com Ele”, contou, referindo-se ao lavrador Antônio
Donizete. “Não tente buscar explicações para as decisões do Criador. O que
eu posso te dizer é que aquela carreta não surgiu na estrada do nada. Ela
tinha uma missão”, relatou Carmozina, em março de 2022. Quem levou a
notícia triste à bruxa foi o pastor da Assembleia de Deus, Demóstenes
Assumpção. Às 10 horas da segunda-feira, 25 de outubro de 1976, o líder
religioso bateu à porta da viúva com uma Bíblia embaixo do braço. Fez um
pouco de rodeio:
– Dona Carmozina, às vezes as linhas tortas da caligra a de Deus nos
fazem sofrer e chorar. Mas elas sempre nos levam para o caminho certo...
– Já sei que o meu marido morreu no acidente! – encurtou a conversa.
– A senhora ouviu na rádio Tupi? – quis saber o pastor, achando que
trazia um furo de reportagem.
– Não! Na semana passada, Deus veio até mim sem intermediários e me
falou objetivamente dos seus planos para a minha família – respondeu.
– Amém! – completou Demóstenes, tentando consolá-la.
– Mais alguma coisa, pastor?
– Não sei se Deus lhe adiantou, mas seu lho Fábio também nos deixou,
dona Carmozina.
– Quem lhe disse isso?
– Ouvimos nas ondas da rádio logo cedo.
– A rádio Tupi e o senhor estão enganados. Meu lho está vivíssimo! –
contestou a matriarca.
Pedindo licença a Demóstenes, Carmozina fechou a porta lentamente na
cara dele. A vizinha Mariazinha também ouviu no rádio sobre o acidente e
correu para consolar a amiga pela morte do marido e do lho caçula.
Emotiva, Mariazinha derramava um rio de lágrimas, enquanto a viúva não
demonstrava qualquer emoção. Fria, a bruxa pediu à vizinha que chorasse
apenas por Chicão e voltou a insistir na sobrevivência de Fábio. Na
sequência, Carmozina começou um circuito de orações com vários éis na
sala de sua casa até a chegada do corpo do marido, ainda na segunda-feira.
Fábio apareceu em casa no dia seguinte, para surpresa de todos. Quem viu o
caçula naquele momento, depois de dado como morto, creditou a
“ressurreição” a mais um milagre na conta da bruxa do Jacarezinho.
A morte dos rapazes do Conjunto Angelical teve ampla cobertura da
mídia nacional porque, além da violência do acidente, uma outra colisão
ocorrida dois meses antes na Via Dutra havia matado o ex-presidente da
República Juscelino Kubitschek. O político morreu no km 165 da rodovia –
a 75 quilômetros do local da tragédia com os músicos religiosos da
Assembleia de Deus –, no dia 22 de agosto de 1976, aos 73 anos. O Opala do
político seguia de São Paulo para o Rio, foi atingido por um ônibus e
ultrapassou a mureta divisória, colidindo de frente com uma carreta. Na
época, a polícia chegou a considerar a hipótese de um atentado. A tese
investigada sustentava que o ônibus teria batido de propósito na traseira do
carro de JK, dirigido por Geraldo Ribeiro. Porém, o motorista do coletivo,
Josias Nunes de Oliveira, foi inocentado por falta de provas. O local onde o
ex-presidente perdeu a vida é conhecido atualmente como “Curva do JK”.
O funeral dos integrantes do Conjunto Angelical ocorreu na tarde do dia
26 de outubro de 1976, uma terça-feira, e arrastou uma multidão de fãs. O
acidente teve destaque no Jornal Nacional, na época apresentado por Cid
Moreira e Sérgio Chapelin. Na televisão, o noticiário emocionou o público
ao contar a história de cada um dos músicos evangélicos mortos na batida
dos três veículos. O lavrador Antônio Donizete também teve obituário
exibido na tevê. Segundo registros da época, os motoristas das duas carretas
envolvidos nas colisões foram indiciados e o condutor da jamanta foi preso.
Alguns jornalistas zeram reportagens sobre uma maldição na Via Dutra
em função dos acidentes violentos ocorridos no trajeto desde sua
duplicação, em 1967.
Na semana do desastre com os angelicais, fotos da corujinha inteira e
totalmente destruída, assim como imagens da jamanta assassina,
apareceram com destaque nos jornais O Dia e Jornal do Brasil. Segundo os
periódicos, mais de 2 mil pessoas foram ao culto do templo da Assembleia
de Deus de Jacarezinho em homenagem aos músicos mortos, e metade desse
público seguiu até o cemitério de Inhaúma, na zona norte do Rio de Janeiro
– muitos éis se mostravam inconsoláveis com a perda do líder do grupo, o
popular pastor Joaquim Lima. Os caixões chegaram juntos, mas foram
levados para sepulturas distantes umas das outras. Como os enterros
ocorreram ao mesmo tempo, houve um corre-corre dentro do cemitério em
razão da impossibilidade de os presentes acompanharem todos os cortejos.
As vias estreitas do campo-santo caram pequenas para o amontoado de
gente, e os éis começaram a caminhar por cima das sepulturas, dani cando
os mausoléus. A destruição das lápides foi destaque na página 12 do jornal
O Globo de 27 de outubro de 1976. “Esses enterros foram os mais
tumultuados já realizados aqui no cemitério de Inhaúma. Nunca vimos nada
parecido”, destacou um funcionário à reportagem.
Ladrões aproveitaram o fuzuê e zeram um arrastão no cemitério,
roubando bolsas, carteiras, relógios e cordões, fato também registrado em O
Globo. O alvoroço aumentou ainda mais porque a família de Januário
resolveu ver o rosto do rapaz poucos minutos antes do enterro. Funcionários
da prefeitura tentaram impedir, porque o corpo do músico estava
decapitado. Mas a mãe dele bateu o pé e fez um escândalo. Ela descon ava
que o morto lá dentro não era seu lho. Mesmo contrariado, o coveiro abriu
a urna. De fato, a pessoa deitada no esquife funerário não era Januário. Os
fãs do Conjunto Angelical bateram o olho na vítima e disseram se tratar do
músico José Gomes (tamborim), que tinha a mesma idade do contrabaixista.
A troca foi desfeita, mas a confusão continuou porque, revoltados, os
parentes de Januário concluíram o óbvio: haviam orado por mais de três
horas para o defunto errado.
Ao nal dos sepultamentos, os éis se reuniram na principal via do
cemitério. Os pastores Demóstenes e Sebastião Gabriel dos Anjos, os mais
populares de Jacarezinho, aproveitaram a aglomeração das ovelhas para
pregar: conduziram um culto in amado que começou às 17 horas e varou a
noite, quando os roubos se intensi caram. Para completar, como era ano de
eleições municipais, candidatos a prefeito e a vereador apoiados pela
Assembleia de Deus no Rio de Janeiro foram até lá pedir votos. Os políticos
também ofereceram ônibus para conduzir os éis da favela até o funeral e
vice-versa. No trajeto, cabos eleitorais distribuíam santinhos dos candidatos.
A Polícia Militar foi chamada, porque a administração do cemitério não
conseguiu expulsar as pessoas para fechá-lo às 18 horas.
Quase no nal do culto improvisado, Flordelis teve seu primeiro
momento de brilho como artista. Em pé sobre um mausoléu, o pastor
Sebastião chamou a lha de Chicão, que estava na plateia. Flor subiu na
sepultura e cou perplexa com o mar de gente diante de seus olhos. Para a
multidão, o pastor apresentou a garota de 15 anos como cantora, lha de
Chicão e Carmozina e irmã de Fábio. Os éis aplaudiram com fervor. Apesar
de ela já ter se apresentado várias vezes como vocalista do Conjunto
Angelical, na Assembleia de Deus de Jacarezinho, boa parte do público
evangélico não a conhecia. Percebendo o encanto dos éis pela garota
magricela de cabelos pretos e longos, Sebastião cochichou no ouvido da lha
de Carmozina:
– Não temos banda nem microfone. Você dá conta de cantar no gogó?
– Com certeza! – assegurou Flordelis, com a postura de diva.
O pastor Sebastião pediu silêncio ao público para a adolescente
esquálida cantar. Esperta, ela optou por fazer uma pregação religiosa antes
de se apresentar. Falou da importância do pai e da mãe em sua vida e se
solidarizou com os familiares dos mortos. Depois, referiu-se com carinho a
cada um dos integrantes do Conjunto Angelical, arrancando aplausos e
lágrimas. Na sequência, entoou à capela os principais sucessos da banda,
levando a plateia ao delírio. Por último, cantou hinos da igreja, todos
acompanhados pela multidão. Flor foi ovacionada pela primeira vez na vida.
Sua performance ganhou até registro na edição dos jornais do dia seguinte.
Encantados, os pastores convidaram Flordelis, ali mesmo, do alto de uma
sepultura, para cantar em todos os cultos dominicais da igreja da
Assembleia de Deus administrada pelo pastor Demóstenes, a mesma
frequentada por Rose, namorada de Amilton. Quando a estrela desceu do
palco improvisado, um rapaz de 23 anos, bem-apessoado, deu a mão a ela
para cortejá-la. A moça correspondeu ao galanteio com um sorriso, mas um
monte de éis tentava cumprimentá-la e o tumulto atrapalhou o erte.
Depois da algazarra, Flor procurou o moço, e nada – engolido pela
multidão, o jovem sumiu como se fosse uma miragem.
Com a morte de Chicão, Carmozina intensi cou em casa os serviços de
cura e adivinhação oferecidos aos éis da Assembleia de Deus, mas não só a
eles. Ela buscava novos clientes nos templos e também nas ruas da
vizinhança e em pontos de aglomeração, como feiras e pontos de ônibus. A
maioria chegava até sua casa pela publicidade boca a boca. Em alguns dias
da semana, pelo menos dez pessoas recorriam à bruxa. As doações, antes
espontâneas, passaram a ser obrigatórias e preferencialmente em dinheiro.
Mesmo assim, os valores pagos eram irrisórios, pois boa parte da clientela
estava desempregada e mal tinha recursos para comprar comida. Com a
pindaíba da família, Laudicéia e Abigail (Eliane) passaram a trabalhar como
domésticas em casas de família e deixaram de ajudar Carmozina. Flordelis,
então, assumiu o cialmente o papel de assistente direta da mãe: auxiliava
nas sessões de “cura” puxando orações e organizando o atendimento. Em
paralelo, tentava engrenar na carreira musical. Amilton continuava
trabalhando na grá ca, operando máquinas de cortar e picotar papel.
Quando a sala de espera estava cheia de éis, Flor falava das profecias da
mãe. Fábio dava testemunho, relacionando sua sobrevivência aos ditos
poderes sobrenaturais de Carmozina. “A minha mãe me salvou no acidente
da Via Dutra. O Diabo veio em nossa direção dirigindo uma carreta e ela
pediu a Deus que eu fosse poupado. Graças a esse milagre, eu estou aqui
dando o meu testemunho”, relatava o caçula.
Alguns anos depois da morte de Chicão, a casa de Carmozina havia se
transformado num minicentro de cura semelhante à oca de Miquelino, seu
falecido irmão. Certo dia, um casal de jovens da igreja, Alexandre e Marly,
ambos perto dos 30 anos, procurou a bruxa em busca de solução para um
problema conjugal. Ele era alcoólatra em estado avançado e, possuído pela
cachaça, enchia a esposa de murros e depois a estuprava furiosamente. Eles
já tinham tentado de tudo para afastar o álcool do matrimônio – Marly
também bebia, mas com moderação. Apesar das sessões de violência,
desfazer o casamento estava fora de cogitação. A moça amava o marido e, na
igreja, chamava seu martírio de provação. Carmozina resumiu a infelicidade
do casal a rmando, entre uma oração e outra, que o capeta entrava na casa
de Alexandre e Marly dentro das garrafas de pinga. No nal da primeira
sessão, agendou um retorno para a semana seguinte e ordenou que o casal
levasse todas as bebidas da casa. No dia marcado, eles estavam lá com seis
garrafas de aguardente Pitú, cinco delas cheias e lacradas – a sexta, aberta,
tinha metade do conteúdo. Nessa segunda sessão de cura, Marly apresentava
hematomas no rosto, disfarçados com pó compacto. Alexandre havia
entornado 400 mililitros de cachaça como forma de despedida. Carmozina
pegou as garrafas, percebeu o estado deplorável do “cliente”, fechou os olhos
e fez uma oração na qual o nome do Diabo e seus derivados foram
pronunciados à exaustão – bem mais vezes do que o nome de Deus. A casa
estava cheia de testemunhas, e a bruxa se dirigia a elas:
– Irmãos, o Satanás está no corpo desse rapaz!
– Amém! – gritavam os éis.
– Glória a Deus! – berravam outros.
– O Coisa-ruim está diluído no sangue dessa ovelha e consegue passear
por todo o seu corpo, penetrar-lhe os ossos – dizia Carmozina, mostrando a
garrafa de Pitú aos éis.
– Amém!
– Uma única reza não é capaz de expulsar o bode-preto das entranhas
desse cristão, que caminha ao encontro da latrina do mundo.
– Amém!
– Mas estou aqui para virar esse jogo. Sua família não será destruída
pelos poderes do mal.
– Amém!
– Minha oração poderosa vai livrá-lo do cão-miúdo!
Alexandre estava no meio da sala, ajoelhado, de costas para Carmozina.
No momento mais fervoroso da oração, ele começou a chorar. A bruxa
continuou:
– Repita comigo: álcool nunca mais! Álcool nunca mais! Álcool nunca
mais!
Num ato cênico, Carmozina jogou a garrafa de Pitú contra a parede,
estilhaçando-a. Os éis se assustaram, mas não arredaram pé do culto. A
bruxa segurou Alexandre pelos cabelos e sacudiu sua cabeça de um lado
para o outro, continuando a pregação:
– Eu sei que parar de beber não é fácil, até porque Lúcifer é elegante,
sedutor, manipulador, insistente e traiçoeiro. Ele exerce um poderio enorme
sobre os homens de alma fraca que vivem longe de Deus. O beiçudo de
chifres plantou uma semente maldita na cabeça desse servo! Mas estou aqui
para colocá-lo novamente no rebanho do bem!
Assistente da mãe, Flordelis recolheu os cacos da embalagem quebrada e
guardou no armário as outras cinco garrafas de aguardente lacradas, levadas
por Alexandre. No nal da sessão, a bruxa marcou um retorno do “cliente”
para dali a três dias. Dessa vez, porém, ele deveria ir sozinho. O casal saiu de
lá sob aplausos dos éis. Antes de ir embora, Marly deixou na mesa de
centro um quilo de açúcar e uma bandeja com 24 ovos, que serviram de
jantar para todos da casa por uma semana. Carmozina olhou para os
alimentos e encarou a cliente de cara feia. Envergonhada, Marly abriu a
bolsa e deixou duas cédulas de 1 cruzeiro, à época ilustradas com uma efígie
simbólica da República. A cara da bruxa cou ainda mais feia. Marly
desembolsou uma nota de 5 cruzeiros, estampada com a cabeça imponente
do imperador D. Pedro I.
Fato: a família de Carmozina era cheia de segredos. Um deles cava
guardado a sete chaves. Depois de se mudar para o Jacarezinho, a bruxa
descobriu que, além de Miquelino, tinha outro irmão por parte de pai.
Criminoso e ex-presidiário procurado pela polícia, era conhecido como
Pau-Preto do Jacaré. O rapaz atuou no trá co, foi condenado a doze anos de
prisão e já estava no regime aberto quando atropelou e matou um pedestre
no Jacarezinho. Ele sustentava se tratar de um acidente. No entanto, poucas
pessoas acreditavam, porque a vítima era integrante de uma facção rival.
Para não voltar à cadeia, Pau-Preto escolheu a vida de foragido. Às vezes, o
bandido passava pela casa de Carmozina para comer, tomar banho e
descansar. No dia da sessão de descarrego de Alexandre, ele estava lá e
reconheceu o alcoólatra de outros carnavais. O rapaz tinha cha suja por
assalto a ônibus em Copacabana e cou alguns meses preso. Nas horas
vagas, Alexandre também roubava relógios e carteiras no Centro do Rio.
Para a esposa, dizia trabalhar sob o sol com placas enormes penduradas na
frente e atrás do próprio corpo anunciando compra e venda de ouro no
Largo de São Francisco de Paula. Depois de ouvir do irmão bandido
referências negativas sobre Alexandre, Carmozina teve uma ideia. Conforme
o combinado, o “cliente” retornou sozinho à casa da bruxa já confessando ter
sido possuído novamente pelo rabudo, que entrou nele pelo gargalo da
garrafa de Pitú. Arrependido e choroso, o pinguço levou um outro casco da
cachaça quase vazio. Prometeu não beber o resto de jeito nenhum, pois
temia que, endemoniado, voltasse a espancar e violentar a esposa. Irritada
com aquela conversa mole, Carmozina pegou a garrafa, derramou a bebida
na pia da cozinha e atendeu Alexandre reservadamente, no quintal. Longe
de testemunhas, ela foi categórica:
– Deus me contou os caminhos sem luz percorridos por você, sua ovelha
imunda!
– Tudo o que, minha senhora? – perguntou ele, acreditando tratar-se dos
estupros contra Marly.
– Sei de coisas que você imagina e um pouco mais! Inclusive dos roubos
no Centro, da vida na prisão, do seu passado tão sujo de merda quanto o
pau do padre. É muito pecado para uma alma pequena como a sua!
– Minha Nossa Senhora! – espantou-se o penitente.
Como a maioria dos evangélicos não acredita na pureza da Virgem
Maria, Carmozina aproveitou a interjeição inadequada de Alexandre e
desferiu uma bofetada em seu rosto. Na sequência, ameaçou:
– Se você puser mais uma gota de álcool na boca, vou te entregar à
polícia e sua esposa vai saber que tipo de cristão asqueroso você é!
Quem conhece essa história conta que Alexandre atravessou a sala da
bruxa todo molhado de urina. Como de hábito, ele deixou donativos para
Carmozina: um quilo de farinha de mandioca, uma lata de óleo de soja,
além de uma nota de 10 cruzeiros, ilustrada com a cabeça do imperador D.
Pedro II. Saiu de lá tão rápido quanto um tiro de revólver. No domingo
seguinte, supostamente regenerado, subiu ao púlpito da Assembleia de Deus
para dar um testemunho de como se livrou do vício em álcool. Todos os
méritos foram atribuídos a Carmozina, que estava na plateia e foi
reverenciada. Como agradecimento pela “cura”, Alexandre fez questão de
dar discretamente a Carmozina uma nota de 50 cruzeiros, à época
estampada com a medalha do marechal Deodoro da Fonseca na frente e um
painel de Cândido Portinari, representando a colheita de café, no verso. A
bruxa pegou a nota, dobrou-a rapidamente e a escondeu no sutiã, enquanto
os éis oravam de olhos bem fechados. Nesse mesmo culto, Flordelis, já com
18 anos, subiu ao palco para cantar com a nova formação do Conjunto
Angelical. No meio da apresentação, viu o rapaz bonito e misterioso
presente no enterro do pai. O jovem se aproximou do palco e Flor se
desconcentrou, mas terminou de cantar a música “Multidão”, escrita por
Fábio em homenagem a Chicão. Um trecho da letra diz: “Vejo uma grande
multidão caminhando por um longo caminho. Vejo que as pessoas não
caminham sozinhas. Com elas segue Deus pai, que fez o céu, a terra e o amor.
E essa multidão vai caminhando de vestes brancas por uma estrada escura [...]
cantando em coro celestial”. À medida que Flor entoava os versos, o jovem
enigmático cortava caminho por entre os éis até chegar à ponta do palco. O
rapaz encarou rmemente a cantora. No nal da apresentação, ela desceu e
perguntou à queima-roupa:
– A nal, quem é você?
– Eu me chamo Paulo Rodrigues Xavier. Sou pastor na igreja de
Demóstenes, aqui mesmo no Jacarezinho. Estou loucamente apaixonado por
você há três anos e não há nada que me impeça de viver esse amor.
Flordelis olhou o rapaz de 26 anos de cima a baixo, xou o olhar no
volume grande do seu sexo sob a calça de tecido no. Num canto reservado
da igreja, retribuiu a investida com um singelo beijo em seu rosto. Os dois
saíram do templo de mãos dadas e transaram até o dia seguinte na casa de
uma tia dele. A química entre o casal foi tão poderosa que, três dias depois,
estavam namorando sério sem mesmo se conhecerem direito. Segundo
relatos de parentes, quando Paulo surgiu na igreja, Flor teria visto o vulto do
pai tocando acordeão junto com os novos integrantes do Angelical. O
fantasma de Chicão sorriu para a lha e balançou a cabeça sutilmente,
indicando sinal positivo, ao mesmo tempo que abria e fechava o
instrumento musical sanfonado. Foi só depois do aval da suposta
assombração paterna que Flor fechou os olhos e deu um beijo longo na boca
de Paulo. O pastor levou a namorada para cantar na igreja de Demóstenes
em diversos cultos dominicais, tornando-a mais conhecida na comunidade
evangélica. Quem acompanhou as apresentações musicais de Flor relatou
que ela era extremamente sedutora quando subia ao palco, atraindo a
atenção dos cabritos e despertando inveja das ovelhas. Paulo espumava de
ciúme da namorada, mas era contido pelo pastor Demóstenes, que lhe dizia
frases de autoajuda, como “o ciúme é um sentimento tão nobre que deve
car sempre oculto”.
Depois de nove meses de namoro, Flor e o pastor Paulo Xavier se
casaram e tiveram supostamente três lhos: Simone dos Santos Rodrigues,
nascida em 21 de janeiro de 1980; Flávio dos Santos Rodrigues, nascido em
31 de maio de 1981; e Adriano dos Santos Rodrigues, nascido em 15 de
agosto de 1987. Adriano nasceu raquítico e continuou magricelo na
infância, na adolescência e na vida adulta. Por causa do corpo franzino,
recebeu o apelido de “Pequeno”. No início, o casamento de Flor e Paulo era
um mar de rosas. Os dois faziam muitos programas românticos, como
passear no calçadão de Copacabana, assistir a lmes em salas de cinema e
frequentar motéis. A amigos, Paulo reclamava do excesso de volúpia de
Flordelis, pois ela queria transar todos os dias e até em lugares inusitados,
como atrás da igreja. Quando os lhos eram pequenos, o pastor não gostava
de transar em casa, porque tinha receio de que uma das crianças ouvisse os
gemidos da esposa. Paulo também tinha medo de ser agrado na cama com
Flor, pois as portas dos quartos não tinham fechaduras muito seguras. Com
o tempo, os dois começaram a se desentender por causa da falta de interesse
do pastor em sexo. Segundo relatos de Flordelis, ele também passou a
espancá-la. Paulo negou a violência doméstica e contou a amigos da igreja
ter se separado dela ao descobrir supostas traições. Com o m do
casamento, Flordelis passou a cuidar dos lhos sozinha. O ex-marido fazia
questão de pagar pensão alimentícia e de buscar as crianças para passear nos
ns de semana. Pré-adolescente, Flávio era o mais apegado ao pai. Adriano,
ainda muito pequeno, era impedido pela mãe de sair com Paulo. Simone foi
“envenenada” por Flordelis e passou a rejeitar o pai por ele ter abandonado a
família. Em um dos encontros de Paulo com a lha, ele teria cado chocado
com o per l sedutor da menina. Na verdade, ela vinha reproduzindo um
padrão de comportamento familiar. Aos 10 anos de idade, disse com todas
as letras que não era mais virgem. A garota tinha uma energia sexual tão
forte quanto a da mãe e se oferecia compulsivamente até para homens
casados, apesar de não ter o corpo desenvolvido.
Nas décadas de 1970 e 1980, a sexualidade precoce das crianças ocorria
geralmente a partir dos 8 anos, principalmente nas comunidades carentes.
Flordelis, por exemplo, transou pela primeira vez aos 12 anos, com um
homem de 31. Carmozina, que perdeu a virgindade aos 10, reprovava o
comportamento deplorável da neta, principalmente quando a menina
seduzia ou era seduzida por homens adultos nos cultos e até nas sessões de
cura da avó. Quando Simone completou 12 anos, sua fama de piranha já
corria por toda a favela. Certo dia, o tra cante do Comando Vermelho
Anderson Cortiano de Melo, de 25 anos, armado com um revólver, bateu à
porta de Carmozina dizendo ter transado com Simone e querendo repetir a
relação sexual. Perplexa, a bruxa chamou a neta para uma conversa
particular no quintal. Anderson cou na sala. A garota disse à avó estar
loucamente apaixonada pelo bandido. Como de costume, a feiticeira disse
ter tido uma longa conversa com Deus. E que Ele, em segredo, fez um
prognóstico sinistro para a família:
– Simone, minha neta, Deus reservou para Flordelis, para você e seus
irmãos as maiores desgraças do mundo. Eu olho, olho e olho para o céu e só
vejo a morte no futuro de vocês. Toda a escuridão envolvendo o destino da
nossa família estará relacionada diretamente a essa vida mundana que você
está levando agora. É tanto sofrimento que estou toda arrepiada.
Impaciente, o tra cante foi até o quintal, interrompeu a conversa e
perguntou sem cerimônia:
– Simone, você vem ou não?
– Vou, sim! Só um momento – pediu.
– Minha neta, esse homem é um tra cante perigoso e ainda por cima
casado! – alertou Carmozina.
– Eu sei. Por isso estou com ele! – devolveu a jovem.
– Vou contar à sua mãe! – ameaçou a feiticeira.
– Não precisa. Eu mesma já contei! - retrucou a neta, cinicamente.
Mesmo mergulhada numa vida devassa, Simone era religiosa: vivia na
igreja, andava sempre coladinha a uma Bíblia, acreditava piamente nas
profecias da velha e repetia aos quatro cantos ser tementíssima a Deus.
Antes de sair de casa com Anderson, ela perguntou à avó, na frente do
bandido:
– Vó, me fale agora: quem vai trazer o Diabo para dentro da nossa
família? Quem?
Anderson riu. Séria, a bruxa respirou fundo, pôs as duas mãos em forma
de concha no rosto de Simone e a rmou com toda a certeza do mundo:
– O Diabo já está entre nós faz tempo!
Sem dar a mínima para a avó, Simone saiu com o seu namorado
tra cante. Carmozina foi até seu quarto de orações e trancou a porta. À
noite, quando todo mundo dormia, a bruxa teve um sobressalto na cama e
acordou molhada de suor. Para entrar um ar fresco, resolveu abrir a janela e
voltou a dormir. Mesmo sem estar ventando, o abacateiro de Mariazinha
soltou um fruto, que caiu dentro do poço. Carmozina estava deitada quando
ouviu o eco de uma voz familiar gritando por socorro. Acendeu uma
lamparina e desceu de camisola até o quintal. Aproximou-se do poço,
coberto com tábuas de madeira, retirou a tampa e levou um susto quando
viu Amilton lá no fundo, debatendo-se na água e suplicando pela vida.
“Mãe, pelo amor de Deus. Não me deixe morrer aqui!”, exclamava o rapaz.
De repente, Miquelino materializou-se vestido de branco dentro do poço e
puxou o sobrinho para o fundo. Carmozina viu o lho sumir. Ela olhou
friamente para o céu, fechou os olhos e agradeceu a Deus. Acordou só no
dia seguinte, em sua cama. Desceu para tomar café com a família como se
aquela cena agonizante nunca tivesse acontecido.
“Mesmo quando eu andar pelo vale das trevas
e da morte, não temerei perigo algum, pois tu
estás comigo.”

A
quariana, Flordelis dos Santos de Souza nasceu de parto normal na
madrugada de 5 de fevereiro de 1961 em uma viela do Jacarezinho,
uma das favelas cariocas mais pobres, violentas e negligenciadas do
país. Carmozina tinha 28 anos quando pariu a lha. O país era governado
por Jânio Quadros, o presidente com mandato mais curto da história do
Brasil. Jânio havia sido eleito com 5,6 milhões de votos e o apoio de uma
coligação de partidos liderados pela UDN (União Democrática Nacional)
em 3 de outubro de 1960. Tomou posse em 31 de janeiro de 1961 e cou no
cargo por apenas sete meses, renunciando no dia 25 de agosto. No período
em que Jânio pedia votos nas ruas, Carmozina gestava a futura pastora.
Brasília havia acabado de ser inaugurada. Uma penca de denúncias de
pagamento de propina envolvendo contratos do governo com empreiteiras
manchava as obras de construção da nova capital. Excêntrico, Jânio elegeu
uma vassoura como símbolo da campanha e usava a piaçaba nos comícios
para anunciar uma faxina no país e livrá-lo da corrupção. O marketing deu
certo.
Nos primeiros meses de governo, Jânio deu sinais de autoritarismo e
extravagância ao tomar medidas esdrúxulas e conservadoras – como proibir
o uso de biquínis em todas as praias do país e o de maiôs nos concursos de
beleza. Populista, ofereceu prêmio em dinheiro para os funcionários
públicos que não tivessem faltas no trabalho. As novas regras, impostas por
decretos, zeram a rejeição do presidente disparar e sua base política ruir.
Renunciou por meio de um bilhete dirigido ao Congresso Nacional, com 24
palavras distribuídas em cinco linhas.
Nessa época, um dos vizinhos de Carmozina no Jacarezinho era
Sandoval Gomes, de 19 anos. Cearense de Jaguaribe, popular na favela, era
um jovem forte, alto e bem-sucedido aos olhos da comunidade carente.
Trabalhava na campanha de Jânio distribuindo vassouras e santinhos e
dirigia um carro de som, divulgando o jingle do político nos morros do Rio
de Janeiro: “Varre, varre, vassourinha, varre, varre a bandalheira”. A canção
tinha ritmo de carnaval e empolgava a população. Certo dia, Sandoval
apareceu no Jacarezinho com cem vassouras e repassou dez delas a
Carmozina, fazendo piada: “Não vai sair voando por aí, hein...” Era uma
referência à fama de bruxa, já em ascensão no bairro. Ela não gostou do
gracejo, mas pegou as vassouras e repassou às vizinhas – duas caram com
Mariazinha, a dona do abacateiro. Quando Jânio foi eleito, Sandoval
conseguiu uma sinecura por indicação política no Palácio do Catete e se
manteve no cargo mesmo depois de o presidente perder o poder.
Em 1973, aos 32 anos, Sandoval trabalhava como motorista no gabinete
do governador do Rio de Janeiro, Raimundo Padilha (Arena), eleito
indiretamente pelos votos dos deputados da Assembleia Legislativa do
Estado. Com um cargo prestigiado pelas pessoas humildes, o servidor
público passou a fazer sucesso entre as mulheres do Jacarezinho. Foi quando
Laudicéia, de 22 anos, lha mais velha de Carmozina, interessou-se pelo
rapaz. Os dois começaram a namorar como casal de novela das seis.
Andavam de mãos dadas na praça. Assistiam à TV na sala sempre vigiados
pela família dela. Para o casal dar um beijo, era um sacrifício. Chicão não
permitia. Alegava que o beijo era a porta de entrada para saliências. Mesmo
assim os dois conseguiam trocar carícias no fundo do quintal. Certo dia,
Sandoval marcou um encontro com Laudicéia na praça, mas ela não teria
como comparecer na hora marcada por causa de um problema doméstico.
Para não deixar o namorado esperando, ela mandou Flordelis, com 12 anos
na época, avisar o rapaz. A menina deu o recado e Sandoval demonstrou
descontentamento. Flor começou a balançar a blusa insistentemente,
reclamando do excesso de calor. Sandoval a convidou para tomar sorvete,
mas ela declinou do convite. “Meu pai não deixa eu sair com homens mais
velhos”, justi cou Flordelis. O motorista aceitou a negativa e se afastou. Ela
interpelou com uma pergunta ingênua: “Será que tem sacolé de chocolate?”.
Sandoval e Flordelis foram até a sorveteria. De lá, ele a levou de carro para a
casa dos pais. No caminho, Sandoval começou a pegar no próprio pênis por
cima da calça até car excitado. Perguntou se ela queria chupá-lo. Flor
escapou do assédio e desceu do veículo. Numa segunda investida, ela fez
sexo oral no motorista. Após o ato, Flor fez uma chantagem: “Se você não
terminar o namoro com a minha irmã, vou contar ao meu pai que você me
forçou”. Uma semana depois, Sandoval deu um fora em Laudicéia dizendo
estar apaixonado por Flordelis. Chicão proibiu o namoro e ainda ameaçou o
motorista de morte. Mas isso não foi su ciente para desfazer o enlace
amoroso entre os dois. Sandoval teve uma aliada. Carmozina passou a
acobertar o namoro da lha pré-adolescente com o motorista, acreditando
que a relação poderia evoluir para um casamento. Era comum a bruxa pedir
dinheiro a Sandoval em troca do segredo. Ao esconder o casal, a matriarca
fazia um alerta: não devia haver sexo antes da união no religioso. Os dois
namoravam no quintal à luz do dia, sob os galhos frondosos do abacateiro
de Mariazinha, sentados em um banquinho de madeira. Os encontros eram
sempre à tarde, quando Chicão estava no trabalho. A bruxa passava lá e dava
instruções aos dois pombinhos: “Vocês têm de conversar bastante antes de
noivarem. Podem se beijar, mas com muito respeito. Nada de mãos em
lugares proibidos. Deus tá vendo tudo lá do alto! Até quando a gente está
entre quatro paredes, no escuro e debaixo das cobertas, estamos sendo
observados por Ele. [...] Sexo, só depois do casamento e apenas para
procriar, conforme está nos escritos sagrados. Daqui a alguns meses, a gente
vai até o pastor Demóstenes Assumpção formalizar o noivado”. De mãos
dadas, Sandoval e Flordelis ouviam o sermão da bruxa com atenção.
Quando Laudicéia descobriu que o ex estava com a irmã mais nova, teve
uma crise de choro. Carmozina a consolou dizendo que ela escolheu
Sandoval, mas infelizmente não havia sido escolhida por ele. “A vida
amorosa de uma mulher é cheia de dissabores, lha”, consolou a mãe.
Sandoval e Flordelis faziam sexo oral no carro, de forma recorrente.
Com o tempo, ele começou a insistir para a relação evoluir, apesar das
restrições impostas por Carmozina, pois o namoro estava cando sem graça.
“Você quer?”, perguntava ele. “Querer eu quero, mas não posso por causa de
Deus”, ponderava Flordelis. O funcionário público começou uma conversa
ada dizendo à namorada que o sexo proibido por Deus era o reprodutivo,
ou seja, o vaginal. Por essa lógica, eles estariam liberados para a prática do
sexo anal. Flordelis concordou e passou a transar com Sandoval todos os
dias na casa dele. Os dois chamavam atenção porque Flor era uma menina
baixinha e magricela, enquanto Sandoval era um adulto alto e forte. A
discrepância física entre os dois lembrava a do casal formado por
Carmozina e Benedicto, o militar com quem ela se relacionou forçada pelos
pais na infância. As primeiras relações sexuais de Flordelis e Sandoval foram
dolorosas para ela porque ele tinha o pênis muito grande. O “noivo” insistia
em penetrá-la no ânus mesmo assim. Flor dizia não e não, mas Sandoval
usava força bruta e estuprava a garota diariamente. Para se livrar da dor
anorretal, ela sentiu-se obrigada a fazer sexo vaginal, mas o desconforto
continuou e os estupros caram ainda mais frequentes. Com fortes dores e
sangramentos, Flor procurou por Laudicéia e perguntou em tom de segredo
se ela sentia dores ao transar com ele na época em que namoravam. “Você
está louca? Nós nunca zemos amor!”. Em choque, a irmã contou para
Chicão, pontuando o fato de o namoro clandestino ser acobertado pela mãe.
O patriarca fez uma reunião com dez músicos do Conjunto Angelical e falou
sobre os estupros sofridos pela lha, que àquela altura já cantava
acompanhada pela banda. Sandoval tocava baixo nas horas vagas e pedia de
forma recorrente uma chance para se apresentar com os rapazes da igreja.
Chicão marcou uma reunião com ele para realizar um teste no domingo à
noite. Tratava-se, no entanto, de uma emboscada: o “noivo” de Flordelis
levaria uma surra logo após o culto. De orelhada, Laudicéia ouviu dentro de
casa o plano para espancar Sandoval. Ainda apaixonada por ele, resolveu
alertá-lo. Agradecido pelo aviso, ele deu um longo beijo na moça, arrumou a
mala às pressas, pegou o carro e desapareceu do Jacarezinho. A primeira
lha de Carmozina se ofereceu para ir junto, mas ouviu uma negativa do
fugitivo. “Você é muito velha pra mim. Eu gosto de novinhas”, justi cou – e
ele era nove anos mais velho do que ela. Segundo Mariazinha, Sandoval teria
voltado para o Ceará. Mas havia quem dissesse tê-lo visto pelos lados do
morro da Providência, na região portuária, de mãos dadas com outra
criança.
A relação com um parceiro vinte anos mais velho, marcada por estupros
e violência, a orou a sexualidade de Flordelis, exatamente como ocorreu
com Carmozina. Na adolescência, a garota desenvolveu uma compulsão por
sexo, estigmatizada por comportamentos impulsivos e obsessivos. De acordo
com um estudo do psiquiatra Táki Cordás, professor dos programas de pós-
graduação do Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, a
exposição de crianças ou pré-adolescentes ao sexo de forma extremamente
precoce as torna mais propensas a desenvolver transtornos alimentares,
como compulsão (comer demais ou de menos) e bulimia, depressão e até
alterações nas funções cerebrais logo cedo, comprometendo a relação entre
hipotálamo, hipó se e adrenal, o circuito do estresse. Cordás integra o
Programa de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da
USP e coordena o ambulatório dos transtornos do impulso (AMITI) do
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
da USP. “A sexualização infantil leva a mudanças de comportamento não
apenas na criança, mas em toda a sociedade. [...] Quando o menor se coloca
como um objeto desejado, abre-se uma prerrogativa para o assédio e abuso
por parte dos adultos”, avalia o médico. A psicanalista Karin Szapiro, mestre
em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), associou a sexualidade precoce a uma vida adulta cuja maior
característica pode ser a falta de emoções, principalmente quando o
fenômeno está relacionado a eventos traumáticos, como os estupros sofridos
por Flordelis e Carmozina na fase nal da infância. Para Sigmund Freud, pai
da psicanálise, trauma é um acontecimento de nido pela intensidade e pela
incapacidade de a pessoa reagir de forma adequada. É um transtorno, um
atropelamento e um excesso de efeitos prejudiciais e duradouros na
organização psíquica da pessoa. Sendo assim, a erotização precoce aciona
impulsos sexuais de maneira inapropriada na fase adulta. “Isso atropela as
fases do amadurecimento e do desenvolvimento, prejudicando diretamente
o processo de aprendizagem afetiva do indivíduo”, destaca Szapiro. Segundo
os especialistas, a sexualidade está presente em todos os estágios do
desenvolvimento humano. No entanto, deveria ser canalizada para a
construção das emoções, das relações sociais, da experimentação de papéis e
do desenvolvimento da afetividade. Quando a vida sexual começa cedo
demais, acaba desviando a pulsão sexual exclusivamente para o erótico, o
excitante, o sensual. Essas análises são fundamentais para entender como
Flordelis desenvolveu a vida afetivo-sexual na adolescência e,
principalmente, em sua fase adulta.
Livre de Sandoval, Flordelis se envolveu simultaneamente com um
padeiro autônomo chamado Valdeci e um alfaiate conhecido no Jacarezinho
como Dora. Com nome unissex, era comum o pro ssional surpreender os
clientes quando batiam na porta do seu ateliê de costura. A maioria
acreditava que se tratava de uma mulher. Dora não ligava, a não ser quando
alguém o chamasse de costureira. Aí sim, ele descia das tamancas, como
costumava dizer. Os dois rapazes tinham entre 25 e 30 anos. Frequentavam a
mesma igreja da Assembleia de Deus na qual Flor, de 14 anos, congregava.
Ela, inclusive, soltava a voz assiduamente nos cultos noturnos. Para
organizar a vida afetiva, ela montou uma escala de encontros e conseguia
sexo praticamente todos os dias com os dois namorados, em horários
alternados. Mas nem sempre as coisas saíam conforme o planejado. Certa
vez, Flor trocava beijos ardentes com Dora na entrada de um beco da favela
quando Valdeci passou vendendo pão numa bicicleta cargueira. O agrante
causou um bate-boca que evoluiu para luta corporal, apartada por vizinhos.
Com raiva e ainda com as camisetas rasgadas, os dois pretendentes pediram
a Flor que optasse por um deles. Esperta, ela os levou até um canto mais
reservado e con denciou aos prantos amá-los na mesma proporção. “Não
tem como fazer uma escolha. Vocês são homens bem diferentes. Um é
delicado e o outro, mais rústico. Ou seja, vocês se completam”, argumentou
Flor, enquanto enxugava as lágrimas. Os jovens se entreolharam e caram
em silêncio. Com a pancadaria, a bicicleta havia caído e espalhado dezenas
de pães pelo chão da rua. Valdeci começou a juntá-los com a ajuda de
Flordelis, que propôs namorar o alfaiate à tarde e o padeiro à noite. Os
rapazes primeiro rejeitaram a proposta, depois ouviram argumentos sobre
os desprendimentos do amor e nalizaram a discussão de nindo horários
para o triângulo afetivo, cuja maior característica seria a transparência. Para
selar a tríplice aliança, Dora, solidário, também começou a juntar do chão os
pães de seu rival. Como eram quase 16 horas no momento do acerto, o
alfaiate pediu ao padeiro que o deixasse em paz com a namorada, já que
estava em seu turno de namoro. Valdeci pegou a bicicleta e saiu gritando
para os moradores do bairro que tinha pão quentinho saído do forno,
sumindo no emaranhado de casebres.
Mesmo feliz com os dois namorados, Flor não deixava de ertar com
outros homens, incluindo os integrantes do Conjunto Angelical e os amigos
de Amilton, seu irmão. Segundo dizia na época, fazia isso para aperfeiçoar a
sedução. Três meses depois do barraco na favela, Dora, o alfaiate, conseguiu
um emprego de tempo integral num ateliê em Botafogo e pediu a Valdeci, o
padeiro, para trocar o turno do namoro. Ele não aceitou. Para não car no
prejuízo, Flor teve a ideia de namorar os dois juntos na parte da noite,
sugerindo a formação de um casal de três. No início, ambos recusaram.
“Nem com uma arma apontada para a minha cabeça eu vou tirar a roupa na
frente de outro homem!”, argumentou Valdeci. Flor ensaiou dispensar o
padeiro para car só com o alfaiate e ele cedeu. Num outro encontro no
beco, eles discutiram as regras para o novo modelo de relação – como iriam
dividir a cama, por exemplo. “Contanto que essa costureira não encoste em
mim, tá tudo certo”, ponderou Valdeci, másculo, grosseiro e viril.
“Costureira é a sua mãe! Sou alfaiate! E ca tranquilo, que nem de homem
eu gosto. [...] Só estou aceitando essa pouca-vergonha porque não consigo
viver sem a minha Florzinha”, pontuou Dora, delicado, romântico e
afetuoso.
O relacionamento triangulado logo virou fofoca no Jacarezinho, porque
os três sentavam lado a lado nos cultos dominicais da Assembleia de Deus e
saíam de lá sempre juntos. Numa tarde, a bicicleta de Valdeci passou pelas
vielas do Jacarezinho com os três sobre ela, aumentando os burburinhos
sobre a relação suja e pecaminosa aos olhos de Cristo. À boca pequena,
Flordelis passou a ser chamada na comunidade evangélica de Dona Flor, em
alusão à personagem da atriz Sônia Braga no lme Dona Flor e seus dois
maridos, de Bruno Barreto, grande sucesso nos cinemas de todo o país,
exibido a partir de 1976. Em um dos cultos, ela viu uma obreira da
Assembleia de Deus comentando sobre as orgias do trisal. No púlpito da
mesma igreja, Flor provocou os éis entoando versos da música O que será,
de Chico Buarque. Na época, a canção era difundida nas rádios de forma
maciça na voz da cantora Simone. Um trecho da letra diz: “O que será? Que
será? O que não tem governo, nem nunca terá. O que não tem vergonha, nem
nunca terá. O que não tem juízo...” A música fazia parte da trilha sonora do
lme de Bruno Barreto. Flor cantou a nadíssima, com voz sensual, tando o
alfaiate e o padeiro, sentados lado a lado. A cantora estava acompanhada do
Conjunto Angelical e foi aplaudida de pé pelos éis.
Após a performance musical, o trisal do Jacarezinho cou mais
descarado. Na nova fase do namoro, eles passaram a fazer sexo no mesmo
colchão, sempre na casa de Dora, que morava sozinho e tinha uma cama de
casal larga. No entanto, a trinca não durou muito. Certo dia, eles
combinaram um encontro às 20 horas. O padeiro e o alfaiate, como sempre,
foram pontuais. Florzinha atrasou quase duas horas porque teve uma
agenda cheia. Foi à escola pela manhã, ao culto à tarde, ajudou nos
atendimentos da mãe e ainda teve ensaio com o Conjunto Angelical. Ao
chegar para o compromisso, tirou os sapatos e os deixou no pátio. Com uma
Bíblia na mão, abriu a porta da rua bem devagarinho e entrou na sala sem
fazer barulho. Rumo ao quarto, deparou-se com uma cortina de tecido no
cobrindo a entrada da alcova. Ao puxar o pano, Flor agrou os dois
namorados transando romanticamente sobre um tapete felpudo, tendo ao
lado um garrafão de vinho tinto suave Sangue de Boi e dois copos
americanos, além de diversos tipos de pães e frios. Como ela mesma havia
dito em outro momento, a cena de sexo mostrou que o padeiro e o alfaiate
realmente se completavam.
Estarrecida, Flor gritou, esperneou, tentou espancá-los, foi contida, teve
taquicardia, quebrou os móveis do quarto e o garrafão de vinho.
Descabelou-se, sentiu falta de ar e teve um princípio de desmaio. Chorou de
soluçar, desmaiou novamente e recobrou a consciência abanada pelos dois.
Recuperada, a mulher traída recorreu à Bíblia para condenar a relação
homoafetiva entre os namorados. “Vocês vão morrer carbonizados no
inferno, seus veados pecadores. A Bíblia pune a homossexualidade com a
morte!”, berrou Flordelis, como se estivesse pregando para multidões. O
alfaiate rebateu, enquanto vestia a cueca: “Lá na nossa igreja têm muitas
bichas, inclusive pastores. Você sabe disso. E alguns deles fazem outra
interpretação dessa sentença”. Flordelis abriu a Bíblia para argumentar
melhor. Passou a ponta dos dedos na saliva da língua e folheou o livro
sagrado até chegar a Levítico 18:22-24: “Vocês estão copulando feito homem
e mulher. Aqui diz que isso é uma abominação. Há outra interpretação para
isso, suas maricas do inferno?”, questionou ela enquanto bebia um copo com
água e açúcar servido por Valdeci, já vestido. “Você está equivocada, amor.
Precisa estudar. Na época em que a Bíblia foi escrita, ‘abominação’
signi cava algo não vernáculo, e não o pecado propriamente dito. Além
disso, Levítico também disse que misturar tecidos de cores diferentes é uma
abominação condenada com a morte, e nem por isso as costureiras foram
sacri cadas por fazerem peças coloridas”, argumentou o alfaiate. Fora de si,
Flor foi até a máquina de costura de Dora e pegou uma tesoura. “Vocês têm
de morrer! O sexo existe para ocorrer somente entre um homem e uma
mulher!”, esbravejou aos prantos, apontando a arma branca de longe para os
dois. O alfaiate contra-argumentou ao mesmo tempo que tentava tirar a
tesoura das mãos dela delicadamente: “O pastor disse que Deus ama a todos,
Florzinha, independentemente dos pecados que cometemos”. Ela cou ainda
mais enfurecida e tentou avançar nos rapazes outra vez, com argumentos
repetidos. “Se um homem se deita com outro homem, ambos devem ser
mortos. Está escrito na Bíblia [Levítico 20:13]”, ameaçou ela, apontando a
tesoura para ambos novamente. “O mesmo versículo diz que a mulher
adúltera e as crianças desobedientes também devem ser castigadas com a
morte. E não tenho visto infanticídio no Jacarezinho...”, insistiu o alfaiate.
Sem paciência para melodrama, Valdeci encerrou a discussão arrancando a
tesoura das mãos de Flor e deu-lhe um empurrão, declamando um versículo
derradeiro: “Flor, a mesma Bíblia que você está segurando diz que se um
homem se casar com uma mulher e descobrir na lua de mel que ela não é
mais virgem, ele pode matá-la na casa dos pais a pedradas para lavar a
própria honra [Deuteronômio 22:13-30]. Como você não é mais virgem e
sonha em se casar...” Flor saiu de lá decidida a contar para toda a
comunidade evangélica que o padeiro e o alfaiate da favela eram mariconas.
Com medo de perseguição, o casal de homens – apaixonadíssimo – mudou-
se para o Morro da Babilônia, entre a Praia do Leme e a Praia Vermelha.
Moraram juntos por trinta anos, numa casa linda e modesta com vista
privilegiada para o mar.
Depois do luto pela morte do pai, em 1976, e sem namorados, Flor
passou a ertar com tantos homens no Jacarezinho que ganhou no bairro os
apelidos pejorativos de “vassourinha” e “motosserra”. O jingle da campanha
de Jânio ressuscitava fortemente no carnaval e tocava sem parar no rádio e
em blocos de rua. Mas os apelidos também tinham cunho sexual. Sempre
que Flor passava pelos becos onde os rapazes se reuniam, os versos “varre,
varre, vassourinha” eram cantarolados enquanto eles sambavam e batiam
palmas. Bem-humorada, a lha de Carmozina entrava na brincadeira e dava
uns passos de dança. Segundo amigas dessa época, a especialidade de Flor
era roubar os namorados alheios. Uma delas, a costureira Quitéria de Pádua
Santana, a Kiki, contou em novembro de 2020: “Ela nunca foi uma mulher
bonita, mas tinha uma energia sexual poderosa e invejada por todas nós. Os
homens olhavam e a desejavam. Ela não precisava mover uma palha para
isso. Eles cavam loucos e ela não deixava passar nada. ‘Varria’ todos,
literalmente. Nesse caso, ‘varrer’ era uma gíria da época e signi cava ‘levar
para a cama’. Exemplo: a gente perguntava a uma amiga: ‘você conhece o
fulano?’ Aí a amiga respondia: ‘conheço, sim, já varri ele’. A Flor varreu o
Jacarezinho inteiro. Parecia um cio eterno. Tiro o chapéu para ela. Sabia usar
o poder sexual a seu favor, principalmente com os homens bonitos de
passagem pelo bairro. Com ela não tinha esse lance de seduzir com o olhar.
Ela chegava junto dos caras, dizia que estava a m e transava com eles logo
em seguida. Era uma predadora. [...] Na década de 1970, as garotas do
Jacarezinho escondiam seus namorados da Flor. Se os homens vissem a
‘motosserra’ passando na rua, eram seduzidos por ela e derrubados
imediatamente”. Mas qual era a semelhança de Flor com a motosserra? Não
deixava tronco algum de pé? “Era brincadeira da rapaziada. Coisa de gente
de mente suja, sabe?... Não tenho nem coragem de explicar”, esquivou-se
Kiki, aos risos.

* * *

As confusões amorosas de Flordelis na juventude ocorreram quando a


favela do Jacarezinho ainda era uma comunidade pequena, de alguns poucos
milhares de pessoas. Era tida como uma terra prometida, pois lá existiam
grandes fábricas – como a Cisper Indústria e Comércio, produtora de copos
e louças; a gigante General Electric do Brasil (GE), com maquinário
produzindo todo tipo de lâmpada; a famosa Têxtil Nova América e uma
in nidade de cooperativas que lidavam com derivados de leite. Boa parte
dos moradores do Jacarezinho, incluindo a família de Flordelis, foi parar lá
atraída por emprego. O sonho da prosperidade tinha raízes num passado
não muito distante, entre o m do período imperial e o início do
republicano. No século XVII, segundo dados históricos, havia na região do
Rio de Janeiro 320 engenhos importantes de cana-de-açúcar operados por
cerca de 10 mil pessoas escravizadas. As novas fábricas do Jacarezinho
instalaram-se justamente onde antes cava a comarca de Engenho Novo,
abrangendo ainda Engenho de Dentro e Engenho da Rainha. Nos arredores
também surgiu a Igreja Nossa Senhora da Conceição do Engenho Novo,
transformada depois no Santuário de Nossa Senhora da Conceição. Durante
as escavações para a construção desse novo templo, em 1956, foram
encontrados restos de ossos de dezenas de servos assassinados nas moendas.
Segundo historiadores, era comum trabalhadores fugirem dos engenhos
localizados na Serra do Matheus, na Boca do Mato, e se esconderem numa
gruta conhecida como Preto Forro. No local onde estavam as ossadas,
ergueu-se a Capela das Almas.
Atrás dessa igrejinha havia uma gruta estreita, comprida e escura. Uma
lenda sustentava que o local era ponto de encontro de espíritos errantes de
vítimas de trabalho forçado e de líderes religiosos incompreendidos,
vagando num limbo entre o céu e o inferno. Carmozina, apesar de
evangélica, costumava frequentar a gruta católica para renovar o que
chamava de poder de cura. Era para lá que seguia quando queria entrar em
contato com o espírito do irmão falecido, Miquelino. Na saída da caverna,
costumava visitar também a capela, segundo ela, só para olhar. “Nunca fui
com a cara do padre”, justi cou. No m de uma tarde de sexta-feira,
Carmozina entrou na gruta mal-assombrada atraída por uma sinfonia
produzida por diversos instrumentos, como tambores, atabaque de cunha,
djembê, caxixi, chocalho, kisanji, reco-reco, agogô e berimbau. “Tive a
impressão de que somente eu ouvia aquela orquestra”, contou, em junho de
2021. Dentro da caverna, na escuridão, Carmozina sentou-se numa pedra
para “conversar com Deus” por duas horas. O som dos instrumentos
aumentava à medida que uma procissão de fantasmas se aproximava. De
acordo com seu relato, Miquelino apareceu à sua frente todo sujo de sangue.
O bruxo estava sem os dentes e sem as unhas dos pés e das mãos. O espectro
vestia uma bata branca com manchas vermelhas e segurava uma imagem de
Exu Morcego num braço e uma cabeça de bode decepada no outro. Liderava
um exército de cinquenta pessoas escravizadas nos antigos engenhos de
açúcar da região, todas envoltas numa névoa acinzentada. Essas pessoas
estavam mortas ou vivas? Carmozina não soube responder. Dez deles
tocavam os instrumentos afro-brasileiros. Os espíritos eram de negros – na
maioria homens, cobertos por trapos. Tinham cicatrizes de escari cação,
queimaduras de ferro quente e pedaços de correntes enferrujadas presas nas
pernas. Uma mulher com a boca permanentemente aberta e muda segurava
um bebê de orelhas cortadas e olhos totalmente brancos. Dois rapazes se
materializaram diante de Carmozina imobilizados com vira-mundos de
ferro, instrumentos utilizados em tempos sombrios para prender os punhos
aos tornozelos das pessoas escravizadas como forma de castigo.
Carmozina levantou-se emocionada para falar com o irmão morto há 25
anos. Miquelino pediu à orquestra que parasse de tocar e evocou uma voz
grave e arrastada, porém rme:
– Minha irmã, o nosso Deus mandou te avisar que o Diabo vai entrar na
sua vida por várias janelas – anunciou.
– Como faço para fechar essas janelas?
– Impossível. São muitos demônios! Eles vão chegar pela terra, pela água
e pelo ar – alertou o bruxo.
– Flordelis está dormindo com vários homens. É ela quem vai trazer
Satanás para dentro de casa, né? – perguntou Carmozina.
– O sexo é a troca de energia mais poderosa que existe. Mas não será a
Flor quem vai trazer o cão. Os seus demônios estão chegando há anos. O
primeiro deles foi minha lha. Ela foi gerada no útero de Zeferina, minha
nada esposa. Eu mandei você se livrar dela, mas vi que você não me
obedeceu.
– Não podia deixar um bebê morrer, seja lá quem fosse o pai –
argumentou Carmozina.
– Então aguente as consequências. O Tinhoso está no seio da sua família
e isso me parece irreversível. Ele já levou o seu marido e, em breve, vai levar
o seu lho Amilton... Ele vai destruir a vida da sua lha Flor e de todo o
mundo à sua volta, inclusive a sua. Vai te deixar na merda. E não há nada
que você possa fazer.
Irritado, Miquelino aproveitou para falar das imagens de São Cipriano e
do Exu Morcego levadas por Carmozina do terreiro dele logo após sua
morte:
– Quem te autorizou a pegar meus guias? Você acha que ganhou algum
tipo de poder mantendo-as dentro de sua casa? Ladra! – esbravejou o
espírito.
Aborrecida com aquelas palavras ácidas, Carmozina saiu da caverna sem
se despedir do espírito de Miquelino e da sua comitiva. Antes disso, pediu
para ele nunca mais procurá-la. Em casa, ela abraçou Laudicéia para reforçar
seu amor pela lha adotiva e orou para São Cipriano, cuja imagem cava
escondida sob lençóis no fundo do guarda-roupa.
Querida e amada por Carmozina, Laudicéia foi acolhida como lha
também por Chicão, que morreu sem saber das histórias envolvendo
satanismo ligadas às origens da moça. Abigail (Eliane), Amilton, Flordelis e
Fábio nem sonhavam que a irmã mais velha era adotada. Con dente de
Carmozina, Mariazinha sabia de todos os segredos, conchavos e intrigas da
família Motta, pela qual sentia um misto de curiosidade e medo. Às vezes,
chamava a mãe de Flordelis no quintal e perguntava pelas novidades.
Carmozina abria o coração e contava tudo. Não foi diferente quando ela
discutiu com Miquelino na gruta. Mariazinha achou a história pesada e não
conseguiu guardar segredo. O primeiro a saber foi Severino, o verdureiro
que montava uma barraca na feira da esquina. Reforçando a fama de bruxa
de Carmozina, o vendedor compartilhou a fofoca com todas as freguesas.
Católica e com medo do Diabo, Mariazinha procurou o padre Assis, da
Paróquia Nossa Senhora do Bonsucesso, que a visitou e encharcou toda a
casa com água benta. Na saída, ele olhou para o alto e se deparou com o
abacateiro frondoso, com galhos que se estendiam cheios de frutos pelo
telhado de Carmozina. Enfático, o padre disse que o Demônio se locomove
pelo mundo à noite, atravessando paredes, e escapa da luz do sol
escondendo-se dentro do caule das plantas de grande porte, como os
abacateiros. No dia seguinte, um sábado, Mariazinha foi até uma loja de
ferragens, comprou três machados e a família inteira pôs o abacateiro no
chão. Amilton tinha 24 anos e ajudou a levar os galhos até um terreno baldio
do bairro. Para justi car a derrubada, Mariazinha disse a Carmozina ter se
livrado da árvore para proteger o telhado da amiga. No caminho de volta
para casa, Amilton pisou num caco de vidro e cortou o pé. A mãe cuidou do
ferimento e viu no excesso de sangue um presságio.
No domingo, a primeira profecia de Miquelino se concretizaria. Em dias
ensolarados, os moradores do Jacarezinho frequentavam o Clube da
Marinha do Rio de Janeiro. Na época, as piscinas tinham entrada liberada
para a comunidade. As únicas exigências eram apresentar um atestado
médico comprovando ausência de doenças de pele e usar roupas de banho
de padrão familiar: maiô para as mulheres, bermuda para os homens.
Sungas e biquínis, nem pensar. Amilton, Rose e oito amigos da igreja
prepararam uma caixa de isopor com frango assado, arroz colorido e farofa
de ovos e seguiram para o clube. O lho de Carmozina fez um curativo
reforçado no pé e andava mancando por causa do ferimento. Quando os
músicos do Conjunto Angelical passaram cedo, numa nova Kombi, para
pegar Amilton e Rose, Carmozina fez um apelo:
– Filho, não vai. Pelo amor de... Não vai. Fica em casa só hoje. Seu pé
está machucado. Acho que precisa até de pontos. Vamos ao hospital. Não
estou pedindo. Estou suplicando. Não vai!
– Por que a senhora está dizendo isso, mãe?
– Seu tio Miquelino apareceu numa gruta e contou que você vai morrer.
Esse sangue em seu pé é um sinal. Já perdi seu pai naquele acidente horrível,
quase perdi seu irmão Fábio, você quase morreu quando caiu do teto da
igreja... Não suportaria perder você. Fica em casa, lho. Só hoje. Por favor!
Assim como o nado Chicão, Amilton nunca acreditou nos supostos
poderes sobrenaturais da mãe. Quando ouviam palavras proféticas de
Carmozina, os dois geralmente debochavam. Depois da fama de feiticeira se
espalhar pelo Jacarezinho, Amilton passou a defendê-la, chamando-a
carinhosamente de “bruxinha do meu coração”, mas sempre rindo. No dia
dos apelos maternos, ele não riu, mas também não se comoveu – e seguiu no
passeio com Rose e os amigos. Quando viu a Kombi desaparecer com seu
lho dentro, Carmozina pôs as mãos na boca e começou a chorar.
Mariazinha acompanhou o drama da vizinha pela janela de casa e a
consolou.
No clube, os jovens colocaram esteiras de palha no chão e deitaram-se
para se bronzear. O domingo estava ensolarado e as três piscinas apinhadas
de banhistas. Apesar de cético, Amilton deitou-se, fechou os olhos e cou
re etindo sobre as convicções da mãe ao fazer previsões funestas.
Carmozina era meio teatral nessas horas. Sob o sol, o jovem pensou no pai e
chorou de saudade, segundo contou Rose. “Todo o mundo estava se
divertindo no clube, menos o Amilton. Ele dormiu na esteira e acordou com
insolação duas horas depois, com o pé sangrando. Disse ter se encontrado
com o pai num sonho lindo”, relatou Rose, em maio de 2020. Na farofada,
Amilton e seus amigos haviam bebido aguardente com suco de laranja. A
bebida alcoólica foi levada pelos músicos do Conjunto Angelical camu ada
dentro de diversas garrafas térmicas para café. Amilton tomou quase um
litro sozinho. Bêbado, começou a chorar, sem dar muita explicação. Foi
consolado pela namorada. Em seguida, saiu para dar um mergulho. Com o
pé machucado, caminhou lentamente, trançando as pernas pela borda da
piscina destinada aos adultos, deixando um rastro de sangue. Minutos
depois, usou uma escada de alumínio para descer à parte mais funda, de 2,5
metros, onde cavam poucos banhistas. Essa foi a última vez que o irmão de
Flordelis, que tinha 1,85 metro de altura, foi visto com vida.
Submerso, ele teve um ataque epiléptico longe de qualquer testemunha.
A convulsão se iniciou com uma descarga elétrica de baixa voltagem
produzida dentro do cérebro, causando um desequilíbrio estrutural. A
tremedeira generalizada, associada à pressão atmosférica, provocou uma
contração dos músculos, seguida da redução das funções pulmonares.
Apesar de bom nadador, Amilton não conseguiu sair dali nos primeiros
momentos da crise epiléptica por causa do efeito do álcool. Na água, o
ferimento no pé sangrou ainda mais.
Como acontece na maioria dos afogamentos, a água aspirada pelo
organismo provoca o fechamento da laringe, órgão situado entre a traqueia e
a base da língua. Trata-se de um mecanismo de defesa do corpo para evitar a
inundação dos pulmões. Depois de alguns minutos, a laringe relaxa e a
pessoa suga uma grande quantidade de água pelo nariz e pela boca – a
maior parte vai para o estômago e o restante segue o mesmo caminho do ar,
percorrendo a traqueia até alcançar os pulmões, passando por brônquios e
alvéolos. Com o pulmão encharcado, a entrada de oxigênio e a saída de gás
carbônico, conhecida como troca gasosa, para de funcionar. A redução da
taxa de oxigênio causa danos em todos os tecidos, principalmente nos que
precisam de mais ar, como as células nervosas, e o cérebro ca gravemente
lesionado, levando à inconsciência. Depois de chegar aos alvéolos, a água
entra no sangue e destrói os glóbulos vermelhos. Na sequência, o coração
para de bater. Depois de todo esse processo, Amilton foi a óbito.
A grande quantidade de água engolida deixou o cadáver inchado e
pesado, na parte mais baixa da piscina. No piso azulejado, o corpo do irmão
de Flordelis cou deitado com a barriga para cima. Do lado de fora, Rose
sentiu falta do namorado e seguiu o rastro de sangue até a borda da piscina.
Ficou desesperada quando viu a imagem de Amilton nas profundezas,
refratada pelos raios solares sobre a água transparente e espelhada,
levemente avermelhada de sangue. Inerte, ele estava de olhos bem abertos e
com os braços erguidos. A garota gritou com toda a força por socorro. Um
aglomerado de curiosos se espremeu em volta da piscina para espiar.
Homens do Corpo de Bombeiros chegaram rapidamente e esvaziaram o
tanque. Rose cou totalmente descontrolada quando o corpo de Amilton
cou nítido lá embaixo. Três horas depois, um camburão do Instituto
Médico Legal (IML) chegou para recolher o cadáver. Carmozina apareceu e
pediu para ver o lho antes da remoção. Ela desceu na piscina esvaziada e
ajoelhou-se perto do jovem sem derramar uma lágrima. Fechou os olhos do
morto com as mãos enrugadas e pregou em voz alta, erguendo com fervor
uma Bíblia para o céu: “O salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito
de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”. “Glória a Deus!”,
gritaram os banhistas, encarando a despedida como um culto dominical. A
bruxa olhou para o público e proclamou com mais ênfase: “Mesmo quando
eu andar pelo vale das trevas e da morte, não temerei perigo algum, pois tu
estás comigo; a tua vara e teu cajado me protegem”. Fora de si e amparada
pelos amigos, Rose esbravejou para Carmozina no meio da multidão:
– Bruxa das trevas! Demônia! Velha maldita! Assassina!
Lânguida, a mãe do morto se levantou, subiu as escadas para sair da
piscina, encarou Rose com olhos fulminantes e falou baixinho para ninguém
ouvir:
– O que é seu está guardado, sua puta!

* * *
Em 2022, o Jacarezinho contava cerca de 100 mil habitantes e
encontrava-se totalmente dominado pelos tra cantes do Comando
Vermelho (CV) havia pelo menos trinta anos. Segundo o mapa cartográ co
da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, a região tinha quase 100 hectares,
o equivalente a 140 campos de futebol. De acordo com a associação de
moradores do bairro, 25% da população era formada por jovens. A favela
possuía apenas uma escola estadual e quinze municipais. A miséria no
Jacarezinho foi escancarada pelo Instituto Brasileiro de Geogra a e
Estatística (IBGE) no ano 2000. Uma pesquisa feita em 126 bairros do Rio
de Janeiro atribuiu ao berço de Flordelis um índice de desenvolvimento
humano (IDH) de 0,731, o que pôs a localidade na 121ª posição do ranking,
acima apenas de Manguinhos, Maré, Acari/Parque Colúmbia, Costa Barros
e do famoso Complexo do Alemão. O cálculo do IDH leva em conta os
índices de expectativa de vida, educação e renda da população. A penúria no
Jacarezinho se perpetua até os tempos atuais. Em 2010, o IBGE voltou e
descobriu que os moradores economicamente ativos tinham rendimento
mensal médio de R$ 411,25. Dez anos depois, em 2020, uma pesquisa
divulgada pelo Instituto Pereira Passos (IPP) revelou que 15% dos
moradores viviam abaixo da linha da pobreza e 85% moravam em condições
degradantes. Os trabalhadores tinham renda per capita de míseros R$
177,98. Ou seja, em uma década, o trabalhador do bairro viu seu parco
salário encolher 56,72%, mergulhando a vida um pouco mais na indigência.
Basta andar pelas vielas do Jacarezinho para atestar a carência e o pavor
dos seus moradores. As ruas, estreitas e compridas, nunca seguem em linha
reta. As ladeiras não são tão íngremes, como em muitos morros do Rio. Os
postes de luz têm um emaranhado de os e boa parte da comunidade usa o
tradicional “gato” para obter energia elétrica e internet de forma clandestina.
A maioria das casas foi construída em etapas – cada cômodo é uma espécie
de puxadinho erguido para o alto ou para os lados, dependendo do terreno
–, com paredes de alvenaria e tijolos aparentes, portas de madeira precária e
telhado de cimento. Na parte mais pobre, as casas são de madeira e cobertas
com lona. No miolo da favela, local que os tra cantes chamam de “coração
do Jacaré”, algo impressiona: com medo tanto dos policiais quanto dos
bandidos, os moradores mantêm as portas e as janelas fechadas mesmo em
dias ensolarados.
Em 2022, a polícia do Rio apontava Adriano Souza de Freitas, conhecido
como Chico Bento ou Mãozinha, como chefe do trá co do Jacarezinho. Seus
assistentes diretos eram Felipe Ferreira Manoel, o Fred, e Sandra Helena
Ferrari Gabriel, a Sandra Sapatão, presa por policiais da Delegacia de
Combate às Drogas em Saquarema, na região dos Lagos, no dia 21 de maio
de 2021. Em 2022, Chico Bento e Fred eram procurados feito agulhas no
palheiro pela polícia uminense, que já havia montado duas operações
especiais para tentar capturá-los no Jacarezinho e na Vila Cruzeiro, no
Complexo do Alemão, também na zona norte. Somadas, as duas investidas
policiais resultaram em 36 mortes e nenhum tra cante importante preso –
Chico Bento e Fred continuavam soltos até julho de 2023. A primeira
operação de busca ocorreu em maio de 2021, deixou um saldo de 28 mortes
e entrou para a história do Rio de Janeiro como a operação policial mais
letal de todos os tempos. Desse cerco, segundo um relatório da inteligência
da Polícia Militar, Fred teria escapado vestido de mulher e Chico Bento com
um uniforme camu ado do Exército. A segunda operação, de agrada em
fevereiro de 2022, matou oito pessoas e gerou polêmica pela participação da
Polícia Rodoviária Federal (PRF). Dessa vez, Chico Bento teria se livrado
feito vítima de bala perdida, usando uma ambulância do Samu. Nas
operações para capturá-los, a polícia recolheu 26 granadas, 20 pistolas e 13
fuzis de agentes do trá co das duas favelas. Depois da operação que matou
28 pessoas em 2021, o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu treze
investigações para apurar a ação policial. Em setembro de 2022, dez haviam
sido arquivadas, principalmente por não encontrar testemunhas oculares
dos confrontos dispostas a depor contra tra cantes numa delegacia. Duas
denúncias foram aceitas pela Justiça e apenas um caso ainda era investigado
em agosto de 2022.
Chico Bento era um dos principais chefes do Comando Vermelho, com
quatro mandados de prisão em aberto e 27 anotações criminais. Foi acusado
de trá co, homicídio e tortura. Em janeiro de 2022, forças de segurança do
programa Cidade Integrada localizaram sua residência: uma mansão de luxo
com quatro andares, piscina, sala de jogos e banheira de hidromassagem
construída no seio do Jacarezinho. De novo, ele conseguiu escapar do cerco,
usando a garupa de um mototáxi. O chefão chegou a ser preso em abril de
2016. Dois anos depois, migrou para o regime semiaberto, obteve permissão
para uma saída temporária e nunca mais voltou para o Instituto Penal
Edgard Costa, em Niterói, onde cumpria pena por associação ao trá co e
corrupção ativa. Fred, seu braço direito, estava no mesmo presídio,
condenado pelos mesmos crimes, e também escapou depois de dois anos,
usando a porta da frente, graças ao benefício de um indulto natalino
concedido pelo ex-presidente Michel Temer (MDB). A última notícia sobre
Chico Bento parece extraída do enredo de lmes sobre a má a italiana. Seu
“pai de consideração”, Elci Carvalho Fonseca, de 68 anos, foi contratado pelo
governo do Rio de Janeiro para trabalhar na coordenação de um programa
de segurança pública dentro do Jacarezinho, comunidade controlada pelo
próprio lho tra cante. Na época em que Chico Bento estava preso no
Instituto Penal Edgard Costa, o nome de Elci constava da lista de visitantes
como “pai” do criminoso. Para o Ministério Público, ele trabalhava como
agente duplo, prestando serviço tanto para o Estado quanto para o trá co,
em que desempenhava a função de “olheiro”.
O trá co de drogas no Jacarezinho começou em 1979, ano de fundação
do Comando Vermelho (CV). Flordelis e o pastor Paulo Rodrigues Xavier
também se casaram naquele ano e foram morar num barraco perto da casa
de Carmozina, na área onde se concentrava a venda de cocaína e maconha.
A organização criminosa expandiu-se na década de 1980, quando eclodiu
no Brasil uma das maiores crises econômicas da história e uma retração sem
precedentes na produção industrial do país. O Produto Interno Bruto (PIB),
por exemplo, era de 7% nos anos 1970 e despencou para 2% na década
seguinte. Na esteira dessa crise, as maiores fábricas implantadas no
Jacarezinho acabaram fechando as portas, causando desemprego em massa
na favela. Na mesma época, o CV esticava seus tentáculos do pátio do
presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande (RJ), para as favelas mais
empobrecidas pela crise. Segundo historiadores, a facção foi criada a partir
do convívio entre presos comuns e militantes dos grupos armados
combatentes do regime militar. O CV chegou ao Jacarezinho em 1980, ano
de nascimento de Simone dos Santos Rodrigues, a lha mais velha de
Flordelis. Nos primórdios, o grupo de criminosos não tinha comando único
– aliás, nunca teve. Em cada comunidade uminense havia um líder. Com
isso, a facção funcionava sob o comando de terceiros, como se fosse uma
franquia. Cada franqueado atuava de forma independente e repassava parte
do lucro aos superiores.
Na década de 1990, quem dava as cartas no Jacarezinho eram três
tra cantes perigosíssimos: Vagano Ferreira Cardoso, o Foguinho; Carlos
Costa Damasceno, o Parazinho; e Marcus Vinicius da Silva, o Lambari.
Nessa época, a organização criminosa ainda estava se estruturando como
empresa informal. Os três líderes disputavam poder e batiam cabeça quando
se reuniam para de nir e priorizar as ações na favela. Parazinho era mais
centrado: não permitia assaltos na comunidade, muito menos confrontos
com policiais. Ele abominava homens que batiam em mulheres. Discreto,
não ostentava poder e focava suas energias na produção e na venda de
drogas. Foguinho, inconsequente e galanteador, andava armado com pistolas
na cintura e fazia questão de mostrá-las às mulheres que se negavam a
transar com ele. Carregava granadas numa pochete e chegou a constituir um
poder paralelo dentro do CV, em uma rami cação que promovia roubos de
cargas. Nesse negócio, Anderson Cortiano de Melo, de 25 anos, atuava como
seu braço direito. Apelidado de “Apêndice”, ele era casado com a irmã de
Foguinho, Márcia Ferreira Cardoso, de 12 anos, conhecida nas redondezas
como Marcinha-inha-inha. O namoro dos dois começou quando ela tinha
10 anos, e ele, 23. “Era muito comum as meninas namorarem bem cedo com
homens mais velhos, inclusive com consentimento dos pais. [...] E os caras
mais disputados eram envolvidos com trá co”, ressaltou Marcinha, em abril
de 2021. Segundo ela, a relação com Anderson era carregada de adrenalina.
As reuniões do irmão com o namorado para de nir as ações do CV no
Jacarezinho, por exemplo, eram na cozinha de sua casa. Os tra cantes e seus
comparsas entravam armados com fuzis e metralhadoras e sentavam-se à
mesa para tomar café com bolachas recheadas. Para conseguir renda extra, à
revelia dos superiores (Parazinho e Lambari), Foguinho e Anderson
começaram a promover assaltos aos caminhões de carga que passavam pelas
rodovias próximas ao Jacarezinho.
Para um desses assaltos, a via escolhida foi a Avenida Carlos Lacerda,
conhecida como Linha Amarela. Foguinho seguiu num Fiat Uno e
Anderson usou uma moto para fechar um caminhão-baú pertencente a uma
transportadora do Rio Grande do Sul. Na década de 1990, as cargas mais
cobiçadas eram as eletrônicas (TV, videolaser e aparelho de som), mas essas
carretas geralmente eram acompanhadas de batedores. Então os bandidos
passaram a dar preferência a cargas de gêneros alimentícios e bebidas
alcoólicas. Era isso que Foguinho e Anderson almejavam naquele dia.
Foguinho fechou o veículo com seu Fiat Uno. Nesse momento, Anderson e
mais dois bandidos invadiram a boleia do caminhão armados com
metralhadoras. Forçaram o motorista a levar a carga para um descampado
no Jacarezinho e lá descobriram ter roubado latas de leite, farinha láctea,
achocolatado, amido de milho, trigo e aveia. A quadrilha saqueou pelo
menos a metade e permitiu que populares levassem a outra parte dos
alimentos. Com os produtos roubados, ao longo de um mês, Foguinho e
Anderson montaram juntos um mercadinho no bairro. O comércio dos
tra cantes prosperou com estoque sempre abastecido por mercadorias
roubadas na Linha Amarela. Como Anderson tinha o segundo grau
completo e Foguinho mal sabia ler e escrever, o assistente cou encarregado
de administrar as vendas e tratou de colocar seus parentes para fazer
atendimentos no balcão.
A carreira criminosa de Anderson havia começado cedo. Em meados da
década de 1980, aos 14 anos, ele trabalhava como ambulante na Central do
Brasil e ganhava meio salário mínimo por mês. Com disposição para a
bandidagem, o adolescente batia carteira e puxava cordões de ouro e
relógios dos passageiros distraídos na estação. A atividade ilícita fazia seus
rendimentos dobrarem, mas ele achava pouco. Queria dinheiro su ciente
para comprar “honestamente” os artigos que roubava. Sonhava em ter
roupas de grife, óculos escuros caros e joias reluzentes. Seduzido pelo
dinheiro fácil, entrou para o trá co no Jacarezinho na função de
“aviãozinho”, com a tarefa de atender telefone, levar recados e comprar
marmitas para os líderes da “boca”. Como o trá co no Rio de Janeiro tem
plano de carreira e caz, aos 16 anos Anderson foi promovido a “olheiro” ou
“observador”. Nesse cargo, cabia a ele e aos demais colegas car na entrada
da favela soltando pipas coloridas no ar. Se uma viatura da polícia chegasse,
eles desciam as rabiolas rapidamente. O sumiço das pipas era sinal de perigo
iminente. Na década de 1990, esse código passou a ser transmitido com
fogos de artifício e, mais tarde, por mensagem de celular. De “olheiro”,
Anderson foi alçado ao posto de “vapor”, passando a tra car drogas na
favela para os rapazes privilegiados da zona sul do Rio de Janeiro que se
atreviam a entrar no Jacarezinho. Em um ano, já maior de idade, subiu ao
posto de “soldado” e fazia parte da equipe de segurança armada do “cafofo”,
onde era feita a endolação da cocaína – ou seja, no centro da linha de
montagem do trá co. Ali, a maconha era embalada em um pacotinho de
plástico chamado “dólar”. Trouxinhas de papel laminado de tamanhos
variados revestiam a cocaína.
Aos 21 anos, Anderson assumiu o cargo de “gerente” e passou a ter um
pouco mais de poder no Comando Vermelho, mas sempre sob a tutela do
temido Foguinho, o dono da boca. Em 1991, um grupo vizinho, também
mantido pelo CV, liderado pelo bandido Pauletta, passou a vender drogas
para os fregueses de Foguinho, de agrando uma guerra interna. Além dos
clientes, os criminosos disputavam o poder no Jacarezinho. Sem consultar
os superiores, Foguinho alvejou Pauletta dentro de um ônibus, matando um
inocente por tabela. O duplo homicídio atraiu o interesse da imprensa. A
mídia negativa ao CV custou a cabeça de Foguinho, que fugiu para a casa de
um parente no município de Anutiba, interior do Espírito Santo. Descoberto
pelos pistoleiros do comando, o tra cante foi assassinado com mais de
quinhentos tiros disparados simultaneamente por quatro metralhadoras. O
corpo acabou queimado junto com pneus. As cinzas foram entregues à
família dentro de um saco de lixo. Com a morte de Foguinho, Anderson
assumiu seu lugar e passou a comandar a boca mais próxima da casa de
Flordelis. Tinha 27 anos. Também herdou a parte do colega no mercadinho
de cargas roubadas. Ao lado do comércio, construiu uma padaria e a deu de
presente aos pais, Beto e Marilene, ambos com 42 anos na época.
Marcinha seguia rme e forte ao seu lado. Ela vivia coberta de bijuterias
e andava bem-vestida graças aos mimos do marido. Anderson era um
homem atraente. Tinha cabelos e olhos claros, magro e alto. A capa do seu
dente incisivo lateral direito era de ouro maciço. Usava relógios prateados de
grife e correntes nobres no pescoço. Adorava frequentar salões de beleza,
casas de massagem e estúdios de depilação. Para impor respeito, o tra cante
vestia camisas sociais e calças de cetim sempre acompanhadas de sapatos de
bico no bem engraxados. Dois anos antes, quando ele tinha 25 e ela, 12,
tanta elegância e poder atraíram a atenção de Simone, lha de Flordelis.
Nessa época, ela namorava outro Anderson, o “do Carmo”, um adolescente
de 14 anos, menor aprendiz do Banco do Brasil. Simone de niu esse namoro
como “coisa de criança” e continuava buscando relacionamentos com
homens mais velhos e poder aquisitivo su ciente para bancá-la.
Na adolescência, Simone era uma garota bonita de corpo e de rosto.
Negra, tinha os lábios carnudos. Os olhos escuros mudavam constantemente
de cor com lentes de contato. Fazia escova à base de ferro quente para alisar
os cabelos crespos. Usava roupas curtas para valorizar o corpo e abusava dos
decotes. Anderson, o tra cante, passou de carro por uma rua e viu a garota
sensualizando num ponto de ônibus. Ofereceu-lhe carona. Ela recusou, pois
estava a caminho da escola. Com mais um pouco de insistência, a moça
nalmente entrou no veículo do tra cante e os dois foram parar num motel.
Na cama redonda e cercada por paredes espelhadas, Anderson mostrou a
aliança grossa no dedo anelar da mão esquerda e revelou ser casado.
Sensualmente, Simone colocou o dedo do bandido em sua boca, como se
fosse um pirulito. Chupou por alguns minutos e arrancou o anel com a boca:
– Você era casado, meu amor! Agora não é mais... – disse ela em tom de
brincadeira, mantendo a aliança na ponta da língua.
– Me devolve isso, menina! – esbravejou Anderson, segurando o pescoço
dela com as duas mãos.
– Para! Você está me sufocando! – implorou Simone, que acabou
engolindo o anel sem querer.
– Puta que pariu! – exclamou o tra cante.
Os dois saíram do motel depois de um acordo. Até Simone expelir o
anel, Anderson prometeu pagar a ela 100 reais diariamente. Enquanto isso,
eles transariam todos os dias, desde que o caso extraconjugal fosse mantido
sob o mais absoluto sigilo. Simone não só sabia do casamento de Anderson,
como havia se posicionado propositadamente no ponto de ônibus com uma
saia curtíssima para chamar sua atenção. E mais: ela conhecia Marcinha dos
cultos da Assembleia de Deus. As duas não eram amigas, mas esbarravam-se
na igreja. Anderson chegou em casa e contou à esposa-mirim ter tirado a
aliança para puxar ferro numa academia de rua. Perdera o anel, mas já
encomendara outro igualzinho. Marcinha não engoliu a história e chamou o
marido de mentiroso. Irritado por ter a sua credibilidade posta em xeque, o
tra cante deu um soco no rosto da garota e a atingiu com uma sequência de
chutes. Levantou-a pelos cabelos, puxou uma arma da cintura e apontou
para o rosto da companheira. “Nunca mais duvide do que falo. Ouviu bem?”,
gritou. Marcinha não parava de chorar e tremer. Foi jogada na cama e
estuprada de forma violenta. Do outro lado da favela, Simone evacuou a
aliança uma semana depois. Por todo esse tempo, ela encontrou o tra cante
diariamente, no mesmo motel, conforme o combinado. Apaixonado pela
lha de Flordelis, Anderson elogiava a performance sexual da garota,
frisando ser bem superior à de Marcinha. “Você transa feito adulta. Esse é o
seu diferencial”, comparou. Com o passar do tempo, o tra cante deixou de
fazer amor com a esposa para dar exclusividade a Simone. Enfeitiçado,
passou a procurá-la insistentemente, todos os dias. Num dos encontros no
motel, a garota resolveu terminar após uma transa corriqueira. Houve uma
discussão:
– Como assim? Você não quer mais por qual motivo? – ele quis saber.
– Tenho namorado. Ele também se chama Anderson. É gerente do
Banco do Brasil – mentiu Simone, enquanto se vestia.
– Você vai me trocar por um bancário?!
A garota con rmou e saiu do motel a pé, sozinha. Seguiu para casa, onde
teria se confessado com a mãe. Disse ter conhecido o homem da sua vida:
um tra cante rico e bonito, mas casado. Nessa época, Flordelis tinha 31
anos. Seu marido e pai de Simone, o pastor Paulo Xavier, era ausente dentro
de casa e dedicava-se integralmente aos trabalhos na Assembleia de Deus do
pastor Demóstenes. A família morava num casebre bem perto de
Carmozina. “Seu pai não pode saber desse seu relacionamento de jeito
nenhum! [...] Me fale mais sobre esse rapaz”, pediu Flordelis. Simone teria
descrito com detalhes a aparência de Anderson e comentado sobre o beijo e
o pênis dele. Falou longamente das atividades criminosas do amado e se
referiu a ele como uma pessoa de coração bom, pois havia dado de presente
para os pais uma padaria grande no ponto mais movimentado do
Jacarezinho. Flordelis cou com os olhos brilhando com os relatos de
Simone. No nal da conversa, teria dado dicas à lha de como segurar o
namorado “pelas pernas”. Orientou-a a fazer sexo todos os dias sem
qualquer tipo de restrição e não demonstrar ciúme em relação a Marcinha.
Finalizou com um conselho sui generis: “Filha, preste bem atenção ao que eu
vou lhe dizer: às vezes, ser a outra é muito melhor do que ser a titular,
entendeu? Deixe os problemas do matrimônio com a esposa e que apenas
com os prazeres da cama. Guarde esse conselho dentro do seu coração,
ouviu bem?”.
Atenta, Simone balançou a cabeça em sinal de con rmação. Por
estratégia, deixou de procurar Anderson. Pouco depois, o tra cante foi atrás
da menina na casa de Flordelis. Soube que a namorada estava ajudando a
avó e partiu ao seu encontro. Com o cano da pistola exposto para fora do
cós da calça jeans, bateu à porta de Carmozina dizendo ter transado com
Simone e querendo repetir a relação. Perplexa, a bruxa largou seus clientes
na sala e arrastou a neta para uma conversa no quintal. A garota disse à avó
estar loucamente apaixonada pelo bandido. Como de costume, a feiticeira
a rmou ter tido uma longa conversa com Deus e ouvido os piores
prognósticos para a família. Simone fez pouco caso mesmo quando ouviu a
lenga-lenga do Demônio chegando para engolir a todos. Deixou Carmozina
falando sozinha e saiu com o namorado tra cante para tomar um café na
padaria dos pais dele. Oportunista, Flordelis apareceu no local com uma
amiga, ngindo coincidência. Os quatro sentaram-se à mesma mesa e foram
servidos por Marilene, mãe do rapaz e também frequentadora da
Assembleia de Deus do Jacarezinho. Flordelis elogiou a beleza da padaria e
prometeu comprar pão e leite somente naquele local. Marilene falou da
ampliação do comércio e a mãe de Simone se ofereceu para trabalhar no
estabelecimento do genro. Duas semanas depois, estava dando expediente
do lado de dentro do balcão, vendendo todo tipo de pão em troca de um
salário mínimo. Tornou-se amiga e con dente de Marilene e passou a dar
em cima do marido dela.
Anderson namorava Simone e Marcinha simultaneamente. O
relacionamento do bandido com a lha de Flordelis se consolidou depois de
a titular car ausente por causa da iminência de ser reprovada na escola. “Na
verdade, eu já sabia do caso do meu marido com a Simone desde a época em
que a Flor foi trabalhar na padaria. Mas z vista grossa, porque não queria
perder os presentes que o Anderson me dava”, disse Marcinha, em junho de
2022. Para não car sem o marido tra cante, a garota passou a procurá-lo na
cama e acabou engravidando, quando tinha 15 anos. A chegada do lho fez
Anderson chamar Simone para uma conversa séria, deixando claro que
jamais abandonaria a esposa. A lha mais velha de Flordelis não se
importou e continuou no papel de amante, seguindo os conselhos da mãe.
Quando entrou no sétimo mês de gestação, Marcinha não quis mais fazer
sexo com Anderson e ele se aproximou ainda mais de Simone, que também
passou a ganhar presentes caros do namorado. Quando o lho de Marcinha
completou um ano, a família organizou uma festona numa quadra de
esportes para duzentos convidados do bairro, entre amigos, clientes,
“vapores”, “soldados”, “aviõezinhos”, “fogueteiros”, prostitutas e tra cantes de
todos os níveis. Havia bolo, brigadeiro, monteiro lopes, casadinho, olho de
sogra, pipoca, cachorro-quente e muito refrigerante. Tudo preparado pelos
confeiteiros e cozinheiros da padaria da família do bandido. Flordelis,
Marilene e Beto compareceram. Líderes do trá co local, Parazinho e
Lambari ganharam uma mesa especial com guarda-sol, seguranças e garçons
exclusivos. Simone foi convidada pessoalmente por Marcinha e também
estava lá. Na hora dos parabéns, houve disparos de metralhadoras para o
alto e uma salva de palmas.
Bêbada, Marcinha resolveu discutir no meio da festa com Anderson por
causa da falta de atenção dele com o lho. O tra cante argumentou não ter
sido econômico com o aniversário, mas a mãe reivindicou carinho. No meio
da balbúrdia, Lambari reclamou que a cerveja havia acabado. Alterado pelo
álcool, Anderson se pronti cou a resolver o problema. No meio da quadra,
agarrou Simone e deu-lhe um beijo de novela. Marcinha estava com o lho
no colo e viu a cena sem esboçar qualquer reação. Em seguida, o tra cante
saiu de mãos dadas com a amante e mais oito comparsas. Seguiram rumo à
Linha Amarela. Na via, a quadrilha interceptou um caminhão carregado de
cerveja e tirou o motorista à força da boleia. Anderson assumiu o volante da
carreta com Simone ao seu lado e levou a carga até a quadra onde se
comemorava o aniversário do lho. A chegada foi apoteótica, seguida de
uma salva de palmas e mais disparos de metralhadora para o céu. Os
convidados passaram a pegar cerveja diretamente das caixas, na carreta. Sob
o sol escaldante, teve até quem usasse a bebida para tomar banho.
Moradores de passagem pelas proximidades também aproveitaram a farra e
levaram cerveja quente para casa. Lambari e Parazinho se entreolharam em
sinal de reprovação, mas acharam melhor não repreender Anderson durante
a festa familiar. No dia seguinte, o assalto à carreta de cervejas estava em
todos os jornais. A imprensa atribuía o roubo às atividades do Comando
Vermelho no Jacarezinho, deixando Parazinho e Lambari revoltadíssimos.
Helicópteros da TV Globo e da TV Record captaram imagens do caminhão
na quadra de esportes e o motorista fez o retrato falado de Anderson. Com o
desenho de sua cara estampado em todos os programas policiais da TV, o
tra cante fugiu para o Espírito Santo. Parazinho e Lambari zeram uma
auditoria na boca e descobriram um caixa dois desviado para negócios da
família de Anderson, como a construção da padaria. Lambari designou
Sandra Sapatão, em ascensão no Comando Vermelho, para passar um pente-
no nas atividades de Anderson. O primeiro lugar visitado foi justamente a
padaria.
Procurado pela polícia e pelos chefes do CV, Anderson passou a viver
entocado. Mas não cou muito tempo no interior do estado vizinho:
conseguiu se abrigar em um barraco no Jacarezinho cedido por um pastor
da Assembleia de Deus. Para se deslocar de forma imperceptível pelo bairro,
entrava em caixas de pães, era coberto por lonas e seguia conduzido pelos
padeiros em bicicletas cargueiras. Com esse artifício, conseguia visitar os
pais, passava na casa de Marcinha para ver o lho e dava um jeito de se
encontrar com Simone. Os dois geralmente escolhiam motéis clandestinos
do Centro do Rio de Janeiro para transar. Numa noitada com o bandido,
Simone pediu dinheiro e teve como resposta um forte murro no abdome.
Ainda se contorcendo de dor, a garota foi imobilizada com tiras de tecido e
estuprada por toda a madrugada. Depois dessa sessão de violência, a lha de
Flordelis acabou no pronto-socorro. Em casa, disse que foi vítima de assalto.
Para a mãe, confessou ter sido espancada pelo namorado foragido. Para se
vingar, Flordelis deu um jeito de entregar um bilhete anônimo para Sandra
Sapatão, a rmando que Anderson visitava o negócio dos pais uma vez por
semana. Com a dica preciosa, a tra cante e sua quadrilha passaram a
monitorar o comércio de Beto e Marilene. No m da tarde de uma quinta-
feira, os pistoleiros do CV nalmente encontraram Anderson na padaria
cheia de clientes. Ele conseguiu escapar pulando muros, saltando por
telhados e alcançando uma lotação.
Quando soube da fuga, Lambari ordenou que seu grupo metralhasse a
loja, mas poupasse gente inocente para não chamar a atenção da imprensa.
Em pleno expediente, Sandra Sapatão foi até o balcão e pediu um pingado
com pão na chapa. Em seguida, um grupo de vinte milicianos comandados
por ela apontou metralhadoras para a padaria e atirou por meia hora sem
parar. Fregueses e funcionários, incluindo Flordelis, sobreviveram porque se
jogaram no chão e rastejaram feito cobras até o quintal. As rajadas foram tão
violentas que as paredes de alvenaria caram destruídas, por causa do
reboco vagabundo. O telhado desabou sobre o balcão de vidro, que exibia
dezenas de tortas doces, bolos e salgados. Após a investida do CV, o local
cou em ruínas e populares saquearam o mercadinho anexo. Em casa,
Marilene entrou em depressão por perder seu negócio e ter o lho sob risco
iminente de morte. Deitou-se numa cama e não levantava para nada.
Flordelis, sua melhor amiga, pronti cou-se a ajudá-la a sair da fossa. Fazia
visitas diárias e preparava sopa para a mãe de Anderson. No entanto, a
depressão, só aumentava e Marilene teve de ser internada num hospital
público. Foi sedada, no estágio mais profundo da doença. Acordava uma vez
por dia e deparava-se com Flordelis e o marido em seu leito. Conversava por
duas horas e dormia novamente até o dia seguinte. Flor levou Carmozina
para fazer sessões de cura no hospital. Um mês depois de orações diárias da
bruxa, a mãe de Anderson apresentou melhora, mas ainda teve de car duas
semanas internada para recuperar a imunidade. Flor, então, aproveitava para
cortejar Beto. “Estou aqui para lhe servir”, dizia ao marido de Marilene. A
princípio, ele ngia não entender.
Durante todo o tempo em que esteve com Anderson, o tra cante,
Simone manteve namoro com o outro Anderson, aprendiz de bancário. A
garota aprendeu a administrar esses arranjos amorosos com a mãe,
especialista nas desonestidades do amor. Enquanto Marilene estava
internada, Flordelis passou a dormir dia sim, dia não no hospital, alternando
com Beto o papel de acompanhante da paciente. Dizia estar lá para dar
conforto espiritual à família. Nos momentos de silêncio, orava e cantava
para acalmar a alma de Marilene. A cada quatro horas, também dava à
enferma o chá de erva-cidreira que levava ao hospital numa garrafa térmica
para, segundo justi cou, garantir a qualidade do sono da amiga. Quando a
doente estava adormecida, Flor se insinuava ainda mais para Beto. Segurava
a mão do marido de Marilene e dizia coisas do tipo: “Se ela morrer, você não
cará sozinho. Estarei ao seu lado para sempre”.
Certa noite, Beto chegou ao hospital e Flor cou por lá. Pediu para
dividir a cama de acompanhante com o amigo. Ele agradeceu, mas recusou o
convite. Flor atribuía a rejeição ao fato de ser casada com Paulo Xavier, um
servo de Deus. No entanto, Beto se referia à cantora como uma mulher
prestativa, mas “feia e vulgar”, principalmente quando comparada à esposa –
“bonita e elegante”, nas palavras dele. Beto também reclamava das investidas
agressivas em pleno hospital. Mesmo depois de um amigo dar excelentes
referências sobre a performance de Flordelis na cama, ele não a quis naquele
momento, pois toda a sua atenção estava voltada para a recuperação de
Marilene. Em uma visita de Paulo Xavier ao hospital, Beto chegou a pedir
desculpas por ter “roubado” sua esposa e classi cou a dedicação de Flor à
sua família como um ato de compaixão. O pastor concordou e recorreu à
Bíblia para dimensionar a atitude amorosa da mãe dos seus lhos: “Amai-
vos uns aos outros, assim como eu vos amei. [...] Ninguém tem amor maior
do que aquele que dá sua vida pelos amigos”. Cortês, Beto ofereceu chá de
erva-cidreira a Paulo. Quinze minutos depois de dar o primeiro gole na
bebida, o pastor sentou-se numa cadeira e dormiu um sono tão pesado que
roncou feito um porco. Acordou só no dia seguinte, dezoito horas depois de
beber o tal chá. Constrangido, Paulo pediu mil desculpas e saiu de lá às
pressas.
Na última semana de internação de Marilene, Beto recebeu um bilhete
anônimo anunciando uma visita surpresa do lho para se despedir da mãe.
Marcinha foi avisada. Flordelis também soube da ousadia do bandido e
chamou Simone. Na noite marcada, as duas namoradas de Anderson
esperavam pelo fugitivo à beira do leito de Marilene. Beto estava
nervosíssimo e Flordelis segurou sua mão para tentar acalmá-lo. Por volta
das 3 horas da madrugada de um sábado, Anderson entrou no hospital
usando um uniforme de servente e empurrando um carrinho de roupas
hospitalares. Simone e Marcinha o abraçaram ao mesmo tempo. Na
sequência, Anderson beijou a mãe, que estava acordada na cama. Ainda
muito fraca, ela não teve forças para chorar. A visita durou cinco minutos.
Ele se despediu dos pais falando de uma fuga para o Paraguai por período
indeterminado. Simone e Marcinha choraram. O tra cante saiu do quarto
de mãos dadas com as duas garotas. No meio do corredor, ele as beijou e se
despediu. Houve mais choradeira. O tra cante saiu pela porta dos fundos e
entrou no carro de uma mulher. Sentou-se no banco do carona, mas o
veículo nem chegou a dar partida: um homem encapuzado surgiu de
repente, sentado na garupa de uma motocicleta. O meliante metralhou a
cabeça de Anderson, que teve o crânio perfurado com dezenas de tiros. A
mulher ao seu lado se chamava Cíntia e tinha 26 anos. Ela se abaixou para
escapar do atentado, mas cou toda suja de sangue e massa encefálica. A
rajada de balas foi ouvida no sexto andar do hospital, onde cava o quarto
de Marilene. Ela entrou novamente em coma quando soube da morte
violenta do lho. Simone e Marcinha choraram abraçadas. Flordelis
aproveitou a piora da amiga e consolou Beto com afeto de esposa. No dia
seguinte, soube-se que o tra cante não fora assassinado pelo Comando
Vermelho. Anderson tinha uma dívida de 20 mil reais com um policial
militar conhecido como Jorginho PM, integrante de um grupo de matadores
de aluguel. O tra cante teria acertado com o miliciano a morte de um rival
por 50 mil reais. Pagou 30 mil como adiantamento e deu calote no restante.
O matador, então, resolveu executar o cliente para mostrar ao trá co o que
acontece com quem não honra dívidas com a milícia. Lambari, Parazinho e
Sandra Sapatão comemoraram a morte do ex-companheiro com uma festa.
No dia do enterro de Anderson, no cemitério do Irajá, houve mais
choradeira. Marcinha e Simone foram surpreendidas com a presença de
Cíntia ao lado do caixão do defunto. Ela vestia preto e derramava mais
lágrimas do que as duas viúvas-mirins. Antes mesmo de a urna funerária
seguir cova abaixo, Cíntia revelou para Simone e Marcinha ter sido casada
com o bandido bem antes de ele se envolver com as duas adolescentes, que
estavam com 16 anos. Cíntia e Anderson tinham três lhos.
Após o enterro do tra cante, Márcia e Simone estreitaram os laços de
amizade. Marilene teve alta e foi levada para casa pelo marido. Flordelis
continuou cercando o casal e se comprometeu a cuidar da amiga feito irmã.
Paulo Xavier passou a car incomodado com tamanha dedicação da esposa
pela família alheia. Marilene estava se recuperando aos poucos, mas
continuava com excesso de sono, principalmente depois de beber o chá de
erva-cidreira levado por Flordelis. Certa noite, a cantora chegou à casa da
amiga com a garrafa térmica. Marilene e Beto estavam na sala vendo novela
e Flor sentou-se numa poltrona. Beto vestia um short folgado e não usava
cueca. Para chamar a atenção da visita, ele levantou uma das pernas e pôs o
pé sobre o sofá, deixando seus testículos à mostra pela abertura da roupa.
Marilene não percebeu o descaramento. Depois de meia hora, Flor foi até a
cozinha e serviu chá somente para a amiga, que recusou a gentileza:
– Flor, não traga a porra desse chá. Não aguento erva-cidreira. Além do
mais, eu tomo essa merda e sinto um sono pesado...
– Beba o chá, amor. Ele tem feito tão bem a você – sugeriu Beto.
– Não quero porcaria! - revidou a esposa, brava.
– Diga o que você quer beber que eu pego lá na cozinha – disse Flor,
prestativa.
– Quero uma cerveja bem gelada – pediu Marilene.
Beto também quis a bebida. Flordelis foi até a geladeira, pegou uma
garrafa de 600 mililitros de Antarctica Munchen Extra e dividiu a cerveja em
três copos. Num deles, colocou dez gotas de unitrazepam, um remédio
sedativo, ansiolítico e relaxante muscular da classe dos benzodiazepínicos,
indicado para induzir o sono. A droga, também usada no golpe conhecido
como “boa noite, Cinderela”, estava sendo usada por Flor no chá de erva-
cidreira. O copo de cerveja batizado foi dado a Marilene, que bebeu dois
goles grandes. Em dez minutos, ela apagou no sofá. Beto e Flor se agarraram
selvagemente ainda na sala, atiraram toda a roupa sobre o tapete e seguiram
para o quarto do casal. Transaram fazendo muito barulho, enquanto
Marilene, de tão drogada, babava de boca aberta. Às 21 horas, o pastor Paulo
Xavier tocou a campainha e, como ninguém atendeu, baixou a maçaneta e
entrou. Viu Marilene chapada no sofá, três copos de cerveja e roupas
espalhadas pelo chão, incluindo a calcinha de sua mulher. Atraído pelos
gemidos vindos do quarto, o servo de Deus seguiu até lá segurando uma
Bíblia. Abriu a porta lentamente e acendeu a luz. Teria agrado a esposa
sendo penetrada por trás por Beto. Os três caram mudos por longos
segundos. Chocado, Paulo abriu a boca e congelou, com os olhos bem
arregalados. Soltou a Bíblia no chão. Flordelis nem se deu ao trabalho de se
cobrir. Nua em pelo, ela se levantou da cama e quebrou o silêncio:
– Amor, é realmente tudo isso que você está pensando. Estamos
transando. Quer se juntar a nós?
“O Diabo ajuda a fazer, mas não ajuda a
esconder.”

A
favela do Jacarezinho faz limite com o Complexo de Manguinhos, na
zona norte do Rio de Janeiro. Também dominada pelo Comando
Vermelho (CV) e mergulhada na pobreza, a comunidade vizinha está
localizada no entroncamento das avenidas Brasil, Leopoldo Bulhões e Dom
Hélder Câmara, via divisora dos dois bairros. Entre a segunda metade da
década de 1980 e a primeira de 1990, Manguinhos foi marcado por grandes
tragédias, como chacinas, inundações e incêndios. Nativa do bairro,
Dulcivânia de Colares tinha 16 anos no nal da década de 1980. Era uma
das melhores amigas de Simone e vivia com os pais e dois irmãos num
barraco de lona erguido em um assentamento da prefeitura do Rio, depois
transformado no Conjunto Habitacional Nelson Mandela. Simone conheceu
Dulcivânia numa festa promovida por tra cantes no Complexo da Maré.
Com o tempo, a amizade entre as duas se fortaleceu e a jovem passou a
frequentar a casa de Carmozina, para onde Flordelis voltou depois de se
separar do pastor Paulo Xavier. A bruxa simpatizou com a garota tão logo
ela começou a falar da vida difícil em Manguinhos. Em maio de 1988, uma
chuva torrencial fez os rios Faria Timbó e Jacaré subirem 3 metros,
destruindo os barracos dos moradores, inclusive o da família de Dulcivânia.
A água se misturou ao esgoto do Canal do Cunha. Quando os dois rios
baixaram, sobrou na favela uma mistura de lama fétida contendo fezes e
restos mortais de bichos. O lixo asqueroso invadiu todo o assentamento. Os
desabrigados só conseguiram reerguer suas moradias dois meses depois de a
lama contaminada secar.
Os moradores ainda se recuperavam da enchente quando foram
surpreendidos por um incêndio de grandes proporções, no nal de 1989. O
fogaréu começou no Parque João Goulart e destruiu todos os barracos
erguidos no terreno da Associação dos Caminhoneiros do Rio de Janeiro
(Ascarj), onde morava a família de Dulcivânia. Esse segundo infortúnio
ocorreu enquanto os moradores esperavam pelo título de nitivo da terra.
Depois da segunda calamidade, a prefeitura resolveu transferir os sem-teto
para o Parque das Missões, no município de Duque de Caxias, a 10
quilômetros de Manguinhos. Dulcivânia resistiu a fazer a mudança porque
não queria car longe do Jacarezinho, onde a sua vida acontecia. Na favela
vizinha, ela frequentava os cultos da Assembleia de Deus, esbaldava-se nos
bailes funk com Simone e namorava o diácono e líder comunitário Elton
Júnior, de 27 anos. Carmozina percebeu a tristeza de Dulcivânia e a
convidou para morar em sua casa. As duas amigas comemoraram, mas a
bruxa fez questão de conversar com a mãe da menina. “Vou adotar você
como se minha lha fosse”, anunciou Carmozina. A nova integrante da
família Motta teve vontade de soltar fogos de artifício diante de tanta alegria,
pois estava trocando uma vida miserável em Manguinhos por uma casa de
alvenaria no Jacarezinho. Nessa época, Carmozina já havia construído um
segundo pavimento para atender seus clientes e tinha mais espaço. A garota
dividiu um quarto com Abigail (Eliane) e Laudicéia, a outra adotada.
No novo lar, Dulcivânia chamava Carmozina de mãe. Brincando, dizia
para Simone respeitá-la, pois agora era sua tia. As duas caíam na gargalhada
com a piada. A vida das amigas era estudar pela manhã, trabalhar ajudando
Carmozina no período da tarde e frequentar os cultos da Assembleia de
Deus à noite. Após o assassinato de Anderson, o tra cante, Simone levou o
namoro com o outro Anderson, o “do Carmo”, mais a sério. Ele era menor
aprendiz do Banco do Brasil e frequentava a mesma igreja. Precoce como a
maioria dos jovens da favela, o casal tinha vida sexual ativa. Anderson do
Carmo era amigo de Elton, o diácono da Assembleia de Deus e namorado
de Dulcivânia. Os dois casais faziam programas juntos com frequência,
como sair para dançar e pegar sol na praia do Leme. Apesar de não ser
virgem, Dulcivânia não tinha uma vida sexual tão movimentada quanto a de
Simone. Com desejo à or da pele, ela até tentava transar com Elton, mas ele
se recusava por uma condição, segundo dizia, imposta por Deus. “Só transo
depois de me casar. É o que a igreja determina”, justi cava ao receber as
investidas de Dulcivânia. A namorada tentava convencê-lo com uma falácia
comum entre protestantes progressistas: havia outras formas de fazer amor,
sem penetração vaginal. “Nem pensar!”, sentenciava o diácono. Jovem,
atraente e comunicativo, ele não caía na tentação da carne porque tinha
certeza de que o caminho seria sem volta. Nessa época, com muito sacrifício,
ele se masturbava durante o banho.
Num domingo de sol, os quatro amigos foram acampar numa praia
deserta no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio de Janeiro. Levaram
duas barracas e bebidas. À noite, Simone e Anderson transaram por mais de
quatro horas, fazendo muito barulho. Na barraca ao lado, Dulcivânia tentou
despertar o interesse de Elton tirando toda a roupa, alegando excesso de
calor. Ele vestia bermuda e virou para o lado. Embriagado, dormiu um sono
profundo. Dulcivânia acordou antes do amanhecer e percebeu que o
namorado estava com a bermuda meio aberta e o pênis ereto. Aproveitou
para fazer sexo oral até ele ejacular. O rapaz acordou logo em seguida e deu
uma bronca na namorada. Envergonhado e sentindo-se desrespeitado,
terminou o namoro naquele mesmo instante, dentro da barraca. Anderson e
Simone tentaram contornar a situação, dizendo que sexo é algo natural e
divino. “Todo mundo faz. Até os monges, os padres e os pastores da igreja.
Façamos amor. Vamos amar”, cantarolou Simone. Não teve jeito. Elton foi
embora sozinho e cou sem falar com Dulcivânia por meses.
Naquela época, o jovem vislumbrava uma carreira de líder religioso na
Assembleia de Deus. Dedicado, frequentava o culto desde a adolescência,
quando largou as drogas. Fazia trabalhos voluntários, assumiu a função de
obreiro e tentava alcançar o posto de presbítero, para mais tarde, quem sabe,
ser promovido. Seu mentor na Assembleia de Deus do Jacarezinho era o
pastor e líder comunitário Demóstenes Assumpção, de 50 anos. Certa vez,
Elton pediu ao chefe para dar um testemunho contando como a religião foi
fundamental para ele largar as drogas de forma de nitiva. Quando tinha 16
anos, estava totalmente dependente de cocaína. Sem dinheiro para bancar o
vício, passou a trabalhar como “vapor” numa das bocas do Comando
Vermelho. Foi expulso porque a facção não aceitava viciados atuando perto
da linha de frente. Num bairro dominado pelo trá co, Demóstenes não
aceitou a proposta de testemunho feita pelo pupilo. A igreja e o Comando
Vermelho sempre mantiveram uma relação cordial, embora tensa. Na
década de 1980, por exemplo, nenhum templo era erguido na favela, perto
das bocas, sem o aval da bandidagem. Na década seguinte, os tra cantes
passaram a lavar dinheiro no caixa das igrejas, como será mostrado mais
adiante. Demóstenes orientava os sacerdotes protestantes egressos do trá co
a esconder dos éis seu passado criminoso. “Esse tipo de testemunho polui
moralmente os verdadeiros evangélicos. O importante é que você encontrou
Deus aqui na nossa igreja e foi salvo das garras do Diabo. [...] Você está
renovado, Elton, pois deixou de carregar o estigma de malfeitor e se tornou
uma pessoa do bem. É isso que importa”, argumentou o religioso.
Flordelis e Rose, a ex-namorada de Amilton, também congregavam na
Assembleia de Deus comandada por Demóstenes. As duas sonhavam em se
tornar pastoras, embora pesasse contra ambas o passado “pecaminoso”, de
conhecimento público. Flor ainda carregava o apelido de “vassourinha”. Rose
era lembrada, inclusive pelos líderes, de quando namorava Amilton e
encurtava a saia para mostrar as coxas grossas. No entanto, era comum essas
ovelhas desgarradas serem acolhidas pelos rebanhos das igrejas evangélicas
– desde que elas demonstrassem, no discurso e na prática, um estilo de vida
totalmente dedicado a Deus, como vinham fazendo Flor e Rose. Se o crente
levasse uma vida dupla, ou seja, com um pé na igreja e outro na devassidão,
os pastores até faziam vista grossa, desde que os pecados da carne fossem
mantidos em segredo. Caso contrário, o el teria de dar um testemunho de
arrependimento e regeneração no altar. Rose, por exemplo, já havia dado
vários depoimentos lembrando a época em que vivia de mãos dadas com o
Diabo, transando todos os dias, mergulhada nas águas quentes do inferno.
“Encontrei Jesus, puri quei a alma e me tornei novamente uma serva de
Deus, com uma vida totalmente dedicada à igreja”, disse ela num culto
dominical abarrotado de ovelhas do rebanho de Demóstenes. O religioso lhe
deu esperanças de, “um dia, quem sabe”, promovê-la a pastora, apesar de a
Assembleia de Deus ainda não ordenar mulheres. Os chefes iludiam as
moças para não perdê-las para congregações concorrentes, como a igreja
apostólica Renascer em Cristo, fundada na década de 1980, aberta a
mulheres em cargos de liderança. Outra instituição, a igreja apostólica Fonte
da Vida, inaugurada nos anos 1990, também adotava o ministério feminino
e até fazia o seu marketing em cima disso. Nos templos da Assembleia de
Deus, os sacerdotes tentavam convencer as mulheres que sonhavam com o
cargo a se casarem com um ministro e assumirem o posto de “auxiliadora”,
uma espécie de primeira-dama religiosa. Outros líderes engambelavam as
mulheres com o título de “pastora de consideração”, uma perfumaria tão
sem importância que sequer era remunerada. Foi esse o cargo prometido a
Flordelis na Assembleia de Deus, caso conseguisse sepultar de nitivamente
a fama de “predadora sexual” disseminada na favela.
Para limpar sua imagem, a cantora envolveu-se em atividades
lantrópicas no Jacarezinho. Mas uma fofoca sobre seu mais recente
escândalo eclodiu e trouxe perdas e danos a ela: seu marido, Paulo, pastor na
igreja de Demóstenes, agrara Flor na cama com Beto, o comerciante, e
ainda fora convidado a participar da orgia. Com o forte tapa no rosto que
levou do marido, Flor caiu da cama. Com medo de também apanhar, Beto
correu nu, pegou uma arma carregada no móvel de cabeceira e apontou-a
para a cabeça do rival. Paulo não se intimidou e seguiu em direção a Beto.
Para assustá-lo, o comerciante deu um tiro para o alto e o barulho do
disparo acordou Marilene, dopada com o remédio colocado por Flor em seu
copo de cerveja. Nua, Flor enrolou-se num lençol enquanto Beto estava
pronto para dar mais um tiro. Marilene, com a saúde mental debilitada,
quebrava objetos no quarto. Fora de si, a mulher traída pegou a arma do
marido e mirou Flordelis, mas acabou desmaiando. Internada às pressas,
de nhou até morrer, três meses depois, de depressão.
Mesmo envergonhado, Paulo fez questão de contar o ocorrido a
Demóstenes. O líder pediu que o casal mantivesse a história sob o mais
absoluto sigilo, porque traição era um pecado imperdoável, segundo a
Bíblia. “Deus perdoa lho que mata a mãe e mãe que mata o lho. Mas Ele
não passa pano para chifre, principalmente quando o corno é o homem”,
comentou Demóstenes. Àquela altura, porém, era impossível manter
segredo sobre a traição de Flor. Os comentários maldosos sobre o agrante
na casa de Beto circulavam até nas comunidades vizinhas. Irritado, o pastor
mandou chamar Paulo e Flordelis. Naquela época, era comum o religioso
promover terapia de casais. Bravo, ele intimou a cantora adúltera:
“Mantenha essa vida de puta no calabouço, sua vaca. Caso contrário, você
será expulsa da comunidade a pedradas, feito Maria Madalena!”. Chorando,
Flor prometeu nunca mais escandalizar o reino de Deus. Derramando uma
cachoeira de lágrimas, ela encarou o marido e pediu perdão de joelhos.
“Meu amor. O ódio e a raiva; a mágoa e o rancor tornam você um homem
pequeno. Já o perdão te trará forças para fazer de você uma alma bem maior
do que você era. Perdoe-me para você prosperar como marido e como
homem”, aconselhou Flordelis, ainda chorosa, mas esboçando um riso cínico
pelo canto da boca. Paulo sentiu vontade de esmurrá-la, mas se conteve:
– Como posso perdoar essa puta de igreja? – questionou Paulo.
– Olha o palavreado chulo na Casa de Deus! Contenha-se! – reprovou
Demóstenes.
– Sabe qual é o apelido dessa vadia na comunidade, pastor? – gritou o
marido, enfurecido.
– Não, mas posso imaginar... – devolveu Demóstenes.
– Vassourinha!
– Valha-me Deus! Que horror! – espantou-se o religioso.
– Já nem sei se esses lhos são meus! – descon ou Paulo.
– Pai é quem cria, meu lho!
– Agora me fale, pastor: que moral tem um homem casado com uma
mulher chamada na rua de vassourinha? – perguntou Paulo.
– Acho que isso é relativo... Você pode estar exagerando – ponderou
Demóstenes.
– Exagerando?! Essa mulher tem outro apelido que até Satanás tem
vergonha de falar!
– É mesmo? Que apelido é esse?
– Motosserra! – exclamou o marido, aos prantos.
Contendo o riso, Demóstenes tentou apaziguar. Contrariando o que
havia dito antes, referiu-se às escrituras sagradas (Mateus 18:21-22) para
tentar reconciliar o casal: “Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou:
‘Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra
mim? Até sete vezes?’. Jesus respondeu: ‘Eu digo a você: não até sete, mas até
setenta vezes sete’”. A princípio, Paulo não se comoveu com a citação bíblica.
Disse preferir dormir abraçado ao Diabo do que se deitar na mesma cama
com Flordelis. Demóstenes chamou Paulo a um canto e pediu que ele não
terminasse com Flordelis em meio a um escândalo, pois isso mancharia a
imagem da igreja e poria o seu posto de pastor em xeque. “Fique mais um
tempo. Aproveite essa fama de piranha que ela tem, pois você é o esposo.
Depois de alguns meses, quando ela estiver um bagaço, você pula fora e casa
com outra”, aconselhou o líder religioso. Obediente, Paulo aceitou a sugestão
e se reconciliou com a esposa. Nas primeiras semanas, o casal sequer se
falava e Flor foi proibida de sair de casa. Com o tempo, Paulo a liberava para
ir ao comércio e à casa da mãe. Mas a saída da adúltera era cronometrada no
relógio. Se demorasse na rua mais do que o tempo estipulado, Flordelis
levava tapas no rosto, inclusive na frente dos lhos. A violência doméstica
seguia em escalada. Alegando que Flordelis era viciada em sexo, Paulo
passou a estuprá-la com violência diariamente. Quando a reconciliação
havia completado um ano, ele conheceu uma mulher na igreja e nalmente
rompeu de nitivamente o casamento com Flordelis, em meio a uma
discussão violenta. Paulo arrumou suas coisas e seguiu com a nova
companheira para a Assembleia de Deus no município de São Benedito, no
Ceará, onde continuou a carreira religiosa e desapareceu. Por causa dos
casos extraconjugais da esposa, Paulo pôs em xeque se Flávio, Simone e
Adriano realmente seriam seus lhos, apesar de tê-los registrado no
cartório. Por causa dessa suspeita, o suposto pai não quis saber de notícias
dos lhos. A descon ança da paternidade pairava mais sobre Simone e
Adriano, pois Flávio era parecido com o pastor. Mais tarde, Flor descobriu
que Paulo não passava de um hipócrita, assim como a maioria dos líderes
religiosos da igreja de Demóstenes. Desde sempre, ele mantinha uma
coleção de amantes protestantes. Com duas delas, inclusive, o sonso teve
lhos.
Na década de 1990, escândalos sexuais no seio da Assembleia de Deus
do Jacarezinho, a propósito, eram mais comuns do que se imaginava. A
cúpula da igreja cava irritada e punia somente quando as notícias negativas
vazavam para a imprensa. Depois do sumiço do pastor Paulo, Demóstenes
resolveu dar mais uma chance a Flor porque tinha sido muito amigo de seu
pai, Chicão. E por ver futuro promissor em sua carreira de cantora gospel.
Havia, ainda, um segredo inconfessável: Demóstenes queria levar a
“vassourinha” para a cama e comprovar se ela era mesmo tudo aquilo que
falavam. Solteira novamente, Flordelis deu um tempo na vida libertina e
investiu nas atividades religiosas juntamente com Rose. Nos cultos, as duas
se empenhavam como obreiras bíblicas para tentar alcançar melhores
posições no organograma local o mais rápido possível. Na liturgia da
Assembleia de Deus, cabia aos obreiros auxiliar o pastor durante os cultos e
nas atividades fora da igreja. Eles recebiam meio salário mínimo da época e
eram vistos como autoridades espirituais, por serem responsáveis também
pelas orações e intercessões. Flordelis e Rose brilhavam na função.
A vida das duas na igreja começou a estagnar quando Demóstenes
chamou Elton para discutir planos de carreira para o diácono. O líder
anunciou a construção de uma nova igreja na Rua do Canal, bem próximo
do Rio Jacaré. O jovem era o candidato ideal para assumir o cargo de pastor
no local, pois tinha talento e se relacionava bem com os bandidos do
Comando Vermelho, com quem mantivera laços num passado recente.
Nenhum empreendimento, nem mesmo os religiosos, prosperava no
Jacarezinho sem o aval dos tra cantes. Além dessas habilidades, Elton
pregava com excelente oratória, tinha seguidores e realizava trabalhos
voluntários nas redondezas. Também distribuía sopa para os sem-teto e
encaminhava crianças de rua para abrigos, facilitando a adoção. A
Assembleia de Deus tinha pressa em inaugurar uma nova lial na Rua do
Canal porque a concorrência avançava na favela: tanto a Igreja Universal do
Reino de Deus quanto a Igreja Pentecostal Deus é Amor, conhecidas no
Jacarezinho pela agressividade em roubar éis de outras instituições
religiosas, tinham obras nas proximidades, provocando uma disputa por
ovelhas. Elton cou empolgado com os planos de seu mentor. Na reunião,
Demóstenes pediu ao pupilo que acolhesse Flordelis e Rose nessa nova
empreitada. Em seguida, o líder religioso iniciou uma entrevista peculiar
para saber se Elton tinha, de fato, as credenciais para se tornar sacerdote de
uma instituição respeitada como a Assembleia de Deus:
– Você é virgem?
– Sou sim, senhor!
– Você bate punheta?
– [silêncio]
– Responde, servo de Deus!
– Todos os dias, senhor.
– Você nunca fez sexo com mulheres?
– Nunca!
– Nem quando você vivia no inferno, consumindo e vendendo drogas?
– Nem nessa época, senhor!
– Você é homossexual?
– [Silêncio]
– Eu perguntei se você é veado!
– [Silêncio]
– Você já transou com homens, porra?!
– Já! Mas me livrei desse pecado quando encontrei Jesus na igreja,
senhor.
– Cadê aquela sua namorada?
– A Dulcivânia? Terminamos, senhor.
– Então volte para ela ou arrume outra vadia, porque a minha igreja não
ordena pastor solteiro. Muito menos mariconas assumidas!
Depois da entrevista, Elton foi bater na casa de Carmozina atrás de
Dulcivânia. Para reatar o namoro, ela impôs como condição transar todos os
dias e começar a prática sexual imediatamente. Ao ouvir um pedido para
esperar pelo menos até o casamento, a jovem não aceitou. Ele, então, falou
de seus planos religiosos e deu aval para a garota fazer sexo com outros
rapazes, desde que fosse às escondidas. Dulcivânia era apaixonadíssima por
Elton desde a primeira vez que o viu. Tanto que nem teve vontade de se
relacionar com outros homens, pelo menos naquele momento. Seis meses
depois de reatar o namoro, o rapaz subiu ainda mais na carreira e foi
ordenado presbítero da Assembleia de Deus. Em pouco tempo ele já era
evangelista, o último estágio antes de se tornar pastor. Ganhava um salário
mínimo por mês. Com a trajetória de líder religioso evoluindo e dinheiro no
bolso, Elton selou noivado com Dulcivânia e a data do casamento foi
marcada para dali a nove meses, após uma cerimônia de troca de alianças. O
casal tinha muita a nidade. Quanto mais próximo do cargo cobiçado, mais
o crente se alinhava à conduta exigida pela igreja. Não saía mais à noite, não
ia à praia e pouquíssimas vezes falava em transar, ou seja, apenas para
procriar, deixando Dulcivânia apavorada. “Veja o exemplo da Flordelis, ‘sua
irmã’. A fama de pecadora dela percorre o bairro de cima a baixo, chegando
lá no Méier. [...] Sexo é algo sujo. Faremos só uma vez por ano e com muita
responsabilidade, porque Deus vê tudo, até o que acontece debaixo dos
panos”, comentou Elton. Dulcivânia não aguentou esperar a agenda divina
do namorado e começou a transar com um colega da escola, apesar de
garantir ainda estar loucamente apaixonada pelo jovem religioso.
Quando faltavam três meses para o casamento, Elton falou para
Demóstenes que sabotou sua homossexualidade com a prática do celibato
graças à dedicação à igreja. “Espero que você esteja falando a verdade, pois o
Diabo ajuda a fazer, mas não ajuda a esconder”, avisou o chefe. O novo
templo estava em fase nal de construção. Para o acabamento da obra, etapa
mais cara, líderes da Assembleia de Deus zeram uma vaquinha pelas bocas
do Comando Vermelho. Os tra cantes colaboraram generosamente. “No Rio
de Janeiro, os contraventores sempre nanciaram as obras das igrejas
evangélicas e até cultos ao ar livre. O trá co bancava artistas de projeção
nacional para fazer shows gospel na favela e sempre pagou dízimo. O
engajamento com as agremiações religiosas locais ocorria porque havia a
expectativa de um dia eles saírem da vida do crime e precisarem da ajuda
espiritual dos evangélicos”, destaca Christina Vital da Cunha, autora do livro
Oração de tra cante e pesquisadora do Departamento de Sociologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF). Nos arredores da futura igreja,
Elton intensi cou as atividades lantrópicas. Com o auxílio de Flordelis,
Rose e outras voluntárias, começou a recolher crianças pequenas das vias
próximas. A atividade se estendeu por todo o Jacarezinho. Eles abordavam
moradores de rua com bebês de colo e pediam para levá-los. O argumento
era simples: o menor teria mais chance de sobreviver se fosse adotado por
uma família estruturada. Assim, Elton intermediava adoções clandestinas
em nome de Deus e com a anuência da igreja. As famílias bene ciadas
registravam como legítimos, em cartório, bebês e crianças de rua de até 12
anos.
Conhecida como “adoção à brasileira”, essa prática não tem respaldo
legal. Comum no passado, a irregularidade, muitas vezes, era praticada com
boas intenções, como fazia o aspirante a pastor. No entanto, a conduta é
tipi cada como crime contra o estado de liação. O artigo 242 do Código
Penal descreve o delito de dar como próprio o parto alheio e considera
crime o ato de registrar como sendo seu o lho de outra pessoa, bem como
o ato de esconder ou trocar recém-nascido por meio de remoção ou
modi cação de seu estado civil. A pena prevista é de dois a seis anos de
reclusão. Contudo, se o crime é praticado por motivo nobre, a pena é
diminuída para detenção de um a dois anos. Nesse caso, o juiz pode até
deixar de aplicar a punição, como já ocorreu em diversos casos país afora. A
“adoção à brasileira” era mais comum nas décadas de 1980 e 1990, porque os
pais podiam registrar as crianças quando bem entendessem. Atualmente, as
maternidades são obrigadas por lei a só liberar a saída do bebê depois de os
pais sacramentarem o registro.
Faltando seis meses para a inauguração da nova igreja, o trabalho
voluntário de Elton, Flordelis e Rose começou a enfrentar problemas. O trio
tornou-se referência em acolhimento de crianças – não precisava mais
perder tempo procurando por elas nas quebradas do Jacarezinho, pois
famílias pobres, dependentes químicos e moradores de rua faziam questão
de entregar seus lhos a eles voluntariamente. Sem abrigo su ciente para
tantos menores, a atividade foi suspensa temporariamente. Solteira, Flordelis
estava morando com a mãe e os lhos – Simone, Flávio e Adriano. A
missionária tentou levar para lá um bebê de seis meses e um adolescente de
14 anos, chamado Ítalo, mas Carmozina não aceitou. Para que não
voltassem às ruas, Elton os levou para casa. O futuro pastor morava no
Jacarezinho com a mãe, Valdinéia, de 60 anos; o pai, Beviláqua, de 75; e o
irmão, Pedrinho, de 12. A grande diferença de idade do caçula com os pais
fez com que o lho mais velho assumisse o papel paterno na criação do mais
novo desde os primeiros meses de vida. Com um problema sério na coluna
decorrente de uma queda, Valdinéia não podia carregar peso e, por isso, não
segurava o menino no colo. Sem dinheiro para contratar babá, coube ao
primogênito fazer a mamadeira, trocar fralda, dar banho e passear com
Pedrinho empurrando o carrinho de bebê. Antes mesmo de entrar na escola,
a criança foi alfabetizada em casa pelo irmão. Nas aulas domésticas,
aprendeu até a fazer contas. Quando o garoto começou a estudar, Elton o
levava à escola e participava das reuniões com os professores. Nos ns de
semana, iam juntos à praia. Essa aproximação entre os dois fazia Pedrinho
chamar o irmão equivocadamente de pai e, volta e meia, se referia aos pais
verdadeiros como avós. No entanto, o menino era corrigido imediatamente
quando cometia esse lapso.
Muito contrariado, o casal de idosos deixou que o bebê e Ítalo, ambos
criados na rua, cassem na casa por três dias, acomodados respectivamente
em um berço improvisado na sala e no quarto do mais velho. Pedrinho
dormiu com os pais idosos. À noite, Elton foi ao quintal dar um banho no
pequeno. Curioso, Ítalo levantou o colchão de sua cama e encontrou
diversas revistas com fotos de homens nus. Quando todos estavam
dormindo, o adolescente foi até seu an trião e deu um beijo em sua boca. O
futuro pastor pôs o jovem para fora no meio da madrugada. No dia seguinte,
Ítalo encontrou Dulcivânia no ponto de ônibus e contou a ela que seu futuro
esposo era gay. Ela não acreditou. Ítalo foi mais além: “Quando eu dormi na
casa dele, a gente se beijou. Foi delicioso”, debochou. Dulcivânia tentou
agredir o garoto. “A verdade dói, né?”, provocou. “Vai lá e olha o que tem
debaixo do colchão dele”, desa ou. À noite, ela seguiu o conselho de Ítalo e
fez uma visita surpresa ao noivo. Valdinéia assistia à novela e Beviláqua
preparava o jantar. Elton fazia o dever da escola com o irmão ao mesmo
tempo que cuidava do bebê de rua. Enciumada, Dulcivânia alertou os sogros
sobre o perigo de ter um estranho dentro de casa. “A gente não tem a menor
noção de quem são os pais dele, que tipo de doença contagiosa ele tem. Pode
contaminar todos vocês, inclusive o Pedrinho”, envenenou. Valdinéia
mandou o lho se livrar do hóspede imediatamente. Dulcivânia se
encarregou de pegar o bebê e o levou até um hospital público, deixando-o
no jardim, dentro de uma caixa de papelão.
Na tarde do dia seguinte, a atitude desumana da noiva gerou uma
discussão acalorada entre o casal, no quarto dele. No auge da fúria,
Dulcivânia tirou a aliança aos prantos, jogou o anel no chão e terminou o
noivado. Com medo de perder o posto de pastor, ele pediu “pelo amor de
Deus” para ela esperar um ano. Pegou a aliança, pôs de volta no dedo da
noiva, trancou a porta e os dois foram para a cama. Mesmo com
preliminares promissoras, não transaram porque ele não teve ereção
su ciente para penetrá-la. Dulcivânia saiu da cama e vestiu-se bem
devagarinho. Em seguida, levantou o colchão e pegou a coleção de revistas
eróticas de Elton. Folheou algumas delas. Ele cou desconcertadíssimo.
Sucinta, Dulcivânia quis saber:
– Você gosta de homens?
Ele fez um longo silêncio e admitiu, balançando a cabeça. Dulcivânia fez
mais uma pergunta ao noivo:
– Foi por isso que você não conseguiu transar comigo?
– Sim.
Desolada, Dulcivânia jogou as revistas no chão, foi embora da casa do
noivo e procurou Demóstenes. A sós, ela acusou o jovem de “pederastia”.
Logo, ele não podia ser ordenado pastor. O líder religioso perguntou se ela
considerava manter o noivado e ouviu um não como resposta. Elton foi
expulso da Assembleia de Deus no mesmo dia. Não por gostar de homens,
mas por não saber manter seus segredos longe da luz do sol. Desolado, foi
consolado por Rose e Flordelis. Os três pegaram um ônibus e foram
espairecer na praia do Leme. Mas os estragos promovidos por Dulcivânia
ainda nem tinham começado. Enquanto o ex-noivo chorava na zona sul, ela
fez uma visita aos pais dele, na zona norte. Na sala com Beviláqua, Valdinéia
e Pedrinho, Dulcivânia anunciou ter rompido o noivado ao descobrir a
homossexualidade do rapaz.
Nessa hora, o menino foi retirado da sala pela mãe e levado para a casa
de uma vizinha. Depois, a conversa continuou. O casal não frequentava
igrejas, o que reduziu bastante o impacto da notícia. “Eu até já descon ava”,
amenizou Beviláqua. Valdinéia permanecia inerte. Dulcivânia falou que
Elton e Ítalo, o adolescente de rua, haviam se beijado, talvez até transado sob
aquele teto. Os pais se entreolharam meio constrangidos. A moça, então,
deu a cartada nal, selando para sempre o destino do ex-noivo: “Eu li numa
revista que todo gay é pedó lo. Eles molestam crianças, sabiam? Aí quei
pensando... É por isso que o Elton é muito apegado ao irmãozinho. Gosta de
dar banho nele trancado no banheiro. Dorme no mesmo quarto só de cueca.
Se eu fosse vocês, perguntaria para o menino se ele já foi tocado pelo irmão”,
aconselhou. O pai mandou Dulcivânia sair. Mas a mãe, com dor na coluna,
deu razão a ela. Valdinéia não tinha estudo e nunca trabalhou. Seu
passatempo predileto era assistir a novelas e ao Programa Flávio Cavalcanti.
Com essas características, segundo Elton, cou fácil para ela acreditar nas
bobagens proferidas por Dulcivânia. Beviláqua tinha ensino médio (antigo
segundo grau), trabalhou por décadas como vendedor numa loja de
ferragens e lia jornais. Seria mais difícil convencê-lo de que todo gay é
pedó lo. Preocupada, Valdinéia foi até a casa da vizinha perguntar ao lho
se Elton já havia tocado em seu sexo. O menino, de 12 anos, assustou-se com
o questionamento e negou de forma categórica. Para evitar um novo
confronto com o ex-noivo, Dulcivânia foi embora do Jacarezinho. Pegou
suas mudas de roupa, despediu-se da “mãe” Carmozina, de Simone e
Anderson, e foi morar com os pais no Complexo da Maré.
Quando Elton chegou em casa, os pais contaram sobre a visita
inconveniente de sua ex-namorada. Ele ainda estava processando o
desligamento da igreja, quando foi expulso pela mãe sob a acusação de
pedo lia, por ter supostamente abusado sexualmente do irmão que ele tanto
amava. Elton não suportou outro baque emocional. Sentou-se no chão e
desabou no choro. A mãe pediu que ele saísse de casa o quanto antes, do
contrário chamaria a polícia. Beviláqua alertou a esposa sobre a possível
injustiça. “Posso estar enganada? Posso! Mas posso estar certa? Também
posso! Na dúvida, pre ro não arriscar. Quero essa bicha longe do meu lho”,
ponderou Valdinéia. O rapaz arrumou a mala de roupas e pediu para se
despedir do irmão, que ainda estava na vizinha. O pai permitiu, mas a mãe
não deixou. Com pouco dinheiro no bolso, o jovem pegou um ônibus e foi
para São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, onde morava uma tia idosa,
irmã de Beviláqua. Longe da família e dos amigos, cou mais fácil assumir
sua orientação sexual. Fez curso técnico de montador de veículos no Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e conseguiu emprego na linha
de montagem automotiva da Ford. Beviláqua nunca – em tempo algum –
acreditou na possibilidade de Pedrinho ter sido molestado sexualmente por
quem quer que fosse.
O garoto amargou um período triste, com saudade do irmão. Por cinco
anos seguidos, uma vez por mês, mesmo idoso, Beviláqua pegava um ônibus
na rodoviária do Rio de Janeiro e levava Pedrinho para encontrar Elton em
São Paulo. Os três passeavam no Parque Ibirapuera e visitavam o zoológico e
parques aquáticos. Nos feriados prolongados, o mais velho viajava até o Rio
para levar Pedrinho à praia. Esses encontros aconteciam às escondidas da
mãe, que nunca aceitou a sexualidade do lho mais velho. “Você não sente
saudade do nosso Elton?”, perguntava Beviláqua. “Quem é Elton?”, devolvia
Valdinéia. Certa vez, o recenseador do Instituto Brasileiro de Geogra a e
Estatística (IBGE) bateu à porta deles e perguntou quantos lhos ela teve. A
idosa respondeu: “Tinha dois, mas um morreu”. Valdinéia faleceu aos 65
anos em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC). Depois de
sepultar a esposa, Beviláqua se mudou com Pedrinho, já com 17 anos, para a
casa de Elton, casado na época com um engenheiro civil. Os quatro
moraram juntos por quinze anos em São Bernardo. Beviláqua morreu de
causas naturais aos 95, cercado de amor e carinho. Pedrinho se formou em
engenharia mecatrônica na Universidade de São Paulo (USP), casou-se com
uma colega de classe e teve dois lhos. A vida de Dulcivânia também sofreu
reviravoltas: sem muitas oportunidades na vida, virou prostituta na zona
portuária do Rio de Janeiro. Em 1995, seu programa custava 5 reais.

* * *
Com a saída de Elton da Assembleia de Deus, os trabalhos de assistência
social comandados por ele no Jacarezinho foram suspensos
temporariamente pelo pastor Demóstenes. Duas referências em lantropia
no bairro, Flordelis e Rose continuavam sendo procuradas por moradores
de rua com crianças pequenas. Algumas famílias sem-teto simplesmente
pediam ajuda. Outras perguntavam como poderiam deixar os lhos num
abrigo público, pois não tinham condições de alimentá-los. A maioria dos
pais inalava cola e líquidos solventes, como tíner e acetona. No cérebro, essas
drogas provocam efeitos psíquicos agudos, causando euforia seguida por
depressão. Nos casos mais graves, o dependente químico era tomado por
alucinações. Geralmente o morador de rua tentava se livrar dos lhos na
fase de alegria intensa e se mostrava arrependido quando mergulhava na
ressaca da tristeza profunda.
Convocadas pelo pastor Diógenes, Rose e Flordelis assumiram o lugar de
Elton no trabalho de pegar bebês de moradores de rua. A enfermeira
Quirina da Silveira havia trabalhado por 30 anos na Santa Casa de
Misericórdia de São Paulo, entre 1930 e 1960, quando a instituição mantinha
a chamada “roda dos expostos”, um compartimento público usado para as
mães se livrarem dos lhos de forma anônima, caso quisessem. A tal roda
era uma espécie de passa-volume em formato de tambor com a mesma
dinâmica de uma porta giratória. Aos 16 anos, Rose, de pele branca,
começou a se questionar por que não se parecia com a mãe, de pele preta.
Dona Quirina contou então um segredo: Rose havia sido recolhida por ela
da “roda dos expostos”, assim como suas duas irmãs mais velhas. “Sempre
quis ter lhas brancas. Não queria que as minhas lhas sofressem na pele os
preconceitos raciais que sofro desde sempre”, justi cou a enfermeira na
época. Quando Rose contou essa história para Flordelis, ambas se
perguntaram por que não instalar uma “roda dos expostos” na igreja de
Demóstenes, para facilitar o recolhimento de crianças. Um marceneiro do
bairro cou encarregado de construir a peça giratória, de madeira. No
Brasil, esse método de se livrar de bebês sempre esteve ligado às instituições
caridosas, como abadias, mosteiros e irmandades bene centes. Nela eram
deixadas crianças de pouca idade cujos pais, por alguma razão, não podiam
ou não queriam criar seus lhos. No passado, esse abandono era feito no
anonimato, justamente para evitar qualquer tipo de contato entre quem
estava entregando o bebê e quem estava recebendo-o do outro lado da roda
giratória. Atualmente, esse tipo de doação voluntária continua anônimo e
está previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Como no
passado, a mulher pode escolher informar ou não o nome do pai no
momento da doação, assim como manter o nascimento e todo o processo
em sigilo. Em 2022, a atriz Klara Castanho usou esse dispositivo para doar
seu bebê logo após o parto, alegando que ele era fruto de um estupro. Vale
ressaltar: a mãe não é obrigada a informar à Justiça o motivo da doação.
Instalada no muro da igreja do Jacarezinho em 1986, a “roda dos
expostos” recriada por Rose e Flordelis era uma caixa dupla de formato
cilíndrico. A janela cava aberta para o lado de fora. Quando o objeto era
girado, a porta ia para o lado de dentro. Segundo relatos, a igreja de
Demóstenes chegou a receber 16 bebês em seis meses por esse meio. Todos
teriam sido encaminhados para casas de acolhimento. Algumas mães
disseram para Rose e Flordelis que abandonaram os lhos porque o pai não
queria assumir e elas não tinham dinheiro para sustentar o bebê sozinhas.
Outras puseram o lho na “roda” porque eles não foram desejados. Quando
as freiras da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro descobriram que
o sistema de doação havia sido ressuscitado pela Assembleia de Deus, o
pastor Demóstenes temeu um escândalo na imprensa. Com isso, ele
ordenou que Rose e Flordelis encerrassem a “roda dos expostos”
imediatamente e passassem a recolher crianças manualmente, como fazia
Elton.
No início da década de 1990, as adoções capitaneadas por Rose e
Flordelis caram mais ostensivas. Em 1991, a dupla caminhava pelo entorno
da Central do Brasil quando encontrou uma mulher conhecida na área pelo
apelido Queixo de Tamanco. Suja e fedida, a moradora de rua carregava uma
garrafa plástica contendo cola de sapateiro numa das mãos e puxava um
menino de 3 anos na outra. Flor abordou a moradora de rua:
– Para onde você vai com esse menino lindo?
– Estou procurando pelo Elton. Quero entregar o garoto – anunciou.
– Esse menino é seu lho? – perguntou Flordelis.
– Sim, mas não tem registro!
– O Elton não trabalha mais na igreja. Se quiser, posso car com a
criança – se dispôs a missionária.
Quando assumiu o lugar de Elton nos trabalhos voluntários de
acolhimento de meninos de rua, Flor se intitulava obreira da igreja
Assembleia de Deus do Jacarezinho. Queixo de Tamanco entregou o rebento
por volta das 18 horas de uma quinta-feira e escafedeu-se. Rose alertou
Flordelis para um fato: naquele dia não havia vagas nos abrigos públicos
infantis, nem no bairro, nem nas redondezas. Nessa época, a Secretaria
Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro mantinha apenas duas
casas de acolhimento nas proximidades e ambas cavam permanentemente
lotadas, porque recebiam muitos menores encaminhados pelos Conselhos
Tutelares até de bairros vizinhos. Mais uma vez, Flor tentou hospedar o
menino com Carmozina, mas a bruxa disse não, não e não. Flor acusava a
mãe de falta de apoio e compaixão. Para o pequeno não pernoitar ao relento,
Rose e Flor deixaram-no numa creche mantida pela prefeitura em Del
Castilho. Uma semana depois, Rose voltou para buscá-lo, mas ele havia sido
encaminhado “por engano” a uma entidade mantida pela Pastoral da
Criança da igreja católica, em Belford Roxo, e nunca mais tiveram notícias
do menino.
Simone ainda namorava Anderson quando foi com ele, a mãe e Rose
comer cachorro-quente numa carrocinha de rua após um culto evangélico.
Sentaram-se lado a lado, em cadeiras de plástico encardidas. Flor comentou
sobre o trabalho lantrópico, falando de como esse tipo de atividade poderia
cacifar a sua ascensão na Assembleia de Deus e torná-la famosa no
Jacarezinho. Segundo ela, até a igreja católica investia em trabalhos de
resgate de crianças de rua para se promover. Anderson, assíduo nos cultos
de Demóstenes, concordou com a cantora. No momento dessa conversa,
Flor estava sentada na primeira cadeira. Anderson, na outra extremidade –
ou seja, com as outras duas mulheres, que se mantinham caladas, comendo
entre eles. Para car mais próximo de Flor, Anderson levantou-se, puxou a
cadeira e foi terminar seu lanche ao lado da missionária. Com a desculpa de
ter dever de casa, Simone terminou a refeição rapidamente, despediu-se do
namorado com um beijo na boca e foi embora. Rose continuou fazendo
companhia aos dois, mas cou sobrando quando os amigos engataram uma
conversa. Flordelis nunca havia reparado no namorado adolescente da lha
como um homem. Naquela noite, falaram sobre religião, adoções, música e
amor. Ele também se queixou de Simone, que não levava mais o namoro a
sério como outrora. Segundo ele, a lha de Flordelis vinha abandonando as
atividades da igreja. “Ela não carrega mais nem a Bíblia, acredita?”, reclamou
Anderson. Flor ouviu as queixas do “genro” com atenção e aproveitou para
falar da sua falta de sorte com os homens de sua idade, fazendo uma resenha
negativa do ex-marido. Os dois se empolgaram e a conversa varou a noite.
Por volta das 2 da madrugada, Anderson levou primeiro Rose em casa e
depois acompanhou a “sogra”, despedindo-se dela na porta com um beijo de
carinho em seu rosto, porém bem pertinho da boca.
Uma semana depois, decidida a investir no trabalho lantrópico, Flor
recolheu com Rose um bebê de cerca de seis meses das mãos de uma mulher
conhecida como Joana Cara de Cadáver. O apelido inusitado era decorrente
de sua aparência lívida e dos olhos bem profundos. A moradora de rua
fumava crack, cheirava cola de sapateiro e bebia cachaça todos os dias. Havia
meses não tomava banho. Eram 10 horas quando Flor avistou a sem-teto
sentada sobre um papelão na calçada da Praça da República, perto do
monumento de Benjamin Constant, no Centro do Rio de Janeiro. A criança
estava deitada entre as pernas da genitora, que tinha uma faca com a lâmina
enferrujada presa na cintura. Aparentemente desnutrido e desidratado, o
bebê vestia uma fralda improvisada com trapos, toda suja de xixi e cocô, e
chorava agitando as pernas e os braços. A mulher parecia não se importar
com o estado deplorável do lho. Flor se aproximou lentamente e
identi cou-se como missionária da Assembleia de Deus, como sempre fazia.
Em seguida, em silêncio, ajoelhou-se e pegou a criança bem devagarinho
pelas axilas. Levantou-se com delicadeza e começou a embalar a criança,
tentando fazê-la parar de chorar. Instintivamente, o bebê procurou o peito
de Flor para mamar. A moradora de rua não fez nenhuma objeção. Alguns
usuários de drogas com cara de poucos amigos e sinais claros de embriaguez
se aproximaram. Rose cou com medo, mas Flor tentou obter informações
usando uma voz aveludada:
– Tadinha! Quantos meses tem essa criança?
– [silêncio]
– Ele é tão bonitinho. É menino ou menina? – insistiu a missionária.
– [silêncio]
– A senhora está disposta a entregar o seu lho para adoção?
– [silêncio]
– Leva logo esse bebê embora, caralho! A Cara de Cadáver nem é a mãe
dele. Essa criança não come faz dois dias! – gritou um sem-teto de longe.
Joana Cara de Cadáver levantou-se do chão e encarou a missionária, mas
cou calada. Em pé, a faca enferrujada amarrada na cintura da moradora de
rua cou ainda mais evidente. “Deixa esse bebê e vamos embora daqui”,
pediu Rose, a ita. Joana Cara de Cadáver se afastou e as duas amigas saíram
apressadas em direção ao ponto de ônibus, levando a criança. Dentro do
coletivo, Flor percebeu se tratar de uma menina. Era meio-dia quando as
duas chegaram em casa. Carmozina estava com um grupo de “clientes”
quando viu a nenê nos braços da lha. Primeiro, expulsou Rose. “Some da
minha frente, sua vagabunda dos infernos!”, gritou. Em seguida, a bruxa se
voltou contra Flor:
– Eu já disse que não quero moradores de rua aqui em casa!
– Mas, mãe, é temporário. Vou arrumar um lar para essa pequena órfã.
– Quem é a mãe dessa criança?
– Não sabemos! – mentiu.
Um dos motivos para Carmozina implicar com a lha e seu projeto de
recolher meninos da rua era justamente a companhia constante de Rose. As
duas não se falavam desde o dia do afogamento de Amilton na piscina do
Clube da Marinha. Contrariada, a bruxa deu um prazo de três dias para a
criança ser levada embora, senão chamaria o Conselho Tutelar. Enquanto as
duas discutiam na sala, Rose deu um banho na bebê usando a torneira do
tanque de lavar roupa e sabão em barra. Depois a acomodou na cama de
Flor. Carmozina também reclamava dos novos hóspedes porque sua casa de
70 metros quadrados na Rua João Pinto, 51, estava com lotação esgotada. No
início da década de 1990, moravam ali nove pessoas: Carmozina, Laudicéia,
Abigail, Flordelis, Fábio e sua esposa, Ieda, Simone, Flávio e Adriano. Às
vezes, Anderson também dormia por lá. O imóvel tinha dois pavimentos,
mas parecia menor porque um dos quartos era reservado exclusivamente
para as bruxarias da matriarca, onde ninguém entrava sem sua autorização.
Dentro do guarda-roupa, cavam escondidas as imagens de São Cipriano e
Exu Caveira.
Apegada à criança resgatada da rua, Rose passou a frequentar a casa de
Carmozina quando ela estava na igreja. Seu acesso era facilitado pelos lhos
da bruxa, que simpatizavam com ela. Numa dessas visitas, Rose preparou na
cozinha uma mamadeira para a nenê e levou-a até o quarto de Flor. Ao
chegar lá, a cama estava vazia. Rose desceu nervosa, alertando sobre o
sumiço da menina. As duas procuraram em cada canto pela pequena – que
ainda não tinha idade para engatinhar, muito menos para sair andando.
Rose e Flor já haviam procurado em todos os cômodos – exceto no quarto
secreto, trancado à chave. Usando um grampo de cabelo, elas abriram a
porta. Flor nunca tinha entrado ali. A bebê não se encontrava lá, mas as
duas missionárias caram tão impressionadas com a energia do espaço onde
a bruxa fazia atendimentos secretos que até se esqueceram do
desaparecimento da menina. Havia um pequeno altar com uma imagem
coberta por um lençol branco e duas cadeiras de plástico, viradas de frente
uma para a outra. Uma prateleira continha cerca de vinte volumes, entre eles
A Bíblia Satânica, de Anton Szandor Lavey, ocultista fundador e sacerdote
da Igreja de Satanás, e a edição de capa preta do livro São Cipriano, o bruxo.
Rose estava chocada com os segredos de Carmozina. Flor agia como se
estivesse descobrindo um novo mundo. Ela puxou o lençol branco e deu de
cara com a imagem de Exu Caveira. O mesmo grampo usado para
destrancar a porta abriu a fechadura do guarda-roupa, onde cava a imagem
de São Cipriano, feita de gesso e totalmente oca. Havia também um pôster
de Baphomet [pronuncia-se Bafomé], gura mística cultuada por adeptos de
rituais da alta magia. No cartaz, a entidade aparecia representada pela
clássica gura com tronco de homem, asas longas e escuras, pernas e cabeça
chifruda de bode. No livro de São Cipriano, o personagem é descrito assim:
“Figura estranha que impõe respeito a seus admiradores e pavor aos neó tos
da bruxaria negra. Ele é o maioral, o famoso bode satânico que preside há
séculos as sessões de sabbats (sábado das bruxas)”. Na história das religiões,
o nome Baphomet está relacionado diretamente aos cavaleiros templários,
que no século XII chegaram a confessar sob tortura a prática homossexual,
sodomia, enriquecimento ilícito e adoração ao Diabo. Para antropólogos
especializados em religiões, Baphomet nada tem a ver com o ocultismo e
teria sido simplesmente uma derivação do nome Muhammad [pronuncia-se
Maomé], o profeta fundador do Islã. No entanto, ao longo dos séculos, o
mistério e a especulação envolvendo os templários e Satanás aumentaram,
popularizando nessa esteira a imagem enigmática de Baphomet.
Atualmente, a criatura é gurinha fácil em rituais satânicos e lmes de
terror.
Enquanto vasculhavam os segredos de Carmozina no segundo andar,
Flordelis e Rose se assustaram com o barulho da porta da sala batendo, no
piso inferior. As duas se apressaram. Flor pegou uma sacola e guardou as
imagens de São Cipriano e Exu Caveira, o livro de São Cipriano, A Bíblia
Satânica e o cartaz de Baphomet. Saiu do quarto às pressas e escondeu a
sacola embaixo de sua cama. Em seguida, desceu para entreter quem havia
chegado em casa. Enquanto isso, habilidosa com grampos, Rose conseguiu
trancar o guarda-roupa e a porta do quarto. Lá embaixo, Flor se deparou
com Mariazinha segurando o bebê. “Eu a ouvi chorando de fome, não vi
ninguém e a levei para dar uma mamadeira. Está tão desnutrida, coitada”,
justi cou a vizinha intrometida. Antes que mais alguém chegasse, Flor
pegou a sacola com os apetrechos de Carmozina e pediu para Rose guardá-
la por 24 horas. A amiga se negou, mas, diante da insistência, acabou
aceitando.
Quando Carmozina chegou, Flor anunciou uma novidade: iria car com
a nenê, já batizada por ela de Rayane. Rabugenta, Carmozina disse que,
sendo assim, teria de deixar a casa dela no dia seguinte. Flor concordou,
avisando que procuraria um imóvel para alugar nas proximidades. “Mãe,
vou adotar essas crianças de pais drogados”, anunciou. “Adota, mas longe da
minha vista”, reiterou a bruxa. Em seguida, Carmozina preparou o almoço
para toda a família: arroz, feijão, bife, farofa e Coca-Cola. Estavam comendo
à mesa quando a bruxa se levantou, subiu até o quarto secreto e soltou um
grito de pavor tão estridente que até Mariazinha apareceu para xeretar o
ocorrido. Todos, incluindo Flordelis, correram até o quarto para ver o que
tinha acontecido. Irritada com a invasão, Carmozina falou com a voz mais
calma do mundo: “Achei que tivesse visto o vulto de meu irmão Miquelino
aqui no quarto. Mas foi um engano”. Acreditando que A Bíblia Satânica, o
livro e a imagem de São Cipriano, o cartaz de Baphomet e a peça de Exu
Caveira tivessem sido resgatados pelo fantasma do irmão, Carmozina
passou a visitar a gruta perto da Capela das Almas diariamente, para tentar
encontrar Miquelino. Em vão. O espírito dele e sua comitiva de escravizados
nunca mais apareceram para a velha, e ela suspendeu temporariamente os
atendimentos em casa.
Sentindo-se leve sem as imagens de Exu Caveira e Baphomet, como
confessaria mais tarde, Carmozina amoleceu. Logo ela se afeiçoou a Rayane
e nem reclamou quando Flor chegou em casa com mais uma menina, Suzy,
de 12 anos, a mesma idade de Flávio, segundo lho biológico da
missionária. A ideia inicial era resgatar somente crianças de pessoas
drogadas e encaminhá-las para adoção. O trabalho seria coordenado pela
Assembleia de Deus comandada pelo pastor Demóstenes. Flávio começou a
sentir ciúme de Suzy, principalmente quando ela recebia carinho de Flor ou
pegava seus brinquedos. “Mãe, não traga novos irmãos aqui para dentro.
Essa garota está mexendo nas minhas coisas”, reclamava. Prevendo a
chegada de mais crianças de rua em sua casa, Carmozina voltou a reclamar.
Para se livrar da pressão familiar, Flor conseguiu um emprego numa padaria
e, batalhadora, formou-se em magistério. Começou a dar aulas em duas
escolas públicas do Jacarezinho e aumentou a renda. Suas atividades
pro ssionais eram conciliadas com a performance de cantora em cultos nas
igrejas, onde era remunerada e bastante aplaudida. Com dinheiro no bolso,
alugou um imóvel de dois quartos na Rua Guarani, 29, bem próximo da
residência da mãe.
A missionária mudou-se para o novo endereço com os três lhos
biológicos e os dois adotivos. Nessa fase, Simone, a mais velha, se recusava a
cuidar das novas irmãs. Como Suzy tinha 12 anos, cabia a ela a tarefa de
car com Rayane, de seis meses, enquanto Flor trabalhava. Com isso, era
comum encontrar na casa uma criança com a outra no colo. Numa noite de
domingo, todos assistiam à televisão na sala quando Anderson chegou para
namorar Simone. Com os quartos sempre ocupados e a sala cheia de gente,
o banheiro passou a ser o único lugar com privacidade. O casal entrou lá e
transou, fazendo muito barulho, por mais de uma hora. Para abafar os
gemidos, Flor aumentou o volume da TV. Quando saíram do banheiro,
Simone e Anderson foram repreendidos. A missionária sugeriu que os dois
zessem amor em silêncio para não despertar a curiosidade dos menores.
Para distrair a prole, Flor comprava brinquedos de uso coletivo, como
velocípede, futebol de botão, bola, baralho, videogame e jogos de tabuleiro.
Quem continuava não gostando de compartilhar as coisas, incluindo o afeto
da mãe, era Flávio. O garoto era muito apegado ao pai, o pastor Paulo
Xavier, e sempre perguntava quando ele voltaria. Incomodado com as novas
irmãs, implorou mais uma vez a Flor para não levar mais crianças de rua
para casa. Ela pegou o lho biológico pelo braço e foi até o quintal
conversar. A sós, Flor perguntou se Flávio já havia reparado na beleza de sua
irmã Suzy. “Os peitinhos dela estão nascendo. Viu isso, lho?”. Tímido, o
menino cou corado. A mãe não costumava falar sobre sexo com ele. Nessa
mesma noite, Flor estendeu um colchão no chão da sala e pôs Flávio e Suzy
para dormirem juntos. Deu a eles apenas um cobertor. Na manhã seguinte,
os dois adolescentes andavam de mãos dadas e se beijavam de língua na
frente da família. Simone e Anderson faziam chacota do novo casal, dizendo
que Flávio era “devagar”, pois permanecia virgem mesmo depois de dormir
com a namorada. Uma semana depois, uma senhora bateu na porta de Flor
acusando-a de ter pegado sua lha sem autorização. Ameaçando chamar a
polícia, a moradora de rua levou Suzy embora. Flávio cou inconsolável,
chorando pelos cantos, com saudade da menina. “Não ca assim, lho. A
mamãe vai arrumar outra namoradinha para você”, prometeu. Ingênuo,
Flávio pediu uma garota idêntica à sua “irmãzinha”.
As transas de Simone e Anderson no banheiro caram mais frequentes e
barulhentas. Mesmo depois de gozar, o casal costumava car trocando
carícias e tomando banhos demorados, o que fazia os demais moradores
baterem na porta constantemente. Para não ocupar o banheiro por muito
tempo, passaram a transar no quarto da mãe, com o consentimento dela. Só
havia um porém: a porta não trancava à chave. Certa vez, Flordelis entrou
no quarto de forma abrupta, viu os dois nus, pediu desculpas e saiu
rapidamente. No mesmo dia, Simone quis saber a opinião da mãe sobre o
corpo do namorado. Flor elogiou a beleza de Anderson, pontuando o
tamanho do seu pênis, considerado por ela “muito grande”. Simone se
vangloriou da excelente performance sexual do rapaz, mas confessou à mãe
que, a cada dia, seu interesse pelo namorado diminuía. “Quando deixa de
ser novidade, eu enjoo de tudo no homem: da voz, da aparência, do cheiro,
da companhia e principalmente do sexo”, comentou. Mesmo assim, não
demorou muito para Anderson seguir de mala e cuia para a casa de Flor,
tornando-se seu terceiro “ lho” adotivo. No novo lar, ele passou a chamar a
missionária carinhosamente de “mãe”. Flor devolvia o carinho chamando-o
de “ lho”. Com o passar dos dias, Anderson contraiu o hábito inconveniente
de vestir apenas cueca, principalmente em dias de calor. Volta e meia, saía
completamente nu do banheiro e corria para o quarto. No início, Flor o
repreendia, mas todos os moradores acabaram se acostumando com esse
hábito inadequado.
Com o tempo, Anderson passou a frequentar assiduamente com a “mãe”
e com a namorada a igreja administrada por Demóstenes e a envolver-se
com as atividades da instituição. Numa reunião, o sacerdote falou a Flor
sobre um fuxico dando conta de que Carmozina abriria uma outra
Assembleia de Deus nas proximidades, o que ele considerava uma afronta –
principalmente porque a igreja estava na pindaíba e vinha perdendo ovelhas
para a concorrência. “A quem interessa dividir o nosso rebanho?”,
questionou. Para disputar com Carmozina, Demóstenes pediu que Flordelis
e Rose intensi cassem os trabalhos de lantropia iniciados por Elton. Ele
andava em busca de um terreno no Jacarezinho para construir uma casa
para crianças de rua.
Com esse abrigo apinhado de menores abandonados, seria mais fácil
conseguir um convênio com a prefeitura. Na reunião, Demóstenes falava do
projeto com entusiasmo e deixou claro que, com o sucesso da empreitada,
Flordelis e Rose seriam ordenadas pastoras da igreja. A ideia de Demóstenes
era juntar o maior número possível de crianças e chamar a reportagem local
da TV Globo para obter visibilidade. Depois, o líder tentaria convencer
empresários a ajudá-lo nanceiramente na causa. “Tem igreja que arrecada
milhões com lantropia”, destacou. Anderson estava nessa conversa e
anotava tudo num caderno. Nesse mesmo encontro, Flordelis e Rose tiveram
a ideia de criar um movimento batizado de “evangelização da madrugada”.
Enroladas em cobertores brancos para se proteger do frio e agarradas a
bíblias, as duas perambulavam pelos bailes funk promovidos por tra cantes
do Jacarezinho abordando crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade. Nessa nova fase, usavam a lábia para convencer os garotos a
deixarem o trá co. Como as amigas entravam em áreas completamente
dominadas pelo Comando Vermelho, Anderson passou a acompanhá-las
para dar proteção. Cabia a Simone car em casa cuidando dos menores. Na
busca por novos “ lhos” pelos becos do Jacarezinho, Flor pediu para Rose
avisá-la caso encontrasse uma menina “bem bonitinha”, com idade entre 10
e 14 anos, para “dar de presente” a Flávio. Rose levou um susto quando
ouviu o pedido esdrúxulo.
A partir daí, a relação entre as duas azedou. Rose devolveu para Flor a
sacola com os objetos roubados de Carmozina e começou a descon ar das
boas intenções da amiga. Sem interesse, a missionária guardou os apetrechos
satânicos dentro de uma caixa de papelão e a colocou sobre o guarda-roupa
de seu quarto. Aos poucos, as amigas foram se afastando. Quando Flordelis
tentava combinar com Rose saídas na madrugada para resgatar crianças do
trá co, a ex-cunhada inventava desculpas para não ir. Algumas semanas
depois, ela desistiu de nitivamente da missão, afastando-se de todos e até
dos cultos. “Quando a Flor pegou a Rayane na praça, eu acreditava no seu
gesto humanitário. Parecia que ela estava mesmo preocupada com a vida
daquele bebê. Mas, quando ela me pediu para ‘catar’ na rua uma menina
para o Flávio namorar, caiu a cha. Nunca houve bondade naquelas
adoções”, disse Rose em fevereiro de 2022. Sobre os apetrechos usados por
Carmozina, ela fez o seguinte comentário: “Só descobri o que signi cavam
aquelas coisas alguns anos depois”.
Um dos resgates mais dramáticos feitos por Flordelis durante a
evangelização da madrugada foi o de um jovem chamado Alan, de 17 anos.
Usuário de cocaína, o moço havia desaparecido. Sua namorada pediu ajuda
à missionária, por acreditar que ele estivesse no corredor da morte. Flor e
Anderson saíram à procura do moço de madrugada pelos becos do
Jacarezinho. Por volta das 3 horas, encontraram-no amarrado a um poste,
com um capuz na cabeça, prestes a ser executado por um grupo de oito
integrantes do Comando Vermelho. Flor intercedeu. “Deus me mandou aqui
para salvar esse rapaz!”, falou aos bandidos, que riram cinicamente. “Vocês
têm de dar mais uma chance a ele. A mãe e a namorada, coitadas, estão
desesperadas”, argumentou. Os tra cantes não se comoveram nem
demonstraram disposição para negociar. Deram mais risadas de escárnio.
Alan tinha dois fuzis apontados para sua cabeça porque, galanteador, havia
xavecado a ex-namorada de um dos donos da boca num baile funk e ainda
acumulava dívidas com os criminosos. Em sua defesa, Flor garantiu que ele
pagaria a dívida e nunca mais olharia para a tal moça. Impacientes, os
tra cantes deram uma série de socos no abdome de Alan e colocaram o
cano forjado a frio da arma próximo ao nariz da vítima. Nesse momento,
Flordelis pediu para fazer uma oração de despedida.
Mesmo irritados, os marginais permitiram. Feito pastora, a missionária
pediu que eles se dessem as mãos e iniciou a pregação em voz alta no meio
da rua: “Entregamos este pobre rapaz aos seus cuidados, Senhor. Seu corpo
será levado das trevas da noite. Ele está sendo libertado de toda a escuridão
e de toda a dor. [...] Vai partir para além deste mundo. Sua alma será eterna.
[...] Das cinzas às cinzas. Do pó ao pó”. Irritados, os bandidos pediram para
ela encurtar a pregação. “Deus, responda a esses jovens. Se acreditarem na
Sua existência, eles ouvirão a Sua voz como eu ouço agora. Por que punir
seus pares com crueldade? Por que o sacrifício? Por que a dor? Ele vai partir
agora e nunca saberá do tamanho da a ição daqueles deixados para trás,
como sua mãe. Entregamos-lhe esse corpo, Senhor. Peço que tenhas piedade
desses rapazes que o executarão. Eles não sabem o que fazem. [...] Espero
que o Senhor tenha deles a piedade que não estão tendo agora, quando
também estiverem com um fuzil apontado para a cabeça, pois a hora deles
também chegará”. Os tra cantes se entreolharam e re etiram sobre as
palavras da missionária. Um deles tomou a iniciativa de tirar o capuz da
cabeça do jovem. O outro desamarrou a corda e o soltou. Flor se
comprometeu a levá-lo para casa e incentivá-lo a honrar a dívida com os
tra cantes. Com esse tipo de atitude, a missionária ganhava respeito na
favela.
Todas as crianças e adolescentes resgatados chegavam a Flordelis
imundos e exalando um mau cheiro insuportável. Tinham sujeiras escuras
acumuladas atrás da orelha, nas dobras do pescoço, debaixo das unhas e nas
axilas, além de lêndeas, piolhos e carrapatos. Alguns exibiam sarnas na pele
e parasitas nos pelos pubianos, e muitos nem sequer usavam papel higiênico
depois de defecar. Como se fosse um ritual, Flordelis dava pessoalmente um
banho pesado nos novos hóspedes, numa espécie de batismo. Eles cavam
inteiramente nus debaixo do chuveiro e ela os esfregava com uma bucha e
muito sabão de coco. Flor também tirava a roupa nesse banho de boas-
vindas e acabava transando com os “ lhos” que achava interessantes. Os
escolhidos tinham pequenos privilégios, como escolher o canal da TV
sintonizada na sala e dormir em sua cama de casal. Quando chegou, Alan
também foi banhado pela missionária. Conforme contou, ele teria sido
masturbado por ela já no primeiro dia. Outros rapazes que passaram pela
primeira casa de Flordelis con rmaram a prática sexual, classi cada anos
depois pelo Ministério Público como abusiva.
Na madrugada de 23 de julho de 1993, oito meninos que dormiam em
frente à Igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro, foram executados
a tiros disparados por policiais militares à paisana. O crime chocou o país e
o mundo pela brutalidade. O grupo de extermínio se aproximou dos garotos
disfarçado de voluntários. Os assassinos chegaram a distribuir comida a
setenta moradores de rua que dormiam enrolados em sacos na escada da
catedral e sob as marquises dos prédios. Sem piedade, os policiais usaram
fuzis para exterminar oito menores com idade entre 10 e 17 anos, ferindo
mais de uma dezena de garotos. Como revelado depois, o crime foi
motivado por vingança contra o apedrejamento de uma viatura pelos jovens,
ocorrido no dia anterior. O guardador de carros Wagner dos Santos, de 23
anos, tomou quatro tiros e sobreviveu porque se ngiu de morto. Ele se
tornou a única testemunha da tragédia, conhecida mundialmente como
“chacina da Candelária”.
Na semana seguinte, a maioria dos moradores de rua de toda a cidade
do Rio de Janeiro praticamente desapareceu, com medo de ser executada
por policiais. Pedro e Victor, ambos de 15 anos, e Marcelo, 13, estavam no
grupo de meninos amedrontados. No Centro, eles ouviram falar de uma
missionária da Assembleia de Deus acolhedora de adolescentes sem-teto e
correram para lá. Pedro era o mais apavorado. Branco e magricelo, fora
abandonado pelos pais posseiros no município de Santa Rosa, no Rio
Grande do Sul, quando cruzaram a fronteira com o Paraguai até chegar à
cidade de Oberá, onde plantariam ervas. “Eles me deixaram num abrigo
quando eu tinha 10 anos e disseram que viriam me buscar depois. Mas
nunca vieram”, contou Pedro em dezembro de 2021, aos 42 anos. Filho de
pescadores, Victor era baiano de Camaçari e cou órfão aos 7 anos, depois
da morte dos pais num naufrágio. Negro e alto, ensinava capoeira aos
meninos de rua no Centro e para turistas no calçadão de Copacabana. Os
dois amigos chegaram ao Rio de Janeiro pedindo carona pela estrada.
Marcelo era carioca, tinha pais desabrigados e mostrava-se tão desnutrido
que era possível contar suas costelas. Por volta das 23 horas de um domingo,
os três bateram à porta de Flordelis em busca de abrigo e comida. Quem os
atendeu foi Simone. Ela avisou que a casa estava lotada e o trio deu meia-
volta para ir embora. Caminhavam pelo Jacarezinho quando encontraram
Flordelis e seus discípulos fazendo o tal evangelismo da madrugada.
Abordaram a missionária e pediram para dormir na casa dela pelo menos
por uma semana, pois tinham medo de morrer. Flor resgatou os três para
tomarem banho, mas avisou que só teria uma vaga na casa.
O primeiro a entrar no chuveiro foi Pedro, o gaúcho. Em seguida veio
Marcelo, o magricelo. Por último, ela deu um banho bem demorado em
Victor, o baiano capoeirista. Como já era madrugada, serviu a eles um
mingau de amido de milho e os acomodou num único colchão. No dia
seguinte, durante o café da manhã, Flor anunciou com muito pesar que
somente Victor caria. Os três garotos acabaram a refeição, agradeceram o
acolhimento e foram embora juntos, pois eram inseparáveis. De volta à rua,
Victor perguntou como havia sido o banho dado pela missionária. Eles
contaram que ela exagerou ao esfregar a bucha em seus corpos; Victor
revelou, então, que foi tocado e acabou transando com ela sob o chuveiro.
Os dois garotos escaparam das garras de Flor. Pedro pegou carona numa
carreta e foi mendigar no Centro-Oeste. Marcelo desapareceu no mundo.
Sem os amigos, Victor procurou a casa de Flor três meses depois de ter
pisado lá pela primeira vez. Estava em busca de comida, banho e sexo. Flor
adotou o capoeirista, a quem chamava de “ lho”. Os dois dividiram a mesma
cama por duas semanas.
Em maio de 2022, aos 43 anos, Victor morava em Miami, onde mantém
uma academia de lutas há 15 anos. Bastante emocionado, ele deu o seguinte
depoimento: “Fui apaixonado pela mãe Flor por três meses. Depois da gente
transar várias vezes no banheiro da casa da Rua Guarani, ela acabou se
tornando minha única referência sexual. Ela me dava carinho e prazer. Para
quem mora na rua sem pai nem mãe, nem ninguém, receber afeto é uma
dádiva, mesmo que seja de uma mulher de alma deplorável como ela.
Apesar de ter 30 anos na época, Flor parecia mais jovem. Era magra,
sedutora e muito boa na cama. Eu já tinha transado com meninas de rua,
mas nunca rolava sentimento. Com a Flor era diferente. Aprendi muita coisa
com ela. Sou formado em Educação Física e pai de três crianças. Hoje, tenho
plena convicção de que fui abusado sexualmente de forma sistemática pela
Flor, pois eu vivia em condição de extrema vulnerabilidade.
A violência começava nos banhos e terminava na cama dela. Ficava
implícito que, se eu não quisesse mais, teria de sair da casa. Ela nunca
verbalizou isso, mas sempre falava que era preciso ter rotatividade para dar
chance a outros meninos de rua. Um dia, estava jogando videogame com os
meus ‘irmãos’ e ela me chamou para dormir. Eu estava sem a menor vontade
de transar. A gente até tentou, mas não tive ereção. Flor falou ‘tudo bem,
acontece, faremos outro dia’. Em seguida, ela me deu um colchão, me pediu
para sair do quarto e chamou outro ‘ lho’ [Alan] para dormir na cama com
ela. Não fui mandado embora, mas recebi uma punição severa no dia
seguinte. Flor deu o meu colchão para outro rapaz recém-chegado. Tive de
dormir algumas noites sentado numa cadeira da mesa de jantar, com a
cabeça apoiada nos braços. Minha coluna cou dolorida por vários dias.
Para voltar a me deitar num lugar confortável, pedi para fazer sexo e ela
topou. Depois da transa, ganhei novamente um colchão. [...] O que tem de
mais podre nessa história é que eu era abusado e gostava, porque sentia
prazer com aquilo. [...] O sonho de todo garoto de rua era descansar numa
cama macia com uma mulher limpa e cheirosa. Hoje, tenho nojo retroativo
da época em que eu vivia naquele inferno. Morando atualmente bem longe
do Brasil, pensava que havia me livrado de nitivamente dessa predadora
sexual. A verdade é que nunca consegui esquecer Flordelis, embora tenha
feito muito esforço. Até hoje, quando fecho os olhos para dormir, tenho
pesadelos abomináveis com os banhos que esse demônio me dava”.

* * *

De vez em quando, Demóstenes mandava entregar alimentos para Flor e


perguntava sobre o trabalho de recolhimento de crianças de rua. Ela contava
sobre a quantidade que tinha sido acolhida e o pastor a orientava a não
pegar ninguém “muito grande”, porque as pessoas só faziam doações para
crianças. No entanto, na calada da noite preta, Flor e seus guarda-costas – os
dois “ lhos” maiores e mais fortes, que a protegiam dos perigos – só
encontravam adolescentes. Anderson, Victor e Alan, que chamavam a
missionária de mãe, eram os seguranças preferidos. Flávio e Adriano, lhos
de sangue, eram poupados da exposição à violência e cavam sempre em
casa.
Numa das andanças pelos becos do Jacarezinho, Flor encontrou André
Luiz de Oliveira, de 15 anos. Sob o pretexto de livrá-lo do inferno da
cocaína, convidou-o para morar com ela. Flor segurou a mão do rapaz e
perguntou se ele tinha namorada. Diante da resposta negativa, ela fez uma
pregação emocionante para evangelizá-lo, no meio da rua, em plena
madrugada. Explicou que Satanás se disfarçava de tra cante, cuja missão era
levar os viciados para o lugar onde se encontravam as almas dos mortos.
André era um jovem magro, de rosto bonito – ele estava sentado num beco
com mais cinco amigos. Ninguém ali parecia ser sem-teto – pelo contrário,
um deles estava até bem-vestido. Fervorosa, a missionária subiu numa caixa
de madeira e iniciou uma pregação, falando de salvação e esperança. À
medida que Flor discursava, mais gente chegava para ouvi-la. Mas seu olhar
estava xo no rosto de André. A obreira com sonho de ser pastora fez uma
introdução, abriu a Bíblia e leu o salmo 46: “Receba a bênção de Deus na sua
vida! Ele é abençoador [...] Deus é o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem
presente na angústia. Portanto, não temeremos, ainda que a Terra se mude.
Ainda que os montes se transportem para o meio dos mares. Ainda que as
águas rujam e se perturbem, ainda que os montes se abalem pela sua
braveza. Há um rio cujas correntes alegram a cidade de Deus, o santuário
das moradas do Altíssimo. Deus está no meio dela; não se abalará. Deus a
ajudará já ao romper da manhã...” Depois de pregar por meia hora, a
missionária desceu da caixa, caminhou em direção a André, pegou sua mão
suavemente e o levou para morar com ela. Em casa, Flor falou da ducha de
boas-vindas e pediu para ele esperá-la nu no banheiro. Simone olhou para
André tão logo ele chegou e cou interessada nele. O novo morador
correspondeu com uma piscadela. Flor foi até o quintal pegar uma barra de
sabão, mas Simone interpelou a mãe no caminho, tomou dela os itens de
higiene e avisou que faria o batismo de André no chuveiro. Percebendo o
erte entre os dois, a mãe deu seu aval: “Vai em frente, lha”. Na mesma
noite, Simone e André dormiram juntos. No dia seguinte, apaixonada pelo
“irmão adotivo”, ela terminou com Anderson e selou namoro com o novo
hóspede. Como Flordelis incentivava o relacionamento entre os “ lhos”, fez
um culto na sala para abençoar o novo casal. “Que Deus ilumine o caminho
de vocês”, sentenciou. Com o fora de Simone, Anderson saiu de casa
magoado, abandonou a “evangelização da madrugada” e prometeu nunca
mais pisar naquela casa, classi cada por ele como prostíbulo.
Três dias depois de hospedado na Rua Guarani, André recebeu a visita
do irmão Nelson, um adolescente parrudo de 16 anos. Flor se apaixonou
perdidamente pelo garoto e o convidou para morar ali como mais um “ lho”.
Depois do sexo de boas-vindas no banheiro, os dois começaram a namorar.
Nelson passou a fazer chacota do irmão, dizendo que, a partir daquele
momento, ele era seu padrasto. Flor convidou o novo namorado para
integrar a “evangelização da madrugada” juntamente com Victor e Alan. O
quarteto passou a resgatar novos hóspedes nas quebradas do Jacarezinho.
Certa vez, desorientados, eles entraram numa boca e se depararam com um
“cafofo” do Comando Vermelho, onde um grupo de operários do trá co
embalava cocaína em papelotes. Com medo de morrer, Victor, Alan e
Nelson desapareceram em fuga, largando a mãe para trás. Um dos bandidos
apontou um fuzil para o peito de Flordelis, mas foi interpelado por um
companheiro. “Não faz merda. Essa mulher é da igreja. Deve ter errado o
caminho”, ressaltou. Flor foi expulsa da boca depois de prometer nunca mais
passar perto dali. Após o susto e de perceber como os três “ lhos” eram
frouxos, a missionária procurou por Anderson e implorou para ele voltar a
ajudá-la na missão de resgate das crianças de rua. O jovem mostrou-se
irredutível. Numa discussão, culpou a “mãe” pelo rompimento de seu
namoro com Simone, já que foi ela quem recolheu André. Demorou um mês
para Anderson mudar de ideia. Segundo contava aos amigos, ele só retornou
depois de sentir uma forte conexão sexual entre ele e “mãe Flor”. Sentados
lado a lado numa calçada, os dois conversaram sobre os novos termos de seu
retorno à casa e ao projeto da igreja. Anderson impôs três condições para
voltar. A primeira: ele passaria a coordenar a evangelização da madrugada,
pois Flor se mostrava inábil e dispersa nessa tarefa. Segunda: “as adoções”
seriam feitas com planejamento e seguindo critérios técnicos, e não
passionais. Anderson sugeriu ainda descolar esse trabalho “ lantrópico” dos
interesses de Demóstenes.
– Mas a igreja ajuda na alimentação dos meninos – ponderou a
missionária.
– Mãe Flor, você viu o pastor falando em doações de milhões?
– Vi, sim. Esse dinheiro é para ajudar a igreja.
– Você acha justo ele car com esse dinheiro só para ele?
– Isso eu já não sei. Não entendo dessa parte. Estou nesse trabalho
porque sonho em ser pastora.
– Você sonha muito pequeno. Olha, eu vou voltar, mas vou coordenar
esse projeto.
– Obrigada, lho. [...] E qual é a terceira condição? – quis saber Flor.
– Que você me dê um beijo!
Anderson e Flordelis se beijaram longamente. Apaixonada pelo
adolescente, ela terminou com Nelson, que acabou sendo expulso pelo novo
“ lho” da missionária. O casal começou a traçar planos concretos para
ampliar a evangelização da madrugada. Anderson sugeriu que os resgates
fossem feitos também durante o dia no Centro da cidade, usando o mesmo
modus operandi utilizado na “adoção” de Rayane. Depois de horas de
conversas e carinhos, os dois voltaram para casa. Flor seguiu com o ex-
namorado de Simone para o banheiro e deu um longo banho no rapaz.
Depois de transarem, ele passou a chamar a “mãe” carinhosamente de
“amor”, mas ela continuou chamando-o de “ lho”. No início, Simone
estranhou a relação do ex-namorado com a mãe, mas acabou aceitando com
o passar do tempo, haja vista a promiscuidade entre os integrantes da casa.
Anderson obtinha autoridade à medida que ia crescendo. Conquistou
respeito e passou a ser chamado de pai pelos meninos. Aparentemente
submissa, Flor delegava poderes de marido ao namorado dezesseis anos
mais novo. Na favela, os dois andavam de mãos dadas e chocavam a
comunidade, principalmente por Anderson ter se envolvido com a lha de
sua nova namorada – ou seja, com sua enteada. O pastor Demóstenes cou
estupefato com o novo casal, acusou Flor de pedo lia e expulsou os dois da
igreja, avisando inclusive que iria parar de mandar alimentos para a casa da
Rua Guarani. Mas como Flordelis cantava nos cultos de domingo e fazia um
sucesso relativo, os éis começaram a sentir falta dela e pressionaram o
sacerdote. Sem saída, Demóstenes pediu à missionária que voltasse a
congregar em seu templo. Ela impôs uma condição: só retornaria se o
religioso abençoasse seu relacionamento com Anderson. Disfarçando a
contrariedade, Demóstenes bendisse o namoro dos pombinhos, mas frisou
que estava fazendo aquilo em nome da amizade que teve com Chicão.
Cínico, ele recordou o funeral dos músicos do Conjunto Angelical, quando
Flor subiu numa sepultura e cantou à capela. Depois desse elogio, o pastor
passou a maldizer, nas rodas de fofoca, a balzaquiana e seu namorado
adolescente.
Para selar o compromisso publicamente, Flor e Anderson deram uma
festa para cem pessoas no quintal da casa da Rua Guarani. Todo o mundo
compareceu: Carmozina, Laudicéia, Abigail e Fábio. Até Rose e a vizinha
Mariazinha deram as caras por lá. “Essa reunião é para sacramentar a minha
doação. E também para selar o nosso amor. Sentimos que estamos prontos
para assumir futuramente um casamento, né, amor?”, perguntou Anderson,
chocando os presentes. Envergonhada, Flor balançou a cabeça timidamente.
Como toda festa em família que se preze, teve barraco. Indignada com o
“sequestro” do adolescente, a mãe de Anderson, Maria Edna do Carmo
Oliveira, foi até lá para resgatá-lo. “O meu lho não é sem-teto para você
trazer ele pra cá, sua ordinária! Ele é só um menino! Você tem idade para ser
mãe dele, sua vagabunda de igreja!”, esbravejou a mulher, de 40 anos.
Anderson revelou à mãe estar noivando com Flordelis. “Como pode? Isso é
pedo lia, ela me viu grávida de você! Vamos embora desse inferno agora,
senão eu chamo a polícia!”, ameaçou. Baiana e evangélica da Igreja Batista
Central do Jacarezinho, Maria Edna tinha sido vizinha de Carmozina. Por
causa da fama de bruxa da mãe de Flordelis, porém, as duas não eram muito
próximas. Maria Edna cou sabendo pelo pastor Demóstenes que Flor havia
hospedado Anderson em sua casa feito morador de rua e que os dois
acabaram se envolvendo sexualmente. “Ouvi dizer que eles dormem na
mesma cama como se casados fossem. Deus nunca vai aprovar essa pouca-
vergonha!”, cochichou o líder religioso. Firme, Anderson manteve-se
irredutível.
Não havia nada que a mãe pudesse fazer para impedir sua felicidade.
Carmozina acompanhava a confusão de longe, comentando com as lhas
sobre a ascensão e a queda de Flordelis por causa da vida pecaminosa ao
lado do Diabo. No meio da balbúrdia familiar, uma visita ainda mais
indecorosa chegou à festa sem ser convidada. Era uma mulher raquítica,
bêbada e drogada. Ela segurava uma faca enferrujada. Aos berros, assustou
os convidados com a sua presença. Ao avistar Flordelis, a intrusa correu feito
louca em sua direção e aplicou-lhe um mata-leão. Rose reconheceu a mulher
e saiu às pressas do local, com medo de morrer. Imobilizando Flordelis com
seus braços nos, a mulher esfregou a lâmina da faca no rosto da
missionária.
– Devolve a minha lha senão te mato, piranha!
A visitante indesejada era Joana Cara de Cadáver, a sem-teto esquálida
abordada por Flordelis e por Rose na calçada da Praça da República.
Descompensada, a mulher estava decidida a fazer qualquer coisa para reaver
sua criança, roubada de seus braços e já batizada por Flor com o nome de
Rayane.
“O segredo é uma demonstração
incontestável de fé.”

N
a primeira metade da década de 1990, três lideranças evangélicas
dominavam um quadrilátero generoso do Jacarezinho formado pelas
ruas do Rio, Miguel Ângelo, Álvares de Azevedo e pela Avenida Dom
Hélder Câmara. Nesse pedaço importante da favela estava instalada a
Assembleia de Deus administrada pelo pastor Demóstenes, que Flordelis
frequentava com Anderson, seus lhos biológicos e os recolhidos da rua.
Nos cultos de domingo, para deleite dos éis, a missionária soltava a voz
potente em cantos de louvor. No mesmo perímetro cava o centro de
orações e atendimentos espirituais erguido por Carmozina. O espaço de dois
pavimentos foi montado pela bruxa, com a ajuda dos lhos, na Rua Santa
Laura, 36, onde antes funcionava um salão de beleza. Nesse endereço, havia
uma placa da Assembleia de Deus exibida indevidamente na fachada, pois
ela não tinha autorização da cúpula da instituição religiosa para usar a
marca da igreja. Lá, Carmozina previa o futuro, fazia orações de cura e dava
aconselhamentos espirituais. Recebia em dinheiro, mas a cobrança era
discreta e o pagamento, voluntário. “Doe quanto o seu coração puder”, dizia
aos clientes. Três vezes por semana, mesmo sem ter por trás de si um CNPJ
ou qualquer igreja constituída, Carmozina realizava cultos evangélicos lendo
e interpretando a Bíblia de forma teatral. Sem as imagens de Exu Caveira e
São Cipriano, ainda em poder de Flordelis, a velha raramente fazia sessões
análogas ao exorcismo. Mas o Diabo, no conceito dela, aparecia incorporado
em seus clientes por meio da bebida alcoólica ou pelo uso constante de
cocaína, crack ou maconha.
Nessa época, um adolescente de 16 anos chamado Vinícius era levado
com frequência ao “consultório” de Carmozina porque sua mãe, Jacira Alves
Maciel, 36, “tinha certeza” de que Satã possuía o corpo do jovem pelo menos
três vezes no mês e cava dentro dele por até sete dias. Evangélica da Igreja
Deus é Amor, Jacira morria de medo das forças do mal, pois havia
testemunhado cerca de trinta sessões perturbadoras de descarrego no palco
de sua congregação, conhecida pela atuação fervorosa e agressiva dos
pastores. Sem sucesso, o adolescente era submetido a todo tipo de ritual.
“Em um dos cultos, meu lho foi mergulhado num tanque cheio de água
por longos dois minutos. Segundo o pastor, uma experiência de quase morte
o salvaria da maldição do Demônio. Por pouco ele não se afogou, e a gente
foi para casa acreditando em sua cura. Na semana seguinte, ele acordou
novamente possuído, atacou e espancou a irmã de 12 anos”, relatou a mãe.
Em outra sessão, os religiosos da Deus é Amor estiveram em sua casa. Eles
zeram uma corrente de orações e cobraram pelo serviço. Como Jacira não
tinha dinheiro para pagar, os sacerdotes levaram uma TV colorida de 29
polegadas, um aparelho de som – na época conhecido como 3 em 1, por
conter no mesmo equipamento rádio, toca-discos e toca- tas – e todos os
discos de vinil. “Pegaram a minha coleção inteira do Roberto Carlos
alegando que o Diabo estava chegando em casa pelas músicas indecentes do
Rei e pelos programas da Xuxa na televisão”, contou. Em outra visita à casa
de Jacira, os emissários da Deus é Amor suspeitaram que o Demônio estaria
se materializando em um gás clorado e uorado derivado do metano. A
substância altamente in amável era usada em geladeiras e circulava por todo
o circuito do eletrodoméstico, incluindo compressores, válvulas de
expansão, evaporadores e condensadores. Quando abria a porta do
refrigerador para tomar água, portanto, Vinícius inalava o gás tóxico e seu
corpo era tomado pelo espírito do mal. “Queriam levar a minha geladeira
Consul de duas portas, novinha em folha, mas achei um pouco demais. Pedi
para os pastores irem embora e nunca mais fui à igreja deles”, recorda-se a
mãe.
Como o adolescente continuava “conversando com o Diabo”, Jacira
resolveu levá-lo para Carmozina dar um jeito. Na primeira consulta, a bruxa
se trancou com Vinícius no quarto. Jacira cou do lado de fora, a ita. Uma
hora depois Carmozina saiu com o menino e deu um prognóstico
assustador à mãe: “De fato o Diabo está no corpo do garoto. Só vai deixá-lo
em paz depois de o seu lho apodrecer embaixo da terra”. Segundo a bruxa,
Satanás só deixaria Vinícius em paz de forma de nitiva depois de trinta
sessões contendo banhos de ervas e muitas orações. “No nal do ritual,
creia, ele estará livre de espíritos ou entidades sobrenaturais malé cas, além
das energias deletérias”, a rmou a mãe de Flordelis. As atividades seriam
presenciais, pois o problema era considerado grave. Às vezes, quando a
demanda do “cliente” era pequena, bastava ele deixar uma foto e a súplica
religiosa era feita de forma remota. No caso de Vinícius, Jacira deveria pagar
5 reais para cada sessão de oração. Ela achou até barato, pois gastaria bem
menos do que o valor da sua geladeira Consul de duas portas.
Um ano depois de ter alta do “tratamento” de Carmozina, porém,
Vinícius continuava “dialogando” com espíritos inferiores. Jacira já não sabia
mais o que fazer. Na escola, depois de um surto violento, ele agrediu uma
professora com um pedaço de ferro porque ela o mandou calar a boca. Em
seguida, Vinícius começou a quebrar os armários enquanto falava usando
uma voz grave e incompreensível, às vezes misturada a um som semelhante
ao ronco de porco. Os colegas de classe imobilizaram Vinícius e a diretora
acionou a polícia, mas a professora, mesmo machucada, cou com pena e
preferiu chamar uma ambulância, pois o jovem ainda parecia doente. O
menino foi levado a um pronto atendimento e transferido para o Instituto
Municipal Nise da Silveira, no Engenho de Dentro. Lá, os psiquiatras
descobriram o óbvio: o Diabo, ou qualquer um dos seus representantes,
nunca havia se apossado daquele corpo. Vinícius foi diagnosticado com
esquizofrenia e tratado com medicamentos e terapia. Quando Jacira
conversou com os médicos, quase morreu de vergonha com tanta
ignorância. Confrontada, Carmozina defendeu-se dizendo que o Diabo
também se manifesta por meio de “doenças da cabeça”. Enganada por
pastores e pela feiticeira, Jacira passou a duvidar da existência de Satanás
como descrito em cultos de igreja.
A história das religiões mostra que o Diabo é uma invenção dos homens.
Biblicamente falando, é um anjo caído do céu na terra. Ezequiel, um dos
livros proféticos do Antigo Testamento, conta que, antes de Lúcifer
despencar do rmamento, ele havia sido colocado por Deus numa posição
de querubim da guarda, um cargo de destaque em relação às demais
criaturas celestiais. Sábio e formoso, era perfeito para a função. Ou seja, o
Diabo era alguém que gozava de autoridade, privilégios e regalias. No
entanto, segundo outra passagem do livro sagrado (Isaías 14:13-14), Lúcifer
se rebelou e passou a alimentar o desejo obsessivo de ser tal qual seu
Criador. Queria para si o comando do universo e poderes exclusivos de
Deus, como operar milagres. Assim, passaria a ser tão adorado e elogiado
pelos súditos quanto Nosso Senhor. Lúcifer acabou perdendo a disputa, pois
seria impossível vencer a soberania divina apenas com poderes malignos, e
Ele jamais dividiria sua autoridade e glória com quem quer que fosse.
Bem longe das páginas da Bíblia, Satanás, o antagonista de Deus, evoluiu
como entidade histórica, mudando seu per l físico e psicológico com o
único propósito de reforçar a imagem de seu oponente. Esse recurso é muito
utilizado na dramaturgia. O super-herói Batman, por exemplo, não seria tão
grandioso sem a presença do seu maior rival, Joker, vilão conhecido no
Brasil como o diabólico Coringa. Até meados do século VII, porém, Satanás
era um personagem menor, quase um coadjuvante. Naquela época, a
humanidade vivia a expectativa de que o mundo acabaria até a virada do
século X para o XI. Nessa toada, Jesus Cristo voltaria para buscar suas
ovelhas antes do apocalipse. O prazo venceu e nada de o juízo nal chegar. A
partir da reestruturação da igreja, conhecida como Reforma Gregoriana, no
ano de 1073, o Diabo começou a se destacar no cristianismo de forma
pitoresca. Para desassociá-lo da imagem de anjo, teólogos colaram a gura
de Satã a animais considerados grotescos e ridículos, como porcos e
macacos. Existia uma gravura do Demônio com essas características na
Catedral de Santa Maria de Regla de Leão, na Espanha. A obra de arte
mostrava um macaco gargalhando cinicamente ao mesmo tempo que tocava
seu sexo. Essa retratação debochada e risível cou exposta por séculos no
claustro da catedral, onde somente monges e padres podiam vê-la. Por volta
do século XIII, Lúcifer deixou de ser retratado com escárnio e ganhou
contornos bem assustadores. Também na Espanha, o Mosteiro de Santo
Domingo de Silos mostrava o Coisa-ruim retratado com asas de dragão,
garras a adas e chifres pontiagudos, segurando a cabeça decapitada de um
homem com expressão de horror e passando a mensagem subliminar do
medo eterno que os éis deveriam sentir dele.
Para se ter uma ideia de como o per l medonho do Diabo foi difundido
a partir do século XV pela religião e pelas artes plásticas, as gravuras do
juízo nal feitas depois desse período passaram a ser desenhadas tendo o
inferno como cenário e apresentando Lúcifer no papel de protagonista.
Antes, o último julgamento de Deus sobre todos os seres da Terra mostrava
Jesus Cristo em primeiro plano diante dos cristãos e seu oponente era
retratado de forma diminuta. A partir do Renascimento, marcado pela
transição da Idade Média para a Moderna, Satanás ganhou a forma de um
homem majestoso, pintado e esculpido com uma personalidade sedutora,
manipuladora e narcisista.
No livro O Diabo no imaginário cristão, Carlos Roberto Figueiredo
Nogueira, professor de História da Universidade de São Paulo (USP), diz
que a ideia de Satã como um ser astuto e maligno tem como principal
objetivo provocar a perdição eterna do ser humano, reforçando a batalha
in nda entre as forças da bondade e os poderes do mal. Hoje, padres
católicos e pastores protestantes pregam sistematicamente nos púlpitos e nos
palcos dos templos que o inimigo de Deus é quase tão poderoso quanto Ele.
Essa falácia tem como único objetivo exercer o poder por meio do medo,
exatamente como zeram os pastores da Igreja Deus é Amor quando
“atenderam” o lho de Jacira. Ou quando Carmozina tentou convencer
Amilton de que ele caiu do teto da igreja e perdeu o dedo numa máquina de
cortar papel por ter se afastado de Deus e, consequentemente, chegado mais
perto do Diabo.
Mesmo decepcionada com líderes religiosos picaretas, Jacira não
arredou o pé do protestantismo. A cerca de 300 metros do centro de cura de
Carmozina, Rose, a ex-namorada de Amilton, realizava um sonho antigo:
atuava como pastora numa unidade bem simples da Igreja Evangélica de
Con ssão Luterana no Brasil (IECLB), a terceira liderança pentecostal do
entorno. O centro tinha trinta cadeiras de plástico simples e um sistema de
som com microfones e caixas acústicas doados por éis. Rose conseguia
lotar o espaço nas noites de sábado e domingo. No início, seus éis eram
egressos da Assembleia de Deus. Jacira já conhecia a moça da vizinhança e
passou a frequentar seus cultos. Certo domingo, apenas quatro pessoas
compareceram para ouvi-la – incluindo a mãe de Vinícius –, contra trinta da
semana anterior. No meio da pregação, ao perguntar pelo restante de seu
público, Rose ouviu de uma mulher que Carmozina havia feito um corpo a
corpo e conseguira “roubar” quase todas as suas ovelhas usando a
maledicência como arma. A bruxa primeiro investiu contra as ovelhas de
Rose contando com detalhes passagens da sua vida de periguete. No entanto,
nem todo mundo acreditava na fofoca. Para provar o que dizia, Carmozina
remexeu as coisas de Amilton ainda guardadas numa gaveta. Encontrou
negativos de diversas fotos em que Rose estava de minissaia e outras na qual
usava apenas calcinha e sutiã. A velha selecionou os negativos mais picantes
e os colocou num objeto muito popular na época, conhecido como
monóculo. Trata-se de uma peça de plástico em formato cônico medindo
cerca de 3 cm de comprimento. Geralmente colorido, o monóculo tem
numa das extremidades uma lente e, na outra, uma tampa branca, na qual é
encaixado o pequeno fotograma. Para ver com clareza a imagem, a pessoa
tem de fechar um dos olhos, apontar o monóculo para a luz e olhar com o
outro olho o fundo da peça. Carmozina colocou dois negativos de Rose nos
objetos e fazia deles chaveirinhos. Andou pelo bairro contando às ovelhas da
sua rival como a ex-nora era depravada. Quando uma crente dizia não
acreditar, a feiticeira mostrava os monóculos com imagens
comprometedoras de Rose. Com esse estratagema, a bruxa do Jacarezinho
conseguiu esvaziar a igreja da inimiga.
Revoltada com a concorrência desleal, Rose cerrou as portas e foi até o
centro de Carmozina, que estava lotado. Do lado de fora, a pastora gritou
bem alto para todo o mundo ouvir que Carmozina era uma feiticeira e que
Flordelis roubava crianças. A velha devolveu as acusações responsabilizando
a pastora pela morte de Amilton. “Essa vagabunda guiou meu lho para o
mau caminho, até ele se matar na piscina do clube”, acusou. Para rebater a
injúria, Rose revelou que a ex-sogra manteve em casa imagens de São
Cipriano e A Bíblia Satânica. Nesse momento, Carmozina se calou. Seu
centro foi se esvaziando e os éis começaram a chamá-la de “bruxa”
repetidas vezes. Jacira aproveitou para acusar a velha de impostora. O
barraco religioso rapidamente chegou aos ouvidos de Demóstenes, que foi
até lá tentar apaziguar a guerra santa. A confusão só parou com a presença
da polícia. Com medo de ser presa e temendo ser linchada como seu irmão
Miquelino, Carmozina fechou o ponto de cura. No passado, chamar uma
mulher de bruxa equivalia a declarar sua sentença de morte: durante a
Inquisição católica, no século XV, as ditas feiticeiras eram queimadas na
fogueira. O termo “caça às bruxas” se espalhou, então, para de nir a
perseguição ocorrida a quem supostamente manifestava poderes
sobrenaturais.
Em meados dos anos 1970, as regiões mais pobres do Rio de Janeiro
mudaram radicalmente o per l religioso. Em áreas de in uência majoritária
do catolicismo, as práticas de umbanda e candomblé também eram adotadas
por boa parcela da população, muitas vezes simultaneamente aos rituais
católicos. A partir dos anos 1980, no Brasil como um todo, mas
especialmente na capital uminense, as denominações evangélicas
ganharam força. Novos ramos ligados ao neopentecostalismo – baseados na
chamada Teologia da Prosperidade, que prometia aos éis recompensa
divina imediata durante sua passagem terrena – conquistaram quase metade
da população das favelas do Rio de Janeiro. Desde essa época, as igrejas
expandiram suas atividades missionárias para estabelecimentos
penitenciários e conseguiram alta taxa de conversão entre os reclusos. Esses
lugares sempre representaram um espaço-chave para a formação de
organizações criminosas. Todas as grandes facções de narcotrá co, como
Comando Vermelho, Terceiro Comando e Primeiro Comando da Capital
(PCC), foram fundadas em prisões. Pouco tempo depois, o primeiro grupo
narcopentecostal conhecido foi fundado como uma subfacção do Terceiro
Comando Puro: o Bonde de Jesus. Além de controlar o trá co no bairro do
Parque Paulista, no município do Rio de Janeiro, os chamados “soldados de
Jesus” atacaram e vandalizaram vários templos de candomblé e de umbanda,
expulsando os sacerdotes de seus territórios.
Desde então, a perseguição não só a religiões afro-brasileiras, mas
também a padres católicos, tem sido relatada em várias favelas – só entre
2019 e 2022, o Ministério Público contabilizou mais de 150 atos de agressão
contra terreiros e líderes de umbanda e candomblé em comunidades
carentes do Rio. A majoritária presença evangélica em estabelecimentos
penitenciários tem se traduzido na conversão de tra cantes. Enquanto
cumpriam sentenças em prisões estaduais, vários líderes do Terceiro
Comando Puro, principal rival do Comando Vermelho, aderiram ao
neopentecostalismo. O cenário radical tornou o ambiente mais difícil para
guras como Carmozina. Se no passado ser chamada de bruxa representava
medo, mas também poder e respeito, a denominação voltou a ser
equivalente a uma sentença de morte. Tra cantes têm agredido, expulsado e
até matado pessoas que insistem em declarar fé na prática de religiões de
matrizes africanas.
Acusada de bruxaria, Carmozina entrou em depressão e foi cercada pelo
carinho dos lhos, exceto Flordelis. As duas não tinham rompido, mas
acabaram se afastando por motivos até então desconhecidos. Para as irmãs,
Flor dizia que não tinha tempo para visitar a mãe. “Meus lhos tomam todo
o meu tempo”, reclamava a missionária. Para integrantes da igreja de
Demóstenes, Flor falou ter cado decepcionada com o fato de Carmozina
não apoiar seu romance com Anderson nem sua missão de resgatar crianças
de rua, vítimas do trá co e do abandono. Carmozina teria deixado claro ser
contra a tal “evangelização da madrugada” depois do barraco promovido por
Joana Cara de Cadáver na festa de noivado de Flor. A moradora de rua
acusou a cantora de ter roubado Rayane de seus braços e avançou sobre ela
com uma faca. Anderson e Flávio conseguiram desarmá-la. Um dos
convidados chamou a polícia. Endividada até o pescoço com tra cantes,
Cara de Cadáver fugiu prometendo voltar. Na mesma festa, Flor ainda teve
de enfrentar a fúria de Maria Edna, mãe de Anderson, que não aceitava o
namoro do adolescente de 16 anos com uma mulher de 33. Carmozina
também amaldiçoava o enlace porque o rapaz havia sido namorado da neta.
Flordelis e Anderson se juntaram mesmo assim, rompendo com quem não
abençoava a relação. Junto, o casal estava determinado a seguir carreira
religiosa na Assembleia de Deus do Jacarezinho.
No início, os planos de Anderson eram ambiciosos. Conforme já dito à
esposa, ele pensava em transformar sua casa num abrigo para menores
abandonados. Segundo imaginava, com a visibilidade do trabalho
lantrópico, ele e Flor conseguiriam aparecer na televisão e chamar a
atenção da cúpula da Assembleia de Deus do Rio de Janeiro. Com o
prestígio, o casal fundaria sua própria lial da agremiação e surrupiaria o
posto de Demóstenes, então o maior expoente da igreja no Jacarezinho.
Havia, no entanto, um enorme obstáculo a ser vencido: ao contrário de
Demóstenes, Flor e Anderson não tinham ligações estreitas com o Comando
Vermelho. Àquela altura, os laços do pastor experiente com tra cantes eram
tão apertados que ele recebia deles, além do dízimo, donativos e ajuda
nanceira até em situações de crise, como alagamentos. Para preservar a
imagem da Assembleia de Deus e manter a relação com o CV amigável,
porém, ele ainda mantinha proibido em seu púlpito o testemunho de ex-
tra cantes convertidos. Seus inimigos o acusavam de esconder quadrilhas
inteiras nas dependências do templo quando ocorriam investidas da Polícia
Militar nas bocas do Jacarezinho. O religioso negou essa proteção e, segundo
assegurou, fazia questão de chamar os policiais para mostrar cada canto do
templo administrado por ele. Com o passar do tempo, Demóstenes começou
a ser assediado por políticos da periferia e passou a sonhar em ser vereador,
prefeito e até governador. No início da década de 1990, ele recebia com
frequência a visita do renomado arquiteto Luiz Paulo Conde, eleito prefeito
do Rio de Janeiro em 1993. Conde falava com Demóstenes sobre a
reurbanização das comunidades cariocas e colaborava com as obras de
reforma da igreja. A promiscuidade do pastor com a máquina pública
despertou ainda mais cobiça em Anderson e Flordelis.
O prestígio de Demóstenes caiu por terra em 1994, quando se envolveu
num escândalo sexual. Preocupado com a ascensão da Igreja Evangélica de
Con ssão Luterana no Brasil, ele chamou para conversar em seu gabinete
uma missionária chamada Taís, na época com 18 anos. A jovem era bonita,
carismática e atuava como braço direito de Rose, já com 39 anos. Segundo o
pastor havia apurado no bairro, Taís era uma grande mobilizadora de jovens
e eles vinham lotando os cultos da concorrência. No encontro a sós,
Demóstenes mostrou como a Assembleia de Deus vinha se expandindo cada
vez mais no Jacarezinho. O líder falava do crescimento da sua igreja e fazia
observações negativas sobre a Con ssão Luterana no Brasil, como a
admissão de gays em seus quadros, considerada por ele uma afronta a Deus.
“Onde já se viu veados pastorando ovelhas? Onde? Só no inferno!”,
debochava. Na conversa com Taís, Demóstenes falou dos planos da
Assembleia de Deus de ordenar mulheres e ofereceu a ela trabalhar como
obreira, auxiliando em seus cultos e ganhando na carteira de trabalho meio
salário mínimo por mês. Os olhos de Taís brilharam com a promessa. A
missionária pontuou, inclusive, ser totalmente contra a corrente da
Con ssão Luterana defensora dos homossexuais. “Realmente não tem como
um homem que se deita com outro homem subir ao altar e congregar em
nome de Deus”, frisou a religiosa. “Algumas igrejas, principalmente essas que
crescem sem muitos critérios, são moradia do Diabo. Por isso elas aceitam
disparates, como a pederastia e o adultério”, falou Demóstenes, com 53 anos
na época, casado com uma professora e pai de três lhos. Taís já havia
perguntado a Rose sobre a possibilidade de um dia tornar-se pastora. A
líder, no entanto, apontou a pouca idade da cordeirinha como obstáculo
para chegar a um posto tão elevado na congregação. “Para ser pastora na
minha igreja, a candidata precisa ter experiência de vida”, justi cou Rose.
Enquanto Taís reclamava da carreira religiosa, Demóstenes agia feito
Satanás. Ele estava sentado à mesa do escritório, do lado oposto da garota.
Alto, magro e vestido com camisa e calça sociais, o pastor pegou uma Bíblia,
levantou-se, deu a volta na mesa e cou atrás de Taís, que se manteve
estática. “Filha, aqui não exijo experiência de vida das minhas ovelhas para
servir a Deus. Se vier para a nossa igreja, você vai comandar todos os tipos
de culto: o dominical, denominado de celebração a Deus, pai todo-
poderoso; o culto de oração das terças-feiras e o estudo bíblico das sextas.
Você tem ideia da multidão de ovelhas que estarão aos seus pés?”,
vislumbrou. Taís cou em êxtase, imaginando-se no palco de um templo
grande como aquele. Enquanto ela sonhava acordada, Demóstenes prendeu
a Bíblia numa das axilas e começou a fazer uma massagem relaxante nos
ombros da missionária concorrente. Inebriada, ela não se opôs. Pelo
contrário, relaxou os músculos do trapézio e levantou e abaixou os ombros,
para reduzir a tensão. “Me fale uma coisa: em quanto tempo eu me tornaria
pastora se começasse amanhã como obreira?”, quis saber a jovem carreirista.
Antes de responder, Demóstenes se aproximou ainda mais de Taís e,
mesmo sem tirar a calça, esfregou seu pênis ereto na nuca da garota. “Isso
dependerá exclusivamente de você, irmã”, respondeu. “A pastora Rose
trabalhou aqui na sua igreja por uma década e nunca passou do cargo de
obreira”, argumentou Taís. “Com o passar do tempo, Rose tornou-se uma
ovelha maltratada pela vida, sem muito a oferecer. E ela ainda tem a mácula
dos negativos de puta nos monóculos da bruxa. O Jacarezinho todo viu
aquela indecência...”, ponderou Demóstenes, enquanto se esfregava na moça.
Ao ouvir o barulhinho do zíper da calça do pastor se abrindo, Taís teve um
sobressalto e correu do assediador. Tentou sair pela porta, mas estava
trancada. Demóstenes pediu mil desculpas enquanto fechava a calça. “Basta
uma distração para o Diabo entrar no nosso corpo e alterar a circulação
sanguínea do homem. Aí a gente acaba fazendo coisas erradas mesmo sem
nossa vontade. [...] Mas o segredo é uma demonstração irrefutável de fé, viu,
minha lha?”, justi cou. Taís soltou um grito estridente. Funcionárias da
Assembleia de Deus bateram na porta até o religioso abri-la. A jovem saiu de
lá correndo com sua Bíblia. No mesmo dia, contou para toda a favela ter
sido vítima de abuso sexual. Foi até uma delegacia, mas os policiais disseram
que a situação caracterizava constrangimento, e não assédio, pois “o pastor
não chegara a pôr o pênis para fora da calça e nada havia sido forçado”.
“Além do mais, é difícil para o homem controlar uma ereção quando ele ca
diante de uma mulher bonita como você”, justi cou o delegado, em 1994.
Quando ouviu o relato de Taís, Rose se encarregou de denunciar
Demóstenes na cúpula da Assembleia de Deus do Rio de Janeiro. No
primeiro momento, falaram em transferi-lo para um templo de Bonsucesso
após a próxima assembleia geral ordinária da convenção dos ministros das
igrejas evangélicas Assembleia de Deus, marcada para dali a seis meses. Rose
não quis esperar e ameaçou levar o escândalo a uma emissora de televisão
de alcance nacional. Com medo da publicidade negativa, a instituição
tomou providências imediatas. Demóstenes desapareceu do Jacarezinho sem
deixar vestígios. Com isso, o cargo de pastor na unidade próxima à casa de
Carmozina cou vago e muitas lideranças se candidataram ao posto.
Pretensiosos, Anderson e Flordelis bolaram um plano audacioso para
assumir a função no médio prazo – e isso incluía intensi car os trabalhos de
resgate de meninos de rua para se cacifar junto à administração da
Assembleia de Deus.
Humilhada e deprimida, Carmozina vestiu-se de branco e foi conversar
com Deus às 18 horas na gruta escura, localizada atrás da Capela das Almas.
Segurando uma Bíblia, a bruxa entrou pela abertura estreita e caminhou
pelo túnel por 200 metros até chegar numa bifurcação. Em silêncio e sem
enxergar um palmo diante do nariz, ela apalpou as paredes até encontrar
uma rocha, onde se sentou. Depois de orar por quarenta minutos, surgiu
uma luz branca e brilhante no fundo do túnel. Ao ouvir gritos com ecos,
resolveu caminhar a passos lentos na direção da entrada. Carmozina sentiu
que estava sendo seguida no breu. Ficou com medo de olhar para trás.
Ouviu uma voz rouca masculina chamar por seu nome. A velha apressou os
passos. “Não adianta fugir de mim, sua bruxa decrépita!”, gritou Miquelino,
materializando-se em frente à irmã. Logo atrás surgiu o exército de espíritos
de pessoas escravizadas. Eles estavam com aparência deformada, como na
outra vez. Um deles tinha uma corrente amarrada ao pescoço de forma tão
apertada e há tanto tempo que os elos metálicos amassavam seus músculos
posturais. Uma senhora chegou bem depois da comitiva de mortos porque
caminhava lentamente, apoiada pelas paredes do túnel. Sem os pés, suas
pernas começavam na altura dos tornozelos. Miquelino soltou uma
gargalhada diabólica:
– Olha só para você, minha irmã. Está um trapo de pessoa!
– Minha vida foi para o buraco depois que o Chicão morreu!
– Sua vida virou uma merda depois que você roubou minhas imagens,
sua bandida!
– Elas não estão mais comigo!
– Eu sei. Elas estão com a sua lha, aquela lha de Satanás! Mas só vejo
fantasmas e ruínas na vida dessa infeliz.
– Me perdoa, meu irmão!
– Você não precisa da minha clemência. A noite escura será o seu
lamento!
Carmozina tentou se afastar do irmão, mas os espíritos das pessoas
escravizadas impediram. Miquelino a segurou pelo braço.
– Você é uma farsa, tal qual a sua lha. O destino de vocês será muito
pior do que o meu. O inferno será pouco para abrigar almas tão pequenas
quanto as suas.
Carmozina conseguiu se livrar de Miquelino e correu pela galeria em
direção à luz brilhosa. Adiante, deparou-se cum o vulto de um rapaz
banhado de sangue. Era Amilton, que suplicava:
– Mãe, eu tentei ser um bom lho, mas não consegui. Me desculpe!
– Está desculpado! Por onde é a saída desse inferno?
– Mãe, a Rose é uma pessoa de coração bom. Não faça mal a ela, por
favor!
Carmozina soltou um grito e correu feito louca pelo túnel até encontrar
a saída. Prometeu para si nunca mais pisar naquele buraco. Em casa,
comentou com Abigail e Laudicéia que vira Amilton e Miquelino na gruta.
As duas não ligaram para as alucinações da mãe. Depois de tomar um
banho, a bruxa foi à delegacia do Centro do Rio de Janeiro e acusou
Flordelis de sequestro de crianças. “Minha lha nge que está adotando
menores abandonados. Na verdade, ela está roubando os lhos dos outros
para formar uma quadrilha!”, denunciou a bruxa.

* * *

Na primeira metade da década de 1990, a casa da Rua Guarani era


marcada por um entra e sai de gente. Até então, Mãe Flor já havia “adotado”
Rayane, Suzy, André Luiz e Anderson. [Adotado, aqui, está entre aspas
porque o processo de per lhação nunca foi constituído legalmente pela
missionária]. Para recapitular: Suzy foi tomada de volta pela mãe biológica,
Rayane permanecia com ela, o “ lho” André Luiz acabou se casando com a
“irmã” Simone, tornando-se “genro” de Flor, e o “ lho” Anderson foi
promovido à condição de noivo de sua “genitora”. Mas o rapaz continuava
chamando a missionária de “mãe”, apesar de transarem todos os dias. Nessa
barafunda, a chegada de mais quatro jovens selaria a escalação dos dez
principais “ lhos” de Flordelis, formando a linha de frente da grande família
– cujo futuro estava fadado a acabar em tragédia, conforme havia
profetizado Carmozina anos antes. Na nova leva de agregados, o primeiro a
chegar foi Carlos Ubiraci Francisco da Silva, de 18 anos. Dependente de
cocaína desde os 12, ele nunca morou na rua, como Flor e ele gostavam de
dizer. O jovem vivia com os pais, Carlos Alberto Francisco Silva e Marli
Benvindo Silva, no bairro de Comendador Soares, município de Nova
Iguaçu (RJ), até desestruturar o próprio lar ao começar a vender os móveis
de casa para comprar drogas. Sem saber como agir, seus pais passaram a
discutir diariamente por causa do vício do rapaz. No turbilhão, o pai saiu de
casa para viver com uma amante. A mãe nem fez objeção, mas exigiu que o
ex-marido levasse o lho drogado com ele, o que não foi feito. Rejeitado aos
16 anos, o adolescente foi morar num barraco do Jacarezinho com um
amigo tra cante. Aos 18, ele se alistou e entrou no Exército, onde criou
gosto por armas. Menos de um ano depois, pediu dispensa porque não
aguentava viver sem cheirar pó. De volta à vida civil, Carlos Ubiraci pediu
emprego no Comando Vermelho e trabalhou como “soldado” da facção,
vigiando as bocas armado com fuzil e granada.
O jovem chegou a fazer carreira no crime, atuando como segurança
particular de Sandra Sapatão, uma das tra cantes mais promissoras do CV
na época. Mas uma regra do estatuto do trá co proíbe terminantemente seus
“funcionários” de usarem as drogas produzidas pela boca. Carlos Ubiraci
não só violou esse mandamento como foi capaz de furtar papelotes de
cocaína no “cafofo” onde estava lotado. Para ele não morrer executado por
tiros de metralhadora, Sandra Sapatão, uma bandida de coração mole,
permitiu que Carlos Ubiraci escapasse. Mas havia uma condição: se ele
pisasse na boca novamente, seria fuzilado sem dó nem piedade.
Perambulando do outro lado da favela, o rapaz conheceu uma garota de rua
e os dois se envolveram. Ela o levou a um culto na Assembleia de Deus e
Carlos ouviu Flordelis falando sobre os dois únicos ns destinados aos
usuários de entorpecentes: a cadeia ou a morte. Comovido, ele pediu ajuda à
missionária. Mas quem o acolheu foi Anderson.
Na época, Carlos Ubiraci era alto e forte, atraente aos olhos das
mulheres. Flordelis e Anderson o levaram para casa. Ela, como sempre, deu
um longo banho de boas-vindas no novo “ lho”. O batizado aconteceu no
banheiro de piso marrom e azulejos bege com desenhos de ores. “Não
posso ser sua mãe biológica, mas posso ser sua mãe de coração”, anunciou
Flor, enquanto passava bucha de banho no corpo nu do rapaz. No início,
Carlos Ubiraci cava recolhido, circunspecto, pelos cantos da casa. De noite,
quando todo o mundo dormia, escapava para consumir álcool, cigarro,
heroína, crack, cola de sapateiro, acetona, cocaína e maconha. Voltava no dia
seguinte feito um zumbi. Para curar a dependência química do “ lho”, Flor
iniciou uma corrente de oração na casa com todos de mãos dadas. Segundo
ela, o Diabo tinha de ser extirpado do corpo da pobre criatura. Todos
gritavam “Sai, Satanás! Sai, Satanás! Sai, Satanás!”, e nada. A sessão
terminava com Carlos Ubiraci ressacado e sonolento. No dia seguinte, ele
fugia novamente para se drogar nas ruas e chegava detonado.
Com pena, Anderson pegava o rapaz pelas mãos e o levava para
mergulhar no mar de Copacabana, na esperança de recuperá-lo. Mas nada
parecia fazer Carlos Ubiraci se livrar da dependência química. No auge das
crises, sem dinheiro, ele seguia para os becos da Central do Brasil e
comprava cocaína batizada (malhada) ao custo de 5 reais o papelote.
Adulterado, o narcótico continha metilanfetamina, metilfenidato,
maltodextrina, efedrina, manitol, inositol, bicarbonato de sódio, sacarina e
até farinha de arroz branco, para dar volume e consistência. O combo
explosivo causava mais danos à saúde física e mental do jovem.
Cansada de ver o “ lho” padecendo, Flordelis aplicou nele um
tratamento mais radical, adaptado do livro de São Cipriano: trancou o rapaz
em seu quarto, deixando-o lá por 48 horas a pão e água. No con namento,
havia uma cama de casal, cômoda, penteadeira, dois móveis de cabeceira e
um guarda-roupa de seis portas. Con nado, Carlos Ubiraci teve a síndrome
de abstinência aguda, iniciada com insônia e tremores leves. Rapidamente, a
crise evoluiu para convulsão, hiperatividade, alucinação e descontrole
psicomotor. Privado de liberdade, ele gritava feito louco. Na sala, Simone e
seu namorado André Luiz, Flávio, Adriano e Rayane estavam assustados
com os berros. Anderson achou melhor deixá-lo sair, mas Flordelis o
impediu. “O Demônio está quase se esvaindo do corpo dessa pobre ovelha”,
assegurou, iniciando mais uma rodada de oração. Endiabrado, Carlos
Ubiraci começou a quebrar os móveis do quarto. A penteadeira cou
totalmente destruída e a mesa de cabeceira foi atirada contra a janela,
arrombando-a. Apavoradas, as crianças da missionária saíram às pressas da
casa. Flordelis e Anderson entraram no quarto justamente quando o rapaz
virava o guarda-roupa com toda a força. Com a queda do móvel, a caixa
onde estavam escondidos os apetrechos de Carmozina se abriu, revelando as
imagens ocas de São Cipriano e Exu Caveira, assim como A Bíblia Satânica,
de autoria de Anton Szandor Lavey. Anderson trancou a porta do quarto por
dentro. Intrigado, perguntou a Flor como aqueles artigos religiosos foram
parar ali. A missionária contou ter recebido os apetrechos de presente da
mãe, que, por sua vez, teria herdado de Miquelino. Anderson cou curioso,
mas deixou o assunto para depois. Mais calmo com a presença dos pais
adotivos, Carlos Ubiraci pediu “por favor” para sair. Flordelis sentou-se no
chão, deitou o “ lho” no colo e iniciou suavemente uma cantiga de ninar.
Enquanto isso, Anderson pegou o pôster de Baphomet e olhou cada detalhe
da imagem intrigante. Carlos Ubiraci cou isolado por mais uma semana no
quarto do casal e saiu de lá, segundo seu próprio relato, curado da
dependência das drogas, graças às orações poderosas da Mãe Flor.
O segundo “ lho” acolhido na nova temporada da grande família foi
Wagner Andrade Pimenta. Flor gostava de contar que ele havia sido
resgatado do trá co, assim como Carlos Ubiraci, mas era outra mentira: ele
nunca usou drogas nem foi morador de rua, como alguns integrantes de sua
gangue. Com 12 anos, Wagner primeiro fez amizade com André Luiz,
namorado de Simone. Só depois passou a frequentar a casa da Rua Guarani
e logo chamou a atenção de Flor e Anderson pela beleza. Nessa época, os
dois já concebiam o projeto de aumentar a ninhada para criar projetos
sociais e se cacifar ao posto de pastor deixado por Demóstenes na
Assembleia de Deus. Ao casal, Wagner contou morar com os pais no
Jacarezinho, mas eles seriam tão pobres que não tinham condição de
comprar brinquedos para ele nem no Natal. Flor o atraiu com o videogame
dado de presente para Flávio e também comprou um time de futebol de
botão para ele disputar partidas com os demais adolescentes da casa. Três
dias depois, houve um revés. Edson e Áurea Pimenta, pais biológicos de
Wagner, foram até lá buscar o garoto, que acreditavam estar com Flor por
in uência de André Luiz. Em outra ocasião, Wagner havia passado dois dias
na casa de outro amigo sem comunicar aos pais. Dessa vez, como castigo,
levou uma surra de cinta. Uma semana depois, Wagner foi abordado no
caminho da escola por Flordelis. O menino mostrou os hematomas da
violência paterna e a missionária o levou para casa mais uma vez. Na
chegada, Wagner foi levado ao banheiro pela missionária e os dois
transaram, segundo relatos de outros moradores da casa. Flor e Wagner
zeram sexo muitas outras vezes, inclusive com o consentimento de
Anderson, mas os dois contestaram a existência de contato mais íntimo
entre eles. “Sempre o amei como lho”, disse Flor. Passados quinze dias dessa
nova estada na casa da Rua Guarani, Wagner recebeu outra visita do pai, que
foi buscá-lo mais uma vez com a cinta nas mãos. Ninguém o atendeu. À
noite, Áurea, a mãe, foi até lá e confrontou Flor:
– Vim buscar o meu lho, sua ladra! – anunciou a mãe.
– Ele simplesmente não quer ir – argumentou Flor.
– Essa decisão não cabe a ele!
– O menino só sai daqui se ele quiser, pois fez relatos de violência,
espancamentos e tortura! – acusou Anderson.
– Isso não é verdade!
– Se insistir, vamos chamar a polícia e a senhora vai presa por maus
tratos!
Flor pegou Wagner pelo braço e mostrou a Áurea as marcas da violência
em seu corpo. Diante da ameaça, a mãe deixou o lho lá por mais uma
semana. Durante três meses, os pais de Wagner iam dia sim, dia não à casa
da Rua Guarani, na esperança de recuperar o garoto. Numa dessas
investidas, Simone abriu a porta e os deixou aguardando na sala. Wagner foi
ao encontro de Áurea e implorou para car na casa. Nessa conversa, ele se
referiu à mãe pelo nome dela, deixando-a arrasada. “Por que você não me
chama mais de mãe?”, quis saber. “Porque minha mãe agora é a Flor!”,
anunciou. Devastada, Áurea saiu de lá aos prantos, mas não desistiu. Voltava
lá praticamente toda semana. Depois, passou a ir uma vez a cada quinze
dias. E, mais tarde, uma ao mês. Em todas as tentativas, Wagner insistia em
car. Em uma das últimas visitas, Áurea estava decidida a levar o menino à
força. No início das “adoções”, chamava atenção a forma combativa como
Anderson e Flor defendiam os garotos roubados da rua, como se fossem
realmente pais deles. A veemência do casal, às vezes, beirava a loucura.
Anderson pegou um pedaço de pau para impedir que Áurea levasse Wagner,
demonstrando ser capaz de atos violentos “para defender um lho”. “Ele só
sai daqui por livre e espontânea vontade”, pontuou, fora de si. “O Wagner
agora é nosso lho. Deus o tomou de você e nos deu de presente!”, gritava
Flor, possuída. Envolvida em outros problemas de ordem doméstica, Áurea
desistiu de tentar convencer o moço a sair das garras da missionária. Um
ano depois, ela e Edson até voltaram para visitá-lo, mas nem sequer foram
recebidos. Com o passar do tempo, desistiram de vez. Wagner xou
residência na casa da Mãe Flor de forma de nitiva.
O terceiro elemento recrutado para o núcleo principal da família foi
Alexsander Felipe Matos Mendes, com 14 anos na época. Filho de espíritas,
morava numa casa no Jacarezinho, onde todas as noites eram realizados
rituais conhecidos na época como “mesa branca”. Os pais de Alexsander se
reuniam com pessoas autointituladas médiuns para “ajudar espíritos
obsessores a encontrarem o caminho do bem”, segundo de niam. Coberta
com uma toalha branca, a mesa de jantar da família cava completamente
vazia e iluminada à meia-luz. Não era permitido acender velas. Em poucos
minutos, os médiuns tinham o corpo supostamente tomado por espíritos de
pessoas mortas e começavam a sussurrar, repassando instruções para os
vivos em volta da mesa. Algumas pessoas anotavam em cadernos as
instruções sobrenaturais. Alexsander cava assustado com a liturgia e, com
o tempo, foi se distanciando emocionalmente dos pais.
Quando o adolescente começou a ser levado por uma namorada aos
cultos da Assembleia de Deus, houve con itos religiosos dentro de casa.
Alexsander foi acusado e perseguido pelos pais por ter o corpo,
supostamente, tomado por espíritos obsessores de assassinos já falecidos. As
brigas familiares culminaram com a expulsão de Alexsander, que foi morar
temporariamente debaixo do viaduto San Tiago Dantas, um elevado
localizado na praia de Botafogo, bem perto do Palácio Guanabara, sede
o cial do governo do estado do Rio de Janeiro. O local era ponto de
encontro de moradores de rua. Flordelis passou por lá e acolheu o novo
“ lho”. Mas, como sempre ocorria, os pais foram buscá-lo uma semana
depois. Para variar, a missionária ofereceu resistência para entregá-lo.
“Alexsander agora é meu lho. Sai daqui, Satã!”, berrou Mãe Flor,
endemoniada. O casal chegou a dar queixa na delegacia do bairro por
sequestro. Policiais foram três vezes à Rua Guarani, mas em nenhuma delas
a vítima estava presente. Os pais do menino resolveram, então, entrar com
uma ação judicial na Vara da Infância e Adolescência do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, mas o processo não chegou à fase de instrução.
Alexsander acabou integrado de nitivamente ao bando da Mãe Flor.
Por último, a missionária “adotou” uma garota chamada Cristiana
Rangel dos Passos Silva, de 10 anos, oriunda da vizinhança. Segundo relatos
da família, a menina também tinha história comovente. Filha de um casal
paupérrimo, morava num casebre de 30 metros quadrados coberto por lona,
bem próximo do rio Jacaré. Os pais saíam para trabalhar todos os dias na
feira da Glória e deixavam a criança trancada em casa, sozinha, sem um
brinquedo para se distrair. Certo dia, um temporal de quatro horas elevou o
nível do rio para além do esperado, alagando a parte rebaixada do bairro
mais próxima do córrego. Presa, Cristiana estava quase se afogando quando
teria sido avistada por Simone, que passava na rua com André Luiz. O casal
salvou Cristiana e a levou para casa, onde cou por uma semana. Na
sequência, os pais dela agradeceram à família de Flordelis pelo resgate da
lha e a levaram para uma casa alugada, longe do rio Jacaré. Estranhamente,
Flor devolveu Cristiana sem fazer qualquer objeção. No entanto, a antiga
rotina se repetiu. O casal saía para trabalhar e deixava a menina trancada,
dessa vez na companhia de uma televisão. Atraída pela diversão permanente
na casa de Flordelis, Cristiana passou a fugir para car a maior parte do dia
com a missionária. Irritada com a insubordinação, a mãe deu-lhe uma sova
no meio da rua, usando um o elétrico. Flordelis presenciou a agressão e
intercedeu. Segundo relatos da missionária, a genitora teria dito “tá com
pena, leva esse Demônio para você”. E assim Cristiana foi recrutada por Mãe
Flor, fechando a escalação do núcleo principal de seu bando, formado até
então por dez personagens: Simone, Flávio, Adriano (biológicos); Anderson,
Rayane, André Luiz, Carlos Ubiraci, Wagner, Alexsander e Cristiana.
Às vezes, para ter momentos a sós, Flor e Anderson deixavam seus
“ lhos” sob a tutela de Carlos Ubiraci e saíam para espairecer à noite,
voltando muitas vezes de madrugada. Gostavam de frequentar o calçadão de
Copacabana, mas também se arriscavam em praias desertas do Recreio dos
Bandeirantes. Em um desses passeios, conheceram eo Munhoz e Marilene
Lúcia Rizzoli, ambos com 23 anos, que trabalhavam como vendedores em
uma loja de calçados em Botafogo e também frequentavam cultos da
Assembleia de Deus. Os dois casais logo descobriram outras coisas em
comum, como entrar no mar à noite. Depois de três meses saindo juntos,
cada vez mais próximos, eo propôs um mergulho sem roupa na praia da
Reserva de Marapendi, na Barra da Tijuca. Flor teria topado, mas Marilene
Lúcia e Anderson recusaram, e a proposta foi motivo de discussão. Mesmo
sem entrar em acordo, eo tirou a roupa e entrou na água, seguido por
Flordelis. Da areia, Marilene e Anderson viam os dois se beijando na parte
rasa e resolveram fazer a mesma coisa.
Depois das preliminares, os quatro caminharam para um ponto mais
reservado da praia e zeram uma troca de casais: Anderson transou com
Marilene e eo com Flor. Marilene teria tentado beijar Flor, mas ela se
esquivou, alegando que mulher com mulher era pecado. “Você não sabe o
que está perdendo”, provocou a jovem. No nal, a vendedora pediu aos dois
homens que se beijassem. Anderson rejeitou, mas se deitou na areia e fechou
os olhos. eo o beijou suavemente por alguns minutos. Em seguida, eo
fez sexo oral em Anderson até ele gozar em sua boca. Para deixá-los mais à
vontade, as duas se vestiram, saíram caminhando pela areia e Flor contou à
amiga sobre seu projeto de se tornar pastora. Falou que tinha uma meta de
adotar cinquenta crianças e enumerou as di culdades, principalmente com
alimentação. Marilene, então, se comprometeu a ajudá-la com roupas e
alimentos.
Duas semanas depois, Marilene apresentou Flor ao taxista Samir
Bezerra, de 35 anos. Samir também era adepto de sexo grupal e passou a
frequentar as praias desertas do Recreio e da Barra da Tijuca com Anderson,
Flor, eo e Marilene. O taxista levava bebidas e um violão para os
encontros na praia, e Flor costumava cantar MPB sentada na areia. Nem ela,
nem Anderson tomavam álcool. Para não haver sobras nos rendez-vous,
Samir, solteiro, chegava sempre com uma acompanhante diferente, e as
novatas eram disputadas a tapa por Anderson e eo. Cabia a Marilene
explicar antecipadamente as regras do encontro. A principal se referia à
dinâmica da poligamia. Um elemento do casal, por exemplo, só poderia car
com o outro se o parceiro xo permitisse. No início, Flor era a mais
possessiva e impedia o namorado de transar com as mulheres. Nos
primeiros encontros, permitia apenas que o “ lho-namorado” beijasse
Marilene, sem sexo. Anderson, ao contrário, não fazia qualquer objeção e
ainda jogava na cara da missionária as transas de boas-vindas entre ela e os
“ lhos” no banheiro da casa da Rua Guarani. À medida que a amizade entre
os casais se estreitava, Flor liberava seu par para car com quem ele quisesse,
inclusive com os homens. Numa das atividades grupais, por um deslize,
Anderson chamou Flor de “mãe”, despertando curiosidade em eo e Samir.
“Mãe? Como assim?”, perguntaram. Anderson explicou que primeiro
namorou Simone, depois tomou parte na “evangelização da madrugada” e só
mais tarde se envolveu com a “mãe”. O “incesto” excitou ainda mais os
casais: eo e Samir pediram a Flor que também os chamasse de “ lhos”
durante as transas.
As bacanais também aconteciam em motéis, principalmente quando as
noites eram chuvosas. Com o passar do tempo, esses encontros renderam
frutos para o projeto de Flor e Anderson. O casal de evangélicos previu
problemas, porque seus “ lhos” não eram adotados legalmente e não havia
comida para todos. Para os amigos, Flor repetia a ladainha de salvar crianças
das mãos de tra cantes e da pobreza. Segundo dizia, eram as mães que a
procuravam para entregá-las. “Eles são órfãos de pais vivos”, dizia, causando
comoção. Samir visitou a casa da Rua Guarani e cou chocado com o estado
de penúria do local, principalmente pelo odor insuportável. Mesmo
comovido, ele teve libido para dar em cima de Simone. Os dois foram a um
motel, com aval de Flordelis e de André Luiz, o namorado-irmão dela.
Algumas semanas depois, a jovem passou a frequentar as noitadas nas praias
desertas e nos motéis juntamente com André Luiz. Num desses troca-trocas,
Anderson e Simone voltaram a transar. Flordelis também fez sexo com seu
lho-genro André Luiz. No meio dessa teia sexual, Flor conseguiu uma
ajuda importante de Samir: o taxista costurou um encontro da missionária
com integrantes do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca).
Lá, ela recebeu orientação de como legalizar a situação de seus “ lhos”.
Basicamente precisaria provar ter condições nanceiras de adotar tanta
gente e as mães biológicas deveriam assinar um documento abrindo mão da
prole – caso contrário, manter todo aquele pessoal em casa seria irregular.
Diante dessas demandas, Flor preferiu deixar a prole na clandestinidade.
Numa manhã de sábado, Flor e Anderson estavam em casa com seus
“ lhos” quando ouviram um burburinho vindo da rua. Uma viatura da
Polícia Militar com quatro homens fortemente armados e um carro o cial
da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, com um representante da
Justiça, estacionaram à sua porta. Logo atrás veio um ônibus vazio, também
com emblema da Justiça, acompanhado de motos batedoras. O aparato
justi cava-se pelas di culdades de autoridades policiais entrarem em
território altamente dominado por tra cantes do Comando Vermelho. Flor
cou desesperada quando ouviu do o cial de Justiça a razão daquela visita:
– Ou a senhora prova que esses lhos são seus, ou eles serão todos
levados para um abrigo. Se houver resistência, vamos prendê-la!
“Vamos precisar muito do seu choro, caso
queira subir na vida adotando crianças
carentes.”

D
epois de seis meses sem um pastor titular, o principal templo da
Assembleia de Deus do Jacarezinho nalmente conseguiu um líder.
José Maria de Oliveira, de 46 anos, conhecido na favela como Zé da
Igreja, assumiu o lugar de Demóstenes com a missão de agregar novas
ovelhas ao rebanho, além de estreitar laços com os tra cantes do Comando
Vermelho, uma das maiores habilidades de seu antecessor. Ex-presidiário, o
novo sacerdote protestante mantinha o crime cometido no passado
guardado sob o mais absoluto sigilo. Quando questionado pelos éis sobre o
motivo de ter sido condenado, ele desconversava ou dava respostas vagas,
sempre frisando o fato de não dever mais nada à justiça dos homens, pois
havia cumprido uma pena de dezoito anos, nem à divina, uma vez que
conseguira perdão celestial nos cultos liderados por ele no presídio Ary
Franco, uma das piores casas penais do Rio de Janeiro.
Já na primeira semana à frente da Assembleia de Deus, Zé da Igreja
conseguiu com Sandra Sapatão dinheiro para reformar o forro do templo,
cuja madeira tinha apodrecido em razão da proliferação das fezes corrosivas
dos pombos. No mês seguinte, ele ampliou o palco onde eram realizados os
cultos e trocou a instalação acústica – tudo com o dinheiro sujo do comércio
ilegal de drogas. Na década de 1990, o trá co ainda era uma das principais
fontes de contribuição das instituições religiosas em áreas dominadas pelo
crime organizado. Segundo o livro Operação tra cante, da socióloga
Christina Vital da Cunha, da Universidade Federal Fluminense, o dinheiro e
o recrutamento de éis são os dois maiores interesses dos tra cantes e das
igrejas evangélicas quando se fala na atuação em favelas. “A teologia da
prosperidade, por exemplo, une os dois mundos [do trá co e da religião]. Os
tra cantes gostam de dinheiro e vivem a vida no crime, onde circula muito
capital. Já os evangélicos não negam o dinheiro. Pelo contrário, pois cobram
o dízimo de forma ostensiva. Na visão dos tra cantes, a contribuição
nanceira a uma igreja funciona como uma puri cação do dinheiro sujo.
Ou seja, doar para a igreja é uma forma de agradar a Deus. [...] Alguns
tra cantes acreditavam que puri cavam suas almas ao contribuir
nanceiramente com as instituições religiosas. Nos cultos, os pastores
também apresentavam essa alternativa de ajuda como uma espécie de
salvação moral. Era como se, a cada doação, o bandido se renovasse, ou seja,
deixasse de carregar o estigma de criminoso para se tornar uma pessoa de
bem”, destaca a obra da socióloga.
Quando viu Zé da Igreja pregando no palco do Jacarezinho, Flordelis
cou decepcionada. Chorou por três dias seguidos. Ela almejava um posto
de destaque naquele lugar e trabalhava duro para isso, apesar de a instituição
religiosa não ordenar líderes femininas na época. Flor, no entanto, não
perdeu a esperança e continuou sonhando em ser a primeira mulher pastora
da Assembleia de Deus. Quando soube do trabalho “ lantrópico” da
missionária e de suas apresentações nos cultos de domingo, Zé da Igreja
chamou a supermãe para um lanche à tarde. Logo após o encontro, à noite,
ele foi internado às pressas no pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia
do Jacarezinho com suspeita de intoxicação alimentar fulminante. Depois de
vários exames laboratoriais, foi constatado envenenamento por chumbinho,
uma substância granulada de cor cinza-escuro composta de aldicarbe, um
agrotóxico de alta potência usado para exterminar ratos. Zé da Igreja deu
queixa na delegacia e a suspeita recaiu sobre sua esposa, Eulália, de 22 anos.
Segundo ele mesmo disse aos policiais, se tivesse morrido, a jovem teria
direito a um seguro da funerária no valor de 25 mil reais. Aos prantos, a
acusada jurou inocência e acabou sendo perdoada por Zé da Igreja. Mas
Eulália pouco se importou com o indulto do marido: fez as malas e foi
morar com a mãe em Rio Bonito, sustentando para todos ser incapaz de
matar uma barata. Para não perder o cobiçado cargo, Zé da Igreja passou a
procurar uma namorada desesperadamente. Nos cultos, ertava com todas
as meninas e chamava as mais bonitas para tomar sorvete. Ele até era um
homem charmoso, mas, como guardava um segredo sobre seu passado, as
pretendentes corriam dele como o Diabo foge da cruz.
Mesmo com o trabalho do pastor se consolidando, Flor não desistiu de
um dia assumir a administração do templo onde congregava e cantava desde
criança. Para aumentar o número de lhos, investiu na evangelização da
madrugada. Esse trabalho comovia populares e chamava a atenção de líderes
religiosos de outras instituições. Um diácono da Igreja Evangélica de
Con ssão Luterana no Brasil sugeriu que seus integrantes providenciassem
alimentos para doar aos carentes resgatados pela missionária. Rose, que
pertencia à instituição, resolveu fazer uma campanha de arrecadação. Antes,
porém, fez uma visita à antiga amiga e foi bem recebida, em nome dos
velhos tempos. Flor falou das di culdades enfrentadas para alimentar tanta
gente.
– Quantos lhos você já tem? – perguntou Rose.
– Deus tem sido muito generoso comigo. Já estou com dez! É muito
amor...
– Tudo isso? Quem são?
– Simone, Flávio, Adriano; Rayane, Ubiraci, Wagner, Alexsander, André
Luiz e Cristiana, essa menina linda que chegou por último.
– Quanta gente!
– Olha, Rose, como disse o salmista, os lhos são, de fato, uma herança
do Senhor. Uma pena que você não tenha nenhum...
– Flor, você falou que são dez, mas só citou nove.
O décimo, cujo nome foi omitido na contagem de Flor, era Anderson, já
em processo de promoção a “marido”. Rose havia participado da festa de
noivado do casal e cou de queixo caído pelo fato de ele ainda ser tratado
pela cantora como lho, mesmo dormindo na cama da “mãe”. Na verdade,
Rose sempre descon ou das boas intenções da amiga, pois havia
testemunhado Flor tirando bebês dos braços de mães drogadas no Centro
do Rio e caçando uma menina para namorar Flávio. Suas impressões sobre
aquela grande família, que mais tarde constituiria uma organização
criminosa, só pioraram. Enquanto as duas conversavam no sofá, Anderson
passou por elas, deu um beijo longo na boca de Flor e perguntou se os lhos
já haviam almoçado. A cantora cou constrangida com a cena. Nesse
momento, Rose quis saber sobre os desdobramentos da confusão promovida
por Maria Edna do Carmo, mãe de Anderson. Flor contou ter prevalecido a
vontade do rapaz: car em sua casa. Outra situação deu nó na cabeça da
moça. André Luiz, outro “ lho” resgatado das ruas, atravessou a sala de
mãos dadas com Simone, sua irmã. Nesse momento, Rose se levantou para
ir embora. Lá fora, as duas conversaram mais um pouco.
– Flor, o que você está fazendo?
– Do que você está falando? – esquivou-se.
– Dessa promiscuidade na sua casa. Você chamando Anderson de lho
ao passo que dormem juntos. A Simone namorando o irmão André Luiz...
– Rose, Deus está despejando amor na minha família. Você é contra o
amor?
– Não! Não sou! Mas não acho isso certo!
– Você está nos julgando porque você não ama. Ficou amarga e seca
desde que perdeu o Amilton. Você nunca mais amou ninguém. Agora se
coloca contra o afeto que oresce no seio da minha família...
– Você pretende legalizar a adoção dessas crianças?
– Rose, deixa eu te falar uma coisa: meus lhos são tudo para mim. O
amor que sinto por eles é tão grande e genuíno quanto a existência de Deus!
Na minha casa, eles são todos iguais. Já nem sei quais nasceram das minhas
entranhas nem quais eu resgatei da rua, tamanha é a minha devoção a eles.
Para mim, uma certidão de nascimento é só um papel, ou seja, não signi ca
nada!
Mesmo contrariada, Rose decidiu ajudar a amiga. No próprio dia,
mandou entregar para Mãe Flor alimentos coletados pelos integrantes da
Igreja Evangélica de Con ssão Luterana no Brasil. Na semana seguinte,
porém, cheia de boas intenções – segundo disse –, foi ao Ministério Público
fazer relatos de crianças e adolescentes carentes resgatados da rua por uma
missionária da Assembleia de Deus. “Flordelis precisa de apoio jurídico para
regularizar a adoção dos menores tirados do trá co”, disse ela no balcão de
atendimento da Promotoria da Infância e Juventude. Foi orientada a fazer
um relatório detalhado por escrito. No balcão, a pastora escreveu com uma
caneta mais de cinco páginas contando como era a tal evangelização da
madrugada. Para proteger a amiga, Rose omitiu as ligações sexuais de
Flordelis com um dos meninos “adotados”. O registro de Rose no Ministério
Público não foi a primeira denúncia contra Flordelis. Os pais de Alexsander
já tinham dado queixa contra a missionária por roubo de criança na
delegacia do Jacarezinho. Carmozina também comparecera a uma unidade
do Centro para falar dos delitos da lha. Em nenhum dos casos a polícia
abriu inquérito para investigar as ações de Flordelis. No boletim de
ocorrência registrado no Centro, por exemplo, os policiais consideraram as
adoções da cantora como crime de menor potencial ofensivo, aqueles cuja
pena máxima é de até dois anos (ameaça, lesão corporal leve, desacato, entre
outros). Ali, houve até quem classi casse o “trabalho” de Flor como bené co
para as crianças.
Uma semana depois de entregar o relatório contra Flor, Rose foi
chamada ao MP por um promotor para dar mais detalhes sobre aquela
“denúncia gravíssima” posta de próprio punho no papel. Rose cou nervosa
quando descobriu que seus relatos davam conta de um crime de maior
potencial ofensivo. “Ou a senhora prova o que foi revelado em seu relatório
ou poderá ser processada por falsa comunicação de delitos, podendo pegar
até seis meses de detenção, conforme está previsto no Artigo 340 do Código
Penal [Provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de
crime ou de contravenção que sabe não se ter veri cado]”. Rose pediu um
copo de água para se recompor e começou a detalhar tudo que sabia sobre a
missão de Flordelis em pegar crianças da rua, inclusive sobre as mães que a
acusavam de roubar seus lhos. Nervosa e arrependida de se envolver em
confusão, ela teve um ataque de verborragia e proferiu um monólogo para
tentar inocentar a missionária:
“Mas, olha, se o senhor promotor visse as condições degradantes desses
meninos na rua, até o senhor levaria umas crianças para a sua casa. Eles
cavam ao relento, tadinhos, desnutridos no meio da praça em plena
madrugada e cercada de marginais... Parecem uns ratinhos, sabe? Essas
crianças estão muito melhor com a Mãe Flor, eu juro! Quer dizer, crente não
pode jurar! Nem pela mãe, porque a mãe é sagrada. Nem pelo céu, porque o
céu é o trono de Deus. Nem pela Terra, porque a Terra é o escabelo de seus
pés. Nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei. Me desculpe se
estou falando demais! Doutor promotor, olha só, a Flor é uma boa mãe.
Acredite! Não tem procedência maligna nem pecaminosa em suas ações. Ela
dorme com um dos lhos, é verdade. Mas eles se amam, viu? Eu lhe garanto:
muitas mães levam suas crianças remelentas até a casa dela por livre e
espontânea vontade. A Flor fala: ‘não quero, obrigada’. Mas as mães deixam
lá assim mesmo e desaparecem. O senhor já ouviu falar na roda dos
expostos? A casa da Flor parece um depósito de bebês. Vá na casa da Rua
Guarani olhar e o senhor verá com os seus próprios olhos. O bairro é
tomado por bandidos armados, eu sei... Mas, se quiser, eu mesma falo
pessoalmente com os tra cantes do Comando para eles deixarem o senhor
entrar na favela. Eles não vão tocar num o do seu paletó nem lhe cobrarão
pedágio...”
Enquanto Rose falava mais do que o homem da cobra, o promotor
acionava a Polícia Civil. Um delegado da 12ª Subdivisão Policial do
Jacarezinho associou a denúncia de Rose à queixa apresentada pelos pais de
Alexsander na delegacia. Rose saiu de lá pedindo “pelo amor de Deus” para
a sua denúncia car sob sigilo, pois não tinha provas do que havia dito e
também por temer pela vida, já que havia “ lhos” de Mãe Flor ligados ao
trá co. Os policiais caram ainda mais interessados na história. Do
Ministério Público, a denúncia contra a missionária foi parar na Vara da
Infância e Juventude do Rio de Janeiro. Um mês depois, Flor foi intimada a
comparecer ao gabinete do juiz titular Liborne Siqueira. Na audiência, o
magistrado determinou a devolução de todas as crianças aos pais biológicos.
“Impossível, Excelência. Até porque muitos deles perderam os pais para o
trá co”, argumentou Flor, com empá a. “Então vamos recolher todos para
abrigos, pois esses menores devem ser tutelados pelo Estado”, avisou
Siqueira. Flor saiu de lá decidida a desobedecer à ordem judicial. “Quero ver
um o cial de Justiça entrar no Jacarezinho, um território dominado pela
bandidagem”, comentou com Anderson na saída do fórum.
Três meses depois da audiência Flor ainda não havia recebido a visita de
nenhum o cial, conforme havia previsto. Determinada, continuou
resgatando meninos das ruas. Em seis meses, já havia na casa quinze
menores, mas os cinco novatos não se misturavam ao núcleo principal
formado pelos dez “ lhos” considerados mais importantes. Essa segregação
cava evidente durante as refeições, na hora de dormir e até para usar o
único banheiro existente. Os dez “mais” dormiam nos quartos e os cinco
“menos” se espalhavam sobre colchões e papelões na sala e na cozinha –
houve relatos até de quem pernoitasse sobre a mesa de jantar e dentro da pia
da cozinha. A comida era servida primeiro aos mais chegados. Se sobrasse,
os demais almoçavam. Caso contrário, para se alimentar, tinham de
mendigar em bairros nobres da zona sul, como Copacabana, Ipanema e
Leblon, já que os moradores do subúrbio não têm o hábito de dar esmola.
Quem quisesse usar o banheiro para defecar tinha de pedir papel higiênico à
Mãe Flor, que mantinha os rolos trancados em seu quarto e só liberava o
material para os preferidos. Os demais tinham de se limpar com um
guardanapo que era lavado na pia do banheiro e reutilizado inúmeras vezes.
Apesar de não transparecer, Flor estava apreensiva com a possibilidade
de uma investida da polícia contra a sua prole. Nesse período, ela cou mais
em casa. Recebeu visitas das irmãs, Laudicéia e Abigail. “Tenho certeza que
alguém da família fez a denúncia. O juiz tinha um monte de papéis nas
mãos quando me chamou à sala dele. Sabia de detalhes íntimos”, acusou a
missionária. “Será que foi a mamãe? Ela nunca aprovou essas adoções”,
arriscou Laudicéia. “Ela jamais faria isso comigo”, ponderou Flor, acusando
os pais de Alexsander. “Ou pode ter sido uma vizinha invejosa. Nesse meio
religioso só tem cobras”, comentou Abigail. Com dor na consciência, Rose
fez uma visita à amiga para ver como ela estava. Preocupada, sugeriu que
Flor entregasse ao Conselho Tutelar pelo menos metade dos “ lhos” e casse
somente com o “núcleo duro”. Diante dessa sugestão, a missionária passou a
descon ar da ex-cunhada: “Você seria capaz de fazer uma denúncia contra
mim?”, questionou Flor, sem rodeios. “Jamais. Tá louca?”, esquivou-se Rose,
rme.
Enquanto viviam a expectativa de receber a visita da polícia, Flordelis e
Anderson não saíam nem para trabalhar. Tinham pelo menos 20 crianças e
adolescentes. “Nessa época, a casa da Flor virou um chiqueiro que abrigava
meninos de rua. Muitos saíam diretamente da sarjeta e batiam em sua porta
para dormir em qualquer lugar. Tinha adolescente sem-teto indo lá só para
usar o banheiro”, relatou Olival dos Santos da Luz, de 16 anos, um dos
últimos a chegar nessa temporada, na Rua Guarani. Segundo ele, quando
passou pela residência, os “ lhos” mais próximos reclamavam da chegada
dos novos hóspedes, mas Anderson ressaltava que “quanto mais crianças
eles recolhessem, melhor seria para todos”. Nessa época, Carlos Ubiraci, o
mais velho, passou a atuar como uma espécie de gerente. Coube a ele tomar
conta do rolo de papel higiênico, por exemplo. Ele mandava os “novatos”
lavarem o banheiro cinco vezes ao dia e fazerem faxina de manhã, de tarde e
à noite, pois a imundície aumentava em progressão geométrica. Os lhos
principais não eram submetidos a trabalhos pesados.
Antes da gerência de Carlos Ubiraci, a casa – e principalmente o
banheiro – tinha um odor insuportável, por causa do uxo de gente. Certa
vez, o vaso sanitário entupiu por excesso de fezes e os detritos escorreram
pelo corredor e chegaram à sala. “Era tanta gente para tomar banho e fazer
cocô que chegavam a entrar de três em três, caso contrário não daria tempo
para todo o mundo usar. Não havia escova de dentes para todo o mundo.
Eram somente três, com cerdas escuras de tanta sujeira dentro de um copo
imundo, e todos as usavam. Para otimizar a dinâmica do banheiro, Carlos
Ubiraci mandava meninos e meninas urinarem no quintal”, contou Olival.
Sem nenhuma privacidade até para usar o banheiro, Flávio voltou a reclamar
do excesso de gente. Nessa época, aos 16 anos, ele namorava uma “irmã” de
11 chamada Agatha, resgatada da rua por Simone. Para fugir da bagunça,
Flávio pegou a menina e cou uma temporada com a avó, Carmozina.
Um mês se passou e nada de a polícia bater à casa da Rua Guarani. Flor e
Anderson entraram em ação novamente. Fizeram um mutirão para recolher
juntos, numa única noite, a maior quantidade possível de crianças. Para
ajudar, convidaram eo e Samir, os amigos das orgias na praia. Sabendo do
estado precário da casa, eo – que não entrava com seu táxi no
Jacarezinho, com medo dos tra cantes – levou quarenta rolos de papel
higiênico para contribuir com aquele “trabalho nobre” da missionária.
Segundo Flor dizia aos amigos, quanto mais jovens conseguisse adotar, mais
chances teria de obter ajuda nanceira de instituições religiosas e de
empresários solidários para construir um grande abrigo. Ela também falava
a todo momento do sonho em ser pastora da Assembleia de Deus. Em busca
de novos “ lhos”, Anderson orientava Flor e os amigos a priorizarem bebês.
“Chega de marmanjos! São todos parasitas e dão muita despesa”, reclamava.
Como sempre, Flor investia em moradores de rua drogados e pegava os
rebentos deles sem consentimento. eo cou chocado e abandonou a
missão no meio da madrugada. Samir percebeu que, às vezes, os pais davam
crianças de boa vontade para Flor porque estavam possuídos pelos efeitos
alucinógenos da cocaína e de solventes, como ocorrera com Joana Cara de
Cadáver. Alguns realmente procuravam Flordelis de forma espontânea e
entregavam seus lhos pequenos para adoção, como havia relatado Rose no
Ministério Público. Samir ainda testemunhou mães batendo à porta da casa
da Rua Guarani pedindo abrigo para bebês de colo somente durante o dia,
fazendo o local de creche.
Um dos meninos acolhidos por Flor na época em que Samir saía com
Simone foi Edinelson, de 8 anos, apelidado de Beto pelos hóspedes da casa.
Seus pais moravam no 17º andar de um prédio abandonado no Centro do
Rio. Drogado, o casal teria entregado o rapazinho voluntariamente. Passada
uma semana, já lúcidos, os dois foram até a Rua Guarani buscá-lo de volta.
Ficaram nesse dá e toma por três meses. Apegada ao “ lho”, Flor resolveu
não devolver mais o garoto, que já a chamava de mãe. A briga por ele
ocasionou um bate-boca entre Flor e os pais biológicos de Beto. Como a
grande família já estava na mira da Justiça, Anderson pediu a Flor que
abrisse mão do menino, para não se meterem em nova encrenca. A
missionária ignorou a sugestão. “Não abro mão de nenhum lho”, retrucou
Flor, enlouquecida. Conforme o previsto, a polícia foi chamada. O Juizado
de Menores foi acionado mais uma vez. Um o cial determinou a devolução
imediata do menino aos responsáveis legais. Sem saída, a criança foi
embora. Flor aproveitou para fazer uma cena teatral na hora de entregar
Beto aos pais verdadeiros. Chorou, gritou, descabelou-se, jogou-se no chão.
Um policial advertiu Flor sobre o procedimento aberto em duas delegacias
para investigar a origem daquele monte de gente pernoitando em sua casa.
“Não estou nem aí. O que Deus me deu, o Diabo não me toma”, revidou a
missionária aos berros, sob o foco de luzes azuis e vermelhas de giro ex das
viaturas policiais. Como a confusão atraiu os homens da lei ao Jacarezinho,
o Comando Vermelho mandou um “soldado” avisar Mãe Flor que a facção
estava descontente com as visitas frequentes de policiais à favela por causa
de “roubo de crianças”. Abusada, a missionária desdenhou do recado dos
tra cantes. Uma semana depois de entregar Beto, ela resolveu fazer uma
visita ao menino. Para sua surpresa, soube pela mãe que seu “ lho” fora
jogado pela janela do 17º andar pelo próprio pai, simplesmente porque o
menino chorava de fome e o irritava.
Chocada com a morte trágica, a missionária tomou uma decisão que
mudaria sua carreira materna para sempre. Flordelis foi até o guarda-roupa,
pegou a imagem de Baphomet e a xou na parede, usando ta adesiva. Em
seguida, agarrou-se fortemente a uma Bíblia e teria orado de forma
fervorosa, olhando para a imagem do homem com cabeça de bode e longos
chifres: “Meu Deus! Obrigada por me dar a missão de acolher essas criaturas
celestes que perambulam sem alma e sem destino pelas ruas. Nunca mais
vou entregar meus ‘ lhos’, mesmo com uma ordem judicial, mesmo sob
ameaças de pais drogados, mesmo sob a pontaria de uma pistola da polícia
ou mesmo sob a mira de fuzis de tra cantes. Deus me escolheu para dar
amor a esses pequenos querubins caídos do céu. Esse será o meu único
propósito de vida daqui em diante. Nada me deterá!”.
Atrelada à Assembleia de Deus do Jacarezinho, onde ainda mantinha o
sonho de assumir o cargo de pastora, Mãe Flor intensi cou ainda mais suas
buscas por “anjinhos” pelo Rio de Janeiro. Visionário, Anderson mantinha
em ação – de forma incipiente nessa época – o plano de fazer das adoções
uma fonte de renda. Todos os seus vencimentos no emprego do Banco do
Brasil, assim como o salário de professora de Flordelis, eram investidos no
custeio da casa da Rua Guarani. Entretanto, quando houve ali dentro um
uxo rotatório de 25 adolescentes – nem todos dormiam no local –, as coisas
saíram um pouco do controle. Sem muito critério para pegar gente das ruas,
Flor e Anderson, com a ajuda de Carlos Ubiraci e Wagner, resgataram
menores de 18 anos em con ito com a lei, suspeitos de assalto a banco,
sequestro e até assassinato. Considerados infratores de alta periculosidade,
Aldeci e Selma, de 16 anos, foram recolhidos do entorno da Central do
Brasil e levados para o Jacarezinho. Ficavam lá durante o dia e saíam à noite
pelo Centro do Rio para cometer crimes (infrações, já que eram menores).
Voltavam no meio da madrugada com dinheiro vivo, carteiras, bolsas,
relógios e cordões. Carlos Ubiraci percebeu a atividade criminosa da dupla e
contou para a Mãe Flor, que chamou os dois para uma conversa em
particular. Os adolescentes assumiram a atividade ilegal e ofereceram
repassar parte dos ganhos com os malfeitos a Mãe Flor, para ajudá-la no
sustento da casa. Para não sujar as mãos, a missionária não aceitou receber
diretamente, mas orientou o casal de delinquentes a entregar a contribuição
periódica de forma discreta ao “gerente” Carlos Ubiraci. Algumas semanas
depois, porém, os dois desapareceram, sem nem dizer até logo.
Passados três meses, Selma voltou sozinha, pedindo abrigo e salvação,
pois não queria mais cometer delitos. Ela havia se afastado do namorado,
por um motivo a ser explicado mais tarde. Flor não só a aceitou como fez
um culto especial de boas-vindas, em sua sala, com a presença de suas
ovelhas e de vizinhos. A missionária falou de “arrependimento”, exaltou as
qualidades de seu lar e discorreu sobre o poder de Deus em resgatar éis do
fundo do inferno, mesmo depois de mastigados pela mandíbula do capeta.
Antes, Selma deu seu testemunho: “Vi a morte várias vezes diante dos meus
olhos, irmãos. Ela é horrível! Mas não quero mais esse tipo de vida. Quero
viver na paz do Senhor, sob as asas reconfortantes da Mãe Flor e do Pai
Anderson”, anunciou, derramando lágrimas. A missionária abraçou a
menina, abriu a Bíblia e tomou a palavra para si:
“Prestem muita atenção, lhos. [Glória a Deus!] Essa garota linda havia
sido sequestrada pelo Satanás. [Glória a Deus!] Mergulhou nas profundezas
do inferno, foi chamuscada pelas labaredas do Demônio. Teve a alma
completamente derretida e escoada pelo ralo do abismo sem m. [Glória a
Deus!] Selma foi parar no esgoto do mundo, onde estão depositadas as
almas dos mortos de pecados ina ançáveis! [Glória a Deus!] Mas há uma
luz! [Glória a Deus!] Uma luz divina que se acendeu no rmamento e a
guiou de volta ao paraíso, que é o nosso lar. [Glória a Deus!] Bendita seja a
nossa casa. Ela foi toda construída de harmonia, compaixão, perdão, fé e
amor. Muito amor! [Glória a Deus!]”.
Durante o culto, a maioria dos “ lhos” cou de olhos bem fechados. Os
homens, porém, não deixaram de reparar na beleza de Selma, uma moça de
cabelos pretos e ondulados, dentes bem alinhados e roupas muito curtas. A
cha corrida da infratora também lhe agregava valor. Esperta, ela
capitalizava as atenções e jogava charme para os rapazes, exceto para
Anderson e Carlos Ubiraci, considerados “feios” pela menina. Como a casa
estava lotada, Mãe Flor pediu aos outros que fossem generosos e dividissem
o colchão com a ovelha arrependida. “De qual você gostou mais, lha?”,
perguntou Flor. Selma escolheu todos: transava a cada madrugada com um
“irmão” diferente. Seus parceiros constantes eram Flávio, Alexsander e
Olival, mas às vezes dividia um colchão de solteiro com dois garotos e
acabava transando a três. Numa noite, também dormiu com Simone. A
resenha de sua performance no colchão virou assunto entre todos os
moradores. André Luiz ouviu da namorada Simone boas referências sexuais
de Selma e acabou transando com ela várias vezes, no banheiro de piso
marrom, com permissão da amada. De volta a casa com sua namoradinha
de 11 anos, Flávio também fez sexo com Selma e falou sobre as qualidades
da “irmã” para o padrasto. Depois do consentimento de Mãe Flor, Anderson
dormiu com Selma – e até Samir arrastou a garota para um motel. No nal,
o taxista levou um susto: ela pediu dinheiro pelo sexo. Como transava sem
proteção, Selma não engravidou por um milagre. Mas contraiu gonorreia,
sí lis, bubão, tricomoníase, herpes genital, crista de galo, candidíase e HPV.
Doente, foi desprezada pela casa. Compadecido, Olival peregrinou com
Selma pelos postos de saúde do Rio até ela car curada. Os dois se
apaixonaram e passaram a namorar seriamente.

* * *

A casa já tinha quase trinta crianças e adolescentes, entre hóspedes xos


e rotativos, quando Roberto Menezes, produtor de reportagem da TV
Cultura do Rio de Janeiro, neto de uma moradora do Jacarezinho, procurou
Mãe Flor para sugerir a realização de uma matéria sobre sua vocação para
ações humanitárias. A fama de supermãe da missionária estava sendo
disseminada na comunidade pela Assembleia de Deus e pela Igreja
Evangélica de Con ssão Luterana no Brasil. Flor e Anderson festejaram o
convite para a entrevista e marcaram com o jornalista para dali a três dias.
Nesse primeiro contato, o produtor da TV Cultura pediu para ver a
garotada, acreditando que encontraria dezenas de meninos e meninas pelo
quintal. No momento da visita, porém, só havia seis gatos pingados. A maior
parte dos “ lhos”, segundo Flor justi cou, frequentava a escola. Era mentira.
Nessa época, somente os três biológicos, além de Wagner, estavam
matriculados regularmente. A maior parte dos hóspedes ainda vivia pela rua
durante o dia, mesmo depois de “acolhida” pela missionária. Alguns
perambulavam nos semáforos do Centro praticando mendicância e
voltavam somente à noite, para comer, tomar banho e dormir. “Naquela
visita, quei com a impressão de estar diante de uma farsa, pois o imóvel de
apenas dois quartos não tinha a mínima estrutura para abrigar tanta gente.
Era impossível muitas pessoas usarem somente um banheiro, uma pia, um
sofá. Vi uma lata no banheiro contendo apenas cinco escovas de dentes.
Mas, até então, era uma dúvida de jornalista. Imaginei que não teria como
ela enganar uma equipe inteira de TV”, disse Menezes, em setembro de
2021.
De olho na visibilidade da reportagem, Anderson, Flor e Carlos Ubiraci
convocaram a corja toda. Para reforçar a imagem de supermãe da
missionária do Jacarezinho, seria necessário um quórum de pelo menos
trinta crianças. Carlos Ubiraci se encarregou de mascarar o cenário para a
entrevista. Ele esvaziou a geladeira e os armários para esconder os alimentos
enviados semanalmente pela igreja administrada por Rose. No dia marcado
para receber a reportagem, conseguiram reunir, a muito custo, vinte “ lhos”.
Flor queria apresentá-los arrumados e de banho tomado. Anderson foi
contra. Para comover o público, eles tinham de estar sujos e malvestidos.
Carlos Ubiraci concordou com o “pai”.
No dia D, uma Kombi da TV Cultura estacionou na frente da casa, logo
após o almoço. Dela desceram um cinegra sta, um auxiliar de som, um
iluminador e o repórter Edgard Machado, com 23 anos na época,
considerado inexperiente na pro ssão por ser recém-formado. Mãe Flor e
Anderson estavam cercados de crianças e adolescentes no sofá da sala. Havia
gente sentada no chão, em pé à porta e no corredor. Tímido, Flávio cou
trancado no quarto. A equipe primeiro fez uma série de imagens da prole
numerosa e dos cômodos da residência. Ainda sem gravar, Edgard
perguntou se todos os “ lhos” de Flor faziam as refeições em casa. “Quando
tem para todo mundo, eles comem aqui, sim”, respondeu a missionária. O
repórter, então, perguntou onde eram preparadas tantas refeições. Flor
mostrou um fogão de quatro bocas com três panelas pequenas. Ingênuo,
Edgard não percebeu ser impossível cozinhar para um batalhão em
utensílios tão minúsculos. O repórter levantou as tampas e viu arroz, feijão e
uma dúzia de ovos cozidos. “Foi a pastora Rose quem trouxe esses
alimentos. Ela nos ajuda muito. Somos amigas há mais de dez anos, desde
quando ela namorava meu nado irmão Amilton...”, justi cou Flor. O
repórter cinematográ co comentou: “Essas panelas me parecem pequenas
para cozinhar almoço para mais de vinte lhos, não?”. Anderson
desconversou, falando da necessidade de terem caçarolas grandes. “Vamos
gravar!”, anunciou o repórter, cortando a conversa coletiva. Vizinhos
curiosos se aglomeraram na porta. Com a câmera ligada, holofote aceso e o
microfone em punho, Edgard iniciou a entrevista na sala:
– Quantos lhos a senhora tem?
– Trinta e poucos! – mentiu Mãe Flor.
– Quantos são biológicos e quantos são adotados?
– Eu não faço distinção. Diante dos meus olhos, todos são iguais.
– Como eles vieram parar aqui na sua casa?
– Resgatei eles das ruas, tirei quase todos das mãos dos tra cantes,
estavam fadados a morrer no crime.
– A senhora faz isso tudo sozinha?
– Não. Faço com a ajuda de Deus.
– Como a senhora faz para alimentar tanta gente?
Nessa hora, Flor se esforçou para chorar, mas não conseguiu. Fez uma
pausa dramática para comover. Caminhou até a cozinha. Sem falar nada, ela
mostrou as panelas para a câmera – agora vazias. Orientado por Anderson,
Carlos Ubiraci havia retirado toda a comida das panelas minutos antes. O
repórter fez uma pergunta clichê à Mãe Flor:
– O que a senhora está sentindo?
– Mesmo com ajuda divina, é difícil mostrar o caminho da dignidade
para esses meninos sem alimentá-los bem. Nós não temos condições de
comprar comida para tantos lhos. É muita criança para pouca refeição.
Olha a minha geladeira. [Flor abre a porta e mostra o eletrodoméstico com
duas garrafas de água, meio tablete de manteiga e três ovos.] Tem dias que
eu tenho de escolher quem vai comer e quem vai car com fome. Isso dói no
coração de qualquer mãe, sabia?
A muito custo, a supermãe nalmente conseguiu chorar. Anderson
vibrou nessa hora, dando um soco no ar. Mas o pranto de Flor não rolou
com naturalidade. Ela cobriu o rosto com as duas mãos para aumentar a
dose do drama e também para esconder uma falha evidente na sua arcada
dentária. Por falta de higiene bucal adequada, a missionária havia perdido
recentemente o dente canino do lado esquerdo, o de número 23. Com isso,
cultivou o hábito de tapar a boca na hora de rir e de chorar para esconder o
diastema frontal. Na ilha de edição da TV Cultura, com trilha sonora
comovente, a entrevista ganhou força. Como era de se esperar, o programa
teve pouca repercussão, por causa da baixa audiência da emissora estatal. No
entanto, um telespectador especial assistiu e se comoveu com Mãe Flor e
suas lágrimas tão falsas quanto uma nota de três reais: o sociólogo Herbert
de Souza, conhecido como Betinho, cou tocado com a história e resolveu
ajudar. Na época, ele tinha acabado de fundar a campanha Ação da
Cidadania Contra a Fome e a Miséria. Betinho e vários artistas, políticos e
socialites foram à TV, às rádios e aos jornais estimular o brasileiro a fazer o
que estivesse ao seu alcance para ajudar a resolver o problema da fome no
país. No início da década de 1990, o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) estimava que 33 milhões de brasileiros estavam abaixo da
linha da pobreza – ou seja, viviam com menos de 20% do salário mínimo
por mês. Na época, esse contingente correspondia a 20,6% da população.
Para efeito de comparação, em 2021, em situação de pandemia, o Brasil
mantinha 10,8% da população nas mesmas condições de precariedade.
Enternecido com a história dramática de Mãe Flor, Betinho mandou
entregar alimentos, roupas e sapatos na Rua Guarani. O sociólogo também
usou seus contatos para conseguir um espaço muito mais nobre para outra
reportagem, dessa vez no telejornal RJTV, do meio-dia, na TV Globo.
Empreendedor, Anderson tomou a frente e organizou melhor o cenário para
receber a equipe. Uma semana antes da hora marcada com os jornalistas,
ele, Mãe Flor, Carlos Ubiraci e Wagner pegaram mais meninos pelas ruas,
dando preferência para crianças de até 12 anos. Entusiasmado pelo interesse
da mídia, Anderson estava disposto a mover céus e terra para transformar
Flordelis na “Mãe de 50”. No dia da gravação, havia 35 hóspedes na casa.
Menos do que o planejado, porém bem mais do que na gravação com a TV
Cultura. Com comida na mesa e despensa cheia, o tom da reportagem foi a
solidariedade e o talento de Flordelis para ser mãe. Betinho participou da
mesma matéria, feita pela repórter Priscila Brandão, mas gravou em outro
lugar. Ao ter seu nome associado ao maior símbolo de cidadania, Flordelis
passou para outro patamar como celebridade da favela. Começou a ser
requisitada para dar entrevistas para o SBT, TV Bandeirantes e até para os
telejornais da Rede Manchete, prestes a sair de nitivamente do ar. Para não
car atrás, a TV Record também mandou uma equipe de reportagem
entrevistar Mãe Flor, mas os jornalistas ignoraram a ligação da missionária
com a Assembleia de Deus, já que a emissora pertencia ao bispo Edir
Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. Anderson também
usava um telefone público para oferecer pautas sobre a missionária do
Jacarezinho a emissoras de rádio e jornais impressos. Pensando no futuro,
ele fez uma agenda com o nome e o telefone de todos os jornalistas que
passaram pela Rua Guarani.
Nas entrevistas televisionadas, Flor falava de benevolência,
solidariedade, amor ao próximo e compaixão. As reportagens ocorriam
principalmente perto do Dia das Mães, Dia da Criança e na época do Natal.
Cínica, a missionária dizia com cara de Virgem Maria ter recebido um
chamamento de Deus para salvar os pequenos das mãos dos tra cantes do
Jacarezinho, dando ênfase à palavra “tra cantes”. “Essas crianças estavam
sendo engolidas pelo trá co”, repetia ela, feito um disco arranhado. Com a
ascensão da supermãe na mídia, a Assembleia de Deus do Jacarezinho
passou a tratá-la feito estrela. A carreira de mãe zelosa de Flordelis corria
paralelamente à de cantora gospel, já que ela continuava subindo ao tablado
da igreja para cantar louvores, principalmente nos cultos dominicais. Seu
público vinha aumentando paulatinamente, mas o futuro cargo de pastora
ainda era uma incógnita. Em casa, os confetes do sucesso da missionária na
TV e nos palcos caíam todos na cabeça de Anderson, que planejava em
detalhes as ações da companheira diante do brilho dos holofotes. Era
comum ouvir dele frases do tipo “se não fosse eu, a reportagem não teria
cado tão boa”. Ele tinha razão. Como as primeiras entrevistas não tinham
emoção su ciente, ele passou a ensaiar depoimentos e choro com a
namorada-mãe. Pegou um pedaço de madeira cilíndrico para simular um
microfone de reportagem, mandou Flor sentar-se no sofá e simulou dezenas
de perguntas, orientando-a em cada resposta. Ele também marcava o
momento de as lágrimas escorrerem, pois sem pranto seria impossível
sensibilizar o telespectador. “O choro tem um momento exato para
acontecer, caso contrário ele perde o impacto. Nessa hora, preste atenção:
você para de falar, prende a respiração, engole muita saliva de uma só vez,
olha para o teto calada, depois para o chão, solta a respiração e chama o
choro que ele vem. [...] Em seguida, você abaixa a cabeça e emenda o pranto
num festival de soluços para a entrevista ter um grand nale”, ensinava.
Às vezes, Wagner tentava ajudar nas instruções, sugerindo à mãe postiça
parar a entrevista dizendo que precisava beber um copo de água. “Nem
pensar!”, reprovava Anderson. “A entrevista não pode ter esse tipo de corte,
porque interrompe a emoção e acaba atrapalhando a edição”, ensinava.
Nessas simulações, Flor reclamava da di culdade de verter lágrimas sem
estar emocionada de verdade. “Amor, não sei chorar assim do nada. Eu me
esforço, me espremo toda e não sai nada”, queixou-se a missionária. “Você
não é cantora? Toda cantora é atriz. E toda atriz chora na hora que quiser.
Dê o seu jeito, nós vamos precisar das suas lágrimas caso queiramos subir na
vida adotando crianças abandonadas”, disse Anderson, segundo relatos de
Selma e de Olival. De tanto treinar com o companheiro, Flor aprendeu a
simular emoções. Havia pranto em quase todas as suas apresentações na
igreja. Em entrevistas, então, surgia uma torrente de lágrimas tão farta
quanto o mar de Copacabana. Anderson só não imaginava que o choro
ensinado sua amada seria providencial para ela fabular tristeza no dia da
morte dele, inclusive no momento de seu enterro.
De tanto Mãe Flor aparecer na mídia, ela começou a ser procurada por
empresários, conforme havia planejado com Anderson. Os primeiros a
chegar foram os irmãos Carlos e Pedro Werneck, donos de restaurantes e
hotéis, que atuavam no terceiro setor em busca de investidores dispostos a
patrocinar projetos sociais. Pedro se comoveu com as lágrimas de crocodilo
de Flor na televisão e resolveu ajudar. Tudo começou com um telefonema.
Sem ao menos fazer uma visita, até porque precisava de muita coragem para
entrar no Jacarezinho, Pedro parabenizou a missionária pela atitude de tirar
crianças do trá co e anunciou que faria um depósito semanal para ela, de
meio salário mínimo, para ajudar no custeio da casa. Trancados no quarto,
Flordelis e Anderson festejaram o sucesso do projeto – e principalmente o
contato dos irmãos Werneck – com um ritual de ocultismo. Anderson
agradeceu a Baphomet e os dois zeram um culto reservado para glori car
as imagens de São Cipriano e Exu Caveira, entidades associadas ao
satanismo. Betinho morreu em 1997, vítima de doenças decorrentes da
Aids, sem ver a criatura demoníaca na qual Flordelis estava se
transformando.
Nas cerimônias íntimas, a supermãe e seu lho-namorado-cúmplice
vestiam branco e acendiam velas vermelhas, apesar de esse não ser um
acessório usado por evangélicos – a prática, aliás, nem sequer aparece na
Bíblia. A bem da verdade, Flor e Anderson não estavam nem aí para as
escrituras sagradas. Num ritual bem particular, análogo ao satanismo, eles
transaram. Numa dessas sessões, os dois teriam cortado o dedo com um
estilete e esfregado sangue na face da imagem de Exu Caveira. Em seguida,
um lambeu o sangue do outro para selar um pacto de subir na vida
adotando crianças, ato classi cado por eles como “ lantropia divina”.
Filantropia, a propósito, é uma expressão formada pela junção de duas
palavras gregas: los, sinônimo de afeição e amor; e antropo, que quer dizer
homem e humanidade. Literalmente, portanto, “ lantropia” signi ca “amor
pela humanidade”, algo bem distante das intenções macabras do casal. Flor e
Anderson também liam trechos da Bíblia de Anton Szandor Levy, uma
coleção de ensaios e rituais mágicos de reverência a Satã como uma força
imbatível da natureza. Na Rua Guarani, esses rituais ocorriam de forma
reservada. Mas era possível aos “ lhos” ouvi-los da sala, pois a casa não
tinha forro. Numa das cerimônias, Flordelis e Anderson teriam vestido
roupas pretas para evidenciar o poder das trevas, segundo suas crenças. O
casal se posicionou em pé diante do quadro de Baphomet e começou a orar.
No meio do rito, Flor tirou o manto escuro, cando apenas de calcinha
vermelha para estimular seu parceiro sexualmente e, com isso, intensi car a
expansão de adrenalina e energia bioelétrica para alcançar um trabalho mais
poderoso. Na sequência, eles transaram. No dia seguinte, coube a Selma a
tarefa de limpar o quarto e lavar as roupas usadas pelos dois.
Na mesma semana, Anderson recebeu a ligação de um produtor do
Fantástico, da TV Globo, e outra de um jornalista da equipe do programa Jô
Soares Onze e Meia, do SBT. Esses contatos foram feitos logo depois de o
RJTV exibir uma terceira reportagem sobre Mãe Flor e sua missão de
resgatar órfãos do trá co. Foi quando duas visitas inesperadas e para lá de
indigestas bateram à porta da casa. Sandra Sapatão, número dois do
Comando Vermelho no Jacarezinho, chegou em uma caminhonete S-10,
cabine dupla, acompanhada de quatro “soldados” fortemente armados com
fuzis. Na mesma sala onde Flor costumava dar entrevistas para repórteres
falando da vida, a bandida avisou: “A parada é a seguinte, sua arrombada: se
você chamar mais um jornalista do asfalto ou um samango [policial] aqui
para a comunidade, vamos passar o cerol [assassinar] em você e nos seus
lhos, sua protestante de merda! Vai ser tanto pipoco [tiro] de metralhadora
que não vai ter cova pra todo mundo, sua puta de igreja!”. Sandra apontou a
arma para a cabeça da missionária na frente de Simone, Anderson, Carlos
Ubiraci e Wagner, nalizando a ameaça: “Não quero mais ouvir essa sua
boca imunda dizendo na TV que o trá co tem algo a ver com seu trabalho
sujo de recolher esses pobres diabos da rua, porque a favela inteira sabe a
putaria que rola aqui nesse prostíbulo. Vaca!”. Dado o recado, Sandra
evaporou-se com seu bando. Flor conhecia o potencial da tra cante, pois
ainda estava fresca na memória a imagem do ataque à padaria da família do
outro Anderson, o falecido ex-namorado de Simone.
A segunda visita na casa de Mãe Flor foi até tranquila, se comparada
com a de Sandra Sapatão. Ao lado de quatro policiais militares e um ônibus
da Vara da Infância e Juventude, um o cial de Justiça anunciou que tinha
um mandado de busca, assinado pelo juiz Liborne Siqueira, para levar todos
os moradores locais que não tivessem certidão de nascimento. Essa inspeção
era fruto da denúncia feita por Rose, que deu origem a um procedimento
investigativo no Ministério Público e foi acelerada com a exposição das
crianças na mídia. Flordelis começou a chorar copiosamente – não se sabe se
usava uma de suas habilidades cênicas recém-adquiridas, mas dessa vez
escorreram muitas e muitas lágrimas. Anderson pediu calma e a supermãe
desmaiou. Só havia doze “ lhos” na casa, incluindo quatro bebês. Alguns
minutos depois, Flordelis acordou. Ela se abraçou aos hóspedes, rolou pelo
chão e clamou aos céus. “Não tirem os meus lhos de mim!”, implorava,
dramaticamente. Na sequência, desmaiou mais uma vez. Anderson disse ao
o cial de Justiça que tinha toda a documentação, mas precisava de alguns
dias para se organizar. Ao ver a mãe desacordada no chão, as crianças
começaram a chorar. Comovidos com a cena, em comum acordo os policiais
e o o cial deram a eles um prazo de 24 horas e marcaram um retorno para o
dia seguinte. Na hora combinada, a equipe chegou distribuída em duas
viaturas, mais o ônibus, chamando a atenção de toda a favela. Mas a casa da
Rua Guarani estava fechada. Um policial abriu a porta e entrou,
encontrando um local fétido e completamente vazio. Anderson e Flor
haviam fugido com todos os querubins, deixando tudo para trás. Incrédulo,
o policial entrou no quarto do casal e levou um susto quando se deparou
com a imagem de Baphomet, imponente, a xada na parede. Perto dele havia
quatro velas vermelhas acesas e um pote de mel. No canto, as imagens de
Exu Caveira e São Cipriano. Um PM começou a arrancar o pôster quando
ouviu uma voz cavernosa fazer uma advertência sinistra:
– Se eu fosse você, não tocaria em nada!
– Quem é você? – quis saber o o cial de Justiça.
– Em nome de Satã, o soberano da Terra, o rei do mundo, eu comando
as forças das trevas a derramar seus poderes demoníacos sobre mim! Abram
totalmente os portões do inferno e venham diante do abismo para me
saudar como sua amiga, sua irmã! Concedam-me as indulgências de que
falo! Eu aceitei seu nome como parte de mim. Eu vivo com as bestas dos
campos exultando a minha vida material! Eu ofereço o justo e amaldiçoo o
corrupto! Por todos os deuses do subterrâneo, ordeno que todas essas coisas
que falo venham a se realizar. Venham adiante e respondam seus nomes pela
manifestação dos meus desejos, Baphomet!
Quando ouviram a invocação ao Diabo proferida por uma pessoa
desconhecida e toda vestida de preto, os homens da lei escafederam-se.
“Quem não tiver dinheiro nem cartão de
crédito para doar a Deus vai assinar uma nota
promissória sagrada.”

O
templo da Assembleia de Deus antes administrado por Demóstenes,
onde Flordelis soltava a voz aos domingos, prosperou com a gestão do
pastor José Maria de Oliveira, de 36 anos, o Zé da Igreja. A cúpula da
instituição religiosa estava satisfeita com seu trabalho porque a arrecadação
nanceira havia aumentado 30% em um ano, muito em função do
pagamento do dízimo pelos éis, das doações dos pequenos comerciantes do
bairro e principalmente pela injeção nanceira do Comando Vermelho. Em
1995, Zé da Igreja conheceu, em um dos cultos, a vendedora Izabela Coura,
de 22 anos. Ele estava solteiro desde a suposta tentativa de envenenamento
por sua ex-esposa, Eulália. Como a Assembleia de Deus não aceitava
pastores solteiros, ele tinha pressa em arrumar uma companheira, e Izabela
parecia a candidata ideal. Menina bonita, andava sempre bem-vestida e
usava maquiagem leve. Trabalhava na Avon vendendo cosméticos de porta
em porta durante o dia e fazia supletivo à noite. Ainda assim, tinha tempo
para assistir à pregação de Zé da Igreja todos os dias, no nal da tarde. Em
um culto festivo dominical, durante a apresentação da banda
gospel Marcenaria da Fé, o pastor aproveitou para se aproximar de Izabela.
Conversaram um pouco no corredor, foram tomar sorvete e a jovem falou
um pouco sobre sua vida e o sonho de se casar. Para espanto de seu
pretendente, entre uma lambida e outra na bola gelada de maracujá, Izabela
revelou-se católica. Sua família frequentava a paróquia de Nossa Senhora
Auxiliadora, onde ela foi batizada e recebeu a crisma, o sacramento no qual
o el aceita, pela ação do bispo, uma unção com óleo sagrado. Mas a moça
não estava certa se queria seguir o catolicismo, religião considerada a maior
comunidade cristã do planeta. “Ando meio perdida. Não sei qual religião
seguir. Essa é a verdade. Enquanto estiver em dúvida, vou pulando de galho
em galho – até me sentir totalmente acolhida. Já fui à Deus é Amor, mas
achei as pregações muito agressivas. Já as celebrações da Igreja Batista me
pareceram sem graça. Na próxima semana irei à Sara Nossa Terra, aberta
recentemente em Copacabana”, anunciou a ovelha totalmente desgarrada. Zé
da Igreja esperou o m do colóquio enfadonho e deu nela um beijo de
cinema. Os dois começaram a namorar no dia seguinte, um mês depois
estavam noivos e o casamento saiu em menos de um ano.
Na Assembleia de Deus, Izabela não almejava ser pastora, como ocorria
com a maioria das primeiras-damas dos templos. Ela assumiu o papel de
cúmplice e colaboradora no ministério do esposo, nas funções
administrativas na secretaria, como scalizar o trabalho na tesouraria.
Izabela também auxiliava o marido nos cultos. No entanto, sua decepção
com a Assembleia de Deus veio com a mesma rapidez com que engrenou a
vida amorosa: a garota cou incomodada quando percebeu a ligação escusa
da igreja com o Comando Vermelho. Certa vez, ela estava na secretaria
fechando o caixa das doações nanceiras quando foi surpreendida com a
chegada de um tra cante acompanhado de três “soldados”, todos fortemente
armados. A quadrilha trazia uma mochila abarrotada de notas de 5 reais.
Um dos bandidos abriu o zíper e ordenou que as funcionárias contassem o
dinheiro. Depois de passarem nota por nota, elas anunciaram o total de
1.985 reais. Os tra cantes deram pela falta de 15 reais, pois deveria haver 2
mil reais na mochila. Descon ado, um dos soldados pediu a Izabela e suas
auxiliares que repetissem o processo até o valor chegar aos 2 mil reais
redondos. No tira-teima, o montante alcançou 1.990 reais. Para se livrar dos
marginais, Izabela tirou 10 reais da bolsa e completou a diferença. Em casa,
os dois brigavam porque a esposa não tolerava o contato com tra cantes. “É
como se Deus e o Diabo andassem de mãos dadas”, argumentava ela. Numa
dessas discussões, Zé da Igreja, imprudente, sentou um tapa no rosto da
mulher. Depois da agressão, ela se tornou uma companheira circunspecta.
Na secretaria, Izabela ofereceu resistência, recusando-se a conferir o
dinheiro do crime. “Quanta hipocrisia!”, retrucava o marido.
Em meados da década de 1990, segundo denúncia do Ministério
Público, a Assembleia de Deus e outras instituições religiosas do Jacarezinho
transformaram-se em verdadeiras lavanderias do dinheiro sujo do trá co.
No templo onde Flordelis congregava, a lavagem ocorria desde a época do
pastor Diógenes. O esquema, segundo uma investigação da Polícia Federal,
funcionava assim: os líderes pediam dinheiro ao Comando Vermelho para
reformar os prédios das igrejas, encomendar bancos de madeira em
marcenarias e instalar sistemas de som. Os tra cantes doavam quantias
entre 50 e 100 mil reais, dependendo do tamanho do templo. No entanto,
para o dinheiro ilícito voltar para as mãos dos tra cantes de forma “legal”, o
Comando Vermelho indicava os locais em que o capital deveria ser gasto
pelos pastores. Os bandidos recomendavam lojas de materiais de construção
e até supermercados, caso os sacerdotes comprassem alimentos para fazer
doações.
Essas aquisições eram extremamente superfaturadas, para lavar a maior
quantia possível. Para se ter uma ideia, em 2019, uma única operação da
Polícia Civil do Rio de Janeiro encontrou um mercadinho no Jacarezinho
cujo caixa movimentou 30 milhões de reais em um ano, sem ter lastro para
tal cifra. Com os desdobramentos das investigações, descobriu-se que o
verdadeiro dono do pequeno comércio era Marcus Vinicius da Silva, o
Lambari, comandante-mor do Comando Vermelho no Rio de Janeiro. Na
década de 1990, a lavagem de dinheiro do trá co já era operada por
Lambari, que tinha Sandra Sapatão como sua assistente número 1. Era ela
quem mandava os “soldados” levarem ao templo de Zé da Igreja as mochilas
com as notas amassadas de 5 reais, conhecidas na simbiose do trá co com os
religiosos como “dinheiro sofrido”.
Já com dois lhos pequenos, conformada e até familiarizada com o entra
e sai de bandidos na tesouraria da Assembleia de Deus do Jacarezinho,
Izabela conheceu a carismática Sandra Sapatão, de quem virou amiga e
con dente. A tra cante xavecava Izabela, mas não ultrapassava os limites do
bom senso: seus galanteios vinham sempre embalados por elogios e só.
“Você é uma mulher muito bonita para car trancada numa sala sem
janelas, nos fundos de uma igreja de favela”, dizia. Em outras ocasiões,
Izabela tinha a perfeição do seu rosto elogiada pela lésbica. Envaidecida, a
esposa de Zé da Igreja agradecia o enaltecimento e desconversava
sutilmente, rea rmando sua predileção por homens. Por uma questão de
respeito, a tra cante nunca fez uma investida mais agressiva. “Valorizo
muito mais a amizade”, dizia. Certo dia, os ventos mudaram para Sandra
Sapatão: a Polícia Civil fez uma investida no Jacarezinho para tentar
capturá-la. Por meio de uma denúncia anônima, os investigadores
descobriram as ruelas por onde a tra cante andava sem a proteção dos
“soldados”. Como já tinha laços bastante estreitos com a bandida, Izabela
ofereceu a própria casa para esconder a amiga da polícia. Sandra aceitou o
gesto de carinho sem pestanejar. Como não havia sido consultado, Zé da
Igreja teve uma síncope quando se deparou com a malfeitora de alta
periculosidade sentada bem à vontade no sofá da sua sala dando papinha
para seu lho mais novo, de 1 ano e meio de idade. O pastor arrastou a
esposa pelo braço até o quintal, onde tiveram uma conversa em particular.
– Que porra é essa?! O que essa tra cante está fazendo aqui?
– A polícia está caçando a Sandra na favela inteira e dei abrigo a ela. Tem
dois “fogueteiros” lá na entrada da rua de olho em tudo. Se a polícia chegar
lá, eles mandam avisar aqui.
– Você enlouqueceu? – questionou o marido.
– Olha, eu disse a você que queria distância do trá co, lembra? Você me
provou que era impossível administrar uma igreja no Jacarezinho sem fazer
negócios com o Comando. E tinha toda a razão. Agora estamos aqui dando
abrigo a uma tra cante! – argumentou Izabela.
Na juventude, Sandra Sapatão havia sido uma mulher atraente. Com o
passar do tempo, foi adquirindo expressão de gênero masculino. Sorridente,
usava camiseta regata para mostrar os braços musculosos e mantinha o
cabelo sempre curtinho. Sua aparência chamava a atenção das mulheres
lésbicas do Jacarezinho. Apesar de ser considerada pela polícia uma das
bandidas mais procuradas e violentas do Rio de Janeiro, era querida na
comunidade. Tinha fama de ajudar as pessoas mais necessitadas e chegava a
poupar insubordinados das sentenças de morte decretadas pelo tribunal do
crime mantido pelo Comando Vermelho nas quebradas do Rio de Janeiro,
como fez com Carlos Ubiraci. Esses predicados facilitavam sua vida,
principalmente quando ela precisava de abrigo.
Todas as vezes que a polícia fazia investidas na favela, a maioria dos
tra cantes escondia-se bem longe do Jacarezinho. Lambari chegava a fugir
do Rio de Janeiro. Com Sandra era diferente, pois a própria comunidade lhe
oferecia abrigo. Ela chegava a ser disputada por famílias carentes, pois onde
escolhia se hospedar não faltava nada: sua primeira providência era
abastecer a despensa com alimentos e bebidas de primeira qualidade. Com
Izabela e Zé da Igreja não foi diferente. Ainda assim, o pastor se mostrava
incomodado com a presença da bandida. “Quando ela vai embora?”,
perguntou ele à esposa. “Não tem previsão”, respondeu Izabela,
confortavelmente. “Uma visita não pode se hospedar com outras pessoas
sem dizer a data da saída”, reclamava o marido. “Então use a sua
masculinidade e pergunte a data a ela, caso tenha coragem!”, devolvia a
mulher. A bem da verdade, Zé da Igreja se pelava de medo da tra cante, que
andava com uma pistola na pochete e um fuzil poderoso pendurado nos
ombros. Depois de um mês, mesmo com a desistência da polícia em
encontrá-la, Sandra permanecia na casa. Saía para resolver pendências do
Comando Vermelho no início da manhã e voltava à noite para dormir. Para
piorar a situação, ela começou a fazer do endereço um bunker para conferir
dinheiro do trá co, mais tarde encaminhado à “lavanderia” da Assembleia
de Deus. Certa vez, Zé chegou da rua e encontrou Sandra e Izabela
conferindo notas na mesa da cozinha, escoltadas por dois “soldados”
armados com metralhadoras. Ele não falou nada, mas a expressão de seu
rosto denunciava indignação com a cena. Incisiva, a tra cante perguntou:
– Algum problema, pastor?
– Não! Imagina! Está tudo na paz do Senhor... – disfarçou ele.
Num dia em que estava sozinho com a esposa e as crianças, Zé da Igreja
iniciou uma discussão. Izabela carregava o lho caçula no colo, enquanto o
maiorzinho assistia à televisão na sala. O marido começou um embate
acalorado, atribuindo à mulher a responsabilidade pela estadia inde nida de
Sandra. Segundo ele, se Izabela não tivesse estreitado laços além do
necessário com a bandida, ela já teria ido embora. “Nosso lar virou uma lial
do Comando Vermelho. Daqui a pouco os tra cantes vão enrolar papelotes
de cocaína em nossa mesa de jantar”, berrava Zé da Igreja. Num arroubo de
sinceridade, Izabela disse ao marido que, por ela, Sandra caria morando lá
para sempre. Movido por impulso, o pastor desferiu um murro tão forte no
rosto da esposa que, por muito pouco, a criança não caiu de seu colo. Izabela
sentou-se no sofá com uma dor imensurável. Em uma hora, seu rosto cou
com um hematoma enorme e o olho direito desapareceu, engolido pelo
inchaço roxo de sangue pisado. Ao ver a face da esposa parcialmente
deformada, Zé se ajoelhou arrependido e começou a chorar copiosamente,
dizendo não ter sido ele o autor de tamanha violência. “Olha só o tipo de
coisa que você me faz fazer”, justi cou o pastor. Em seguida, o agressor
recorreu ao clichê barato de atribuir suas ações violentas ao Diabo, que teria
entrado no corpo dele num momento de fraqueza e desequilíbrio
emocional. “O estresse enfraquece o espírito e as portas da nossa alma se
abrem para o Satanás...”
Incrédula e em estado de choque, Izabela chorou calada. Pegou os dois
lhos e se trancou no quarto. À noite, Sandra Sapatão chegou para jantar e
perguntou pela amiga. Amedrontado, Zé da Igreja sustentou que ela estava
com dor de cabeça e se recolheu para dormir mais cedo. Na manhã seguinte,
quando Sandra já havia saído “para trabalhar”, Izabela deixou o quarto
falando em separação. Zé não aceitou o divórcio e culpou a hóspede
inconveniente pela crise conjugal. “Desde que essa mulher entrou aqui,
nossa vida amorosa degringolou. Nem à igreja você tem ido”, reclamou. A
esposa insistiu no m do casamento e levou um segundo murro no rosto –
testemunhado por Sandra, que acabara de voltar da rua. Ao agrar Zé da
Igreja destruindo o rosto perfeito da amiga, a tra cante mirou uma
submetralhadora na lâmpada do teto e disparou. Em seguida, apontou a
arma de grosso calibre para a cabeça do pastor. “Começa a rezar, servo do
Satã!”, mandou. Acuado, ele se ajoelhou, suando em bicas e implorando
desesperadamente pela vida. Izabela pediu à Sandra que não assassinasse o
pai de seus lhos. Apaixonada, a bandida obedeceu. “Você deve a vida a ela,
seu pedaço de merda! Nunca se esqueça disso! Anota o que vou te falar: se
procurá-la sob qualquer pretexto, você será carbonizado vivo!”. Izabela
arrumou suas coisas, passou a mão nos meninos e foi morar com Sandra
Sapatão do outro lado do Jacarezinho. Sem nunca terem tido qualquer tipo
de contato sexual, as duas tornaram-se melhores amigas. Izabela assumiu
um cargo de con ança na contabilidade do Comando Vermelho. Acabou
namorando Lambari, o número 1 da contravenção no Jacarezinho. Zé da
Igreja nunca mais esqueceu o dia em que perdeu a mulher para o trá co.

* * *

Para escapar do Juizado de Menores, da polícia e de tra cantes do


Comando Vermelho, Anderson, com 18 anos, e Flor, com 34, executaram
um conjunto de ações ousadas, num plano inteiramente bolado por ele. Em
1995, havia na casa da Rua Guarani uma miscelânea de mais ou menos
trinta cabeças, entre lhos biológicos, adotados, afetivos, agregados,
encostados, emprestados, hóspedes passageiros e até meninos cujas mães
precisavam trabalhar o dia inteiro, mas não tinham com quem deixar os
rebentos. Insana, até essas crianças Flor chamava de “ lhos”. O primeiro
passo do plano de Anderson foi “enxugar” a ninhada. Orientada por ele,
Flor devolveu para os respectivos pais três jovens com idade entre 7 e 12
anos, consideradas “insubordinadas”. Para poupar os dois lhos biológicos
mais novos das intempéries e dos perigos da rua, a missionária deixou
temporariamente Flávio e Adriano, apelidado de Pequeno, com a irmã mais
velha, Laudicéia. “Para onde você está indo, sua louca?”, quis saber a moça.
“Não faço a menor ideia. [...] Vou para onde o destino me levar”, respondeu
Flor. Em seguida, o casal saiu em debandada pelas ruas do Rio de Janeiro,
levando consigo um grupo de 25 “ lhos”, sendo três bebês de colo – dois
deles retirados dos braços de mulheres usuárias de drogas e o terceiro
deixado temporariamente pela mãe na Rua Guarani, como se ali fosse uma
creche. A batida em retirada começou na madrugada de terça-feira, 28 de
junho de 1995, após um jantar bem reforçado. “Comam bem, pois sabe-se lá
quando faremos uma nova refeição”, orientou Flor. No menu, pão com ovo,
café com leite e mingau de amido de milho para as crianças, carne com
feijão-preto e farinha de mandioca para adolescentes e adultos. Sempre em
busca de referências religiosas, Flor comparou a fuga do Jacarezinho à
jornada de Moisés, personagem bíblico escolhido por Deus para liderar a
saída dos hebreus do Egito, onde eram escravizados, rumo à terra prometida
de Canaã.
Foi Anderson quem de niu o roteiro e guiou a marcha noturna. O
grupo saiu do Jacarezinho a pé, na madrugada, e seguiu sorrateiro pelas
vielas escuras da favela para não encontrar os “olheiros” dos tra cantes. A
maioria caminhava calçando sandálias de borracha, num trajeto que levou à
Rua Leopoldo Bulhões, na comunidade de Manguinhos, e seguiu pela
Avenida Dom Hélder Câmara e pela Rua Luiz Gonzaga, até chegar a Ben ca,
bairro localizado na região de São Cristóvão, zona norte do Rio. Durante a
procissão, Flordelis e seu séquito chamavam a atenção de populares, porque
todos andavam de mãos dadas, formando uma grande centopeia humana.
Cobertos por mantas, os três bebês eram carregados por Simone, Carlos
Ubiraci e Cristiana. Para dar um tom ainda mais dramático ao cortejo, a
grande família entoava cânticos de louvor, como o clássico Segura nas mãos
de Deus. Um trecho diz: “Se a jornada é pesada e te cansas da caminhada,
segura na mão de Deus e vai orando, jejuando, con ando e confessando”.
Cantadas em coro por crianças e adolescentes, liderados pela voz potente de
Flordelis, as músicas sensibilizaram quem passava de carro. Alguns
motoristas ofereciam carona, mas eles recusavam, pois a romaria desumana
fazia parte do ritual de sacrifício. Quando o grupo chegou ao Largo do
Machado, no bairro de Laranjeiras, o dia estava clareando. Anderson
organizou os meninos em la indiana, do menor para o maior, despertando
a curiosidade de quem seguia para rezar a missa matinal da igreja de Nossa
Senhora da Glória. Na praça, aos pés da estátua de Nossa Senhora da
Conceição, mortas de fome, as crianças maiores começaram a mendigar
feito moradores de rua. Não demorou para ganharem alimentos. Outros
meninos – sem-teto e sem-rumo – juntaram-se à família, aumentando o
comboio. “Quanto mais ‘ lhos’ de rua, melhor para valorizar a nossa causa”,
justi cava Anderson.
No nal da tarde, Flor e seus seguidores já haviam almoçado. Do Largo
do Machado, foram cantando pela Rua Senador Vergueiro até a praia de
Botafogo. Pararam embaixo do Viaduto San Tiago Dantas, uma edi cação
histórica projetada por Affonso Eduardo Reidy, arquiteto autor do Museu de
Arte Moderna e do monumento dos Pracinhas no Aterro do Flamengo. Lá,
juntaram-se a um grupo de moradores de rua, onde recrutaram mais dois
“ lhos”: Ginaldo Acioly, 16 anos, vulgo Orelhinha, e Adonai Xavier, 17,
conhecido no submundo como Xaropinho. Ambos moravam no Morro do
Alemão, mas vadiavam pelas ruas para escapar da polícia. A dupla praticava
assalto à mão armada em pequenas lojas de bairros nobres da cidade. Numa
das investidas, os dois entraram numa unidade franqueada de O Boticário,
em Copacabana, e apontaram uma pistola para a funcionária responsável
pelo caixa. Levaram tudo. Na saída, toparam com um estudante usando um
celular Motorola, artigo de gente endinheirada na época. Orelhinha já tinha
guardado a arma e exigiu o telefone da vítima. Como teve a solicitação
negada, o ladrão sacou a pistola e pediu mais uma vez. O estudante en ou a
mão no bolso e acabou levando um tiro no ombro. A dupla pegou o celular e
fugiu em disparada rumo ao Morro do Pavão-Pavãozinho. Hospitalizado, o
rapaz sobreviveu, mas os dois marginais passaram a ser procurados
insistentemente pela polícia. Ao se in ltrarem na “família” de Flordelis,
Orelhinha e Xaropinho logo se entrosaram com Selma, a “ lha” aprendiz na
bandidagem. Com os novos membros, a gangue já somava novamente trinta
membros.
Na primeira noite sob o viaduto, che ados por Carlos Ubiraci e Wagner,
os adolescentes maiores saíram pela redondeza em busca de papelão para
servir de cama. Extremamente cansada, a “família” dormiu ao relento,
inclusive os três bebês, cobertos por várias camadas de jornais. Estavam ali,
lado a lado, Flordelis, Anderson, Simone e seu irmão-namorado André Luiz,
Carlos Ubiraci, Wagner, Cristiana, Alexsander, Rayane, Selma e seu irmão-
namorado Olival, Orelhinha e Xaropinho, entre outros. No meio da
madrugada, os bebês começaram a chorar de fome. Flor, Simone e Cristiana
os embalavam insistentemente, mas nada adiantava. Mesmo sem um tostão
no bolso, Selma e Olival saíram em busca de alimento para os irmãozinhos.
Caminharam três quadras pela beira-mar até chegarem a uma pracinha
escura frequentada por namorados em busca de privacidade para transar ao
ar livre.
Com experiência em pequenos assaltos à mão armada, Selma mantinha
com ela um canivete dentro da calça jeans justa no corpo. Desarmado,
Olival resolveu acompanhar a namorada. A menor infratora abordou um
casal que namorava do lado de fora do carro. Primeiro pediu uma ajuda
nanceira, que foi negada. “Por favor! Me dê qualquer trocado. Minha
família está dormindo embaixo do viaduto com três nenês famintos”,
insistiu. “Dê o fora daqui!”, retrucou o rapaz da zona sul, irritado. Olival
pegou a namorada pelo braço e quis deixar o local, mas ela insistiu. “Se você
me der uma moeda de 1 real já é alguma coisa. Ajuda aí, vai...”. “Porra, já
disse para você sumir!”, esbravejou. A jovem que estava com ele en ou a
mão no bolso, em busca de uma nota para dar a Selma. “Vamos embora”,
reiterou Olival, amedrontado. Num ímpeto, Selma pegou o canivete e cortou
o ar – ao mesmo tempo ela viu uma pistola apontada para sua cabeça. Olival
saiu às pressas e atravessou a Avenida Repórter Nestor Moreira até chegar ao
estacionamento do Clube de Regatas Guanabara. De lá, ouviu gritos de
mulher seguidos de três disparos de arma de fogo. Apavorado, seguiu
correndo pela praia de Botafogo até alcançar o viaduto onde o grupo
permanecia abrigado. Olival estava aos prantos, acreditando na
possibilidade de Selma ter sido assassinada na reação das vítimas ao assalto.
Flor sugeriu uma corrente de orações.
Duas horas depois, a garota chegou ao viaduto sorridente, segurando
seis sacolas de supermercado com papinhas de bebê, pacotes de biscoitos
doces e salgados, latas de refrigerante, papel higiênico e até absorvente
higiênico. Orelhinha e Xaropinho caram boquiabertos com a atitude de
Selma e decepcionados com a falta de coragem de Olival. A assaltante
escapou porque seu algoz havia atirado para o alto. Apavorada, ela se
acocorou e, com as mãos na cabeça, começou a chorar desesperadamente.
Segundo contou, o casal se compadeceu ao ouvir toda a história dramática
da sua “família”. “Debaixo do viaduto tem mais de trinta crianças com fome”,
dizia ela repetidamente. Os namorados, então, a levaram até um
supermercado 24 horas para fazer as compras. Flordelis já conhecia a
tendência de Selma para o crime. Anderson teria nomeado a menina mais a
dupla Orelhinha e Xaropinho como os provedores do grupo. “Mas só vamos
lançar mão desse expediente em casos extremos. [...] Aqui ninguém faz
coisas erradas sem a minha autorização”, alertou Anderson aos “ lhos” que
tinham os pés en ados no crime. Era comum o trio sair de baixo do viaduto
para cometer delitos pela redondeza. Com ciúme da irmã-namorada, Olival
também passou a praticar pequenos furtos nas praias da zona sul com os
marginais. Começou furtando telefone celular, carteira e óculos escuros de
turistas incautos que largavam suas coisas na areia da praia para mergulhar
no mar. Depois, anunciava assalto usando arma de brinquedo. Evoluiu para
uma pistola de pressão com munição de chumbinho.
Na época da fuga de Flor, os irmãos Werneck ainda mantinham o
pagamento semanal de meio salário mínimo para ajudar nas despesas da
missionária. O dinheiro era depositado na conta de Anderson no Banco do
Brasil e usado em gastos básicos, como pequenas compras de supermercado.
Mas o recurso era insu ciente para alimentar tantas bocas e todo o mundo
tinha de batalhar pedindo esmolas e intensi cando a prática de pequenos
furtos. Embaixo do viaduto, Flor costumava pregar para seus lhos feito
pastora, falando das adversidades da vida em família imposta por Deus,
segundo ela. Durante o louvor, mendigos se juntavam para ouvir os sermões
da missionária. Depois de uma semana abrigada sob o viaduto de Botafogo,
a “família” foi surpreendida à noite durante um culto por uma aproximação
da Polícia Militar. Quando cinco viaturas encostaram no local, parte dos
moradores de rua envolvidos em crime andou lentamente rumo à praia.
Flordelis, com medo de ser presa, interrompeu a oração e cobriu-se com
papelão. Os policiais acenderam um holofote na direção dos sem-teto e
seguiram adiante, sem ao menos descer do carro.
No dia seguinte, Wagner, Alexsander e Carlos Ubiraci saíram com os
meninos mais novos para mendigar pela orla da praia do Leme. No
caminho, recolhiam jornais e papelões das lixeiras. Parado perto de um
quiosque, Ubiraci quase desmaiou quando viu na televisão o noticiário
RJTV, da TV Globo, usando imagens da entrevista feita com Flordelis e sua
prole numerosa numa reportagem sobre a fuga. Encarando a câmera, uma
repórter disse enfaticamente que a missionária estava sendo procurada pela
polícia. O telejornal também mostrou imagens da casa da Rua Guarani,
totalmente fechada, e entrevistas com Carmozina, Rose e até com o pastor
Zé da Igreja, que a rmaram não ter a menor ideia do paradeiro da
supermãe. Nos jornais impressos do dia seguinte, a grande família
estampava as manchetes policiais.
Na edição de O Dia de 12 de julho de 1995, um alto de página tinha o
seguinte título: “Procura-se Flordelis”. Algumas mães biológicas de crianças
levadas pela missionária foram até a polícia e contaram ter deixado os lhos
na Rua Guarani acreditando se tratar de uma creche. Essas mulheres
acusaram Flordelis diretamente de “roubo”. No dia seguinte, as reportagens
sobre o sumiço da missionária ganharam mais destaque, porque o assunto
era abordado na mídia feito novela. Com base em depoimentos de mães,
o Jornal do Brasil estampou uma foto da cantora, acusando-a de sequestro.
“Dona de creche desapareceu com 43 crianças”, escreveu O Dia, in ando o
tamanho da centopeia humana. Com tanta repercussão negativa sobre a
“ lantropia” da supermãe do Jacarezinho, os Werneck resolveram suspender
o repasse nanceiro para a conta bancária de Anderson. Quando percebeu
que o dinheiro não havia caído, ele telefonou para Pedro Werneck.
– Doutor Pedro, bom dia! Espero que o senhor esteja bem. Percebi que a
sua caridade não chegou à minha conta bancária. Aconteceu algum
problema?
– Vocês estão sendo acusados de sequestro. Está em todos os jornais –
ponderou o empresário.
– A imprensa está mentindo. Estamos fugindo porque a Justiça
simplesmente quer tirar os nossos lhos.
– Onde vocês estão?
– Fixamos moradia debaixo de um viaduto e estamos passando fome. Se
o senhor não contribuir mais com esse dinheirinho, três bebês de colo vão
morrer de desnutrição. Pelo amor de Deus, doutor. Não deixe que isso
aconteça. [...] A vida desses anjinhos está em suas mãos!
Para checar se a história contada por Anderson era verdadeira, os
irmãos Werneck passaram discretamente de carro pelo viaduto. Comovidos
com o que viram, os empresários não só voltaram a colaborar como ainda
aumentaram os repasses para dois salários mínimos. Nessa época, eles
vinham investindo no terceiro setor, contribuindo com causas humanitárias
voltadas para a defesa dos direitos da criança e do adolescente e articulando
doações com diversos empresários do Rio de Janeiro. Em 1998, fundaram
o cialmente o Instituto da Criança, que mais tarde caria famoso a reboque
da ascensão de Flordelis e sua falsa vocação para a caridade. Com o tempo, o
trabalho dos irmãos Werneck cresceu e alcançou projeção internacional.
Em 2016, quando foi eleito uma das 100 melhores organizações não
governamentais do mundo pela publicação suíça e Global Journal, o
Instituto da Criança mantinha dezesseis projetos sociais, bene ciando mais
de 3 mil pessoas. Uma dessas ações construiu, na época, 24 casas de
alvenaria para desabrigados de uma das tradicionais enxurradas da região
serrana do Rio, muito comuns nas viradas de ano. Para esse projeto, os
Werneck conseguiram levantar 4 milhões de reais com vinte empresários.
No high society carioca, a família era conhecida pela falta de vergonha na
hora de passar o pires em busca de colaboração nanceira de empresários
ricos para seu instituto. Certa vez, Pedro caminhava pela praia do Leblon
quando encontrou, por acaso, o amigo Mário Pedro Moraes Rego, dono da
grife Eclectic, e os dois sentaram-se despretensiosamente para tomar uma
água de coco. No meio da conversa, Pedro engatou as histórias tristes dos
menores abandonados, incluindo o trabalho “ lantrópico” de Flordelis em
resgatar meninos do trá co. A lamúria convenceu o amigo a colaborar com
os projetos do Instituto da Criança.
Com o dinheiro dos Werneck no bolso, Anderson foi às compras todo
sorridente. Chegou ao viaduto com sacolas cheias de marmitas com pratos
feitos e refrigerante. Ao contar a novidade sobre o aumento da doação dos
empresários, arrancou aplausos e gritos de euforia. Mas a alegria durou
pouco. Carlos Ubiraci chegou com os jornais cariocas e suas páginas
policiais noticiando a fuga alucinante de Flordelis, causando apreensão e
medo. Nervoso, Anderson foi até um telefone público ligar para os velhos
amigos das orgias na praia – Samir e eo –, implorando socorro. “Me
ajudem a salvar essas crianças”, suplicou. Preocupada, Flor foi ao encontro
de Rose na Igreja Evangélica de Con ssão Luterana no Brasil, no
Jacarezinho. Da amiga, ouviu outra notícia aterrorizante: os tra cantes do
Comando Vermelho tentavam encontrá-la antes da polícia para executá-la a
sangue frio, conforme havia sido prometido por Sandra Sapatão.
Os bandidos estavam irritados com Flordelis por ela ter atraído a polícia
e a imprensa à favela, atrapalhando as atividades criminosas. Todas as vezes
que uma viatura entrava na comunidade em busca de Flor, o comércio de
drogas era interrompido e os tra cantes se entocavam. Só botavam a cara ao
sol novamente quando os policiais se retiravam. Da casa de Rose, Flor
planejava visitar Carmozina e Laudicéia. Com medo de ser assassinada,
porém, preferiu sair da favela imediatamente. A missionária caminhou a
passos largos da igreja de Rose até a Praça da Concórdia, no centro do
Jacarezinho, subiu na garupa de um mototáxi e seguiu até o estádio do
Maracanã, onde pegou um ônibus rumo ao Viaduto San Tiago Dantas, em
Botafogo. Embaixo do monumento, ela, seu lho-namorado e o núcleo duro
da família, composto ali por Carlos Ubiraci, Simone, Wagner, Cristiana e
André Luiz, zeram uma reunião para decidir seus próximos passos. Com
medo de perder a mãe, Simone propôs o retorno para a Rua Guarani e
sugeriu entregar ao Juizado de Menores quem não tinha registro, como
determinava o juiz Liborni Siqueira. Cerca de trinta crianças e adolescentes
ouviram a sugestão da irmã mais velha e começaram a chorar. “Nem pensar!
São todos meus lhos! Pre ro mil vezes a morte a me desfazer deles”,
esbravejou Mãe Flor. Anderson também descartou a possibilidade de
entregá-los. “Nossos lhos são o nosso ganha-pão. Sem eles, perderemos a
ajuda dos Werneck. Sem eles, adeus mídia”, argumentou o bancário.
À noite, Carlos Ubiraci pegou dinheiro com o “pai” e foi até a padaria.
Comprou noventa pães franceses, 250 gramas de manteiga e cinco garrafas
de refrigerante de dois litros, além de potinhos com papinhas para os três
recém-nascidos. Um deles, aliás, vinha rejeitando o alimento e começou a
preocupar Mãe Flor. Carlos Ubiraci, considerado o líder do rebanho,
organizou o jantar. Para cada um dos “ lhos” mais chegados, ele abriu com
as mãos dois pães franceses, passou manteiga usando uma colher de plástico
e serviu com refrigerante no meio da calçada. Depois, deu a cada um dos
“secundários” um pão fechado e sem manteiga. Apesar de contribuir com o
sustento da família praticando assaltos nas redondezas, Selma teve a
manteiga negada, gerando o primeiro con ito no grupo. Marrenta, ela
questionou em voz alta:
– Qual critério você usou para escolher quem deve ganhar pão seco e
quem deve ganhar pão com manteiga?
– Em primeiro lugar, abaixe esse tom! Em segundo lugar, não temos
manteiga para todo o mundo, então eu priorizo quem está conosco há mais
tempo – explicou o líder.
– Esse critério não me parece justo, pois nós saímos todos os dias para
ajudar no sustento da família – argumentou Olival.
– Também quero manteiga, porque eu trago uns bagulhos da rua pra cá!
– exigiu Orelhinha.
– Infelizmente, regras são regras! – insistiu o gerente da turma.
Anderson e Flordelis discordaram de Carlos Ubiraci, mas resolveram
não interferir para não tirar a autoridade do líder. Orientada sutilmente pela
mãe, Simone retirou oito pães da sacola, passou manteiga e deu
discretamente aos bandidos-mirins. Orelhinha e Xaropinho comeram e
saíram para praticar assaltos em Copacabana. Olival agradeceu a oferta e
recusou. Ele pegou sua namorada pelo braço e saiu para “jantar fora”. Os
dois entraram em um táxi na praia de Botafogo e pediram ao motorista que
os deixasse na Central do Brasil. Quando o carro entrou no Viaduto
Engenheiro Noronha, Olival puxou a pistola de pressão da cintura e apontou
para a cabeça do motorista, anunciando o assalto. A ousadia foi cometida a
poucos metros do Palácio das Laranjeiras, residência o cial do governador
do Rio de Janeiro, uma área altamente vigiada por policiais do Batalhão de
Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar. Apavorado, o condutor deu
cerca de 200 reais, ou seja, todo o dinheiro de um dia inteiro de trabalho.
Olival e Selma desceram do táxi em frente ao Cemitério do Catumbi,
entraram numa lanchonete e comeram hambúrgueres com Coca-Cola.
Durante o jantar, o casal decidiu abandonar a grande família. Não pela treta
envolvendo pão com manteiga, mas por decidir enveredar de nitivamente
para o crime. Com isso, não seria mais prudente car ao lado de Flordelis,
que tinha a Justiça em seu encalço.
Na mesma noite, uma outra viatura da Polícia Militar encostou no
viaduto e identi cou Flordelis com os demais foragidos. Dois homens da lei
chegaram bem na hora em que a trupe se arrumava para dormir. Enfático,
um dos policiais ordenou que todos cassem em pé, encostassem numa
pilastra virados de costas e com as mãos na cabeça. Flor começou a chorar
copiosamente, implorando para não machucarem ninguém. Um morador de
rua conhecido na área se aproximou e defendeu a supermãe, citando os
cuidados dela com as crianças, principalmente com os bebês. O sem-teto
falou aos policiais que ela havia “adotado” até uns garotos de rua cuja
moradia era o concreto do viaduto. “Agora eles fazem duas refeições por dia.
Larguem ela em paz e vão procurar bandidos no morro!”, gritava a
testemunha. Sabendo da fuga de Flor e seus “ lhos”, o policial a interrogou:
– A senhora sabe que está sendo procurada pela Justiça?
– Sei, sim senhor! – admitiu a missionária.
– De quem são essas crianças?
– São todas minhas! – reiterou.
– Prove que elas são suas!
– [Silêncio]
– Por que a senhora não entrega todas ao Juizado e acaba logo com isso?
– O senhor entregaria um lho seu? – perguntou Flor, emocionada.
– [Silêncio]
– Responda!
– A senhora está presa! – anunciou o policial.
Como era de se esperar, cerca de trinta “ lhos” de Flor se juntaram a ela
e se deram um abraço coletivo em meio a uma choradeira sem m. Pelo
rádio do carro, um dos policiais pediu um micro-ônibus para conduzir a
grande família do viaduto à delegacia. No aglomerado de gente havia lha
biológica, lhos afetivos, criança roubada, criança emprestada, três bebês e
até meninos de rua agregados recentemente. Com dó, os moradores de rua
também se juntaram e abraçaram todo mundo. Um dos policiais foi
informado pela base: o veículo só chegaria dali a três horas. O choro coletivo
continuava. Com os olhos ensopados, Rayane perguntou para onde iria.
“Provavelmente para o orfanato”, respondeu Mãe Flor. Um dos policiais
nalmente se comoveu com a cena triste, mas se mostrou irredutível.
Anderson tentou convencê-los a mudar de ideia usando uma narrativa
poderosa:
– Seu policial, deixa eu te falar uma coisa com toda a honestidade deste
mundo: essas crianças realmente não são nossas. Tem menino aí nesse meio
que não sei nem o nome, muito menos quem são seus pais, admito. Esses
três bebês nem sei como vieram parar aqui. Somente essa garota é lha
biológica da Mãe Flor [ele aponta para Simone]. O resto a gente recolheu da
rua. Tá vendo aquelas sacolas ali no chão? São alimentos. A gente comprou
comida para esses meninos com o nosso dinheiro. Sabe para onde eles vão
depois que vocês os entregarem ao Juizado? Vão todos para um abrigo.
Ficarão lá esperando eternamente por uma adoção. Mas quem vai acolher
essas pobres criaturas? Ninguém, pois no Brasil a maioria das famílias só
quer adotar crianças de pele branquinha, olhos clarinhos e cabelinhos
loirinhos bem lisinhos, feito espiga de milho. Sem a menor perspectiva de
ganhar um lar, esses meninos pretos vão sair do abrigo com 18 anos
diretamente para a rua. Sem trabalho, vão assaltar, sequestrar, tra car e
matar. Olhem bem no rosto de cada um deles. É bem possível que vocês,
policiais, algemem um deles no futuro...
Morando na rua, Anderson amadureceu, desenvolveu a oratória e
aumentou seu poder de convencimento, tornando-se um líder. Ele já havia
cultivado o hábito da leitura, dando preferência a livros religiosos. Esse
combo – leitura, boa oratória e liderança – seria usado mais tarde para
alavancar a carreira de Flordelis como cantora e pastora, e até a sua própria
como pregador. Depois de ouvir Anderson falar, os policiais se
convenceram: era muito melhor deixar aquelas crianças sob os cuidados da
dupla embaixo do viaduto do que levá-las para uma casa de acolhimento. Na
mesma madrugada, Samir e eo chegaram com um caminhão e resgataram
a grande família. Houve festa quando a molecada subiu na carroceria e
seguiu pelas avenidas Atlântica, Vieira Souto e Del m Moreira, passando
pelas praias de Copacabana, Ipanema e Leblon. Com medo da perseguição
policial, Selma, Olival, Orelhinha e Xaropinho abandonaram a turma e se
jogaram de nitivamente na criminalidade.
Os amigos de orgia levaram a centopeia humana para uma casa ampla,
de alvenaria, no bairro do Irajá, na zona norte, próximo de onde eo
morava. Sem proprietários conhecidos, o lugar estava abandonado desde
1985, quando o marido do casal que alugava o imóvel morreu, aos 95 anos, e
a viúva foi para um asilo no Rio Comprido.
Para invadir a residência, Anderson, eo e Samir arrombaram a porta
de madeira maciça da cozinha com chutes. Comparado com o casebre da
Rua Guarani, o endereço do Irajá era um paraíso. Recuada, a habitação tinha
cinco quartos grandes com camas de solteiro, suíte com cama de casal,
garagem para cinco carros e pátio descoberto com piso de cimento, além de
três banheiros e cozinha com fogão, geladeira, armário e mesa para seis
pessoas. A sala espaçosa, em L, contava até com sofá, poltronas e televisão.
Quando Simone se deparou com o “luxo”, pediu para Cristiana beliscá-
la, tamanho era o sonho. Os muros ao redor eram baixos e no quintal havia
um campo de futebol com acesso livre para a rua de trás. Nos nais de
semana, moradores da região jogavam peladas no terreno. Carlos Ubiraci
organizou o mutirão para capinar, lavar e faxinar o lugar. Parte das telhas de
barro teve de ser arrumada para eliminar as goteiras. Samir bancou os
pequenos reparos, eo comprou o material de limpeza. No dia seguinte, a
grande família estava acomodada. Anderson e Flor ocuparam a suíte, de
acesso restrito – às vezes, André Luiz e Simone dormiam lá. Os três bebês
foram acomodados num único colchão, posto no chão para evitar que
caíssem. Como não havia cama para todos, alguns “ lhos” acomodaram-se
em papelões pelo chão da sala e outros tiveram de dormir na garagem, ao
relento, pois Flor não queria ninguém deitado pelos corredores de sua casa
nova, empatando a passagem.
No dia seguinte, como de praxe, uma parte saiu para mendigar nas ruas
de bairros nobres. Depois de fazer um “gato” no fornecimento de energia
elétrica, Anderson ligou a TV e se deparou com mais reportagens falando da
fuga fantástica de Mãe Flor e seus “ lhos” roubados. No nal da tarde,
quando os meninos chegavam da rua, a casa virava um pardieiro. Flor,
Simone e Cristiana gritavam com a prole, pedindo que não zessem
barulho, mas os mais velhos batiam nos mais novos e a choradeira reinava.
Quando o excesso de ruído começou a incomodar a vizinhança, uma
moradora do bairro, conhecida como Dona Noberta, de 65 anos, bateu à
porta para xeretar. “Você é a Mãe Flor, né? Eu vi sua história na televisão”,
anunciou. Descon ada, a missionária não disse “sim” nem “não”. Anderson
pediu à senhora que entrasse e repetiu a ladainha de sempre. “Tá vendo esse
monte de meninos? São todos nossos lhos. A gente precisa de comida...”.
Dona Noberta contou 21 cabeças no dia dessa visita, incluindo os três bebês.
Um deles, inclusive, estava com sinais aparentes de desnutrição e com o
corpo quente de tanta febre.
– De quem são essas crianças de colo? – perguntou a visita.
– São minhas lhas! Elas não são lindas? – comentou Flor, emocionada.
– Como elas se chamam?
– Ainda não deu tempo de colocar nome. A gente chama a primeira de
bebê, a segunda de neném e a terceira de lhotinha. Mas nem sei quem é
quem, porque elas não têm roupinhas – contou Simone, que embalava uma
delas no colo.
– Se essa menina não for levada ao pronto-socorro urgentemente, vai
morrer de tanta febre – alertou dona Noberta.
– Acontece que, se entrarmos num hospital público, seremos presos. A
polícia está atrás da nossa família. A Flor está estampada em todos os jornais
como foragida da Justiça – ponderou Anderson.
A bebezinha doente tremia e passou a babar e fazer cocô aguado. Para
piorar, teve candidíase oral, feridas popularmente chamadas de sapinho. Na
correria da polícia, os nenês estavam sem tomar banho havia dez dias, o que
contribuía para a proliferação de todo tipo de fungo e bactéria. Para aplacar
a febre, Cristiana esfregava uma fralda molhada no corpo da criança. Flor
contou uma história triste para Noberta: segundo ela, uma moradora de rua
viciada em cocaína havia parido a lha prematuramente num canteiro da
Praça Procópio Ferreira, às margens da Avenida Presidente Vargas, no
Centro do Rio. Sem leite e sem a menor vontade de ser mãe, a sem-teto teria
colocado a menina para morrer dentro de uma caixa de sapatos. “Isso
mesmo! Era tão miudinha que cabia numa caixa de sapatos. Dá para
acreditar? A mãe fechou com a tampa como se fosse um caixão. Eu a acolhi
como lha”, reforçou Flor, debulhando-se em lágrimas. Noberta também
chorava com a história comovente. “Você é uma or de pessoa”, reverenciou
a vizinha. “A senhora acha que ela tem quantos meses?”, indagou a
missionária. “Deve ter uns dois”, arriscou a visita. “Nada! Ela está subnutrida
porque nasceu prematura, no sétimo mês de gestação. Tem quase seis meses,
mas parece que nasceu na semana passada”, completou. Estarrecida com
tanta desgraça, Noberta saiu a ita e impressionada com a aparente
benevolência da supermãe. No dia seguinte, voltou com várias sacolas
contendo macarrão, arroz, feijão, leite, latas de carne em conserva, muitos
ovos e três mamadeiras para os nenês.
A vizinha pegou um termômetro e mediu a temperatura da bebê febril
pelo ânus: estava beirando os 41 graus. Nessa visita, chamou a atenção da
vizinha o fato de a nenê estar queimando em febre num colchão posto no
chão do quarto, ao mesmo tempo que adolescentes jogavam futebol no
quintal e crianças maiores assistiam à TV Colosso na sala. Enquanto isso, os
mais velhos, Carlos Ubiraci, Wagner e Alexsander, conferiam os itens das
sacolas de supermercado levados gentilmente por Noberta, como se as
compras fossem uma encomenda. “Tá tudo aqui”, atestou Carlos Ubiraci.
“Eles eram todos meninos de rua, por isso cam ansiosos quando chega
alimento”, justi cou Anderson, meio constrangido. Noberta saiu para
providenciar um berço para os bebês. Flor entrou na cozinha e assumiu o
comando: “Simone e Cristiana, preparem o almoço! Rayane, dê as
mamadeiras para os bebês. Faça de tudo para a doentinha comer!” O
bebezinho com febre continuou rejeitando alimento e já não tinha mais
forças nem para chorar. No entanto, a vida na casa não parava. Do quintal,
ouviam-se gritos de marmanjos comemorando os gols, enquanto a cadela
Priscila dançava na tela da televisão, despertando risos na plateia.
Na hora de servir a refeição, Flor foi até o fogão e abriu panela por
panela. Percebeu que a carne em conserva preparada com molho de tomate
levada por Noberta não daria para todos. A missionária decidiu servir
primeiro os mais chegados: Simone, André Luiz, Carlos Ubiraci, Cristiana,
Wagner e Rayane. Os demais “ lhos” deveriam esperar os mais importantes
comerem para se servir das sobras. A cena era humilhante, pois todos
estavam com fome e o cheiro do almoço impregnava a casa. Mas alguns
realmente eram obrigados a aguardar. No momento dessa divisão, eo
chegou com um saco contendo vinte pães franceses e testemunhou como
Flor era injusta na hora de repartir a comida. Anderson defendeu o critério
das refeições usando as regras da aviação civil. “Quando a cabine do avião
despressuriza, eles mandam pôr as máscaras de oxigênio primeiro nos
adultos. Só depois nas crianças”, disse, mesmo sem nunca ter embarcado
num voo. eo tentou explicar a lógica dessa norma: a máscara tem de ser
posta antes no adulto para evitar que ele desmaie com falta de ar e deixe os
lhos pequenos sem socorro, até porque eles não conseguem alcançar a
proteção, que despenca do teto do avião e ca pendurada no alto. Flor foi
mais direta. “eo, aqui as coisas não funcionam sem disciplina. Tem gente
aí na sala que até ontem era menino de rua. A gente adotou lá no viaduto.
Você acha justo eles almoçarem primeiro? Além do mais, na minha casa
quem dita as regras sou eu!”, avisou, meio irritada, encerrando a discussão.
Em seguida, alternando suas emoções bruscamente, cou dengosa.
Aproximou-se de eo queixando-se de estresse. No ouvido do amigo,
pediu para ser levada dali até um motel, pois precisava relaxar um pouco.
“Quebra esse galho, amigo. Estou tão cansado, e a Flor é insaciável, você
sabe... Faz isso por mim”, esquivou-se Anderson. eo pediu um tempo. Saiu
do Irajá dizendo que voltaria em meia hora com mais comida e nunca mais
retornou. De lá, seguiu até um telefone público e ligou para o Juizado da
Infância e Juventude, denunciando Flor e Anderson. Passou para um o cial
o local em que a missionária se escondia.
Na década de 1990, não era fácil chegar ao endereço do Irajá sem muitas
referências. O bairro enorme tinha muitas ruas homônimas. A numeração
era confusa, pois não seguia uma ordem lógica. Três viaturas e um ônibus da
Justiça do Rio de Janeiro circulavam pela vizinhança. Curiosa, dona Noberta
perguntou aos policiais como poderia ajudá-los. Ao ser questionada se havia
visto Flordelis e sua lharada pelas redondezas, a senhora fez sinal
a rmativo. “Vi, sim! Ela esteve aqui pedindo comida mais cedo. Mas está
morando para os lados de Turiaçu, do outro lado da Avenida Brasil. Vá até
lá, seu guarda! Prenda essa bandida, mas não diga que fui eu quem a
dedurou. Pelo amor de Deus! Morro de medo daqueles marginais de igreja”,
falou Noberta. Era um blefe. As viaturas estavam a duas quadras da casa e a
vizinha só passou informação falsa aos policiais para ganhar tempo. Assim
que a radiopatrulha virou a esquina, ela correu para alertar Flordelis. Não
deu tempo nem de a grande família terminar a refeição: os maiores pegaram
os menores pelos braços, saíram pelo quintal, cortaram o campo de futebol e
alcançaram a rua de trás, formando novamente a centopeia humana.
Anderson e Flor resgatavam documentos das gavetas para sair dali o mais
rápido possível, enquanto Carlos Ubiraci e Alexsander trancavam portas e
janelas. Ainda havia gente na casa quando alguém esmurrou a porta.
– Quem é? – perguntou Alexsander.
– É a polícia. Abre ou vamos arrombar. Temos um mandado!
– Só um minuto. Estou nu. Vou pôr uma roupa e já volto – mentiu
Alexsander.
Enquanto ganhava um tempinho, Anderson levou o dedo indicador até a
boca, implorando silêncio. Flor pegou os últimos “ lhos” pela mão sem fazer
barulho e saiu de mansinho, pisando na ponta dos pés. Noberta também
escapou às pressas pelo quintal. Em menos de três minutos, Alexsander
abriu a porta da sala e dois policiais entraram esbaforidos. Armados,
vasculharam todos os cômodos da casa. Abriram armários e gavetas.
Levaram um susto quando encontraram a bebezinha sem nome desnutrida e
toda suja de fezes deixada para trás. Alexsander tentou aplicar uma mentira,
dizendo que era sua lha. “Mostre a certidão de nascimento”, exigiu o
policial. Não havia documento algum. Chamaram uma ambulância pelo
rádio e a menina foi levada à emergência de um hospital público qualquer.
Flor só sentiu falta da bebê quando alcançou a Praça Caraguatá, ainda no
Irajá. Simone carregava um dos nenês e Cristiana levava o outro.
“Esquecemos dela!”, justi caram-se. Flor cou apavorada com a
possibilidade de a neném morrer e Alexsander ser preso. Desesperado,
Anderson ligou para eo e Samir, suplicando ajuda aos amigos de orgia.
Descon ados das intenções do casal protestante, porém, ambos haviam
cortado relações para sempre.
Para escapar do cerco policial, Flor e sua centopeia humana seguiram
calados pela estrada Padre Rose até alcançarem a Avenida Meriti, deixando
o Irajá a pé e sem parar nem mesmo para beber água. Cortaram o bairro
Brás de Pina inteirinho e, depois de uma longa caminhada, chegaram à
favela Parada de Lucas, já de noite. Rayane não conseguia mais car em pé,
de tão cansada. As tiras de suas sandálias Havaianas se romperam e ela fez
um terço do percurso descalça. Quando se queixava de dores, Flor associava
seu sofrimento aos tormentos de Jesus Cristo na Via Sacra, o trajeto
percorrido por ele carregando a cruz desde o pretório até o Calvário, onde,
segundo a Bíblia, morreu cruci cado. No novo destino, Flor e Anderson
pararam para descansar sob a marquise de um prédio comercial numa noite
de chuva. Para se livrar do frio, a lharada cou amontoada feito uma
família de jacarés, lado a lado, até com uns por cima dos outros. Wagner
conseguiu papelão e plásticos de lixo para cobrir todo mundo. Por volta das
20 horas, Flor fez um culto. Nesse momento, Carlos Ubiraci, com 22 anos,
encoxou Cristiana. Já rolava uma atração sexual entre os dois, mas eles
resistiam a transar, com medo de pecar, já que eram “irmãos”. Mesmo assim,
eles deram o primeiro beijo. Apaixonados, prometeram nunca mais se
largar. Mãe Flor abençoou o casal fraterno, mas divulgou uma regra na
família: os “ lhos” só poderiam se relacionar entre si com sua autorização
prévia. Em seguida, todos dormiram famintos, com sede e mortos de
cansaço. Sem tirar toda a roupa, Carlos Ubiraci e Cristiana teriam transado
ali mesmo, na rua, cobertos por papelões, ao lado de crianças.
Por volta das três da madrugada, Flor acordou e percebeu uma
caminhonete preta de vidros escuros parada com mais três carros logo atrás.
Um dos vidros das janelas do veículo desceu e ela pôde ver fuzis e
metralhadoras apontados em sua direção. A missionária cutucou Anderson
por baixo dos papelões e ele pediu à mulher que casse quieta. Depois de
vinte minutos de sentinela, os carros deram partida e embrenharam-se na
parte mais distante da favela. O casal, apavorado, não conseguiu mais
dormir. Lentamente, Flor levantou-se, caminhou deprimida até a esquina
deserta e desabou no pranto. Chorou com medo de morrer e com saudade
de Flávio e Adriano, os lhos biológicos deixados com Laudicéia e já
morando com a avó, Carmozina. Sentiu-se culpada pelo destino da bebê
adoentada deixada para trás e com receio do que poderia ter acontecido
com Alexsander, que fora diagnosticado recentemente com autismo.
Anderson foi confortá-la. A missionária, então, começou a questionar a
razão daquela fuga sem pé nem cabeça, em sua avaliação:
– Para onde vamos, meu amor? Olha só para o nosso estado deplorável.
Estou faminta, fedida, com sede. Esses meninos estão passando fome. Eles
não têm colchão para dormir, nem teto para se proteger da chuva. Somos
procurados ao mesmo tempo pela polícia e por tra cantes. Veja você, meu
lho... tinha um emprego no Banco do Brasil e morava com os seus pais. Eu
dava aulas. Ou seja, tínhamos nosso dinheiro. Era pouco, mas dava para
sobreviver. Agora não temos nada. Onde nós erramos ao tentar executar um
plano tão nobre como tirar meninos da rua e adotar como se fossem nossos
lhos? [...] É melhor nos entregarmos para a Justiça e acabar logo com isso
de uma vez. Do fundo do meu coração, acho que Deus nos abandonou
de nitivamente... Não tenho mais forças para seguir, confesso. Nem acho
justo continuar ao seu lado, nem como mãe, nem como mulher, pois não
tenho muito para te oferecer.
Emocionado, Anderson ajoelhou-se na calçada, segurou a mão da
amada, olhou em seus olhos e disse palavras que mudariam para sempre a
vida de ambos:
– Deus jamais desistiria da gente, minha mãe, minha mulher, minha
vida! Nem dos nossos lhos, nem dos meus irmãos. Estou ao seu lado e
estarei para sempre. Até o nal. De perto de ti, meu amor, só saio morto. Um
dia você me ensinou que, às vezes, Deus nos leva por caminhos árduos até
chegarmos ao paraíso. Se cremos Nele, cremos também em milagres.
Lembre-se que Ele abriu o Mar Vermelho para Moisés, derrubou o gigante
Golias para Davi, pôs Jesus no ventre de Maria, concebido pelo Espírito
Santo... Deus é el e justo, amor. Não tem por que nos virar as costas. Há de
haver um sinal, uma luz, um caminho. Mãe Flor, acredite na força de Deus!
Há de haver um milagre também para nós – pregou Anderson.
Os dois se abraçaram de joelhos, molhados com a água da chuva e das
lágrimas. Na aurora, testemunharam o que acreditaram ser um “milagre”.
Pelo menos vinte “ lhos” ainda dormiam sob a marquise quando as quatro
portas metálicas do comércio ali localizado foram abertas quase ao mesmo
tempo, despertando todo mundo com o barulho estridente. Mesmo cansada,
a família foi obrigada a se levantar para liberar a entrada do estabelecimento
– uma das maiores padarias do bairro, chamada Cantinho do Trigo.
Simpático, seu Miro, o proprietário, perguntou o que eles faziam deitados
em sua calçada. “Nossa Senhora de Fátima, tem até dois bebês!”, espantou-se
o padeiro. Como era de se esperar, Anderson contou com detalhes o drama
de seus “ lhos”, pontuando a fome que estavam passando desde a saída do
Irajá. Miro identi cou Flordelis das reportagens na televisão e mandou
todos entrarem. No banheiro dos fundos, onde os funcionários vestiam o
uniforme de trabalho, todos tomaram uma chuveirada. Depois de vestirem a
mesma roupa suja, foram conduzidos a um salão com mesas e cadeiras.
Como se fosse um anjo, o comerciante permitiu que, durante uma hora,
pegassem o que quisessem na padaria. Incrédulos, Flor e Anderson
entreolharam-se estupefatos. Pediram calma aos “ lhos”, que se
empolgaram. Dessa vez, a comilança não teve critério: eufóricos, pegaram
pães doces e salgados, sucos, café preto, café com leite e refrigerante.
Exageravam na manteiga. Fizeram sanduíches, usaram toda a variedade de
queijos disponível, consumiram tortas, bolos, crepes e tapiocas. Pediram
ovos mexidos, cozidos, poché. No meio do escarcéu, Flor inventou de fazer
uma oração em agradecimento, mas ninguém deu ouvidos. “Eles podem
comer coisas nas, como croissant, farinha láctea e Nescau?”, perguntou
Anderson. “Por uma hora, vocês podem comer tudo que tiver aqui dentro. E
corram, que o tempo tá passando”, reiterou seu Miro. Avançaram nas frutas,
cereais, geleias e vitaminas. A euforia era tanta que os primeiros clientes do
dia entravam na padaria e saíam logo em seguida por causa da balbúrdia.
Encerrado o tempo da boca-livre, Miro chamou Anderson e Flor ao
escritório da padaria e tudo foi esclarecido. Não houve milagre coisa
nenhuma. A caminhonete da madrugada, exibindo metralhadoras e fuzis,
era conduzida por José Roberto da Silva Filho, de 35 anos, conhecido como
Robertinho de Lucas, o bandido mais procurado do Rio de Janeiro, ao lado
dos líderes do Comando Vermelho – como Marcus Vinícius da Silva, o
Lambari, e a destemida Sandra Sapatão. Robertinho comandava o trá co de
drogas na favela Parada de Lucas e disputava o comércio de papelotes de
cocaína na cidade com o Comando Vermelho. Ou seja, era inimigo mortal
de Lambari e Sandra Sapatão. Nessa época, Flor era conhecida como
“madrinha do trá co” por ter resgatado meninos das mãos dos criminosos,
como ocorreu com Carlos Ubiraci e André Luiz. Desde que a Polícia Militar
passou a entrar de forma recorrente no Jacarezinho para cumprir o
mandado judicial contra Flor e seus infantes, os negócios do Comando
Vermelho na favela sofreram prejuízo, ao mesmo tempo que as vendas das
drogas de Robertinho de Lucas aumentavam. Mal tinha acabado o café da
manhã, Robertinho entrou para se apresentar a Flor e Anderson.
Armado até os dentes, o bandido contou ter arrumado uma casa de três
andares na favela para toda a família. A comunidade ajudou com mobília e
alimentação. Havia, porém, uma condição para que ele escondesse Mãe Flor
da polícia: que o casal não chamasse nenhum jornalista para a comunidade,
por motivos óbvios. “Se tiverem de dar entrevistas para a televisão, façam
isso bem longe da nossa favela”, alertou um bandido identi cado como
Príncipe do Pó, braço direito de Robertinho de Lucas, que completou:
deixaria os dois lhos pequenos com Flor durante o dia, pois sua esposa
trabalhava no cafofo onde era feita a endolação da cocaína. Robertinho
também levaria o herdeiro, Romulo Oliveira da Silva, de 3 anos, para
“brincar com as crianças da mesma idade”, como justi cou. Com o tempo, a
nova casa de Mãe Flor virou uma creche para a garotada das mulheres do
trá co e recebia até dez cabeças por dia. Sem nenhum poder de
argumentação, Anderson e Flor aceitaram as exigências, até porque o
comércio de drogas abastecia sua despensa.
Com a família instalada, a primeira providência foi resgatar a bebê
doente levada pela polícia. Para isso, Flor teria de encontrar Alexsander.
Como Simone e Cristiana se sentiam culpadas por ter esquecido a
“irmãzinha”, saíram atrás de pistas. Voltaram ao Irajá e encontraram
Noberta, que havia acolhido Alexsander. O jovem contou que a polícia
levara a bebê para a emergência de um hospital para os lados de Botafogo.
Munidas de um telefone xo e de uma lista telefônica disponibilizados por
Noberta, as duas ligaram para todos os pronto atendimentos do bairro
perguntando por um bebê sem referência familiar. Depois de três horas
ligando para lá e para cá, descobriram que a menina estava no Hospital
Municipal Rocha Maia. Os “irmãos” seguiram até o endereço com um plano
em mente. No balcão, Cristiana se identi cou como mãe da nenê e
conseguiu falar com a médica responsável pelo tratamento da paciente.
“Esse bebê tem raquitismo, uma doença rara causada por de ciência
nutricional de vitamina D, cálcio ou fósforo e por fatores genéticos. Atinge
principalmente os ossos, comprometendo sua mineralização, deixando as
pernas envergadas. (...) Qual a idade dela?”, indagou a médica. “Seis meses”,
respondeu Cristiana. “Você está enganada. Essa criança tem quase 2 anos.
Veja os dentes, já nasceram quase todos, apesar de estarem
subdesenvolvidos e tortos. Já era para ela estar andando ou pelo menos
engatinhando. No entanto, a doença impediu que seu corpinho se
desenvolvesse... Você realmente é mãe dessa menina?”, inquiriu a médica,
descon ada. Cristiana cou receosa e não respondeu.
Uma enfermeira que testemunhava a conversa ligou para sua chefe e foi
orientada a acionar a Delegacia da Criança e do Adolescente para averiguar
o caso. Enquanto isso, Simone foi ao encontro de Flordelis e informou o
paradeiro da bebê. A missionária correu para o local e cou do lado de fora,
com receio de ser reconhecida. Então, ordenou que Cristiana roubasse a
bebê sem nome ainda naquela madrugada. A garota voltou ao hospital,
passou despercebida pela recepção e seguiu até o leito da emergência. Logo
em seguida, uma equipe da Polícia Militar chegou para averiguar a
comunicação feita pela enfermeira. Como a criança estava com
hipofosfatemia, de ciência de cálcio e de vitamina D, a médica havia
aplicado nela um soro endovenoso. Mas Cristiana não pensou duas vezes:
arrancou a agulha do bracinho da “irmã”, enrolou-a num lençol, pôs dentro
de uma sacola e saiu pela porta dos fundos, sem se dar conta do risco dessa
ação. Quando os policiais chegaram ao leito, o berço já estava vazio.
Flordelis pegou a “ lhinha” de Cristiana e seguiu para a nova casa na
favela, onde a polícia jamais chegaria. Lá, batizou a menina de Roberta e
organizou uma festa para celebrar seu retorno. As comemorações, porém,
foram azedadas com a aparição surpreendente de Carmozina, que estava
com cara de poucos amigos. Simone havia dado o endereço na Parada de
Lucas para Flávio, que repassou as diretrizes para a avó. A bruxa caminhou
por todos os cômodos da nova casa, olhando para teto, piso e paredes,
observou cada móvel e conferiu quantos “ lhos” havia. Soltando fogo pelas
ventas, a velha mostrou uma série de recortes de jornais populares nos quais
Flor era descrita como “bandida”, “sequestradora de crianças”,
“desclassi cada”, “procurada pela polícia”, “foragida”, “fugitiva”, “facínora”,
“surucucu”, “ladra” e “malfeitora”. “Você está escandalizando o reino dos
céus e jogando a reputação da nossa família no lixo. Ainda por cima,
continua dormindo com um dos meninos que chama de lho!”, esbravejou.
Carmozina ordenou que Anderson e Flor se entregassem imediatamente.
Caso contrário, ela mesma os denunciaria à polícia. Com medo das ameaças
da mãe, Flor resolveu novamente levantar acampamento com sua comitiva.
Mais uma vez, Robertinho de Lucas estendeu a mão à missionária e
emprestou uma casa às margens da Avenida Brasil para abrigar toda a
família. Mas o novo local era perigoso, pois servia de base para ações
criminosas do trá co, principalmente quando havia confronto de bandidos
com policiais militares ao longo da via expressa. Restou à centopeia humana
car entocada lá por um tempo, escondida principalmente de Carmozina,
que havia se tornado uma ameaça.
Anderson não concordou com as interferências da bruxa do Jacarezinho
no destino da família, mas evitou entrar em confronto. Por ele, todo mundo
continuaria na primeira casa oferecida por Robertinho de Lucas,
aparentemente mais segura. Esperto e visionário, o bancário traçou um
plano para capitalizar a condição de foragido da Justiça. Com o aval da
companheira, ligou para o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
(Cedeca), uma organização não governamental, e pediu orientação para se
entregar formalmente. Inspirado em lmes policiais hollywoodianos, em
que sequestradores exigiam falar com a imprensa sobre resgate, quis que a
ONG organizasse uma entrevista coletiva para Mãe Flor. A ideia era fazer
um acontecimento midiático do m da perseguição policial e transformar a
matriarca em uma celebridade carioca. Desde a saída do Jacarezinho, a
centopeia humana já havia percorrido 57 quilômetros pelo Rio de Janeiro
em cinco meses. Ou seja, já era hora de parar. Via assessoria de imprensa, o
Cedeca se encarregou de chamar os jornalistas anunciando a tão esperada
rendição de Mãe Flor, agendada para dali a uma semana na sede da
entidade.
No dia marcado, Flor e Anderson vestiram roupas novas, providenciadas
pelos funcionários da ONG. Diante de holofotes e de câmeras de televisão, a
fugitiva falou para toda a imprensa uminense ao lado do companheiro e de
todos os “ lhos”, incluindo os três bebês: “Sou mãe de todas essas crianças.
Por elas, sou capaz de enfrentar a polícia, tra cantes, juízes e
desembargadores. Nada me detém! Sou capaz de matar para proteger a
minha cria, como qualquer mãe. Esses meses em que estivemos fugindo,
moramos debaixo do viaduto, dormimos na soleira da calçada cobertos
pelas páginas dos jornais que me chamavam de criminosa. Reviramos lixo
em busca de comida. [...] Faria tudo de novo se preciso fosse, porque meus
lhos são tudo para mim!”, anunciou a pastora. No nal da coletiva, citou a
Bíblia (Salmos 126:5-6): “Deus me disse que os tempos difíceis não duram
para sempre. ‘Aqueles que semeiam com lágrimas, com cantos de alegria
colherão. Aquele que sai chorando enquanto lança a semente voltará com
cantos de alegria, trazendo os seus feixes’. Até os tempos mais difíceis
passam. A alegria de Deus sempre vence. Essa é a maior lição que minha
família vai tirar da experiência de viver escapando da Justiça em nome do
amor incondicional que eu e meu companheiro sentimos pelos nossos
lhos”.
Flor também despertou o interesse dos repórteres quando falou das
ameaças de morte feitas pelo Comando Vermelho. “Quem governa o
Jacarezinho é o Comando Vermelho!”, disse, enfática, como se isso fosse
alguma novidade. No dia seguinte, ela estava em todos os jornais com
manchetes favoráveis, embora alguns títulos ainda mostrassem equívocos:
“Dona de creche teme ser morta”, publicou o jornal O Dia; e “Flordelis cou
desaparecida com medo de ameaças”, estampou o Jornal do Brasil. Anderson
comprou todos os periódicos e lia em voz alta, rindo de orelha a orelha e
destilando orgulho por todos os poros. “Agora, o céu é o limite!”, previu o
pastor.
No fundo, Anderson era um frustrado. Toda a projeção alcançada por
sua mulher na mídia era desejada por ele para si, embora não tivesse
carisma algum. Seu talento era de estrategista de bastidor. Quando Flor
estava dando entrevistas para falar da fuga, ele tentava chamar a atenção de
repórteres e fotógrafos para também tornar-se famoso, mas os jornalistas só
queriam saber dela. Em determinada fase da vida, ele tentava competir com
a mãe-namorada no comando da família e até se arriscou no canto. No
entanto, logo se deu conta de que era impossível competir com o
magnetismo da companheira. Decidiu ocupar uma posição de mentor de
Flordelis. Depois da fuga espetacular, Anderson planejou sozinho levar a
missionária a patamares inimagináveis. Seus planos foram postos em prática
já no dia seguinte.
Anderson telefonou para Zé da Igreja e acertou uma apresentação de
Flordelis, já conhecida como uma estrela da “bondade” e da “ lantropia”. A
missionária pregou e cantou num culto dominical em sua homenagem na
Assembleia de Deus do Jacarezinho. Vestida com saia bege e blusa azul-bebê
de mangas compridas, com babados, subiu ao púlpito diante de uma
multidão e pegou um microfone sem o. Nesse dia, desabava sobre o Rio de
Janeiro uma tempestade colossal, mas a igreja lotou mesmo assim. Todo
mundo queria ver a missionária famosa e seus “ lhos”. O templo teve as
portas cerradas e fechadas à chave assim que atingiu a lotação máxima. Na
pregação, Flor falou de mensagens enviadas a ela por seres celestiais durante
o tempo de sacrifício nas ruas e terminou com uma profecia: “Houve um
momento em que fraquejei, confesso. Mas meu anjo Anderson segurou
minha mão e me puxou do poço da melancolia, onde jazem os fracassados.
Então ouvi a voz poderosa de Deus bradando dos céus: nalmente você e
sua família chegaram à plenitude, à na or. Minha vida agora será de
salvação e poder. [Glória a Deus!]. A bem da verdade, Jesus Cristo nunca
soltou a minha mão nessa jornada pelas ruas escuras da cidade, onde me
escondi feito uma meliante. [Glória a Deus!]. Ele me disse com todas as
letras: sua saga ainda não acabou, lha! O Diabo será enviado à Terra na
pele dos meus acusadores. Mas Deus vai derrotar todos eles! Um por um!
[Glória a Deus!]. Jesus Cristo me disse! Ele fala comigo todos os dias!
[Glória a Deus!]. Sobre a Terra e o mar virá o terror, pois Satanás ainda vai
descer até o seio da minha família com grande fúria, sabendo que me resta
pouco tempo...”
No nal da pregação, com o temporal ainda caindo, Mãe Flor fez um
pocket show com canções gospel e foi bastante aplaudida. O pastor Zé da
Igreja, então, aproveitou o engajamento da missionária, pegou o microfone
da mão dela e pediu ao seu rebanho uma ajuda nanceira de forma nada
sutil:
“Irmãos, prestem atenção no que vou lhes dizer agora: vivemos numa
carestia infernal. São dias difíceis. A nossa igreja está operando no vermelho
faz tempo. É uma sangria sem m. Nem todo o mundo está pagando o
dízimo, o que é pecado. Deus está tão triste com esse calote profano que suas
lágrimas estão caindo do céu em forma de chuva desde cedo. Mas hoje é o
dia de alegrar o reino celestial. Vamos aproveitar que a igreja está lotada
para promover o desa o da fechadura. Todas as portas do templo foram
trancadas. Passamos seis voltas de correntes e fechamos com cadeados.
Estamos presos na casa de Deus. Querem privilégio maior do que esse? O
Supra summum determinou que só devemos abrir a fechadura para quem
doar todo o dinheiro que carregar consigo. Eu disse TODO. Esse dinheiro
não é para a igreja, quero deixar isso bem claro. É para o Todo-Poderoso! À
medida que vocês forem doando, as lágrimas do Altíssimo irão secando e a
chuva cessará. Deus aceita dinheiro vivo, cédulas, moedas e cheques.
Também temos uma maquineta de plástico para passar cartão de crédito. É
uma tecnologia de ponta que imprime recibo com papel-carbono. Quem
não tiver dinheiro nem cartão de crédito vai assinar uma nota promissória
sagrada doando a Deus a posteriori. Nossas obreiras estão localizadas em
pontos estratégicos, perto de cada porta, para recolher a graça de cada um
de vocês. Ah, mais uma coisinha: Deus condena a vaidade! Estou vendo aqui
do alto alguns éis usando anéis, brincos, cordões, pulseiras e relógios. Não
pode! É pecado! Hoje é um dia propício para se livrar dessas indumentárias
do Satã. Tem uma lixeira especial no nal do corredor para jogar isso tudo
fora. Um aviso importante: metade de tudo que for arrecadado hoje será
repassado à causa dessa mulher de alma nobre chamada Flordelis. Uma
salva de palmas para ela...”
Os éis formaram uma la indiana e a porta só era aberta quando
alguém pagasse alguma quantia. As doações variavam de 1 a 20 reais. Na tal
lixeira, foram jogados vários tipos de acessório. Ingênuos, Flordelis e
Anderson esperaram até o nal do culto, acreditando que Zé da Igreja
realmente repassaria dinheiro para ajudá-los no sustento da família,
conforme anunciado. “Não tem nada para vocês, seus devassos!”, retrucou o
pastor, acusando Flor de ofender a igreja ao dormir com um de seus “ lhos”.
O golpe de Zé da Igreja abriu os olhos de Anderson e Flor. Eles nunca
mais pisaram na Assembleia de Deus do Jacarezinho e passaram a sonhar
com o dia em que teriam o próprio ministério para colocar em prática esse
tipo de arrecadação. O bancário começou a estudar sobre
empreendedorismo religioso e não parava de pensar na forma como a
Assembleia de Deus fazia dinheiro desde a época do pastor Demóstenes. No
dia seguinte ao culto, no entanto, o casal teria de começar a descascar um
abacaxi enorme, já que falar com a imprensa não resolveu todos os
problemas. A Vara da Infância e Juventude havia marcado uma audiência
para Mãe Flor se apresentar formalmente dali a três semanas. Com medo de
perder seus “ lhos”, Anderson ligou para os irmãos Werneck pedindo
assessoria jurídica e relatando os dissabores de morar numa área de
confronto permanente entre policiais e tra cantes. Os empresários e seus
advogados procuraram a Justiça com uma pergunta simples e objetiva: o que
seria preciso para regularizar a situação de Flordelis? Nessa época, o titular
da Vara da Infância e Juventude era o juiz Siro Darlan. Em seu gabinete, o
magistrado foi curto e grosso na resposta: “Basta ela andar na lei,
legalizando a adoção das crianças, oferecendo um lar estruturado, bem
longe da favela, para todas elas, e principalmente mantê-las bem
alimentadas e matriculadas na escola”. A dupla de irmãos se comprometeu
com o juiz a oferecer dignidade à família, e Darlan deu um prazo de trinta
dias para os Werneck apresentarem a ele uma casa decente para abrigar Flor
e seus anjinhos.
Polêmico e midiático, o juiz Siro Darlan tornou-se gurinha batida no
noticiário nacional desde a segunda metade da década de 1990, quando teve
início o processo de ascensão de Flordelis como gura pública. O caminho
dos dois se cruzou pela primeira vez na Vara da Infância e Juventude do Rio,
comandada pelo magistrado por catorze anos. Suas canetadas ganhavam o
noticiário ora pela irreverência, ora pelo escândalo. Ainda juiz de primeira
instância, provocou perplexidade com decisões tidas como exageradas,
resvalando na censura – uma delas ocorreu no ano 2000, quando
determinou que a TV Globo fosse proibida de usar atores menores de 18
anos na novela Laços de Família. Segundo o juiz, as cenas do folhetim
apresentavam “conotação sexual” e “violência” excessivas para as crianças,
além de submetê-las a “longas jornadas de trabalho”. No ano seguinte,
Darlan proibiu a entrada de adolescentes em um show da banda Planet
Hemp promovido pela prefeitura do Rio, argumentando que o grupo fazia
apologia às drogas. O magistrado também vetou a participação em um
evento de moda promovido pelo Barra Shopping de modelos menores de 18
anos que não comprovassem frequência escolar.
Em 2004, Darlan foi promovido a desembargador e as decisões
polêmicas continuaram na segunda instância. Em 2013, concedeu habeas
corpus dando liberdade a sete dos nove bandidos envolvidos na invasão ao
Hotel Intercontinental, em São Conrado, quando um bando armado com
fuzis, pistolas e granadas manteve 35 reféns, entre funcionários e hóspedes,
por três horas. Na ocasião, uma pessoa morreu e seis caram feridas. Entre
os bene ciados estava Rogério 157, que assumiu o comando do trá co na
Rocinha após a prisão do megatra cante Antônio Francisco Bon m Lopes,
o Nem da Rocinha. Seis anos depois, Darlan continuava assinando decisões
de grande repercussão na mídia. Durante um plantão judiciário, mandou
soltar os ex-governadores Anthony Garotinho e Rosinha Matheus, que
haviam sido presos um dia antes a pedido do Ministério Público estadual –
foram acusados de receber propina em dois contratos superfaturados em 62
milhões de reais para a construção de casas populares em Campos dos
Goytacazes. Em 2015, Darlan manchou a própria biogra a: foi acusado de
corrupção passiva, por ter supostamente vendido uma decisão judicial por
50 mil reais. Teve bens bloqueados pela Justiça e sigilo bancário quebrado,
até que, em 9 de abril de 2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) resolveu
afastá-lo de suas funções por 120 dias, algo humilhante para uma autoridade
de sua envergadura.
Na mesma data, a Polícia Federal prendeu seu lho Renato, acusado de
também participar do esquema de venda de sentenças supostamente
orquestrado pelo pai. Segundo a PF, o esquema teria bene ciado milicianos
e pessoas investigadas por crimes de corrupção e trá co de drogas. “Sempre
atuei com seriedade e no rigoroso cumprimento dos mandamentos éticos da
magistratura. Repudio a associação do meu nome à prática de crimes.
Refuto com toda a indignação a alegação de que busquei benefícios através
das minhas decisões. Sigo de cabeça erguida, con ante de que tudo será
esclarecido e que a justiça prevalecerá”, a rmou o desembargador, na época.
Em uma decisão monocrática de habeas corpus, o ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) Edson Fachin determinou, em 3 de março de 2021, o
retorno de Darlan às suas funções.
Em abril de 2022, o magistrado voltou a se defender das acusações,
dizendo ter sofrido perseguição da Rede Globo ao longo da carreira.
Segundo ele, o motivo teria sido o embate contra os interesses da emissora,
referindo-se à decisão desfavorável a Laços de Família. “A Globo se acha a
rainha da cocada preta. Até hoje ela me persegue por causa da minha
decisão de vetar crianças nessa novela das oito”, justi cou. “Na época, a atriz
Vera Fischer [protagonista da trama] usou todo o seu charme para
despachar com o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas não
adiantou. A segunda instância manteve a minha decisão. Desde então, a TV
Globo colocou uma série de propagandas negativas contra mim em todos os
telejornais. Teve fake news no Fantástico, Bom dia Rio, Bom Dia Brasil, Bom
dia não sei o quê; RJ 1, 2, 3, 4, 5, 6... Era um inferno. Fizeram comigo como
se fez com Leonel Brizola e o que se faz até hoje com Luiz Inácio Lula da
Silva. Mas a Globo não conseguiu me destruir, porque, do ponto de vista
moral, eu sou maior do que ela”, completou.
Depois de despachar com o então juiz, em 1995, os irmãos
Werneck acionaram sua rede de solidariedade para conseguir com amigos
endinheirados uma casa ampla para Flor, Anderson e seus “ lhos” no prazo
estipulado pelo juiz, de trinta dias. Enquanto isso, os dois evangélicos
seguiram sozinhos para o encontro com Siro Darlan. Aos 34 anos, a
missionária entrou de cabeça erguida no prédio da Justiça do Rio, segurando
rme a mão do companheiro, de 18 anos. A discrepância etária, no entanto,
não era aparente: ela parecia bem mais nova e o bancário demonstrava mais
idade. Uma secretária acomodou os dois numa antessala. Depois de esperar
por uma hora e meia, eles nalmente entraram no gabinete do juiz. Sentados
em frente à mesa de Darlan, ouviram o magistrado falar do rigor em adotar
uma criança no Brasil, explicar as razões para o processo ser demorado e
comentar sobre o prazo estipulado para Flor e sua turma saírem da favela.
O casal ouvia tudo calado quando, diante do juiz, a missionária entrou
em transe: olhou para os lados e viu o pai, Chicão, falecido havia dezenove
anos, tocando acordeom no gabinete do magistrado. A seu lado estavam os
demais integrantes do Conjunto Angelical, todos mortos violentamente no
acidente da Via Dutra. Vestida de terno preto e gravata, a banda cantava e
dançava em volta da mesa de Siro Darlan, liderada pelo nado pastor
Joaquim Lima. João Januário (contrabaixo) era o mais empolgado: dançava
saltando pelo ar, como se fosse leve feito uma pluma. José Gomes
(tamborim) dava arrepios, porque atravessava paredes. Geraldo Marçal
(guitarra solo) foi ousado ao subir na mesa e tocar seu instrumento pisando
em documentos. Enquanto isso, Siro Darlan falava sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), uma das únicas coisas que prestavam do
governo de Fernando Collor de Mello. Para completar o show gospel das
assombrações, Aléssio Barreto (guitarra base) levitou e saiu de cena
atravessando o teto. No meio da apresentação, Darlan perguntou se Flor
aceitava as condições impostas por ele para car com sua grande família.
Mesmo hipnotizada pelos fantasmas, ela respondeu “sim”. Ao perceber a
loucura da “mãe-esposa”, Anderson pegou a missionária pelo braço,
despediu-se meio constrangido de Sua Excelência e deixou rapidamente o
gabinete do juiz. Flordelis saiu do prédio da Justiça deixando a impressão de
não regular muito bem.
Em três semanas, os irmãos Werneck conseguiram uma casa ampla para
abrigar Flordelis e sua centopeia humana. O imóvel tinha dois andares e
estava fechado havia cinco anos, todo tomado pelo mato. Ficava na parte
mais movimentada da Avenida Paulo de Frontin, bairro do Rio Comprido,
zona central do Rio de Janeiro. Nesse quesito, atendia a uma das exigências
do juiz Siro Darlan: estava longe da favela. Simpáticos à causa de Mãe Flor,
os proprietários alugaram a construção de oito quartos a um preço abaixo
do mercado. Os “ lhos” pegaram na enxada, capinaram, pintaram as
paredes e depois zeram uma faxina. Anderson e Carlos Ubiraci
comandavam tudo, lembrando aos novinhos a exigência do juiz. Flor não
percebeu porque estava fora de si, mas o bancário ouviu com todas as letras
Siro Darlan dizendo que faria uma vistoria quando tudo estivesse pronto.
Assim, a pequena reforma era feita com mais esmero. Os irmãos Werneck
conseguiram três geladeiras novas, um fogão de seis bocas, televisão,
armários, cômodas, berços e quinze beliches com colchões. O tra cante
Robertinho de Lucas não se esqueceu de Mãe Flor e doou uma pilha de
roupas novas de vários tamanhos: shorts, bermudas, camisetas e fraldas,
mais lençóis e cobertores, além de muitos brinquedos para a molecada – a
bandidagem havia assaltado uma série de carretas na Avenida Brasil,
saqueado toda a carga e abastecido a casa, tudo para impressionar o juiz em
sua visita. No dia marcado, Siro Darlan chegou e cou de queixo caído
quando viu a estrutura montada para receber toda aquela gente, quase trinta
pessoas. Ousado, Robertinho de Lucas deixou novamente aos cuidados da
grande família seu caçula, Romulo, já com 4 anos, para brincar com as
crianças que ele chamava de “manos”. O menino sentia-se sozinho e o
tra cante achava as asas de Mãe Flor seguras para ele.
Darlan aprovou tudo e houve uma gritaria de comemoração, mas logo o
juiz jogou um balde de água fria na fervura de felicidade: faltava legitimar o
acolhimento dos “ lhos” menores de 18 anos. Flor e Anderson foram
orientados a procurar os pais biológicos de cada jovem e abrir processos de
adoção. Era impossível, pois havia ali crianças tiradas dos braços de mães
usuárias de drogas, bebês sem qualquer pista de quem os tinha parido e
muitos meninos de rua acolhidos ao longo da jornada pela cidade. Mesmo
sabendo que a possibilidade de isso acontecer era nula, Flor se comprometeu
a resolver a questão. Ao decidir pela permanência da garotada no Rio
Comprido, Siro Darlan concedeu uma guarda provisória a Flor – mesmo
com parecer contrário do Ministério Público do Rio de Janeiro, órgão que
nunca engoliu a imagem de mãe dedicada e temente a Deus que a
missionária propagava na mídia.
Estabelecida na vida nova, Flordelis tomou um banho, arrumou-se toda,
pegou uma bolsa grande e seguiu até a casa de Carmozina para buscar algo
sem o qual não conseguiria mais viver. Na sala da avó, Flávio e Adriano já
estavam prontos à sua espera. A missionária abraçou seus lhos biológicos
longamente, cobriu-os de beijos e chorou bastante, sentindo-se culpada por
tê-los abandonado temporariamente. Nos primeiros minutos do encontro,
percebeu uma certa “marra” na personalidade de Flávio, que falava gírias de
tra cante e mostrava-se impaciente e irritadiço. Flor deduziu que o garoto
estava com hormônios ferventes, em função da puberdade. Pouco antes de ir
embora, ela tentou lavar roupa suja com a mãe.
– A senhora teria mesmo coragem de me entregar à polícia?
– Teria, sim! Você está longe de Deus faz tempo!
– A senhora realmente seria capaz de entregar uma lha?
– Se ela for criminosa, não pensaria duas vezes – reiterou Carmozina.
Austera, Flordelis levantou-se do sofá e caminhou até o quarto da mãe
com a bolsa grande e vazia. Carmozina foi atrás. A missionária abriu o
guarda-roupa da bruxa sem pedir licença, pegou uma caixa da prateleira
mais alta e pôs sobre a cama. De dentro, tirou a imagem de Exu Caveira – a
de São Cipriano, recolheu de um altar. No lugar do cartaz de Baphomet,
encontrou uma estatueta de gesso da gura pagã toda pintada de preto. “Os
policiais rasgaram o cartaz e acabei comprando essa imagem”, justi cou
Carmozina, que havia recuperado os apetrechos da Rua Guarani. “Pode
levar tudo com você, pois seu destino está diretamente ligado a esses seres”,
completou. Flordelis colocou os objetos na bolsa, fechou o zíper, passou a
mão nos garotos e saiu da morada da mãe, no Jacarezinho, prometendo para
si mesma nunca mais aparecer por lá. Quando chegou à sua nova casa,
encontrou os lhos agitados. Anderson tinha saído para resolver “problemas
de igreja”, mas Simone e Cristiana receberam Flor ainda na calçada.
– Mãe, a senhora tem visita.
– Quem é?
– Veja com seus próprios olhos.
Ao passar pela porta da sala, Flordelis teve um sobressalto. Sandra
Sapatão estava sentada no meio do sofá, bem à vontade, com as pernas
abertas e um fuzil pendurado no ombro. Em seu colo repousava Romulo,
herdeiro do seu arquirrival Robertinho de Lucas. A tra cante provocou:
– Vim acertar as contas com você, sua pastora do Diabo!
“Meu sêmen é sagrado, porque foi santificado
por Deus.”

E
ngana-se quem pensa que abusos sexuais cometidos por líderes
religiosos são exclusividade dos pastores evangélicos. O cenário é o
agreste alagoano. Fabiano da Silva Ferreira e Anderson Farias Silva
tinham 11 anos e eram melhores amigos no ano de 2001. Raquíticos e
serelepes, moravam na periferia do município de Arapiraca, a 130
quilômetros de Maceió. In uenciados pelos pais pobres e religiosos,
alimentaram desde cedo o sonho de estudar Teologia e ingressar no
seminário, para, na vida adulta, serem ordenados padres. Deram o primeiro
passo frequentando a Paróquia de São José, no bairro Alto do Cruzeiro, com
capacidade para 1.800 pessoas sentadas. Aos 12 anos, os dois garotos se
matricularam num curso preparatório promovido pela Igreja Católica, onde
aprenderam a usar os objetos litúrgicos e leram todos os livros sacros
utilizados nas celebrações. Na sequência, foram integrados ao quadro de
coroinhas. Nas missas, Fabiano, Anderson e mais oito meninos tinham
inúmeras atribuições. Uma delas era ajudar o monsenhor Luiz Marques
Barbosa, de 70 anos, a vestir sua indumentária. A primeira peça posta no
corpo dele era uma túnica branca – por baixo, geralmente havia uma
camiseta clara e uma calça comprida social. Em seguida, por cima da túnica,
os jovens colocavam em Luiz a estola, uma tira comprida de pano vermelho
simbolizando o poder sacerdotal. Por último, o religioso vestia a casula, um
traje reservado para ações sagradas. As crianças, por sua vez, usavam apenas
túnicas brancas para trabalhar nas cerimônias.
Militar e capelão do Corpo de Bombeiros, Luiz era um homem rígido no
trato com os éis, principalmente com os coroinhas. Usava o microfone para
passar carraspana em quem não parasse de falar durante as missas. Outro
hábito recorrente era expulsar as mulheres cujos trajes, segundo ele, eram
inadequados para frequentar a casa de Deus. Certa vez, ele conduzia um rito
dominical quando identi cou, do presbitério, uma moça de blusinha sem
alças, deixando o colo dos seios à mostra. Primeiro, mandou que ela se
retirasse. Diante da recusa, o sacerdote desceu do palco, retirou a túnica do
corpo, cobriu os seios da mulher e a puxou pelo braço até a saída. A atitude
de Luiz foi aplaudida pelos éis. Era comum ainda ele bater com o
microfone na cabeça dos ajudantes para repreendê-los quando faziam
algazarra.
Com o tempo, monsenhor Luiz passou a fazer atendimento espiritual na
casa paroquial, um ambiente anexo ao templo com entrada separada.
Vestindo a capa de acolhedor, ele chamava os coroinhas separadamente para
conversar. No início, o mais assíduo era Cícero Flávio Vieira, de 13 anos. O
menino entrava na casa, o sacerdote fechava a porta à chave e os dois
cavam lá dentro trancados por cerca de uma hora. Fabiano e Anderson
perceberam o movimento atípico e, curiosos, perguntaram a Cícero o que
tanto ele fazia ali. O garoto sempre desconversava. Algumas semanas depois,
Anderson foi chamado pelo líder religioso e cou com ele a sós por meia
hora. Na saída, Fabiano inquiriu o amigo, que garantiu não ter acontecido
nada de mais. “Ele pergunta sobre as coisas da igreja, quis saber da minha
família, falou um pouco como é a vida dele. Essas coisas simples do dia a
dia...”, contou. No início, Fabiano chegou a car triste por nunca ter sido
escolhido. Sentia-se preterido. Alguns meses depois, ainda com 12 anos, ele
foi surpreendido com a separação dos pais. O pároco Luiz percebeu sua
tristeza e nalmente o chamou para uma conversa particular na sacristia da
Paróquia de São José, onde eram guardados os objetos litúrgicos e as
vestimentas dos padres.
Logo na entrada, o local tinha uma imagem em tamanho real de Jesus
Cristo deitado e morto, representando a retirada de seu corpo da cruz. Nesse
primeiro ambiente havia um sofá grande e dois menores, todos marrons.
Atravessando uma porta, chegava-se a um cômodo mais reservado da
sacristia, com armários talhados em madeira maciça, uma mesa de
escritório e duas cadeiras, para onde Fabiano foi levado para receber
aconselhamento. Monsenhor Luiz mandou as outras pessoas saírem. A sós,
introduziu a conversa perguntando como o menino estava se sentindo em
relação à separação dos pais. Fabiano detalhou o drama familiar e falou da
decisão de morar com o pai, pois sua mãe iria se mudar com a irmã para a
casa da avó, pequena para acomodar duas famílias. Em seguida, o religioso
perguntou ao menino sobre a escola. Ouviu como resposta que suas notas
eram altas e ele passaria de ano com facilidade. Os dois conversaram
sentados por mais de uma hora, separados pela mesa. Na despedida do
atendimento, ambos se levantaram e o sacerdote deu um abraço longo e
aconchegante em Fabiano, dizendo-lhe que ele poderia procurá-lo sempre
que tivesse vontade. “Agora que sua família está desmantelada, serei seu pai e
você será meu lho”, anunciou o religioso. Com tanto afeto, o sentimento de
rejeição do coroinha rapidamente se dissipou.
Na época, Fabiano não sabia, mas estava sendo arrastado para uma
armadilha cujas sequelas se estenderiam por toda a sua vida. Luiz vinha
abusando dos seus coroinhas fazia tempo. O primeiro passo era transmitir
con ança com falsas preocupações. Certa noite, Fabiano andava pelo salão
da igreja durante a missa das 19h30 balançando o turíbulo para espalhar a
fumaça do incenso, simbolizando a subida das orações aos céus. No meio da
cerimônia, o monsenhor pediu ao ajudante que comparecesse à casa
paroquial para outra sessão de aconselhamento assim que a celebração
acabasse. Distraído com os amigos, ele se esqueceu do chamado. O padre foi
até o pátio e gritou com ele. No nal de uma conversa de quase duas horas, o
sacerdote deu um abraço apertado e um beijo no rosto do menino, que não
entendeu o signi cado daquele gesto aparentemente singelo. “Nessa época,
eu era criança e não tinha a menor noção de sexo, pois não tinha televisão
em casa. Meus pais me criaram trancado. Saía somente para ir à escola e à
igreja, onde eu supostamente estaria protegido”, relatou Fabiano, aos 33
anos, em 2022.
A investida seguinte do monsenhor Luiz foi marcada por violência física
e psicológica, ocorrida durante uma missa noturna. No momento do pai-
nosso, todos os éis fecharam os olhos. O sacerdote aproveitou a
oportunidade para passar a mão, por cima da roupa, no pênis de Fabiano,
que o auxiliava no altar. Pouco antes da comunhão, quando os éis se
cumprimentavam no rito conhecido como abraço da paz, o religioso
escolheu o coroinha para cumprimentar. Mesmo estando num palco
sagrado e diante de centenas de éis, monsenhor Luiz deu um apertão forte
em Fabiano. Apesar das várias camadas de tecido, foi possível sentir a
excitação do padre. O menino começou a achar aquilo estranho, mas não
soube como interpretar e reagir. No nal da cerimônia, o líder pediu ao
coroinha que não saísse sem antes falar com ele. O garoto não deu muita
bola para o aviso e foi brincar mais uma vez pelos corredores externos da
paróquia. Meia hora depois, o capelão foi até lá feito um ditador e perguntou
aos berros por que ele havia desobedecido a uma ordem sua. Na frente de
outras crianças, enfurecido, o clérigo pegou Fabiano pelo braço e o arrastou
até a casa paroquial, num percurso de 30 metros. O abusador tinha 1,78 m e
era forte, enquanto a vítima era magricela e fraca. Ou seja, apesar de
oferecer resistência, o menino foi levado com muita facilidade.
Rodeada por varandas e cercada por um muro alto, a casa tinha um
jardim todo orido e um portão metálico. Fabiano foi levado primeiro para
a sala de estar. A funcionária da casa, Maria Isabel dos Santos, percebeu sua
a ição e lhe ofereceu um copo de água. Ríspido, monsenhor Luiz mandou a
mulher se recolher. Obediente, ela seguiu para a casa dos fundos, onde
morava. Eram quase nove da noite e Fabiano cou sentado no sofá enquanto
o criminoso tomava banho e se perfumava. Alguns minutos depois, o
sacerdote pegou Fabiano calmamente pelo braço e o levou até o quarto,
onde havia uma imagem da Sagrada Família e outra de Nossa Senhora de
Fátima, ambas postas sobre a cômoda. Na parede, repousava Jesus Cristo
cruci cado. O religioso trancou a porta, tirou toda a roupa e fez do cruci xo
um cabide, encobrindo o lho de Deus. Fabiano cou em pé, estático,
tremendo dos pés à cabeça. Luiz pegou uma garrafa de aguardente
conhecida como Canelinha Rosa e tomou um shot. Ofereceu a bebida à
criança, que recusou. O adulto, então, abriu uma garrafa de vinho e serviu à
vítima, relacionando a bebida ao sangue de Jesus, conforme dizia nas missas.
Em seguida, delicadamente, a roupa do menino foi tirada até ele car
completamente nu.
Um mês depois, Fabiano e Luiz Marques Barbosa haviam estreitado os
laços. O garoto procurava por ele sempre que precisava de dinheiro. Cada
encontro rendia dividendos entre 2 e 20 reais. Todo o valor saía dos
envelopes deixados pelos dizimistas. Para as contadoras da instituição, o
desfalque era marcado como “despesas sem comprovantes”. Aos 14 anos,
Fabiano começou a tirar notas baixas na escola. Feito um pai, o monsenhor
passou a pagar aulas de reforço e conseguiu uma vaga para ele no Colégio
São Francisco, administrado pela Igreja Católica e considerado um dos
melhores de Arapiraca. A escola particular pedia roupas novas e tênis para
as atividades físicas. Mão aberta, Luiz abriu o envelope do dízimo, tirou 400
reais e deu ao menino, fazendo duas exigências: que ele levasse a nota scal
comprovando a compra e voltasse à noite para mais encontros sexuais. “Esse
será nosso segredo, meu lho. Você vem aqui todas as noites, eu sustento
você e a gente faz amor”, dizia.
Aos 15 anos, Fabiano sofreu fortes dores abdominais na região do
umbigo, febre alta e excesso de vômito enquanto dormia na casa paroquial.
Monsenhor Luiz o socorreu. Ligou para um amigo médico chamado
Francisco e pediu um atendimento de emergência em seu consultório para
salvar o pupilo. De lá, o coroinha seguiu para o centro cirúrgico do hospital
público Nossa Senhora do Bom Conselho, onde foi realizada uma
intervenção de emergência para retirada do apêndice. Logo após a cirurgia,
o sacerdote fez uma visita ao paciente e deixou claro: ele teria morrido se
não tivesse dado entrada no hospital imediatamente. “Quem conseguiu isso
tudo para você fui eu, viu, meu lho? Nunca se esqueça disso”, reforçou. Já
em casa, depois da alta médica, Fabiano recebeu outra visita do religioso.
Sozinho no quarto, o adolescente ainda sentia incômodo com os pontos da
cirurgia. Impaciente com a inatividade sexual de sua presa, o monsenhor
insistiu em transar com o menino no pós-operatório. Fabiano pediu um
tempo para se recuperar, mas Luiz insistiu e cou apalpando o sexo do
jovem até ele se dar conta de que seria impossível a vítima ter ereção.
A rotina de abusos praticada por monsenhor Luiz contra Fabiano se
perpetuou até ele completar 18 anos. O sacerdote confessou a amigos ter se
apaixonado perdidamente pelo coroinha, a ponto de car desequilibrado e
doente, mas negou ser pedó lo. O abusador mantinha amizade com outros
dois reverendos gays e pedó los do interior de Alagoas: Raimundo Gomes
Nascimento, de 43 anos na época; e Edilson Duarte, de 35. Até o bispo
diocesano do município de Penedo, Dom Valério Breda, de 55, fazia parte
desse círculo social. Quando estavam a sós bebendo vodca e fuxicando sobre
a beleza dos ajudantes, os religiosos se chamavam por nomes femininos. Na
fantasia sacra, Luiz era “Simone”, Raimundo era “Mônica” e Edilson era
“Leona”. O bispo Valério, italiano de San Fior di Sotto, gostava de ser
chamado de “Vera Fischer”. Nesse tricô, “Mônica” ouviu tanta resenha
positiva sobre Fabiano que pediu permissão a “Simone” para aliciar o garoto.
“Nem pensar!”, respondeu, irritado. Mesmo assim, “Mônica” levou a criança
para a cama e transou com ela por mais de dois anos, pagando os estupros
com dinheiro vivo.
No dia 26 de outubro de 2022, Fabiano deu o seguinte depoimento:
“Eu era virgem quando comecei a ser abusado sexualmente pelo
monsenhor Luiz. Sequer tinha pelos pubianos. Como as minhas primeiras
relações sexuais foram com ele, acreditava que fazer sexo era aquilo. Fui
conversar com outros coroinhas e eles revelaram que também transavam
com padres e bispos. Então achei que estava fazendo algo sagrado, pois ele
era representante de Deus e uma autoridade muito respeitada na cidade.
Ainda tinha o título de capelão da polícia. Quando entrei na puberdade, as
relações se intensi caram. Então, achei que poderia ser gay e continuei me
deitando com ele quase todas as noites. Ao completar 16 anos, uma menina
mais velha se interessou por mim. Nós nos beijamos, transamos e gostei
muito. Minha cabeça deu um nó, pois não sabia mais qual seria a minha
verdadeira orientação sexual. Desde então, me interessei somente por
mulheres e o sexo com o padre passou a ser algo infame, asqueroso, violento
e vil. Como eu era pobre, transava com ele somente pelo dinheiro, pois
ajudava no sustento da minha família. Certo dia, não quis mais dormir com
ele nem pelo pagamento. Monsenhor Luiz me chamou no confessionário
para dizer que, se eu o deixasse, não poderia mais pôr os pés na igreja dele.
Sendo assim, não fui mais lá. Era um ótimo motivo para eu me livrar
daquele demônio. Estava enganado. Um mês depois, ele fez uma visita à
minha família e contou que Deus não cuidava mais de mim porque eu havia
abandonado sua casa. Religiosa, minha mãe mandou eu voltar e eu obedeci,
até porque o dinheiro que ele me dava começou a fazer falta. Os encontros
sexuais voltaram. Ele me beijava e me chamava de ‘meu amor’. Fiquei com
trauma da palavra ‘amor’. Com o tempo, a relação tornou-se escabrosa. Eu
cava de bruços na cama e ele se deitava por cima de mim, tentando me
penetrar. Esse era o pior momento. Eu travava as pernas para impedi-lo. Em
seguida, penetrava a contragosto no monsenhor e meu pênis cava todo
sujo de fezes, produzindo um odor insuportável no quarto. Sentia vontade
de vomitar, mas ele insistia para eu continuar até ele gozar. A minha sorte –
se é que isso pode ser chamado de sorte – é que Luiz tinha ejaculação
precoce e esse inferno acabava rapidamente. Depois de tudo, tomava um
banho, mas o fedor não saía do meu corpo. Até hoje, 15 anos depois de ter
me livrado dessa aberração, ainda sinto esse futum no meu nariz. Tenho
alucinações com ele quase todas as noites. Às vezes, nos piores pesadelos,
enxergo esse Diabo deitado na minha cama, nu, me chamando de ‘meu
amor’. Esse monstro destruiu a minha vida para sempre”.
Anderson, o melhor amigo de Fabiano, também começou a ser
molestado por sacerdotes antes de entrar na puberdade, em Arapiraca. Mas
só aos 14 anos ele veio a entender o tipo de violência à qual era submetido.
Na adolescência, era muito cortejado pelos padres. O primeiro abuso
ocorreu de forma sutil, logo após uma missa, quando Raimundo Gomes o
chamou à sacristia. “Você está cando um homem muito bonito”, elogiou,
dando um beijo suave e inadequado no rosto do garoto. A segunda investida
ocorreu após uma rodada de orações em uma das capelas da Paróquia de
São José. O monsenhor levou o coroinha até a casa paroquial e beijou
longamente a sua boca. Enojado, o adolescente manteve os lábios cerrados o
tempo inteiro. O religioso, então, começou a lamber seu rosto, avançando
para orelhas e nuca. No nal, Raimundo repassou-lhe um envelope com
dinheiro. “Esse é o dízimo que os éis idiotas pagam para ajudar a manter o
clero. É todo seu, meu lho”, anunciou, com voz máscula. Eram 20 reais em
notas de 2. “É pouco, eu sei. Se quiser que eu aumente a oferta sagrada,
vamos ter de passar da fase dos beijinhos de boca fechada”, avisou. Apesar de
Anderson ainda querer ser padre, ele já sabia que não conseguiria praticar a
castidade, pois tinha a sexualidade muito a orada e desejava mulheres.
Quando seu corpo ganhou massa muscular, os sacerdotes de Arapiraca
começaram a disputá-lo. Era comum os pedó los organizarem encontros
nos nais de semana para ouvir música e beber vinho, cachaça e drinques
feitos com vodca. Nessas baladas, ouviam músicas católicas gravadas pela
Comunidade Canção Nova em ritmo eletrônico. Embriagados, falavam com
voz anasalada, botavam brincos de pressão na orelha, passavam pó
compacto nas bochechas e batom vermelho nos lábios. Na fala, os religiosos
misturavam gírias da comunidade LGBTQIA+ com termos religiosos,
criando um dialeto bem particular. No petit comité, chamavam-se pelos
codinomes femininos. A beleza de Anderson foi assunto na roda:
– Poc do céu! Vocês viram como esse bofe tá cando todo trabalhado na
beleza? A mala é um luxo! Tô bege como o pano umeral! – exclamou Leona
(Edilson), gargalhando alto.
– Desaquenda, sua mona pintosa! Meu edí é desse cafuçu faz tempo! –
reivindicou Mônica (Raimundo).
– E desde quando a senhora respeita os ocós das amigas, sua maricona
pão-com-ovo? Você já furou o meu olho porque ‘fez’ o Fabiano quando eu
ainda estava ‘casada’ com ele... Pensa que esqueci, meu bem? – reclamou
Simone (Luiz).
Regados a bebida, os encontros dos padres para debater seus crimes
sexuais ocorriam num espaço da casa paroquial onde havia um bar e
aparelho de som. O bispo Dom Valério, a “Vera Fischer”, aparecia em
algumas reuniões, mas não há denúncias de abusos de coroinhas contra ele.
No entanto, o bispo era cúmplice dos crimes porque sabia dos estupros,
apesar de negar. “Vera Fischer” tinha posição de comando na Igreja Católica
de Alagoas. Em 30 de julho de 1997, nomeado pelo Papa João Paulo II para
responder pela diocese de Penedo, escolheu como lema Caritas Christi Urget
(O amor de Cristo pede) na cerimônia de ordenação. Também chegou a
presidir a Comissão Regional Pastoral Bíblico-Catequética da Regional
Nordeste 2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Outra
cúmplice dos estupros de Arapiraca era a empregada, Maria Isabel, que
providenciava gelo e ingredientes para os drinques, como alecrim, canela e
ores de hibisco. No rega-bofe religioso, os petiscos também eram
preparados e servidos por ela. No cardápio, constavam geralmente frango a
passarinho, iscas de peixe e linguiça toscana. Tudo feito na mais absoluta
discrição, para não incomodar os estupradores de batina. Maria Isabel nega.
José Reinaldo Bezerra, motorista da Paróquia de São José, era quem levava
os amigos bêbados de volta para casa. No dia seguinte, o funcionário
comprava Engov e Sonrisal para que os salafrários aplacassem a ressaca
santa. Segundo testemunhas, o motorista ainda conduzia crianças e
adolescentes até a casa paroquial para satisfazer o desejo sexual dos
pedó los. Ele também nega. Mas tanto o motorista quanto a empregada
foram presos, acusados de acobertar os crimes sexuais dos seus patrões.
Ao perceber que “Leona” estava de olho em sua presa, “Mônica” fez
investidas mais agressivas. Levou Anderson para casa, sob o velho pretexto
de dar aconselhamentos espirituais, e declarou sua paixão avassaladora.
Assustado, o garoto quis escapar, mas o religioso o segurou pelos braços.
Nesse dia, usou as mãos para abrir sua boca e o beijou à força. No início,
Anderson rejeitava Raimundo, mas foi cedendo com o tempo. Segundo ele,
o monsenhor cava muito afeminado entre quatro paredes, dizendo que “era
uma mulher” chamada “Mônica”. “Havia outra ‘vantagem’ em ser abusado
pelo padre: ele tinha um micropênis que media três centímetros ereto e era
tão no quanto uma caneta Bic. [...] O fato de ele ter trejeitos e voz feminina
na cama me fazia acreditar que eu não estava com um homem”, disse
Anderson, aos 33 anos, em outubro de 2022. As violações se estenderam por
cinco anos. Raimundo e sua vítima caram tão envolvidos emocionalmente
que dormiram no mesmo quarto por mais de dois anos: o religioso, numa
cama de casal, e o jovem num colchão de solteiro posto no chão. “A casa
paroquial era aconchegante e a comida, deliciosa. Inconscientemente, eu
vivia uma relação afetiva, mas nem me dava conta de que estava enredado
psicologicamente por um criminoso. [...] Eu nunca me deitei na cama do
padre. Era sempre ele quem descia para o meu colchão”, contou. Para manter
sua presa por perto, o sacerdote matriculou o rapaz numa escola particular e
bancou tudo, inclusive o material de estudo. No entanto, o ex-coroinha,
heterossexual, passou a namorar uma menina. O monsenhor teve surtos de
ciúme. Para puni-lo, parou de pagar os estudos. Anderson voltou a estudar
em escola pública aos 17 anos. Hoje ele é policial militar em Alagoas e
prefere ver o Diabo em sua frente a se deparar com um padre. “Nem sei se
sou ateu ou agnóstico. O que sei é que tenho nojo – muito nojo – da Igreja
Católica e de tudo que ela representa”, de niu.
Os abusos em série de Arapiraca vieram à tona em 2008, quando
Fabiano entrou em depressão e procurou pelo ex-coroinha Cícero, que já
havia abandonado a Paróquia de São José, cansado do assédio do
monsenhor Luiz. Segundo seu relato, Cícero foi estuprado entre 1999 e 2006,
desde os 12 anos de idade. O religioso primeiro o abraçou, deu um beijo em
sua boca dizendo “amá-lo como se ama Deus” e ainda deixou 2 reais para o
menino guardar o “segredo de con ssão”. A convite do padre, Cícero dormia
na casa paroquial, com consentimento dos pais. Primeiro ele era alojado
num aposento para hóspedes. No meio da noite, o sacerdote do Satanás
levava a criança para seu quarto, onde ocorriam carícias, sexo oral e cópula
anal. “Meu sêmen é sagrado, porque foi santi cado por Deus”, proferiam os
religiosos aos coroinhas.
Quando Fabiano procurou Cícero para falar sobre os abusos dos
párocos, chorou tanto que as frases cavam incompletas e nem sempre seu
relato era compreendido. Nessa época, ao contrário do amigo, Cícero e
Anderson já estavam livres da violência – mas nem por isso haviam
esquecido a monstruosidade da qual foram vítimas. Os dois, então, bolaram
um plano e incluíram Fabiano na história sem consultá-lo. Com parte do
dinheiro guardado que recebera do monsenhor Raimundo, Anderson foi às
Lojas Americanas e comprou uma câmera digital por 400 reais. A ideia era
armar um agrante. Os dois jovens seguiram o motorista Bezerra até ele
pegar Fabiano na escola e levá-lo à casa paroquial. Depois de pular o muro,
os amigos seguiram até a janela da suíte de Luiz. Agachados, puseram a
câmera no batente para lmar o interior do quarto. O equipamento gravou
por cerca de dez minutos, até que Anderson levantou-se para ajustar o foco
da lente e foi surpreendido pelo padre. “Quem está aí?”, gritou ele. Para não
serem pegos, os rapazes saíram correndo e só na casa de Cícero conferiram a
gravação, que havia registrado nitidamente o monsenhor transando com
Fabiano. O agrante foi entregue ao Ministério Público Federal em 2009 e
ao jornalista Roberto Cabrini, que fez a denúncia em rede nacional no
programa Conexão Repórter, do SBT. Fabiano ainda passou o vexame de ter
o vídeo praticando sexo com Luiz gravado em DVD e vendido em feiras de
Alagoas como um lme pornô intitulado Senhor dos anéis, com a foto do
religioso na capa. Os três ex-coroinhas chegaram a relatar os abusos
formalmente ao bispo diocesano Dom Valério Breda, a “Vera Fischer”.
“Minha Nossa Senhora! Que horror! Vocês têm certeza disso? Vou tomar
providências rigorosas, porque esse tipo de absurdo deixa Deus muito triste”,
anunciou o sacerdote, como se não fosse cúmplice dos seus pares de batina.
Por incrível que pareça, pedo lia não é crime no Brasil. O capítulo do
Código Penal sobre crimes sexuais pune o estupro de vulnerável; a indução
de menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem; a satisfação da lascívia
mediante presença de criança ou adolescente; o favorecimento da
prostituição e a divulgação de cenas de estupro de vulneráveis. No entanto,
essa falha pode ser corrigida. Há um projeto de lei (4299/20) de autoria da
deputada Rejane Dias (PT-PI) tramitando no Congresso para tipi car o
crime de pedo lia. Se aprovada, a nova lei acrescentará um artigo ao Código
Penal classi cando como pedo lia o ato de constranger criança ou
adolescente, corromper, exibir o corpo apenas com roupas íntimas ou tocar
partes do corpo para satisfazer a lascívia, com ou sem conjunção carnal,
utilizando criança ou adolescente. A pena, nesses casos, será de quatro a dez
anos de reclusão, o que ainda é considerado pouco para um crime horrendo
contra crianças e adolescentes. O projeto prevê ainda que a punição seja
aumentada em até um terço se o abusador se prevalecer de relações
domésticas, de coabitação, de dependência econômica ou de superioridade
hierárquica inerente ao emprego. Se o agressor for parente da vítima ou tiver
mantido relação de afeto com ela a m de se vingar de qualquer membro da
família, a pena poderá ser acrescida em dois terços. Outro projeto de lei
(1776/2015) que tramita na Câmara dos Deputados inclui a pedo lia no rol
de crimes hediondos, também com aumento de pena do abusador, e prevê o
início da prisão do criminoso em regime fechado. Esse projeto é de autoria
dos deputados federais Paulo Freire (PL-SP) e Clarissa Garotinho (União-
RJ).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pedo lia é transtorno
da “preferência sexual”, ou seja, refere-se a pedó los adultos que têm
“preferência sexual” por crianças, geralmente pré-púberes ou no início da
puberdade. Para o Vaticano, pedo lia é uma infração universal punida com
demissão. A denúncia pode ser feita por qualquer pessoa, sendo ela a vítima
ou não. Inicialmente, o caso deve ser relatado ao superior do clérigo
acusado. Se o criminoso for o padre, por exemplo, deve-se falar com o bispo.
A autoridade que recebeu a denúncia ouve o acusado. Se o bispo considerar
a denúncia verídica, ele a manda para o Tribunal Eclesiástico. Resultado: as
denúncias sempre são varridas para debaixo dos tapetes das igrejas. A bem
da verdade, sempre foi comum a cúpula do catolicismo acobertar crimes
sexuais de seus clérigos contra crianças e adolescentes, como fez o bispo
Valério, a “Vera Fischer”. No entanto, em 2021, ocorreu uma pequena
mudança.
Para debater a pedo lia dentro da igreja de forma aberta, o Papa
Francisco presidiu um evento no Vaticano intitulado “A proteção de
menores na Igreja”, com 150 titulares de congregações espalhadas pelo
planeta – incluindo o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), Dom Walmor Oliveira de Azevedo. O encontro apresentou
depoimentos de vítimas de abusos cometidos por padres para mostrar à
sociedade o horror dessa prática e clamar que esse tipo de crime cessasse
imediatamente. Três meses depois, o Vaticano mudou as regras internas,
obrigando seus membros a denunciar às autoridades religiosas, o mais
rápido possível, todos os casos de pedo lia. Na nova regra, as denúncias,
mesmo sendo apenas suspeitas, devem ser enviadas sigilosamente para a
Congregação da Doutrina da Fé, seja por integrantes da instituição, seja por
funcionários das sacristias. A nova orientação, porém, não determinou que
as denúncias fossem enviadas também ao Ministério Público e à polícia, que
é bem mais ligeira em investigação do que os burocratas dos tribunais
eclesiásticos.
O escândalo de Arapiraca só saiu do cercadinho da igreja porque foi
mostrado na televisão, chocando o país inteiro. De lá, foi parar na Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado que apurava crimes sexuais
praticados por pedó los. Para políticos, Edilson confessou tudo, inclusive os
apelidos femininos dos sacerdotes. Monsenhor Luiz admitiu a prática sexual
com Fabiano, mas teve a cara de pau de levar uma Bíblia no dia de seu
depoimento. Segurando o livro sagrado, contou que a relação com o
coroinha não caracterizava abuso, muito menos crime, porque ele (Luiz) era
homossexual e estava apaixonado pelo garoto. “Até onde eu sei, ser
homossexual e se apaixonar não é crime no Brasil”, defendeu-se. Em
seguida, “Simone” se comparou a Jesus. “Renova-se em mim o que ouvi na
Sexta-Feira Santa, que foi Jesus dizendo: ‘Tiraram a minha roupa, cuspiram
em mim e me cruci caram’. É isso que estou passando com essas acusações
levianas”, proclamou. O apelo não surtiu efeito. Luiz saiu de lá preso. Em
2011, foi condenado pelo juiz da Vara da Infância e Juventude, João Luiz de
Azevedo Lessa, a 21 anos de prisão. Monsenhor Raimundo, a “Mônica”, e
padre Edilson, a “Leona”, pegaram 16 anos no mesmo processo.
No entanto, nenhum dos três estupradores cumpriu um dia sequer da
pena, porque seus advogados recorreram da sentença. Benevolente, a Justiça
dos homens deu a eles o direito de esperar pela morosidade das instâncias
superiores gozando de liberdade. Raimundo morreu em 2014, em
decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC). Mesmo expulso da
Igreja Católica pelos crimes sexuais, ele foi sepultado com honras religiosas
logo após uma missa de corpo presente lotada, realizada na Paróquia
Sagrado Coração de Jesus, em Arapiraca. O sepultamento, no cemitério Pio
XII, arrastou uma multidão de éis. Monsenhor Luiz tinha 91 anos em 2022.
Durante a pandemia, beirou a morte ao car internado com covid-19 por
oito dias na Santa Casa de Misericórdia de Maceió. Em novembro de 2022,
sobrevivia com sequelas graves da doença. Padre Edilson está foragido da
polícia. Bispo Valério, a “Vera Fischer”, nunca foi cobrado pela cumplicidade
com os pedó los, mas morreu em 2020 vítima de insu ciência renal crônica
causada por crise alérgica contraída quando usava um respirador mecânico.
Fabiano, Anderson e Cícero movem uma ação milionária na Justiça contra a
Igreja Católica. Cada um quer 1 milhão de reais para reparar danos morais.
“Sabe o que é revoltante nessa história toda? Nunca nenhum integrante do
clero nos procurou para se desculpar ou para prestar qualquer tipo de
assistência. Nunca!”, disse Fabiano, que faz terapia há mais de dez anos para
tentar se livrar do trauma de ter sido abusado por quem deveria zelar pela
sua paz espiritual. Em 2022, ele era casado, trabalhava com vendas e tinha
uma lha de 5 anos.
Também em 2022, outro padre criminoso caiu nas garras da Justiça dos
homens e foi condenado a 19 anos de prisão, acusado de violação sexual
contra pelo menos uma dezena de coroinhas com idade entre 11 e 17 anos.
O abusador era Pedro Leandro Ricardo, com 32 anos quando fez a sua
primeira vítima. O cenário do crime foi o município de Araras, interior de
São Paulo. Cassiel Lima e Silva, de 17 anos, era órfão de pai e vivia com a
mãe em estado de miséria, fazendo apenas uma refeição precária por dia.
Para escapar da pobreza, resolveu tornar-se padre e ingressou como
coroinha na Paróquia de São Francisco de Assis, administrada por Pedro
Leandro. Certa vez, o religioso pediu a Cassiel que o ajudasse num trabalho
social feito na zona rural de Araras. Eles seguiriam bem cedinho na
caminhonete da igreja com alimentos para serem doados a famílias carentes.
Na condução do veículo, o sacerdote pegava na perna do jovem, sentado no
banco do carona, sempre que trocava as marchas. Mesmo estranhando, o
garoto não fez comentário – tratava-se, a nal, de uma autoridade muito
acolhedora e respeitada na comunidade. Na segunda vez, Pedro Leandro
avançou um pouco mais: pediu ao coroinha que dormisse na casa paroquial,
pois fariam nova viagem pela zona rural na manhã seguinte. Cassiel aceitou
o convite na hora, pois teria a oportunidade de fazer mais uma refeição
naquele dia. O abuso ocorreu logo após o jantar, quando o religioso
apareceu de banho tomado, excitado, usando uma cueca samba-canção e
apalpando o próprio pênis. Sentado no sofá, Cassiel recebeu uma ordem:
“Chupa aqui!”. Ele recusou, mas, diante da insistência do outro, propôs o
contrário: receber sexo oral do padre. No nal do ato, trancou-se no quarto.
No dia seguinte, o sacerdote serviu o café da manhã como se nada tivesse
acontecido. Na outra semana, repassou ao jovem um envelope contendo 500
reais. Pobre, Cassiel pegou o dinheiro e entendeu o pagamento como um
“cala-boca” ou “se quiser mais, basta transar comigo”. Com medo de a cena
se repetir, o rapaz foi embora, abandonou seu sonho e mudou-se de Araras.
Pedro Leandro era um predador de batina. Outra vítima, Eduardo, de 12
anos, contou na Justiça ter sofrido nas mãos do pai alcoólatra. Em 2003,
acabou acolhido pelo padre na Paróquia de São Francisco de Assis. Na
época, o coroinha não sabia, mas era uma mulher trans: apesar de ter
nascido num corpo masculino, se autoidenti cava com o gênero feminino.
O religioso acompanhou o início do processo de readequação sexual do
indivíduo, que passou a ser chamado de Bella ao completar 14 anos. A
adolescente entrou para o coral da igreja e sofreu violência psicológica, com
reações agressivas e preconceituosas dos amigos, que não entendiam sua
transformação. Bella pediu ajuda a Pedro Leandro, e este a responsabilizou
pelo bullying, pois “ela dava muita pinta e confundia a cabeça das pessoas”.
Certo dia, o sacerdote pediu à menina que fosse até a casa paroquial para
falar “do seu problema”. A sós, pediu que ela tirasse toda a roupa, pois queria
ver se “ainda tinha pênis”. A garota cou estática com a abordagem. O
religioso aproveitou para lhe dar um beijo na boca. Num ímpeto, Bella deu
um empurrão no padre, derrubando-o no chão. No dia seguinte, sua mãe foi
chamada à sacristia e soube que a lha havia sido expulsa da paróquia por
ser transexual e agressiva. “Ela tem uma ‘opção’ de vida diferente da
esperada pela Igreja. Isso tem causado tumulto aqui dentro”, justi cou o
pároco.
Segundo o Ministério Público, Pedro Leandro praticou abuso contra
uma dezena de coroinhas entre 2002 e 2006. Ele jura inocência e atribui as
denúncias a funcionários do departamento nanceiro da sua paróquia, que
teriam sido agrados desviando recursos. Eles foram demitidos e, desde
então, teriam armado contra ele com o intuito de macular sua reputação.
Quando a queixa se espalhou por Araras, o bispo emérito da diocese de
Limeira, Dom Vilson Dias de Oliveira, transferiu o subordinado para o
município de Americana – onde, mesmo acusado, atuou rezando missas e
fazendo batizados. Mais tarde, Dom Vilson foi afastado das funções pelo
Vaticano sob suspeita de cobrar propina de Pedro Leandro para manter as
delações contra ele em segredo. O padre só foi demitido pelo clero dez anos
depois de cometer a primeira violência. “O réu praticou as condutas delitivas
utilizando-se da autoridade religiosa que exercia na comunidade em que
atuava, fazendo com que todos o obedecessem, eternizando abusos”,
escreveu o juiz Rafael Pavan de Moraes Filgueira na sentença que condenou
o monstro de Araras. Assim como os criminosos de batina de Arapiraca,
porém, Pedro Leandro seguia em liberdade aos 50 anos, em 2022, graças –
como sempre – à boa vontade da Justiça brasileira.
Em 1995, outro assombro eclesiástico atacou crianças. Dessa vez, o
crime começou no município mineiro de Mariana, a 110 quilômetros de
Belo Horizonte. Bonifácio Buzzi, de 36 anos na época, era responsável por
uma pequena igreja no distrito rural de Mainart. No que parecia uma
intenção nobre, ele iniciou um programa educacional, como voluntário, para
ensinar os lhos dos lavradores a ler, escrever e fazer contas. O que ele
queria mesmo, porém, era car rodeado de crianças para estuprá-las. Os
pais, operadores de máquinas agrícolas, deixavam os lhos com o religioso
por volta das 4h e só retornavam para buscá-las às 17h. Dependendo do dia,
o sacerdote cava com vinte meninos e meninas. Mas, para saciar seu desejo
macabro, preferia garotos entre 10 e 12 anos. Quando suas vítimas cresciam,
ele as trocava por outras mais novas. A substituição geralmente ocorria
quando nasciam pelos pubianos na criança.
Padre Buzzi dava aulas usando lousa de giz. No intervalo, levava seus
“alunos” para tomar banho num córrego próximo. Segundo os meninos,
todo mundo cava nu, mas não acontecia nada. O pedó lo agia no meio da
madrugada. Quando os pais chegavam para levar os lhos para casa, ele
escolhia sua presa dizendo que o menino precisava de aula de reforço e
pedia que casse para dormir na casa paroquial. Inocentes, os pais
deixavam. Na calada da noite, Buzzi beijava o menor e se masturbava
enquanto a vítima dormia. No início, os abusos paravam por aí. Certa vez,
Pedro, de 10 anos, foi o escolhido para as aulas de reforço. Sua mãe,
Doralina, admiradora do trabalho do padre, concordou. Dessa vez, Buzzi
avançou. À noite, a casa estava infestada de muriçocas. Com a desculpa de
espalhar repelente no corpo da criança, o religioso mandou que ela casse
nua. Na sequência, o garoto foi penetrado. Durante o estupro, o sacerdote
percebeu uma certa desenvoltura de Pedro em fazer sexo oral e,
principalmente, quando o menino assumia posições sexuais passivas na
hora da penetração. Com o tempo, apaixonado, o padre descartou outras
vítimas. Passou a transar somente com Pedro, mesmo depois de ele entrar
na fase da adolescência, rompendo o padrão de abusar somente de crianças.
Na escola rural, já com 13 anos, o garoto contou para um coleguinha de 15
que namorava o religioso. O coleguinha contou para a mãe, uma senhora
chamada Grinalda, da Associação de Mulheres da Agricultura Familiar. Ela
denunciou a violência ao pároco da Arquidiocese de Mariana. Buzzi foi
transferido para uma igreja próxima à localidade de Sumidouro, a dez
quilômetros do local onde ocorriam as aulas de alfabetização. Um mês
depois, Grinalda foi até lá e cou surpresa quando viu, numa quermesse,
padre Buzzi, Pedro e sua mãe, Doralina, de 39 anos, sentados à mesma mesa
tomando quentão. Grinalda conhecia Doralina do trabalho rural e só não
havia contado a ela sobre os abusos contra seu lho porque cou com medo
de acontecer uma tragédia, pois a mulher tinha dado golpes de machado em
outra agricultora numa disputa por um pedaço de terra para a plantação de
pimenta-biquinho. “Fiquei com receio de ela esquartejar o homem e acabar
presa. Mas, dessa vez, não podia mais esconder a verdade”, justi cou
Grinalda. Ela foi até a mesa, pediu licença e chamou Doralina para uma
conversa em particular:
– Nem sei como começar essa prosa.
– Vá direto ao ponto!
– Você tem de afastar o seu lho do padre Buzzi!
– E por que eu faria isso?
– Porque ele é um pedó lo! Já o denunciei na paróquia e mandaram ele
pra cá.
– Ah! Então foi você quem fez essa fofoca?
– Mulher, tu não tá entendendo, o padre tá comendo seu lho.
Doralina se afastou da amiga sem falar nada e seguiu até uma barraca
para pegar mais bebida. Insistente, Grinalda foi atrás, anunciando que faria
uma nova denúncia, dessa vez na delegacia. A mãe de Pedro deu um gole
longo na mistura de cachaça, canela e gengibre e encarou Grinalda.
– Não faça isso! Meu lho não vai suportar car longe do padre. Pedro
caminha dez quilômetros para visitá-lo uma vez por semana depois que
Buzzi foi transferido. [...] Agora você vem me dizer que é a autora dessa falsa
denúncia. [...] Ele aprendeu a ler graças ao padre, não sabia nem as vogais...
– Acho que você não entendeu. Buzzi está violentando o seu lho! –
alterou-se Grinalda.
– Você não sabe o que diz. Pedro foi abusado pelo pai desde os 8 anos.
Todos os dias, inclusive na nossa cama, na minha frente! Eu me separei dele
para evitar o incesto, que é pecado. Depois, o Pedro passou a ser molestado
pelo padrasto, uma desgraça de homem que conheci na roça e levei para
casa porque não tinha onde dormir. Agora que meu lho foi escolhido por
um representante de Deus, você vem dizer que é estupro? Que devo
impedir? Você está doida?
Com medo do machado de Doralina, Grinalda deixou a acusação para
lá. Cinco anos depois, porém, as denúncias contra padre Buzzi nalmente
chegaram à delegacia de Três Corações. Pedro já estava com 17 anos e se
recusou a classi car como estupro a relação sexual mantida com o sacerdote
por três anos consecutivos, iniciada ainda na infância. “Foi consentido. Nós
nos amávamos. Eu terminei com ele porque me apaixonei por um pastor”,
disse o jovem ao policial. Em sua defesa, o religioso alegou ser doente
mental. Não lhe deram ouvidos: foi condenado a 20 anos de cadeia. Depois
de car cinco anos no xilindró, migrou para o conforto da prisão domiciliar.
Em casa, cumprindo pena, conseguiu atrair dois menores, de 8 e 10 anos, e
fez sexo com eles. Foi parar num manicômio judiciário. No hospital
psiquiátrico, mesmo vigiado, convenceu um paciente de 13 anos a chupá-lo.
De lá, o pedó lo incorrigível mudou-se para Barbacena, na região
metropolitana de Belo Horizonte, onde cometeu novos abusos e foi preso
mais uma vez. Quando migrou para o regime semiaberto, em 2012,
desapareceu.
Em 2015, Buzzi foi o único brasileiro a ter o nome incluído na lista
internacional de padres autores de crimes sexuais contra crianças e
adolescentes acobertados pelo Vaticano. A lista da vergonha foi divulgada
no lme hollywoodiano Spotlight – Segredos revelados, ganhador do Oscar
de melhor lme em 2016. Só depois dessa publicidade de alcance mundial a
polícia de Minas saiu atrás dele. Buzzi estava para os lados do município de
Barra Velha, em Santa Catarina, abusando de outras vítimas. Foi capturado e
levado para o presídio de Três Corações. No traslado, disse aos policiais que
não adiantava prendê-lo, pois sua doença estava na alma, e não em seu
corpo. Quando deu entrada na penitenciária pela terceira vez, em 5 de
agosto de 2016, padre Buzzi aparecia nas páginas policiais de todos os
jornais por causa da repercussão do lme Spotlight. A população carcerária
agitou-se com sua chegada. Ele foi para a solitária. Houve uma disputa entre
os presos mais violentos para ver quem iria assassiná-lo. No entanto, o
religioso ganhou a aposta: dois dias depois, Buzzi pegou o lençol da cama,
fez uma teresa (corda improvisada) com o tecido, amarrou uma das pontas
na parte mais alta da grade, passou a outra ponta no pescoço e fez um nó.
Em seguida, enforcou-se com o peso do próprio corpo, ajoelhando-se
lentamente. Dentro do universo religioso, o suicídio é um dos temas mais
controversos. A maioria das doutrinas a rma que o destino de quem tira a
própria vida é o inferno. Se for verdade, padre Buzzi, o pedó lo contumaz,
está sentado no colo do Satanás.
Nômade, o Demônio também troca os templos da Igreja Católica pelos
falsos terreiros de candomblé. O suposto líder religioso Pai Vagner Meleiro,
de 40 anos, manteve por quase uma década o que chamava de “casa
espiritual”, onde realizou atendimentos no Jardim Zulmira, zona oeste de
Sorocaba (SP). Segundo relatos das clientes, ele fazia previsões e promovia
curas por meio de relações sexuais. Na hora de estuprar mulheres, dizia
obedecer ordens de entidades superiores. Branco, de estatura mediana, com
cavanhaque, nem gordo nem magro, Vagner fazia nas noites de domingo um
ritual coletivo chamado “roda de esquerda”, no qual, segundo ele, ocorria
uma “passagem de almas vagantes para o lado da luz”. Tudo começava com
uma consulta individual, com preço a partir de 300 reais. O charlatão
recebia homens e mulheres, mas enredava somente as clientes mais
vulneráveis. Uma de suas vítimas foi a professora Débora Rangel, de 42
anos. Num curso de escrita criativa, ela conheceu a funcionária pública
Mallu Ribeiro, de 29. As duas caram amigas já nas primeiras aulas. O
instrutor sugeriu que as alunas lessem Capitães da Areia, de Jorge Amado,
para discutir a obra no próximo encontro, marcado para dali a uma semana.
Débora e Mallu compraram juntas o livro, cujo enredo retrata a vida de um
grupo de adolescentes abandonados que cresceram roubando pelas ruas de
Salvador, e leram as 280 páginas em quatro dias. Marcaram um encontro
num café para trocar impressões pessoais sobre o texto do escritor baiano.
Entre xícaras e torradas, Mallu comentou que frequentava o terreiro do Pai
Vagner havia dois anos. Curiosa, Débora quis saber um pouco mais sobre o
lugar. No ritual da “roda de esquerda”, segundo a funcionária pública, o
suposto candomblecista incorporava alternadamente duas entidades divinas.
Uma era chamada por todos de “Irmãozinho”, um homem atencioso e
empático. O outro espírito era uma mulher voluptuosa conhecida pelo
apelido de “Dama da Noite”. Segundo Mallu relatou à amiga, o ambiente
tinha um magnetismo ímpar, capaz de tocar o íntimo das pessoas. Débora
foi convidada a participar do ritual. Com medo de feitiçarias, recusou. No
dia marcado para defender Capitães da Areia em sala, as duas amigas
arrasaram, numa turma com 40 pessoas. Falaram sobre o fato de a obra
ainda causar impacto nos dias atuais, apesar de ter sido escrita há quase um
século. Lembraram que exemplares do livro chegaram a ser queimados em
praça pública, tamanho o escândalo provocado pelo conteúdo. Em seguida,
a turma escreveu uma resenha interpretando o clássico do escritor baiano.
Na última semana do curso, Débora não compareceu. Mallu e outras
colegas mandaram mensagens pelo WhatsApp, mas ela nem sequer as
visualizava. Preocupada, a funcionária pública foi até a casa da amiga ver o
que havia acontecido. Numa consulta com um oncologista, Débora havia
descoberto um câncer no ovário esquerdo. Três semanas depois, estava
internada numa clínica particular para retirar o tumor. Mallu fez questão de
acompanhá-la na cirurgia e no pós-operatório. Quatro meses depois, já
curada, Débora agradeceu o apoio da amiga. Enfática, Mallu creditou o
sumiço da doença aos poderes de Pai Vagner. “Foi o ‘Irmãozinho’ quem te
curou. Imprimi uma foto sua do Instagram, escrevi seu nome no verso e
contei com detalhes para o Pai Vagner o que estava acontecendo com você.
Ele consultou a entidade e ouviu dela, com todas as letras, que você ia
morrer, pois sua doença estava em estado avançado. Mas foi feito um ritual
de cura na ‘roda de esquerda’ quando você estava internada. Hoje, você está
100% livre do câncer, conforme seus exames comprovaram”, relatou Mallu.
Ela pediu à Débora que comparecesse ao terreiro pelo menos uma vez, para
agradecer. A professora cou impactada com o relato da amiga. Passou uma
semana sem dormir direito pensando sobre a tal “roda de esquerda”. Num
domingo à tarde, Mallu ligou para avisar que buscaria a amiga em casa, às
18h. Juntas, elas iriam ao terreiro de Pai Vagner. Assombrada, Débora
declinou do convite e ouviu de Mallu que ela não deveria virar as costas para
o tal “Irmãozinho”. Três meses depois, uma notícia tirou o chão de Débora
pela segunda vez. Outro exame mostrou que um novo câncer estava
instalado no ovário direito, em estado inicial. Apavorada, resolveu marcar
uma consulta com Pai Vagner. Numa terça-feira, foi recebida no terreiro por
Juliana de Moura Corcini, esposa de Vagner e autodenominada “ lha de
santo”. Débora falou do câncer e pediu para conversar com Vagner. Como
ele estava repousando, não pôde atendê-la. Ela foi instruída a voltar no
domingo à noite, quando ocorreria a “roda de esquerda”, com ingresso a 600
reais.
Casada e mãe de uma adolescente de 14 anos, Débora procurou Mallu
para saber mais sobre o ritual. A amiga disse tratar-se de uma experiência
incrível e aconselhou a novata a vestir roupas bonitas, pois “Irmãozinho”
tinha bom gosto. A professora não conseguiu mais dormir. No domingo, Pai
Vagner a recebeu numa sala com diversas mulheres, incluindo Mallu. A
consulta foi bem mais simples do que ela imaginava. Vagner pegou na
barriga de Débora e falou que o câncer sumiria de lá em alguns meses caso
ela enrolasse um tecido vermelho em seu ventre todas as noites, na hora de
dormir. Débora saiu de lá com pensamentos positivos. Por semanas, enrolou
o pano em seu corpo ao mesmo tempo que fez tratamento com
quimioterapia e radioterapia. Curada mais uma vez, procurou por Pai
Vagner querendo agradecer. Foi marcada mais uma incursão pela tal “roda
de esquerda”. Dessa vez, Débora cou apreensiva. Eram 19 horas e o terreiro
estava com todas as luzes apagadas. Ela foi conduzida por Juliana até uma
área reservada, iluminada apenas por uma vela preta ncada num pedaço de
carne crua. Débora perguntou pelo “Irmãozinho”. A esposa de Vagner disse
que, dessa vez, ela seria recebida pela “Dama da Noite”. No meio da
penumbra, Débora percebeu que Pai Vagner estava sentado num trono,
usando um vestido longo vermelho e um chapéu feminino preto, além de
bijuterias e um leque. Juliana deixou a cliente em pé diante da “entidade” e
desapareceu no breu. Débora tremeu dos pés à cabeça:
– O senhor é o Pai Vagner, né? – questionou, tímida.
– Não! Sou a “Dama da Noite”. Tem um “Egun” irritado por causa de
uma dívida. Você foi curada de um câncer e não veio agradecer.
– Estou aqui para dizer “muito obrigada”! – adiantou-se ela.
– Grati car a “Dama da Noite” não é algo simples!
– O que devo fazer?
– Tire a roupa! – ordenou a “entidade”, sentada no trono e fumando um
cigarro comprido.
– Como?! – perguntou Débora, incrédula.
– Eu mandei tirar a roupa! – insistiu o homem.
Débora olhou para os lados e não viu ninguém por perto. Contrariada,
respirou fundo e tirou a blusa. A “Dama da Noite” resmungou e ela se desfez
da saia. Ficou apenas de calcinha e sutiã. Envergonhada, Débora cobriu o
que pôde usando os braços e as mãos. Na sequência, a “Dama da Noite”
levantou-se e foi até um canto da sala escura pegar um facão, posto ao lado
da vítima para intimidá-la. Débora percebeu que Vagner estava excitado. Ele
se aproximou e cochichou:
– Se eu fosse você, tiraria toda a sua roupa e chuparia o meu pau. Pois
“Egun” é de veneta, tem acessos de loucura. Ele é cheio de surpresas. Tanto
pode car violento agora como pode trazer o seu câncer de volta mais tarde.
Pode até fazer mais, já que esse tipo de doença passa de mãe para lha...
– Pelo amor de Deus! Minha lha, não! – suplicou.
– Faça tudo o que eu mandar para você não ser machucada e para
manter a sua lha longe do câncer.
Débora tirou as roupas íntimas. Fez sexo oral em Vagner. Foi penetrada
na vagina e no ânus por mais de uma hora numa cama posta ao lado do
trono. Vagner não usou preservativo e ejaculou na vagina da vítima. Débora
chorou durante toda a relação sexual forçada. “A sua vida depende desse
segredo”, ameaçou a “Dama da Noite” tomando uma lata de cerveja. No
nal, Vagner saiu do personagem e perguntou à vítima o que tinha
acontecido. “Por favor, me conte tudo, porque não lembro de nada. Quando
a ‘entidade’ entra no meu corpo, eu saio dele e não respondo pelos meus
atos, sabe? Me desculpe por qualquer coisa”, disse o estuprador. Débora
estava tão estarrecida que nem sequer conseguiu sair da cama. Após o
estupro, ainda levou mais um susto. Todas as lâmpadas do terreiro se
acenderam e ela percebeu que pelo menos dez mulheres estavam sentadas
em cadeiras de plástico, formando um círculo, assistindo ao ritual,
formando a tal “roda de esquerda”. Estavam na plateia Mallu e Juliana, além
de outras que passaram pelo mesmo processo. Débora cou em estado de
choque. Semanas depois, porém, com medo de desobedecer a “Egun”, voltou
a participar da “roda de esquerda” sentada no círculo enquanto Vagner
estuprava outra mulher.
Pai Vagner manteve esse ritual de estupros por quase dez anos. Segundo
relatos das mulheres que passaram pelo terreiro, ele mandava as próprias
vítimas recrutarem novas presas, como fez Mallu quando abordou Débora
no curso de escrita criativa. Era comum ele transar com mais de uma
mulher simultaneamente. Também exigia que elas zessem sexo entre si. Na
hora de “incorporar” as entidades, ele alternava o espírito do “Irmãozinho” e
da “Dama da Noite”. Os crimes de Vagner só cessaram depois que uma
vítima se cansou dos abusos e foi denunciá-lo na 1ª Delegacia de
Investigações Gerais de Sorocaba. Vagner foi preso no dia 17 de janeiro de
2022 em uma operação policial batizada de “Hemera”, a deusa da persuasão.
Na hora de justi car seus crimes sexuais, o estuprador teve a cara de pau de
dizer que todas as 12 mulheres que o denunciaram transaram com ele por
livre e espontânea vontade. “Elas gostavam tanto que pediam para repetir”,
relatou aos policiais. Para sustentar essa tese, Vagner mostrou fotos das
vítimas bem à vontade em churrascos que promovia no terreiro e mensagens
de WhatsApp em que pediam para ser atendidas pelas entidades, além de
outras querendo fazer sexo.
O criminoso também justi cou que parte das suas presas era formada
por mulheres com curso superior, ou seja, não eram ignorantes nem
ingênuas, a exemplo de Débora e Mallu. As desculpas não surtiram o efeito
esperado. No dia 2 de agosto de 2022, o juiz Cesar Luís de Souza Pereira, do
Tribunal de Justiça de São Paulo, condenou o autointitulado Vagner Meleiro
a 136 anos de prisão por crimes sexuais envolvendo 12 mulheres, incluindo
duas menores de idade. Na hora de calcular a sentença do pai de santo, o
juiz levou em conta que dez mulheres foram estupradas por ele de forma
contínua. O magistrado considerou uma pena inicial de 8 anos por vítima e
adicionou outros 2 anos pela continuidade dos atos. Outras duas vítimas
disseram que foram estupradas apenas uma vez, acumulando assim os 136
anos de reclusão. Ao conceder sentença tão pesada, o juiz entendeu que
Vagner usava o pavor como maior arma para estuprar suas vítimas. “O
terror é uma sensação de medo muito intensa. O medo de ne-se como uma
perturbação angustiante do espírito devido a um risco real ou imaginário. A
partir do momento em que o medo se apodera do controle cerebral, o
indivíduo já não consegue pensar de forma racional. Ele está perante uma
situação de profunda angústia. Foi exatamente assim que as vítimas se
sentiram”, escreveu o promotor Welington dos Santos Veloso na denúncia do
Ministério Público. Um pai de santo de verdade ajudou a condenar Vagner.
O “babalorixá” Leandro Nunes Lial contou ao juiz o seguinte: os espíritos
que incorporam nos pais de santo não têm necessidade carnal ou sexual.
“Isso não existe na religião”, reforçou.
Passaram pela cama de Pai Vagner pelo menos 100 mulheres. Apenas 12
tiveram coragem para denunciá-lo e sentaram no banco das testemunhas
para contar detalhes dos estupros ao juiz. Outras dez disseram que Pai
Vagner foi vítima de um complô. Mallu estava entre as mulheres que
tentaram inocentá-lo. Segundo disse, transou com o pai de santo várias
vezes porque quis. Ela foi parar no terreiro recrutada por Juliana, quando
trabalhava como vendedora, em 2015, antes de se tornar funcionária da
prefeitura de Sorocaba. Mallu estava na feira das ores da Companhia de
Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) escolhendo
orquídeas quando foi abordada pela esposa de Vagner, perguntando onde
cavam os vendedores de espada-de-são-jorge. As duas zeram amizade.
Com o tempo, Mallu teve depressão e passou a tomar remédios controlados.
Um ano antes, sua irmã mais velha havia se jogado do 10º andar, vítima da
mesma doença. Juliana conseguiu convencer a amiga a frequentar a “roda de
esquerda” para se livrar dos seus tormentos. Na primeira consulta, Pai
Vagner mandou Mallu tomar um banho “para cortar as energias trazidas da
rua”. Em seguida, Juliana fez um círculo no chão de terra e Mallu deitou nua
no meio da roda, cercada de velas pretas. O “pai de santo” incorporou o tal
“Irmãozinho” e, com voz cavernosa, deu um diagnóstico: a mulher não
tinha depressão coisa nenhuma. Mallu estava possuída por um espírito
perigosíssimo chamado “Zé do Boi”. Para afastá-lo, Wagner ordenou que ela
casse de joelhos e chupasse seu pênis. Mallu obedeceu. Em seguida, ele
penetrou a vítima na vagina e no ânus. Depois de uma hora, “Irmãozinho”
teria deixado o corpo de Vagner. Recomposto, ele pediu desculpas pela
grosseria da entidade, que pede as coisas sem falar “por favor”. No nal,
Vagner cobrou 1.200 reais de Mallu. E fez um alerta: “Zé do Boi” voltaria,
pois ele é insistente. Se Mallu sentisse tristeza novamente, não era para
tomar os medicamentos. Bastava voltar para mais uma sessão na “roda de
esquerda”. Dois anos depois de pisar pela primeira vez no terreiro de Vagner,
Mallu se formou em Administração e passou no concurso público da
prefeitura de Sorocaba. Creditou seu êxito pro ssional aos trabalhos do falso
pai de santo. Com o tempo, ela se integrou de nitivamente ao grupo de
mulheres do harém de Vagner.
Depois de julgado, Pai Vagner foi parar na Penitenciária Orlando
Brando Filinto, no município de Iaras, a mesma prisão onde está Francisco
Assis Pereira, o Maníaco do Parque. Em abril de 2023, oito meses depois da
condenação, Pai Vagner recebeu uma carta na penitenciária. Mallu escreveu
para o estuprador pedindo permissão para visitá-lo aos domingos, pois
estava com saudade do “Irmãozinho” e da “Dama da Noite”.
No dia 27 de abril de 2023, outros líderes religiosos receberam penas por
crimes graves. Os pastores Joel Miranda e Fernando Aparecido da Silva, da
Igreja Universal do Reino de Deus, foram condenados pelo Tribunal do Júri
a 21 anos de prisão em regime fechado pela morte do adolescente Lucas
Terra, que foi queimado vivo e teve o corpo abandonado em um terreno
baldio em Salvador, em 2001. Lucas tinha 14 anos quando agrou os dois
pastores transando dentro de um templo da Universal. Joel e Fernando
correram atrás do garoto e o capturaram. Os dois estupraram Lucas e depois
o torturaram. Na sequência, colocaram o adolescente dentro de uma caixa
de madeira e o carbonizaram mesmo com os apelos da vítima, que prometia
desesperadamente jamais contar o que havia testemunhado. Os pastores Joel
e Fernando chegaram a ser julgados em 2013, mas foram inocentados pela
Justiça. Inconformada com a sentença, a família de Lucas recorreu da
decisão e conseguiu um novo julgamento, do qual saíram condenados.
Quando o tema é abuso sexual cometido por líderes religiosos, o maior
emblema do Brasil atende pelo nome de João de Deus. Autointitulado
médium curandeiro, o falso espírita montou um esquema criminoso no
interior de Goiás – tão grandioso que foi capaz de sustentar uma cidade
inteira por quatro décadas. Localizado no caminho entre Goiânia e Brasília,
o município de Abadiânia tinha 4 mil habitantes em 1976, ano em que João
de Deus abriu sua casa de cura, chamada Dom Inácio Loyola. Em 2018,
quando surgiu a primeira denúncia de abuso sexual contra ele, a cidade já
tinha 14 mil habitantes. A economia local funcionava praticamente em
função dos cerca de 2 mil pacientes vindos do Brasil e do exterior todos os
meses em busca de ajuda do líder religioso. Hotéis, supermercados, postos
de gasolina e restaurantes faturavam em função do centro espírita de John of
God, como João Teixeira de Faria era conhecido entre os gringos. Um
levantamento da prefeitura de Abadiânia apontou uma redução de 72% na
economia local um ano (2018/2019) após estourar a primeira denúncia
contra o médium. O maior impacto foi na hotelaria, com queda de 85% na
taxa de ocupação. João de Deus responde a dezenas de processos movidos
individualmente e coletivamente por quase 400 mulheres estupradas dentro
do seu espaço. Aplicadas a conta-gotas, as sentenças contra o médium-
monstro somavam 370 anos, 9 meses e 15 dias de reclusão até julho de 2023.
Para efeito de comparação, a condenação do estuprador já é superior ao
castigo imposto a Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado
como principal líder do Primeiro Comando da Capital. O tra cante foi
condenado a 342 anos de prisão em uma série de sentenças proferidas entre
1990 e 2022. João de Deus ainda tem quatro ações penais tramitando na
Justiça de Goiás, podendo lhe render mais algumas décadas de cadeia.
Apesar da sentença de mais de três séculos, o médium só passou 15
meses preso desde que foi capturado pela polícia. Durante a pandemia do
coronavírus, seus advogados zeram a Justiça de Goiás operar um milagre:
João deixou o Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, onde fazia
atendimentos espirituais para colegas de cela, e foi cumprir a pena in nita
no conforto do lar. Preso em sua mansão, aos 81 anos, “João do Diabo”,
como era chamado na penitenciária, casou-se com a advogada Lara Cristina
Capatto em abril de 2022. O caso dos padres pedó los condenados e
mantidos livres pela Justiça e o escárnio da prisão domiciliar de João de
Deus são as maiores evidências de que o Brasil é realmente um Estado laico.
“Ele é minha vida, meu bálsamo, minha
loucura. Sou totalmente dependente dele.”

A
nderson do Carmo sempre desejou ser pastor, cantor e político. Com
o tempo, ele foi descobrindo que não tinha carisma nem talento
su cientes para brilhar em nenhuma dessas funções. Certo dia, um
jornalista ligou para Anderson querendo levar Flordelis ao programa de
Hebe Camargo, no SBT. Ao receber o convite, ele mentiu, dizendo que a
missionária estava adoentada, e sugeriu que fosse com as crianças em seu
lugar. “Posso até cantar, se vocês quiserem”, ofereceu-se. Do outro lado da
linha, o produtor agradeceu a oferta e pediu a Anderson que ligasse de volta
quando Flordelis estivesse boa de saúde. Depois de decepções semelhantes
com outras emissoras de TV, as pretensões pro ssionais de Anderson foram
transferidas de nitivamente para Flordelis. Ela, sim, reunia características
para se tornar um fenômeno nas funções almejadas por ele. Ou seja,
Anderson passou a realizar seus sonhos através da companheira, numa
relação ora simbiótica, ora parasitária, exatamente como ocorreu com a
apresentadora Xuxa Meneghel e a produtora Marlene Mattos, na segunda
metade da década de 1980.
Para se tornar o cérebro por trás do sucesso de Flordelis, Anderson
passou a se preparar pro ssionalmente no início da década de 1990.
Começou aprimorando o empreendedorismo religioso. A duas quadras da
casa do Rio Comprido onde morava a grande família havia um pequeno
estúdio musical. Lá, foi gravada a primeira ta demo de Flordelis. Assim
como sua amada, Anderson tinha lábia de pastor. A princípio, tentou
convencer os donos da pequena empresa, os irmãos Salim e Samir, a
arcarem totalmente com os custos da produção, pois Mãe Flor era uma
estrela das reportagens de televisão. Ele então mostrou recortes de jornais
em que ela aparecia em destaque como supermãe e propôs um disco com
poucas canções, conhecido no mercado como EP (extended play) – ou seja,
algo maior do que um single e menor do que um LP (long play). Outro
cartão de visitas que o lho-empresário apresentou foi a capa de um
compacto supostamente feito pela missionária, intitulado Ninguém se
esconde, com a canção Azul do céu registrada no lado B. “Eu entro com a
artista, vocês bancam a gravação da ta demo e dividimos os lucros meio a
meio. O que acham?”, propôs Anderson. Salim pediu para ouvir o compacto
de Flordelis, gravado em 1979. Até hoje, a família da cantora guarda a capa
desse disco – com uma foto do rosto dela de cabelos curtos, aos vinte e
poucos anos, em tons de sépia – como se fosse uma relíquia. Nos créditos,
consta que a produção teria sido bancada pelo pastor Paulo Rodrigues
Xavier, primeiro marido de Flor, e por João José Correr, outra liderança da
Assembleia de Deus do Jacarezinho. Pela cha técnica, os acompanhantes
eram músicos da nova formação do Conjunto Angelical. Esse single foi
gravado no estúdio Angelical II, em Belford Roxo, mas nunca foram
prensadas mais de 200 cópias, por falta de recursos. “Por isso, hoje é uma
raridade preciosa. Vale milhões”, acredita o irmão de Flor, Fábio, um dos
músicos do disco, detentor de uma das cópias do compacto. Para passar uma
camada de verniz artístico em Flordelis, Anderson andava com a capa desse
single para cima e para baixo, contando uma mentira: o compacto tinha
vendido tanto, mas tanto, que se esgotara rapidamente nas lojas.
Depois de Anderson convencer Salim e Samir, Flordelis entrou no
estúdio para gravar seu primeiro EP. A cantora esteve acompanhada por
Fábio Snak (guitarra solo), Jamil (guitarra base e trompete), Paulo Roberto
(contrabaixo), César, Sérgio e Silas (trombones), Jorge Aguiar (teclado) e
Osmar (bateria eletrônica). Ficaram 10 dias con nados no estúdio. No nal
do último dia de trabalho, ela ainda pregou com os músicos para um público
de trinta pessoas, a rmando ter tido uma visão sobrenatural: “Deus veio até
mim enquanto eu gravava esse disco. Estou toda arrepiada, gente! Ele falou
ao pé do meu ouvido, irmãos! Ele me disse que aqui, neste estúdio tão
humilde quanto o coração de Jesus, minha carreira de cantora dará o
primeiro passo pro ssional. [Aleluia!] Quando estiver no topo da montanha
com meu marido e meus lhos – bem pertinho do céu –, não esquecerei de
nenhum de vocês!”.
Quando Flordelis gravou seu primeiro disco, em 1991, o Brasil já
fabricava CDs em escala industrial. Mas, por causa do preço alto, poucos
consumidores tinham acesso ao aparelho, o CD player, para tocá-lo em casa
ou no carro. Portanto, o EP demo de Flordelis foi registrado numa ta
cassete – e com um belo desconto, graças à conversa mole do aspirante a
pastor. Cada uma das seis canções de louvor custou 200 reais, em valores
atualizados, quando o valor médio da gravação, na época, era de 600 reais
por faixa. Com a mercadoria em mãos, Anderson investiu em sua artista:
comprou um reprodutor de cassete, fez 400 cópias do EP, colocou na capa
uma foto de Mãe Flor com a lharada e passou a vender as tas de porta em
porta no Jacarezinho, onde sua estrela era bem conhecida, e na saída dos
cultos da Assembleia de Deus, onde ela se apresentava aos domingos.
Duas semanas antes de gravar sua primeira ta demo, Flordelis
enfrentou a destemida Sandra Sapatão pela última vez. A missionária tinha
acabado de chegar à casa do Rio Comprido na companhia de Flávio e
Adriano, os dois lhos biológicos que havia resgatado dos cuidados de
Carmozina após passar quatro meses fugindo da polícia pelas ruas da
cidade. Na sala, foi surpreendida pela tra cante armada de fuzil e com o
pequeno Romulo, de 4 anos, no colo – o menino era lho de Robertinho de
Lucas, bandido rival de Sandra e protetor de Flordelis. A bandoleira do
Comando Vermelho estava lá para um acerto de contas. Frente a frente com
a inimiga, Flor não se mostrou abalada. Mandou as crianças saírem da sala,
pegou Romulo do colo da inimiga e perguntou:
– Meu nome é Flordelis. Como é mesmo o seu nome, querida?
– Que palhaçada é essa, sua crente do caralho?
– Aceita um copo de água? Café? Chá? – ofereceu, lânguida.
Não se sabe se era princípio de Alzheimer, sequelas de um acidente
vascular cerebral (AVC), demência simples ou puro ngimento. Desde o
parto de Flávio, em 1981, Flordelis passou a ter lapsos recorrentes de
memória. Logo após o nascimento do bebê, ela cou uma semana sem
lembrar o nome do lho. Às vezes, perguntava às irmãs mais velhas como
ela própria se chamava. Era comum Flor sair da casa da mãe, no Jacarezinho,
e esquecer o caminho de volta – ou até o motivo de ter saído na rua. A
família encarava o problema como simples distração, mas a transitoriedade
(tendência para esquecer pessoas, fatos e eventos) foi aumentando com o
passar do tempo. Quando Sandra Sapatão encarou Flor, ela insistiu não se
recordar das pendências com a criminosa sanguinária. A bandida cou sem
entender a reação da inimiga e teve de bater em retirada tão logo Anderson
apareceu, avisando que o juiz Siro Darlan chegaria dali a uma hora. E o
magistrado se deslocava acompanhado de policiais fortemente armados,
reforçou. Sandra saiu às pressas do Rio Comprido e nunca mais procurou a
missionária.
Em 21 de maio de 2021, Sandra Sapatão estava tomando sol na praia de
Saquarema, região dos Lagos, quando foi presa pela polícia e levada para o
Instituto Penal Santo Expedito, em Bangu, na zona oeste do Rio. Em outubro
de 2022, o juiz Rudi Baldi Loewenkron inocentou-a da acusação de ser chefe
do trá co de drogas no Jacarezinho. “Entendo que o acervo probatório é por
demais frágil, que não houve interceptação, apreensão de anotações, ou
testemunha de viso que pudesse con rmar a participação de Sandra no
trá co local. A prova produzida nos autos é insu ciente e não autoriza um
decreto condenatório. A absolvição impõe-se”, escreveu na sentença. Sandra
Sapatão, personagem recorrente na lista dos bandidos mais procurados pela
Polícia Civil do Rio de Janeiro – a recompensa para quem a encontrasse era
de 1.600 reais –, ganhou o mundo para voar livre feito uma ave de rapina.
Enquanto Anderson atuava nos bastidores para catapultar Flordelis ao
sucesso, a grande família só fazia aumentar. Na casa de Rio Comprido,
chegavam “ lhos” novos resgatados da rua e outros nem tão desconhecidos
assim. Depois de outra reportagem no RJTV para mostrar o lar da
missionária, o casal Selma e Olival procurou Mãe Flor pedindo abrigo
novamente. Ambos estavam foragidos da polícia após cometerem latrocínio
no Centro do Rio. Uma semana depois foi a vez de Orelhinha e Xaropinho,
integrados ao último escalão do quadro de tra cantes de Robertinho de
Lucas. Um mês mais tarde voltou Aldeci, membro de uma quadrilha de
assalto a bancos. O ex-namorado de Selma tinha sido recolhido ao Centro
de Atendimento Intensivo Belford Roxo e posto em liberdade assistida por
bom comportamento. Sem referência familiar, contou a uma assistente
social do governo que era “ lho” de Flordelis e conseguiu voltar para a casa
da “mãe” disposto a recuperar a antiga paixão, Selma, agora “noiva” de
Olival. Entre os personagens novos estavam Ariovaldo, apelidado de Ari, e
Pascoal, que chamavam atenção pela beleza. Ambos tinham 16 anos e
chegaram por conta própria, dizendo que os pais moravam no interior.
Nessa época, Flordelis já havia abandonado o ritual do banho de batismo,
comum na Rua Guarani, mas nem por isso deixou de sentir atração sexual
por alguns “ lhos” novatos. Ari e Pascoal, por exemplo, receberam atenção
especial da matriarca simplesmente por serem atraentes. Não demorou para
a missionária transar com os dois.
Em 1998, a grande família já possuía cerca de quarenta “ lhos”, mas nem
todos moravam na casa. Uns passavam temporadas e desapareciam. Outros
tinham pais e moradia xa, mas cavam lá durante o dia. Alguns não se
acostumavam com a rotina, principalmente depois de Anderson e Flordelis
imporem regras rígidas, que passavam pela dinâmica familiar e pela
logística. O núcleo principal – composto pelos herdeiros biológicos
(Simone, Flávio e Adriano) e pelos agregados mais antigos (Alexsander,
André Luiz, Carlos Ubiraci, Cristiana, Rayane e Wagner) – acomodava-se
no piso superior do imóvel, com quartos confortáveis, camas macias e
ventiladores giratórios, e tinha acesso a uma geladeira exclusiva, trancada
com cadeado na maior parte do tempo. A chave cava com Carlos Ubiraci, o
gerente. Os demais “ lhos”, considerados cidadãos de segunda classe,
dormiam em beliches, no piso inferior. No meio da muvuca, havia cerca de
dez crianças e três bebês, que mais tarde seriam adotados legalmente pelo
casal.
No piso de cima, um cômodo amplo, batizado de quarto secreto, foi
reservado aos rituais satânicos de Flordelis e Anderson. No aposento havia
um guarda-roupa, cama, duas cômodas, uma cristaleira e dois altares com as
imagens de Baphomet, Exu Caveira e São Cipriano, usadas separadamente
em cultos e bruxarias. O critério usado para escolher os personagens que
seriam adorados nas cerimônias macabras era bem particular. Quando o rito
envolvia sexo, por exemplo, o casal colocava no chão a imagem de
Baphomet, considerado por Anderson um homem viril, mas ambíguo, por
ter braços fortes e seios de mulher. Exu Caveira entrava em cena quando a
magia envolvia trabalhos de quimbanda, uma religião autônoma – nessas
celebrações, Flordelis supostamente conversava com uma entidade chamada
Maria Padilha, também conhecida como “Dama da Noite”, a mesma pomba-
gira evocada por Pai Vagner. Se a feitiçaria envolvesse questões familiares
ligadas diretamente ao destino dos “ lhos”, incluindo Anderson, São
Cipriano tornava-se presente.
Em alguns desses universos ocultistas, Flor dizia ser um querubim
chamado Queturiene, uma suposta variação da personagem bíblica Quetura,
a amante de Abraão. A história da concubina é mencionada en passant no
livro de Gênesis (25:1-6). Quetura também é citada numa genealogia, no
primeiro livro de Crônicas (1:32,33) do Antigo Testamento da Bíblia.
Segundo a teologia, o nome Quetura signi ca “envolvida em fragrante
incenso”. Após ser possuída por Queturiene numa sessão reservada, ela
resolveu exercer um suposto poder sobrenatural para rebatizar a prole com
nomes de anjos. Para essa ocasião foi convidado somente o núcleo principal.
Todos caram nus, sentados em círculo no quarto secreto, diante da imagem
de São Cipriano. Houve banho de sal grosso para afastar espíritos malignos.
A missionária explicou que todos ali eram criaturas terrenas custodiadas
pelo Diabo. Fez um resumo da vida pregressa de cada um, para que se
lembrassem de suas desgraças e de como foram “salvos” das entranhas do
inferno por Queturiene. Emocionada, lembrou os serviços sujos prestados
por Carlos Ubiraci ao Comando Vermelho e as crises terríveis de
abstinência; falou da violência doméstica sofrida por Cristiana e do destino
cruel que Satanás havia reservado para Rayane, resgatada das mãos de um
demônio chamado Cara de Cadáver.
Flor também tinha uma “ lha” chamada Vânia, que não fazia parte do
núcleo principal. A narrativa de sua vida era tão espetacular que servia de
exemplo para reforçar os “poderes” da supermãe. Quando a menina tinha 3
anos, dormia coberta com papelão na calçada da Central do Brasil. Nesse
cenário inóspito, foi vítima de uma chacina e levou um tiro no abdome. A
bala, segundo essa fabulação, cara alojada em seu fígado. “Só quem estava
na Central do Brasil sabe o que eu passei. Tenho essa bala até hoje no meu
organismo. É meu amuleto”, assegurava ela, mesmo sem nunca ter visto uma
radiogra a provando que o projétil estava mesmo em seu corpo. Em uma
roda mística comandada por Flordelis no quarto secreto para passar a limpo
seus “milagres”, ela contou que Vânia foi atingida por um tiro certeiro
disparado pelo Demônio e só sobreviveu porque foi salva pelas mãos
espiritualistas da missionária.
Em rituais realizados separadamente, os “ lhos” mais queridos foram
rebatizados e passaram a ter nomes de anjos. Anderson tornou-se “Daniel”,
codinome abreviado mais tarde para “Niel”. “Ele é o meu lho mais
importante. Somos unidos pelo amor, pelo sangue e pela carne”, proferiu
Queturiene. Nessa quimbanda, segundo testemunhas, Flor vestia um caan
preto, no e transparente, sobre uma calcinha o dental da mesma cor. Não
usava sutiã. Simone, que recebeu o codinome de “Hebreia”, era chamada no
círculo íntimo de “Bebê” ou simplesmente “Bê”. Carlos Ubiraci ganhou o
apelido de “Neném”, apesar de já ser chamado assim desde que chegou à
família. Wagner tornou-se “Misael”. Flávio, Adriano, Cristiana, Rayane e
Alexsander nunca foram rebatizados, porque, segundo a bruxa, ainda não
haviam alcançado merecimento divino. Certa vez, num ritual coletivo,
Queturiene pegou a imagem de Exu Caveira e, diante dela, fez uma feitiçaria
simples usando um pote de mel. Num pedaço de papel, escreveu a lápis os
nomes completos dos irmãos Werneck, desenhou ao lado o símbolo do
cifrão ($) diversas vezes e mergulhou no mel até o rabisco desaparecer. “Que
essas duas almas continuem nos ajudando”, pediu Niel. “Glória a Deus!”,
repetiam os jovens. A família também realizava trabalhos usando frutas. No
dia do batismo dos “ lhos”, Flordelis pegou um melão e colocou dentro dele
duas alianças, para renovar os votos do seu amor pelo seu companheiro.
Depois, as frutas foram jogadas na mata. Ocasionalmente, os rituais eram
macabros. Certa vez, Queturiene recrutou seus querubins para uma sessão
especial de magia no quarto secreto. Ela pegou uma galinha preta viva, usou
uma faca de cozinha para cortar o pescoço da ave e a deixou se debatendo
até o sangue escorrer pelo chão, como fazia seu nado tio Miquelino. Nessa
hora, parte dos “ lhos” – incluindo Flávio e Cristiana – saiu do quarto,
assustada. Com a mesma faca usada para decapitar a galinha, Queturiene
cortou o papo do bicho e colocou um papel lá dentro todo molhado de
sangue. Nele estava escrita a seguinte frase: “Que o juiz Siro Darlan esqueça
do nosso endereço para sempre”. Mãe Flor pediu a Simone que costurasse o
papo da galinha e a carbonizasse no quintal sem a cabeça.
A bruxaria parece ter dado certo. Alguns meses depois, o juiz concedeu
a guarda provisória de quase toda a lharada para a supermãe e nunca mais
apareceu. Com o tempo, a guarda tornou-se permanente. Para comemorar a
bênção da justiça dos homens, Anderson e Flor zeram amor até o
amanhecer, sob os olhos atentos de Baphomet.
Em 10 de abril de 2022, Siro Darlan falou sobre sua decisão: “Na década
de 1990, resolvi deixar todas as crianças com a Flordelis porque era muito
melhor elas carem na casa do que voltarem para as ruas. Na época, briguei
com todos os promotores do Ministério Público que foram contra. Não me
arrependo de nada, até porque a Flordelis fazia com aquelas crianças o que o
Estado não fazia. [...] Essa mulher sempre foi julgada injustamente, como
todas as pessoas faveladas, pretas e pobres. Claro que eu não sabia o que se
passava na intimidade daquela casa. Todas as vezes em que fui lá, todo
mundo estava muito feliz. Era isso que me interessava. [...] A Flordelis
pegava essas crianças em todos os lugares: na rua, na favela, na vizinhança,
nas praças da capital e do interior... Só quem tem lhos sabe. Primeiro, nasce
o Abel. Depois, nasce o Caim. Em seguida, começam os con itos familiares
dentro de casa, pois um irmão quer matar o outro. No caso da família da
Flordelis e do Anderson, não poderia ser diferente. Agora, vamos deixar de
ser hipócritas! Em um lugar com dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta
crianças e adolescentes de origem, desejos e sentimentos tão diferentes, pode
rolar de tudo: amor, afeto, carinho, ciúme, intriga, inveja, ódio, raiva, tesão...”
À luz das ciências sociais, as atitudes de Flordelis e Anderson ganham
análises curiosas. Lidice Meyer, doutora em Antropologia pela Universidade
de São Paulo, avaliou os relatos dos rituais do casal, assim como a relação
estabelecida por eles ao juntar Baphomet, Exu Caveira e São Cipriano ao
mesmo tempo que se apresentavam como evangélicos tementes a Deus.
“Acredito que, na verdade, eles não cultuassem nenhuma dessas entidades,
até por falta de conhecimento. Flordelis e Anderson faziam uma mistura de
elementos de umbanda com quimbanda, conhecida no Rio de Janeiro como
macumba. A umbanda já possui elementos do cristianismo, o que facilitou a
entrada de Flordelis no meio evangélico, já que sua mãe frequentava
terreiros. A quimbanda é tida como prática de magia perversa e lida com os
exus, incluindo o Exu Caveira. A intenção é agradar essas entidades para
que elas venham a colaborar com o indivíduo que realiza o ritual. Seria
errado de nir a umbanda e a quimbanda como práticas satanistas, pois seus
adeptos não se veem assim. Para eles, são rituais que envolvem seres sem
corpos (incorpóreos). [...] A classi cação dos exus como demônios vem de
uma interpretação cristã sobre suas práticas. O fato de Flordelis relacionar o
Exu Caveira com Baphomet e satanismo revela seu total desconhecimento
da umbanda e da quimbanda, além de uma forma bem pessoal e popular de
como cultuar os demônios. [...] Nos rituais de Flordelis também existe uma
mistura de elementos de bruxaria folclórica. Ou seja, práticas criadas sem
muita profundidade com o uso de materiais e livros populares. Não é uma
prática organizada de satanismo, embora talvez ela achasse que fosse”,
de niu a especialista.
O antropólogo Wagner Gonçalves, da Universidade de São Paulo,
explica como se dá a mistura de guras tão antagônicas como Deus e o
Diabo no mesmo ritual. “As religiões evangélicas e as de matrizes africanas
são iguais, apesar de se atacarem mutuamente. Uma acusa a outra de cultuar
deuses que, na verdade, são o Diabo. Muitos estudiosos classi cam as igrejas
pentecostais de ‘cristianismo macumbeiro’, pois eles usam a mesma lógica do
sistema mágico religioso afro-brasileiro, como banho de descarrego e uso de
sal grosso, além de uma série de outros elementos. [...] O que difere essas
religiões é que, nas protestantes pentecostais, como a Assembleia de Deus e a
Igreja Universal do Reino de Deus, os pastores falam muito mais no Diabo
do que em Deus como forma de amedrontar os éis com esse tipo de
maniqueísmo e, assim, mantê-los dentro da igreja. Até porque exercer o
medo sobre as pessoas é uma forma e ciente de constituir poder”, discorreu
o antropólogo.
Flordelis e Anderson sempre foram adeptos do relacionamento aberto,
assim como boa parte dos seus “ lhos”. Em mais uma cerimônia secreta, o
casal investiu em Pascoal. Musculoso, o jovem chamava atenção das “irmãs”
porque andava só de cueca pela casa. Primeiro ele transou com Simone,
apesar de ela namorar seu “irmão” André – que, por sua vez, estava
transando também com uma “irmã” chamada Vanúbia, então cavam elas
por elas. Simone teria elogiado a performance do rapaz para as “irmãs” e a
resenha positiva chegou aos ouvidos de Mãe Flor. Para advertir a
adolescente, a missionária reforçou uma de suas regras mais rígidas: seus
“ lhos” não poderiam se relacionar sexualmente sem seu expresso
consentimento, mesmo que de forma casual. Simone, então, pediu desculpas
pelo “incesto” não autorizado. “Não estou dizendo que você não pode
transar mais com o Pascoal. Não é isso. Estou apenas pedindo para você me
consultar antes. Vai que você pega barriga de um irmão”, observou Flor. Da
boca para fora, a supermãe justi cava esse controle pelo receio de sua casa se
tornar “um antro de luxúria”, descambando para um excesso de bebês
indesejados. Os cuidados com a taxa de natalidade interna, no entanto, não
surtiram efeitos positivos. Cristiana acabou engravidando duas vezes do
“irmão” Carlos Ubiraci – primeiro, sofreu um aborto espontâneo, depois
teve Raquel. Simone, a Hebreia, namorou Alexandre, de breve passagem na
família, e teve três crianças com o “irmão” André Luiz: Lorrane, Rafaela e
Ramon. Novos casais foram se formando e se desfazendo ao longo do
tempo. Adriano, o “Pequeno”, caçula biológico de Flordelis, foi galã na
adolescência. Teve um namorico com Roberta, supostamente encontrada na
caixa de sapatos, e, mais tarde, se envolveu simultaneamente com as “irmãs”
Nylaine e Lorrana (não confundir com Lorrane, herdeira de Simone).
Outros dois “ lhos” de Flor e Anderson, Iago e Francine, começaram a
namorar, mas foram expulsos de casa porque sua primeira noite de amor
ocorreu sem o aval de Queturiene.
Enquanto Flor repreendia Simone pela prática sexual com Pascoal,
Anderson o recrutava para uma sessão de bruxaria no quarto secreto.
Usando a autoridade de “pai”, pediu ao rapaz de 16 anos que se apresentasse
discretamente no cômodo à noite, logo depois do jantar. O jovem foi todo
empolgado, achando que seria batizado com nome de anjo e promovido ao
núcleo principal, apesar de ter acabado de chegar à casa. Na hora marcada,
Pascoal bateu na porta do quarto vestindo apenas um short. Anderson o
recebeu na penumbra. Numa mesa de canto, repousava a imagem de São
Cipriano, cercada por quatro velas vermelhas. Flor apareceu usando uma
camisola azul transparente, sem nada por baixo. Pascoal cou
impressionado com a beleza do corpo da “mãe”, mas travou com a presença
de Anderson.
– Fique à vontade, meu “ lho”. Tire o short e deite-se no chão! – ordenou
a missionária.
– Não entendi, Mãe Flor.
– Me chame de Queturiene!
Nu, Pascoal começou a acreditar que teria de transar com Anderson, que
também havia tirado a roupa. O mal-entendido foi esclarecido pelo “pai”,
que comandava o ritual.
– Neste momento, você não vai transar com nenhum de nós. Vai car
trancado aqui no quarto por 72 horas, sozinho, re etindo sobre seus
pecados. De madrugada, Queturiene virá lhe fazer uma visita para avaliar
seu merecimento e, quem sabe, puri car o seu corpo e sua alma. Sinta-se
privilegiado, pois a mulher que vai te atender é uma entidade superior com
linha direta com Nosso Senhor.
Pascoal aceitou o sacrifício. Anderson deixou no quarto uma cesta
contendo pão e frutas, além de uma garrafa grande com água. Durante três
dias, Flor, ou melhor, Queturiene, passava lá para transar com o jovem. Na
semana seguinte, o ritual se repetiu com Olival e Aldeci, os assaltantes de
rua agregados quando a família andava pelas ruas do Rio de Janeiro.
Orelhinha e Xaropinho pediram para passar pela alcova de Queturiene, mas
foram barrados por Anderson, por terem uma lista de pecados enorme, já
que atuavam no trá co de drogas da favela Parada de Lucas. Usando a
desculpa de “puri car” a prole, Anderson e Flordelis transaram com todos
os “ lhos” por quem sentiam atração. Quando zeram investidas sexuais em
Ari, amigo de Pascoal, descobriram que o jovem era gay. “Se a senhora
quiser, posso ir embora, pois minha tia da Igreja Universal disse que Deus
não perdoa homem que faz sexo com homem”, adiantou-se. Flor e Anderson
se entreolharam e anunciaram que Ari poderia car, desde que não
adquirisse “trejeitos de mulher”. Um mês depois, Ari transou com Anderson
diversas vezes, sem que ninguém soubesse. Na cama, segundo ele, “Niel” era
“selvagem”. “Quando a gente transava, ele me dava tapas fortes no rosto,
amarrava os meus braços com tecidos, puxava meu cabelo por trás e
apertava meu pescoço com força na hora de gozar”, relatou.
Ari tinha 16 anos quando morou no Rio Comprido e cou por lá até
completar 18. Em 2021, aos 42 anos, fez questão de deixar claro que todas as
relações sexuais com Anderson, inclusive as mais violentas, foram
consentidas. “Ele era muito bom de cama e tinha um pau enorme. Por isso, a
mulherada cava doida por ele. Só paramos de transar porque ele não quis
mais”, contou. Certa vez, Ari perguntou se Anderson era “gilete”, gíria
comum nos anos 1980 usada para classi car homens bissexuais. Ele garantiu
que era heterossexual, porém transava com gays, segundo ele, porque nem
todas as mulheres da casa gostavam de fazer sexo anal. Ele também teria
dito ao “ lho” que homens fazem sexo oral in nitamente melhor do que as
mulheres. Sobre os rituais ocorridos no quarto secreto, Ari disse que a
prática parecia mais um fetiche sexual de Anderson e Flor do que algo
propriamente satânico. “Aquele antro era literalmente a casa da mãe-joana,
pois parecia uma seita desorganizada. Tinha muita bagunça. Um comia o
outro. As crianças gritavam de dia pela sala, e os adultos gemiam à noite
pelos quartos. Tipo prostíbulo, sabe? No meio desse pardieiro, a gente era
proibido de fumar e de tomar bebidas alcoólicas por causa da igreja. Muita
hipocrisia”, relatou.
Paralelamente aos rituais envolvendo sexo, Anderson levava adiante o
projeto de transformar Flordelis em uma estrela gospel e resgatou o antigo
plano de ordená-la pastora da Assembleia de Deus. O casal procurou a
regional mais próxima da organização e descobriu que naquela época,
segunda metade da década de 1990, a instituição protestante só aceitava
líderes com diploma do curso de Teologia, algo muito distante da realidade
da missionária. Anderson, porém, percebeu que algumas unidades da
Assembleia de Deus no entorno do Jacarezinho fugiam a essa regra e voltou
a procurar Zé da Igreja, que recebeu Flor em seu gabinete e lhe deu um
passa-fora. “Nós realmente estamos ordenando pastores sem diploma de
Teologia, mas exigimos dos candidatos o dom para o ofício, pois cansamos
de charlatanismo barato. Que tipo de profecia você já teve? Que tipo de voz
você ouve dentro de si? Nem para herdar os poderes da mãe você serviu.
Perdeu tempo recolhendo marginais da rua, fugindo da polícia. A
Carmozina previu a morte do lho [Amilton], do marido [Chicão] e até a
sua desgraça. E você? Sabe quando o Anderson vai morrer? [...] Também
estamos exigindo dos novos pastores evidências irrefutáveis de poderes de
cura. Quando você for uma bruxa completa, volte para a gente conversar”,
descartou o ministro.
Sem ver a menor chance de emplacar Flordelis na Assembleia de Deus,
Anderson resolveu criar uma instituição religiosa para ela. Comprou
sessenta cadeiras de plástico usadas, a R$ 1,99 cada – algumas estavam
quebradas –, e arrumou-as lado a lado na garagem da casa do Rio
Comprido. Batizou o ministério de Atalaia da Última Hora e criou um
slogan: “O ponto mais alto de onde Deus te protege”. Também equipou o
espaço com microfones e ampli cador para repercutir as canções gospel que
Alexsander tocaria num teclado eletrônico. Por estratégia do mercado
religioso, o primeiro culto foi realizado em uma tarde de sábado, com
metade dos assentos ocupada pela grande família – no restante dos lugares
estavam coleguinhas de classe dos “ lhos”, recrutados por ordem de
Anderson, e alguns familiares. Michelle, irmã do aprendiz de empresário
evangélico, apareceu na inauguração do templo e chamou a atenção de
Carlos Ubiraci, com quem teria trocado beijos. Arrependido por trair
Cristiana, o jovem teve uma recaída e cheirou uma carreira de cocaína –
levada por Xaropinho e Orelhinha, os tra cantes adolescentes, que
pretendiam subornar o gerente da casa com pó para obter regalias, como a
comida guardada na geladeira especial. Outra barafunda ocorrida na
inauguração do ministério foi causada por Vanúbia, que usava roupas muito
curtas e des lava pelo ambiente balançando os quadris. Repreendida por
Simone, ela rebateu: “Deus olha para a alma, não para as nossas vestes”. A
data ainda foi marcada por outra confusão. Aldeci, latrocida, ex-presidiário
e ex-namorado de Selma, tomou escondido umas latas de cerveja e tentou
beijar a garota, que a princípio evitou. Mais tarde, no entanto, cedeu e foi
agrada por Olival. O bandido traído puxou uma arma da cintura e apontou
para a cabeça do rival. A briga só não manchou a estreia de Flordelis nos
púlpitos porque Flávio e Carlos Ubiraci contiveram o fuzuê.
No meio do espetáculo, sob muitos aplausos, Flordelis nalmente
ordenou-se pastora. A essa altura, sua igreja particular estava lotada, pois os
gritos fervorosos de louvor ecoavam na vizinhança e atraíam quem passava
pela rua. Mais de 200 pessoas se espremiam na área externa da casa,
perguntando quem era aquela mulher. Anderson subiu ao púlpito,
cochichou no ouvido da amada e Flor anunciou, aos berros, que acabara de
ter uma visão profética sublinhada por Deus. Pediu silêncio, mandou todos
fecharem os olhos e ouvir atentamente o que tinha para dizer. Por cinco
minutos, então, falou com uma voz incompreensível, como se rugisse. O
público reagiu levantando as mãos para o alto e alguns éis seguraram
Bíblias. Num ato teatral, ela apontou o dedo indicador para a plateia e
gritou: “Você, irmão!”. “Quem? Eu?”, respondeu um anônimo. “Não! Ele aí
ao seu lado!”, devolveu a pastora. Era Carlos Ubiraci, que pescou na hora a
encenação. Flor continuou a pregar: “Você andava no inferno. Lambuzava-
se na sujeira do Satanás. Foi tirado do mundo porco das drogas e trazido
para uma vida de glória. Mas parece que andastes novamente ertando com
o Demônio. Meu lho, não te preocupes. Como todo cristão, pagarás teus
pecados com sacrifício e serás acolhido novamente. Porque quem está do
meu lado está ao lado Dele!”, bradou com fervor. Mais uma chuva de gritos e
aplausos. Mãe Flor encerrou o culto cantando hinos evangélicos, inclusive a
música Ninguém se esconde, e anunciando uma nova pregação para o dia
seguinte. Com o tempo, sua pequena igreja passou a receber mais de mil
ovelhas.
Apesar do sucesso, as receitas dos cultos cavam aquém do esperado,
pois Flordelis era tímida ao pedir dinheiro aos éis. “Precisamos comprar
cadeiras novas, gente. Quem puder colaborar, eu agradeço de coração”,
anunciava ao microfone. Com tanta polidez, o caixa fechava com menos de
200 reais por dia – e só chegava a esse valor porque alguns “ lhos” cavam
na porta vendendo tas cassete com as músicas de Mãe Flor, ao preço de 5
reais. Mas poucas pessoas compravam. Todo o dinheiro arrecadado pela
família, incluindo o auxílio dos irmãos Werneck, era depositado na conta de
Anderson, no Banco do Brasil. Depois da abertura da igreja, o patriarca
começou a traçar estratégias com Wagner, o Misael, para melhorar a
arrecadação religiosa e os donativos de simpatizantes da causa da adoção.
Logo depois do culto inaugural, algumas demandas urgentes foram
resolvidas. Flordelis cara revoltada com as brigas no meio da sua pregação.
Enquanto todos jantavam sopa com pão numa mesa enorme, posta na
varanda, Carlos Ubiraci detalhava em voz alta as confusões de cada um
durante a tarde. “O Aldeci puxou até uma arma, mãe”, dedurou. Nessa
lavação de roupa suja, Cristiana disse que o namorado não tinha moral para
acusar ninguém, pois beijara a “tia” Michelle, irmã biológica de Anderson.
Aldeci, por sua vez, revelou que o gerente havia “cafungado pó”. Diante do
silêncio sepulcral instalado no ambiente, Flordelis incorporou Queturiene.
Furiosa, pegou um martelo de carne e bateu com violência na cabeça de
Carlos Ubiraci, um de seus “ lhos” mais importantes. O golpe provocou
traumatismo craniano e o sangue do rapaz esguichou sobre a mesa,
respingando na panela de sopa. A cena horripilante assustou toda a família,
principalmente as crianças. “Foi essa a visão divina que ela teve?”, debochou
Vanúbia. Carlos Ubiraci caiu no chão e começou a estrebuchar, repetindo
diversas vezes: “Mãe, por que a senhora fez isso? Logo eu que te amo tanto.
Por quê?”. Aos prantos, Anderson levou o jovem ao pronto atendimento.
Flor chegou em seguida e pediu perdão, com o rosto ensopado de lágrimas.
Carlos Ubiraci a perdoou e nunca mais tocaram no assunto. A vítima cou
com afundamento no crânio e teve sequelas mentais. No entanto, ninguém
sabe se seus problemas psiquiátricos são consequência do uso excessivo de
drogas, da pancada com o martelo ou das duas coisas juntas. Quando
alguém pergunta por que sua cabeça é achatada, ele responde que foi
atingido por uma panela de pressão. Depois desse episódio, os “ lhos”
passaram a temer a “mãe” como o cristão teme o Diabo.
Do Rio Comprido, a grande família mudou-se para Jacarepaguá por
causa da chegada de mais “ lhos”. Eles brotavam de todos os lugares:
continuavam sendo deixados pelas mães biológicas e resgatados das ruas.
No nal da década de 1990, a pastora tentava desesperadamente engravidar
de Anderson. Sem sucesso, ele passou a considerar a possibilidade de ser
estéril. No meio desse dilema, Flor contou ao companheiro ter tido uma
visão celestial na qual ela seria mãe da mesma forma que Maria engravidou
do Espírito Santo – na verdade, estava planejando roubar mais um bebê para
satisfazer a vontade do casal de ter uma criança biológica. Nessa época, a
casa de Jacarepaguá recebia visitas de muitas mulheres que queriam deixar
ali seus lhos adolescentes. Por meio de uma delas, Flor soube de uma moça
chamada Janaína Barbosa, de 18 anos, grávida pela segunda vez. A gestante
teria dito a amigas que, tão logo seu nenê nascesse, ela o mataria, pois não
tinha mais paciência para cuidar de recém-nascidos. Flor ouviu a história
horrorizada e perguntou onde Janaína morava. Com o endereço em mãos,
seguiu com Anderson até lá e, em meio a orações, disse à jovem que Deus a
havia mandado para impedir uma tragédia. No dia do parto, ocorrido em 18
de janeiro de 1998 na Casa de Saúde Santa Helena, o casal foi para a
maternidade e saiu de lá com o menino e a guia de nascido vivo, documento
essencial para o registro em cartório. Puérpera, Janaína tentou impedir,
argumentando que sentia vontade de amamentar. Flor a convenceu do
contrário, dizendo que Deus dera um prazo muito curto para abençoar o
garotinho num ritual secreto. Após ouvir a promessa de que poderia ver o
lho quantas vezes quisesse, concordou.
Na primeira visita, Janaína participou de um culto de Mãe Flor e não viu
o bebê, que estaria com Carmozina. Na segunda, a criança teria sido levada
ao médico. Na terceira, estaria passeando na praia. Como todas as vezes
havia combinado os encontros com o casal, a moça resolveu dar uma
incerta. Na aparição surpresa, nalmente encontrou o menino – mas,
ameaçada de forma velada por Orelhinha e Xaropinho, que estavam
armados, não pôde pegá-lo no colo. Ao contar a Flor sobre a presença de
bandidos na porta, ouviu: “Armas aqui? Imagina. Meus lhos são uns
amores”. Janaína anunciou que levaria o seu bebê, mas a missionária
começou a chorar, dizendo que um empresário muito rico bancava o aluguel
e a alimentação daquelas mais de cinquenta crianças. “Ele cou encantado
com o seu bebê. Se você o levar embora, ele vai suspender a ajuda e todos
voltarão a morar debaixo do viaduto”, mentiu. Sem querer carregar a culpa
pelo desmanche da casa de acolhimento, a garota abriu mão do lho. Houve
festa na grande família. Para comemorar a chegada do primeiro “ lho
biológico”, Anderson e Flor foram a um cartório no Méier (10ª
Circunscrição do Registro Civil) no dia 24 de abril de 1998 para selar a
união civil. Quando assinaram a papelada do casamento, ela tinha 37 anos, e
ele, 21. Dois meses depois, o casal voltou ao cartório com o bebê no colo
para cometer um crime. No dia 18 de junho de 1998, Anderson e Flor
registraram o menino de cinco meses como se fossem pais legítimos.
Deram-lhe o nome de Daniel dos Santos Souza. O Artigo 242 do Código
Penal prevê pena de dois a seis anos de cadeia para quem registra como seu
o lho de outra pessoa. Quem assinou como testemunha da fraude foi
Carlos Ubiraci. Na família, houve uma ordem expressa para que o roubo da
criança fosse um segredo inviolável. Danielzinho, como era carinhosamente
chamado, cresceu cercado de amor e mentiras.
Ao longo dos anos, Anderson continuava empenhado na transformação
de Flordelis em estrela gospel. Com seus contatos, agendou uma série de
reportagens com a esposa – mas queria mais do que os noticiários locais,
como o RJTV. Conseguiu colocar a família no Jornal Hoje, Jornal da Globo,
Fantástico, Planeta Xuxa, É de Casa e Mais Você, todos da TV Globo, além
do Programa da Hebe (SBT), Hora do Faro (Record) e Sem Censura (TV
Cultura – SP). Tantos holofotes deixaram a turma eufórica. Quando esteve
no sofá de Hebe, Flor foi questionada sobre quem era o homem por trás do
seu sucesso. “O Anderson é a coisa mais linda de Deus. Nós nos conhecemos
na rua e depois nos encontramos na igreja. Ele é a minha vida, meu
bálsamo, minha loucura. Sou apaixonada por ele. Sou totalmente
dependente dele. Sem o ‘Niel’, não seria o que eu sou. Somos uma dupla
imbatível”, de niu. Emocionado com a declaração, Anderson derramou
lágrimas. No programa de Hebe, Flor levou só os “ lhos” mais importantes.
Para a entrevista com a apresentadora Ana Maria Braga, em 2009, a
grande família passou por um perrengue. O Mais Você era apresentado ao
vivo em uma casa suspensa, construída num sítio dentro da área da Globo,
em Jacarepaguá. A produção cou de enviar um ônibus com 50 lugares para
buscar a grande família. Na véspera da entrevista, porém, Anderson e
Flordelis caram desesperados. A pastora era conhecida na mídia como “a
mãe de cinquenta”, e não havia gente su ciente com cha limpa para
completar as cinco dezenas. Nessa época, quase 70 crianças, adolescentes e
adultos transitavam pela casa. No entanto, depois de uma operação pente-
no feita na prole, descobriu-se que somente 27 “ lhos” poderiam pôr a cara
na TV, já que mais da metade da família era composta por infratores
procurados pela polícia. Para fazer número, Simone e Carlos Ubiraci saíram
pela vizinhança pedindo crianças emprestadas para levar à TV. A ita,
Flordelis ligou para as irmãs convidando os sobrinhos para participar do
programa matinal, prometendo que virariam artistas de novela. Com muito
sacrifício, conseguiram juntar 42 cabeças. “Já pensou se a Ana Maria resolve
conferir quantos lhos a gente levou?”, questionou a pastora. “Um minuto
na TV corresponde a uma hora. Imagina se ela vai perder todo esse tempo
conferindo crianças”, ponderou o marido, demonstrando intimidade com a
mídia televisiva. À porta do estúdio, uma produtora recebeu a família e
passou um comando aos convidados:
– Fiquem todos do lado de fora, em la indiana. A Ana Maria vai contar
um a um para saber se vocês realmente têm cinquenta lhos! – anunciou
num megafone.
Flor e Anderson se entreolharam e deram um sorriso amarelo. Sem
graça, o casal subiu uma escada ao encontro da apresentadora, que
cumprimentou os dois com beijos no rosto e foi lá fora pedir para a
centopeia humana entrar.
– Vamos lá, pessoal! Aqui, ninguém se esconde. Vou começar a contar:
um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze...
quarenta, quarenta e um, quarenta e dois. Ué, cadê o resto? – questionou
Ana Maria.
“Faça silêncio, por favor! Deus está falando
comigo, mas não consigo escutar.”

“M
ãe é aquela que cuida, educa, ampara e corrige. Que alimenta,
dá carinho e enfrenta junto os desa os e os problemas. [pausa
dramática] Olha, gente, ela morava na favela do Jacarezinho e
começou a trabalhar com crianças dependentes de drogas. Quando
procurava por uma delas na Central do Brasil, encontrou uma adolescente
que havia jogado seu lho, um bebê de 15 dias, no lixo! Ela levou mãe e lho
para casa. A mãe não cou, mas o bebê está com ela até hoje. Foi o primeiro
lho especial que ganhou. [...] Em fevereiro de 1994, houve uma chacina na
Central do Brasil. Os sobreviventes pegaram o seu endereço e, de uma hora
para outra, essa mulher ganhou 37 crianças. Flordelis é uma mãe de
verdade! Uma mãe especial de 44! Vamos conhecê-la?”.
Foi com essas palavras melosas e os olhos marejados que a
apresentadora Xuxa Meneghel abriu seu programa especial do Dia das Mães
de 2002, na TV Globo. As personagens centrais da atração eram Mãe Flor e
sua centopeia humana. Metade do que Xuxa leu no teleprompter era falso,
mas a apresentadora não sabia. De tanto repetir na televisão a ladainha da
matriarca sofrida, Queturiene amoleceu o coração do Brasil. A comoção
nacional se re etiu diretamente em seu rebanho de ovelhas: nos anos
seguintes, o número de éis da pastora aumentou feito as pragas do Egito.
Com tantos discípulos chegando, a Atalaia da Última Hora deixou de ser
uma igreja de fundo de quintal. Depois de uma pesquisa de mercado feita
por Anderson para descobrir onde seria mais vantajoso erguer uma sede, o
ministério ganhou um templo com capacidade para 1.200 pessoas na
periferia do município de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de
Janeiro, logo após a entrevista no programa da Xuxa. No novo endereço, a
instituição passou a ter uma placa bem grande na fachada, com letras
garrafais: Ministério Flordelis. Na mesma época, Anderson fez o curso de
Teologia, autoproclamou-se ministro evangélico e também começou a
realizar os cultos de abertura da sua estrela. Ele subia nos púlpitos para
anunciar Flordelis sempre com o mesmo texto: “Eu sou o Deus que levanta.
Eu sou o Deus que derruba. E faço vocês se assentarem entre os grandes,
entre os príncipes...”. Em seguida, ele saía e Flordelis entrava continuando a
introdução: “Assim diz o Senhor. Esse é o templo de dar a volta por cima”.
Mas não bastava apenas ter boa oratória para crescer no meio
evangélico. Com o intuito de aumentar a arrecadação religiosa do Ministério
Flordelis, o casal se inspirou nos pastores Demóstenes e Zé da Igreja, líderes
emblemáticos dos tempos da Assembleia de Deus do Jacarezinho nas
décadas de 1980 e 1990. Flor e Anderson cobravam o dízimo e pediam
dinheiro de forma descarada e agressiva. No púlpito, diziam precisar de
recursos para concluir as obras de acabamento do ministério e, lógico, para
ajudar na alimentação das criancinhas sem pai nem mãe que ainda
recolhiam das ruas. Inspirado no “desa o da fechadura” feito por Zé da
Igreja, Anderson elaborou um jeito desonesto de arrancar dinheiro dos éis.
No culto inaugural do Ministério Flordelis, na noite de 16 de novembro de
2002, um sábado, ele mandou fechar todas as portas do templo. As luzes
foram apagadas por Vanúbia e Pascoal, seus “ lhos” e cúmplices. Mais de
mil pessoas gritaram na escuridão. Enfático ao microfone, Anderson
anunciou que a energia elétrica fora cortada pelo Diabo por falta de
pagamento. “Irmãos, a Casa de Deus não vive de vento. Temos contas
divinas a pagar. Sem a colaboração de vocês, não temos como manter o
nosso ministério de pé. Mas há uma luz! Estou vendo uma luz! Vocês não
podem enxergar, mas Deus está passeando no meio desse breu, entre as
leiras. Ele está abençoando cada um de vocês!”.Nessa hora, houve um grito
de histeria e os éis começaram a abraçar o vento, acreditando agarrar
Nosso Senhor. Mulheres da primeira la desmaiaram. A maioria dos
presentes subiu na cadeira e gritou “aleluia!”. Anderson fez uma pausa para
as ovelhas delirarem um pouco mais. Em seguida, continuou a pregação.
“Façam silêncio, por favor! Deus está falando comigo, mas não consigo
escutar. [silêncio] Pessoal, é o seguinte: Deus mandou mais um recado
importante. Ouçam bem o que eu vou falar, porque Ele está me usando para
dirigir a palavra a vocês”.
O truque barato era banal em certos templos evangélicos, mas sempre
funcionava. Anderson mudou o tom da voz, recorrendo a um timbre grave.
Como se tivesse uma procuração de Deus, arregalou os olhos e falou
pausadamente: “Agora, meus irmãos, vou fazer um pedido. Um pedido, não,
uma súplica sagrada, um apelo celestial. Temos de sair da escuridão imposta
pelo Demônio agora! Para isso, vocês têm de se desfazer de todo o dinheiro
que possuem nas bolsas e carteiras. Fiquem apenas com o necessário para a
passagem de ônibus. Quem veio a pé ou de bicicleta tem de doar tudo,
porque não precisará pagar transporte. Deixem até as moedas, pois o amor
divino também está nos detalhes. Esta é a minha vontade. Só assim vocês
conseguirão a minha graça em forma de luz”. Enquanto Anderson nalizava
o comando espúrio, os “ lhos” Ari e Pascoal colocaram uma caixa de
papelão perto do altar e os éis zeram la indiana para entregar notas de 1,
2 e 5 reais. Do alto, o pastor percebeu que suas ovelhas estavam econômicas
e reagiu, já com o tom de voz habitual: “Não sejam mãos de vaca na hora de
doar, pois Deus sabe que vocês gastam muito dinheiro na mesa do bar
bebendo com Satanás!”. A caixa com todo o dinheiro foi recolhida por
Wagner “Misael”, responsável pela contabilidade do ministério. A noite
rendeu uma receita de quase 2 mil reais, quantia excelente para os padrões
de uma igreja de favela. No nal, as luzes foram acesas sob gritos de regozijo
e o famoso clichê bíblico “Deus é meu pastor, nada me faltará”. Para coroar a
noite, Flordelis subiu ao palco e fez um show gospel.
Com os negócios religiosos crescendo no início da década de 2000 e
com a cara de Flordelis estampada na televisão, o casal tentou dar um passo
maior do que as pernas. Em 2004, Queturiene se liou ao Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e candidatou-se a uma vaga na
Câmara Municipal de São Gonçalo, mas não se elegeu por causa do
resultado pí o: 2.262 votos. Em seu quarto de oração, ela teria conversado
com Deus para discutir a baixa popularidade. Nosso Senhor, então, teria
dito para ela esperar mais um pouco até se enveredar na política.
Em Jacarepaguá, a vida parecia a estação de trem descrita na música
Encontros e despedidas, de Milton Nascimento. Todos os dias era um vaivém:
gente chegando para car e gente saindo para nunca mais voltar. Selma,
Olival, Aldeci e mais doze agregados foram embora no mesmo mês. “Vocês
estão vomitando no prato em que comeram. Escondi vocês da polícia. Dei
abrigo, afeto, cama macia e comida. Seus ingratos do inferno!”, gritou
Queturiene. Vanúbia também anunciou sua partida, porque era
constantemente censurada por Simone por causa das suas roupas
minúsculas. “Se sair por aquela porta, sua alma será sugada pelo inferno e
você morrerá atropelada!”, profetizou a Mãe Flor. Com medo de morrer,
Vanúbia resolveu car.
Anderson e Flordelis não se enfureciam à toa com a evasão de seus
“ lhos”. Eles temiam que a pastora perdesse o título “Mãe de 50”, base de
sustentação de seus negócios. Depois da primeira grande debandada de
rebentos, foi promovido um intensivão de novas adoções. Num curto
intervalo de tempo, uma nova leva de integrantes – entre bebês, crianças,
adolescentes e até adultos – entrou para a seita de Flordelis. A lista era
enorme: Alex Vigna, Erick, Erika, Gerson, Iago, Kelly, Kikita, Lucas, Lúcio,
Luiz, Maria, Marzy, Monique, Nilane, Paulo Alexandre, Paulo Roberto,
Paulo Silva, Renato, Ricardo, Tayane, Viviane e Welberth, a maioria aliciada
na igreja da família e seus arredores. Alguns já conheciam a dinâmica
daquele grupo e, mesmo tendo casa, batiam à porta de Jacarepaguá para
pedir abrigo. Mães também procuravam pela pastora para lhe entregar seus
lhos voluntariamente. Na mesma época, chamou atenção um combo de
novos membros da turma com nomes terminados em EL. Em um ano,
chegaram Abel, Adriel, Anabel, Claribel, Eliel, Isabel, Ismael, Joel, Josebel,
Mabel, Manuel, Maxwel, Michel, Oziel e Samuel. No auge, a “estação de
trem” chegou a ter um uxo de setenta passageiros.
Com tanta gente debaixo das asas de Queturiene, havia variações de
humor, inimizades, punições e, principalmente, intrigas amorosas. A regra
de os “ lhos” só cometerem “incesto” mediante autorização da matriarca
estava mantida, mas era impossível controlar um aglomerado de pessoas sob
o mesmo teto. Vânia engravidou duas vezes de dois “irmãos” diferentes. As
duas gestações acabaram em briga, pois ela se recusou a revelar com quem
havia transado. Como punição, levou três tapas no rosto desferidos por
Anderson. Machucada, a moça quis ir embora daquele covil, mas acabou
cando porque não tinha para onde ir. Com medo de apanhar durante a
segunda gravidez, ela cobria a barriga com faixas apertadas. Não teve jeito.
No oitavo mês, a gestação foi descoberta e a jovem levou mais uma surra,
dessa vez aplicada por Queturiene. “Vagabunda! Cadela! Piranha!”, gritava a
pastora, possuída.
A relação sexual entre os “ lhos” deixava Flor e Anderson extremamente
irritados. Mas não havia problema quando os biológicos transavam com as
“irmãs” adotivas. Flávio namorou cinco delas no período de um ano. Só
parou de xavecar as meninas quando passou a morar com Tatiana, que
conheceu em um aplicativo de paquera. Depois de uma série de agressões,
porém, ela o denunciou à Delegacia da Mulher e uma medida restritiva
tentava impedi-lo de procurar a ex. Com o m do casamento, Flávio foi
morar com a avó Carmozina. Mais para a frente, bêbado, ele violou a
medida judicial e acabou denunciado à polícia pela ex-companheira,
tornando-se um foragido. Simone também gostava de conquistar “irmãos”.
Em dois anos, teria transado com pelo menos dez. Já os membros do
segundo escalão cavam entre si, sempre escondidos. Vanúbia, de gurino
provocante, era a mais requisitada em Jacarepaguá. Certa noite, ela dormia
na cama de cima de seu beliche quando acordou com Maxwel apalpando
seus seios. Com a casa cheia, os dois só conseguiram uma oportunidade de
car sozinhos na semana seguinte. Depois de uma hora ininterrupta de sexo,
ele vestiu-se às pressas, com medo de ser agrado e denunciado à Mãe Flor.
Quando estava prestes a sair do quarto, Vanúbia o interpelou:
– Aonde você vai tão ligeiro?
– Você quer dar mais uma?
– Não! Quero mesmo é fazer a cobrança!
– Como assim? Que cobrança?! – assustou-se o rapaz.
– Sou garota de negócios e minha hora custa 50 reais! – anunciou
Vanúbia.
– Tá louca? Não tenho esse dinheiro. E você nem vale isso tudo! Além do
mais, você teria que ter dito que é puta antes de tirar a roupa!
– Você tem 24 horas para me pagar o que me deve. Caso contrário, eu
vou contar à Mãe Flor que você forçou uma situação! – ameaçou a garota de
programa.
– Você não teria coragem!
– Capaz de meus irmãos cortarem seu pinto fora! – previu Vanúbia,
enquanto esfregava uma lixa nas unhas.
Não era segredo para ninguém que o grupo de Queturiene tinha toda
sorte de marginais, inclusive tra cantes, como Orelhinha e Xaropinho. Com
medo de ser castrado, Maxwel arrumou dinheiro com um agiota e pagou
pelo programa. Na semana seguinte, espalhou-se na casa que Vanúbia era
prostituta. Ela já tinha transado com uns dez “irmãos” quando Carlos
Ubiraci, o gerente da casa, levou a informação até Anderson. “Não conte isso
à Flordelis!”, ordenou o pastor. O patriarca chamou Vanúbia para uma
conversa. Ela não só con rmou a denúncia como se propôs a transar com o
“pai”. Os dois se relacionaram por três meses e a garota nunca cobrou um
real pelo serviço. No entanto, para manter segredo, Vanúbia fez uma
chantagem sutil: pediu ao “cliente” que custeasse um implante de silicone,
pois seus seios estavam caindo. Anderson bancou a cirurgia e fez questão de
ser o primeiro a fazer amor com ela depois do procedimento. Como nada
escapava aos ouvidos de Queturiene, não demorou para ela descobrir que
Anderson vinha transando com as meninas da família. Para não car por
baixo, a bruxa intensi cou seus rituais sexuais com os “ lhos” mais
atraentes. O primeiro a cair em suas garras foi Ricardo, um cantor de pagode
gospel recrutado junto com a namorada, Viviane. Os dois frequentavam os
cultos da igreja de São Gonçalo. Durante um jantar, Flor pediu a Ricardo
que comparecesse às 3 horas da madrugada ao quarto secreto, vestindo
roupas brancas. Segundo ela, o jovem participaria de uma sessão de
puri cação. Na hora marcada, ele bateu suavemente à porta da bruxa de
mãos dadas com Viviane, achando que o convite se estendia a ela. Anderson
o colocou para dentro do cômodo, fechou a porta e levou a garota até a
varanda do primeiro andar, onde explicou as regras do ritual de puri cação.
“Queturiene só depura almas masculinas, meu amor. Se você quiser ser
santi cada, podemos fazer isso juntos”, sugeriu. Viviane, uma das mulheres
mais bonitas da casa, agradeceu o convite educadamente, mas recusou.
Ressabiada, preferiu aguardar seu namorado sozinha na cama.
Enquanto isso, Queturiene transava com Ricardo, que acreditava fazer
amor com um ser celestial. Flordelis e o músico zeram sexo todos os dias
por duas semanas. Viviane perguntou a ele inúmeras vezes que tipo de coisa
acontecia entre as quatro paredes do quarto de orações. “A gente ca orando
para a minha carreira de cantor decolar”, mentia o músico. Descon ada dos
encontros noturnos, Viviane foi até o cômodo e tentou invadir o ritual, mas
a porta estava trancada à chave. A jovem encostou o ouvido na madeira e
ouviu gemidos e sussurros. Descontrolada, desceu as escadas gritando e
quebrando objetos, acordando a grande família. Em estado de choque,
Viviane não contou o que tinha ouvido. No dia seguinte, porém, colocou o
namorado contra a parede na frente de outro “ lho” da pastora, Alex Vigna.
Ricardo continuou negando que tivesse transado com a “mãe”. Lutador de
muay thai e boxeador, Alex relatou ao casal que também havia sofrido abuso
sexual ao car trancado com Flordelis, nu, por mais de cinco horas no
quarto secreto. “Você é um anjo sem memória e eu sou a sacerdotisa-mãe.
Você tem de me obedecer”, teria determinado ela. Apavorado, Alex correu
para o banheiro. Feito uma serpente, Queturiene rastejou-se pelo chão em
sua direção. Segundo ele relatou, seus olhos não tinham a parte branca.
“Lavei meu rosto acreditando que aquela cena de lme de terror fosse
um pesadelo”, contou Alex em outubro de 2022, aos 50 anos, já ordenado
pastor evangélico. “Falar da Flordelis é mexer no vespeiro do inferno, no
ninho de marimbondos de Satanás. Vim do baixo clero. Já li a Bíblia inteira
35 vezes. O mundo não se resume às quatro paredes que vemos ao nosso
redor. Existe um mundo espiritual que os nossos olhos não podem ver, a não
ser que Deus os abra para que possamos enxergar além. Se Deus abrir os
nossos olhos de verdade, contemplaremos a fúria de Satanás na pele de
Queturiene e de todos os seus asseclas, todos os seus demônios do inferno e
da magia negra, do vodu, daqueles que fazem atrocidades malignas como
ela. [...] A função dessa mulher na Terra foi desgraçar a vida de muitas
pessoas, inclusive dos seus lhos. Acontece que o Diabo não brinca de ser
Diabo. Essa falsa pastora mexia com satanismo, seguia os preceitos do livro
de São Cipriano e Baphomet. Impossível ela escapar das garras de Satanás”,
profetizou Alex Vigna. Ele, Ricardo e Viviane fugiram de Jacarepaguá em
2002, bem na época em que Anderson selecionava quem participaria do
programa Planeta Xuxa.
Em meio às idas e vindas da casa, a supermãe disse ter tido certo dia
uma visão. Um anjo cairia do céu para transformá-la numa outra mulher.
“No meu sonho, vejo esse ser iluminado me pondo num pedestal onde
jamais imaginaria estar. Mas algo me diz que, lá no nal, ele mesmo vai me
decepcionar”, contou. A previsão não demorou a se concretizar. A
participação de Flordelis no Planeta Xuxa chamou a atenção do produtor de
moda Marco Antônio Ferraz, que já tinha assinado editoriais em revistas de
prestígio, como Marie Claire, GQ e Vogue. Sensibilizado pelo drama de
Flordelis, ele a procurou e se ofereceu para cuidar de sua imagem, como
personal stylist, sem cobrar um tostão pelo trabalho. “Você não pode
frequentar programas de televisão com essa aparência triste de dar dó”,
justi cou. Anderson, já empresário da esposa, adorou a ideia, pois a
proposta do pro ssional casava com o projeto de levar Queturiene ao
estrelato. Da noite para o dia, o produtor apresentou um outro mundo a
Mãe Flor, conforme profetizado por ela. A mudança foi radical e repentina: a
pastora passou a frequentar des les de moda vestindo peças de grife como
Calvin Klein e Alexander McQueen. Marco Antônio também introduziu as
perucas icônicas na cabeça de Queturiene. A primeira, um modelo básico
levemente ruivo, comprado por 3.500 reais, foi confeccionada com bra
sintética e tinha os praticamente idênticos aos do cabelo natural. O
pro ssional ainda conseguiu para sua musa diversos vestidos de luxo que
sobravam de ensaios de moda. Aos poucos, ela perdia a aparência de pobre
coitada, ao mesmo tempo que passava por um processo de branqueamento
racial. A maquiagem deixava a pele de seu rosto alva e as perucas tinham
cabelos extremamente escorridos.
O pulo do gato de Mãe Flor para a glória veio em 2009, também pelas
mãos do seu “anjo”. Com seus contatos, Marco Antônio conseguiu realizar
uma cinebiogra a em forma de docudrama, protagonizada pela pastora
como intérprete de si mesma. Intitulada Flordelis – Basta uma palavra para
mudar, dirigida pelo personal stylist e pelo cineasta Anderson Corrêa, tinha
personagens reais representados por uma constelação de astros globais,
como Bruna Marquezine (Rayane), Cauã Reymond (Carlos Ubiraci) e
Deborah Secco (Simone). Todos os artistas envolvidos na produção
trabalharam de graça e depois se disseram arrependidos. O lme era cheio
de passagens fantasiosas contadas por Flordelis em suas entrevistas. Apesar
do elenco estrelado, a produção era amadora e hoje se mostra
constrangedora pela péssima atuação, pela direção fraca e irregular e,
principalmente, pelo destino de Flordelis. A captação de som cou tão ruim
que não havia capacidade técnica para o lme ser exibido nas salas
comerciais de cinema. O combinado era que 100% da arrecadação com as
vendas do DVD e dos CDs com a trilha sonora, cantada por Flordelis, seria
revertida para o bolso do casal evangélico, que compraria uma casa própria
para a grande família. Anderson, entretanto, cou decepcionado quando viu
valores irrisórios pingando em sua conta a cada três meses. Para aumentar
os lucros, Adriano, Orelhinha e Xaropinho pegaram o DVD original e
zeram mais de mil cópias piratas para vender à porta do Ministério
Flordelis. Badalado por causa dos famosos, o lme colocou a missionária
nos cadernos de cultura dos grandes jornais e, novamente, em diversos
programas de televisão, nos quais ela turbinou suas lorotas dramáticas.
Empresário dedicado, Anderson acompanhava a transformação da
esposa de perto, opinando e dando a palavra nal em tudo: cor do vestido,
tipo de perucas e programas aos quais valia a pena comparecer para divulgar
o lme. A intromissão incomodava Marco Antônio. O pastor começou a
car preocupado com o excesso de retro t aplicado em sua artista. Para se
livrar do pro ssional, Anderson fez uma intriga. Ele espalhou que Marco
Antônio havia se encantado com a beleza de Erick, “ lho” de 16 anos. Os
dois viviam grudados e surgiram maledicências na casa sobre tanto chamego
entre os rapazes. Para evitar um possível romance homoafetivo no seio
familiar, Anderson sugeriu à esposa dispensar o produtor. Ela não aceitou.
Mas, por precaução, chamou Erick para uma conversa. O “ lho” disse que
Marco Antônio havia elogiado sua beleza e prometido introduzi-lo no
mundo da moda. Para isso, o jovem precisaria fazer um book fotográ co.
Flor o proibiu de posar para as lentes de seu assistente de moda, mas era
tarde. Marco Antônio já havia levado Erick para sua casa sem autorização
dos “pais” e feito com ele um ensaio sensual, segundo relatos da família.
Quando soube, Queturiene foi soltando fogo pelas ventas até o apartamento
do pro ssional, em Copacabana. A bruxa cou enfurecida ao ver fotos do
“ lho-modelo” sem roupa num álbum, na mesa de centro da sala. Houve
muito bate-boca e, desde então, não trabalharam mais juntos. Em 2022, o
produtor de moda foi procurado para comentar o suposto affair, mas não
quis se pronunciar.
Enquanto Flor ascendia, Anderson e Wagner cuidavam dos negócios
religiosos. Em 2010, apenas com o dinheiro do dízimo e das doações
nanceiras, o casal construiu a segunda unidade do Ministério Flordelis,
intitulada Cidade do Fogo, o principal templo da família. Também erguido
em São Gonçalo, funcionava numa área de 15 mil metros quadrados e tinha
capacidade para receber 7 mil almas em um único culto. A casa vivia lotada,
e as colaborações dos éis em dinheiro vivo se multiplicavam no caixa como
os milagres de Jesus. Com projeto de som e luz típicos das arenas de shows,
era lá que Anderson mais pregava e Flor soltava a voz. Um painel de LED
enorme e colorido fazia projeções, elevando a congregação a outro patamar.
Quase todos os agregados eram funcionários dos templos – mas só os
prediletos recebiam pagamento. Carlos Ubiraci, Alexsander e Wagner foram
ordenados pastores e ministravam cultos remunerados nas duas igrejas.
Danielzinho tocava teclado para acompanhar Flordelis e também recebia
pela função artística. Tayane tinha talento para cantar e abria os shows da
“mãe”. Sua voz poderosa e a nada começou a chamar a atenção do público
quando ela tinha 20 anos. Com o sucesso de suas apresentações, a jovem
cantora procurou Wagner para pedir salário, já que era ele quem cuidava do
caixa. O “irmão” achou justo, mas aconselhou Tayane a pedir a Anderson.
Após uma performance arrebatadora, ao ser aplaudida por milhares de éis,
ela aproveitou a oportunidade:
– Pai, o senhor não acha que mereço um salário, que nem o
Danielzinho? Meus shows fazem muito sucesso.
– Você é talentosíssima, lha. Cubra-se de glórias!
– Obrigada. Mas não teria como eu ser remunerada? Nem que seja com
um dinheirinho...
– Não sei se você percebeu, lha. Você já é remunerada faz tempo.
– Como assim? O Wagner nunca me pagou nada.
– Seu salário é pago todo dia, pois você mora e come de graça na nossa
casa faz anos.
Essa era a desculpa dada por Anderson a quem pedia para receber pelos
trabalhos realizados nas igrejas da família. Mesmo as “ lhas” que pegavam
pesado diariamente, feito domésticas – faxinando, cozinhando, lavando a
roupa e o banheiro –, não recebiam nada. Tayane cou tão decepcionada
que resolveu arrumar suas coisas e ir embora. Num arroubo materno,
porém, Flordelis passou a pagar cachê sempre que a “ lha” subia ao palco
para se apresentar e, mais tarde, acomodou-a no conjunto vocal que lhe dava
apoio. Por outro lado, Danielzinho recebia dinheiro do pai sempre que pedia
e era presenteado com telefones celulares de última geração, brinquedos
eletrônicos e instrumentos musicais de valor, para se aprimorar na música.
Às vezes, o pastor ouvia os demais reclamando dos privilégios dados ao
jovem. Certa vez, irritada com esse excesso de regalias, Vanúbia fez nova
chantagem com o “pai”: pediu um tratamento odontológico, uma escova
progressiva e uma limpeza de pele com peeling facial. Diante da negativa do
patriarca, a moça ameaçou dizer a Daniel que ele não era lho biológico de
Anderson e levar o garoto para conhecer Janaína, sua verdadeira genitora,
que dava expediente num salão de beleza em Copacabana. Incrédulo,
Anderson virou as costas e deixou a chantagista falando sozinha. De
repente, Vanúbia soltou um grito: “Danielzinho, corre aqui! Acabei de
descobrir o terceiro segredo de Fátima!”. Despachada, atrevida,
insubordinada e espaçosa, Vanúbia havia ido parar em Jacarepaguá porque
não tinha onde morar. Cria de mãe solteira, saiu de casa aos 12 anos, depois
de sofrer abuso sexual do padrasto, e pediu abrigo a uma tia. Aos 14,
trabalhava como doméstica, mas não parava em emprego algum. Quando
completou 16 anos, a mãe morreu e a parente se mudou para o interior.
Sozinha no mundo, procurou Flordelis e acabou “adotada”. Quando viu que
a “ lha” estava disposta a revelar que Daniel fora roubado, Anderson bancou
os tratamentos estéticos da moça. Na semana seguinte, Vanúbia estava com
aparelho ortodôntico, os cabelos escorridos e a pele macia feito um pêssego.
O passar dos anos levou mais prosperidade aos negócios religiosos da
dupla e à carreira artística de Flordelis. Em 2010, ela assinou contrato com o
grupo MK, um conglomerado de rádio (93 FM), portal de notícias (Pleno
News) e gravadora especializada em música gospel de propriedade do então
deputado federal Arolde de Oliveira (PSD-RJ), morto em 2020, aos 83 anos,
vítima de covid-19. O político e a esposa, Yvelise, procuraram os pastores
para colaborar com a cinebiogra a de Flordelis. Solidários à causa da adoção
e comovidos com o melodrama da grande família, os dois cederam músicas
do catálogo da gravadora para o lme e se encarregaram de registrar e
distribuir o CD com a trilha sonora, sem cobrar pelo serviço. Arolde e
Yvelise aproximaram-se dos evangélicos depois de uma tragédia familiar.
Em 6 de fevereiro de 2010, o lho dos empresários, Benoni Assis Vieira de
Oliveira, de 45 anos, pegou seu ultraleve e levou o cunhado, Sérgio Ribeiro
de Menezes, de 44, para sobrevoar o Rio de Janeiro. No nal da tarde, a
aeronave caiu numa lagoa atrás do Autódromo de Jacarepaguá e ambos
morreram afogados. Para confortar os pais, Flordelis comandou sessões
diárias de oração na mansão de Arolde durante um mês. De tão agradecido
pelo gesto, o casal ofereceu a ela um contrato para gravar seus discos – que
venderam feito água, embalados pelas performances nas igrejas e pela
promoção de videoclipes produzidos pela MK Music. Agenciada pela
gravadora, Flordelis começou a fazer shows por todo o Brasil e até no
exterior. Ao longo de sua carreira, ela gravou oito álbuns de estúdio e dois ao
vivo, vendendo um total de 10 milhões de cópias. Todo o dinheiro
arrecadado era administrado por Anderson. Se Flor quisesse 1 real para
comprar uma bala, tinha de pedir a ele, como faziam todos os outros
parentes. Esse controle era exercido com mãos de ferro.
Numa viagem a Miami, a pastora entrou numa loja de luxo e viu uma
peruca loira, comprida, confeccionada com cabelo humano. Segundo a
vendedora, a peça de os sedosos e brilhantes era assinada pela mesma
artesã que trabalhava para a cantora Beyoncé. Quando viu o preço na
etiqueta (4,5 mil dólares), Anderson disse: “Jamais!”. Flor saiu da loja com
um modelo bem mais simples, de 200 dólares. Ele só começou a investir
muito dinheiro nos acessórios da esposa quando Yvelise reclamou das
perucas vagabundas usadas por sua estrela gospel. A empresária também
exigiu que Flordelis colocasse porcelana nos dentes, que eram escuros e
tortos. Muquirana, Anderson pagou um procedimento estético-bucal com
resina, bem mais em conta, de qualidade in nitamente inferior. Perto do
ensaio fotográ co para a capa do CD Questiona ou adora, em 2012, Yvelise
deu à artista uma peruca de 2 mil dólares e fez questão de informar o valor a
Anderson. “Sua mulher precisa estar sempre arrumada com o que tem de
melhor no mercado. Faça isso, que ela vai longe”, orientou Arolde depois de
ouvir reclamações de Flor sobre a avareza do pastor. Desde então, Anderson
não economizou mais com as perucas e a missionária passou a colecioná-las.
Logo após o lançamento do álbum Questiona ou adora, a grande família
teve um baque. Num exame de rotina, Simone descobriu estar com câncer.
Uma primeira radiogra a identi cou 20 tumores espalhados pelo fígado,
cervical, mediastino, pulmão, pélvis e peritônio – um tempo depois, num
retorno ao laboratório, ela foi diagnosticada também com melanoma grau 4,
o estágio mais avançado da doença.
Com 32 anos na época, a jovem fez quimioterapia e radioterapia no
Instituto do Câncer (Inca) do Rio de Janeiro, mas as células malignas não
diminuíram. Pelo contrário, avançaram para 35 tumores. Em 2017, ainda
doente, Simone se inscreveu como voluntária num tratamento oncológico
experimental do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Para custear as
passagens aéreas, hospedagem e alimentação na capital paulista, a
primogênita pediu ajuda ao “pai”, que controlava a verba da casa. Anderson
liberou o dinheiro, mas teria imposto como condição voltar a transar com
ela, com quem havia namorado no início da década de 1990. Simone pegou
o dinheiro e foi para São Paulo. Quando estava supostamente curada,
Flordelis lançou pela MK Produções uma canção chamada A volta por cima,
com versos que dizem: “Olham para mim, já julgando o meu nal /
Esquecendo que o meu Deus é um Deus sobrenatural”. O videoclipe da
música, com 2 milhões de visualizações no YouTube em 2023, tem imagens
de Simone raspando a cabeça, chorando e apegada aos lhos – Lorrane,
Rafaela e Ramon. Nos púlpitos da sua igreja, Flordelis pregava de mãos
dadas com a moça, dizendo que ela estava curada graças às suas orações.
Um laudo médico do Albert Einstein, no entanto, assegurou que a doença
era incurável, apesar de estar sob controle na época. De volta para casa,
ainda em fase de recuperação, Simone teria sido procurada por Anderson e
voltado a transar com ele. Na sequência, assim como Vanúbia, ela pediu
dinheiro para colocar silicone nos seios, prejudicados pelo tratamento
pesado contra a doença. Anderson concordou. Para não magoar a mãe,
Simone diz que escondeu de Flordelis seu relacionamento com o pastor.
Quando o caso entre os dois veio a público, porém, ela classi cou as
investidas de “abuso sexual e estupro”, apesar de nem sempre as relações
terem sido forçadas.
A escalada dos evangélicos ao topo da montanha seguia de forma
fantástica, assim como a promiscuidade sexual intrafamiliar. Com uma
avalanche de éis, o casal inaugurou mais quatro unidades do Ministério
Flordelis: em Niterói, Maricá, Itaboraí e Rio Bonito, somando seis no total.
Havia uma sétima lial em obra. No entanto, Flor era residente na igreja-
sede, a Cidade do Fogo – onde, segundo dizia, cava mais próxima de Deus.
O crescimento das instituições religiosas acompanhou outra mudança de
endereço. Mantenedores da moradia da grande família desde a época do Rio
Comprido, os irmãos Werneck propuseram dar entrada em uma casa
nanciada pela Caixa Econômica Federal. As prestações seriam pagas por
Flordelis, já que os negócios religiosos prosperavam.
O imóvel escolhido cava na Rua Cruzeiro, 45, bairro do Badu, em
Niterói. Tinha três andares, doze quartos, dezenas de camas, piscina, sótão e
porão. Uma residência de três quartos localizada no mesmo terreno foi
cedida para Carlos Ubiraci e Cristiana, que já tinham uma menina, Raquel,
e acabaram adotando mais duas por imposição de Flordelis e Anderson:
Roberta, a garota raquítica supostamente encontrada em uma caixa de
sapatos e esquecida por Cristiana na fuga do Rio Comprido, e Rebeca. Essa
menina, na verdade, era lha biológica de Michelle, irmã de Anderson.
Quando o pastor repassou a sobrinha para o casal criar, comentava-se que
Rebeca seria fruto da relação extraconjugal de Carlos Ubiraci com Michelle.
Outro arranjo familiar envolveu o segundo bebê de Vânia, a mulher da
bala no fígado. Queturiene tomou a criança dos braços da mãe assim que ela
completou três dias de vida e a entregou para Simone criar, como se fosse
seu lho biológico. Vânia cou revoltadíssima, mas não teve escolha. “Aqui
quem manda sou eu!”, gritou a missionária. O bebê recebeu o nome de
Moisés. “Você ganhou um presentão de Deus: a chegada do seu lho. Isso é
uma bênção maravilhosa”, anunciou a matriarca na hora de repassar a
criança a Simone, com a naturalidade de quem bebe um copo de água. Essa
adoção foi registrada em vídeo e postada na internet. Por decisão de
Flordelis, Simone e o marido-irmão André Luiz também assumiram Rayane
e legalizaram sua situação em cartório. A jovem era a lha afetiva número 1
de Mãe Flor e fora arrancada dos braços de Joana Cara de Cadáver, usuária
de drogas, no Centro do Rio, no início da década de 1990. Mas Flor mentia
sustentando que ela fora tirada do lixão da Central do Brasil. Em tempo:
todos os envolvidos negam esse passa-repassa de gente na casa de
Queturiene.
As mentiras de Mãe Flor ganharam projeção nacional nas manhãs da
TV Globo quando a grande família esteve no programa Mais Você. A
apresentadora Ana Maria Braga percebeu, no início da entrevista, que não
havia ali 50 lhos, pois a contagem à porta do estúdio só revelou 42 cabeças.
Flordelis justi cou a ausência dos oito: “Quando se tem tantos lhos, Ana, é
difícil juntar todos ao mesmo tempo agora, sabe? Três foram à escola fazer
prova. Outros três estão doentes e foram ao médico fazer exame. Dois
caram em casa porque estão com gripinha”, mentiu a supermãe, ao vivo na
televisão. Para não dar um tom dramático demais ao programa, Ana Maria
pôs uma criança no colo e começou a fazer comentários descontraídos sobre
a enorme quantidade de “ lhos” que se espremiam no cenário. Na hora em
que o cameraman tentava buscar um ângulo panorâmico, Orelhinha e
Xaropinho, procurados pela polícia, esconderam-se atrás de uma coluna.
Ingênua, Ana Maria comentou: “Olha ali os grandões se escondendo atrás
da pilastra”. Depois, a apresentadora fez perguntas engraçadas à Mãe Flor.
“Me diz aqui uma coisa, alguém já convidou você e sua família para um
almoço?”. Rindo, Flor respondeu que não. Com tantos lhos, a
apresentadora quis saber como a mãe fazia para decorar o nome de todo
mundo. Flordelis respondeu que, com o tempo, acabava memorizando. Ana
Maria a desa ou e começou a perguntar, apontando aleatoriamente:
– Como é o nome dessa menina que está aqui no meu colo?
– Ágatha! – respondeu Flordelis de pronto.
– E essa que tá sentadinha no chão?
– Sara!
– E aquele outro ali? – apontou Ana Maria para um menino de cabelos
crespos.
– Esse é o Ramon.
– E aquela outra?
– Raquel!
Daquelas crianças apontadas por Ana Maria Braga, apenas a que estava
no colo da apresentadora poderia ser chamada de “ lha” por Flordelis. Os
demais tinham outras mães. Ramon, por exemplo, era lho biológico de
Simone e André Luiz. Raquel, de Carlos Ubiraci e Cristiana. Ou seja, as duas
crianças eram, na verdade, netas de Flor. Mitômana, ela insistia em dizer nos
programas de TV que eram todos seus lhos. Sara era lha de uma vizinha e
foi pega emprestada para fazer número no cenário do Mais Você. Ágatha
tinha sido deixada na casa de Flor por uma mãe sem condições de criá-la,
mas acabou fugindo da casa de Queturiene aos 14 anos, por não suportar os
maus-tratos. Durante uma refeição, Carlos Ubiraci serviu para ela um prato
contendo apenas arroz. A menina reclamou que não aguentava mais comer
somente aquele tipo de alimento e foi reclamar com a matriarca. Flor
retrucou dizendo que, se morasse na rua, Ágatha não teria nem arroz para
comer. A adolescente pediu para ser devolvida à família original e levou uma
bofetada tão forte que caiu no chão. “Sabe o que você é? Uma ingrata. Um
lixo!”, esbravejou Flordelis. Traumatizada, Ágatha se trancou no quarto.
Pegou um estilete e cortou a pele do antebraço com a lâmina até escrever em
letras garrafais “EU SOU UM LIXO”.

* * *

Atendendo a um chamado de Deus e a um convite de Arolde de


Oliveira, Flordelis liou-se ao Partido Social Democrático (PSD) e
concorreu ao cargo de deputada federal nas eleições de 2018. Colada ao
então candidato a presidente Jair Bolsonaro, Flor tinha a frase “Mãe de 55
lhos” como slogan. Capitaneada por Anderson, toda a prole trabalhou na
campanha milionária de Queturiene. No Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
consta que ela tinha um limite de gastos da ordem de 2 milhões de reais. Foi
arrecadado, no entanto, 1,1 milhão de reais, sendo 1 milhão do fundo
partidário. Entre as pessoas físicas, incluíram-se como doadores o ex-
prefeito do Rio de Janeiro, César Maia (3,9 mil reais), e Wagner Pimenta, o
Misael (7,6 mil reais). Na página de Flordelis, no site do TSE, ela se
autodeclarava branca e com grau de instrução “ensino médio completo”.
No programa eleitoral gratuito da televisão, Mãe Flor aparecia por
apenas 15 segundos, falando às pressas como o folclórico candidato Enéas
Carneiro, morto em 2007. Seus vídeos eram gravados na rua, com a
“família”, em lugares ligados à sua falsa biogra a. “Olá! Sou Flordelis, mãe de
55 lhos. Muitos deles vieram aqui da Central do Brasil. Você conhece a
minha história e a minha luta. Com pouco, mudei a vida de muitos. Como
deputada federal, vou mudar muito mais. Vote 5593”. Apesar da grande
visibilidade da TV, o principal foco da campanha da pastora eram suas redes
sociais e os palcos de suas igrejas. No Instagram, ela acumulava 800 mil
seguidores. No YouTube, seus vídeos somavam 50 milhões de visualizações.
No Facebook, por m, seu público computava quase 700 mil pessoas. Para
produzir conteúdo para as plataformas digitais, a campanha criou a
caminhada do amor, em que ela dava “abraços de luz” em populares. No
púlpito, Queturiene fazia previsões para seus eleitores. Por orientação de
Anderson, só enxergava coisas boas, já que o objetivo era a eleição. A
estratégia deu certo. Com 196.959 votos, Flordelis foi a quinta deputada
federal mais votada do Rio de Janeiro – e a primeira entre as mulheres –,
cando à frente até do deputado Rodrigo Maia (DEM), presidente da
Câmara dos Deputados de 2016 a 2021.
Com tanto prestígio, Queturiene pegou carona num jato da Força Aérea
Brasileira (FAB) e viajou com o marido a Brasília para acompanhar a posse
do presidente Bolsonaro. Sem nenhuma experiência nem conhecimento
sobre o Legislativo, Flordelis tornou-se um fantoche nas mãos de Anderson.
Ele decidia tudo no gabinete. Nos corredores do Congresso, o pastor era
conhecido como o 514o deputado, pois escolheu todos os funcionários da
esposa e carregava no peito um crachá parlamentar especial de livre trânsito
para circular pelo plenário e até pela mesa-diretora, sem que sequer zesse
parte do quadro da casa. Como parlamentar, Flor recebia um salário bruto
de 33.763 reais – esse dinheiro cava com ela – e seu marido administrava
toda a verba anual do gabinete da esposa, xada em 1,1 milhão de reais no
primeiro ano da legislatura. Nepotistas, Flordelis e Anderson contrataram
para “trabalhar” no gabinete André Luiz e Carlos Ubiraci, além da “nora”
Luana Pimenta, a esposa de Wagner, o Misael. Nomeados para cargos de
secretário parlamentar, ganhavam ordenado bruto de 15.698 reais. O
gabinete, no entanto, era mais um adepto da prática da rachadinha: muitos
assessores eram obrigados a repassar parte do pagamento a Anderson.
Neném, Bigode e Luana, segundo denúncia do Ministério Público,
devolviam 10 mil reais cada um, todos os meses. Nessa época, Wagner
exercia mandato de vereador em São Gonçalo e também era adepto de
rachadinhas.
Pastora de multidões, cantora de sucesso, deputada de prestígio. Apesar
de todos esses predicados, Flordelis continuava sem mandar na própria vida:
era Anderson quem dizia o que ela deveria fazer, onde estar e com quem se
relacionar, principalmente no Congresso e no meio gospel. A supermãe
aceitou o papel de submissa e servil por atribuir a ele todo o seu sucesso.
Nem nos melhores sonhos da época em que era a “vassourinha” do
Jacarezinho ela imaginava chegar tão longe e tão alto – posando para foto ao
lado de um presidente da República ou viajando na primeira classe de um
avião para cantar e pregar no exterior. Quanto mais a esposa subia, mais
Anderson a blindava das pessoas, inclusive da família dela. Cada vez mais
controlador e agindo dentro de casa como um ditador, ele não aceitava
visitas de desconhecidos na casa de Niterói. Se os “ lhos” levassem amigos
para tomar banho de piscina, por exemplo, ele gritava para todo mundo
ouvir: “Já disse que não quero gente estranha na minha casa! Fora, todo
mundo!”. No rol de quem não podia aparecer estavam Carmozina, a mãe;
Laudicéia, Eliane (Abigail) e Fábio, os irmãos – este último era persona non
grata. “Até hoje não sei o que eu z para a minha irmã me virar as costas”,
disse ele, em maio de 2022.
Quando Anderson viajava a negócios, Flor recebia Carmozina em
segredo e mandava dinheiro principalmente para Laudicéia, que passava por
di culdades nanceiras. Segundo o pastor, a família de Flordelis era “um
bando de sanguessugas”. Para evitar brigas, ela optou mais tarde por se
afastar dos parentes do Jacarezinho. Os laços afetivos de Flor com a mãe e as
irmãs se quebraram em duas ocasiões. Primeiro, quando Carmozina, já com
86 anos, sem dinheiro e quase cega, precisou fazer uma cirurgia de catarata
para restabelecer a visão. Quando sondou a lha bem-sucedida para bancar
o tratamento em um hospital particular, ao custo de 16 mil reais, Flor disse
que não poderia ajudar porque o marido não havia liberado o dinheiro. A
idosa entrou na la do Sistema Único de Saúde (SUS) e fez a operação no
Hospital do Olho Duque de Caxias – há quem diga que partiu de Flor, e não
de Anderson, a decisão de não ajudar, pois ela guardaria uma mágoa
profunda da época em que Carmozina ameaçou ligar para a polícia
denunciando a lha na fuga com as crianças pelas ruas do Rio de Janeiro. A
segunda ocasião ocorreu no m de 2018. Flor estava organizando uma
grande festa de Natal em Niterói. Laudicéia ligou para a irmã e se ofereceu
para ir com a mãe e as lhas, já que era uma festa de família. “A gente está
sem dinheiro para fazer a ceia”, justi cou. Novamente, a pastora cou de
consultar o marido, pois haveria convidados importantes, como o senador
eleito Arolde de Oliveira e Silas Malafaia. No dia seguinte, Laudicéia
telefonou e ouviu da irmã uma boa notícia: um carro os apanharia às 20
horas em ponto. Às 18 horas de 24 de dezembro, todo o mundo começou a
se arrumar e Carmozina providenciou cartões e presentes para os netos
biológicos – Simone, Flávio e Adriano. Às 19 horas, estavam prontos,
incluindo Fábio e a esposa, Ieda. Às 20 horas, nada. Quando o relógio
marcou 21 horas, Laudicéia ligou e ninguém atendeu. Passou a mandar
várias mensagens pelo celular endereçadas aos “ lhos” da deputada. Eles
recebiam, liam o texto e não respondiam. O clã do Jacarezinho foi
completamente ignorado e esquecido.
Assim como Flor, Anderson deu uma repaginada no visual. Colocou
dentes de resina para o sorriso car branco como algodão, vestia ternos bem
cortados e mantinha o cabelo xado com gel. Também começou a andar
com seguranças particulares – ninguém menos do que Orelhinha e
Xaropinho, “contratados” para a função. Dois ex-policiais militares também
ajudavam na tarefa de protegê-lo, porque ele costumava andar com grande
quantidade de dinheiro vivo.
Bem relacionado, Anderson fez uma festa em casa. Recebeu os
deputados e pastores Cezinha de Madureira (PSD-SP) e Abílio Santana
(PSC-BA), além do deputado Hugo Leal (PSD-RJ) e outras autoridades.
Pastores estrangeiros também compareceram. Para os gringos, com aval de
Flordelis, Anderson ofereceu suas “ lhas”. Vanúbia era a predileta. “Pode
levar para um passeio, mas ela cobra dízimo”, alertou. O pastor também
oferecia às visitas ilustres Simone, Marzy, Lorrane e Rayane. Nas festas em
casa, Anderson dizia para pastores e políticos que Flordelis era uma marca
sua, um projeto de sua autoria. “Se não fosse eu, ela estaria até hoje vagando
feito uma morta de fome pelas ruas do Jacarezinho com uma penca de
trombadinhas”, glori cava-se. Quando perguntavam como tudo havia
começado, ele respondia na frente da esposa: “A Flor recolhia crianças sujas
de merda da rua e levava para casa. Aí eu falei que ela estava com a faca e o
queijo na mão para crescer. Bastava saber o que fazer com aqueles pivetes.
Tive a ideia de fazer dela a supermãe do Jacarezinho. Eu fui atrás da ajuda de
empresários! Eu pus ela na TV. Eu levei na Xuxa, na Ana Maria Braga, no
Rodrigo Faro e até na Marília Gabriela. Eu a vesti como uma mulher de
classe. Eu ensinei a falar em público. A Flor não falava plural. Era um tal de
‘nós vai’, ‘três pão’, ‘dois bebê’. Ela só acertava plural de ‘pires’ e ‘ônibus’
porque essas palavras já vinham com S no nal. [Nessa hora, todos
gargalhavam e Flordelis baixava a cabeça.] Eu ensinei a cantar e pregar.
De ni cada passo, cada movimento para ela sair da merda. Eu! Eu! Eu! Tudo
eu!”, falava Anderson, feito um disco arranhado, principalmente quando
bebia vinho. No meio dessa festa, a campainha da casa de Niterói tocou.
Vanúbia foi atender. Ela trouxe até a sala uma pessoa de 1,90 de altura
vestindo minissaia de lurex, cabelo na altura da lombar e maquiada com
bastante brilho. Os cílios pareciam um rabo de passarinho de tão
chamativos. A visita chamou a atenção de todos, inclusive dos pastores.
Surpresa, Flordelis se levantou do sofá e perguntou:
– Quem é você?
– Meu nome é Sabrinne Crystal Tranca-Tudo. Sou travesti.
– O que você está fazendo aqui, minha lha? Estamos dando uma festa!
– Seu marido, Anderson, vai toda quinta-feira lá no meu ponto, na
Avenida Brasil. Como ele está me devendo, vim fazer a cobrança!
Os convidados caram chocados. Bêbado e fora de si, Anderson
esqueceu as visitas ilustres, perdeu a compostura e avançou sobre Sabrinne
Crystal sem dizer uma palavra.
“Não há nada ocul to que não seja
descoberto.”

À
medida que Flordelis prosperava, Anderson se transformava num
homem violento dentro de casa. Segundo relatos dela, na hora do sexo
o pastor apertava seu pescoço enquanto a penetrava. Era comum ele
usar um travesseiro para sufocá-la, como havia feito com o “ lho” Ari, com
quem transou por dois anos. Certa vez, o casal estava fazendo sexo no
quarto secreto, rodeado pelas imagens de Baphomet, Exu Caveira e São
Cipriano, para comemorar o sucesso da vida. Pouco antes de gozar, ele deu
dois murros no rosto da mulher e ela caiu da cama. O barulho despertou a
atenção de Simone, que já conhecia o per l violento do “pai-amante”.
Hebreia bateu à porta do quarto, mas ninguém abriu. Do lado de fora, ela
perguntou para a mãe se estava tudo bem. Flor respondeu positivamente e
disfarçou os hematomas com maquiagem. “Mãe, por que a senhora aceita
tudo isso calada? A senhora é deputada federal, uma mulher empoderada.
Não precisa mais desse demônio dentro de casa. Por que não se separa?”,
perguntou a primogênita. André Luiz também sugeriu o divórcio. “Não
posso. Uma separação escandalizaria a igreja”, respondeu Flor.
Mesmo sendo submetida a violência, conforme relatava para os “ lhos”,
a pastora continuava subindo ao púlpito da Cidade do Fogo e se declarando
em público ao marido agressor. Uma vez por mês, ela falava apenas para
casais. “Se você tem problemas conjugais, venha amanhã à minha igreja que
vou fazê-los desaparecer”, anunciava na véspera das sessões de reconciliação.
Em março de 2019, ela pregou: “Mulheres de Deus que estão aqui, prestem
atenção! Ainda hoje uma profetisa do cão me falou. Uma profetisa do cão
coisa nenhuma. Era uma mulher sem eira nem beira. Ela me parou ali atrás
para dizer que isso tudo aqui está perto do m. Teria profetizado que o meu
ministério vai acabar, que virará um estado de fogo. Ela disse que eu tenho
um calcanhar de aquiles. Eu quei parada olhando para a cara da infeliz. Ela
disse que meu ponto fraco é o meu casamento. Que basta destruir meu
casamento que isso tudo aqui acaba. Tá amarrado, Satanás! Meu casamento
é de Deus. Meu marido, foi Ele quem me deu!”, gritou e pulou ao mesmo
tempo. Anderson estava na plateia e aplaudiu a esposa com fervor. À noite,
teria dado mais uns sopapos na cara dela.
Depois dos cultos das sextas-feiras, Anderson, Flordelis, Simone e André
Luiz costumavam seguir para casas de swing. As preferidas eram o Paris
Café Club, na Barra da Tijuca, e 2A2, em Botafogo. Foi numa dessas orgias
que o pastor conheceu a travesti Sabrinne Crystal Tranca-Tudo, uma
agenciadora de garotas de programa. No início, para não ser identi cada
nessas casas, Flordelis usava máscaras venezianas. Com o passar do tempo, a
gerência dos lugares começou a reservar ambientes exclusivos para eles.
Geralmente, Anderson e Simone saíam pelo salão recrutando casais para
fazer a troca de pares. As aventuras sexuais da família nas casas de sexo
coletivo produziram situações embaraçosas no Ministério Flordelis. A
primeira delas ocorreu em 2018, quando a diaconisa Karla Evelyn de
Oliveira, de 31 anos, levou uma amiga para visitar a Cidade do Fogo. De
repente, Flordelis subiu ao palco para pregar e a moça levou um susto.
– Karla, quem é aquela mulher lá no púlpito?
– É minha pastora. Chama-se Flordelis.
– Essa mulher frequenta a mesma casa de swing em que vou, na Barra.
– Não pode ser! Ela é uma pastora famosa!
– Estavam lá sábado passado: ela, o marido e mais um casal, no maior
troca-troca. Essa senhora, inclusive, desceu as escadas bêbada, carregada,
vestindo calça jeans e jaqueta branca.
No dia seguinte, Karlinha, como era conhecida na igreja, foi tirar
satisfações com Flor e Anderson. Eles negaram e ela descreveu a roupa de
cada um, inclusive de Simone. O pastor, então, tentou convencê-la de que o
Diabo cria falsas visões e fofocas para destruir as coisas de Deus. Quando a
denúncia veio a público, Flordelis cou revoltadíssima e mandou um recado
à diaconisa pelas redes sociais. “Tudo que você fala tem de ser provado,
lindona. Que eu e meu marido frequentávamos casa de swing? Ah!
Misericórdia, Senhor. E se fosse verdade? Infelizmente não é verdade! Olha,
minha cara, se eu fosse você, iria na Barra agora na tal casa de swing
procurar por uma lmagem! Mas tem de ter euzinha trêbada, sendo
carregada! Porque se não tiver nenhum videozinho, meu amor, você vai ter
de me pagar por danos morais. Tem dinheiro não? Começa a fazer faxina.
Tem dinheiro não? Vende tudo que tem dentro da sua casa”, sugeriu.
Simone também protagonizava escândalos sexuais homéricos na Cidade
do Fogo. Frequentadora assídua dos cultos de Anderson, a ovelha Priscila
Bessa ia na companhia do marido, Márcio da Costa Paulo, o Buba, assessor
parlamentar de Flordelis. Simone estreitou laços com o casal e conseguiu
convencer Buba a ir à casa de swing. Os dois transaram na 2A2 diversas
vezes. Apaixonada, Simone avisou que terminaria o casamento com André
para car com o amante. Buba sugeriu que ambos permanecessem casados e
se encontrassem clandestinamente, pois ele não estava disposto a se separar,
uma vez que Priscila o amava. Simone ngiu que concordou e fez uma
maldade. Escondeu um celular com a câmera ligada e lmou uma noite de
sexo com Buba. Em seguida, mandou o vídeo anonimamente para Priscila.
Revoltada, a mulher traída expôs o caso extraconjugal nas redes sociais.
Simone cou sem André e sem Buba, mas não se manteve sozinha por
muito tempo: logo engatou namoro com um taxista chamado Valtinho
Porto, de 45 anos, cujo maior sonho era ser vereador em Rio das Ostras.
Numa eleição para o posto, teve só 18 votos.
O escândalo sexual do pastor Anderson com a cafetina Sabrinne Crystal
Tranca-Tudo teve um desfecho misterioso. A parceria dos dois começou às
vésperas do Congresso Internacional de Missões (CIM), um evento gospel
criado por Anderson em 2006 que reunia todos os anos mais de 10 mil
evangélicos. Na edição do CIM de 2017, o pastor receberia cerca de 200
autoridades religiosas internacionais e precisava de muitas garotas de
programa para entretê-los. Anderson contratou diversas cafetinas para
fornecer as prostitutas, entre elas Sabrinne Crystal. Desde então, Anderson
passou a procurar pela travesti sempre que queria sair com uma garota de
programa. O ponto delas era um logradouro da Avenida Brasil na altura de
Bangu. Inúmeras prostitutas agenciadas por Sabrinne Crystal saíram com
Anderson. Nem a travesti, nem as pro ssionais sabiam que aquele cliente era
um pastor famoso, casado com uma cantora gospel de sucesso. Certa noite,
ele passou no ponto da Avenida Brasil e pegou duas mulheres agenciadas
por Sabrinne. Na manhã do dia seguinte, ele as deixou de volta e
desapareceu sem pagar. Sabrinne ligou para o cliente, mas ele havia trocado
de celular. A cafetina procurou por Anderson na casa de swing para fazer a
cobrança, mas não o encontrou. Até que foram a xados painéis de
propaganda do CIM de 2018 em viadutos da Avenida Brasil com o rosto de
Anderson e Flordelis. “Puta merda! O cara é casado com uma deputada
federal e me dá um calote de 400 reais!”, indignou-se Sabrinne Crystal. Foi a
partir dessa descoberta que a travesti resolveu procurar pelo pastor na seita
de Queturiene. A ideia não foi boa. Sabrinne Crystal foi retirada de lá
violentamente. Primeiro, Anderson deu uma rasteira na travesti na frente de
todos, no meio da sala. Em seguida, segurou a vítima pelo aplique capilar e
arrastou-a para fora. Para não perder os cabelos falsos e machucar o couro
cabeludo, a vítima se segurou no braço do pastor e teve as costas
machucadas. Houve um corre-corre na casa. Anderson só cessou a agressão
quando Sabrinne Crystal foi jogada na rua. “Se você ousar me procurar mais
uma vez, seja por telefone ou aqui em casa, não responderei por mim”,
ameaçou ele, apontando uma arma para a travesti. Ousada, Sabrinne teria
ido atrás do pastor mais algumas vezes e feito ameaças. “Imagine se o Brasil
todo descobrisse que o marido da deputada Flordelis está inadimplente com
uma travesti? O que aconteceria?”, mandou por mensagem para o novo
celular de Anderson. Com medo de escândalo, o pastor pagou sua dívida e
mudou de número mais uma vez.
Como toda chantagista que se preze, Sabrinne Crystal quis mais e mais.
Procurou por Anderson na Cidade de Fogo. O marido de Flordelis fez mais
um pagamento. Mas ele estava decidido a pôr um m naquela extorsão. Ele
acionou seus lhos criminosos, Xaropinho e Orelhinha. Naquela altura da
vida, a dupla revezava a segurança de Anderson com dois milicianos. Certa
noite, um carro preto com vidros escuros passou pelo ponto de Sabrinne
Crystal na Avenida Brasil, parou perto dela e abriu o vidro da janela do
banco do carona. Alguém perguntou quanto custava o programa. A travesti
negociou, entrou no carro e não voltou mais. Uma semana depois, seu corpo
foi encontrado perfurado de balas numa vala em Bangu, zona oeste do Rio.
O assassinato nunca foi investigado porque nenhum familiar procurou por
Sabrinne. A polícia nem sequer descobriu seu nome de batismo, e ela
acabou enterrada como indigente, sem direito a velório, numa cova rasa do
cemitério do Caju.
Ninguém ousava falar, em casa, sobre o dia em que uma travesti
procurou por Anderson. Tinham medo de o escândalo resvalar na carreira
política de Queturiene. Separado de Simone, André Luiz foi morar no
apartamento funcional da deputada, na Asa Norte, em Brasília. No entanto,
o ex-casal dormia junto sempre que se encontrava. “Não consigo me
desapegar, ele é muito bom de cama”, justi cava a moça, ao ser questionada
sobre as recaídas sexuais. Com a mudança de parte da prole para a capital do
país, novas chegadas e partidas movimentaram Niterói. Vânia, Vanúbia,
Rayane e Wagner “Misael” saíram por motivos diferentes. As duas primeiras
se cansaram da dinâmica ditatorial da casa. “Misael” casou-se com Luana
Vedovi, produtora de conteúdo digital. Aos 25 anos, Rayane saiu para viver
com o namorado, André Felipe. Mais tarde, os dois também se mudaram
para o imóvel de Brasília. Em 2019, ela atuava como assistente pessoal de
Flordelis: cuidava das perucas, da alimentação, fazia as unhas e passava as
roupas de Flor. Acertou com Anderson um salário de 15 mil reais. No
primeiro mês, porém, recebeu apenas 2,5 mil reais. “Mãe, o Anderson não
está me pagando direito”, queixou-se. “Você sabe como ele é. Mas deixa
comigo, vou falar com seu avô”, prometeu a deputada. Certo dia, a moça se
deitou na cama com o namorado, enrolada em uma toalha de banho, dentro
do quarto fechado. Flor transava com Anderson no cômodo ao lado, mas ele
não teria gozado porque a esposa estava cansada. Só de cueca preta, o pastor
chamou André Felipe à sala e o mandou levar um documento ao gabinete da
deputada. Em seguida, entrou no quarto de Rayane. Segundo relato dela,
puxou a toalha e tocou sua vagina enquanto se masturbava. Para evitar que
ele a penetrasse com os dedos, ela virou o corpo para o lado. “O seu salário
está baixo, né? Você se queixou para sua avó. Ela me contou. Não quer
ganhar 15 mil, sua piranha do evangelho? Então facilita a minha vida,
liberando a bocetinha...”. Rayane deixou-se ser penetrada – até porque, como
contou, não era a primeira vez que sofria esse tipo de violência. Anderson
teria abusado da “ lha”, que depois virou “neta”, desde a adolescência.
Quando tinha 11 anos, a garota surgiu na cozinha do Jacarepaguá vestindo
uma blusa folgada e o pastor teria posto a mão em seus mamilos. “Deixa o
papai ver se já nasceu peitinho na lhinha”, disse, tocando-a. “Olha, tá bem
pequenininho, mas já tem uma uvinha aí”. Em seguida, pegou-a pelo braço e
a arrastou para o banheiro, onde a estuprou.
No seio da grande família, outros dois “ lhos” de Queturiene deixaram
de fazer guração e passaram a ter destaque durante a campanha eleitoral:
Lucas Cezar dos Santos de Souza, então com 22 anos, conhecido como
“Pirulito”, e Marzy Teixeira da Silva, com 34, uma das mais dedicadas,
prestativas, submissas e subservientes a Mãe Flor. Sua história é de partir o
coração. Quando ela tinha 8 anos, a pessoa mais importante em sua vida era
o tio-avô, José Nisolino, de 49 anos na época. Distante da mãe, a menina
criou laços afetivos com ele, porque recebia carinho e era presenteada com
brinquedos, bonecas e material escolar. Nos nais de semana, José a pegava
em casa para ir ao parque com outras primas da mesma idade. Em
comparação com o ambiente doméstico infernal, a felicidade de Marzy
nessas atividades recreativas era uma válvula de escape. O pai, Maurício
Nunes da Silva, batia todos os dias na mãe, Maria Lúcia Teixeira da Silva. “As
melhores horas de minha vida eram quando estava com meu tio-avô, os
únicos momentos em que eu conseguia rir. Quando os passeios estavam
acabando, já me batia uma angústia, pois tentava imaginar de que forma
meu pai iria espancar minha mãe”, contou ela a uma assistente social. Aos 11
anos, Marzy acordou e viu o pai, bêbado e nu, entrando no banheiro. A mãe,
também sem roupa, estava toda ensanguentada no sofá da sala, embriagada,
segurando uma garrafa de pinga. Maria Lúcia levantou, caminhou
cambaleando até a cozinha, abriu uma gaveta e pegou uma faca. O casal
esteve bebendo por dois dias seguidos. Marzy olhou xamente para a mãe,
que seguia rumo ao banheiro com a arma branca em punho. Dentro de casa,
a lha parecia invisível aos olhos do casal. Do lado de fora, porém, um carro
soou a buzina: era José Nisolino, chamando a sobrinha-neta para mais um
passeio. Sem se despedir dos pais, ela saiu de casa em jejum, vestindo
pijama. Contou ao tio-avô detalhes sobre a violência doméstica, pontuando
o desejo de um deles morrer para ter paz dentro de casa. José cou o dia
inteiro com a menina, na tentativa de confortá-la. Levou-a à praia,
almoçaram, passearam no shopping e seguiram ao parque de diversões já no
nalzinho da tarde. Na roda-gigante, o tio-avô de quase 50 anos aproveitava
o momento em que a cadeira oscilante estava na parte mais alta para pôr a
mão na vagina da criança. Marzy não viu malícia no abuso sexual de José e
até riu quando a roda panorâmica enfeitada com luzes coloridas girava
rapidamente, levando-a para os ares.
Na semana seguinte, aconteceu algo bom: os pais de Marzy se
separaram. Quem saiu de casa foi a mãe, que nunca mais deu sinal de vida.
Marzy e seu pai zeram um pacto de cuidar um do outro para sempre, mas
ele nunca cumpriu sua parte no acordo. Incentivada por Maurício, que
queria a casa livre para receber as amigas do bar, a menina saía com o tio-
avô quase todos os dias. Nos passeios, sempre que houvesse oportunidade,
José Nisolino pegava no sexo da garota, que não fazia qualquer objeção,
deixando o abusador ainda mais à vontade. Certo dia, ao se ver preterida
diante de uma coleguinha da mesma idade, Marzy cou irritada e disse que
só sairia outra vez com o parente se estivessem sozinhos. Pediu para ir de
novo à roda-gigante. Lá em cima, colocou a mão do tio-avô sobre seu sexo.
A partir daí, começou a ser violentada de forma sistemática até completar 15
anos. Só veio a entender o tipo de atrocidade que sofria perto de completar
18. Aos 22, saiu de casa. “O mais absurdo é que eu era abusada na infância e
gostava, porque não entendia como aquilo impactava em mim. Quando
meu tio-avô desapareceu, eu me sentia atraída por ele. Ele me tocava e eu
adorava, porque não era um estranho. Me sentia até segura. Só vim entender
que estava sendo estuprada quando me relacionei com outras pessoas de
forma espontânea”, contou a uma psicóloga. Confusa, deprimida e com
vários transtornos mentais, Marzy foi morar de favor na casa de amigas até
parar nos braços de Flordelis, em 2009. Quando a pastora se elegeu
deputada federal e passou a viajar para o exterior, como celebridade, Marzy
cou deslumbrada e concluiu: é essa a mãe que sempre sonhei ter para mim.
Desde então, passou a venerar a missionária como se ela fosse uma rainha.
“Minha delidade será canina! Farei qualquer coisa para protegê-la! Eu
disse: qualquer coisa!”, decidiu.
Na cozinha da Cidade do Fogo, Marzy foi assediada sexualmente por
Anderson. Adulta e com a experiência de quem morou na rua e ciente do
conceito de abuso, ela deu um chega pra lá no pastor apontando uma faca de
cozinha para ele. “Nunca mais encosta em mim!”, ameaçou Marzy. Segundo
relatos, ele teria tentado outras vezes. Certa vez, a jovem preparava o almoço
para os funcionários da igreja e Anderson a agarrou por trás, esfregando na
“ lha” o pênis ereto por cima da calça. Marzy pediu para ele sair, mas o “pai”
continuou bolinando-a. Para se vingar, ela aproveitou uma distração de
Anderson e roubou 5 mil reais do dízimo da igreja. Quando ele deu falta do
dinheiro, houve um escândalo. Marzy confessou e acabou expulsa de casa.
“Aceito até lho veado e lha sapatão, como tem aos montes aqui em casa.
Mas não tolero ladrão!”, esbravejou. Flor intercedeu por Marzy. Anderson
manteve-se irredutível. A larápia pediu desculpas ao “pai”, disse que não
sobreviveria sem o amor de Mãe Flor e prometeu nunca mais mexer nas
coisas dele. Foi perdoada e voltou a morar na casa de Niterói exclusivamente
para servir aos interesses de Queturiene.
Lucas chegou à grande família levado pela dupla de tra cantes
Orelhinha e Xaropinho, em 2012. Os três se conheceram na época em que
roubavam telefones celulares nas ruas do Rio de Janeiro. Depois de ver
Flordelis no programa da Xuxa, Lucas pediu para os amigos arrumarem
uma vaga na casa. Xaropinho falou da facilidade em se esconder da polícia
estando sob as asas de Mãe Flor, citando o abrigo dado a Selma, Olival e
Aldeci por vários anos. Os dois marginais deram boas e más referências da
casa ao companheiro:
– Mãe Flor é protegida por um juiz e tem moral com policiais e chefes
do trá co – disse Orelhinha.
– Mas não vai achando que lá é um paraíso. A casa parece o Titanic. Tem
gente que viaja na primeira classe, comendo do bom e do melhor. Mas tem
os pobres-diabos que nem nós, que seguem no porão, sendo humilhados,
apanhando na cara, trabalhando feito pessoas escravizadas e comendo o pão
que Satanás amassou e cuspiu – de niu Xaropinho, rindo.
– Mas vocês acham que vale a pena? – quis saber Lucas.
– Cara, a família é toda torta, esquisita. O pai come lha, come lho,
come neta e dizem que sai até com travesti. Tem irmã que dá para o irmão e
a mãe transa com o lho. Também tem casal de sapatão que dorme na
mesma cama e se dizem irmãs. Aí depois todo mundo vai fazer oração. Tem
ainda um quarto secreto com imagens sinistras. Se você não ligar para essas
coisas, vale a pena, sim. Pelo menos a gente tem a quem chamar de mãe.
Assim como Orelhinha e Xaropinho, Lucas passou a morar
esporadicamente na casa de Mãe Flor. Saía para tra car, praticava pequenos
furtos e voltava para se esconder na casa de Niterói. Já acumulava passagens
pela polícia desde a adolescência e falava com as gírias da bandidagem.
Certa vez, testemunhou Anderson brigando com Wagner “Misael”. O pai
pegou uma cadeira e jogou contra o “ lho” por causa de uma discussão que
envolvia planos políticos e dinheiro. Misael queria seguir os passos da mãe e
se candidatar a deputado federal. O pastor o humilhou, dizendo que o
“ lho” não tinha brilho para almejar um posto tão alto na vida pública.
“Você nasceu para ser vereador de favela”, encerrou.
Na primeira refeição, Lucas sentiu cheiro de carne assada e foi olhar na
cozinha, por volta do meio-dia. Viu três fogões de seis bocas com dezoito
panelas cozinhando alimentos a todo o vapor. Havia arroz com brócolis,
bife, batata frita, macarrão, purê de batata, farofa, feijão-preto bem
temperado, maionese, salada de legumes... Voltou meia hora depois, pegou
um prato e abriu cada panela, sem saber por onde começar. A cozinheira,
Débora Vianna, o interpelou: “Você cou doido? Ponha-se no seu lugar. Os
lhos afetivos são os últimos a comer”, avisou. Flor, Anderson, Simone,
Adriano e Danielzinho serviram-se de lé-mignon, feijão, arroz e fritas.
Depois foi a vez de Carlos Ubiraci, Wagner, Cristiana, Alexsander e os lhos
biológicos de Simone, para quem havia salada, bife de alcatra e macarrão
com molho de tomate. Às 15 horas, os mais de trinta integrantes da “terceira
classe” foram chamados. A cozinheira fez um mexidão com arroz, feijão, ovo
e salsicha, misturou com sobras da “primeira classe” e serviu em vários
pratos de plástico. Uma ajudante avisou: “Usem farinha de mandioca à
vontade, porque ela faz o rango render”.
Era Simone quem fazia as compras da casa. Ela ia ao supermercado três
vezes na semana e voltava cheia de coisas. Mas havia um código para não
misturar os alimentos. As sacolas fechadas com nó deviam ser levadas para a
geladeira de cima ou acomodadas numa despensa trancada à chave. E a
discrepância no tratamento dos moradores não se restringia só ao cardápio.
Os quartos destinados aos “ lhos” inferiores cavam no primeiro andar e
não tinham janelas. Os aposentos do núcleo principal, no segundo andar,
exibiam janelões, camas macias e ar-condicionado. “Aqui, a promoção é por
merecimento”, dizia Flor.
A agressividade dentro de casa re etia-se nas igrejas. Todas as unidades
do Ministério Flordelis tinham uma boa receita porque as cobranças cavam
cada vez mais intensas. Num culto, Anderson pediu aos éis com dízimo
atrasado que evitassem sair de casa, pois Deus não cuidava de ovelhas
inadimplentes e acidentes poderiam acontecer com os caloteiros. “Outro dia,
uma senhora levou uma bala perdida na favela e os parentes vieram aqui
choramingar. Fomos olhar nos relatórios e o dízimo estava atrasado. Não
adianta car perguntando se a bala foi disparada por tra cantes ou policiais.
Quem leva as almas da Terra é Deus. Por isso, vocês têm de manter o dízimo
em dia”, pregou. Na mesma ocasião, uma mulher procurou o pastor para
justi car por que sua mãe, frequentadora assídua da Cidade do Fogo, estava
com a contribuição religiosa atrasada. “Ela é fanática pela Flordelis. Não tem
vindo porque está internada com câncer terminal. O médico disse que ela
vai morrer em breve. Gastamos todo o nosso dinheiro com o tratamento.
Assim que as coisas melhorarem, a gente paga o dízimo atrasado, tá?”,
explicou a el. Anderson não deixou barato. “Irmã, pague o dízimo pela sua
mãe. Vende essa bicicleta que te trouxe até aqui e paga a sua dívida com o
dinheiro. Se sua mãe está quase morrendo, o dízimo tem de estar em dia,
porque ele é essencial para Deus recebê-la em seus braços na sua mais pura
luz. Se a coitada morrer com o dízimo atrasado, nem sei onde ela vai parar
depois de morta, pois no céu ela não vai entrar”, avisou. “Não posso vender a
bicicleta porque uso para trabalhar”, chorou a mulher. “Então venda algum
eletrodoméstico, faça uma vaquinha na vizinhança, mas não deixe sua mãe
sem amparo num momento crucial da vida como esse. A senhora será
responsabilizada pelo destino dela após a morte”, determinou Anderson.
Com cobranças controversas, o pastor conseguia arrecadar mensalmente,
em média, 600 mil reais nas oito igrejas do ministério. Uma parte era
investida na construção de mais um templo e na manutenção das unidades
em funcionamento. Outra parte servia para as despesas da casa, incluindo as
parcelas do nanciamento da Caixa Econômica Federal. Para sonegar
impostos, o pastor costumava levar semanalmente cerca de 30 mil reais em
dinheiro vivo da igreja para casa, dentro de uma mochila de couro. Os
valores eram guardados em dois cofres, no quarto secreto, atrás de
Baphomet, Exu Caveira e São Cipriano. Ele também colocava notas de 100
reais sob as imagens, como forma de agradecimento. Ele também mantinha
dois cofres na Cidade do Fogo contendo dinheiro vivo. Depois que passou a
andar com valores, Anderson começou a andar armado e nomeou
Orelhinha e Xaropinho como seguranças particulares, além de dois
milicianos.
Desde 1991, quando deram o primeiro beijo, Anderson e Flordelis
mantiveram uma relação aberta. Ela era adepta do amor livre desde a década
de 1970, quando namorou simultaneamente um padeiro e um alfaiate. Ele
saía com várias mulheres, e a partir de 2019, quando esse modelo de
convivência se intensi cou, engatou romance com uma ovelha da igreja
chamada Regina. Apaixonado, o casal não escondia o envolvimento.
Queturiene, por sua vez, perpetuava as características da velha
“vassourinha”. Num culto na Cidade do Fogo, ela conheceu outro Anderson,
casado com Debora Vilela. Em crise conjugal, ambos recorreram à bruxaria
de Mãe Flor para tentar remendar o matrimônio. Mas o casal acabou
desfeito pela própria Flordelis, que transou com Anderson Vilela, de 46 anos
na época, com a velha desculpa de puri cá-lo. “Fui lá na Cidade do Fogo
tentar salvar o meu casamento e acabei saindo sem marido”, reclamou
Debora ao portal Metrópoles, em junho de 2021. Romântica, Flor deu de
presente ao amante um carro zero-quilômetro e ainda conseguiu para ele
uma sinecura em seu gabinete. Tanto a ex-parlamentar quanto seu ex-
assessor negaram o affair.
Flor cou três anos com Anderson Vilela, mas trocou-o pelo jovem
Allan Soares, de 22 anos – ou seja, 38 anos de diferença –, mantendo a sua
predileção por novinhos. O rapaz trabalhava organizando agendas de
cantores gospel e logo se mudou para a casa de Niterói. O romance começou
secreto, para não causar mais um escândalo na Cidade do Fogo. No auge da
paixão, Flor, Allan e Anderson do Carmo zeram uma foto juntos,
sugerindo um relacionamento a três. A imagem foi publicada numa rede
social. Allan nega que tenha namorado Queturiene enquanto ela estava
casada com o pastor. “Existe uma Flordelis que só eu enxergo. Uma mulher
que a mídia não mostra, que as pessoas não veem. É essa mulher que eu
amarei incondicionalmente até o m dos meus dias”, disse o rapaz, em abril
de 2021.
Com a vida amorosa extraconjugal de vento em popa e com ódio mortal
do marido tirano e controlador, Flor resolveu nalmente se libertar de
Anderson. No entanto, seu plano para se livrar do pastor não envolvia
separação, desquite, divórcio ou qualquer outro sinônimo para o m do
matrimônio. Queturiene queria sua vida de volta e sabia que não existia
outra possibilidade de isso acontecer se não assassinando Anderson. O
desejo de liquidar com ele começou depois de uma miniturnê com três
apresentações dela na Bélgica, entre 17 e 19 de maio de 2019. Todos os
shows e cultos da cantora eram acertados por ele, que repassava em média
10% do cachê à mulher e embolsava o restante. Como todo artista, Flor
nunca falava em valores e sempre se contentava com o que recebia. A
apresentação em Bruxelas, por exemplo, rendeu 5 mil reais. Pela primeira
vez, porém, ela achou pouco e resolveu se inteirar das nanças da sua
carreira artística.
– Amor, quanto eles pagaram por esses shows?
– Uma miséria, minha linda. Só 50 mil reais. Mas achei que valeu a pena
aceitar, porque a gente conheceu um país diferente – ponderou Anderson.
De fato, o casal aproveitou a viagem: visitaram a Grand-Place, viram a
estátua de Manneken Pis, estiveram nas Galeries Royales Saint-Hubert. De
volta ao hotel, Anderson tomava banho enquanto Flordelis arrumava a
bagagem para regressar ao Brasil. Ao se deparar com uma pasta na mala do
pastor, encontrou a cópia do contrato dos três shows feitos em Bruxelas: o
valor negociado havia sido de 120 mil reais, e não 50 mil. Anderson,
portanto, havia gatunado 115 mil reais. Esperta, Flor não confrontou o
esposo. Mas, dali em diante, decidiu que jamais seria explorada novamente
pelo mercenário.
No retorno ao Rio de Janeiro, ela se reuniu com os lhos biológicos,
Simone, Flávio e Adriano. Contou a eles que não aguentava mais viver com
o marido – pintado como Satanás, pois a ludibriava desde a época do
Jacarezinho. Adriano sugeriu a separação, mas a mãe ponderou que essa
alternativa traria prejuízos enormes à sua reputação e ao seu patrimônio,
pois ele levaria junto pelo menos metade do Ministério Flordelis, cujas
nanças eram inteiramente administradas por Anderson e seu grupo de
“ lhos”, liderados por Wagner “Misael”, Alexsander “Luan” e Danielzinho.
Em um segundo momento, Flordelis comentou sobre os golpes do marido
contra Marzy e Rayane. A princípio, não falou abertamente “vamos matar o
pastor”. Mas cava claro, nessas primeiras reuniões familiares, que assassiná-
lo seria a única saída.
A decepção sofrida em Bruxelas foi só a gota d’água. Alguns meses antes,
durante a campanha eleitoral, Flordelis se sentiu sufocada como nunca.
Eleita deputada, quis começar uma vida nova bem longe do companheiro.
Logo depois do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) con rmar sua eleição, ela
resolveu envenenar Anderson. Para as suspeitas não recaírem sobre ela,
ngiu amá-lo e não economizava nas demonstrações de afeto,
principalmente nas redes sociais e no púlpito da Cidade do Fogo. Para
colocar o plano do envenenamento em ação, Queturiene cooptou seus
principais querubins: Simone, André Luiz, Rayane e Marzy. Quando
Anderson saía de casa, o grupo se reunia no quarto secreto, sob os olhos de
Baphomet, São Cipriano e Exu Caveira. Prestativa e obediente, Marzy usou
o Google para pesquisar sobre a substância que seria mais e caz. Digitou na
barra de buscas: “veneno para matar pessoa que seja letal e fácil de comprar”.
Não se sabe se usaram arsênico, cianeto, chumbinho – o famoso raticida
– ou outra substância. O veneno era administrado de forma insidiosa e
gradual nas refeições da vítima, em pequenas doses, e devia agir devagar no
organismo do pastor. Inicialmente, Simone e Marzy assumiram a função de
fazer o “pai” ingerir os alimentos contaminados. Anderson tinha o hábito,
no café da manhã, de tomar bebidas feitas à base de leite fermentado, como
Yakult e Chamyto, indicadas para equilibrar a ora intestinal. Orientadas
por Flordelis, na madrugada, as moças usaram uma seringa com agulha na
para injetar o veneno pela tampa do produto, evitando a violação do lacre.
Anderson acordou, agitou a garra nha e bebeu de uma só vez. À tarde,
estava no pronto atendimento do Hospital Niterói D’Or com vômito,
diarreia, sudorese e uma terrível dor abdominal. Cínica, Flordelis cou
orando no leito do marido e ainda comemorou quando ele recebeu alta
médica. Alguns dias depois, o veneno foi colocado numa jarra de suco de
laranja. O pastor tomou um copo na hora do almoço e ofereceu um pouco a
Cristiana, que deu somente três goles. A coitada deu entrada na emergência
e cou internada por cinco dias, com suspeita de intoxicação alimentar.
Tayane também quase morreu ao tomar por engano um Chamyto batizado.
“Filha, bebe leite urgente que você melhora”, receitou Mãe Flor à sua “ lha”
cantora. A essa altura, a família inteira já sabia do plano de Queturiene, mas
ninguém disse nada. Pelo contrário, mantiveram segredo e até se
articularam para evitar que os alimentos da geladeira destinados a Anderson
fossem parar no estômago de pessoas erradas.
Certa vez, no carro, a caminho do cinema, Carlos Ubiraci alertou
Wagner: “Misael, quando você for lá em casa, não bebe nem come nada
porque ela [Flordelis] está tentando matar o Niel [Anderson]”. Alexsander
“Luan” também tomou conhecimento da tentativa de homicídio e se calou.
“Estou botando remédio na comida do Niel. Mas ele é tão ruim que não
morre”, confessou Simone ao “irmão”. Numa mensagem enviada para o
celular de André Luiz, Flordelis chega a ser debochada ao pedir para o
“ lho” tentar eliminar o “pai”: “Faz o Niel comer um arrozinho ou um
franguinho porque falta pouco para a gente se livrar desse traste”. De tanto
ser envenenado, o pastor foi internado seis vezes, mas resistiu. “Meu ‘pai’ é
um touro”, comentou Carlos Ubiraci com Wagner ao se referir à resistência
de Anderson. Ele atribuía as dores no estômago a uma gastrite aguda por
causa do estresse da campanha eleitoral da esposa.
Ao falar dos planos para matar o marido, Flordelis deixava rastros pelo
caminho que serviriam de provas contra ela. No dia 13 de outubro de 2018,
um sábado, Flamengo e Fluminense entraram em campo no Maracanã, às
17h, pela 28ª rodada do Campeonato Brasileiro. Rubro-negro fanático,
Anderson foi ao estádio com Flordelis e pelo menos 20 “ lhos”. O placar
nalizou 3 a 0 para o Flamengo. O pastor cou eufórico. Na hora de voltar
para casa, no entanto, disse que só a esposa e Danielzinho entrariam no
carro. O resto que se virasse para voltar como pudesse. Flor tentou
interceder, pedindo que dessem carona pelo menos aos mais chegados,
como André Luiz, ex-marido de Simone. O pastor se mostrou irredutível.
Ao lado do esposo, no veículo, Flordelis pegou o telefone celular e iniciou
uma conversa por mensagem com André Luiz, indignado com a postura do
“pai”. “André, estou revoltada!”, escreveu Flor. “Calma, mãe. (...) Na boa, eu
não tenho pena dele. Se ele morrer hoje, acho que nem choro de tanta raiva
que estou”, disse o “ lho” pelo celular. “Pelo amor de Deus, André. Vamos
pôr um m nisso. Estou implorando. Me ajuda. Será a nossa independência
nanceira. (...) Até quando vamos ter de aguentar esse traste no nosso
meio?”, questionou. “Mãe, estou com a senhora. Não dá para eu fazer muita
coisa. Mas estou com a senhora!”, respaldou André. “Filho, vou te explicar o
que vamos fazer. Vem comigo que é algo simples. É só focar que a gente
acaba com isso de uma vez. Em uma semana a gente consegue pôr um
ponto- nal nessa história”, nalizou Queturiene.
Depois do jogo do Maracanã, os planos de executar Anderson ganharam
outros contornos. Flordelis teve a ideia de contratar um matador de aluguel.
Marzy entrou em cena e escalou Lucas para a missão, oferecendo um cachê
de 5 mil reais, mais a coleção de relógios do pastor, para ele dar cabo do
“pai”. “O Niel está atrapalhando a vida da minha mãe. Aqui em casa
ninguém mais está aguentando. Você não quer dar m nele? Finge um
assalto, faz qualquer coisa... Podemos contar com você?”, perguntou a moça
pelo celular. Apesar de viver do crime, Lucas cou estarrecido com a
proposta e se negou a participar do plano. Marzy mandou outras mensagens
para o “irmão” com prints da tela de um telefone em que era possível ver que
a ordem de matar Anderson vinha de Flordelis – e o escolhido para a missão
era Lucas. Para se certi car de que a “mãe” realmente havia dado aquele
comando, o tra cante mostrou tudo a Flor, que ngiu espanto. “Olha que
absurdo! Isso é coisa de Marzy!”, desconversou. Em seguida, Queturiene
pegou o aparelho das mãos de Lucas e apagou as mensagens
comprometedoras. “Esquece isso, lho!”, ordenou a matriarca.
Toda a conversa entre Marzy e Lucas acabou no tablet de Anderson,
sincronizado com o celular dela. Um texto digitado por Flordelis falando
dos planos de assassinato foi escrito no bloco de notas do iPad e apagado na
sequência. Mesmo assim, ele viu. É incrível que Anderson tenha feito tão
pouco caso do complô diabólico para assassiná-lo. “Misael, estão querendo
me matar. Você acredita? A Marzy ofereceu 5 mil reais ao Lucas para me
matar. Olha aqui no meu iPad”, falou, com naturalidade.
Anderson acreditava que a “ lha” queria eliminá-lo por ter sido expulsa
de casa após o furto dos 5 mil reais, que, por ironia, seriam usados para
executá-lo. “Pai, se liga! A Marzy não tem onde cair morta”, ponderou
Wagner, escondendo do religioso as tentativas de envenenamento ocorridas
havia pouco. Anderson reuniu toda a família em casa e falou que estava
sabendo do plano sórdido. Disse que tinha sido duro em alguns momentos,
mas que faria um esforço para melhorar como “pai” e marido. No nal, teve
abraço coletivo e até lágrimas. Mas nada faria Queturiene mudar de ideia.
Flordelis repassou 5 mil reais em dinheiro vivo a Simone e ordenou que
Rayane fosse aliciada para o crime. Hebreia deu o dinheiro à “ lha” e
orientou: “Convida o Lucas mais uma vez. Ele já tem cha suja mesmo, já foi
preso. Mais um crime nas costas dele não fará a menor diferença”.
Obediente, Rayane entrou em contado com o “tio”. “Você não quer matar o
pastor? Esse crápula tá fazendo um monte de coisa ilícita aqui em Brasília.
Tenho 5 mil reais para o serviço. Você pode contratar um matador por 2,5
mil e car com o restante”, sugeriu Rayane, reiterando que Lucas caria
também com a coleção de relógios. O jovem recusou mais uma vez. “Fala
para Mãe Flor que sou tra cante, não assassino!”, retrucou. Rayane, então,
contratou pessoalmente um assassino de aluguel. No acerto, o criminoso
receberia 5 mil após eliminar o pastor na saída da igreja, simulando um
latrocínio. Mas o plano não deu certo, porque Anderson havia trocado de
carro e o pistoleiro cou confuso com as coordenadas. Mesmo sem fazer o
serviço, o bandido fez a cobrança. Rayane se recusou a pagá-lo e foi
ameaçada de morte. Flordelis, então, deu 2 mil reais a André Luiz e mandou
o “ lho” pagar o bandido.
Depois de várias tentativas fracassadas, Flordelis encontrou uma solução
de nitiva para se livrar do marido: ela teria repassado 8.500 reais a Flávio,
lho biológico, que foi com Lucas até Nova Holanda, complexo de favelas da
Maré, onde compraram uma pistola Bersa de 9 milímetros. O plano, dessa
vez, era bem simples. Flordelis teria que tirar Anderson de casa na noite de
16 de junho de 2019, um domingo. Na volta, ele seria alvejado. Queturiene
usou como isca uma comemoração atrasada de Dia dos Namorados, regada
a muito sexo na praia. O pastor se empolgou e os dois saíram num Honda
esportivo. Segundo relatos da assassina, atravessaram a ponte Rio-Niterói e
chegaram a Copacabana. Passearam pelo calçadão, comeram iscas de peixe
num quiosque e se beijaram ardentemente. Molharam os pés na água do
mar e se beijaram com intensidade mais uma vez. Queturiene estava com
um vestido preto esvoaçante e Anderson usava bermuda e camiseta branca.
Na narrativa romântica da missionária, ele teria perguntado: “Amor, já disse
hoje que eu te amo?”. Flor respondeu “não”. “Eu te amo!”, teria dito ele. “Não
ouvi!”, devolveu a criminosa. Anderson subiu numa cadeira em pleno
calçadão e, de braços abertos como o Cristo Redentor, gritou três vezes: “Eu
te amo! Eu te amo! Eu te amo!”. Em seguida, foram para uma praia deserta e
transaram no capô do carro. Nunca se saberá se essa narrativa poética é
verdadeira ou falsa. A polícia acredita que a história seja ctícia, pois o
trajeto do carro feito por eles não aparece nas câmeras de segurança
instaladas na Avenida Atlântica, por exemplo.
No caminho de volta para Niterói, Flor mandou uma mensagem a Marzy
pedindo que Flávio se preparasse para o bote. Por volta das 3h30 da
madrugada, Anderson, de 42 anos, entrou com o carro na garagem. A
mulher desceu rapidamente, para deixá-lo morrer sozinho. Ao lado da
garagem, havia uma porta de acesso ao closet da casa. Anderson entrou no
compartimento e tirou a roupa, cando apenas de cueca. O pastor voltou ao
carro e Flordelis seguiu para o quarto do neto Ramon Oliveira, de 20 anos.
Flávio foi até a garagem e disparou quatro vezes contra o “pai”. Atingido a
curta distância na cabeça – dentro do ouvido direito – e no peito, ele morreu
na hora. Depois de cair no chão, recebeu mais dois tiros na genitália,
sugerindo vingança pela série de abusos sexuais que cometera ao longo dos
anos. Como o calibre da pistola Bersa é trans xante, cada disparo produziu
mais de uma perfuração, totalizando mais de trinta orifícios no corpo da
vítima. Logo após os disparos, a casa festejou a morte do patriarca. “Ele
morreu! Ele morreu!”, gritavam e pulavam em círculos Simone, Flávio,
André Luiz e Flordelis. Ramon, lho de Simone com André Luiz, teria ido
até a poça de sangue ao lado do corpo e catado, com as mãos, as cápsulas do
cartucho. “Sem bala, não há crime”, comentou, ingênuo. André Luiz foi
encarregado de ligar para a emergência. Ao telefone, às 3h40 da madrugada,
ele falou com o médico socorrista Lucas Silva Camargo:
– Samu Rio, bom dia! Qual a sua urgência? – perguntou o médico.
– O nosso pai, seu moço. Ele foi baleado! – disse André Luiz, forçando o
choro.
– Desculpa, seu pai foi o quê? Baleado?
– Baleado!
– Nome do paciente?
– Anderson do Carmo.
– Mas ele está vivo?
– Não sei, moço!
– Então vai lá ver para mim, por favor!
– Não tenho coragem!
Nesse momento, André Luiz passou o telefone para o lho, Ramon, que
continuou a conversa com o atendente sem demonstrar qualquer emoção:
– Fala comigo! Pode falar. Meu nome é Ramon!
– Você é o que do Anderson?
– Ele é meu avô! Então, pelo que eu tava vendo ali, ele já foi. Já se
passaram mais de dez minutos. Então não adianta nem fazer ritual de
ressuscitação – explicou o lho de Simone.
– Mas ele está com o corpo quente, não tá?
– Sim!
– Está bem. Então vou pedir uma viatura para ele.
Enquanto a ambulância não chegava, o atendente do Samu instruiu
Ramon a fazer procedimentos de primeiros socorros. Ele se recusou,
insistindo que o avô já estava morto e que alguém tinha de retirar o cadáver
de lá o mais rápido possível, pois a garagem estava encharcada de sangue. O
senso prático do neto da vítima chamou a atenção do atendente do Samu.
“Ele estava muito calmo”, reiterou Lucas Silva Camargo, médico socorrista,
em maio de 2022. A frieza de Ramon ao anunciar a morte do avô tinha
explicação num fato do passado. Homossexual assumido, ele tinha 14 anos
quando contou à mãe gostar de meninos. Apavorada com o per l violento
de Anderson, Simone pediu ao lho que escondesse o quanto pudesse sua
orientação sexual, pois tanto o “pai” quanto Flordelis pregavam na igreja que
homossexualidade era coisa do Diabo. Num culto na Cidade do Fogo com
toda a família na plateia, incluindo Ramon, Queturiene disse com toda a
veemência do mundo: “Podem me prender. Eu vou para a cadeia satisfeita.
Mas vou continuar dizendo que prostituição e homossexualidade não são de
Deus! O meu Deus fez homem e mulher. O que passar disso é procedência
maligna. Me processem! Me prendam! Mas eu não vou negar Jesus!”. No
nal, todo mundo bateu palma, menos Ramon e duas garotas de programa
que pernoitavam na casa de Niterói disfarçadas de “ lhas” de Mãe Flor.
Quando Anderson descobriu que o neto era gay, para surpresa de toda a
grande família, ele não falou nada. No entanto, ele passou a assediá-lo.
Quando tinha 14 anos, Ramon estava tomando banho e Anderson entrou no
banheiro para urinar. O pastor pôs o pênis para fora da bermuda e cou
observando o corpo nu do adolescente. Excitado, Anderson trancou a porta
e se masturbou enquanto encarava o neto. Na casa de Niterói, o melhor
amigo de Ramon era Danielzinho, o falso lho biológico de Flordelis e
Anderson. Os dois adolescentes tinham a mesma idade e andavam
grudados. Não demorou muito para surgirem burburinhos de um possível
relacionamento homoafetivo entre eles, já com 16 anos. “Você acha que eles
estão se pegando?”, perguntou Anderson a Flordelis. “Não! Imagina! O
Danielzinho é heterossexual”, respondeu a pastora. “Mas você sabe como são
esses veados. Eles conseguem desviar o nosso caminho”, ponderou
Anderson, prometendo acabar com o suposto caso entre os rapazes. Numa
noite de domingo, Anderson passou em casa com dois amigos pastores e
levou Danielzinho e Ramon, dizendo que ia dar uma volta. Num terreno
abandonado, os três começaram uma sessão de tortura. Armados, eles
perguntavam se os meninos eram um casal. Chorando, Danielzinho disse ao
“pai” que gostava de meninas. Ramon cou calado. Anderson levou o “ lho”
de lá e deixou o “neto” com os dois pastores adultos, que o violentaram
sexualmente.
Anderson foi velado no Ministério Flordelis no dia 17 de junho de 2019.
O sepultamento ocorreu no mesmo dia, no Memorial Parque Nycteroy, em
São Gonçalo, região metropolitana do Rio. No funeral, Flordelis chorou feito
viúva de novela. Cínica, falou em latrocínio e disse que o marido morreu
para salvar a família. A polícia, porém, já descon ava de uma execução, pois
não havia sinais de roubo na casa. O primeiro a ser capturado foi Lucas.
Flávio foi detido ainda no cemitério, por causa de um mandado de prisão
referente aos espancamentos contra a ex-mulher. Na cadeia, ele confessou
ter matado o “pai” em razão dos abusos sexuais cometidos contra Simone,
sua irmã biológica, e outras mulheres da casa. Adriano, o Pequeno, também
foi preso por envolvimento no crime. Na sequência, foram encarcerados
André Luiz, Marzy, Carlos Ubiraci e Rayane. Flordelis só não teve a prisão
decretada porque tinha imunidade parlamentar, mas ganhou uma
tornozeleira eletrônica para ser localizada rapidamente pela delegada
Bárbara Lomba todas as vezes em que era intimada a depor no inquérito.
A morte do pastor Anderson causou um racha na grande família.
Wagner “Misael” e Alexsander “Luan” passaram a colaborar com a Justiça.
Flordelis acusou “Misael” de ter sumido com todo o caixa 2 da igreja,
avaliado num montante de 6 milhões de reais. Esse dinheiro seria composto
pela arrecadação dos templos do Ministério Flordelis, cuja receita anual
seria de 2 milhões de reais.
Danielzinho saiu da casa logo após o crime e foi morar com “Misael”. No
bojo do inquérito que investigava a morte do “pai”, ele cou em estado de
choque ao descobrir, aos 21 anos, que havia sido roubado da mãe biológica.
Na casa de Niterói restaram apenas os “ lhos” que defendiam a inocência da
supermãe. Em 2022, o nanciamento do imóvel ainda estava em nome dos
irmãos Werneck, que já haviam pedido para o que restou da centopeia
humana dar um jeito de assumir a dívida ou cair fora de lá.
Solta, Flordelis não parou de causar. Assumiu o relacionamento com o
produtor musical Allan Soares e gravava vídeos beijando o jovem à noite, na
praia. “Oi. Ai, gente! Estou no Recreio dos Bandeirantes com o meu amor. O
lugar é lindo como o Allanzinho”, declarou. Até então, esses vídeos eram
publicados em per s sociais com acesso privado. No entanto, quando
Flordelis completou 60 anos, ele postou uma foto de rostinho colado com
ela em seu status do WhatsApp e a imagem saltou de lá para o noticiário. O
romance de Flordelis com o jovem irritou sua banca de advogados, liderada
pela criminalista Janira Rocha. Mas a advogada fez uma ponderação: “Esse
romance é um escândalo porque a sociedade é muito conservadora. Mas
também é um alento para a Flordelis, porque foi no novo amor que ela
encontrou forças para enfrentar o que estava por vir. Sem esse rapaz, ela
teria sucumbido”, justi cou. O cialmente, o romance de Mãe Flor com Allan
começou em agosto de 2021, dois anos após a morte do pastor Anderson.
Com receio de perder sua amada para uma sentença condenatória, o
produtor musical levou Queturiene para o alto do Monte Raiz da Serra para,
junto com a grande família, fazer um apelo aos céus. Flordelis vestiu-se de
preto, pôs uma peruca ruiva e pregou lá do alto, pedindo um milagre.
“Receba o meu sacrifício. Estou subindo esse monte em busca do Teu
socorro. (...) Ainda que um Exército se levante contra mim, cuida da minha
família”. Na sequência, foi feito um pedido para Deus intervir no processo de
cassação do mandato de Flordelis. “Meu Deus, intervenha na Câmara dos
Deputados. Causa confusão no meio dos homens, Pai, para dar vitória à Tua
lha (...). Meu Deus, visita todos os tribunais de Justiça da Terra agora neste
Rio de Janeiro e neste país chamado Brasil. Não é amanhã, Jeová. Também
não é depois de amanhã, Jeová! É hoje! É agora! Eu não sou estrela! Eu sou a
Tua serva. Eu estava num beco de uma favela onde ninguém me enxergava.
Mas o Senhor me enxergou. Eu subo a este tribunal para pedir de novo:
quero a Tua presença na minha vida!”.
Ao mesmo tempo que a rmava amar Allan, Flordelis dizia sentir falta de
Anderson. Esse paradoxo cou mais evidente no documentário sobre o
crime – Em nome da mãe, da HBO –, no qual a assassina deu diversas
entrevistas e se deixou lmar mediante pagamento de cachê. Numa das
tomadas, ela surge no cemitério agarrada à sepultura do pastor. Feito atriz
mexicana, Flordelis se esparramou sobre o túmulo do ex-marido que ela
mesma mandou matar. No auge da cena, tentou arrancar a lápide. “Metade
minha está aqui com você. Eu não tenho mais paz de tanto pensar nas coisas
que descobri depois que você morreu. [...] Vem me ajudar, amor. Eu não
matei você! Diz que é mentira tudo o que estão falando! Diz que é mentira,
amor!” Depois da tomada, ela saiu sorridente para jantar com o namorado.
Prestes a ser presa, Flordelis fazia cultos em seu ministério exibindo a
tornozeleira eletrônica e pregando inocência. “Puseram na minha perna o
acessório do Diabo. Acontece que Deus é mais e esse tipo de energia
negativa não bate em mim”, pregava, rindo. Orientada pelos primeiros
advogados de defesa, escreveu de próprio punho uma carta de três páginas
passando-se pelo lho Lucas e assumindo exclusivamente a autoria do
crime. “Contratei pessoas para matar o pastor a mando de Misael (Wagner)
e Luan (Alexsander)”, diz um trecho da correspondência. A ideia de Flor era
incriminar os querubins preferidos do religioso, que àquela altura das
investigações já acusavam a matriarca em depoimentos. Para fazer Lucas
assumir tudo, Flor havia prometido ao jovem tra cante os melhores
advogados do mundo para defendê-lo de todos os crimes, um carro zero-
quilômetro e uma passagem só de ida para os Estados Unidos. Para a carta
falsa chegar até ele, entrou em contato com Andrea Santos Maia, de 45 anos,
esposa do miliciano Marcos Siqueira, de 49, condenado a dois séculos de
prisão por ter participado da chacina da Baixada Fluminense, em 2005, com
saldo de 29 mortes. O bandido e Lucas estavam na mesma cadeia; por
exercer a função de faxineiro, Marcos circulava em todas as galerias. Por 2
mil reais – valor pago por Flordelis com transferência bancária e
comprovante enviado por celular –, Andrea repassou a carta para o marido,
que a fez chegar até Flávio para que a entregasse ao “irmão”. Lucas, então,
copiou o texto, e a mensagem com sua caligra a fez o caminho de volta. Na
sequência, a pastora deu uma entrevista ao Fantástico dizendo que tinha
recebido uma carta muito triste, na qual o lho Lucas confessava tudo. “Meu
coração está dilacerado”, lamentou a impostora. O plano não deu certo:
Flordelis, Andrea e o miliciano foram descobertos e indiciados por fraude
processual.
A família de Anderson, enquanto isso, parecia viver uma maldição. Três
meses após o assassinato, sua irmã, Michelle, morreu aos 39 anos vítima de
uma anemia provocada pelos efeitos devastadores da Aids. Em abril de 2020,
a mãe, Maria Edna, teve um infarto aos 65 anos, enquanto via televisão em
casa. Chegou a ser hospitalizada, mas não resistiu. O terceiro a partir foi o
pai, Jorge de Souza, que enfartou em dezembro de 2021. Tinha 81 anos e
atuava como assistente de acusação no processo movido contra Flordelis e
seus lhos.
Quatro meses antes da morte do sogro, Flordelis teve o mandato cassado
por seus pares em 11 de agosto de 2021. Para ela perder o posto de deputada
e, consequentemente, sua imunidade parlamentar, seriam necessários 257
votos (maioria absoluta) dos 513 deputados federais. No dia da votação, 437
votaram a favor da perda de mandato, 7 foram contrários e 12 se abstiveram.
Para tentar salvar o cargo da mãe, Simone confessou na Câmara dos
Deputados ter mandado Flávio matar o pastor. “Fiz tudo sozinha. Minha
mãe não tem nada a ver com isso”, mentiu. Com a cassação, a prisão de
Queturiene foi decretada pela Justiça dois dias depois, na sexta-feira, 13 de
agosto de 2021. Na cultura ocidental, tanto o número 13 quanto a sexta-feira
são associados ao azar por causa da morte de Jesus Cristo – a última ceia
aconteceu em uma quinta-feira, um dia antes da cruci cação, na presença
dos 12 apóstolos, totalizando 13 pessoas na refeição. Entre eles, porém,
estava Judas, discípulo traidor, comparado por Flordelis a Wagner “Misael”.
No intervalo de 12 horas entre a juíza Nearis dos Santos Arce assinar o
mandado de prisão da deputada federal cassada e sua captura, houve um
ritual de preparação, algo tão surreal quanto sua biogra a desde a adoção do
primeiro “ lho”. O ato inicial foi retirar a lace, um tipo de peruca (prótese)
feita sobre uma tela de microtule. Os os eram colocados um a um sobre o
tecido, o que permitia um efeito semelhante ao couro cabeludo. Flor levou
quase uma hora para retirar o acessório e outra para alisar, à base de ferro
quente, seus cabelos naturais. Em seguida, uma esteticista aplicou botox em
seu rosto para ela debutar no sistema prisional com a pele esticada. O
momento em que a pro ssional pintava seu rosto com o lápis branco para
saber onde aplicar a agulha soou irônico. “Faz cara de raiva! Faz cara de
nojo! Faz cara de medo! Faz cara de susto! Agora sorri forte!”, pedia a
esteticista. “Já que vou ser presa, entrarei na cadeia bonita”, decidiu. Em
seguida, chegaram um podólogo e uma manicure para tratar da beleza das
unhas. Quando nalizava os cabelos, já no início da noite, os policiais
bateram à sua porta com um o cial de Justiça e a ordem de prisão,
Queturiene se desesperou. “Acabou! Acabou! Acabou!”, gritava aos prantos e
descontrolada pela casa. Só sossegou depois de tomar três remédios:
alprazolam, bromazepam e diazepam.
Flor pediu um momento aos policiais para se recompor, pegou uma
Bíblia e dirigiu-se a seu quarto para gravar um vídeo de despedida. “Olá,
povo de Deus. Eu quero clamar por todos os cristãos do Brasil inteiro. Que
orem pela minha vida, que façam uma corrente poderosa de orações. Estou
indo presa. Mas estou indo de cabeça erguida, porque não z nada! Não
cometi nenhum crime! Não sou uma assassina! Não mandei matar o meu
marido! Não sou mandante de nenhum crime. Não sei por que Deus está
permitindo que eu passe por tudo isso. Para tudo, Nosso Senhor tem um
propósito. [...] Clamem ao Altíssimo pela minha vida! Vou presa com a força
de Deus! Vamos embora, gente, porque eu sei que no nal disso tudo vai ter
uma volta por cima!”.
Levada à penitenciária Talavera Bruce, Queturiene continuou
aprontando traquinagens enquanto aguardava pelo julgamento. Pastora das
detentas, foi alojada na cela das presidiárias grávidas. Começou a fazer
cultos nas galerias, atraindo éis. Dava autógrafos em Bíblias, cantava suas
canções e trocava cartas de amor com Allan Soares. Para manter visitas
íntimas com o rapaz, tentou se casar com ele. Mas sua advogada, Janira
Rocha, desaconselhou o enlace para não prejudicar o julgamento. “Você é
acusada de matar seu marido e quer se casar com outro. O que você acha
que a opinião pública vai pensar?”, alertou. “Mas é ele quem quer”, insistiu
Flor. Na cadeia, recebia a visita da “ lha” Isabel, da mãe Carmozina e da
irmã Laudicéia, que pedia dinheiro em todos os encontros. “Bem que eu te
avisei que seu destino seria trágico, lembra? Não há oração capaz de te tirar
desse inferno. E suas desgraças estão só começando”, previu Carmozina.
Quando Flordelis chegou à penitenciária, quem mandava e desmandava
lá dentro era a bandida conhecida como dona Idalina Cabeluda, de 75 anos,
condenada a um século de prisão por uma série de crimes, como trá co,
assaltos a bancos e latrocínios. Ela estava na Talavera Bruce havia 20 anos e
era respeitada porque tinha cinco lhos ligados ao Comando Vermelho e a
milicianos. Num domingo de sol, Flordelis passeava pelo pátio da
penitenciária quando viu de longe sua arquirrival dos tempos do
Jacarezinho. Sandra Sapatão fora visitar uma colega chamada Jerusa Rabiola.
Para evitar confusão, Flor não se aproximou da inimiga, que estava em
liberdade. A tra cante cochichou com sua parceira ao mesmo tempo que
encarava Queturiene de forma sinistra. À noite, Flordelis fez um culto na
sua galeria, que lotou de criminosas. Entre elas estava um trio de tra cantes
e a tal Jerusa Rabiola. Quando as detentas fecharam os olhos para orar, a
parceira de Sandra Sapatão se aproximou de Flordelis e deu um empurrão
nela. O trio de tra cantes, então, deu uma rasteira em Jerusa e atacou-a com
chutes e socos até ela desmaiar. Como punição, as três agressoras foram para
o chapão, como é conhecida a solitária. No dia seguinte, Flordelis soube que
Idalina Cabeluda estava acamada por causa de uma trombose. A pastora se
ofereceu para liderar uma roda de orações que curasse a criminosa. Com
autorização da diretoria da penitenciária, passou 24 horas fazendo o ritual
com outras mulheres do bando da líder. Ao nal desse período, um milagre
aconteceu: Idalina se curou e todos os créditos foram atribuídos a
Queturiene. Com isso, Flordelis passou a ser protegida da bandida e por
todo o Comando Vermelho. “Ai de quem encostar um dedo na bruxa do
Talavera Bruce”, avisou Idalina. Aconselhada pela direção da penitenciária,
Flordelis estreitou laços com Jerusa e as duas caram amigas. Quando o trio
de tra cantes saiu do chapão e viu Flordelis com a cabeça no colo da ex-
rival, houve uma ameaça de morte concreta: “Sua crente lha da puta! Nós
fomos parar na solitária para te proteger dessa ordinária e agora você está de
conversinha com ela. À noite, quando as luzes se apagarem, seu CPF será
cancelado!”. Enquanto o trio ameaçava Queturiene, Dona Idalina se
aproximou e deu um recado curto e grosso. “Se vocês tocarem num o de
cabelo da Flor, mando um ‘salve’ para a rua e amanhã a família das três
estará no necrotério, suas piranhas de cadeia”, avisou. O trio escafedeu-se de
perto de Mãe Flor, a protegida da líder.
Com poder na cadeia, Flordelis passou a ter regalias. Morta de saudade
do namorado, ela pegou um celular emprestado de uma bandida e ligou
para Allan. Flagrada, foi punida: com aval de Idalina, as detentas a
espancaram pelo vacilo. “Dá uma sova para ela aprender a ser discreta”,
justi cou a líder. Em outra ocasião, ela foi pega com 70 reais escondidos na
genitália. Seus advogados disseram que o dinheiro serviria para pagar uma
extorsão da qual Florzinha era vítima. Para a pastora não car sem proteção
dentro da Talavera Bruce, seus advogados tiveram de costurar um acordo
com o Comando Vermelho.
Deprimida na prisão, ela mandou uma carta de amor para Allan dizendo
que a pior coisa da cadeia era a abstinência sexual. Como eles não se
casaram, não podiam ter visitas íntimas. Allan respondeu para a amada com
um texto cheio de esperança: “Você transformou a minha vida. És uma
mulher forte, guerreira, incrível e por quem eu me apaixono todos os dias.
Estamos há praticamente 1 ano e 6 meses sem convívio. Mas como é bom
poder, depois de Deus, cuidar de você mesmo de longe. Essa luta não vai nos
fazer parar, vai passar! Eu te desejo vida, saúde, muita saúde, e que Deus
continue te abençoando e te sustentando. A volta por cima vai chegar e está
próxima. Deus vai nos surpreender. Obrigado por ser a mulher da minha
vida. E mesmo com todas as nossas diferenças, posso dizer que eu te amo!”.
Meses depois, o produtor musical fez uma adaptação dessa carta e postou
em suas redes sociais como mensagem de aniversário pelos 62 anos da
namorada. Como retribuição, Flordelis pediu autorização ao sistema
penitenciário do Rio de Janeiro para se casar o cialmente com ele. O
primeiro passo nesse sentido foi excluir da sua carteira de identidade o
sobrenome do marido, que ela mesma mandou matar. O segundo passo foi
selar a união estável.
No seio familiar de Flordelis, o namoro dela com Allan divide opiniões.
O rapaz se apropriou das redes sociais da pastora tão logo ela foi presa,
gerando descon anças em suas intenções. Desde que começou a namorá-la,
Allan se esforça para ganhar seguidores nas redes sociais e ganhar fama. Seu
maior sonho depois de se casar com Flordelis é se apropriar dos direitos
autorais das gravações da cantora. Tanto que ele já procurou por um
advogado para saber o que, de fato, ele ganha ao se casar com Queturiene.

* * *

No banco dos réus, os querubins de Mãe Flor tiveram destinos


diferentes. Para Flávio, matador confesso, a sentença foi de 29 anos e dois
meses de prisão por homicídio triplamente quali cado, porte ilegal de arma,
uso de documento ilegal e associação criminosa armada. Comprador da
pistola, Lucas foi condenado no dia 23 de novembro de 2021 a 7 anos e meio
por homicídio triplamente quali cado – sua pena foi reduzida por ter
colaborado com as investigações. Em 24 de janeiro de 2023, ele migrou para
o regime semiaberto. Carlos Ubiraci, absolvido das acusações de participar
das tentativas anteriores de assassinato, recebeu dois anos por associação
criminosa armada. Solto depois de passar um ano e oito meses encarcerado,
fundou uma igreja para pastorar as ovelhas do Ministério Flordelis, que teve
os templos fechados. Para seguir os passos de Mãe Flor, Carlos Ubiraci
começou a recolher crianças da rua. Adriano dos Santos Rodrigues, caçula
biológico da ex-deputada, foi condenado a 4 anos e seis meses por
associação criminosa armada e uso de documento falso ao envolver-se no
plano da carta. Já está em liberdade condicional. No mesmo julgamento,
ocorrido na 8a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, em
novembro de 2021, o miliciano Marcos Siqueira ganhou mais 5 anos em sua
pena de dois séculos por associação criminosa e uso de documento falso. Ele
chegou a rir dessa nova condenação. “Nem faz cócegas”, desdenhou. Sua
esposa, Andrea, que era ré primária, foi condenada a 4 anos pelo mesmo
crime do marido.
Em novembro de 2022, chegou a vez de Flordelis, Simone, André Luiz,
Rayane e Marzy enfrentarem o tribunal. O julgamento durou uma semana.
Contra os réus, depuseram Misael e Luan, entre outros. A favor de
Queturiene, compareceu o desembargador Siro Darlan. “Conheci o
Anderson como lho, depois ele se casou com a Flor e assumiu um
protagonismo tal que quem falava comigo não era a Flor, mas Anderson. Ele
assumiu uma posição de pai desses lhos/irmãos. Passou a ser um gerente, o
cara que decidia e comandava esse produto ‘família Flordelis’. Flor quase
nem falava comigo e, quando falava, estava sempre de cabeça baixa. Já o
Anderson, não. Anderson era o cara”, descreveu o magistrado. “Me perdoa!”,
exclamou Queturiene no nalzinho do testemunho dele. A delegada Bárbara
Lomba, que comandou a primeira fase do inquérito, foi taxativa em seu
depoimento: “Não havia o amor de pai e mãe naquela família. Flordelis e
Anderson conviviam juntos, seguiam um relacionamento aberto e
mantinham com as pessoas da casa relações de cunho sexual”. Titular da
segunda fase das investigações, o delegado Allan Duarte pontuou na Justiça:
“Flordelis tem predileção pelo absurdo. Ela prefere matar o marido a
provocar um escândalo junto à igreja”. Categórico, o investigador Tiago Vaz
a rmou: “Eram facções. Uma facção ajudou no cometimento do crime,
outra cou insatisfeita e acabou denunciando a existência desse conluio”.
Para proteger a mãe, Simone reiterou ser a mandante e saiu do tribunal com
uma pena de 31 anos de cadeia. Uma curiosidade: Hebreia riu várias vezes
durante o julgamento, mas também passou mal e recebeu atendimento
médico em outros momentos. Apesar de Marzy ter confessado que tentou
eliminar Anderson, foi inocentada pelo júri e ganhou a liberdade. Rayane e
André também foram absolvidos depois de carem presos por mais de um
ano. Na saída da penitenciária, Marzy manteve o que disse anteriormente:
“Tive, sim, a intenção de matar o pastor, mas desisti e não segui adiante. No
dia do crime, eu nem estava lá”. Ela garantiu que vai apoiar Queturiene até o
m dos seus dias. O Ministério Público recorreu da absolvição dos três.
Para o julgamento, Flordelis mudou o visual. Sem as tradicionais
perucas, surgiu no tribunal com cabelos claros e alisados, cortados na altura
dos ombros. Antes, gravou um vídeo aos prantos, contando ter sido abusada
por Anderson. A emoção soou falsa. No julgamento, ela também se esforçou
para derramar lágrimas, principalmente na hora de depor. Sua performance
era tão ngida que um jurado perguntou se o choro era verdadeiro. “É,
sim!”, garantiu. Na hora do veredicto, Flordelis se recolheu a uma sala
reservada e fez um intensivo de orações. A juíza Nearis dos Santos Arce
iniciou a leitura da sentença. “Os diversos disparos efetuados contra a vítima
de apenas 42 anos de idade concentraram-se em regiões vitais, como crânio,
tórax e abdome, sendo ele morto em horário de repouso noturno, no imóvel
de moradia também de inúmeros lhos adotivos e de criação, evidenciando
ainda mais a frieza e menosprezo pela vida humana durante a empreitada
criminosa praticada”, narrou a magistrada. “Eu não mandei matar meu
marido, meu Deus! Me escute, por favor!”, suplicava a pastora. “Houve
emprego de meio cruel, posto que Anderson foi alvejado por dezenas de
disparos de arma de fogo, inclusive na região próxima à genitália,
agonizando com imenso sofrimento até sua morte”, prosseguia a juíza.
“Deus, isso não é verdade! Não me abandone!”, insistia a deputada federal
cassada. “A ação criminosa evidencia, portanto, verdadeira e bárbara
execução, caracterizando uma demonstração explícita de ódio”, declamava a
magistrada. “Deus! Deus! Deus! O senhor é o juiz dos juízes!”, clamava a
cantora gospel. “É de extrema audácia da ré tentar imputar a pessoas
inocentes seu crime doloso contra a vida do marido”, arrematou Nearis.
“Pelo amor de Deus, eu sou inocente! Pelo amor de Deus, sou inocente!”,
apelou a supermãe aos céus. Não adiantou. O martelo da Justiça é ateu.
Flordelis foi condenada a 50 anos de prisão em regime fechado.
“Esse Evangelho não me serve mais!”

C
umprindo pena em regime fechado, Flordelis está atirando para todos
os lados na tentativa de deixar o cárcere. Às vezes, diz que quer um
novo julgamento porque houve inúmeras nulidades nos rituais de
condenação. Entre elas estaria a apresentação, pela acusação, de um
documento que não estaria no processo, o que di cultou a sua defesa. Outra
nulidade seria a menção ao silêncio dos acusados – segundo o Código do
Processo Penal, isso “não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.
Com base nesse argumento, seus advogados, liderados por Janira Rocha e
Rodrigo Faucz, pedem um novo julgamento para a assassina. Como esse
pedido de anulação do júri estava em análise, os defensores da pastora
entraram com um pedido de liberdade provisória em julho de 2023.
Outra tentativa de tirar Flordelis do xadrez é fazer a Justiça crer que ela
pode morrer na cadeia vítima de arritmia cardíaca. Por causa da suposta
doença, seus advogados querem que a pastora cumpra pena em casa, como
ocorre com outro líder religioso, João de Deus. Na contramão dessas
intenções, Flordelis pediu à administração penitenciária do Rio de Janeiro
para se casar dentro da cadeia com o produtor musical Allan Soares. “Não
vivo sem ele”, justi cou.
No dia 30 de março de 2023, Flordelis deu sua primeira entrevista depois
de condenada. De dentro da cadeia, Mãe Flor jurou inocência e clamou aos
céus por um novo julgamento e liberdade. Disse ter medo de morrer no
presídio, onde alterna a rotina cantando louvores e lavando roupas sujas de
outras detentas. Também falou do sonho em se casar com Allan e de pôr a
vida nos trilhos novamente. “Em liberdade, vou consertar os erros que
cometi na igreja e na vida”, prometeu. Na época, a viúva dividia a cela de 10
metros quadrados com outras seis detentas na Penitenciária Talavera Bruce,
uma das maiores do Rio de Janeiro. Depois da sentença, passou a ter a
companhia da lha Simone na cadeia. Prisioneira, Flordelis alternava
euforia com extrema tristeza. Ela tentava convencer a Justiça de que está
doente, para poder cumprir a pena em casa:

1 – Como a senhora reagiu à sentença de meio século de


cadeia?
Meu corpo estava no tribunal no dia do veredicto. Mas a minha
alma cou encolhida na cadeia. Senti o peso da condenação. Foi
muito duro enfrentar tudo aquilo. Quando ouvi a sentença de 50
anos, um buraco se abriu sob meus pés. No entanto, a absolvição
de Marzy, Rayane e André Luiz me mostrou que posso ter um
novo julgamento. Hoje, minha esperança de ser inocentada vem
da con ança que tenho nos meus advogados, os mesmos que
conseguiram inocentar os meus lhos.

2 – Como a senhora leva a vida na prisão?


Como sou inocente, vivo na força da fé. Creio que os planos de
Deus para mim ainda sejam diferentes do destino que os homens
traçaram. Oro todos os dias para sair daqui.

3 – Quais são os seus planos?


Vou sair daqui em breve. Em liberdade, vou olhar para dentro de
mim e consertar todos os erros que cometi na vida e na igreja.

4 – Que erros são esses?


O maior deles foi ter entregue a minha vida ao meu ex-marido.
No casamento, me calei e me anulei para tudo. O evangelho no
qual fui criada me colocou como apêndice do pastor Anderson.
Esse evangelho dava a ele permissão para controlar a minha vida,
me violentar e me agredir permanentemente. Esse evangelho não
me serve mais. Peço às mulheres da igreja que saíam dessa vida o
quanto antes para não pararem aqui na cadeia como eu.

5 – Por que não confessa logo que mandou matar o seu


marido para, quem sabe, ter uma pena menor num possível
novo julgamento?
Jamais confessarei o que não z! Não matei Anderson do Carmo!
Nem mandei matá-lo! Pre ro car na prisão por 50 anos sendo
inocente do que bem menos tempo confessando o que não z.

6 – O que a senhora anda fazendo na cadeia?


Canto todos os dias para as outras presas ouvirem. Lavo roupas
sujas, minhas e das outras detentas. Também faço exercícios
físicos pulando corda.

7 – Quem lhe faz visitas? Seu namorado já apareceu por aí?


Não vou falar sobre isso porque a imprensa só tripudia. Não
quero prejudicar quem vem me visitar. Deixem essas pessoas em
paz!

8 – O que a senhora come no dia a dia?


Nunca fui muito de comer. Tomo café com pão e margarina. Às
vezes, dou as minhas refeições para outras presas.

9 – A senhora sempre foi muito vaidosa. Como se manter bela


na cadeia?
Quando tinha compromissos pro ssionais, eu era tão
pressionada a usar peruca e fazer botox que me tornei escrava da
beleza. Era um sofrimento sem m. Sou uma mulher preta.
Antes, meu cabelo era disfarçado porque tentavam me
embranquecer. Na penitenciária, isso acabou. Graças a Deus!
Não estou largada. Mas tudo é mais simples e leve. Hoje, sou
uma mulher presa, mas meu cabelo é livre. [Nesse momento,
Flordelis sorriu]

10 – A senhora tem 62 anos e foi condenada a 50. Tem medo


de morrer na prisão?
Hoje esse medo é real porque estou com arritmia. Já tive várias
crises e fui parar na emergência do Complexo de Bangu com
problemas sérios no coração. Esse medo aumentou porque os
médicos disseram que não têm os recursos necessários para me
atender aqui dentro.

11 – O que a senhora sente pelo pastor Anderson?


Antes, alternava sentimentos de saudades e ódio. Hoje,
reconheço todos os males que ele fez a mim, às minhas lhas e às
minhas netas, destruindo toda a minha família.

12 – Por que a senhora quer se casar novamente?


Estou condenada a 50 anos. Vivo da esperança dos meus
advogados e seus recursos na Justiça. Mas não tenho certezas,
sabe? Minha vida está literalmente nas mãos de Deus. Vou fazer
o que Ele gostaria que eu zesse. Não posso me relacionar
intimamente com Allan na cadeia sem estar casada com ele. Sou
cristã e acredito nisso. Não é porque estou presa que farei
diferente. Sei que as pessoas não acreditam em mim. É muito
difícil não pensar no pior. Minha relação amorosa com Allan é
uma das únicas coisas que me mantêm viva. Quando sair daqui,
vou refazer minha vida de forma diferente.
© 2023 - Ullisses Campbell
Direitos em língua portuguesa para o Brasil:
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Diretor editorial
Paulo Tadeu
Capa, projeto grá co e diagramação
Patricia Delgado da Costa
Edição e checagem
Gabriela Erbetta
Ilustrações
Félix Reiners
Revisão
Cida Medeiros
Fotos
Páginas 385, 386 e 387: Álbum de família
Página 388: Reprodução do processo
Páginas 389 e 390: Adri Felden
Páginas 391 e 392: Álbum de família
Página 393: Reprodução do processo
Página 394, foto 2: Reprodução do processo
Página 395, foto 1; Álbum de família, foto 2; reprodução do processo, foto 3; Processo penal
Página 396, foto 2: Redes sociais
Página 397: Arquivo do autor
Páginas 398, 399 e 400: Redes sociais
Foto do autor: Jonne Roriz

CIP-BRASIL - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Campbell, Ullisses
Elize Matsunaga: a mulher que esquartejou o marido / Ullisses Campbell. - 2. ed. - São Paulo: Matrix,
2023.
400 p.; 23 cm. (Mulheres assassinas)
ISBN 978-65-5616-360-4
ISBN 978-65-5616-357-4 (coleção)
1. Matsunaga, Elize, 1981-. 2. Enfermeiras - Biogra a - Brasil. 3. Criminosas - Brasil - Biogra a. 4.
Matsunaga, Marcos, 1970-2012 - Assassinato. I. Título. II. Série.
23-85396
CDD: 364.1523092
CDU: 929:343.611

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439


Sumário

APRESENTAÇÃO
CA PÍ TU LO 1
A ESQUARTEJADORA
CA PÍ TU LO 2
VÊNUS NUMA CONCHA
CA PÍ TU LO 3
É LUXO SÓ!
CA PÍ TU LO 4
A VOLÚPIA DA MULHER DISCRETA
CA PÍ TU LO 5
AS VITRINES
CA PÍ TU LO 6
A FLECHA VENENOSA DO CIÚME
CA PÍ TU LO 7
QUER PAGAR QUANTO?
CA PÍ TU LO 8
ONDE NASCE O PERDÃO
CA PÍ TU LO 9
A MORTE PEDE PASSAGEM
CA PÍ TU LO 10
PEDAÇOS DA VIDA
CA PÍ TU LO 11
SOM DE ASSOMBRAÇÃO
A VIDA EM PRETO E BRANCO
Para a minha mãe, Doraci Campbell, meu pai, Evandro
Campbell (in memoriam), e aos meus irmãos Marcello,
Wellington e Michelle, e sobrinhos.
Gratulação eterna aos meus guardiões jurídicos
Alexandre Fidalgo
Juliana Akel Diniz
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Agradecimentos especiais
Adri Felden (fotógrafa)
Alexandre Sposito (médico)
Assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São
Paulo
Berta Zemel – in memoriam (atriz)
Beto Ribeiro (jornalista)
Clarissa Oliveira (jornalista)
Cleide Pinheiro (empresária)
Dina Barcellos (estilista)
Drauzio Varella (médico)
Fábio Martinho (jornalista)
Fernando Raphael Oliveira (Federação de Tiro de Mato
Grosso)
Isabela Qader (psicóloga)
Jonne Roriz (fotógrafo)
Juliana Fincatti Santoro (advogada)
Leonardo Pontual (médico)
Lílian Tahan (jornalista)
Luciano Santoro (advogado)
Luiz Augusto Filizzola D’Urso (advogado)
Luiz Flávio Borges D’Urso (advogado)
Luiz Marcelo Negrini Mattos (promotor de Justiça)
Marcos Monteiro – in memoriam (radialista)
Mauro Dias (delegado de polícia)
Mitsuo Matsunaga (empresário)
Patrícia Kaddissi (advogada)
Rita Soares (jornalista)
Romeu Tuma Jr. (advogado)
Rosângela Maiorana (empresária)
Roseli Araújo Camarotto (técnica em enfermagem)
iago Maragno (praticante de caça de javali)
VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o per l de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio per l.
E os dois meios per s não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade
Uma salva de palmas

A
maioria das mil almas aprisionadas nas duas penitenciárias femininas
de Tremembé, no interior de São Paulo, matou com crueldade
integrantes da própria família. Com a bênção da Lei de Execuções
Penais, cerca de 200 mulheres do regime semiaberto nessas unidades
deixam a cadeia cinco vezes por ano. Elas ganham a rua para andar por sete
dias em datas festivas como Natal/Ano Novo, Páscoa, Dia dos Pais, Dia das
Mães e Dia da Criança. Em 10 de outubro de 2019, Elize Araújo Kitano
Matsunaga saiu pela primeira vez para dar uma volta, depois de car sete
anos encarcerada. Ao passar pelo portão de chapas metálicas do presídio, às
8h23, ela foi aplaudida por colegas de cela e populares. A cena foi
emocionante. Uma bandida gritou: “Vai, Elize! Vai cuidar da vida, que você
merece!”. A partir dessa salva de palmas, decidi esquadrinhar a vida da
mulher que matou e esquartejou o marido.
A pesquisa começou nas 3.500 páginas do seu processo penal e seguiu
até Chopinzinho, onde ela nasceu e foi estuprada pelo padrasto aos 15 anos.
Em Curitiba, estudou, trabalhou e se prostituiu nas horas vagas. Ao chegar a
São Paulo, casou-se e tornou-se criminosa. Também mergulhei nas quase 3
mil páginas do seu processo de execução penal, um material precioso
porque traça minuciosamente o per l psicológico da assassina. Toda a
pesquisa durou dois anos e o resultado dela está nas páginas seguintes.
Batalhadora, Elize tem certi cado em contabilidade, técnica em
enfermagem, leiloeira e diploma de bacharel em Direito. Ambiciosa, não se
contentou com o salário de pro ssional da área da saúde quando atuava em
um dos maiores hospitais privados de Curitiba. Nem sossegou no emprego
de assessora parlamentar na Assembleia Legislativa do Paraná. Subiu na vida
ao se conectar com o empresário Marcos Matsunaga, um predador sexual
extremamente violento. Excêntricos, amantes de armas e exímios caçadores,
Elize e Marcos foram feitos um para o outro. A simbiose entre os dois era
tão poderosa quanto explosiva. Impossível aquela história de amor não
acabar em tragédia.
Elize matou o marido no dia 19 de maio de 2012 com um tiro certeiro
na cabeça disparado num piscar de olhos, como ela mesma de niu. Passou
seis horas esquartejando a vítima em sete partes usando uma faca de
cozinha. Em seguida, distribuiu o corpo cortado em três malas e fez a
desova na mata. Na sequência, visitou os sogros e contou, vertendo lágrimas,
que Marcos havia fugido com uma amante. Ainda se deu ao trabalho de
enviar um e-mail se passando pelo marido morto, dizendo para ninguém
car preocupado porque estava tudo bem. Com esse enredo de lme de
terror, o crime tornou-se um dos mais emblemáticos do país.
Alguns personagens do livro, principalmente prostitutas e cafetinas,
tiveram o nome trocado porque impuseram o uso de codinome como
condição para colaborar com entrevistas e depoimentos. Amigos de Marcos
e Elize também pediram anonimato para fornecer informações importantes.
Com base nesses depoimentos, foi possível reconstituir momentos privados
entre Elize e Marcos e boa parte dos diálogos contidos no livro. Elize não foi
ouvida porque não quis falar. Por outro lado, sua versão para o crime, aqui
apresentada, foi extraída dos seus depoimentos à polícia e à Justiça.
Existe uma pergunta tão importante quanto nebulosa nesse enredo.
A nal, por que Elize matou o marido? Ela sempre sustentou que foi em
nome da lha, pois Marcos ameaçava internar a esposa num hospício e
temperava o prenúncio dizendo que juiz nenhum daria a guarda da menina
a uma prostituta louca e sem dinheiro. No entanto, amigos e parentes do
empresário asseguraram que ele nunca cogitou car com a criança após uma
possível separação. A própria Elize narrou num e-mail que Marcos se
afastou da lha quando o casamento começou a desandar. Solteiro, o
empresário levava uma vida mundana, promíscua, perigosa e libertária, ou
seja, totalmente incompatível com o per l de pai. Ele também nunca fez
questão da guarda da lha do seu primeiro casamento. No entanto, na
narrativa deste livro, a versão de Elize – “matei para não car longe da
minha lha” – se sobrepôs porque essa tese foi levada ao Tribunal do Júri e é
sustentada por ela de forma peremptória até hoje.
Elize sempre foi defendida nas ações penais e cíveis por dois ex-
professores, Luciano e Juliana Santoro, casal de advogados talentosos e
combativos. Segundo o defensor, sua cliente matou o marido num rompante
e o esquartejou para se livrar do corpo. É uma explicação muito simples para
algo tão brutal. Cinco psicólogas analisaram a mente de Elize em 2012, 2017
e 2018. Três pro ssionais concluíram que ela é psicopata. O diagnóstico
decorre principalmente do seu comportamento glacial nos 17 dias
decorridos entre matar e esquartejar o marido e confessar o crime. Outras
duas psicólogas refutaram o diagnóstico de psicopatia. Em comum, as
especialistas encontraram nela traços de narcisismo, imaturidade,
autoestima baixa e estrutura psíquica infantil.
O psiquiatra forense Guido Palomba, uma das maiores autoridades do
país em mentes criminosas, também traçou o per l de Elize. Em seu
relatório, escreveu: “Para agir dessa forma, obrigatoriamente a pessoa tem
que ser fria. Em outras palavras, sem ressonância afetiva com o próximo,
uma vez que a ação de esquartejamento pressupõe a ausência de
sentimentos altruístas. Isso porque o ato em si é deveras violento e chocante.
Se Elize tivesse um mínimo de sentimento superior de piedade e de
compaixão, próprios do altruísta, o esquartejamento não chegaria a ocorrer.
Se chegasse, seria a duras penas para ela, pois o seu psiquismo pagaria um
preço muito alto. Nenhum ser humano mentalmente equilibrado deixa de se
chocar ao ver uma carni cina”.
No dia 30 de maio de 2022, Elize ganhou liberdade condicional e foi
trabalhar como motorista de aplicativo e scal de obras. Os detalhes da sua
vida fora da cadeia, marcados por uma série de perrengues que, por pouco,
não a levaram de volta para a penitenciária, estão na atualização desta obra.
Para entender o que leva uma mulher a dar cabo da vida do marido, a nova
edição traz também outras histórias de esposas que mataram seus cônjuges,
suas motivações e arrependimentos – ou a falta deles.
Quando estava engrenando no ramo da prostituição, em 1999, Elize era
tão carente de afeto que costumava se apaixonar perdidamente pelos
clientes. Nessa época, uma cafetina experiente lhe fez um alerta: “Você
nunca vai mudar de vida se envolvendo com fregueses. Sabe por quê?
Porque eles vão te ver eternamente como prostituta”. Quando subiu ao altar
com um cliente, em 2009, Elize concluiu que a cafetina estava enganada.
Mas ela não estava. No ano em que foi assassinado pela esposa, Marcos
comentava com amigos: “Me casei com uma puta e minha relação com ela é
um programa sem m”. Ele também estava enganado. O programa teve m.
Marcos está morto. Elize está fora da cadeia cuidando da vida.
Às vezes, a morte merece ser festejada

S
ilêncio absoluto no meio da noite. De olhos bem abertos, Elize Araújo
Kitano Matsunaga, então com 29 anos, estava disposta a mostrar do
que era capaz. Emocionalmente fria, não sentia nada. Nem medo, nem
amor, nem compaixão, nem dor. Seu inimigo poderia entrar em cena a
qualquer momento, e ela estava determinada a matá-lo. Aquela morte tinha
sido planejada havia meses. No entanto, faltava uma janela de oportunidade.
Não seria uma tarefa fácil. Caucasiana, magra, cabelos soltos, 1,65 m de
altura, Elize sabia que o seu algoz era forte, grosseiro, desagradável, furioso e
bom de briga. O corpo dele era atarracado, com mais de 100 quilos de ossos,
músculos e muita estupidez. Estrangeiro, tinha cabeça grande, pernas curtas
e olhos miúdos.
Elize vestia calça de jeans escuro, blusa de malha de algodão marrom
terroso e, por cima, uma jaqueta da mesma cor, porém em tom mais claro.
Nos pés, botas rústicas de couro cru. Nas mãos, um ri e semiautomático CZ
512 de quase três quilos, calibre .22, coronha de madeira e cano forjado. Essa
carabina é famosa pelo fácil controle e excepcional precisão de tiro. Avaliada
em 13 mil reais em 2012, a arma foi importada legalmente dos Estados
Unidos e registrada em nome dela. Foi um presente do marido, Marcos
Kitano Matsunaga, de 40 anos na época.
A calmaria da cena foi rompida bruscamente, quando o antagonista
surgiu por trás dela de forma inesperada. Elize levou um susto, virou-se e
olhou diretamente em seus olhos. Destemido, o adversário avançou para
atacá-la. Nesse momento, a adrenalina reduziu a atividade cerebral de Elize
nas estruturas relacionadas às emoções e aumentou nas regiões da cognição,
dando a ela uma capacidade maior de raciocínio. Em fração de segundos,
ergueu a arma tão apressadamente que nem deu tempo de ajustar a
poderosa mira de ferro com lente e bra óptica. Fixou o alvo a olho nu. O
ri e semiautomático tinha capacidade para dez tiros seguidos, mas Elize
disparou apenas uma vez. Nas inúmeras aulas no Clube Calibre de Tiro, em
São Paulo, ela aprendeu que bala e ciente é aquela que acerta órgãos vitais,
como coração, pulmão ou rins – matando de forma instantânea. Naquela
situação, porém, ela preferiu acertar a cabeça.
O projétil entrou pela região da fronte anterolateral da vítima, deixando
uma queimadura na pele conhecida como zona de tatuagem. Percorreu o
crânio cônico numa trajetória de cima para baixo, causando traumatismo
cranioencefálico. A bala cou alojada na linha mediana, bem próximo da
união dos hemisférios cerebrais. O sujeito foi ao chão, debatendo-se e
grunhindo de forma estridente. Agonizante, começou a se afogar com o
próprio sangue, o que os médicos legistas denominaram de broncoaspiração
sanguínea, ou seja, quando o sangue é aspirado e vai parar nos pulmões.
Gélida, Elize largou o ri e e se ajoelhou para se aproximar do corpo
imóvel, que vertia uma torrente volumosa de sangue pelo buraco na testa e
pelo canto da boca. A atiradora cou estática, apreciando a vida se dissipar
pelos olhos da vítima. Chegou a comemorar o sucesso da execução com um
grito abafado. Ao se levantar, ela levou outro susto. A criatura passou a
estrebuchar no chão, como se levasse uma descarga elétrica. Elize, então,
pegou na mochila uma faca japonesa da marca Deba, cuja lâmina mede 21
centímetros, e perfurou o pescoço maciço do seu desafeto. O golpe acertou
em cheio as artérias carótidas primitivas da esquerda, responsáveis por
irrigar o cérebro, causando um derramamento ainda maior de sangue.
Aproveitando a faca encravada, Elize tentou decapitá-lo. Teve di culdades.
A arma branca não foi feita para partir ossos. Todas as vezes que era
mergulhada no corpo, a lâmina encontrava um obstáculo e entortava. É
difícil acreditar: aquele ser ainda respirava ofegante, agarrado a um apo de
esperança de sobreviver.
Para matar com as próprias mãos, são necessários três elementos
básicos: desejo, coragem e força física. Elize tinha só os dois primeiros. Mas
seguiu em frente. Com a mesma faca, plenamente decidida, conseguiu
concluir a degola cortando primeiramente a pele e os músculos do pescoço,
passando o instrumento a ado de aço inoxidável lentamente pelos tendões
que unem os ossos aos músculos. O desmembramento da cabeça ocorreu na
última vértebra cervical. A habilidade com objetos cortantes era fruto das
aulas práticas no curso de técnica de enfermagem, e principalmente
observando médicos cortando pacientes no centro cirúrgico do Hospital
Nossa Senhora das Graças, em Curitiba, onde trabalhou entre outubro de
2001 e abril de 2003.
Como não podia deixar o corpo estendido no chão, Elize decidiu
esquartejá-lo em sete pedaços. No entanto, não encontrou forças para
seccioná-lo sozinha usando apenas uma faca simples. Pediu ajuda a um
cúmplice, que entrou em ação com uma serra cirúrgica portátil com lâmina
de aço-carbono de 40 centímetros. Com o acessório alimentado por uma
bateria, o seu parceiro cortou os ossos com precisão e facilidade de
açougueiro. O ruído agudo da serra e o espalhamento de sangue davam à
cena um tom macabro. Ela continuou os trabalhos usando somente a lâmina
a ada. Os cortes de Elize eram uniformes e limpos. Os dele não tinham
padrão. Contudo, no nal da carni cina, os pedaços da vítima estavam
limpos e organizados. As peças eram proporcionais, como se eles tivessem
usado uma régua. Parece loucura, mas aquele corpo todo fatiado contava
uma história de amor. Os dois, juntos, embrulharam os membros do cadáver
em sacos plásticos biodegradáveis de lixo.
O que parece a narrativa de um crime extraído das páginas policiais de
um jornal popular é, na verdade, uma caçada implacável. Na vastidão da
noite, Elize havia matado um javali selvagem nas matas de araucárias do
município de Nova Aliança do Ivaí, no nordeste do Paraná, em novembro de
2010. Após abatê-lo, ela esquartejou e desossou o animal com a ajuda do
marido, Marcos Matsunaga. O animal desmembrado foi carregado num Jeep
para o hotel-fazenda onde estavam hospedados. Virou churrasco no dia
seguinte.
O javali (Sus scrofa) morto pelo casal Matsunaga, como todos os outros
que vivem no Brasil, é uma espécie exótica nativa da Europa, Ásia e norte da
África. As primeiras cabeças chegaram por aqui há mais de 50 anos para
criação em cativeiro. Na década de 1990, porém, parte dos criadores soltou
esses porcos selvagens na natureza. Sem predadores naturais, multiplicaram-
se criando uma superpopulação. Em bando, eles destroem manguezais,
nascentes de rios e avançam sobre colheitas, tornando-se o terror do
agronegócio. Uma manada de 100 animais destrói uma plantação de milho
em menos de uma hora. Como os javalis transformaram-se em praga
agrícola, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente,
autorizou a sua caça no Brasil mediante uma série de regras.
Um ano depois de aniquilar o javali no interior do Paraná, Marcos e
Elize zeram um curso avançado para aprender a matar alces no Canadá.
Uma das técnicas aperfeiçoadas foi justamente o esquartejamento de animal
em campo. O casal conseguiu licença para viajar com armas de fogo e
perseguir bichos selvagens na província de British Columbia, no extremo
oeste do Canadá. O local é marcado pela paisagem exuberante, composta
por uma cadeia de montanhas rochosas, rios, cachoeiras, ordes, lagos e
uma bela costa do Oceano Pací co. E também pela facilidade com que se
encontram alces na oresta. Na época do acasalamento, eles chegam a ir,
inocentemente, ao encontro dos caçadores. Lá, os bichos abatidos não
poderiam car no meio do mato por questões sanitárias. A regra era
simples: matou? Esquarteja e embala para viagem.
Na primavera de 2011, época da reprodução dos animais, Marcos e Elize
partiram para uma jornada destemida de caça. Fizeram safári de carro e
lancha por duas semanas. Ele matou com um fuzil de caça um alce enorme,
cuja galhada em forma de taça media dois metros de comprimento. Elize
não saiu do mato de mãos abanando. Conseguiu abater um faisão de dois
quilos e meio com a mesma artilharia usada para matar o javali no interior
do Paraná. Habilidosa com lâminas, coube a ela esquartejar o cervo do
marido. Depois de algumas aulas particulares com um caçador experiente,
ela corrigiu no Canadá um erro cometido ao esquartejar o javali no Brasil.
Nunca se deve dilacerar o animal logo após a execução. O ideal é esperar
algumas horas até o sangue coagular. Essa espera, porém, não pode ser
muito longa, principalmente em ambiente frio, pois a carne enrijece
rapidamente, di cultando o corte manual. Quando desmembrou o alce na
mata canadense, Elize já era uma exímia atiradora e esquartejadora. Ela não
tinha dó dos bichos mortos e mutilados pelas suas mãos. “Adoro ver o
animal me encarando com olhar triste antes de acertá-lo com um tiro”, dizia
ela. De nitivamente, caçar não é apenas um esporte no qual o homem se
arma e persegue um animal na oresta para matá-lo a sangue frio. Essa
atividade tem a ver diretamente com o que somos capazes de fazer com a
vida dos outros.

Chopinzinho, Paraná

Chama-se chupim (Molothrus bonariensis) uma das aves mais espertas


da natureza. O bicho tem plumagem preto-azulada brilhante e mede até 22
centímetros de comprimento. É nativo do Brasil e pode ser encontrado em
todo o território nacional. Também recebe o apelido de godelo, maria-preta
e vira-bosta. Esse último epíteto vem do hábito de chafurdar nas fezes de
outros animais em busca de sementes não digeridas. No entanto, sua maior
característica é a malandragem. Esse pássaro nunca se dá ao trabalho de
construir ninhos. Aliás, a mãe nem sequer cuida dos seus lhotes. Ela entra
sorrateiramente em ninhos alheios e deixa seus ovos lá para que aves de
outras espécies façam a incubação e posteriormente alimentem a cria que ela
gerou. A vítima preferida do chupim é o carismático tico-tico (Zonotrichia
capensis). É comum observadores de pássaros encontrarem o tico-tico
alimentando lhotes de chupim no bico. A imagem chama atenção porque o
pássaro adotivo tem penas escuras e o dobro do tamanho da mãe postiça de
cor marrom. Na natureza, esse comportamento é conhecido como
nidoparasitismo.
Na década de 1950, havia uma superpopulação de chupim no oeste do
Paraná. Uma derivação do nome dessa ave batizou um rio e a localidade de
Chopinzinho. Promovida à condição de município em 14 de dezembro de
1954, a cidadezinha de 20 mil habitantes e clima subtropical úmido ganhou
fama nacional na década de 2010, graças a uma lha famosa, Elize Araújo
Kitano Matsunaga. Mas ela não tem boas lembranças do lugar onde nasceu.
Motivos não lhe faltam. As passagens mais traumáticas de sua juventude
ocorreram justamente nas entranhas de Chopinzinho, a 400 quilômetros de
Curitiba.
O pai biológico de Elize chamava-se Valter Zacarias Giacomini, mas o
nome dele não constava na certidão de nascimento dela. Nem nos
documentos da irmã mais nova, Adriana Araújo, nascida em 1984. Segundo
relatos de familiares, Valter nunca foi pai dentro de casa. Era também um
péssimo marido. Quando Dilta de Ramos Araújo, mãe de Elize, foi registrar
as lhas no cartório, Valter não estava presente. Alcoólatra, ele preferiu car
no bar enchendo a cara com amigos. Com isso, Dilta, chamada pelos mais
próximos pelo apelido de Lete, saiu do cartório duas vezes, em épocas
distintas, com um bebê no colo e documentos na bolsa atribuindo-lhe a
pecha de “mãe solteira”. Dilta e suas lhas não estão sozinhas quando se fala
nesse tipo de humilhação. Segundo dados da Associação Nacional dos
Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), 80 mil crianças, em média, são
registradas sem o nome do pai a cada ano no Brasil.
Valter nasceu em 26 de março de 1962, no município de Francisco
Beltrão, no sudoeste do Paraná, a 80 quilômetros de Chopinzinho. Era um
homem galanteador. Alto, branco e olhos azuis bem expressivos. Os traços
europeus vinham dos pais. Era lho do italiano Adelino Giacomini e da
polaca Wladislada Giacomini. Quem conviveu com os dois imigrantes conta
que ambos eram violentíssimos. Tratavam os empregados feito pessoas
escravizadas. Certa vez, Valter, ainda adolescente, chegou em casa
alcoolizado. Para repreendê-lo, os pais deram-lhe uma surra tão pesada que
o garoto cou hospitalizado por uma semana com costelas fraturadas.
Na década de 1980, era raro encontrar Valter sóbrio. Sua bebida
preferida era um refugo da cachaça fabricada há mais de 100 anos pelo
Moinho da Serra, no município de Morretes, a 70 quilômetros de Curitiba.
No passado, os bares de Chopinzinho conseguiam de forma clandestina
uma aguardente artesanal com 75% de teor alcoólico preparado pelo
Moinho da Serra. A bebida comercializada o cialmente pela usina tinha
entre 38% e 45% de álcool. No entanto, até chegar a essa graduação, o
alambique destilava e descartava pingas com teores acima de 70%. Essa
sobra explosiva seguia clandestinamente em garrafões sem rótulos do
moinho diretamente para o balcão dos bares do interior do Paraná a preço
de banana. Os amantes de aguardente chamavam a bebida de pinga do
capeta. Valter e seus amigos alcoólatras bebiam essa cachaça dia sim e dia
sim também.
Alcoolizado ou não, Valter era um homem bruto e descontrolado. Foi
casado duas vezes e as duas mulheres que dividiram a cama com ele
contavam histórias de horror sobre o matrimônio. Dependentes
emocionalmente do marido, nunca o denunciaram – prática comum
principalmente no interior. Elas não só acobertavam as truculências do
companheiro dentro de casa como ainda justi cavam com as velhas
cantilenas do tipo: “foi a última vez que ele me bateu”, “ele prometeu mudar”,
“a culpa é do álcool”... No rol de violência doméstica, as esposas de Valter
sofreram com violência física, psicológica, moral, patrimonial e sexual,
incluindo aí estupros e espancamento durante o ato.
Quando morava com Dilta, Valter usava o álcool como justi cativa para
fazer da companheira um saco de pancadas. Por motivos banais, empurrava
a mulher contra a parede e sentava murros em seu rosto. Elize tinha 3 anos
em 1984, quando Valter, de 22 anos na época, saiu de casa para trabalhar
secando grãos numa indústria nas cercanias de Chopinzinho. De lá,
desapareceu. Ingênua, Dilta, de 26 anos na época, procurou pelo marido nos
bares do município e até na processadora de grãos. Demorou quatro meses
para ela concluir o óbvio: foi abandonada pelo companheiro.
Para sustentar duas lhas sozinha, Dilta passou a trabalhar na função de
faxineira de segunda a segunda. Alguns anos depois, ela morava com Elize e
Adriana num casebre de madeira com dois compartimentos cobertos com
folhas secas de palmeira, piso de barro batido e banheiro externo. A família
tinha energia elétrica, mas não contava com água encanada. Havia uma
geladeira velha, mas estava com o motor queimado. O eletrodoméstico era
usado como armário. Dentro, eram guardados quatro pratos, duas panelas,
três copos de plástico, três colheres e uma faca. Essa era toda a louça da casa.
À medida que iam crescendo, Elize e Adriana começaram a perguntar
pelo pai. Dilta dizia às crianças o seu desejo: Valter havia saído para
trabalhar numa roça distante e um dia aquele homem voltaria para o
aconchego do lar. Na espera sem m pelo marido, Dilta costumava
cantarolar em forma de prece versos de canções populares. A preferida na
época era “Anunciação”, de Alceu Valença. Trecho da letra diz: A voz do anjo
sussurrou em meu ouvido / Eu não duvido / Já escuto os teus sinais / Que tu
virias numa manhã de domingo / Eu te anuncio nos sinos das catedrais.
Em 1988, numa manhã de domingo, Valter, com 26 anos na época, de
fato, regressou. Ele havia sumido por quatro anos. Houve comoção na
família. Ele estava mais bonito, encorpado e até elegante para quem
trabalhava sob o sol escaldante. Bêbado, para variar, Valter entrou
cambaleando pela porta da sala enquanto Dilta cozinhava feijão num fogão
a lenha do lado de fora do casebre. O homem cou estático, olhando suas
duas lhas crescidas em frente a uma TV Telefunken preto e branco de 14
polegadas.
– Mãe, tem um homem aqui! – anunciou Elize, assustada.
Dilta tirou a panela do fogo e correu até a sala. Deparou-se com o
marido em pé, balançando o corpo de um lado para o outro como vara de
bambu. Com um pano de prato nos ombros, a mãe caiu em prantos ao ver o
chefe da família novamente.
– Eu sabia que você voltaria! – comemorou Dilta, quase desmaiando de
tanta comoção.
Valter não falava nada. Abalada, Dilta avançou sobre o marido e o
abraçou fortemente pela cintura. O gesto não foi correspondido. As duas
crianças não entenderam a cena dramática. O pai continuava no mesmo
lugar, calado. Dilta recuperou o fôlego, trocou o pranto pelo riso frouxo e
anunciou sem cerimônia:
– Meninas, esse é o pai de vocês!
O sorriso no rosto de Dilta perdeu o brilho tão logo o visitante começou
a falar. Valter não estava de volta coisíssima nenhuma. Pelo contrário.
Revelou ter constituído outra família e já era pai novamente. Incrédula, Dilta
o agarrou ainda mais fortemente, proibindo-o de ir a lugar algum. Valter a
empurrou com força su ciente para jogá-la ao chão. A mulher levantou e
agarrou o marido pela cintura mais uma vez. Para se livrar dela, ele sentou
um murro tão forte no rosto da ex-esposa que o sangue esguichou pela
roupa. Assustada, Elize, de 7 anos na época, continuou vendo TV abraçada à
irmã caçula. Valter, então, resolveu mostrar o real motivo da visita. Ele se
agachou por trás da estante e puxou o o que conectava a TV à tomada,
desligando-a de forma abrupta na frente das meninas. Em seguida, o
homem ganhou a rua com a única TV da casa embaixo do braço. Dilta cou
em pé na porta da sala com o rosto manchado de sangue enquanto Valter
sumia lentamente na paisagem.
Àquela altura, Valter estava casado com Terezinha Ivanilda Forte
Giacomini, de 23 anos. O casal se conheceu em Chopinzinho, num show do
cantor Teixeirinha, um dos maiores expoentes da música gaúcha. Terezinha
tinha 17 anos quando deu o primeiro beijo em Valter. Em 1986, nasceu a
única lha do casal, Kelly Giacomini. Segundo relato de Terezinha, Valter foi
a pior e a melhor coisa que aconteceu em sua vida. Durante o namoro e os
primeiros anos de matrimônio, o casal irradiava felicidade. Valter bebia
pouco, era romântico e atencioso. Depois do nascimento de Kelly, ele voltou
a beber a pinga do capeta de forma sistemática e seu lado violento a orou
novamente. Certo dia, ele pegou uma ta cassete com músicas sertanejas
para ouvir e percebeu que faltava a capa de acrílico. Calmamente, Valter
perguntou à esposa pelo objeto. Como não sabia o paradeiro, Terezinha, que
estava com o seu bebê no colo, levou uma sequência de murros, deixando
metade do seu rosto inchado e roxo de tantos hematomas.
Terezinha apanhava do marido a qualquer hora do dia ou da noite. Se
Valter a procurasse para transar e ela dissesse “não”, ele a espancava até
deixá-la caída no chão. Em seguida, masturbava-se no meio da sala e
ejaculava sobre a esposa mesmo ela gritando de dor. Se resolvesse fazer sexo
com o marido, Terezinha também sofria, pois ele era agressivo na cama.
Gostava de transar apertando o pescoço da mulher com as mãos até ela car
sem ar. Apesar de sofrer feito um cão nas mãos do marido, Terezinha –
como a maioria das mulheres na mesma situação – não tinha coragem de
denunciá-lo, muito menos de abandoná-lo. Sóbrio, ele chegou a dizer que
mataria a mulher caso ela pedisse a separação. E assim Terezinha seguia a
vida dentro de uma relação altamente violenta. Seu alento para o inferno
vinha de uma igreja evangélica colada à sua casa. Os cultos tinham som alto
e ela ouvia todas as pregações dos pastores, confortando-se. “Quando conto
essa história, muita gente me pergunta: por que você não se separou? Olha, é
fácil perguntar, mas é difícil responder e ser compreendida. As pessoas não
entendem de que forma uma relação violenta nos aprisiona. Eu, por
exemplo, chegava a pensar que meu casamento era uma sina, uma
penitência divina. Como se eu estivesse predestinada a passar por aquilo
tudo. Era um desgaste emocional tão forte viver com aquele homem que não
me sobrava energia para nada, nem para respirar”, relatou Terezinha em
janeiro de 2021.
No auge do casamento, Valter chegou em casa com um revólver,
deixando a esposa apavorada, com medo de morrer. Quando ele adormeceu,
bêbado, Terezinha escondeu a arma de fogo dentro do cesto de roupa suja.
Ele acordou de ressaca, bebeu aguardente no café da manhã para curar o
porre e teve um surto ao dar falta da arma. Com Valter era assim: a bebida
entrava e a violência saía. Não deu outra. Ele sentou um murro com toda a
força no rosto da mulher, quebrando-lhe os dentes. Revoltada e com a boca
cheia de sangue, Terezinha nalmente decidiu dar um basta. Começou a
fazer as malas para escapar com a lha daquele inferno.
– O que estás fazendo, sua estúpida?! – quis saber Valter.
– Estou indo embora! – ousou Terezinha.
Enquanto ela limpava gavetas e esvaziava armários, Valter começou a
trancar todas as janelas e saiu de casa pela porta dos fundos, deixando a
esposa e a lha bebê presas lá dentro. Na sequência, ele despejou um galão
de 20 litros de gasolina ao redor da casa, encharcando as paredes de
madeira. Do lado de fora, o homem acendeu um palito de fósforo e
anunciou por uma fresta: se a mulher o deixasse, ele tocaria fogo na casa e
mataria as duas carbonizadas. Abalada, Terezinha desistiu de abandoná-lo e
desfez as malas. “O relacionamento abusivo enreda a mulher de uma forma
imperceptível. Eu era totalmente dependente emocionalmente desse
monstro. É uma espécie de servidão. [...] A única coisa boa que levei desse
casamento foi a minha lha”, relatou Terezinha.
Outro momento terrível da vida a dois ocorreu quando Valter ofereceu a
pinga do capeta à esposa. Terezinha recusou, pois não bebia. Ele, então,
agarrou a mulher pelos cabelos e a arrastou pelo chão da sala até o quintal,
onde estavam os amigos do marido em volta de uma fogueira de São João.
Ele deu um banho de álcool em sua companheira e ameaçou queimá-la viva,
para deleite dos outros bêbados, que debochavam da cena triste. Terezinha
chorava com a mistura de violência e humilhação, enquanto o marido ria de
escárnio.
Valter manifestou perversidade ao longo dos quinze anos que passou
casado com Dilta e posteriormente com Terezinha. Era um homem tão
corrosivo, virulento e infeccioso que tirava das mulheres a gentileza, a
empatia e, principalmente, a capacidade de amar. Em Terezinha, ele só
parou de bater quando cou doente. Tudo começou com uma fraqueza
física. Depois ele passou a vomitar sangue todos os dias e perdeu
completamente o apetite. Emagreceu até car pele e osso. Nódulos
amarelados tomaram conta do seu corpo. Um médico foi chamado às
pressas quando ele cou sem forças para se levantar da cama. Exames
atestaram que o fígado de Valter estava por um o. Ele morreu em 2009, aos
47 anos, vítima de cirrose. Terezinha, de 44 anos na época, teve vontade de
rir quando recebeu a notícia fúnebre. Nem ela, nem a lha Kelly, de 23 anos,
deram as caras no velório, nem no enterro de Valter. “Foi um alívio”,
confessou Terezinha, em janeiro de 2021. Às vezes, a morte merece ser
festejada.

* * *

Assim como Terezinha, Dilta reclamava da falta de sorte com homens.


Desiludida com Valter, ela encarnou o espírito do pássaro chupim. A mãe de
Elize largou as duas lhas pequenas na casa de parentes no início da década
de 1990 e mudou-se sozinha para Curitiba. Era auxiliar de cozinha e
arrumava tempo para fazer faxina em apartamentos de classe média. Em um
prédio comercial, conheceu o recepcionista Wagner Mallmann, de 25 anos
na época. Descendente de alemão, ele era um rapaz atraente. Branco, alto e
magro, olhos e cabelos bem claros. O jovem convidou Dilta para tomar
sorvete e ela se apaixonou perdidamente pelo rapaz antes mesmo de
terminar as duas bolas de chocolate com morango. Em três dias, estavam
enamorados.
Wagner não encantava só pela beleza. Dilta foi seduzida pelos gestos
românticos, excesso de carinho e atenção. Era impossível não compará-lo
com o brutamontes do Valter. O rapaz era o avesso do seu ex-marido. Nem
de bebida alcoólica ele gostava. O único empecilho na relação era a
distância. O recepcionista trabalhava até tarde e morava no município de
Agudos do Sul, a 70 quilômetros da capital paranaense. A viagem diária era
feita no ônibus da linha 550 e partia da rodoviária de Curitiba. Apaixonada,
Dilta saía do trabalho por volta das 20 horas e corria para o prédio onde
Wagner batia ponto. Às 22 horas, o amado encerrava o expediente e os dois
seguiam agarradinhos para a rodoviária. Ele pegava o último ônibus, que
partia pontualmente à meia-noite. Era esse o tempinho que eles tinham para
namorar diariamente. Quando o coletivo saía da rodoviária, Dilta acenava
da plataforma até perdê-lo de vista. No m de semana, eles não se viam
porque Wagner fazia extras como recepcionista de eventos em cidades
vizinhas. Dilta reclamava, mas aceitava dizendo amá-lo sobre todas as
coisas.
No primeiro aniversário de namoro, Wagner pediu para ter uma
conversa séria com a namorada. Dilta cou a ita, vislumbrando a hipótese
de ele pôr um ponto nal na relação. No dia do encontro, marcado na Praça
Tiradentes, berço histórico de Curitiba, o rapaz foi direito ao assunto:
contou ter juntado um bom dinheiro ao longo dos anos para comprar um
carro usado. Reclamou do tempo perdido dentro de um ônibus no caminho
de casa para o trabalho e vice-versa. Se zesse essa viagem de carro, sobraria
mais tempo para o casal namorar após o expediente. Ele também
argumentou que, motorizado, seria possível o casal frequentar motéis e até
passar um m de semana qualquer nas águas azuladas da Praia do Leste, a
100 quilômetros de Curitiba. Dilta cou enfeitiçada quando ouviu os planos
românticos daquele homem lindo. Mas havia um porém: Wagner não tinha
a quantia su ciente para comprar o carro dos seus sonhos:
– Quanto falta? – quis saber a mulher.
– Oitocentos reais – disse Wagner, meio constrangido.
Sem pestanejar, Dilta juntou todas as economias guardadas numa
poupança da Caixa Econômica Federal, pediu um adiantamento à patroa e
complementou o que faltava com um empréstimo. Em um mês, conseguiu a
quantia pedida pelo bem-amado para comprar o carro. Wagner disse à
namorada que o sacrifício dela era uma prova cabal de amor. Deixou claro
tratar-se de um empréstimo, ou seja, devolveria todo o dinheiro tão logo
tivesse condições. No dia seguinte, o recepcionista chegou para trabalhar
todo prosa, dirigindo um Fiat Uno R 1.5, ano 1988, amarelo-ovo, com quase
200 mil quilômetros rodados, comprado na época por 3,8 mil reais. O
sorriso do rapaz começava numa orelha e terminava na outra, tamanha era a
sua felicidade.
Dilta cou deslumbrada quando deu o primeiro passeio. O carro, de
fato, estreitou os laços de amor entre o casal. Passaram a frequentar motéis
semanalmente. Quando não, faziam amor no minúsculo espaço interno do
veículo. A primeira crise na relação, no entanto, ocorreu quando ela
começou a cobrar pelo m de semana romântico na Praia do Leste. Todas as
vezes que a mulher reivindicava a promessa, o namorado inventava uma
desculpa relacionada a um defeito no veículo. A lista de avarias era extensa:
barulho nas correias, cheiro de queimado, desgaste no freio, falta de
estabilidade, fusível queimado, in ltração, pane elétrica, pneus carecas,
problemas no carburador, roda empenada, ruídos na marcha lenta,
solavanco nos amortecedores, superaquecimento do motor, tanque furado,
vazamento de óleo, velas gastas e por aí seguia...
Certo dia, Dilta foi ao encontro de Wagner no emprego dele e percebeu
que o Fiat Uno amarelo-ovo cheio de defeitos não estava estacionado no
lugar de costume. Teve um mau pressentimento. Quando perguntou na
portaria por onde andava o seu namorado, ouviu de um ascensorista que ele
havia pedido demissão para resolver problemas pessoais. Nervosa, Dilta
imaginou as piores coisas, como doença grave e até morte. Desnorteada,
descobriu não ter o endereço nem o número do telefone da casa dele. O
casal se falava pelo telefone xo da portaria. Durante um mês, Dilta foi
todos os dias ao prédio comercial onde Wagner trabalhava no centro de
Curitiba na tentativa de obter notícia do namorado. A peregrinação foi em
vão.
Cansada de esperar, ela pegou o ônibus da linha 550 e partiu num
domingo cedinho rumo ao vilarejo de Agudos do Sul. Desceu na rodoviária
decidida a bater perna pelas ruas até avistar um Fiat Uno amarelo-ovo. Na
década de 1990, a cidade era minúscula e tinha pouco mais de 6 mil
habitantes, ou seja, a rigor, não seria difícil encontrar um carro tão peculiar.
Dilta começou a busca pela praça central e seguiu pelas ruas mais
movimentadas. Abordava pessoas na rua perguntando se elas conheciam
um homem assim, assado, chamado Wagner, dono de um carro amarelo-
ovo. Ninguém tinha ouvido falar dele.
Dilta caminhava cansada no meio da tarde por uma ruela quando viu,
feito miragem, o Fiat de cor extravagante cruzar por uma via à sua frente.
Ela desembestou-se a correr até alcançar a igreja matriz, cujo nome era
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Parecia milagre. O carro de cor
berrante estava estacionado bem em frente à casa de Deus. Mas não havia
ninguém dentro dele. Dilta cou plantada ao lado do veículo feito espada de
São Jorge. Três horas depois, o rapaz nalmente apareceu. Ela cou muda de
emoção quando o viu. Wagner estava estranho. Parecia outro homem. Abriu
a porta do carro sem cumprimentá-la e entrou rapidamente. De dentro do
Fiat amarelo-ovo, ele baixou o vidro da janela usando a manivela:
– Eu sei o motivo da sua visita – adiantou-se Wagner.
– O que aconteceu? Deixe eu entrar no carro para conversarmos – pediu
Dilta.
– Não tenho tempo agora. Venha à igreja às 18 horas. Depois da missa a
gente acerta as contas – propôs ele.
Intrigada e ao mesmo tempo cheia de esperança, Dilta foi até um
pensionato onde pretendia ter uma noite de amor com Wagner. Tomou um
banho longo, pôs um vestido novo e encharcou-se de seiva de alfazema. Às
18 horas em ponto estava na missa, conforme o combinado. Avistou o
amado mais à frente, mas a igreja estava lotada e não havia lugar perto dele.
Dilta cou espremida no banco da última leira. Lá pelo meio da missa, no
rito da comunhão, o sacerdote introduziu o Pai-Nosso e todos rezaram em
conjunto. Dilta estava tão nervosa que cou sem fôlego. Resolveu sair da
igreja antes de o culto católico terminar para tomar um ar no lado de fora.
Foi esperar pelo namorado perto do carro, estacionado na calçada. Um sem-
teto pediu esmola e ela negou, justi cando não ter moedas. De onde Dilta
estava, era possível ouvir a pregação do padre ampli cada em caixas de som.
Quando o religioso anunciou os ritos nais, a mulher começou a tremer
com a expectativa do reencontro.
Dez minutos depois de encerrada a missa, Wagner surgiu em frente a
Dilta. Ela foi tomada por uma enorme decepção seguida de ódio. Ele usava
uma aliança grossa no dedo anelar da mão esquerda e estava acompanhado
de uma mulher com joia idêntica. A esposa de Wagner tinha uma criança no
colo e mais duas no chão – uma delas de mãos dadas com o pai.
Embasbacada, Dilta não conseguiu pronunciar uma palavra. A verdade
estava nua diante dos seus olhos: seu homem tinha uma família. Ele mesmo
quebrou o silêncio. Apresentou Dilta à esposa e vice-versa. As duas não
trocaram cumprimentos. O rapaz esclareceu na conversa a três que se
envolveu com Dilta num período em que estava dando um tempo no
casamento. “Você já me explicou tudo, amor”, ponderou a esposa de Wagner.
Ele pegou um pacote do bolso contendo 800 reais e ofereceu à ex-namorada,
agradecendo pelo empréstimo. Dilta, descontrolada emocionalmente,
recusou-se a pegar o dinheiro:
– Você acha que estou aqui para fazer esse tipo de cobrança?! –
questionou a mulher, indignada.
– E não é?
– Não, Wagner! Pelo amor de Cristo! Claro que não! Eu vim aqui porque
eu te amo! Eu te amo! Eu te amo! – gritava Dilta feito doida no meio rua.
O barraco causou uma pequena aglomeração. Até o sem-teto se
reaproximou para acompanhar o desdobramento daquela cena de novela.
Wagner cou assustado com a loucura da ex-namorada e jogou o pacote
com dinheiro no chão, aos pés de Dilta. Em seguida, ele entrou no Fiat
amarelo-ovo com a esposa e os lhos. Antes de dar partida no motor, ele
testemunhou uma cena pra lá de absurda. Dilta pegou o pacote do chão,
tirou o elástico que prendia as notas de 1, 5 e 10 reais e começou a distribuir
o dinheiro em frente à igreja. O primeiro contemplado foi o morador de rua.
Incrédulo, o indigente ganhou 10 reais e agradeceu aos céus. Dilta deu mais
um pouco de cédulas para pessoas desconhecidas que estendiam a mão em
sua direção. Quanto mais notas ela repassava às pessoas egressas da missa,
mais o povo a cercava. “Olha o que eu faço com essa merda de dinheiro, seu
monstro!”, gritava Dilta, possuída por uma forte emoção. Cansada de dar
nota por nota, ela teve um ataque histérico e jogou todo o dinheiro que
restava em suas mãos para o alto enquanto gritava, causando um alvoroço
ainda maior. O sem-teto também enlouqueceu ao ver tanto dinheiro caindo
do céu. Wagner assistia a tudo, incrédulo. Com medo da reação explosiva da
ex-namorada, ele ligou o carro, engatou a primeira e saiu em disparada com
a sua família. Dilta cou só com o dinheiro da passagem de volta. Retornou
para Curitiba nadando num rio de raiva e noutro de lágrimas.
Agarrada à resiliência, Dilta conseguia superar suas desilusões amorosas
tão rapidamente quanto um ash de máquina fotográ ca. Na viagem de
volta de Agudos do Sul, uma porta de esperança se abriu à sua frente. O
ônibus em que viajava fez uma parada na rodoviária do município de
Mandirituba, a 40 quilômetros de Curitiba. Entre os passageiros embarcados
estava o serralheiro Francisco Gomes da Silva, de 36 anos na época. Por uma
daquelas coincidências inexplicáveis da vida, o passageiro sentou-se ao lado
de Dilta. Ela foi logo contando o seu dilema sentimental, dando ênfase aos
800 reais distribuídos a estranhos. Francisco, apelidado pelos amigos de
Chico da Serra, ouviu tudo com paciência e consolou aquela pobre mulher.
Quando teve uma brecha, ele também falou um pouco de si. Disse ser um
homem solteiro, romântico, el, respeitador e gostava muito de trabalhar,
segundo suas próprias palavras.
Chico era um homem feio de dar dó, principalmente quando comparado
a Valter e Wagner. Alto e magro, ele chamava a atenção pelas orelhas
proeminentes, chamadas popularmente de “orelhas de abano”. Olhos
enormes e fundos se destacavam em seu rosto. Aliás, nada na aparência
daquele homem era delicado. Mas Dilta estava tão traumatizada com os
amores do passado que beleza passou a valer pouco na sua nota de corte.
Nessa época, Chico trabalhava numa o cina confeccionando, reparando e
instalando peças em chapas de metal. Operava serras de policorte,
furadeiras de impacto, motoesmeril e usava diversos insumos, entre eles a
solda. Também fabricava esquadrias, portas, grades e armações para vitrais.
Os raios brilhosos e nocivos emitidos nessa atividade, conhecidos como arco
elétrico, deixaram os olhos grandes de Chico com manchas vermelhas e
visão comprometida. Era comum o serralheiro levar do trabalho para casa,
na periferia de Curitiba, uma serra apelidada de tico-tico, usada em
trabalhos extras. O equipamento cortava com precisão madeira, plástico e
até aço.
O namoro de Chico e Dilta engatou rapidamente. Em poucos meses, os
dois decidiram morar em Chopinzinho. Parte do terreno da família de Dilta
havia sido desapropriada pela prefeitura para dar lugar a uma via. Ela cou
com uma das casas, embolsou parte do dinheiro da desapropriação e foi
morar com Chico da Serra. Ela aproveitou esse recomeço para resgatar suas
lhas, Elize e Adriana, da casa da avó materna, Maria Sebastiana Ramos
Araújo, de 62 anos na época. Dilta arrumou emprego de serviços gerais na
prefeitura de Chopinzinho. Para aumentar a renda do lar, ela também
passou a fazer faxina em lojas do Centro, inclusive nos nais de semana. Em
1997, a família de Elize já havia prosperado. Fizeram uma reforma na casa.
Era de alvenaria, coberta com telhas de bra de cimento. Havia água
encanada, chuveiro quente e geladeira nova. A TV da sala era em cores.
Batalhadora, Dilta passou a ter renda mensal superior à de Chico. Para
viver à custa da mulher, ele largou o posto de trabalho numa fábrica de
esquadrias onde tinha carteira assinada e passou a fazer somente “bicos”. Os
familiares de Dilta criticavam o fato de ela sustentar a casa praticamente
sozinha. Mas a mulher não dava a menor bola para a opinião alheia. Dizia
para quem quisesse ouvir que amava o companheiro incondicionalmente.
Aliás, ela amou demais todos os homens com quem se relacionou – esse era
o seu maior defeito. Com o serralheiro não foi diferente. Nas raras vezes que
ele saía para trabalhar, ela chorava de saudade. Quando o companheiro
voltava, a mulher o abraçava como se ele estivesse fora de casa havia anos.
A irmã mais nova de Dilta, Roseli Araújo Camarotto, de 23 anos na
época, era muito mais madura emocionalmente se comparada à mãe de
Elize, 13 anos mais velha. Vinham justamente da caçula os alertas sobre a
vida amorosa destrambelhada de Dilta. Os sentimentos dela por homens,
segundo a irmã, eram viscerais. As paixões chamavam a atenção pela
intensidade e descontrole. Eram amores doentios, segundo relatos de
parentes. Dilta rebatia as críticas dizendo ser esse o seu único jeito de amar.
Em Chopinzinho, o diabo parecia não tirar férias. Com o tempo, Chico
tornou-se alcoólatra. Passou a beber todos os dias a famosa pinga do capeta,
a mesma apreciada por Valter. Quando tomava esse veneno, o serralheiro se
transformava num monstro. Mudava o tom de voz e cava agressivo dentro
de casa. Dilta fazia alertas sobre a desgraça daquela aguardente, mas ele não
lhe dava ouvidos.
Elize voltou a morar com a mãe quando tinha 13 anos. Chico dizia à
companheira sempre ter sonhado em ser pai de família. Ele tinha o hábito
inadequado de pôr a menina em seu colo. Ingênua, Dilta via no gesto do
marido um simples carinho paterno. No entanto, não havia ternura nos
movimentos de Chico. Dilta saía para trabalhar e o companheiro virava uma
dose da tal cachaça. Bêbado, assediava a adolescente dentro de casa com
frequência. Começou de forma sutil. A menina vestia roupas curtas e ele a
elogiava. O assédio foi evoluindo. Certa vez, ela vestia um short jeans e se
curvou para passar a vassoura no chão da sala. Chico se aproximou,
encaixou-se por trás e puxou o quadril da menina para perto de si. Ele
complementou a investida com um comentário ordinário:
– Já está na hora de você perder o cabaço.
– Se você repetir essa grosseria, vou contar tudo para minha mãe!
– Você não tem coragem – desa ou Chico.
– Experimente! – revidou Elize.
À noite, no jantar, Dilta percebeu Elize mais calada e retraída do que o
habitual e tentou descobrir os motivos do comportamento sui generis da
lha. Questionou a garota, mas não teve sucesso. Elize passou a evitar o
padrasto dentro de casa. A mãe percebeu e abordou Chico mais tarde, na
cama. O serralheiro falou à mulher sobre uma suposta “paixonite” da
enteada por ele. Ainda amenizou a revelação dizendo para a companheira
car despreocupada, pois ele via a menina como lha. Naquela noite, Dilta
demorou a dormir. Ficou horas olhando para o teto, descon ada. Ainda
estava escuro quando Chico saiu para instalar uma esquadria de alumínio.
Dilta confrontou a lha no café da manhã:
– Que história é essa que você está apaixonada pelo Chico?
– Quem te contou essa mentira?
– Eu mesma percebi.
– Esquece isso, mãe – encerrou Elize.
Depois da conversa, as duas sepultaram o assunto e a vida seguiu em
frente. Chico deu um tempo nas investidas e a paz voltou a reinar na casa.
Seis meses depois, porém, Dilta saiu para trabalhar e Elize cou dormindo
em casa. O serralheiro tomou duas doses de pinga do capeta e foi até o
quarto da enteada. Apalpou os seios da garota. Elize, ainda desacordada,
virou-se para o lado. O serralheiro, então, masturbou-se enquanto olhava a
enteada. Esses abusos passaram a ser constantes. Bastava Dilta sair de casa
para Chico beber e praticar esse tipo de crime contra a garota.
Para piorar, as investidas caram violentas com o passar do tempo. Certa
vez, por volta do meio-dia, Elize acabara de voltar da escola e tomava banho
sozinha em casa. No mesmo momento, Chico chegou para almoçar já
embriagado. Ele percebeu a enteada no chuveiro. Seguiu até o quintal e
subiu numa laranjeira para espiar a garota nua através de uma janelinha
localizada na parte alta da parede externa do banheiro.
Elize percebeu estar sendo observada ao ouvir um barulho estranho e
encerrou o banho imediatamente. Secou-se às pressas e se enrolou numa
toalha. O padrasto desceu da árvore. Ao caminhar do banheiro para o
quarto, a adolescente foi interceptada pelo serralheiro. Ela desviou pela
lateral e apressou os passos para alcançar a porta da cozinha. Chico foi mais
rápido. Segurou Elize com um braço e com o outro puxou a toalha
violentamente, revelando o corpo da garota.
– Para com isso! Eu vou gritar! – ameaçou Elize.
– Vai nada! Eu sei que você quer! – rebateu Chico.
Em pânico, Elize pegou a toalha de volta. Enrolou-se nela mais uma vez
e saiu em disparada pelo matagal em frente da casa para escapar das garras
daquele demônio. A garota seguiu por uma trilha íngreme. Chico continuou
em seu encalço. Cipós e folhas com bordas serrilhadas causavam ferimentos
na pele delicada de Elize, inclusive em seu rosto, mas ela não parava de
correr. Até que a garota tropeçou, caiu e foi alcançada por ele. Chico
violentou Elize no meio do matagal.
Dessa vez, a perseguição de Chico foi testemunhada pela vizinha
Cândida Maria do Valle, de 50 anos na época. Ela estendia roupas no varal
quando viu Elize sair em disparada pela porta da cozinha com o padrasto
logo atrás. Cândida também presenciou Chico voltando do matagal sozinho.
A vizinha fez questão de cumprimentá-lo com um “boa tarde” para fazer um
suspense sobre o que poderia ter visto. Na verdade, Cândida já observava os
movimentos do serralheiro fazia tempo.
No início da noite, Dilta e Chico assistiam na TV da sala as emoções de
uma novela das seis da TV Globo intitulada Quem é você?, de autoria de
Ivani Ribeiro e Solange Castro Neves. Ironicamente, o folhetim contava a
história de duas irmãs abandonadas pelo pai, causando a morte prematura
da mãe. Na cção, as irmãs eram interpretadas pelas atrizes Elizabeth Savalla
e Cássia Kiss.
No melodrama da vida real, Elize entrou na sala aos prantos com marcas
no rosto e pediu à mãe para acompanhá-la até o quintal. Chico suou frio tal
qual um boi a caminho do abatedouro. Ele não conseguiu esconder a a ição
e mandou Adriana, a mais nova, para o quarto. Do lado de fora da casa,
Elize foi direta em sua denúncia:
– Mãe, o Chico me estuprou!
– O quê?! – indagou Dilta, incrédula.
– Ele abusa de mim faz tempo, mãe! Hoje eu estava tomando banho...
Descontrolada, a mãe deixou a lha falando sozinha no quintal e foi até
a sala acertar as contas com o companheiro. Aos berros, ela o acusou de
estupro e começou a se arrumar para seguir até a delegacia e registrar uma
ocorrência. Chico levantou-se do sofá desesperado. Andava de um lado para
o outro com as mãos na cabeça. Dilta gritava histericamente enquanto
procurava a bolsa para sair. Cândida ouvia tudo de sua casa enquanto assava
um bolo de laranja. Chorando, Chico pediu misericórdia à mulher. Dilta
cedeu quando o serralheiro ofereceu a ela um copo com água e açúcar. Ele
disse amá-la de forma tão insensata que, se fosse preso, iria se matar na
cadeia. Pouco tempo depois, mais calma, Dilta ouviu a versão do
companheiro:
– Eu mexi com a sua lha, sim. Não vou mentir. Mas não foi como você
está pensando. Não teve estupro! Acredite! [...] Você conhece a Elize. Essa
menina dá em cima de mim faz tempo. Eu falei para você sobre a paixão
dela por mim, lembra? Eu sou homem! Não consegui segurar.
Paralisada, Dilta congelou sua expressão facial a ponto de ser impossível
decifrar o que ela sentia ao ouvir a chorumela do companheiro. Elize entrou
na sala e apresentou o contraditório, interrompendo o padrasto:
– Não acredite nele, mãe. Eu imploro!
O desfecho desse drama é surreal. Dilta preferiu acreditar na história
contada pelo companheiro. Ficou possuída pela raiva. Para castigar Elize por
ter supostamente seduzido o padrasto, a mãe sentou uma forte bofetada no
rosto da lha. E pediu para ela sair de casa imediatamente “antes que zesse
uma besteira”. Sugeriu que a garota pedisse abrigo novamente na casa da avó
Sebastiana. Para parentes, a mãe justi cou a decisão dizendo amar Chico
como nunca havia amado na face da Terra. “Com tanto homem na rua a
minha lha deu em cima do meu companheiro. Como pôde, meu Deus? O
Chico me amparou no pior momento da vida, quando eu estava na merda
por causa de um canalha que me humilhou em público na frente da igreja.
[...] Foi Deus quem pôs ele naquele ônibus para me salvar. Além do mais,
não sei viver sozinha”. Após levar o tapa, Elize cou estática no meio da sala.
Dilta a pegou pelo braço e a arrastou para dentro do quarto, onde deveria
arrumar suas coisas para deixar a casa ainda naquela noite. Dilta voltou à
sala e ganhou um beijo de Chico na boca. Para acalmar a companheira, ele
comentou cinicamente que adolescentes da idade da enteada costumavam
seduzir o padrasto para competir com a mãe. Em seguida, os dois foram
para a cama fazer amor.
Órfã de pai vivo, Elize conheceu ao lado da mãe a porção mais sombria
da vida em família. Enojada com os gemidos sexuais que ecoavam da alcova
materna e com medo do padrasto, a jovem resolveu cumprir as ordens de
Dilta e saiu de casa imediatamente. Preparou uma mochila com poucas
mudas de roupa, uma escova de dentes, um tubo de pasta e um sabonete.
Despediu-se da irmã com um beijo e fugiu sem um tostão no bolso. Passou
na casa da madrinha, Gelci Ruschel Barp, conhecida em Chopinzinho pelas
causas em defesa dos animais. Contou que a mãe precisava urgentemente de
dinheiro emprestado. Compadecida, Gelci deu 50 reais à a lhada.
Chico havia se esquecido do mexerico de Cândida. Funcionária da
prefeitura de Chopinzinho e vizinha da família de Elize, ela era uma mulher
de cabelos na altura dos ombros, tingidos de preto. Usava saias sempre
abaixo do joelho e uma anágua por baixo. Decotes, nem pensar. Achava
vulgar. Solteirona a vida inteira, Cândida dizia aos quatro ventos preferir mil
vezes morrer sozinha a dividir a cama com um homem. “Nenhum deles
presta”, justi cava. A vida solitária era preenchida carimbando papéis no
trabalho, acompanhando novelas e fazendo muito fuxico. Cândida se
orgulhava de ter uma rede de informantes no serviço público. Nada
escapava ao seu conhecimento. Deu um furo de reportagem quando
espalhou na cidade que o prefeito tinha um caso com uma vereadora da
oposição.
Como o drama da família de Elize ocorrera debaixo do nariz de
Cândida, a vizinha fofoqueira nem precisou de terceiros para montar a
narrativa daquele crime. Ela tinha visto Chico perseguindo Elize no quintal
no início da tarde, ouviu à noite a garota revelando à mãe ter sido abusada
pelo padrasto e também viu com os próprios olhos a garota fugindo de casa
com a mochila nas costas. Cândida aproveitou a amizade de longa data com
Dilta para xeretar o escândalo in loco. Por volta das 20 horas, pôs a cara na
janela da vizinha com o bolo de laranja num prato coberto com guardanapo.
Naquele momento, a TV já exibia a novela das sete, chamada Vira-lata, de
autoria de Carlos Lombardi. Cândida aproveitou a deixa:
– A novela já acabou, vizinha? – introduziu.
– Não, Cândida. Mas tá quase... – disfarçou Dilta.
A bisbilhoteira entrou na casa de Dilta mesmo sem ser convidada e foi
até a cozinha guardar o bolo. Chico aproveitou a visita indesejada para ir a
um bar tomar cachaça com amigos. Falando baixinho, Cândida revelou à
amiga ter ouvido toda a tragédia familiar. Aconselhou Dilta a denunciar o
marido e levar Elize imediatamente ao Instituto Médico Legal (IML) para
fazer exame de corpo de delito, pois a menina poderia ter perdido a
virgindade. Argumentou ainda haver outra adolescente em casa correndo
perigo. Dilta começou a chorar como se o mundo estivesse se acabando
diante dos seus pés. Com o rosto ensopado de lágrimas, entrou em contato
com as suas próprias emoções para argumentar:
– Cândida, minha amiga, você optou por nunca ter um homem. Mas eu
não sou assim. Não consigo viver sem um companheiro ao meu lado. Eu
amo o Chico de uma forma inexplicável. Não espero a sua compreensão
porque nem eu mesma entendo. [...] Você nunca viveu a experiência de
amar de forma incondicional. Por isso você quer que eu denuncie o meu
marido numa delegacia. Sabe quando farei isso? Jamais!
Ao ouvir as palavras da amiga, Cândida sentiu vontade de vomitar. Ela
estava armada para contra-argumentar, mas a mãe de Elize não parava de
falar. A vizinha, então, resolveu car calada para ver até onde aquele absurdo
chegaria. Dilta arrematou sua fala com a seguinte a rmação: “Olha,
Cândida, o homem tem certas necessidades que a mulher desconhece”.
Perplexa, a vizinha pegou o bolo de volta e deixou a casa de Dilta
escandalizada e ofendida por ter a sua solteirice associada à incompreensão
daquele crime sexual. Àquela altura da noite, já passava na TV a novela das
oito, intitulada O m do mundo, de autoria de Dias Gomes e Ferreira
Goulart. Cândida tomou uma decisão. Foi até sua casa pegar a carteira de
identidade e seguiu para a Delegacia de Polícia de Chopinzinho, decidida a
denunciar Chico. Dilta percebeu o movimento da vizinha. No caminho,
Cândida cruzou com Elize em fuga, a pé, rumo à BR-158, uma estrada que
atravessa o país de Norte a Sul. Às pressas, Dilta foi até o bar e falou para o
serralheiro sobre a descoberta da vizinha. Ele saiu em disparada e conseguiu
encontrá-la na calçada da delegacia. Dilta voltou para casa. Ao abordar
Cândida, Chico foi linear. Aproveitou a coragem emprestada pelo álcool,
segurou a mulher fortemente pelo braço, fez uma cara bem ameaçadora e
disparou:
– Cândida! Se você entrar nessa delegacia, juro pela minha vida que,
antes de ser preso, eu vou cortar o seu corpo em sete pedaços e colocá-los
dentro de latões com cimento. Depois vou jogar as latas no fundo do rio e
ninguém nunca te achará.
Desmantelada de medo, Cândida deu meia-volta e seguiu trêmula para
casa. No dia seguinte, Chico saiu cedo para trabalhar. A vizinha fofoqueira
pegou mais uma vez o bolo de laranja e foi tomar café bem cedinho na casa
de Dilta. Antes de sentar-se à mesa, deu um jeito de bisbilhotar por todos os
cômodos da casa como se tivesse perdido algo. Adriana, irmã de Elize,
estava na escola. Depois de servir café numa caneca, Cândida ngiu
demência e iniciou o interrogatório:
– Onde está o Chico? – quis saber.
– Saiu para trabalhar – respondeu Dilta, cínica.
– E Elize?
– Mandei para a casa da avó.
A bem da verdade, Elize já estava a léguas de distância de Chopinzinho.
Ela saiu de casa tal qual Valter, o pai biológico, com intenção de nunca mais
voltar. Elize começou a caminhar sem rumo. Na primeira noite, dormiu
num cemitério. Na aurora, estava andando feito peregrina de Nossa Senhora
Aparecida pelo acostamento da BR-158. Próximo a um posto de
combustível, cansada, teria recebido a oferta indecorosa de um
caminhoneiro. Ele propôs uma carona em troca de sexo oral. A carreta
levava uma carga de soja. Elize começou a chorar e o motorista teve dó. A
garota subiu na boleia e foi parar em Chapecó, Santa Catarina, a 240
quilômetros de casa, sem ser molestada no percurso.
Não demorou muito para os 50 reais dados pela madrinha minguarem.
Para sobreviver, Elize começou a se prostituir com caminhoneiros aos 15
anos de idade. Cobraria 30 reais pelo programa completo. Numa outra
carona, seguiu para o município de Passo Fundo, já no Rio Grande do Sul. À
medida que a viagem sem destino seguia, ela se vendia no asfalto. A fuga
acabou em Gravataí (RS), a quase 700 quilômetros de casa. Sozinha no
mundo em plena adolescência, Elize experimentou a solidão existencial pela
primeira vez na vida.
Com o sumiço da lha, Dilta passou a ser questionada pela família. A
mãe ocultou a violência sofrida pela garota dentro de casa. Foi até a
delegacia e registrou um boletim de ocorrência sugerindo sequestro.
Cândida, com medo da serra de Chico, sustentou essa versão. A polícia do
Paraná espalhou por postos de gasolina da BR-158 uma foto de Elize na qual
se lia “desaparecida”. O caminhoneiro Augusto Monteiro, de 42 anos na
época, evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus, fazia um
carregamento de madeira de Santa Maria (RS) para o Porto de Paranaguá
(PR). Ele encontrou Elize fazendo ponto num posto de gasolina, na BR-101:
– Quanto é o programa? – perguntou Augusto.
– Trinta reais – a rmou.
– Você é temente a Deus?
Elize balançou a cabeça para responder “sim” e subiu na boleia do
caminhoneiro religioso. Augusto disse que faria sexo para puri car a alma
da menina. Entraram num motel de beira de estrada, segundo relato dele.
Ela não con rma essa história. Depois de transar, Elize se vestiu e cobrou o
dinheiro. O cliente protelou o pagamento e iniciou uma pregação. Com a
Bíblia na mão, falou: “Deus não aprova a prostituição, mas concede perdão e
salvação a todos os que se arrependem verdadeiramente e confessam seus
pecados ao Senhor”. Em seguida, pediu para a garota car nua novamente e
transaram pela segunda vez. Mais uma pausa no programa e o evangélico
leu outro trecho do livro sagrado: “Porque os lábios da mulher licenciosa
destilam mel e a sua boca é mais macia do que o azeite; mas o seu m é
amargoso como o absinto e agudo como uma espada de dois gumes. Os seus
pés acabarão descendo à morte...”. Diante das palavras inadequadas do
caminhoneiro, Elize deixou claro que estava ali a trabalho: “O meu
programa custa 30 reais a hora”. Augusto avisou que pagaria por quatro
sessões, ou seja, 120 reais. Já eram quase seis da manhã quando os dois
caíram no sono. Cansada, Elize teria acordado por volta das 10 horas.
Àquela altura, ela já estava fora de casa fazia duas semanas. Ao se virar para
o lado, Elize viu que Augusto não estava mais na cama. Havia escapado sem
pagar pelo serviço sexual e ainda teria deixado a conta do motel, de 40 reais,
para ela quitar. A partir desse calote, Elize cou mais esperta e passou a
subir nas boleias das carretas só depois do pagamento.
Numa operação da Polícia Rodoviária Federal de agrada em 1997 nas
estradas da região Sul para combate à prostituição infantojuvenil, Elize foi
apreendida e levada para o Conselho Tutelar de Gravataí (RS). Lá, ela foi
identi cada como a garota “raptada” em Chopinzinho. Um carro da Polícia
Rodoviária devolveu a adolescente à família no dia 29 de setembro de 1997,
dois meses antes de ela completar 16 anos.
Envergonhada, Elize escondeu de todos o que fez para sobreviver
durante os 45 dias passados fora de casa. Para evitar a mãe, foi morar na casa
da avó. Longe de Dilta, a adolescente teria deixado em stand by a experiência
de vender o corpo para sobreviver. Focou a vida nos estudos. Em
Chopinzinho, Elize passou pelos colégios estaduais José Armim Matte e
Nova Visão e terminou o Ensino Médio fazendo um curso técnico em
contabilidade no Cenecista São Francisco de Assis. Em todas as instituições
de ensino ela só tirava notas boas. No Colégio Estadual Nova Visão, por
exemplo, a estudante foi a primeira da classe. “Elize nunca deu problema.
Mas, depois de um sumiço de um mês, ela voltou muito calada. Desfez os
laços de amizade e vivia reclusa, circunspecta”, disse a pedagoga Sandra Inês
Bortolon, diretora da escola. Na caderneta de uma professora, está escrita a
seguinte observação sobre Elize: “Aluna muito tímida e pouco
questionadora. Não conseguiu se entrosar com os demais estudantes. Mas
obteve excelentes notas. Isso é o que importa”.
O per l introspectivo de Elize na escola reverberava na casa da avó. Ela
passava o dia sem falar uma palavra. Tia Rose, como Roseli era chamada,
acostumou-se com a fase muda da sobrinha. Numa tarde de domingo, Elize
recebeu a visita inesperada da mãe. Dilta pediu para car a sós com a lha.
Os abusos sexuais sofridos pela adolescente estavam no passado fazia um
ano, mas as feridas continuavam abertas. A mãe tentou convencê-la de que
Chico era um novo homem. Havia mudado e estava carinhoso com a caçula.
Segundo Dilta, o satanás entrava no corpo do marido por meio da cachaça.
Mas ele não bebia mais fazia tempo. Elize nem precisava fazer esforço para
se manter calada diante das palavras da mãe, pois a quietude era uma
característica permanente naquela fase da sua vida. Dilta acabou de falar e a
lha nalmente se manifestou:
– Mãe, tenho saudade da senhora e da minha irmã. Mas só volto se a
senhora expulsar o Chico de casa – propôs.
– Nenhuma mulher deveria ter de escolher entre uma lha e o seu
homem – relativizou Dilta.
– Então me faça um favor: esqueça que eu existo! – encerrou a lha.
Mesmo depois de resgatada das estradas, Elize continuava recebendo
assistência do Conselho Tutelar. Técnicos da entidade encaminharam a
garota para tratamento com a psicóloga Isabela Qader, esposa do
ginecologista Riad Qader, um dos médicos mais respeitados de
Chopinzinho. Em todas as sessões com a terapeuta, a adolescente se
mostrava reticente em falar dos traumas da vida. Para tentar levantar a
autoestima de Elize, Isabela pediu ao advogado Eladio Luiz Roos, amigo de
longa data, que arrumasse um emprego para a garota. Roos a contratou
como secretária e pagava a ela um salário mínimo por mês. No escritório,
era sua função atender os clientes, fazer serviço de banco e faxinar o espaço
de dois cômodos localizado no centro de Chopinzinho. No trabalho, Elize
era calada e e ciente.
Com o certi cado de conclusão do Ensino Médio em mãos, aos 17 anos,
a garota resolveu deixar Chopinzinho para trás e seguir para Curitiba, onde
pretendia estudar enfermagem e recomeçar a vida. Naquela época, em
meados de 1999, Dilta já tinha uma lha de 9 anos com Chico, chamada
Eliana Araújo. Elize faria 18 anos no dia 29 de novembro, mas ela resolveu ir
embora de Chopinzinho antes do seu aniversário.
Elize pediu demissão do emprego e comprou uma passagem de ônibus
só de ida para Curitiba. Embarcaria no Expresso Princesa dos Campos às 21
horas do dia seguinte. Sua partida foi melancólica, pois ela estava rompida
com a mãe. A jovem odiava despedidas e impediu os parentes de irem até a
rodoviária. Pela manhã, Elize fez questão de dar beijos e abraços nas irmãs,
na tia Rose e na madrinha Gelci. A mãe foi ignorada. Chico, ela fazia de
conta que nem existia. No início da noite, a jovem seguiu carregando uma
mala rumo à rodoviária de Chopinzinho. Segundo relatos de familiares, sua
partida teria ocorrido de forma dramática por causa do excesso de choro e
do frio que castigava aquela noite.
Na rodoviária, Elize estava na plataforma ao lado do ônibus numa la
indiana, aguardando o sinal sonoro para iniciar o embarque. De repente, ela
ouviu uma voz familiar chamar pelo seu nome. Virou-se e deu de cara com
Dilta, toda enrolada numa manta e usando um gorro na cabeça. A lha saiu
da la e se aproximou da mãe, mas não o su ciente para car ao alcance de
um toque:
– Vim dizer adeus, lha! – iniciou Dilta, tremendo dos pés à cabeça,
tamanha a emoção.
Elize cou muda e congelada feito uma estátua. Moveu-se para olhar as
horas no relógio de pulso. A mãe, soluçando, teorizou sobre seus atos:
– Às vezes, lha, fazemos coisas horríveis para quem amamos. E isso nos
consome por uma vida inteira. Mas você só entenderá o que estou sentindo
quando tiver um homem e uma lha.
A sirene tocou pela primeira vez avisando o início do embarque e Elize
entregou a sua mala para um funcionário da rodoviária acomodá-la no
bagageiro do ônibus. Dilta continuou falando e falando sem parar. Fria,
Elize ouviu as palavras da mãe sem demonstrar qualquer emoção. Como
ashback de telenovela, ela se lembrou das cenas da violência sexual
cometida pelo padrasto, da decisão da mãe em car ao lado do companheiro
em detrimento da lha e do quanto foi humilhada por caminhoneiros
enquanto seguia com fome e sem rumo nas estradas do Sul. Dilta derramava
um oceano de lágrimas. Ainda assim, Elize não falava nem fazia nada.
A rodoviária soou a sirene pela segunda vez, comunicando que o ônibus
já estava com a porta aberta para o embarque. A la de passageiros começou
a avançar, mas Elize não saiu do lugar. A ita com os minutos nais, Dilta
estendeu os braços e deu um passo à frente com a intenção de dar um
abraço de despedida na lha. Elize deu dois para trás para evitar o carinho
materno. Angustiada, a jovem espiou o relógio mais uma vez para ver
quantos minutos faltavam para o ônibus partir. Restava somente um. Todos
os passageiros já haviam embarcado, exceto Elize. O motorista avisou-lhe
pessoalmente que partiria em questão de segundos.
Dilta não sabia mais o que fazer num espaço de tempo tão exíguo. Estava
esgotada sicamente e com muito frio. Tinha di culdades para respirar e até
mesmo para se manter de pé em razão do forte abalo emocional. Sem forças
nas pernas, ela se ajoelhou na soleira da rodoviária. Pôs-se a chorar mais e
mais, chamando a atenção de quem passava por ali. A sirene soou para dar o
aviso nal da partida do ônibus, que já estava com o motor ligado. A porta
nalmente se fechou, deixando Elize do lado de fora. Ao ver a mãe tão
humilhada, a lha nalmente chorou, mas não saiu do lugar. A cena atraiu
curiosos. O ônibus iniciou lentamente uma manobra de ré para deixar a
plataforma. Desesperada, Dilta puxou o ar para os pulmões com muito
sacrifício e fez uma pergunta categórica à lha usando somente três
palavras:
– Você me perdoa?
Sexo sem culpa e emoção

A
enfermeira Estella Arnault, de 27 anos, abriu os olhos às 11 horas, mas
não quis largar o aconchego das cobertas. Trabalhou por 12 horas
ininterruptas no dia anterior no Hospital Nossa Senhora das Graças,
um dos maiores da rede particular de Curitiba. Estava acabada. Às 14 horas,
tinha de fazer um atendimento no Nomaa Hotel, um dos mais luxuosos da
cidade, com diária acima de 500 reais. Estella é uma alcunha. Seu verdadeiro
nome ela não revela nem pendurada no pau de arara.
Natural de Horizontina, Rio Grande do Sul, a enfermeira era uma
personagem muito bonita. Sarcástica, altura mediana e cabelos castanho-
claros longos, volumosos e sempre esvoaçantes. Tinha o hábito de se
maquiar para o café da manhã e assim cava até a hora de dormir, retocando
o pó do rosto e o batom ao longo do dia. Herdou do avô materno o costume
de ler. Preferia romances clássicos. Seus prediletos eram O amor nos tempos
do cólera, de Gabriel García Márquez; e Crime e castigo, de Dostoiévski.
Cultivava um defeito adquirido dos pais por osmose: falava muito palavrão.
Porém, o vocabulário chulo não saía da boca de Estella de forma agressiva.
Pelo contrário, era até engraçado e charmoso quando misturado ao sotaque
gaúcho carregado. Seus colegas de trabalho e até os pacientes do hospital já
estavam acostumados com a sua boca-suja.
Independente e carismática, Estella morava sozinha num at de luxo na
Visconde de Rio Branco, no centro de Curitiba. A soma do aluguel,
condomínio e IPTU chegava a 5.800 reais mensais. Orgulhava-se de manter
um bom padrão de vida sem precisar pedir um centavo aos pais. Ela
também dava assistência em domicílio a pacientes. Era um tratamento VIP.
Cada visita para aplicação de injeção, curativo e retirada de pontos custava
600 reais. A maioria dos pacientes da enfermeira era formada por idosos
ricos.
Empreendedora, Estella era pro ssional da saúde e do sexo. Nesse dia
em que acordou tarde, ela desceu para se exercitar na academia do
condomínio com um personal trainer, almoçou rapidamente uma salada
com lé-mignon, vestiu o uniforme branco, pôs um sobretudo e seguiu para
o compromisso no hotel. Saciou os desejos de um cliente por duas horas e
recebeu 800 reais em cash.
Em Curitiba, Elize Araújo tinha 18 anos em 2000. Nessa época, era aluna
do curso pro ssionalizante da Escola Vicentina Técnica de Enfermagem
Catarina Labouré, uma entidade religiosa mantida pela Província Brasileira
da Congregação das Irmãs Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo. A
maioria das alunas era pobre. A escola administrada por freiras mantinha
um alojamento com diversos beliches. Cada cama saía a 120 reais mensais.
Elize dormia num quarto amplo com outras seis estudantes. Por causa das
boas notas, a jovem ganhou das freiras uma indicação para estagiar como
técnica de enfermagem no Hospital Nossa Senhora das Graças. Sobre sua
atividade no hospital, Elize falou em 2016: “Eu trabalhava no centro
cirúrgico. Não participava [diretamente] de cirurgias porque essa não era a
minha função. A minha tarefa era receber o paciente, relatar como ele
chegou, se estava bem, se não estava, se estava sedado ou não [...] Eu
presenciava [todas] as incisões [feitas nos pacientes]”. Nesse centro
cirúrgico, a vida de Elize cruzou com a de Estella. As duas participavam de
um procedimento vascular realizado por uma equipe médica em um
paciente de 48 anos.
No início, o linguajar grosseiro da gaúcha chocou Elize. Mas
rapidamente a paranaense se acostumou. Após um plantão no hospital, as
duas saíram no nal da tarde para tomar um drinque. No estacionamento, o
queixo de Elize foi ao chão. Estella tinha um Jeep Cherokee avaliado em 300
mil reais na época. Enquanto comiam, falavam da vida. Elize fez um resumo
da sua biogra a: era pobre, família desestruturada, pai alcoólatra, mãe louca,
e se referiu à tia Rose chamando-a de anjo. Também falou do coração
bondoso da avó Sebastiana. Para não chocar a nova amiga, evitou contar a
história dos abusos cometidos pelo padrasto e omitiu a passagem
envolvendo a prostituição nas estradas do Sul.
Em pouco tempo, as duas tornaram-se amigas íntimas. A enfermeira
convidou Elize para tomar um vinho em seu at, e o queixo dela caiu pela
segunda vez. O apartamento era incrível. Tinha piso de porcelanato,
bancadas de granito preto e um sofá escuro enorme de couro bovino
superconfortável. Estella abriu uma garrafa de vinho San Marzano Passito e
o serviu em taças de cristal. Já eram íntimas e estavam levemente bêbadas
quando Elize resolveu abrir os seus segredos de família. Falou aos prantos
do pai ausente que apareceu em casa só para levar a TV, da violência sexual
cometida pelo padrasto, pontuando inclusive a atitude negligente da mãe, e
da experiência traumática em vender o corpo pelos postos de gasolina aos
15 anos. Finalizou com a história da mãe se humilhando em busca de
remissão na rodoviária:
– Você acredita que ela teve coragem de pedir perdão na rodoviária? –
indignou-se Elize.
– Barbaridade! Tu perdoou, caralho?
– Não consegui!
Para Elize, aceitar o perdão de Dilta naquele momento era uma provação
ainda fora do seu alcance. Enquanto sua mãe estava ajoelhada na plataforma
de embarque da rodoviária de Chopinzinho, implorando por uma
indulgência, Elize bateu na porta do ônibus já em início de manobra para
partir. A jovem suplicou ao motorista para entrar. Ele parou o coletivo e
Elize embarcou, deixando a mãe e Chopinzinho para trás.
Não faltavam motivos para Dilta ter sido desprezada pela lha na
rodoviária. Os abusos sexuais sofridos por Elize, o desdém da mãe num dos
momentos em que ela mais precisava de apoio e a vida aviltante de
prostituta na adolescência deixaram sequelas psicológicas que assombravam
as noites de Elize. Sozinha no mundo, ela passou a ter distúrbios do sono,
depressão, sentimento de degradação e perda da autoestima. Carregava
consigo culpa, ansiedade e temor de andar ou car só. Elize tinha medo de
pessoas estranhas e pesadelos repetidos recapitulando a violência sexual,
além de síndrome do pânico e problemas com relacionamentos íntimos. A
jovem passou a nutrir um sentimento de despersonalização e começou a
desenvolver lentamente uma segunda personalidade para se proteger. Essas
sequelas começaram ainda em Chopinzinho e se acentuaram em Curitiba.
Também egressa de um lar disfuncional, Estella sabia que alguns boletos
sentimentais envolvendo família não eram quitados facilmente. Aos 14 anos,
tinha beleza de modelo de capa de revista. Foi descoberta por um “olheiro”
que prometeu catapultá-la dos cafundós do Rio Grande do Sul para as
passarelas de Milão, Paris e Nova York de forma meteórica, feito uma Gisele
Bündchen, sua conterrânea. Conseguiu se emancipar aos 15 e se mudou
para São Paulo. Estella fez vários ensaios fotográ cos, uns testes aqui, outros
ali e acabou nas páginas do book rosa de uma grande agência de modelos
localizada no bairro dos Jardins, um dos mais nobres da capital paulista. Um
primo agropecuarista de Estella, de 28 anos, morador do município de Santa
Rosa (RS), foi a São Paulo assistir a uma corrida de Fórmula 1 em Interlagos.
No camarote do autódromo, recebeu de um promoter a oferta de sair com
mulheres de luxo. Ao consultar o catálogo com fotos de modelos nuas em
poses sensuais, o jovem descobriu que a sua prima estava no cardápio. Ele
teve a coragem de marcar um encontro para transar com ela. Mas Estella
recusou e implorou para que ele mantivesse segredo. O pecuarista fez o
oposto. Foi até Horizontina e marcou uma reunião familiar com tias, avós e
primos. Anunciou que Estella era “puta de luxo”.
Soltando fogo pelas ventas, a mãe de Estella foi buscá-la em São Paulo e
a levou de volta para casa. A garota tinha 16 anos quando levou uma surra
de cinta no meio da rua. Os vizinhos acompanharam o escarcéu. No
alvoroço, alguém perguntou em voz alta por que a adolescente apanhava
tanto. A mãe respondeu para todo o mundo ouvir que ela havia jogado o
sobrenome da família na lama.
Aos 18 anos, Estella mudou-se para Curitiba com um único propósito:
esquecer a família e alcançar a sua independência nanceira. Passou a se
prostituir para juntar dinheiro, mas traçou uma meta: aos 30 anos deixaria
de vender o corpo e abriria um negócio digno aos olhos da sociedade.
Cursou enfermagem na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-
PR) e tornou-se uma excelente pro ssional.
Depois de ouvir a história triste da amiga, Elize foi até a sacada do at de
luxo. Olhou para o in nito da noite e tentou enxergar o futuro. Naquele
momento, ela vivia com um salário de 1.200 reais, mais 300 reais que tia
Rose e a avó Sebastiana mandavam de Chopinzinho com muito sacrifício.
Quando voltou para a sala, a jovem se serviu de mais um pouco de vinho. O
telefone de Estella tocou. A enfermeira saiu da sala para atender a chamada
com privacidade. Elize conseguiu ouvir parte da conversa:
– Por onde tu andava, seu merda?
– [...]
– Faz o de sempre, guri. Entra pela garagem e sobe pela escada de
incêndio.
– [...]
– Até mais tarde, seu puto!
A carteira de clientes de Estella era invejável. Ali guravam deputados
estaduais do Paraná, vereadores de Curitiba, prefeitos do interior
paranaense, empresários, executivos, advogados e uma in nidade de pais de
família ricos e integrantes da tradicional família brasileira. Enquanto Estella
se arrumava para receber o próximo cliente, Elize perguntou se levava jeito
para “esse negócio de luxo”. Cheia de deboche, a pro ssional veterana parou
o que estava fazendo, olhou xamente para aquela gura triste e se
aproximou. Passou a ponta dos dedos nos contornos do rosto pálido e
delicado da amiga. Na época, Elize usava os cabelos naturais de cor
castanho-escuro. Estella levantou as madeixas ressecadas da técnica de
enfermagem pelas pontas e as soltou logo em seguida:
– Puta que pariu, Elize! Sério que você perguntou isso? Olha, vou ser
honesta: você teria de morrer e nascer de novo para dar certo como uma
pro ssional classe A!
Elize pescou a ironia na e deu uma risadinha de canto de boca. Pegou a
bolsa, despediu-se da amiga e saiu pensativa e desconcertada ao mesmo
tempo. No alojamento das freiras vicentinas, deitou-se na cama de beliche e
olhou em volta, tando o rosto de cada uma das colegas de quarto. Era
impossível apontar qual delas tinha o semblante mais sofrido. Uma de 16
anos era egressa da roça. A coitada pegou tanto sol no rosto que cou com a
pele toda enrugada. Sonhava com o magistério. A outra tinha 18 e era órfã
de pai e mãe desde os 9. Viera de um abrigo para jovens disponíveis para
adoção. Adulta, já não tinha mais expectativa de encontrar uma família para
chamar de sua. No meio de tanto infortúnio, Elize resolveu seguir o
conselho de Estella: nascer novamente. A primeira providência era sair
daquele pensionato horroroso. Seus planos eram pra já.
Enquanto isso, Estella recebia em seu at um velho cliente. Gilberto era
narcotra cante do Primeiro Comando da Capital (PCC). Atuava numa rota
internacional por onde escorriam toneladas de maconha prensada do
Paraguai até o Porto de Paranaguá, no litoral do Paraná. Tinha 36 anos, era
alto e magro. O cliente era adepto de um fetiche cada vez mais comum, o
BDSM, práticas sexuais envolvendo disciplina, dominação, submissão,
sadismo, masoquismo, além de bondage (amarrar alguém ou ser
imobilizado). No BDSM raiz há consenso entre o casal praticante. Gilberto
tinha ainda como hobby o polo, um esporte praticado a cavalo. Era vistoso,
mas caminhava pela sombra em razão da atividade criminosa. Só transava
com prostitutas de con ança e mulheres do trá co. Não frequentava motéis
nem hotéis, pois tinha pavor de câmeras de segurança. Ele se dizia
apaixonado por Estella. A cada pernoite no at da pro ssional, deixava entre
800 e mil reais em dinheiro vivo, além de presentes caros, como joias,
perfumes, bebidas e acessórios para a prática de BDSM. No acordo entre o
casal, Gilberto jamais poderia entrar com armas e drogas na casa de Estella.
A relação era de extrema segurança. Ele tinha o controle remoto para abrir o
portão da garagem e subir sem passar pela portaria. Para escapar das
câmeras, nunca usava o elevador. Subia sempre pela escada de incêndio e
chegava ao apartamento pela porta da cozinha.
Certa vez, Gilberto foi à casa de Estella e implorou para deixar duas
malas grandes por uma semana. Estava até disposto a pagar bem pelo favor.
A enfermeira nem quis saber o conteúdo da bagagem. Enérgica, deixou
claro que o apartamento não era guarda-volumes. Em outra ocasião, o
narcotra cante queria levar uma amiga para fazer sexo a três. Estella mais
uma vez recusou a proposta, já sabendo que a terceira pessoa era do mundo
do crime. Gilberto respeitava as negativas da amiga. Brincando, dizia que ela
era a única puta de Curitiba com código de ética.
Do outro lado da cidade, Elize colocou o seu plano de renascimento em
ação. O primeiro passo foi aumentar o limite do cartão de crédito para ter o
capital necessário para dar início à carreira de garota de programa de luxo.
Ela lançou mão de um cambalacho: falsi cou o contracheque de 1.200 reais
do Hospital Nossa Senhora das Graças. O valor dos rendimentos cava
descrito abaixo, à direita do documento. Ela pegou o holerite do mês
anterior e recortou dele só o número 1. Com a habilidade de técnica em
enfermagem, usou uma pinça de sobrancelha para colar o algarismo no
contracheque mais atual no campo do salário líquido. Após a falcatrua, seus
rendimentos do hospital naquele papel saltaram de 1.200 para 11.200 reais.
Para a conta bater, ela teve de fazer outras colagens no campo destinado aos
ganhos com adicionais noturnos e horas extras. Também houve adulterações
nos descontos. Depois de completar a fraude, Elize tirou uma fotocópia do
documento para camu ar as marcas discretas dos recortes. Em seguida,
ligou para a administradora do cartão e pediu para aumentar o limite. A
operadora solicitou um comprovante de rendimentos por fax e a técnica de
enfermagem mandou sua obra de arte. Duas semanas depois, recebeu um
cartão de crédito American Express categoria platinum com limite de 35 mil
reais. Também ganhou uma maquineta de crédito da Visanet Brasil, hoje
chamada de Cielo.
Elize ligou para Estella dizendo estar pronta para renascer e combinou
de encontrar a amiga no Shopping Crystal. Foram às compras. Escolheram
minissaias e vestidinhos pretos, sapatos de salto agulha, calcinhas e sutiãs de
grife. Elize selecionava só peças caras, enquanto Estella a repreendia dando
dicas importantes:
– As roupas de uma guria de luxo não podem custar muito. Tem de
parecer caras, mas custar pouco, entende? Tipo as peças da Zara: bonitas e
tribaratas.
A professora falava e a aluna obedecia. Nada de gastar muito. Em três
horas, a técnica de enfermagem já havia investido quase 5 mil reais apenas
em roupas, sapatos e acessórios, mas nas sacolas só havia itens
imprescindíveis. Estella teve de deixar a amiga no meio das compras e foi
fazer um curativo em domicílio num paciente que havia sido submetido a
um transplante cardíaco. As duas caram de se encontrar no at à noite para
jantar. Como Elize chegaria primeiro, cou com a chave da porta. Ela ainda
deveria passar num salão e mudar o visual. Estella ligou para um
cabeleireiro de con ança e deu as coordenadas:
– Veado do céu! Estou mandando uma amapô. Faz um extreme
makeover na racha. Mudança radical mesmo! Corta, pinta, repica, hidrata,
harmoniza, cauteriza, arruma as sobrancelhas... Faz o diabo aí. Estamos em
cima do laço! Deixa a caipira com cara de rica!
O salão escolhido era uma unidade do tradicional Torriton Beauty &
Hair, considerado um dos mais cafonas da cidade. Orientada pelo
pro ssional, Elize tingiu os cabelos castanho-claros de louro sueco e fez um
corte moderno para ressaltar a beleza do rosto. Manteve a base reta e as
pontas assimétricas. Deixou a franja repicada à altura dos olhos,
proporcionando um visual arrojado. Em seguida, fez as unhas dos pés e das
mãos. A conta cou em 900 reais (valores da época), mas ganhou um
desconto de 30%. No nal do dia, Elize estava estupidamente linda. A nova
aparência, no entanto, era apenas uma capa protetora. Os traumas e as
feridas emocionais da garota tímida do interior continuavam escondidos
embaixo daquele verniz.
Depois do banho de loja, Elize passou no supermercado e comprou com
o seu cartão de crédito duas garrafas de vinho chileno Gato Negro, um
cabernet sauvignon popular frutado e de taninos macios, cuja unidade à
época custava 29,90 reais. Partiu para o at de Estella. Usou uma de suas
roupas novas. Escolheu um vestido preto sem alças e curtíssimo. Subiu num
sapato scarpin vermelho de salto no médio da Arezzo de 270 reais e abriu o
vinho. Estella chegou em casa vestida de enfermeira e teve um espanto
quando se deparou com a nova Elize. Tapou a boca com as duas mãos e
destapou em seguida para soltar frases que deixariam as freiras vicentinas
sem ar:
– Nossa Senhora do Cacete, a mãe de todas as fodas! Tu realmente
nasceu de novo, guria!
– O que você achou? – quis saber Elize, tímida.
– Puta que pariu! Os homens vão saudar você como Vênus numa concha
– brincou Estella, fazendo referência à pintura O nascimento de Vênus, do
italiano Sandro Botticelli.
Estella tinha motivos para car boquiaberta. De fato, Elize parecia a
Vênus, a deusa romana que emergiu do mar. Era outra mulher. Exalava
sensualidade aos 19 anos. As duas brindaram com vinho a nova fase da
estudante de técnica de enfermagem e bolaram planos. Estella lhe fez uma
proposta para começar a carreira: passaria clientes para a aprendiz em troca
de uma comissão de 60%. Elize topou, pois não queria fazer anúncio em
jornais de grande circulação com receio de a família descobrir sua nova
atividade. Mas, antes de começar a atender, a jovem teve aulas de expressão
corporal com Estella. Sua postura era muito acanhada. “Uma garota do
nosso naipe usa mais o corpo do que a fala para se comunicar. Por exemplo,
braços cruzados podem indicar descontentamento. Ombros contraídos
revelam insegurança, tudo o que uma acompanhante não pode transmitir.
Até a forma como você se senta dará informações sobre você. Quando
receber o cliente, que sempre ereta e sente-se com as pernas cruzadas.”
Estella também repassou para Elize ensinamentos dos cursos de modelo
feitos em São Paulo. “Trabalhe as expressões faciais. Deixe a cabeça erguida,
mas o queixo apontado levemente para baixo. Mantenha os olhos focados
no cliente. Ao caminhar, coloque sempre um pé na frente do outro e siga a
passos largos. Nunca exagere nos movimentos com os braços, mas também
não deixe eles duros. Faça sempre poses levemente sensuais.”
A mentora também deu uma aula de etiqueta para Elize debutar no
mundo da prostituição de luxo. Alguns dos conselhos de Estella repassados
à novata eram: “Nunca dê o seu nome de batismo, isso a deixa vulnerável.
Quando estiver com um cliente, não se re ra ao seu trabalho com termos
vulgares. Diga apenas que você é uma ‘pro ssional’. Nunca tire a roupa antes
do pagamento. Beba sempre com moderação em serviço. Pre ra o vinho,
pois ele deixa a mulher leve e solta. Se o cliente perguntar se você faz anal,
diga ‘não’ logo de cara. Ele vai pressionar bastante. Depois de muita
insistência, você cede dizendo que vai abrir a ele uma exceção pra lá de
especial. Aí você valoriza o serviço cobrando a mais. Na nossa categoria,
anal custa 500 reais. Higiene é fundamental. Camisinha sempre. Não aceite
sexo sem proteção nem por todo o dinheiro do mundo. Se você contrair
uma doença sexualmente transmissível (DST) ou engravidar, vai car
parada e gastará muito dinheiro em tratamento médico, remédios, aborto...
Finja sentimentos pelo cliente. Seja carinhosa, pois a maioria dos homens é
carente. Alguns nem fazem questão de sexo, querem apenas um pouco de
afeto e conversar, falar da vida... Entre nessa para empreender. Junte todo o
dinheiro que conseguir para abrir um negócio decente. Mas marque no
calendário uma data para abandonar a pro ssão. Quanto antes, melhor”.
Os conselhos de Estella foram repassados para Elize em 2000.
Atualmente, o termo “doenças sexualmente transmissíveis”, assim como a
sigla DST, está em desuso. A nomenclatura adotada pelos médicos passou a
ser “infecções sexualmente transmissíveis”, ou IST.
Madrugada adentro, as duas jovens beberam e conversaram amenidades.
Elize dormiu no sofá. Quando acordou, às 9 horas, percebeu o quanto
Estella era batalhadora. Ela já tinha passado num condomínio de luxo para
dar assistência a um paciente com câncer, encontrava-se em São José dos
Pinhais participando de uma cirurgia plástica e à tarde estaria no hospital.
Na porta da geladeira havia um recado escrito num post-it verde-limão: “Seu
primeiro cliente chegará no at às 15 horas. Esteja linda feito Vênus na
concha”, dizia o texto enfeitado com o desenho de um coração.
Às 15 horas em ponto Elize estava com o mesmo gurino usado para
surpreender Estella no dia anterior. Ansiosa, cou plantada perto do
interfone, aguardando o porteiro anunciar a visita. Mas o aparelho não
tocou. De repente, a campainha da cozinha soou feito uma cigarra. Elize
abriu a porta sentindo um frio na barriga. Era Gilberto, o narcotra cante. A
neó ta cou encantada com a beleza do primeiro cliente. Habitué do at, ele
entrou sem fazer cerimônia e preparou dois drinques, um para ele e outro
para Elize:
– Prazer, meu nome é Gilberto. E o seu?
– Kelly! – anunciou.
Gilberto era procurado pela Polícia Federal e até por tra cantes de
facções rivais do PCC. Mas a sua alta periculosidade destoava de sua
persona. Era um homem educado, charmoso e carinhoso. A pistola calibre
38 presa no tornozelo não combinava com o seu excesso de gentileza. Ele
percebeu o nervosismo de Kelly quando acariciou o rosto da garota. A
jovem estava trêmula a ponto de o gelo sacolejar e bater nas laterais no copo
de uísque, fazendo um barulho incômodo. O casal cou conversando por
horas sobre sexo. O bandido perguntou quais acessórios a garota de
programa tinha. Ela respondeu nenhum. “Nem uma algema?”. “Nada”. Ele
então se aproximou para dar um beijo. Kelly se lembrou dos ensinamentos
da mestra e do caminhoneiro evangélico caloteiro:
– Vamos primeiro falar de negócios? – sugeriu a jovem.
– Claro!
Gilberto tirou de uma mochila 20 notas de 50 reais e pôs sobre o vidro
da mesa de centro. No mesmo móvel, ele desenhou duas carreiras de
cocaína. Ofereceu uma delas a Kelly, que recusou. O bandido, então,
inspirou as duas de uma vez só. Transaram por uma hora e depois caram
agarradinhos na cama feito namorados. O narcotra cante recebeu uma
ligação inesperada e vestiu-se às pressas. Na despedida, o cliente aconselhou
a garota de programa a providenciar acessórios sexuais. Ele deu um beijo
longo e romântico nela, prometeu voltar e saiu em disparada pela mesma
porta que entrou.
Kelly tomou um banho, pôs o uniforme branco, encarnou a técnica de
enfermagem Elize Araújo e seguiu para o hospital, onde bateu ponto às 18
horas no centro cirúrgico para participar de uma cirurgia complexa. Nessa
noite, acompanhou uma toracotomia posterolateral em um paciente de 42
anos com câncer de pulmão.
Sedenta por novos conhecimentos, Elize observou atentamente o passo a
passo daquele procedimento complexo e agressivo. Sua função começava
com o preenchimento de prontuários. O cirurgião torácico começou os
trabalhos anestesiando o paciente e ajeitando o corpo dele na posição lateral.
Os braços do doente foram imobilizados para o alto com ataduras. Em
seguida, o cirurgião cortou a porção lateral do tórax, abaixo do mamilo,
usando um bisturi. A incisão se estendeu até o ângulo inferior da escápula,
passando por entre as costelas. Posteriormente, a borda anterior do músculo
grande dorsal foi identi cada, dissecada, descolada e separada por um
instrumento chamado afastador autoestático, mantendo o talho aberto
permanentemente, perfazendo no paciente uma incisão enorme de 20
centímetros. O afastador é um instrumento rústico que lembra uma chave
inglesa e tem como nalidade ampliar o campo operatório, evitando lesão
em outros órgãos.
Sem se dar conta, Elize aprendia no hospital técnicas cirúrgicas que
seriam úteis no futuro. Ela observava fascinada o procedimento. Os médicos
removeram a quinta costela do paciente para melhorar o acesso e proteger
elementos neurovasculares intercostais. Aprofundaram a incisão com um
bisturi elétrico até chegarem à pleura, que foi aberta. Seguiram o
procedimento aumentando o corte até alcançarem o pulmão. Depois
dissecaram a artéria pulmonar e seus ramos que escoam direto do coração.
Nessa hora, um vaso foi lesionado, provocando sangramento excessivo. A
equipe médica cou apreensiva. O paciente perdeu um litro de sangue e teve
de fazer uma transfusão de emergência.
Depois de contornar o incidente, parte do pulmão foi removida para
tentar salvar a vida do doente. O que restou do órgão foi suturado com
grampeadores cirúrgicos. Antes de fechar a incisão, os médicos drenaram o
ar e o líquido da região. A toracotomia é uma das incisões mais doloridas da
medicina. Em alguns casos, o paciente sente fortes dores no pós-operatório
por meses. A cirurgia descrita acima durou aproximadamente quatro horas.
Em 2021, a técnica para cirurgias pulmonares era mais avançada e podia ser
realizada com vídeo e até por robôs.
Elize cou chocada com a quantidade de sangue que o paciente verteu
durante a operação. Coube a ela, como técnica de enfermagem, ajudar o
enfermeiro-chefe em toda a cirurgia. Foram sua incumbência, por exemplo,
a conservação e a manutenção dos equipamentos, inclusive dos
instrumentos usados para cortar o paciente. Elize também etiquetou e
encaminhou ao laboratório de análise o pedaço de pulmão retirado do
paciente. No nal, ela lavou alguns dos instrumentos usados na cirurgia: um
bisturi de lâmina número 10 para incisão da pele e tecidos moles, uma faca e
uma tesoura de curva mayo para dissecação em geral. Depois de limpar cada
um desses instrumentos, ela os armazenou na estufa para esterilização. No
nal, a jovem recebeu elogios dos médicos pelo empenho e a forma delicada
com que guardava os instrumentos cortantes.
Do hospital, a técnica em enfermagem seguiu para o at de Estella. As
duas tomaram vinho e Elize contou detalhes do programa feito com
Gilberto. Ela usou adjetivos como “respeitador”, “cortês” e “distinto” para
descrever as qualidades do cliente narcotra cante. Repassou 600 reais à
amiga a título de comissão e ouviu da cafetina um alerta:
“O Gilberto é um excelente cliente. Mas fazer um programa com ele é o
mesmo que dormir com satanás! Toma cuidado, guria”.
Ainda uma trainee na pro ssão, Elize sonhava em se encontrar só com
clientes atraentes, educados e ricos. Estella tentava – em vão – mostrar que a
vida na prostituição, mesmo na de luxo, não era tão encantadora como na
imaginação. “Nesse tipo de trabalho, tu não tem a opção de fazer escolha
nem o direito de ter nota de corte. Se quiser fazer dinheiro, tu tem de
encarar o feio e o bonito, o alto e o baixo, o sujo e o limpo, o magro e o
gordo, o cheiroso e o fedido, o rico e o pobre – desde que eles tenham
dinheiro para pagar pelo programa”, ensinou a veterana. Estella também
aconselhou Elize a encontrar um local o mais rápido possível para atender
com privacidade os clientes VIPs encaminhados futuramente. A novata já
tinha, inclusive, um novo programa agendado para dali a dois dias.
Na manhã seguinte, a jovem foi ao curso de técnica em enfermagem e na
hora do almoço alugou por 3.800 reais um lo mobiliado de 70 metros
quadrados no bairro Cabral, um dos mais familiares de Curitiba. A moradia
era moderna, combinando com a personalidade de Kelly. Pé-direito duplo
na sala e uma vista de tirar o fôlego. Tinha conceito open living, ou seja,
todos os ambientes eram integrados e ideais para reuniões sociais. O
apartamento tinha móveis planejados, venezianas, aquecimento a gás,
banheiros com ventilação natural e lavabo. No piso inferior havia uma sala
ampla conjugada à cozinha. No piso superior, uma suíte com closet. O
condomínio oferecia duas vagas de garagem, salão de festas, churrasqueira
na cobertura, espaço tness e portaria 24 horas. Tudo isso a poucos metros
da Igreja Bom Jesus, onde Elize passou a acompanhar as missas de domingo
à noite.
Para oferecer conforto aos clientes, ela caprichou nas roupas de cama e
de banho. Gastou quase 4 mil reais comprando lençóis de os egípcios,
toalhas bordadas com gramatura 500 e roupões aveludados. Para proteger o
sofá preto & rosé gold de quatro lugares, providenciou uma capa em tecido
acquablock. Quem estreou o lo foi Josemar, o segundo freguês da novata.
Ele foi anunciado pelo interfone ao meio-dia.
Ao abrir a porta pivotante de três metros de altura, Elize quase caiu para
trás. Estella havia enviado um velho sexagenário. A ideia era mostrar a ela
que a vida real no mundo da prostituição não era nem um pouco colorida.
Os pelos do nariz do cliente eram tão grandes que se misturavam com o
bigode. Josemar já entrou com a calça aberta e o pênis ereto à mostra,
dizendo ter pressa porque o estimulante sexual (citrato de sildena la) que
havia tomado estava fazendo efeito. Agitado, o idoso sentia dor de cabeça,
ondas de calor e a visão estava embaçada. Segundo ele, tudo à sua volta era
azul. Elize, ou melhor, Kelly, teve vontade de evaporar. Ele era grotesco:
– Anda, vadia. Corre que não posso esperar. Tira a roupa! – exigiu.
– Mil reais! – cobrou.
– Tá louca? Com esse dinheiro passo a vara em atriz pornô!
O infeliz jogou no chão 200 reais em notas amassadas de 20 e 50, tirou a
roupa toda, inclusive a fralda geriátrica. Kelly nem teve coragem de juntar o
dinheiro. Foram direto para a cama super king novinha em folha. Josemar
estava agitado. Quando cou por cima da jovem, ele teve hiperemia ocular e
congestão nos seios nasais. A frequência cardíaca disparou. Os olhos
vermelhos assustaram a garota. Resiliente, ela continuou. Até que uma baba
espessa começou a escorrer lentamente pelo canto da boca de Josemar.
Quanto mais ele movimentava o corpo sobre a prostituta, mais a secreção
asquerosa descia. Para evitar que a gosma pingasse em seu rosto, Kelly
mudou de posição. Ele acabou se livrando da baba esfregando a boca na
fronha de seda branca do travesseiro de plumas de ganso.
Entre uma posição e outra, Josemar tinha palpitações e reclamava de dor
nas costas. Depois de tanto perrengue, acabou o serviço em meia hora de
sexo sem ejacular. Por incrível que pareça, o festival de constrangimentos
não havia acabado. Quando o velho se levantou da cama, Kelly percebeu que
ele havia urinado no colchão. O cliente pareceu não se importar. Vestiu-se
rapidamente e saiu com a mesma pressa com que chegou. Quando ele bateu
a porta, Kelly concluiu o óbvio: não existe glamour no universo da
prostituição. Decidiu desistir daquela vida e investir na carreira de
enfermagem. Porém, lembrou-se da fatura do cartão de crédito, do aluguel
do lo, das dívidas do dia a dia e até dos vinhos que bebia. Tomou um
banho, passou um batom vermelho e seguiu em frente vendendo o corpo
para qualquer um com o objetivo de pagar as contas e subir na vida.
Decidida a se aperfeiçoar na pro ssão, Elize seguiu um dos conselhos de
Gilberto e foi a um sex-shop, no centro de Curitiba. Comprou um kit fetiche
contendo chicote com tiras de couro, chibata de aço e cabo anatômico,
algemas de metal, palmatória com rebites, coleira, venda e mordaça. Tudo
de primeira. Gastou quase 3 mil reais na compra. Como bem escreveu
Sigmund Freud, “todo mundo oculta a verdade nos assuntos sexuais”.

* * *

Na praça da escola de enfermagem das irmãs vicentinas, Elize fez


amizade com uma técnica estudiosa de 21 anos chamada Rovênia Soares.
Séria e reservada, a garota chamava a atenção quando ria porque levava a
mão à boca para esconder os dentes desgastados pelo bruxismo e emitia
sons agudos parecidos com chiado de ratos. Uma enfermeira com poder de
chefe no Hospital Nossa Senhora das Graças teria pedido para Elize indicar
uma pro ssional recém-formada para uma vaga na unidade de terapia
intensiva, e o nome da amiga veio à baila. Sondada, Rovênia cou lisonjeada
e agradeceu o convite, mas declinou da oferta. A garota conhecida pela
delicadeza e semblante bondoso tinha planos muito mais ambiciosos do que
fazer plantão em hospital particular ganhando 5 mil reais por mês. Sua
especialidade era cuidar em domicílio de doentes terminais de câncer feito
uma “doula da morte”, de nição da acompanhante que ca ao lado de
pacientes terminais até o último suspiro.
Seletiva e articulada, Rovênia só tinha pacientes endinheirados. Visitava
de forma sistemática oito doentes indicados pelas freiras vicentinas. Sua
função era aplicar mor na e dar conforto espiritual aos doentes no m da
linha. Às vezes, ela passava tardes inteiras ao lado deles conversando e
fazendo carinho com o intuito – aparente – de aliviar o sofrimento e
proporcionar qualidade à morte.
Um ano antes de se especializar nesse tipo de atividade, Rovênia cuidou
por oito meses de uma senhora de 70 anos com um câncer colorretal
agressivo. Quanto mais a paciente de nhava, mais os familiares se
afastavam. Aliás, esse tipo de abandono é mais comum do que se imagina,
principalmente nas famílias ricas. No último mês de vida, a tal senhora
recebia cuidados e atenção somente de Rovênia e de duas enfermeiras.
Numa das visitas da técnica, a senhora agradeceu o carinho dispensado pela
jovem. Espontaneamente, a paciente passou a ela algo embrulhado com
papel de pão e amarrado com barbante. Rovênia desatou o nó, abriu o
pacote e se emocionou quando se deparou com 30 mil reais em notas de 100
amarradas com elásticos. “Você merece mais do que qualquer lho. [...] No
momento em que mais precisei, só você esteve ao meu lado”, justi cou. A
técnica aceitou o presente. Uma semana depois, a doente morreu.
Esperta feito uma raposa, Rovênia descobriu um lão nesse tipo de
atendimento. Passou a cuidar só de doentes terminais com idade avançada e
renegados pela família. O objetivo era se dar bem na vida. Em um ano, ela
mostrou sinais de prosperidade. Tinha um Honda Fit automático zero-
quilômetro avaliado na época em 50 mil reais e morava em um apartamento
de dois quartos no bairro Cidade Industrial, em Curitiba. Um dos seus
pacientes era um senhor de 72 anos com expectativa de apenas seis meses de
vida e cujo câncer iniciado no pâncreas estava espalhado pelo fígado,
pulmões, cérebro e até pelos ossos. O paciente cava prostrado na cama e
Rovênia cuidava dele como se fosse um anjo. Para tentar sensibilizá-lo, ela
inventava histórias tristes envolvendo falta de dinheiro para comprar
comida, despejo na família por causa de inadimplência no carnê da casa
própria e até dívida com agiotas para comprar remédios para a avó.
Comovido, o doente sem amparo familiar repassou à técnica em
enfermagem com cara de santa um cartão de débito de sua conta no Banco
do Brasil e uma senha de seis dígitos anotada em um papel. Foi autorizada a
retirar 500 reais.
No dia seguinte, obediente, Rovênia sacou num Banco 24 Horas
somente o valor combinado e devolveu o cartão e o comprovante da
operação ao paciente. Sagaz, ela cou de olho onde ele o guardou. Dois
meses depois, o senhor morreu e foi velado em casa. Cínica, a técnica em
enfermagem foi ao funeral e chorou abraçada aos parentes do morto. Na
primeira oportunidade, seguiu ao quarto onde o seu paciente cava
acamado. Pegou o cartão e o escondeu na bolsa. A estelionatária sacou
diariamente 1,5 mil reais da conta do falecido por quase duas semanas,
totalizando o furto em 18 mil reais. Só parou quando a tela do caixa
eletrônico deu alerta de cartão bloqueado. Aplicando esse tipo de golpe,
Rovênia foi engordando os rendimentos ao longo do tempo. De uma
senhora, ela ganhou um terreno avaliado em 120 mil reais deixado em
testamento com anuência da família. De outra, recebeu um carro e vendeu
para aplicar o dinheiro em ações da Vale do Rio Doce.
Para diversi car os negócios, Rovênia virou uma espécie de prostituta
especial. Atendia somente pacientes paraplégicos afortunados. O primeiro
deles foi um empresário chamado Flávio, de 29 anos. Bêbado, ele bateu o
carro num poste na saída da balada e sofreu uma lesão na medula espinhal.
Ficou sem os movimentos nas pernas e em parte do tronco. Ela recebia
2.200 reais dos pais a cada mês para cuidar do jovem cadeirante três vezes
na semana. A atividade da técnica começava quando a do sioterapeuta
terminava. Sua função era dar banho no paciente, enxugá-lo, pôr uma roupa
e acomodá-lo na cama ou na cadeira de rodas. Antes, porém, Rovênia
oferecia uma atividade extra: fazia sexo oral até o paciente ejacular. Segundo
os médicos, mesmo sem os movimentos da cintura para baixo, alguns
pacientes têm ereção por re exo e conseguem uma intensa sensação de
prazer conhecida como paraorgasmo. Além do pagamento recebido dos pais
do jovem, a técnica cobrava diretamente do cliente 900 reais pelo serviço
sexual de uma hora. Sua agenda tinha nove clientes com esse tipo de
atendimento.
Com uma lista de compromissos abarrotada de pacientes terminais e
paraplégicos, Rovênia cou sem disponibilidade para pegar novas
demandas. Ela ofereceu a Elize alguns clientes com potencial de aceitar
serviços sexuais. Antes de dar a resposta, a jovem teria pedido a opinião da
sua mentora. Estella teve uma síncope quando ouviu tamanho absurdo:
– Bah, tu cou louca?
– Melhor do que fazer programa com velhos nojentos!
Estella aconselhou Elize a não aplicar golpes em pacientes terminais por
uma questão moral. Deu um sermão longo, explicando que ser garota de
programa não era motivo para violar o caráter. “Porra, sua doida. Como tu
tem coragem de pensar em fazer algo tão vil? Não deixa a vida escrota que tu
levava no interior destruir a tua índole. Pensa na humilhação pública que
passarás quando tu for denunciada e presa. Tua família, os médicos do
hospital, vizinhos, todos os homens com quem tu transou, o cu do mundo
onde tu nasceu e Curitiba inteira vão descobrir pela TV de uma tacada só
que, além de puta, és uma bandida desumana e sem qualquer escrúpulo.
Puta que pariu!”, esculachou.
Seis meses depois de a enfermeira passar o sermão em Elize, Rovênia foi
denunciada, algemada e presa. A polícia descobriu que ela fazia parte de
uma quadrilha especializada em furtar idosos doentes e fraudar seguro de
vida e testamentos, mediante falsi cação de documentos, coação e até
ameaça. A investigação começou com a denúncia da família do paciente
cujo cartão de débito foi surrupiado pela técnica em enfermagem. A
primeira queixa foi registrada na Delegacia de Furtos e Roubos, no bairro
Cristo Rei. O Banco do Brasil forneceu aos policiais todas as gravações feitas
pelas câmeras de segurança mostrando imagens da criminosa realizando os
saques. Depois do escândalo, Rovênia passou a ser chamada pelos colegas de
pro ssão de hiena, animal conhecido por emitir um som idêntico a uma
risada e por seguir suas presas doentes até elas sucumbirem à morte.
Além de devolver todo o dinheiro roubado, a técnica foi processada e
teve a cara exposta em programas policiais. Feito espiral, outras vítimas
procuraram a polícia para reclamar dos golpes da bandida. Rovênia Soares
acabou recolhida à Penitenciária Feminina de Piraquara, na Região
Metropolitana de Curitiba. Julgada, pegou 12 anos de cadeia por furto com
uma série de agravantes. Quando a casa da salafrária caiu, Estella fez questão
de mostrar para Elize a cilada da qual ela havia escapado. “Na nossa
pro ssão, uma escolha errada nos leva para o inferno”, advertiu.
Com a hiena na cadeia, as freiras vicentinas passaram para Elize alguns
pacientes terminais para doulagem. As religiosas zeram recomendações
para as pro ssionais da saúde nunca receberem dinheiro extra ou presentes
caros dos pacientes, mesmo com consentimento da família. Elize começou
cobrindo folgas de uma enfermeira cuidadora em tempo integral na mansão
de Glória Fakhry, uma viúva milionária de 66 anos. A idosa sofria com um
câncer no ovário. A paciente morava no bairro do Batel, o mais so sticado
de Curitiba. Cada diária na casa da ricaça rendia 800 reais a Elize. Com
dinheiro entrando, ela tomou uma decisão sensata: ligou para a avó
Sebastiana e avisou que não queria mais o dinheiro da família.
No m de semana, a técnica em enfermagem vestiu-se de branco e
seguiu para a casa de Glória. A senhora era simpaticíssima, apesar do
sofrimento sem m. O marido da paciente havia morrido dois anos antes,
aos 74, também vítima de câncer. A viúva tinha um único lho, Cláudio
Fakhry, de 40 anos, executivo do ramo petroquímico. O tumor de Glória,
considerado raro, provocava dor abdominal e náuseas. Sua barriga cou
inchada e ela perdeu muito peso. Estava esquelética na fase nal da vida.
Mesmo assim, mantinha o bom humor. Quando Elize entrou no quarto, a
paciente exclamou: “Como você é bonita! O meu lho deve ter adorado
você. Ele tem fetiches por enfermeiras”, brincou.
Orientada justamente por Cláudio, Elize tinha de passar informações
detalhadas do estado de saúde da mãe a cada visita. O lho dizia não
suportar vê-la de nhando sobre uma cama por um tempo tão longo. Mesmo
com todo esse zelo, ele não visitava Glória havia meses. Segundo um
prognóstico médico repassado à família, a paciente terminal não viveria até
o m do mês porque as células cancerígenas haviam se espalhado para o
esôfago, pulmões e fígado. Faltavam duas semanas para o dia 30. Engraçada,
a senhora brincava até com a própria morte. Uma vez, Elize perguntou do
que ela precisava e a doente respondeu: “De um caixão”.
Logo após ouvir dos médicos que entraria em fase paliativa, Glória fez
reuniões com Cláudio, a nora e advogados especializados em sucessão. No
testamento, ela deixava todos os bens para o lho e dois netos, além de uma
alta quantia em dinheiro para uma amiga de Vitória, no Espírito Santo.
Certo dia, Glória perguntou pelo passado de Elize e ouviu dela algumas
histórias da sua vida miserável em Chopinzinho. Sensibilizada, a paciente
mandou a técnica pegar a sua bolsa no armário. Elize lembrou dos conselhos
de Estella, dos crimes da hiena, das orientações das freiras, e disse: “Nem
pensar”. Agradeceu a preocupação e encerrou o assunto.
É muito comum pacientes terminais resolverem questões importantes da
vida às pressas. Certo dia, Glória, no leito de morte, pegou o telefone e
entrou em contato com o gerente do banco, com o contador, e chamou ainda
um dos seus advogados. Pediu uma reunião urgentemente. Quando o
gerente chegou, a senhora exigiu que ele zesse a transferência de 150 mil
reais para a tal amiga capixaba naquele instante, deixando claro se tratar de
uma herança. Com intenção de reter o valor num investimento, o gerente
tentou convencer Glória de que a tal amiga seria bene ciada por meio de
uma TED (Transferência Eletrônica Disponível) logo após a abertura do
testamento. “Nem pensar. O senhor só sai daqui depois de efetuar essa
transação”, avisou, enquanto tossia com expectoração. A imagem tocante da
senhora deitada na cama fez o bancário obedecê-la de imediato.
Mais dois meses se passaram e nada de Glória partir, contrariando as
previsões médicas. Cláudio cava incomodado com aquela agonia
inde nida e perplexo com os altos custos da estrutura semi-hospitalar
montada na casa da mãe, apesar de ela própria bancar o tratamento com
recursos herdados do marido. A resiliência da paciente era admirável. O
médico dizia “não passa desta semana”. O mês virava e Glória continuava
respirando com auxílio de um aparelho conhecido como concentrador de
oxigênio, aquela mangueirinha de plástico acoplada ao nariz.
Glória se queixava mais de solidão do que propriamente das dores
trazidas pela doença. As enfermeiras, a pedido da paciente, faziam playlists
longas com canções melancólicas da cantora irlandesa Enya e do multi-
instrumentista japonês Kitaro. Ao ouvir as músicas, Glória fechava os olhos
e adormecia suavemente até chegar a um sono profundo. Certa vez, uma
enfermeira abaixou o volume do som lentamente até o quarto car em
silêncio absoluto. Sem abrir os olhos, Glória pediu que as músicas voltassem
a tocar e a paciente continuou inerte.
Era sábado de manhã. Elize chegou para cobrir mais uma folga das
enfermeiras na casa de Glória. Ficou surpresa quando viu corretores de
imóveis entrando em todos os cômodos da mansão, batendo fotos para
avaliar e anunciar a venda da casa. Como a paciente havia criado laços
afetivos com Elize, ela aproveitou para perguntar quem eram aqueles
homens. A técnica em enfermagem desconversou e foi até a cozinha acertar
um programa com Gilberto por telefone. Ao retornar, meia hora depois, a
senhora encontrava-se estática sobre a cama. O monitor do medidor de
pressão indicava ausência de sinais vitais. Elize, então, encostou dois dedos
no pescoço da paciente para conferir a artéria carótida e concluiu que Glória
estava morta. Em seguida, pôs o ouvido no tórax para tentar escutar os
batimentos. Nada. Nervosa, a técnica ligou para Cláudio e anunciou o
falecimento da mãe. O lho recebeu a notícia com naturalidade. Elize cou
observando por um longo tempo o corpo imóvel da senhora e teve a
impressão de ouvir um barulhinho. Ela pegou um espelho na bolsa e o
aproximou das suas narinas. Levou um susto quando viu a superfície do
vidro embaçar. Em seguida, Glória despertou: “Ainda estou viva!”.
Segundo os médicos, Glória pareceu ter morrido porque teve uma
bradicardia, quando os batimentos do coração diminuem a ponto de carem
imperceptíveis. Com isso, ela sentiu falta de ar e tontura. Mas resistiu. Por
uma mensagem enviada a Cláudio pelo celular, Elize desmentiu a notícia da
morte da mãe. O executivo enviou à mansão um geriatra de sua con ança.
Ele examinou Glória naquele mesmo dia e avisou que iria intubá-la na
manhã seguinte. Elize tentou evitar o procedimento, pois a paciente ainda se
alimentava com a ajuda das cuidadoras e dava conta de respirar sozinha.
Glória interveio dizendo não se importar com a sedação, desde que não
acordasse mais. Queixava-se da humilhação de defecar involuntariamente a
cada três dias. Mesmo assim, Elize argumentou com o doutor: “Introduzir
um tubo ou uma cânula na traqueia de uma paciente com câncer no esôfago
e pulmões era um procedimento muito cruel”. O médico a provocou,
perguntando qual era a sua formação pro ssional. Quando ela disse ser
técnica de enfermagem, o geriatra deu um riso de desprezo e a dispensou:
“Seu trabalho nesta casa acaba aqui! Obrigado!”.
Usando seringas enormes, o médico aplicou duas injeções na paciente.
Uma contendo glicocorticoide e outra com mor na. E saiu sem se despedir.
Glória já estava perdendo o apetite e sentia dores horríveis no rosto, na fase
nal do tratamento. Ainda assim, pediu que Elize fosse à cozinha preparar
um brigadeiro e o servisse ainda quente numa colher de madeira. Quando a
técnica voltou, a senhora parecia levemente vívida na cama. Tentava sem
sucesso sentar-se. Elize pôs dois travesseiros por trás da cabeça da senhora,
pegou a colher e a aproximou da boca de Glória, mas não teve coragem de
encostar por causa da quentura. A senhora pegou a colher ardente e
abocanhou o doce de chocolate e leite condensado. Engoliu um pedaço
grande com facilidade. Elize ofereceu água e ela recusou. “Preciso car com
o gosto desse brigadeiro na boca por muito tempo”, justi cou.
Segundo a enfermeira Tatiana Barbieri Santana, especializada em
doulagem da morte, os pacientes terminais costumam pedir comidas
especí cas na fase nal da vida para tentar resgatar momentos felizes do
passado. Esse tipo de pedido geralmente é feito muito próximo da partida,
pois o paciente deseja seguir do leito de morte diretamente para um lugar
tão agradável quanto aquele que está recordando.
Depois de comer o brigadeiro, Glória pediu que Elize não a deixasse
sozinha, apesar da dispensa do médico. A técnica cou e deu play nas
músicas de Enya. Pôs cobertas sobre a senhora e acariciou seus cabelos
brancos até ela adormecer. Elize foi até a sala ligar para uma freira vicentina.
Contou sobre o procedimento agressivo a ser feito na senhora no dia
seguinte. Ouviu da religiosa que, pelo protocolo, a decisão de intubar um
paciente terminal em tratamento paliativo em casa era exclusivamente da
família. Elize cou horrorizada. Ela voltou ao quarto para confortar a
senhora, quando ouviu um desabafo:
“Meu marido foi um homem engraçado e cheio de vida. Teve essa
maldita doença e morreu nesta mesma cama. Seu último suspiro foi uma
clemência”. Elize cou sem saber como agir. As duas caram em silêncio por
horas até Glória fechar os olhos tão lentamente quanto o pôr do sol na linha
do horizonte. A senhora costumava dizer às cuidadoras que encontraria o
marido no outro lado da vida. Durante a partida, o aparelho de som tocava a
canção “I want tomorrow” (Eu quero o amanhã), de Enya, cujo trecho da
letra em tradução livre diz: Agora você está aqui / Posso ver a sua luz / Esta
luz que devo seguir / Você pode levar a minha vida para longe.
Num impulso, Elize ligou apressada para o médico. Ele disse não ter
condições de voltar. E, se tivesse, não teria muito o que fazer. Glória
balbuciou para a técnica em enfermagem car quieta. A jovem obedeceu.
Segurou a mão da paciente enquanto a vida dissipava-se suavemente.
Quando Glória nalmente morreu, Elize chorou. Pela primeira vez, ela viu a
vida esvair-se diante dos seus olhos. Na lápide do túmulo da senhora lia-se
um epitá o: “Glória morreu como viveu: bravamente. Por Deus, nós a
amamos e sabemos quão sortudos fomos em tê-la em nossas vidas. Ela
brilhou tão intensamente quanto o Sol. Siga em direção ao in nito”. A
morte, de fato, é a rainha da vida!
* * *

Três meses depois do enterro de Glória, Elize recebeu uma mensagem


do lho dela, Cláudio, pelo celular. Era um convite para sair. Casado, ele
pediu sigilo e falou do seu fetiche por enfermeiras. A jovem supôs que o
executivo havia descoberto a sua outra atividade e marcou um encontro em
seu lo para a hora do almoço. Cláudio aceitou e exigiu que a garota o
recebesse de branco. A pegação começou com beijos no sofá. Esquentou
rapidamente e o casal foi para a cama. Quando ele começou a tirar a roupa,
Elize anunciou:
– São 800 reais!
– O quê?! – espantou-se.
– Meu trabalho custa 800 reais!
– Como assim? Que trabalho?!
– Sou garota de programa! Meu nome é Kelly...
Enfurecido, Cláudio abotoou a camisa social enquanto esbravejava,
dizendo não transar com prostitutas – “em hipótese alguma”, reforçou. Ele
a velava o cinto quando ameaçou denunciar Elize ao Conselho Regional de
Enfermagem (Coren) por usar a pro ssão como canal para arrumar clientes.
Kelly, ou melhor, Elize, implorou para ele não levar a história adiante. O
executivo lembrou-se do escândalo envolvendo Rovênia e avisou que iria à
delegacia – mesmo sem haver crime algum naquele apartamento. Para
resolver o con ito, a jovem propôs transar de graça. Ele aceitou e tirou a
roupa novamente.
O homem fez de tudo um pouco com a garota: sexo convencional, anal,
oral, beijo grego, chuva negra (defecar no parceiro), chuva de prata (ejacular
no rosto) e ainda pediu para a pro ssional realizar fetiches como ballbusting
(levar chutes nos testículos) e o tão desejado o terra (introduzir o dedo no
ânus do homem durante o ato sexual). Eles transaram no chão, no sofá, na
cama, na sacada, na parede... No nal, após quatro horas, Cláudio havia
gozado três vezes. Com medo dele, a garota fez tudo sem reclamar. Cláudio
tomou uma ducha demorada, enquanto Elize arrumava o lo, pois ainda
teria outro cliente às 23 horas.
Quando o executivo saiu do banheiro e começou a se vestir, Elize havia
se transformado na destemida Kelly. O alter ego da enfermeira vestia apenas
duas peças curtíssimas de couro preto. A calcinha era modelo string o
dental com tiras duplas de elástico nas laterais. Na frente, havia uma gravata
borboleta em ta de cetim. Cláudio chegou a se empolgar, achando que
haveria um novo round. Ledo engano. Kelly, tal qual uma dominatrix, pegou
uma chibata com tira de couro e sentou um golpe vibrado e sonoro no braço
do sofá, bem perto de Cláudio, assustando-o. Ela puxou um assunto
espinhoso. Falou de Glória, a mãe dele falecida recentemente sob seus
cuidados. A acompanhante contou das suas descon anças envolvendo a
possibilidade de a paciente ter tido a vida abreviada pelo médico a pedido
do lho. Cláudio cou pálido quando foi questionado:
– A nal, o que aquele geriatra fez com a sua mãe?
– Que história é essa, sua cadela?! – esquivou-se.
Na pele de Kelly, a técnica em enfermagem alternava a personalidade em
dois extremos. Ora era delicada, ora era agressiva. Ela aproveitou que
Cláudio estava nervoso e deu outra chibatada estrondosa no chão de
granito. Em seguida, Kelly exigiu que o cliente pagasse a quantia de 8 mil
reais pelo programa especial e saísse do lo mudo como uma girafa. Ele
aceitou sem contestar, mas ponderou que iria a um caixa eletrônico sacar o
dinheiro. Nem precisou. Kelly foi até o rack da sala e abriu uma gaveta. De
lá, tirou a máquina de cartão e perguntou:
– Débito ou crédito?
– Puta que pariu. Era só o que me faltava! – espantou-se Cláudio.
Esperta, Kelly en ou o cartão do cliente no equipamento, digitou 8.160
reais nas teclas e selecionou a opção débito. Quando surgiu na tela o pedido
da senha, passou a máquina para ele. Cláudio digitou o segredo numérico
para nalizar a operação. Depois perguntou por que o acréscimo de 160
reais. Elize imprimiu a via do cliente e teria dado a ele a seguinte explicação:
– A sua tentativa de transar comigo de graça me trouxe uma lembrança
desagradável. Quando eu tinha 15 anos, subi na boleia de um caminhoneiro
tão escroto quanto você. Ele me comeu a noite inteira e fazia pausas para ler
versículos da Bíblia. No nal, ele deveria me pagar 120 reais mais 40 da
conta do motel. Mas o safado desapareceu enquanto eu dormia. Nunca achei
que aquela noite tivesse sido um total desperdício, porque falar em Deus
enquanto eu era subjugada parecia reconfortante. Mas, hoje, decidi repassar
esse pequeno prejuízo a você.
Cláudio ejetou-se do lo feito foguete e esqueceu aquele dia. Elize
descobriu que seu alter ego era uma mulher de várias camadas e contrastes.
Seu sexo era sem culpa e emoção. A matuta de Chopinzinho tinha tom
pastel, enquanto Kelly era vermelho-sangue. A partir dali, todas as vezes que
vendesse o corpo, a sua segunda personalidade entraria em cena. Não era
uma maneira muito texturizada de pensar. No entanto, se não fosse assim,
Elize Araújo jamais sobreviveria num universo altamente tóxico e insalubre
como o da prostituição.

* * *

Em 2003, Elize tinha 22 anos e seguia cada vez mais linda. Com uma
agenda sólida de clientes e pacientes, saldava suas dívidas com facilidade.
Comprou um Fiat Palio zero-quilômetro, enviava dinheiro todos os meses
para a família, em Chopinzinho. Seu registro no Conselho Regional de
Enfermagem do Paraná como auxiliar de enfermagem era 473.708. Quando
concluiu o curso de técnica, mudou a matrícula para o número 148.419.
Mesmo ganhando quase 8 mil reais por mês vendendo o corpo, mantinha
ativa a paixão pelo trabalho de pro ssional da saúde. Seguia cuidando de
pacientes e atuando em centros cirúrgicos de dois hospitais em Curitiba. A
jovem administrava a vida dupla com habilidade. Os colegas de pro ssão
não descon avam da existência da Kelly. Muito menos seus familiares.
Naquela época, Estella era a melhor amiga, con dente e continuava
aconselhando Elize nos negócios, além de encaminhar clientes a ela. Em
troca de comissão, a gaúcha apresentou à amiga deputados estaduais do
Paraná e vereadores de Curitiba e do interior chegados aos serviços de
garotas de programa de luxo. Raramente os políticos entravam em contato
diretamente com as pro ssionais. Quem se encarregava da abordagem
inicial eram os chefes de gabinete. Eles marcavam os encontros e faziam os
pagamentos. Assim, os políticos tentavam se blindar de escândalos.
Prestando serviços sexuais para parlamentares, Elize conheceu o então
deputado estadual do Paraná Mário Sérgio Zacheski, do antigo PMDB.
Conhecido como delegado Bradock, ele tinha 50 anos quando seu assessor
fez o primeiro contato com Kelly. No início, os dois se encontravam no lo
dela uma vez por semana ao preço de 800 reais o programa. Desse cachê, a
jovem cava somente com 320 reais. O restante (480 reais) era repassado
para Estella. Com o passar do tempo, o delegado se apaixonou e cou mais
assíduo, chegando a visitar a garota por até quatro vezes na semana. Os dois,
então, passaram a manter um romance sob sigilo. O deputado-delegado
pediu para Elize largar a pro ssão e tornar-se exclusiva. A jovem pediu uma
mesada de 10 mil reais para ser só dele. O político prometeu mais à
prostituta: um cargo comissionado de meio expediente na Assembleia
Legislativa do Paraná. Elize aceitou. Eles comemoraram a nova fase. Elize
nalmente largaria a vida de call girl e passaria a conciliar a vida de
funcionária pública e técnica de enfermagem.
Estella não apoiou o romance de Elize com Bradock, muito menos sua
nomeação como funcionária da Assembleia Legislativa. O local era um covil,
segundo a veterana de niu. Sem falar que o deputado era casado. Elize
dizia-se apaixonada e tentava mudar de vida mantendo um relacionamento
“estável” com o parlamentar. A amiga resolveu deixá-la quebrar a cara para
ela aprender com as próprias burradas.
A primeira briga do casal aconteceu quando saiu a nomeação de Elize no
Diário O cial. Bradock empregou a “namorada” no próprio gabinete como
secretária com salário mensal de 800 reais, bem inferior aos 10 mil reais
combinados. Elize cou possessa quando recebeu o primeiro contracheque.
Houve um chilique. “Sou mulher de luxo para trabalhar todo dia e receber
só oito notas de 100 no nal do mês. [...] Ontem comprei quatro garrafas de
vinho a 2,4 mil reais”, esbravejou. O político-delegado conseguiu amansar a
garota pagando um extra por fora e dando um mimo aqui, outro ali. O
primeiro deles teria sido um Honda Fit novinho em folha.
No gabinete do delegado-cliente, Elize assumiu o papel de primeira--
dama. Dava ordens a subordinados, exigindo limpeza, café quente e
reclamava do excesso de pedintes que batiam na porta do deputado. A
maioria era de eleitores cobrando promessas de campanha. O tempo fechou
quando um dossiê conhecido no mundo político como “relatório de crise”,
descrevendo denúncias graves contra Bradock, sumiu da principal gaveta de
sua mesa, mesmo trancada à chave. O documento tinha sido elaborado por
advogados e assessores do parlamentar, apontando justamente seus pontos
sensíveis que certamente seriam explorados publicamente por inimigos
políticos. Entre as denúncias contra Bradock relatadas no dossiê constavam
acusações de tortura, tentativa de homicídio, fraude processual e porte ilegal
de arma. Todas tinham como fonte a Promotoria de Investigação Criminal
do Ministério Público do Paraná e corriam sob sigilo. Bradock teve um
faniquito quando deu pela falta dessa papelada. Imediatamente, a suspeita
recaiu sobre Elize.
À noite, Bradock foi ao lo da “namorada” na expectativa de resgatar o
dossiê e cou surpreso quando viu um cliente saindo da alcova de Elize. Os
dois discutiram e a jovem reiterou que recebia muito pouco para manter
exclusividade. Irritado, o delegado vasculhou o apartamento dela em busca
do dossiê, mas não o encontrou. Bradock teria encerrado a conversa e a
relação, dando uma bofetada em Elize e demitindo-a do cargo comissionado
e dos serviços sexuais.
No outro dia, ela passou no gabinete para pegar suas coisas e assinar a
papelada da demissão no departamento de Recursos Humanos. Pouco
depois, o ex-casal se encontrou nos corredores da Assembleia Legislativa e
houve outro bate-boca, inclusive na presença de jornalistas. Segundo
funcionários da Casa, o affair teria sido pontuado por brigas em público.
Apaixonado, o político deu a Elize, além do carro, joias e roupas caras. Uma
reportagem da revista Veja, publicada em 8 de junho de 2012, assinada pela
repórter ais Arbex, relata detalhes do romance de Bradock com a garota
de programa.
O deputado-delegado jurou de pés juntos que essa história foi “uma
montanha de mentiras”. Segundo ele, a injúria foi arquitetada por inimigos
políticos em 2004, ano eleitoral. “Essa mulher nunca trabalhou no meu
gabinete!”, jurou o parlamentar. Entretanto, consta no setor de Recursos
Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná que Elize foi contratada em
1o de junho de 2004 e lotada no gabinete de Bradock para assumir a função
de secretária comissionada para trabalhar meio expediente. Em abril de
2021, o RH con rmou que o salário de Elize era, de fato, de 800 reais, e sua
matrícula na época era de número 301.735.
Apesar de Bradock negar com veemência seu envolvimento com Elize, a
briga do casal ocorrida nos corredores da Assembleia também foi relatada
com detalhes no jornal Folha de Londrina, em 25 de junho de 2004. Em
entrevista ao periódico, Elize acusou o ex-namorado de violência doméstica
numa fúria de ciúme. “Ele me bateu na cara várias vezes”, denunciou. Em
sua defesa, na mesma edição do jornal, o político garantiu que Elize era
histérica, agressiva, recalcada, descontrolada e promíscua.
Em outro barraco, Bradock foi visto aos berros nos corredores da
Assembleia exigindo que Elize devolvesse o carro dado de presente, as
chaves e os documentos do veículo. Ao contestar o romance, o deputado
disse de forma enfática: “Nunca namorei essa mulher, até porque sou casado.
E não sou Papai Noel para dar carro de presente para amantes”. Quando foi
pedido para o político contar a sua versão da história, ele se contradisse: “A
verdade é que ela [Elize] trabalhava no meu gabinete. Vou assumir. Mas foi
demitida quando descobrimos que era prostituta. Ela também havia furtado
documentos das minhas gavetas”. Apesar de sustentar não ter se relacionado
com Elize, Bradock demonstrou conhecê-la bem. “Ela era muito fechada,
meio fria, sabe? Era estranha e individualista. Tá muito na cara que ela não
terá um nal feliz”, previu na época.
Estella repreendeu Elize pelo escândalo sexual na Assembleia Legislativa.
Ressabiados, os políticos do Paraná fugiram das duas garotas de programa
como o diabo foge da cruz. Tinham pavor de ver suas estripulias sexuais
estampadas nas páginas dos jornais.
Algumas semanas depois, Estella completou 30 anos e chamou Elize
para um jantar especial no restaurante Ile de France, no centro de Curitiba.
Entre beijos, abraços e muito vinho, a enfermeira gaúcha anunciou,
emocionada, estar largando a prostituição. Na sua nova fase de vida, ela não
teria mais contato com nenhuma garota de programa, incluindo Elize.
Estella iria se mudar para o município de Almirante Tamandaré, na Região
Metropolitana de Curitiba. Na cidade, montaria um posto de gasolina com
seis bombas de bandeira branca. O investimento na época foi de 800 mil
reais. Elize chorou de tristeza e alegria, pois a amiga repassaria a ela todos os
clientes. As duas estavam embriagadas quando Estella relatou ter juntado
muito dinheiro ao longo de doze anos na prostituição de luxo. Conseguir
uma concessão para explorar o posto de combustível era um sonho antigo.
O sucesso da amiga fez Elize ter esperança de um dia também escapar da
vida degradante que levava. Estella, bêbada, passou a dar conselhos para a
jovem como se fosse sua mãe:
– Você não tem ideia de quanto pau nojento eu tive de chupar para
chegar até aqui. [...] Olha, eu não lembro quando foi a última vez que dei um
beijo de amor num homem. A minha vida era uma merda daquelas que não
descem com a descarga, sabe? [...] Sim, estou chorando e vou deixar rolar. É
um choro de liberdade, porra!
Elize se levantou da cadeira oposta e sentou-se ao lado da amiga para
ampará-la. Estella continuou despejando verdades com palavras chulas em
meio a mais lágrimas:
– Mete uma coisa na sua cabeça, sua arrombada! Uma prostituta só tem
dois destinos na vida: a glória ou a desgraça. Não tem meio-termo, caralho!
[...] Eu cheguei ao cume da montanha, cacete! Vou abrir um negócio
decente. Cada centavo dessa merda foi conquistado com muito suor. Vou
empregar 12 funcionários, lho da puta! – gritava com o rosto encharcado.
Um garçom pediu para Estella falar baixo e evitar palavrões, pois havia
famílias na casa. Desobediente, fez o contrário: falou ainda mais alto para
todo o mundo ouvir:
– Pau no cu das famílias! Já tenho todas as licenças exigidas, seus bostas!
O tanque subterrâneo é todo de aço-carbono e tem capacidade para até 30
mil litros só de gasolina! Sabe quando vou me vender para um homem?
JAMAIS!
Por m, Estella já estava na mão do palhaço quando citou o romance de
Elize com o deputado Bradock para dar mais um conselho à amiga:
– Você nunca vai mudar de vida se envolvendo com clientes! Sabe por
quê? Porque eles vão te ver eternamente como uma prostituta. Mesmo
dormindo agarradinha a ele todos os dias numa cama de casal confortável,
você será sempre uma vadia sem valor.
As palavras de Estella mexeram emocionalmente com Elize. Ela saiu do
restaurante francês cambaleando. Antes de se despedir de forma de nitiva, a
ex-garota de programa reforçou ter repassado a todos os seus clientes xos o
contato da amiga. Estella fez um resumo do per l de cada um, das
preferências deles na cama e dos horários, pois boa parte era casada e
gostava de ser atendida na hora do almoço. Estella fez uma série de ressalvas
sobre Gilberto, o narcotra cante. “Ele é um homem muito inteligente,
bonito e carinhoso. Mas é perigosíssimo. Quando ele pedir para deixar
pacotes na sua casa, recuse de forma incisiva porque ele é insistente.
Também não permita a entrada de amigos dele no seu lo. Se eu fosse você,
na verdade, nem o atenderia mais. Você é muito bobinha e ele é um barril de
pólvora com pavio aceso”, nalizou Estella, desaparecendo tal qual uma
estrela cadente.
Um mês depois, Elize estava deprimida no sofá com saudade de Estella,
quando recebeu a ligação de um cliente. Era Gilberto, o narcotra cante.
Marcaram um encontro para as duas da manhã. Ele disse que levaria bebida,
dois amigos e uma amiga. Elize orçou a orgia em 5 mil reais. Na hora
marcada, eles zeram uma balada no lo. Tinha cocaína, uísque, cerveja,
vodca, música alta, trenzinho e muito sexo. Todo mundo beijava todo
mundo. Elize teria transado com os dois bandidos e com a garota, mas não
usou drogas. Exageraram no álcool, misturando bebidas destiladas com
fermentadas. Aspiravam maconha e ópio pela mangueira de um narguilé. O
vapor das drogas empesteou o lo e invadiu os apartamentos vizinhos. O
telefone celular de Gilberto tocou e ele foi atender na varanda. Incomodados
com o barulho, moradores ligaram pelo interfone para reclamar. Os
bandidos atendiam e mandavam os condôminos à merda. Elize estava
bêbada, caída nua no tapete. Quase cinco da manhã, a balada ainda fervia.
Havia pistolas e metralhadoras espalhadas pela casa e leiras de cocaína na
mesa de centro. O interfone tocou novamente. Dessa vez, Elize despertou
desorientada e pediu silêncio. Ela reduziu o volume do som e foi atender a
chamada. Era o porteiro, apreensivo:
– Dona Elize da minh ‘alma, tá cheio de polícia aqui embaixo. Eles
mandaram avisar que estão subindo!
O programa aqui custa 8 mil reais, filha

E
vangélica da Igreja Cristã Discípulos de Cristo, Tatty Chanel, de 28
anos, era uma prostituta bastante conhecida no centro de São Paulo,
apesar de nunca ter feito programas em calçadas. Prospectava a
maioria dos clientes pela internet. Na década de 2000, mantinha no ar um
blog pro ssional com 36 fotos sensuais bem produzidas e divulgava um
número de telefone celular para contato. Tatty tinha borogodó para os
negócios. Era baixinha, 1,50 m de altura e cabelo originalmente crespo, mas
todo alisado à base de chapinha. Espinhas da adolescência deixaram seu
rosto marcado com protuberâncias. As cicatrizes em sua face lhe renderam o
apelido maldoso de “areia mijada”. Nunca foi magra e ganhou mais um
pouco de peso depois de abandonar as atividades físicas diárias. Seu maior
trunfo na pro ssão, segundo ela mesma fez questão de ressaltar, era a bunda
grande e cheia, dura e redonda. Nela não havia nenhuma marca de estria ou
celulite. “Se tivesse, não seria problema, pois os meus clientes não eram
exigentes”, frisou Tatty, rindo.
Para atrair clientes estrangeiros de passagem pelo Brasil, a prostituta
anunciava seus serviços sexuais em classi cados de jornais. Nessa parcela
especí ca de fregueses, ela aplicava toda sorte de golpes. Quando os homens
pediam fotos por telefone, por exemplo, Tatty costumava enviar imagens de
dez anos antes, quando era bem mais atraente. A desonestidade era
impulsionada pelo Photoshop. No programa de computador, ela a lava
falsamente o corpo e o rosto. Até seus dentes quebradiços, tortos e
amarelados cavam inteiros, alinhados e reluzentes por obra de efeitos
especiais. Às vezes, suas picaretagens iam além.
Certa noite, um cliente norte-americano de 50 anos leu o anúncio de
Tatty e pediu-lhe fotos. A pro ssional enviou imagens tão modi cadas que
ele duvidou se tratar da mesma pessoa quando a viu pessoalmente na
esquina da Rua Bela Cintra com a Avenida Paulista. Mas o gringo não se
importou com a discrepância. No ponto de encontro, afoito, ele agarrou a
garota sem a menor cerimônia e passou a mão por onde alcançou. Tatty
interrompeu as preliminares em público e pediu 100 dólares conforme
combinado previamente. Após o pagamento, seguiram para a suíte do Hotel
Renaissance, nos Jardins, um dos bairros mais nobres de São Paulo. Ousado,
o casal passou pelo hall do hotel de luxo de mãos dadas.
Apesar de ser uma mulher corajosa, Tatty cultivava um receio
assombroso de sua família cristã descobrir a sua pro ssão pecaminosa aos
olhos de Deus. Natural do município de Ananindeua, Região Metropolitana
de Belém do Pará, ela seguiu para São Paulo em 1999, com a bênção dos pais
protestantes. Prometeu entrar na faculdade de medicina, trabalhar em
hospitais e servir ao Senhor. Frequentemente, Tatty mandava fotos para os
pais fazendo poses em cadeiras da Universidade de São Paulo (USP) e
estudando em bibliotecas públicas rodeada de pilhas de livros. Tudo fake. Na
verdade, ela nunca foi aprovada no vestibular, apesar de ter tentado três
vezes.
A agenda pro ssional de Tatty era eclética. Havia contatos de pastores
evangélicos, delegados, investigadores e escrivães, além de uma variedade de
comerciários do centro de São Paulo conquistada em aulas noturnas de
forró. Apesar de ter uma clientela vasta e el, a garota investia mesmo era na
desonestidade. Ela furtava dinheiro em momentos de descuido dos clientes.
Quando não tinha sucesso com esse tipo de artifício, fazia pequenos
escândalos em recepção de hotéis para forçar o homem a abrir a carteira em
troca de silêncio. Se houvesse oportunidade, surrupiava dados de cartões de
crédito dos incautos e fazia compras pessoais. O “boa-noite Cinderela” era
manjado em sua lista de fraudes. Nas poucas vezes em que foi pega, Tatty
recorria aos amigos policiais. Bene ciada com esses laços de amizade, a
vigarista nunca foi chada nem sequer passou mais de 24 horas no xilindró,
apesar de ser tão suja quanto o pau do padre.
Na suíte de 30 metros quadrados do Renaissance, cuja diária custava 194
dólares, Tatty e o gringo se beijavam loucamente quando ela reclamou de
sede. Por telefone, o cliente pediu duas garrafas de vinho La Joya Gran
Reserva Carménère e pegou água mineral no frigobar. Hidratado, o casal
transou por duas horas. A pro ssional recebeu adicional de 100 dólares pelo
tempo extra. Exausto, o cliente cometeu a tolice de adormecer. A
estelionatária não perdeu a oportunidade. Tatty abriu a carteira dele e
subtraiu mais uma nota de 100 dólares. Pegou um cartão de crédito
internacional, tirou fotos da frente e do verso e o devolveu. Em seguida,
tomou um banho, matou uma taça de vinho, vestiu-se e saiu de ninho. No
dia seguinte, Tatty entrou em sites de lojas virtuais e comprou louças para a
casa e presentes para os pais com os dados do turista. Para evitar
investigação das empresas de cartões, essas compras fraudulentas nunca
passavam de 700 reais. A garota também se bene ciava do fato de nem toda
vítima ter coragem de confessar numa delegacia que dormiu com uma
prostituta e ainda foi passada para trás.
Faltavam poucos minutos para a meia-noite de uma quarta-feira quando
Tatty recebeu mais uma mensagem pelo celular. Do outro lado do telefone,
um novo cliente fazia sondagens:
– Quanto você cobra? – quis saber.
– Duzentos reais a hora – respondeu.
– Tem fotos para enviar?
A jovem recorreu às suas artimanhas e mandou três fotos ao
interlocutor. Em todas as imagens Tatty estava nua e com o rosto à mostra.
Ele duvidou da beleza estonteante da prostituta e a questionou ainda por
mensagem:
– Essa na foto é mesmo você?
– Sim, amor. Sou eu!
– Não acredito!
– Juro pelo que há de mais sagrado! – insistiu.
– Vamos fazer o seguinte: vem ao meu local. Se você estiver idêntica à
foto, eu te pago os 200 reais e a gente transa por uma hora. Caso contrário,
te dou 50 reais e você vai embora.
– Combinado!
A astúcia de Tatty nos negócios era conhecida entre as colegas de
pro ssão. Certa vez, ela foi ao Shopping Eldorado, no bairro de Pinheiros, e
comprou uma dezena de roupas novas em diversas lojas de apelo mais
popular, como C&A, Renner e Riachuelo. Pagou tudo com o próprio cartão
de crédito. Passou uma tarde inteira com outra garota de programa
experimentando e escolhendo sainhas e miniblusas. Das lojas, as duas
seguiram para um estúdio em Santa Cecília e zeram diversas fotos com um
pro ssional usando as roupas novas. Nenhuma etiqueta foi retirada das
peças. O ensaio varou a madrugada. Tinha produção com luz, rebatedores e
muita maquiagem. No dia seguinte, ela voltou com a mesma amiga em todas
as lojas para devolver tudo. Para algumas vendedoras, alegava que sofria de
um transtorno chamado de oneomania, caracterizado pelos gastos
compulsivos seguidos de crise de arrependimento e depressão. A amiga
ajudava contando que Tatty estava em tratamento com psiquiatra para se
curar. Algumas lojas aceitavam e faziam o estorno da compra. Quando os
gerentes botavam empecilhos, a prostituta puxava da bolsa o Código de
Defesa do Consumidor e citava o Artigo 49, que prevê devolução do
dinheiro em até sete dias sem precisar expor os motivos. Volta e meia, as
funcionárias do departamento de troca alegavam que tal benefício só valia
para compras feitas na internet. Tatty, então, iniciava uma confusão e a
devolução acabava se consumando. Às vezes, nenhuma desculpa dava certo
e ela acabava cando com a compra.
Depois de enviar fotos para o cliente pelo celular, Tatty seguiu para
encontrá-lo. O lugar marcado era um apartamento na Rua Almirante
Marques Leão, no bairro da Bela Vista, região central de São Paulo. O prédio
de quatro andares não tinha porteiro nem elevador. Ela tocou o interfone.
Quem atendeu e liberou a entrada foi o empresário Marcos Kitano
Matsunaga, de 31 anos na época. Educado, ele cumprimentou a garota com
um beijinho no rosto. O local era amplo, arejado e limpo. Tinha um único
ambiente de cerca de 80 metros quadrados com uma cama de casal,
banheiro, frigobar, TV de 29 polegadas a xada na parede, duas poltronas e
um armário grande, além de refrigerador de ar. Cabeças de diversos animais
empalhados, como cervos, antílopes e veados, cavam penduradas nas
paredes escuras, dando um aspecto macabro ao ambiente. No meio da sala
aberta era possível ver uma mesa de sinuca de seis pés toda confeccionada
em madeira maciça com pranchas de quatro centímetros de espessura. Os
tacos artesanais com telescópio de alumínio cavam pendurados no suporte
da parede, ao lado de um conjunto completo de dardos pro ssionais com
alvo feito de sisal. Dois janelões davam acesso à mesma varanda. Olhando
em volta, era fácil concluir que o local era uma garçonnière. Tatty entrou,
sentou-se numa poltrona e Marcos ocupou a outra no lado oposto. Havia
uma garrafa de vinho aberta na mesa lateral e duas taças. Apenas uma estava
com bebida. Por alguns minutos, reinou um silêncio incômodo naquele
lugar. Tatty quebrou o gelo levantando-se e fazendo um pedido retórico:
– Posso me servir?
– Então... Você é bem diferente da foto, né? Vou pagar os 50 reais e você
vai embora, conforme o combinado – anunciou Marcos.
– Pois é, querido... Você tinha de ter dito isso tão logo abriu a porta e me
viu. Agora que entrei, terá de pagar o preço cheio.
Atrevida, a garota de programa pegou a garrafa de vinho e serviu-se.
Deu um gole grande. Sentou-se na poltrona novamente. Marcos levantou-se,
tomou a taça da mão de Tatty e insistiu que ela saísse. Abriu a carteira, tirou
uma nota de 50 reais e jogou sobre o colo da moça. A pro ssional guardou o
dinheiro na bolsa e bateu pé: só iria embora se recebesse os 150 reais
restantes. A tensão aumentou quando Marcos se negou de forma categórica
a fazer o pagamento. Tatty, então, se levantou, passou por uma das portas e
alcançou a varanda, onde fez uma ligação pelo celular. Fez questão de falar
em voz alta, dando as costas para Marcos:
– Delegado Gusmão? Como vai o senhor? [...] Preciso de um favorzinho.
Poderia me mandar uma viatura aqui na Bela Vista para resolver um BO?
[...] Um homem me contratou e está se recusando a pagar, acredita? [...]
Anote o endereço...
Antes mesmo de falar o local da ocorrência, Tatty sentiu um objeto
pontiagudo e gelado espetando a sua nuca. Marcos embicou na altura da
terceira vértebra cervical da garota o cano comprido de um fuzil AR-15, o
mesmo modelo usado pelas polícias Civil e Militar de São Paulo. Era
também um armamento muito comum em poder de bandidos do crime
organizado. A arma portátil custava na época 45 mil reais e fazia parte do
acervo bélico de 33 itens do empresário, avaliado até então em 300 mil reais.
Só as munições do fuzil custavam 10 mil reais. Parte desse arsenal pesado
cava guardada em armários do apartamento usado como garçonnière.
Considerado de uso restrito, o AR-15 pode ser adquirido no Brasil por
colecionadores, bene ciados graças à benevolência do Estatuto do
Desarmamento (Lei Federal nº 10.826/2003).
Tatty virou-se de frente e levou um susto tão grande quando viu o fuzil
que não conseguiu pronunciar uma palavra. Pálida feito uma defunta,
passou a tremer, suar em bicas e chorar ao mesmo tempo. Marcos tomou o
celular da mão dela e o jogou com tanta força contra a parede que o aparelho
se desmantelou. Em seguida, mirou a arma de grosso calibre em seu peito a
uma distância de dois metros. Tatty se ajoelhou de tanto pavor. “Não faça
isso, eu imploro!”.
O fuzil estava carregado. Para deixá-lo pronto para o disparo, o
empresário puxou a alça de manejo. Essa ação produziu um estalo forte.
Tatty repetia aos prantos: “Deus misericordioso, eu não quero morrer!”.
Marcos soltou a alça do fuzil, fazendo a primeira bala subir até a câmara.
Houve outro estalo mais forte ainda. O armamento estava a ponto de bala.
As lágrimas de desespero jorradas dos olhos da mulher diluíram o rímel
barato que contornavam seus olhos arregalados. A água descia pelo rosto
com coloração escura.
O empresário seguiu com a tortura psicológica contornando o rosto
molhado da estelionatária com o cano de 16 polegadas. Tatty começou a
rezar em voz alta. A prece da prostituta foi atendida. Marcos baixou o fuzil e
rasgou a parte de cima da roupa da garota, deixando-a nua da cintura para
cima. Em seguida, ele a pegou à força pelos braços. Desceu dois lances de
escada até a portaria, deixando-a na calçada da rua deserta. Do alto da
sacada, ele jogou os seus pertences, incluindo a blusa. Com medo de morrer,
Tatty decidiu nunca mais enganar seus clientes com fotos adulteradas no
Photoshop.

* * *

Tal qual um disco de vinil, a vida de Marcos Matsunaga tinha dois lados.
Na face nobre, assumia a identidade de pai de família e empresário de
respeito. No lado B, era extremamente violento e viciado em prostitutas. Seu
apelido no meretrício era Whore Rider, algo como “montador de putas”, em
tradução livre. Na hora de escolher uma pro ssional, o executivo ia do luxo
ao lixo. Saía tanto com garotas baratas, a exemplo de Tatty Chanel, quanto
com as de alto padrão, cujas despesas diretas e indiretas poderiam chegar a
10 mil reais num único encontro. Ele também apreciava as de nível
intermediário com per s mantidos em sites de acompanhantes. Marcos
recebia as mulheres de preço baixo no apartamento simples mantido no
centro de São Paulo. Já as modelos so sticadas eram levadas ao em seu at,
de número 156, no Transamerica Classic Victoria Place, localizado na Rua
Pedroso Alvarenga, 1.088, no bairro do Itaim Bibi, zona sul de São Paulo.
Por uma questão de segurança – ele tinha pavor de sequestros –, o
empresário não abordava prostitutas em calçadas e raramente frequentava
motéis.
No lado A da vida, Marcos era o lho mais velho dos empresários
Mitsuo e Misako Matsunaga – casal que, juntamente com Yeda Kitano
Cherubini, irmã de Misako, detinha a maior parte das ações da indústria de
alimentos Yoki. A fábrica produzia pipoca, amendoim, farinha, farofa, fubá,
bebidas de soja, além de uma in nidade de outros itens alimentícios. A sede
da empresa localizava-se na capital paulista, mas a produção se espalhava
por oito cidades: Marília e São Bernardo do Campo, em São Paulo;
Cambará, Paranavaí e Guaíra, no Paraná; Nova Prata, no Rio Grande do Sul;
Campo Novo do Parecis, em Mato Grosso; Pouso Alegre, em Minas Gerais;
e mais uma unidade no Recife.
Na década de 2010, a Yoki faturava, em média, 1,1 bilhão de reais por
ano e empregava 5.200 trabalhadores. Os negócios da família de orientais
começaram diminutos. A pedra fundamental foi lançada pelo avô materno
de Marcos, o imigrante japonês Yoshizo Kitano, em 1960. Mas a marca Yoki
surgiu, de fato, na década de 1980, derivada da junção da primeira sílaba do
seu nome (Yo-shizo) com a primeira sílaba do sobrenome (Ki-tano).
Cinquenta e dois anos depois, em 2012, a empresa foi vendida por 1,75
bilhão de reais para a americana General Mills, considerada a quinta maior
empresa de alimentos do mundo e dona de marcas importantes no mercado,
como o sorvete Häagen-Dazs.
Antes de trabalhar na Yoki, Mitsuo era diretor da joint venture Nakata-
Tokico e atuava no mercado com fabricação de amortecedores para veículos
leves, pesados e motocicleta. Com o tempo, ele se desfez do negócio e
investiu o capital na empresa da família da esposa, tornando-se sócio – ele
tinha 12,5% das ações. Mais tarde, foi elevado ao posto de CEO (Chief
Executive Officer) da Yoki. Segundo ex-executivos da companhia, foi a visão
vanguardista de Mitsuo e do vice-presidente da empresa, Gabriel Cherubini,
ex-executivo da Unilever e marido de Yeda Kitano, que transformou a
fabriqueta de fundo de quintal da família de Marcos numa das maiores
empresas do ramo alimentício do país. Yoshizo morreu depois de bater a
cabeça na carroceria de um caminhão enquanto andava na rua, em 6 de
setembro de 1992, aos 77 anos.
No conglomerado da família Matsunaga, Marcos exercia a função de
diretor-executivo, com foco na área agrícola. Tinha uma participação
simbólica – menos de 1% – nas ações das empresas subsidiárias do grupo,
ou seja, ele não participava das tomadas de decisões importantes. Segundo
funcionários da diretoria da Yoki, ele era um chefe metódico, organizado e
respeitador. Falava baixo e costumava ser calmo, mas se alterava com
facilidade principalmente quando seus subordinados cometiam erros. Fora
do prumo, ele esmurrava a mesa e gritava com funcionários. Mantinha a
vida pessoal reservada. No trabalho, por exemplo, só os executivos mais
próximos sabiam se ele estava solteiro ou namorando.
Já o caçula da família, Mauro Kitano Matsunaga, dois anos mais novo,
foi diretor de logística e depois encarregado da área industrial. Os irmãos
tinham personalidades absolutamente opostas. Marcos era o preferido da
mãe, que tinha conhecimento das loucuras do lho e as acobertava. Na
adolescência, por exemplo, o primogênito usava o cartão de crédito de
Misako para bancar viagens e farras com prostitutas de luxo. Mauro, por sua
vez, era um homem discreto, sério e bem mais próximo do pai. Enquanto o
mais velho era extrovertido, cheio de saúde e hábil em alternar uma vida
mundana na noite com a de pai de família, o mais novo era caseiro, tímido e
tinha a saúde frágil. Antes de completar 40 anos, Mauro já tinha feito duas
cirurgias cardíacas para tratar uma arritmia grave. Ele não bebia, estava
casado com uma namorada da adolescência e raramente saía à noite.
A forma diferente com que os irmãos levavam a vida acabou criando um
abismo entre eles. Marcos e Mauro não frequentavam a vida um do outro,
raramente se falavam por telefone e só se encontravam nas reuniões de
diretoria da Yoki, ainda assim trocavam poucas palavras. Na empresa, o
salário bruto de ambos era de 31 mil reais. Esse valor não bancava nem 1%
da vida nababesca de Marcos. Para engordar os rendimentos, o executivo
montou escondido da família uma empresa de exportação dentro da própria
Yoki. Era com o dinheiro dessa empresa, cujo faturamento médio anual
chegava a 32 milhões de dólares, que ele custeava a compulsão por garotas
de programa e hobbies caros, como colecionar armas de fogo, relógios de
luxo, vinhos nobres, charutos, além de viagens excêntricas ao redor do
mundo.
Bem antes de fundar a Yoki, a família de Marcos era dona da marca
Kitano, cujo catálogo continha cereais, chás e farináceos. A marca foi a
primeira a vender temperos embalados em sacos plásticos no Brasil, o que
impulsionou os negócios. Todo o processo de seleção, secagem e embalagem
era feito manualmente, e os produtos eram armazenados na fazenda da
família japonesa, no município de Ibiúna (SP). Em 1989, a Kitano foi
vendida por 10 milhões de dólares para a Re nações de Milho Brasil
(Unilever), fabricante da famosa Maizena. Como a marca Kitano era
denominação do sobrenome da família do fundador e o clã se sentia
incomodado em ver seu nome numa empresa de terceiros, ela foi
recomprada em 1997 por 7 milhões de dólares, ou seja, 30% a menos em
relação ao valor da venda. Com a aquisição, o selo passou a ser apenas uma
linha de produtos no portfólio da Yoki. Em 2018, quando estava nas mãos
da General Mills, a Kitano passou por um vexame no mercado. Um lote
(D17BRMP08-5) de pimenta-do-reino preta em pó teve de ser recolhido das
prateleiras e das casas dos clientes por causa da presença de uma bactéria
conhecida como Escherichia coli, causadora de diarreia, gastroenterite e até
infecção urinária. Na época, a Kitano aconselhou os consumidores a não
utilizarem o tempero.
No papel de chefe de família, Marcos morava com a esposa, Lívia de
Sousa Pontes, numa mansão no Alto de Pinheiros, área nobilíssima de São
Paulo. O casal tinha uma lha pequena. Depois de uma tentativa de assalto
na residência, o executivo passou a andar armado o tempo todo e iniciou a
sua coleção bélica, além de frequentar aulas de tiro. Nos programas
familiares, no trajeto de casa para o trabalho ou mesmo quando ia ao
encontro de garotas de programa de alto padrão, ele dirigia uma BMW 850i
preta e blindada, cujo preço do modelo novo beirava os 800 mil reais. O
Rolex no pulso do executivo, modelo GMT Master II, custava 60 mil reais.
Os itens de luxo eram deixados de lado quando Marcos seguia ao encontro
de prostitutas em seu apartamento no centro de São Paulo ou na boate Love
Story, na Praça da República, também na região central. Nesses momentos, a
BMW era substituída por uma Pajero TR4 – 4x4 blindada, avaliada em 100
mil reais. O executivo era hábil na vida dupla. Mantinha dois números de
telefone celular, sendo que o aparelho usado para marcar encontros com
prostitutas nunca era levado para casa. Seus amigos da alta roda e os colegas
de trabalho, assim como os seus familiares, não sonhavam com a existência
do Whore Rider. Já os amigos do meretrício, por sua vez, tinham per l
ambíguo parecido com o de Marcos. Com isso, o segredo entre eles era
mantido sob o mais imperioso sigilo até por uma questão de sobrevivência
da vida em família.
O vício de Marcos em prostitutas escondia uma patologia conhecida
como ninfomania – obsessão com pensamentos, impulsos ou
comportamentos sexuais que causam sofrimento e afetam negativamente a
saúde, o trabalho e os relacionamentos. Nos homens, esse transtorno é
chamado de satiríase – referência aos sátiros, guras da mitologia grega
metade homem, metade bode. Já as mulheres viciadas em sexo são
chamadas de ninfomaníacas, em alusão às divindades conhecidas pelo nome
de ninfas, cuja função era saciar a luxúria dos sátiros. Recentemente, os
manuais de psiquiatria rebatizaram a ninfomania com o nome de “impulso
sexual excessivo”. No livro Psicopatologia e semiologia dos transtornos
mentais, o psiquiatra e doutor em antropologia social pelo Instituto de
Filoso a e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp),
Paulo Dalgalarrondo, descreveu a ninfomania da seguinte forma: “É a busca
incessante do indivíduo pelo prazer nas relações sexuais, tendo como
consequência o consumo excessivo de pornogra a, masturbação de forma
exagerada e uma intensa e insaciável vontade de se realizar sexualmente,
principalmente com pessoas desconhecidas”.
Marcos também era portador de uma síndrome chamada “timidez do
amor”, cuja maior característica é a incapacidade de seduzir uma pessoa de
forma natural por causa de ansiedade crônica e excesso de acanhamento. O
termo foi criado pelo psicólogo americano Brian G. Gilmartin justamente
para descrever um tipo especí co de vergonha que inibe a capacidade de
conquista amorosa. Segundo o psicólogo Ailton Amélio da Silva,
coordenador do Centro de Estudos da Timidez do Amor do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), os portadores dessa
síndrome podem apresentar na hora do approach sintomas como gagueira,
coração disparado, aumento da pressão sanguínea, tremedeira, preocupação
e, principalmente, medo de ser rejeitado. Esses problemas acabam
atrapalhando o início de uma relação amorosa. A timidez excessiva de
Marcos, somada ao impulso sexual excessivo, explicaria o seu envolvimento
com garotas de programa. “Quem sofre de ‘timidez do amor’ geralmente
tem aversão ao ritual da conquista”, observou o psicólogo da USP. Segundo
amigos de infância de Marcos, ele pagava sistematicamente pela companhia
de mulheres desde os 15 anos.
Convivendo diariamente com prostitutas, o empresário da Yoki
costumava se apaixonar por elas. As pro ssionais também se envolviam
emocionalmente com o executivo. Em meados de 2002, ele contratou por
600 reais uma pro ssional chamada Luzia Savoia, mais conhecida na zona
pelo singelo codinome de Luluzinha. Seu currículo era invejável. Ela já havia
posado na seção Pimentinha da revista Sexy e atuava como dançarina do
Programa Raul Gil, atração popular exibida na época pela TV Record.
Depois do quinto encontro, Luluzinha e Marcos estavam enlaçados de amor.
Afrodescendente, a pro ssional era adepta do candomblé. A jovem tinha 27
anos e o empresário, 33, quando o romance começou. Luluzinha era lha de
Iansã, o orixá dos fenômenos climáticos que se materializa quando o céu se
precipita em água e ventania para formar tempestades colossais. Ela jurava
incorporar a pomba gira, a entidade símbolo da mulher livre da submissão
imposta ao sexo feminino por uma sociedade machista ao longo dos
séculos. “Sou uma força da natureza. Homem nenhum me segura”, dizia a
pro ssional em um anúncio publicado nos classi cados do jornal Folha de S.
Paulo, em 2002.
Luluzinha era linda, simpática e extrovertida, mas tinha um defeito
considerado grave num mercado onde a discrição valia ouro: a moça se
descontrolava com facilidade. Fazia escândalos em público, tal qual Tatty
Chanel. Ela recorria às divindades do candomblé para conter as emoções
mais básicas, como ciúme, raiva e possessão. Mas essas entidades vinham
fracassando na missão. Marcos, literalmente, relevava os barracos da sua
“amada” no início da relação. Romântico, ele conduzia a sua Lulu ao Parque
Ibirapuera para tomar sorvete. Faziam compras juntos no shopping e
frequentavam até salas de cinema. Quando o “namoro” completou seis
meses, ele deu de presente a ela uma Pajero TR4 novinha em folha.
Luluzinha quase desmaiou tamanha era a emoção quando recebeu as chaves
do utilitário esportivo da Mitsubishi. Para agradecer o mimo, ela levou o
empresário em seu carro novo a uma festa litúrgica no templo de candomblé
de Itapecerica da Serra, na Região Metropolitana de São Paulo.
No pequeno dicionário amoroso de Marcos não constavam palavras
como “ delidade”, “honestidade”, “sinceridade” ou “retidão”, principalmente
quando se falava em relacionamentos com garotas de programa. Mesmo
saindo frequentemente com uma call girl e fazendo-lhe juras de amor, o
empresário encontrava-se escondido com outras pro ssionais e ainda
conseguia tempo para se dedicar ao casamento com Lívia. Por outro lado,
ele exigia exclusividade das prostitutas quando o “namoro” engatava. Ou
seja, elas não poderiam sair com outro cliente. Essa delidade custava caro.
O executivo pagava mesadas de até 30 mil reais para bloquear a agenda das
prostitutas. O “salário” era uma forma de compensar o prejuízo que elas
tinham ao deixar de fazer outros atendimentos.
Enrabichada com Marcos, Luluzinha teve oportunidade de fuçar o
celular dele enquanto jantavam na churrascaria NB Steak House. Lendo
mensagens, ela descobriu estar sendo “traída”. Fez um escândalo homérico.
Num ataque de ciúme e fúria, ela socou fortemente a mesa. Talheres foram
jogados no chão, chamando a atenção de outros clientes. A garota gritava
para quem quisesse ouvir que aceitava o fato de o seu “namorado” ser
casado, mas não admitia “de jeito nenhum” encontros com outras
prostitutas. Quando ouviu a palavra “prostituta” dita em voz alta e em
público, Marcos quis evaporar da mesa. A marcação cerrada da garota e os
vexames foram aumentando com o passar do tempo, fazendo o empresário
perder o encanto. Aos poucos, ele foi se afastando e acabou trocando o
número do celular para não car ao alcance imediato de Luluzinha. Ela cou
com a TR4, mas perdeu a mesada. Mesmo rejeitada, dizia para as colegas de
pro ssão amar Marcos eternamente. Admitia ser possessiva, ciumenta e
altamente descontrolada. Mas estava disposta a mudar para reconquistá-lo.
Luluzinha estava agarrada num apo de esperança: Marcos nunca havia
verbalizado o ponto nal no “relacionamento”.

* * *

Era manhã de quinta-feira quando Marcos comentou com a esposa Lívia


sobre uma reunião externa de trabalho. Justi cou a viagem com uma
inspeção de última hora na fábrica da Yoki, em Marília. Era mentira. De
casa, ele seguiu para o Gero, restaurante italiano localizado no bairro dos
Jardins. No salão, encontrou-se com Gizelle, de 26 anos, uma garota de
programa de alto luxo, estudante de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Os dois almoçaram feito
casal e de lá seguiram para o Shopping Pátio Higienópolis. Passearam de
mãos dadas pelos corredores.
Gizelle era uma mulher linda, elegante e de gestos delicados. Falava de
forma tão macia que, às vezes, não era ouvida. Tinha cabelos castanhos
longos meio cacheados e só usava grifes, tanto nas roupas quanto nos
acessórios. Oriunda de família classe média alta, era emocionalmente fria.
Morava no bairro de Pinheiros e dirigia um Citröen C3 novo. Além do
português, falava inglês e espanhol uentemente. Seu esquema era
re nadíssimo. Ela não anunciava em lugar nenhum. Recebia indicações de
clientes por um booker (cafetão) extremamente discreto, cujo portfólio
contava com atrizes, modelos e garotas da alta sociedade paulistana acima
de qualquer suspeita. O agente cava com 50% do valor básico do programa.
Exigente e muito solicitada, Gizelle chegava a recusar encontros alegando
não ter sentido energia boa no pretendente. Ainda assim, a garota fazia três
programas por semana ao preço-base de 2 mil reais. Preço-base porque ela
faturava num encontro bem mais lançando mão de pequenos truques.
No shopping, Marcos e Gizelle pararam em frente à joalheria Vivara.
Enquanto observavam as preciosidades na vitrine, a pro ssional contou uma
história triste envolvendo um drama familiar. Sua mãe estava doente e
passaria por uma cirurgia de alta complexidade na cabeça. O casal entrou na
loja com os braços trançados e Gizelle continuou a falar da tragédia. A mãe
estava com ovos de tênia (Taenia solium) no cérebro prestes a eclodirem. O
problema de saúde teria ocorrido porque a paciente comeu carne de porco
contaminada ao longo de uma década. Para retirar os ovos do parasita, os
médicos teriam de serrar os ossos do crânio. O procedimento é conhecido
como craniotomia. Gizelle deu ênfase à palavra “morte” quando relatou que
a mãe poderia sucumbir na mesa de cirurgia e deixou escorrer duas lágrimas
para hidratar a sua dor. No melhor dos prognósticos, a mulher sairia do
hospital com sequelas motoras e neurológicas irreversíveis.
Já na frente de uma vendedora e diante do mostruário de joias, a garota
falou que, para salvar a mãe, estava agarrada com todas as forças a Nossa
Senhora Aparecida, padroeira dos brasileiros. Em seguida, ardilosa, Gizelle
pediu à vendedora para experimentar justamente um pingente com a
imagem de Aparecida, moldado delicadamente em ouro amarelo 18 quilates,
sa ra e diamantes. A etiqueta mostrava o preço de 3.190 reais. Com a joia no
pescoço, a pro ssional rezou em silêncio movendo os lábios como se fosse
muda, deixando escapar assobios bem baixinhos. Finalizou o ato religioso
com o sinal da cruz. Enquanto isso, Marcos foi ao caixa e passou o cartão de
crédito para pagar pela joia sem que a garota pedisse. “Aceite o presente. [...]
Você poderá rezar em casa pela saúde da sua mãe”, justi cou o executivo.
Gizelle agradeceu a gentileza com um beijo longo e saiu de lá com o
pingente no pescoço diretamente para o at do empresário, no Itaim.
Na cama, Marcos investiu em preliminares, principalmente em oral.
Nesse tipo de sexo, aliás, o empresário tinha uma peculiaridade, segundo
relatou Gizelle. Ele gostava de ser chupado lentamente e por bastante tempo
no começo da transa. No entanto, depois, ele não se deixava ser beijado pela
garota porque não gostava do sabor do próprio pênis. Outras pro ssionais
(Tatty Chanel e Luluzinha) também relataram esse traço particular do
cliente. “Ele dizia que tinha ‘nojinho’ e não beijava mais de jeito nenhum.
Mas que a verdade seja dita: essa característica não era só do Marcos. Muitos
homens não beijam as mulheres depois de serem chupados”, advertiu Lulu.
Ainda no at de Marcos, ocorreu um contratempo. Depois do sexo oral,
o executivo deitou-se por cima de Gizelle e sobre ela não passou nem um
minuto porque não conseguiu ereção su ciente para um ato sexual longo e
satisfatório. Ejaculou antes mesmo de penetrá-la. A universitária
encarregou-se de eliminar qualquer possibilidade de constrangimento
calando-se sobre o tema. Encostou a cabeça no ombro do cliente e o casal
dormiu nu, agarrado como se dois anjinhos fossem.
Gizelle era garota de programa classe AAA, ou seja, uma das mais caras
do mercado. Fazia parte de um grupo seleto de pro ssionais com cachê
elevado não só pela beleza, mas principalmente pela forma educada, discreta
e romântica de conduzir os encontros e administrar contratempos
associados à disfunção erétil dos parceiros. Em nenhum momento a relação
parecia de consumo, o que deixava os clientes mais exigentes bem à vontade.
Essas mulheres eram conhecidas no mercado de luxo por um termo chique:
ancée, pois saíam mais de uma vez com o cliente e adoravam receber
presentes caros. Elas não guravam em book, revistas, campanhas
publicitárias, colunas sociais ou sites de acompanhantes. Também não
enviavam fotos nuas sob qualquer hipótese. Muito menos frequentavam
casas de prostituição. Investiam muito em carinho e atenção e tratavam o
cliente feito um noivo. O pagamento era sempre feito de forma indireta,
dissimulando o caráter comercial da relação. A história dos ovos de tênia na
cabeça da mãe de Gizelle, por exemplo, era pura lorota.
O segredo desse tipo de prostituição era camu agem e talento para
representar. Em nenhum momento se associavam os valores pagos aos
serviços sexuais. Gizelle era uma acompanhante no sentido mais poético da
palavra. O sexo com ela, muitas vezes, era uma relação metonímica. No café
da manhã, esperta, a pro ssional chorou um pouco mais as pitangas da vida
para descolar mais um trocado. Nessa oportunidade, reclamou do atraso da
mensalidade do seu curso no Mackenzie. Logo mais ela seria impedida de
fazer as provas. O executivo quis saber o valor para quitar o carnê atrasado
da faculdade. “Pouca coisa, amor. Uns três mil reais”, estimou a pro ssional.
Depois de mencionar o valor da suposta dívida, ela derramou outras
lágrimas tão falsas quanto os cílios colados ao redor dos olhos. Marcos abriu
uma pasta, tirou de lá trinta notas de 100 reais e deixou sobre a mesa de
cabeceira. Gizelle pegou o dinheiro discretamente e – sem conferir – o
guardou em sua bolsa Gucci. Cobriu o cliente de beijos e zeram sexo pela
segunda vez no mesmo encontro. Para obter um bom desempenho, dessa
vez o empresário da Yoki recorreu a um comprimido de Viagra. Somando a
conta das refeições à nota do pingente e ao bônus no nal, a despesa com a
prostituta cou perto de 8 mil reais. Desse total, o booker cava com apenas
1 mil reais. Marcos saía com a sua ancée pelo menos uma vez por mês. E
cada um desses encontros parecia uma lua de mel. Era um luxo só!

* * *

Em Curitiba, a carreira de prostituta de luxo de Elize Araújo despencava.


O escândalo na Assembleia Legislativa do Paraná envolvendo o deputado
Mário Sérgio Zacheski, o Bradock, havia estampado as páginas dos jornais.
Com isso, seus clientes xos simplesmente desapareceram. Outro motivo
para sua decadência foi a partida de Estella. Sem a mentoria da pro ssional
veterana, a jovem só fazia besteira. A última delas foi a festa no lo com
Gilberto, o narcotra cante, e mais três bandidos. O porteiro avisou pelo
interfone que os policiais estavam subindo para o apartamento e Elize se
apavorou. Ela tentou esconder as armas e a cocaína às pressas, mas Gilberto
a tranquilizou. Não seria naquele momento que a jovem receberia um par de
algemas nos pulsos. Todos os policiais trabalhavam para Gilberto e foram
até o lo a convite dele. Cinco PMs fardados se juntaram à balada privê. Um
deles, sargento Paulo Sérgio, teria transado com Elize na área de serviço. O
militar de 35 anos era casado, mas se apegou à jovem e foi correspondido.
Em outros encontros, Paulo alertou Elize sobre os riscos de se relacionar
com bandidos do PCC, citando Gilberto, o narcotra cante, como exemplo.
Segundo previsão do policial, mais cedo ou mais tarde ela seria enredada
pelo trá co. Desiludida com a vida em Curitiba e decidida a prosperar
casando com um homem rico, Elize resolveu se mudar para São Paulo em
agosto de 2004, quando tinha 23 anos. De Gilberto, ela teria recebido a
indicação de uma cafetina so sticada chamada Arethuza Becker, agente de
acompanhantes de luxo e proprietária de uma mansão no bairro de Moema.
Elize entregou o apartamento de Curitiba e se instalou em um at mobiliado
no Itaim, em São Paulo, com aluguel de 4,9 mil reais.
Numa manhã de segunda-feira, Elize bateu na porta do casarão de
Arethuza, na Rua das Gaivotas, em Moema, um dos bairros mais familiares
de São Paulo. Local discretíssimo, era cercado por uma muralha toda
camu ada com plantas aéreas, como jiboia, lodendro, heras, falsa-vinha e
diversas trepadeiras. No meio desse matagal havia 12 câmeras de segurança.
A vizinhança não imaginava o que aquela cerca verde de sete metros de
altura escondia. Mesmo quando as duas bandas do portão basculante todo
feito de peroba maciça eram abertas para entrada de carros, não era possível
avistar a mansão de dois pavimentos e 582 m2 de área construída encravada
num terreno arborizado de cerca de 2.000 m2. Um outro muro verde
impedia a visão de quem estava na rua. No quintal, um viveiro enorme
abrigava tucanos, roselas, saíras-sete-cores e calopsitas. Oito lhotes de emas
passeavam pela área externa. Era possível ver três pavões soltos no gramado
– dois machos e uma fêmea. As aves de penas exuberantes chamavam a
atenção porque os machos estavam sempre rivalizando pela fêmea. Nas
lutas, eles abriam o leque de plumas de cores garridas para cortejar a pavoa.
Como nem sempre essa pavulagem dava resultado, as aves partiam para o
“vamos ver” e se engal nhavam usando as esporas e soltando um som
estridente.
Além de aves exóticas, empresários, políticos, atores famosos, turistas
estrangeiros, pilotos de Fórmula 1, agentes esportivos, jogadores de futebol e
cantores internacionais batiam ponto lá de quarta a sábado. O salão
principal tinha diversos sofás de canto de couro legítimo avaliados cada um
em 40 mil reais. Um bar central e diversos garçons uniformizados
circulavam com bebidas. Tudo na casa custava os olhos da cara. A maioria
dos clientes xos mantinha na mansão a chamada taxa de rolha, um
esquema no qual o consumidor levava a própria bebida sob pagamento de
450 reais por garrafa. Quem não tinha a própria bebida comprava no balcão.
A que mais saía era o uísque. O cliente comprava, bebia a quantidade
desejada e deixava o restante lá. O mais barato era o Johnnie Walker 18 anos
de 750 ml, cujo preço em 2021 era de 1.400 reais. No mercado, essa mesma
garrafa podia ser levada da prateleira por 350 reais. Além de destilados, o
bar da mansão de Arethuza vendia cerveja, vinho e fazia drinques. Um gim-
tônica (Tanqueray) custava 95 reais. Um gim signi ca a taça, e não a garrafa
– frise-se. A cozinha não preparava pratos. Fazia apenas petiscos.
O casarão de Arethuza era apenas um ponto de encontro. Apesar de ter
quatro amplos dormitórios no piso superior, os clientes não tinham acesso a
eles. A cafetina reservava os cômodos para hospedar modelos de outras
cidades. O programa com uma das garotas, dependendo do naipe, custava
até 8 mil reais. Mas só era repassado às jovens 40% desse valor. A maior
parte (60%) cava no caixa de Arethuza.
A partir das 20 horas, o salão se transformava em um evento parecido
com um vernissage, tal era o número de obras de arte espalhadas pelas
paredes. Havia pinturas de Pierre-Auguste Renoir, Johannes Vermeer,
Claude Monet e muitas outras. Exposta em um dos corredores amplos,
estava uma obra do escultor pernambucano Abelardo da Hora – segundo
Arethuza, dada de presente pelo próprio artista em uma das passagens dele
pela casa. Considerado um dos maiores nomes da escultura no Brasil,
Abelardo esculpia temas regionais e da cultura popular. A peça sem nome na
mansão da empresária mostrava um corpo feminino nu em tamanho real e
com toque expressionista. Uma peça semelhante, em pose diferente,
encontrava-se exposta no Shopping Center Recife, na capital pernambucana.
Invejosos diziam que todas as obras de arte da cafetina eram falsi cadas. Ela
jurou serem todas autênticas e adquiridas em leilões da Receita Federal.
A dinâmica na mansão era simples. Os clientes, a maioria homens de
meia-idade, circulavam pelo salão em grupos, enquanto as garotas
borboleteavam entre eles até dar match. Elas não tratavam de valores.
Acertavam apenas o encontro e saíam de lá com o cliente. A fatura do bar e
do programa era cobrada discretamente no dia seguinte pela equipe de
Matheus, de 34 anos, um ex-modelo e braço direito de Arethuza. “Era tudo
no o do bigode”, contou a cafetina. Em 20 anos de carreira na noite, a
empresária levou apenas um calote do produtor norte-americano de uma
famosa banda irlandesa que fez show no Estádio do Morumbi em 2006.
Geralmente os pagamentos eram feitos por assessores ou secretárias dos
clientes. Alguns não se davam ao trabalho de ir à mansão e ligavam para
pedir garotas. A maioria das dívidas era quitada por transferência bancária
ou cartão de crédito empresarial e posteriormente pelo PIX. “Noventa por
cento dos clientes eram xos e frequentavam a casa havia anos. Quando
chegava algum novato, vinha com alguma indicação”, explicou o gerente.
Nos anos 2000, a maior concorrente de Arethuza no ramo da
prostituição de luxo era Jeany Mary Corner, uma cafetina famosa cujo
negócio era centralizado em feiras realizadas em centros de exposições,
convenções de partidos políticos, congressos de empresários e encontros de
prefeitos. O cachê das modelos agenciadas por Jeany beirava os 10 mil reais,
e 70% do valor cava com ela, segundo investigação da Delegacia Especial
de Atendimento à Mulher (Deam) do Distrito Federal. Foi no Planalto
Central, aliás, que a cafetina expandiu os seus negócios no auge da carreira.
O preço salgado cobrado pela empresária do sexo era justi cado com a
oferta de garotas de programa famosas e exclusivas, já estampadas em capas
das revistas Sexy e Playboy.
Para não disputar clientes com Jeany, Arethuza nunca apostou em
eventos sazonais e cresceu no ramo investindo em clientes éis que
torravam na mansão de Moema até 40 mil reais por mês entre consumo no
bar e noitadas com prostitutas de alto padrão. Quando Jeany deslocou seus
negócios para Brasília, Arethuza expandiu as atividades em São Paulo. A
cafetina diversi cou os investimentos associando-se a um ex-produtor de
moda chamado Joel, e montou uma boate no Baixo Augusta voltada a quem
tinha pouco dinheiro para investir em luxúria. Na casa alternativa, o
programa variava entre 300 e 400 reais a hora. As concorrentes acusavam
Arethuza de usar essa segunda casa para lavar o dinheiro arrecadado na
mansão. Na prefeitura de São Paulo, o estabelecimento do Baixo Augusta era
legalizado na Junta Comercial de São Paulo como casa de shows. Ela
também negou a acusação de práticas econômico- nanceiras ilícitas.
“Nunca entrei numa delegacia”, vangloriava-se. O comentário foi uma
al netada à sua adversária. Jeany se enrolou toda nos desdobramentos do
escândalo do Mensalão, em 2013, e acabou presa em Brasília na Operação
Red Line sob acusação de agenciar garotas de programa. Ao ser algemada,
Jeany acabou envolvendo no escândalo sexual o ex-ministro da Fazenda,
Antonio Palocci. O petista teria sido um dos principais clientes da cafetina e
– supostamente – organizava festas badaladas com prostitutas de luxo em
sua mansão, no Lago Sul, em Brasília.
Em 2004, Arethuza tinha 50 anos e era uma mulher re nada. Além de
negócios na noite e na moda, entendia de vinhos, gastronomia e artes. Todo
nal de ano ela deixava o casarão sob os cuidados de Matheus e passava uma
temporada no exterior. Seus destinos preferidos eram Paris e Madri.
“Sempre achei os Estados Unidos um lugar altamente cafona”, desdenhou. A
empresária perdeu completamente os laços familiares ainda na juventude.
Solteira, não tinha lhos. Delgada e pálida, tinha os olhos grandes e
expressivos, reforçados com maquiagem feita a lápis bem preto na linha
d’água e sombras escuras. Os mais chegados a chamavam de Mortícia, em
referência à matriarca da família Addams. Ela nem ligava.
Paulista de Itapetininga, a cafetina era lha e neta de fazendeiros
latifundiários produtores de hortifrutícolas e de cana-de-açúcar para a
fabricação de álcool. Tinha barões, baronesas e até um ministro do Império
entre os seus antepassados. Apesar do berço de luxo, sua história daria um
lme bem mexicano, como ela mesma de niu. Aos 9 anos, passou a ser
rejeitada sem motivo aparente pela mãe, Maria Emília. Tudo que fazia ou
deixava de fazer era motivo de crítica e até violência. As humilhações
aumentaram na adolescência. Era chamada de feia, espantalho, gorda e
aberração. Às vezes, agrava o pai e a mãe Maria Emília discutindo por sua
causa, mas não conseguia entender claramente os motivos das desavenças.
“Um dia, estava tomando banho com uns primos e minha mãe mandou eles
saírem do chuveiro porque eu já era mocinha. Fiquei sozinha no box. Do
nada, ela pegou uma ripa de madeira e me deu uma surra. Meu pai estava
em casa e não fez nada. Ele só dizia assim: ‘Ela não tem culpa! Ela não tem
culpa! Para com isso!’ Eu não entendia nada”, recordou-se.
Arethuza viveu a infância ao lado de dois irmãos. Um deles era dois anos
mais novo. O outro somente sete meses mais velho. Paradoxalmente, os dois
recebiam muito carinho da mãe. Havia outro fato esquisito na casa. A garota
ganhava afagos do pai na ausência da mãe e maus-tratos dele na presença
materna, o que causava mais confusão na cabeça da criança. De tanto ser
massacrada em família, Arethuza passou a frequentar a fazenda vizinha,
conhecida pela produção de lenha e madeira em tora, de propriedade de tia
Nicete – irmã mais nova de sua mãe. Lá, além de brincar com duas primas
da mesma faixa etária, Arethuza recebia o amor e o afeto que lhe faltavam
em casa. Ela tinha 14 anos quando a mãe Maria Emília a expulsou
de nitivamente da família. Ela acabou pedindo abrigo permanente na
fazenda da tia Nicete. Um ano depois, sua mãe morreu de um ataque
cardíaco fulminante. O funeral foi constrangedor. Os irmãos choravam
copiosamente e Arethuza não conseguia verter uma única lágrima. Pelo
contrário, em determinado momento, feito louca, ela começou a gargalhar.
A avó materna sentou uns tapas na cara da neta para cessar o ataque de riso
e a tirou da capela para evitar um vexame maior. “Essa menina cou doida!”,
gritava a mãe da falecida.
Aos 16 anos, Arethuza cou sem chão. Tia Nicete morreu vítima de um
câncer agressivo no fígado. Entre a descoberta da doença e a sua morte,
passaram-se apenas 38 dias. Nos momentos nais da tia, Arethuza entendeu
os motivos da rejeição materna. Nicete a chamou ao leito hospitalar para
uma conversa de nitiva. A avó tentou impedir, mas Nicete foi categórica em
contar a verdade. A sós com a tia, Arethuza ouviu a história que mudaria a
sua vida para sempre. Nicete fez o seguinte relato à sobrinha: “Um ano
depois que o seu pai se casou com minha irmã [Maria Emília], eu me tornei
amante dele. Tenho muita vergonha disso, lha. [...] Assim que o seu
primeiro irmãozinho nasceu, descobri que estava grávida do seu pai. Sua
mãe soube e fez um escândalo. Então, a sua avó resolveu o con ito familiar
determinando que eu desse o meu bebê [Arethuza] para a Maria Emília
criar como se fosse dela. Todo o mundo concordou, menos eu. Mas não tive
escolha. Minha irmã criou você como lha, mas eu nunca deixei de te amar
como mãe”. No dia seguinte a essa revelação, Nicete morreu e nalmente
Arethuza derramou as lágrimas represadas desde o enterro da falsa mãe.
Com o tempo, o drama pessoal de Arethuza foi se transformando em
insubordinação. A garota tornou-se agressiva com o pai e com as tias. Logo
após a missa de 30 dias de Nicete, ela teve uma atitude insana movida por
uma profunda revolta. Na madrugada, foi até o cemitério com um galão de
querosene e incendiou a capela onde jaziam a mãe e a tia. Enquanto os
túmulos eram destruídos pelo fogo, ela fez as malas e fugiu de casa. Os
bombeiros foram chamados e suspeitaram de um incêndio provocado por
excesso de velas. “Fiquei com ódio das duas. Me sentia profundamente
enganada. Queimá-las mesmo depois de mortas foi uma forma de me livrar
desse sentimento ruim”, justi cou.
Em São Paulo, Arethuza começou a carreira de garota de programa em
meados dos anos 1980. Empreendedora, já administrava a mansão de
Moema no início da década de 1990. O negócio começou com um sócio. Em
2000, o parceiro vendeu a sua parte no prostíbulo de luxo e Arethuza passou
a dar as cartas sozinha no local. “No início, minha autoestima vivia no
subsolo. Eu fazia sexo por dinheiro e me envolvia emocionalmente com os
clientes. Isso é um erro que uma pro ssional não pode cometer. No meu
caso, bastava eles me fazerem um cafuné para eu me apaixonar
perdidamente. Ficava arrasada quando eles não me queriam pela segunda
vez, mesmo me oferecendo de graça. Foi preciso fazer terapia por dez anos
para descobrir que terceirizava para os meus clientes as esperanças de
compreensão, segurança e até mesmo um motivo para existir. [...] Esses
dilemas me tiraram a vontade de formar uma família”, confessou Arethuza.
A sua vida prosperou com o tempo. Formou-se em Administração na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estudou idiomas
até se tornar poliglota e enriqueceu no ramo da prostituição, tornando-se
uma das mulheres mais requisitadas de São Paulo quando a demanda é
garota de luxo. Os traumas do passado a transformaram numa mulher fria,
ácida, insensível e, às vezes, agressiva. Mas, segundo ela, essas características
negativas são o seu escudo de proteção. “Vivo num mundo muito hostil”,
de niu.
Elize tocou o interfone da mansão de Arethuza às 11 horas, e uma
secretária atendeu. Pelo sistema de som, a jovem disse que pretendia
trabalhar na casa e contava com uma indicação do “Gilberto de Curitiba”. A
funcionária pediu um momento. Quinze minutos depois, Elize recebeu a
orientação para entrar pelo portão de serviço, localizado na rua lateral. Ela
deu a volta e acessou o interior da mansão. Ficou boquiaberta com a
suntuosidade do lugar. Na garagem havia quatro carros de luxo. Ela
caminhou por uma calçada de pedras nobres miracema e foi abordada por
Matheus, o gerente. Ele a conduziu até uma varanda lateral. A garota
esperou sentada numa poltrona. Um garçom ofereceu café e água. Elize
aceitou os dois. Meia hora depois, Arethuza adentrou a varanda vestindo um
kaan indiano de seda, modelagem godê, com estampa oral em ferrugem
dourada e mangas curtas. Foi logo se justi cando:
– Desculpa pela demora, lha. Fazer esperar é a maior falta de respeito
que existe.
– Imagina, dona Arethuza...
– Dispenso esse “dona”! Vamos logo ao que interessa: o que você veio
fazer aqui?
– Vim trabalhar.
– Trabalhar com o que, menina?!
– Eu sou pros-ti-tu... – Elize falou baixinho e não terminou a frase por
constrangimento.
– Você é o que, criatura?!
– Prostituta! – pôs pra fora.
– Nunca fale essa palavra suja aqui dentro. Nunca! Ouviu bem? Fale
“acompanhante” ou simplesmente diga que você é uma “pro ssional”. Isso
que vocês fazem é um trabalho. “Prostituição” passa a ideia de algo
criminoso, imoral e depravado – ensinou Arethuza em voz alta.
O garçom serviu chá para a cafetina, enquanto ela perguntava pela vida
de Gilberto. Elize contou sobre a festa no lo com o tra cante e a cafetina
resenhou: “Ele é um bom cliente. Bonito, romântico, educado e tem bom
gosto. Mas é muito inconsequente”. Arethuza continuou com a entrevista e
ouviu de Elize repetidamente a intenção de trabalhar na mansão. Enquanto
as duas conversavam, uma das maiores estrelas da casa, Penélope, foi ao
encontro da empresária puxando uma mala pequena de rodinhas. A
pro ssional estava impecável numa minissaia matelassê black gold da Diesel
e uma camisa feminina branca social de mangas longas da grife francesa
Givenchy. Ela fazia da varanda uma passarela ao des lar com passos
trançados. De fato, era modelo. Tinha 1,80 m de altura e no currículo
ostentava fotos em catálogos de moda feminina de lojas caras. Sorridente,
Penélope, de 25 anos, deu um beijo na testa de Arethuza e seguiu para
Cuiabá a trabalho. A cafetina desejou “boa sorte” à garota e continuou a
prosa com Elize:
– Eu só trabalho com pro ssionais de alto padrão – advertiu Arethuza.
– Eu sou de luxo... – ponderou a técnica em enfermagem.
– Você é o que, garota? – debochou a empresária, rindo.
– Luxo! – insistiu Elize.
– Luxo onde?!
– [silêncio]
– Fique em pé, por favor – ordenou a an triã.
Elize obedeceu e ouviu mais um comando: que desse uma volta no
próprio eixo. A jovem vestia uma calça jeans desbotada bem coladinha e
uma blusa com estampa colorida comprada na Calvin Klein. Arethuza
descartou a paranaense de Chopinzinho usando de proselitismo:
– Olha, lha, não se ofenda, tá? Mas preciso te dizer a verdade. O luxo lá
em Curitiba é bem diferente do requinte aqui de São Paulo. Meus clientes
exigem selo de alta qualidade das minhas modelos. Pagam caro, mas não se
contentam com uma pro ssional menos que excelente. Aqui, as garotas leem
jornal todo dia. São antenadas com os acontecimentos do mundo. E você?
Como se informa? Me fale o que o governo está fazendo para conter a
in ação. Você tem diploma de quê? Quantos idiomas você fala? De qual
campanha publicitária você já participou? Penélope, essa garota que acabou
de sair, está estampada nos painéis de propaganda da Oscar Freire. E você?
Está estampada onde?
O silêncio de Elize foi uma resposta negativa para todas as perguntas
incômodas de Arethuza. Ela baixou a cabeça para se esconder da
humilhação. Sem se comover, a empresária continuou a entrevista de
emprego enquanto tomava um chá chinês no conhecido como da hong pao
em uma xícara preta e dourada de porcelana Wolff:
– Quanto você cobrava em Curitiba?
– Variava, mas chegava a 1.000 reais.
– Só isso? Aqui nesta casa você não tem a menor chance. Sua cara de
mulher sofrida do interior não despertaria desejo nos meus clientes. Você
precisa galvanizar seu rosto, a lar o nariz, clarear os seus dentes e passar
uma tintura cara nos cabelos mesmo para trabalhar em bordéis para homens
de classe média. Meus clientes pagam caro por mulheres sorridentes de
outdoor, espontâneas, bem pra cima, sabe? O menor cachê aqui na minha
casa é 8 mil reais, lha. Você está longe de merecer um quarto desse valor.
Você também não teria como atender a minha clientela porque tem muito
estrangeiro que não fala português.
– Eu entendo... – resignou-se Elize.
– Você já comeu foie gras?
– Não senhora.
– Você até que é bonitinha de longe. Mas de perto surge um defeito
crucial para o mercado de luxo: você é uma mulher comum. Não tem
cultura no paladar. Sem estilo. Minhas garotas são gloriosas na cama, mas
elas também têm de mostrar talento da cintura para cima – encerrou
Arethuza.
Ao ouvir aquele diagnóstico, Elize derreteu feito as paredes de Jericó. A
conversa torturante foi nalizada com Arethuza passando a ela o endereço
da sua casa de prostituição do Baixo Augusta escrito num pedaço de papel
junto com o nome e o telefone de Joel, o gerente. Na noite seguinte, Elize
vestiu-se com gurino de pro ssional e foi até a boate. Na porta, chocou-se
com o ambiente. O local tinha uma pista de dança ampla com som nas
alturas, luzes coloridas piscantes e dezenas de mesas e cadeiras de plástico,
além de três mastros de pole dance e um palco para performances. Estava
lotada. Nos fundos, havia oito quartos para atendimento. Joel explicou que o
programa custava a partir 300 reais a hora e metade do valor cava com a
casa. Se os cômodos dos fundos fossem usados, a conta de 40 reais pelo
aluguel cava com o cliente. O gerente aconselhou Elize a beber tequila no
trabalho para se soltar e chegar nos clientes. A bebida era cortesia da casa,
porém, quando as prostitutas estavam acompanhadas, o valor era embutido
na conta dos fregueses sem que eles percebessem. Ela também teria de
aprender a dançar, usar o pole dance e atuar como garçonete ou na cozinha
nas horas vagas para engordar os rendimentos no nal do expediente.
Quem abriu os trabalhos na noite foi Chantall, uma garota de programa
goiana de 23 anos. Ela subiu ao palco usando apenas um hot pant roxo todo
franjado, uma roupa de duas peças especial para performance no pole dance.
A pro ssional dançava de salto alto na barra, explorando a sensualidade e
fazendo muito contato visual com os clientes. O público, eufórico, batia
palmas. Ela fazia caras e bocas para seduzir e abusava do oor work
(movimentação no chão). No nal, a apresentação lhe rendeu quatro
programas e mais as gorjetas. Com a comissão do atendimento no bar, a
garota saiu do prostíbulo naquela noite, às 6 horas da manhã, com 800 reais
líquidos na bolsa.
Poucas garotas de programa batalhavam de forma incansável como
Chantall. Nascida em Aporé (GO), ela dizia ter uma missão: ajudar a família
a sair da merda. O pai, agricultor, morreu quando ela tinha 12 anos. Deixou
de herança uma casa de três quartos nanciada por 30 anos pela Caixa
Econômica Federal, com prestação mensal de 1.230 reais e um saldo
devedor in nito. Pelas regras do nanciamento, a dívida foi quitada com a
morte do mutuário. Mas nem por isso as di culdades desapareceram. A
mãe, Damiana, de 62 anos, era dona de casa e não tinha renda. Teve de
aprender a costurar para trabalhar e alimentar a família. No ano de 2000, a
vida começou a mudar. Chantall migrou para São Paulo e começou a se
prostituir. O irmão mais novo, Lucas, passou no curso de Odontologia na
Universidade Federal de Goiás (UFG). A garota viu nos estudos do caçula a
tábua de salvação da família. Passou a investir todas as chas nele. Em 2004,
ela já havia mandado cerca de 20 mil reais para ele comprar livros,
instrumentos e insumos básicos usados nas aulas da universidade. O futuro
dentista já tinha kit clínico, peças de mão, seringa carpule, brocas
diamantadas e até um fotopolimerizador. Tudo comprado com dinheiro
enviado por Chantall. “Ele nem queria receber. Foi uma luta convencê-lo.
Mas eu insisti porque era uma forma de eu me realizar através dele. [...] Eu
prometi a mim mesma que largaria essa vida tão logo o Lucas se formasse”,
contou. No Natal de 2003, ela foi visitar a família e chorou emocionada
quando sentou na cadeira de dentista da Faculdade de Odontologia da UFG
e fez uma pro laxia (limpeza nos dentes) com o irmão. Nem Lucas, nem
ninguém na família imaginava a origem da receita da garota. Para todos os
efeitos, ela trabalhava como vendedora, “o que não deixava de ser verdade”,
brincou.
Chantall conseguia fazer muito dinheiro, apesar de ser explorada por
Joel, por duas razões. Eclética no trabalho, ela era uma das garotas mais
belas do Baixo Augusta. Seu rosto tinha forma de coração. Os lábios eram
carnudos, e o nariz, pequeno e magro. Os olhos castanhos e amendoados
chamavam a atenção dos clientes. As sobrancelhas tinham forma arqueada.
A harmonia do rosto era acentuada com os cabelos compridos e morenos. O
que sobrava em beleza, faltava em estudo. Ela abandonou a escola na 6ª série
do Ensino Fundamental para ajudar a mãe a sustentar a casa. Com pouca
instrução, falava português errado.
Na noite em que Chantall deu um show no pole dance, Elize nalmente
debutou na pro ssão, em São Paulo. Mas a primeira experiência não foi lá
essas coisas. A princípio, ela acompanhou sentada a dinâmica da boate,
tomando refrigerante numa mesa de canto. No meio da madrugada, Joel lhe
deu uma boa notícia: um jovem e um senhor de 60 anos estavam
interessados nela. A paranaense tabelou o programa em 400 reais. O idoso
não quis. O jovem barganhou e acabou fechando por 200. Foram para o
quarto dos fundos. O cliente de 23 anos era jogador de basquete do Clube
Pinheiros, tinha 1,96 m de altura e era forte. Estava tão bêbado que mal
conseguia car de pé. No cômodo apertado, ele não coube na cama. Mas se
deitou nela mesmo assim. Pediu para Elize car nua. Ela obedeceu. Na
sequência, a garota começou a tirar a roupa dele. Quando ainda tentava
abrir o botão da calça do rapaz, a jovem levou um sobressalto. Ele virou a
cabeça para fora da cama e vomitou nos pés de Elize todo o jantar e mais as
bebidas consumidas havia pouco tempo. E desmaiou. Irritada, ela pegou a
carteira do cliente, tirou de lá os 200 reais combinados, deixou a comissão de
100 reais com Joel e escafedeu-se.
No Baixo Augusta, Elize fez amizade com Joel e Chantall. Num café, a
paranaense contou para os dois amigos como foi humilhada e pisoteada por
Arethuza na entrevista, na mansão de Moema. Joel contemporizou, dizendo
que os clientes da cafetina eram, de fato, muito exigentes. Chantall mostrou
a Elize os sites de prostituição Master Class, Club Model e SP Love, voltados
para pro ssionais que orbitavam entre a prostituição de luxo e a praticada
em casas noturnas. A jovem a rmou ter medo de se expor numa página
virtual e ser descoberta pela família. Joel pronti cou-se a agenciar Elize por
fora com alguns clientes endinheirados em troca de uma comissão de 30%,
até modesta se comparada aos 50% cobrados na boate. Ela topou. Chantall
levou Elize ao seu apartamento, um quarto e sala na Rua Antônia de
Queiroz, na região da Consolação. Na conversa, Elize externou o medo de
não sobreviver em São Paulo no ramo da prostituição de luxo a ponto de
car sem dinheiro para bancar suas despesas básicas – citando o aluguel do
at do Itaim.
Chantall aconselhou Elize a esquecer essa história de luxo. A goiana
falou como sustentava a família: mandava dinheiro para a mãe idosa,
custeava o curso do irmão e ainda se mantinha em São Paulo. Ela atuava em
várias frentes de trabalho e só batia ponto na boate do Baixo Augusta
quando não tinha programas agendados. Sugeriu que a amiga desenvolvesse
algum talento para se diferenciar das demais pro ssionais. A paranaense
falou do sonho de se casar com um cliente rico. Chantall riu. “E quem não
quer?”, debochou. E mostrou o seu diferencial na pro ssão. Pegou uma mala
grande do armário e apresentou a Elize uma in nidade de acessórios.
“Minha especialidade é realizar fetiches. Dos mais simples aos mais bizarros.
Já transei em cemitério, em banheiro de supermercado, dentro de um poço e
até na pista do Aeroporto Campo de Marte. Quanto mais esquisito, melhor”,
brincou. Elize tinha acessórios básicos, como chicote, algemas e coleiras.
Chantall menosprezou os itens da amiga e apresentou o seu arsenal,
incluindo uma cinta peniana cujo falo sintético media 20 centímetros de
comprimento e oito de diâmetro. A cinta possuía alças elásticas ajustáveis
facilmente em qualquer corpo. A prótese era bem realista. Tinha glande
de nida e textura suave de veias, confeccionada em PVC atóxico. “Isso aqui
tá fazendo o maior sucesso”, observou. Elize riu. Em seguida, a garota
mostrou outras peças. A paranaense cou pasma quando viu um plug anal
com pedra brilhante, vibradores sem o e bolinhas tailandesas.
Por telefone, horas depois, Gilberto mandou uma mensagem para Elize
anunciando que estava em São Paulo. A paranaense deu o endereço do seu
at e lembrou-se do interesse do tra cante por brinquedos sexuais. Pegou
alguns itens emprestados com a amiga e os levou consigo. Marcou o
encontro para as 20 horas, passou no mercado para comprar o jantar e o
vinho. Chegou em casa no m da tarde, deixou as compras e correu ao salão.
Gilberto era um cliente pra lá de especial. Elize fez as unhas, escovou o
cabelo e saiu de lá maquiada. A noite prometia. No horário marcado,
Gilberto bateu em sua porta usando boné e óculos escuros. Os dois jantaram
e tomaram uma garrafa de vinho. O tra cante começou a se livrar das
roupas na sala e Elize seguiu para o quarto. Quando ela voltou, Gilberto
estava nu, sentado no tapete. A jovem já havia incorporado a destemida
Kelly, seu alter ego. Usava somente a cinta peniana com prótese de 20
centímetros e tinha uma chibata nas mãos. Gilberto enlouqueceu,
literalmente. A festinha a dois durou quase quatro horas. No nal, o
tra cante deixou com Elize 4 mil reais e prometeu voltar àquele paraíso
todas as vezes que estivesse na terra da garoa.
Do outro lado da cidade, na Vila Mariana, Chantall também atendia um
cliente antigo chamado Salim, um tabelião de 46 anos. Todas as vezes que
chamava a pro ssional, ele propunha algo diferente para obter prazer sexual.
Nesse dia, a produção foi caprichada. Ele pôs um caixão dentro de casa com
quase todos os acessórios fúnebres usados em um velório, incluindo um
conjunto provençal de bronze, velas e cavaletes para sustentar a urna.
Quando Chantall viu o aparato, soltou um grito de alegria. Salim pôs a
garota nua dentro da urna, cobriu o seu corpo com pétalas, apagou as luzes e
acendeu 20 velas. Em seguida, pediu que ela se ngisse de morta. O cliente,
então, começou a rezar enquanto dava voltas ao redor da defunta de
mentira. Para nalizar o teatro, Salim se masturbou sem ao menos tocar na
pro ssional. No nal, o cliente pagou a ela um cachê de 1 mil reais pela
bizarrice.
Depois da brincadeira, os dois, nus, jantaram comida chinesa no chão,
beberam cerveja e riram relembrando de outras fantasias realizadas no
passado. O dia já estava quase clareando quando Salim, bêbado, acendeu
uma das velas usadas no velório cênico. Com o acessório incandescente nas
mãos, ele ordenou que a garota deitasse de costas no tapete. Na sequência, o
tabelião pingou cera quente na pele da jovem. Os gemidos de dor o
excitaram e os dois transaram no chão. Já no nalzinho do encontro,
quando Chantall estava se vestindo, Salim a surpreendeu com um tapa
violento em seu rosto. Ela cou assustadíssima com a ação repentina e
começou a chorar. O homem pediu mil desculpas e associou a violência a
uma nova fantasia. A garota exigiu mais 300 reais de cachê pelo fetiche
inédito. Salim desembolsou mais 900 reais e sentou outras duas bofetadas
violentas na pro ssional, deixando seus lábios inchados e levemente
ensanguentados. Chantall saiu da casa do tabelião com 1.900 reais e
hematomas em seu rosto de linhas perfeitas. Nelson Rodrigues já havia
advertido: o problema do tapa não é o tapa. É o barulho.

* * *

Marcos Matsunaga era um homem de poucos amigos. Como vivia em


dois mundos completamente antagônicos, também se tornou uma pessoa
fechada. O Marcos no papel de homem de família era caseiro e raramente
fazia programas sociais com a esposa, Lívia. Esporadicamente acompanhava
os colegas do trabalho em happy hours, em bares nas proximidades da sede
da empresa, no bairro de Pinheiros. Já o Marcos amante de prostitutas tinha
apenas dois amigos: Paolo, um engenheiro bonitão de 39 anos, sócio de uma
construtora de grande porte especializada em edi cações de hospitais e
clínicas médicas; e Lincoln, um supermercadista também viciado em sexo
remunerado. Em 2000, Paolo morava nos Emirados Árabes fazia dois anos.
Nessa época, o único companheiro de Marcos para a vida mundana era
Lincoln, com quem tinha uma cumplicidade canina. Juntos, batiam ponto
pelo menos uma vez por semana na casa de Arethuza, passavam pelas boates
Love Story, conhecida como “a casa de todas as casas”, e na W.E., um
prostíbulo de luxo localizado na Rua Peixoto Gomide, nos Jardins, a duas
quadras do prédio da Procuradoria da República. Também faziam viagens
para o Rio de Janeiro com frequência em busca de garotas com
características de frequentadoras de praia. A Justiça de São Paulo decretou a
falência da Love Story em fevereiro de 2021, depois de a boate dar calote
numa dívida de 1,7 milhão de reais com fornecedores e folha de pagamento.
Tanto Marcos quanto Lincoln eram habitués em sites de acompanhantes.
Era comum um deles sair com uma garota e indicá-la ao outro, caso o
desempenho da pro ssional fosse bom. Volta e meia, Marcos e o amigo
contratavam uma garota para fazer ménage à trois. Para facilitar a escolha
das prostitutas, eles entraram numa rede social cuja única nalidade era
avaliá-las com elogios ou críticas. A página virtual possuía um fórum
fechado chamado Guia de Garotas de Programa (GGP), exclusivo para
acompanhantes de São Paulo. Funcionava como uma espécie de “reclame
aqui”. Entre os clientes, o roteiro era apelidado de “guia das putas”. O espaço
possuía quase mil assinantes nas décadas de 2000 e 2010. Funcionava mais
ou menos assim: os clientes saíam com uma pro ssional e depois iam à
página dar estrelinhas ou nota de zero a dez para avaliar os serviços da
garota, como se faz atualmente no aplicativo da Uber. Para facilitar o
julgamento, o usuário começava marcando “sim” ou “não” para perguntas
básicas: Faz sexo oral sem camisinha? Sexo anal? Beija na boca? Depois de
responder a essas questões básicas, ele podia escrever uma resenha sobre o
encontro. Alguns não ligavam para sigilo e chegavam a publicar fotos do
próprio rosto no per l e até o número do telefone celular.
No guia, Marcos usava o apelido Hore Rider. Nesse caso, Hore seria uma
abreviação de whore, prostituta em inglês. No dia 6 de fevereiro de 2005, ele
foi ao fórum escrever sobre Gizelle, sua ancée. Marcos era machista, chulo
e extremamente misógino ao se referir às garotas nas resenhas publicadas
por ele: “Ela [Gizelle] não sai com qualquer um, vou logo avisando. Moça
elevada à quinta-essência, é ideal para encontros de negócios no exterior.
Nasceu para satisfazer o homem na cama. Faz você realmente pensar em
largar tudo e se casar novamente. [...] Faz anal sem reclamar e tem um rabo
bem limpinho. Mulher que não dá o cu não deveria ser chamada de mulher.
[...] Mas prepara o bolso que ela vai ordenhar seu pau com uma mão,
enquanto pegará o seu dinheiro com a outra. Mas valeu cada real investido.
[...] Seu boquete me levou à Lua e me trouxe de volta à Terra em fração de
minutos”.
Marcos se queixou no guia de uma garota de programa xenofóbica e
racista, segundo ele. “Uma vagabunda chamada Karina anunciou na internet
dizendo ser loirinha delícia e ter 1,60 de altura. Liguei e marquei em seu at
na Alameda Franca, esquina com a Rua Augusta. O seu programa custava
300 reais a hora. Ela disse que fazia de tudo. Combinamos que eu ligaria
quando chegasse na portaria, para ela descer e me buscar. Fiquei lá embaixo
esperando por 40 minutos. A safada desceu, me viu, fez a louca, deu meia-
volta e entrou no elevador. Depois me ligou se desculpando. Disse que tinha
pavor de homens orientais. Em que mundo essa cadela preconceituosa vive?
Me fez perder tempo e dinheiro, pois gastei 20 reais de estacionamento”,
nalizou, dando nota zero à pro ssional.
Era comum os clientes usarem o fórum virtual para reclamar de
prostitutas que não tomavam banho antes do programa, de pro ssionais que
usavam o telefone celular para marcar outros encontros durante o
atendimento e até dos animais domésticos. “A puta era gostosa, mas tinha a
porra de um gato chato que insistia em pular na cama na hora que
estávamos fodendo. Ela interrompeu o serviço para pôr o bicho para fora do
quarto, mas ele miava na porta tão alto que parecia também estar levando
rola. [...] Aliás, a casa da vadia fede a urina de gato. Não recomendo!”,
escreveu um cliente identi cado pelo apelido de Rolo Compressor28. O
espaço também servia para fazer outros tipos de alerta. Uma semana antes
de elogiar Gizelle, Marcos havia registrado uma reclamação de Tatty Chanel,
a prostituta paraense que tentou enganá-lo com fotos modi cadas no
computador. “Tem muita fêmea pública desonesta nesse mundo. Tem uma
‘micheteira’ criminosa chamada Tatty anunciando na internet. Ela publica e
envia fotos em que está gata. Mas pessoalmente parece um diabo-da-
tasmânia de tão feia. Olha, meu pau não subiria para essa andorinha nem
com uma cartela inteira de Viagra. Ainda queria me cobrar sem eu ter
passado a vara. Botei para correr”, relatou. Em seguida, um outro usuário
identi cado como Li Shang endossou a reclamação contra Tatty. “Eu não caí
na lábia dessa piranha. Eu pedi umas fotos pelo celular e ela me mandou só
imagens do seu traseiro delicioso. Então falei: poderia me enviar fotos do
rosto? Ela não mandou e ainda foi grosseira ao responder: “Meu rosto é a
minha bunda”.
Certa noite de sexta, Marcos e Lincoln marcaram uma farra na mansão
de Arethuza. Inventaram para a família que fariam reuniões em outra cidade
e passariam a noite fora. A cafetina dava à dupla tratamento especial por
conta dos altos valores pagos após cada noitada. Os rapazes sentaram-se à
mesa à esquerda do salão. Lincoln cou encantado com a beleza de
Penélope, que des lava pelo ambiente com seu sorriso sedutor. Marcos já
havia saído com ela duas vezes. Segundo ele, a modelo era uma das melhores
da casa. Arethuza reforçou o elogio. Ela escreveu num guardanapo de papel
o número 8 e pôs no bolso da camisa social de Lincoln, indicando que o
programa com Penélope naquela noite custava 8 mil reais. E ainda
aconselhou o supermercadista a agir rapidamente, caso houvesse interesse,
pois a modelo não cava muito tempo disponível, tamanha era a procura.
Lincoln abordou a garota no balcão do bar e sugeriu um encontro numa
suíte do Hotel Emiliano, na Oscar Freire. Lá, a diária mais em conta custava
1.800 reais.
Lincoln era um homem atraente. Tinha 40 anos, 1,90 m de altura e
lutava jiu-jítsu. Tinha o corpo musculoso e cabelos pretos ondulados. Sócio
de uma rede de supermercados, estava sempre elegante. Vestia camisas de
mangas compridas assinadas pelo alfaiate Ricardo Almeida e calças sociais
Armani, Diesel e Reserva. Assim como Marcos, ele nunca, nem quando
estava com prostitutas, tirava a aliança do dedo. Conseguia administrar a
vida dupla com facilidade porque, mineiro de Belo Horizonte, não tinha
parentes em São Paulo. Sua esposa era uma dona de casa tão ingênua quanto
uma criança. Nunca suspeitou das aventuras mundanas do marido. Ele
conheceu Marcos numa rodada de negócios para aquisição de produtos da
Yoki. Na suíte do Emiliano, a noite não saiu como ele imaginava. Lincoln e
Penélope jantaram no restaurante do hotel no maior clima de romance.
Comeram pirarucu com vegetais defumados acompanhados de uma garrafa
de Moët & Chandon Brut Imperial. A garota estava afável e risonha durante
a refeição. O clima pesou na suíte. Lincoln foi tomar um banho enquanto ela
tirava a roupa. Na cama, os dois começaram com sexo oral nela. Penélope
demonstrou desconforto. Ele, então, partiu para cima da acompanhante.
Enquanto estava sendo penetrada por trás, a garota começou a chorar.
Lincoln parou imediatamente, acreditando ter machucado a modelo.
Pedindo desculpa por não conseguir terminar o serviço, ela se vestiu sem
dar qualquer explicação. Lincoln se pronti cou a levá-la de volta à mansão
de Arethuza ou a qualquer outro lugar que desejasse. Penélope agradeceu a
gentileza e saiu da suíte aos prantos, sem deixar claro se o cliente seria
cobrado pelo programa. Lincoln era um gentleman. Nem pensou no
prejuízo. Ficou mais preocupado do que chateado pela noite interrompida
sem motivo aparente.
Penélope, estrela da prostituição de luxo, era lha de família de classe
média alta. Uma de suas características mais marcantes era a alegria
contagiante. Comunicativa e engraçada, todo o mundo queria estar perto
dela. Modelo de currículo invejável, tinha fotos em diversas campanhas de
moda, mas faturava alto mesmo saindo com homens endinheirados. Em
todos os painéis de propaganda ela expunha o sorrisão. No entanto, sua
alegria era tão falsa quanto as fotos de Tatty Chanel. Com o passar do
tempo, a modelo começou a desenvolver transtornos mentais que a
afastaram dos holofotes paulatinamente. O caminho da prostituição
começou por acaso. Um produtor de moda reclamou do seu desempenho
em um ensaio. Segundo ele, não havia mais vida em suas fotos e aconselhou
a garota a enveredar para o meretrício de alto padrão. Esse mesmo produtor
a indicou para Arethuza, que soube logo de cara dos problemas emocionais
da modelo. A cafetina sugeriu terapia, pois no mundo da prostituição de
luxo não havia lugar para a tristeza. Com ajuda pro ssional, Penélope
conseguiu se reerguer, mas volta e meia apresentava recaídas.
Os transtornos de Penélope tinham raízes profundas. Filha de um
engenheiro com uma arquiteta chamada Marieta, ela ainda não havia
completado 10 anos quando começou a sonhar com aranhas-caranguejeiras
pelo menos duas vezes na semana. Em seus delírios, os aracnídeos entravam
no quarto passando por debaixo da porta, por frestas da janela, pelo duto do
aparelho de ar-condicionado e saíam até pelos buracos das tomadas. Eram
centenas de aranhas peludas. Aos montes, elas corriam pelo chão e subiam
na cama. Passeavam pelo seu rosto e desciam pelos seios até alcançar o sexo.
No meio da noite, Penélope dava gritos e seus pais corriam para socorrê-la.
Esse tormento continuou na adolescência. Mas, para a sua família, tudo não
passava de fantasia. Aos 15 anos, ela não conseguia se relacionar com
garotos e a mãe cou intrigada, acreditando na possibilidade de a lha ser
lésbica. Certa vez, Marieta levou a lha a uma ginecologista para exames de
rotina. Na consulta, foi revelado que Penélope não era mais virgem. A
adolescente cou surpresa com a revelação, pois nunca havia transado. A
médica ponderou que o hímen poderia ter sido rompido com a introdução
de algum objeto. Penélope perguntou se as aranhas dos seus sonhos
poderiam ter relação com a perda da virgindade. Ao ouvir pergunta tão
estapafúrdia, a ginecologista a encaminhou ao psiquiatra. Depois de realizar
uma bateria de exames, o médico lhe deu o primeiro diagnóstico de
depressão e bulimia. O mistério da perda da virgindade, porém, continuava.
Penélope começou a escrever na adolescência um diário no qual narrava
com detalhes os fatos marcantes da vida. O caderno continha fotos dos
bastidores de trabalhos importantes de modelo, tíquetes das viagens
internacionais feitas a trabalho e muitos canhotos de ingressos de shows de
astros internacionais, como U2, Rolling Stones e R.E.M. Fã de Chico
Buarque, Penélope recheava o diário com estrofes das músicas do artista.
Havia no caderno também passagens tristes, incluindo os pesadelos com as
aranhas. Em determinado momento, Marieta pensou em ler as anotações
secretas da lha para descobrir algo sobre a sua sexualidade. O diário era
preso somente com um elástico e cava guardado no fundo de uma gaveta
da cômoda do quarto da menina. Depois de muito re etir, a mãe desistiu de
ler o diário para não romper o precioso laço de con ança existente entre as
duas.
Aconselhada por uma amiga, Marieta levou a lha a uma psicóloga
especializada em hipnoterapia. No consultório, a garota nalmente
desvendou o enigma dos sonhos. Marieta cou a ita na sala de espera
enquanto a lha começava a ser hipnotizada pelo método ericksoniano, cujo
modelo se baseia na construção de uma conexão empática com o paciente.
Nessa técnica, a terapeuta sobrecarregou a atenção consciente de Penélope
para distraí-la. Em sessão, quando estava na fase leve da hipnose, a modelo
imaginou-se criança, deitada em seu próprio quarto. Para deixar a mente da
paciente virtualmente em piloto automático, a terapeuta apertou a sua mão.
Em alguns minutos, Penélope começou a enxergar as malditas aranhas
se espremendo para passar pelo buraco da fechadura. Subiram pelo pé da
cama. Umas estavam tão apressadas que davam saltos para chegar até ela
com mais rapidez. No estado médio do transe, a jovem se materializou como
espectadora da própria vida e cou sentada numa cadeira dentro do seu
quarto. Dessa ótica, era possível ela se ver deitada na cama cercada pelos
bichos peludos.
No estado mais profundo da hipnose, uma verdade estarrecedora se
revelou diante dos olhos de Penélope. Não existia aranha nenhuma. Quem
entrava em seu quarto na calada da noite por anos e anos era seu pai. No
escuro, ele a dopava levemente usando uma chupeta melada com xarope.
Em seguida, o engenheiro acariciava o sexo da menina com as mãos.
Quando a lha entrou na adolescência, o monstro que ela chamava
inocentemente de pai passou a praticar os atos sexuais com penetração. As
aranhas eram uma alusão ao corpo muito peludo do estuprador. Ao
descobrir quem havia tirado a sua virgindade, Penélope deu um grito e
despertou da hipnose. Apavorada com as consequências daquela revelação,
ela nunca contou o fato para a mãe. Passou a trancar a porta do seu quarto e
a hostilizar o pai sem dar explicações.
Aos 18 anos, já com a carreira de modelo consolidada, Penélope saiu de
casa e levou consigo esse segredo, mas acabou registrando-o com detalhes
em seu diário. Passou a se prostituir quando as portas do mundo da moda
começaram a se fechar. Mergulhou numa depressão tão profunda quanto
um oceano. Também teve esquizofrenia, distúrbio caracterizado por
pensamentos ou experiências descoladas da realidade. Em suas crises, ela
delirava ao conversar com uma criança de 8 anos chamada por ela de Ariel,
uma espécie de con dente que habitava apenas a sua imaginação e as
páginas do seu caderno secreto. Quando Penélope não conseguiu fazer o
programa com Lincoln no Hotel Emiliano, a sua carreira de garota de
programa de luxo começou a se apagar de forma irreversível, tal qual a sua
vida.
Numa manhã de sábado, Lincoln telefonou para falar com Marcos sobre
o encontro malsucedido com Penélope. O empresário estava com uma
prostituta dos velhos tempos, conhecida pelo nome de Elyette – Ely para os
íntimos. Baiana de Xique-Xique, a pro ssional operava no modo
superlativo. Tinha uma beleza toda trabalhada na baianidade nagô. A vasta
cabeleira negra, brilhante e ondulada, lembrava a cantora Gal Costa. As
unhas pontiagudas de acrílico eram multicoloridas. O batom vermelhão
parecia uorescente por causa da combinação de pós esféricos e óleos
sedosos. Marcos costumava reclamar da extravagância da pro ssional. Ely
era requisitada com frequência para trabalhar como dançarina e ajudante de
palco do programa Domingo Legal, no SBT.
O primeiro encontro de Marcos com Ely foi inesquecível, segundo ela
contou. Mas, quando o assunto era sexo comercial, era impossível ver
nobreza ou cavalheirismo no empresário. Os dois foram transar no
apartamento do bairro da Bela Vista. No meio do programa, ele tentou fazer
sexo anal e a pro ssional se negou, dizendo ter deixado claro em seu
anúncio não praticá-lo. Não contente com a negativa e já muito bêbado, ele
insistiu:
– Quanto é o seu programa, sua vagabunda? – perguntou o empresário.
– Trezentos reais!
– Você acha mesmo que vou pagar isso tudo sem meter no seu rabo?
– Eu já disse que não faço anal!
– Toda piranha faz!
– Menos eu!
– Te pago o dobro! – insistiu ele.
– Nem pelo triplo.
– Se te pagar 5.000 reais, você libera o cuzinho?
– Não, não e não!
Irritada com a insistência, Ely se levantou da cama e começou a se vestir.
Quando ela tentava pôr o sutiã, Marcos abriu um baú e tirou de dentro uma
submetralhadora e apontou a arma para a testa de Ely. “E agora? Me
responda! Você faz ou não sexo anal?”, perguntou o empresário. Com medo
de morrer, ela acabou cedendo. “Nunca senti uma dor tão forte. Gritei
horrores. Mas depois acabei aprendendo a fazer para segurar o cliente”,
contou a prostituta.
Marcos não gostava de andar em público com Ely, pois achava suas
roupas esquisitas. Para os amigos, ele classi cava a pro ssional como “um
poço de vulgaridade”. Ainda assim, certo dia, ele a levou para comer
bacalhau à portuguesa no tradicional restaurante Senzala, um dos preferidos
do ex-presidente Michel Temer. Para esconder a cabeleira e agradar o
cliente, Ely usou um turbante branco na cabeça. A peça tem origem nas
culturas afro-orientais. No Brasil, o item é um ornamento do candomblé,
religião de matriz africana.
Marcos convidou Lincoln para o almoço com Ely. Assim, os dois
falariam das crises de Penélope. O supermercadista chegou ao restaurante
fazendo uma crítica ao amigo, que estava numa mesa central. Lincoln
considerava uma ousadia o empresário levar uma garota de programa ao
Senzala, um estabelecimento localizado no mesmo bairro em que morava
com a esposa. Lívia, inclusive, também frequentava o local. Marcos
contemporizou dizendo que a sua mulher não saía de casa nem para ir à
padaria comprar pão. Lincoln sentou-se, pediu um drinque e linguado à
jangadeiro.
Naturalmente, Marcos costumava ser romântico com as mulheres cuja
companhia remunerada fosse agradável. O carinho dispensado a elas
tornava-se mais explícito quando o empresário bebia. Com Ely não foi
diferente. Depois de três copos de caipirinha, o executivo fazia juras de amor
e levava azeitona à boca da pro ssional. Lincoln perguntou se ele não estava
exagerando. Marcos revidou, acusando o amigo de invejoso e ciumento. Ely,
também alterada pelo álcool, começou a gargalhar alto, chamando a atenção
dos clientes do restaurante. Marcos também ria. Abusada, a garota se
levantou da cadeira cambaleando, puxou um pouco a saia para cima e
sentou-se no colo do cliente. Deram-se um beijo de língua tão longo que
parecia não ter m. Lincoln, envergonhado, moveu a cabeça de um lado
para o outro como se procurasse por alguém. De repente, o supermercadista
largou o prato com peixe pela metade e correu para o banheiro meio
agachado. O empresário e a garota de programa continuavam coladinhos
quando um grito histérico ecoou no meio do salão, revelando o motivo da
fuga em disparada de Lincoln. Uma mulher se aproximou do casal e
vociferou:
– Marcos! Quem é essa puta?!
Sexo doce, intenso e metafísico

E
lize Araújo tinha 16 anos quando conheceu o seu primeiro namorado,
um jovem da mesma idade chamado Pedro. O casal se viu pela
primeira vez numa festa em Chopinzinho, terra natal de ambos. Na
época, ela havia acabado de ser resgatada das estradas do Sul pela Polícia
Rodoviária Federal e devolvida ao lar pelo Conselho Tutelar. A experiência
traumática de se prostituir com caminhoneiros e os abusos sexuais sofridos
nas mãos do padrasto zeram de Elize uma jovem calada e retraída dentro
de casa e extrovertida na rua. Essa segunda característica marcou a primeira
fase do seu namoro com Pedro. Segundo a psicóloga Isabela Qader,
adolescentes vítimas de abuso podem ter comportamentos antagônicos
quando se trata de sexualidade. “Ou eles se fecham, ou desenvolvem uma
hipersexualização”, destaca a especialista. Isabela atendeu Elize logo após a
jovem passar 35 dias longe de casa.
A balada em que Pedro e Elize se conheceram ocorreu na casa de um
amigo em comum. Extremamente tímido, ele não foi ousado o su ciente
para se aproximar. Os dois passaram a noite inteira trocando olhares e
sorrisos. Mas nenhum deles tomava a iniciativa. Já na hora de ir embora,
quase 3 da manhã, ele se aproximou. Respirou fundo e lançou a primeira
pergunta:
– O que você faz da vida?
Como já havia bebido cerveja, Elize respondeu o questionamento trivial
com um beijo longo no rapaz. Pedro cou assustado, mas correspondeu. Ela
logo percebeu se tratar de um garoto inexperiente. “Eu era virgem quando
conheci a Elize. O nosso primeiro encontro me deixou sem ar”, contou
Pedro, em dezembro de 2020. O aprendiz tinha outro problema. Era ansioso,
estressado e ciumento. Depois da festa, o casal marcou de tomar sorvete. No
banquinho da praça, no dia seguinte, Elize avançou para beijar Pedro e ele
recuou. Ela quis saber o motivo da recusa e ouviu uma resposta inusitada: só
a beijaria depois de tomar todo o sorvete. Na verdade, ele protelou porque
estava uma pilha de nervos. Alguns minutos depois, Elize aproximou
novamente seus lábios. Quando ele começou a se esquivar, ela segurou o seu
queixo rmemente e tascou-lhe um beijo de língua. O jovem correspondeu
do jeito que pôde. Depois da troca de carícias, Pedro disfarçou. Virou o
rosto para o lado e limpou a boca discretamente. Elize percebeu. Na
sequência, ela segurou a cabeça dele rmemente com as duas mãos e deu
outro beijo no mesmo estilo. Já no primeiro encontro houve a primeira DR
(discussão da relação):
– Você tem de controlar a sua baba – ensinou Elize.
– É você quem está babando em mim – devolveu ele.
– Quantas garotas você já beijou?
– Duas!
– Só duas? – riu a jovem.
– Contando com você... – acrescentou.
A discussão foi interrompida quando um colega da escola de Elize
passou perto do casal e perguntou por que ela havia faltado às aulas por
mais de um mês. A garota inventou uma desculpa qualquer. Pedro teve um
ataque de ciúme e chegou a ser grosseiro:
– E você? Com quantos caras já cou? Um? Dois? Três? Dez? Cem?
– Você não faz ideia... – ironizou Elize.
Pedro era um jovem charmoso. Alto, corpo atlético e cabelos pretos
ondulados. Tinha os olhos tão grandes e arregalados que pareciam estar sob
efeito permanente de um susto. As sobrancelhas eram bem grossas e o nariz,
adunco, aquele tipo proeminente e curvado para baixo feito bico de falcão.
Já no segundo encontro na praça, Elize se dispôs a ensinar o namorado a
beijar. Na primeira aula, ao tocar os lábios dele com a sua boca, ela pediu
que ele relaxasse e explorasse o beijo. A princípio, o novato travou tal qual
uma tela azul. Deixou a boca dura e mexeu somente a língua. Lá pelo nal
da lição, Pedro deu uma mordida nos lábios da menina e Elize desistiu. Ele,
então, começou a treinar em casa usando frutas, como maracujá e caqui.
Algumas semanas depois, Pedro já estava expert. Na praça, ele cava
excitado todas as vezes que era beijado. Elize percebeu e sugeriu transar.
Combinaram de se encontrar na casa dele na noite do dia seguinte. Virgem,
Pedro teve receio de decepcioná-la. No dia D e na hora H, ele entrou em
pânico e começou a tremer. Elize o empurrou na cama e assumiu o controle.
Segundo relatos dele, foi a noite mais impactante de toda a sua vida. “Nunca
estive nas mãos de uma mulher tão in amável”, resenhou.
O namoro dos dois engatou mesmo envolto em adversidades. Pedro
tinha choques de insegurança e ciúme. Apesar de ele ser um jovem atraente,
achava a namorada muito acima das suas possibilidades. “Elize tinha uma
energia sexual muito forte e eu era um ‘bananão’ virgem que se masturbava
todos os dias vendo revistas de mulher pelada. Ela era um mulherão. Os
caras olhavam como se quisessem comê-la e eu não segurava a onda”, relatou
Pedro. O excesso de sentimentos possessivos do rapaz a incomodava. Elize
trabalhava na função de secretária no escritório do advogado Eládio Luiz
Roos, um dos mais conhecidos de Chopinzinho. O emprego foi conseguido
graças à indicação de sua psicóloga, Isabela Qader, amiga da família Roos.
No escritório, um dos seus chefes era o lho de Eládio, o estudante Diego
Roos. Enciumado, Pedro teria feito uma cena ao perguntar no meio da rua
se Diego estava de olho em sua namorada. Elize cou chocada e
constrangida com a atitude, mas como já estava com planos de se mudar
para Curitiba, resolveu não pôr um ponto nal na relação naquele
momento. O namoro, aliás, nunca teve um m o cial. Elize fazia juras de
amor ao mesmo tempo que planejava deixar Chopinzinho para trás. Certa
vez, ele passou na oricultura, comprou um buquê de pinóquio marsala e foi
entregar à sua amada todo contente. Na porta da casa dela, Pedro fez uma
descoberta indigesta: Elize havia se mudado de vez para a capital. A garota
foi embora sem se despedir do namorado. Não deixou nem um bilhete.
Pedro cou destruído emocionalmente.
Seis meses após a partida de Elize e rasgando-se de paixão, Pedro
resolveu viajar para Curitiba atrás da amada. Quando ele desembarcou na
capital do Paraná, a jovem já morava no at alugado para atender clientes.
Depois de muita pesquisa, ele descobriu o endereço. Foi até lá sem avisá-la.
Não passou da portaria. Pedro pediu para falar com Elize, e o funcionário
do prédio garantiu não ter ninguém com esse nome entre os moradores. Da
calçada, ele viu sua namorada saindo rapidamente de carro pela garagem.
Ela estava com novo visual, tinha os cabelos presos e usava óculos escuros.
Pedro teve dúvida se era mesmo Elize naquele carro. Ele gritou, mas não foi
ouvido porque as janelas estavam fechadas. O jovem queria fazer apenas
uma pergunta: “Por que você não terminou antes de ir embora?”. A resposta
só veio alguns anos depois, quando os dois se encontraram em São Paulo.
Pedro, já adulto, tornou-se representante comercial de equipamentos
médicos e foi a um evento no Centro de Convenções Anhembi, na zona
norte da capital paulista, em 2003. Na saída, foi abordado por uma cafetina
disfarçada de recepcionista oferecendo diversão numa boate do Baixo
Augusta. Solteiro, ele pegou o folder e foi até lá. Na hora mais fervida da
noite, o rapaz viu uma moça muito parecida com Elize tomando um drinque
no balcão. Joel, o gerente da casa, aproximou-se e Pedro perguntou o nome
daquela mulher. A resposta o deixou intrigado:
“Chama-se Kelly. Cobra 300 reais a hora. É uma das melhores garotas da
casa. Lindíssima, bumbum de ouro, nível universitário, educadíssima e
supercarinhosa. Tem tantas qualidades que nem sei por que virou mulher da
vida...”, descreveu Joel, agente de Elize.
Bêbado, Pedro não acreditou quando se aproximou do seu primeiro
amor. Elize estava irreconhecível aos seus olhos. Quando eles namoravam,
ela fazia a linha acanhada e fogosa; mantinha os cabelos castanhos e usava
roupas cafonas. Kelly era altiva, estava loiríssima e bem vestida. Tinha pele
diáfana, quase transparente. Os olhos eram claros e desbotados naquela
noite, graças a uma lente de contato gelatinosa. O olhar da garota estava um
pouco gelado, mas fazia os homens derreterem. Kelly tinha várias
personalidades. Na boate, era uma mulher de volúpia discreta e reservada na
aparência. Usava um vestido de festa de malha com aplicações de paetês
com decote e fenda profundos, emprestando um ar sexy. O batom era
escuro. Pedro se aproximou e Kelly o reconheceu. Ele cou ruborizado. Ela
ngiu ser outra pessoa. Não colou. Embriagado, o rapaz teve um faniquito
na boate:
– Então é isso? Você é prostituta? Bumbum dourado? Fala, porra!
Trezentos reais a foda?
– Para! – implorou Elize, já fora da personagem.
– Vou contar para Chopinzinho inteira que você virou puta! – ameaçou
aos prantos.
Elize levou Pedro para o at e resolveu abrir o seu baú de segredos.
Contou os reveses da vida desde que era abusada sexualmente pelo padrasto.
Con denciou em prantos e com riqueza de detalhes como foi humilhada
por caminhoneiros nas estradas do Sul enquanto passou 45 dias fora de casa.
“Eu me vendia de manhã para comprar o almoço à tarde. E me oferecia de
tarde para tentar jantar à noite. Dormia em cemitérios...”, relatou. À família,
Elize havia contado ter sido acolhida por uma família enquanto esteve fora
de casa por um mês e meio. A conversa com Pedro foi tão triste e pesada que
não sobrou clima para namoro. Pedro perguntou insistentemente por que
ela tinha ido embora de Chopinzinho sem se despedir. Elize respondeu à
pergunta com um balde de lágrimas. Os dois foram dormir na aurora.
Quando ela acordou, seu ex-namorado havia sumido sem dizer tchau. Ficou
em suspense se ele cumpriria a promessa de propagar em Chopinzinho o
fato de Elize ser garota de programa em São Paulo. Compadecido, ele
manteve a revelação sob o mais absoluto sigilo. Nunca contou nem à sua
sombra ter iniciado a vida sexual com uma pro ssional. “A população de
Chopinzinho é muito conservadora. Ter namorado uma prostituta
prejudicaria a minha imagem na cidade. Por isso quei calado. [...] Pensava
o seguinte: Deus vai se encarregar de mostrar quem ela foi a vida toda”,
justi cou.
Pedro pôs em xeque a tese de que Elize fora abusada pelo padrasto. “Ela
mente com a mesma naturalidade com que respira. [...] Essa história não é
consenso nem na família dela. Suas irmãs duvidam desse estupro”, acusou o
rapaz. Religioso, o jovem evocou a Bíblia para justi car a decepção amorosa
com a mulher com quem aprendeu a beijar: “Deus é nosso refúgio e força,
uma ajuda sempre presente em tempos de angústia”. [Salmos 46:1]. Ele se
casou, teve um lho, se separou, casou-se novamente e já se divorciou da
segunda esposa. Estava namorando uma enfermeira em 2020. Amigos de
longa data arriscaram um palpite: Pedro jamais tirou Elize do coração. Ele
riu dessa a rmação, apesar de ter cancelado um compromisso com a atual
namorada para falar de Elize por mais de três horas com os olhos marejados,
em Chopinzinho, em dezembro de 2020. “Mentir para si mesmo é sempre a
pior mentira”, cantou Renato Russo na canção “Quase sem querer”, da banda
Legião Urbana.

* * *

Uma semana depois de ter reencontrado Pedro, Elize foi até a casa de
Chantall e cou chocada quando viu a amiga com os hematomas no rosto,
frutos das porradas desferidas por Salim. As marcas primeiro apresentaram
uma coloração roxo-escura quando o local estava inchado. Compressas de
água morna ajudaram a remover coágulos e deixaram a pele esverdeada. As
marcas se concentravam ao redor dos olhos, na lateral do queixo e próximo
aos lábios. Elize sugeriu denunciar o agressor na Delegacia da Mulher. A
prostituta goiana confessou ter consentido com o espancamento, pois havia
recebido 1.900 reais pelo programa especial com Salim. Mas ela se dizia
“meio arrependida” porque teve de car parada por uma semana até seu
rosto desinchar, amargando prejuízo.
Quando Chantall voltou a atender, as marcas em seu rosto lindo ainda
estavam meio marrons. Ela marcou um programa com um engenheiro civil
chamado Mathias, de 37 anos. Era um cliente antigo e o encontro ocorreu
numa suíte do Hotel Ibis, no Ibirapuera, zona sul de São Paulo. Para tentar
disfarçar os hematomas, a pro ssional abusou da maquiagem. Ela passou
primeiro uma demão de corretivo mais claro do que o tom natural da sua
pele, seguido de uma camada de base e um pouco de pó compacto
translúcido. O truque não deu muito certo. É muito comum os clientes
exigirem que as garotas de programa tomem banho momentos antes de
transarem. Chantall foi para o chuveiro sozinha e Mathias chegou logo
depois. Ela evitou molhar o rosto, mas ele jogou água e sabão na face
machucada da parceira. A maquiagem se esvaiu pelo ralo e revelou as
marcas da violência do último programa. Mathias cou surpreso e excitado
quando viu os hematomas. Ele perguntou quanto ela cobrava para levar uns
murros. Constrangida, a jovem avisou que estava de saída. O cliente a
segurou pelo braço e pediu desculpas pela abordagem, mas insistiu no
assunto. Ele se revelou sadomasoquista e dominador. Propôs pagar 2 mil
reais para transar com ela e dar um único murro em seu rosto no momento
em que estivesse gozando. Ainda debaixo do chuveiro, a pro ssional
contrapropôs um cachê de 2.500 reais. Mathias aceitou, levou a mulher para
a cama e fez o combinado. Chantall, a pro ssional dona de um dos rostos
mais belos do Baixo Augusta, voltou para casa com 25 notas de 100 reais na
bolsa e mais um hematoma enorme no rosto.
Após ser espancada por dois clientes num intervalo de dez dias, Chantall
passou a achar que não valeria a pena car parada à espera do sumiço das
marcas, mesmo ganhando entre 2 mil e 3 mil reais pelo sexo regado a
pancadas. Depois de apanhar de Mathias, ela aproveitou o intervalo no
trabalho para visitar a mãe, Damiana, em Aporé (GO). Em casa, descobriu
que a genitora estava com Alzheimer. A jovem cou estarrecida quando
abriu a porta da sala e se deparou com uma das cenas mais tristes de toda a
sua vida. A casa da mãe, onde passou a infância e a adolescência, estava toda
bagunçada, imunda e fedida. Havia um mês que não se fazia uma faxina no
local. As galinhas do quintal ciscavam pelo chão da cozinha e defecavam em
cima da mesa de refeições. A idosa não tomava banho fazia cinco dias. O
cabelo estava seboso. Já com 63 anos de idade, Damiana encontrava-se
sentada numa cadeira de balanço no quintal na companhia de Edna, uma
vizinha desempregada de 42 anos. Ao ver a lha, a mãe não esboçou
nenhuma reação. Abatida, perguntou para a amiga cuidadora: “Quem é essa
mulher?”
Chantall começou a chorar, mas não perdeu muito tempo com o pranto.
Levou a mãe ao banheiro e deu-lhe um bom banho. Fez uma limpeza pesada
na casa e foi às compras para abastecer a geladeira e a despensa. Pegou duas
aves do quintal e preparou uma galinhada goiana com pequi para o almoço,
servido quase às 16 horas. No dia seguinte, levou a mãe ao neurologista e
descobriu que ela estava na fase 3 do Alzheimer, quando já há declínio
cognitivo moderado. Nesse período, considerado intermediário, os pacientes
apresentam problemas no pensamento e raciocínio. Damiana, por exemplo,
já esquecia detalhes sobre si, não reconhecia quem não a visitava com
frequência e era incapaz de andar de transporte público desacompanhada.
Ela esquecia datas e só reconhecia Lucas como lho, que a visitava nos ns
de semana. O médico explicou ser mais comum o paciente primeiro se
esquecer dos parentes que moram longe. Quando ouviu isso, Chantall caiu
em prantos mais uma vez. O neurologista aconselhou a não deixar Damiana
usar o fogão. A família também deveria car atenta aos golpistas, pois os
pacientes de Alzheimer da fase 3 são os mais vulneráveis e costumam ser
vítimas de desfalques nanceiros.
Comovida, Chantall teve vontade de nunca mais sair de perto da mãe,
mas se lembrou que faltava apenas um ano para o irmão, Lucas, formar-se
em Odontologia. Em São Paulo, a vida de garota de programa era muito
mais promissora nanceiramente. Ela, então, se endividou em nome da
família. Contratou Edna para cuidar da mãe em tempo integral por 900 reais
ao mês. Depois dessas providências, a jovem viajou para Goiânia para
encontrar o irmão, cujo sustento dependia dela. O jovem já sabia da doença
de Damiana, mas havia decidido não contar à irmã para não preocupá-la.
Lucas propôs parar o curso universitário para trabalhar de protético no
interior e car junto da mãe doente. Chantall o impediu. “Você tem de
terminar esse curso logo. Aí a gente monta um consultório para você
trabalhar e, juntos, passaremos a cuidar da nossa mãe. Esse plano depende
do seu diploma”, a rmou a irmã, que continuou a sustentá-lo como se
pagasse uma promessa.
Havia um outro problema na família de Chantall. A casa de três quartos
em que Damiana morava estava com Imposto Predial e Territorial Urbano
(IPTU) atrasado fazia 20 anos e a dívida já havia sido ajuizada. Eles deviam
quase 20 mil reais para a prefeitura. Se o tributo acumulado não fosse pago
em um mês, o imóvel seria leiloado. Lucas havia ouvido de um vizinho o
conselho de ir até a Divisão de Cadastro e Tributação da prefeitura de Aporé
para tentar negociar a dívida. Chantall conseguiu parcelar os valores
atrasados em 24 prestações de 850 reais e assim evitar o leilão da casa. Com
Edna, a vizinha, cou combinado o envio do dinheiro para pagamento da
dívida mais o serviço de cuidadora, somando um total de 1.750 reais a cada
mês. A pro ssional também enviava dinheiro extra para uma dieta especial
da mãe e ainda ajudava Lucas, o irmão. Depois de passar duas semanas em
Goiás resolvendo problemas de família, a garota de programa com rostinho
de boneca viu a sua conta bancária minguar. Com tantas dívidas assumidas,
ela pegou um avião e voltou para São Paulo decidida a se especializar nas
técnicas de masoquismo. Trata-se de uma pulsão sexual derivada do
sadismo na qual o indivíduo se propõe a ser objeto de dor, sofrimento e
prazer causados não por si, mas por outra pessoa.
Para levantar capital o mais rápido possível, Chantall ligou para Salim,
um dos seus clientes mais excêntricos e ricos. O programa foi tenebroso.
Num quarto de motel, ela se deitou nua sobre a cama na posição de bruços.
Para mostrar poder e posse, o cliente pôs nela uma coleira de couro bem
justa. Em seguida, imobilizou os braços da garota com algemas e as pernas
com duas tornozeleiras. Usou uma mordaça para abafar os gritos. Por m,
pôs uma venda nos olhos dela para envolvê-la numa aura de mistério, tensão
e surpresa. Todos os acessórios faziam parte de um kit de bondage. Chantall
estava trêmula. Salim tomava uísque enquanto acendia um charuto culebra,
um modelo feito com três charutinhos trançados. O homem começou o
ritual com um beijo suave nas costas da prostituta. No mesmo ponto onde
tocou seus lábios, Salim apagou o charuto de ponta grossa, deixando uma
ferida em carne viva na pro ssional, que se contorcia com gritos sufocados.
Em seguida, para completar a violência, Salim urinou sobre o ferimento.
Sofrendo feito burro de carga, Chantall queria parar. Mas não conseguia
se comunicar porque estava imobilizada e usava a mordaça cuja bola de
plástico do tamanho de um ovo de galinha estava en ada em sua boca.
Depois de apagar a terceira bituca, Salim nalmente transou com a jovem.
No nal da sessão de tortura, ele pagou 2.500 reais à vista. O casal se
encontrava toda semana para realizar todo tipo de fetiche envolvendo sexo e
dor. Mais tarde, ela estudou o tema e tornou-se especialista em
sadomasoquismo. Sua posição era sempre de dominada, ou seja, cabia a ela
dar prazer sexual ao parceiro por meio de castigos físicos e morais.
Trocando em miúdos, a garota de programa recebia cachê para ser
torturada, espancada e humilhada pelos clientes. Desse tipo de trabalho,
Chantall tirava todo o dinheiro enviado para Edna cuidar da mãe, para
quitar a dívida de IPTU da casa em Aporé e para bancar os estudos de Lucas
em Goiânia. Santo Agostinho ensinara: não é o suplício que faz o mártir,
mas a causa.

* * *
As relações afetivas no labirinto da prostituição acontecem num
universo paralelo. Nesse lugar à parte, os “namoros” entre pro ssionais e
clientes são levados a sério mesmo se o homem for casado, algo muito
comum de ocorrer. Quando a relação engata, os homens nem precisam
perder tempo com o clichê “meu casamento é uma merda, logo mais vou me
separar, estou esperando os meus lhos crescerem; é só uma questão de
tempo, etc. e tal”.
A maioria das garotas de programa não acredita em promessas nem
sequer faz esse tipo de exigência dos seus parceiros xos. Até porque, na
visão das prostitutas enamoradas, é a esposa do cliente que habita a
realidade alternativa. As pro ssionais exigem um outro tipo de delidade
dos “namorados”: que eles não saiam com outras mulheres do ramo. O
cliente “comprometido” com uma pro ssional, por sua vez, impõe que a
garota seja só dele e de mais ninguém. “Sabe quando a mulher corta o cabelo
sempre com o mesmo cabeleireiro a vida inteira? Ela está sendo el. Se ela
cortar em outro salão, será traição.” A analogia foi feita por uma garota de
programa para explicar como funcionam as regras na prática. O
regulamento que organiza esses “namoros” é respeitado à risca. Se uma delas
começar a namorar um cliente conhecido no mercado, as colegas de
pro ssão não saem mais com ele em hipótese nenhuma. Lógico, a lealdade
não se estendia aos clientes. Marcos Matsunaga, por exemplo, chegava a
“namorar” até três prostitutas simultaneamente. Quando ele estava
almoçando com Ely no restaurante Senzala, no Alto de Pinheiros, o casal já
havia selado “namoro” fazia três meses. Mas ele não havia terminado o
“relacionamento” com Luluzinha. Ely estava sentada no colo de Marcos
quando a outra mulher adentrou o restaurante promovendo um escândalo.
Ela não era nada polida. Em alto e bom som, interrogou:
– Marcos! Quem é essa puta?!
O executivo da Yoki era um homem discreto. Sóbrio, ele jamais seria
pivô de um barraco público, ainda mais num restaurante tão badalado e
perto de casa. Nem era preciso responder ao questionamento de Luluzinha.
Ely conhecia a sua oponente da coxia de programas de auditório do SBT e
da Record – ambas eram dançarinas de palco de atrações bem populares. Ely
levantou-se dizendo não saber do “relacionamento” do empresário com a
outra mulher. De Marcos, ela quis saber:
– Vocês estão namorando?
– Não! Imagina! A gente terminou faz tempo! – respondeu o executivo,
olhando para os lados, constrangido.
Bêbada, Ely perdeu a classe que nunca teve. Ofendida por ter sido
chamada de “puta” em voz alta por Luluzinha, ela pegou uma faca sem serra
usada para comer peixe e enfrentou a adversária:
– Puta é a tua mãe, sua ordinária. Fala direito comigo, senão eu corto a
tua cara!
– O Marcos nunca terminou comigo! – justi cou Luluzinha.
– Eu nunca mais respondi às suas mensagens... O silêncio também é um
término! – justi cou o empresário.
Enquanto as garotas de programa batiam boca e ameaçavam se
engal nhar no meio do salão, o gerente do Senzala pediu que Marcos as
tirasse do recinto, caso contrário chamaria a polícia. Covarde, o executivo da
Yoki afastou-se, pagou toda a conta do almoço no caixa e escafedeu-se,
deixando as duas lá. As prostitutas continuaram a discussão como se
estivessem na feira:
– O Marcos é meu namorado, sua vadia sem ética! – gritava Luluzinha.
– Vai sonhando! – rebateu Ely.
– Ele me deu uma TR-4 novinha em folha! E você? Ganhou o quê?!
– E desde quando carro é aliança?
– De onde saiu todo esse axé? – provocou Luluzinha.
Afrontada, Ely avançou para ferir a colega de pro ssão com a faca sem
lâmina. Mas, embriagada, perdeu o equilíbrio e tombou no chão antes
mesmo de alcançar a rival. Alguns clientes do Senzala caram chocados com
a tormenta provocada pelas prostitutas, enquanto outros se divertiam com a
cena patética. A bagunça terminou quando quatro seguranças expulsaram
do local as duas mulheres à força.
Precavido, Marcos não recorreu mais ao silêncio para terminar um
“namoro” com garotas de programa. Ele fez questão de telefonar para Ely
pondo um ponto nal na “relação”. Alegou ter horror a chiliques de
prostitutas. Como já vinha evitando Luluzinha e ela não assimilava o m do
“relacionamento”, o empresário resolveu tomar uma providência nem um
pouco católica para se prevenir de um novo alvoroço em público. Por
telefone, ele fez uma ameaça objetiva: “Escuta o que eu vou te dizer, sua
cadela, pois só vou falar uma vez: se você voltar a me procurar ou se zer
outro vexame, eu darei um tiro bem no meio da sua venta”. E bateu o
telefone na cara da “ex-namorada”. Não era segredo dentro do meretrício
nem fora dele que Marcos andava armado até os dentes 24 horas por dia e
sete dias por semana. Usava pistolas camu adas na cintura e presas no
tornozelo em cintas removíveis. Mantinha metralhadoras e até fuzis em casa
e no porta-malas da sua BMW. Com o prenúncio da morte, Luluzinha
sumiu da vida do empresário como uma oferenda desaparece no mar.
Depois do escarcéu no Senzala, Marcos e Lincoln resolveram dar um
tempo com as garotas de programa sem classe e investiram um pouco mais
nas pro ssionais de luxo e nas de nível intermediário, hospedadas
virtualmente em sites badalados de prostituição. As garotas da internet
cobravam entre 300 e 500 reais. Nas páginas digitais, eles escolhiam as
meninas com base nas notas dadas no fórum do Guia de Garotas de
Programa (GGP). A dupla de amigos investiu só nas mulheres com cinco
estrelinhas. O site mais cotado no início da década de 2000 era o MClass.
Marcos e Lincoln marcaram uma happy hour no Bar do Juarez do Itaim Bibi
e passaram mais de três horas pesquisando pro ssionais no site de
acompanhantes usando o laptop. Cada um fez uma lista com dez nomes
para “experimentar” durante a semana. Eles passaram a se divertir saindo
com pro ssionais e publicando textos longos no fórum, avaliando cada uma
delas.
Na hora de opinar sobre as pro ssionais, Marcos era extremamente
preconceituoso, sexista e grosseiro: “Saí com uma GP [garota de programa]
há pouco. Ela atende num at bem limpinho. As preliminares foram
sensacionais. Chupou as minhas bolas e meu pau por mais de meia hora
sem parar. Mas quando ela não estava com a boca ocupada, a mulher falava
pelos cotovelos. Por que mulher fala tanto? Até quando estava fazendo um
ppmm [papai-mamãe] ela ainda dizia amenidades. Eu pedi para calar a
boca. Ela cava em silêncio por uns minutos e voltava a tagarelar. Até
quando meti com força no rabo ela ainda falava. Puta que pariu! Só parou
quando en ei um travesseiro na sua cara! Alguém conhece alguma
prostituta muda? Outros dois pontos negativos: manda mensagens pelo
celular no meio do atendimento e só faz oral com camisinha. [...] Em que
mundo essa vaca escrota vive? Só não vou reclamar mais porque essa
vagabunda cobra uma mixaria”.
Já Lincoln era mais contido na página de comentários. A maioria das
resenhas assinadas por ele era elogiosa: “Depois de ler os comentários
positivos sobre uma garota chamada Candice, resolvi visitá-la em seu at.
Realmente ela é isso tudo que vocês falaram. Mulher educada, atenciosa,
romântica. Se eu não fosse casado, caria noivo. O beijo não é frio, sabe?
Muito carinhosa. Não cou regulando posição nem tempo. Fez de tudo.
Achei que ela não fosse aguentar por trás. Fiquei surpreso, pois meti até o
talo e ela ainda sorriu. Fez parecer que adora anal. No nal, ainda ‘serviu
cafezinho’ (deixou gozar pela segunda vez). Único ponto negativo: diz no
site que tem 21 anos, mas ela, com certeza, já passou dos 30. Mas quer
saber? Não ligo. Como diz Sérgio Reis, não interessa se ela é coroa, panela
velha é que faz comida boa”.
As garotas da internet não disputavam mercado com as modelos de luxo,
até porque havia uma diferença abissal (de até 3.000%) entre o cachê de uma
pro ssional anunciada em sites de prostituição e o cachê das garotas de
catálogo de cafetinas so sticadas. As noites de quinta-feira eram as mais
agitadas na mansão de Arethuza. Nesse dia, geralmente havia mulheres
debutando no salão. Marcos e Lincoln batiam ponto praticamente toda
semana para conferir as novidades.
Certa noite, a casa de luxo apresentou Alícia, uma atriz-modelo-
manequim lindíssima, de 26 anos, muito bem-humorada e extrovertida. Ela
já havia perdido a conta de quantos testes zera para tentar ganhar um papel
numa produção, seja na televisão, seja no teatro ou no cinema. Praticamente
toda semana a pro ssional participava de um casting (seleção de elenco)
graças à indicação de uma agência de talentos. No nal da cena, ouvia
sempre a mesma ladainha: qualquer coisa a gente te liga. E o telefonema
nunca chegava. Alícia fazia graça dessa espera sem m. Todas as vezes que
alguém perguntava “o que você faz?”, ela respondia seriamente: “Estou
esperando uma ligação”. E caía na gargalhada. Às vezes, o interlocutor não
entendia a piada e insistia: “Não, querida, perguntei qual a sua pro ssão”. A
atriz voltava a responder de forma debochada: “É isso mesmo que você
ouviu. Minha pro ssão é ‘esperando uma ligação’. Não sabia que esperar
uma ligação é uma ocupação?”. E ria mais uma vez. Alícia tinha os cabelos
ruivos naturais meio ondulados, 1,75 m de altura e era magra. Chamava a
atenção pela expansividade. Gargalhava sempre alto, como se estivesse em
cena. Com salto 15, cava mais alta do que boa parte dos seus clientes. A
pele cheia de sardas lhe rendera na infância e na adolescência o apelido
pueril de “arroz-doce com canela”.
Em uma das dezenas de testes feitos para disputar um papel na televisão,
Alícia ouviu de um diretor famoso que – com certeza – receberia uma
ligação. Ela, como sempre, acreditou. De fato, o seu telefone nalmente
tocou. Do outro lado da linha, o diretor encheu a atriz de esperanças de uma
forma inédita. Ela havia sido aprovada com louvor para o papel de uma
advogada chique numa minissérie policial. Mas Alícia teria de passar por
mais um teste. Marcaram no hall do Hotel Tivoli Mofarrej, no bairro de
Cerqueira César, cuja diária de um quarto custava 1.140 reais. Alguns
produtores de cinema realizavam audições no foyer do hotel. Com isso,
Alícia acreditou se tratar de um encontro estritamente pro ssional. Ledo
engano. O diretor, de 58 anos, condicionou o papel na produção a uma
transa na suíte do hotel. Ele ainda justi cou a nova rodada de teste com o
argumento de que a personagem tinha muitas cenas de sexo e era
imprescindível conferir a sua performance na cama. Louca para dar o
pontapé inicial na carreira de atriz, Alícia topou. “Quem nunca?”, ponderou.
“Já havia transado tantas vezes e me arrependido depois... Imaginava que
essa seria mais uma noite de sexo ruim. Pelo menos iniciaria a minha tão
sonhada carreira de atriz”, justi cou a artista em fevereiro de 2020.
Os dois subiram para uma suíte e transaram. Alícia nem achou tão
horrível assim, e o diretor elogiou o seu desempenho. No entanto, mesmo
depois de se submeter ao “teste do sofá”, a artista não ganhou vaga nem de
gurante na produção. A negativa veio por meio de um telefonema dado
pelo produtor de elenco. A justi cativa foi, no mínimo, inusitada: ela era
muito bonita para a personagem. Revoltada, Alícia encarnou o papel de uma
garota de programa doida varrida e seguiu até o hotel vestida a caráter.
Numa das salas de evento havia um grupo de atores famosos fazendo as
primeiras leituras de roteiro com o tal diretor. Alícia invadiu o local sem
pedir licença, interrompeu uma fala e declamou o seu texto de improviso em
voz bem alta. Imaginando-se num palco, encenou olhando nos olhos do
diretor:
– Boa tarde, senhor! Lembra de mim? Me chamo Alícia e sou prostituta.
Meu nome de guerra é Estrela D’Alva! A gente transou loucamente na
semana passada. Foi delicioso! Mas o senhor esqueceu de me pagar...
Sem dizer “corta!”, o diretor interrompeu a cena da Estrela D’Alva
afogado num poço de constrangimento. Ele e um produtor tiraram a atriz da
luz dos holofotes e a arrastaram para a coxia. Houve um bate-boca:
– Você está louca? – perguntou o diretor.
– Sim. E você nem imagina o quanto, seu velho imundo! Se você não
pagar o meu cachê, vou agora mesmo até uma delegacia denunciá-lo por
estupro. Depois publicarei a cópia do boletim de ocorrência nas redes sociais
para o meio artístico inteiro saber como você é escroto...
– Quanto custa o seu programa?
– Dez mil reais! – anunciou.
Por ser um diretor prestigiado no mercado, o homem resolveu pagar o
cachê a Alícia no mesmo dia e assim evitar um escândalo na imprensa. A
atriz ainda nem sonhava em ser garota de programa nessa época. Mas
descobriu na decepção artística que Estrela D’Alva seria a sua melhor
personagem. Desde então mergulhou de cabeça na prostituição de luxo e
conquistou numa única audição uma vaga de protagonista no cast da
mansão de Arethuza. Seu desempenho era tão bom que, no auge da carreira,
sua agenda era lotada. Era uma das mais requisitadas para acompanhar
empresários ricos em viagens de negócios pelo país e no exterior.
Na noite de estreia no bordel de luxo, Alícia foi contratada para
acompanhar Marcos em uma viagem à unidade da Yoki de Campo Novo do
Parecis, no Mato Grosso, dali a dois dias. Para preservar a imagem de
homem casado, o empresário deixou a pro ssional hospedada em um hotel-
fazenda e seguiu para os compromissos pro ssionais sozinho. Quando se
livrou do trabalho, Marcos levou Alícia para conhecer a cachoeira de Salto
Belo, uma volumosa queda d’água de 45 metros de altura. Passaram três dias
na região feito casal em lua de mel. De lá, seguiram para uma aventura no
Pantanal, onde passaram por um susto. Marcos alugou um barco, contratou
um guia e desceu no m da tarde com Alícia pelo Rio Claro, no município
de Poconé, a 105 quilômetros de Cuiabá. Ao chegarem a um trecho
apinhado de jacarés, o empresário pediu para o guia parar a lancha e
desligar o motor. Marcos começou a jogar diversos peixes na água para
atrair os animais selvagens e lmá-los bem de perto. Alícia congelou de
medo quando se viu cercada pelos répteis. Depois de jogar o último peixe na
água, os bichos caram com cara de “quero mais”. Nessa hora, Marcos
passou a lmá-los bem de pertinho. De repente, um deles tentou saltar para
dentro do barco em busca de peixe. O animal conseguiu abocanhar a
câmera do empresário e levou com ele na fuga. O barco balançou de um
lado para o outro. Marcos e a garota de programa gritaram com medo de
morrer. Depois do susto, o guia saiu em disparada e os dois riram da
situação.
No nal da viagem, o empresário disse estar apaixonado por Alícia, que
correspondeu aos sentimentos dele cobrindo-o de beijos de folhetim. Na
volta da viagem, Marcos contou para Lincoln ter conhecido a mulher da sua
vida. Na sua sala com vista para a Marginal Pinheiros, na sede da Yoki, o
executivo recebeu uma ligação em seu telefone xo. Era Matheus, o gerente
da mansão de Arethuza. Ele queria um feedback da atuação de Alícia, a nova
contratada da casa:
– Ela simplesmente é a estrela mais linda do céu. Estou apaixonado.
Quero subir no altar em breve! – romantizou Marcos.
– O cachê pela viagem de três dias com a artista cou em 12 mil reais –
anunciou o gerente, quebrando o clima de ternura.
Na mesma noite em que Marcos conheceu Alícia na mansão de
Arethuza, Lincoln tentou sair com Penélope. A modelo estava circulando
apática pelo salão. Não mostrava mais o seu tradicional sorrisão de outrora.
O supermercadista sondou Matheus para saber se a pro ssional estava livre.
Para sua decepção, ela estava reservada para Agustín, um empresário de 56
anos, argentino, milionário da área esportiva e frequentador do bordel de
Arethuza desde a inauguração. Com negócios no Brasil e na Argentina, ele
mantinha moradia nos dois países. Exigente e chato, Agustín costumava ser
grosseiro com quem lhe servia. Humilhava garçons e manobristas da
mansão falando um português meia-boca. Reclamava de tudo, até da forma
como o drinque era harmonizado no bar. Tinha caspa e seborreia. Era
baixinho, atarracado e braços curtos. Parecia um pinguim. Uma curvatura
anormal no alto da sua coluna lhe rendeu o apelido maldoso de Quasímodo,
o personagem do clássico O corcunda de Notre-Dame. Algumas garotas se
recusavam a sair com Agustín tamanha era a sua feiura física e espiritual.
Mas nem sempre era possível escapar daquele homem horroroso.
Penélope estava com a carreira de garota de programa de luxo em baixa
quando Agustín encomendou a Arethuza uma prostituta para acompanhá-
lo em um compromisso pro ssional em sua terra natal. Penélope foi a
escolhida. O cachê a ser pago no nal da viagem de quatro dias seria de 15
mil reais. Agustín viera ao Brasil buscar oito jogadores jovens e apresentá-
los a clubes do país vizinho para possível contratação. Em Buenos Aires, o
casal cou no apartamento do empresário, no 43o andar do edifício Torre le
Parc, um arranha-céu de 55 andares localizado no bairro de Palermo.
Solteiro, Agustín costumava apresentar as modelos de Arethuza no Brasil e
na Argentina feito namoradas, ou seja, como se elas fossem frutos de sua
conquista. Em eventos sociais, andava de mãos dadas com as pro ssionais e
fazia questão de dar beijinhos nelas a todo momento.
Os tentáculos da depressão já haviam alcançado Penélope de forma
devastadora quando ela esteve em Buenos Aires, em 2004. A companhia
desagradável do empresário argentino potencializou seu quadro patológico.
No quarto, Agustín quis transar. Remunerada, a modelo não pôde dizer
“não”. E ai dela se dissesse, diga-se de passagem. Penélope deitou-se nua
sobre a cama com a barriga para cima e cou imóvel feito uma boneca
in ável. Agustín não reclamou da inércia e fez sexo oral nela. A jovem não
sentia nada. Parecia não estar ali. O cliente transou com a mulher na mesma
posição por mais de uma hora. Ele ainda tentou virá-la de costas, mas a
modelo parecia anestesiada. Não saiu do lugar. Depois de ejacular, Agustín
se trancou no banheiro e saiu de lá todo arrumado. Desceu para encontrar
os jogadores de futebol no lobby do Hotel Hilton.
Sozinha no apartamento do Quasímodo e bem longe de casa, Penélope
cou circunspecta. Os efeitos destruidores da doença comprometiam o seu
organismo. Enfrentava distúrbios de sono – cava até três dias sem dormir –
e comia pouco, feito passarinho. Sofria com agitação psicomotora e chorava
sozinha a qualquer hora do dia ou da noite sem motivo especí co.
Impossível sua vida car pior do que estava. No apartamento de Agustín, ela
não tinha mais energia nem para car de pé. Sozinha no quarto, arrastou-se
até a janela e olhou o limiar do rmamento a uma altura superior a 100
metros do chão. Pensativa, Penélope revisitou o passado. Sentiu uma culpa
colossal por não ter desmascarado o pai abusador. Estava desolada com a
vida aviltante que levava. Sua autoestima naquele momento estava mais
baixa do que o cimento da calçada vista lá do alto. A modelo puxou uma
cadeira para perto da janela, subiu nela e se debruçou no parapeito.
Mergulhada em um sofrimento incomensurável e sem qualquer esperança,
pensou em como seria a nitude da própria vida. De repente, deparou-se
com Ariel, a criança de 8 anos de sexo inde nido cuja existência se
materializava somente em seu delírio esquizofrênico. A criatura imaginária a
interpelou:
– Não faça isso! Pelo amor de Deus! Não faça isso! Não aqui, longe dos
seus familiares. Não sem se despedir das pessoas que te amam...
Penélope desmaiou no chão do quarto de Agustín e só acordou num
leito do Hospital Italiano de Buenos Aires, conforme relatou em seu diário.
Ela teve um sobressalto quando recobrou os sentidos e descobriu estar
internada fazia uma semana. A um médico, ela perguntou por que estava
hospitalizada havia tanto tempo. Ouviu dele o seguinte diagnóstico:
– Você está com um quadro grave de depressão. A internação foi
necessária porque você perdeu a capacidade de autodeterminação. Não
consegue mais se autogerir. O ideal seria eu conversar com os seus
familiares, pois não é recomendável você sair daqui sozinha. As enfermeiras
informaram que você não tem parentes na Argentina.
Enquanto o médico falava com Penélope, Agustín entrou no quarto. Ele
foi questionado pelo doutor:
– O senhor é parente dela?
– Dios no lo quiera! Essa mulher de rosto bonitinho é uma piranha
suicida de lujo! Por pouco ela não se jogou da minha janela. Imagine quão
escandaloso seria ter una perra estatelada no playground do meu prédio.
Vim aqui entregar a passagem para ela voltar ao Brasil. Se quiser se matar,
ela que faça isso bem longe do meu país. Piranha!
Apesar de Arethuza já ter sentido na pele o poder devastador da
depressão, ela não se sensibilizava com o drama de Penélope. A cafetina
cou irritadíssima quando recebeu uma ligação de Agustín reclamando dos
problemas causados pela modelo em Buenos Aires. O empresário fez
questão de frisar que não pagaria pelo serviço da acompanhante e ainda
pediu reembolso da conta do hospital e da passagem aérea. Com medo de
ter seu nome envolvido em escândalo, a cafetina mandou Matheus até
Buenos Aires resgatar a jovem das garras do Quasímodo.
Penélope foi deixada na casa da mãe, Marieta. Naquela época, ela nem
sonhava que a lha era garota de programa de luxo. Para ela, a modelo
ganhava muito dinheiro apenas fazendo fotos. Apesar de saber da doença da
lha, Marieta não descon ava do seu per l suicida. Muito menos que o
responsável pela desgraça da jovem era o seu ex-marido, morto em um
acidente de carro havia três anos. Na época do funeral do pai abusador, a
modelo fazia uma campanha em Xangai, na costa central da China, e usou
os compromissos pro ssionais como desculpa para faltar ao enterro. A
morte do estuprador não serviu nem para amenizar o trauma das aranhas-
caranguejeiras. Marieta acomodou a lha no melhor quarto do apartamento
de 200 metros quadrados em que morava, na Vila Mariana. O irmão mais
novo da modelo, Ruy, de 22 anos, ocupava o quarto ao lado. Na época, a
família morava no 18o andar.
Na casa da mãe, Penélope passava boa parte do tempo dormindo por
causa dos remédios pesados. Ela acordava de dez em dez horas, tomava
sopa, descrevia em seu diário os pesadelos e a vontade incomensurável de se
matar para se livrar da dor arraigada em sua alma. “Faz um mês que não
acho graça de nada. Não tenho mais paladar nem olfato – às vezes, nem
audição. Não faço nada produtivo o dia inteiro. Ou seja, apenas existo”,
escreveu no caderno, dois meses depois de voltar de Buenos Aires. Quando
cava muito fraca, recebia alimentação intravenosa. Com a vida da modelo
por um o, a casa da mãe era tão aconchegante quanto ameaçadora. O
maior perigo era a varanda panorâmica de quase 30 metros quadrados de
fácil acesso. Vulnerável emocionalmente, o m da linha era só uma questão
de tempo.
Numa noite fria, por volta de uma da madrugada, Marieta foi até o
cômodo da jovem ver como ela estava. Para aquecê-la, sobrepôs um
edredom e cerrou a cortina blackout feita de poliéster, deixando o quarto
100% escuro. Marieta deu um beijo de despedida na testa da lha, apagou a
luz e saiu. Penélope ngia dormir. Levantou-se da cama, escreveu no diário
por horas, caminhou de camisola até o janelão e abriu a porta de vidro de
acesso à varanda. De cima, as luzes da cidade de São Paulo eram
melancólicas. Singelo, Ariel se materializou mais uma vez diante da jovem.
A criança ignorou o perigo e cou sentada bem à vontade na mureta da
sacada com as pernas viradas para o lado de fora. Penélope o cumprimentou
com um sorriso apagado, olhou xamente para o in nito e perguntou ao
anjinho:
– Os meus olhos estarão fechados ou abertos quando eu estiver
despencando?
O fantasma pegou rmemente nas mãos de Penélope e fez um convite:
– Vamos conferir isso juntos?

* * *

Elize usava as habilidades de técnica em enfermagem para consertar o


rosto lindo de Chantall. A garota era espancada em praticamente todos os
programas. Na nova fase de trabalho, Salim, o tabelião, era o seu cliente
preferido. Além de rico, dominava as técnicas violentas do bondage e sabia
bater sem machucar muito. O único problema era sua predileção em acertar
o rosto da jovem goiana. Joel e Elize não aprovaram a nova especialidade
(apanhar dos clientes) da amiga. Chantall justi cava a violência com as
dívidas de IPTU da casa de Aporé (GO), o tratamento de Alzheimer da mãe
e o sonho de ver o irmão Lucas com diploma de odontólogo. Se estivesse
fazendo programas convencionais, não juntaria tanto dinheiro tão
rapidamente. Após a violência, a pro ssional entrava em isolamento por dez
dias para esperar os hematomas do rosto sumirem.
Sem estudo, Chantall não tinha muitas alternativas pro ssionais além da
prostituição. Era por essa lente que ela enxergava a vida. Já Elize, se quisesse,
abandonaria a carreira de garota de programa. Com certi cado de técnica
de enfermagem e de contabilidade, podia levar uma vida modesta como a da
maioria dos brasileiros. Seria fácil, por exemplo, conseguir uma vaga de
pro ssional da saúde em hospitais particulares de São Paulo. Sua passagem
pelo conceituado Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba, era uma
boa credencial. Poderia, ainda, voltar a cuidar de pacientes em tratamento
paliativo, uma área promissora e bem remunerada. Mas não. Ambiciosa,
Elize não se contentava com pouco. Queria mais e mais. Andar de metrô,
nem pensar. Queria carro novo. Segundo amigas do meretrício, ela sonhava
em subir na vida se casando com um homem rico. Seu plano A era fazer um
cliente afortunado cair apaixonado aos seus pés. “A vida na prostituição é
muito dura. Todas as garotas de programa sonham em ser resgatadas por
um cliente. Nenhuma delas quer viver na zona para sempre. Não tem nada
de errado em viver em busca de um casamento”, ponderou Joel, um dos
maiores incentivadores dos planos de Elize. No entanto, à noite, quando
deitava a cabeça no travesseiro, a paranaense se lembrava da profecia de
Estella, a amiga enfermeira de Curitiba que largou o meretrício para se
tornar dona de posto de combustível: “Uma prostituta só tem dois destinos
na vida: a glória ou a desgraça. Não tem meio-termo”. Como estava com a
carteira de clientes em baixa, Elize resolveu aceitar a sugestão de Joel e fazer
um cadastro no MClass. O gerente da boate do Baixo Augusta também
prometeu introduzir Elize em uma nova rede de prostituição constituída
recentemente em São Paulo, só com garotas vindas de outros estados. O
plano era encontrar nesse novo nicho o seu futuro marido.
O MClass era o bordel virtual preferido de Marcos e Lincoln. Na home
do site, havia dezenas de fotos de garotas de programa em poses sensuais,
mas sem revelar muita coisa. Para acessar as imagens das acompanhantes
completamente sem roupa, o usuário teria de pagar uma mensalidade de 25
reais, valor no início da década de 2000. Em fevereiro de 2021, o passaporte
já custava o dobro. Em 2004, a página estava no ar fazia sete anos e contava
com um catálogo de 150 mulheres, incluindo “mulheres trans lindas”,
conforme estava descrito no site. Segundo o dono do negócio, Rodrigo
Henrique Sano de Souza, o MClass tinha as garotas de programa mais
bonitas do país. “Para homens que preferem elegância e classe, criamos uma
plataforma simples e atraente, na qual é possível escolher a sua companhia
preferida para uma aventura perfeita e emocionante”, escreveu Rodrigo no
prefácio do catálogo. Ainda de acordo com o administrador dos
classi cados, as modelos do seu elenco foram selecionadas com “muito
cuidado”. Lá, a variedade era grande. Havia prostitutas de todo tipo e para
todos os gostos.
Na apresentação das garotas, o site dava um conselho aos clientes:
“Escolha a sua acompanhante com base no instinto ou pela preferência
pessoal. Entregue-se a uma garota de alta classe e desfrute de um encontro
sensual inesquecível”. Na parte de baixo do endereço eletrônico havia uma
autopromoção: “Quando escolhe uma acompanhante MClass, você tem a
certeza de que poderá levá-la a qualquer tipo de atividade. Temos todos os
estilos de acompanhantes: namoradinhas, universitárias, modelos,
massagistas, camgirls, sugar babies e muito mais. Ela poderá impressionar
seus colegas em uma convenção de negócios ou os seus amigos em um
evento social”. O MClass nalizava a descrição dos seus valores com uma
promessa: “As nossas modelos podem ser aquela pessoa bonita e interessante
para você conversar quando quiser dar uma fugidinha de reuniões menos
interessantes. Elas irão oferecer-lhe uma companhia incrível durante o dia
ou à noite. [...] As nossas mulheres estão ansiosas para agradar e tratar você
como um rei. Elas irão te garantir absoluta discrição e companheirismo de
qualidade e prazer inigualáveis”.
Por intermédio de Joel, Elize marcou para visitar Rodrigo, proprietário
do MClass. O encontro ocorreu na sede do site, no município de Barueri. A
paranaense tinha 23 anos quando pisou pela primeira e única vez no
prostíbulo virtual. Rodrigo explicou a dinâmica do empreendimento. Ela
precisaria fazer uma sessão de fotos nua e um vídeo para assinantes; pagar
250 reais por semana ou 800 reais por mês. Em 2021, o valor do anúncio
para cada sete dias já custava 450 reais e o mensal, 1.200 reais. Para
anunciar, as modelos assinavam um termo de autorização avalizando o uso
das imagens, além de rubricar um contrato simples. Para não disputar
modelos com a concorrência, uma das cláusulas do contrato exigia
exclusividade. Ou seja, Elize não podia se expor em qualquer outro site de
acompanhantes, muito menos ser agenciada por cafetinas. Caso quisesse
romper o acordo e remover as fotos do MClass, bastava ela ligar fazendo o
comunicado.
Foi o próprio Rodrigo quem fez o ensaio nu de Elize, cobrando dela 900
reais. Em fevereiro de 2021, as sessões de fotos das mulheres para o site eram
terceirizadas e custavam entre 1.200 e 2 mil reais. A princípio, Elize cou
nervosa na hora de se despir para a lente do fotógrafo. Seu maior medo
morava na possibilidade de a família descobrir sua vida de prostituta. No
entanto, ela pôs na balança o fato de já estar nas mãos de Pedro, o ex-
namorado ciumento que levou consigo esse segredo para Chopinzinho. A
jovem também achava os ensaios nus publicados pelo MClass meio vulgares.
Rodrigo prometeu fazer somente fotos de bom gosto. Depois de muito
ponderar, Elize tomou três shots de tequila, tirou a roupa e se entregou.
Foram mais de 100 fotos numa noite inteira de trabalho. “Minhas
impressões sobre ela na época eram de uma garota extremamente quieta,
tímida e desajeitada para as fotos, o que contraria o per l das
acompanhantes que fotografamos há anos neste ramo. Na dúvida, perguntei
se ela tinha ciência de que estava anunciando em um classi cado de garotas
de programa. Ela respondeu que sabia como o site funcionava”, disse
Rodrigo.
No anúncio do MClass, Elize se identi cou como Kelly, o seu alter ego.
Anos mais tarde, o apelido escolhido por ela para se prostituir desde
Curitiba foi motivo de desavença na família. O codinome havia sido copiado
da sua meia-irmã, Kelly Giacomini. A garota dona do nome tinha 18 anos
quando o anúncio de Elize foi publicado na internet. A verdadeira Kelly era
lha do pai de Elize, Valter Giacomini, com a dona de casa Terezinha
Ivanilda Forte Giacomini. A jovem morava em Curitiba e cou assustada
quando viu seu nome sendo usado em sites de acompanhantes por alguém
da família. As duas irmãs eram bem parecidas – ambas bonitas, traços nos,
loiras e cabelos lisos na altura dos ombros. Alguns amigos da legítima Kelly
descobriram o anúncio e passaram a perguntar quanto custava o programa,
deixando-a revoltadíssima. “Até hoje não entendo por que a Elize usou o
meu nome para se prostituir. Queria tirar satisfação com ela, mas a minha
mãe não deixou”, relatou Kelly, a autêntica.
Elize estreou com destaque na primeira página do MClass no dia 1º de
setembro de 2004. A imagem escolhida para valorizar o seu per l mostrava
a jovem deitada de bruços sobre um tapete mar m e agarrada a uma
almofada preta, lembrando uma postura de ioga conhecida como es nge.
Ao fundo, havia uma parede de tijolos aparentes. Encarando as lentes de
Rodrigo com olhar de desejo, ela vestia apenas corpete branco de renda e
bordado com ores coloridas, mantendo as nádegas com marcas de sol à
mostra. “Sou uma loirinha muito carinhosa. Você não vai se arrepender”,
dizia a legenda da foto. A idade ela mentiu. Baixou dos 23 anos para 19. A
ideia de enganar os clientes foi dada por Rodrigo. “Quanto mais novinha,
melhor. Vai falando que você tem 19 até alguém achar estranho. Quando
car forçado, você aumenta para 20, 21 e por aí vai...”, aconselhou o cafetão
cibernético. O anúncio descrevia Kelly como uma deusa do amor. Tinha
1,65 m de altura, 50 quilos e manequim 36. Quem clicasse no link “mais
fotos” se deparava com 22 imagens da pro ssional nua em pelo e mais um
vídeo pra lá de lascivo. Ela postou o número do telefone celular no site e ele
não parou de tocar. Os clientes queriam a falsa Kelly de manhã, de tarde, de
noite, no café da manhã, no almoço, no lanche da tarde e no jantar.
Na mesma época do anúncio no MClass, Joel apresentou Elize para uma
cafetina piauiense de 55 anos conhecida como Violeta. A senhora, magrela
feito um palito, só vestia tailleur e blazer como se fosse executiva.
Administrava uma rede de prostituição alternativa com 20 pro ssionais com
idades entre 18 e 21 anos. Ela ganhou fama no mercado por manter garotas
bonitas, por um curto período, em seu catálogo. Quando as jovens
completavam três meses em seu portfólio, ela fazia substituições com a
justi cativa de que os seus clientes não gostavam de repetir prostitutas. A
alta rotatividade mantinha o negócio de Violeta oxigenado
permanentemente. Sua tabela era xa. Uma hora com uma das suas garotas
custava 300 reais, e metade desse valor cava com ela. “Puta é que nem
música boa: faz muito sucesso no lançamento. No entanto, depois de muito
executada na rádio, ninguém aguenta mais ouvir. [...] Os clientes de São
Paulo gostam de ninfetinhas. Uma garota com 18 anos e cara de 18 não
trabalha comigo. Tem de ter 18 e jeitinho de 14. Nada de universitária. Tem
de parecer do Ensino Médio, sabe?”, explicou a senhora. Ela jurava de pé
junto nunca ter agenciado menores de idade. “Jamais poria o meu negócio
em risco a essa altura da vida”, pontuou.
Violeta enviou clientes para Elize, mas a sua maior demanda vinha
mesmo do MClass. A jovem cobrava 300 reais a hora. O tempo era
cronometrado rigorosamente por CDs de 60 minutos de duração. O
cardápio musical variava de acordo com o per l do cliente. Tinha canções
românticas internacionais, dance-pop, soul music, jazz, rhythm and blues,
baladas de rock e música eletrônica. A questão do tempo do programa era
bem explicada para os clientes. Quando a playlist começava a tocar, estava
dada a largada. Se as músicas terminassem antes de o cliente concluir o
serviço, era oferecida a opção de um tempo suplementar. A cada 15 minutos
excedentes, eram cobrados 70 reais. A acompanhante não fazia muita
questão dos minutos extras porque a sua agenda cava sobreposta. A
maioria dos encontros ocorria em seu at, no Itaim, e a quase totalidade dos
seus clientes era formada por homens comprometidos, o que di cultava os
planos de se casar com um deles. Como toda novidade, Elize cou
disputadíssima. Pro ssional dedicada e organizada, ela conseguia fazer, em
média, 25 programas por semana. Em época de Fórmula 1 no Autódromo
de Interlagos, ela chegava a fazer dez atendimentos em 24 horas. Também
acompanhava clientes em viagens de negócios. Vendendo o corpo, Elize
faturava aproximadamente 30 mil reais no mês. “Essa era a minha moeda de
troca”, de niu em 2021.
Acontece que se prostituir por meio de anúncio na internet é um jogo
perigoso, ainda mais porque os encontros são marcados às cegas e
executados em larga escala. Quando fazia ponto na boate do Baixo Augusta,
Elize era apresentada aos clientes antes de transar com eles. Pelo MClass e
por indicação de Violeta, a jovem só via a cara do sujeito quando abria a
porta para ele entrar. Nessa dinâmica, os encontros passaram a ser uma
espécie de sorte ou revés. Certa vez, um homem ligou para marcar uma hora
com Kelly. Entre um cliente e outro, ela reservava pelo menos 30 minutos
para trocar a roupa de cama, posicionar as almofadas no sofá da sala e
acender pelo menos um incenso para aromatizar o ambiente. Na hora
combinada, o cliente interfonou e bateu à sua porta na sequência. Kelly
levou um susto. Era um senhor esquisitíssimo de aproximadamente 50 anos,
com chapéu em forma de cone, barba grisalha enorme e todo vestido de
preto. Ele se sentou no sofá e cou calado, ouvindo música e meditando por
cerca de meia hora. Pagou os 300 reais e pediu um copo de água. Ela o
serviu e avisou sobre o cronômetro:
– Eu não vou transar com você! – avisou o cliente.
– Não?! – espantou-se Kelly.
– Não. Mas eu quero que você tire a roupa toda e que no chão, de
quatro, feito uma cadela.
Kelly obedeceu. O homem, então, todo vestido, começou a tocar na
garota de programa como se zesse um exame ginecológico. Quando
faltavam dez minutos para o programa encerrar, ele abriu as calças e se
masturbou. Depois de ejacular no tapete, o cliente se vestiu e pediu para
voltar na semana seguinte. Elize tinha tantos clientes comuns que resolveu
dispensá-lo para não perder tempo com bizarrices. Ela o indicou para
Chantall, que era especializada em todo tipo de fantasia. Na hora seguinte,
Kelly recebeu o gerente de banco Kaul Menezes, de 40 anos. Mineiro e
morador de Campos do Jordão, ele tinha os cabelos pretos bem curtos e
olhos azuis. O bancário era um homem bonito, educado, corpo atlético,
vivia perfumado e andava muito bem vestido com roupas sociais. Kaul era
casado com uma dona de casa chamada Georgina. Ele chegou até Kelly por
indicação de Violeta. Distraída com os carinhos do cliente estilo, ela nem se
deu conta de que o CD de uma hora havia acabado e o tempo do programa
extrapolou. O sexo já tinha encerrado, mas Kaul continuou deitado de graça
na cama aconchegante da garota de programa. Kelly vislumbrou naquele
cavalheiro a possibilidade de namoro e até de matrimônio. Ele olhou para o
relógio e pediu para tomar um banho junto com a jovem. Debaixo do
chuveiro, transaram pela segunda vez. No meio do ato, Kaul virou a
acompanhante de costas de forma brusca e a empurrou contra a parede para
forçar sexo anal. A violência não estava no roteiro. Kelly perdeu o encanto
com a falta de romantismo. Ela frisou não ter gostado da atitude e encerrou
o programa imediatamente. Kaul se desculpou, vestiu-se e foi embora. Mais
um cliente encaminhado a Chantall.
Às vezes, os encontros de Elize esbarravam no perigo. Certa vez, ela
recebeu em casa um sujeito carrancudo, malvestido e bastante agitado.
Parecia ter vindo da Cracolândia. Ela cou em pânico. Tentou desistir do
programa, mas estava apreensiva com uma possível reação hostil. O homem
tirou a roupa e foi possível perceber uma arma de fogo e uma chave de carro
presas em sua cintura. No nal do atendimento, ele pagou os 300 reais
combinados e confessou ser assaltante pro ssional e viciado em garotas de
programa. Sua especialidade no crime era roubar telefone celular no meio
da rua e fazer sequestro relâmpago para comprar drogas:
– Isso é problema para você? – quis saber.
– Imagina... – mentiu Kelly, cheia de medo.
Antes de sair, o bandido ainda consumiu um cachimbo de crack no meio
da sala e foi até o banheiro. Fez cocô e nem sequer deu a descarga. Para
amenizar os riscos na hora de abrir a porta, Elize passou a pagar 100 reais
por mês aos três porteiros do seu at. Com o recebimento da gorjeta, eles
faziam um ltro nos clientes antes de autorizar a subida. O critério era
meramente subjetivo. “Se eu percebesse que o homem era muito mal
encarado, esquisito ou menor de idade, dizia que ela não morava lá. A dona
Kelly também não gostava de receber homens muito gordos, muito velhos e
gente embriagada”, contou o porteiro Carlos de Assis, funcionário do at
onde Kelly atendia no bairro do Itaim. Como assim, “toda essa exigência?”.
“Olha, em 2004, era um entra-e-sai tão intenso de homens e mulheres no
apartamento dela e de outras prostitutas que a portaria parecia a estação da
Sé do metrô na hora do rush”, exagerou o porteiro, rindo. A propósito, a
referida estação atende as linhas azul e vermelha do sistema metroviário de
São Paulo e por ela corria um uxo de cerca de meio milhão de pessoas por
dia, segundo dados da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
(CPTM).

* * *

A prática da prostituição feminina é um fenômeno social complexo


desde a Antiguidade. Bem lá atrás, a atividade era nobre e as meretrizes
costumavam ser até enaltecidas e valorizadas. Na Idade Média, foram
escravizadas e obrigadas a recolher altos impostos sobre seus serviços
sexuais. Com a sobretaxação, passaram a praticar o escambo, trocando sexo
por mercadorias, desvalorizando o trabalho e o próprio corpo. Para piorar, a
Reforma Religiosa do século XVI acusou as cortesãs de disseminação de
infecções sexuais transmissíveis (ISTs), perpetuando um estigma existente
até hoje.
Elas também teriam tido lugar de destaque no Novo Testamento. Uma
das personagens bíblicas mais intrigantes é Maria Madalena, mulher
retratada pelos éis ao longo dos tempos como prostituta, mas que hoje
desfruta do status de santa. Sua trajetória no livro sagrado esteve envolta em
um manto de mistério. Dentro da Igreja Católica, quem descreveu Madalena
como uma mulher da vida e pecadora foi o papa Gregório Magno, no ano de
591. A de nição teria como base um trecho da Bíblia: “E eis que uma
mulher da cidade, que era uma pecadora, quando soube que ele estava à
mesa em casa do fariseu, trouxe um vaso de alabastro com bálsamo e
colocou-se a seus pés por trás dele, chorando, e começou a lavar seus pés
com lágrimas, e os enxugava com os cabelos de sua cabeça, e beijou seus pés,
e os ungiu com o unguento... E ele disse a ela: ‘Os teus pecados estão
perdoados’.”
Quem pintou Madalena como bem-aventurada recorreu a um fato
marcante também descrito na sagrada escritura. Ela teria sido a primeira
testemunha ocular a se deparar com Jesus ressuscitado. Elementos mais
recentes também ajudaram a promover Madalena ao posto de nora de Deus.
Em 2012, a historiadora Karen King, professora da Universidade de
Harvard, nos Estados Unidos, disse ter encontrado um pergaminho com
inscrições atribuindo a Madalena o papel de esposa de Jesus e não de
mulher da vida. O fragmento estaria escrito em copta, um idioma do Egito
Antigo já extinto. Ao traduzir uma passagem do papiro, Karen teria
encontrado frases soltas do tipo “Maria é merecedora disso [...] Jesus disse a
eles: ‘Minha esposa’ [...] Ela será a minha discípula”. Como a pesquisadora
não quis revelar a fonte do pergaminho, sua teoria foi posta em dúvida.
Outra pesquisadora, Jennifer Ristine, presidente do Instituto Madalena,
com sede em Israel, também refutou a retratação da personagem bíblica
como meretriz e adúltera ao publicar uma biogra a sobre ela, em 2016. “Ao
longo dos tempos, houve muitas interpretações equivocadas sobre a vida de
Maria Madalena. Ela era uma mulher rica, de um povoado economicamente
bem posicionado e não necessariamente uma prostituta”, assegurou. De fato,
a Bíblia traz passagens mostrando a riqueza de Madalena. Ela teria
comprado um óleo com aromas especiais caríssimo para besuntar o corpo
de Jesus após a sua morte. Outros três versículos do Evangelho de São
Mateus asseguram que, além de rica, Madalena era uma mulher dedicada e
el. Um deles a rmou que ela cou ao pé de Jesus na cruz junto com Maria
e o discípulo João por dias sob o sol, chuva, raios e trovoadas. Com tamanho
protagonismo, a personagem sagrada perdeu o cialmente a pecha de
messalina e foi canonizada em 2016 pelo Papa Francisco. O pontí ce a
nomeou Madalena “a apóstola dos apóstolos”. Apesar de ser adorada no
meretrício, Santa Maria Madalena não é padroeira das prostitutas. Quando
querem alcançar uma graça, as trabalhadoras do sexo costumam recorrer a
Margarida de Cortona, uma santa ex-amante de um nobre italiano com
quem teve um lho.
No Brasil, reza a lenda que as primeiras prostitutas desembarcaram na
caravana de Pedro Álvares Cabral em 1500, no século XV. O maior portal de
Educação do país, Brasil Escola, referenda essa informação quando narra a
chegada das naus portuguesas. “Era comum, nessas expedições marítimas da
Idade Moderna, prostitutas serem levadas escondidas nas embarcações”. No
entanto, os primeiros registros históricos ocorreram só no século XIX, a
partir justamente da criminalização da atividade. Policiais faziam investidas
violentas contra elas no meio das ruas e praças das principais capitais. A
partir dessa caçada implacável, iniciou-se um movimento de resistência e
exclusão, pois as mulheres passaram a trabalhar em becos e sofrer
marginalização. Segundo escreveu o cientista social e antropólogo
canadense Erving Goffman, em sua obra Estigma: notas sobre a manipulação
da identidade deteriorada, quando a sociedade expele indivíduos menos
quali cados ou menos valorizados, atribuindo-lhes aspectos negativos, cria-
se um sentimento de indignidade. Essa teoria explicaria por que, ao longo
dos tempos, as prostitutas se afastaram dos serviços básicos de saúde, das
assistências sociais e até das possibilidades de melhoria de vida. “No Brasil,
não existe uma política pública e ciente voltada para as necessidades
especí cas da mulher que tem a prostituição como pro ssão”, escreveram as
cientistas sociais da medicina preventiva Simone Monteiro e Wilza Villela,
no livro Estigma e saúde.
Segundo o jurista paranaense Victor Romfeld, autor do livro Inimigas da
moral sexual e dos bons costumes, a prostituição perpassa as mais diversas
áreas do conhecimento, atingindo aspectos profundos da sociedade, como
economia, trabalho, sexualidade e relações de gênero. “No Brasil, trata-se de
uma temática marcada por um incômodo paradoxo. Por um lado, pouco se
fala a respeito: as prostitutas existem, estão nas ruas, nos anúncios de jornal
e da internet, nos centros das cidades, nas casas de massagem, nas mansões
de luxo, frequentando cursos universitários e os mais variados ambientes.
No entanto, a pro ssão não é reconhecida como se fosse uma opção digna
de subsistência, fazendo com que as trabalhadoras sexuais tenham seus
direitos sistematicamente negados”, destacou Romfeld.
Com o tempo, as trabalhadoras do sexo passaram a se organizar.
Fundaram entidades não governamentais e lutaram pelos seus direitos. A
primeira grande vitória do movimento social ocorreu em 2002, quando o
Ministério do Trabalho regulamentou a atividade sexual como pro ssão,
atribuindo-lhe o código 5198 no rol da Classi cação Brasileira de
Ocupações (CBO). Segundo o Ministério do Trabalho descreveu no item
“competências pessoais”, as prostitutas devem ter os seguintes atributos no
exercício da pro ssão: “Ser paciente, demonstrar capacidade de persuasão e
comunicação; realizar fantasias sexuais, capacidade de ouvir, capacidade
lúdica, demonstrar sensualidade, reconhecer o potencial do cliente e cuidar
da higiene pessoal, além de manter sigilo”. O órgão do governo federal
também descreveu a dinâmica desse tipo de serviço: “As pro ssionais do
sexo buscam programas, atendem e acompanham clientes e participam de
ações educativas no campo da sexualidade”. No quesito “formação e
experiência”, os técnicos do governo sugeriram a quarta série do Ensino
Fundamental como escolaridade mínima para atuar nessa labuta, além de
fazerem um alerta importante: “As pro ssionais do sexo podem estar
expostas a intempéries e discriminação social. Há ainda riscos de contágio
de infecções sexualmente transmissíveis, maus-tratos e até morte”. O
Ministério do Trabalho descreveu ainda como deve ser a dinâmica das
prostitutas. “Buscar programa, agendá-lo, produzir-se visualmente para
atender o cliente, seduzi-lo, negociar, insistir para o uso do preservativo,
utilizar gel lubri cante à base de água, denunciar violência física e
administrar o orçamento pessoal. Especi car o tempo de trabalho, fazer
striptease, acolher e relaxar o cliente, além de dialogar com ele; acompanhá-
lo em festas, jantares e viagens.”
A regulamentação da prostituição no Ministério do Trabalho foi um
passo importante, pois elas puderam recolher INSS e aposentar-se. Mas falta
muito para serem reconhecidas legalmente como pro ssionais. No Brasil, a
prática da prostituição não é ilegal, mas todo o universo à sua volta é
criminalizado, mantendo-as num limbo jurídico. De acordo com o Código
Penal, por exemplo, tirar vantagem nanceira da prostituição participando
diretamente do seu lucro é crime previsto em pelo menos dois artigos. O 230
prevê pena de um a quatro anos de cadeia mais multa para a cafetinagem ou
ru anismo, como é chamada a prática dos agentes e donos de bordéis. Já o
artigo 228 prevê até cinco anos de reclusão para quem induzir ou atrair
alguém à prostituição ou facilitá-la. Essas regras tornaram-se letras mortas
no Brasil porque casas de prostituição disfarçadas de boates, como a
mantida por Arethuza no Baixo Augusta, a Love Story e o Bahamas Club,
eram consideradas as mais populares de São Paulo e funcionaram
descaradamente em endereços famosos. Todo o mundo sabia o que ocorria
lá dentro. Pelo Código Penal, estariam cometendo crime de ru anismo
todas as cafetinas: Estella, Arethuza, Joel, Violeta e Jeany; e até quem aluga
os ats onde as garotas fazem atendimento, além dos donos dos sites de
classi cados, a exemplo de Rodrigo, do MClass.
Parte das trabalhadoras do sexo sonhava com a legalização de nitiva da
pro ssão, o que equipararia a prostituição às outras carreiras. Só assim elas
teriam direitos trabalhistas, como carteira assinada, férias remuneradas e até
plano de saúde, caso fossem contratadas por um bordel legalizado. Nenhum
projeto percorrido pelos dutos burocráticos do Congresso Nacional
conseguiu esse feito, graças às bancadas conservadoras e religiosas
impregnadas na Câmara dos Deputados. A proposta que mais avançou foi a
de número 4.211/12, de autoria do ex-deputado Jean Wyllys (PT). O projeto
foi batizado de Lei Gabriela Leite, em homenagem à prostituta ativista morta
vítima de câncer no pulmão, em 2013. As maiores críticas das intenções do
ex-deputado egresso do Big Brother Brasil estavam na possibilidade de a
legalização das casas de encontros estimular a prostituição, prática
considerada insalubre e degradante por especialistas. Segundo o projeto de
lei, no entanto, a comissão das cafetinas sobre o trabalho das pro ssionais do
sexo não poderia ser superior a 50%. Arethuza, por exemplo, cava com
60% do cachê das suas modelos.
A prostituição é legalizada e regulamentada em pelo menos oito países
europeus (Países Baixos, Alemanha, Áustria, Suíça, Grécia, Turquia,
Hungria e Letônia) e na Nova Zelândia. Nos Estados Unidos, a atividade é
crime grave em 49 dos 50 estados, acarretando punição severa tanto para a
prostituta quanto para o cliente. A exceção ocorre no estado de Nevada,
onde se localiza a cidade de Las Vegas. Lá, o comércio do sexo corre solto e
atrai turistas do mundo inteiro. Na Holanda, o sexo remunerado é liberado
há décadas, mas uma campanha feminista iniciada em 2018, intitulada “eu
não tenho preço”, estava pressionando o Parlamento para criminalizar a
atividade como forma de reduzir a violência contra a mulher.
Uma das principais entidades brasileiras comandadas por prostitutas, a
Central Única de Trabalhadoras Sexuais (CUTS), posicionou-se contra o
projeto de lei de Jean Wyllys. As dirigentes concluíram que a medida, se
aprovada, referendaria um modelo de sociedade baseado em sistema
capitalista, patriarcal e machista. “Temos mais é que lutar por políticas
públicas que tirem as mulheres da condição de prostitutas”, desabafou
Rosane Silva, secretária nacional da Mulher Trabalhadora da Central Única
dos Trabalhadores (CUT). Outra crítica ao projeto de lei de Wyllys
repudiava a alta comissão (até 50%) a ser paga aos donos de bordéis em
cima do cachê das prostitutas. Nas defesas feitas na tribuna da Câmara, o ex-
deputado a rmava que os cafetões já atuavam como empresários explorando
as garotas de forma descarada, citando na época o Bahamas Club, em São
Paulo. Em 2013, Wyllys incendiou o debate ao acusar publicamente o
Congresso brasileiro de conservador e hipócrita. O então parlamentar disse
na época ter um levantamento exclusivo e inédito apontando que 60% dos
513 deputados usavam serviços de prostitutas. No dia 24 de janeiro de 2019,
Wyllys abandonou o mandato alegando sofrer ameaças de morte. Seu
projeto de lei foi arquivado sem ser votado sete dias depois de ele deixar o
Parlamento. Essa não foi a primeira proposta para regulamentar os serviços
sexuais. Os ex-deputados Fernando Gabeira (PV-RJ) e Eduardo Valverde
(PT-RO), já falecido, tentaram emplacar um projeto semelhante, mas suas
intenções também tiveram a gaveta como destino. Para desespero das
prostitutas e de seus clientes, ainda tramitava por lá em 2021 um projeto de
lei (377/2011) de autoria do deputado-pastor-delegado João Campos de
Araújo (Republicanos-GO), cuja proposta é criminalizar com pena de um a
seis meses de detenção o sujeito que contratar serviços sexuais. Tudo em
nome da família, da moral e dos bons costumes.
Em julho de 2023, o jornalista Leonardo Sakamoto revelou no portal
UOL que três mulheres pro ssionais do sexo tiveram suas carteiras de
trabalho assinadas após uma scalização do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE). O reconhecimento do empregador ocorreu em Itapira,
município de 75 mil habitantes no interior de São Paulo. Segundo o MTE,
foi a primeira vez que uma inspeção efetivou o vínculo empregatício de
prostitutas no Brasil. Os scais as descobriram ao investigar uma denúncia
anônima sobre mulheres trabalhando em condições análogas às de
escravizadas em boates. Os estabelecimentos ofereciam os serviços sexuais
de mulheres cissexuais migrantes de outras regiões do Brasil. As condições
não se con guraram escravidão contemporânea, mas de informalidade. Não
havia indício de aliciamento nem de trá co de seres humanos. As condições
de alojamento, alimentação e remuneração estavam adequadas, apesar de
algumas irregularidades. Também não havia indícios de servidão por dívida
e de degradação. Como os scais constataram que eram de fato empregadas,
mas sem contar com direitos e proteções sociais previstos em lei, exigiram
sua contratação formal através de um termo de ajustamento de conduta
rmado com o Ministério Público do Trabalho. Em 2010, os scais do MTE
já haviam agrado garotas de programa em situação de trabalho escravo em
boates do Mato Grosso. Na época, os empregadores foram obrigados a pagar
seguro-desemprego para elas. No entanto, nunca uma prostituta havia sido
registrada na carteira de trabalho como “pro ssional do sexo”, tal qual
ocorreu em Itapira.

* * *
À luz do dia e à margem da lei, o aliciamento de garotas para a
prostituição seguiu feito um foguete no Brasil. Enquanto Jeany e Arethuza
prospectavam modelos em capas de revistas, Violeta recrutava as suas
garotas em shoppings e portas de escolas públicas e particulares na capital e
no interior. Uma das suas estratégias na abordagem era oferecer trabalho
com promessa de dinheiro fácil e rápido. Às vezes, algumas meninas
chegavam até ela se oferecendo para se prostituir sem qualquer indicação.
Com essas candidatas, Violeta fazia um teste rigoroso. Encaminhada por
Joel, Berbella, de 20 anos, sobrinha dele, pediu à cafetina uma oportunidade
de emprego. Menina da classe C e recém-chegada de Campo Grande, foi
descartada por telefone com a justi cativa de falta de vaga. Joel insistiu e a
agenciadora resolveu recebê-la para uma entrevista sem compromisso. No
escritório de Violeta, localizado num prédio comercial do bairro do
Ipiranga, Berbella se apresentou vestindo minissaia curtíssima, top e
carregando no ombro uma bolsinha de crochê enfeitada com miçangas,
comprada numa banca de camelô na 25 de Março, centro comercial de São
Paulo. O gurino parecia ter saído de um personagem de novela. Violeta
cou irritada:
– Onde você vai fazer ponto? Na calçada?
– Não! Quero trabalhar com a senhora.
– Então tira essa fantasia! – ordenou a cafetina.
Violeta apalpou os seios e as nádegas da candidata, examinou os cabelos,
os dentes e até as unhas dos pés. Berbella era perfeita em todos os lugares.
Depois de examiná-la minuciosamente, a cafetina excluiu uma prostituta do
seu elenco e “contratou” a iniciante. Com o tempo, os laços entre as duas se
estreitaram. Berbella contou nunca ter visto o pai, que era meio-irmão de
Joel. “Só o conheci por fotogra as”, contou. Ele saiu de casa para enriquecer
num garimpo localizado nas entranhas da Amazônia quando Berbella era
bebê de colo e nunca mais voltou. A mãe, Nazaré, tinha uma barraca de
hortifrutigranjeiros na Feira Central de Campo Grande. Ela tinha uma irmã
mais velha, Belmira, professora de escola particular e casada com um
contador. Apesar de ter terminado o Ensino Médio, Berbella decidiu se
prostituir longe da família para não envergonhá-la e também para escapar
da sina de ser feirante. “Morria de vergonha de vender frutas e legumes”,
assumiu. Violeta cou comovida com a história da garota e resolveu dar-lhe
um tratamento especial.
Antes de oferecer Berbella ao primeiro cliente, a cafetina a orientou a
respeito de roupa e comportamento. Sugeriu à jovem que dissesse aos
clientes ter 18 anos recém-completados e não 20. Com alguns meses de
trabalho, ela passou a ser tratada por Violeta como a lhada. Mesmo assim, a
madrinha não abria mão da comissão de 50% em cima dos programas da
novata. No entanto, a cafetina instruiu a pupila a seduzir os clientes para
além de um simples encontro. O plano era fazer Berbella, entre um
programa e outro, encontrar um marido. Violeta só encaminhava a ela os
melhores candidatos. “Os que usam aliança são os melhores”, dizia. O
primeiro da lista foi Kaul, o bancário carente pelo qual Elize havia cado
desiludida por causa da atitude violenta. Berbella morava numa pensão de
família no bairro de Santa Cecília, onde era proibido receber visitas. Logo, os
seus programas ocorriam sempre em motéis. Como o plano era sgar um
marido e quiçá pegar barriga, Violeta aconselhou a protegida a fazer sexo
sem preservativo somente com o bancário, o que levou Berbella a orbitar na
esfera da irresponsabilidade. “Ele nem vai perceber porque as meninas
contaram que ele transa sempre bêbado”, ponderou a cafetina. Tudo parecia
sair conforme o previsto. No dia seguinte, porém, o bancário telefonou para
Violeta. Fez uma série de elogios, mas teceu uma crítica peculiar:
– Ela é uma mulher rara como a luz de Plutão. Mas tem um problema.
– Que problema? – quis saber Violeta.
– Ela não faz anal de jeito nenhum!
– Como assim? Deixa que eu resolvo isso! – prometeu a cafetina.
Prostituta a vida inteira, Violeta tinha doutorado na arte dos prazeres
carnais. Ela parou de fazer programas ao cair nas graças da dona do bordel
em que trabalhava, quando tinha 30 anos. Começou a atuar na
administração do negócio. Quando a titular morreu, ela assumiu a casa de
prostituição no centro de São Paulo. Sem paciência para lidar com garçons,
cozinheiros, arrumadeiras e fornecedores de bebidas, fechou o puteiro e foi
trabalhar administrando a própria rede de prostituição. Pelas suas regras, as
garotas tinham de fazer de tudo na cama. “Quando falo tudo, é TUDO
mesmo, entende? Não pode haver restrições. Tem puta que não deixa gozar
na boca. Ou então deixa, mas cospe. Olha, cuspir é um tremendo
desrespeito com o cliente. Como pode? Na minha época, se cuspisse, levava
uma bofetada na cara. [...] Na prostituição, não tem essa modernidade de
não é não. [...] Quem se recusa a fazer anal é desvalorizada no mercado.
Merece car no lugar mais baixo da prateleira. [...] A esposa que não dá o
rabo para o marido com certeza vai perdê-lo para uma mulher completa”,
assinalou.
Logo após ouvir a queixa de Kaul, Violeta chamou Berbella para uma
conversa séria. A garota alegou sentir dores insuportáveis quando alguém
tentava lá atrás. A veterana mandou a a lhada tomar um banho caprichado
e lavar o ânus e todo o canal retal usando um chuveirinho. Em seguida,
presenteou a garota com um pênis sintético de 20 centímetros e deu-lhe a
seguinte instrução: “O segredo do sexo anal é relaxar e dominar o esfíncter,
o músculo circular responsável pela abertura do ânus. Comece abusando de
gel lubri cante e introduzindo primeiramente o dedo para treinar o
controle. Faça isso todos os dias como se fosse uma lição de casa. A ideia é
fazer o ânus se abrir como se fosse uma or desabrochando sob o seu
comando. Quando alcançar esse estágio, coloque o pênis de borracha
lentamente. Se você puser dois centímetros por dia, em três semanas você
estará pronta. [...] Após dominar essa técnica, acredite, você não vai querer
fazer outra coisa na vida. O ânus é a região mais prazerosa do corpo”. No
nal da lição, Violeta fez um alerta: jamais usar anestésicos para penetração
anal, pois o resultado é desastroso. Alguns dias depois do intensivo para
prática de sexo anal, Berbella saiu novamente com Kaul. Ele se apaixonou
loucamente pela acompanhante. Pagou 4 mil reais de luva para ela
abandonar a pro ssão e mais mil reais a cada mês para ter exclusividade. A
garota nunca tinha visto tanto dinheiro na vida.
Enquanto os planos amorosos de Berbella se concretizavam, a vida
sentimental de Elize mantinha-se estagnada. Muitos clientes passavam pelo
seu at, mas nenhum com per l de marido. Sua vida só mudou depois de
ter a primeira avaliação publicada no Guia de Garotas de Programa (GGP).
No fórum, os homens comparavam as mulheres a carros e chamavam o
programa e a posterior avaliação de TD (test drive). Aliás, os clientes usavam
um dialeto próprio para falar das pro ssionais no guia. Um deles teria
detalhado no fórum o encontro com uma prostituta chamada Kelly: “Ontem
z um TD com um lé-mignon [garota de feições delicadas] loirinha. O
local no Itaim é bem organizado e limpo. Eu cheguei e ela já foi beijando. O
climinha era aconchegante com meia-luz, sonzinho bacana e tal. Ela faz
atendimento completo [oral, vaginal e anal] em várias posições. Tem estilo
que mistura piranha e namoradinha na mesma mulher. É carinhosa, meiga e
não aparentava estar fazendo sexo por dinheiro. Nossa senhora do bom oral,
gente! Ela naliza o trem olhando nos olhos [deixa o cliente ejacular em sua
boca], o que é ponto positivo para ela. Fazia tempo que não relaxava
[gozava] com qualidade com uma GP [garota de programa]. Sua pele macia
e cheirosa lembra as garotas estilo putinha que eu pegava no Paulistano e em
Maresias. Ela realmente é diferenciada. Eu já havia caído em golpes de GP
do MClass que exageram no Photoshop. Essa Kelly me surpreendeu. Tem um
bumbum perfeito e redondo como uma maçã e com marca de biquíni. Suas
roupas íntimas eram demais. Padrão de puta eteira [que atende em at], ou
seja, cobra 300 reais. Uma pechincha, né?”.
Depois de ter a primeira resenha positiva publicada no guia de
prostituição, o telefone celular de Kelly, que já tocava com frequência,
passou a soar feito as cigarras do Cerrado na primavera. Seus planos eram os
mesmos de Berbella: arrumar um marido rico no meio do tráfego intenso de
homens em seu at. Certa noite, esgotada depois de um dia intenso de
trabalho pesado, Kelly tomou um banho e vestiu uma camisola curta de
micro bra e aplicação de renda transparente na região do busto. Para
relaxar, abriu um vinho Casillero del Diablo reserva malbec, comprado no
supermercado Pão de Açúcar a 39 reais a garrafa. Teve um sobressalto por
volta das 22 horas, quando a campainha soou sem qualquer anúncio prévio
da portaria. Receosa, abriu a porta sem destravar a corrente de segurança
conhecida como pega-ladrão. Pelo vão, Kelly viu no corredor um homem
forte de 30 e poucos anos. Vestia roupa social e tinha cabelos pretos bem
lisos. Usava óculos e uma aliança de ouro 18 quilates no dedo anelar da mão
esquerda. Trazia um buquê de rosas colombianas e um vinho tinto francês
Le Clos du Beau-Père, cuja garrafa custava cerca de 2 mil reais. Intrigada,
Kelly quis saber:
– Você tem hora marcada?
– Não. Desculpe-me pela inconveniência. Eu tenho um apartamento
aqui perto. É um at todo arrumadinho. Fica na rua de trás. Estava
passando aí na frente e resolvi perguntar se você estaria livre...
Kelly cou muda. Diante do silêncio, ele ensaiou recuar:
– Posso vir outro dia, caso não possa me receber agora. Até porque já tá
tarde, né?
Curiosa, Kelly perguntou:
– Como você se chama?
– Marcos Kitano Matsunaga.
“Te avisei que a cidade era um vão”

A
briram-se as cortinas vermelhas. Entrou novamente em cena Tatty
Chanel, a pro ssional do sexo mais trambiqueira das cercanias do
Baixo Augusta. Um ano depois de ter cado sob a mira do fuzil de
Marcos Matsunaga, ela conseguiu dar uma guinada na vida. Com 29 anos,
estava “namorando” rme com Santiago, de 52, um ex-cliente português,
alto, cabelos castanhos, lábios nos, olhos esverdeados, nem gordo, nem
magro. Santiago era dono de uma pani cadora e confeitaria de médio porte
no bairro do Tatuapé, zona leste de São Paulo. Tatty fez programas com o
comerciante por seis meses antes de o casal selar “compromisso”. Foi ele
quem a pediu em “namoro”, prometendo uma vida de conto de fadas ao
estilo Julia Roberts no lme Uma linda mulher. Sem esperanças e dona de
um coração maltratado pela prostituição, Tatty, a princípio, não acreditou
nas palavras açucaradas do padeiro, embora ele fosse romântico como
nenhum cliente havia sido até então. Santiago nunca foi de mãos abanando a
um encontro com a pro ssional. Levava sempre doces típicos de sua terra
natal. Foram esses agrados, aliás, que zeram Tatty derreter-se aos poucos.
O confeiteiro costumava fazer para a sua amada trouxas de ovos, aqueles
rolinhos amarelos brilhantes mergulhados em calda de açúcar. Num desses
encontros, ele levara pudim abade de priscos, uma iguaria dulcíssima em
formato de quindim feita com toucinho. Os doces portugueses eram sempre
saboreados a dois no apartamento de Tatty depois de noites e noites de
muito amor.
Certa vez, Santiago e a prostituta estavam se deliciando com natas do
céu, um doce com camadas de bolacha triturada, chantilly com claras em
neve e creme de gemas. Entre uma mordida e outra, ele reclamou de sua
esposa, Matilde, com quem se relacionava havia 20 anos. A titular era brava
e ciumenta. A queixa do padeiro nem era exatamente sobre o temperamento
da mulher. O maior problema era a falta de interesse sexual entre o casal. Os
dois não transavam fazia três anos, apesar de dormirem na mesma cama
todas as noites. “Eu olho para aquela mulher nua e não sinto nada. Nem
nojo. Quando a beijo, parece que estou a lamber o corrimão de uma escada”,
dizia ele para a sua “namorada”. Na padaria, Matilde era responsável pelas
compras e contabilidade. Com receio de ser passada para trás, ela costumava
scalizar os dois caixas nas horas de maior movimento. Adorava
acompanhar de perto o dinheiro entrando na máquina registradora. O casal
tinha dois lhos gêmeos de 20 e poucos anos, ambos atletas de MMA (Artes
Marciais Mistas), uma luta violenta envolvendo técnicas de judô, caratê,
boxe, jiu-jítsu, muay thai, kickboxing e wrestling.
Mesmo ouvindo as lamúrias de Santiago sobre a esposa, Tatty não se via
no lugar de Matilde nem nos seus maiores delírios de amante apaixonada. A
pro ssional tinha muitos anos de estrada para criar planos fundamentados
nas queixas de clientes. Tudo começou a mudar quando o confeiteiro pediu
para Tatty se matricular no curso técnico em confeitaria do Senac para
aprender a preparar doces e sobremesas. Sozinha em casa, fechou os olhos e
viu a vida melhor no futuro. Chorou por horas com a oportunidade concreta
de sair de nitivamente da prostituição. Já com as lágrimas secas, inscreveu-
se numa turma do Senac, localizado no bairro da Aclimação, região central
de São Paulo. No ato da matrícula, teve de assinar o seu nome verdadeiro,
Deusarina. Ela aproveitou que ganhou uma carteirinha da instituição para
sepultar Tatty Chanel de vez e passou a ser chamada de Deusa, uma versão
abreviada. No início, Santiago estranhou a nova alcunha de sua amante, mas
acabou se acostumando. Enamorados, os dois só falavam de amor, sexo e
doces. Ele jurou por Nossa Senhora de Nazaré o seguinte: quando a sua
Deusa concluísse o curso de confeiteira, daria a ela um emprego na cozinha
de sua padaria. Até lá, segundo seus planos, ele já teria dado um chute no
traseiro de Matilde. O curso teria 800 horas divididas em 50 semanas. Deusa
foi até a Paróquia Santa Rita de Cássia, no bairro do Pari, ajoelhou-se aos
pés da padroeira das causas impossíveis, agradeceu pela graça de abandonar
a prostituição e pediu muita luz na nova fase da vida.
O destino de Deusa realmente estava mudando. Ela tirou o seu blog do
ar, parou de anunciar em classi cados e mudou o número do telefone celular
para não ser encontrada por ex-clientes, nem pelas amigas da zona. Até a
sua vida de cambalacheira havia cado para trás. Deusa ligou para a família
paraense e contou sobre os novos planos pro ssionais. Os pais caram
frustrados porque sonhavam em ter uma lha médica, mas apoiaram a
decisão. Lá pelo meio do curso, Deusa já havia aprendido a usar os
principais ingredientes da confeitaria, sabia selecionar alimentos e aplicar
técnicas de preparo, nalização e decoração. Fazia doces portugueses em
casa sob a supervisão de Santiago numa cozinha toda equipada por ele. Ela
tinha batedeira, liquidi cador, fogão, forno e até uma panela automática de
mexer massas. Deusa também contava com utensílios especiais, como
tigelas, medidores, espátulas, fouet e bico de confeitar. “Parecia que eu vivia
um sonho. Estava deixando de ser um pano de chão para me transformar
numa toalha felpuda”, contou, emocionada, em agosto de 2020.
Santiago também estava feliz. Não via a hora de recomeçar a vida ao
lado da amante doceira. Fazia planos com Deusa e passava o dia falando dos
lhos lutadores, porém dóceis como meninas, segundo frisava. Na rua,
Deusa encontrou-se com uma velha amiga do meretrício. Ela contou as
novidades e recebeu um alerta indigesto. A tal amiga pediu para Deusa não
sonhar muito alto porque Santiago já havia prometido algo semelhante a
outras prostitutas. “Ele não está me prometendo nada. A minha vida de
doceira já está acontecendo. Logo mais vamos morar juntos e vou trabalhar
com ele. E tem mais: se não der certo com ele, pelo menos eu saio desse
relacionamento com uma pro ssão. Estou vivendo o momento!”, ponderou
Deusa, apaixonada e cega, mas com um dos pés rmes no chão. “Então, tá.
Depois você me conta”, agourou a amiga. Esse encontro foi su ciente para a
semente da descon ança corroer as certezas da ex-prostituta.
Certa vez, Santiago arrumou as malas e foi passar um mês em Portugal
visitando parentes. A viagem estava marcada fazia tempo. Ele assegurou à
amante que iria sozinho, pois não aguentava mais a companhia desagradável
de Matilde, a esposa. Deusa con ava nele, mas, depois do alerta da amiga,
resolveu conferir se o padeiro falava a verdade. Com ele em terras lusitanas,
a jovem arrumou-se numa tarde de sábado e foi até a padaria. Ficou
impressionada com o tamanho do comércio. Havia mais de 20 mesas e um
uxo grande de clientes. Ela pegou uma comanda de consumo, passou por
uma roleta e foi até o balcão lateral. Pediu café preto e um pastel de Belém.
Os lhos lutadores de Santiago ajudavam no atendimento. Quando a amante
foi ao caixa pagar a conta, viu Matilde agitada, recebendo dinheiro vivo e
operando máquinas de cartão juntamente com outras funcionárias. Ficou
aliviada. Santiago realmente havia viajado sozinho.
Faltando um mês para Deusa acabar o curso de técnica em confeitaria,
Santiago começou a ser cobrado pela separação. O padeiro estava com
di culdade para terminar porque sua esposa havia descoberto recentemente
um câncer de mama, deixando toda a família abalada emocionalmente.
“Meus lhos estão destruídos. Choram feito duas mariconas. Não
conseguem mais lutar. É de partir o coração”, justi cou, choroso.
Apaixonada, porém sem qualquer esperança, Deusa pediu para terminar
com o comerciante e seguir a vida longe dele. Planejou pegar o certi cado
de confeiteira do Senac e voltar para Ananindeua, no Pará, onde abriria uma
pequena padaria com a ajuda dos pais. Santiago cou apavorado com a
possibilidade de perdê-la e cometeu uma loucura como prova de amor.
Empregou a ex-prostituta na padaria. Deusa só acreditou no devaneio
quando teve a carteira assinada.
No novo posto de trabalho, a amante aproximou-se de Matilde,
acompanhando o drama pessoal da esposa do seu “namorado”. Na padaria
de Santiago, Deusa atuava na gestão da cozinha, calculava estoque e
armazenamento de mercadorias, além de ajudar na fabricação de doces. No
dia a dia, de fato, não percebia sinais de amor entre Matilde e Santiago.
Resiliente, acomodou-se no papel de amada-amante por mais um ano. Já
Matilde era traída enquanto encarava tratamento pesado contra o câncer. O
triângulo amoroso era rodriguiano. Deusa chegou a acompanhar a sua rival
ao hospital. Numa das sessões de quimioterapia intravenosa, Matilde
comentou com a ex-prostituta sobre uma descon ança:
– O Santiago tem outra mulher!
– O que você disse?! – perguntou Deusa, apreensiva.
– Meu marido tem uma amante.
– De onde você tirou isso?
– Ele sai faz tempo com uma prostituta chamada Tatty...
Cansada pela fadiga do tratamento e tonta com os efeitos colaterais dos
medicamentos, Matilde se calou. Deusa cou com medo do desdobramento
daquela relação triangulada. Uma semana depois, ela marcou um encontro
com Santiago às 18 horas no Bar Brahma, no centro de São Paulo. A
princípio, a pauta da discussão seria a descoberta de Matilde. Pela primeira
vez, a ex-prostituta foi para o tudo ou nada. Pôs o confeiteiro contra a
parede e exigiu dele a separação, caso contrário iria embora de nitivamente.
Ela disse viver a plenitude de amar, mas estava cansada de ser a outra. Deusa
chegou a ser maldosa quando argumentou que Matilde sobreviveria às dores
da separação, pois já estava deprimida com o câncer. Sentados numa mesa
de canto, os dois bebiam cerveja. A amante tentou beijar o padeiro várias
vezes, mas ele esquivava-se. A todo momento Santiago olhava para o relógio.
Parecia ter algo marcado.
Quando faltavam 15 minutos para as 7 da noite, o tradicional bar já
estava começando a lotar. O padeiro, então, descartou Deusa
de nitivamente da sua vida. Pragmático, ele levou consigo uma pasta com
documentos e decretou a demissão da funcionária na mesa do bar,
forçando-a a assinar os papéis. Em seguida, Santiago mandou a alguém uma
mensagem pelo telefone celular e pediu para Deusa sumir da sua vida e
nunca mais pôr os pés no seu estabelecimento comercial. Nem deu tempo
de ela derramar a primeira lágrima. De repente, Matilde adentrou o bar
ladeada pelos dois lhos lutadores. A presença do trio surpreendeu somente
Deusa. Pela reação de Santiago, ele esperava a chegada da família. Debilitada
pelo câncer, Matilde se apoiou numa pilastra, apontou para Deusa e
anunciou aos lhos:
– É essa a puta que está destruindo a nossa família!
Os dois brutamontes agiram como se estivessem num ringue. Sem dizer
uma palavra, partiram para cima de Deusa mesmo estando em um lugar
público e badalado. Um deles, com pelo menos 1,90 m de altura, pegou a
amante do pai pelo cós da calça jeans e a arremessou, feito um saco de
batatas, por cima do balcão. Ela atingiu uma parede enorme de neon
contendo nichos com dezenas de garrafas de bebidas. A brutalidade com
que Deusa foi parar na instalação fez as lâmpadas incandescentes se
apagarem. Começou um corre-corre. Os clientes saíram às pressas do local.
O gerente chamou a polícia. Santiago pegou Matilde pela mão e foi esperar
os lhos no carro. Os dois lutadores não se intimidaram com o tumulto.
Deusa estava caída no lado de dentro do balcão e toda cortada pelos cacos
de vidro das garrafas, derramando sangue. Atrozes, os lhos do padeiro a
levantaram pelos braços e a jogaram contra as mesas do salão. A vítima já
estava perdendo os sentidos quando um dos lutadores a levantou do chão
pela blusa. O segundo elemento tirou a parte de cima da roupa da mulher
para desferir uma série de socos. Com o diafragma parcialmente paralisado,
ela teve di culdade de respirar. Impiedoso, o criminoso sentou mais um
golpe na região do abdome de Deusa, atingindo diretamente o fígado e,
consequentemente, o nervo vago, espalhando a dor pelo resto do corpo. O
cérebro de Deusa entrou em curto-circuito, provocando um desmaio.
Santiago voltou ao bar e ordenou que seus lhos deixassem o local
imediatamente, caso contrário seriam presos em agrante. Eles obedeceram.
Mal saíram do bar, os dois lutadores voltaram a itos à cena do crime.
Cruéis, eles pegaram Deusa do chão e a jogaram na carroceria da
caminhonete cabine dupla da família. Santiago dirigiu o carro até a esquina
da Avenida Celso Garcia com a Rua Tuiuti, no Tatuapé, zona leste de São
Paulo. Lá, os dois lutadores desceram da caminhonete, retiraram Deusa da
carroceria e a despejaram num contêiner de lixo. Ela foi encontrada
desacordada por garis do serviço de limpeza urbana de São Paulo e levada
ao pronto-socorro do Hospital Municipal do Tatuapé. A ex-prostituta cou
duas semanas internada. Teve quatro costelas quebradas, uma fratura
exposta no braço direito e passou por uma cirurgia bucomaxilofacial dois
meses depois para consertar a mandíbula. Os médicos encarregados do
primeiro atendimento chamaram a polícia. Deusa contou aos investigadores
que foi atropelada e não registrou ocorrência porque não se lembrava de
nada. Como os policiais conheciam Deusa da época em que era Tatty
Chanel, o caso foi deixado para lá. “Vão por mim, não vale a pena”, pediu a
vítima. Na verdade, ela temia pela vida. Aquele evento extremamente
violento selou a morte de nitiva de Tatty Chanel.
No hospital, Deusa descobriu ter perdido um bebê de quatro meses de
gestação que nem sabia estar esperando. Santiago pagou o estrago feito no
bar pelos lhos, mas a família cou impune, pois nunca foi denunciada.
Depois da tragédia, Deusa recomeçou a vida no Pará ao lado dos pais
evangélicos. Recuperada sicamente, montou uma padaria modesta no
bairro da Cidade Nova, município de Ananindeua. Nasceu nela uma fobia a
homens casados. Na parede do seu pequeno comércio havia um quadro no
qual se liam conselhos motivacionais da poetisa Cora Coralina: “Recria tua
vida, sempre, sempre. Remove pedras, planta roseiras e faz doce. Recomeça”.

* * *
No apogeu da sua jornada de garota de programa, Kelly transou com
Marcos Matsunaga pela primeira vez por mais de quatro horas ininterruptas
logo depois de se entupirem de vinho tinto. O casal se conectou e iniciou o
programa falando de amenidades e um pouco sobre a vida. Ela contou só o
básico de si. Disse ter trabalhado na função de técnica em enfermagem em
Curitiba, mas almejava conciliar uma carreira de advogada com a
maternidade. A vida triste em Chopinzinho cou guardada na gaveta. Já o
executivo da Yoki aproveitou os efeitos do álcool e fez a linha sincero:
admitiu ser casado e pai de uma criança. Contrariando o per l da maioria
dos clientes de Kelly, ele não depreciou o matrimônio. A rmou encontrar na
calmaria do lar o combustível necessário para viver uma vida libertadora
com outras mulheres. “Eu amo a minha esposa. Nem penso em me separar.
A Lívia é a mulher da minha vida. Mas não nasci para ser de uma só pessoa.
[...] Não posso me privar dos prazeres que o mundo tem para me oferecer”,
teorizou o executivo entre uma taça e outra. Kelly ouvia com paciência de Jó
aquele colóquio sem m madrugada adentro. Ela não reclamava porque
fazia parte dos seus serviços sexuais ouvir o chororô dos clientes como se
fosse terapeuta. Às vezes, Kelly assumia uma postura freudiana e convencia
os “pacientes” de que os seus dilemas estavam ligados ao inconsciente, à
sexualidade, aos sonhos e à vida interna. Quando não, seguia a corrente
junguiana e se colocava em pé de igualdade com os seus interlocutores,
interagindo e aconselhando-os a não se prenderem ao passado. Seu
programa tabelado em 300 reais a hora, aliás, era 100% mais caro do que
uma sessão com um especialista da área. Segundo a tabela de referência
nacional de honorários dos psicólogos, a sessão média do pro ssional
custava entre 100 e 150 reais em 2021. O valor é estabelecido pelo Conselho
Federal de Psicologia. “A prostituta sem talento para ouvir perde cliente.
Muitos deles nem almejam sexo. Querem apenas desabafar”, atestou Violeta,
a cafetina veterana.
Na “terapia” com Kelly, Marcos omitiu que era milionário. Esperta, no
entanto, a pro ssional com obsessão de subir na vida percebeu se tratar de
um cliente endinheirado. O empresário só usava roupas caras, calçava
sapatos de grife e mantinha no pulso relógios de luxo. Até seus acessórios,
como cintos, pulseiras e óculos escuros custavam os olhos da cara. No nal
da noitada, por volta das 4 horas, o executivo pagou 1.500 reais à garota pelo
programa estendido e despediu-se com um beijo, prometendo voltar. No
outro dia, Kelly recebeu um telefonema de Rodrigo Henrique Sano de
Souza, proprietário do MClass. Ele queria saber se a prostituta estava sendo
agenciada por Violeta. O cafetão cibernético não abria mão da exclusividade
no trabalho das garotas anunciadas em seu portal. Para não ser excluída do
catálogo virtual, ela negou conhecer a cafetina. A nal, o site ainda era o
maior canal para conquistar novos clientes. No mesmo dia, Rodrigo deletou,
por quebra de contrato, o per l de pelo menos dez garotas de programa
expostas no MClass. Elas estavam no site e trabalhavam simultaneamente
para agenciadores, o que irritava o cafetão.
Era raro Marcos ser romântico no primeiro encontro com as mulheres
cujo sexo era remunerado ou não. Mesmo quando sentia algo a mais, como
ocorreu com Ely e Luluzinha, o empresário era extremamente machista nos
comentários com os amigos. A única mulher poupada por ele nas rodas de
conversa era sua esposa, Lívia. Das pro ssionais, ele falava como se as
mulheres fossem objetos sexuais. Marcos costumava exaltar ou desmerecer
os seios e o bumbum das garotas de programa na hora de avaliá-las em mesa
de bar. No m do expediente, o empresário fazia happy hour no Salve Jorge
da Vila Madalena com Lincoln e Paolo, o amigo engenheiro de 39 anos
recém-chegado dos Emirados Árabes, onde mantinha negócios no ramo da
construção civil. O encontro era justamente para comemorar o retorno do
parceiro de putaria. Paolo era solteiro e amigo de longa data da dupla. Ele
também era viciado em garotas de programa. No entanto, ao contrário dos
dois executivos, era inconsequente. Chegou da temporada no exterior com
um fetiche mórbido de transar com cadáveres, tara conhecida como
necro lia. “É uma tendência em Dubai. Os caras estão dopando garotas de
programa para comê-las enquanto estão inconscientes, como se estivessem
mortas. Tudo é feito com consentimento. Tentei fazer isso por aqui, mas as
garotas são muito medrosas”, reclamou o engenheiro. Marcos e Lincoln
abominaram os fetiches de Paolo e foram chamados de caretas.
No meio da conversa, o executivo da Yoki falou de Kelly e Lincoln quis
saber detalhes do encontro da noite anterior. Pela primeira vez ele foi
respeitoso ao resenhar uma pro ssional. Exagerado, até. “É uma garota
graciosa, dona de um olhar doce. A pele era aveludada e cheirosa como o
pólen das ores. Muitas mulheres acordam feias, com a cara toda amassada.
Kelly, não. Ela já acorda em estado de beleza, sabe? Perfeita e única como
uma esmeralda...” Lincoln e Paolo riram do amigo e perguntaram se ele
estava apaixonado. Paolo sugeriu que Marcos publicasse uma resenha do TD
(test drive) com Kelly no fórum do guia de garotas de programa, chamado
por ele maliciosamente de “Procon da putaria”. “Quero saber se essa tal Kelly
é limpinha, se faz anal, se aceita uns tapas, se cavalga olhando nos olhos, se
naliza o oral... Essas coisas que valem estrelinhas. Ela cospe ou engole?”,
perguntou Paolo. Marcos reagiu como se nunca tivesse sido vulgar ao falar
das acompanhantes: “Você é muito escroto!”, rebateu, irritado.
Ainda no bar, Marcos teria recebido no celular a mensagem de uma
modelo belíssima chamada Emily Jean oferecendo-lhe um programa: “Tudo
bem? Sou uma acompanhante de luxo, so sticada, delicada, meiga e sensual.
Já z campanha para marcas famosas. Juntos, podemos ter momentos
incríveis. Venha tomar um vinho e ter uma noite agradável. Garanto que
não vai se arrepender de realizar suas fantasias comigo. Eu simplesmente
amo orientais. Atendo no meu at, nos Jardins, das 9 à meia-noite – 1.200
reais a hora. Aceito débito e crédito. Estacionamento privativo sem passar
pela portaria”.
Apesar da tentação, Marcos declinou do convite de Emily e enviou um
torpedo para o celular de Kelly perguntando como estava o seu dia. Ao lado
do texto seguiu um emoji de coraçãozinho. A garota de programa imaginou
se tratar de uma sondagem para um novo atendimento e respondeu dizendo
estar com a agenda cheia, mas poderia encaixá-lo no início da noite, caso
houvesse alguma desistência. Marcos sentiu ciúme ao imaginar Kelly
transando com outros homens e aceitou car na la de espera. Perto das 20
horas, a pro ssional enviou uma mensagem para o executivo dizendo estar
livre. Os dois se encontraram no at do Itaim, tomaram vinho e transaram
apenas uma vez. Quando estava perto de completar as duas horas de tempo
corrido, o celular de Kelly começou a emitir sinais sonoros avisando a
chegada de novas mensagens. Ela respondia e olhava para o relógio
insistentemente. Marcos perguntou quantos clientes havia depois dele. A
garota respondeu ainda ter pelo menos mais três. Como se falasse com a sua
secretária da Yoki, ele ordenou:
– Cancele tudo!
– Como?!
– Ligue para os outros clientes e desmarque. Vou car aqui até o café da
manhã! – anunciou.
Subalterna, Kelly obedeceu. Foi até a varanda e ligou para cada um deles
e deu como desculpa uma indisposição. Alguns pediram para remarcar o
encontro para o dia seguinte, tamanha era a fama de Kelly no MClass. Já o
empresário telefonou para a esposa falando de uma reunião inesperada na
fábrica da Yoki do município de Nova Prata (RS). Inventou um problema
com o maquinário usado para pesar e embalar paçoca, pé de moleque e
pasta de amendoim. Ingênua, Lívia acreditava nas falsas viagens do marido.
Nunca se deu ao trabalho de pelo menos ligar para a empresa e averiguar se
o executivo falava a verdade. Depois de enganar a esposa, Marcos mandou
buscar um jantar completo no restaurante Senzala, um dos seus preferidos
em São Paulo. De entrada, foi entregue uma salada pan-americana,
contendo rúcula, cenoura ralada, manjericão, tomate-cereja, muçarela de
búfala e molho mostarda. O prato principal era lé à cubana acompanhado
de palmito, banana e presunto à milanesa, servido com batata palha e
ervilhas. Marcos havia levado de sua adega particular duas garrafas de
Barolo, um vinho tinto encorpado de ótima complexidade aromática,
famoso pelas notas de frutas vermelhas e toques orais. O empresário gastou
pelo menos mil reais com o jantar e a bebida, e ainda pagou para a
pro ssional 2.500 reais em dinheiro vivo, pois saiu da casa dela quase ao
meio-dia.
No dia seguinte, ocorreu a tradicional festa das quintas-feiras na mansão
de Arethuza, evento ao qual Marcos, Lincoln e Paolo não faltavam nem em
caso de chuva de canivetes. A cafetina de luxo recepcionou os três amigos
apresentando um catálogo inédito com fotos de modelos recém-chegadas.
Paolo e Lincoln perguntaram por Penélope e levaram um choque quando
souberam do estado de saúde da garota. Ela estava enfrentando a fase mais
crítica da depressão, na qual passava o dia pensando em se matar. Lincoln
mandou uma mensagem de texto para a modelo, pedindo para vê-la. Ela
estava sem condições de sair de casa e impossibilitada de receber visitas. “Eu
só penso em dormir, dormir e dormir [...] Quando estou apagada, o tempo
passa mais depressa”, escreveu a modelo pelo celular. O supermercadista
cou tão triste que perdeu a libido mesmo tendo à disposição as prostitutas
mais belas do mercado.
Paolo chamou Arethuza num canto e pediu um programa com Penélope,
mesmo ela estando doente. O engenheiro tinha ouvido de Agustín que a
modelo cou prostrada na cama “feito um defunto”, em Buenos Aires. Com
isso, acendeu no engenheiro a vontade de pôr em prática seus fetiches
mórbidos – em voga em Dubai, segundo ele. A cafetina cou de sondar a
possibilidade e orçou o programa especial em 20 mil reais. Ele topou, desde
que houvesse sigilo absoluto. Na mesma noite, Arethuza convenceu Paolo a
sair da mansão com Alícia, a atriz-modelo-manequim apelidada de Estrela
D’Alva. “É uma garota encantadora. Você vai se apaixonar”, avisou a cafetina.
“Ela abre a porta dos fundos?”, perguntou o engenheiro. “Não objeti que as
minhas modelos”, debochou a empresária.
Naquela noite, Marcos e Lincoln saíram da mansão de Arethuza sem a
companhia de prostitutas. Mas nem por isso a conta dos dois foi barata. A
dupla de amigos comeu aperitivos e bebeu uísque até carem bêbados. No
nal, cada um pagou 1.200 reais. Da mansão, o empresário seguiu
embriagado dirigindo a BMW rumo ao at de Kelly mesmo sem ter
marcado hora. Passou pela portaria com tanta empá a que o recepcionista
não teve coragem de interpelá-lo. Tocou a campainha, mas a jovem não
atendeu. Ele insistiu com batidas fortes na porta. Depois de alguns minutos,
Kelly nalmente atendeu vestindo apenas um roupão. Ela estava com um
cliente. Bêbado, Marcos espumou de ciúme:
– Você está me traindo?
– Marcos, estou trabalhando...
– Eu quero você!
– Pois, então, marque uma hora!
Cambaleante, o executivo pegou o celular do bolso e ligou para Kelly ali
mesmo do corredor. Começou a falar sozinho como se ela tivesse atendido,
apesar de a garota ainda estar à sua frente. “Amorzinho, aqui é o Marcos.
Estou ligando para marcar uma hora agora. Estou chegando hein...” Kelly riu
da encenação patética e pediu para ele voltar no dia seguinte. De repente,
uma voz masculina vinda do quarto perguntou se a pro ssional iria demorar
para voltar à cama. A garota de programa fechou a porta e continuou o
atendimento. Paciente, o empresário sentou-se no corredor. Decidiu car ali
até o cliente de Kelly sair do apartamento.
Depois de quase duas horas de espera, a porta se abriu novamente e um
homem bem apessoado saiu da alcova da pro ssional. Marcos se levantou e
adentrou o apartamento. Kelly pediu para ele sair, pois um outro cliente
estava a caminho. O empresário a ignorou e se jogou na cama da
acompanhante, dormindo imediatamente por causa do efeito do álcool.
Kelly ligou para o próximo freguês cancelando o encontro. Marcos só
acordou no dia seguinte às 10 da manhã com dezenas de ligações não
atendidas da esposa e do trabalho. Desculpou-se e saiu às pressas sem pagar
pela hospedagem. No meio da tarde, ele mandou uma mensagem com
textão se desculpando mais uma vez e perguntando quanto ele devia em
dinheiro. Kelly estipulou o encontro sem sexo em 1.200 reais. Para acertar a
conta e se retratar pessoalmente pela inconveniência, o empresário marcou
um jantar no D.O.M, um dos restaurantes mais badalados de São Paulo –
com grife do chef Alex Atala. Kelly cou tão deslumbrada com o convite que
saiu para comprar roupa nova.
Às 20 horas, Marcos passou para pegar a acompanhante. Kelly usava um
gurino vintage: vestido mídi rosa com estampa de ores bem justo na
cintura, decote profundo em V e alças nas. Ele usava traje social do alfaiate
Vasco Vasconcellos, um dos mais renomados da alta-costura paulistana.
Kelly teve uma sequência de surpresas. Primeiro, com a pontualidade do
empresário; segundo, com sua BMW de luxo; terceiro, porque ele se deu ao
trabalho de descer do carro e abrir a porta para ela entrar. Esse tipo de
cavalheirismo custa pouco, mas vale muito, pois ca impregnado na cabeça
de muitas mulheres. Nunca – em tempo algum – um homem havia feito esse
gesto de gentileza tão respeitoso para Kelly. Era impossível não ser
enfeitiçada pelas atitudes afáveis e elegantes de Marcos naquela noite. No
restaurante, os dois entraram de mãos dadas. Ao chegarem à mesa, ele
arrastou a cadeira delicadamente para ela se sentar. O casal cou
aconchegado numa área bem reservada do salão de pé-direito alto e
ambientação destacada pelo equilíbrio harmonioso entre o clássico e o
moderno.
De todas as garotas de programa que passaram pelos braços de Marcos,
só uma teve o privilégio de desfrutar da so sticação do D.O.M.: sua ancée
Gizelle. Levando em conta o naipe de algumas mulheres contratadas pelo
empresário, nem fazia sentido levá-las ao local. Além de ter dinheiro para
frequentar o ambiente, o cliente precisava entender de gastronomia para
desfrutar o cardápio com sabores apurados da cozinha brasileira
contemporânea. O restaurante já foi detentor de estrelas no prestigiado Guia
Michelin. Kelly, por exemplo, nunca havia estado em um lugar tão re nado.
O casal iniciou a noite com uma garrafa de champanhe Dom Pérignon Brut.
Como a jovem não entendia patavina de gastronomia, o executivo passou
parte da noite falando da comida servida pelos garçons. O primeiro prato
quente a chegar à mesa foi palmito de pupunha servido com um aromático
caldo com tiras nas de nori e hortelã. Tão logo o garçom pôs a bebida nas
taças, Marcos e Kelly brindaram. Curiosa, ela perguntou:
– Estamos celebrando o quê?
– Ao nosso encontro! – respondeu ele, sem cerimônia.
Depois do brinde, o casal saboreou batata-doce com ervas carbonizadas
em pó e um inspirado molho béarnaise de chimarrão. A cada prato servido,
Marcos seguia com os comentários sobre a combinação exótica dos
ingredientes. Fascinada pelos conhecimentos gastronômicos do empresário,
Kelly prestava atenção como se a sua vida dependesse daquela aula. Por m,
jantaram carapau defumado com rôti de peixe azul com pancs – bertalha,
beldroega e taioba. Durante a sobremesa feita de espuma de goiaba com tela
crocante de queijo tulha, Marcos se aproximou de Kelly e deu nela o
primeiro beijo da noite. Na plenitude da sua existência, ela retribuiu de
forma eloquente, dizendo nunca ter sido beijada daquele jeito. O empresário
a levou para o seu at. Assim que entrou, Elize deu um grito de pavor. Havia
um javali selvagem enorme no canto da sala em posição de ataque. O animal
estava embalsamado, mas a técnica de conservação era tão avançada que o
bicho parecia vivíssimo e ameaçador. Marcos praticava caça esportiva e
costumava levar para casa alguns bichos considerados troféus. Aos poucos,
ela se acostumou com a presença do javali. Deitaram no tapete bem perto do
animal e zeram amor a noite inteira. Pela manhã, ele teve uma sensação tão
estranha quanto curiosa, que jamais conseguiu explicar. O empresário fez
um café da manhã dos deuses para a sua amada e o serviu na cama. Para
ultrapassar a fronteira que separa o afeto genuíno do comprado, ele fez uma
pergunta categórica:
– Qual o seu nome verdadeiro?
– Kelly! – respondeu, fofa como um urso de pelúcia.
Marcos a encarou rmemente e abriu o seu coração:
– Estou apaixonado por você de forma arrebatadora!
– Jura?
– Por todos os santos do universo! E você?
– Quando estiver apaixonada, te direi o meu nome verdadeiro.
– Vou esperar pacientemente – avisou o empresário.
Em seguida, ela começou a se arrumar para ir embora. Na despedida, foi
objetiva:
– Somando a conta de ontem com a de hoje, são 4 mil reais!
Acostumado a lidar com todo tipo de prostituta mercenária, Marcos não
hesitou em pagar o que devia a Kelly. Num primeiro momento, ele cou
chateado com a frieza da cobrança. Mas o sentimento logo passou. No dia
seguinte, ele mandou uma mensagem para a jovem perguntando como
estava a agenda dela no período da tarde. Ela respondeu estar
sobrecarregada. Era mentira. Todos os clientes vespertinos foram
desmarcados. Ela havia reservado o tempo para conversar com Chantall, sua
melhor amiga. As duas se encontraram no Café Suplicy dos Jardins e
puseram o papo em dia. Para variar, Chantall estava se recuperando de
hematomas no rosto. Ela falou sobre o avanço da doença da mãe e da dívida
interminável de IPTU. Kelly pediu conselhos para administrar a janela que
se abrira para ela entrar na alta sociedade paulistana:
– Conheci um homem rico. Ele está apaixonadíssimo por mim.
– O que ele faz?
– Não faço a menor ideia. Só sei que ele tem dinheiro e é casado.
– Como é o sexo?
– Péssimo. Sem nenhuma criatividade e ainda tem ejaculação precoce! –
entregou Kelly.
Nunca se saberá se a informação a seguir era verdadeira ou falsa. Em
2004, depois de sair com Marcos invariavelmente por dois meses, Kelly
garantiu a Chantall estar apaixonada por ele. Poderia ser verdade? Sim,
poderia, pois fazia tempo que os homens a olhavam como se ela fosse um
lixo de mulher. O empresário lhe dava carinho e atenção. Kelly poderia estar
mentindo? Sim, poderia, pois ela nunca escondeu o plano ambicioso de
escapar da prostituição pelas alças de um homem rico. Marcos e Kelly
passaram mais um mês se vendo pelo menos duas vezes na semana. Eram
encontros românticos, porém sempre remunerados. Ela alternava o
empresário com outros clientes. Certa vez, ele ligou para Kelly e fez mais um
convite para jantar. Estrategicamente, ela recusou e deu como desculpa estar
ocupada com clientes. Ele, então, perguntou quanto ela conseguia por mês
se prostituindo. Kelly estimou a sua receita mensal em 30 mil reais, frutos de
encontros em seu at e acompanhando executivos em viagens. “Sou uma
mulher solteira. Tenho contas para pagar, inclusive aluguel. Ninguém me
ajuda. Vou começar a fazer cursinho pré-vestibular e a mensalidade custa
caro. Quero ser advogada. Não posso parar de trabalhar”, argumentou.
Marcos pediu um encontro à noite para falar de negócios. Na tarde do
mesmo dia, Rodrigo, proprietário do site MClass, ligou para Kelly soltando
fogo pelas ventas. Ele havia descoberto que Violeta encaminhava clientes
para ela. O cafetão cibernético avisou que excluiria o seu per l do site nas
próximas horas: “Você é o tipo de puta que se fode na vida porque é
desonesta!”, esbravejou ele.
Kelly mandou Rodrigo à merda e bateu o telefone na cara dele. Ligou
para Violeta e avisou que, a partir daquele momento, dependia só dela para
conseguir novos fregueses. Conforme o combinado, à noite, Marcos foi ao
encontro de Kelly e se declarou pela enésima vez. Sabendo da fome das
garotas de programa por dinheiro, ele propôs:
– Quanto você quer para namorar comigo?
– Trinta mil reais por mês!
– Se eu te pagar esse salário até o quinto dia útil do mês você será só
minha?
– Exclusivamente sua! – prometeu Kelly, com voz doce.
– Se eu te bancar, você tira as fotos do MClass?
– Com certeza!
A bem da verdade, as fotos de Kelly já não estavam mais expostas no site
de prostituição no momento em que a proposta irrecusável foi feita. Rodrigo
havia excluído toda a galeria horas antes. Marcos navegou pelo MClass
depois de fechar negócio com Kelly e não a encontrou entre as garotas de
programa. Eufórico, ele passou na oricultura, comprou lírios brancos e
bateu à porta do at da sua amada. Emocionado, perguntou:
– Qual o seu nome?
– Elize Araújo! – respondeu ela, com uma honestidade tocante.

* * *

A depressão é um transtorno psiquiátrico cuja alteração cerebral faz o


paciente ter mudanças de humor, acarretando profunda tristeza ou
desânimo diante da vida. Trata-se de uma doença crônica, recorrente,
complexa e, de certa forma, ainda muito subestimada. Para boa parte da
população, depressão é frescura. “É incrível como muita gente ainda pensa
assim. É importante distinguir a tristeza patológica daquela transitória
provocada por acontecimentos difíceis e desagradáveis, mas que são
inerentes à vida de todas as pessoas, como a morte de um ente querido, a
perda de emprego, os desencontros amorosos, os desentendimentos
familiares, as di culdades econômicas...”, esclareceu o médico Drauzio
Varella.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 300 milhões
de indivíduos sofrem de depressão no mundo. No Brasil, em 2019, antes da
pandemia do coronavírus, pelo menos 12,5 milhões de pessoas sofriam
desse mal, elevando o país à quinta maior prevalência do planeta, de acordo
com a OMS. Um estudo da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) concluiu que 40% da população brasileira
teve depressão durante a pandemia por causa do isolamento social.
Independentemente das medidas restritivas, o transtorno pode aparecer na
infância, mas é mais comum a partir da adolescência. Assim, a maior parte
dos casos se concentra na extensa faixa da população de 14 a 60 anos. A
causa exata da depressão, em que há disfunção bioquímica cerebral, pode ter
in uência de fatores genéticos, ambientais e no organismo, e podem,
inclusive, estar combinados. Sabe-se que mulheres são mais suscetíveis
devido à maior oscilação de hormônios no período fértil.
Diversas pesquisas associaram o trabalho das prostitutas, no Brasil e no
exterior, à depressão. Um estudo intitulado “Prevalência de sintomas
depressivos em uma amostra de prostitutas de Porto Alegre”, feito pela
Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul com 97 pro ssionais do sexo com idades entre 18 e 60 anos, atestou
que quase 70% delas tinham depressão. Uma outra pesquisa, da Faculdade
de Medicina de Barbacena (Fame), entrevistou 216 prostitutas de Belo
Horizonte e concluiu que 57% delas estavam patologicamente deprimidas
em 2014. Já uma pesquisa feita na Nigéria, intitulada “Prevalência e
correlatos da violência contra trabalhadoras do sexo em Abuja”, concluiu que
as garotas de programa apresentaram problemas de sono, irritabilidade,
ansiedade, fobia, ataque de pânico, compulsão, obsessão, fadiga e
preocupação com a saúde física, além de tentativa de suicídio, num patamar
muito superior quando comparadas às pro ssionais de outras atividades,
como médicas, operárias da construção civil, professoras e até policiais.
Em maio de 2004, Penélope foi hospitalizada numa clínica particular
para tratamento da depressão e ideação suicida. A decisão de interná-la foi
dolorosa para Marieta, sua mãe. O estopim foi a tentativa frustrada de se
matar saltando da varanda do apartamento, logo após chegar de Buenos
Aires, onde havia desmaiado durante um programa com Agustín. Foi Ruy, o
irmão mais novo, de 22 anos, quem salvou a modelo naquela noite. O jovem
estava em seu quarto jogando videogame. Por sorte, a janela com acesso à
varanda estava aberta. Ele ouviu Penélope falando sozinha e foi ao seu
encontro. O rapaz viu a irmã se preparando para saltar. Num ímpeto, ele
correu, agarrou a cintura de Penélope e a puxou para o lado de dentro da
sacada. “Foi por um triz”, de niu Ruy. A partir desse evento, Marieta
mandou instalar uma enorme tela de proteção de aço inox nas janelas e em
toda a extensão da sacada. Obstinada em salvar a lha, a mãe passou a
peregrinar com ela por clínicas na capital e no interior de São Paulo por seis
meses. Até então, Marieta desconhecia a origem daqueles transtornos.
Também não descon ava da atividade de prostituta da jovem, já com 26
anos.
O tratamento de Penélope custava caro para o bolso de Marieta. Sem
renda, a modelo começou a gastar uma boa quantia do dinheiro guardado
ao longo da carreira. A mãe também lançou mão das suas economias. Para
se ter uma ideia do peso dessas despesas, uma única internação de 25 dias
numa fazenda de repouso no município de São José dos Campos custou à
família 45 mil reais. Quando Penélope foi levada de volta para casa, Marieta
estava bastante endividada e atormentada pelo medo de a lha atentar
novamente contra a própria vida. Para evitar o pior, a mãe acessou a conta
bancária da modelo – com consentimento – e contratou três enfermeiras
para ministrar os antidepressivos da paciente e vigiá-la 24 horas por dia para
evitar uma desgraça. Nessa época, ela estava se alimentando bem e recebia
visitas semanais de um psiquiatra e de uma psicoterapeuta. Essa segurança
custava caro, mas tranquilizava Marieta na hora de sair de casa para
trabalhar em seu escritório de arquitetura.
Certo dia, Arethuza ligou para Marieta e se identi cou como amiga e
agente de Penélope. A cafetina desejava fazer uma visita. Numa tarde de
sábado, ela bateu à porta do apartamento da Vila Mariana, onde a modelo
estava recolhida. A jovem alternava as horas do dia deitada na cama e
sentada numa poltrona divã com assento de couro na varanda, olhando o
horizonte como se, além dele, de fato, houvesse algum lugar bonito e
tranquilo para viver em paz, conforme descrito na canção de Roberto e
Erasmo Carlos.
Segundo relatos de Marieta, naquela época, era um sacrifício convencer
a lha a tomar banho e dar um passeio de carro pela cidade. “Quando ela
caminhava pelo apartamento, mesmo apática feito um zumbi, já era motivo
de comemoração”, lembrou a mãe. Durante a visita à modelo, Arethuza
percebeu o tamanho da preocupação familiar quando viu o imóvel todo
protegido com as telas de aço. Antes de entrar no quarto da jovem, a cafetina
teve uma conversa reservada com Marieta na sala de estar. Aos prantos, a
mãe disse não suportar ver a lha esvaindo-se numa cama pensando em
suicídio desde o amanhecer até o céu perder o azul. “Minha menina tinha
tanto talento para ser feliz. Agora cultiva ideias de morte. Não me conformo.
Ela viveu muito pouco para abrir mão do futuro assim tão facilmente”,
lamentou Marieta, soluçando. Ela também contou sobre as altas despesas
com o tratamento. “Nós não somos ricos. Todas as vezes que o médico vem
aqui são pagos 1.200 reais pela visita”, observou a mãe.
Quando Arethuza entrou no quarto, Penélope estava sentada na
varanda. A jovem que sempre chamou a atenção pela alegria e beleza estava
feia, sorumbática e marcada com cicatrizes nos pulsos. Vestia-se feito um
molambo. A enfermeira aproveitou a visita da cafetina e saiu, deixando as
duas a sós. Arethuza se aproximou, segurou o queixo da modelo com os
dedos e virou a cabeça dela de um lado para o outro como se zesse uma
inspeção. “Você está cadavérica. Mas os traços do rosto continuam lindos.
Isso que importa”, observou a empresária. Penélope não esboçou qualquer
sentimento ao ouvir tal comentário. “Vamos cuidar dessa palidez?”,
interrogou Arethuza, retoricamente. Ela abriu a bolsa e tirou uma nécessaire
com kit de maquiagem completo. Começou limpando a pele do rosto de
Penélope com um gel adstringente e hidratou na sequência com água
termal. Passou um primer para fechar os poros e deixar a pele homogênea.
Depois aplicou um corretivo na área dos olhos, fazendo as manchas escuras
desaparecerem. Um pó bronzeador camu ou o aspecto mórbido da face da
modelo. Com um pincel, Arethuza passou iluminador e uma sombra
brilhosa em pontos-chaves, trazendo uma falsa luminosidade. Finalizou
com um blush dourado, ressuscitando a beleza do rosto. Em seguida, pôs um
vestido casual na modelo e fez um penteado simples. De repente, Penélope
pareceu ter recuperado a autoestima. Aparentemente empolgada, ela pediu
um instante à cafetina, pegou o seu diário na gaveta e se trancou no
banheiro por uma hora. Arethuza cou impaciente e bateu na porta para
apressá-la. A acompanhante de luxo saiu de lá sorridente, guardou o diário
de volta na gaveta e se disse pronta. A cafetina passou pela sala puxando-a
pelo braço e anunciou para Marieta:
– O dia está muito bonito lá fora para ela car trancada neste
apartamento. Vamos dar um passeio e não temos hora para voltar!
– Isso! Leva mesmo! Mostra para a minha lha que, enquanto houver
vida, tem jeito! – incentivou a mãe, emocionada.
Antes de Penélope entrar no elevador com Arethuza, Marieta seguiu as
duas até o corredor e apertou entre as suas mãos o rosto da lha. Chorando
muito, a mãe contemplou intensamente aquele momento como se fosse uma
despedida. Marieta deu um beijo intenso e desesperador na primogênita. Só
a soltou quando o elevador deu o sinal sonoro avisando que estava ali.
Marieta viu as duas portas se abrirem para a lha entrar e se fecharem
simultaneamente, levando-a para longe. Mesmo sem avistá-la, a mãe gritou
três vezes: “Eu te amo para sempre, minha lha!”. Penélope se emocionou e
respondeu em voz alta “eu também te amo, mãezinha”. Arethuza ouviu e não
entendeu aquele excesso de amor. Em casa, Marieta dispensou a enfermeira
para car sozinha. Abriu uma garrafa de vinho branco para relaxar. Em
seguida, foi até o quarto da lha e sentou-se na poltrona divã da varanda e
chorou copiosamente. Tentava encontrar o ponto exato onde sua família
começou a se deteriorar. Ruy chegou em casa, viu a mãe aos prantos e tentou
consolá-la. Ficaram abraçados por horas em silêncio.
No carro de luxo de Arethuza, Penélope descobriu o verdadeiro motivo
do passeio: estava sendo levada para uma suíte do Hotel Unique, no Jardim
Paulista, onde Paolo a aguardava para um programa. O engenheiro caria
com ela até a manhã do dia seguinte. Penélope recusou o trabalho e pediu
para voltar para casa, pois não tinha a menor condição de transar. “Estou
sem energia”, ponderou. A cafetina parou o carro, irritada, e passou-lhe uma
carraspana:
– Olha aqui, garota, a sua mãe me contou que está falida por causa das
suas despesas médicas. [...] Veja só você... De modelo de sucesso, se
transformou num estorvo para a sua família! [...] O seu programa com o
Agustín foi um fracasso, lembra? Ou a depressão te deixou sem memória?
Até a sua passagem de volta de Buenos Aires eu tive de pagar para aquele
velho sovina.
– Sinto muito...
– Sinta mesmo, pois você está sem um tostão na bolsa e ainda recusa um
cliente especial como o Paolo. Ficou louca? – oprimiu a cafetina.
Penélope parou de argumentar e mergulhou numa inércia. Arethuza se
deu conta de que havia perdido a mão e passou a falar com voz macia:
– Filha, ajude a sua família. Vai lá no hotel e encontre o cliente. O Paolo
é um homem bonito. Não precisa fazer nada muito elaborado. Ele está
sabendo da sua situação. Basta você se deitar na cama e abrir as pernas. Se
puder, nja-se de morta – sugeriu Arethuza.
Abalada com a revelação de estar empobrecendo a mãe, Penélope
resolveu aceitar o programa e foi deixada na porta do hotel. Ela pediu para a
cafetina repassar a sua parte do cachê a Marieta. Arethuza disse que ela não
receberia nenhum centavo nesse encontro por causa da dívida contraída
com Agustín em Buenos Aires. “Eu ainda tive despesas extras porque
mandei um funcionário até a Argentina te apanhar, pois você não dava
conta nem de entrar num avião”, cobrou Arethuza. Só a partir do programa,
ela passaria a ter saldo positivo com a empresária.
Penélope seguiu para uma suíte de luxo cuja diária custava 1.200 reais. A
acomodação confortável e intimista tinha uma cama queen size e uma vista
espetacular do Parque Ibirapuera. As amplas janelas circulares permitiam a
entrada de luz natural. Paolo já estava lá à sua espera no quarto so sticado.
Os dois beberam champanhe freneticamente e se beijaram até o sol se pôr. A
mistura de álcool com os antidepressivos intensi cou o efeito das drogas,
comprometendo a ação no sistema nervoso central da modelo. Antes de
tirar o vestido, ela sentiu tremores e teve as habilidades cognitivas reduzidas
ao mesmo tempo em que os sintomas da depressão se intensi caram. No
nal da segunda garrafa de champanhe, ela perdeu a capacidade de
reconhecer a si e o ambiente. Despencou na cama do hotel em estado
aparente de coma. Paolo aproveitou a falta de consciência da jovem e
transou com ela por mais de três horas, realizando todos os seus fetiches
mórbidos.
Até hoje não se sabe em que circunstâncias Penélope acordou nem como
ela saiu do hotel, muito menos por onde caminhou. Houve um lapso de 24
horas. Seus últimos passos foram reconstituídos a partir das 3 da madrugada
do dia 23 de novembro de 2004, bem no m da Rua Oscar Freire, no bairro
de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Em plena primavera, a jovem foi vista
vagando perto da estação Sumaré do Metrô. Na esquina da Oscar Freire com
a rua Professor Ribeirão Meira, ela virou para o lado oposto e subiu 37
degraus distribuídos em quatro lances de escada para chegar à estação
suspensa do trem. Contornou e subiu mais 36 degraus da escada para
pedestres e alcançou o cume do famoso viaduto da Avenida Doutor
Arnaldo, uma edi cação de 30 metros de altura sobre a Avenida Sumaré,
local muito procurado para a prática de rapel.
Do alto do monumento, tinha-se uma das vistas livres mais bonitas da
capital. De um lado, encontravam-se as luzes do bairro do Pacaembu e parte
de Perdizes e Pompeia. Do outro lado, avistavam-se os muros do Cemitério
Santíssimo Sacramento. O viaduto era cercado por um oásis verde, graças às
árvores frondosas plantadas em duas praças públicas, localizadas na parte
baixa da edi cação de concreto. Bem ao lado cava o Santuário Nossa
Senhora de Fátima. De cima da ponte, a vista do céu era panorâmica porque
os prédios altos da metrópole cavam pequenos diante de tamanha altitude.
Embaixo, corria a Avenida Sumaré, com duas pistas largas, divididas em
quatro faixas marcadas com traços brancos. O lugar cava mágico na
madrugada, quando o silêncio se impunha, acalmando o espírito. Nesse
paraíso, Penélope cou em paz consigo mesma. A modelo caminhou doente
pela calçada estreita, olhando para a parte baixa do viaduto. Como era de se
esperar, Ariel surgiu à sua frente suspenso no ar pelas suas asas invisíveis e
assobiando uma cantiga melancólica. A criança interagiu:
– O que você está sentindo, amor?
– Sinto que falta pouco para a vida acabar...
– Segura só um pouquinho, por favor. Espere o momento exato, pois
nem todo mundo que cai dessa altura passa para o lado de cá – pediu a
criatura sobrenatural.
Um homem de carne e osso passava pelo local de carro e percebeu o
movimento suicida de Penélope. Ele parou, desceu e se aproximou, tentando
impedir a tragédia. Iniciou uma conversa perguntando se ela tinha cigarro.
A modelo o ignorou, tirou os sapatos e en ou os pés numa das aberturas da
mureta de mais ou menos um metro de altura. Em seguida, virou o corpo
para o abismo.
“Estou num lugar escuro e sofrido, com a autoestima e o senso de vida
totalmente destruídos. [...] Tenho muito medo do mundo. [...] Venho sendo
consumida por uma solidão existencial e in nita desde que meu pai
quebrou o meu espírito de forma irreparável. Mas estou a caminho do
inferno para acertar as contas com esse monstro. [...] Tem horas que grito
por socorro, mas ninguém me escuta. [...] O meu sopro nal nesse mundo
será como uma estrela que perde o brilho lentamente com a claridade da
manhã. [...] Eu amarei eternamente a minha querida mãe Marieta e meu
irmãozinho Ruy. [...] À minha família, obrigada de coração pelo
acolhimento, pela empatia e pela paciência. Me desculpem por todo
sofrimento e pela vergonha que poderei causar depois de tudo. [...] Só mais
uma coisa: estou me matando para me livrar da dor e não da vida.” Essas
palavras estão entre aspas porque foram extraídas do diário de Penélope, um
encadernado com mais de 2 mil páginas.
De repente, a jovem empurrou o viaduto para trás, obedecendo a um
comando do seu subconsciente. Saltou em silêncio de uma altura
equivalente à de um prédio de dez andares. A gravidade puxou a jovem para
o chão numa velocidade assustadora. Penélope atingiu o asfalto da Avenida
Sumaré a tempo de ser esmagada por uma carreta de três eixos e 18 rodas
carregada de frutas.
Marieta recebeu uma ligação por volta das 15 horas para comparecer ao
Instituto Médico Legal (IML) e reconhecer o corpo da lha. No dia seguinte,
ela foi cremada numa cerimônia íntima. A mãe achava que a notícia da
morte de Penélope, a cremação, o funeral e a missa de sétimo dia fossem os
momentos mais dolorosos de toda a sua vida. Ela estava enganada. Arrumar
o quarto da lha foi um baque muito mais forte porque ela encontrou o
diário secreto. Marieta cou tão abalada com a leitura que precisou ser
hospitalizada com um forte estresse emocional provocado por aumento da
frequência cardíaca e da pressão arterial. Ela descobriu todos os segredos da
lha e passou a odiar o mundo e a si mesma. Três meses depois, a arquiteta
procurou amparo emocional num grupo de familiares enlutados por
suicídio do Centro de Valorização à Vida (CVV). A partir daí, sua
incompreensão desapareceu.
Pelas contas da Organização Mundial da Saúde (OMS), suicídio é a
segunda principal causa de morte de jovens com idade entre 15 e 29 anos no
mundo, perdendo apenas para acidentes de trânsito. Pelo menos 800 mil
pessoas ceifam a própria vida todos os anos no planeta. Quedas, ingestão de
pesticidas, enforcamento e uso de armas de fogo estão entre os métodos
mais comuns. O suicídio é considerado um problema de saúde pública e um
fenômeno multicausal, ou seja, não tem uma única causa de nida, mas é
in uenciado por uma combinação de fatores, como transtornos mentais e
questões socioculturais, genéticas, psicodinâmicas, losó co-existenciais e
ambientais. No Brasil, a maioria das vítimas é formada por homens com
idade entre 10 e 29 anos. Segundo o CVV, é possível prevenir esse mal
identi cando sinais de alerta no indivíduo. Exemplos: falar sobre querer
morrer, sobre não ter propósito, sobre ser um peso para outras pessoas ou
estar se sentindo preso a uma dor insuportável, como ocorreu com
Penélope. Outros sinais são procurar formas para se matar, uso excessivo de
drogas e álcool, dormir muito ou pouco, isolamento social e alterações
repentinas de humor. Para ajudar uma pessoa com tendências suicidas, o
CVV sugere basicamente não deixá-la sozinha, esconder armas de fogo,
bebidas e objetos cortantes, além de levar a pessoa a um especialista.
Aos grupos de mães do CVV, Marieta contou ter entrado em estado de
choque logo após a morte violenta de Penélope. Em seguida, veio uma fase
de revolta e ódio da lha por ter feito o que fez. A etapa seguinte foi de culpa
colossal. Marieta conta ter se autocastigado por sentimentos contraditórios e
exacerbados. Ela sofreu por ter dormido por duas décadas com o homem
que estuprava a sua lha; sofreu por não tê-la resgatado da prostituição; por
tê-la deixado sair de casa no dia em que se matou; e até por não ter lido o
diário de Penélope e, quem sabe, evitar o destino trágico da modelo.
Marieta quase enlouqueceu quando descobriu nos encontros no CVV
quais foram os sinais dados pela lha para avisar involuntariamente que
estava prestes a se matar. “Eu me fazia todos os dias uma série de perguntas:
O que eu poderia ter feito? Por que não z isso? Por que não z aquilo?
Minha lha está no céu ao lado de Deus? Ou está no purgatório? [...]
Demorei dez anos para compreender todos os acontecimentos envolvendo a
sua morte e começar a me perdoar”, contou em outubro de 2020. Em um dos
encontros de mães que perderam lhos para o suicídio, elas se deram as
mãos e recitaram bastante emocionadas em forma de jogral a canção “As
vitrines”, de Chico Buarque, cuja letra está transcrita no diário de Penélope.
Trecho da poesia diz: Eu te vejo sumir por aí / Te avisei que a cidade era um
vão / Dá tua mão, olha pra mim / Não faz assim, não vai lá, não.

* * *

Depois de negociarem as cláusulas do “namoro”, Marcos e Elize caram


insuportáveis de tanto chamego e derramamento de afeto em público.
Andavam pelos bares e restaurantes mais badalados de São Paulo
grudadinhos, cheios de cochichos e sorrisinhos íntimos. Lincoln, Paolo e
Alícia eram os principais amigos do casal. Fora dessa órbita, Chantall
continuava con dente de Elize, mas ela não costumava frequentar as rodas
do executivo da Yoki porque sempre estava com hematomas no rosto. Nos
encontros sociais, Elize e o empresário cavam num tal de “amorzinho” pra
lá, “benzinho” pra cá seguido de beijos açucarados de novela. Chamava a
atenção dos amigos de Marcos o excesso de zelo, vigilância e indulgência
para com Elize. Nunca tinha sido visto algo parecido, em se tratando de
relacionamentos do executivo da Yoki com prostitutas – nem com as que ele
dizia amar.
O sentimento de proteção e acolhimento de Marcos foi elevado a
patamares superlativos depois de Elize desenterrar os seus mortos. A
acompanhante fez questão de relatar para o empresário a sua trajetória
numa conversa iniciada num jantar e estendida madrugada adentro. Tudo
regado a muito vinho e lágrimas. Elize falou de forma cândida como
testemunhou a mãe sendo espancada pelo pai bêbado durante anos e anos e
do cotidiano miserável da família no interior do Paraná. Fez questão de
enaltecer o coração bondoso da tia Rose e da avó Sebastiana, os verdadeiros
anjos de sua vida. Contou nunca ter sentido a plenitude de morar numa
família estruturada. Sentia falta de amor, apego e carinho, sentimentos
inexistentes no submundo da prostituição. No prólogo, Elize aproveitou para
pontuar que não tinha talento para fazer programas, como as modelos de
Arethuza e as meninas de Violeta. “Pelo menos não me vejo assim. Estou
nessa vida temporariamente, até me organizar”, explicou. Também contou se
espelhar na jornada de Estella, a enfermeira que juntou dinheiro vendendo o
corpo e trabalhando em hospitais durante dez anos, e acabou largando tudo
para se tornar dona de posto de combustível.
Um drama daqui, outro choro dali, Elize resolveu escancarar outras
mazelas da vida. Naquela mesma noite, contou para Marcos a história
cabeluda envolvendo os abusos sexuais e o estupro cometidos pelo padrasto,
Chico da Serra. Os relatos foram feitos com uma riqueza de detalhes
repugnantes. Elize emendou os desdobramentos desse crime sexual
contando ter fugido de casa aos 15 anos por não ter tido apoio da mãe,
Dilta, que preferiu acreditar na versão do companheiro (ele disse na época
que investiu sexualmente contra a enteada porque fora seduzido, o que não
deixaria de ser crime – é bom frisar). Ao ouvir tanta calamidade, Marcos
cou comovido. Aquela história de vida penosa despertou nele empatia e
paixão. No dia das grandes revelações, Elize fechou o desabafo contando
com a voz trêmula e olhos molhados seus planos de estudar, casar-se e ser
mãe.
Depois de abrir toda a vida para Marcos, Elize sentiu-se leve. Não havia
mais qualquer segredo entre eles que pudesse ameaçar o “namoro”.
Supostamente apaixonado, o casal de pombinhos arrulhava passeando e
comendo pipoca ao ar livre pelos parques verdes de São Paulo. Os preferidos
eram o Ibirapuera e o Pico do Jaraguá, a oeste da Serra da Cantareira, cujo
mirante detém o título de ponto mais alto da cidade, com mais de 1.000
metros de altitude. O pico tem o pôr do sol mais deslumbrante da capital,
capaz de deixar em êxtase qualquer casal apaixonado. Outro programa
recorrente era visitar o Zoológico de São Paulo, um parque de 574 hectares
com mais de 2 mil animais, entre mamíferos, aves, répteis, anfíbios e
invertebrados. Nesses lugares, o casal fazia fotos e trocava juras de amor
eterno. Marcos se comportava como se não fosse pai de família. Os dois
des lavam em lugares públicos e badalados à luz do dia e à sombra da noite,
inclusive de mãos dadas. Ele escapava do trabalho de forma recorrente no
meio do expediente para viver seus romances com prostitutas. Na Yoki,
somente as secretárias percebiam o seu sumiço. Uns e outros executivos da
companhia mais tarde até descobriram as aventuras dele no meretrício. No
entanto, o empresário tinha cargo de diretor e era um dos herdeiros da Yoki.
Com isso, ninguém ousava fazer fofocas de corredor.
Numa das vezes em que Marcos desapareceu dos olhos da família, ele,
Elize e Lincoln jantavam no Terraço Itália, no Centro. Já meio embriagado, o
empresário começou a exagerar nas demonstrações de carinho. À mesa,
começou cheirando de forma insistente os cabelos loiros da acompanhante.
Depois, pegou uma pedra de gelo do balde com bebidas e passou nos lábios
de Elize, beijando-a em seguida de forma intensa, como se não houvesse
mais ninguém por perto. Ousou pôr o dedo indicador no queixo dela e
deslizar pelo pescoço até alcançar o colo dos seios. Elize não o repreendia.
Lincoln resolveu pedir para o amigo economizar nas carícias, lembrando-
lhe, inclusive, do barraco promovido por Ely e Luluzinha no restaurante
Senzala num passado recente. “Tanto amor assim nem é bom esconder”,
argumentou ele ao ouvir as críticas. Quando Lincoln insistia na censura,
Marcos levantava o antebraço até o pulso encostar na testa, como se
levantasse um escudo, e falava brincando: “Suas balas não me atingem,
minhas asas são como uma couraça de aço”. Todos riram. A frase fazia
referência ao personagem do desenho animado chamado Bat nk, um
híbrido de gato e morcego lutador de caratê, conhecido no Brasil como
Bat no. Quanto mais ele defendia o “namoro”, mais Elize acreditava que
seria resgatada da vida de prostituta pelas mãos daquele homem, apesar de
estar recebendo dinheiro para estar ao seu lado.
Na terceira semana de “namoro”, Marcos levou Elize para uma viagem a
trabalho na fábrica da Yoki em São Bernardo do Campo, onde eram
produzidos salgadinhos, farofas prontas, pó para sorvete, fermento e
refrescos. De lá, o casal seguiu para Marília, onde a empresa mantinha um
centro de distribuição. A viagem durou quatro dias. A prostituta não saiu do
hotel em momento algum, seguindo ordens do executivo. A partir dessa
viagem, os laços entre os dois se estreitaram ainda mais. Obtusa, ela
começou a acreditar que a palavra “namoro” estaria sem as aspas num
futuro próximo. Mas havia uma questão importante pendente na relação.
Marcos ainda não havia pago os 30 mil reais combinados pela exclusividade
da companhia. Na viagem de volta, Elize teria puxado o assunto de forma
sutil:
– Amor, o meu aluguel vai vencer na semana que vem...
– Jura? Temos que ver isso aí – protelou.
– Tenho medo de car sem ter onde morar.
– Quanto custa o aluguel?
– Quase 5 mil reais!
– Nossa, que caro! – criticou, apesar de ser milionário.
– O at é todo mobiliado.
– Ah é? Vamos ver como ca essa questão... – enrolou o empresário.
– Você cou de me pagar um salário mensal, lembra?
– Lembro, sim. Mas não sei se você já foi empregada alguma vez. O
funcionário primeiro trabalha e só depois recebe, sabia?
– Então quando vou receber? – quis saber Elize.
– O limite para o pagamento de salário, pela lei trabalhista, é o quinto
dia útil do mês subsequente...
Diante do argumento cartesiano de Marcos, muitas certezas de Elize
sobre o futuro da relação transformaram-se em dúvidas. Com o primeiro
salário longe da sua conta bancária e diversos boletos na bolsa, ela decidiu
não abrir mão de alguns clientes especiais pelo menos até ver a cor do
dinheiro do empresário da Yoki. Num m de semana em que Marcos viajou
com a esposa e a lha para Campos do Jordão, Elize recebeu no celular uma
mensagem de texto de um velho cliente. Era Gilberto, o narcotra cante,
querendo pernoitar no at do Itaim ao cachê de 1.200 reais. Ela topou sem
pestanejar. Gilberto chegou ao apartamento da pro ssional por volta das 22
horas, armado até os dentes e carregando uma mochila juntamente com
uma maleta de mão recheada de drogas. Os dois jantaram, beberam e
transaram até amanhecer. O bandido pagou o programa e saiu da casa da
jovem por volta das 10 horas. À noite, no telejornal, Elize descobriu que não
atenderia Gilberto tão cedo. Ele havia sido preso pela Polícia Federal na Via
Dutra dentro de uma operação de combate ao trá co de drogas e ao crime
organizado, em junho de 2004. Nas imagens da TV, foi possível ver os
agentes abrindo a tal mala de mão contendo cocaína e outras substâncias,
além de dinheiro vivo. Considerado um criminoso de alta periculosidade e
jurado de morte por integrantes do Comando Vermelho, ele foi levado para
a penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau, a 600
quilômetros de São Paulo.
Lá pelo quinto dia útil do mês, depois de retornar da viagem com a
família, Marcos apareceu meio embriagado no at de Elize carregando uma
sacola e uma or. Pela primeira vez o empresário falou mal de Lívia, sua
esposa. Queixou-se da perda de sensualidade e da falta de criatividade dela
na cama. “Ela passa muitos cremes no rosto, nas mãos, nos pés e até nos
cotovelos na hora de deitar. Dorme toda melecada. Já não tenho mais
desejo”, reclamou. Amante de música, Marcos sempre encontrava uma letra
para demonstrar seus sentimentos. Naquela noite, ele se declarou para Elize
entoando versos da canção “Mulheres”, de Martinho da Vila: Procurei em
todas as mulheres a felicidade. / Mas eu não encontrei e quei na saudade. /
[...] Você é o sol da minha vida, a minha vontade. / Você não é mentira, você é
verdade. / É tudo que um dia eu sonhei pra mim. Elize teve júbilo e euforia ao
ouvir tamanha declaração de amor. Os dois beberam vinho e transaram.
Depois da segunda garrafa, Marcos pegou a sacola e tirou de dentro uma
caixa embrulhada em papel de presente, repassando-a para a acompanhante.
Era um telefone celular de última geração novinho em folha, caríssimo e já
habilitado com um número diferente. Elize chorou de alegria com o mimo,
mas cou chocada quando ele pediu de forma incisiva o seu aparelho antigo:
– Me passe o seu telefone agora! – ordenou.
– Calma! – pediu ela.
– Calma pra quê? Quer recuperar números de alguns clientes?
Marcos tomou o telefone de Elize com rispidez, fazendo crer que a sua
vida de prostituta estaria no passado. Ele também ordenou que ela
entregasse o at para não sobrar possibilidade de ser encontrada por
fregueses e colegas da zona. Na semana seguinte, ela se mudou para o
apartamento dele no Itaim, mantido até então para receber garotas de
programa de luxo. As atitudes autoritárias e abusivas de Marcos não
passaram despercebidas por Elize, mas ela preferiu fazer a seguinte leitura:
ele estava fazendo tudo aquilo em nome do amor. “Olha, você pode até fazer
vista grossa para esse tipo de grosseria. Mas que sabendo que ele tá apenas
demostrando quem ele realmente é. E tem outra coisa: esse tipo de violência
é sempre crescente. Falo com conhecimento de causa”, alertou Chantall.
“Você está exagerando. Esse é o jeito dele”, ponderou Elize.
Instalada no at do empresário, Elize recomeçou a sua jornada ao lado
do javali empalhado. Ela levou para a nova moradia somente roupas, sapatos
e poucos objetos pessoais. Marcos ordenou que ela jogasse fora todas as
coisas ligadas à atividade de prostituta, a exemplo de acessórios sexuais e
“ gurino de puta, como cinta-liga”, na de nição dele. Apesar de o imóvel
estar todo decorado com móveis em tons sóbrios, ela deu um toque pessoal
espalhando almofadas coloridas da Tok & Stok pelos sofás de luxo de couro
preto, cujo preço unitário chegava a 80 mil reais. Elize também pôs dois
porta-retratos sobre um aparador da sala. Num deles, estava a foto dela
vestida de enfermeira nas dependências do Hospital Nossa Senhora das
Graças, em Curitiba. No outro, uma imagem de Marcos todo alinhado –
com terno completo de alfaiataria –, sentado à mesa no escritório da Yoki,
com vista do bairro de Pinheiros. Eles não estavam juntos em nenhuma das
imagens. Ela até pediu ao “namorado” uma foto do casal, mas ele disse que
ainda era cedo para esse tipo de registro.
Elize ainda arrumava o seu novo lar quando recebeu uma ligação em seu
celular novo. Era Marcos, combinando um encontro no Shopping Iguatemi.
Elize compareceu na hora marcada vestida num conjunto cropped de paetê e
saia preta. Marcos criticou o look. “Você tem de jogar fora essas roupas
vulgares, caso queira namorar comigo de verdade”, comentou. O casal andou
por lojas de grife acompanhado de uma coach de estilo indicada por
Arethuza. Compraram vestidos, calças jeans, blusas e sapatos “de mulher de
família”, na de nição dele. Elize ainda voltou às compras com a consultora
de moda em outras duas ocasiões. No total, Marcos gastou quase 40 mil
reais para renovar parcialmente o guarda-roupa da jovem. No último dia de
compras, o casal foi jantar no restaurante Figueira Rubaiyat, no bairro dos
Jardins. Elize se surpreendeu quando o empresário pôs sobre a mesa dois
celulares, em vez de um. Suspeitou que ele não havia abandonado a
companhia de outras prostitutas:
– Por que você usa dois telefones? – questionou ela.
– Um para falar com a minha família e outro para os assuntos da
empresa.
– Vou falar com você no número da família?
– Não. Vamos nos falar pelo número de sempre, o do trabalho –
pontuou, sisudo.
Marcos deixou claro não ter gostado de ser questionado. A irritação não
ocorreu à toa. Sinuoso, o empresário mantinha dois números por razões
escusas. Em um dos aparelhos, falava com a família, amigos e resolvia
problemas do trabalho. O outro, considerado secreto, era usado somente
para acertar programas com acompanhantes. Inebriada com a nova fase,
Elize resolveu não investigar a vida dupla de Marcos – pelo menos naquele
instante. No mesmo jantar, o empresário deu a ela um pedaço de papel em
branco com uma caneta e pediu os dados bancários dela para nalmente
transferir o primeiro salário.
No dia seguinte, Marcos viajou a trabalho para Nova Prata (RS), onde a
Yoki mantinha uma fábrica para produção de pipoca. Elize passou no banco,
retirou um extrato da conta e atestou um depósito de 20 mil reais, ou seja,
10 mil a menos que o valor combinado. Ela enviou uma mensagem para o
telefone de Marcos especulando um possível engano na transação nanceira.
O empresário desfez o mal-entendido falando de tributos sobre o
pagamento de salários. Ele também ponderou o m da despesa com aluguel
para justi car o valor mais baixo do combinado. Elize teria aceitado os
argumentos e xado sua remuneração mensal em 20 mil reais pela
exclusividade.
No mesmo dia, convidou Chantall para comer numa pâtisserie badalada,
no bairro Vila Nova Conceição, um dos mais chiques de São Paulo. Como
estava com hematomas no rosto, para variar, a amiga pediu para o encontro
ser no at de Elize, assim poderia conhecer a nova moradia da paranaense.
Elize passou numa padaria e comprou diversos tipos de pães, croissant,
tiramissu, quiche de alho-poró, éclair de chocolate, sucos e duas garrafas de
espumante. À mesa, as duas comiam e bebiam, enquanto botavam a
conversa em dia. Elize falou do alívio de ter se livrado de cafetinas
mercenárias, como Violeta, da exposição no MClass e principalmente de
clientes asquerosos. Falava também dos planos de se matricular num
cursinho pré-vestibular ainda naquele mês.
As duas prostitutas estavam no meio do lanche quando, por volta das 17
horas, perceberam que alguém tentava destrancar a porta da sala pelo lado
de fora. O intruso só não conseguiu abrir porque a chave de Elize estava na
fechadura. Num ímpeto, ela se levantou da mesa, atravessou a sala a passos
largos e destrancou a porta para ver quem tentava entrar. Deparou-se com
uma mulher bonita, muito bem vestida, aparentando mais ou menos 30
anos de idade e sotaque gaúcho. Incisiva e cheia de ciúme, Elize interrogou:
– Quem é você?
– Sou a esposa do Marcos. E você? Quem é? – devolveu Lívia.
“A minha namorada está apaixonada por um
macaco”

A
s atrizes Fernanda Montenegro, Nathália Timberg, Beatriz Segall
(1926-2018) e outras dezenas de estrelas do teatro, do cinema e da TV
sempre reclamaram que eram frequentemente confundidas com
prostitutas. A bem da verdade, essa confusão não ocorria à toa, segundo
relatou a atriz Berta Zemel, morta de broncopneumonia em fevereiro de
2021 aos 86 anos. “No teatro, por exemplo, nós éramos criticadas e tachadas
de meretrizes, pois a nossa conduta e os gurinos com muitas plumas e
paetês não eram apropriados para uma moça de família. O preconceito era
fortíssimo, principalmente nas décadas de 1950 e 1960. Parte da sociedade
via nas nossas manifestações artísticas algo impuro e imoral, além de servir
de fomento à prostituição. Nos bastidores da TV Tupi (1959-1980), era
comum os executivos da emissora perguntarem para as atrizes quanto
custava o programa”, contou a atriz, em outubro de 2020. Mas não foram só
as roupas e o comportamento extravagante que puseram atrizes e
pro ssionais do sexo na mesma página. Todos os artistas do teatro, da
música, do rádio e da televisão e garotas de programa em atividade durante
o regime militar (1964-1985) foram obrigados pela polícia a confeccionar
uma carteirinha de identi cação para lá de inusitada. O documento de cor
salmão, obrigatório para o artista exercer a pro ssão e andar na rua à noite,
tinha foto e quatro campos a serem preenchidos com máquina de
datilografar. No primeiro espaço cava o nome verdadeiro da pro ssional
acompanhado do nome artístico ou de guerra, no caso das mulheres da vida.
Na terceira linha constava o número de registro e, na sequência, a descrição
da pro ssão, que poderia ser atriz, músico ou prostituta. Uma última linha
era destinada à assinatura do(a) portador(a).
A carteirinha, de simplória não tinha nada. Era emitida numa sala
secreta da sede do Departamento de Investigação da Polícia Federal, em
todos os estados. O objetivo era, na verdade, identi car artistas com
inteligência, poder de in uência e coragem su cientes para questionar e
subverter a nova ordem estabelecida com o golpe de 1964, uma conspiração
das Forças Armadas arquitetada para derrubar o governo civil de João
Goulart (1961-1964). No entanto, assim como os artistas, as prostitutas
foram intimadas a emitir o mesmo cadastro na tal sala secreta da polícia,
caso quisessem permanecer na calçada batendo ponto à noite. “Quando fui
fazer a minha carteirinha, havia um cantor e três prostitutas sentados no
mesmo banco na sala de espera. [...] Como o documento era obrigatório
para exercermos a nossa pro ssão, acabou virando motivo de zombaria na
classe artística. Quando uma atriz encontrava uma colega na coxia do teatro
ou no estúdio da televisão, era comum perguntar: ‘E aí? Já tirou a carteirinha
de prostituta?”’, relembra Berta Zemel. Sobre o documento, Fernanda
Montenegro comentou na revista Época, em maio de 2013: “Pertenço à
geração de artistas que tirou carteirinha de prostituta na polícia. Naqueles
tempos sombrios, artista era considerado prostituta, veado ou gigolô”. Outra
estrela dos tablados lembrou da tal carteirinha. “Naquela época, quem fazia
teatro era puta. Então, eu era puta. Sou putíssima até hoje, porque eu
defendo a pro ssão”, comentou a atriz Laura Cardoso, aos 95 anos, em
entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em junho de 2023.
Além da carteirinha obrigatória no regime militar, outro fator pôs o
trabalho das atrizes e o das prostitutas no mesmo balaio. Ambas ngem ser
outra pessoa quando entram em ação. Elize, a garota do interior descrita
como tímida, por exemplo, transformava-se na destemida Kelly quando
atendia os clientes. Sua segunda persona era uma mulher magnética,
dominadora e retumbante. Alícia – atriz pro ssional – incorporava a Estrela
D’Alva, o astro mais brilhante da noite, costumava dizer. Já Deusarina, moça
de família religiosa, virava a devassa e trambiqueira Tatty Chanel. As três
mudavam completamente a personalidade quando estavam em
atendimento. “Ser outra pessoa era até uma forma de elas se protegerem das
armadilhas da vida”, justi cou Violeta, a cafetina piauiense.
Uma in nidade de trabalhos acadêmicos explica como a prostituição e a
arte dramática caminharam de mãos dadas ao longo do tempo. Em 1996, os
pesquisadores Maria Alves de Toledo Bruns e Osvanir Pereira Gomes Júnior,
do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP),
publicaram um estudo feito com 15 acompanhantes com idades entre 18 e
33 anos. A pesquisa teve o objetivo de compreender a prática do meretrício
a partir de como as mulheres vivenciavam a própria sexualidade enquanto
exerciam a pro ssão. O trabalho foi feito basicamente com entrevistas e
procurou fazer análises da prostituição a partir de um fenômeno para
determinar as estruturas, gênese e essência – metodologia conhecida pelo
termo “fenomenologia”. O estudo também usou de parâmetro as teses do
lósofo e teólogo austríaco Martin Buber (1878-1965), notório pela defesa
do diálogo como ferramenta de estabelecimento da verdade.
Para melhor entender o resultado do estudo, é preciso partir do seguinte
ponto: ontologicamente falando, o ser humano é diferente das demais
espécies do reino animal porque recebe em sua jornada condições
especí cas para dar conta da própria vida, sustentá-la e ampliá-la. Ou seja, o
indivíduo é um feixe de possibilidades sempre em aberto, podendo
transcender e surpreender a si mesmo. Ainda de acordo com a ontologia,
somos lançados no mundo sem o controle da nossa existência e sem
qualquer certeza sobre o próprio destino. Isso fomentaria o seguinte debate:
prostituir-se é escolha, vocação ou alternativa de sobrevivência? Ou pode ser
tudo isso junto? “Ninguém escolhe ser prostituta. Isso é fato. Somos
empurradas para essa vida pela necessidade, ambição e falta de perspectiva.
Além disso, muitas meninas têm traumas pessoais e vêm de famílias
totalmente desestruturadas. Foram vítimas de abuso sexual, espancamento e
rejeição. Nesses casos, prostituir-se, além de sobrevivência, é uma forma de
enfrentamento e resistência. [...] As mulheres que dizem gostar dessa vida
estão mentindo para o mundo e para elas mesmas. Se o gênio da lâmpada
aparecer para uma prostituta dizendo que ela pode fazer três pedidos, o
primeiro deles seria uma súplica imediata: me tira dessa vida o quanto
antes!”, relatou a cafetina Violeta, 55 anos de idade e 33 de atividade no
meretrício.
Já a obra do lósofo Martin Buber, usada de base para analisar as
entrevistas acadêmicas com as garotas de programa, sustenta que a trajetória
do indivíduo no mundo depende unicamente da forma como ele se coloca
diante da realidade, que sempre lhe solicita um posicionamento. A partir
dessa premissa, os pesquisadores da USP concluíram que a mulher
prostituta mantém um distanciamento afetivo quando está dando
expediente, isto é, ela faz do corpo o seu instrumento de trabalho em troca
de dinheiro, assim como fazem as atrizes.
Ainda segundo o estudo da USP, ao manter relações sexuais com os seus
clientes, a prostituta se porta feito um objeto, ou seja, ela presta serviços
utilizando o seu corpo como ferramenta de trabalho, dissociando-o de
qualquer acontecimento emocional. Com base nas entrevistas feitas com as
garotas de programa paulistas, os pesquisadores concluíram que o único
prazer que elas sentem estaria diretamente relacionado à remuneração pelo
serviço prestado. Dessa forma, o pagamento pelo trabalho legitima a forma
de a prostituta ser no mundo. “Ela seria, então, como uma atriz que encena
uma personagem em busca da satisfação dos seus clientes pagantes. Quando
sai de cena, volta a ser a mulher que sempre foi. Ou seja, separando a vida
pro ssional da afetiva. Assim, ela se torna capaz de negociar seu corpo de
forma super cial e distante, não estabelecendo laços com os seus fregueses,
já que a performance sexual seria completamente mecânica e em série”,
assinalou a psicóloga Claudia Waltrick Machado Barbosa num trabalho
intitulado “Um estudo sobre a prostituição”, do Centro Universitário
Unifacvest. Como qualquer estudo qualitativo, cuja investigação atinge o
mundo privado e subjetivo do indivíduo, há de se considerar as exceções.
Ou seja, seria possível, sim, uma prostituta se envolver emocionalmente com
um cliente, assim como uma atriz e um ator estão sujeitos a se apaixonar
pelos colegas que beijam e com quem ngem fazer sexo em cena.
Violeta nunca estudou loso a, mas tinha profundo conhecimento dos
con itos existenciais da mulher prostituta, principalmente as negras e
nordestinas como ela. “Sou mulher forte, combativa, de grelo duro mesmo,
sabe? Sobrevivi na vida graças a essas características. A mulher de grelo duro
é imbatível”, reforçou, lembrando a forma com que o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva se referiu às feministas do PT em um áudio vazado no
âmbito da Operação Lava Jato, em 2016. Na botânica e na de nição dos
dicionários, “grelo” é o gomo que germina das sementes das plantas e brota
da terra. É também uma das formas chulas que homens e mulheres se
referem ao clitóris. Quando ocorre a excitação feminina, o clitóris ca
rígido. Vem daí a expressão vulgar “grelo duro”. No caso do ex-presidente,
ele usou o termo vulgar e machista para se referir às mulheres do PT. Numa
conversa com o ex-ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, Lula
defendeu que as mulheres feministas do partido teriam de se manifestar
contra o procurador de Rondônia Douglas Kirchner, que o investigava na
época. No mesmo áudio, o petista citou as parlamentares Maria do Rosário e
Fátima Bezerra. “Ele [Kirchner] batia na mulher, levava a mulher no culto
religioso, deixava ela sem comer, dava chibatada nela, sabe? Cadê as
mulheres de grelo duro lá do nosso partido?”, disse Lula, na época.
Precoce, Violeta fez o primeiro programa aos 9 anos e só parou de se
vender aos 30, para passar a terceirizar o corpo de outras mulheres em troca
de comissão. Desde que parou de se prostituir, 27 anos atrás, ela nunca mais
transou com homem algum. “A realidade é que a minha vida foi
excessivamente dura. Fiz tantos programas que quei seca, sem libido, sabe?
Sexo não me faz a menor falta. Para você ter ideia, eu olho para um homem
nu e não sinto nada. Já passou pela minha cabeça que poderia ser lésbica.
Mas o sexo feminino também não me atrai. Segundo a minha ginecologista,
faço parte do grupo de pessoas assexuais estritas, aquelas que não sentem
atração sexual por nenhum gênero, em nenhuma situação especí ca”,
contou. Para escapulir da depressão, Violeta bebia vodca todos os dias e
cheirava cocaína esporadicamente. Levava uma vida de classe média. Tinha
apartamento próprio no bairro da Aclimação, uma sala comercial em seu
nome no bairro do Ipiranga e dirigia um Jeep Renegade pelas ruas de São
Paulo. Usava roupas de lojas de departamentos e gostava de bijuterias. Tinha
anéis em praticamente todos os dedos das mãos.
Apesar de bem-sucedida, Violeta não conseguiu desviar-se dos trilhos da
solidão. Nunca foi casada, nem sequer viveu um romance de verdade e,
consequentemente, não teve lhos – apesar de ter transado com uma
quantidade imensurável de homens. “O destino fez de mim uma mulher fria
e bem prática na vida. Faz 40 anos que não choro, acredita? [...] Quando
tinha 15 anos, estava na escola e a professora me pegou chorando de soluçar
no recreio. Ela perguntou o que tinha acontecido. Um colega havia falado
que o meu cabelo era idêntico à piaçava da escova usada na limpeza da
privada. A professora não acreditou que eu estava em prantos por uma
‘bobagem como essa’. Ela me mandou engolir o choro e disse algo que jamais
esqueci: ‘guarde as suas lágrimas para quando morrer alguém da sua família’.
Nunca mais chorei depois desse episódio. Nem quando meus pais morreram
num acidente eu me emocionei. Hoje sou uma mulher sem empatia. Não
gosto de cumprimentos com beijinhos no rosto, abraços nem apertos de
mão. A pandemia foi uma desgraça para toda a humanidade. Mas se teve
uma coisa que gostei foi do distanciamento social. Adoro essas saudações
feitas de longe, em que ninguém toca em ninguém”, relatou em maio de
2021. Numa autoanálise, Violeta concluiu que os sentimentos de rejeição,
abandono familiar e discriminação zeram com que ela adotasse uma
postura cética diante da vida.
Experiente, a cafetina ensinava as suas artimanhas às 20 garotas com
idades entre 18 e 21 anos que se prostituíam sob a sua tutela. Um dos
truques sugeridos às pro ssionais era justamente assumir uma personagem
infantilizada na hora de atender um cliente. Essa estratégia caía feito uma
luva principalmente com as meninas tímidas vindas do interior, chamadas
por ela de “caipiras da zona”. “Algumas raparigas lindas e tímidas, com cara
de adolescente, chegam da roça sem falar nada, como se fossem mudas. Só
abrem a boca se for perguntado algo e ainda assim elas respondem de
cabeça baixa, usando monossílabos. Alguns clientes gostam, mas a maioria
quer conversar. Por isso, eu ensino as minhas meninas a ngirem
espontaneidade, como se fossem uma atriz”, ponderou Violeta. Na verdade,
a maioria delas lança mão desse expediente, conforme concluiu o estudo da
USP relatado anteriormente. Luluzinha, a pro ssional que “namorou”
Marcos Matsunaga antes de ele engatar o romance com Elize, por exemplo,
descreveu o seu alter ego bem diferente do seu verdadeiro eu. “Minha
personagem é desavergonhada, obscena, descarada e engraçada. A
Luluzinha só entra em cena quando estou trabalhando como pro ssional
[do sexo] ou dançando nos programas de auditório. Na vida real, sou o
oposto”, pontuou.
Foi também usando ferramentas da arte dramática que Berbella, de 20
anos, enredou cada vez mais o seu principal cliente, o bancário Kaul, de 40.
Os dois estavam “namorando” rme fazia seis meses e ela recebia dele um
salário mensal de mil reais por uma suposta exclusividade. Orientada por
Violeta, Berbella, na verdade, nunca foi el ao bancário, pois ela atendia na
surdina outros clientes sob o pretexto de receber um valor muito baixo para
ser honesta. A garota era requisitadíssima no mercado por ter se tornado
expert em sexo anal e por começar a praticar pompoarismo, uma técnica de
contração voluntária dos músculos do períneo e da vagina cujo maior
benefício é massagear o pênis do parceiro com a vulva. “Enquanto o Kaul
não te der casa, comida e um carro novinho em folha, a dedicação exclusiva
será apenas em sentido gurado. Principalmente porque já se passou o
estágio probatório e nada de ele falar em união estável”, ponderou a
alcoviteira e sem escrúpulos. “União estável” nesse métier signi ca uma
relação em que o cliente sustenta o lar para uma prostituta mesmo sem ele se
separar da esposa, como já ocorria com Marcos e Elize.
Com o passar do tempo, Kaul começou a emitir sinais de que poderia
estar se apaixonando de verdade pela garota agenciada por Violeta. Certa
vez, o bancário a levou para uma viagem de trabalho ao Rio de Janeiro.
Berbella cou extasiada com o passeio. Mas se manteve in el até em terras
cariocas. Enquanto o bancário trabalhava o dia todo, a pro ssional passava o
tempo sensualizando no deck da piscina do hotel. Quando não, dizia sair
para conhecer pontos turísticos importantes da cidade maravilhosa. Tudo
mentira. Ambiciosa, Berbella entrava em salas de bate-papo virtual para
prostitutas e marcava encontro com clientes. Numa única tarde, fez quatro
atendimentos em hotéis e motéis, enquanto o seu “namorado” dava
expediente num seminário para aperfeiçoamento pro ssional. Volta e meia,
Kaul mandava mensagens pelo celular perguntando onde estaria o seu amor.
Berbella respondia estar em um ponto turístico qualquer, mandava pelo
celular fotos de paisagens da cidade feitas da janela do táxi e nalizava
dizendo morrer de saudade – mesmo estando nua ao lado de outros
homens. Se batesse peso na consciência, Berbella aliviava a culpa
contabilizando o fato de Kaul ser casado, pai de família e muito mão de vaca.
“Enquanto ele tiver a mulher dele e me pagar pouco, terei os meus homens”,
raciocinava.
Dos homens que Berbella dizia serem seus, eram cobrados 300 reais a
hora pelo programa. Imprudente e irresponsável, ela transava sem proteção
quando o cliente pedia. No universo da prostituição, transar sem camisinha
era comum. A prática era chamada de “sexo no pelo” ou “cavalo de índio”,
em alusão a uma montaria em que a pessoa cavalga nua num cavalo sem
sela, ou seja, com o sexo em contato direto com o pelo do animal. Quando o
cliente queria saber se a pro ssional transava sem preservativo, ele
geralmente perguntava: “faz no pelo?” ou “faz cavalo de índio?”, ou
simplesmente “faz sem capa?”. Já os clientes vulgares usavam gírias chulas do
tipo: “posso leitar?”, em referência à ejaculação diretamente no ânus sem
qualquer tipo de proteção. Berbella sempre dizia “sim” para essas questões,
acrescentando fazer anal como ninguém. Era cobrado um acréscimo de 100
reais pela especialidade desprotegida. No Rio de Janeiro, todos os quatro
programas feitos pela garota, incluindo um turista sueco e outro jamaicano,
ocorreram sem preservativo. As transas com Kaul também eram sem capa.
Apesar de estar bem longe dos olhos de Violeta, o respeito por ela era tão
grande que Berbella continuava lhe repassando metade do cachê a título de
comissão e agradecimento pela mentoria.
Na volta da viagem, Kaul seguiu para Campos do Jordão. Berbella cou
um tempo hospedada na casa de Violeta para aperfeiçoar os planos de “se
casar” com o bancário. Um mês depois do passeio pelo Rio, a garota
começou a sentir tontura. A cafetina esboçou um sorriso maroto. “Deus
ouviu as nossas preces e você há de estar grávida do Kaul”, festejou,
preparando uma taça de gim-tônica e cheirando uma carreira de cocaína. As
duas seguiram imediatamente até uma farmácia e um teste de gravidez
simples con rmou as suspeitas de Violeta, que comemorava o feito como se
tivesse acertado na loteria. A felicidade de Berbella era ngida. No fundo, ela
estava mesmo era apreensiva porque havia transado com dezenas de outros
clientes sem preservativo. Mas, por ora, a garota preferiu esconder a
informação relevante para não jogar água fria na fervura de sua mestra.
Como o resultado do teste de farmácia não era prova irrefutável de
gravidez, Violeta marcou uma consulta para a garota em um ginecologista
de con ança para obter o pedido de um exame laboratorial chamado beta
HCG. Trata-se de uma coleta de sangue cujo resultado quanti ca a presença
do hormônio, revelando se existe gravidez ou não. Com o resultado positivo
na mão, Violeta cou com ideias utuando em sua cabeça. Depois de pensar
bastante, orientou Berbella a procurar Kaul e anunciar a gravidez o quanto
antes, exigindo do bancário logo de cara pelo menos 30 mil reais para
custear o início da gestação. Metade do valor caria com a cafetina. Ela
ainda ensinou a garota a chantageá-lo de forma sutil, caso ele enrolasse para
fazer o pagamento. Berbella deveria perguntar, delicadamente, se ele
conseguiria imaginar qual seria a reação da sua esposa se um dia ela
soubesse de uma notícia desse tamanho.
Com receio de passar um vexame típico de novela e com medo de
apanhar – Kaul costumava espancar as prostitutas –, Berbella resolveu
contar à mestra que havia transado com outros clientes sem preservativo, ou
seja, o lho poderia não ser de Kaul. Ao ouvir aquela verdade dolorida,
Violeta deu uma bofetada de surpresa com o dorso da mão no rosto da
jovem. O tabefe foi tão forte que ela quase caiu no chão. Os anéis da cafetina
deixaram quatro cortes profundos em linha reta e com muito sangramento
no rosto de Berbella. Violeta explodiu de tanto ódio:
“Além de puta, você é estúpida. Suma da minha frente antes que eu en e
um cabo de vassoura no seu rabo! Sua burra do caralho!”, gritou a cafetina,
espatifando a taça de gim na parede.
Revoltada, bêbada e drogada, Violeta humilhou ainda mais Berbella e a
expulsou da sua casa aos berros. A garota se hospedou temporariamente na
casa do tio Joel, o gerente da boate do Baixo Augusta. Uma semana depois,
Kaul procurou por ela e os dois passaram a noite numa suíte do Apple
Motel, na Barra Funda. O bancário, que costumava ser violento nas suas
transas, estava no modo romântico naquela noite. Ele perguntou sobre os
ferimentos no rosto da “namorada” e ouviu uma resposta criativa: ela teria
sido vítima de um ataque de fúria do gato meio selvagem do tio. Kaul
acreditou. Pelo interfone, ele pediu uma garrafa de vinho tinto e duas taças
para agradar Berbella. Enquanto esperavam pela bebida, o bancário
repassou à jovem os mil reais em notas de 100 referentes à exclusividade que
ele imaginava ter. Um funcionário do motel entregou o vinho por uma
janela giratória da suíte. Ele sacou a rolha e serviu as duas taças. Berbella
conferiu o dinheiro bem devagar, passou a unha para sentir o alto-relevo das
cédulas e até espiou algumas delas na contraluz para atestar a autenticidade.
– Tá descon ada que o meu dinheiro é falso, sua cadela?
– Imagina. Jamais descon aria de você, seu safado. Acontece que uma
vez peguei notas falsas num caixa eletrônico do Banco do Brasil. Aí passei a
não con ar mais em dinheiro nenhum – justi cou Berbella, enquanto
guardava as notas na bolsa.
Vestindo apenas cueca, Kaul então propôs um brinde. A garota
aproveitou o momento especial, tirou toda a roupa e anunciou, nervosa, ter
algo importante para falar. Os dois brindaram e ele deu um gole:
– O que você tem a me dizer de tão especial?
– Estou grávida!
– Olha que legal! Um bebê é uma bênção. Parabéns! Fico muito feliz por
você! – comemorou Kaul.
Demonstrando um contentamento incomum para aquela situação, o
bancário retirou imediatamente a taça de vinho das mãos da “namorada” e a
acomodou em cima da mesa. Em seguida, comentou demonstrando
preocupação:
– Você não pode beber!
– Ah! É verdade! Obrigada por se importar.
– Mas me fale, Berbella. Quem é o pai do seu bebê?
– Como assim? É você, meu amor. Desde que começamos a sair não
encontrei mais ninguém. E nunca z sexo sem camisinha com homem
algum. Exceto com você – sustentou.
Dessa vez, foi Kaul quem parou de beber. Para car com as duas mãos
desocupadas, deixou a taça numa bancada da suíte. Antes mesmo de ele
reagir, Berbella começou a chorar. “Se você não quiser o nosso lho, posso
tirar, viu? Até porque me acho muito nova para ser mãe. E a gravidez ainda
está bem no comecinho. Acho que nem tem uma vida do jeito que as
pessoas dizem...” Enquanto ela falava, Kaul sentou um murro forte no rosto
da garota bem em cima das marcas deixadas por Violeta. O gesto violento
também aconteceu de surpresa, como a bofetada da cafetina. Berbella foi ao
chão com o impacto da pancada, batendo a cabeça na quina de um móvel de
madeira. Ficou prostrada no carpete aos prantos, com o rosto inchado e sem
poder enxergar com um dos olhos. O bancário se vestiu e pegou os mil reais
na bolsa da pro ssional. Antes de sair, fez uma ameaça:
– Esse lho pode ser de todo mundo, sua vagabunda, menos meu. Sou
vasectomizado há anos justamente para me proteger desse tipo de mau-
caratismo. Faça desse bebê o que bem entender. Mas se quiser abortá-lo sem
gastar dinheiro, basta me procurar novamente. Vou te dar tanta porrada que
esse feto será cuspido das suas entranhas à força. Vigarista! Vagabunda!
Lixo! Verme!
Enfurecido pela traição, Kaul deixou a “ex-namorada” sozinha e ferida
no motel. Pelo menos pagou a conta antes de ir embora. Nunca mais ele deu
notícias. Desiludida com a pro ssão e com novos planos, Berbella voltou
para Campo Grande e foi morar na casa da mãe, Nazaré, uma feirante
devota de Nossa Senhora de Fátima, de 45 anos. Num rompante de
honestidade, ela se abriu para a família: contou ter virado garota de
programa em São Paulo e que estava grávida sabe-se lá de quem. Queria
abortar, mas lhe faltava dinheiro. Religiosa, Nazaré descartou a interrupção
da gravidez com um alerta: “Se você zer isso, lha, a sua entrada no paraíso
estará cancelada para sempre. Sua alma vai apodrecer no purgatório porque
esse tipo de pecado não tem perdão. Nem o diabo aceita no inferno mulher
que faz aborto”. “Deixa de bobagem, mãe. O corpo é meu e faço dele o que
quiser”, rebateu a jovem. “Não é seu, não. É de Deus. Ele pôs esse lho aí e só
Ele pode tirar”, contra-argumentou a feirante cheia de fé. Para resolver a
questão, Nazaré recorreu à lha mais velha, Belmira, uma professora de 28
anos, casada com o corretor de imóveis Vivaldo, da mesma idade. O casal de
classe média vivia bem e já tinha dois lhos, mas desejava desde o
casamento ter uma menina. Belmira não poderia engravidar, pois havia
retirado as trompas e os ovários por causa de uma hemorragia ocorrida no
parto do lho mais novo.
Berbella procurou Belmira e contou o seu dilema – deixando claro ainda
não saber quem era o pai da criança. “Preciso fazer as contas. Mas o pai
pode ser um engenheiro civil, um médico, um gringo sueco, um jamaicano
naturalizado brasileiro, um piloto de avião...”, contabilizava. A irmã mais
velha cou de consultar o marido e daria uma resposta em 15 dias. Duas
semanas depois, Belmira foi até a casa da mãe e anunciou que caria com o
bebê, caso fosse uma menina branca e nascesse 100% saudável. Berbella
topou. Na 17a semana de gestação, um ultrassom revelou se tratar de um
nenê do sexo feminino. Houve festa na família. As duas irmãs choraram
abraçadas quando a mais nova ofereceu o cialmente o seu bebê para a mais
velha. Nazaré acendeu velas para todos os santos para agradecer o desfecho
daquele dilema em família e passou uma noite inteira em oração, pedindo a
Deus para o bebê nascer sadio. Belmira e Vivaldo impuseram ainda uma
condição sine qua non para car com a criança: o casal a registraria como
lha legítima num cartório logo após o parto e ninguém jamais poderia
saber desse segredo. Berbella aceitou, mas pediu 2 mil reais por mês até o
dia do parto em troca desse agrado, totalizando 18 mil reais. “É um preço
razoável para um bebê”, argumentou a garota de programa. Belmira e
Vivaldo acharam justo. Eles também teriam de bancar todas as despesas da
jovem durante a gravidez.
Depois de acertos nanceiros, Berbella encarou sua gravidez como
negócio e cou na casa da mãe esperando pelo parto enquanto dormia,
comia e via TV. Orgulhosa, Nazaré dizia para as amigas feirantes que, do
ponto de vista da espiritualidade, uma irmã doar um lho para outra criar
era um gesto benévolo e indescritível no plano terreno. Nos primeiros meses
da gravidez de Berbella, Belmira e o marido visitavam a irmã todos os dias
depois do trabalho. Eles levavam alimentos saudáveis e agradeciam o
presente, segundo ela, vindo diretamente do colo de Deus. No clássico
escrito por Jorge Ben Jor, “Tenha fé, pois amanhã um lindo dia vai nascer”,
eternizado nas vozes dos Originais do Samba, um dos versos soava como
advertência: “Nem tudo que cai do céu é sagrado”.

* * *

Quando Elize se deparou com a esposa de Marcos à sua porta, o ar que


ela respirava simplesmente desapareceu dos pulmões, tamanho o susto. A
garota de programa nunca tinha visto – nem em fotos – o corpo e o rosto de
Lívia, a mulher que dividia diariamente a cama de casal com o seu
“namorado”. Jamais, nem nos seus sonhos mais loucos, imaginou um dia vê-
la cara a cara – ao vivo e em cores. E que cores! Lívia estava linda e luminosa
num vestido com estampa oral de algodão da famosa grife Dolce &
Gabbana. Chamavam a atenção na peça de roupa o decote em V profundo e
a saia rodada. Por outro lado, a esposa de Marcos não fazia a menor ideia de
quem eram aquelas duas mulheres vestidas com roupas casuais instaladas no
apartamento do empresário. Elize estava paralisada e muda. Chantall
assumiu as rédeas da situação. Mesmo com um hematoma na maçã do rosto
e outro sobre o arco da sobrancelha esquerda, ela se aproximou
educadamente de Lívia e inventou uma história:
– Não sei se a senhora sabe, mas o Marcos alugou este at para nós duas
por uma temporada. Somos universitárias. A locação foi feita por
intermédio de uma imobiliária – mentiu Chantall.
– Ele me avisou que poria alguns dos nossos imóveis para locação, mas
eu achava que este at estivesse desocupado – rebateu Lívia.
– Se quiser, podemos mostrar uma cópia do contrato... – arriscou a
jovem.
– Não precisa. Imagina... Eu nem tenho o direito de entrar no imóvel,
apesar de a propriedade ser do meu marido. O aluguel dá a vocês a posse
legal do at. Peço até desculpas pela intromissão.
– Você quer entrar e fazer um lanche conosco? – ofereceu Chantall.
Meio acanhada, Lívia aceitou o convite. Entrou, sentou-se à mesa
timidamente e foi servida de espumante. A visita estava perfumada com
uma fragrância francesa caríssima e ostentava joias discretas. Camu ando a
tensão, Elize pediu licença, pegou disfarçadamente o porta-retrato com a
foto de Marcos do aparador da sala e trancou-se no banheiro da suíte.
Enquanto Chantall distraía a intrusa criando histórias para justi car os
machucados em seu rosto, Elize falava com o “namorado” pelo celular
tremendo de tão nervosa. Incrédulo com a notícia de que a esposa estava em
sua garçonnière com duas prostitutas, o empresário da Yoki perdeu o prumo.
Depois de re etir, ele decidiu sustentar a história do aluguel do at. No
entanto, Marcos pediu que Elize desse um jeito de tirar a mulher do
apartamento imediatamente, pois convidá-la para entrar não havia sido uma
boa ideia. Na sala, Chantall atribuía seus hematomas a um suposto
relacionamento abusivo no qual o namorado lhe dava murros possuído por
ciúme. Acreditando na conversa da moça, Lívia cou estarrecida e
sensibilizada. Aconselhou-a a denunciar o suposto agressor. Elize surgiu na
sala e interrompeu a conversa das duas. Pediu licença mais uma vez, pegou a
bolsa e a chave do carro ainda demonstrando a ição. Disse ter de sair às
pressas com Chantall por causa de uma emergência. Educada, Lívia
levantou-se e caminhou rumo à porta. Perguntou se podia ajudar com algo.
Ouviu um “não” seco como resposta. Na despedida, a mulher do empresário
reclamou da falta de companhia para sair em São Paulo e trocou contato
com Chantall, sugerindo uma happy hour qualquer dia desses. A prostituta
cou empolgada com a nova amizade. “Gostei muito de você”, reforçou a
esposa de Marcos para a jovem goiana, saindo em seguida.
Bonita, gentil e com uma timidez típica de gente do interior, Lívia
nasceu pobre no município de Nova Prata, na região serrana do Rio Grande
do Sul. Filha de um balconista com uma professora de Educação Moral e
Cívica, melhorou de vida depois de fazer um curso técnico industrial e
conquistar uma vaga à fábrica da Yoki supervisionando a operação das
máquinas de empacotar grãos. Seu salário era de 1.800 reais no início dos
anos 2000. Em 2003, sua vida mudou do vinagre para o vinho. Marcos fez
uma visita de rotina à fábrica de 350 funcionários e se deparou com a beleza
da “funcionária de chão”, como eram denominados os integrantes do baixo
escalão nas unidades da Yoki. Tal qual um enredo de novela mexicana,
patrão milionário e empregada bonita de baixa renda trocaram olhares
sedutores entre maquinários de fabricar paçoca. Na mesma semana, ele a
convidou para jantar. Quando soube do encontro da lha com um dos
donos da empresa, a mãe de Lívia começou a traçar planos. A ideia era que
Lívia sgasse Marcos custasse o que custasse. Nem precisou de esforço
materno para o casal engatar um romance. Duas semanas depois, fugazes,
Marcos e a operária estavam namorando rme. O empresário levou o
relacionamento tão a sério que foi pedir a bênção aos pais da jovem. A mãe
quase desmaiou. No início, Marcos, de 33 anos na época, passou a visitar a
fábrica do interior do Rio Grande do Sul mais vezes para encontrar com a
namorada, de 28. Por ordem dele, Lívia era promovida na empresa à medida
que a relação se consolidava. Deixou a supervisão operacional e passou a
cuidar de um conjunto de equipamentos, como tanques e bombas, essenciais
na linha de produção da Yoki. Mais tarde virou gerente de produção. O
salário saltou – por ordem dele – para 3.500 reais, considerado alto na época
para quem tinha apenas o curso técnico.
Com seis meses de namoro, Marcos e Lívia se casaram. Para Lincoln e
Paolo, o empresário assegurou que largaria todas as prostitutas do mundo
para se dedicar exclusivamente ao seu novo amor. Por um longo período ele
parou de ir às cobiçadas festas semanais na mansão de Arethuza, e de fato
cortou relações com todas as prostitutas com as quais saía frequentemente.
Com todas elas, uma vírgula. Havia uma garota que Marcos considerava
essencial e não largava de jeito nenhum: Gizelle, sua ancée devota de Nossa
Senhora Aparecida. “Dessa princesinha eu não abro mão nem sob a mira de
um fuzil”, justi cava a amigos. Os dois mantinham encontros esporádicos e
ultrassecretos em suítes de hotéis de luxo de São Paulo. “O fato de sair com
uma pro ssional não signi ca que eu não amo a minha noiva”, ponderava.
A festa de casamento para 400 pessoas ocorreu em Nova Prata e custou
quase meio milhão de reais. Da família de Marcos compareceram os pais,
irmão, tios, tias e primos, além de todo o primeiro escalão da Yoki e
centenas de funcionários da fábrica gaúcha. Amigos do lado A e B da vida
dupla de Marcos também marcaram presença. Lincoln e Paolo foram os
principais representantes do lado alternativo. O casório foi realizado num
nal de tarde, numa vinícola com vista deslumbrante da Serra Gaúcha. Tudo
bancado pelo noivo. A vida de Lívia mudou feito conto de fadas. De reles
operária de chão de fábrica, passou a ser casada com o lho da proprietária
de uma das maiores indústrias alimentícias do país.
O primeiro deslumbre ocorreu na lua de mel. Marcos levou a esposa
para uma mansão em Atenas, na Grécia. Depois seguiram para um hotel de
luxo na ilha de Creta, encravada na imensidão do mar Egeu. Marcos alugou
um iate de luxo e passeou com Lívia por dez dias pelo Cabo Sounion, que
detém uma das águas azuis mais belas e misteriosas do mundo. O executivo
já havia se aventurado pelo arquipélago grego outras vezes. Coube a ele
ciceronear a mulher pelo passeio histórico. Na embarcação, ele explicava
com dedicação e amor a origem do nome do famoso mar. De acordo com a
mitologia, Egeu era rei de Atenas, cidade-estado da Grécia Antiga. Seu lho,
o herói Teseu, havia partido para a ilha de Creta para matar o monstro
mitológico Minotauro, uma criatura humana horripilante com cabeça de
touro, habitante de um labirinto mal-assombrado. Egeu acreditava que seu
lho havia sido devorado pelo Minotauro durante uma luta. Inconsolável,
atirou-se nas águas e morreu afogado. No entanto, o desfecho da batalha
teria sido o oposto: Teseu matou o Minotauro com um único golpe em sua
cabeça. Em sua homenagem, o mar ganhou o nome do rei ateniense. O local
onde o pai de Teseu se jogou no mar cou conhecido como Templo do
Poseidon. Marcos e Lívia banharam-se nus nas águas cristalinas do Egeu, no
mesmo ponto onde o pai de Teseu teria desaparecido.
A ex-operária cava cada vez mais inebriada pelo espírito aventureiro do
marido e por seus conhecimentos sobre História Antiga, gastronomia e
vinho. Da Grécia, eles seguiram para Tóquio, no Japão, onde caram por
quinze dias. Todas as viagens eram feitas na primeira classe e as
hospedagens se deram em hotéis caríssimos. A mudança de status de Lívia
era apoteótica. Na volta da lua de mel, os dois foram morar na mansão no
Alto de Pinheiros, em São Paulo, avaliada em 15 milhões de reais. De
funcionária da Yoki, ela passou a ser dondoca. Nos meses seguintes, o casal
seguia trocando juras de amor eterno e jantando e bebendo grudadinhos
praticamente todo dia num restaurante diferente. Às vezes, eles tinham a
companhia de Lincoln. Fizeram outras viagens para praias do Nordeste. Era
como se o romantismo não tivesse m. Mas teve. Nove meses depois do
casamento, a relação azedou sem que um motivo especí co e concreto
pudesse ser apontado. Como na canção de Maysa, o mundo de Lívia caiu
antes das bodas de papel, quando o casal completaria um ano de união. Um
abismo entre ela e o marido se abriu. Os dois chegavam a car na mansão
cercados por empregados em pleno domingo à tarde lendo jornal e tomando
café – cada um sentado em uma poltrona – sem trocar uma palavra. No
entanto, o empresário continuava a tratá-la bem, chamando-a de “meu
amor”, “meu bem” e “paixão da minha vida”.
Nos primeiros meses de monotonia no casamento, Marcos voltou a sair
com Lincoln e Paolo durante a semana à noite. No início iam a bares e
boates, e ele se mostrava el – por incrível que pudesse parecer. Era comum
nessa época ele chegar embriagado em casa. Certa vez, os três amigos
alugaram uma mansão na região serrana da Mantiqueira e caram lá quatro
dias bebendo e jogando sinuca, praticando tiro ao alvo com armas de fogo
sem a companhia de mulher. Era como se o trio zesse um detox do vício
em prostitutas. Enquanto o marido estava sabe-se lá por onde, Lívia cava
sozinha em casa lendo revistas e vendo novelas, lmes e seriados na TV.
Alegando problemas na empresa, o executivo passava até 14 horas fora de
casa. Ele também viajava muito a trabalho, segundo sustentava para a
mulher. Quando ela se queixava da falta da companhia do marido, era
cortada por ele: “Não reclama, meu bem. Foi graças a uma dessas viagens a
Nova Prata que a minha vida encostou na sua”, dizia ele. Às vezes, a mulher
pedia para acompanhá-lo. Marcos até a levava no início, mas passou a
inventar desculpas para se livrar da sua companhia. Na verdade, segundo
amigos, no terceiro ano de casamento, o empresário já queria distância da
esposa nas viagens de negócios porque teria voltado a andar com prostitutas
a tiracolo.
Mergulhada numa vida de ócio, Lívia passou a viajar com frequência
para a casa dos pais, em Nova Prata, pois se sentia deprimida com a vida
solitária na mansão de 3.000 m2 e oito empregados. No colo da mãe, ouvia
conselhos amorosos equivocados, do tipo “volte para cuidar do seu marido”
ou “salve o seu casamento porque homem como ele você não vai arrumar
novamente”. Lívia rebatia falando da impossibilidade de manter o seu
casamento, uma vez que o amor havia acabado. A mãe, persuasiva, recorria
a metáforas de folhetim para provar que a lha estava enganada. “O amor é
uma estrela tão brilhosa quanto o Sol. Poderoso, ele não se apaga nunca.
Apenas some dos nossos olhos por um tempinho, mas volta a mostrar a sua
luz no dia seguinte. Quando o Sol desaparecer diante dos nossos olhos, lha,
isso não quer dizer que ele deixou de existir. O amor também é assim”,
justi cava. Convencida com esse tipo de conselho, a esposa de Marcos
arrumava as malas e voltava para casa para tentar consertar o que não tinha
conserto.
Mergulhada numa vida cada vez mais vazia, Lívia teve a ideia de
trabalhar para passar o tempo. Começou fazendo um levantamento de todos
os imóveis em nome do marido para administrá-los como se fosse uma
corretora. Foi na esteira dessa atividade que ela chegou até o at do Itaim e
se deparou com Elize e Chantall. No entanto, depois do encontro perigoso,
Marcos ordenou que a mulher deixasse a administração dos seus imóveis
somente nas mãos da imobiliária. Sozinha em casa e sem nada para fazer, a
esposa do executivo tentava descobrir o ponto exato em que o seu
casamento havia trincado. Não conseguia. Nem tinha como. Um belo dia,
Marcos a cobriu com beijos ardentes de amor. No outro, ele simplesmente
acordou, escovou os dentes, deu um beijo seco na testa da mulher e passou a
tratá-la com indiferença. No entanto, o sexo não cou raro entre o casal em
nenhum momento. Continuava frequente e intenso, até porque ele tinha um
apetite sexual hiperativo em função do seu transtorno psiquiátrico
(satiríase). Lívia, por sua vez, mostrava-se disponível na cama mesmo sendo
tratada com frieza ao longo do dia. Partindo dessa premissa sexual, ela
resolveu insistir no casamento muito por incentivo da família. “Filha, se ele
não te quisesse mais, ele não te procuraria na cama. A falta de sexo é o
começo do m. [...] Lembre-se que o Sol sumiu no nal da tarde somente
diante dos seus olhos...”, insistia a mãe.
De fato, o Sol nascia luzente no dia seguinte, mas a vida de Lívia
continuava triste como o silêncio da noite. Quando estava no fundo do poço
da solidão, ela passava um batom vermelho, pegava o seu carro, uma Toyota
SW4 avaliada em 300 mil reais, e percorria as ruas da cidade. Às vezes,
parava em um restaurante e jantava sozinha. O preferido era o Antiquarius,
no bairro dos Jardins, cujo teto retrátil permitia ver as estrelas no céu, que
sua mãe chamava de “gotículas de amor”. Num desses encontros consigo
mesma, ela pensou em se separar. Mas mudou de ideia imediatamente ao se
lembrar das palavras maternas: “Você acha que eu amo o seu pai todo dia?
Não, não amo. Aliás, ninguém ama diariamente com a mesma força. Seria
horrível se um romance se desenvolvesse num clímax sem m. Viva os
baixos sem se deixar abater, pois logo o amor renascerá com uma força
muito mais avassaladora”. Houve uma reviravolta no casamento, e o sol de
Lívia voltou a brilhar aparentemente de forma de nitiva. Quatro anos
depois de casada, ela engravidou e deu à luz uma menina. A paternidade
transformou o empresário num bom marido. Mas, feito uma bandeja de
iogurte fresco, seu amor pela família teve prazo de validade curtíssimo. Um
mês depois de sua lha nascer, o executivo da Yoki selava “namoro” com
Elize.
Hábil na arte de enganar, Marcos não teve di culdade para administrar a
interseção amorosa. Ele conciliou o casamento e a relação adúltera com
Elize por pelo menos três anos. A princípio, ocupada com o bebê, a esposa-
mãe não descon ava de nada. Ou ngia-se de cega para criar a lha em paz.
Já Elize sempre exerceu o papel de amante com talento e discrição. Certo
dia, no meio do jantar, Lívia resolveu provocar o marido remexendo coisas
do passado. Recapitulou exatamente o dia em que ela esteve no at do Itaim,
onde conheceu Elize e Chantall:
– Marcos, deixa eu te perguntar, você conhece aquela mulher chamada
Elize que está até hoje no at do Itaim? – quis saber.
– Não. Você já tinha me perguntado isso na época. Por que esse
interrogatório novamente?
– É que nunca encontrei o contrato de locação desse imóvel. O porteiro
me disse que ela mora sozinha lá há mais de um ano.
– Já disse para você deixar os meus imóveis de lado. Esquece isso! –
gritou ele, batendo fortemente com a palma da mão no vidro da mesa.
Se tinha algo que deixava Marcos profundamente irritado e até agressivo
era justamente ser pressionado com perguntas conhecidas como “casca de
banana”, comuns em delegacias para fazer o acusado cair em contradição.
Sem se intimidar com a voz alta do marido, Lívia avançou:
– No dia em que eu estive lá, eu vi a Elize esconder um porta-retrato
com uma foto sua...
– Aonde você quer chegar? – perguntou o executivo, ainda agressivo.
A partir daquele momento a máscara de Marcos começou a derreter.
Sem qualquer explicação, a esposa deixou de ser pací ca no casamento. A
sua amizade com Chantall engrenou depois daquele encontro no at. As
duas passaram a sair uma vez por semana. Em um café-bar, a garota de
programa teria contado a Lívia em tom de segredo que Elize era sustentada
por Marcos havia mais de dois anos. Chantall nega até hoje ter feito tal
revelação, apesar de admitir que cara “muito amiga” da esposa de Marcos
por muito tempo. “Eu jamais trairia a Elize. Até onde eu sei, a Lívia
descobriu que o apartamento não estava alugado fazendo uma consulta na
imobiliária”, sustentou Chantall em novembro de 2020. Esse imbróglio
envolvendo o at do Itaim teria sido o pivô do m do casamento de Marcos.
Numa discussão, a esposa pediu que o marido provasse que Elize era
inquilina. Num ímpeto, aos berros, Marcos teria posto uma verdade
dolorosa para fora:
– Quer saber mesmo? Então toma: a Elize é minha amante há três anos.
Eu jamais largaria você para car com ela porque você vale muito mais do
que uma prostituta, apesar de ser uma operária de piso de fábrica. Não há
nem comparação. Mas agora quem não te quer mais sou eu. Odeio mulher
que ca no meu pé com esse tipo de investigação. Arruma as suas coisas e
suma dessa casa ainda hoje. Suma da minha frente! Saia da minha cidade!
Desapareça da minha vida para sempre! Volte para a sua vida triste de pobre
naquele cu de mundo!
Diante do comportamento explosivo do marido, Lívia começou a
perceber que o seu sol, ao contrário do que pregava a mãe, havia se apagado
de vez. Com medo de ser espancada e apavorada com o arsenal bélico do
empresário, ela arrumou as malas, pegou a lha pequena e foi para um hotel
naquela mesma noite. No dia seguinte, partiu para Nova Prata. Mas, antes da
viagem, Lívia fez uma visita a Elize no at do Itaim. Na segunda vez em que
esteve frente a frente com a amante do seu marido, ela estava com sua lha
no colo. A conversa aconteceu no meio da sala e foi tensa:
– O Marcos me contou que você é garota de programa. Ele te sustenta,
né? Tirou você da calçada e pôs aqui nesse apartamento. Ele também me
tirou do chão da fábrica...
– O que você quer? – interrompeu Elize.
Cuidadosamente, Lívia acomodou a lha no sofá e Elize recuou com
medo de apanhar. A mulher a tranquilizou:
– Fique calma. Eu não vou bater em você. Nem me passa pela cabeça
fazer isso porque o Marcos não merece ter duas mulheres se espancando por
ele...
– O que você veio fazer aqui? – insistiu Elize.
Lívia se aproximou da garota de programa. Face a face, olho no olho,
continuou:
– Vou dar um conselho que eu sei que você não vai seguir. Mesmo assim
vou falar: eu vim te avisar para pular desse barco enquanto há tempo. O
Marcos se apresenta como um homem romântico e amoroso. Mas, na
verdade, ele é altamente perigoso, cruel, desequilibrado, doente, egoísta,
machista, misógino, tóxico, escroto e muito violento. Ele vai te mostrar um
mundo maravilhoso e você cará cega. Depois ele vai destruir a sua vida.
Quando você perceber, será tarde demais.
– A minha história com ele será diferente... – ponderou Elize.
– Ah é? Será diferente? Por quê? Você se acha especial? Não se engane. O
Marcos é um homem deplorável. Não precisa jogar cartas de tarô para
prever que ele vai te trocar por outra garota de programa em pouco tempo.
Vai descartar você feito um lixo não reciclável. É uma questão de tempo.
– Obrigada por me avisar – encerrou Elize.
Depois de fazer profecias na sala da amante do seu marido, Lívia pegou a
lha e foi embora. Elize encarou o discurso da esposa do empresário como
recalque de mulher traída e rejeitada. Mas cou um pouco mexida. Não
contou para Marcos sobre a visita indigesta da ex-operária. Preferiu
comemorar. Chamou Chantall para festejar com champanhe o m do
casamento do empresário. Com Marcos livre e desimpedido, Elize passou a
operar a vida com um mundo de possibilidades que se abriria a partir
daquela separação. “Amiga, vai com calma. O Marcos pode ser isso tudo que
ela falou”, alertou Chantall. Elize deu de ombros.
Colocada diante do destino, Lívia não encontrou a felicidade depois da
separação. Teve uma fase vingativa, na qual criava junto com a mãe
obstáculos para o ex-marido ver a lha. Apontou o temperamento explosivo
do empresário como motivo para mantê-lo longe da criança. Por Chantall, a
gaúcha soube que Marcos assumira o namoro com Elize na sequência. Os
dias passavam e as angústias da ex-operária aumentavam. Amando Marcos e
distante dele, afundou-se em depressão, engordou e foi internada em uma
clínica particular especializada em prevenção de suicídio. Marcos e Lívia
haviam se casado com regime de separação total de bens. Sendo assim, ela
saiu da relação com uma mão na frente e outra atrás. Dele, recebia uma
pensão de 8 mil reais para custeio das despesas da lha. Esse valor não
pagava, na época, suas contas médicas nem o IPVA do seu carro de luxo. O
valor da pensão havia sido calculado com base no salário bruto de diretor da
Yoki, 31 mil reais na época. A título de comparação, vale relembrar: as
mesadas que Marcos pagava às prostitutas eram de quase 30 mil reais.
Separada, Lívia contraiu colite ulcerativa crônica, uma doença
in amatória no aparelho digestivo cuja causa é desconhecida, mas que
alguns especialistas associam a distúrbios do sistema imunológico
provocado por abalos emocionais. O medicamento receitado para tratar essa
enfermidade, Remicade (In iximabe), custava 12 mil reais e era de uso
contínuo. Sem dinheiro e abandonada, ela recorreu à Defensoria Pública
para forçar a prefeitura de Nova Prata e o governo do Rio Grande do Sul a
lhe darem o remédio gratuitamente.
Separado, Marcos deletou Lívia da sua vida. O empresário passou a
apresentar Elize para os amigos como “namorada” legítima. Ela já não se
prostituía mais com outros homens. Mas é bom frisar: mesmo se
relacionando livremente e apaixonados, Marcos e Elize continuavam
mantendo uma relação remunerada, pois ele ainda pagava a ela a mesada
líquida de 20 mil reais a título de exclusividade. Das amizades da zona, ela só
mantinha contato com Chantall e Joel, o gerente da boate do Baixo Augusta.
Marcos implicava com os dois, mas Elize argumentava não ter como viver
somente em função dele.
Depois da separação de Marcos, Elize continuou instalada no at e ele
voltou para a casa dos pais. Na nova fase, segundo Lincoln e Paolo, o
executivo parou de contratar prostitutas, apesar de Gizelle, sua ancée,
garantir que eles nunca deixaram de se encontrar. Segundo ela, os dois
saíram “pro ssionalmente” por oito anos – entre 2001 e 2008. “Foi um dos
meus melhores parceiros. Carinhoso, generoso e demonstrava preocupação.
Era muito ‘mão aberta’. Me deu um carro novo e pagou a minha faculdade
até eu me formar”, disse Gizelle em março de 2021. Eles só pararam de se
encontrar quando a acompanhante de luxo abandonou a pro ssão para
morar com um ex-cliente norte-americano por quem se apaixonou
perdidamente. Gizelle é dona de casa e tem dois lhos. Mora na cidade de
Kokomo, no oeste do estado de Indiana, nos Estados Unidos.
No quarto ano de “namoro”, Marcos foi morar com Elize no at do
Itaim. Na fase em que dividiam o mesmo teto, ele ainda manteria o
pagamento da mesada de 20 mil reais. No entanto, o empresário passou a
desenvolver um ciúme doentio da companheira, principalmente em relação
ao gasto desse dinheiro. Basicamente, a prostituta comprava roupas, fazia
tratamento estético – ela fez rinoplastia para mudar o formato do nariz –,
vivia em salões de beleza e passava o dia fazendo musculação. Inseguro, o
empresário acreditava que ela se embelezava para outros homens. Com isso,
ele também passou a se cuidar mais e dedicava-se integralmente ao
“namoro”. Começou a fazer musculação, tratar da pele e do cabelo. “A partir
de agora, serei outro homem. Não quero mais saber de garotas de programa.
Resgatei a minha princesinha e vou cuidar dela como se fosse única”,
pontuou aos amigos numa mesa de bar. Lincoln teria dito que Elize só
deixaria de ser uma prostituta quando o pagamento mensal de 20 mil reais
fosse suspenso. Marcos cou pensativo quando ouviu tal ponderação e
argumentou com uma oração subordinada substantiva completiva nominal:
“Tenho medo que ela vire garota de programa novamente”. E manteve a
mesada.
Apaixonado por armas e caça, Marcos levou Elize para aprender a atirar
no Clube Calibre de Tiro Esportivo, na Lapa. O empresário já frequentava o
local fazia cinco anos e era um excelente atirador. Já no nível avançado, ele
praticava tiro em alvos móveis e xos usando pistolas e fuzis. Nas aulas,
Marcos esbanjava conhecimentos sobre o uso de armas de fogo e
aprimorava algumas técnicas e performances. O executivo também
trabalhava com instrutores o fator psicológico, ao desenvolver a capacidade
de agir com armas em situações de pressão e forte estresse, como num
assalto, por exemplo.
Elize começou o curso com o básico do básico. Foi primeiro introduzida
à nomenclatura das peças, aos princípios essenciais de segurança e aos
aspectos da lei de armas vigente no país. Na segunda semana, aprendeu a
manusear armas simples e deu entrada na papelada para obter porte. Um
mês depois, Elize ganhou de presente de Marcos uma pistola Taurus modelo
G2C, 9 mm, compacta, ergonômica e leve, comprada na época por 5.500
reais. Já na fase intermediária, ela passou a treinar simulando situações mais
realistas. Trabalhava aspectos essenciais na prática de tiro, como postura,
agilidade e re exo. Os instrutores caram boquiabertos quando Elize passou
a atirar no alvo central mesmo sob pressão psicológica (em alguns treinos,
eram simulados ataques repentinos para o aluno se defender atirando). Ela
também aprendeu rapidamente a fazer recarga de munição, troca de
pequenas peças e até limpeza das pistolas.
Obcecada por armas e sem trabalho, a prostituta passou a frequentar o
stand de tiro diariamente, enquanto Marcos dava expediente na Yoki. Com
tanta dedicação, seis meses depois de muito treino ela acabou se tornando
uma atiradora mais e ciente do que o empresário. Competitivo, ele não
cou muito contente com a ascensão meteórica da “namorada” no esporte
bélico. Certa vez, Elize levou Chantall numa dessas aulas. A amiga deu uns
disparos, mas não acertou nenhum alvo. Para mostrar a sua habilidade, Elize
pôs uma latinha de Coca-Cola a 10 metros de distância para usá-la como
alvo. Em seguida, perguntou para Chantall em qual letra deveria acertar. A
amiga escolheu “A” de amor. A jovem carregou a arma, acertou a mira e
disparou. Atingiu justamente a vogal escolhida. “Elize tinha um
enquadramento de mira perfeito. Ela sacava a arma da cintura com agilidade
e ajeitava a empunhadura em fração de segundos. Também corrigia as
alavancas num piscar de olhos. Alcançava um ponto de equilíbrio e
e ciência como poucos atiradores na época. Além disso, sua precisão de
alvo era extraordinária. Mostrava-se fria e segura na hora de disparar”,
contou um dos seus instrutores, em agosto de 2020. Segundo ele, o
aperfeiçoamento dela também era fruto de muito treino com tiro a seco
praticado em casa depois de ganhar a pistola de Marcos. Tiro seco é a prática
de “disparar” a arma de fogo para treino de manejo sem que ela esteja
municiada.
Excelente atiradora, Elize passou a pressionar Marcos para mostrar a ele
o potencial dela em caças. Queria visitar as orestas do Sul e o Pantanal do
Mato Grosso, onde a Yoki tinha uma fábrica no município de Novo Campo
do Parecis. Ela tinha fome de abater animais com tiros certeiros. O
“namorado” prometeu levá-la nas próximas férias a uma mata no Paraná,
onde a caça esportiva de javalis era permitida. Enquanto isso, o casal passou
a frequentar assiduamente o Zoológico de São Paulo para ver bichos em
cativeiro. Esse fetiche acabou se tornando uma obsessão. Eles iam
praticamente toda semana e faziam passeios no Zoo Safári para sentir a
emoção de estar perto de dezenas de animais selvagens, como leão, girafa,
camelo, hipopótamo e avestruz. No passeio, Elize mirava os animais com os
dedos e fazia gestos de arma com as mãos para simular tiros, marca
registrada do ex-presidente Jair Bolsonaro em suas campanhas eleitorais.
Quando a mira dos dedos estava ajustada, Elize ngia disparar e soltava uma
onomatopeia – pááá! – em alusão ao som do estampido. Em seguida,
soprava a ponta dos dedos como se deles saísse fumaça. Marcos ria daquele
gesto infantil e a cobria de beijos molhados de amor.
O passeio na selva de mentirinha do zoológico era feito em um Jeep
Wrangler de Marcos. Eles percorriam 2,9 quilômetros em uma área total de
80 mil m². Elize costumava alimentar algumas espécies dentro do carro com
ração vendida no próprio zoológico. De tão encantada com a vida selvagem,
ela passou a frequentar o parque durante a semana sem a companhia do
empresário. Algumas dessas visitas eram feitas com Chantall. As duas
passavam a tarde inteira no local. Na época, elas tinham verdadeiro fascínio
pelos macacos e pelas serpentes. Até que esse excesso de visitas ao zoológico
foi motivo para a primeira briga séria do casal.
Certo dia, Elize estava com Chantall no zoológico quando se deparou
com um macaco novato no viveiro dos primatas. Elas pararam para olhar.
Era um chimpanzé macho alfa, batizado pelos treinadores de Pepe. Ele tinha
sete anos, 1,60 m de altura e pesava 80 quilos. Brincalhão e sedutor, era
egresso do jardim zoológico de Lisboa, em Portugal. De repente, Pepe parou
perto de Elize e passou a olhá-la xamente através do vidro. O bicho estava
encantado por ela. Chantall foi a primeira a fazer chacota. “Esse macaco está
apaixonado por você”, brincou. As duas riram e seguiram com o passeio pelo
parque. Dois dias depois, Elize voltou sozinha ao zoológico e lá estava Pepe
cortejando-a. O primata olhava para a prostituta querendo se comunicar.
Elize fez várias fotos de Pepe. À noite, mostrou as imagens para Marcos:
– Olha esse macaco que chegou ao zoológico. Chama-se Pepe –
empolgou-se.
– O que é que tem ele? – desdenhou o empresário.
– Você não achou ele bonito?
– Não! Nem um pouco – revidou, irritado.
Para amigos, Marcos confessou ter ciúme de Pepe. “Acho que a minha
‘namorada’ está apaixonada por um macaco”, reclamou para Lincoln. “Eu li
não sei onde que os chimpanzés seduzem as mulheres”, contou o amigo,
deixando o empresário mais intrigado. Na semana seguinte, Elize voltou
com Chantall ao zoológico para visitar Pepe, que era um macho
extremamente dominante. Seu bando de macacas tinha oito fêmeas e ele
cruzava na hora que bem entendesse, independentemente de elas estarem ou
não no período fértil. Em pouco tempo, Pepe se apaixonou por uma
chimpanzé chamada Maria Pia e teve um lhote, o Petit. Elize acompanhou
toda a formação da família do novo amigo primata, registrando tudo pela
câmera do seu celular ao longo de um ano. Numa outra visita, as duas
amigas agraram o momento em que Pepe cruzou com uma outra macaca.
Elize conseguiu lmar o ato sexual. A fêmea no cio mostrou-se disponível
para a cópula ao apresentar ao parceiro o órgão genital inchado e cor-de-
rosa. Pepe não perdeu tempo e cobriu a parceira. Animada com o agrante
de amor, a jovem foi mostrar os vídeos novos a Marcos e ainda ponderou
que Pepe fazia sexo seis vezes ao dia, segundo um tratador havia dito.
Quanto mais Elize contava para o “namorado” detalhes da vida sexual de
Pepe, mais ele espumava de ciúmes. Num ataque de fúria, o empresário disse
não querer mais saber das macaquices de Pepe e a proibiu de ir ao zoológico
sem a sua companhia.
No dia seguinte, Marcos foi sozinho ao zoológico ver o macaco com os
seus próprios olhos. O primata costumava interagir com o público. Quando
viu o empresário, ele se aproximou para cumprimentá-lo. O executivo
encarou o gesto cortês de Pepe como provocação. Seu ciúme só fez crescer.
Ao sair do parque, ele passou numa loja clandestina de animais e comprou
por 5 mil reais um lhote de jiboia recém-nascido de 50 centímetros e 150
gramas, além de uma dezena de camundongos. Embrulhou a cobra, que
tinha escamas nas cores cinza-claro e dois tons de marrom, puxando
também para o preto. Levou a serpente para casa numa caixa com furinhos
nas laterais. Na hora do jantar, ele deu o mimo para Elize. Ao abrir o
presente, ela quase caiu para trás com a surpresa. Elize batizou a jiboia de
Gigi e a deixou passear pelo seu colo. Os ratinhos foram postos num viveiro.
Enquanto isso, Marcos pediu para a sua “namorada” prestar muita atenção
para o que ele tinha para falar:
– Às vezes, o homem entra na vida de uma mulher no momento
errado...
– Ai meu Deus! – interrompeu ela, chorando, agarrada à cobra.
– ...Elize, você é muito linda. Algumas vezes, quando você está
dormindo e a luz da janela se re ete no seu rosto, eu co paralisado, sem
fôlego. Eu co sem respirar por causa do tamanho da sua beleza.
– Eu te amo! – declarou-se Elize pela primeira vez.
– Eu também te amo, meu amor. Não tem como não te amar. Você é
uma mulher deliciosa. Derruba qualquer um!
– Marcos, você é o homem mais importante da minha vida! –
interrompeu mais uma vez, já com Gigi passeando pelos seus ombros e pelo
seu busto.
– Cheguei à conclusão de que você é a mulher que vai passar o resto da
vida ao meu lado. [...] Você quer casar comigo?
– É tudo que eu mais quero nessa vida!
– Prometa que você nunca mais irá ao zoológico visitar nenhum macaco.
– Prometo por tudo que é mais sagrado nessa vida! Só terei olhos para
você e para a nossa lha, Gigi!
Ato contínuo, Elize beijou a cobra no nariz e a colocou dentro de uma
caixa de madeira. Pegou um rato branco da cesta segurando-o pelo rabo e o
ofereceu ao réptil. Apavorado, o roedor correu, chiando de um lado para o
outro. Gigi manteve-se imóvel até a presa se cansar. Quando o rato
nalmente cou sem fôlego, a cobra se aproximou lentamente. Imobilizou o
bicho com um bote certeiro no pescoço e enrolou-se nele rapidamente para
sufocá-lo e quebrar seus ossos. A esmagadura violenta interrompeu o uxo
de sangue e, em consequência, o fornecimento de oxigênio aos órgãos vitais
do roedor. Essa falta de oxigênio causada por sufocamento, conhecida como
isquemia, destruiu rapidamente os tecidos do cérebro, fígado e coração.
Alguns minutos depois, a serpente abriu a bocarra e começou a engolir a
presa pela cabeça. Marcos e Elize apreciaram com devoção a cena asquerosa.
Excitado, o casal trocou beijos de amor e desejo. Fizeram amor no tapete da
sala. Enquanto isso, Gigi, devidamente alimentada, saiu da caixa e rastejou
sem rumo pelo chão do apartamento à procura de um lugar tranquilo para
fazer a digestão.
“Não me mande meninas problemáticas,
dessas que a mãe fica enchendo o saco”

F
altavam poucos minutos para as 16 horas de uma quarta-feira quando
tocou o telefone celular de Violeta, a cafetina piauiense especializada
em garotas de programa de pouca idade. Do outro lado da linha estaria
Lúcia Amélia Inácio, assessora particular de Samuel Klein, empresário
bilionário e fundador das Casas Bahia. O magnata era conhecido no Brasil
pelo pomposo título de O Rei do Varejo. A metonímia foi-lhe atribuída na
esteira da sua gloriosa biogra a, cujo enredo continha drama na infância,
suor e trabalho escravo na adolescência e muito sucesso pro ssional na vida
adulta. O empresário polonês nasceu pobre em 1923, em uma família judia.
Perdeu a mãe e cinco irmãos executados em campos de concentração.
Enquanto esperava na la para também ser assassinado pelo Estado nazista,
Samuel se destacou com carpintaria no trabalho forçado e conseguiu escapar
do Holocausto. Em 1951, aos 27 anos, emigrou para a Bolívia. No ano
seguinte, chegou ao Brasil e começou a trabalhar exaustivamente como
vendedor ambulante. Seu negócio era bem simplesinho. Ele comprava
artigos de cama, mesa e banho no tradicional comércio do Bom Retiro, em
São Paulo, e revendia de porta em porta usando uma carroça puxada por
um burro, no município de São Caetano do Sul, mesorregião metropolitana
de São Paulo. A maioria dos seus clientes era formada por retirantes
nordestinos, apelidados na cidade de “baianos”, embora muitos deles fossem
egressos do Ceará, Maranhão, Pernambuco, Pará e Piauí.
Mesmo sem falar português e com pouco dinheiro no bolso, Samuel
conseguiu abandonar a carroça e abriu uma lojinha um ano depois de
chegar ao solo brasileiro. Em homenagem aos seus clientes nordestinos,
batizou o empreendimento de Casas Bahia. A empresa recém-inaugurada
tinha um importante diferencial: não havia nenhuma restrição de crédito
para quem quer que fosse. Muitos dos seus clientes eram velhos conhecidos
da época da carroça e moravam na vizinhança. Sendo assim, eles
compravam ado na loja. A dinâmica era típica de comércio do interior: o
consumidor entrava, passeava por entre as prateleiras, escolhia artigos para a
casa e o vendedor anotava em um caderninho. Na extensa lista de fregueses,
havia gente analfabeta, sem documento e sem nenhum centavo no bolso. Na
loja de Samuel eles pegavam principalmente colchão e cobertor. Os que não
sabiam escrever o próprio nome reconheciam a dívida esfregando o polegar
numa almofada umedecida com tinta de carimbo azul e imprimindo a
digital no tal caderninho, no campo para assinatura. No nal do mês,
honestíssimos, os “baianos” voltavam às Casas Bahia para honrar a dívida e
o nome. Na mesma toada, eles faziam novas compras, oxigenando o negócio
de Samuel. Com esse esquema prosperando, o empresário teve uma ideia
visionária: inventou a compra por crediário usando carnê de pagamento.
Anos mais tarde, ele inovou o varejo brasileiro ao conceder
indiscriminadamente crédito mesmo para quem tivesse nome sujo na praça.
Meio século depois, Samuel Klein administrava mais de 500 unidades das
Casas Bahia, cujo faturamento anual alcançava a casa dos 10 bilhões de reais
em meados dos anos 2000. Na mesma época, sua rede varejista empregava
57 mil funcionários e mantinha uma carteira com 26 milhões de clientes
cadastrados. Infelizmente, por trás da capa de empresário de sucesso de
Samuel Klein, escondia-se um monstro.
Assim como Marcos Matsunaga, Samuel era viciado em prostitutas, com
o agravante criminoso de praticar pedo lia. A fama de gostar de meninas fez
o empresário ganhar no mercado da prostituição outro apelido: O Rei das
Novinhas. Samuel manteria na folha de pagamento das Casas Bahia uma
equipe de 12 funcionários formada por seguranças particulares, motoristas,
secretárias e até uma enfermeira encarregada de contratar garotas de
programa menores de 18 anos para o patrão satisfazer as suas taras sexuais.
Quando a equipe não encontrava prostitutas inéditas – ele evitava repetir
uma pro ssional –, o pedó lo “mandava buscar” meninas virgens com
idades entre 10 e 12 anos em bairros da periferia. Ele as estuprava sem dó
nem misericórdia dentro do seu escritório na sede das Casas Bahia, no
município de São Caetano do Sul, em suas propriedades apoteóticas do
litoral paulista e em uma mansão de praia luxuosíssima, em Angra dos Reis.
Na tarde em que ligou para Violeta em busca de novas presas para o seu
chefe, Amélia estaria organizando uma festa na mansão do empresário em
Alphaville, município de Barueri, Região Metropolitana de São Paulo.
Amélia teria pedido à cafetina três garotas para se juntarem a um grupo de
oito candidatas:
– O bode velho ainda dá no couro? – quis saber Violeta.
– Você não faz ideia do quanto. Tem noites que são dez numa única
festa.
– Eita, ferro!
– Agora ele tá com essa presepada de não repetir puta. Acredita? Isso
nos dá trabalho dobrado... – reclamou Amélia.
– Eu não mexo com menores de 18 anos...
– Eu sei, amiga. Mas algumas das suas garotas têm cara de criança. Vou
precisar de três putinhas bonitas com seios pouco desenvolvidos e bem
magricelas. [...] Manda elas virem vestidas com roupas de adolescente que o
velho vai pensar que são piranhas de 13, 14 aninhos... – orientou Amélia
pelo celular.
– Vou ver o que tenho disponível por aqui e te aviso.
– Outra coisa: não me mande meninas problemáticas, dessas que a mãe
ca enchendo o saco no dia seguinte. Quanto menos problema, melhor pra
gente – alertou Amélia.
Samuel só transava sem preservativo. Era praxe uma enfermeira de sua
con ança submeter as garotas a exames laboratoriais para detectar doenças,
como aids, gonorreia, hepatites virais e sí lis. Logo após o ato sexual, essa
mesma enfermeira obrigava as meninas a tomarem pílulas do dia seguinte.
No início, esse trabalho seria feito somente por Amélia, que começou a
carreira pro ssional nas Casas Bahia na função de enfermeira do
departamento de Recursos Humanos, nos anos 1970, na sede da empresa.
Quando Samuel começou a aliciar e estuprar menores, Amélia teria sido
promovida a assessora pessoal e de estrita con ança do empresário. Com
isso, foram contratadas outras duas enfermeiras para dar suporte ao
diagrama criminoso de Samuel. Violeta conhecia o zelo com a saúde do
empresário das Casas Bahia. Ela escolheu três prostitutas aparentemente
sadias dentro do per l exigido por Amélia. No dia seguinte, o técnico de um
laboratório de análises clínicas passou no escritório da cafetina para coletar
o sangue das candidatas. Três dias depois, saiu o resultado negativo para
todas as infecções.
Samuel Klein tinha 80 anos quando Amélia estava organizando a tal
festa com as pro ssionais de Violeta. Segundo uma dezena de inquéritos
policiais, ele foi acusado de se bene ciar de um esquema de aliciamento de
crianças e adolescentes para saciar seus desejos sexuais de forma predatória
durante décadas. O Ministério Público de São Paulo sustentou que o seu
lho mais velho, Saul Klein, de 50 anos na época da tal festinha, teria
herdado esse traço perverso do pai e também usufruiria de uma rede
particular para aliciar e estuprar de forma violenta mulheres adultas e
menores de idade. No caso dos dois empresários das Casas Bahia, o modus
operandi era semelhante. Segundo a investigação, eles contratavam cafetinas
para arregimentar suas vítimas. Depois de abusar delas sexualmente de
forma vexatória, usavam o poder econômico para calar tanto as vítimas
quanto seus familiares. Ficou constatado também que algumas prostitutas
extorquiam tanto o pai quanto o lho depois dos programas.
No dia combinado com Violeta, Amélia mandou um carro de luxo ao
escritório da cafetina, no bairro do Ipiranga. Um motorista particular de
Samuel cou encarregado de transportar as encomendas do patrão. Violeta
havia selecionado três meninas: duas de 19 anos e outra de 18 recém-
completados. As três, conforme exigido pelo contratante, tinham cara de
novinhas. Roupas de adolescente, maquiagem leve e penteados com
trancinhas ajudavam a rejuvenescê-las. Uma delas, Gina, a de 18 anos, tinha
seios tão minúsculos que nem faziam volume na blusa. No carro rumo à
mansão, as garotas seguiam pela Rodovia Castelo Branco, enquanto o
motorista lhes dava instruções. “Vocês têm de car caladas o tempo todo na
festa. Só abram a boca se o doutor Samuel perguntar algo. E se tiverem que
falar, usem voz infantil. Quem conseguir seduzir o velho receberá mais
dinheiro”, prometeu. Perto da chegada, o motorista repassou pirulitos de
cereja para elas chuparem assim que entrassem na mansão. A ideia era
passar uma imagem de sedução inocente com o gesto pueril.
Novata nesse tipo de aventura, Gina estava com medo, apesar de vender
o corpo em boates havia um ano. As outras duas garotas, Mariá e Rebeca,
pareciam mais à vontade. Ao chegarem à mansão de Samuel, elas foram
recepcionadas por Amélia, toda emperiquitada com roupa e acessórios de
festa. A assessora especial con scou os celulares das garotas de programa e
as levou até um ambiente amplo que servia de antessala da suíte master da
mansão. Lá, havia outras cinco meninas sentadas em sofás e poltronas. Uma
delas parecia ter 12 anos, segundo relato de Gina. Três seguranças armados
estavam em pé vigiando a porta da suíte e o ambiente onde as meninas
aguardavam. Em seguida, Amélia passou uma orientação a elas: “Vocês
quem sentadinhas aqui até o doutor Samuel adentrar por aquela porta.
Quando ele se aproximar, vocês quem de pé e façam gestos sensuais. Ele
vai olhar para cada uma de vocês e selecionará primeiramente duas. As
escolhidas seguem com ele para a suíte e ganham logo de cara mil reais pela
disposição. Depois teremos os bônus. Quem não trabalhar, volta para casa
com vale-compras, tá?”.
Na sala de espera havia uma mesa com salgados, doces, refrigerantes e
baldes de gelo com bebidas alcoólicas. Ao lado funcionava uma pista de
dança privê iluminada com luzes piscantes de boate. Um DJ animava a festa
e pelo menos 30 pessoas dançavam no local. Amélia circulava por todos os
ambientes segurando uma taça de bebida e sempre voltava para falar com as
meninas. “Sirvam-se à vontade, meus amores, mas não exagerem para não
atrapalhar a performance de vocês”, teria pedido a secretária de Samuel.
Uma hora depois, uma enfermeira toda vestida de branco cruzou a sala
segurando uma bandeja de inox, cumprimentou as prostitutas rapidamente
e entrou na suíte master, onde Samuel estava deitado na cama apenas de
roupão. A enfermeira limpou a genitália do empresário com algodão e
álcool. Na sequência, aplicou uma injeção de Alprostadil no dorso lateral do
seu pênis. Pela bula do medicamento, uma ereção completa ocorreria dali a
pelo menos 10 minutos e duraria uma hora. Com pressa, Samuel foi até a
antessala escolher as suas primeiras presas. Sem dizer uma palavra, ele tou
o rosto de cada uma delas. Aproximou-se de Gina e pediu que ela tocasse
em seu pênis pela abertura do roupão. Ela obedeceu e ele perguntou:
– Você gostou?
– [silêncio]
– Eu perguntei se você gostou! – insistiu.
– Sim... – respondeu a garota, trêmula.
– Então que de joelhos e me chupe! – ordenou o empresário.
Humilhada e com medo dos seguranças armados, Gina obedeceu. Fez
sexo oral em Samuel Klein na frente de uma dezena de pessoas. Entre as
testemunhas, havia garçons circulando e até uma senhora de serviços gerais
uniformizada recolhendo copos e taças vazios deixados pelos móveis da
mansão. As demais meninas caram apreensivas com a dinâmica vexatória
do programa. “Foi uma das cenas mais sujas e asquerosas que testemunhei
em toda a minha vida. Não posso dizer que fui ingênua em estar ali naquela
casa. Eu sabia que teria de transar com um velho em troca de dinheiro. Mas,
quando vi aquele circo de horrores, tentei desistir e não tive como fazer isso.
Não havia jeito de escapar. E o pior ainda nem tinha acontecido”, relembrou
Gina em março de 2021.
Gina era um codinome escolhido por ela para se prostituir no
anonimato. Nascida em Maringá, no Paraná, em 1986, era lha de uma
cabeleireira com um motorista de táxi. Teve uma infância comum ao lado de
um irmão um ano mais velho. A família morava em uma casa de madeira
com quintal amplo e muitas árvores. Quando ela completou 12 anos, os pais
se separaram. Gina cou morando com a mãe. O pai desapareceu de sua
vida, apesar de continuar no mesmo bairro com outra mulher. Sentindo
falta de afeto paterno, Gina resolveu procurá-lo quando estava prestes a
completar 15 anos. O encontro foi perturbador, segundo a sua própria
de nição. O taxista acreditava que a lha queria dinheiro para fazer uma
festa de aniversário. “Não tenho um tostão para lhe dar”, foi logo dizendo
assim que a viu. Ela tentou abraçá-lo, mas ele se esquivou. Emocionada,
Gina disse que desejava carinho e não dinheiro, pois sentia muito a falta
dele. “Pai, eu queria que você simplesmente gostasse de mim. Que se
preocupasse comigo. Que me perguntasse como estou na escola, essas coisas
de família, sabe?”. A garota teve um choque quando ele disse não ser esse
tipo de pai – que abraça, beija e afaga. “Eu nunca quis ter lhos, nem família,
nem nada. Por isso eu caí fora. Siga a sua vida e esqueça de mim”, encerrou o
pai. Depois do encontro, revoltada com a rejeição, Gina resolveu virar
prostituta. A mãe cou sem chão. Os primeiros clientes da garota foram
justamente os taxistas do ponto em que o pai trabalhava.
A vingança de Gina contra o pai durou pouco. Aos 16 anos, ela logo saiu
de casa para se prostituir em São Paulo. Dividiu apartamento com uma
amiga e fazia ponto na boate Love Story, no bairro República. “Minha amiga
ganhava muito dinheiro fazendo programas. Isso me incentivou. Conheci
muita gente interessante, comprei roupas de marca e vivia no salão de beleza
para car sempre linda. Eu acordava e já me maquiava, pois tinha clientes
logo cedo. Que menina não iria querer esse tipo de vida?”, contabilizou. Aos
17 anos, Gina cobrava 400 reais por um encontro de uma hora e fazia até
oito atendimentos no dia. Boa parte dos seus programas, nessa época, era
encaminhada por um cafetão. Os cabelos loiros bem lisos e corte chanel com
franja cobrindo toda a testa renderam a ela o apelido de Gina, em referência
à mulher estampada na caixinha do famoso palito de dente. A garota tinha
aparência frágil por causa da magreza e por ser tão baixinha. Tinha 1,48 m
de altura e pesava 35 quilos no início da carreira de pro ssional do sexo. Na
entrevista de recrutamento feita por Violeta, Gina quase foi reprovada por
causa da aparência cadavérica. “Falta saúde nesse corpo, menina”, criticou a
cafetina ao examiná-la nua, em 2003, quando tinha 17 anos. Em seguida, a
velha perguntou: “Você aguenta o peso de um homem?”. Gina respondeu
“sim”. No ano seguinte, aos 18 anos, ela nalmente entrou no cobiçado
catálogo da ru ona piauiense. O comércio do sexo na vida de Violeta era tão
institucionalizado que ela deu as boas-vindas a Gina com o seguinte
comentário: “Você vai receber dinheiro para fazer o que muitas mulheres
estão loucas para fazer de graça e não conseguem”.
Na noite em que estava com outras garotas de programa na antessala de
Samuel Klein, Gina foi escolhida para entrar na suíte master do velho
juntamente com outra garota conhecida como Vik, de 20 anos. Quando
Samuel cou nu, Gina descobriu o quanto aquele sujeito era decrépito.
Segundo mulheres que passaram pela sua cama, ele tinha pelancas pelo
corpo todo, bunda ácida e pênis torto. Havia nele um aspecto repulsivo em
todos os sentidos. “A feiura era assustadora não só pela forma física, mas
também por ser grosseiro e violento. Falava com a gente como se fosse um
ditador”, de niu Vik. De fato, quem conheceu a intimidade de Samuel relata
que, além de lhe faltar beleza, havia nele ausência de elegância,
cavalheirismo e espiritualidade – elementos que o dinheiro dele não
comprava. Segundo amigos íntimos do empresário, sequelas de passagens
violentas vividas por ele em campos de concentração durante a adolescência
o teriam transformado em um homem de coração duro e bastante cruel,
principalmente à medida que foi envelhecendo.
Mesmo diante de uma criatura horrenda, Vik encarou a adversidade
feito trabalho. Ela tirou a roupa, pulou em cima dele e o beijou como se o
mundo fosse acabar dali a instantes. O empresário ordenou que Gina
também tirasse a roupa e zesse sexo oral nele enquanto a outra garota o
beijava. Quando se aproximou novamente do pênis de Samuel, a menina
teve uma crise de choro.
– Por quem derramas essas lágrimas? – quis saber ele, irritado.
– Me desculpa, mas eu não consigo.
– Como é que é?! – gritou.
– Quero sair daqui! – implorou a garota.
Gina correu para a porta da suíte e tentou abri-la, mas estava trancada
por fora. A pro ssional iniciou um escândalo gritando “me tire daqui!”.
Samuel puxou a prostituta pelo braço e a jogou na cama com força bruta.
Um segurança entrou na suíte rapidamente por uma outra porta e o
empresário pediu ajuda para violentar Gina. As luzes da suíte foram
apagadas. O funcionário chamou um outro colega e os dois imobilizaram a
garota. Um a segurou pelos braços e o outro, pelas pernas, que estavam
abertas. Segundo relato de Vik e Gina, Samuel a estuprou intensamente por
mais de 40 minutos. “Ele fez sexo anal e vaginal em mim enquanto estava
sendo segurada por dois brutamontes. Quando eu gritei, um dos seguranças
tapou a minha boca com a mão. Tive um sangramento forte no ânus e
mesmo assim ele não cessava. O remédio parou de fazer efeito e o pênis dele
cou ácido. Acho que ele introduziu algum objeto na minha vagina e no
meu ânus, pois senti muita dor. [...] Uma enfermeira foi me buscar na cama
e me levou para um outro ambiente, onde havia uma maca. Ela usou água
oxigenada e um tipo de ácido [tranexâmico] para estancar o sangramento
no meu ânus. Depois, en ou na minha goela uma pílula do dia seguinte e
ainda se certi cou de que eu havia engolido. Eu estava tão assustada que não
conseguia nem chorar”, contou Gina em fevereiro de 2021.
Ao ver tamanha brutalidade, Vik tentou sair da suíte, pois acreditava que
também seria estuprada com violência. Um segurança a imobilizou. Depois
de Gina ser levada pela enfermeira, as luzes foram acesas e Samuel entrou no
banheiro para tomar uma ducha. Havia manchas de sangue na cama. Duas
funcionárias entraram para trocar os lençóis. O segurança deu uma sugestão
para Vik:
– Não ofereça resistência. Deite-se e abra as pernas. Faça tudo o que ele
mandar. Você não será violentada se for obediente. Amanhã você vai me
agradecer pelas dicas...
De volta do banho, Samuel perguntou pela “próxima piranha”. O
segurança apontou para Vik, que estava deitada na cama. A garota olhou o
pênis ácido do cliente e imaginou que não haveria penetração. Estava
enganada. A enfermeira entrou novamente na suíte com a tal bandeja de
inox e aplicou mais uma dose de estimulante sexual no empresário. Calmo,
ele se disse “cansado” e fez um pedido: “Vamos logo acabar isso?”. As luzes
foram apagadas mais uma vez. Com medo de ser espancada, Vik seguiu o
conselho do segurança e cou quietinha para saciar a sede do Rei das
Novinhas. Depois de mais de 30 minutos de sexo sem proteção, ela deixou a
suíte e seguiu para a sala onde era servido o comprimido contraceptivo de
emergência. No meio da madrugada, Gina e Vik foram acomodadas num
dos quartos da mansão para descansar. “O que mais me deixou chocada foi a
conivência daqueles funcionários. Com medo de apanhar, quei muda na
cama enquanto o Samuel transava comigo. No meio do ato, entrava um
segurança e perguntava se estava tudo bem e se ele estava precisando de
algo. Ele respondia e o funcionário saía como se aquilo fosse a coisa mais
normal do mundo”, relatou Vik em março de 2021.
No dia seguinte pela manhã, as meninas desceram para a varanda da
mansão. Havia uma mesa de madeira rústica com doze lugares. Em outra
mesa, foi servido por garçons um brunch completo para todas elas, inclusive
para as que não transaram com o empresário. Havia cestas de pães, café
solúvel, leite quente, achocolatado, cappuccino, diversos tipos de queijo,
presunto, ovos mexidos com trufas negras, risoto, panquecas, tiras de bacon,
waffles e muitas frutas da estação. Samuel não apareceu para comer.
Ninguém tocava na comida. Amélia surgiu na varanda com sorriso largo
para uma reunião com as garotas. Antes de começar a falar, Gina se levantou
e denunciou aos prantos:
– O doutor Samuel me violentou! Dois seguranças me seguraram...
– Nossa, minha lha, que absurdo! Depois você me conta como foi –
comentou Amélia, ngindo indignação.
Prática e objetiva, a secretária particular de Samuel Klein pegou uma
caixa de sapatos e botou sobre a mesa do café. “Quanto cada uma quer
receber pelo trabalho?”, perguntou em voz alta. Em seguida, abriu a caixa e
pegou de dentro uma pilha de notas de 100 reais. Houve um burburinho no
ambiente. Vik foi a primeira a se manifestar: pediu mil reais. A funcionária
de Samuel disse que a garota merecia bem mais e deu-lhe 1.500 reais. Vik
pegou o dinheiro e levou uma bronca da assessora de Samuel porque
começou a conferir as notas. “Não seja indelicada, menina!” Em seguida, a
prostituta guardou o dinheiro na bolsa. Na sua vez, Gina falou em voz alta
que também merecia 1.500 reais. “Não, não, não! Imagina! Você vai receber
muito mais do que isso, lha”, anunciou a funcionária. No mesmo café da
manhã, Gina ganhou um envelope já separado com 2 mil reais. As duas
prostitutas não sabem dizer se as outras cinco garotas transaram com
Samuel, apesar de cada uma delas ter recebido 800 reais. Todas também
ganharam vale-compras no valor de mil reais para gastarem em qualquer
loja das Casas Bahia. “Eu comprei uma máquina de lavar roupa”, recorda-se
Vik. “Eu dei os meus cupons para a minha mãe. Ela foi na loja da Avenida
Brasil, no centro de Maringá, e comprou uma geladeira nova e um sofá
enorme de oito lugares. O cupom não deu para pagar tudo e a gente dividiu
a diferença no carnê”, contou Gina. Até Violeta ganhou bônus do velho. A
cafetina recebeu 3 mil reais em dinheiro vivo e Amélia ainda mandou
entregar uma televisão 29 polegadas e um refrigerador de ar na casa da
cafetina.
No nal da distribuição de dinheiro na mansão de Samuel Klein, Amélia
perguntou: “Quem aqui já andou de helicóptero?”. Houve uma agitação
entre as oito garotas quando uma aeronave de doze lugares pousou no
gramado da mansão, causando uma forte ventania. Elas tomaram café da
manhã às pressas, receberam o celular de volta e embarcaram. Fizeram um
voo panorâmico pelo céu de São Paulo numa manhã ensolarada e pousaram
num heliponto da Avenida Paulista. Com remuneração tão boa, Vik
encontrou Samuel mais duas vezes sem que ele percebesse a repetição. Gina
não teve coragem. Com sequelas emocionais, resolveu abandonar a
pro ssão. Voltou para a casa da mãe, em Maringá, duas semanas depois de
ser violentada pelo empresário. Numa crise de choro, contou para a mãe
sobre o estupro, pontuando a fortuna do criminoso. Revoltada, a cabeleireira
pegou um ônibus com a lha e seguiu até São Paulo para denunciar Samuel
na Delegacia da Mulher. Antes, as duas passaram no escritório de Violeta
para pegar o nome completo do estuprador. A cafetina as recebeu
sorridente. Quando ouviu as intenções da mãe de Gina, a velha quase caiu
da cadeira. Ponderou para a senhora:
– Não seja estúpida de procurar pela polícia! A sua lha dormiu com um
dos homens mais ricos do país.
– Ela foi estuprada! – esbravejou a mãe.
– Isso é bem relativo... Olha aqui, minha senhora! Deitar-se com Samuel
Klein é como ganhar na loteria. Deixe de ser tonta. Que futuro a sua lha
terá como prostituta?
– Vou à delegacia!
– Não seja radical, criatura. Esteja aberta a um acordo, pois o que a
senhora vai ganhar denunciando um homem poderoso? – perguntou
Violeta, servindo um suco de maracujá.
Não se sabe se a mãe de Gina já saiu de casa disposta a faturar com o
crime no qual sua lha era a principal vítima. Ela jura que não. No entanto,
mal saiu do escritório de Violeta, Amélia ligou no celular da cabeleireira
para tentar evitar um escândalo. A cafetina fez um relatório verbal:
– O velho fez um estrago na menina. Ela tá toda dilacerada. Melhor
resolver por aqui – aconselhou Violeta.
Na semana seguinte, chegava à casa da mãe de Gina, em Maringá, um
caminhão das Casas Bahia contendo geladeira, freezer, micro-ondas, estante,
sofá, TV de 29 polegadas, aparelho de ar-refrigerado, máquina de lavar
roupa, máquina de lavar louça, aquecedor, liquidi cador, uma batedeira de
bolo, entre dezenas de outros itens, como telefones celulares. Um advogado
de Samuel Klein chegou pouco antes da entrega e fez mãe e lha escreverem
o nome em diversos documentos. Em resumo, as duas asseguravam com as
assinaturas que o sexo na suíte de Alphaville fora feito de forma consentida.
Depois, uma outra advogada procurou Gina para incluí-la numa lista de
outras 15 garotas de programa que foram estupradas por Samuel Klein.
Essas mulheres zeram um outro acordo extrajudicial e receberam uma
indenização de 80 mil reais em 2007. Uma cláusula do contrato determinava
con dencialidade. Toda a papelada foi registrada num cartório de Maringá.
Gina cou calada até 2014, quando Samuel Klein morreu, aos 91 anos,
vítima de uma parada cardiorrespiratória. “O dinheiro me trouxe conforto,
confesso. Mas minha vida não existe mais desde aquele estupro. [...] Nunca
consegui manter uma relação estável e adquiri uma depressão que parece
não ter mais m”, contou Gina em março de 2021.
No dia 15 de abril de 2021, a Agência Pública, especializada em
jornalismo investigativo, revelou em seu site extensa reportagem de caráter
documental contando com riqueza de detalhes o esquema criminoso de
Samuel Klein. “O fundador das Casas Bahia teria usado seu poder como
empresário bem-sucedido para manter durante décadas um esquema de
aliciamento de crianças e adolescentes para a prática de exploração sexual
dentro da icônica sede da empresa, em São Caetano do Sul, além de outros
locais em Santos, São Vicente, Guarujá e Angra dos Reis. Mas a história
desses crimes não envolvia apenas o patriarca da família Klein. Seu lho
Saul Klein é investigado por aliciamento e estupro de mais de 30 mulheres.
Segundo relato de dezenas de fontes, há semelhanças na forma de agir de pai
e lho”, denunciou a Agência Pública. A reportagem é de autoria dos
jornalistas Ciro Barros, Clarissa Levy, Mariama Correia, Rute Pina, iago
Domenici e Andrea Dip.
Na verdade, o rol de mulheres que denunciaram Saul Klein por
aliciamento e estupro já passava de 500 em maio de 2021. É bom deixar
claro feito água cristalina: nem todas as vítimas, tanto de Samuel quanto de
Saul, eram prostitutas. Muitas foram parar nas festas organizadas pelos
empresários milionários atraídas por promessas de emprego. A isca
geralmente eram propostas de trabalho em congressos e feiras de exposição
promovidos pela empresa dos Klein.
“No nal de 2010, fui indicada por uma agência de modelos para
trabalhar como recepcionista num evento chamado Super Casas Bahia, no
Pavilhão de Exposições do Anhembi, em São Paulo. Na época, eu tinha 19
anos. Os testes foram feitos numa mansão em Alphaville. Quando cheguei
lá, havia dez garotas para a mesma entrevista. Ficamos esperando numa sala
ampla no piso inferior. Nós éramos chamadas a uma outra sala, onde cava
o senhor Saul Klein e uma assistente. Ambos sentados a uma mesa de vidro
enorme. Eu me sentei numa poltrona e ele se levantou e veio sentar-se ao
meu lado. Começou a entrevista me perguntando se eu era cliente das Casas
Bahia. Falei que alguns meses atrás havia comprado um telefone celular
Samsung e dividido em 24 prestações xas no carnê. A tal moça, uma
senhora na verdade, anotava tudo o que eu falava num bloco de papel.
Depois, o Saul me pediu para car de pé e dar uma volta pela sala como se
estivesse numa passarela. Eu z o que ele mandou e me sentei novamente na
poltrona, meio envergonhada. Ele disse que o meu movimento foi frígido,
sem carisma e emoção. Eu vestia uma saia pouco acima dos joelhos
conhecida como godê, daquelas rodadas e soltas. Ele me mandou car de pé
novamente e falou para levantar a saia para ver as minhas coxas. Achei
aquilo estranho e olhei para a senhora sentada à mesa, um pouco distante da
gente. Ela balançou a cabeça em sinal a rmativo. O Saul disse que o meu
teste seria remunerado em 2 mil reais, caso zesse até o nal. Eu levantei a
saia só um pouco, pois estava bastante nervosa. Ele mandou eu levantar
ainda mais para ver a minha calcinha. Olhei novamente para a assistente,
que falou suavemente ‘tudo bem’. Mirei os olhos num ponto xo da parede e
levantei a saia de uma vez até a altura da cintura. Ele então se levantou, me
deu um beijo na boca e pegou no meu sexo. A tal senhora me pagou os 2 mil
reais de cachê pelo processo seletivo. Disse que havia sido aprovada e
alguém me ligaria. Na saída, ela me pediu discrição e lealdade. Fui embora
para casa tremendo dos pés à cabeça.”
“Na semana seguinte, recebi uma ligação dizendo que havia sido
aprovada no teste. Achei estranho porque eu tinha lido na internet que o
evento do Anhembi havia sido cancelado naquele ano. Eu voltei à mansão
para uma festa de celebração da cultura polonesa, a convite da senhora do
teste. Era um evento esquisito em que as pessoas tinham que jogar cinzas
quentes na cabeça. Algumas das modelos que conheci na seleção também
estavam lá. O Saul e alguns convidados vestiam trajes típicos do folclore
polonês [stroje ludowe]. Havia muito álcool, comida e uma banda fazendo
show no palco. Acho que puseram algum aditivo na minha bebida. Tomei
duas taças de champanhe e me deu muito sono. Fui parar numa cama de
casal enorme em uma das suítes. Quando acordei, estava nua e o Saul estava
em cima de mim, me penetrando. O ambiente era meio escuro. Como estava
dopada, não tive forças para sair da cama. Olhei para o lado e vi três
mulheres nuas, caídas no chão. Elas pareciam estar desmaiadas, pois
estavam meio empilhadas – uma por cima da outra. Um outro homem se
masturbava em pé, vendo o Saul me estuprando. [...] Depois de ejacular, ele
saiu de cima de mim. Estava tão fraca que não tive condições físicas para
sair do colchão. Uma outra garota entrou na suíte e começou a tirar a roupa.
Para liberar a cama, o Saul me empurrou e caí nua no chão. Acabei
desmaiando por cima das outras mulheres. Fui acordar no dia seguinte no
mesmo local às 17 horas, sendo que eu havia chegado lá às 20 horas do dia
anterior. A tal senhora me pagou 6 mil reais e ainda perguntou se a noite
tinha sido boa. Fiquei com tanta vergonha daquela humilhação que prometi
a mim mesma que apagaria esse dia da minha memória. Gastei todo o
dinheiro que ele me deu com terapia. Hoje eu me sinto uma mulher
imunda”, relatou Ana Meeussen. Ela também fez acordo extrajudicial com o
empresário para não denunciá-lo.
Na maioria das ações movidas na Justiça envolvendo os crimes da
família Klein, as vítimas sustentavam que foram violentadas por Samuel e
Saul quando eram menores de idade. Uma delas conta no processo que foi
estuprada pelo patriarca quando tinha 9 anos. Mais tarde, adultas, elas
passaram a cobrar indenização por danos morais. Com a morte de Samuel,
as vítimas dele tentaram reparar perdas e danos obtendo indenização junto
aos herdeiros. A disputa pela herança do fundador das Casas Bahia, no
entanto, virou um drama familiar à parte. Como Samuel morreu sem deixar
testamento, seu lho mais velho, Michael Klein, nascido em 1951, foi
nomeado inventariante do espólio do pai. Saul Klein, três anos mais novo
que o primogênito, mesmo todo encrencado com a polícia, entrou com uma
ação na Justiça para tomar do irmão a função de administrador dos bens do
pai. Michael usou justamente as denúncias de crimes sexuais contra Saul
para mantê-lo longe da gerência do patrimônio deixado por Samuel,
avaliado em cerca de 6 bilhões de reais. Na ação judicial, Michael e Eva, irmã
mais nova, argumentavam que Saul não merece o posto de inventariante por
ter “manchado” a imagem da família Klein com escândalos.
No bojo da disputa pelos bens de Samuel Klein, Saul foi até uma
delegacia e disse que seus irmãos haviam falsi cado a assinatura do pai para
passá-lo para trás. A polícia instaurou inquérito para apurar crime de
estelionato envolvendo os documentos usados na divisão da herança, que
inclui o controle das Casas Bahia. Segundo Saul, a assinatura do pai foi
falsi cada no contrato social da rede de lojas e também nos papéis da
sucessão. Depois das supostas fraudes, os principais bene ciados da herança
foram Michael e seus lhos. Segundo a lei brasileira, a herança pode ser
dividida livremente de acordo com o desejo do testamentário. A defesa de
Saul também cita uma série de alterações societárias das Casas Bahia que
permitiram a Michael se tornar o maior acionista da empresa. Os
documentos em questão serão analisados pelo Instituto de Criminalística,
que emitirá uma avaliação independente sobre as assinaturas. Se a fraude for
comprovada, haverá um rearranjo dos recursos nanceiros e do patrimônio
deixados por Samuel Klein.
Além de batalhar por um naco maior na herança do pai estuprador, Saul
Klein já foi dono da Associação Ferroviária de Esportes, um tradicional time
de futebol do município de Araraquara, interior de São Paulo. Com as
denúncias de violência sexual subindo até o pescoço, ele acabou se afastando
das atividades esportivas. Em 2020, mesmo acusado de estupro, foi
candidato a vice-prefeito do município de São Caetano do Sul pelo PSD e
declarou à Justiça Eleitoral, na época, um patrimônio de 61,6 milhões de
reais.
Os supostos crimes de Saul começaram a brotar na mídia às vésperas do
Natal de 2020. Na edição de 23 de dezembro daquele ano, o jornal Folha de
S. Paulo publicou uma denúncia na coluna da jornalista Mônica Bergamo,
com chamada na primeira página, sob o título “Filho do fundador das Casas
Bahia é acusado de estupro e aliciamento por 14 mulheres”. A reportagem,
assinada pelo jornalista Bruno B. Soraggi, revelou que o empresário estava
proibido de entrar em contato com as mulheres que supostamente foram
estupradas por ele desde 2008. Na sequência, o jornal informou que Saul
teve o passaporte apreendido pela Polícia Federal para evitar uma possível
fuga do país. A violência sexual teria ocorrido em festas também
organizadas numa mansão em Alphaville. Um dos inquéritos que
investigavam os crimes do lho de Samuel corria sob sigilo na Delegacia da
Mulher de Barueri. No dia 27 de dezembro de 2020, o Fantástico, da TV
Globo, exibiu uma reportagem de 14 minutos mostrando em horário nobre
imagens das festas de Saul e apresentando depoimento de pelo menos sete
das mulheres que denunciaram o empresário. “Ele cava cada vez mais
bêbado e louco. Nós tínhamos de falar com voz na como se fôssemos
crianças. Tinha menina que andava pela casa segurando uma boneca”,
contou uma das vítimas. Na reportagem, uma ex-funcionária de Saul
revelou que o empresário recebia em suas festas, em média, 200 mulheres
por ano. Segundo a advogada das vítimas, Gabriela Souza, elas eram
submetidas a cárcere privado na mansão de Saul – uma teria cado presa lá
por uma semana. Eram também coagidas a ingerir bebida alcoólica e a vestir
biquínis mesmo em ambientes com temperatura muito baixa. A reportagem
do Fantástico é de autoria dos jornalistas Estevan Muniz, James Alberti e Iuri
Barcelos.
No dia 30 de abril de 2021, outra reportagem especial descortinou o
esquema criminoso de Saul Klein. O site Universa, hospedado no portal
UOL, revelou depoimentos de mais nove mulheres que teriam sido vítimas
do empresário. Segundo a reportagem, uma garota de 17 anos, chamada
pelo pseudônimo de Sabrina, teria recebido uma mensagem pelas redes
sociais de uma agência chamada Íris Monteiro Eventos. A princípio, era um
convite para a garota trabalhar como divulgadora de uma marca de biquínis.
A jovem aceitou. Uma semana depois de prestar esse serviço, ela teria sido
convidada pelas donas da agência a participar de um evento promovido por
Saul Klein. Com receio, recusou. Depois de dizer “não”, Sabrina passou a ser
procurada insistentemente por uma das sócias da agência, de prenome Íris.
Essa mulher perseguia a garota até na porta da escola para tentar convencê-
la a aceitar o “trabalho” com Saul Klein. Ele seria dono da marca divulgada
pela jovem. Depois de ouvir muitos convites, ela acabou convencida por Íris.
No tal evento, Sabrina teria sido estuprada pelo empresário de forma
recorrente e sem preservativo. Em várias ocasiões, segundo consta na
reportagem do Universa, a jovem era mantida em cárcere privado. A garota
teria se juntado a outras vítimas de Saul para denunciá-lo. Traumatizada
pelos abusos, passou a desenvolver problemas psiquiátricos. Cinco anos
depois de ser estuprada, Sabrina acabou se matando. A reportagem do
Universa contando essa história teve a assinatura dos jornalistas Pedro
Lopes e Camila Brandalise.
Em julho de 2023, Saul Klein teve uma importante derrota na Justiça do
Trabalho. Ele foi condenado a pagar uma multa de R$ 30 milhões por aliciar
jovens mulheres e adolescentes com promessas mentirosas de emprego e, na
sequência, explorá-las sexualmente. O julgamento atendeu aos pedidos
feitos pelo Ministério Público do Trabalho (MTB), que investigou o caso e
con rmou os crimes, pedindo uma indenização inicial de R$ 80 milhões.
Segundo o MPT, Klein “cooptava adolescentes e jovens entre 16 e 21 anos,
em situação de vulnerabilidade social e econômica, com a falsa promessa de
que iriam trabalhar como modelos, submetendo-as a condição análoga à
escravidão”. Ainda de acordo com o órgão, essa é a maior condenação por
trá co de pessoas já feita do Brasil. A decisão também revela que Saul
montou um esquema criminoso para “satisfazer seus desejos pessoais,
ferindo aspectos íntimos da dignidade da pessoa humana, e causando
transtornos irreparáveis nas vítimas. Os crimes mudaram de nitivamente o
curso da vida de cada uma delas”. Além do valor de R$ 30 milhões, Saul
cou proibido de praticar trá co de pessoas, especialmente de mulheres e
adolescentes, incluindo “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir,
comprar, alojar, acolher mulheres”. Como a decisão não é da área criminal,
não há condenação com pena de prisão. Uma curiosidade: a indenização de
R$ 30 milhões não será concedida às vítimas. O dinheiro será entregue a três
instituições sem ns lucrativos, seguindo as normas da legislação trabalhista
do país.
Ao longo do tempo, os administradores das Casas Bahia tentaram
desvencilhar a imagem da empresa dos escândalos sexuais de Samuel e Saul.
A família Klein teria sido afastada do comando da empresa em 2011,
quando foi criada uma holding batizada de Via Varejo para gerir as marcas
Casas Bahia, Pontofrio, Extra.com.br e Barti. Em abril de 2021, Via Varejo
teve seu nome encurtado para Via. Quando as primeiras denúncias contra
Saul surgiram na mídia, a Via divulgou um comunicado dizendo que o
empresário “nunca possuiu qualquer vínculo ou relacionamento com a
companhia”. Saul Klein, por sua vez, negou veementemente todas as
acusações de aliciamento e estupro feitas contra ele. Encarregado de
defender o empresário, o advogado André Boiani e Azevedo a rmou que
seu cliente é a vítima e não o criminoso desse caso policial. A sua tese de
defesa era, no mínimo, curiosa. Segundo Azevedo, nas relações com essas
mulheres, Saul fazia papel de sugar daddy, termo usado para de nir velhos
que sustentam “namoradas” novas em troca de companhia, carinho e sexo.
“O Saul vem sendo vítima de um grupo organizado que se uniu com o único
objetivo de enriquecer ilicitamente à custa dele, por meio de realização de
ameaças e da apresentação de acusações falsas em âmbito judicial, policial e
midiático.” Já a família de Samuel Klein enviou uma nota de pesar para
rebater as acusações póstumas contra O Rei das Novinhas: “É com enorme
tristeza que a família Klein tomou conhecimento da publicação de matérias
sobre Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, falecido em 2014. Imigrante
polonês, judeu e sobrevivente do Holocausto, ele sempre ensinou que é
preciso muito trabalho e coragem para enfrentar os desa os da vida. É uma
pena que ele não esteja vivo para se defender das acusações mencionadas
[...]”.
Então, tá.

* * *

Na metade da década de 2000, a vida de Elize começou a mudar da água


para o vinho e do vinho para o champanhe. Ela havia entrado para o tão
sonhado curso de Direito em 2006. Foi aprovada com louvor na
Universidade Paulista. Também andava nas nuvens por estar “noiva” de
Marcos Matsunaga. O casamento no civil estava marcado para o dia 8 de
junho de 2009. Para celebrar a nova fase da vida, um ano antes de trocarem
aliança, o empresário resolveu comprar um apartamento para morar com a
futura esposa. A aquisição milionária foi feita no dia 30 de junho de 2008 à
revelia de Elize. A ideia era fazer uma surpresa para a amada. O imóvel
escolhido foi uma luxuosa cobertura dúplex na Vila Leopoldina, zona oeste
de São Paulo. Uma cobertura, não. Ele comprou logo duas de uma vez só.
Aliás, a excentricidade e a exuberância eram características indeléveis da
personalidade de Marcos. Segundo psicólogos que cuidaram da sua saúde
mental, o empresário sofreria de um distúrbio conhecido como “transtorno
do exagero”, caracterizado, entre vários aspectos, por uma compulsão na
hora de comprar bens materiais de alto valor aquisitivo. Fissurado pela
prática de tiro, por exemplo, ele não tinha uma, duas ou três armas em casa.
Mantinha uma coleção invejável com 33 itens, incluindo pistolas alemãs,
submetralhadoras e fuzis AR-15. Quando foi ao pet shop clandestino
comprar uma cobra de estimação para Elize, o empresário também foi
extravagante. O tra cante de animais havia oferecido uma pequena cobra da
espécie real californiana (Lampropeltis getula californiae) nas cores vermelha
e branca. O bichinho era dócil, media 150 centímetros de comprimento e
custava 2.500 reais. Ou seja, ideal para criar em apartamento, segundo o
vendedor. Marcos não quis. Preferiu um lhote de jiboia que custava o
dobro do preço, poderia alcançar até 4 metros e era dona de uma picada
poderosa, apesar de não possuir veneno. O empresário colecionava Lego, o
famoso brinquedo dinamarquês de blocos de montagem. Na época, estava
sendo lançada a versão creator, possibilitando a montagem de estruturas de
até 10 mil peças. O preferido era o Taj Mahal de 43 centímetros de altura,
montado em sete estruturas modulares, ocupando internamente um dos
quartos da casa. Outro exemplo da megalomania do empresário da Yoki era
a adega particular com 2 mil garrafas de vinho, avaliada em 3 milhões de
reais. As armas, o Lego, os vinhos e a cobra Gigi teriam sido o principal
argumento para comprar as duas coberturas espaçosas.
Os apartamentos (números 171 e 172 da Torre A do Edifício Roma)
localizavam-se na Rua Carlos Weber, 1.376. Os imóveis somavam 370 m2
distribuídos no 17o e 18o andares. Juntos tinham seis suítes, três salas de
estar, inúmeros corredores estreitos e uma sala de jantar. Apesar de ser um
imóvel grande, os ambientes eram apertados por causa do excesso de
compartimentos, todos mal divididos. Os corredores davam voltas e
terminavam sempre nos mesmos lugares, parecendo labirintos. Da porta
social, por exemplo, seguia uma passagem comprida com destino tanto à
cozinha quanto à sala principal. Um outro caminho começava na mesma
porta social e dava acesso à copa, a um bar amplo e a outra sala com lareira.
Nesse cômodo havia uma escada social com acesso ao pavimento superior.
Lá, mais corredores apertados e interligados com passagem para três suítes,
um quarto de hóspedes e um escritório. Os banheiros eram pequenos,
levando em conta a imensidão do imóvel. Uma outra escada dava acesso à
cozinha e à lavanderia. Já as varandas eram espaçosas e tinham uma vista
fascinante da cidade de São Paulo. Do segundo piso, uma outra escada dava
acesso ao terraço duplo, onde havia churrasqueira e uma piscina enorme em
formato circular.
Um quarto foi transformado em paiol para armazenar a coleção bélica
de Marcos, incluindo pistolas, fuzis, metralhadoras, muita munição e
silenciadores. O cômodo parecia um bunker, espaço conhecido como quarto
do pânico. Se um bandido entrasse no apartamento, Marcos e Elize se
esconderiam dentro dele. As portas eram blindadas e cavam escondidas
por trás de um armário de madeira. Dentro havia sistema de refrigeração
independente e um umidi cador, além de linha de telefone exclusiva para
chamadas, em caso de emergência. Na sala principal havia um bar com
estrutura completa. O balcão alto era de cimento e mármore. Tinha pia,
refrigerador vertical para guardar cerveja, freezer com gelo e uma pequena
adega climatizada.
A adega-mãe da casa ocupava um dos quartos da cobertura. O espaço
foi adaptado com climatizador industrial. O imóvel possuía duas vagas
duplas na garagem (nºs 9 e 10), localizadas no segundo subsolo, com
capacidade para acomodar quatro carros. As coberturas foram compradas
no dia 30 de junho de 2008 por um preço abaixo do mercado, 1 milhão de
reais, o equivalente na época a 628 mil dólares. No cartório, os dois imóveis
foram registrados somente no nome do empresário. Para se ter uma ideia do
ótimo negócio feito por ele, em 2008, um apartamento simples de três
quartos no sexto andar do mesmo prédio estava à venda por 700 mil reais.
Em 2020, as duas coberturas foram avaliadas em 3,4 milhões de reais.
Com as chaves em mãos, Marcos recorreu a um clichê para apresentar o
apartamento a Elize. Ele a levou ao local com uma venda nos olhos. A
“noiva” quase morreu de alegria quando viu a vastidão do apartamento, já
meio mobiliado pelo empresário. No terraço, a garota de programa – nessa
época ela ainda recebia a mesada de 20 mil reais – falou com Marcos sobre a
possibilidade de eles se casarem no religioso. O empresário descartou a
ideia. Ele usou as regras do Vaticano como argumento, que impediam uma
pessoa de se casar duas vezes sob o teto divino de uma igreja. Marcos já
havia sido casado com Lívia no religioso. Com isso, a união seria celebrada,
a princípio, somente no civil. Elize cou inconformada em não ter o seu
matrimônio abençoado por Deus. Segundo os preceitos da Igreja Católica,
um casamento religioso não pode ser dissolvido. Sendo assim, de acordo
com o direito canônico, pessoas divorciadas que se casam novamente pelo
rito civil cometem adultério em relação ao primeiro cônjuge. Por essa
interpretação, eles se tornaram impedidos de participar de uma nova
comunhão. Católica, Elize entrou numa vibração religiosa e disse estar
disposta a mover uma montanha de lugar, se fosse preciso, para se casar de
véu e grinalda. Ela também não aceitaria a sina do “noivo” de viver
eternamente sob o manto de um pecado mortal e começou então a
pressioná-lo para providenciar um casamento na igreja, pois seu sonho de
adolescente era vestir-se de noiva. Elize falava do seu dilema religioso num
almoço com Chantall, quando uma pauta espinhosa foi posta à mesa. O
“noivado” já durava dois anos quando a amiga fez-lhe uma pergunta um
pouco incômoda:
– O Marcos já apresentou a família dele a você?
– Ainda não – respondeu em voz baixa.
– Então comece a cobrar isso dele, caso você realmente queira se casar
na igreja. E também já se prepare para apresentar a sua família a ele.
Elize perdeu até o apetite quando se lembrou de quão enfraquecidos
estavam seus laços familiares naquela época. Da mãe, não tinha notícia
desde que deixou Chopinzinho havia oito anos. A última imagem de Dilta
Araújo em sua cabeça era ela ajoelhada implorando perdão na calçada da
rodoviária da sua cidade natal. Sobre o pai biológico, Valter Giacomini, ela
não sabia dizer nem se era vivo ou morto. Ele, a rigor, era quem deveria
conduzi-la ao altar caso houvesse casamento religioso. A lembrança mais
remota do pai vinha do momento em que ele entrou na sala, espancou Dilta
e passou a mão na única TV da casa. Chantall sugeriu a Elize retornar a
Chopinzinho para fazer as pazes com a mãe e com o padrasto para poder se
casar com a presença da família. Ela concordou, mas ponderou que só faria
isso depois de encontrar um sacerdote disposto a celebrar seu casamento.
Sua alternativa foi recorrer à Igreja Anglicana, considerada mais avançada
quando comparada à Católica Romana, principalmente porque a anglicana
ordena mulheres e não exige celibato de bispos, presbíteros e diáconos. Por
intermédio de Chantall, Elize conheceu o reverendo François Badeux, de 50
anos na época. O presbítero celebrava missas numa capela anglicana em
Parelheiros, um distrito na zona sul de São Paulo. Elize passou a frequentar
sozinha as celebrações do sacerdote numa igreja bem simplória, porém
aconchegante. O trabalho de François era marcado pela prática da caridade.
Nas missas de domingo, ele distribuía lanche e brinquedos para crianças
carentes das redondezas. Numas dessas ações, Elize abordou o reverendo e
perguntou pela agenda de casamentos para 2009. Ele foi meio áspero:
– Os noivos são solteiros?!
– O Marcos é divorciado.
– Então primeiro vocês têm de se casar no civil. Quando estiverem com
a certidão de casamento em mãos, venham negociar comigo.
Marcos e Elize começaram a frequentar juntos as missas de François.
Nas celebrações de domingo, o empresário contribuía espontaneamente com
as causas sociais da igreja. Numa única caridade, ele deixou mil reais numa
sacolinha. O sacerdote quase enfartou quando viu notas de 100 reais
misturadas às moedas e cédulas de 1 e 2 reais doadas pelos éis carentes.
Numa outra visita feita durante a semana, o casal se apresentou ao
reverendo mais uma vez e contou que a data do casamento fora marcada
para o dia 17 de outubro de 2009, um sábado. Contente com as doações
generosas de Marcos, o religioso até se esqueceu da exigência do casamento
no civil para celebrar a união de éis divorciados. Marcos e Elize também
pediram para o reverendo abençoar o apartamento novo tão logo estivesse
totalmente mobiliado. Antes de dizer “sim”, François reclamou da escassez
de recursos para a recuperação do forro da sua igreja. “Parece que todos os
pombos da cidade estão morando na minha igreja. Eles passam a noite
inteira arrulhando e cagando na madeira. Tá tudo podre, fedido e
despencando na nossa cabeça”, queixou-se François. Compadecido, Marcos
se comprometeu a trocar todo o forro, e passou ao sacerdote um cartão de
visita. Quando viu o sobrenome “Kitano”, o religioso se lembrou dos
temperos condimentados da sua cozinha. Ele então se pronti cou a casar
Marcos e Elize com todo tipo de assistência religiosa, desde que eles não
abandonassem a sua igreja depois da lua de mel. Os noivos juraram jamais
se desgarrar do rebanho de François. Numa pesquisa rápida na internet, o
pro ssional da batina descobriu que a sua nova ovelha era um milionário do
ramo alimentício.
Em Parelheiros, François era considerado um reverendo fofoqueiro,
rigoroso com os éis e até meio grosseiro. Por outro lado, pouca gente em
seu círculo social estudou causas humanitárias como ele. Formado em
literatura com ênfase em contação de história e em teologia, ele também
graduou-se em inglês pela Universidade de Oxford. No seu currículo
constava ainda uma pós-graduação em Administração pela Fundação
Getúlio Vargas (FGV), além de mestrado, doutorado e pós-doutorado em
Psicologia na Universidade de São Paulo (USP). Com tantos diplomas,
François conciliava os trabalhos sociais na igreja com a atividade docente
numa renomada universidade de São Paulo. Entre os seus alunos, o religioso
também tinha fama de futriqueiro. “Falava mal da vida de todos os
professores. Uma vez ele se meteu numa confusão danada porque espalhou
na faculdade ter visto uma orientadora saindo do motel com um professor
casado. A tal orientadora entrou gritando no meio da aula pedindo para ele
provar. Foi um bafafá”, recorda-se um ex-aluno. François mantinha ainda
um consultório particular para atender como psicanalista em Pinheiros. Em
suas sessões, o religioso usava o método da conversação. Ou seja, os
pacientes eram estimulados a falar tudo o que quisessem. Depois de ouvi-
los, o terapeuta fazia as suas interpretações e dava conselhos para ajudá-los
na resolução dos seus problemas. Na seara religiosa, o religioso realizava
quase todos os rituais da igreja católica: casamento, batizado, missa,
extrema-unção e exéquias, uma cerimônia de homenagem aos mortos.
Nas missas de François, Elize e Chantall perceberam que ele era ácido
com os éis, porém educadíssimo com elas. Quando Marcos estava presente,
o religioso se transformava num amor de pessoa. Sempre solícito e educado.
Na primeira brecha, ele se queixava das di culdades nanceiras. Depois de
ter o forro da igreja todo trocado, falou da falta de recursos para comprar o
lanche das crianças “muito, muito, muito pobrezinhas” – nas palavras dele.
Esses anjinhos famintos cavam numa creche supostamente mantida por
um braço da Igreja Anglicana. Logo após essas lamúrias, o empresário fazia
doações entre mil e 2 mil reais. Depois de receber uma dessas caridades do
empresário, François se ofereceu para ser o orientador espiritual do casal,
uma espécie de conselheiro sentimental com verniz religioso. Como Marcos
e Elize tinham a vida pregressa mergulhada no pecado da prostituição, foi
impossível eles recusarem a oferta. Na sequência, o reverendo reclamou dos
seus objetos litúrgicos, que estavam muito velhos. Ele precisava substituir
cálices, incensários, pia batismal e as âmbulas usadas para guardar vinho.
Comovido com o choro santo, Marcos abriu a carteira e fez uma doação de 4
mil reais.
Enquanto Marcos pavimentava o seu caminho para o céu fazendo
doações à igreja, Elize comprava móveis e mais móveis para terminar a
mobília da cobertura dúplex. Quando o imóvel estava todo montado, o casal
chamou François para abençoá-lo, conforme havia sido combinado. O
religioso pegou o seu aspersor, objeto litúrgico usado para espalhar água
benta, encheu com o líquido sagrado e partiu para a moradia dos
pombinhos. Assim que a porta da sala se abriu para François entrar, não foi
possível ele ter noção do tamanho do imóvel, pois o ambiente tinha muitas
paredes, corredores, além de excesso de cômodas, aparadores estantes,
mesas e sofás. Ele começou jogando água benta pela sala principal. Depois,
percorreu os quatro quartos do piso inferior e a cozinha. De repente, ele viu
a escada de acesso ao segundo andar. O religioso subiu cansado e entrou na
suíte do casal. Mas já não havia mais água no aspersor. François cou
indignado:
– Minha Nossa Senhora! A água benta acabou. Isso nunca aconteceu. Eu
não sabia que esse apartamento tinha tantos cômodos!
– E agora, reverendo? O senhor nem abençoou a nossa cama... –
reclamou Elize.
– Eu voltarei outro dia com mais água benta – prometeu o reverendo.
Marcos e Elize se mudaram para o apartamento logo após a primeira
parte da bênção. O exagero no tamanho da mobília deixou os corredores e
os espaços para circulação meio apertados. Depois de arrumar a casa, Elize
ligou para o reverendo e pediu que ele fosse terminar o banho santo no
imóvel. Na segunda visita, François passou por um perrengue. Como se já
fosse uma pessoa da casa, ele passeava sozinho pelos cômodos do segundo
andar da cobertura com o seu aspersor, despejando o seu líquido
consagrado pelos cantos. Enquanto isso, Elize mudava móveis de posição na
sala principal do piso inferior com ajuda de uma decoradora. Lá em cima,
François entrou numa suíte de paredes verdes e chão coberto com carpete de
grama sintética. Havia muitas plantas de médio porte dentro de vasos
espalhados pelo quarto, o que causou estranheza no religioso. Não havia
cama nem armários no ambiente. Ao entrar, François sentiu um cheiro forte
de enxofre. Na lateral, meio coberta com galhos e folhas, havia uma caixa de
madeira grande, idêntica a uma casinha de cachorro. Sozinho no quarto, ele
se aproximou da caixa e se ajoelhou para olhar por um pequeno buraco que
servia de entrada. Não conseguiu ver nada, pois o interior da casinha era
escuro. Pelo sim, pelo não, François resolveu dar uma borrifada de água
benta para dentro da casinha. Ao se levantar, observou que havia uma
dobradiça na tampa da caixa em formato de telhado de chalé. Movido pelo
enxerimento, o religioso resolveu levantar a tal tampa de madeira. Ele deu
um grito histérico quando viu Gigi – enorme – toda molhada e enrolada lá
dentro, dormindo sossegada o sono profundo dos répteis.
Nessa época, a jiboia já tinha um ano, media 3 metros e pesava 10 quilos.
Marcos havia transformado uma das suítes do imóvel em cativeiro da
serpente com direito a uma minisselva. Havia no local até troncos de
árvores. O réptil dormia na banheira e na casinha de madeira, mas passeava
livremente por todo o apartamento, principalmente na madrugada. Comia
frangos e ratazanas vivos. Quando era de sua vontade, subia para pegar sol
na área externa da cobertura. Para não ser incomodada, costumava car
imóvel com a bocarra aberta ngindo-se de morta, uma artimanha
conhecida na zoologia pelo nome de tanatose. Quatro vezes por ano, Gigi
soltava toda a pele escamada do corpo pelo chão da casa num processo
chamado de ecdise. Marcos e Elize chamavam Gigi de lha e passavam parte
do dia com o bicho enrolado pelo corpo. Em pânico ao ver a cobra, François
foi acudido por Elize, que lhe serviu um copo de água com açúcar para
acalmá-lo. O reverendo se recuperou do susto, pediu mil desculpas pelo
vexame e foi embora às pressas, prometendo aos céus jamais pisar naquele
apartamento novamente. Mesmo assim, espirituoso, o reverendo continuou
exercendo o papel de conselheiro do casal.
Para comemorar a nova moradia e celebrar o amor, Marcos presenteou
Elize com uma Pajero TR4 novinha em folha, verde pant, blindada, avaliada
em 70 mil reais, mas com valor de venda acima de 100 mil reais, na época,
por conta da proteção à prova de balas. O carro era idêntico ao dado por ele
seis anos antes para Luluzinha, a pimentinha lha de Iansã toda trabalhada
no ciúme, com quem namorou por seis meses. Os presentes caros para a
“noiva” não pararam por aí. Benevolente, Marcos deu uma prova de amor
sem tamanho, principalmente em se tratando de um relacionamento
iniciado no mundo nebuloso da prostituição. Ele passou para Elize um
envelope cor-de-rosa lacrado com uma ta dourada e cera. A jovem já tinha
perdido o fôlego ao ganhar o carro. Ao abrir o envelope, teve uma síncope.
Dentro dele estava um documento lavrado em cartório assegurando a ela
uma das coberturas compradas recentemente pelo empresário. O termo de
doação tinha data de 15 de maio de 2009. O imóvel estava avaliado na época
em meio milhão de reais. Elize ainda ganhou um seguro de vida no valor de
600 mil reais. Comovida, ela ajoelhou-se chorando copiosamente aos pés de
Marcos. Agradeceu com todas as forças pelos presentes. “Acho que eu nem
mereço tanto, meu amor”, admitiu.
Ainda aos prantos, Elize teria suplicado: não queria mais a mesada de 20
mil reais, pois o dinheiro dava à relação um caráter mercantil. Ele
concordou e suspendeu o pagamento. Fez mais: deu a Elize acesso à sua
conta bancária de pessoa física aberta no Bradesco. Na verdade, o
empresário foi ao banco e transformou sua conta-salário individual em
conjunta. Depois dos trâmites burocráticos, Marcos repassou para a
companheira talões de cheque e cartões de débito e crédito. Era nessa conta
que o executivo da Yoki recebia cerca de 20 mil reais líquidos por mês como
salário de diretor-executivo da empresa dos pais – já com desconto da
pensão de 8 mil reais para Lívia sustentar a lha. Elize não tinha acesso aos
rendimentos de Marcos – cerca de 30 milhões de dólares anuais,
provenientes da empresa de exportação aberta por ele nas entranhas da
Yoki.
Sem a mensalidade paga para ser exclusiva, a jovem de Chopinzinho
nalmente largou a prostituição. Passou a ser chamada por Marcos de
namorada e noiva sem as aspas, que davam às palavras um sentido gurado.
Para comemorar de nitivamente o m da carreira de garota de
programa, Elize aproveitou uma viagem de Marcos para a fábrica da Yoki
em Campo Novo do Parecis, no Mato Grosso, para fazer um jantar para
quatro pessoas no superapartamento. Foram convidados um casal de
namorados da faculdade, Phelipe e Janaína, e Joel e Chantall, seus velhos
amigos. Esses dois últimos foram intimados a não falar em hipótese alguma
sobre prostituição no encontro. Os convidados caram perplexos com o
tamanho da cobertura dúplex. Começaram a noite tomando vinho no
terraço e depois desceram para jantar espaguete alla carbonara. Na
sobremesa, Elize, meio bêbada, pediu para os convidados subirem até uma
das suítes para conhecer sua lha. Chantall já sabia que se tratava da jiboia.
Avisou, apreensiva, que não iria de jeito nenhum, pois tinha fobia de cobras.
Elize cochichou no ouvido da amiga para avisar que Gigi estava presa dentro
da banheira com uma tampa de vidro espesso pesadíssima por cima.
Chantall então seguiu contrariada para o quarto da serpente. Os demais
convidados caram apreensivos com o suspense.
Nas paredes da suíte de Gigi havia quadros com fotos de Marcos e Elize
segurando a cobra já em idade adulta. Chantall cou nervosa só de olhar as
imagens. Dentro do banheiro, o pânico se instalou. A tampa de vidro estava
desencaixada. Gigi não estava lá. Chantall teve vontade de urinar de tanto
medo. Ela olhou para os lados e não encontrou o réptil. Elize foi sozinha até
a cozinha e desligou a chave geral de energia elétrica do apartamento. Os
convidados estavam na suíte transformada em cativeiro da jiboia quando
houve um estalo seguido do breu total. A escuridão fez os convidados
gritarem feito loucos pela casa. Até Elize cou nervosa com a reação
inesperada dos seus amigos. Apavorada e bêbada, Chantall começou a
caminhar feito louca pelo labirinto de corredores, batendo-se nos móveis.
Chegou a escorregar numa das escadas. Ninguém encontrava o caminho da
sala. Joel foi parar no terraço. A possibilidade de pisar na cobra ao andar
pelas trevas daquele apartamento fez Chantall ter vontade de se jogar por
uma das janelas. Depois de alguns minutos, o fornecimento de energia
elétrica foi restabelecido por Elize. Chantall nalmente encontrou a porta de
saída e correu gritando pela escada de incêndio. Só parou quando chegou à
calçada da rua. No dia seguinte, Elize encontrou Gigi tomando sol, plena, na
pérgola da piscina. Sádica, a ex-garota de programa nunca pediu desculpas
aos amigos pela brincadeira de péssimo gosto.
Dias depois de assustar os amigos com uma cobra, Elize arrumou as
malas e seguiu para Chopinzinho. Sua missão era reatar os laços familiares e
evitar o vexame de não ter parentes em sua festa de casamento. Rica, ela foi
conduzida por um motorista da Yoki de casa para o Aeroporto Internacional
de Guarulhos, onde pegou um voo para Cascavel (PR). Lá, alugou uma
caminhonete S-10 cabine dupla com tração 4x4 e seguiu em disparada por
219 quilômetros até chegar a Chopinzinho. Elize havia avisado somente à tia
Rose de sua viagem. Ao chegar à sua terra natal, à noite, preferiu car
hospedada num hotel. Cansada, foi dormir. Na manhã seguinte, seguiu para
a casa da mãe, Dilta, bem cedinho. Elize tocou a campainha. A porta
demorou para abrir. Ela tentava empurrá-la, quando alguém nalmente
apareceu para atender ao seu chamado. Era Chico da Serra, companheiro de
sua mãe. Treze anos antes, ela acusou o padrasto de estupro. O serralheiro
vestia apenas uma bermuda. Elize trajava calça jeans e um moletom.
Aparentemente, ele não conseguiu disfarçar o encantamento com a beleza da
enteada. Seus olhos subiam e desciam vagos para conferir o corpo dela por
inteiro. Elize cou incomodada com a forma de ser olhada por Chico. Ele se
aproximou ainda mais e tentou tocar no rosto da enteada com a ponta dos
dedos. A jovem se afastou:
– Onde está a minha mãe? – questionou, enfática.
– Elize? É você?! – assustou-se.
– Sim!
– A Dilta saiu para comprar pão – respondeu ele, olhando para o chão.
– Você está sozinho em casa? – perguntou a enteada.
– Sim! Você quer entrar? – perguntou, tentando encontrar os olhos da
jovem.
– Quero!
Uma dor tão profunda que não sei onde
começa nem onde termina

À
medida que a gestação de Berbella avançava, um ódio emanava por
todos os seus poros. No nal do sexto mês, ela detestava a ideia de ser
mãe, mesmo decidida a repassar a sua bebê para a irmã mais velha,
Belmira, de 28 anos. A garota de programa de 22 anos abominava a barriga
grande e os seios crescidos por causa do excesso de gordura sob a pele e
também em razão do desenvolvimento dos dutos mamários, que preparam a
mãe para a amamentação. Sem qualquer apego à lha, ela já havia deixado
claro não estar disposta a alimentá-la no peito. Tinha receio de car com os
seios caídos. Berbella contava no calendário ansiosamente o dia de parir e
voltar à prostituição o mais rapidamente possível. O combinado era repassar
a nenê à irmã ainda na sala de parto. A entrega direta de crianças pela mãe,
prática muito comum no interior do país, é conhecida como “adoção à
brasileira”.
Até então, a gestação não havia despertado o sentimento maternal em
Berbella. Os infortúnios da gravidez também contribuíram para o desejo de
se livrar da lha. Ela desenvolveu uma síndrome chamada de túnel de carpo,
ocasionando uma forte dor no nervo do antebraço. Em crises, ela gritava
como se já estivesse parindo. Também sofreu com o peso da barriga, dor na
coluna e nos tornozelos; reclamava do excesso de gases, pontadas na vagina,
incontinência urinária e principalmente das visitas recorrentes que os
futuros pais adotivos lhe faziam a qualquer hora do dia ou da noite. Muitas
delas sem prévio aviso. Vivaldo, marido de Belmira, saía no meio do
expediente duas vezes ao dia e seguia rumo à casa da sogra, Nazaré, onde
Berbella estava morando temporariamente. No caminho, ele comprava
presentes para a bebê e ores para a cunhada. No quarto da grávida, o
corretor se deitava na cama ao lado de Berbella, lambuzava nas mãos um gel
usado por médicos em ultrassom e acariciava a imensa barriga da moça por
baixo da roupa por horas e horas. Belmira morria de ciúme desse tipo de
cena, mas achava importante a conexão paternal com a futura lha. Nessas
visitas incômodas, feito bobo, o futuro pai também se botava a conversar
com a bebê. Nos monólogos, o corretor usava uma voz infantilizada e fanha.
Berbella cava irritadíssima com o que ela chamava de “doidice”. Às vezes,
Vivaldo fazia uma pergunta em voz alta do tipo “a bizunguinha cuti-cuti
ama o papai?”. Em seguida, ele encostava o ouvido na barriga da gestante e
tentava ouvir algum barulhinho como resposta. Nos nais de semana, ele
levava os dois lhos pequenos para conhecer o local onde a irmãzinha deles
aguardava para ganhar o mundo. A gota d’água foi o dia em que o cunhado
chegou com um aparelho de som portátil. Vivaldo pediu que a grávida
deitasse na cama e deu play num CD com canções que, segundo ele, faziam
uma espécie de sintonia mágica entre o bebê e o pai. Na lista das canções
estavam a clássica “Aquarela”, de Toquinho; “Pra você guardei o amor”, de
Nando Reis; e “O lho que eu quero ter”, de Chico Buarque. A essa última
música, Vivaldo se deu ao trabalho de cantar em voz alta. Berbella perdeu a
paciência com o cunhado desa nado:
– Chega dessa palhaçada! Estou com dor nas costas e essas músicas estão
me irritando!
– É para o bem da criança! – argumentou o corretor.
– Mas esse bebê é meu e ele me disse que também não está gostando
dessa cantoria. Quando ele nascer, vocês fazem o que quiserem. Agora só
quero car em paz!
Um dia depois de Vivaldo ser maltratado por Berbella, Belmira, mulher
dele, foi entregar 2 mil reais à irmã. A quantia mensal acertada entre elas
deveria ser paga todo dia 5 do mês até o parto, totalizando os 18 mil reais
distribuídos em nove parcelas. Aquela seria a sétima prestação, pois a
gravidez estava entrando no sétimo mês, equivalente à 30a semana. Nessa
fase, a bebê já pesava cerca de 3 quilos e media em torno de 40 centímetros,
segundo um ultrassom feito na mãe. Berbella ainda estava com a barriga em
pleno crescimento e as dores só aumentavam. Sem o menor apego, ela
passou a maldizer a própria lha, cujo apelido era Pequeno Alien,
justamente por causa das chacoalhadas no útero, provocando fortes dores e
cólicas. A alcunha era uma referência ao lme de cção cientí ca do
cineasta britânico Ridley Scott, Alien, o 8º passageiro, no qual uma pessoa
gerava no ventre uma raça de alienígena conhecida como xenomorfo. Com
uma gravidez complicada, Berbella peregrinava por médicos obstetras.
Cabia a Belmira e Vivaldo também bancar essas despesas, além de toda a
alimentação da futura mãe. No nal do mês, o casal terminava com uma
conta aproximada de 6 mil reais. Ainda estava programada a despesa com o
parto, orçado em 9 mil reais numa clínica particular. Na hora de pagar os 2
mil reais à irmã, Belmira se queixou do tratamento dispensado a Vivaldo no
dia anterior, quando ele pôs músicas para a bebê escutar. A jovem
mercenária rebateu a reclamação dizendo ganhar muito pouco dinheiro
para se submeter às esquisitices do corretor:
– Dois mil reais para o fardo de carregar esse alien, na verdade, é quase
nada para tudo. Principalmente para os fetiches do seu marido –
argumentou Berbella, irritada.
– Foi o valor que você pediu!
– Não! Não! Foi o valor que você ofereceu e eu aceitei. Mas estou
profundamente arrependida por causa dessa aporrinhação de ele vir
conversar com a minha barriga, trazer música para a bebê ouvir. Decidi que
vou vender a criança para um casal de italianos. Eles vão me pagar 50 mil
euros – anunciou Berbella.
Belmira entrou em desespero quando se deparou com a possibilidade de
a irmã quebrar o pacto familiar em nome do dinheiro. Nazaré, mãe das
duas, foi chamada lá na feira, onde estava trabalhando, para resolver o
impasse fraternal. Berbella encontrava-se irreconhecível aos olhos da
família. Na explicação da jovem, os 2 mil reais mensais correspondiam à
gestação. Faltava acertar o valor da bebê, orçado por ela em 30 mil reais, pois
a pro ssional “não sabia que um nenê valia muito dinheiro,” principalmente
porque nasceria um anjinho loirinho e com olhos bem azuis. Pelas contas de
Berbella, sua lha “com certeza” tinha como pai um ex-cliente sueco “tão
lindo quanto um príncipe”, em sua opinião. Belmira, fora de si, chamou a
irmã repetidas vezes de “vagabunda”, “piranha” e “puta”. A garota nem se
abalou, pois não achava os termos tão ofensivos. No calor do bate-boca,
Berbella disse estar arrependida de não ter abortado o alien nos primeiros
meses, pois já estaria de volta ao meretrício e ganhando muito mais
dinheiro.
Desnorteada, Belmira foi lá no quintal pegar um ar, chorou bastante e se
recompôs. Voltou ao quarto bem calma e pediu desculpas à irmã com voz
aveludada. Uma enxugou as lágrimas da outra e selaram as pazes.
Combinaram nunca mais falar coisas tão deploráveis, pois a bebê ouvia tudo
lá de dentro da barriga. Mas o impasse nanceiro continuava. Nazaré
sugeriu à lha mais velha aumentar o valor da prestação para 3 mil reais nos
dois últimos meses da gestação. Berbella regateou. Pediu 15 mil reais pelos
três meses e mais uma parcela única de 20 mil reais para repassar a bebê na
maternidade. No total, a criança custaria a bagatela de 47 mil reais.
Belmira e Vivaldo estavam longe de serem ricos, mas os dois ganhavam
bem porque trabalhavam muito. Ele tinha uma corretora e fazia bastante
dinheiro administrando condomínios e imóveis alugados em Campo
Grande. Também comandava uma equipe de corretores e cientes na venda
de apartamentos na planta. Seu escritório ocupava um andar inteiro de um
prédio comercial no centro da cidade. Ele ainda era sócio de uma rma de
contabilidade. Inteligente e batalhadora, Belmira começou a trabalhar aos 14
anos dando aula particular de reforço para adolescentes com di culdade de
aprendizagem. Fez faculdade de Pedagogia e começou a lecionar português e
redação em escolas privadas. Melhorou os rendimentos depois de
complementar a graduação com um curso de Administração Escolar e
tornou-se coordenadora pedagógica de uma das maiores instituições de
ensino da cidade. Também dava aulas numa universidade privada. Com
tantas fontes de receita, o casal tinha capital aplicado em diversos
investimentos. Era com esse dinheiro que eles bancavam a obsessão doentia
de ter uma menina.
A relação de Belmira e Berbella nunca foi amistosa. A caçula sempre
teve o corpo e o rosto bem mais bonitos, provocando ciúme, recalque e
insegurança na mais velha. Desde a adolescência, Berbella tinha uma
energia sexual potente, enquanto Belmira era mais apagada e sem sex appeal.
A diferença de idade entre elas era de seis anos. As duas brigavam por
namorados porque os pretendentes de Belmira sempre se encantavam pela
beleza de Berbella. A mãe conta uma história de um noivado da mais velha,
aos 18 anos, desfeito em meio a um barraco típico de novela mexicana,
porque o rapaz se apaixonou perdidamente pela caçula, com 12 na época. As
duas trocaram tapas pelo moço. Belmira acusou a irmã de seduzir o noivo.
A relação teria azedado de forma de nitiva porque Berbella namorou o tal
rapaz algumas semanas depois de ele desmanchar o noivado com a irmã.
Sem muitas expectativas com homens, Belmira mergulhou nos estudos e
subiu na vida. Casou-se com Vivaldo, colega da faculdade, aos 24 anos. A
outra parou na oitava série e virou feirante ao lado da mãe. Na fase adulta, as
brigas continuaram. A bem-sucedida humilhava a caçula chamando-a de
periguete verdureira e fracassada. O arranca-rabo só parou quando Berbella
mudou-se para São Paulo, aos 20 anos. A falta de afeto entre elas, segundo
Nazaré, foi fundamental para a negociação da bebê. “Se elas se amassem,
não haveria dinheiro na adoção”, ponderou. Segundo seu relato, Belmira
sempre foi uma mulher equilibrada e cheia de juízo. Mas ela teria começado
a “enlouquecer” quando engravidou do primeiro lho. Já no início da
gestação, Belmira desejou profundamente uma menina. Comprou
equivocadamente roupinhas cor-de-rosa, decorou o quarto do bebê com
motivos femininos e planejava batizá-lo de Ayla, a luz da Lua.
Na oitava semana, Belmira fez um exame de sexagem fetal e o resultado
revelou se tratar de um menino. Ela não aceitou e começou a rezar todos os
dias na igreja para vir uma garotinha. A mãe, extremamente religiosa,
alimentou a ideia de orar para Deus mandar uma menina, mesmo com o
exame mostrando o contrário. “O Criador pode tudo. Até mesmo mudar o
sexo de um bebê no ventre da mãe, independentemente de um exame de
laboratório”, argumentava Nazaré. Vivaldo também delirava com o
nascimento de uma menina e embarcou na loucura da mulher. Movido pela
fé cega, ele entrou na corrente de orações. A natureza, cética, prevaleceu e
nasceu um garoto, conforme o anunciado pelos médicos. O cúmulo do
absurdo foi eles tentarem batizar o bebê do sexo masculino de Ayla. Com a
recusa do cartório, o casal optou por um nome considerado neutro. Na
segunda gravidez, houve novas orações para nascer uma menina, mas Deus
novamente não deu ouvidos ao casal e mandou mais um menino. Esse
segundo lho teve as orelhas furadas e era vestido com roupinhas de menina
nos primeiros meses de vida. Uma amiga de Belmira percebeu a insanidade
do casal e sugeriu terapia. A partir das sessões com um psicólogo, Belmira e
Vivaldo passaram a dar uma criação correspondente ao gênero (sexo físico)
da criança. Como não podia mais ter lhos e não cogitava adotar, Belmira
arquivou o desejo incontrolável de ter uma lha, até que Berbella surgiu
grávida e disposta a doar, ou melhor, a vender. Vivaldo também reacendeu
os devaneios com a possibilidade de ser pai novamente.
Certa vez, Vivaldo bateu à porta de Berbella pela enésima vez com o gel
lubri cante à base de água para acariciar o barrigão da grávida. Quando ele
estava esfregando o produto oleoso nas mãos, Berbella pediu desculpas pelas
grosserias do passado. Justi cou o mau humor com a falta de sexo e noites
mal dormidas. Empolgado, o corretor começou a ler um texto em seu
celular sobre os benefícios do sexo na gravidez: “Transar durante a gestação,
além de ser ótimo para a autoestima dos pais, controla a ansiedade, melhora
o humor da mãe, aumenta a produção de anticorpos, libera endor na, traz
bem-estar, ajuda a ter um sono mais profundo e fortalece não só a
imunidade, mas também a musculatura da vagina e do ânus”. A mãe estava
na feira. Berbella então trancou a porta do quarto, tirou toda a roupa e pediu
600 reais para transar com o cunhado. Trezentos reais pelo sexo e 300 pelo
sigilo. Ele topou e os dois passaram a ter relações sexuais remuneradas pelo
menos duas vezes por semana até o m do oitavo mês de gestação. No
início, Belmira achou peculiar o marido parar de se queixar das grosserias
de Berbella, mas – enganada – acreditou que os dois haviam se acertado por
causa do reajuste nos repasses nanceiros pela gravidez.
Cansada de ser explorada pela irmã e sem descon ar da traição do
marido, Belmira fez uma reunião com ele e chamou um amigo advogado
para opinar sobre o caso. Esse, logo de cara, classi cou a compra do bebê
como “um negócio criminoso”, principalmente porque o casal estava
pensando em lavrar a adoção em cartório de forma clandestina. De fato,
registrar o lho de outra pessoa como se fosse seu ou atribuir parto alheio
como próprio é crime previsto no artigo 242 do Código Penal, podendo
resultar em pena de até seis anos de reclusão. Mesmo ouvindo falar em
“condenação” e “prisão”, Belmira e Vivaldo resolveram levar os planos
adiante, pois, segundo eles disseram na época, o desejo pela bebê estava
acima da lei. O defensor sugeriu, então, que os repasses em dinheiro a
Berbella não deixassem qualquer tipo de vestígio, como transferência
bancária e mensagens pelo celular.
Antes de entregar os 5 mil reais combinados com a irmã, referentes ao
sétimo mês de gestação, Belmira teve mais uma conversa com a mãe.
Quando soube que tinha até advogado envolvido na transação entre as
lhas, Nazaré cou nervosa com o possível desfecho daquela novela e
aconselhou a mais velha a desistir da adoção, pois não havia mais ternura
naquele enredo:
– Filha, estou preocupada, porque achei que seria um gesto de amor.
Não concordo com essa “venda”. Deus não vai abençoar o que vocês estão
fazendo.
– Agora é tarde, mãe.
– Depois que você pagar o dinheiro que a sua irmã está exigindo, ela vai
querer mais e mais. É assim que os chantagistas se comportam – advertiu a
feirante.
– A senhora acha que ela pode vender a minha lha para outro casal
mesmo depois de todo esse pagamento?
– Quem vende um lho é capaz de tudo – avisou Nazaré.
No quarto, Belmira mostrou os 5 mil reais à irmã. Antes de entregar o
dinheiro, contrariando a orientação do advogado, ela obrigou Berbella a
assinar um documento no qual a prostituta se comprometia a doar a bebê
logo após o parto. Berbella rubricou sem pestanejar, mas fez um alerta:
“Você sabe que esse documento não serve de nada, né? Para a Justiça, a mãe
sou eu”. “Você que pensa”, provocou Belmira. Em seguida, ela desobedeceu
mais uma vez o advogado. Sacou da bolsa uma nota promissória com valor
de 11 mil reais, referente à soma das sete prestações pagas até aquela data
pela bebê. A pedagoga revelou seu receio: “Não estou segura de que você vai
me entregar a criança quando ela nascer. Sendo assim, não estou disposta a
car no prejuízo. E também vou falar a verdade. Não sei mais se eu ainda
quero a sua lha, pois você não dá nenhum tipo de afeto a ela e nos impede
de fazer isso. Se você não quiser assinar, que à vontade”. Berbella nem
esperou a irmã terminar o colóquio e assinou a promissória rapidamente.
Confessou se tratar de um blefe quando falou da proposta do casal gringo.
“A minha rejeição por esse lho é muito maior do que o seu desejo
desesperado de ser mãe. [...] Fique tranquila que a bebê será sua assim que
nascer. Não faço questão nem de ser a tia”, disse Berbella, rindo cinicamente.
O encontro terminou novamente com elas se abraçando emocionadas. No
dia seguinte, Vivaldo foi visitar a grávida e os dois transaram mais uma vez.
O corretor pediu para mamar em Berbella e ela cobrou um extra de 200
reais pelo leite direto na fonte. Depois do ato, ele ligou o som portátil para
embalar a sua futura lha e deitou-se de conchinha com a cunhada. Berbella
já não o olhava com o desdém de outrora. Vivaldo deu o play no CD. A
primeira música a tocar foi “Boas vindas”, de Caetano Veloso, com trechos
que dizem: Venha conhecer a vida / Eu digo que ela é gostosa / Tem o sol e
tem a lua / Tem o medo e tem a rosa / Tem a morte e tem o amor.
O último mês de gestação foi o pior período da vida de Berbella. As
transas com Vivaldo foram suspensas porque ela não tinha mais libido. A
bebê estava encaixada em sua bacia, posicionada para o momento do parto.
As dores eram tão medonhas que faziam a futura mãe gritar de manhã, de
tarde e de noite. Pelos cálculos do obstetra, havia mais de dois litros de
líquido na bolsa amniótica, quando o normal naquela fase da gravidez seria
apenas um. O excesso de água trouxe ainda mais complicações, como
desenvolvimento fetal excessivo e di culdade respiratória. Berbella não via a
hora de parir, mas evitava uma cesariana para não car com cicatrizes no
ventre. A produção de leite deixou seus seios ainda maiores e doloridos. Na
última visita feita ao médico antes de dar à luz, soube que a bebê nasceria
enorme, com quase 5 quilos, e mediria cerca de 50 centímetros. O ultrassom
mostrou a pele do nenê sem as tradicionais rugas e suas mãos já agarravam
com rmeza, ou seja, ela podia nascer a qualquer momento. Era possível a
ele detectar a luz, pois a sua pupila aumentava e diminuía de tamanho com a
intensidade de um projetor focado na barriga da mãe. “Sua bebê é grande e
saudável”, disse o médico. Belmira e Vivaldo acompanhavam todos os
exames vertendo lágrimas com essas informações. Berbella também
chorava, mas de dor, agonia e desespero. Ela urinava na cama todos os dias,
tinha corrimento vaginal, coceiras pelo corpo todo e um distúrbio hormonal
fez crescer uma penugem em seu rosto. Nenhuma das posições na cama era
confortável na reta nal da gestação.
Sofrendo dores insuportáveis, Berbella se internou para parir e Ayla veio
ao mundo quando completou 40 semanas no ventre da mãe. Belmira e
Vivaldo perderam o momento do parto. Sorte a deles, pois o nascimento da
criança não foi motivo de comemoração na família. A menina não era lha
do cliente sueco, como todos imaginavam. Provavelmente o pai era um
freguês jamaicano, pois ela nasceu preta. Uma enfermeira levou a criancinha
enrolada numa manta para Berbella acariciá-la. A mãe se recusou segurá-la.
Virou o rosto para o lado e vomitou. Meia hora depois, a enfermeira voltou
pedindo que Berbella amamentasse. O gesto criaria vínculo afetivo da mãe
com a lha. Berbella não quis, mandou chamar o diretor da maternidade e
começou a reclamar: “Essa não é a minha lha. Houve um engano. Ela foi
trocada. A minha é branquinha e loira”. A garota de programa começou a
chorar desesperadamente quando foi avisada que aquele era o único parto
do dia. Na sequência, Belmira e Vivaldo chegaram à sala de pós-parto e
encontraram a bebê com três pulseirinhas, duas nas pernas e uma no
bracinho. Os dois caram chocados quando viram a cor da pele da recém-
nascida. Enfurecido, o corretor esmurrou a parede e sentou no chão para
chorar. Belmira, por sua vez, cou muda e estática. Ao chegar perto da bebê,
reagiu arregalando os olhos e levando a mão à boca. A pedagoga se
aproximou ainda mais do berço, encostou o nariz na nenê e fez uma careta
de nojo quando sentiu o cheiro dela. Sem dar uma palavra, Belmira saiu do
centro obstétrico amparada pelo marido. Na recepção da maternidade,
Nazaré perguntou a Belmira se ela caria com a criança. A resposta foi
curta: “Nem pensar!”. Em casa, revoltada, a pedagoga quebrou vasos
decorativos na parede. Com receio de car no prejuízo, ela procurou pelo
amigo advogado para tentar recuperar o dinheiro “emprestado” à irmã. Sua
ideia seria fazer uma cobrança judicial. Só desistiu quando foi alertada da
possibilidade de um escândalo na imprensa ocasionar sua demissão por
justa causa e até prisão. “Joguei meu dinheiro fora”, resignou-se Belmira.
Sem saída, Berbella deixou a maternidade com Ayla no colo, em
companhia da mãe. Em casa, ela também se recusou a amamentá-la.
Perturbada, pensou em anunciar a adoção nos classi cados de um grande
jornal. Com medo de a neta morrer de fome, Nazaré comprou uma lata de
leite em pó para bebês recém-nascidos ao preço de 160 reais na época. A
mãe de primeira viagem não se deu ao trabalho nem de preparar o alimento
da lha. Tempos depois, em meio a uma briga com a mãe por causa da bebê,
Berbella anunciou sua partida em breve para São Paulo. Nazaré mandou-a
levar a lha, já com dois meses.
Numa tarde de domingo, a garota de programa estava arrumando a mala
e Belmira chegou para acertar as contas. Estava disposta a conseguir pelo
menos 10 mil reais guardados pela irmã no banco. Num bate-boca, as duas
se feriram mais uma vez com palavras ácidas. A mais velha chamou a caçula
novamente de “vagabunda”, “piranha” e “puta” e ainda amaldiçoou a vida
amorosa de Berbella. “Homem nenhum vai querer você, uma prostituta
barata com um bebê negro no colo fruto de um programa”, praguejou. A
prostituta soltou uma gargalhada teatral e revidou: “Será mesmo que os
homens vão me virar a cara? O seu marido, por exemplo, me comeu
deliciosamente todo esse tempo aqui nesta cama. Foi incrível, viu?”. Belmira
cou fora de si e deu um tapa no rosto da irmã. Só não bateu mais porque
foi impedida por Nazaré. Ainda com uma sobra de cinismo na cara, Berbella
pegou a mala, o bebê e saiu rindo sem se despedir. Nazaré cou com o
coração apertado, porém aliviado. Teve palpitações e pressentimentos ruins,
mas achou que Deus estava no comando. Deixou o futuro da lha em mãos
divinas.
No dia seguinte, um programa policial da TV Record em Campo
Grande exibiu uma reportagem sobre um bebê encontrado numa lata de lixo
do passeio público, no bairro de Carandá. A criança estava suja, enrolada
numa manta, desnutrida e tinha ferimentos e queimaduras de sol no rosto.
Chorava de soluçar pela vida. Resgatada por catadores, foi levada à Santa
Casa. Vingativa e separada do marido, Belmira ligou para a polícia e
denunciou a irmã. Berbella foi presa dois dias depois no Aeroporto
Internacional de Campo Grande tentando embarcar para São Paulo. Nazaré,
a feirante branca, religiosa, devota de Nossa Senhora de Fátima, temente a
Deus, assídua nas missas de domingo na Catedral Metropolitana Nossa
Senhora Abadia, também não quis car com a criança. Alegou que a neta
“era muito escurinha”. Ao juiz, Berbella disse ter jogado a lha fora
impulsionada pela depressão pós-parto. A justi cativa não vingou no
tribunal. Foi condenada a cinco anos de prisão pelo crime de abandono de
incapaz com um agravante por causa de ferimentos no rostinho da vítima.
Disponível para adoção, a criança foi levada a um abrigo e uma família
alemã de coração bondoso a levou para Berlim.
Berbella saiu da cadeia em 2009 aos 28 anos. Ela continuava uma mulher
linda e sensual. Voltou a São Paulo. Com o dinheiro da venda da lha,
colocou silicone nos seios, clareou o cabelo e comprou roupas novas para
trabalhar. Voltou a se prostituir na boate administrada pelo tio Joel, no
Baixo Augusta. Seu programa custava 400 reais a hora. Ela também fez um
anúncio no MClass, onde se lia um texto de varejo: “Boneca gulosa maluca
por leite. Oral até a última gota. Especializada em anal giratório. Fio terra.
Prazer total e in nito. Você não vai se arrepender. Vamos nessa?”.
* * *

Em meados de 2009, Elize, já com 27 anos, estava sentada no sofá frente


a frente com Chico da Serra, em Chopinzinho. Treze anos antes, ela o
acusou de estupro. No entanto, sua mãe, Dilta Araújo, não acreditou e a
expulsou de casa depois de sentar-lhe uma bofetada. Por causa desse drama
familiar, pairava um silêncio constrangedor no reencontro do padrasto com
a enteada. Eles nem sequer se encaravam. Chico mantinha um olhar
distante, alternando o foco da sua visão nela e na paisagem do horizonte
mostrada através da janela da sala. Elize não sabia onde en ar a cara. Para
quebrar o clima sepulcral, o serralheiro ofereceu café coado passado na
hora. Elize aceitou. A forma de ele servir a bebida chamou a atenção.
Primeiro, ele pôs cuidadosamente sobre a mesa um copo de vidro médio,
desses de requeijão. Depois trouxe uma chaleira quente. Chico en ou o
dedo indicador no copo vazio até a unha chegar mais ou menos à metade da
parte interna do recipiente. Com o dedo lá dentro, ele começou a despejar o
café. Quando o líquido fervente esbarrou na ponta do dedo, ele parou de
derramá-lo. Elize percebeu que o padrasto estava parcialmente cego.
Chico trabalhava havia mais de 20 anos operando motoesmeril sem
proteção facial. Os raios brilhosos e nocivos emitidos nessa atividade
causaram-lhe uma queimadura ocular. Ele nunca tinha ido ao médico.
Então, não se sabia o quanto já tinha perdido de visão. No nal da década de
2000, Chico tinha vista subnormal, pois enxergava apenas vultos e se guiava
por uma percepção luminosa, determinando formas de pessoas e objetos a
curtíssima distância. Nessa época, ele também enfrentava problemas de
magreza excessiva provocada por falta de apetite e por uma alimentação
pobre em nutrientes fundamentais para o organismo, como vitaminas e
proteínas. Chico, na verdade, era uma criatura bem diferente daquele
homem cheio de vigor que outrora perseguiu Elize pelo mato para violentá-
la. Mais de uma década depois, ele estava extenuando lentamente. Parecia
um morto-vivo.
Comovida, Elize pegou o copo de café da mão do serralheiro. Ele não
falava muito, nem podia, pois estava perdendo a fala em função de uma
paralisia parcial do cérebro decorrente de um acidente vascular cerebral
(AVC). Chico cou sentado no sofá, mudo. Fixou o olhar no feixe de sol
projetado pela janela, iluminando o chão da sala, onde estavam uma sacola
com objetos pessoais e algumas mudas de roupas. De repente, ele começou a
chorar em silêncio. Elize só percebeu o pranto por causa do chiado de uma
coriza e das lágrimas descendo pelo rosto do padrasto.
Dilta chegou em casa esbaforida. Vinha da padaria. Ela entrou às pressas
por causa da S-10 cabine dupla estacionada lá fora. No meio da sala, levou
um susto tão grande ao ver a lha que largou o pacote com pão quentinho
no chão. Elas não se viam fazia mais de dez anos, ou seja, desde a partida
dramática de Elize para Curitiba. Na rodoviária de Chopinzinho, a mãe
havia implorado – em vão – pelo perdão da lha. Sem trocar uma palavra, as
duas se abraçaram fortemente. Ficaram agarradas uma na outra por uma
eternidade chorando e chorando. A emoção foi tão intensa que Dilta
começou a passar mal com falta de ar.
Recuperada do choque inicial, a mãe puxou a lha pelo braço e as duas
foram conversar a sós no quintal. Dilta chorou mais um pouco e falou do
estado delicado de saúde de Chico. Após o AVC, ele começou a se bater
pelas paredes da casa por causa da cegueira. Para piorar o drama familiar,
Dilta descobriu a existência de outra família com dois lhos mantida pelo
companheiro havia pelo menos seis anos num vilarejo chamado Água do
Boi, nos arredores de Chopinzinho. Revoltada com a traição, ela pediu ajuda
a Elize. Estava disposta a entregar o companheiro bígamo e doente para a
outra mulher cuidar, pois ela não tinha a menor intenção de continuar
casada com um homem inválido e traidor.
Elize teria levado Chico junto com a mãe para a casa da outra mulher
meio contrariada. Ela preferiria ter o serralheiro em seu casamento do que
ainda ter de ir atrás de Walter Giacomini, seu pai biológico, cuja lembrança
mais próxima era ele arrancando sangue do rosto da mãe com murros havia
mais de 20 anos. Elize e Dilta acomodaram Chico no banco traseiro da
caminhonete e seguiram pela estrada de terra batida rumo à casa da outra
mulher. No caminho, as duas começaram a lavar roupa suja do passado de
forma tranquila. Mesmo com Chico presente, zeram um balanço da vida.
Ao volante, a lha perguntou à mãe se, apesar dos pesares, teria valido a
pena viver o amor com o serralheiro. Dilta olhou o companheiro e pediu
que Elize parasse o carro no acostamento da estrada (PR-565) próximo à
ponte sobre o Rio Iguaçu, um curso d’água com nascente na Serra do Mar,
cortando o estado do Paraná de leste a oeste. As duas deixaram Chico
sozinho no veículo e desceram por uma trilha até chegarem à margem do
córrego.
A paisagem diante delas era bucólica. O sol estava surgindo no meio da
manhã e o vapor se condensava sobre a água do rio, formando uma camada
de orvalho. Sentada num trapiche de madeira, Dilta se disse muito
arrependida de ter dado crédito ao companheiro, fazendo uma referência
velada ao abuso sexual sofrido pela lha no passado. Sem entrar em
detalhes, ela concluiu envergonhada que pagava um preço muito alto pelas
escolhas erradas feitas ao longo da vida. Descobrir ter sido passada para trás
todo esse tempo seria parte desse prejuízo. Para consolar a mãe, Elize
começou a teorizar sobre o lugar onde nasce o perdão. Para ter essa conversa
com Dilta, a jovem havia praticado Ho’oponopono, um mantra composto de
quatro frases que, segundo os adeptos da técnica, livram o coração de
mágoas e recordações infelizes, exaltando o perdão, o amor e a gratidão.
Elize começou falando à mãe o mantra considerado milagroso pelos adeptos
desse tipo de autoajuda:
– Sinto muito. Me perdoe. Te amo. Sou grata.
Dilta começou a chorar e a lha continuou:
– Desde que saí de Chopinzinho, eu carrego uma dor tão forte e
profunda que não sei onde ela começa nem onde termina. Nem sequer sei
onde isso me atinge. Às vezes, sinto que é na cabeça e tomo um analgésico.
Quando não, parece ser no peito e co sem ar. Nos momentos mais tristes
da vida, porém, acredito que a a ição está no meu espírito e não no meu
corpo. Aí co desesperada, saio em busca de paz interior e entro na igreja
para rezar. [...] Depois de conviver uma década com essa mágoa sem m, z
uma descoberta: só estaria livre desse sofrimento se eu a perdoasse. Do
fundo do meu coração, eu perdoo você, mãe! Isso não quer dizer que vou
apagar da minha vida o sentimento de revolta que ainda me corrói. Isso não
farei jamais, nem que eu quisesse, pois as cicatrizes daquela bofetada dada
pela senhora no meu rosto estarão aqui até o m da minha existência. Mas
eu tenho certeza de que, ao lhe conceder esse perdão, o meu coração e a
minha vida carão mais leves.
Afogada em lágrimas, Dilta repetiu as palavras “desculpa, lha” tantas
vezes que parecia um disco arranhado. Elas se abraçaram e lágrimas rolaram
mais do que água na cachoeira. Logo depois do chororô, Elize detalhou para
a mãe os planos de se casar com Marcos e falou de forma deslumbrada sobre
como ele era rico, bonito, el e romântico. “Ele abre a porta do carro, puxa a
cadeira para eu sentar, me deu uma cobertura e um carro de presente. Tenho
acesso até à conta-corrente dele”, vangloriou-se. Apesar de ter uma fonte
inesgotável de dinheiro ao seu dispor, Elize frisou não ter planos de viver
eternamente à custa do noivo milionário. Por isso fazia o curso de Direito e
sonhava em estudar para se tornar especialista em vinhos nobres. Contou
sobre o apartamento amplo e luxuoso todo decorado. Destacou o coração
bondoso do empresário, dando como exemplo a escritura do imóvel já em
seu nome. Por último, teve coragem de falar sobre a jiboia enorme chamada
Gigi, deixando a mãe assustada. Por motivos óbvios, Elize omitiu como
havia conhecido o empresário. Dilta, por sua vez, falou da sua sina em se
envolver com homens de vida dupla. Ela resgatou a história de amor vivida
com o curitibano Wagner Mallmann, o recepcionista de hotel casado. Dilta
ajudou o rapaz a comprar um Fiat Uno amarelo-ovo. Elize falou para a mãe
um pouco mais sobre o ato de perdoar na tentativa de fazê-la se livrar da
culpa de ter amado somente homens errados:
“O perdão é algo a ser feito para si e não para o outro. Sendo assim, é
impossível a gente perdoar alguém sem antes se perdoar. Talvez seja por isso
que a senhora não consiga dar remissão ao seu companheiro. Além do mais,
mãe, é impossível amar a Deus sem praticar o perdão”.
No nal da manhã, Dilta e Elize chegaram com Chico à casa da sua
outra família. Não havia ninguém na moradia, mas a porta da sala estava
aberta. Dilta entrou e acomodou o companheiro na cama de um dos
quartos. Na despedida, Elize deu um abraço longo no padrasto e deixou
claro não guardar mais ressentimentos. Dilta também perdoou o
companheiro pela bigamia e por ele ter violentado a lha. Cabisbaixo, Chico
agradeceu às duas pela indulgência, pediu desculpas atrás de desculpas e
reconheceu que aquele perdão, apesar de poderoso, não o eximia dos seus
erros. Segundo Chico disse na época, chegar à reta nal da vida de forma tão
triste, aos 50 anos, era encarado por ele como uma punição por toda a
desgraça causada à família de Dilta.
Livres do serralheiro, as duas voltaram a Chopinzinho. Na estrada,
pararam numa churrascaria. Conversaram por mais de três horas sobre o
casamento de Elize com Marcos enquanto comiam carne. Quando Dilta
chegou em casa, já no nal da tarde, teve um sobressalto. Chico estava lá, de
volta, sentado no sofá da sala com a sacola contendo roupas e objetos
pessoais. “Minha outra mulher me trouxe pra cá. Ela disse não ter mais nada
comigo”, lamentou o serralheiro. “Posso car aqui?”, perguntou ele com um
apo de voz. Dilta negou abrigo e já se preparava para tirá-lo de casa pela
segunda vez. Eliana, única lha de Dilta com Chico, de 18 anos na época,
interveio com rmeza. Ela se agarrou ao doente e fez um escândalo em casa.
“Onde foi parar o seu coração?”, perguntou a jovem em meio a uma
discussão calorosa. Foi dentro desse liquidi cador de emoções que a lha
mais nova convenceu a mãe a deixar o seu pai terminar a vida em paz no
aconchego do lar.
Depois de Elize acertar as contas com os parentes, Marcos desembarcou
em Chopinzinho para conhecer a família da sua futura esposa. A casa de
Dilta era muito humilde para hospedar um empresário milionário. Os
noivos resolveram car no Hotel Dois Coqueiros, a melhor instalação do
município. Na suíte, Elize contou a Marcos todas as intrigas de família,
incluindo o sumiço do pai biológico, o estado delicado de saúde de Chico e
o perdão dado a ele e a sua mãe. Para não mexer em vespeiro, ela omitiu a
prática de prostituição na adolescência, quando vagava pelas estradas do Sul
após ser abusada sexualmente pelo padrasto. Marcos pediu a mão da jovem
para Dilta num jantar feito pela tia Rose com a presença da avó Sebastiana.
O empresário fez questão de convidar todos os parentes de Elize para o
casamento, previsto para ocorrer em São Paulo dali a quatro meses. As
despesas com passagens aéreas e hospedagem seriam por sua conta.
“Convidem os parentes, os amigos e até os vizinhos, se quiserem. Façam
uma caravana. Quero uma festa grande”, pontuou Marcos, eufórico. Na
semana seguinte, o casal voltou a São Paulo. Uma secretária da Yoki ligou
para a família de Elize querendo acertar detalhes da viagem de avião da
família Araújo. No entanto, nem todos os parentes da noiva tinham
documentos de identidade. A caravana teve de seguir de Chopinzinho até
São Paulo de ônibus.
Sem muitas opções para o posto de madrinha de casamento, Elize
sonhava com a possibilidade de convidar Chantall, sua melhor amiga e
guardiã. Na época, as duas eram unidas feito dente e gengiva. Marcos vetou
o convite porque, na nova fase da vida, ele queria distância de prostitutas
para não cair em tentação. Numa mesa de bar com seus velhos parceiros de
meretrício, Lincoln e Paolo, o empresário teria con denciado deixar
Chantall por perto porque tinha um fetiche secreto de transar “de forma
selvagem” com ela em sua despedida de solteiro. Elize não descon ava da
atração do noivo pela amiga sadomasoquista. Até porque ele falava mal dela
em qualquer oportunidade. Debochava do seu português errado, a chamava
de aproveitadora, fofoqueira e vulgar. As resenhas negativas sobre a garota
de programa feitas por Marcos, na verdade, vinham desde a época da
aproximação dela com Lívia, sua ex-mulher. Na cabeça de Marcos, foi
Chantall quem con rmou para a esposa seu caso extraconjugal com Elize.
Ele só não implicava mais com ela porque a goiana raramente aparecia no
apartamento do casal, pois tinha pavor de Gigi. Por causa desse empecilho,
Elize e Chantall se encontravam muito em bares, cafés e shoppings. O
incômodo do empresário passou a aumentar ainda mais com a aproximação
da data do casamento.
Logo depois do retorno de Chopinzinho, Elize ligou para Chantall
querendo contar as novidades. Do outro lado da linha, a amiga falou aos
prantos estar em Goiás resolvendo problemas de família. E que problemas!
Lucas, seu irmão, havia se formado em Odontologia, mas não haveria
comemoração. A mãe, Damiana, já com 67 anos, encontrava-se em estado
avançado de Alzheimer, a chamada fase 4. Ainda ao telefone com Chantall,
Elize não conseguia entender muita coisa porque a amiga completava frases
com choro e soluços. Compadecida, ela pegou um avião no dia seguinte e
partiu para encontrá-la. A desgraça na vida de Chantall veio a galope. Além
da doença da mãe, Lucas, já com 23 anos, estava sendo acusado de estupro
por uma ex-namorada. Ele negava a acusação desesperadamente. Segundo o
inquérito policial, o estudante e mais dois amigos recém-formados em
Odontologia usaram anestesia de dentista para dopar a garota de 16 anos
num dos quartos da república onde moravam, em Goiânia. Em seguida, os
três teriam currado a vítima. Os acusados se defendiam com o argumento
de que o sexo em grupo ocorreu com consentimento da jovem. Os três
rapazes só estavam soltos porque haviam escapado do agrante.
Em meio à tormenta, Chantall havia caído num golpe. Havia seis meses
ela mandava valores entre 1.600 e 2 mil reais todo dia 30 para Edna, a
vizinha-cuidadora de Damiana. Com esse dinheiro, ela deveria quitar a
dívida de IPTU da casa e comprar os alimentos da mãe, além de car com
uma parte a título de pagamento pelos serviços prestados. Picareta, Edna
comprava só o básico para Damiana sobreviver e nunca pagou a prestação
do imposto, uma dívida já renegociada anteriormente. A vizinha falsi cava
com a ajuda do lho os comprovantes de pagamento para fazer crer que as
prestações do tributo municipal da casa da garota de programa vinham
sendo pagas. Com o calote em cascata, a família estava novamente ameaçada
de despejo.
Quando Elize chegou a Aporé, Chantall estava descontrolada e sem
saber por onde começar a resolver os seus perrengues. Lucas havia dito que,
se não arrumasse um bom advogado rapidamente, poderia ser preso a
qualquer momento. Ele já havia feito uma consulta com alguns defensores e
o mais barato cobrou 30 mil reais para pegar a causa, considerada fácil de
vencer. Elize, quase no m do curso de Direito naquela época, duvidou do
sucesso na ação, mas não quis assustar ainda mais Chantall com
prognósticos ruins. Sugeriu à amiga priorizar a saúde da mãe. Numa
conversa privada, a jovem goiana contou em tom de segredo estar com
pouco dinheiro para resolver aquela montanha de problemas. Sem pensar
duas vezes, Elize começou a usar o talão de cheques e o cartão de débito
dados de presente por Marcos. A primeira dívida paga com o dinheiro do
empresário foi o IPTU, quitado de uma só vez ao valor de quase 20 mil reais.
Chantall cou a ita porque não tinha condições de pagar um empréstimo
tão alto, a não ser que vendesse o corpo e levasse pancadas no rosto até o m
da vida. Elize a rmou se tratar de uma doação. A segunda providência foi
internar Damiana numa clínica particular. Na recepção do hospital, Elize
passou um cheque-caução de 12 mil reais. No leito, Damiana não reconhecia
mais os lhos. Nem sequer conseguia dizer o próprio nome e a cidade onde
morava. Todas as manhãs, a senhora perguntava o nome de Chantall.
Totalmente dependente, não se alimentava sozinha. Como a conta no
hospital caria muito alta e a internação era por tempo indeterminado,
Chantall não achou justo deixar a responsabilidade nas costas de Elize,
mesmo a amiga sendo rica. A garota de programa pôs à venda a casa
deixada de herança pelo pai. A pressa para fechar o negócio fez o imóvel ser
vendido por metade do valor venal descrito no IPTU. Após receber o
dinheiro da venda, ela tentou pagar o empréstimo à amiga, mas Elize se
recusou a receber. Com parte do dinheiro, Chantall pagou o advogado para
Lucas tentar se livrar da acusação de estupro coletivo.
Acometida pela forma mais avançada e grave do Alzheimer, Damiana
passou a vegetar. Sua única função vital era respirar. A senhora começou a
desenvolver infecções e feridas na pela pele de tanto car deitada na mesma
posição. O dinheiro da venda da casa estava na reta nal quando Lucas,
inconsequente, ajudou a torrá-lo ainda mais depressa. Uma outra garota foi
à delegacia dizer também ter sido dopada por ele com substâncias
anestésicas numa festa universitária. Quando soube da nova denúncia, Lucas
pegou o telefone e ameaçou a segunda vítima, di cultando ainda mais a
própria defesa. Acabou detido preventivamente sob a acusação de intimidar
testemunha e atrapalhar o inquérito policial, crime previsto no artigo 2º,
parágrafo 1º da Lei das Organizações Criminosas. Com a prisão do seu
cliente, o advogado dobrou os honorários para continuar no caso. Chantall,
por amor ao irmão, aceitou pagar o novo preço. Faltavam poucos reais para
o dinheiro da venda da casa acabar quando Damiana entrou em estado de
saúde crítico e irreversível. A doença havia afetado as células do seu cérebro
tão fortemente que ela perdeu completamente os re exos naturais básicos,
como engolir, tossir e respirar. Morreu bem devagarinho apertando a mão
da lha.
O enterro de Damiana ocorreu às vésperas do julgamento de Lucas.
Numa audiência com o juiz, sua ex-namorada deu um depoimento
comovente. Segundo a garota, Lucas pediu para fazer um exame em sua
arcada dentária para comemorar a obtenção do diploma. Na época, ele tinha
terminado o namoro, mas ela ainda o amava. No quarto da república de
estudantes, ela se deitou na cama e ele a beijou. A jovem correspondeu ao
carinho. Os dois estavam sozinhos nesse instante. Lucas abriu a blusa da
menina e retirou o sutiã. Em seguida, o jovem passou xilocaína em sua
gengiva com o dedo e aplicou com uma seringa uma dose cavalar de
anestesia. A droga deixou os olhos da garota abertos permanentemente. O
efeito posterior da substância manteve sua face paralisada. A garota
desmaiou. Ao acordar sozinha no quarto, cerca de quatro horas depois, a
vítima tinha marcas de mordidas pelo corpo, sentia dores na pélvis e no
ânus e estava com a calcinha ensanguentada. Um hematoma (equimose) em
seu braço e o excesso de sono sugeriram que ela teria sido dopada também
com anestesia intravenosa. Envergonhada por ter sido violentada, não quis
registrar ocorrência policial nem fazer exame de conjunção carnal no
Instituto Médico Legal (IML). Só mudou de ideia quando soube ter sido
currada e lmada por um dos rapazes, que riam nas imagens. O vídeo
circulou pela internet. Como o estudante autor da lmagem não participou
diretamente do estupro, ele foi orientado pelo advogado a contar com a
maior riqueza de detalhes como se deu o ato sexual dentro da república. Seu
depoimento foi fundamental para esclarecer a dinâmica do crime e apontar
quem fez o quê. A testemunha relatou que Lucas e o outro amigo
estupraram a garota por três horas seguidas e en aram a mão no ânus da
vítima usando um alargador bucal. Homossexual, esse jovem teria feito
apenas sexo oral nos dois rapazes e lmado o estupro a pedido do irmão de
Chantall. Incriminado até a alma, Lucas recebeu uma sentença de 15 anos de
prisão em regime fechado. O cinegra sta pegou apenas três anos por ter
colaborado com as investigações. Já o terceiro elemento foi condenado a oito
anos.
O universitário recém-formado teve a tão sonhada licença de dentista
recém-conquistada cassada pelo Conselho de Odontologia de Goiás. O
diploma dele, conquistado com o suor do trabalho de Chantall, não serviu
para nada. O plano da prostituta era abandonar a vida degradante em São
Paulo tão logo o irmão colasse grau. Lucas jogou a vida no lixo por um ato
deliberadamente criminoso. Como tinha curso superior, era réu primário e
corria o risco de ser linchado por outros presos por causa da natureza do
crime cometido, o dentista cou numa prisão militar. Com autorização da
Justiça, fazia obturações e extrações dentárias dos detentos dentro da cadeia.
Chantall cou tão aleijada emocionalmente com o m dramático de sua
família que teve vontade de ser sepultada junto com a mãe.
Cansada de ouvir o próprio choro, a jovem goiana voltou para a vida de
prostituta em São Paulo. Alternava o tempo fazendo programas e ajudando
Elize nos preparativos do casamento. Pelo menos uma vez por dia, Chantall
tinha crises de choro por causa do desmantelamento de sua família. “Sentia
um vazio muito grande porque não tinha mais referências familiares. Antes,
se minha vida desse errado, pensava que a saída seria arrumar as minhas
coisas e retornar para a casa da minha mãe. Quando ela morreu e meu
irmão foi preso, quei sem ter para onde ir. Nem casa em Goiás eu tinha.
Era um sentimento de não pertencer mais a lugar nenhum. Nunca tinha
vivido uma insegurança tão grande”, contou a garota de programa em
dezembro de 2020. Elize e Joel eram os únicos amigos de Chantall. Mas a
relação das duas teve um contratempo por causa de dinheiro. Certo dia,
Marcos chegou em casa com um extrato bancário e perguntou para Elize
sobre os cheques passados em Goiânia com valores fora do padrão. Ele
também questionou as despesas hospitalares pagas com o seu dinheiro. Elize
falou das di culdades nanceiras de Chantall e das suas tragédias familiares.
Marcos não gostou do drama de circo:
– Agora eu vou sustentar a ordinária que você chama de madrinha?
– Não, amor. Eu z um empréstimo. Ela vai me pagar – mentiu Elize.
– Vai pagar como? São mais de 30 mil reais. Essa garota é piranha barata!
Aliás, eu não quero mais você andando com essa vagabunda. Esquece essa
dívida e corte relações com ela!
– Farei isso...
– Mete uma coisa na sua cabeça, Elize: você não é mais puta! Agora, você
é uma mulher da alta sociedade – iludiu ele.
Obediente, Elize se afastou de Chantall. Mas não contou a ela os motivos
do m da amizade. Ela simplesmente parou de mandar mensagens e nunca
mais telefonou. Sem entender as razões da rejeição, a jovem goiana procurou
pela amiga várias vezes na porta da faculdade. Sempre que avistava Chantall,
Elize atravessava a rua. Nessa dinâmica, os laços de amizade das duas se
des zeram.
Longe de Chantall, Elize elegeu Janaína, a amiga da faculdade, e tia Rose,
considerada mãe, como madrinhas de casamento. Marcos chamou uma
prima para o posto, Cecília Yone Nishioka, a Ciça. Ela era dona de uma
tradicional confeitaria no bairro de Moema. Os dois não se falavam havia
oito anos quando Marcos chegou de surpresa para fazer o convite. “Eu
estava trabalhando e, de repente, uma funcionária me disse que tinha um
primo meu numa das mesas. Eu pensei: só pode ser o Marcos”, contou.
Nessa primeira visita, o empresário parabenizou a prima porque a
confeitaria havia acabado de ganhar um prêmio da Veja Comer & Beber.
Ciça comemorou servindo panetone artesanal quentinho com café ao
empresário. Enquanto comia, ele contou sobre os planos de se casar com
uma moça simples do interior do Paraná. Já na segunda visita à confeitaria,
Marcos apresentou Elize a Ciça e pediu uma ajuda para introduzi-la à
família Matsunaga.
Ciça tinha um namorado na época e o casal passou a fazer programas
sociais com Marcos e Elize por restaurantes de São Paulo e até viagens.
Segundo relatos da confeiteira, os noivos eram muito românticos. “Ele a
levava a restaurantes caros e puxava a cadeira para ela sentar. Estavam
sempre de mãos dadas.” Marcos e Elize caram muito próximos de Ciça e a
levaram para praticar tiro no clube do Alto da Lapa. Na primeira aula, a
confeiteira pegou emprestada de Elize a sua pistola Taurus de 9 mm e peso
aproximado de 600 gramas. A noiva viu a madrinha toda atrapalhada com o
manuseio e foi dar uma ajuda. Ciça não acertava o alvo porque a arma era
muito pesada em suas mãos. Para facilitar, Elize tirou de dentro da bolsa
Louis Vuitton uma pistola compacta e automática calibre .380 da Smith &
Wesson e repassou para Ciça experimentar. “Os dois atiravam muito bem.
Eu não conseguia acertar nenhum alvo. Aí a Elize pôs as balas nessa pistola
pequena e me ensinou a mirar. Eu quei feliz porque consegui acertar
naquele alvo em forma de homenzinho, sabe?”, contou a madrinha. O
“homenzinho” era, na verdade, um alvo reativo conhecido nos clubes de tiro
como lumishot. A peça representava um bandido com silhueta de tamanho
real da cintura para cima. O “homenzinho” era todo fabricado em camadas
de papel-cartão na cor preta com linhas uorescentes. Tinha mais de dez
marcações com números mostrando onde cavam os pontos vitais para
acertar o tiro. Ciça atingiu o “homenzinho”, mas seu tiro passou longe das
indicações numéricas. Marcos mostrou suas habilidades à prima com uma
pistola automática alemã modelo Polizei Pistole Kriminal (PPK), calibre
.380. Ele disparou no alvo e acertou o número 2, ou seja, no braço direito do
“homenzinho”, bem próximo do ombro. Elize foi mais certeira. Pegou a
pistola Taurus, mirou rapidamente no alvo e acertou o número 4, isto é, bem
no centro da testa do “homenzinho”. Quem estava por perto celebrou
tamanha precisão de mira com uma salva de palmas. O projétil atingiu a
protuberância localizada acima da narina do alvo. A madrinha doceira cou
de queixo caído ao descobrir uma verdade absoluta: Elize, a noiva, tinha
muito mais pontaria do que o seu primo.
Faltando três meses para o casamento, Elize fez mais uma viagem de
última hora a Chopinzinho. Dilta havia descoberto um câncer no intestino
em estágio inicial. Marcos aproveitou a viagem da noiva para iniciar a sua
despedida de solteiro. Marcou uma happy hour na mansão de Arethuza com
Lincoln e Paolo. A cafetina de luxo ofereceu aos clientes um catálogo inédito
com novas modelos de alto padrão. Marcos olhou cada uma delas, fez
elogios, mas recusou a oferta. Lincoln saiu da mansão com Alícia, a atriz-
modelo-manequim. Paolo se encantou com uma garota de 21 anos recém-
chegada de João Pessoa, cuja imagem estava estampada numa campanha
publicitária de lingerie. Os amigos estranharam Marcos recusar as
pro ssionais. Ele continuou bebendo até altas horas cercado de garotas
lindas. No entanto, misteriosamente, suas atenções estavam voltadas ao
telefone celular. Ele passou a noite inteira trocando mensagens com uma
mulher. Lincoln imaginava que o empresário falava com Elize, pois até então
ele havia demonstrado delidade canina à noiva.
Por volta das 3 da madrugada, Marcos seguiu o rumo de casa. Meia hora
depois, o interfone tocou anunciando uma visita. O empresário apagou
todas as luzes da cobertura para deixar o apartamento à meia-luz. A pouca
iluminação vinha da rua. A porta se abriu e por ela entrou Chantall. O
encontro foi combinado por mensagens de texto enviadas pelo celular. O
empresário começou a conversa cobrando a dívida de 31 mil reais. A
pro ssional argumentou não ter dinheiro su ciente para pagá-lo. Marcos
propôs transar com ela 60 vezes ao longo de um ano. Assim, o débito estaria
quitado. Sem saída e escanteada por Elize, Chantall topou. As duas
coberturas juntas tinham tantos quartos que Marcos cou em dúvida para
onde levar a prostituta. Ela estava envergonhada por trair Elize. O
empresário não ligou e ainda debochou da jovem. “Vagabundas não têm
ética nem sentimentos”, disse. Os dois caminharam por uma penumbra até
chegarem a uma das suítes. Chantall tirou a roupa e deitou-se numa cama de
solteiro com colchão duro. Por causa da escuridão, ela não soube dizer em
qual cômodo do apartamento se encontrava.
Marcos pegou uma corda de bondage e passou a tira principal por
debaixo do colchão. Com as outras quatro faixas do acessório ele amarrou os
braços e as pernas da prostituta. Em seguida, pôs uma mordaça. Depois de
imobilizar Chantall, o empresário saiu do quarto e fechou a porta. A jovem
cou angustiada com o suspense. Meia hora depois, Marcos voltou e pôs
sobre a cama a jiboia Gigi, deixando a garota de programa em pânico e se
contorcendo. A cobra de 3 metros de comprimento parecia estressada com a
situação e tentava escapar. Marcos insistia em manter a serpente sobre o
corpo de Chantall. Quando a garota estava quase desmaiando, vítima de um
colapso nervoso, o empresário começou a penetrá-la. No nal, ele
desamarrou a jovem. Abatida e assustada com pavor da cobra, ela não
conseguiu sair da cama. Marcos avisou que faltavam 59 transas para quitar o
débito e foi tomar banho com Gigi. Alguns minutos depois, a pro ssional
vestiu-se rapidamente e correu até a sala. Na saída, Chantall deu um aviso ao
empresário seguido de uma ameaça: a dívida de 31 mil não existia mais. E se
ele a procurasse mais uma vez, iria registrar dois boletins de ocorrência. Um
por estupro e outro por maus-tratos aos animais. A advertência surtiu efeito.
O empresário fez de conta que Chantall nunca existiu.
No retorno de Chopinzinho, Elize se concentrou nos preparativos do
casamento, marcado para o dia 17 de outubro de 2009, um sábado, às 18h30.
A festa religiosa coincidiu com o nal do ano letivo do seu curso de Direito
na Universidade Paulista. Seus melhores amigos na faculdade eram Phelipe,
vendedor de planos de saúde, de 28 anos, e Janaína, atendente de
telemarketing, de 24, sua madrinha no casório. Os dois namoravam havia
dois anos e ajudavam a paranaense com os trabalhos acadêmicos. Certa vez,
Phelipe faltou uma semana inteira porque não tinha dinheiro para pagar o
transporte. Ele morava na periferia de Mogi das Cruzes na época.
Compadecida com as di culdades do colega e agradecida por ele ajudá-la
nos trabalhos, a noiva de Marcos fez uma doação a ele de 3 mil reais para
bancar os custos básicos. Em outro semestre, foi a vez de Janaína passar por
di culdades nanceiras. A estudante tornou-se inadimplente e passou o
vexame de ser impedida de fazer uma das provas até quitar a dívida. Elize
pagou a mensalidade da colega e ainda lhe arrumou um emprego no
escritório da Yoki.
A benevolência de Elize na universidade acabou se tornando sua marca
registrada. Segundo relatos de Phelipe, quando melhorou de vida, já perto
de se formar, o universitário tentou devolver à amiga todo o dinheiro
emprestado ao longo do curso, mas ela se recusou a receber. O rapaz, então,
pôs cerca de 5 mil reais num envelope e deixou sorrateiramente dentro da
bolsa da universitária rica. No mesmo dia, um outro estudante, José
Américo, também passava por perrengues, pois não tinha dinheiro para
pagar as contas básicas, como de água e luz. José nem chegou a pedir ajuda.
Elize ouviu suas queixas e repassou-lhe parte do dinheiro recebido de
Phelipe. Quando José pagou o empréstimo, ela novamente pegou o dinheiro
e repassou para outro, formando uma espécie de corrente solidária na
faculdade. “Ela sempre foi uma estudante exemplar. Era educada, simpática
e generosa com seus amigos pobres da universidade”, disse José.
Os estudantes concluíram que Elize era milionária, mas não imaginavam
a fonte do dinheiro. Em uma pesquisa rápida na internet, José acabou
descobrindo se tratar da noiva de Marcos Matsunaga. Mas o jovem guardou
esse segredo a pedido dela por uma questão de segurança. “Além de ter
medo de sequestro, Elize não queria que o restante da turma soubesse que
ela era rica para não ser tratada de forma diferente”, contou José. Certa vez,
Marcos viajou a trabalho e sua noiva convidou os amigos da faculdade para
tomar vinho em sua casa. Depois da quarta garrafa, bêbada, ela teria
contado a Phelipe e Janaína sobre os abusos sexuais sofridos nas mãos do
padrasto e do descrédito da mãe. A história foi relatada aos amigos às
vésperas do seu casamento. Segundo disse, a concessão do perdão a Dilta e a
Chico havia deixado Elize muito emocionada, principalmente porque os
dois já estavam doentes e sem muitas chances de sobrevivência.
De acordo com amigos, Marcos e Elize apaixonaram-se ainda mais no
noivado. Essa era uma das razões para acelerar o casamento. No dia 8 de
julho de 2009, uma quarta-feira, o casal o cializou a união no cartório de
registro civil das pessoas naturais do 39o subdistrito da Vila Madalena, em
São Paulo. A cerimônia reservada ocorreu pela manhã. Elize Araújo passou
a se chamar Elize Araújo Kitano Matsunaga. O enlace ocorreu sob o regime
de comunhão parcial de bens. Ou seja, todo o patrimônio adquirido por eles
de forma onerosa durante o casamento passaria a pertencer aos dois. Em
caso de separação, o que Marcos já tinha em seu nome continuaria com ele.
Como Elize não possuía bens em seu nome antes de se unir a Marcos, ela
caria somente com a metade do patrimônio constituído durante o
casamento. É bom deixar claro: em caso de divórcio, Elize não teria qualquer
possibilidade de acessar os bens da família Matsunaga. O único canal para
ela se apoderar do patrimônio do marido seria se ele morresse, o que faria
dela herdeira necessária. É bom lembrar que Lívia saiu do casamento com o
empresário com apenas uma pensão de 8 mil reais.
Entre o casamento civil e o religioso se passaram quatro meses. Marcos e
Elize zeram várias viagens internacionais nesse período, numa espécie de
antecipação da lua de mel. Mergulharam com tartarugas e gol nhos em
Cairns, na Austrália, onde ca a famosa Grande Barreira de Corais. Depois
seguiram para o Havaí e conheceram as tradicionais ilhas vulcânicas.
Seguiram em uma outra viagem de barco por 24 horas acompanhados de
baleias até chegar a Molokini. O lugar é deslumbrante. Trata-se de um
vulcão submerso no mar, cuja parte do cume ca para fora da água.
De volta ao Brasil, o casal pegou armas de caça e foi perseguir alces
selvagens na província de British Columbia, no extremo oeste do Canadá.
Segundo amigos, Marcos e Elize amavam-se loucamente durante essas
viagens. Uma das evidências desse sentimento era um e-mail enviado pelo
empresário a uma amiga chamada Sandra, residente em Paris. Pelo teor da
mensagem, os dois não se viam havia bastante tempo. Em 4 de agosto de
2009, ele mandou um texto atualizando a vida:
“Oi Sandra. Tudo bem? Quanto tempo, hein? Não sei se você sabe, mas
eu me separei da minha esposa. Foi um período bem conturbado. Agora a
coisa está calma. A minha ex-mulher foi morar no interior do Rio Grande
do Sul. Infelizmente não estou vendo a minha lha tanto quanto eu gostaria
(todo dia). Mas sigo tentando encarar essa nova realidade. Felizmente
encontrei uma mulher divina e maravilhosa. Ela divide comigo os mesmos
gostos e paixões. Vamos nos casar em outubro. Em setembro, faremos uma
viagem pela Europa e estaremos em Paris entre os dias 12 e 16. Gostaríamos
de encontrar com você para entregar o convite do casamento pessoalmente,
se possível for, claro”.
Sandra respondeu imediatamente: “Legal que vamos nos ver. Vamos
marcar já no dia 12? Vocês vêm jantar aqui em casa, tá? Dia 13 vai ter um
jantar no Museu de Artes do Palais de Tokyo. Podemos ir a esse evento
juntos, mas não daria para conversar nesse outro lugar por causa do
tumulto. Dia 14 não posso porque vou a Londres visitar a feira de arte
contemporânea”. Sandra aproveitou para repassar notícias da ex-mulher de
Marcos na mensagem. “Eu sabia que você tinha se separado. Eu visitei a sua
ex-mulher no Brasil. Ela estava supermal. Ainda tinha a história do hospital
[Lívia estava internada com depressão]. A mãe dela estava lá. O importante
é você não abandonar a sua lha, que é uma fofa. Quem sabe o meu lho
não se casará com ela”, brincou a amiga.
Dois dias antes do casamento, a família de Elize chegou a São Paulo para
a cerimônia. Com medo de Gigi, nenhum deles cou hospedado no
superapartamento do casal. O local escolhido para abrigá-los foi um hotel. A
cerimônia foi realizada em uma das casas mais so sticadas de São Paulo, o
Buffet Colonial, no bairro de Moema, coincidentemente a poucas quadras
do bordel de Arethuza. O diretor do local, Ricardo Yoshi, de niu o bufê em
seu site como “um local de eventos surreal”. “Nossa equipe é maravilhosa e
brilha desde a recepção até o último convidado se despedir”, descreveu
Yoshi. A casa pertence a uma família de imigrantes japoneses, tal qual a
Yoki. O salão principal tinha capacidade para atender até 600 pessoas em
jantar e cerca de 1.000 em coquetel.
A noiva foi vestida, maquiada e penteada no JJ Cabeleireiros, localizado
no Jardim Europa, bairro tradicional de São Paulo. Em julho de 2021, a
despesa com uma noiva no local chegava a 12 mil reais. O serviço,
denominado “what I dream” [o que eu sonho], incluía consultoria de
imagem com cabeleireiro, limpeza de pele com hidratação facial, design de
sobrancelhas, massagem relaxante com hidratação corporal, manicure,
pedicure, sexy lips, além de outros serviços. O salão também oferece serviços
para madrinhas, damas e mães dos noivos.
Para o casamento de Marcos e Elize foram convidadas 200 pessoas, mas
só a metade compareceu. A festa cou o tempo inteiro na expectativa de
lotar por causa do número de mesas arrumadas. Lincoln, Paolo e Alícia
foram os únicos convidados do meretrício presentes na cerimônia. Alícia,
por sinal, toda vestida de vermelho, exagerou na bebida e dançou na pista de
forma sensual, chamando a atenção dos convidados. Elize sentiu ciúme e
Marcos cou desconcertado.
Vários diretores da empresa prestigiaram o casório. Um dos amigos de
infância do noivo de niu a cerimônia com estas palavras: “Foi uma festa
estranha porque os convidados não estavam se divertindo. Além disso, o
Marcos havia se afastado de todos os amigos depois de começar a namorar.
Eu mesmo não falava com ele havia mais de três anos. Nenhum dos seus
colegas de faculdade, por exemplo, conhecia Elize. Nem os colaboradores do
trabalho, primos e tios. Então todo o mundo se perguntava feito o Sérgio
Chapelin nas chamadas do Globo Repórter: quem era a noiva? Como eles se
conheceram? De onde ela vem? Qual a sua pro ssão? O que ela faz? Como
vive? Para onde eles vão? Ninguém sabia responder porque Marcos nunca
nos falou nada sobre a vida pessoal. Apesar do clima melancólico, ele
parecia muito feliz com a festa e a noiva chorava bastante e era amparada.
Os convidados também perceberam que não havia interação entre as
famílias dos noivos. Compareceu tão pouca gente na festa que a pista de
dança foi aberta e esvaziou em menos de uma hora”.
Elize chegou à cerimônia embaixo de uma garoa na e conduzida por
um calhambeque preto, modelo Packard da década de 1940. Na placa do
carro estavam escritos os nomes dos noivos e a data do casamento
(17/10/2009). A noiva foi levada do carro antigo até o altar pelo motorista de
ambulância Ademir Camarotto, esposo da tia Rose, ou seja, tio de Elize.
Contratada para registrar o casamento, a fotógrafa pro ssional Adri Felden
também classi cou a cerimônia como “esquisita”. “No salão onde Elize se
vestiu, por exemplo, havia só uma amiga da faculdade acompanhada da tia
Rose. Geralmente esse lugar é apinhado de amigas e parentes da noiva e
marcado por festividade”, descreveu a fotógrafa. Adri também percebeu a
falta de entrosamento entre as famílias dos noivos. “O abismo social entre os
parentes de Elize e de Marcos era evidente. Os cumprimentos foram secos e
as mesas cavam distantes. As pessoas não se abraçavam. A mãe de Elize,
dona Dilta, estava visivelmente desconfortável. Também percebi que não
havia carinho entre mãe e lha. Chamou ainda a minha atenção a pouca
quantidade de crianças na festa. A noiva era bem solitária”, descreveu Adri.
A atmosfera melancólica do casamento se estendia à estampa da noiva.
Elize optou por um gurino clássico, porém discreto e apagado para a
ocasião. Usou um vestido sem alça confeccionado em tecido zibeline de
seda. Saia godê com apliques de renda e bordado em pedrarias. Um colar de
ouro com diamantes prendia o tule branco quase imperceptível no colo da
roupa. Por baixo do gurino, Elize ousou e pôs uma cinta-liga branca bem
sensual. O véu era transparente em formato de cascata. Ela também usou
uma joia dourada no cabelo como pente. A peça, en ada nas madeixas
loiras, acompanhava o desenho de um colar trançado em rede armado no
pescoço até o colo do seio. Os brincos com design de gotas eram modestos,
porém imponentes pelo peso e tamanho. O vestido e seus acessórios foram
avaliados em cerca de 150 mil reais (valores da época). Marcos subiu ao altar
usando smoking preto de uma alfaiataria de luxo comprado no exterior,
avaliado em 60 mil reais (valores da época), e gravata-borboleta. O bolo de
quatro andares era branco e com rosas vermelhas espalhadas pela cobertura.
Sobre ele havia uma miniatura de um carro conversível com dois
bonequinhos sentados no banco da frente confeccionados à imagem do
casal.
As alianças de Elize e Marcos eram um luxo à parte. Eles usavam anéis
móveis e entrelaçados da Cartier talhados em ouro branco, amarelo e rosa
18 quilates, avaliados na época em 20 mil reais o par. Atemporais, essas joias
faziam parte de uma coleção emblemática da marca francesa símbolo de
estilo e elegância. Antes de o casal trocar os anéis, o reverendo François fez
um discurso longo. Em certo trecho, o religioso proferiu:
“Nós estamos aqui unidos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
amém. Bendito seja Deus que nos juntou nesta noite para celebrar o amor
verdadeiro e sublime. Que Ele derrame suas bênçãos sobre Marcos e Elize.
[...] Feliz do marido que tenha uma boa esposa, pois a mulher virtuosa é a
alegria do homem, que passará em paz os anos do restante da sua vida. Já
uma boa esposa é uma herança excelente. A graça da mulher é a delícia do
marido. E seu senso prático lhe revigorará os ossos”. No nal, François disse:
“O Criador fez o homem e a mulher. Na vida adulta, o homem deixará seu
pai e sua mãe para se unir à sua esposa. Os dois serão uma só criatura, uma
só carne, terão um só coração, um só destino. Portanto, o que Deus uniu, o
homem jamais conseguirá separar”.
Tímido, Marcos foi breve no discurso: “Eu estava levando uma vida
vazia, ao lado de pessoas erradas, cometendo uma série de enganos. Até
encontrar você, meu amor. Agora a minha vida é a sua também. Nossos
sonhos são os mesmos e as nossas metas são idênticas, pois gostamos das
mesmas coisas. [..] Eu, Marcos, recebo-te por minha esposa, Elize. E
prometo ser-te el, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e
na doença, todos os dias das nossas vidas”.
Engasgada com o próprio pranto, Elize retribuiu os votos do noivo: “Eu
andava sozinha pelo mundo sem muita vontade de sorrir. Hoje, ao seu lado,
tenho motivos de sobra para rir todos os dias. Não esses sorrisos comuns.
Estou falando do sorriso de amor, de delidade, de respeito, de con ança e
de certeza da escolha feita por mim. [...] Marcos, meu amor, a nossa aliança
é um círculo que nos unirá para sempre. Eu te prometo diante dessas
pessoas aqui presentes e diante do Nosso Senhor ser el e te fazer o homem
mais feliz do mundo. Prometo car ao seu lado. Até que a morte nos separe”.
Palavras que matam como bala de revólver

E
ntregues a uma paixão sem m, Marcos e Elize viviam num platô
sexual além da lua de mel, em meados de 2010. Faziam amor todos os
dias: de manhã, à tarde e à noite. Logo após se casarem, visitaram a
tribo indígena Kamayurá, no Xingu. Armados com ri es e metralhadoras,
acompanharam o ritual de adolescentes indígenas se preparando para
perder a virgindade. O casal cou impressionado com esse tipo de turismo,
feito no Brasil, principalmente por estrangeiros. A aldeia, localizada em
Mato Grosso, tinha malocas cobertas de sapê do telhado ao chão. As
indígenas virgens cavam em silêncio e isoladas no escuro por um ano, sem
ver o sol até conhecerem seus pretendentes. Nesse período, elas aprendiam a
cozinhar e a fazer artesanato. A reclusão ocorria logo após a primeira
menstruação e marcava a transição da fase infantil para a adulta. O ritual
envolvia sacrifício tanto das meninas quanto dos rapazes da aldeia. Elas
amarravam tornozeleiras e joelheiras fortemente para engrossar as pernas.
As avós davam a elas uma mistura conhecida como pirão, beiju, mingau e
peixe. A alimentação era uma espécie de engorda para a criança ganhar
corpo de mulher rapidamente. Já os meninos indígenas que se candidatavam
para desvirginar as garotas tinham de subir numa árvore e pegar lá na copa
ninhos de vespas selvagens. Dos 15 com idades entre 15 e 20 anos que se
aventuravam na gincana, apenas dois ou três garotos suportavam as picadas
dos insetos. Alguns deles chegavam a despencar lá do alto, tamanha era a
violência das ferroadas. Como prêmio para os vencedores, as indígenas
virgens cuidavam deles e se entregavam posteriormente.
Depois de testemunhar os rituais, Marcos e Elize viajaram em primeira
classe por todos os seis continentes do planeta. Passearam, pularam de
paraquedas e praticaram turismo de caça. Levaram na bagagem ri es, facas e
munições para abater antílopes, catetos, cervos, coiotes, focas, patos, porcos-
do-mato e veados em diversas orestas dos Estados Unidos. Depois
seguiram para a Austrália, onde era permitida a caça temporária de
cangurus em razão da superpopulação que ameaçava a biodiversidade.
Numa única noite, mataram a curta distância dois da espécie cinzento-
ocidental. No Canadá, o casal se especializou em executar alces selvagens a
longa distância. Boa de mira, Elize se vangloriava de ter acertado com um
único tiro um exemplar a mais de 300 metros, na província de British
Columbia, no extremo oeste do país.
Nas selvas canadenses, Marcos e Elize caram obcecados pelo alce, um
cervídeo de 2 metros de altura, meia tonelada e chifres enormes. Os dois
zeram um curso de cinco semanas na província de Ontário e obtiveram
uma licença especial para caçá-los feito pro ssionais. Contrataram guias,
alugaram aviões, barcos e Jeep. Embrenharam-se na oresta vestidos com
roupas camu adas e equipados com facas e binóculos, além de armas.
Caminhavam horas e horas desde cedo por trilhas e pântanos. Marcos batia
com pedaços de chifre do próprio animal nos caules das árvores na tentativa
de atraí-los pelo olfato. O empresário da Yoki imitava o mugido dos alces
soltando ar por entre as mãos em formato de concha. Pelo caminho,
também eliminavam coiotes, gansos e guaxinins. Quase todos esses bichos
eram esquartejados e desossados por Elize. Os alces recebiam tratamento
especial. Marcos e Elize decepavam a cabeça e depois a levavam a
laboratórios especializados em taxidermia, uma técnica avançada de
empalhamento. Algumas das cabeças com chifre e busto foram trazidas
como bagagem e penduradas nas paredes do apartamento do casal como
troféus de caça. Segundo Marcos dizia, cortar as cabeças e exibi-las em casa
simbolizava a soberania da humanidade sobre os animais. “Fui criada no
mato, no interior do Paraná. Lá é normal abater animais e esquartejá-los.
Muitas vezes, a caça é um meio de sobrevivência. As pessoas da cidade cam
chocadas, mas na zona rural isso é comum”, declarou Elize em junho de
2021.
Outro hobby de Marcos e Elize era colecionar vinhos caros.
Frequentemente faziam viagens internacionais para abastecer a superadega
do apartamento. Os destinos preferidos eram Argentina, Espanha, França,
Itália e Portugal. Eles chegaram a trazer num único voo 300 mil reais em
caixas com o produto. O empresário também contrabandeava garrafas nos
contêineres da Yoki usados para importação e exportação da empresa.
Marcos entendia tudo sobre vinhos e não economizava quando ia às
compras. Consumiam garrafas de 30 mil reais em uma única refeição. Elize
sempre gostou de vinho, mas seus conhecimentos e seu bolso eram
limitadíssimos. Ou seja, ela só consumia rótulos comprados em
supermercados. Dedicado à sua companheira, o empresário passou a
ensiná-la sobre o assunto. Encantada com a cultura milenar do vinho, a
jovem fez cursos básicos de sommelier e enologia. Também assinou
publicações especializadas e aprendeu mais e mais. Parou de consumi-lo de
forma amadora e dava verdadeiras palestras sobre o tema. Quando pedia
uma garrafa num restaurante, por exemplo, Elize perguntava com
propriedade pela origem, safra e tipo de uva. Não demorou muito para ela
entender de vinhos mais do que o marido. Dominava os aspectos
envolvendo aroma, paladar, visual e tinha experiência afetiva ao degustá-lo.
Sabia até qual tipo de água deveria ser harmonizada com a bebida servida.
Sonhadora, Elize cogitou abrir uma adega de luxo em São Paulo para
importar, comercializar e realizar leilões de vinhos nobres no Brasil e no
exterior. Levou o projeto tão a sério que chegou a fazer curso de leiloeira e
pediu autorização à Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) para
realizar pregões. Na sessão do dia 22 de novembro de 2011, a Jucesp
concedeu a ela o título de leiloeira o cial (matrícula nº 890). Marcos apoiou
a ideia e se pronti cou a bancar o negócio da esposa. Juntos, abriram duas
empresas de importação, sendo uma delas com sede em Portugal. Em
novembro de 2009, o empresário começou a comprar e contrabandear
vinhos de diversas importadoras e estocar num dos cômodos climatizados
do apartamento. No início da década de 2010, o casal tinha pelo menos 30
garrafas do italiano Sassicaia, um toscano tinto encorpado, suculento, macio,
aveludado e com nal marcante, cuja garrafa de 700 ml na época custava,
em média, 5 mil reais. Marcos e Elize também tinham itens mais em conta.
Um deles era o português Vintage Port, preço médio de 200 reais na época.
Esse rótulo, segundo especialistas, é ótimo com carne de vaca e queijos
maduros.
Sobre o acúmulo de vinhos no apartamento do casal, a confeiteira
Cecília Yone Nishioka, a Ciça, madrinha de casamento, comentou em 2016:
“Eles tinham uma adega considerável com vinhos caríssimos. Uma vez
zeram um jantar e me convidaram. O Marcos falou que ia abrir um vinho
do Porto qualquer. Fomos todos até a adega procurá-lo. Tinha caixas
empilhadas até o teto com garrafas nobres. Nós não conseguimos entrar no
cômodo por causa da montanha de caixas e acabamos tomando um Petrus
porque estava mais à mão”. Para se ter uma ideia do valor da adega de
Marcos e Elize, o Chateau Petrus aberto por acaso era da safra de 1982 e
custava na época 25 mil reais. Em 2021, podia ser adquirido por 35 mil
reais. Esse rótulo francês é uma verdadeira lenda no mercado de vinhos.
Figura na primeira divisão dos mais cultuados, raros e caros do mundo.
Tinto, é rico em aromas de fruta madura e carnuda, como framboesa,
evoluindo para notas de especiarias e chocolate. Concentrado, estruturado e
com taninos nos, destaca-se pela extraordinária elegância e pureza. À
mesa, o Petrus vai bem com carnes vermelhas, desde que não tenham
molhos muito intensos; combina ainda com aves levemente adocicadas, a
exemplo de pato e ganso. Especialistas sugerem só abrir a garrafa do Petrus
se ela tiver sido envelhecida por mais de dez anos. Uma outra declaração de
Ciça ilustra a suntuosidade da adega do casal Matsunaga: “Uma vez o
Marcos e a Elize me convidaram para ir a um leilão de vinhos. Eu falei que
iria apenas para dar um apoio moral porque havia rótulos de 100 mil reais”.
Os planos de montar uma adega para atender gente endinheirada em
São Paulo foram suspensos temporariamente depois de uma viagem do casal
à fábrica da Yoki em Campo Novo do Parecis, em Mato Grosso. Em uma
folga do trabalho, Marcos levou a esposa para conhecer as belezas naturais
do município. O empresário já havia feito esse mesmo passeio anos atrás
com a garota de programa de luxo Alícia, a modelo-atriz-manequim da
mansão de Arethuza. Com Elize, ele passeou de lancha por rios, pescaram e
praticaram esportes radicais. O casal fez rapel a 85 metros de altura na
cachoeira de Santo Utiariti. Também escalaram as rochas de 20 metros no
Chapadão do Parecis. Depois de um m de semana inteiro de aventura, o
casal voltou ao hotel de águas termais onde estavam hospedados. À noite,
Marcos abriu o computador para trabalhar e Elize recebeu de um
funcionário do hotel as roupas lavadas. Uma calça jeans dela da grife Diesel
foi entregue com manchas brancas feitas por uso equivocado de água
sanitária. Irritado, Marcos pegou a peça e foi até a recepção reclamar com o
gerente. Enquanto isso, ela seguiu para o banho. Antes de ligar o chuveiro,
porém, a jovem ouviu inúmeros sinais sonoros vindos do computador do
marido, avisando a chegada de novas mensagens. A princípio, ela não deu
bola. Até que o interlocutor pediu insistentemente uma conexão por vídeo.
Curiosa, Elize saiu do banheiro, enrolou-se numa toalha, abriu o laptop e
aceitou a chamada. Do outro lado estava uma secretária-executiva da
unidade da Yoki do município de Marília (SP), chamada por Marcos pelo
apelido carinhoso de Claudinha. Ao ver a cara da esposa do patrão na tela, a
funcionária primeiro levou um susto e depois cou desconcertada. Pediu
desculpas e desligou sem dizer “tchau”.
Bisbilhoteira, Elize aproveitou que o computador do marido estava
conectado com senha e leu as conversas dele com Claudinha no programa
de bate-papo Windows Live Messenger. Começou a leitura desde o início
para entender todo o contexto. Para sua surpresa, os dois se falavam havia
meses. No diálogo, o empresário chamava Claudinha de “Delicinha” e ela
devolvia o carinho se referindo a ele como “Bebezão”. Ao rolar o mouse de
cima para baixo até chegar à conversa do dia, Elize encontrou uma mistura
de assuntos íntimos com pro ssionais. Depois de ler tudo, concluiu que
“Bebezão” ainda não tinha se encontrado com “Delicinha” fora da empresa.
No entanto, os dois tinham marcado um date num hotel para dali a uma
semana em Marília. Elize relia as mensagens quando o marido entrou no
quarto e arrancou o computador do colo da esposa de forma abrupta. Houve
uma discussão. Ela começou a chorar com a iminência de ser traída. Marcos
jurou de pés juntos se tratar de um relacionamento estritamente pro ssional
e usou como argumento o fato de Claudinha ser comprometida com um
rapaz chamado Marcelo, também funcionário da Yoki. Incrédula, Elize
pediu para ler todas as mensagens existentes no computador do marido para
saber se ele se encontrava com outras mulheres, mas a resposta foi negativa.
Marcos pediu um voto de con ança.
Em São Paulo, as brigas continuaram. Marcos começou a sentir saudade
da lha que teve com Lívia. A menina tinha 8 anos na época. Elize sentiu
ciúme e reagiu violentamente. Segundo o empresário falava para amigos, ele
amava a menina, mas Elize o impedia de vê-la por causa da ex-esposa. Em
uma das viagens do empresário para a fábrica de Nova Prata (RS), onde a
garota morava com a mãe, ele a visitou. Elize acabou descobrindo e fez um
escândalo em casa. Ela nega até hoje ter criado obstáculos para o marido
visitar a lha do primeiro casamento.
Um outro motivo de briga entre os dois foi a impressão do álbum de
casamento, oito meses após a festa. A fotógrafa Adri Felden havia editado
uma galeria com mais de 100 imagens e enviado um link pela internet para o
casal escolher quais fariam parte do fotolivro. Ao olharem imagem por
imagem, Marcos e Elize bateram boca. Alícia, a atriz-modelo-manequim da
mansão de Arethuza, aparecia em vários closes, toda sensual e usando um
vestido vermelho sem alça. Ciumenta, Elize fez um barraco. Para resolver a
questão, Marcos telefonou para Adri pedindo a exclusão da prostituta do
álbum virtual antes da impressão. Para não verbalizar o nome da moça, o
empresário se referiu a Alícia como um “problema”. A fotógrafa atendeu ao
pedido do cliente, deletou o “problema” e enviou um novo link sem as fotos
da dita cuja. “Olá, Marcos. Seguem em anexo as páginas que deverão ser
retiradas do álbum. Favor con rmar o cancelamento destas, pois ele seguirá
para impressão em breve”, escreveu a fotógrafa por e-mail. As páginas em
questão tinham fotos de Elize jogando o buquê, as mulheres se
engal nhando para pegá-lo e, no meio delas, a prostituta de luxo bem à
vontade. Marcos con rmou a retirada das imagens do álbum e fez outro
pedido: “Só mais uma coisinha, Adri: você poderia retirar as fotos também
do site, pois o ‘problema’ ainda aparece em várias imagens. Um abraço,
Marcos”. O álbum seguiu para a grá ca sem a presença de Alícia, que
também desapareceu da galeria virtual. “A mulher em questão era uma das
mais bonitas da festa e chamava a atenção de todo o mundo. Cheguei a fazer
fotos só dela”, recorda-se Adri Felden.
As discussões entre o casal Matsunaga a oravam quando eles
exageravam no vinho. Certa noite, estavam na terceira garrafa e Elize
desenterrou o affair de Marcos com a tal Claudinha, a funcionária da Yoki.
Insegura, ela se comparou com a oponente. Bêbada, perguntou o que o
marido vira na outra mulher. Marcos respondeu, também embriagado,
tratar-se de belezas diferentes. Possessa com a resposta, a jovem saiu da sala
decidida a se separar. Sairia de casa naquele mesmo instante e levaria Gigi, a
cobra considerada lha do casal. Alguns minutos depois, ela voltou à sala
com a jiboia de 10 quilos e 3 metros de comprimento enrolada no corpo.
Marcos cou desesperado, jogou-se no chão e implorou por uma nova
chance. “Não consigo viver sem a cobra”, chorava. A esposa se mostrou
irredutível e anunciou a partida para logo mais. No entanto, ela não fazia
nenhum movimento concreto nesse sentido, como abrir armários e arrumar
malas, por exemplo. A única atitude de Elize foi agarrar-se à cobra. O
executivo tinha um amor doentio pelo animal dado de presente por ele
quando o casal selou o noivado. Elize olhava para a serpente, dava beijinhos
em seu nariz e dizia com voz infantilizada: “O papai está traindo a mamãe
com uma tal de Claudinha e isso vai destruir a nossa família”. Marcos ouvia
e gritava enlouquecido. Ela tentou arrancar uma con ssão do marido:
– Assume que essa Claudinha é sua amante! Assume!
– Não tem nada a ver. Você é louca de pedra!
– Assume! Senão vou sair por aquela porta e você nunca mais verá a
nossa lha!
– Eu não tenho amante, amorzinho! Juro por Deus!
– Assume! Acaba logo com essa agonia!
– Tá bom! Eu assumo!
Não se sabe se Marcos assumiu o affair para não car longe de Gigi ou se
realmente mantinha um caso extraconjugal com a funcionária da Yoki.
Depois da con ssão, ele arrancou o réptil dos braços da esposa e contou o
que seria a sua verdade. Segundo disse, havia um interesse por parte da
funcionária, mas nunca teria ocorrido nada entre eles além de xavecos pelo
bate-papo do computador. Na empresa, eles não se cortejavam por causa do
namorado dela, um rapaz ciumentíssimo. Para provar estar falando a
verdade, o empresário nalmente deixou a esposa ler todas as mensagens no
computador. Atrevida, a funcionária tinha oferecido pelo e-mail da Yoki
uma massagem tântrica ao patrão. “Essa massagem vai melhorar a sua
resistência sexual e a qualidade dos orgasmos. Você vai gozar na hora que
você quiser, Bebezão. Vai fazer você aliviar a dor, aliviar o estresse, melhorar
seu sono, e até desbloquear as suas emoções. Depois de gozar, você vai se
sentir outra pessoa”, prometeu “Delicinha”. Marcos respondeu: “Só quero ver
se essa massagem é isso tudo mesmo”.
Ao ler as segundas intenções de “Delicinha” no computador do marido,
Elize exigiu a demissão sumária da “sirigaita”. Marcos disse não poder
dispensá-la porque Claudinha conhecia os segredos da empresa e poderia
levá-los à concorrência. “Ela é uma funcionária de con ança e valorizada no
mercado”, argumentou. Nervosa, Elize partiu para cima de Marcos. Forte e
praticante de lutas, ele conteve a mulher segurando-a pelo braço. Muito
branca, ela cou com hematomas pronunciados, mesmo sem ser agredida
diretamente pelo marido. Transtornada, ela arremessou objetos decorativos
da sala contra a parede. Depois desse con ito, o casal dormiu em quartos
separados por uma semana. Em seguida, eles zeram as pazes como se nada
tivesse acontecido. No caso da briga cujo pivô foi a funcionária da Yoki, os
dois zeram um acordo: Marcos teria de escrever e enviar na frente de Elize
um e-mail cortando de forma de nitiva qualquer possibilidade de os dois se
encontrarem. O empresário então mandou à subordinada a seguinte
mensagem:
“Olá! Infelizmente esse e-mail não será nada agradável. Eu z coisas que
uma pessoa na minha condição não deveria ter feito. Por isso combinei com
a Elize, minha esposa, que irei cortar todas as relações que envolvam mais
do que uma simples amizade. O meu casamento é a coisa mais importante
da minha vida e não quero que isso seja afetado. Então, a partir de agora não
vou mais manter contato contigo. Espero que você entenda e respeite a
minha decisão. Desejo que você seja muito feliz com o seu namorado.
Assinado: Marcos”.
Mesmo depois de o empresário enviar o e-mail a Claudinha, Elize
continuou com cara de poucos amigos e evitava o marido na cama. Para
recuperar o humor da esposa, o empresário deu a ela de presente uma
pistola semiautomática Imbel calibre .380 GC, comprada na época por 2.500
reais. Na cor preta, o modelo tinha armação e ferrolho em aço-carbono,
cano do tipo leve e rampado. A arma tinha capacidade para três
carregadores, cujo poder de fogo chegava a 17 tiros. O mimo reacendeu o
amor. Para recompensar o marido, Elize fez um curso de massagem tântrica
e aplicou a técnica nele. “Com raízes profundamente espirituais, o tantra vai
trazer equilíbrio e entrelaçamento de energias entre nós. Vai ajudar a
fortalecer nosso vínculo e nos levar a um entendimento mais profundo do
nosso próprio corpo, da nossa vida afetiva e sexual. Quero ver agora uma
piranha vagabunda se interpor entre nós, Bebezão”, disse Elize ao marido,
levando-o à loucura na cama.
Um ano depois de refazerem os laços por meio da massagem tântrica,
Marcos e Elize voltaram a brigar. Os dois passaram a nutrir mutualmente
um ciúme doentio. No meio das discussões ela sempre ameaçava se separar
e ele implorava perdão. Quando estavam de bem, o casal seguia no m de
semana para o haras do empresário argentino Horácio Ruben D’Abramo, no
bairro Santa Paula, zona rural do município de Cotia, Região Metropolitana
de São Paulo. O local tinha o nome de Don Juan. Amigos de Horácio,
Marcos e Elize cavalgavam durante o dia na propriedade, praticavam tiro e,
à noite, bebiam vinho. O casal tinha planos de comprar uma chácara em
Cotia. “Uma vez eu z um churrasco e convidei Marcos e Elize. Ele me
apresentou como esposa. No início, estava tudo normal. De repente, ela
começou a ter ataques de ciúme a ponto de puxar o marido de perto de
outras mulheres”, relatou Horácio em 2016.
Elize reclamava do casamento para tia Rose, prevendo o m do
matrimônio a médio prazo. A amiga então aconselhou-a a engravidar. “Um
bebê não vai segurar o casamento. Mas pelo menos você cria um vínculo
eterno com ele e sua fortuna”, teorizou a tia. Em meio às tempestades do
casamento, Marcos e Elize tentaram ter um lho. Como não conseguiram de
forma natural, recorreram à ciência. Elize iniciou um tratamento para
engravidar na clínica particular do médico Nelson Antunes Júnior,
especializado em reprodução humana, tocoginecologia e manipulação de
gametas. Ela gastou 15 mil reais (valores da época) para realizar duas
punções de óvulos e quatro transferências embrionárias, feitas entre
dezembro de 2009 e abril de 2010. Querendo ser pai novamente, Marcos
também recorreu a um tratamento numa clínica especializada em fertilidade
masculina, onde teria gastado 20 mil reais. Nessa esteira, ele também
procurou toterapia chinesa, acupuntura e auriculoterapia para tratar
estresse, disfunção erétil e uma in amação no fígado provocada por excesso
de álcool. Um dos três suplementos prescritos a ele pelo médico Shingo
Nagashima, em 11 de maio de 2009, chamava-se Da huang mu dan pi tang.
Era uma fórmula receitada para tratar síndrome de calor acompanhada de
estagnação de sangue na região do baixo ventre. Marcos e Elize acabaram
abandonando os tratamentos por causa de discussões que sempre
terminavam em períodos longos sem sexo, reduzindo as chances de ela
engravidar. Com o retorno das desavenças, o casal passou a dormir
frequentemente em quartos separados por períodos longos. Era sempre o
empresário que seguia para outro cômodo. Certa noite, ele voltou à suíte do
casal e os dois zeram amor.
Elize engravidou naturalmente em agosto de 2010. Era uma menina.
Com um anjinho a caminho, o casal resolveu pavimentar uma trégua mais
longa para preservar a família. Nos primeiros meses de gravidez, a futura
mãe voltou a investir no projeto de abrir uma importadora de vinhos
nobres. No mesmo período, a Yoki passou a ser assediada por
multinacionais com ofertas bilionárias para compra da companhia. Nessa
época, as nove fábricas empregavam 5.200 funcionários em seis estados e
processavam juntas 610 itens – de salgadinhos a sucos prontos, passando
pelas famosas pipocas de micro-ondas e uma linha de cereais. O Brasil vivia
a explosão da classe C e os produtos industrializados de baixo custo estavam
em alta. Davam tanto dinheiro que a Yoki faturava 1,1 bilhão de reais por
ano quando começou a ser negociada. Segundo Mitsuo Matsunaga, foi
Marcos quem lhe apresentou os executivos da General Mills para iniciar as
negociações de compra e venda da companhia.
Uma reportagem publicada em O Estado de S. Paulo no dia 19 de
dezembro de 2011 jogou luz sobre a decisão da família de se desfazer da
indústria de alimentos. Segundo o jornal, os fundadores da Yoki resolveram
passá-la adiante porque enfrentavam di culdades para encontrar no seio
familiar sucessores competentes e interessados em administrar a empresa.
Na época das negociações, o presidente da companhia era Mitsuo
Matsunaga, pai de Marcos. Ele era casado com Misako Matsunaga, lha de
Yoshizo Kitano, fundador da marca. Mitsuo dividia o comando da empresa
com o vice-presidente, Gabriel Cherubini, ex-executivo da Unilever. Gabriel,
por sua vez, era casado com Yeda Kitano Cherubini, a outra lha de Yoshizo.
Misako e Yeda herdaram do pai 77% das ações da Yoki, ou seja, cada uma
tinha 38,5% do capital da companhia. Com duas famílias no comando da
empresa, eram comuns as divergências internas regadas a muitas brigas e
bate-boca. “O problema é que as famílias Matsunaga e Cherubini nunca se
deram bem. A rixa familiar resultou em duas facções dentro da Yoki. Não há
como fazer sucessão com uma parte querendo passar a perna na outra”, disse
na época uma fonte da empresa ao Estadão. A reportagem era assinada pela
jornalista Lílian Cunha.
As divergências familiares aceleraram o processo de venda da Yoki. No
meio de uma série de auditorias feitas pela General Mills na contabilidade
da empresa, veio à tona a companhia de exportação aberta por Marcos à
revelia da família para vender produtos da fábrica ao exterior, cujo
faturamento anual chegava a 39 milhões de dólares. Documentos internos
revelaram uma dívida de 15 milhões de reais só em créditos de exportações
atrasados em nome dessa empresa secreta. O rombo foi assumido mais tarde
por Mitsuo.
Pelos planos da família Matsunaga, depois da venda da Yoki, caberia a
Marcos um bônus de 100 milhões de reais para ele recomeçar a vida
pro ssional. Era o mesmo valor programado ao seu irmão Mauro. Levando
em conta a sua dedicação à empresa, Marcos teria achado o valor do bônus
muito baixo. Mesmo contrariado, ele e Elize começaram a fazer planos com
a futura fortuna. Ele dizia a ela que queria morar em Miami tão logo o bebê
nascesse. Sem falar inglês, ela pensava em car no Brasil e abrir a tão
sonhada importadora de vinhos. Para amigos, no entanto, o empresário
cogitava abandonar Elize e viajar sozinho para o exterior.
De tanto falar em cifras altas, o empresário passou a imaginar de forma
obsessiva a possibilidade de ser assaltado ou sequestrado. Seu maior pavor
era ser surpreendido por um bandido dentro de casa, pois as duas
coberturas dúplex tinham seis portas de entrada, sendo três sociais e três de
serviço distribuídas em dois pavimentos. Para proteger a família, Marcos
montou uma estratégia de segurança. Com a ajuda de Elize, ele pegou cerca
de 20 armas guardadas no cômodo secreto do apartamento e as escondeu
pelos móveis da sala, quartos, cozinha e até corredores. O armamento
selecionado estava carregado e pronto para atirar. Elize pegou a sua pistola
Imbel e pôs na gaveta de um aparador usado no corredor como charuteira.
O casal também escondeu armas brancas: espadas samurai, martelo de
guerra, porrete de combate, canivetes, punhais, soco-inglês e facas de caça.
Marcos e Elize chegaram a simular um assalto para calcular quanto tempo
eles levariam até alcançar a pistola mais próxima.
Na mesma noite da camu agem das armas pelo apartamento, Marcos
tentou transar com a esposa, mas ela estava sem libido. Elize sentia enjoo e
cólicas fortes por causa da gravidez. A princípio, ele entendeu e a consolou.
No entanto, seu vício em sexo falou mais alto. Certa noite, Marcos procurou
a mulher na cama e ouviu uma resposta negativa pela enésima vez. Houve
uma discussão com frases ditas para machucar:
– Quando você era puta, bastava eu abrir a carteira que você abria as
pernas. Agora é essa frescura de hoje não, dor de cabeça, boceta ressecada,
gravidez...
– Amor, agora sou sua esposa. Serei mãe da sua lha. Não sou mais
garota de programa.
– Quem disse que você não é mais puta? Quem?
– Para com isso, por favor!
– Uma vez puta, sempre puta. Puta sempre hei de ser! – concluiu o
empresário fazendo trocadilho com o hino do Flamengo.
As ofensas de Marcos faziam de Elize uma mola encolhida. Mesmo
assim, segundo dizia, ela insistia em tentar salvar o casamento em nome da
lha e em busca de segurança nanceira. Marcos oscilava emocionalmente
entre o carinho e a indiferença. Ora ele a deitava no colo e acariciava os
cabelos loiros de Elize, ora ele acordava circunspecto, tomava café e saía sem
dar “bom dia”.
No oitavo mês de gestação, a jovem se deparou com um problemão.
Marcos chegou em casa com um lhote de porco vivo e o levou ao quarto de
Gigi. O empresário amarrou o bicho pelos pés para imobilizá-lo. A cobra fez
o de sempre: enrolou-se na presa para matá-la as xiada. O suíno, resistente,
demorava a morrer. Dava gritos agonizantes e tão estridentes que até os
vizinhos se incomodaram. A sequência era abominável e atroz. À medida
que a serpente apertava o porco, ele guinchava e expelia jatos de fezes e
urina pelo chão. Marcos acompanhou o banquete fazendo registros com
uma lmadora. O empresário só saiu do cativeiro depois de Gigi terminar a
refeição e cuspir o barbante usado para imobilizar o porco.
Outrora Elize também se divertia junto com o marido assistindo a esse
tipo de cena. O casal adorava acompanhar as presas agonizando e com medo
da cobra. Vibrava com o bote de Gigi. E delirava com o momento em que os
bichos eram as xiados lentamente e tinham os ossos esmagados pela
mandíbula da serpente. No dia desse festim, porém, ela não achou a menor
graça na morte do porquinho. Pelo contrário, o grunhir agonizante do
leitãozinho suscitou mais uma discussão acalorada em casa. A futura mãe
manifestou o receio de Gigi engolir a nenê tão logo ela nascesse, dali a mais
ou menos um mês e meio. Marcos bateu o pé e disse que não se desfaria da
jiboia porque a amava também como lha. A esposa grávida começou a
arrumar as malas para cair fora de casa. Numa sexta-feira, contrariado,
Marcos pôs a cobra numa caixa e a levou à casa de campo de Lincoln, em
São Lourenço da Serra (SP). O supermercadista aceitou car com o animal.
Quando ouviu o motivo da doação, Lincoln cobriu Elize de razão. “Se um
dia vocês esquecerem de alimentar a cobra, ela não vai pensar duas vezes em
comer o bebê”, imaginou.
Marcos aproveitou a casa de campo do amigo e relaxou por todo o nal
de semana, mesmo sem ter avisado Elize. Quando as mensagens da esposa
começaram a pipocar no telefone, o empresário desligou o aparelho e
começou a reclamar. A Lincoln, ele desabafou em meio a uma bebedeira:
“Nunca envolva emoções ao negócio. Foi o que eu z quando resolvi levar
uma puta ao altar. Nunca cometa esse erro, Lincoln. Puta é puta, esposa é
esposa, vaca é vaca. [...] Imagina que ela pensa que não é mais piranha só
porque está casada. [...] O que de ne a prostituta é o sangue e não o
dinheiro pelo sexo. [...] Acontece que ela não é a única mulher com boceta
para vender. [...] A Lívia também era chata pra caralho, mas pelo menos era
moça de família”. Nesse dia, Marcos justi cou para Lincoln a “loucura” de
Elize com traições “inexistentes”.
Em outro momento da bebedeira, Marcos teria falado com pesar das
brigas envolvendo discussões e até agressões físicas. Também chorou no
ombro do amigo a falta de prestígio na família por ter sido excluído do
processo de venda da Yoki. “Não me deixaram nem opinar. Eu também
ajudei a fazer daquela empresa de fundo de quintal uma das maiores
potências do país”, reclamou enquanto bebia uísque. Para aplacar a tristeza,
os dois amigos contrataram duas modelos de Arethuza ao custo de 20 mil
reais. “Minha esposa já pensa que tenho amantes. Então que venham as
piranhas mercenárias!”, gritou o empresário. A festinha privê teve um
contratempo. Uma das garotas enviadas pela cafetina de luxo entrou em
pânico quando viu Gigi passeando pela sala e caiu fora antes de tirar a
primeira peça de roupa. A outra encarou o desa o de transar com os dois
mesmo com a serpente por perto. Mas, esperta, ela cobrou o cachê da colega
fujona.
Marcos e Lincoln zeram do m de semana uma farra sem m e
reviveram os velhos tempos. No sábado, Paolo compareceu ao sítio para ver
Gigi. Foram chamadas mais garotas. Para evitar imprevistos, elas foram
avisadas da presença da jiboia. Na hora de ir embora, domingo à noite,
Marcos não conseguiu se despedir de Gigi e levou a cobra de volta para casa.
Assim que o marido pisou no apartamento, Elize perguntou por onde ele
tinha andado. Ainda embriagado e odiando a esposa por causa da rejeição à
serpente, o empresário a encarou: “Você sempre está com essa carinha de
coitada, demonstrando preocupação. Eu nunca me deixei enganar. Por baixo
desse olhar não exionado está quem você é de verdade”. Depois desse
enigma, Marcos foi dormir no cativeiro de Gigi. Na manhã seguinte, saiu de
casa mudo e com a cara fechada. Nem café ele tomou. Um mês depois, o
casal fez as pazes e Gigi acabou sendo doada ao Instituto Butantan.
Elize pariu no dia 15 de abril de 2011 e concluiu o curso de Direito da
Universidade Paulista (Unip) no dia 20 de outubro do mesmo ano.
Atribulada com as tarefas de mãe e mirando o projeto da importadora de
vinhos, ela preferiu não fazer prova para obter registro na Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB). Milagrosamente, Marcos voltou a demonstrar
carinho pela esposa, como fazia anteriormente. Três cômodos do
apartamento foram reformados para a chegada da criança. Um deles virou o
quarto da nenê. Outro espaço foi transformado em brinquedoteca e um
terceiro servia de apoio para guardar fraldas, carrinhos de bebê e
cadeirinhas. Havia ainda uma cozinha exclusiva com fogão, geladeira, estufa
e louças da criança. Marcos babava pela lha. O amor obsessivo por Gigi foi
transferido à menina e a duas cadelinhas compradas pelo casal – uma
poodle batizada de So a e outra da raça shih-tzu chamada Fiona. Com uma
bebê e dois bichos de estimação em casa, Marcos voltou a ser um homem
afetuoso. Elize chegou até a comemorar a nova fase do marido.
Quando o casal tinha a jiboia, nenhuma empregada parava em casa e a
limpeza das duas coberturas era feita por rmas especializadas. Sem a cobra
e com uma bebê, Marcos e Elize contrataram cinco empregadas ao custo de
quase 20 mil reais ao mês. Havia governanta, babá, cozinheira e faxineiras.
Todas trabalhavam uniformizadas e eram proibidas de circular em
determinados ambientes da casa. As babás, por exemplo, só podiam passar
do quarto da empregada, no piso inferior, para a cozinha. E da cozinha aos
cômodos do bebê, no segundo pavimento. Passar pela sala ou abrir armários
sem autorização, nem pensar. O casal tinha receio de uma das funcionárias
do lar se deparar com as armas escamoteadas pelos móveis. A única com
passe livre para circular por todo o apartamento era a governanta, Neuza
Gouveia da Silva, de 47 anos na época. Discreta, ela chegou a encontrar
pistolas e facas no guarda-roupa e num aparador. Mas não fez nenhum
comentário. “Eles eram ótimos patrões. Pagavam bem e sempre em dia. Não
tenho nada para falar”, declarou a governanta em 2016.
A vida da família Matsunaga parecia ter entrado nos eixos. Marcos
acordava cedo, brincava com a lha todos os dias e só ia para a Yoki depois
de dar banho na menina junto com Elize. Chegava em casa com brinquedos.
Parecia outro homem. O casal voltou a fazer sexo com frequência. Mas, tal
qual ocorreu com Lívia, sua ex-mulher, um belo dia o empresário acordou e
deu um beijo frio na esposa. Alegando compromissos pro ssionais, não
brincou mais com a lha pela manhã, muito menos acompanhou o banho
dela, como era habitual. Nem beijo na testa da mulher ele dava. O fantasma
da separação voltou a rondar o lar, mas Elize mantinha a esperança eterna
de recuperar o casamento.
Naquela época, Marcos usava o processo de venda da Yoki como
desculpa para sair cedo de casa e voltar tarde. Viajava muito a trabalho para
acompanhar as auditorias da General Mills em fábricas do interior, segundo
dizia. Solitária no casamento, Elize cou com o coração num leva e traz.
Chorava todos os dias. Mais tarde, desenvolveu transtorno de ansiedade
generalizada (TAG), caracterizado pela a ição excessiva e preocupação
exagerada com os eventos da vida cotidiana sem motivos óbvios. Ela
concentrou seus medos na possibilidade de perder a lha para a morte. A
jovem chegou a car sem dormir por quatro dias seguidos com receio de
algo grave acontecer com a criança. Quando conseguia dormir, tinha
sobressaltos no meio da madrugada e corria até o berço para ver se a lha
estava viva. Também tinha pesadelos medonhos com Gigi engolindo a nenê
pela cabeça. O sono irregular e o excesso de preocupação causavam
irritabilidade e falta de libido. No meio desse turbilhão de emoções, ela
insistia em proteger o casamento. Sugeriu ao marido terapia de casal com
uma psicóloga. Marcos se recusou categoricamente. “Nosso conselheiro é o
reverendo François”, sustentou o empresário. Elize insistiu até a exaustão
para ele comparecer ao menos a uma sessão. “Podemos ir primeiro à
psicóloga e depois ao reverendo. Se você não gostar dela, a gente não vai
mais. O importante é a gente descobrir como preservar o nosso
matrimônio”, sugeriu a esposa. Marcos concordou a muito custo.
Primeiramente, os dois procuraram a psicóloga Neusa Vaz Márcia,
membro do Instituto Junguiano de São Paulo e reconhecida pela Associação
Internacional de Psicologia Analítica. As sessões eram semanais e a primeira
delas ocorreu no dia 15 de março de 2012 na casa de Neusa, na Vila
Madalena. “O casal me procurou porque estava enfrentando uma crise
conjugal. Não estavam se entendendo, mas eles queriam car juntos.
Iniciamos uma terapia. Disseram que brigavam por motivos generalizados.
Elize se dizia sempre nervosa. Aconselhei os dois a procurarem um
psiquiatra para obter medicação apropriada. Marcos disse que Elize não o
deixava procurar pela lha do primeiro casamento. Essa negativa acionava
brigas entre os dois. [...] Ele se mostrava muito preocupado com Elize e
queria que ela casse melhor”, relatou Neusa.
Marcos chegou a ir a pelo menos três sessões de terapia de casal. Na
última delas, houve uma discussão entre os dois na frente da psicóloga. Tudo
começou quando Elize estava falando sobre o abismo emocional existente
entre ela e o marido e foi cortada por ele, que começou a falar de como a
vida de Elize melhorou com o casamento. A terapeuta o repreendeu pelo
manterrupting:
– Desculpe, mas a sua esposa não terminou de falar. Estou interessada
em ouvir o resto da frase da sua esposa. Devemos escutá-la até concluir o
raciocínio. Só depois você fala!
Irritado, Marcos se calou. Passou a olhar insistentemente para o relógio,
querendo encerrar a sessão. Elize começou a falar de como sonhou em ter
uma família e, agora que tinha, não abriria mão facilmente. Depois de
desabafar por quase 15 minutos, a terapeuta perguntou a Marcos:
– Você quer falar algo?
– Não senhora! – respondeu.
– Vocês estão prontos? – indagou a psicóloga.
– Estou! – respondeu Elize, empolgada.
– Pronto pra quê? – quis saber Marcos.
– Para falar dos seus sentimentos mais íntimos. Um vai falar para o
outro sobre o que está sentindo – respondeu a terapeuta.
Marcos cou mudo e fechou a cara. Elize pegou a palavra para si mais
uma vez:
– Eu amo você, Bebezão. Sei que o nosso casamento está se
desmanchando, mas acho que tem conserto. Eu amo quando você chega em
casa. Quando cuida de mim e da nossa família. Quando faz planos. Quando
a gente viaja...
– Marcos, o que você sente quando ouve essas palavras? – provocou a
psicóloga.
– Eu não estou confortável aqui – respondeu.
– Eu acho que você não ama mais a sua lha – cogitou a esposa.
– Nunca mais diga isso! – gritou Marcos.
– Você me faz sentir uma pessoa suja – concluiu Elize, aos prantos.
– Como assim? Por que suja? Fale mais sobre isso – quis saber a
terapeuta.
Considerando a possibilidade de Elize revelar na terapia ter sido garota
de programa, Marcos levantou-se e caminhou apressadamente rumo à
porta. A terapeuta o interpelou:
– A sessão ainda não acabou!
– Pra mim essa palhaçada acabou, minha senhora! Estou sempre dando,
dando e dando. A Elize quis viajar para o exterior para caçar. Eu a levei. Ela
sonhava com um apartamento amplo, eu dei. Quis ser advogada, eu paguei o
curso pra ela. Dei um carro novo, uma lha, joias, uma cobra, uma adega de
vinhos, um seguro de vida, dinheiro, muito dinheiro... E o que ela me deu?
– Eu dei a você os últimos cinco anos da minha vida – respondeu Elize.
– Não estamos chegando a lugar algum. Talvez seja a hora de
reiniciarmos. Vocês já pensaram em passar um tempo longe um do outro?
Isso poderá ajudar – sugeriu a terapeuta.
– Uma separação? – perguntou Elize.
– Não seria uma separação. Seria um tempo para vocês descobrirem
quem são e o que querem do casamento – explicou.
– Eu acho melhor – concluiu Marcos.
– Você quer terminar? – quis saber a esposa.
Calado Marcos estava, calado ele continuou. Aos prantos, Elize pôs para
fora:
– Eu te amo. Você é o meu salva-vidas. Foi um longo caminho até aqui.
Sinto que ainda temos muita coisa pela frente. A vida sem você me assusta.
Sem você, o mundo não faz mais sentido. Você é a única coisa de que
preciso...
Marcos deixou Elize falando sozinha, saiu da casa da terapeuta e nunca
mais voltou lá. Alegou falta de tempo para justi car o sumiço do divã.
Depois da última sessão, ele escolheu ser um homem completamente livre,
segundo teria dito a Lincoln. Em casa, o empresário passou a dormir
de nitivamente no quarto de hóspedes. Elize continuou na terapia sozinha.
Sobre as sessões com a paciente, Neusa Vaz declarou: “Ela não amava seu
marido. Amava o mundo que ele proporcionava. Com o tempo, Elize passou
a demonstrar um distanciamento emocional, como se separasse a emoção
da razão. Ela tem um comportamento de manipulação, sem nenhuma
preocupação com o outro. O único vínculo que conseguiu estabelecer de
forma genuína foi com a lha. Ela tinha um exagero nos cuidados com a
garota. Não pregava os olhos com medo de acontecer algo com a menina
enquanto estivesse dormindo. Existia uma ligação simbiótica muito grande
entre mãe e lha. Elize tinha uma fantasia de persecutoriedade [quando o
indivíduo acredita estar sendo perseguido por pessoas e objetos]. Contou
que tinha a senha do computador do marido e, sem que ele soubesse, ela lia
e-mails e mensagens de bate-papo”.
Confuso e afogado dentro do casamento, Marcos procurou pelo
reverendo François e reclamou da esposa. Conselheiro espiritual do casal
Matsunaga, o sacerdote aproveitou o encontro com o empresário e reclamou
de uma in ltração nas paredes de sua igreja. Sensibilizado, o executivo fez
um cheque de 3 mil reais. Em seguida, Marcos des ou um rosário de
reclamações do matrimônio. Falou repetidamente da insanidade da mulher,
apontada por ele como o principal motivo da crise conjugal. “Acho que vou
ter de interná-la num hospício”, cogitou.
No dia seguinte foi a vez de Elize visitar François. Antes de ouvir as
ladainhas da jovem, o religioso a levou até a creche e mostrou como as
crianças estavam desnutridas. Elize repassou um cheque de 1.500 reais e
pediu para ser ouvida. Falou das grosserias do marido e da possibilidade de
estar sendo traída. François agendou uma visita ao casal. Queria promover
uma sessão espiritual para resgatar a harmonia da relação. Marcos e Elize
ofereceram um jantar ao sacerdote. No dia combinado, François chegou
debaixo de chuva com uma hora de atraso e se desculpou entregando aos
an triões um buquê de ores. Para celebrar a terapia religiosa, o casal abriu
uma garrafa de vinho tinto Chateau Latour Pauillac, cujo preço na época era
de 10 mil reais. François disse nunca ter provado algo tão delicioso em toda
a sua vida. Quando soube o valor do rótulo, quase caiu da cadeira. Passou a
beber mais depressa, com goladas maiores. Antes de car embriagado, o
reverendo justi cou por que chegara depois da hora marcada. “Meu carro é
muito velho. Deus do céu! O motor está batido e o freio nem sempre
funciona. Outro dia eu dirigia na chuva e uma moça desatenta atravessou na
minha frente empurrando um carinho de bebê. Vocês acreditam que pisei
rmemente no pedal e o carro não parou? O nenê, coitadinho, não foi
atropelado por um triz”, contou embargando a voz para carregar na emoção.
“Que horror!”, espantou-se Elize. Abalado com a história, Marcos prometeu
doar a François uma TR-4 novinha em folha na semana seguinte. Era o
mesmo modelo de carro dado por ele de presente para prostitutas, incluindo
Elize. Na sequência, o casal fez um brinde e falou dos obstáculos da vida a
dois. Ela começou:
– Nem eu nem ele somos mais as mesmas pessoas. Ele está diferente.
Sinto que o meu coração cou para trás. [...] Nem sei se temos como manter
nosso casamento.
– Sempre tem uma saída – anunciou François, entre um gole e outro de
vinho caro.
– Eu ainda acho que deveríamos dar um tempo para um sentir falta do
outro. Nesse vácuo, poderemos redescobrir o amor – sugeriu Marcos.
O casal começou a falar da época de namoro, quando visitavam o
zoológico de São Paulo. Lembraram com humor até de Pepe, o chimpanzé
que teria se apaixonado por Elize. No meio da conversa, para surpresa de
todos, ela foi até o escritório e pegou o computador do marido. Abriu na
frente da visita, logou com a senha e acessou a caixa de entrada de e-mail.
Elize leu em voz alta de forma irônica uma mensagem enviada por Marcos a
uma funcionária da Yoki lotada no escritório do Recife chamada Francisca.
Deu ênfase à forma como o marido se despedia da moça: “Um beijo,
Chiquinha!”. Houve constrangimento porque foi revelado um fato
bombástico naquele instante: Elize tinha a senha do computador de Marcos.
O casal iniciou uma discussão e François interveio ríspido:
– Brigas não resolvem nada! – repreendeu o religioso, virando a taça de
uma vez.
– Me diga, reverendo: mandar beijo para uma funcionária não é traição?
– questionou Elize.
– Isso é bem relativo, querida – ponderou o sacerdote, bêbado.
A terapia já durava três horas, mas François não se incomodava com o
tempo, pois já havia sido aberta a quinta garrafa de vinho nobre. De repente,
o religioso foi ao banheiro da sala principal. Depois de urinar, ele lavou as
mãos e sentiu falta de toalha para enxugá-las. Ao abrir uma gaveta do
lavabo, deparou-se com uma pistola carregada. Nervoso, soltou um grito
histérico e saiu às pressas. O casal ainda batia boca na sala enquanto a sexta
garrafa de vinho estava sendo aberta por Marcos. Nervosa, Elize jogou o
laptop do marido no chão da sala e pisou em cima até despedaçá-lo. Com
medo da arma no banheiro e chocado com o surto da jovem, François
recusou a bebida e aconselhou um tempo na relação. “Não há mais plenitude
nem harmonia nesse casamento”, justi cou. Despediu-se agradecendo pelo
jantar e frisou esperar a visita de Marcos na semana seguinte em sua igreja
para, juntos, comprarem o carro novo.
No dia seguinte, Elize pegou a lha e viajou na companhia de uma babá
para a Costa do Sauípe, litoral da Bahia. A ideia era dar um tempo no
casamento. Hospedou-se num resort de luxo. De lá, trocava mensagens a
todo o momento com o marido. No dia 23 de março de 2012, Elize enviou
um e-mail a Marcos. Na mensagem, ela falava de como havia um muro entre
os dois, da apatia do esposo no casamento e cogitava a separação, além de
tecer comentários sobre a lha de Marcos com a ex-mulher:
Oi amor
Estou te escrevendo para a gente conversar sem brigar porque não
quero mais isso. Não quero mais ouvir você dizendo que fez tudo
certinho e que eu estou acabando com o nosso casamento. Quero te
dizer que faz tempo que eu me sinto totalmente sozinha. Pareces viver
no mundo da lua. Não consegues simplesmente perceber as coisas que
estão à sua frente. Se isso tem ocorrido por causa do seu trabalho, acho
que deverias viver sozinho. Talvez devesses pensar se você conseguiu
superar o seu divórcio. Me parece que não. Acho que não consegues
encarar essa situação e entender que a sua outra lha não mora mais
contigo e nem sempre será possível vê-la na hora que desejar. Se for por
causa das visitas, a gente pode até resolver. Mas se for por conta de
culpa, eu não poderei te ajudar em nada.
A sua lha não é a única criança que viveu, vive e viverá sem o
pai. Separação e divórcio acontecem. Eu também cresci sem um pai e
nem por isso eu destruí a minha vida. Não me tornei drogada nem
alcoólatra, não caí em depressão achando que nada daria certo. Pelo
contrário. Não perdi os meus valores e princípios que formaram o meu
caráter. Tampouco deixei de dar importância na educação que recebi
da minha família, em particular da minha avó Sebastiana. Pelo que
me parece, a sua lha está lidando muito bem com isso. Ela já não é
mais lha única. Isso é bom para ela entender que o mundo não gira
em torno dela. Sou mãe agora. Sei que jamais vou conseguir defender
a minha lha de uma decepção na vida. E nem quero, porque alegrias
e tristezas constroem o ser humano.
A sua outra lha está bem. Convive com a família dela. Não que
se sentindo culpado. Você tem outra lha agora. Olhe para ela
também. Entre em sintonia. Não que apenas na presença física. [...]
Erga a cabeça, encare a situação e as escolhas que zestes na vida. Não
que colocando a culpa nos outros. Encare a vida como o homem que
dissestes ter se tornado. Você não ca bem nem com a sua outra lha,
nem comigo nem com a nossa lha. Acho que ela [outra lha] está
encarando a situação melhor do que você. E olha que ela tem só 8
anos. Nós temos a nossa história também. A vida não é só o passado. E
a gente?
Ontem, olhei umas casas e uns apartamentos em Curitiba. Caso a
gente se separe, eu vou morar lá. A nossa lha terá uma boa educação
escolar sem o estresse de São Paulo. Sem contar que estarei bem mais
perto da minha família, em especial da minha avó, que só conhece a
nossa lha por foto. Longe de você, eu caria aliviada porque deixaria
essa vida onde o dinheiro resolve tudo. Também terei a chance de
conhecer alguém e não car sozinha. E mais aliviada ainda porque
não precisaria mais ligar o botão no robô chamado Marcos para
lembrá-lo que ele tem outra lha. Nem fotos mais você tira com ela, a
não ser que eu peça. Você passa todo dia na frente dela, dá um “alô
bebê”, sai pra rua e não traz nada para ela, nem uma fralda...
Acorda!!! Estou te suplicando. Acorda antes que você que longe
das suas duas lhas, pois daqui a pouco estaremos longe. Aí serás um
homem com duas ex-mulheres e dois casamentos fracassados. Um
porque você tinha uma mulher que não te amava. O seu primeiro
casamento acabou porque a sua ex-mulher não fez nada. O nosso está
se acabando também. Mas estou lutando para evitar esse m
simplesmente porque eu te amo!
Elize, sua esposa.
Na resposta, Marcos se dispôs a remendar o casamento e lembrou dos
velhos tempos. Paradoxalmente, ele copiou na mensagem a letra de uma
música internacional cujo trecho nal sugeria a separação:
Meu amor,
Realmente você fez de mim um homem. Estou resgatando esse
sentimento agora. Lembrando de como eu era e como eu me senti
quando comecei a te amar. Foi muito bom. Tomei uma decisão,
enfrentei o meu medo e resolvi car com você. Não desista de mim, por
favor. Ainda temos muito o que viver. Temos também muita coisa para
acertar. Cometi muitos erros e fui muito fraco. Mas você também fez
muitas coisas que me magoaram. Vamos esquecer tudo o que
aconteceu e recomeçar? Podemos voltar para aqueles dias mágicos em
que estar ao seu lado era a coisa mais importante da minha vida.
Estava ouvindo essa música e a letra dela diz muito do que estou
sentindo agora.
Na sequência da mensagem, Marcos enviou a Elize a letra completa da
música “Still loving you”, um clássico da banda alemã Scorpions. Um dos
trechos da canção diz, em tradução livre: “Eu poderia tentar mudar as coisas
que mataram nosso amor. Sim, eu feri seu orgulho e eu sei o que você está
passando. Você deveria me dar uma chance. Isso não pode ser o m. Eu ainda
estou te amando”. Outra estrofe da mesma música, porém, diz o seguinte:
“Seu orgulho construiu uma barreira tão forte que eu não consigo atravessar.
Realmente não há chance para começar mais uma vez”.
Depois das trocas de mensagens carinhosas e das brigas recorrentes por
ciúme, Elize nalmente fez um movimento concreto de separação. No dia 21
de maio de 2012, ela bateu na porta da advogada Priscila Corrêa da Fonseca,
conhecida em São Paulo pelo título de “a rainha dos divórcios”. Seu trabalho
geralmente é requisitado quando o término envolve litígio, mágoa, ódio e
grandes fortunas. Primeiro Elize fez uma consulta simples, na qual teria
pago 700 reais (valores da época). No encontro inicial, de uma hora de
duração, a jovem falou da deterioração do casamento motivada por brigas,
traições e falta de amor. A advogada teria perguntado se ela tinha provas da
in delidade de Marcos. Elize não tinha. “Eu gostaria que a senhora não
contasse a ninguém que eu vim até aqui. Eu preciso que seja feita
urgentemente uma separação de corpos. Queria que um o cial de Justiça
chegasse em casa e o tirasse de lá imediatamente. Nesse dia eu nem quero
estar presente. [...] Eu não sei qual vai ser a reação dele quando descobrir
que eu tomei essa atitude. Eu tenho muito medo”, relatou Elize, em 2016,
sobre a conversa com a advogada.
Priscilla aconselhou Elize a conseguir uma prova concreta de que
Marcos era adúltero. Uma semana depois, a advogada enviou um e-mail à
possível futura cliente. “Prezada Elize Araújo Kitano Matsunaga. Viemos
pela presente esclarecer que aceitamos, honrados, o patrocínio de seus
interesses para a propositura das ações de separação de corpos com guarda
[da lha] e regulamentação de visitas, alimentos, arrolamento de bens e
divórcio em face de Marcos Kitano Matsunaga. Em razão do patrocínio de
seus interesses, far-se-ão devidas ao escritório a título de honorários as
seguintes quantias: 70 mil reais de pró-labore (importância líquida e
irrestituível) a partir da aceitação da presente”. Priscila pediu ainda como
pagamento 10% de tudo que Elize conseguisse arrancar do marido por meio
da ação judicial, além de uma quantia líquida equivalente a seis vezes o valor
da pensão alimentícia a ser paga pelo ex-marido. A mensagem de Priscila
para Elize termina projetando mais um boleto – dessa vez de 3 mil reais –
para custos com xerox, condução, hospedagem e incidentes.
Dizendo-se preocupado com a segurança da família Matsunaga, o
reverendo François convidou Marcos para almoçar. O religioso mal sentou à
mesa do restaurante e já foi falando de problemas hidráulicos em sua creche
de crianças carentes. As queixas acabaram quando o empresário preencheu
um cheque de 6 mil reais e o repassou ao sacerdote para troca das
tubulações e torneiras da entidade. Enquanto François guardava o cheque na
batina, Marcos avisou já ter encomendado o carro novo do conselheiro
espiritual, mas ele só chegaria na semana seguinte. Depois de agradecer
pelas caridades do empresário, François falou da pistola encontrada no
lavabo. O executivo da Yoki se desculpou pelo constrangimento e contou do
medo de ser assaltado e da estratégia de esconder armamento pelo
apartamento. François se mostrou angustiado com os surtos de Elize e
aconselhou Marcos a pegar todas as armas da casa, guardá-las dentro de um
dos cômodos do apartamento, trancar a porta e esconder a chave da esposa.
“Se possível, quebre a chave dentro da fechadura para ninguém ter mais
acesso às armas da casa. A sua mulher realmente está perturbada. Está tendo
surtos psicóticos. Precisa de ajuda médica. Pode estar com esquizofrenia. Eu
temo com a possibilidade de ela atentar contra a vida da lha, da babá ou
mesmo contra a própria vida. Ela está fora de si”, desabafou. Em seguida,
François fez uma profecia fúnebre:
“Escute bem o que eu vou te dizer: a sua mulher está perturbada
espiritualmente. Fora de si. Ela vai pegar uma dessas armas e vai matá-lo”.
Marcos cou pensativo e classi cou o prognóstico do religioso como um
exagero. Saiu do almoço antes da sobremesa. Marcou um novo encontro
com o religioso para dali a uma semana numa concessionária da Mitsubishi,
localizada no Jardim Europa, onde seria feita a entrega da Pajero TR-4.
François agradeceu antecipadamente pela graça supostamente alcançada.
Com o casamento em queda livre e cada vez mais distante
emocionalmente de Elize, Marcos ressuscitou o Whore Rider (montador de
putas, em tradução livre). O empresário mergulhou no submundo da
prostituição com força total. Feito sátiro, gura mitológica metade homem e
metade bode, ele voltou a sair com todas as categorias de pro ssionais.
Frequentava a mansão de Arethuza, boates, prostíbulos. Reativou o at do
Itaim para receber as pro ssionais de 300 reais do MClass e o apartamento
da Bela Vista usado em programas com mulheres mais baratas. Repetindo o
mesmo padrão do passado, Marcos assumia para as garotas de programa ser
casado e dizia amar a esposa acima de tudo.
Passeando pelo MClass, o executivo da Yoki deparou-se com Lara, uma
prostituta cearense linda de 24 anos na época. Ela atendia no at de número
163 do Hotel Mercure São Paulo JK, na Rua Funchal 111, Vila Olímpia. Nas
fotos do prostíbulo virtual, Lara estava em pé com os seios à mostra e
deitada num sofá com o bumbum para o alto. Seu nome verdadeiro era
Nathalia Vila Real. Antes de vender o corpo em São Paulo, ela fazia
trabalhos de modelo em Fortaleza. Nessa época, o jornal Gazeta do Nordeste
publicou uma foto da beldade. O texto a descrevia: “Seu olhar tem um quê
tristonho, mas isso não vem ao caso. Nathalia está apenas começando a
viver. Ela assume todas as responsabilidades pelas escolhas que está fazendo.
Ela sabe que o mundo é exigente, que as preferências são cruéis. Mas é
preciso assumir os caminhos, os becos, as vielas, o destino. Nathalia lembra
a Lady Di e a atriz Guilhermina Guinle. Mas ela é apenas ela mesma. Com
olhar açucarado, boca amanteigada e ar de poesia”. Ao jornalismo de A
Gazeta, Nathalia deu uma singela declaração: “Ah, o mundo... Esse imenso
tribunal, essa inquisição persistente, esses dedos acusadores, essas mentiras,
essas hipocrisias... Ah, o mundo! É preciso viver e não se incomodar...”
Depois de fazer um programa com Nathalia a 400 reais, Marcos fez uma
resenha sobre o test drive no fórum chamado Guia de Garotas de Programa
(GGP). “Fui na Lara. Estava com o pé atrás achando que era muito bom
para ser verdade. Como ainda não havia ocorrido o desbravamento
[primeiro encontro], a ansiedade era grande. Seu at, na Rua Funchal, tem
uma burocracia meio estranha. Tive de preencher o raio de uma cha na
portaria. Pelo menos não fui obrigado a bater foto. Vocês sabem que o meu
negócio nunca foi decoração. Mas o at da moça é bacana. Tem toalhas
lacradas no plástico, sabonete líquido e bebidas. Tudo muito pro ssional e
organizado. Por falar em organização, ela me enviou uma mensagem antes
para con rmar o programa. Gostei dessa parte. Mas vamos ao que interessa.
A mulher é uma das mais lindas que já vi. As fotos não são manipuladas em
computador. Pelo contrário. Ela continua bonita mesmo depois de tirar a
maquiagem e tomar banho. É o tipo de mulher para você levar em uma
reunião. Os caras vão babar por ela na frente das esposas. Comigo ela foi
supersimpática, carinhosa, namoradinha, com direito a beijos muito bons,
oral bem-feito com duas gozadas. Os seios turbinados são muito bons para
chupar. E a bocetinha dela tem um grelo de bom tamanho e muito gostoso.
Ela tem uns pelinhos dourados na coxa de enlouquecer qualquer um. Sinto
muito pelas outras garotas de programa de São Paulo. Vou voltar muitas
vezes ao at de Lara. Mulher inteligente. Não é ngida como as outras.
Pensei duas vezes em postar esse comentário aqui para não atiçar a
concorrência. Como vocês sabem, estava sem fazer test drive fazia tempo,
então resolvi passar aqui para resenhar a Lara. Ela cobra 300 reais a hora,
mas paguei 400 porque ela não ca olhando para o relógio regulando o
tempo. Não sei se os colegas aqui do fórum vão na Lara. Eu irei muitas e
muitas vezes. Foi a garota que mais me agradou até o momento. Acho que
rolou a tal química. Para ser perfeito, só faltou liberar o cuzinho...”
Em uma semana de encontros diários com a prostituta, Marcos passou a
chamar Lara de Nathalia e pediu para “namorá-la”, mesmo sendo casado
com Elize. O romance seguiu o mesmo padrão dos outros relacionamentos
com garotas de programa. Ele a levava aos mesmos restaurantes, perguntou
quanto ela ganhava por mês fazendo atendimentos sexuais, combinou uma
mesada de 27 mil reais para ser só dele e exigiu que a pro ssional retirasse o
anúncio do MClass. A chegada da Pajero TR-4 comprada por Marcos para
dar ao reverendo François coincidiu com o início do namoro com Nathalia.
Apaixonado, o empresário decidiu profanar sua promessa. Deu de presente à
prostituta o carro destinado ao religioso.
À medida que a paixão de Marcos por Nathalia aumentava, crescia a
barreira emocional entre ele e Elize. O empresário dormia fora de casa mais
de uma vez na semana e dava como desculpas viagens a trabalho. Certa
noite, ele chegou em casa alterado. Elize estava preparada para abandoná-lo
no dia seguinte, segundo anunciou. Marcos teria aceitado a separação, mas
teria feito uma exigência: a lha caria com ele – segundo a versão de Elize.
Houve uma discussão violenta seguida de uma ameaça:
– Você não tem para onde ir, sua vagabunda!
– Vou morar no Paraná.
– Vai, mas deixa a minha lha porque não quero ela morando com uma
qualquer!
– Não fala assim! – implorou Elize.
– Aliás, você é uma sanguessuga que não consegue parar de me chupar.
Diz que vai embora e não sai de casa! Quer ajuda para arrumar as malas?
– Não precisa!
– Vai embora o quanto antes! Suma da minha frente!
– Vou embora amanhã! – anunciou Elize.
– Sempre assim, né? “Vou amanhã!” Por que não vai hoje! Ou melhor:
vai agora, sua cadela!
– Vou quando eu quiser!
– Vai! Mas se você levar a minha lha, vou dar um tiro bem no meio da
sua cara. A bala será tão rápida que você não saberá nem de onde veio! –
ameaçou, segundo a versão de Elize.
Essa seria a primeira e única vez que Marcos teria feito uma ameaça de
morte concreta à esposa. Elize cou apavorada porque as outras
advertências eram feitas por ele sempre quando bêbado e pareciam da boca
para fora. Depois da discussão ele saiu de casa para encontrar amigos. A
jovem acionou a polícia. A chamada foi feita na noite do dia 24 de abril de
2012:
– Polícia Militar. Emergência.
– Boa-noite – saudou Elize.
– Boa-noite – devolveu o policial.
– Eu nem sei se deveria ligar aí na emergência. O meu marido me
ameaçou e saiu de casa. Gostaria de saber se eu posso trocar a fechadura das
portas para ele não entrar mais aqui em casa.
– Senhora, eu não compreendi. Fale um pouco mais alto, por gentileza.
– Meu marido saiu de casa e me ameaçou. Queria saber se eu posso
trocar a fechadura.
– Vocês estão casados há quanto tempo?
– Há cinco anos.
– Ele tem o direito de entrar na residência também – avisou o policial.
– Mesmo me ameaçando?
– Eu não sei o que está acontecendo no local. Se a senhora quiser, pode
registrar uma ocorrência para conversar com o policial. Não acha melhor?
Fica a critério da senhora.
– [Silêncio]
– Senhora? Quer que cadastre a ocorrência?
– Por favor!
– Qual o seu nome?
– Elize.
– Denise?
– Não! Elize com E!
– Qual o nome da rua, dona Elize?
– Rua Carlos Weber, 1.376.
– Uma referência?
– Paralela à Imperatriz Leopoldina.
– Senhora, o seu pedido foi cadastrado na Polícia Militar. Se ele retornar
à residência, informe no 190 imediatamente.
– Obrigada.
Duas horas depois da chamada, por volta das 21 horas, uma viatura da
Polícia Militar estacionou em frente ao prédio do casal Matsunaga. O
porteiro interfonou. Elize estava sozinha em casa com a lha. Ela ouviu o
chamado e foi até a sacada do apartamento. Lá do alto, viu as viaturas com
luzes azul e vermelha piscando. O interfone continuava tocando. Ela
resolveu não atender. Os policiais foram embora e retornaram uma hora
depois. O interfone tocou novamente e Elize não atendeu. Como a queixa
nunca foi levada adiante, a polícia arquivou a denúncia de ameaça.
Na mesma noite, Marcos voltou para casa mais calmo. O porteiro falou
das viaturas policiais. Com medo, ele resolveu fazer as pazes com a esposa.
Mas o casamento estava fadado a acabar. Em outra ocasião, o empresário viu
Elize arrumando as malas aos prantos. Comovido, pediu que ela casse. Os
dois se abraçaram, mas não se reconciliaram, pois continuaram dormindo
em quartos separados. No mês seguinte, Elize decidiu viajar a Chopinzinho
para nalmente mostrar a lha à avó Sebastiana. Antes de embarcar, porém,
ela ligou no dia 16 de maio de 2012 para o número de um anúncio de
detetive particular especializado em casos extraconjugais, publicado na
revista Veja São Paulo. Quem atendeu a chamada foi o dono do escritório, o
investigador particular William Coelho de Oliveira, um homem calvo de 50
anos. Ela compareceu à sede da Activa Detetives, no centro de São Paulo, no
mesmo dia da ligação. A rma tinha o slogan “suas dúvidas acabam aqui”.
Sentada no escritório de William, Elize falou das suas suspeitas. O
detetive perguntou se ela descon ava especi camente de alguma mulher.
Elize falou o nome e as características de Claudinha, uma mulher, segundo
ela, tão bonita quanto a atriz Maria Fernanda Cândido. O trabalho foi
orçado em 8.500 reais (valores da época). Ela deu um sinal de 1.750 reais em
cheque do talão da sua conta conjunta com Marcos. Ficou acertado o
pagamento de 5 mil reais quando houvesse um relatório com fotos e
lmagens revelando a tal amante. Elize deixou claro que precisava de
imagens nítidas porque as usaria em um processo de separação. Depois de
encerrada a missão do detetive, ela deveria pagar mais 1.750 reais. Elize
falou de sua viagem ao Paraná, programada para o dia seguinte. No entanto,
mesmo longe, ela exigiu relatórios por telefone em tempo real a qualquer
hora do dia ou da noite. Para facilitar a espionagem, a jovem cou de
repassar o momento exato em que Marcos sairia de casa. O outro braço da
investigação seria feito pelas empregadas do casal.
William trabalhava com detetives freelancers, contratados somente
quando havia serviço. Com o sinal de 1.750 reais, ele recrutou dois
arapongas juniores para seguir Marcos pela cidade de São Paulo. O plano era
fazer campana desde cedo no portão da garagem do casal, na Vila
Leopoldina.
A investigação começou no dia seguinte à visita da cliente ao escritório
do detetive. Na manhã da quinta-feira (17/5), um motorista da Yoki levou
Elize, sua lha e a babá Mauricéa José Gonçalves dos Santos de casa para o
Aeroporto Internacional de Guarulhos. O carro era uma SUV Captiva de
luxo prata, de propriedade da Yoki. Desde 2010, esse carro era usado no dia
a dia por Marcos. Na sequência, ele pegou a TR-4 da esposa e seguiu ao
Hotel Mercure, onde encontrou Nathalia. Os dois investigadores já estavam
em seu encalço sentados na mesma moto. Segundo o relatório dos detetives,
Marcos cou no hotel das 9 às 11 horas e saiu de lá sozinho. Passou numa
agência do Itaú Personnalité e seguiu para a sede da Yoki, em Pinheiros. Já
em Chopinzinho, na casa da tia Rose, Elize ligava de hora em hora em busca
de informações com William. Não havia nenhuma novidade até o m da
tarde, pois os detetives ainda não tinham avistado a amante do empresário.
Ainda na quinta-feira (17/5), Elize ligou às 19 horas para o chefe dos
espiões e passou uma pista quente. Marcos estava em casa se arrumando e
sairia todo perfumado. Era um sinal de que a noite prometia. A informação
havia sido repassada por uma das empregadas. Os detetives correram de
moto até o portão do prédio do casal. Chegaram a tempo de vê-lo saindo,
dirigindo a Captiva. O empresário seguiu ao at de Nathalia com os
investigadores em seu rastro. “No hotel, ele pegou uma mulher muito
bonita. Cabelos longos e negros. Alta, magra e elegante. Estava bem vestida
com roupa de couro e botas longas. Tem mais ou menos 25 anos. Os dois
parecem namorados. Eles seguiram ao restaurante Fasano, no bairro dos
Jardins. Eram quase 20 horas”, escreveram os detetives no relatório. O casal
não havia feito reserva e teve de esperar no balcão do bar. Uma hora e meia
depois, a hostess do restaurante acomodou Marcos e sua “namorada” numa
mesa no meio do salão. Os dois detetives iniciantes não tinham registrado o
agrante porque estavam com medo de se aproximar com uma lmadora
em punho. Audaciosos, resolveram entrar no restaurante disfarçados de
clientes. A hostess, no entanto, os olhou dos pés à cabeça e eles foram
obrigados a dar meia-volta.
Os dois detetives ligaram para o chefe da missão e relataram a
di culdade de entrar no Fasano, um dos restaurantes mais caros da cidade.
Estavam malvestidos. William pôs um terno completo e seguiu até lá. Pegou
a lmadora, camu ou-a na roupa e entrou no salão do restaurante com a
desculpa de procurar por um amigo. Ele viu Marcos e Nathalia sentados,
mas o local estava tão lotado que era impossível registrar um agrante lá
dentro. Ele saiu e atravessou para o outro lado da calçada. Ansiosa, Elize
ligou querendo um relatório instantâneo. William disse ter visto a amante do
empresário, mas ainda não tinha as imagens. Do outro lado da linha, a
esposa traída cou nervosa e agressiva. Exigiu o registro do agrante, pois a
prova era essencial para o sucesso de seu divórcio. Vale ressaltar aqui o
seguinte: faz muito tempo que não se exigem mais provas de adultério num
processo de separação litigiosa, pois pouco importa para a Justiça de quem é
a culpa quando um casamento chega ao m. No entanto, orientada pela
Rainha dos Divórcios, Elize pretendia processar o marido por dano moral e
arrancar dele indenização nanceira, pois a pulada de cerca violaria os
direitos legais dela, como sua dignidade e sua honra. Por isso Elize estava
empenhada em conseguir uma prova irrefutável da traição.
Na madrugada da sexta-feira, 18 de maio de 2012, o tão esperado
agrante foi produzido. Marcos saiu com Nathalia do restaurante. Os dois
estavam agarradinhos feito casal em lua de mel. O empresário pediu o carro
ao manobrista. Enquanto esperava pelo veículo, beijou sua “namorada”,
acariciou as suas costas, os cabelos, pegou em seu rosto com delicadeza e
deu beijos atrás de beijos em sua boca. Marcos agarrou Nathalia por trás,
para deleite dos detetives, que lmaram as cenas românticas. “Ele era muito
cordial com a moça, sempre a tratando com muita gentileza”, escreveram os
investigadores no relatório. Depois do jantar, os pombinhos seguiram ao at
da garota de programa.
Elize ligou mais uma vez querendo saber onde os dois estavam. William
repassou as informações com detalhes. A esposa tentava descobrir pela
descrição quem era a mulher que estava roubando o coração do seu marido.
Quanto mais o detetive a descrevia, mais ela cava confusa. Lá pelas tantas,
Elize perguntou se ela era bonita. William respondeu não saber porque as
imagens eram noturnas. No dia seguinte, Marcos levou Nathalia ao Vipiteno
Gelato & Caffè, no bairro do Itaim. Finalmente o detetive pôde ver a
prostituta à luz do dia. Elize ligou mais uma vez e perguntou como era a
amante do marido. “É uma das mulheres mais belas que já vi”, respondeu.
“Mais bonita do que eu?”, perguntou Elize. “Não me faça esse tipo de
pergunta, senhora”, pediu o detetive. Revoltada, ela suspendeu a investigação
e bateu o telefone na cara do detetive.
Na manhã de sexta-feira, 18 de maio, Elize seguiu de carro com a lha
até o município de Cascavel (PR), onde pegaria o avião para Guarulhos.
Antes de embarcar, ela foi a um shopping e comprou uma serra elétrica tico-
tico, mesmo modelo usado por seu padrasto Chico da Serra em trabalhos
em Chopinzinho. No mesmo dia, Elize ligou para a advogada contando ter
provas cabais da traição do marido. Foi orientada a car quieta até o pedido
de separação de corpos ser protocolado na Justiça. Ficou marcada uma outra
reunião para assinar o contrato e iniciar o processo de divórcio. A ideia era
arrancar até as cuecas do marido milionário e adúltero. Esse encontro entre
a esposa traída e a defensora, apesar de marcado, não ocorreu.
O retorno de Elize de Chopinzinho a São Paulo se deu na tarde chuvosa
do dia 19 de maio de 2012, um sábado. Marcos foi buscá-la no aeroporto na
Captiva da Yoki. Ele estava uma pilha de nervos. A venda da empresa se
aproximava dos momentos nais. No trajeto de Guarulhos para casa, ele
falava com o pai, Mitsuo Matsunaga, por telefone. Haveria uma reunião dali
a poucos minutos para comunicar como seria o desligamento da família
Matsunaga da companhia e Marcos chegaria muito atrasado. Irritado, ele
jogou o telefone no painel do carro, acelerou na pista escorregadia da
Marginal Tietê e esmurrou fortemente o volante. A atitude violenta assustou
a lha do casal e a babá. Elize pegou o telefone e ligou para o sogro. Assumiu
a culpa pelo atraso do marido, pois o voo havia pousado uma hora depois
do horário previsto. O pai avisou que não era mais preciso o lho
comparecer à tal reunião. “Manda ele nem vir porque estamos acabando
aqui”, disse Mitsuo.
Pelas imagens do circuito de segurança do prédio, o casal chegou em
casa às 18h35. Marcos continuava alterado. Elize deu um banho na lha,
colocou-a no berço para dormir e dispensou todas as empregadas da casa.
Por volta das 19 horas, ele pediu uma pizza por telefone e abriu uma garrafa
de vinho tinto italiano Brunello Di Montalcino, cuja garrafa na época
custava 900 reais. O sabor levemente adocicado desse vinho era perfeito
para harmonizar com massa e molho de tomate. Enquanto o casal esperava
pela entrega da pizza, o telefone de Marcos tocou. Em busca de privacidade,
ele foi atender na varanda. Elize não conseguiu ouvir a conversa. O
empresário voltou à sala falando de uma nova reunião marcada em cima da
hora para tratar da venda da Yoki, programada para ser concretizada dali a
três dias.
Elize usava calça jeans desbotada com dois rasgos na altura da coxa
direita e mais dois na altura dos joelhos. Vestia blusa branca por baixo de
um casaco marrom-escuro com ores coloridas bordadas numa das mangas
e calçava sandálias cor-de-rosa. Marcos usava óculos e vestia camisa polo
Ralph Lauren azul-escuro de mangas compridas e calça jeans azul-escuro da
Diesel. Elize colocou sobre a mesa de oito lugares dois sousplats, dois pratos,
dois talheres, duas taças de cristal e posicionou a garrafa de vinho. O
porteiro interfonou avisando a chegada da pizza. Marcos desceu para buscá-
la às 19 horas. No elevador, ele falava ao telefone. Estava irritado e chutava as
paredes metálicas. De volta ao apartamento, pôs a pizza sobre a mesa. Usou
o saca-rolhas para abrir a garrafa de vinho. Em seguida, retirou a tampa da
caixa, pegou o cortador e dividiu a pizza em oito pedaços. No meio do ritual,
a esposa começou a questioná-lo:
– Onde você vai depois do jantar?
– Já disse, tenho uma reunião.
– Reunião onde?
– Na casa dos meus pais.
– Num sábado à noite?
– É uma emergência! – insistiu Marcos.
– Não vem com essa. Eu sei que você tem uma amante. Por que você não
confessa que vai encontrá-la no Hotel Mercure da Vila Olímpia...
– Do que você está falando, sua louca?
Marcos estava sentado numa das cabeceiras da mesa. Elize estava na
posição perpendicular a ele. Ninguém havia tocado na pizza nem no vinho.
Até então a conversa era tensa, mas nenhum dos dois tinha alterado o tom
da voz. Elize contrariou a orientação da rainha dos divórcios e encurralou o
marido:
– Todas as vezes que eu falo que você tem uma amante, você se defende
dizendo que sou louca varrida. Chega! Desta vez não tem como você dizer
que estou inventando. Contratei um detetive para seguir você no m de
semana e eu agora sei de tudo. Você foi ao Fasano com a sua amante...
Nesse instante, Marcos levantou-se alterado:
– Com que dinheiro você contratou um detetive para me espionar? Com
o meu, né? Até porque você não trabalha, sua vagabunda. Que audácia da
sua parte!
Elize também se levantou para discutir em pé de igualdade. A partir
desse momento, o bate-boca cou acalorado. Ela lançou mão do seu clichê
preferido nessas horas e anunciou mais uma vez que estava saindo de casa.
Marcos avançou sobre a esposa, mas ela escapou rodeando a mesa:
– Vai embora! Vai agora, sua vadia neurótica! Puta!
– Eu não sou mais garota de programa. Já lhe disse isso mil vezes!
– Deixa de ser idiota. Você nunca deixou de ser!
– Para com isso, por favor! – implorou Elize.
– A única coisa boa que você faz é abrir as pernas.
– Eu imploro! Pare!
– Abre as pernas e, em seguida, gasta o meu dinheiro!
– Por favor!
– Nosso casamento é um programa que não acaba nunca! – de niu
Marcos.
– Chega! Vou embora para Chopinzinho amanhã cedo – anunciou Elize.
– Vai, mas deixa a minha lha aqui porque não quero ela sendo criada
pelo lixo de família que você tem!
Enquanto falava para Elize palavras que matam como bala de revólver,
Marcos tentava alcançá-la na sala. Ela seguia às pressas pelos corredores. Em
certo momento, a jovem parou de correr. Ele a segurou pelo braço e deu
uma bofetada forte em seu rosto, segundo relato dela. Continuamente, ela se
desvencilhou e saiu da sala pelo corredor de acesso à cozinha. O empresário
prosseguiu com as ofensas:
– Você é uma vagabunda de quinta categoria. Filha de pai alcoólatra,
mãe doida, padrasto estuprador. Gente doente. Volta para aquele esgoto
cheio de ratos, mas a minha lha você não vai levar porque não quero que
ela seja criada dentro de um vaso sanitário cheio de merda!
– Não fala assim! Não posso car longe da minha lha...
– Que juiz daria uma criança para uma caipira, puta de calçada, louca e
sem dinheiro?
Ao dar a volta pelos labirintos estreitos do imenso apartamento para
escapar das garras do marido, Elize entrou na antessala. Próximo ao bar, ela
abriu rapidamente a gaveta do móvel onde Marcos guardava charutos. Pegou
a pistola Imbel carregada com 15 balas que ganhou de presente do esposo.
Pelo barulho das pisadas no chão, ela imaginou seu algoz vindo a passos
rápidos em sua direção. Elize deu mais uma volta pelas passagens delgadas,
seguiu por um outro corredor e chegou ao hall da sala principal. Marcos não
estava lá. A tensão e o medo tomaram conta do ambiente. De repente, ele
surgiu por trás, re etido na imagem de um espelho grande pendurado na
parede. Elize tomou um susto. Ela afastou-se do espelho e acabou se
aproximando do marido enfurecido. Desorientada, cou mais ou menos a
uma distância de 4 metros dele. O empresário continuava verborrágico e
desmedido. Ele não percebeu a pistola semiautomática com a esposa porque
a arma estava nas mãos dela junto às costas e apontada para o chão. Marcos
ainda a machucava com palavras de gosto amargo ao mesmo tempo que
dava passos em direção à mulher. Acuada, Elize empunhou a arma em sua
direção:
– Fique onde está! – ordenou ela, rme.
Marcos teve um sobressalto com a surpresa, mas não se abalou. Pelo
contrário. Começou a rir de forma debochada. A poucos metros de Elize, ele
abriu os braços e deu dois passos curtos em direção a ela, que não recuou. O
desdém do empresário prosseguiu:
– Olha que palhaçada! A piranha está armada! Atira, sua fraca! Atira!
Vai! Atira! – desa ou.
– Cala a boca! – mandou Elize, em tom autoritário.
– Vem calar, sua vagabunda! Verme! Vadia! Ordinária! Cadela! Lixo de
mulher!
– Cala a porra dessa boca!
– Calo nada, sua prostituta!
– O que você falou?! – perguntou Elize, incrédula.
– Vou repetir bem devagarinho para você ouvir o som de cada parte
dessa palavra: sabe o que você foi, é e sempre será? PROS-TI-TU...
Marcos Kitano Matsunaga, de 41 anos, não teve tempo de soletrar
inteiramente o substantivo feminino de quatro sílabas. Elize Araújo Kitano
Matsunaga, de 31 anos, mirou a cabeça do marido, fechou os olhos e
disparou um único tiro em direção a ele. A bala entrou pela fronte
anterolateral e seguiu uma trajetória de frente para trás, de cima para baixo,
da esquerda para a direita. Dentro do crânio, percorreu o hemisfério
cerebral esquerdo e se alojou no cerebelo. Marcos tombou para trás com os
olhos fechados e a boca bem aberta, como se ainda tivesse um amálgama de
coisas danosas para falar. Com o impacto do tiro, seus óculos de aro
prateado no e lentes bifocais foram parar do outro lado da sala. Uma
torrente de sangue misturada a pedaços de miolo queimado esparramou-se
lentamente pelo piso de madeira escura da sala. Parte do sangue desceu pela
traqueia e foi parar nos pulmões da vítima. O estampido não chamou
atenção dos vizinhos, mas acordou a lha do casal, que se pôs a chorar. No
atestado de óbito do empresário, consta como causa da morte “hemorragia
intracraniana traumática” e “traumatismo cranioencefálico causado por
projétil de fogo”. Quando foi perguntada por que disparou aquela arma na
noite de sábado, 19 de maio de 2012, Elize respondeu com uma sinceridade
comovente: “Eu queria apenas que ele se calasse”.
“Você sabe o cheiro que tem a cela de uma
prisão?”

M
el era uma cadelinha da raça blue heeler. Entre as maiores
características da cachorra de origem australiana estão amorosidade,
delidade ao dono e disposição para o trabalho. Hábil, a espécie
costumava pastorar rebanhos mordendo o calcanhar do gado sem machucá-
lo. Mel, porém, nunca havia mordido ninguém nem de brincadeira. Dócil,
tinha 4 anos em 2012, pesava 20 quilos e media 50 centímetros de altura.
Seus pelos acinzentados eram mesclados nas cores branca, marrom e preta.
Brincalhona, vivia solta com outros dois machos da mesma raça e quatro
vira-latas numa chácara de 5.000 m2 toda arborizada e banhada por
córregos, localizada na zona rural do município de Cotia, Região
Metropolitana de São Paulo. O tutor era o argentino Gastón Fangio, de 42
anos, comerciante e criador de cavalos árabes. No local, os cuidados
dispensados aos equinos nobres se estendiam aos cães. A cada 15 dias,
veterinários os examinavam cuidadosamente. Amante dos animais, o
comerciante tratava os bichos “a pão de ló”, expressão antiga copiada da avó
de sua esposa brasileira. Ele não estava exagerando. Mel, por exemplo, comia
diariamente uma ração premium orgânica de grãos médios sabor carne de
cordeiro e mandioca, além de legumes de horta própria, como abóbora,
cenoura, chuchu e inhame. Os bichos de Gastón bebiam apenas água
ltrada. Um luxo!
No entanto, a cadela não era muito chegada às coisas boas da vida. Em
um exame de rotina, os veterinários diagnosticaram nela um mau hálito
insuportável. Também encontraram manchas de sangue nos pelos abaixo da
sua boca. Uma investigação simples desvendou o mistério macabro. Mel
fugia de casa e caminhava 3 quilômetros por uma estrada de terra até chegar
a um lixão clandestino onde eram despejados restos mortais de bois e
cavalos. Seu gosto por carniça virou caso de polícia. Na manhã do dia 21 de
maio de 2012, segunda-feira, Gastón cavalgava pela chácara quando viu a
sua cachorra preferida deitada ao pé de uma jabuticabeira sabará. O
comerciante se aproximou e teve vontade de vomitar quando viu Mel
devorando um braço humano contendo a mão. Mais de perto era possível
ver que o membro estava esverdeado, já em processo inicial de
decomposição. Gastón gritou para a cadela soltar a peça de carne, mas ela
respondeu rosnando. A polícia foi chamada. Peritos do Instituto Médico
Legal (IML) de Cotia vasculharam a redondeza e zeram uma descoberta
ainda mais horripilante. Com a ajuda de outros cachorros, a blue heeler
havia devorado o outro braço do cadáver humano, deixando apenas
pedacinhos de ossos. Gastón compareceu à delegacia de Cotia às 15h24 do
dia 21 de maio e registrou um boletim de ocorrência (Nº 3616). Mel era
suspeita de homicídio. “A minha cadelinha é inocente. Pelo amor de Deus!
Ela jamais atacaria alguém. É um animal afetuoso. Incapaz de fazer mal a
uma mosca. Meto a minha mão no fogo por ela. [...] Certamente alguém
desovou um cadáver pelas proximidades. Ela só o comeu porque a pessoa
estava morta”, defendeu-se Gastón na delegacia. Para se reeducar, a cadela
carniceira foi passar uns dias na casa dos pais do argentino, numa fazenda
em Presidente Prudente, a 560 quilômetros de São Paulo.
A acusação contra Mel durou menos de 24 horas. No dia 22 de maio,
moradores de Cotia encontraram na estrada das Palmeiras, perto de um
orquidário, a 7 quilômetros da chácara de Gastón, um saco plástico de lixo
azul contendo uma perna humana com o pé. Próximo, foi achada ainda uma
calça de jeans escura toda ensanguentada com o cinto preso nela. No dia
seguinte, o telefone da delegacia tocou mais uma vez. Uma senhora
caminhava pela estrada na divisa de Cotia com o município de Vargem
Grande Paulista e quase desmaiou quando viu urubus disputando um
tronco humano. Foram recolhidos a poucos quilômetros dali, na Rua
Bragança, um quadril e mais uma perna com o pé. Juntando os membros
encontrados até então, faltava apenas a cabeça. Já era possível concluir,
porém, que o corpo fora seccionado em sete pedaços. As partes recolhidas
foram montadas sobre uma bancada de inox no IML de Cotia. A cena
medonha intrigava investigadores porque o cadáver estava incompleto. Até
então, ninguém sabia quem era aquela pessoa.
Marcos Matsunaga era mais próximo da mãe, Misako Matsunaga, do
que do pai, Mitsuo. Os dois se viam praticamente todos os dias e trocavam
muitas mensagens pelo celular. Na segunda-feira, 21 de maio de 2012, ela
tentou entrar em contato com o lho, mas não conseguiu. O silêncio do
primogênito incomodou a matriarca. À tarde, preocupado, Mitsuo ligou
para Elize em busca de notícias de Marcos. Apesar de tê-lo assassinado dois
dias antes, ela contou uma lorota ao sogro: o marido havia saído de casa
usando táxi no domingo, carregando algumas peças de roupa e uma mala
com 20 mil reais em espécie sem dizer o destino. Como a Yoki estava em
processo nal de venda e a operação havia sido vazada aos jornais, foi
cogitado um possível sequestro. Ainda na segunda-feira, Elize se reuniu com
a família do marido na mansão dos Matsunaga para revelar o “verdadeiro
motivo” do sumiço do empresário. Em determinado momento, ela fez um
movimento cênico. Cínica, Elize levantou-se do sofá cheia de empá a e tirou
da bolsa o DVD produzido pelo detetive com imagens de Marcos agarrado a
Nathalia em frente ao restaurante Fasano. Ousada, a jovem ligou os
equipamentos eletrônicos dos sogros e mostrou para quem quisesse ver as
cenas do escândalo sexual. As imagens foram exibidas numa TV de 50
polegadas. “Que sequestro, que nada! Olhem isso! O Marcos fugiu com uma
amante!”, revelou Elize. Em seguida, ela chorou feito mulher traída. Houve
um choque na família. Solidários, os pais do empresário a consolaram.
Apesar de um caso extraconjugal ser algo deprimente, Mitsuo e Misako
caram aliviados, pois era muito melhor ter um lho adúltero do que vítima
de sequestro.
Orientada pelo advogado Luiz Flávio Borges D’Urso, um dos mais
respeitados de São Paulo, a família de Marcos registrou um boletim de
ocorrência comunicando à polícia o sumiço do empresário,
independentemente de ele ter fugido com uma amante. Na terça-feira, 22 de
maio, três dias após o crime, Mauro Matsunaga, o caçula, foi à delegacia
denunciar o sumiço do irmão. Um diretor da Yoki, Luiz Carlos Lózio, o
acompanhou a pedido de Mitsuo. Aos policiais, os dois descreveram Marcos
sicamente com detalhes e mostraram algumas fotos recentes dele. Também
falaram de Nathalia, o affair do executivo. Para reforçar a tese de que Marcos
se refestelava na alcova da amante e não num cativeiro qualquer, Elize teve
uma ideia. Ela ligou o computador do marido, pôs a senha dele, acessou o
seu e-mail e enviou mensagens como se fosse o empresário. Escolheu como
destinatário o reverendo François, o irmão Mauro e uma das secretárias da
presidência da Yoki. O texto mandado à família era um alento: “Avisa a Elize
e a mamãe para não se preocuparem. Estou bem. Assinado: Marcos”. O
alívio durou poucas horas. No mesmo dia, o programa Brasil Urgente,
apresentado pelo jornalista José Luiz Datena na TV Bandeirantes, fez uma
chamada de impacto. “Um quebra--cabeça macabro: pedaços de uma vida
abandonados em estrada de terra em Cotia, na Grande São Paulo, formando
um grande mistério”. A notícia deixou a família Matsunaga envolta num
misto de a ição e desespero.
Apesar de ter matado e esquartejado o marido, Elize levava uma vida
normal de dona de casa. Na manhã seguinte, após jogar o corpo de Marcos
no mato, por exemplo, ela tomou café da manhã como se nada tivesse
acontecido. A governanta Neuza Gouveia da Silva fez suco de laranja, ovos
mexidos, serviu pão de fôrma e passou um café. A patroa fez a primeira
refeição do dia com apetite. A funcionária perguntou se o patrão desceria
para comer e Elize respondeu que ele não dormia em casa havia duas noites.
Em seguida, a viúva pediu a ajuda de Neuza para arrumar a cama do quarto
onde o marido vinha dormindo nos últimos dias. A governanta contestou a
ordem da patroa:
– Se ele não está dormindo em casa, a cama está arrumada, dona Elize.
– Mas quero que os lençóis sejam trocados mesmo assim, pois estão
empoeirados.
– Não seria melhor esperar pela arrumadeira? – sugeriu Neuza.
– Não! Vamos fazer isso nós duas logo após o café.
À tarde, na hora de arrumar a mesa do almoço, a governanta perguntou
novamente se deveria pôr um lugar para Marcos. Elize respondeu
negativamente. Neuza pôs apenas um prato. “Não notei qualquer
preocupação dela em relação ao marido. Nem nunca a vi chorando”, disse
Neuza. Na quinta-feira, 24 de maio de 2012, cinco dias após o assassinato,
Elize foi à terapia à tarde. Antes, deu uma ordem inusitada à governanta. “Vá
ao banco Bradesco agora e deposite 10 mil reais na conta do Marcos”,
ordenou a patroa. Neuza nunca havia feito esse tipo de serviço. Nervosa e
obediente, pegou uma sacola contendo dinheiro vivo e foi sozinha até a
agência mais próxima.
Na terapia com a psicóloga Neusa Vaz Márcia, Elize também falou do
sumiço do marido como se fosse inocente. Na sessão, ela voltou à lenga-
lenga da fuga de Marcos com a amante. “Você é testemunha de quanto eu
lutei tentando salvar o nosso casamento. Noites e noites de lágrimas no
travesseiro. Pra quê? Pra nada! Eu dei minha vida na mão desse covarde. Ele
me abandonou e fugiu com outra mulher. Você acha isso justo?”, desabafou
pela última vez no divã. Após a terapia, Elize teve mais um encontro com a
família do marido e incrementou a farsa de que ele estaria vivo. Ela mostrou
aos pais do empresário o extrato bancário da conta de Marcos com o
depósito de 10 mil reais feito pela governanta na manhã. “Vocês estão
vendo! Ele não foi sequestrado coisa nenhuma. Movimentou a conta
bancária hoje. Tenho certeza de que ele está com uma amante”, declarou
Elize. Para dar credibilidade à encenação, a assassina derramou algumas
lágrimas. No mesmo dia 24, a General Mills anunciou ter comprado a Yoki
por 1,75 bilhão de reais.
Na saída da casa dos sogros, Elize passou no banco e fez uma retirada de
8.000 da conta de Marcos. Pegou o extrato e mostrou à família da vítima.
Mitsue e Misako acreditaram mais um pouco na hipótese de o executivo ter
ganhado o mundo com a amante, conforme Elize sustentava reiteradamente.
A tese da fuga parecia convincente por causa das mensagens que a homicida
enviou em nome da vítima, da movimentação bancária e o DVD entregue
pelo detetive. No entanto, quando a polícia encontrou a cabeça do
empresário, no dia 28 de maio, o enredo de terror começou a indicar uma
reviravolta. Mauro e Lózio foram chamados ao IML para tentar identi car o
cadáver pela cabeça. O primeiro a olhar foi Lózio. Ele saiu do necrotério
com a certeza absoluta de ser Marcos o dono daquele crânio decapitado, mas
ele preferiu não falar nada para não chocar o irmão da vítima por
antecedência. O amigo deixou Mauro tirar as suas conclusões olhando o
cadáver com seus próprios olhos. No entanto, ele foi até a câmara mortuária,
viu a cabeça de Marcos com a boca aberta e saiu de lá aliviado:
– Não é meu irmão!
– Tem certeza? – questionou Lózio.
– Absoluta! – respondeu Mauro, ainda na porta do IML.
No carro, Mauro perguntou a Lózio se passava pela mente do diretor a
possibilidade de aquela cabeça ser de Marcos. Ele respondeu positivamente e
comentou sutilmente sobre como traumas emocionais podem deixar as
pessoas cegas diante da verdade. Mauro cou intrigado, mas se manteve
incrédulo. No dia seguinte, porém, corroído pela dúvida, ele voltou ao IML
na companhia do amigo e pediu para ver a cabeça do cadáver pela segunda
vez. Passou alguns minutos olhando. Ficou bastante emocionado, mas disse
“não”, “não” e “não” em voz alta. No entanto, dentro de si, uma voz oculta
dizia “sim”, “sim” e “sim”. Com os olhos molhados, Mauro quis ver o braço
do cadáver. “O Marcos tinha as unhas idênticas às minhas”, justi cou com a
fala embargada. Ao ver a mão da vítima, ele concluiu: aquela pessoa
esquartejada de forma cruel era, de fato, seu irmão. No mesmo instante, ele
assinou um termo fazendo o reconhecimento o cial do corpo, mas só
liberariam o cadáver para sepultamento após o exame de DNA.
Em choque, Mauro entrou em contato com o pai pelo telefone celular e
deu a notícia triste. Marcos não havia fugido com a amante. Tinha sido
brutalmente assassinado. Mauro ligou para a viúva ainda do IML. Do outro
lado da linha, Elize reagiu à notícia da morte do marido com frases
negacionistas: “Não pode ser. É um engano. Não é possível. Não acredito.
Isso não é verdade”. E chorou no ouvido do cunhado. Na sequência, ela
procurou por Ciça, prima de Marcos e madrinha do seu casamento. Na
confeitaria, as duas choraram pela morte do empresário. A prima cou tão
nervosa que não conseguia mais dormir à noite por causa da atrocidade.
Cáustica, Elize a consolou aos prantos. As duas foram até a mansão da
família Matsunaga e lá Elize chorou copiosamente. Mesmo afogada em
lágrimas, a viúva encontrava forças para acalentar Mitsuo e Misako.
Nem depois de receber a notícia do esquartejamento de Marcos, Elize
mudou sua rotina. Quando a lha completou 1 ano, um mês antes do crime,
o casal havia contratado novamente a fotógrafa Adri Felden para registrar a
festa infantil. A pro ssional já conhecia os Matsunaga da festa de casamento.
No dia 29 de maio de 2012, nove dias após Elize ter matado o marido, Adri
procurou pela esposa de Marcos e falou sobre o álbum com as fotos da
menina, prestes a seguir para impressão. Havia uma questão a ser de nida e
a fotógrafa enviou um e-mail à cliente: “Oi Elize. Tudo bem com você?
Segue anexo em PDF as fotos do álbum do aniversário da sua lha. Estou te
mandando duas sugestões de capa. Essa na versão cereja z baseada na cor
das ores do vestidinho dela. Espero que você goste. Também segue outra
versão na cor laranja para você ter opção de escolha”. A mãe assassina
respondeu dois dias depois: “Oi, Adri. Realmente a capa na cor cereja é a
mais bonita. Pode usar ela. Obrigada”.
O cinismo de Elize parecia não ter limites. No mesmo dia em que
de niu a cor do álbum de fotos da lha, ela fez uma visita à igreja do
reverendo François e contou chorosa sobre a forma como Marcos foi morto
e esquartejado. Interesseiro, o religioso perguntou se o empresário havia
deixado uma TR-4 em seu nome. Não havia carro nenhum, pois Marcos
morreu antes de cumprir a promessa. A viúva pediu ao sacerdote uma missa
em homenagem ao marido falecido. François se ofereceu para fazer um
funeral maior, mas a família, discreta, vetou a ideia. Queria escapar do
assédio da imprensa. Nem por isso a morte de Marcos cou sem as exéquias.
Em uma de suas missas coletivas na periferia de São Paulo, François fez as
honras fúnebres à sua ovelha caridosa. A igreja estava lotada e quente e todo
o mundo se abanava. Na plateia apinhada de anônimos estavam Elize e os
personagens do meretrício: Lincoln, Paolo, Joel, Alícia, Arethuza, Ely, Lulu,
Gizelle e outras prostitutas. Todos suando em bicas de tanto calor. Até
Chantall compareceu e consolou Elize. O religioso desculpou-se pela
quentura e ligou o único ventilador da igreja. Ele se emocionou ao falar de
Marcos e dos mistérios envolvendo a morte: “Foi uma das pessoas mais
generosas que passaram pela minha igreja. Homem solidário e espirituoso.
Uma vez, Marcos confessou ter muito medo da morte. Eu perguntei por que
esse pavor todo. Ele disse que o seu medo de morrer estava ligado
exclusivamente ao sofrimento. Achava que sentiria uma dor angustiante na
hora da partida. Esse tipo de medo é muito comum em pessoas que vivem
plenamente a vida. E eu posso dizer que Marcos viveu intensamente cada
minuto da sua existência nesse plano [...]”.
O reverendo continuou com palavras de conforto: “Quando alguém
morre, o espírito retorna para Deus, e o corpo, que foi feito do pó da terra,
decompõe-se e volta para a própria terra porque nós somos pó e ao pó
voltaremos. Essa é a verdade de todas as verdades”. François aproveitou a
presença dos amigos ricos de Marcos em sua igreja para faturar.
Estrategicamente, comentou sobre o calor. “A minha igreja tem seis
ventiladores, mas só um está funcionando. O Marcos era generoso. Ficou de
mandar instalar um sistema de refrigeração de ar, mas ele nos deixou antes
de realizar essa caridade à Casa de Deus”, comentou. No nal, Lincoln foi até
o sacerdote, perguntou reservadamente quanto custariam os aparelhos de
ar-condicionado. François orçou em 80 mil reais (valores da época) e
recebeu um cheque do supermercadista. “O Marcos teria muito orgulho
dessa atitude”, agradeceu o religioso.
Elize não sabia, mas enquanto ngia rezar pela alma de Marcos,
investigadores da Polícia Civil já estavam em sua cola, inclusive na missa do
reverendo. O Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP)
havia escalado o delegado Mauro Gomes Dias para descobrir quem matou
Marcos Matsunaga. Com 50 anos na época, o policial havia se projetado
pro ssionalmente com o caso conhecido como crime da pedra da
macumba, cujo enredo contava a história de uma mulher de 54 anos
encontrada morta no quilômetro 8 da estrada de Santa Inês, no município
de Mairiporã, na Grande São Paulo. A vítima estava sem os olhos e a pele da
face havia sido totalmente arrancada. A suspeita era de assassinato para
rituais satânicos. Depois de dois anos cou provado que a mulher se
suicidou e seu rosto fora devorado por animais. Mauro Dias foi tirado do
caso antes do encerramento do inquérito para desvendar o assassinato do
empresário da Yoki. Quando o delegado viu pela primeira vez o corpo
esquartejado no IML, concluiu: quem matou esse homem tinha muito ódio
no coração.
Mauro Dias teve dois aliados importantes no início da investigação.
Lózio e Mauro Matsunaga estavam empenhados em descobrir o nome do
assassino. Os três ligaram para Elize e marcaram uma visita. Ela os recebeu
com cordialidade. O delegado quis saber de quem a viúva suspeitava. Sem
pestanejar, ela apontou a amante de Marcos, lmada pelo detetive particular
em cenas românticas com o empresário. O policial conseguiu informações
dos arapongas e encontraram Nathalia no hotel Mercure. Apavorada com a
visita dos homens da lei, a prostituta negou qualquer participação no crime.
Apresentou um álibi – ela estava no hotel no m de semana em que Marcos
desapareceu – e falou em depoimento as impressões de Marcos sobre Elize.
“Ele dizia que ela era louca e muito ciumenta. Falava em separação”, contou.
Na delegacia, um policial chocou Lózio e Mauro com uma pista quente: a
pessoa que esquartejou Marcos entendia de anatomia, era organizada e tinha
levado mais de seis horas para seccionar o corpo. O delegado Mauro Dias
mostrou aos dois o laudo da perícia feita no cadáver. O saco plástico
biodegradável de lixo com capacidade de 100 litros usado na embalagem dos
membros e das roupas da vítima era da marca Dover-roll. Tinha cor azul
cintilante e ta vermelha fosca usada como lacre. No nal da conversa, o
delegado perguntou qual a pro ssão de Elize. Os rapazes disseram que ela
era bacharel em Direito. Até então eles não sabiam da sua formação em
técnica de enfermagem, da sua passagem por centros cirúrgicos de hospitais
de Curitiba e muito menos da sua habilidade em esquartejar animais.
Passada uma semana do assassinato, Mauro Matsunaga entrou em
contato com Elize. Estava inconformado com a morte do irmão. Pediu à
cunhada para veri car no condomínio as imagens do elevador e ver Marcos
saindo do prédio com a tal mala de dinheiro. Ela não se opôs. A visita
ocorreu na tarde de sábado, 26 de maio. No mesmo dia, o delegado Mauro
Dias descobriu que a viúva havia sido garota de programa e tinha curso de
técnica em enfermagem com atuação em centros cirúrgicos. Ou seja, as
suspeitas sobre ela aumentaram. O policial pediu à Justiça um mandado de
busca e apreensão no apartamento. À noite, Mauro Matsunaga e Lózio
bateram na porta de Elize. A dupla de amigos foi recebida com simpatia
mais uma vez. Acionado para colaborar, o síndico do prédio deu acesso a
todas as imagens gravadas pelas câmeras internas do condomínio. Numa
cabine no térreo, eles passaram horas em frente a monitores de TV. Mauro
cou intrigado porque as câmeras mostravam apenas o irmão chegando
com a esposa do aeroporto, descendo pelo elevador, pegando a pizza na
portaria e subindo novamente. Não havia nenhuma imagem registrando sua
última saída do edifício. O síndico assumiu uma postura de investigador.
Pelo interfone, pediu para Elize fazer o favor de comparecer urgentemente à
sala dos monitores. Lá ela foi questionada:
– Qual dia seu marido saiu de casa? – interrogou o síndico, ríspido.
– Domingo à noite – respondeu ela, com voz de choro.
– Que horas exatamente, minha senhora?! – continuou.
– Acho que foi por volta das 20 horas...
– Quero saber por qual elevador ele desceu – insistiu.
– Pelo social...
– Impossível! Já olhamos todas as imagens gravadas das 12 horas do
domingo até as 6 da manhã da segunda-feira e ele não aparece no elevador.
O tom policialesco do síndico deixou Elize nervosa. Lózio e Mauro a
levaram de volta ao apartamento. O síndico não se comoveu e avisou que
começaria a olhar as imagens do elevador de serviço naquele instante. Em
casa, mais calma, a viúva ofereceu vinho às visitas. Lózio pediu uma pizza e
os três falavam de Marcos enquanto comiam e bebiam. Já era madrugada
quando o síndico bateu à porta e passou um relatório da sua investigação.
Disse ter visto Elize descer sozinha com três malas de viagem pelo elevador
de serviço às 11h32 do domingo e só voltando às 23h50 com as mãos vazias.
A impetuosidade do síndico fez a mulher derramar lágrimas e soluçar. Ele
não se comoveu e saiu do apartamento avisando já ter acionado a polícia e
falado sobre as suas descobertas. Mesmo sem ser questionada por Mauro e
Lózio, Elize justi cou a sua saída com as malas: teria ido entregar uma
encomenda de vinhos a um cliente da sua futura empresa de importação de
bebidas.
Cansada, Elize começou a bocejar. Prestativo, Lózio pegou algumas
louças sujas da mesa e as levou até a pia. Elize tentou impedi-lo, pois as
empregadas arrumariam tudo no dia seguinte. Ele insistiu e continuou
pegando os pratos e jogando os restos de pizza fora. No fundo da cozinha,
Lózio sentiu um frio na espinha quando acionou o sensor para abrir a lixeira
eletrônica de aço inoxidável. À medida que a tampa automática subia, era
revelado o saco plástico de revestimento azul e ta vermelha como lacre da
marca Dover-roll. Ou seja, idêntico ao usado para embrulhar o corpo de
Marcos. Mesmo nervoso, Lózio abriu um armário na despensa, pegou um
saco limpo da embalagem e en ou no bolso. De lá, ele seguiu com o amigo
até a delegacia.
Sentindo o cerco se fechando à sua volta, a assassina procurou seu ex-
professor de Direito Penal, Luciano Santoro, de 33 anos na época. A ele,
Elize repetiu a história fantasiosa da fuga do marido com a amante. Na
primeira reunião, o defensor quis saber:
– Onde o seu marido foi visto pela última vez?
– Em casa.
– Então será na sua casa que a polícia vai procurá-lo – avisou o
advogado.
O prenúncio de Santoro não terminou por aí. Apesar de sua cliente
negar a autoria do crime, ele previu a sua detenção para os próximos dias.
Dito e feito. No dia 4 de junho de 2012, dezesseis dias depois do crime, o
delegado Mauro Dias bateu à porta da criminosa com um mandado de
prisão temporária (1496/12) em mãos, no qual se lia “suspeita de prática de
crime de homicídio”. Elize manteve-se calma, mesmo depois de ouvir a voz
de prisão. Pediu um momento e foi tomar um banho, trocou de roupa e
despediu-se da lha. Àquela altura, a tia Rose havia chegado de
Chopinzinho para dar apoio à sobrinha. A viúva foi algemada dizendo-se
inocente e sem derramar uma lágrima. Na delegacia, os policiais já tinham a
sua cha corrida. Sabiam do seu passado de prostituta, do caso
extraconjugal com o ex-deputado do Paraná, Mario Sergio Zacheski,
conhecido popularmente como Delegado Bradock, e até das passagens por
casas de prostituição na capital paulista. Antes de levá-la a uma cela, os
policiais sugeriram uma con ssão:
– Você foi garota de programa. Isso diz muito sobre você. Confessa logo
que você matou e esquartejou o seu marido porque ele te trocou por uma
outra prostituta! – iniciou um investigador.
– Não sei do que o senhor está falando – esquivou-se Elize.
– Você já parou para pensar sobre a natureza da culpa? – questionou o
delegado Mauro Dias.
– Vou esperar o meu advogado chegar – anunciou a assassina.
– Eu também faria o mesmo no seu lugar – disse o delegado.
– Você sabe o cheiro que tem a cela de uma prisão? – perguntou outro
policial.
Irredutível, Elize cou calada. Foi conduzida a uma cela fétida na
delegacia de Itapevi, no município de Osasco, Região Metropolitana de São
Paulo. Acostumada a dormir em colchões macios, cobrir-se com edredons
de luxo e encostar a cabeça em travesseiros de penas de ganso, a jovem se
viu obrigada a deitar-se no chão de um cubículo repugnante, molhado com
uma mistura de água, fezes e urina. O espaço de 6 m2 tinha goteiras.
Quando debutou no xilindró, Elize já tinha tido a cara exposta em todos os
jornais e programas de televisão. Havia um agravante. As fotos das partes do
corpo de Marcos haviam vazado da polícia e circulavam desfocadas em
programas populares, chocando ainda mais a opinião pública. Na internet,
as imagens estavam nítidas. Todos os programas policiais contavam
diariamente um capítulo da história da prostituta caipira que matou e
esquartejou o marido milionário. No pátio da cadeia, Elize foi abordada por
Tânia, outra homicida indignada com o modus operandi da viúva. “Como
você é burra, minha lha. Se tivesse contratado alguém por 10 mil reais, o
trabalho seria muito melhor. Matariam o seu marido e ninguém jamais
encontraria o corpo do salafrário”, comentou. “E você? Tá fazendo o que
aqui?”, perguntou Elize. “Matei a amante do meu namorado”, resumiu a
colega de cela de 26 anos. Em seguida, Tânia sugeriu que a viúva confessasse
tudo para barganhar benefícios no julgamento, assim como ela havia feito
dois dias antes. “Nós estamos na merda. Já era!”, previu a homicida.
As investigações avançaram e Elize não tinha mais como negar a autoria
do crime. A quebra do sigilo do seu telefone celular revelou por onde ela
andou quando saiu na Pajero TR-4 na manhã do domingo. A geolocalização
do aparelho mostrava com detalhes a assassina passando de carro pelas
estradas de Cotia. Esses dados só foram descobertos via operadora de celular
porque ela ligava praticamente a cada hora querendo saber da babá se a lha
estava bem. Com essa descoberta, Elize foi chamada mais uma vez para
depor:
– Você matou o seu marido... Como pôde achar que existiria um
universo onde sobreviveria a isso? – acusou o delegado Mauro Dias.
– Eu não matei! – esquivou-se.
– Confessa logo. Tira essa culpa das suas costas. Fala a verdade! Depois
de confessar, você se sentirá tão leve quanto uma pluma...
Acuada, Elize pediu para falar com Santoro, seu advogado. Ela anunciou
estar disposta a assumir ter matado o marido. “Estou preocupada com toda
essa repercussão. Estou sendo retratada como uma assassina fria e cruel. Eu
quero confessar porque eu tenho medo de a minha lha nunca car sabendo
o que aconteceu de verdade dentro daquele apartamento”, justi cou a
criminosa. O defensor apoiou a decisão e pontuou o seguinte: o fato de ela
ter desmembrado o corpo do marido após assassiná-lo a poria numa
posição muito difícil, ou seja, ela seria condenada com 100% de certeza.
“Embora o esquartejamento não seja um crime grave – tem pena de um a
três anos de prisão –, a sociedade não aceita”, explicou Santoro à sua cliente.
Em seguida, ele a advertiu: “Se é para confessar, fale exatamente o que
aconteceu. Não esconda nada, nenhum detalhe”.
Após Santoro mostrar os cenários possíveis diante de uma con ssão,
Elize se preparou para contar a sua versão do crime. A assassina entrou na
sala do delegado Mauro Dias, no Departamento de Homicídios e de
Proteção à Pessoa (DHPP), às 12h45 do dia 6 de junho de 2012. Na véspera,
Marcos havia sido enterrado sem o braço esquerdo, na sepultura 66 A da
quadra 35 do Cemitério São Paulo. A cerimônia fúnebre ocorreu numa
manhã chuvosa, durou só dez minutos e contou com a participação de
apenas dez pessoas: o pai Mitsuo, o irmão Mauro, os amigos Lózio, Lincoln
e Paolo e o advogado Luiz Flávio Borges D’Urso, além de quatro
funcionários da Yoki.
Frente a frente com o delegado Mauro Dias, Elize pegou um lenço para
enxugar as lágrimas. Com receio de ser acusado de arrancar verdades por
meio de tortura, o policial resolveu lmar todo o depoimento. Durante oito
horas, Elize contou diante de uma câmera como matou o marido e dividiu o
corpo dele em sete partes. Depois embrulhou cada pedaço em sacos de lixo
e arrumou em três malas pretas de viagem. Pegou a sua Pajero TR-4 e seguiu
na noite escura por uma estrada de terra para desová-lo no matagal de
Cotia. Os detalhes da sua con ssão são de arrepiar.

* * *
Após dar o tiro na testa de Marcos na noite de sábado, 19 de maio de
2012, Elize retirou dois tapetes do chão da sala e puxou uma cadeira para
deixar o caminho livre. Pegou o cadáver pelos braços e arrastou pelo
corredor por 15 metros até chegar ao quarto de hóspedes. Como o corpo
pesava 90 quilos, ela parou duas vezes para recuperar o fôlego. O
deslocamento deixou um rastro de sangue no chão. Seu plano inicial,
segundo contou, era acionar a polícia e confessar o crime, mas desistiu
porque imaginou o óbvio: seria presa e caria longe da lha.
Aparentemente sem saída, a criminosa recorreu a um plano alternativo.
A primeira providência foi pegar na área de serviço um balde com água,
pano de chão e o produto de limpeza Veja Multiuso. Passou a madrugada
tirando sangue e massa encefálica do piso de madeira. A faxina foi perfeita.
Doze dias depois, peritos usaram luminol em todo o piso da sala para tentar
encontrar manchas de sangue, mas o composto químico não detectou
nenhuma gotícula vermelha. Enquanto isso, sua lha de 1 ano e 1 mês
dormia no quarto do piso superior do dúplex.
De acordo com o relato da homicida, a babá Amonir Hercília dos
Santos, de 24 anos, chegou ao apartamento dos Matsunaga por volta das 6
horas da manhã. A funcionária tomou café rapidamente, vestiu uniforme
branco, cumprimentou a patroa e subiu ao quarto da criança. Elize pediu à
babá para não ser incomodada em hipótese alguma. Foi até a cozinha, pegou
uma faca de cortar carne de 30 centímetros e se trancou no cômodo onde o
marido jazia havia pelo menos dez horas. Começou os trabalhos tirando a
calça jeans e a camiseta do cadáver, deixando-o somente com uma cueca
boxer branca. Em seguida, lançou mão de sua experiência em esquartejar e
desossar animais na selva. Também aplicou métodos de incisão observados
em centros cirúrgicos na época do trabalho de técnica em enfermagem no
Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba, onde trabalhou entre
outubro de 2001 e abril de 2003.
Por mais incrível que possa parecer, o crime de esquartejamento é mais
comum do que se imagina. Na totalidade dos casos, a pessoa que esquarteja
sabe quem é a vítima, teve algum tipo de relação com ela. Até porque um
criminoso não vai perder tempo cortando o corpo de um desconhecido.
Sendo assim, a primeira parte a ser arrancada é sempre a cabeça. Isso ocorre
por dois motivos: primeiro, porque o assassino não quer que o cadáver passe
a ideia de estar “olhando” a ação. Segundo, porque, sem o rosto, o indivíduo
perde a sua identidade. Ou seja, o esquartejador ca muito mais à vontade
para fazer o “trabalho” se a cabeça não estiver presa ao corpo. Elize rompeu
esse padrão. Ela iniciou o esquartejamento pelos joelhos, as duas maiores
articulações do corpo humano. Concentrada, agachou-se perto do cadáver
do marido e começou passando a lâmina lentamente na pele até alcançar os
ligamentos colaterais e os meniscos. Quando o talho atingiu as cavidades
articulares, houve um derramamento de líquido sinovial, cuja função é
lubri car o sistema locomotor. Em seguida, a faca avançou por estruturas
musculares responsáveis pela extensão do joelho. Passou pela cartilagem e
rompeu os ligamentos cruzados até nalmente separar a tíbia do fêmur,
preservando os ossos menores (fíbula e patela). O desmembramento das
duas pernas durou aproximadamente uma hora, segundo cálculo da
assassina esquartejadora.
O perito criminal Jorge Pereira de Oliveira foi quem analisou o cadáver
de Marcos no IML. De acordo com a avaliação do legista, Elize demonstrou
talento na hora de desmembrar as pernas pelas rótulas. “Podemos falar que a
lâmina foi precisa porque passou entre ligamentos e cartilagens de ponta a
ponta e de forma contínua, deixando os ossos intactos. Isso é de uma
habilidade cirúrgica”, declarou o perito. Em seu depoimento, a criminosa
explicou a e ciência na hora de cortar o marido: “Como eu entendia de
anatomia humana, não tive di culdade em esquartejá-lo”. O estômago do
delegado Mauro Dias embrulhou com os detalhes da narrativa da criminosa.
Depois das pernas, foi a vez de desmembrar os braços. Elize passou a
faca na altura das axilas. Cortou os músculos supraespinhais e artérias
importantes até separar o úmero da escápula e da clavícula. Esses cortes
também não atingiram os ossos. Segundo o seu depoimento, ela ia
ensacando os membros de Marcos no plástico azul tão logo acabava de
cortá-los para evitar maior derramamento de sangue e pedaços de carne
humana pelo chão. “Eu queria tirá-lo de casa. Infelizmente, a única forma de
fazer isso foi cortando-o”, justi cou em depoimento.
A próxima etapa foi a mais trabalhosa e a mais intrigante na leitura dos
médicos legistas. Elize conseguiu separar a cintura do tronco passando a
faca super cialmente num golpe contínuo. Essa incisão, a princípio, cortou
apenas pele, músculos e gordura. Começou na barriga logo abaixo do
umbigo, deu a volta pela lateral do corpo até chegar às costas e voltou para a
parte da frente até completar a circunferência. Elize usou o elástico da cueca
da vítima como parâmetro para manter o corte em linha reta. Nesse
desmembramento, a esquartejadora virava o cadáver no chão à medida que
o corte avançava. A incisão chamou a atenção dos peritos pelo requinte da
execução. “Foi uma lesão tecnicamente limpa e feita somente nas paredes do
abdome. Não havia sangue nas cavidades abdominais. Ela conseguiu
preservar as alças intestinais, impedindo a saída de material fecal. Se as fezes
escapassem do intestino, seria impossível ela car no ambiente por causa do
forte odor. [...] Nunca vi nada parecido em 40 anos de atividade em perícia
criminal”, descreveu o médico legista.
Quando estava desmembrando o tronco da cintura, Elize foi
interrompida com batidas na porta. Do lado de fora, a babá falou que a
menina estava chorando sem parar. Elize parou o serviço, lavou as mãos e
saiu do cômodo para acalentar a lha. Como a menina não parava de
chorar, Elize foi até o armário, pegou um potinho contendo papinha de bebê
e tentou dar à lha usando uma colher. A criança recusou e continuou a
chorar. Só parou depois de a mãe amamentá-la por alguns minutos. Em
seguida, Elize a devolveu para a babá reforçando a ordem dada antes: “Não
me incomode mais! Ouviu bem?”, falou ríspida. Em seguida, voltou ao
quarto para quebrar as vértebras do pai da sua lha. “Não foi nada fácil
cortar a cintura. Nesse momento, quei tão cansada que pensei em desistir e
me entregar à polícia. Mas lembrei novamente da minha lha e voltei para
terminar de cortar a coluna”, confessou à polícia.
A princípio, Elize dividiu o corpo de Marcos em seis partes. A cabeça
continuava presa no tronco pelo pescoço e as coxas caram anexadas ao
quadril. A assassina foi até um dos cômodos do apartamento apelidado pelo
casal de “quarto da bagunça”, pegou três malas de viagem grandes e as levou
até o local onde havia seccionado o marido. Nessa hora, ela percebeu que o
tronco não caberia dentro da valise se estivesse com a cabeça. Para resolver o
problema, a técnica em enfermagem e caçadora fez a degola passando a
lâmina na região cervical (C7). Os sete pedaços foram distribuídos logo após
a decapitação. Na primeira mala foi posto o tórax. Na segunda, as pernas, a
cabeça e as roupas da vítima. Na terceira, ela acomodou o quadril e os
braços. Tudo devidamente ensacado com plástico de lixo, frise-se. Para
eliminar provas, ela limpou o sangue do chão do quarto novamente com
Veja Multiuso. O esquartejamento, segundo seus cálculos, durou cerca de
seis horas.
Após detalhar ao delegado como matou e esquartejou Marcos, Elize
revelou como fez a desova na mata. Segundo sua con ssão, logo após
arrumar as partes do marido nas malas, ela tomou um banho, vestiu-se com
calça jeans e blusa cor-de-rosa, calçou botas marrons e usou casaco de frio.
Avisou a babá que estava de saída e não tinha hora para voltar. Pegou a sua
bolsa Louis Vuitton bege, pôs dentro dela o cano da arma usada para matar
o empresário e saiu pela cozinha. Quando o elevador de serviço chegou, a
assassina puxou a porta e usou a primeira mala para mantê-la aberta.
Enquanto isso, arrastou as outras duas para dentro do elevador.
De carro, Elize saiu do prédio e seguiu pela Rodovia Raposo Tavares
rumo a Chopinzinho, no Paraná. A viagem de 825 quilômetros duraria pelo
menos dez horas. Mas, após percorrer três horas de estrada, ela se lembrou
da mata fechada em volta da chácara Don Juan, de propriedade do amigo
Horácio, localizada na zona rural do município de Cotia, onde costumava
passar ns de semana com o marido. Fez o retorno quando já estava
escurecendo e seguiu em direção ao novo destino. Quando a criminosa
passava pela Rodovia SP-127, um radar inteligente detectou que seu carro
estava em alta velocidade, com o licenciamento vencido fazia 20 dias, e
enviou a informação ao posto da Polícia Rodoviária Estadual mais próximo,
no município de Capão Bonito, a 231 quilômetros da capital. No posto
policial, os homens da lei já esperavam pela Pajero TR-4 no meio da pista.
Fizeram sinal para Elize parar no acostamento. Ela manteve-se calmíssima.
O diálogo foi tenso:
– Boa-noite, senhora!
– Boa-noite, seu guarda.
– Aonde a senhora está indo?
– Para casa, em São Paulo – respondeu.
– Onde a senhora mora?
– Vila Leopoldina.
– Documentos do veículo e habilitação, por favor.
Apática, Elize abriu a bolsa de luxo e atendeu o guarda. Em seguida, o
policial pediu a ela para descer do carro. A assassina continuou tranquila ao
dizer não saber do licenciamento irregular. Os policiais zeram uma
inspeção externa na TR-4 usando uma lanterna. O bagageiro desse utilitário
da Mitsubishi tem vista livre tanto pelo vidro traseiro quanto pelas janelas
laterais. Ou seja, foi possível os guardas rodoviários enxergarem do lado de
fora as três malas no interior do carro. Serena, Elize cou impávida diante
da iminência de ser descoberta. Enquanto os policiais olhavam o carro, ela
pegou o celular e ngiu falar com a lha – que, com um ano, mal falava
“papai” e “mamãe”. “Filha, mamãe tá voltando. Já, já chego em casa, viu? Fica
bem!”. Na sequência, a assassina foi multada e liberada, apesar de estar com
um corpo esquartejado no porta-malas. Segundo o psiquiatra forense Guido
Palomba, a frieza com que Elize se portou diante dos policiais é a sua
assinatura de “assassina psicopata”. “Qualquer pessoa entraria em pânico”,
analisou o médico. O laudo detalhado de Palomba sobre Elize está no
próximo capítulo.
Procurada, a Polícia Militar de São Paulo argumentou que abordagens,
como ocorreu com o carro de Elize, eram feitas apenas para veri car a
situação do veículo e do motorista, como sinais de alterações clínicas que o
impeçam de dirigir com segurança. Apesar de o Código de Trânsito
Brasileiro determinar o recolhimento do veículo quando agrado rodando
com licenciamento atrasado, a PM paulista recorreu a uma norma do
Comando de Policiamento Rodoviário Estadual recomendando a apreensão
do veículo só depois do prazo de 30 dias após o vencimento dos
documentos. Como a Pajero TR-4 de Elize estava dentro desse intervalo de
tempo, ela foi liberada.
Da barreira de trânsito, a assassina seguiu em direção à mata de Cotia. A
primeira desova foi à noite na estrada dos Pires, perto de uma igreja. O local
estava totalmente escuro. A criminosa abriu a mala e despejou os sacos de
lixo contendo o quadril e os braços do marido. Segundo sua con ssão, nessa
hora dois cachorros pularam uma cerca e correram latindo em sua direção.
A lâmpada da varanda de uma casa próxima foi acesa por causa dos latidos
dos cães. Com medo de ser agrada, Elize jogou a mala vazia para dentro do
carro e acelerou em disparada. Percorreu 1,3 quilômetro até chegar à Rua
Bragança. Lá, livrou-se da cabeça, de uma das pernas e dos sacos contendo
as roupas da vítima. Seguiu mais 600 metros na mesma rua e jogou fora a
outra perna. No caminho, ligou para a babá e obteve notícias da lha. Para
nalizar, avançou 2,5 quilômetros e desfez-se do tronco numa área
conhecida como Caucaia do Alto. Segundo laudo do IML, os sete pedaços
de Marcos foram despejados num raio de 4,4 quilômetros.
Em con ssão, Elize contou ter jogado o cano da arma na Rodovia
Raposo Tavares quando seguia ao Paraná. As três malas vazias foram postas
num contêiner de entulhos no caminho de volta para casa. A faca, segundo
ela, foi deixada numa lata de lixo do Shopping Villa-Lobos, no Alto de
Pinheiros. A viúva levou os policiais aos locais, mas os objetos não estavam
lá. Não se sabe se a criminosa mentiu ou se os garis já haviam recolhido as
provas. Ainda segundo seu relato, depois de se livrar do corpo do marido,
Elize voltou para casa perto da meia-noite da segunda-feira.
No nal da con ssão, o delegado Mauro Dias perguntou à assassina se
tinha algo a acrescentar no depoimento. Ela tinha. “Queria deixar registrado
que eu amava o meu marido como nunca havia amado homem algum. Mas
ele era extremamente violento e só queria fazer sexo como se eu ainda fosse
uma prostituta. Ele já não me respeitava como mulher, esposa e nem como
mãe da sua lha. Me humilhava por eu ter sido garota de programa e pobre.
Dizia que eu era louca e que ia me internar num hospício. Que eu nunca
mais veria a minha lha. Que a minha família era uma merda. Mesmo assim
eu o amava com todas as minhas forças. Queria muito que o meu casamento
tivesse dado certo. Mas, infelizmente, não deu...”
Numa cela da delegacia de Itapevi, já com a pecha de assassina confessa,
Elize recebeu a visita do reverendo François. Primeiramente, o religioso
sondou se Marcos havia deixado testamento. Em seguida, fez uma espécie de
atendimento espiritual à detenta. “Não vim aqui acusá-la, mas sim para lhe
dar conforto espiritual, abraçá-la, ouvi-la chorar e consolá-la. Não quero
saber nada sobre o que você fez, lha. Simplesmente estou aqui para
manifestar compaixão, misericórdia e mostrar a você o caminho da luz.
Quero te acolher, abraçar, beijar e te fazer carinho”, anunciou. O sacerdote
cou chocado com a imundície do lugar. Elize não conseguiu olhar nos
olhos de François tamanho o constrangimento. Ele segurou no queixo da
jovem e levantou a cabeça dela para o alto. “Não vim até aqui julgá-la. Quem
vai fazer isso é o tribunal dos homens. Vim apenas trazer a palavra de Cristo
e confortar o seu coração”. Na saída, François foi questionado por um
policial:
– Como ela está, reverendo?
– Ela está envergonhada. Mas confesso que estou um pouco
impressionado. Achei que ia encontrar uma pessoa muito arrependida. Mas
não. Estou até assustado com a sua frieza. Mas cumpri o meu papel de
sacerdote.
– O senhor pretende voltar?
– Jamais! – encerrou François.
Após a con ssão, Elize decidiu colaborar com as investigações da polícia
para obter atenuantes na hora de ser julgada. Deu mais três depoimentos
complementares contando mais detalhes do crime, apesar de um dispositivo
constitucional lhe garantir o direito de car calada para não produzir provas
contra si. Elize confessou à tarde e, à noite, participou de uma encenação do
crime feita por técnicos do Núcleo de Perícias em Crimes contra a Pessoa do
Instituto de Criminalística da Polícia Técnico-Cientí ca de São Paulo. Na
reprodução simulada, coordenada pelo perito Ricardo Salada, Elize sentou-
se na cadeira da mesa de jantar e mostrou como levou uma bofetada de
Marcos, o que teria sido o primeiro gatilho para o assassinato. Em nenhum
momento ela chorou ao relembrar a morte do marido. Nem quando simulou
o tiro e o esquartejamento usando uma arma de brinquedo e uma faca de
plástico. Orientada pelo advogado Luciano Santoro, a viúva só falava
quando lhe era perguntado algo pelos policiais.
Na hora de usar as malas para reproduzir o momento de acomodar as
partes do corpo do empresário, surgiu um impasse: como fazer cada mala
pesar 30 quilos? Os peritos começaram a pegar vinhos na superadega do
apartamento e distribuir as garrafas pelas malas. Quando um policial pegou
um Romanée-Conti, um dos rótulos mais caros do mundo, avaliado na
época em 25 mil dólares, Elize cou apreensiva. “Essa garrafa não, por favor.
É um vinho nobre. Pegue outra mais em conta”, orientou. Com medo de dar
prejuízo, os peritos passaram a usar apenas os vinhos do Porto de uma caixa
posta no chão da adega. Cada uma dessas garrafas custava mais ou menos
900 reais (valores da época). Na reprodução simulada, tia Rose estava no
apartamento juntamente com a lha do casal. Elize pediu aos policiais para
se despedir da menina antes de ser levada novamente para a cadeia. O
delegado Mauro Dias permitiu que a mãe se despedisse da criança por meia
hora. Rose chorava copiosamente, enquanto a assassina não derramava
qualquer lágrima. Essa foi a última vez que Elize viu a lha. Ela também se
despediu dos seus cachorrinhos, So a e Fiona.
Elize matou o marido em 19 de maio de 2012, foi indiciada pela polícia
no dia 18 de junho e denunciada à Justiça no dia seguinte pelo Ministério
Público. O relatório de 15 páginas encaminhado pelo promotor criminal
José Carlos Cosenzo à 5a Vara do Júri de São Paulo deu trabalho para a
defesa da assassina. Cosenzo acusou Elize de homicídio triplamente
quali cado por motivo torpe, recurso impossibilitando a defesa da vítima e
meio cruel, além de destruição e ocultação de cadáver. O promotor
sustentou ainda que a viúva teria planejado a morte de Marcos Matsunaga
bem antes de viajar para Chopinzinho. Segundo ele, Elize simplesmente
matou por dinheiro e não movida pelo medo de car longe da criança, como
sustentava. “A acusada é oriunda de família pobre. Foi auxiliar de
enfermagem e garota de programa. Depois de se casar com um milionário,
viu caírem por terra o matrimônio e a vida confortável porque ele arrumou
outra garota de programa como amante. Bene ciada única de um seguro de
relevante valor [600 mil reais], cando com a lha herdeira de enorme
patrimônio do pai, resolveu matá-lo. Conseguiria se vingar e caria rica.
Exímia atiradora, o executou e o esquartejou”, escreveu Cosenzo em seu
relatório.
Em depoimentos na delegacia, Elize sustentou várias vezes que matou
Marcos porque ele ameaçava tirar a sua lha. Cosenzo rebateu essa
justi cativa. Segundo o promotor observou, Marcos levava um estilo de vida
incompatível com a de um pai, pois vivia na noite em boates e bordéis de
luxo atrás de prostitutas; e viajava nos nais de semana para fazer turismo
sexual. “Nem cabia uma criança em sua rotina. Por isso essa conversa de
‘tirar a minha lha’ não faz sentido. Até porque o Marcos sequer fazia
questão de visitar a sua lha do casamento com Lívia”, argumentou Cosenzo
em 2021.
Com base no depoimento de Elize, o promotor acentuou o detalhe
mórbido de Elize ter deixado para cortar a cabeça de Marcos por último:
“Não há registro na história da Medicina Legal de casos em que um
assassino tenha esquartejado uma pessoa começando pelas pernas. A cabeça
é sempre a primeira a ser cortada porque, sem ela, o corpo passa a ser um
cadáver comum, sem um rosto, sem um nome. Não é fácil esquartejar uma
pessoa conhecida olhando o seu semblante”. Já o perito Jorge Oliveira
a rmou no laudo que o primeiro membro a ser cortado foi a cabeça e não a
perna. Disse também de forma categórica que Marcos não teria morrido em
função do tiro na cabeça, como a rmara Elize, mas sim em decorrência de
afogamento no próprio sangue. “O ferimento pelo projétil de arma de fogo
não fora mortal. A causa mortis foi provocada pela inundação das vias
aéreas por sangue. [...] O sangramento só chegou aos brônquios porque
havia respiração ativa. E a origem dessa hemorragia foi o corte feito na
região cervical”, descreveu o legista.
Baseado nos laudos periciais, Cosenzo acusou Elize de ter dado o tiro na
cabeça de Marcos à queima-roupa tão logo ele abriu a porta da sala com a
pizza e não durante a discussão. Para incriminá-la ainda mais, o
representante do Ministério Público disse “ter certeza” de que ela teve ajuda
de outra pessoa para esquartejar o empresário, “pois seria impossível uma
mulher sozinha fazer o corte na altura da cintura da vítima”. Ainda
subsidiado pelo trabalho dos peritos, Cosenzo reiterou que a vítima estaria
viva quando foi esquartejada. “Enquanto Marcos agonizava, Elize estava
com ódio incontido e armou-se com uma faca. Aproximou-se do pescoço
do marido e o seccionou, conseguindo decapitá-lo”, descreveu em sua
denúncia. Autor da maioria dos laudos cadavéricos anexada ao inquérito, o
perito criminal Jorge Pereira de Oliveira também sustentou a tese da terceira
pessoa na cena do crime. “Os cortes feitos no empresário tinham dois
padrões distintos. O primeiro tipo foi um ferimento feito nele vivo. O
segundo são cortes produzidos post mortem [posterior à morte]. Os
ferimentos realizados na região cervical e nas raízes dos membros superiores
apresentam características de reação vital. [...] Havia ainda impregnação de
sangue na musculatura do pescoço, o que também prova que a vítima estava
viva na hora do esquartejamento”, descreveu Oliveira no laudo.
Diante da hipótese de Elize ter recebido ajuda para esquartejar o
empresário, a polícia abriu um segundo inquérito para investigar quem seria
a terceira pessoa na cena do crime. No bojo dessa investigação, outras
reconstituições foram feitas no apartamento do casal e nos locais onde os
pedaços da vítima foram encontrados. Orientada pelo advogado, Elize não
colaborou nesse segundo inquérito. “Não fazia nenhum sentido ela ajudar,
pois já havia confessado o crime, estava denunciada pelo Ministério Público
e encaminhada ao Tribunal do Júri”, justi cou Luciano Santoro. Nunca foi
provada a participação da tal terceira pessoa. O inquérito para apurar essa
suspeita terminou com um carimbo de “inconclusivo”. Já a teoria de que
Marcos foi esquartejado ainda vivo foi desquali cada ao custo de muita dor
para a família da vítima. No dia 12 de março de 2013, o corpo do empresário
foi exumado a pedido da defesa de Elize para a realização de mais perícias.
Segundo os novos laudos, o tiro disparado pela esposa não foi à queima-
roupa. Os peritos da exumação não disseram de forma categórica se o
empresário estava vivo ou morto no momento do esquartejamento por
causa do avançado estado de decomposição do cadáver. No entanto, o exame
anatomopatológico assinado pela perita Maria de Seixas Alves concluiu que
a vítima estava morta quando foi esquartejada. Marcos foi sepultado pela
segunda vez no dia 15 de maio de 2013. A versão de que Elize seccionou o
marido morto e sozinha cou mais próxima da verdade. Até porque as
imagens do circuito interno do condomínio nunca mostraram uma outra
pessoa chegando ao apartamento no dia do esquartejamento. “É muito
machismo do Ministério Público achar que uma mulher não é capaz de
matar e esquartejar um homem”, comentou Juliana Fincatti Santoro, também
advogada de Elize em ações penais e cíveis.
De acordo com o Código Penal Brasileiro, crimes contra a vida são
graves demais para deixar o destino do réu somente nas mãos do juiz. Esses
casos são encaminhados ao Tribunal do Júri, onde sete pessoas comuns
representam a sociedade para formar opinião sobre o acusado. Os jurados
leem um resumo do processo, ouvem os interrogatórios das testemunhas,
dos peritos, dos policiais; fazem perguntas – se quiserem – e assistem a
todos os debates entre defesa e acusação. Durante o julgamento, eles são
obrigados a dormir no tribunal. No caso do Fórum da Barra Funda, os
alojamentos eram precários. Não tinham janelas, banheiros próximos nem
ar-condicionado.
A decisão de submeter Elize ao Tribunal do Júri foi publicada no dia 15
de agosto de 2013, mais de um ano após o crime. Considerado um dos mais
longos da história da Justiça de São Paulo, o julgamento da assassina
confessa iniciou-se no dia 28 de novembro de 2016 e durou sete dias. A
passagem da assassina pelo tribunal teve uma repercussão modesta na
mídia, se comparada à cobertura da morte de Marcos Matsunaga. Todas as
atenções da sociedade no dia do julgamento de Elize estavam voltadas para
outra tragédia. Na madrugada do dia 28 de novembro de 2016, primeiro dia
do Júri, o voo LaMia 2933, que partiu de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia,
levaria a delegação da Chapecoense para o Aeroporto Internacional José
María Córdova, em Rionegro, na Colômbia. O avião caiu perto de um local
montanhoso chamado Cerro El Gordo enquanto fazia o procedimento de
pouso. Ao todo, 71 pessoas morreram no acidente, entre atletas, comissão
técnica, jornalistas, diretores e comissários de bordo. Apenas seis pessoas
sobreviveram. Com isso, as notícias do julgamento da esquartejadora
caram diminutas nos veículos de comunicação.
O Júri foi formado por quatro mulheres e três homens. Elize sentou-se
no banco dos réus vestindo calça preta e blusa branca. Por cima da roupa
simples ela usou um blazer preto. O gurino sóbrio foi estrategicamente
comprado pela defesa em loja de departamentos. Em seu cabelo, havia
tranças. “Eu queria que ela despertasse empatia nos jurados”, explicou
Santoro. Para ouvir a sentença, a criminosa teve de trocar as roupas simples
pelo uniforme de presidiária, composto de calça cáqui e camiseta branca. As
mãos foram postas para trás para receber as algemas no pulso. Elize saiu do
tribunal com uma pena de 19 anos, 11 meses e um dia, sendo 18 anos e nove
meses pelo homicídio, e um ano, dois meses e um dia pelo esquartejamento
e ocultação do cadáver. Na hora de responder aos quesitos, os jurados
desconsideraram as quali cadoras do crime pedidas pelo promotor
Cosenzo. Quali cadoras são as circunstâncias que aumentam a gravidade do
crime, proporcionando um acréscimo à pena. No entendimento do Júri, no
assassinato de Marcos por Elize, não houve “motivo torpe” (matou por
vingança e dinheiro) nem “meio cruel” (a vítima ainda estaria viva quando
foi esquartejada).
Na sentença, o juiz Adilson Paukoski Simoni classi cou o crime como
brutal e hediondo. Destacou que Elize era boa mãe e educada no trato com
as pessoas, mas seria uma mulher “fria e perigosa”. Teria cometido o crime
sob uma violenta emoção provocada por ofensas feitas pela vítima.
“Contrariamente, apesar da origem humilde, além de ter frequentado curso
de técnico de enfermagem (completando-o), formou-se em curso superior,
especi camente em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito). Viveu
nababescamente depois de casada com o ofendido, já que, no dizer dos
autos, era tratada como uma princesa.” No entanto, segundo o texto da
sentença, pesava contra a ré o fato de ela ter se passado falsamente pelo
marido morto para fazer a família dele crer na história da fuga de Marcos
com uma amante. O conselho de sentença acreditou que Elize só confessou
o crime porque as investigações convergiram contra ela. “O veredito aponta
prática revestida de cuidadosa premeditação, reveladora de uma
personalidade fria e manipuladora e, portanto, extremamente perigosa”,
promulgou o juiz. A sentença foi lida no plenário 10 do complexo judiciário
Ministro Mário Guimarães às 2 horas e 8 minutos da madrugada do dia 5 de
dezembro de 2016.
Quando recebeu a sentença, Elize já havia cumprido quatro anos e meio
de prisão. Como a Justiça de São Paulo não considerou o atenuante de a ré
ter confessado e colaborado com as investigações, sua defesa recorreu ao
Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, e conseguiu um abatimento
de dois anos e seis meses na pena da assassina. Com o desconto, sua
condenação baixou em março de 2019 para 16 anos e três meses.
O julgamento da esquartejadora foi marcado por embates inusitados. Na
hora de fazer a sustentação oral de defesa de Elize, o advogado Luciano
Santoro levou uma pilha de oito DVDs para confundir a acusação. À medida
que o defensor falava, a estagiária do seu escritório, Julia Crespi Sanchez,
colocava no telão imagens para ilustrar as palavras do defensor. Quando ele
descrevia os abusos sofridos por Elize na adolescência, por exemplo, o telão
exibia fotos de uma menina triste. A ideia era sensibilizar as pessoas do Júri.
Para ilustrar como as humilhações sofridas por ela no casamento
descambaram para a morte de Marcos, Santoro apresentou imagens de
mulheres com hematomas e citou uma das frases mais populares da ativista
negra norte-americana Maya Angelou (1938-2014): “As pessoas vão
esquecer o que você disse, as pessoas vão esquecer o que você fez, mas as
pessoas nunca esquecerão como você as fez sentir”.
Na réplica, o promotor Carlos Cosenzo criticou a apresentação do
advogado. “Se fosse meu aluno, não passaria nem em concurso para
porteiro”, provocou o promotor de 62 anos na época. Santoro tinha 38 anos,
apresentava problema de surdez e não ouviu o comentário do adversário,
apesar de a fala ter sido feita ao microfone. No entanto, um policial
encarregado da segurança do tribunal queixou-se das palavras do promotor
porque seu pai era porteiro. “O que ele tem contra porteiros?”, questionou o
guarda. Santoro só se deu conta da polêmica quando ouviu a reclamação
repassada pela esposa, a advogada Juliana Fincatti Santoro. O advogado de
Elize rebateu o representante da acusação em sua tréplica. “Quero me dirigir
ao promotor: sou muito jovem e tenho muito tempo para errar na minha
carreira. O senhor não tem mais esse tempo. Hoje é domingo, tarde da noite.
Se estamos aqui é porque um porteiro abriu a porta para a gente. Aliás, eles
abrem portas e portões todos os dias. E o trabalho desse pro ssional é tão
digno quanto o meu e o seu.”
Cosenzo não foi o único a cometer deslizes no julgamento. Em sua
atuação, Santoro surpreendeu a plateia ao exibir totalmente fora de contexto
no telão a foto da cabeça de Marcos decepada pela sua cliente. As imagens
do corpo esquartejado já haviam sido apresentadas três dias antes com
prévio aviso. Parte das pessoas, inclusive Elize, pediu para sair do tribunal
para não vê-las. O assistente de acusação, a cargo do advogado estrelado
Luiz Flávio Borges D’Urso, também cometeu gafe. Na abertura de uma
sustentação oral, ele losofou: “Só Deus e Elize sabem o que aconteceu
naquele apartamento”. A frase abstrata serviu de deixa para o adversário
improvisar. Santoro anotou numa folha de papel os principais argumentos
da acusação, levantou-se para ler os tópicos em voz alta e os rebateu um a
um. “Se a acusação não sabe o que aconteceu, eu sei e vou contar a vocês”,
debochou o defensor de Elize, amassando o papel e jogando-o no lixo em
seguida.
A serra elétrica comprada por Elize na véspera do crime também foi
pivô de um bate-boca entre defesa e acusação. O Ministério Público
associou a aquisição do equipamento à premeditação do crime. Ou seja, ela
supostamente planejou esquartejar o corpo de Marcos usando a serra, pois
seria impossível partir os ossos somente com uma faca de cortar carne. Em
depoimento, Elize refutou essa tese. Segundo argumentou, foi o próprio
marido quem encomendou a serra. “Ele pretendia usar o acessório para
abrir caixas de madeira vindas do exterior contendo garrafas de vinho”, disse
a ré. “A acusação do MP não tem o menor cabimento. Se ela tivesse
comprado a serra para cortar o marido, ela teria usado o equipamento
durante o esquartejamento”, rebateu Luciano Santoro na época. Para não
deixar o dito pelo não dito, a tal serra foi submetida a uma perícia e não
foram encontrados vestígios de sangue em sua lâmina.
Outras duas discussões agitaram o julgamento. Uma delas se deu nos
bastidores do tribunal. O delegado Mauro Dias havia criticado duramente o
trabalho do perito criminal Jorge Pereira de Oliveira, principalmente a
a rmação sem fundamento sobre uma possível terceira pessoa na cena do
crime. “Essa tese só fez atrasar o julgamento”, a rmou o delegado. Na hora
de se recolher para dormir no alojamento do tribunal, o médico legista, com
medo, disse que só pernoitaria no fórum se o delegado fosse embora. Os
dois já haviam se desentendido em outros casos policiais. A segunda
discussão ocorreu entre a repórter do SBT, aís Nunes, e o juiz Adilson
Paukoski Simoni, presidente do Júri. Quando Elize falou em depoimento ter
levado no rosto um tapa de Marcos, o magistrado perguntou: “Um tapa só?”.
Elize reiterou dizendo “sim”. aís estava sentada na primeira la do
auditório e questionou em voz alta: “Um tapa é pouco? Quantos seriam
necessários?”. A jornalista idealizou o documentário Elize Matsunaga – Era
uma vez um crime, disponível na Net ix. Simoni esclareceu à jornalista só
ter refeito a pergunta porque não tinha entendido a resposta, pois Elize
havia falado em voz baixa. Aliás, a criminosa foi alertada várias vezes pelo
juiz durante o julgamento para falar mais alto. Muitas vezes, a voz da ré era
quase incompreensível.
Orientada por seus advogados, Elize se recusou a responder ao
interrogatório da acusação. Estas foram algumas das perguntas feitas a ela
pelo juiz Adilson Paukoski Simoni durante o julgamento:
– A senhora tem origem rica ou humilde?
– Humilde, se for comparar.
– A senhora trabalhava como técnica de enfermagem, é isso?
– Sim.
– Presenciava as operações?
– Sim, a incisão, as cirurgias...
– O Marcos se mostrava uma pessoa gentil?
– Sim. Ele era extremamente carinhoso. Me dava presentes e me tratava
superbem no casamento. No início, era o casamento que toda mulher sonha.
– Quando o casamento começou a não dar certo?
– Quando eu descobri a primeira traição dele, logo depois do casamento,
em 2010. A gente estava viajando pelo Mato Grosso e descobri, olhando o
computador dele, um encontro sendo marcado com uma funcionária da
Yoki de Marília (SP).
– Quando a senhora falava em separação, mantinha relação sexual
com ele?
– Não, porque tinha engravidado. [...] Aí a bebê nasceu e eu o perdoei
porque ele disse “vamos agora só pensar no nosso bebê”. Aí eu o perdoei.
Mas depois que a nossa lha completou 6 meses ele começou a se afastar.
– A senhora atira bem?
– Eu não sei. Dizem que sim.
– É fácil de saber: a senhora acerta o alvo?
– Acerto.
– A senhora foi in el ao Marcos?
– Nem com ele, nem com os outros relacionamentos que eu tive.
– Quantos tiros a senhora deu no seu marido?
– Um só.
– E o tiro pegou onde?
– Na cabeça.
– Na hora exata de atirar, a qual distância a senhora estava dele?
– Não sei, Excelência.
– Um passo, dois passos?
– Eu não estava com uma régua. Não medi. Aconteceu.
– E com o tiro ele caiu logo no chão ou deu alguns passos?
– Ele caiu. Quando dei o tiro, abri o olho e ele já estava no chão.
– Eu não entendi o “abri o olho”. Como assim?
– Na hora de disparar, eu fechei os olhos. Mas não sei quanto tempo isso
durou porque foi muito rápido.
– Me diga uma coisa: quando ele caiu, ele agonizou?
– Não. Não estava mais falando nada.
– Ele respirava?
– Não sei. Não cheguei perto dele.
– Estava com os olhos abertos?
– Não sei, Excelência.
– Estava consciente?
– Também não sei dizer.
– Teve algum momento em que a senhora falou: “Vou matar o
Marcos”?
– Não.
– A senhora sabe que o corpo do Marcos foi esquartejado?
– Sim, porque eu esquartejei. Mas não foi na sequência.
– Quanto tempo depois do tiro a senhora esquartejou?
– Depois que a babá chegou, bem cedinho, por volta das 6 horas. Aí
comecei a cortar às 7h30 da manhã.
– Por que a senhora demorou tanto?
– Não sei dizer.
– A senhora limpou o sangue sozinha?
– Sim.
– A senhora começou a cortar o corpo por qual motivo?
– Porque ele era pesado. Pensei em ligar para a polícia e contar tudo.
Queria tirar ele dali. Mas naquela altura do campeonato eu não ia mais
contar para ninguém. Já queria esconder. Eu não conseguiria tirar ele de lá
sozinha. Então esse foi o jeito que encontrei.
– Quando a senhora começou a cortar o Marcos, ele estava
respirando?
– Não. Ele estava duro.
– A senhora é técnica em enfermagem. Então sabe as fases que um
corpo passa depois de perder a vida, né?
– Estava rígido.
– Quantas facas a senhora usou para fazer os cortes?
– Uma só. Era uma faca grande de cabo marrom usada para cortar
carne.
– A senhora chegou a usar a serra elétrica comprada na viagem?
– Não, Excelência. Usei só a faca mesmo.
– Quanto tempo a senhora demorou para esquartejar o corpo?
– Demorou bastante. É difícil falar em tempo e horário porque eu não
cava olhando para o relógio. O delegado também me perguntou quanto
tempo durou isso, quanto tempo durou aquilo. Mas eu não sei.
– E o que a senhora fez depois de cortá-lo?
– Pus ele em sacos de lixo.
– E depois?
– Coloquei em três malas, pus no carro e saí.
– Qual carro a senhora usou?
– A minha Pajero TR-4.
– Esse carro era presente de alguém?
– Do Marcos.
– Tudo isso que a senhora está contando, a senhora fez sozinha?
– Sozinha.
– Atirar, arrastar o corpo, limpar o sangue, cortar, pôr nas malas,
levar até o carro...
– Fiz sozinha, Excelência.
– A senhora deixou as partes do corpo num só lugar ou botou um
pouco aqui e outro pouco acolá?
– A intenção era deixar tudo num único lugar porque eu queria me ver
livre. Mas quando comecei a fazer isso eu vi um cachorro na escuridão e saí.
– Aí a senhora passou a distribuir as partes do corpo?
– Peguei as malas, abri e soltei as partes. Não sabia dizer que partes eram
porque elas eram muito pesadas.
– A senhora jogou só os sacos com o corpo?
– Sim. As malas eu pus de volta no carro.
– Por que a senhora não deixou as malas junto com os pedaços do
corpo?
– Sei lá.
– A senhora chegou a ser abordada pela polícia quando carregava o
corpo?
– Sim. Meu carro estava com o licenciamento vencido. Nessa hora, achei
que seria presa.
– A senhora conseguiu dormir depois de atirar no Marcos?
– Quem dorme, Excelência?
– Não sei. A senhora é ré e a pergunta é minha.
– Não dormi.
– Não chegou a pregar o olho momento algum?
– Não.
– A senhora tinha intenção de car com os bens do falecido?
– Em hipótese alguma. Se eu fosse me separar dele, não caria embaixo
da ponte porque um apartamento era meu e o outro era dele. E a pensão
alimentícia não deixaria a minha lha desamparada.
– Alguma vez a senhora chegou a agredir sicamente o seu marido?
– Quando a gente discutia, ele me segurava e eu segurava ele. Ele me
ofendia e eu ia para cima dele para fazer ele calar a boca.
– A senhora conhece Nathalia Vila Real Lima?
– Eu a vi pelo DVD. Era a amante dele.
– A senhora tem alguma coisa contra ela?
– Não.
– A senhora quer acrescentar alguma coisa?
– Sim. Eu gostaria de dizer que nem tudo que está na minha acusação é
verdade.
– O que não é verdade?
– Que eu premeditei a morte do meu marido. Que eu matei o Marcos
por dinheiro. Isso não faz sentido. Se eu quisesse matá-lo por dinheiro, teria
esperado a venda da empresa. Ele ia ganhar um dinheiro do pai e
planejávamos montar um negócio juntos.
– Mais alguma coisa?
– Estão insinuando que eu matei ele com crueldade. Eu não queria que
ele morresse, Excelência, muito menos com crueldade. Se eu quisesse que ele
morresse, teria dado mais tiros nele.
– Mais alguma coisa?
– Acho que não.
Uma filha diante das verdades e dos pecados
da mãe

O
crime cometido por Elize Araújo Kitano Matsunaga chocou o
município de Chopinzinho e levou notoriedade à sua terra natal a
partir de 2012. Repórteres, fotógrafos e cinegra stas, além de muitos
curiosos, aglomeravam-se em frente à casa humilde onde a homicida foi
criada, próximo à região central. O radialista Marcos Monteiro, um dos mais
populares da cidade, falava da ex-prostituta famosa o dia inteiro numa
emissora de frequência modulada. À noite, o Jornal Nacional contava a cada
edição um capítulo da novela cujo enredo envolvia sexo, dinheiro, traição e
sangue. Os telejornais policiais vespertinos das redes Record e Bandeirantes
dedicavam a edição inteira somente ao caso. A audiência cava nas alturas,
tamanho era o interesse do público pela história da caipira paranaense que
se casara com um milionário e acabou matando-o.
Na época do julgamento, Chopinzinho voltou a ser invadida por
jornalistas. Mas a família de Elize já estava desmantelada quando a assassina
sentou-se no banco dos réus. Dilta, sua mãe, morreu aos 59 anos em 2016
sem conhecer a sentença da lha. Ela teve um câncer no intestino iniciado
com um inocente pólipo retirado numa colonoscopia de rotina. Mais tarde,
o tumor reapareceu de forma agressiva. A senhora fez três cirurgias e várias
sessões de quimioterapia e radioterapia. A doença chegou a entrar em
remissão, mas progrediu alguns meses depois do tratamento de forma
avassaladora. Na nova fase, as células cancerígenas se espalharam pelo
estômago, fígado, rins e bexiga. Dilta se internou bastante debilitada no
Hospital do Câncer de Cascavel, a 214 quilômetros de Chopinzinho.
De nhou para um quadro de pele e osso em uma semana. Sem protocolo de
tratamento, foi levada aos cuidados paliativos. Em seu leito de morte, Dilta
começou a delirar perguntando se Elize havia, de fato, lhe perdoado. Nos
momentos nais, ela pediu uma chance de se despedir da lha criminosa.
Não havia condições, pois Elize estava encarcerada no regime fechado da
Penitenciária Santa Maria Eufrásia Pelletier, a P1 de Tremembé. Dilta
morreu três meses antes do julgamento de Elize. A Justiça não autorizou a
sua saída da penitenciária para velar o corpo da mãe.
O padrasto, Chico da Serra, também teve nal melancólico e morreu um
ano após o julgamento. Fazia tempo que ele vivia perambulando quase cego
pelas ruas de Chopinzinho feito indigente. Nem Dilta, quando estava viva e
com saúde, nem a sua outra mulher deram abrigo ao serralheiro. Certa vez,
ele foi encontrado pelo radialista Marcos Monteiro todo sujo num
logradouro do município. Foi levado à casa da lha, Eliana, de 22 anos na
época. A jovem era a única lha dele com Dilta, ou seja, meia-irmã de Elize.
Eliana passava o dia fora de casa porque estudava e trabalhava. Não tinha
como oferecer cuidados em tempo integral ao pai. O jeito foi interná-lo em
um abrigo privado, localizado no município paranaense de Saudade do
Iguaçu, a 25 quilômetros de Chopinzinho. A instituição era especializada em
acolher doentes terminais e sem referências familiares. Na época, o
serralheiro tinha uma aposentadoria no valor de um salário mínimo e a casa
de acolhimento cava com todo o dinheiro a título de pagamento das
despesas de moradia e alimentação. Eliana internou o pai doente, de 61
anos, com o coração apertado. O incentivo e conforto vinham da tia Rose,
pois a jovem não podia parar de estudar e viver só em função dele. “Deixe
seu pai com as cuidadoras e o visite todos os nais de semana”, aconselhou
Rose na época.
Certo dia, Eliana acordou apreensiva. Ela tinha sonhado com o pai com
o rosto coberto de ores e se despedindo num túnel de fumaça branca.
Ainda pela manhã, a lha ligou na casa de repouso e ouviu das cuidadoras
que Chico estava bem, apesar de ter perdido quase toda a visão e já
apresentar falta de memória em razão dos três acidentes vasculares cerebrais
(AVCs) sofridos nos últimos anos. Com saudade do pai, a jovem resolveu
pedir folga no trabalho para visitá-lo naquele mesmo dia. Eliana tomou café,
pegou o carro e seguiu ao abrigo de doentes. Não deu tempo de ela
encontrar Chico da Serra com vida. No meio do caminho, Eliana recebeu
uma ligação no celular. Uma enfermeira avisou que seu pai havia acabado de
morrer. “Foi tão rápido quanto um relâmpago. O Chico estava sentado à
mesa tomando café com os outros doentes, ali na varanda. Ele cava em
silêncio porque não reconhecia as pessoas nem tinha noção de tempo e
espaço. Passava o dia com um rádio de pilha colado à orelha. Mas quase
sempre o aparelho estava mudo. Da mesa, ele se levantou. Deu um gole na
xícara de café e saiu andando. Aos poucos, começou a correr pelo gramado
do campo de futebol. De repente, ele deu um salto bem grande com o peito
virado para o alto como se fosse aparar uma bola no ar e gritou
pausadamente o nome da lha. E-LI-A-NA. Foi uma das poucas vezes que
ouvimos a voz dele. Depois de saltar, ele despencou no chão, estrebuchou
por alguns segundos e morreu”, narrou a cuidadora. Após fazer o relato
emocionante, a funcionária do abrigo entregou à jovem uma sacola pequena
de supermercado com os pertences de Chico: cinco peças de roupa, um par
de sapatos, sandálias Havaianas, uma garrafa térmica, uma caneca e o rádio
mudo. Era tudo que ele tinha no momento nal da vida.
A morte de Chico da Serra gerou uma discussão em família. Eliana
queria enterrá-lo no túmulo dos Araújos, onde estavam sepultados a mãe,
Dilta, e o seu avô materno, Balduíno Araújo, morto em 6 de junho de 1992
aos 56 anos em decorrência de uma cirrose. Dona Sebastiana, esposa de
Balduíno, avó de Elize e proprietária do mausoléu, não autorizou. Mesmo
assim, Eliana mandou engavetar o corpo do pai na capela mortuária sem o
conhecimento da família, seguindo orientação da tia Rose. Apesar de ter três
corpos no túmulo dos Araújos em 2021, na parede havia apenas a foto de
Balduíno. “Eu não sabia que o traste do Chico está lá na minha sepultura.
Toda a desgraça da minha família começou depois da chegada desse diabo
em nossas vidas. Vou tirar ele de lá e jogar seus ossos numa vala comum. É o
que ele merece”, anunciou Sebastiana em dezembro de 2020, quando tinha
86 anos.
Em Tremembé, a matrícula de Elize tem o número 759.138-1. Pelos
cálculos feitos em seu processo de execução penal, ela só estará quite com a
Justiça em 14 de fevereiro de 2028. Mas ela tentava abreviar a volta à
liberdade graças à benevolência de programas sociais criados com o objetivo
de melhorar a vida de criminosos. Elize se inscreveu no projeto de literatura
Lendo a Liberdade, desenvolvido pelo sistema penal para estimular a cultura
entre os apenados. Pelo programa, os presos podem usar até 12 leituras por
ano e ganhar redução da pena em até 48 dias. O detento provava a leitura
fazendo resenhas da obra. Elize deu preferência aos títulos estrangeiros: Os
homens que não amavam as mulheres, de Stieg Larsson; O lobo, de Joseph
Smith; e Carta ao pai, de Franz Kaa. Depois de ler as três obras, ela pediu à
Justiça 12 dias de remissão, mas teve o pleito negado em primeira instância
porque os livros escolhidos não eram objeto de estudo no sistema penal. Ela
recorreu e acabou ganhando a remissão em segunda instância. Elize também
trabalhou em Tremembé para ganhar desconto na pena. Foi auxiliar da
biblioteca e chegou a exercer dupla função – operadora de máquina de
costura e coordenadora da unidade fabril – na Fundação de Amparo ao
Trabalhador Preso (Funap). A cada três dias trabalhados, os condenados
têm um dia abatido em sua pena. Desde o seu ingresso em Tremembé até
março de 2021, Elize já havia conseguido abreviar sua estada na cadeia em
um ano e sete meses graças ao trabalho e à leitura.
No cárcere, a assassina confessa quase não recebia visitas. Às assistentes
sociais, ela reclamava de pesadelos recorrentes com animais selvagens e até
com o corpo do marido todo mutilado. Gigi também habitava seus sonhos
medonhos. Tia Rose conseguiu viajar pelos quase 1.000 quilômetros que
separavam Chopinzinho de Tremembé pouquíssimas vezes. Nos encontros,
a sobrinha também falava para a tia das noites assombradas com cobras,
alces e javalis. Di culdades nanceiras e a falta de tempo zeram Rose
deixar de frequentar a prisão logo após a condenação da sobrinha. Já as
irmãs de Elize e seus amigos nunca a visitaram. Abandonada ainda no
regime fechado, onde as detentas não têm muito contato entre si, a viúva
começou a se adaptar ao cotidiano da penitenciária. Carente, envolveu-se
com colegas de cela a partir de 2014, aos 33 anos. Certa noite de frio, Elize
tremia debaixo das cobertas quando recebeu oferta de uma outra criminosa
para esquentá-la. A assassina aceitou e Sandra Regina Ruiz, uma
sequestradora de 32 anos na época, passou a dividir o colchão com ela. Essa
não seria a primeira experiência homoafetiva de Elize. Há relatos dando
conta de que, tanto em Curitiba quanto em São Paulo, a ex-prostituta fazia
programas sexuais com homens e mulheres. Na primeira noite de amor
entre Elize e Sandra, o casal não perdeu tempo e já selou namoro. Três meses
depois, elas conseguiram um privilégio e foram transferidas à “gaiola do
amor”, uma galeria especial da penitenciária destinada às mulheres com
relacionamento estável declarado no papel. A partir desse namoro, Elize
voltou a sorrir para a vida.
Sandra era conhecida pela alcunha de Sandrão e simplesmente ocupava
o cobiçado posto de rainha de Tremembé. Era chamada pelas detentas de
presidente da penitenciária e piloto, em alusão ao comando exercido por ela.
Lésbica com expressão de gênero masculino, Sandrão era violentíssima.
Estatura alta, robusta e braços musculosos enfeitados com tatuagens. A
“piloto” abria mão de sutiã e usava cuecas por baixo da calça cáqui.
Maquiagem, brincos e esmaltes, nem pensar. A sequestradora odiava esse
tipo de vaidade. O corte de cabelo era raspado nas laterais, espetado em
cima e todo trabalhado no gel xador. Até as agentes de segurança
penitenciária se borravam de medo da bandida. Ela já havia sido punida por
ter espancado violentamente uma funcionária do presídio que a repreendeu
por ter beijado Elize no pátio da penitenciária, o que era proibido. Sandrão
cumpria pena de 24 anos por ter sequestrado e matado junto com dois
comparsas um garoto de 14 anos em Mogi das Cruzes (SP). Ela executou o
menino mesmo depois de ter recebido o dinheiro do resgate dos pais, que
eram seus vizinhos. O adolescente morreu vestindo uniforme escolar, com
um tiro na boca cuja bala lhe varou o crânio. Depois teve o corpo jogado
num pântano. Esse tipo de crime nunca foi aceito pela comunidade
carcerária. Mas ninguém ousava enfrentar Sandrão. Em Tremembé, por
conta da cha criminal e da aparência assustadora, ela era cobiçadíssima por
mulheres em busca de proteção.
O enlace de Elize com a sequestradora durou somente duas primaveras.
A rainha de Tremembé ainda se dizia apaixonada pela esquartejadora
quando começou a arrastar asas para outra assassina famosa, Suzane von
Richthofen, de 31 anos na época. O triângulo amoroso pegava fogo na
o cina de costura da penitenciária, onde as três trabalhavam oito horas por
dia juntamente com outras 40 detentas confeccionando cerca de 10 mil
peças de roupas por mês. Elize e Suzane operavam máquinas de costura
industrial das marcas Sansei (SA-MQ1) e Siruba (DI720-m) no fundo da
sala. Confeccionavam os uniformes dos agentes de segurança penitenciária
lotados nas torres das muralhas. Mecânica de maquinário, Sandrão
trabalhava carregando um suporte com ferramentas e sempre estava suada e
suja de graxa. Com segundas intenções, Suzane ngia pequenas panes em
sua máquina no meio do expediente. Meiga, chamava Sandrão para
consertá-la usando voz de menininha. Na manutenção, a lésbica parruda
agachava-se por entre as pernas de Suzane e espiava as engrenagens internas
do equipamento. Elize assistia às cenas espumando de ódio e ciúme. Certo
dia, a viúva foi alertada por uma colega de cela: se não abrisse os olhos,
perderia a namorada para a parricida. Nessa época, Elize estava com
aparência desleixada. Os cabelos haviam perdido o brilho e a tintura cara
desbotada. As unhas sem esmalte estavam quebradiças. Uma depressão fez
seu corpo ganhar excesso de peso. Já Suzane continuava feminina, bonita,
extremamente sedutora e com energia sexual em alta voltagem. Não
demorou para Sandrão trocar uma assassina por outra. A partir desse
episódio, a mulher que esquartejou o marido não dirigiu mais a palavra à
menina que matou os pais. E vice-versa.
Com sexualidade uida, Elize namorou outras mulheres em Tremembé.
Depois de esquecer Sandrão, ela iniciou um romance com Tânia, a assassina
que conheceu na delegacia logo após confessar ter matado Marcos
Matsunaga. Tânia tinha 36 anos quando se envolveu com a viúva, em 2014.
Era uma mulher carinhosa e se dizia apaixonada por Elize. Sua credencial na
seara amorosa era seu crime violentamente passional. Ela namorava um
rapaz chamado Saymon desde os 12 anos. O casal tinha a mesma idade. Aos
19 anos, Tânia resolveu encerrar o namoro. Na conversa de nitiva, alegou
que nunca tinha beijado a boca de outro homem, muito menos transado
com outras pessoas. “Toda a experiência amorosa que acumulei na vida foi
ao seu lado. Isso não está certo. Nós somos muito novos para car presos a
uma só pessoa. Às vezes, sinto que estou dentro de uma garrafa só com você.
Temos de viver outras aventuras. A vida é muito curta”, justi cou a jovem no
dia do término, alegando ainda bissexualidade. Contrariado, Saymon
reiterou que amava Tânia para sempre e era adepto da monogamia tal qual
as ararinhas-azuis, que cam com o mesmo parceiro a vida toda. “Tenho até
preguiça de construir tudo o que temos com outra pessoa. Eu gosto da
pasmaceira”, justi cou. “Tá vendo? Eu gosto do revezamento, da variedade,
da coisa sortida”, pontuou ela. Tânia era estudante de engenharia civil e
Saymon trabalhava como vendedor de roupas na Galeria do Rock, no centro
de São Paulo. Depois de muita conversa, o casal pôs um m no
relacionamento. Como era previsto, ela saía pelas baladas beijando vários
homens e mulheres. Transava com parceiros(as) variados(as). Saymon
engatou um romance novo com uma garota de 17 anos logo após o término.
Namorou a mesma menina por dois anos e já falava até em casamento. Um
ano depois, Tânia se cansou da alternância amorosa e mandou uma
mensagem para Saymon, pedindo para conversar. Marcaram numa praça no
centro de São Paulo. Aos prantos, ela revelou estar “morta de arrependida”.
“Não era nada disso que eu imaginava. Só me deparei com boy-lixo.
Nenhum deles se compara a você”, disse. Saymon ouviu tudo calado,
enquanto fumava um cigarro atrás do outro. Ele era um jovem magro e todo
tatuado. Fazia estilo skatista. Tânia era bonita e gostava de roupas curtas,
como blusinha e minissaia, além de saltos altos. Depois de contar suas
experiências desastrosas como solteira, ela perguntou ao ex-namorado se ele
estava disponível. Saymon falou do seu novo amor, frisando estar
apaixonado e pensando em morar junto. “Nossa! Então você já me
esqueceu?”, perguntou ela. “Não. Mas eu avisei que gosto de namoro rme”,
ponderou o vendedor. Tânia pediu desesperadamente para voltar. Saymon se
recusou a terminar com a nova namorada, pois havia prometido a ela o
amor das ararinhas. A estudante pôs-se a chorar copiosamente, alegando
que eles foram feitos um para o outro. “Olha, serei uma nova mulher. Vamos
voltar para dentro da nossa garrafa, por favor!”, implorou ela. “Eu não vou
terminar”, insistiu ele. Desiludida, Tânia encerrou a conversa e se afastou. Na
semana seguinte, foi a vez de Saymon pedir para conversar. “A única forma
de nosso namoro ser reatado é se a minha atual namorada morrer, pois não
tem como eu terminar. Você seria capaz de assassiná-la?”, perguntou
Saymon de forma direta. “Sou capaz de qualquer coisa para ter você de
volta”, fechou Tânia, cega de amor. O rapaz então bolou o seguinte plano: ele
iria atrair a namorada para a casa dos pais na tarde de sábado. Tânia caria
escondida dentro do guarda-roupa do quarto dele. Saymon transaria com a
namorada para se despedir. Em seguida, o vendedor sairia do cômodo para
que Tânia a matasse. No dia combinado, os pais de Saymon estavam
viajando. A estudante foi ao supermercado comprar uma faca de cozinha
novinha em folha, pois as que tinha em casa estavam com a lâmina cega.
Escondeu-se no armário. A namorada de Saymon chegou na sequência e os
dois foram para o quarto. Beijaram-se e ele começou a tirar a roupa da
garota. Enciumada, Tânia não esperou o sexo passar das preliminares. De
repente, ela abriu a porta do guarda--roupa. A vítima levou um susto e
tentou escapar vestida só de calcinha. Saymon a segurou com uma chave de
braço e se jogou na cama engatado à jovem, já completamente imobilizada.
Enfurecida, Tânia avançou sobre ela e passou a faca várias vezes no pescoço
da garota até sua cabeça car pendurada por um pedaço de ligamento.
Saymon apavorou-se com o banho de sangue. Tânia propôs uma fuga
alucinante. Ele não aceitou. Decidido, foi até o telefone xo da casa e ligou
para um tio e, depois, para a polícia, relatando o acontecido. Os dois foram
presos em agrante e condenados a 26 anos de reclusão. Saymon cumpriu
pena na Penitenciária Nelson Marcondes do Amaral, em Avaré. Em
Tremembé, Tânia contava essa história vangloriando-se de ter matado por
amor. Ela namorou Elize por três anos no regime semiaberto. Passou no
vestibular e conseguiu terminar o curso de engenharia civil enquanto
cumpria pena. O romance com Elize só teria acabado porque Tânia migrou
para o regime aberto, no qual o criminoso cumpre o restante da pena em
liberdade. Foi morar em Sorocaba com Saymon, já em livramento
condicional por bom comportamento. Em 2019, ela montou com o
companheiro assassino uma empresa de construção civil para cuidar de
reformas em condomínios da região.
Perto do Natal de 2020, Elize começou a namorar em Tremembé com
Tiago Cheregatte Neves, um presidiário trans de 23 anos condenado a cinco
anos e 11 meses por ter tentado matar o avô, Adão Rui Valensuela Pinto, de
71, com golpes de martelo na cabeça. Apesar de ter expressão de gênero
masculino, Tiago cumpria pena na penitenciária feminina porque correria
risco de ser rejeitado e até mesmo violentado se fosse posto na unidade
destinada aos homens. Na cadeia, o rapaz de estatura baixa e magro
chamava a atenção porque se tornava cada vez mais bonito à medida que as
fases da readequação de sexo e gênero avançavam. Ele saía esporadicamente
da casa penal e se submetia a tratamentos hormonais e sessões com
fonoaudiólogo para engrossar a voz. Quando Tiago deu o primeiro beijo em
Elize, ele apresentava avançado processo de redesignação. O rapaz nunca
escondeu da namorada o crime cometido.
Segundo disse em depoimento, Tiago tentou matar o avô porque a
vítima reclamava constantemente do fato de ele não trabalhar nem ajudar
nos afazeres domésticos. De acordo com a denúncia da família, o rapaz
estava na cozinha e o avô sentado na sala, assistindo ao primeiro capítulo da
reprise da novela Fina estampa, da TV Globo. No intervalo, o senhor
reclamou com outros parentes de como o neto era folgado dentro de casa.
Não trabalhava, acordava tarde e se recusava a lavar até o prato e os talheres
usados no almoço. Num ataque de fúria, Tiago pegou um martelo de unha
com cabo de madeira de 31 centímetros de comprimento. Chegou por trás e
sentou um golpe colossal na cabeça do avô, causando afundamento no
crânio e hemorragia. O sofá e o chão caram banhados de sangue. A mãe e
o irmão do criminoso testemunharam a cena e gritaram assustados. Com a
força da primeira martelada, o idoso foi jogado do sofá ao tapete. Mesmo
com a vítima caída e agonizando, Tiago ainda desferiu mais duas
marteladas, uma na lombar e outra na mão esquerda. Em seguida, o jovem
pegou a arma do crime, pôs na mochila e fugiu. Foi preso em agrante logo
em seguida. Adão foi socorrido pela lha e outro neto. O crime ocorreu em
23 de março de 2020 no município de Santa Bárbara D’Oeste, a 140
quilômetros de São Paulo.
A história de amor entre Elize e Tiago foi revelada pelo portal Metrópoles
e pela TV Record no dia 18 de maio de 2021. Na época, o casal negou o
romance, apesar de trocar carícias no pátio da penitenciária e dormir no
mesmo beliche. Segundo fontes, Tiago e Elize negavam veementemente o
enlace porque o rapaz namorava outra assassina de Tremembé quando
começou a se envolver com a viúva de Marcos. A presidiária preterida não
lidava bem com a rejeição do detento trans e passou a representar uma
ameaça a Elize. “Com relação ao suposto namorado de Elize, não haveria
nenhum problema se o fato fosse verdadeiro, mas não é. Essa informação
coloca em risco a sua integridade física porque ela mora com 80
reeducandas em um único galpão, sendo que o Tiago é namorado de outra
presa”, rebateu o advogado da criminosa, Luciano Santoro, em julho de 2021.
Os amores de Elize a oraram no cárcere depois de ela progredir do
regime fechado para o semiaberto, no dia 28 de junho de 2019. Ou seja, ela
deixou de cumprir pena encarcerada em celas e foi dormir no alojamento
coletivo, onde era mais fácil ertar. Na nova fase de punição, a viúva teve
direito de sair da cadeia cinco vezes por ano em datas especiais: Natal/Ano
Novo, Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais e Dia da Criança. Em cada uma
dessas saidinhas, a assassina passava sete dias em liberdade. No entanto, na
primeira vez em que os portões de Tremembé se abriram para ela ganhar a
rua, em 8 de agosto de 2019, a prisioneira preferiu não sair. O motivo seria
não ter onde car, pois tia Rose se recusou a receber a sobrinha assassina
porque tinha um lho adolescente em casa. Quando teve nova chance de
passear, no entanto, Elize não perdeu a oportunidade. Sete anos após matar
o marido, a viúva deixou a cadeia pela primeira vez. Surgiu em público
vestida com uma bata branca, calça preta e carregando uma sacola de feira
colorida, em 10 de outubro de 2019. Quem a aguardava do lado de fora era
sua advogada e el escudeira, Juliana Fincatti Santoro.
Em dia de saidinhas, as ruas próximas à penitenciária de Tremembé
cavam movimentadas. Dezenas de familiares, vendedores ambulantes,
policiais, advogados e jornalistas aglomeravam-se no local à espera das
criminosas, que saíam em grupos a partir das 8 horas. A maioria delas
passava pelo portão, mas não ia embora imediatamente. Eufóricas, elas
continuavam em frente à cadeia à espera das amigas e cumprimentando
parentes. Homens da unidade masculina também aproveitavam a saidinha
das mulheres e seguiam à entrada da cadeia feminina para xavecá-las. Tão
logo Elize atravessou o portão de Tremembé, todas as atenções se voltaram
para ela. A viúva andou pela calçada em passos curtos, livre e sorridente.
Suzane von Richthofen e Anna Carolina Jatobá, a título de comparação,
escapavam da cadeia e do assédio da imprensa correndo sinuosas pela rua,
feito ratazanas. Elize, não. Saiu acenando para colegas e fãs. Sim, ela tem fãs,
e a maioria das suas admiradoras é formada por mulheres vítimas de
relacionamentos abusivos.
Na primeira saidinha de Tremembé, Elize estava a caminho do carro de
sua advogada quando ocorreu algo inusitado em frente à cadeia. No meio do
aglomerado, uma presa começou a bater palmas timidamente,
parabenizando-a pela liberdade de sete dias. Depois de alguns minutos,
outras três detentas engrossaram o coro de palmas. Elize agradeceu pelo
carinho e continuou caminhando. Rapidamente, o aplauso contagiou as
demais pessoas. Até quem não a conhecia congratulou a assassina batendo
palmas. No momento de ela entrar no carro, praticamente todo o mundo
ovacionava a mulher que disse ter matado o marido em nome da lha. No
meio da aclamação, uma bandida empostou a voz e gritou bem alto, no meio
da rua, para todo o mundo ouvir: “Vai, Elize. Vai cuidar da vida, que você
merece!”. As palmas foram misturadas a gritos e assobios de louvor.
Em liberdade temporária, Elize cava no município de Campos do
Jordão, onde alugou uma quitinete para recomeçar a vida. Na primeira
saidinha, ela foi ao Colinas Shopping. Entrou no Luciana’s Esthetic Center,
um salão tradicional da cidade, e fez uma escova nos cabelos loiros, pagando
90 reais pelo serviço. Depois foi às compras em lojas e seguiu para São
Paulo, hospedando-se no Hotel Ibis do Morumbi, cuja diária em 2021
custava 169 reais. Fora da cadeia, obstinada, a assassina se empenhou na
reaproximação da lha. Como é impedida judicialmente de entrar em
contato com a criança, ela aceitou o convite para protagonizar a minissérie
Elize Matsunaga – Era uma vez um crime, dirigida por Eliza Capai.
Segundo a homicida, participar do programa da Net ix seria uma
chance de contar com as próprias palavras por que teve de interromper a
vida do pai da sua lha. Uma das entrevistas seria feita pela produtora
Boutique Filmes dentro da penitenciária de Tremembé. No entanto, a
família de Marcos conseguiu uma ordem judicial impedindo a gravação. Os
Matsunaga alegaram que, ao falar da lha, a esquartejadora causaria
exposição e constrangimento à menor, com 8 anos na época. Os defensores
de Elize recorreram. Usaram como contra-argumento uma entrevista
concedida pelo advogado Luiz Flávio Borges D’Urso em nome da família de
Marcos na série documental Investigação criminal, disponível em 2021 no
serviço de streaming Amazon Prime Video. No capítulo destinado ao caso
Matsunaga, D’Urso voltou a acusar Elize de matar o marido motivada por
ódio, vingança e dinheiro, e repetiu a tese de que o empresário estava vivo
no início do esquartejamento. No mesmo episódio, o promotor José Carlos
Cosenzo rea rmou o comportamento frio de Elize diante da lha: “O
esquartejamento teve detalhes fúnebres e repugnantes. Elize estava
retalhando o marido no quarto quando a lha, que estava com a babá, sentiu
fome. A funcionária também precisava se alimentar. Nessa hora, Elize parou
de cortar o marido, se lavou e foi lá car com a menina. Deu comida e amor
à criança. Esperou a babá lanchar e devolveu a nenê. Em seguida, voltou ao
quarto para terminar de retalhar o pai da sua lha”, contou o promotor no
documentário.
Por decisão própria, Elize e seus defensores não tiveram voz no
documentário da Amazon, produzido pela Medialand em 2018. “Se a família
do Marcos estivesse com interesse em proteger a criança, o advogado Luiz
Flávio Borges D’Urso não deveria ter dado entrevista ao programa
Investigação criminal acusando a minha cliente. Agora é a vez de Elize contar
a sua versão do ocorrido. Ela não pode ter esse direito negado”, argumentou
na Justiça Luciano Santoro, advogado da criminosa. Para resolver o impasse,
foi marcada uma audiência de conciliação no gabinete da juíza Sueli Zeraik
Armani, em São José dos Campos, em 10 de abril de 2019. Nesse dia, Elize e
o sogro Mitsuo Matsunaga caram frente a frente pela primeira vez desde a
prisão, havia quase sete anos. Sentados à mesma mesa, eles não se
cumprimentaram nem se encararam. Mesmo assim, a assassina ensaiou um
pedido de perdão ao pai de Marcos. Ele ngiu não ter escutado. Ela insistiu e
foi ignorada mais uma vez. Diante das negativas do patriarca dos
Matsunaga, a juíza Sueli Zeraik resolveu interceder a favor de Elize. “Os
senhores têm de trabalhar o perdão. Têm de ensinar a menina a perdoar a
mãe”, sugeriu a juíza. Irritado, Mitsuo rebateu: “Vossa Excelência fala em
perdão porque não foi Vossa Excelência que teve o lho morto e
esquartejado por uma prostituta, que depois jogou os pedaços do corpo no
mato para os cachorros comerem!”. Elize saiu da audiência com a
autorização judicial para dar entrevista dentro da penitenciária, mas sem a
clemência do sogro.
Por causa da pandemia do coronavírus, ela acabou não gravando dentro
de Tremembé. No entanto, em todas as saidinhas da cadeia, deu entrevistas
aos documentaristas. Mostrou pessoalmente o local onde desovou o corpo
do marido, caminhou pela estrada deserta de Cotia, adentrou a mata
fechada e até se deixou lmar envolta em um véu vermelho, como se
estivesse banhada de sangue. Elize cedeu à produtora um vídeo do seu
acervo pessoal mostrando a cobra Gigi matando e engolindo um rato vivo.
Nessa imagem, considerada uma das mais repugnantes do documentário, a
viúva conversa com Marcos sobre o banquete da serpente. O rato é posto
perto da cobra e o empresário pergunta se o roedor não seria muito grande
para ela engolir. “É muito pequenininho, amor, você vai ver. É que você não
viu o outro que eu dei a ela”, disse Elize ao marido no vídeo caseiro. Em
seguida, ela percebeu que o roedor urinou de tanto nervosismo. “Fez xixi o
lho da mãe. Fez lá no canto. Que raiva!”, comentou Elize. No lme, ela
mostrou-se admirada com a reação negativa das pessoas à jiboia: “Ah, Gigi!
Oh, meu Deus, como isso causou polêmica. Eu adoro animais”.
No documentário, Elize tentou explicar a sensação de ter atirado em
Marcos. A assassina encarou a câmera e pontuou: “Ainda não sei dizer que
tipo de emoção me fez apertar aquele gatilho. Estava sentindo tanta coisa:
medo, raiva, alívio de não estar louca...” No entanto, ela não revelou o
sentimento a orado no momento do esquartejamento. “Há segredos que
levarei para o túmulo”, anunciou. A viúva aproveitou o programa para
refutar mais uma vez a tese do crime planejado. Bem à vontade, ela falou:
“Não premeditei aquela situação. Agi por desespero. Aquilo aconteceu e eu
não estava esperando. Se eu tivesse premeditado, por exemplo, teria feito
algo lá no Mato Grosso, quando estivéssemos caçando. Teria dado um tiro
de 12 nele no meio da aldeia indígena. Duvido que alguém o acharia”. Doze,
no caso, era o calibre da espingarda usada por ela em caçada de animais na
selva.
Ainda no programa da Net ix, Elize falou um pouco da técnica de
esquartejar bichos. “Tem que ser num lugar apropriado. A gente tira os
órgãos que não serão usados. Lava a carne e corta. Também tem toda uma
técnica para retirar a pele. Caso você queira fazer um troféu da caça, a pele
não pode ser cortada no lugar errado. Se cortar no lugar errado, vai estragar
tudo. Eu peguei um veadinho na mata e z dele um troféu. Ele era bem
bonitinho. As pessoas cariam impactadas se o vissem. Tadinho do
bichinho. Meu objetivo não era matá-lo. Meu objetivo era comê-lo, pois sou
carnívora. Esse veadinho, em especial, a gente comeu com molho de ervas.
O lombo de veado com molho de ervas é muito bom. Eu recomendo”,
declarou, lânguida, como se estivesse num programa de culinária.
O documentário protagonizado por Elize foi uma ideia do seu advogado,
Luciano Santoro. Ele tentou emplacar na Net ix um seriado ccional
contando a história da sua cliente. A assassina seria interpretada por uma
atriz. O canal não aceitou e fez uma contraproposta: que Elize se sentasse
diante de uma câmera e contasse tudo o que aconteceu. Ela topou, mas
impôs como condição que a família de Marcos Matsunaga não tivesse voz
no documentário. Seu desejo não foi aceito. Elize teria recebido um cachê de
1 milhão de reais. No entanto, a maior parte desse dinheiro teria cado com
seus advogados para quitar dívidas com honorários nas causas cíveis. No
programa, Elize disse que só estava botando a cara na TV por causa da lha.
A advogada da família Matsunaga, Patrícia Kaddissi, aproveitou a sua
participação no programa para refutar a assassina. “Se realmente tivesse
pensado na lha, ela não teria feito o que ela fez. E sequer aceitaria
participar desse documentário”, rebateu Kaddissi.
Como era de se esperar, no último dos quatro episódios, Elize pediu
perdão à lha, com 10 anos na época. “Gostaria de falar a ela que não tem
um dia da minha vida que eu não me sinta culpada pelo que z. Se ela não
conseguir me perdoar, tudo bem. Irei respeitá-la”, desabafou, vestida de
preto e com as unhas pintadas de vermelho.
Desde a reconstituição do crime, em 6 de junho de 2012, Elize não viu
mais a lha. Nem por fotogra as. Na última vez em que esteve com ela, a
criança tinha 1 ano e 2 meses. Em julho de 2021, a garota já era pré-
adolescente e a mãe não sabia como era a sua sionomia. Logo depois do
crime, a menina cou por três meses na cobertura do casal, em São Paulo,
sob os cuidados da tia Rose e de uma babá. Nesse período, uma questão
importante foi resolvida pela família de Marcos. Os bens da viúva e do
marido falecido foram catalogados. Deserdada pelo assassinato do marido,
Elize perdeu logo de cara a cobertura doada pelo empresário e a apólice no
valor de 600 mil reais do seguro de vida deixado por ele. Mas nem por isso a
viúva saiu do casamento de mãos abanando. Elize cou com metade da
adega de luxo do apartamento, avaliada na época em 3 milhões de reais. Isso
porque o casamento deles era em regime de comunhão parcial de bens, ou
seja, ela tinha direito à metade do patrimônio adquirido durante o
casamento. No entanto, como boa parte do vinho havia sido
contrabandeada, o valor da coleção de bebidas nobres despencou para 1,8
milhão de reais. Houve um acordo na hora de dividir as garrafas. A família
de Marcos comprou a parte dela por 900 mil reais. Esse acerto ocorreu entre
os advogados da assassina e os representantes da família de Marcos, em
segredo, justamente por causa da sonegação de tributos. Com o dinheiro,
Elize pagou outra parte dos honorários dos advogados e guardou o restante
para recomeçar a vida após obter a liberdade. Ela também cou com joias e
a Pajero TR-4 conduzida na desova do corpo. Durante 10 anos, o carro
esteve na garagem do prédio onde o casal morava. Em 2020, ela gastou 15
mil reais para quitar o IPVA atrasado do veículo. Em 2022, o carro tinha
10.000 quilômetros rodados e foi vendido por 50 mil reais.
Como Marcos morreu antes da concretização da venda da Yoki, os 100
milhões de reais prometidos a ele verbalmente pelos pais não chegaram a ser
depositados em sua conta corrente. Logo, o valor cou fora do inventário.
Em bancos, as contas de Marcos tinham cerca de 2 milhões de reais após a
sua morte. O dinheiro estava distribuído em duas agências do Bradesco e
Itaú Personnalité. No exterior, ele teria cerca de 4 milhões de dólares. Os
valores depositados em solo brasileiro foram bloqueados pela Justiça e serão
divididos em partes iguais entre as suas duas lhas, assim como as duas
coberturas onde o casal morava, no bairro da Vila Leopoldina, em São
Paulo. Insatisfeita com a divisão do espólio do marido, em 2021, Elize ainda
brigava em instâncias superiores da Justiça para tentar recuperar pelo menos
um trocado e quiçá a cobertura que um dia esteve em seu nome.
A última prostituta com quem Marcos se relacionou, Nathalia Vila Real
Lima, de 24 anos no ano do crime, também tentou abocanhar um naco da
herança do executivo da Yoki. Pivô da discussão entre Elize e o empresário,
Nathalia contratou o advogado Roberto Parentoni, o mesmo defensor dos
interesses do bandido Marcola, chefão do Primeiro Comando da Capital
(PCC). Segundo Parentoni, sua cliente não era mais garota de programa na
época do assassinato e mantinha um relacionamento estável com Marcos
quando ele morreu. À Justiça, a garota de programa garantiu ter conhecido o
empresário numa feira de vinhos e não pelo site MClass. “O Marcos tinha
dado à minha cliente 27 mil reais porque eles tinham planos de morar
juntos”, contou o advogado em entrevista à revista Veja, em junho de 2012.
Ao programa Fantástico, da TV Globo, Nathalia sustentou em janeiro de
2013 ser apenas amiga do empresário. “Vamos dizer que tínhamos uma
amizade colorida. Qual mulher não gosta de um homem agradável? O
Marcos era uma pessoa muito romântica, me tratava superbem. Muito bem
mesmo, como ninguém nunca me tratou. Tínhamos planos de morar nos
Estados Unidos”, resumiu a moça, que saiu de cena sem ver a cor do
dinheiro do “amigo”.

* * *
Mesmo depois de julgada e condenada por ter matado e esquartejado o
marido, Elize nunca se livrou das barras do tribunal. Em julho de 2021, ela
brigava na Vara da Infância para não perder a lha de nitivamente para a
família do marido que matou. Essa novela à parte começou logo depois de
ela dar cabo de Marcos, ainda em 2012. Um mês após o crime, dona Misako,
mãe da vítima, apareceu no apartamento para pegar as coisas do lho e
tomar providências jurídicas sobre os bens deixados por Marcos, além de
de nir o destino da lha de Elize. A menina havia cado sob os cuidados da
tia Rose, hospedada no apartamento do empresário. Logo de cara, Rose se
pronti cou a levar a criança para morar em Chopinzinho. A matriarca dos
Matsunaga foi simpática, agradeceu a boa vontade da senhora, mas recusou
a oferta. No entanto, a mãe de Marcos autorizou a tia de Elize a levar So a e
Fiona, as cadelas das raças poodle e shih-tzu, compradas pelo casal pouco
antes de a bebê nascer. “Por enquanto, a criança ca. Mas esses dois
cachorros, eu dispenso”, anunciou Misako. Em 2021, Rose ainda mantinha
So a em casa, no Paraná. Fiona foi deixada com Eliana, meia-irmã de Elize,
e vendida para estranhos na sequência.
Segundo relato de Rose, a princípio, Misako olhava a lha de Elize com
descon ança e nem sequer a pegava no colo. O fato de Marcos ter conhecido
a esposa por meio de um site de prostituição levantou suspeitas da família
dele sobre a paternidade da criança. Para esclarecer a dúvida, os Matsunaga
contrataram o laboratório Gene, com sede em Belo Horizonte, e realizaram
uma investigação de vínculo genético por DNA para saber se a menina era
ou não neta de Mitsuo e Misako. Renomado, o Gene foi o primeiro
laboratório da América Latina a realizar perícias em DNA. A coleta de
células bucais da bebê ocorreu no dia 15 de agosto de 2012. A amostra foi
comparada com material biológico dos avós e o resultado do
sequenciamento genético comprovou na semana seguinte que a garotinha
era, de fato, lha de Marcos. Depois dessa certeza, ela foi levada para a
mansão dos Matsunaga. Rose regressou ao Paraná. Na sequência, os pais de
Marcos conseguiram na Justiça a guarda provisória da criança.
Antes de a menina completar um mês na casa dos avós, tia Rose pediu
aos Matsunaga uma visita à mansão, pois estava com saudade da sobrinha-
neta. A muito contragosto, Mitsuo e Misako autorizaram. Segundo relato do
pai de Marcos, o encontro das duas foi um desastre. A criança teria aberto
um berreiro tão logo viu Rose. “Era um choro de desespero, como se
houvesse um trauma”, contou o pai de Marcos, em junho de 2021. Para
tentar acalmá-la, o empresário pediu ao motorista que desse uma volta com
as duas pelas ruas do bairro. No carro, a choradeira só fez aumentar. A
menina apenas teria se calado após ser tirada dos braços da tia de Elize,
segundo contou o empresário. Em razão da reação desesperadora da neta,
Mitsuo e Misako decidiram proibir Rose de ver a criança de forma
de nitiva. “Eu cheguei a entrar em contato algumas vezes querendo fazer
visitas. No início, eles diziam para ligar depois e eu cava telefonando e
nada. Por último, eles nem me atendiam. Assim, a menina foi totalmente
afastada de mim”, contou a tia de Elize, emocionada, em dezembro de 2020.
Rose con rma o choro da menina em sua última visita, mas refuta que o
motivo do pranto tenha sido o seu colo.
Na mansão dos avós, ao falar as primeiras palavras, por volta dos 2 anos,
a lha de Elize começou a chamar o avô de pai, e a avó de mãe. Em família, a
garota fez várias viagens a Londres e Tóquio. Criada em uma edícula de luxo
e cercada de babás e empregadas, ela foi blindada de informações
envolvendo o assassinato do pai pela mãe. No entanto, quando a criança
tinha 8 anos, um coleguinha da escola a chamou num canto e contou sobre a
tragédia, pontuando que Elize, sua mãe, era uma assassina fria e cruel, pois
havia decapitado Marcos, o seu pai. A menina chegou em casa chorando e
cheia de questionamentos. Para protegê-la, os avós a mudaram de escola e
zeram a nova matrícula usando outro nome social, mesmo sem ter uma
autorização judicial. Em audiências na Vara da Infância de São Paulo,
Mitsuo nunca escondeu a vontade de levar a neta para morar
de nitivamente fora do país e, assim, impedir seu acesso aos detalhes da
história triste envolvendo o passado dos pais, principalmente o fato de a mãe
ter sido garota de programa. “Estamos criando a menina para ela ser livre.
Ao completar 18 anos, ela vai receber a sua herança e poderá encontrar
quem quiser e morar no país que bem entender, pois minha lha estuda
vários idiomas, entre eles inglês, japonês, espanhol e italiano, além do
português. Desde que descobriu na escola coisas do seu passado,
providenciamos acompanhamento com psicólogos e conversamos muito
com ela. Ninguém esconde nada sobre sua história. Nem tem como fazer
isso em tempos de internet e redes sociais. Ela já sabe o que a mãe fez. [...]
Ela realmente me chama de pai e chama a minha esposa de mãe. Mas
quando ela nos apresenta a um coleguinha da escola, ela fala ‘ele é meu avô’.
Tudo o que fazemos é protegê-la”, contou Mitsuo em junho de 2021.
Para cortar completamente o vínculo jurídico entre mãe e lha, o casal
Matsunaga entrou com uma ação de destituição do poder familiar em
desfavor de Elize logo após o crime. Se os avós obtiverem êxito no processo,
o nome da assassina será excluído da certidão de nascimento da lha. A
criança teria um novo documento e o campo destinado ao nome da mãe
caria em branco. “Curioso é que os avós pedem a destituição familiar, mas
não solicitaram a tutela ou a adoção da neta, pois a guarda provisória dela
será revogada no nal do processo. Com isso, a criança cará sem um
responsável legalmente designado para cuidar dela até a
maioridade”, observou a advogada de Elize, Juliana Fincatti Santoro. “Essa
declaração não faz o menor sentido, pois o próprio código civil, na
impossibilidade de exercício da guarda pelos pais, prioriza que ela seja
exercida pelos avós. Então, mesmo que a guarda não tivesse sido requerida,
há previsão legal para sua atribuição aos avós”, rebateu a advogada Patrícia
Kaddissi.
Outra estratégia dos pais de Marcos para manter Elize longe da lha foi
di cultar a sua saída da penitenciária de Tremembé. A investida dos
Matsunaga começou quando a presidiária pediu a progressão do regime
fechado ao semiaberto, em 2019; e no ano seguinte, do semiaberto ao
aberto. Antes de liberá-la às saidinhas esporádicas previstas no regime
semiaberto, a juíza Sueli Zeraik Armani determinou a aplicação do exame
criminológico juntamente com o temido teste de Rorschach, uma análise
projetiva conhecida como teste do borrão de tinta. A viúva já havia passado
pelo teste um ano antes, a pedido do juiz Juscelino Batista, da Vara da
Infância e da Juventude do Fórum Regional de Pinheiros, no bojo do
processo de destituição de poder familiar movido contra ela pela família de
Marcos. Para evitar a aplicação de um novo exame na assassina, os
resultados do seu teste projetivo foram enviados da vara cível à criminal.
Aplicado por psicólogos dentro da penitenciária, o Rorschach é
composto por dez pranchas brancas com desenhos abstratos, sendo um
acinzentado, dois nas cores preta e vermelha, três multicoloridos e quatro
com manchas totalmente pretas. O aplicador apresenta uma gura por vez e
o paciente vai dizendo tudo o que vê nos borrões. Quanto mais objetos ele
enxergar, melhor será o diagnóstico. Em seguida, o especialista analisa as
respostas, prepara um laudo e envia à Justiça. Se o psicólogo for e ciente, ele
descreverá com detalhes a organização básica da personalidade do
criminoso, incluindo características de afetividade, sexualidade, vida
interior, recursos mentais, energia psíquica, traços gerais e particulares do
estado intelectual, além dos elementos secretos sobre o caráter que ele não
deseja trazer à luz. Polêmico, o Rorschach não é uma unanimidade, algo
raro de ocorrer num campo complexo como a psicologia, mas o método é
amplamente adotado no mundo todo. No Brasil, o teste é reconhecido pelo
Conselho Federal de Psicologia (CFP) e já foi obrigatório na admissão de
delegados no quadro da Polícia Federal. A Justiça de São Paulo determina a
aplicação desse exame somente em condenados por crimes sexuais,
assassinos violentos que mataram membros da própria família, pedó los e
serial killers.
Antes de ser submetida ao Rorschach em juízo, Elize realizou o teste
com uma psicóloga particular a pedido de sua advogada. Essa prévia do
exame não é recomendada por especialistas porque caracteriza “cola”. Os
defensores de Elize contrataram a psicóloga Jaci Fer la para aplicar o exame
antecipadamente. Nesse ensaio, a especialista concluiu que a criminosa
“apresenta totais condições e plenas habilidades para desempenhar o papel
de mãe”. Segundo a pro ssional, “não há justi cativa nos aspectos
psicossociais dela para a perda do poder familiar”. Jaci também escreveu em
letras maiúsculas que a paciente não é psicopata, apesar de ter esquartejado
com requintes o corpo do marido: “Evidencia-se o descarte de hipótese
psicopática, revelando que ela compreende as consequências que seus atos
tiveram na sua vida e na vida de terceiros, gerando inclusive um quadro
profundo de culpa”. Por causa dos resultados favoráveis, o parecer de Jaci foi
anexado ao processo de execução penal de Elize e a especialista foi
designada por seus advogados para acompanhar a aplicação do teste o cial,
feito por uma perita nomeada pela Justiça.
No dia 23 de outubro de 2017, por determinação judicial, a psicóloga
Claudia Lúcia Callegari Teixeira aplicou o Rorschach na assassina. O laudo
de 25 páginas com o resultado consta do processo de execução penal (nº
0001578-97.2017.8.26.0520) de Elize, que tramita eletronicamente na
Comarca de São José dos Campos. Os autos estão em segredo de Justiça
desde 27 de fevereiro de 2020, conforme despacho da juíza Sueli Zeraik
Armani na folha de número 767. Antes dessa data, porém, era possível
consultá-lo para ns jornalísticos. Em algumas imagens com borrões de
tinta, Elize teria visto membros humanos esquartejados e inúmeros animais
selvagens, como alces, javalis e cobras, os mesmos presentes em seus
pesadelos noturnos.
De acordo com o laudo de Rorschach assinado por Cláudia, Elize teria
diagnóstico de transtorno depressivo, desconforto emocional e tendência a
isolamento. “O protocolo indica uma pessoa com muitos traços encontrados
normalmente em indivíduos com transtorno afetivo, mas também pode
mostrar que a sua organização psicológica a torna mais vulnerável do que
outras pessoas para sofrer alterações bruscas do estado de ânimo. [...] A
quantidade de desconforto emocional em Elize é seis vezes maior do que o
desconforto de tipo ideacional [relativo à ideia], níveis estes que supõem um
aumento de dor e sofrimento psíquicos, pela presença de afetos irritadiços
ou perturbadores que agem fora do controle voluntário da avaliada. Além
disso, seu mal-estar é crônico”, escreveu a psicóloga no laudo.
Segundo a perita, Elize é narcisista, tem autoestima baixa, estrutura
psíquica infantil e é imatura. “Chamam a atenção duas respostas que
apresentam uma mistura de prazer e dor, tanto situacional quanto crônica,
gerando uma experiência emocional confusa e ambivalente, levando a uma
di culdade para manter a coerência das relações afetivas. [...] Sua autocrítica
negativa produz sentimentos de insatisfação e tristeza que aumentam o seu
sofrimento psíquico. Como forma de defesa diante desta profunda
desvalorização, Elize apresenta níveis maiores de narcisismo”, descreveu a
perita nomeada pela Justiça.
Depois de aplicar o teste de Rorschach em Elize, a psicóloga Cláudia
também não viu nela conduta de psicopata. “Ela pode superestimar a valia
pessoal como forma de autoglori cação. Pessoas com esse per l geralmente
abusam da racionalização, atuação e negação como forma de compensar
problemas reais e a baixa autoestima. A presença desta variável com
controles fracos e uma história de vida caracterizada por falhas ambientais
contribuem para uma hipótese de conduta antissocial. No entanto, outras
variáveis do teste indicam que tal tendência não é su ciente para
caracterizar um quadro de psicopatia”, assinalou a psicóloga com base nos
borrões de tinta. Segundo Cláudia apurou no teste projetivo, Elize estaria
arrependida de ter matado e esquartejado o marido. Em determinado
momento do exame criminológico, a Justiça solicita à psicóloga: “Informe,
senhora perita, se a investigada [Elize] apresenta evidências de sentimento
de culpa ou remorso pelo crime do qual é ré confessa”. Cláudia foi explícita
ao responder “sim”.
O resultado favorável nos dois primeiros testes de Rorschach e a
iminência de pôr os pés para fora da cadeia de forma de nitiva deixaram
Elize ainda mais determinada a tentar uma reaproximação com a lha. No
entanto, os pais de Marcos contra-atacaram, com receio de perderem para a
esquartejadora a neta que eles chamam de lha. Mitsuo e Misako
contrataram a psicóloga Maria Cecília de Vilhena Moraes, credenciaram a
pro ssional na Justiça de São Paulo como assistente técnica e pediram à
pro ssional uma revisão do teste aplicado em Elize pela perita Cláudia
Callegari Teixeira. A ideia dos pais de Marcos era obter uma segunda
opinião e mostrar ao juiz o perigo de deixar a mãe criminosa se reaproximar
da lha.
A psicóloga Marcia Cecília acessou todas as respostas dadas por Elize no
teste anterior e compôs um novo per l psicológico da assassina. Em outra
frente, a família de Marcos também encomendou ao psiquiatra Guido
Palomba um parecer psiquiátrico-forense sobre a condenada. O médico é
uma das maiores autoridades em mentes criminosas do país. No dia 20 de
junho de 2021, o jornal O Globo publicou os novos laudos de Rorschach de
Elize e o parecer de Palomba. Os três documentos estão anexados à ação de
destituição do poder familiar movida pela família Matsunaga em desfavor
da assassina. Já as novas leituras do teste do borrão, consideradas indiretas
porque não foram pedidas pela Justiça, acabaram juntadas aos autos da
execução penal de Elize e viraram alvo de uma batalha judicial à parte.
Para surpresa de Elize e de seus advogados, os prontuários mais recentes
a descrevem como psicopata. Em seu laudo, a psicóloga Maria Cecília
escreveu no dia 3 setembro de 2018 sobre Elize: “O acentuado desejo de
contato observado nas mulheres psicopatas pode, à primeira vista, dar a
impressão de que o interesse pelos outros e seu declarado amor pelos lhos
evidencia a capacidade de apego e de empatia em relação às outras pessoas.
Entretanto, é necessário observar dados de outras fontes con rmando essa
impressão. No caso de Elize, caberia perguntar: Quais relações signi cativas
se sustentaram? Quantas visitas ela recebeu durante o período de
encarceramento? O quanto se dispõe a se sacri car por amor à lha ou
sequer considerar o impacto que a revelação de sua existência terá na
criança? [...] A tônica de Elize é a da injustiça: não é justo que a lha
desconheça sua existência; não é justo que sua sogra assuma o papel de mãe
que por direito é seu. Coloca-se na posição de vítima sem considerar a
responsabilidade decorrente dos atos cometidos por ela. [...] Em alguns
casos, a mulher psicopata poderá usar a separação dos lhos para conquistar
a simpatia dos outros e atrair a atenção para si”.
A psicóloga Maria Cecília também refutou a conclusão de Cláudia
referente ao arrependimento de Elize em ter matado o marido. Essa questão
é importante porque a Justiça geralmente só promove o detento a um regime
mais brando de prisão se ele estiver arrependido do crime cometido. No
entanto, o arrependimento dos presos violentos e perigosos não é aferido
somente com perguntas e respostas. Tem de ser comprovado por meio do
teste de Rorschach. De acordo com o laudo de Maria Cecília, Elize se
arrependeu de ter desmembrado o corpo de Marcos, mas não de ter dado
um tiro em sua cabeça. “Essa interpretação é corroborada por dados da
entrevista de Elize: o arrependimento dela se limita ao esquartejamento pela
comoção causada na opinião pública e não pelo assassinato em si. Conforme
comentou na entrevista realizada pela senhora perita [Cláudia], ao imaginar
uma regressão no tempo, Elize não cogitou retornar a algum momento
anterior ao assassinato, mas anterior ao esquartejamento. Ou seja, os efeitos
negativos do crime em sua vida não são avaliados com base numa noção de
certo/errado, mas sim pelo impacto que o ato provocou na sociedade”,
analisou a psicóloga em seu parecer.
Formada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a
psicóloga Maria Cecília também era credenciada pela Justiça de São Paulo
para aplicar Rorschach em criminosos de Tremembé. Em seu parecer, a
pro ssional desabonou o trabalho de Cláudia feito em Elize, atribuindo-lhe
termos como “avaliação equivocada”, “pontos questionáveis”, “informações
simplistas” e “má qualidade”. As expressões negativas são usadas
principalmente quando Cláudia concluiu que Elize não tem psicopatia. “Ao
discutir autopercepção, a pro ssional elenca uma série de variáveis em Elize
que apontam para conduta antissocial: autoimagem in ada, intenso uso do
intelecto, propensão à atuação, controles fracos, distância emocional e física
das outras pessoas e pouca abertura para formação de vínculos
interpessoais, histórico de falhas ambientais (pai que abandona, mãe
ausente) que promoveram o narcisismo. No laudo, no entanto, não são
apresentadas evidências empíricas que fundamentam a a rmação de que tais
dados não sejam su cientes para indicar psicopatia”, criticou Maria Cecília.
A defesa de Elize imputou a Maria Cecília a adulteração de algumas
respostas dadas pela sua cliente durante a aplicação do teste, no que se refere
à prancha de número 10, representada por uma série de animais marinhos.
Em determinado momento, Elize disse ter visto no borrão de tinta um
“camarão”, mas a psicóloga atribuiu, equivocadamente, a palavra “lagosta”.
Pode parecer bobagem, mas um erro desses compromete o diagnóstico
nal”, explicou Juliana Fincatti Santoro, defensora da criminosa.
Na psicologia de Tremembé, pau que bate em Chico não acerta
Francisco. Nomeada pela Justiça em 2018, a psicóloga Maria Cecília aplicou
dentro da penitenciária um teste de Rorschach em Suzane von Richthofen,
condenada a 39 anos de cadeia por ter mandado matar os pais a pauladas
em 2002. Relembrando a crueldade da moça: ela cou sentada na sala
ouvindo as porretadas que o namorado e o cunhado – Daniel e Cristian
Cravinhos – sentavam na cabeça dos seus pais no piso superior. Uma hora
depois do duplo homicídio, Suzane estava na suíte presidencial de um motel
transando com o namorado assassino. Dois dias depois, pela manhã, a
estudante enterrou os pais vertendo lágrimas. Na tarde do mesmo dia, ela
fez um churrasco em casa para comemorar com amigos o seu aniversário de
19 anos. Suzane confessou uma semana depois ter assassinado os pais
porque vivia numa prisão e queria se libertar para encontrar o amor ao lado
de Daniel. No laudo de Rorschach com dez páginas sobre Suzane assinado
por Maria Cecília constava uma série de adjetivos; entre eles, vazia, imatura,
impessoal, egocêntrica, manipuladora e narcisista, mas sequer era
mencionada pelo menos suspeita de psicopatia. Já no laudo de 50 páginas
sobre Elize, a mesma psicóloga escreveu 19 vezes o termo “psicopata” ou
palavras derivadas.
A outra psicóloga contratada pelos pais de Marcos Matsunaga para
analisar o per l de Elize foi Ana Cristina Resende, presidente da Associação
Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos e proprietária do Instituto
Goiano de Avaliação Psicológica (IAGP). A pro ssional também não aplicou
o teste na criminosa. Assim como Maria Cecília, ela fez apenas uma releitura
das respostas dadas por Elize quando viu as dez pranchas com borrão de
tinta apresentadas por Cláudia. Segundo Ana Cristina, Elize tinha traços de
psicopatia. Em determinado trecho do seu parecer, a pro ssional do IAGP
escreveu: “A mulher psicopata não é um tipo de pessoa tão insensível,
delinquente ou predisposta a cometer agressões físicas quanto o homem
psicopata. Ela tende a se interessar mais pelo outro, embora não
genuinamente. Utiliza estratégia de manipulação e exploração do outro.
Mantém comportamentos de promiscuidade sexual, de mentira elaborada e
de estilo de vida parasitário. Assim, obtém benefícios nanceiros e sociais.
Além disso, a agressão da mulher psicopata é mais voltada para as pessoas
próximas (familiares, amigos e conhecidos) e mais visível por meio do
ciúme, do medo de abandono, da agressão verbal e da auto agelação”.
Nenhuma das pro ssionais envolvidas nos testes projetivos feitos em
Elize cobrava barato para construir o per l psicológico de assassinos. Em
2021, Maria Cecília exigia 4 mil reais pela aplicação do teste de Rorschach e
produção de documentos alternativos de bandidos. Cláudia, sua concorrente
e desafeta, cobra mais. O trabalho de revisar um laudo de outra pro ssional
cava em 5,5 mil reais em junho de 2021. Já uma aplicação do teste com
produção do parecer custava em seu consultório a bagatela de 12 mil reais.
Nesse valor estão inclusas possíveis contestações feitas por outros
especialistas. “É um teste muito caro porque tem poucos pro ssionais
capacitados para tal”, justi cou Cláudia a um advogado. Em julho de 2021, a
psicóloga Ana Resende, do IGAP, pedia 15 mil reais para contestar um laudo
de Rorschach de outra pro ssional. Jaci Fer la, a pro ssional contratada
pelos defensores de Elize, embolsou 18 mil reais para submetê-la ao teste em
2017.
Com uma tabela mais elevada comparada à das psicólogas e também
mais categórico, o psiquiatra forense Guido Palomba atribuiu a Elize
personalidade antissocial com traços de psicopatia. Um parecer do
especialista custava cerca de 40 mil reais em 2014, quando assinou o
documento sobre o per l da mulher que esquartejou o marido. A conclusão
de que ela é psicopata veio principalmente da forma como a criminosa se
comportou nas duas semanas entre ter matado e esquartejado o marido e
confessar o crime. “Ela manteve-se calma, enviou e-mails se passando pela
vítima, consolou os pais dele, chorou feito mulher traída e abandonada, foi
ao shopping fazer compras, escolheu cor de álbum de fotogra a... Foi fria o
tempo todo”, ressaltou Palomba no seu parecer de 47 páginas. Em outro
trecho, o psiquiatra rea rmou a psicopatia da assassina com base na decisão
tomada por ela em cortar o corpo do marido após executá-lo. “Para agir
dessa forma, obrigatoriamente a pessoa tem de ser fria. Em outras palavras,
sem ressonância afetiva com o próximo, uma vez que a ação de
esquartejamento pressupõe a ausência de sentimentos altruístas. Isso porque
o ato em si é deveras violento e chocante. Se Elize tivesse um mínimo de
sentimento superior de piedade e de compaixão próprios do altruísta, o
esquartejamento não chegaria a ocorrer. Se chegasse, seria a duras penas
para ela, pois o seu psiquismo pagaria um preço muito alto. Nenhum ser
humano mentalmente equilibrado deixa de se chocar ao ver uma
carni cina”, escreveu Palomba.
Em julho de 2021, todos os documentos traçando o per l psicológico de
Elize assinados sob encomenda encontravam-se sub judice. “Eu não vejo na
minha cliente uma psicopata. Nem acho que ela tenha algum transtorno
psicológico sério. Eu vejo nela uma caçadora que, desesperada, precisava
tirar aquele corpo de dentro do apartamento. [...] Além do mais, todos esses
pareceres indiretos foram contestados. O médico Guido Palomba e a
psicóloga Ana Cristina Resende nunca tiveram contato com Elize e
elaboraram documentos particulares sob encomenda da família de Marcos e
sem autorização, concluindo pelo equivocado diagnóstico de psicopatia. E a
Justiça já reconheceu que tais pareceres não têm valor de perícia. Só estão no
processo na condição de documentos de apoio do conjunto probatório”,
declarou Juliana Santoro.
Independentemente de laudos, perícias e pareceres, os pais de Marcos
anexaram um documento no processo de execução penal de Elize falando
das suas impressões sobre a nora assassina: “Em nenhum momento ela
demonstrou ter passado mal nas seis horas em que esteve trancada no
quarto esquartejando o marido. Ela nunca demonstrou remorso ou culpa
pela brutalidade do crime. [...] Elize é sedutora a olho nu. Possui
personalidade calma, de dócil feição, educada, gentil e sempre se mantém
centrada em situações de pressão e ameaça. [...] Sempre foi adepta de
adrenalina, como vasta coleção de armas de fogo, prática de caçar animais
selvagens, mantinha uma cobra como animal de estimação e fazia turismo
em aldeias indígenas”.
Em 2012, a psicóloga Neusa Vaz Márcia já havia diagnosticado em Elize
comportamento análogo à psicopatia. A pro ssional atendia Elize e o
marido em terapia de casal, e depois recebeu a assassina sozinha no
consultório. Dois dos atendimentos feitos pela psicóloga foram logo após o
crime. “Elize não tinha consciência pesada nem demonstrava
arrependimento pelo ato cometido. Hipótese diagnóstica: transtorno de
personalidade dissocial, também conhecida como psicopatia”, declarou
Neusa. O Ministério Público arrolou a psicóloga para depor no julgamento
da viúva, mas a defesa da esquartejadora conseguiu impedir, alegando
violação de sigilo pro ssional.
Enquanto psicólogos debatem se Elize é ou não psicopata, ela reclama de
saudade da lha. Longe dela, a mãe presidiária recorreu às cartas para
alcançá-la. No dia 28 de fevereiro de 2016, nove meses antes de ser
condenada e a 38 dias do aniversário da menina, ela escreveu uma carta na
qual pede perdão e diz desesperadamente esperar pela chance de explicar
pessoalmente por que teve de matar o marido e esquartejá-lo:
Minha lha,
Daqui a exatos 38 dias você fará 5 aninhos. Imagino quantas
descobertas você fez nesse tempo, quantas palavras aprendeu, quantos
desa os enfrentou e venceu, mesmo tão pequena e tão frágil. O seu
nome signi ca a mulher mais linda de Esparta, e você, com certeza, é a
menina mais linda do mundo. Fecho os olhos e imagino agora como
está seu rostinho, seu sorriso… Mágico… daqueles que nos faz bater a
poeira e esquecer as feridas.
Hoje faz três anos, nove meses e quatro dias que não a vejo, lha
querida. Mas todos os dias te envio por pensamento todo amor que
uma mãe pode sentir e todo pedido de perdão. Desejo que você se torne
uma mulher incrível e forte. Aliás, não só desejo como tenho certeza
que você irá superar todas as experiências difíceis que a vida nos
impõe.
Se pudesse te dizer algo hoje, olhando nos seus olhinhos, eu diria:
Te amo de uma forma que nunca imaginei amar. É um amor
incondicional. E te agradeço por me mostrar o que é sentir isso tudo.
Diria que você mudou minha vida, trouxe luz, conforto no coração e a
certeza de que Deus existe.
Enfrentaria qualquer coisa para ver seu sorriso novamente, para te
ver em paz, para ouvir pelo menos uma vez a palavra mãe, tão curta,
mas que faz meu coração tremer só de imaginar.
Como há tempo para tudo, procurei o tempo para minhas palavras serem
eternas e encontrei esse tempo aqui. Sei que essas palavras não são capazes de
transmitir o que eu sinto de forma plena, mas toda energia que posso enviar
com elas está aqui. Acredite!
Mesmo não estando agora ao seu lado, lha, quero que saiba que você tem
uma mãe que te ama muito e que respeitará suas escolhas. Um dia, se você
quiser, conversaremos sobre tudo o que houve, a situação lamentável e
infelizmente irreversível que nos afastou sicamente. Apenas sicamente, pois
meu coração está contigo, com a criança que me ensinou verdadeiramente o
que é amor.
Mesmo que você não me perdoe, lha querida, não esqueça que te amarei
além da vida. Porque esse amor não vem dos olhos, vem de Deus.
De sua mãe, Elize
Depois de escrever cartas implorando perdão à lha, Elize aperfeiçoou
na cadeia a prática de Ho’oponopono, uma técnica havaiana antiga voltada à
paz interior, ao amor, ao perdão, à gratidão e à cura de mágoas e
sentimentos negativos. Ela já havia feito a meditação havaiana para conceder
perdão à mãe e ao padrasto abusador. Motivada por esse tipo de autoajuda,
Elize escreveu uma carta e enviou a dona Misako, suplicando misericórdia.
A remetente queria da destinatária perdão por ter matado o lho dela na
calada da noite com um tiro na cabeça. Almejava perdão por ter
esquartejado o corpo dele em sete pedaços e depois embalado em sacos de
lixo biodegradáveis. Desejava perdão por ter feito a desova na beira de uma
estrada de terra, onde foi devorado por urubus e cachorros. A matriarca da
família Matsunaga não acreditou quando a mensagem de Elize chegou a sua
casa, escrita de próprio punho numa folha de papel ofício. Misako cou tão
chocada com a audácia da nora assassina que rasgou a carta repetidamente
até não conseguir mais picotar o papel.
Ignorada pela família de Marcos e longe da lha, Elize começou a ser
perseguida pelos fantasmas do passado. Orientada por uma assistente social
de Tremembé, ela começou a pôr no papel suas memórias sobre o crime
para tentar exorcizá-lo. Pretendia usar as anotações em um livro
autobiográ co. Sempre que despertava angustiada no meio da noite, a
criminosa pegava um caderno, descrevia o pesadelo e voltava a dormir.
Certa madrugada, todas as presas do semiaberto estavam entregues ao sono.
Um temporal desabou sobre a penitenciária. A luz havia sido apagada às 22
horas.
Inquieta, a viúva pegou o caderno e começou a anotar algumas
lembranças da fatídica noite em que matou o marido. Recordou-se dos
detalhes mais perturbadores, como o barulho catatônico provocado pelos
estalos da lâmina a ada passando entre os ossos da vítima. Elize adormeceu
ouvindo internamente um som de assombração. Quando seus olhos se
abriram, a chuva forte continuava molhando a madrugada. Raios e trovões
cortavam o céu escuro. Mesmo sob uma tempestade assustadora, ela se
encontrava deitada na pérgola da sua piscina redonda de água aquecida.
Aquele era o lugar mais aconchegante da megacobertura de luxo. A jovem
vestia roupas leves e transparentes e bebia vinho numa daquelas taças
enormes. Em instantes, surgiu uma revoada de urubus selvagens nos ares.
Os pássaros planavam em círculos sobre o apartamento dúplex iluminados
por relâmpagos. Ousados, eles pousaram um a um na mureta da cobertura e
no telhado do prédio. Elize levantou-se eufórica com a visita das aves de
rapina e correu para dentro de casa chamando por Marcos. Ela acreditou
que, junto com o marido caçador, iria abater animais silvestres usando os
ri es guardados num cômodo do apartamento. Apressada, atravessou a
porta de vidro de acesso à sala. De repente, tropeçou em algo mole, caiu e
bateu a cabeça fortemente na quina da parede. Um raio violento fez toda a
luz da cobertura se apagar, deixando o ambiente medonho. Ao olhar para o
lado, Elize se deu conta de que havia tropeçado em Gigi. Irritada, a cobra já
não era mais dócil como nos velhos tempos. O réptil se aproximou
lentamente e deu um bote, enroscando-se pelo corpo ensopado de sua dona.
Imobilizada pela serpente, a mulher começou a agonizar com falta de ar. A
jiboia abriu a bocarra para engolir a sua presa lentamente pela cabeça. Um
comando de voz fez a cobra parar. Depois de recuperar o fôlego, Elize
percebeu ter sido salva por Marcos.
O empresário vestia apenas uma cueca boxer branca e segurava uma
submetralhadora em sua mão direita. Elize correu para abraçá-lo, mas ele
recuou. A escuridão a impedia de ver o marido com nitidez. O ash de um
relâmpago iluminou parcialmente o corpo do empresário por alguns
segundos. Ela soltou um grito de pavor. Marcos estava com a pele
esverdeada, todo sujo de lama e desmembrado em sete pedaços. O braço
esquerdo era composto por fragmentos de ossos. Por um buraco no crânio,
escorria um líquido escuro e viscoso. A boca cava aberta o tempo todo. Era
inexplicável como ele se mantinha de pé mesmo esquartejado. Uma torrente
de sangue vazava pelos golpes feitos à faca. Parte das vísceras caía
lentamente pela abertura no abdome. Desmantelando-se, Marcos mirou a
arma na cabeça da mulher usando apenas um braço. Pedindo socorro, ela
correu, debatendo-se pelos labirintos escuros do apartamento. Bem mais
ágil, a serpente a seguiu rastejando em zigue-zague pelo breu. Na sala, Elize
escorregou num melado composto de sangue e massa encefálica. Não teve
forças o su ciente para se levantar do piso escorregadio. Gigi aproveitou a
fraqueza da sua presa e a imobilizou de forma de nitiva. Sem fôlego para
gritar, Elize fechou os olhos e se entregou ao destino. Os urubus entraram
pela janela e se acomodaram por cima dos móveis à espera das sobras do
repasto. Todo desconjuntado, Marcos surgiu pelo corredor. Na sala, ele
mirou a arma de grosso calibre na cabeça da esposa. Antes de atirar, porém,
o cadáver perguntou com a boca toda empapada de sangue:
“Por que você fez isso comigo? Por quê?”.
Elize tem dúvida se um dia será perdoada pela lha. Mas ela tem uma
certeza indissolúvel: seus demônios jamais a deixarão em paz.

* * *

Dentro de Tremembé, conversando com amigas criminosas, Elize


descobriu que poderia estar cumprindo pena fora da penitenciária, pois já
tinha o tempo necessário para migrar de regime. Acionou o advogado
Luciano Santoro e pediu para ele acelerar o pedido de soltura. A calculadora
prisional de Elize dava a ela o direito de estar em liberdade condicional.
Alguns meses depois, poderia pedir o regime aberto, bem menos rigoroso.
Formada em direito e há 10 anos no cárcere, a viúva conhecia a diferença
entre os dois tipos de cumprimento de pena, mas foi categórica: “Quero sair
daqui o mais rápido possível! Quero a minha vida de volta”, implorava a
assassina na cadeia. Luciano Santoro aconselhou Elize a esperar mais seis
meses pelo regime aberto, por causa das regras mais frouxas. Ela não quis.
Mesmo contrariado, o defensor pediu à Justiça para sua cliente obter a
liberdade condicional. No dia 30 de maio de 2022, Elize ganhou a rua. Com
a concessão do benefício, ela tinha de cumprir uma série de obrigações
previstas em lei: trabalhar honestamente, não mudar de cidade sem prévia
autorização, car em casa entre 20 horas e 6 da manhã e não frequentar
determinados lugares, como bares e boates. Também era terminantemente
proibido ingerir bebida alcoólica fora de casa. Livre, leve e solta, Elize
violaria quase todas essas regras.
Para deixar Tremembé, a assassina escolheu um gurino sóbrio. Roupa
preta com blazer prateado. Passou um batom bem vermelho. No primeiro
dia de liberdade, gravou um vídeo toda sorridente e postou nas redes
sociais. Nele, classi cou seu crime como um “erro” e disse ter já sido
“perdoada” por Marcos Matsunaga. “Estou muito feliz por ter vencido essa
etapa e estar livre. Quero agradecer pelas pessoas que me entenderam e
sempre me apoiaram. [...] Agora tenho obrigações diferentes. Sinto muito
pelo que passou. Infelizmente não posso consertar o erro que cometi. Estou
tendo uma segunda chance. Infelizmente, o Marcos não. Mas eu acredito na
espiritualidade, que ele já tenha me perdoado. Peço isso todos os dias em
minhas orações. Muito obrigada pelo apoio neste recomeço. Obrigada
mesmo!” Depois que esse vídeo se tornou público, a assassina passou a
receber dezenas de presentes de fãs e admiradores como incentivo ao seu
recomeço. Incluindo garrafas de vinho.
Na nova etapa da vida, Elize escolheu como endereço o bucólico bairro
Jardim Santa Lúcia, zona sul do município de Franca, a 400 quilômetros de
São Paulo. Lá, comprou por 230 mil reais um apartamento de 90 metros
quadrados e um Honda Fit ano 2013, carro de montadora japonesa. Retirou
o nome “Matsunaga” da carteira de identidade e nalmente pôs o
Giacomini, sobrenome do pai biológico já falecido. Passou a assinar “Elize
Araújo Giacomini”. Ousada, ela baixou o aplicativo Maxim, concorrente da
Uber, e começou a fazer transporte de passageiros. Sua nota na plataforma
era boa (4.80 de 5.00). Para tentar esconder sua identidade de assassina
famosa, Elize dirigia usando máscara de proteção, cobrindo boca e nariz, e
óculos escuros grandes. Nessa nova fase, manteve os cabelos curtos e
platinados. Como o disfarce não era muito e ciente, alguns passageiros
descon avam, principalmente quando viam no celular a mensagem “Elize
Araújo Giacomini está chegando para pegar você em tantos minutos”. No
carro, o cliente perguntava eufórico se ela era a mulher que havia matado o
marido. No início, Elize con rmava meio sem graça. No carnaval de 2023, o
cabeleireiro Rodrigo Pires, de 33 anos, chamou um carro pelo aplicativo e
Elize foi buscá-lo em frente ao salão onde ele trabalhava, no centro de
Franca. Dentro do veículo, ele puxou conversa:
- Você é a Elize Matsunaga, né?
- Sou sim – assumiu.
- Olha, você tem o meu apoio para recomeçar a vida, viu? Adoro você.
A nal, você matou um homem horrível...
- Obrigada!
- Quando quiser, passa lá no meu salão que eu cuido do seu cabelo –
ofereceu o pro ssional.
Nem sempre os passageiros eram discretos. Ainda no período de
carnaval, Elize estava trabalhando quando foi chamada por um grupo de
jovens que se divertiam num bloco de rua. Um deles a reconheceu e tirou
uma foto da tela do celular para capturar a imagem do rosto revelada no
aplicativo. O print foi parar nas redes sociais e acabou viralizando, gerando
na internet uma discussão sobre ressocialização. Elize Giacomini surgiu nos
telejornais sensacionalistas da tarde e tornou-se um dos assuntos mais
comentados do Twitter. Os moradores de Franca dividiram opiniões.
Metade não queria uma assassina circulando pelas ruas da cidade, fazendo
transporte, enquanto a outra tentava encontrá-la no aplicativo para
conseguir fazer uma sel e. Como estava em todos os sites de notícias e
fofoca, Elize cou com medo de ser hostilizada. Logo após o carnaval,
receosa, caiu fora de Franca.
Quando Tânia se despediu de Elize em Tremembé, alguns anos antes, as
duas combinaram de se encontrar do lado de fora. Para escapar do assédio
da imprensa em Franca, Elize pediu abrigo e emprego à velha amiga, em
Sorocaba. “Vou falar com o meu marido. Mas você está proibida de dizer
que tivemos um ‘rolo’ em Tremembé”, impôs Tânia. Saymon aceitou a
hóspede e Elize passou a trabalhar na empresa deles como scal de obras,
ganhando 3 mil reais por mês. Cabia a ela acompanhar, em casas de
condomínio de luxo, as reformas encomendadas na empresa da amiga. Para
mudar de cidade, Elize teve de esperar autorização da Justiça. Ela justi cou o
novo domicílio como uma oportunidade de trabalhar. Fechou seu
apartamento em Franca e mudou-se para a casa da amiga, onde aprontou
ainda mais estripulias.
Em Sorocaba, Elize teria dado em cima de Saymon, irritando Tânia.
Segundo relatos da engenheira, a amiga se trancava no quarto para dormir e
vestia uma camisola sensual na hora de deitar. No entanto, para chamar a
atenção dele, voltava a circular pela sala de roupa íntima. Como Tânia sabia
da delidade canina do marido, não se importou. Certa noite, Elize avançou
o sinal. Ela teria aproveitado a ausência da amiga, pegado duas garrafas de
cerveja na geladeira e oferecido uma delas a Saymon, de forma sedutora.
Bêbada, teria sugerido transar com ele. Saymon se recusou e contou à
esposa, que estranhamente não repreendeu Elize. No entanto, Tânia traçou
um plano de vingança contra a falsa amiga com o objetivo de devolvê-la
para a cadeia. Na surdina, começou a produzir um dossiê contra a egressa de
Tremembé.
Elize trabalhava diariamente como scal de obras em casas de vários
condomínios de luxo de Sorocaba e arredores, como Horto Florestal,
Jequitibá, Milano e Boa Vista. Para entrar com frequência nos residenciais, a
empresa de administração exigia atestado negativo de antecedentes
criminais. Como ainda cumpria pena por homicídio, acreditou que não
tinha como ela obtê-lo. Com personalidade voltada para o crime, Elize
falsi cou o documento lançando mão do mesmo cambalacho usado para
adulterar seu contracheque do Hospital Nossa Senhora das Graças, em
Curitiba, onde trabalhou entre outubro de 2001 e abril de 2003. Ela pegou o
atestado verdadeiro de um outro funcionário e colou seu nome por cima.
Com a fraude em mãos, entrava e saída dos condomínios sem ser
importunada.
Quando se mudou de Franca para Sorocaba, Elize supostamente
mantinha em seu poder um ri e calibre 17, modelo 42 série A-447112,
marca CZ. Segundo documentos do registro dessa arma, ela estaria em seu
endereço residencial, na Rua Acácio de Lima, Chácara Santo Antônio. Elize
teria tentado levar o ri e para Sorocaba, mas não encontrou o certi cado de
registro de arma de fogo (CRAF) entre suas coisas. Com medo de ter o
armamento apreendido, foi até a delegacia seccional de polícia de Franca e
registrou um boletim de ocorrência (BO 15834) comunicando o extravio.
Na delegacia, um policial perguntou a ela por que mantinha uma arma de
grosso calibre em seu poder. Elize respondeu que o ri e era um dos poucos
bens “herdados’’ do casamento com Marcos Matsunaga. “Saí com uma mão
na frente e outra atrás. A família dele me tirou tudo. Até os bens que
estavam em meu nome”, queixou-se. De fato, parte do arsenal bélico do casal
cou com Mitsuo e Misako. O casal vendeu tudo, até o que estava em nome
de Elize. Volta e meia, um desses compradores procurava pelos advogados
dela para fazer a transferência da titularidade do armamento.
Quando saiu na imprensa o imbróglio com o ri e, o advogado da
assassina se manifestou. “Essa arma não está mais em poder da minha
cliente. Elize tinha quatro armas em seu nome. Uma delas foi a pistola Imbel
usada no crime. Por determinação judicial, duas delas se encontram no
DHPP até hoje. A quarta arma – o tal ri e – está numa loja especializada.
Como não foi localizado o certi cado de registro do ri e, Elize teve de
registrar o BO para dar o destino correto à arma por exigência de processo
cível que tramita em sigilo, destino esse que pode ser a venda licita ou a
destruição. O Boletim de Ocorrência se refere apenas ao documento e não à
posse de arma de fogo, que está apreendida. Elize não precisa nem quer
arma”, rati cou Luciano Santoro.
Em Sorocaba, bateu em Elize uma vontade de viver intensamente. Para
engordar o dossiê contra a falsa amiga, Tânia a incentivou a viajar. Sua
vingança consistia no seguinte: lmar e fotografar com o celular todas as
ações de Elize que violavam as regras do livramento condicional.
– Hoje eu acordei com uma vontade de ver o mar! – exclamou Elize no
café da manhã.
– Vai, sua boba. Santos é logo ali. Mas vai à noite que é mais seguro para
você.
– Vou mesmo, pois faz dez anos que não vejo algo tão bonito. Vem
comigo, amiga! – convidou Elize.
Tânia estava no regime aberto, mas como trabalhava em diversas cidades
do interior, tinha permissão para viajar num raio de 400 quilômetros. Já
Elize não podia tirar os pés de Sorocaba. Mesmo assim, ela pegou o carro e
foi ao bar do Gonzaga, na orla de Santos, a 125 quilômetros de onde deveria
estar. Bebeu cerveja, comeu iscas de peixe e varou a madrugada se
embriagando. Tânia lmava tudo na cara de Elize. “Amiga, cuidado com
esses vídeos. Não vai postar nas redes sociais. Senão, estarei na merda!”,
alertava. “Imagina. Jamais faria isso. Até porque eu também deveria estar em
casa a essa hora”, ponderava a outra criminosa. Na mesma noite, as duas
foram pular ondinhas na praia do Itararé, município de São Vicente, bem
pertinho da Pedra da Feiticeira, um ponto turístico local. Gatuna, Tânia
registava tudo, principalmente a alegria de Elize em curtir a liberdade. De lá,
elas seguiram para um restaurante japonês. Elize foi fotografada comendo
um sushi com as mãos como se tivesse muita fome.
De volta do passeio a Santos e São Vicente, Tânia dispensou Elize da sua
empresa sem dar maiores explicações. Também pediu que ela saísse da sua
casa. Na semana seguinte, ela foi denunciada pela engenheira de forma
anônima. A amiga ligou para a 8ª Delegacia de Sorocaba e falou com o
delgado Acácio Leite. Na sequência, o policial recebeu o dossiê contendo
uma cópia do documento falsi cado de Elize e algumas imagens dela
violando as regras do livramento condicional. Um inquérito foi aberto para
investigar a denúncia. Policiais saíram em busca de Elize e a encontraram
fazendo transporte de aplicativo nas ruas de Franca, para onde havia
voltado. Com um mandado de busca e apreensão em mãos, os homens da lei
foram até sua casa e recolheram celulares e computadores, além do
documento falso. Uma perícia comprovou a adulteração do atestado de
antecedentes criminais. Em depoimento dado ao delegado Francisco Fraga
Silveira, Elize negou que tivesse falsi cado o atestado e muito menos usado
o documento. Disse que entrava e saía dos condomínios apresentando
apenas sua carteira de identidade. Àquela altura, ela já sabia que Tânia era a
autora da denúncia. Elize a rmou na delegacia que, provavelmente, a amiga
teria feito a alteração para prejudicá-la. A assassina acabou indiciada por
falsi cação de documento público. Durante a investigação, Elize descobriu
pelo advogado que nem precisava ter lançado mão de um cambalacho para
obter um atestado de antecedentes criminais sem apontamentos. A sentença
que a condenou pela morte do marido ainda está sendo contestada em
instâncias superiores – ou seja, ela ainda é considerada ré primária aos olhos
da lei. “Se ela quisesse um atestado, bastaria ter me acionado”, disse Luciano
Santoro.
Com o escândalo de Elize na mídia, o promotor Odilon Nery
Comodaro, do Ministério Público de Franca, pediu à Justiça a suspensão da
liberdade da assassina e seu retorno imediato para Tremembé. O juiz José
Rodrigues Arimatéa, da comarca de Franca, deu mais uma chance à mulher
que esquartejou o marido e a manteve livre como um passarinho. Pelo
menos até que a acusação sobre a falsi cação de documentos seja julgada.
Elize Araújo Giacomini gosta mesmo é de sentir fortes emoções. Em
liberdade, foi lmada fazendo planos para o dia em que puder viajar ao
exterior. Ela revelou que, dentro de si, seu instinto assassino continua
latente: “Quero viajar para a África para matar animais. O que eu vou matar:
zebras e crocodilos, porque tem milhões deles e não farão a menor falta.
Leão eu não tenho coragem de matar porque está em extinção. Eu tenho dó”.

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