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Nº1 do Séc XXI - Dezembro

2010
FUNDADA EM 1861 | 01 | SOCIEDADE HISTÓRICA DA INDEPENDÊNCIA DE PORTUGAL

REVISTA DE CULTURA LUSÍADA


Índice

O Exemplo de D. Nuno Álvares


Tapeçarias de Pastrana Os Portugueses no Brasil
Pereira

Saúde Em África - Mito e Horizonte Lembrar a Batalha Desafios de Portugal


Portugal, o Mar e o Futuro União Europeia e Direitos Soberanos A Importância de Comemorar
de Portugal nas Águas Marítimas Mouzinho no 150.º Aniversário do
seu Nascimento

Uma Perspectiva Europeia

_001 Editorial
_003 Estatuto Editorial / Agradecimentos / Créditos fotográficos
_004 Tapeçarias de Pastrana
_008 Comemorações do 1.º de Dezembro 2010
_010 A SHIP no limiar da celebração do seu 150.º aniversário
_016 Prémio Aboim Sande Lemos
_019 Protocolos de Cooperação firmados pela SHIP
_020 Observatório da Língua Portuguesa estabeleceu parceria com a SHIP
_024 Sessão de Poesia de Homenagem a Camões no Dia de Portugal
_030 O Santo Padre em Lisboa com o mundo da cultura
_034 Macau - uma década após a transição
_038 Desafios de Portugal
_044 Saúde em África mito e horizonte
_052 Os Portugueses no Brasil
_058 O exemplo de D. Nuno Álvares Pereira
_068 Lembrar a Batalha
_074 Portugal, o mar e o futuro
_086 União Europeia e Direitos Soberanos de Portugal nas Aguas Marítimas
_090 A importância de comemorar Mouzinho no 150.º aniversário do seu nascimento
_106 Uma perspectiva Europeia
Editorial
Compromisso com Portugal
"Independência" é a voz autorizada da nossa intervenção cívica,
nestes tempos conturbados em que é necessário, uma vez mais,
devolver a esperança e a confiança aos Portugueses.

"Independência" é a memória de séculos da História Pátria de


que nos orgulhamos.

"Independência" é a aceitação, por inteiro, do património


arquitectónico, cultural e moral que os nossos maiores nos
legaram.

"Independência" é a identificação coerente com os valores que


são a razão de ser desta Sociedade que nos congrega e a
vontade de irmos mais longe na realização dos objectivos
estatutariamente expressos.

"Independência" é a fé em novos amanhãs para Portugal, Pátria


amada, em cuja construção queremos, legitimamente,
participar.

Por isso, aqui estamos, para reafirmarmos, solene e


inequivocamente, o compromisso por nós assumido com
Portugal e com os Portugueses.

Jorge A. H. Rangel Presidente da Direcção Central da


SHIP

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Estatuto Editorial &
Agradecimentos & Ficha
Técnica
Estatuto Editorial

 Publicação anual, a sair em Dezembro da cada ano, fundamentalmente como unidade de intervenção e veículo de
comunicação da SHIP com os seus associados e com a sociedade civil.
 A exigência de rigor e credibilidade são imperativos e responsabilidades da direcção;
 Propõe-se publicar quaisquer trabalhos conducentes aos objectivos da SHIP, expressos estatutariamente;
 À redacção compete qualquer eventual informação, deixando à responsabilidade dos respectivos autores todos os
trabalhos de análise, estudo, ensaio, comentário, artigo de opinião, etc., devidamente assinados com o nome próprio.
Não são aceites pseudónimos ou iniciais;
 A reprodução total ou parcial do material publicado carece de autorização prévia do autor respectivo e da direcção da
revista;
 A direcção reserva-se o direito de sugerir quaisquer alterações aos trabalhos, por razões de paginação ou outras, bem
como de proceder à revisão literária e ortográfica dos mesmos;
 A auto-sustentabilidade não só na elaboração como no financiamento é um objectivo, pelo que a revista poderá inserir
publicidade ou informação dirigida, desde que se enquadre nos objectivos da SHIP.

Agradecimentos

 Aos nossos colaboradores e apoiantes;


 Ao Senhor General Vasco Rocha Vieira, Sócio Honorário da SHIP, pela generosa oferta da parte pecuniária do prémio
Aboim Sande Lemos
 À Sociedade de Geografia de Lisboa pela utilização de um resumo da Conferência sobre o tema da capa;
 Ao consócio Vitor Luis Rodrigues, membro da Mesa da Assembleia Geral, pela sugestão das Tapeçarias de Pastrana para
capa;
 A todas as personalidades e entidades, públicas e privadas, que nos facultaram as ilustrações da revista;
 A quantos que, de algum modo, contribuíram para a publicação desta nova série da revista.

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Ficha Técnica

Director: Jorge A. H. Rangel • Coordenador redactorial:


António Marques Francisco
Editor e proprietário: Sociedade Histórica da Independência
de Portugal. Palácio da Independência, Largo de São Domingos,
n.° 11 - 1150-320 Lisboa. NIF: 500875294. Tel: 213241470 Fax:
213460754
Sítio: www.ship.pt • E-mail: shipgeral@ship.pt
Publicação anual • Tiragem deste número: 2.000 exemplares
• Preço: 5 €
Design e pré-impressão/projecto gráfico: Maisimagem -
Capa da revista nº1 2010 Comunicação Global, Lda
Impressão e acabamento: Peres - Soctip - Indústrias Gráficas,
SA
Depósito Legal: 319794/10 • ISSN: 0019-3623 • Registo de
Propriedade n.° 125989

Créditos fotográficos

Capa: Tapeçaria de Pastrana (©Fundación Carlos de Amberes, foto de Paul M.R. Maeyaert) • Interior: p. 6, pormenor de tapeçaria
de Pastrana (©Fundación Carlos de Amberes, foto de Paul M.R. Maeyaert); p. 7, João Abel da Fonseca (foto de L. Couto Soares); p.
13, chaminés do Palácio (foto de Bernardo Saraiva Lobo); p. 14, Pia e painel de azulejos evocando as reuniões dos conjurados (foto
de Bernardo Saraiva Lobo); p. 20, biblioteca da SHIP (PM Media Comunicação, foto de Miguel Costa); p. 22, pátio interior do
Palácio da Independência (foto de Bernardo Saraiva Lobo); p. 23, Salão Nobre do Palácio da Independência (PM Media
Comunicação, foto de Miguel Costa); p. 30, Bento XVI (foto Agência Ecclesia); p. 32, Santo Padre no Centro Cultural de Belém
(foto Agência Ecclesia); p. 33, Santo Padre em Fátima (foto Agência Ecclesia); Missa no Terreiro do Paço (foto Agência Ecclesia);
Santo Padre no aeroporto (foto Agência Ecclesia); p. 38, Adriano Moreira (foto Fundação Jorge Álvares); p. 42 (foto site
Europa.eu); p. 44, António Lobo Ferreira (Hospital de São João, foto de Egídio Santos); pp. 46-47 Hospital de São João (Hospital de
São João); p. 48 (Casa do Hospital de São João em S. Tomé e Príncipe (Hospital de São João); p. 49, Meninos da Guiné no Hospital
de São João (Hospital de São João); p. 51, Dia da inauguração da Casa do Hospital de São João em S. Tomé e Príncipe (Hospital de
São João); Festa das crianças no Hospital de São João (Hospital de São João); p. 54, Sala de Leitura do Real Gabinete de Leitura
(foto de Edu Mendes); p. 56, Fachada do Real Gabinete de Leitura (foto de Eduardo Bhering); p. 60, soldado (desenho de Victor
Portugal Valente dos Santos); pp. 62-63, estátua equestre do Condestável em frente ao Mosteiro da Batalha (foto de Pedro
Albuquerque); p. 64, dispositivo da batalha (desenhos de Victor Portugal Valente dos Santos); p. 65, São Nuno de Santa Maria
(desenho de Victor Portugal Valente dos Santos); p. 67, Victor Portugal Valente dos Santos (Foto Franco - Caídas da Rainha); p.
69, D. João I de Portugal, D. Nuno Álvares Pereira - Guerreiro Vencedor de Batalhas, D. João I de Castela (pinturas de Joaquim
Carvalho); pp. 70-71, Batalha de Aljubarrota (pintura de Gabriela Marques da Costa, blog:
http://gabrielamarquescosta.wordpress.com); p. 86, Nuno Vieira Matias (Academia de Marinha, foto de Reinaldo de Carvalho); p.
88 (foto site Europa.eu); p. 106 (foto site Europa.eu); pp. 108-109 (foto site Europa.eu); p. 111 (foto site Europa.eu); pp. 24, 26, 28,
34, 35, 36, 37, 58, 85, 90, 92, 94, 97, 98, 99, 100, 101 e 103 (arquivo Maisimagem).

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A Invenção da Glória. D.
Afonso V e as Tapeçarias de
Pastrana
O sugestivo título com que o Museu Nacional de Arte Antiga do seu irmão mais velho, o 1.º duque do Infantado, permitiram
acolheu as celebradas tapeçarias, em monumental exposição, salvar do desaire os Castelhanos.
trouxe consigo um debate antigo dos historiadores portugueses
e estrangeiros sobre as mesmas. Pensamos que, no essencial, a Sabemos ainda que Joana, «a Beltraneja», entre nós conhecida
polémica gerada se pode acolher ao subtítulo que ora nos por «Excelente Senhora», que vira usurpado o trono por Isabel,
propomos tratar, embora de forma breve e sem o aparato era sobrinha de D. Afonso V, filha duma irmã deste, a princesa
académico que a divulgação autoriza excusar. D. Joana, que Henrique IV de Castela havia tomado em
segundas núpcias. A anulação do primeiro casamento, por não
Assim sendo, comecemos pelas certezas, a acreditar no consumado, tinha lançado a dúvida da paternidade, antes
apotegma de que no meio é que está a virtude, atentos ao atribuída ao valido do monarca castelhano, D. Beltrán de la
significado das mesmas para a exaltação duma glória que, Cueva, duque de Albuquerque e conde de Ledesma.
consumada a tomada de Arzila, se impunha evidenciar na visão
dos outros. A desditosa princesa ficara custodiada por Iñigo López de
Mendoza y Figueroa, conde de Tendilla, 2.º filho do famoso
Sepultado o infante real D. Fernando havia que lavar a honra marquês de Santillana, e irmão dos já citados Mendozas. Por se
em terras magrebinas, mas desta feita, assegurando uma manter partidário das pretensões ao trono da jovem, Tendilla
vitória. Contratado um vultuoso empréstimo pela coroa e não fora sequer a Toro. A custódia, por parte desta família da
arregimentada a vontade da nobreza, homens e navios partiram alta nobreza castelhana, radicava muito no facto do futuro
à conquista. cardeal ter havido na portuguesa D. Mécia de Lemos, aia que
fora da mãe da infortunada «Beltraneja», dois filhos. Também
Na verdade, Arzila veio a cair no Sábado, 24 de Agosto de 1471, ele, a princípio, tomara o seu partido, mas mudara, mais tarde,
dia de S. Bartolomeu, e com ela Tânger entregou-se. Toda a ao ver confirmar-lhe Isabel, «a Católica», a qualidade de Primaz
Cristandade rejubilou, mormente a Corte da Borgonha e a de Espanha, em 1473.
Santa Sé. A duquesa D. Isabel, tia paterna de D. Afonso V, viu
na gloriosa jornada o princípio do ataque frontal ao avanço do Impõe-se agora um pouco mais de genealogia, precisamente, a
ideal do Império Turco, logo encomendando ao cronista Jean do famoso cardeal D. Pedro González de Mendoza. Da já
de Wavrin uma Relação do feliz episódio. Sisto IV, eleito a 9 de aludida relação com D. Mécia nasceu D. Diego de Mendoza
Agosto daquele ano e entronizado, justamente, a 25 imediato, (1470-1536), também ele futuro cardeal e conde de Melito. Este
emitira, a 21 do mesmo mês, a bula Clara devotionis, elogiando, último, fazendo jus à tradição familiar, para além duma filha,
aprioristicamente, os serviços que o rei português ia prestando teve Diego Hurtado de Mendoza, mais tarde vice-rei do Perú,
à Igreja. Naquele Domingo, 25 de Agosto, cantava missa solene Príncipe de Melito e de Francavila. Consorciou-se este com D
o arcebispo de Lisboa, D. Jorge da Costa, naquela que fora a Catalina de Sylva, irmã do conde de Cifuentes, nascendo do
mesquita de Arzila, então transformada em igreja da invocação casal uma única filha e rica herdeira, D. Ana de Mendoza y La
de S. Bartolomeu. Cerda, que se distinguiu por uma rara beleza, a par de uma viva
inteligência.
Não nos deteremos nos sucessivos acontecimentos da Guerra
Peninsular de 1475-1479, muito embora possamos ter presente, O português Rui Gomes da Silva, 2.º filho de Francisco da Silva,
por geral aceitação, que na batalha de Toro, de 2 de Março de 3.º Senhor da Chamusca e de Ulme, e de D. Maria de Meneses e
1476, as forças comandadas pelo monarca português Noronha, acompanhara seu avô materno, Rui Teles de
claudicaram frente às de Isabel de Castela enquanto as de seu Meneses, mordomo-mór da infanta D. Isabel, como bem
filho, o príncipe D. João, triunfaram sobre as de Fernando de sabemos, filha de D. Manuel I, quando esta passara a Espanha
Aragão. Tão-só a presença dos efectivos do cardeal Mendoza e para desposar Carlos I, o conhecido imperador Carlos V. Por lá

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ficara, servindo de pagem, com a idade de 11 anos, na Casa Real. Mendoza, aia da «Excelente Senhora», ao bastardo D. Jorge de
A amizade com Felipe II, de quem se tornou fiel companheiro, Lencastre, futuro duque de Coimbra, grão-mestre das Ordens
viria a guindá-lo aos mais altos cargos, tornando-se mesmo um de Avis e Santiago, pai do 1.º marquês de Torres Novas e 1.º
reconhecido valido. A sua vida e feitos alongar-nos-ia por duque de Aveiro.
espaço de que não dispomos e pouco interessariam para o tema
em assunto. Retenhamos, contudo, que o monarca para ele D. Leonor de Áustria, ou de Habsburgo, filha primogénita de
preparou um casamento à altura, precisamente, com D. Ana de Joana, «a Louca», e de Filipe I de Habsburgo, «o Belo», irmã do
Mendoza y La Cerda, constituindo-se, por sucessivas elevações imperador Carlos V, Carlos I de Espanha, foi a terceira mulher
na Grandeza de Espanha, condes de Melito e Extremeña, 1.ºs de D. Manuel I, havendo deste a famosa infanta D. Maria.
marqueses e 1.ºs duques de Pastrana e príncipes de Eboli. Depois de viúva do monarca português, passou a segundas
Tiveram dez filhos. núpcias com o rei de França, Francisco I, de quem também
enviuvou, tendo regressado a Espanha. O 4.º duque do
Infantado, Iñigo López de Mendoza y Pimentel, casado com D.
Isabel de Aragão, sobrinha de Fernando, «o Católico», deixou,
temporariamente, em 1557, o seu palácio de Guadalajara a D.
Leonor, que nele passou a residir. Filipe II, sobrinho paterno da
augusta personalidade, desditosamente viúva pela segunda vez,
atribuiu-lhe o título de Senhora de Guadalajara, querendo, por
certo, demonstrar-lhe uma superior deferência de se sentir
Senhora da terra que escolhera para acabar seus dias. Sabemos
como a sua herdeira universal foi a sua única filha, a infanta D.
Maria de Portugal. Sabemos, porém, contudo, também, que o
mobiliário que consigo viajara, e o que da herança de seus pais
em Espanha recebera, o tinha, em vida, doado à então duquesa
do Infantado, a já referida D. Isabel de Aragão.

Um outro apontamento, que um registo paroquial castelhano


parece evidenciar, prende-se ao facto de se ter ficado a dever ao
cardeal Mendoza o acolhimento em igrejas, dos efectivos
portugueses no regresso de Toro. Tudo indica que não
perseguidos pelas triunfantes forças vitoriosas, mas antes
acossados por populares das aldeias que haviam pilhado na ida,
Pormenor de uma Tapeçaria de Pastrana e agora se vingavam no regresso, depois do desaire.

Por outro lado, temos conhecimento de como D. Afonso V


seria apreciador de panos de armar, tal é o caso das tapeçarias,
por trazer ao seu serviço um Martim Esteves, “que fas panos de
Em 1569, chamaram a Pastrana Santa Teresa de Jesus, e armar”, com a significativa tença anual de 6 000 reais, metade
debaixo da sua influência fundaram dois conventos – um, de S. da que fora atribuída ao pintor Nuno Gonçalves, que pinta, a
José, para religiosas, e o de S. Pedro, para homens, hoje partir de 1471, “nas obras da cidade”. A verdade histórica
conhecido por del Carmen. Assim nasceu a Colegiada de manda que se registe ainda, no séc. XV, a presença de artífices
Pastrana. Rodrigo Diaz de Vivar y Mendoza, o 4.º duque de mouriscos de grande capacidade, neste ofício, a par de
Pastrana, nasceu em 1614 e foi mordomo-mór de Carlos II de inúmeros portugueses. E, posto isto, passemos às dúvidas.
Espanha. Casou-se, em 1630, numa boda entre primos-irmãos,
com D. Catalina Gómez de Mendoza y Sandoval, que por morte Em primeiro lugar importa sabermos quem encomendou as
de seu irmão, em 1657, se constituiu sua herdeira, como 8.ª tapeçarias, de seguida onde teriam sido realizadas, e daqui por
duquesa do Infantado. O filho mais velho deste casal, Gregorio diante nos enlearemos nas hipóteses. Nada sabemos sobre a
Maria de Sylva y Mendoza, 5.º duque de Pastrana, por morte de primeira questão, mas duas hipóteses se nos colocam – pelo
seu pai, tornou-se o 9.º duque do Infantado ao falecer sua mãe, próprio rei, ou por sua tia, a já citada infanta D. Isabel, duquesa
unificando-se as duas Casas. Ao falecer, em 1667, D. Gregorio da Borgonha. E, quanto à origem, ou entre nós, ou, mais
legou em testamento à Colegiada de Pastrana as famosas provavelmente, por um dos dois, em encomenda à Oficina de
tapeçarias, o que nos leva a concluir serem elas pertença Pasquier Grenier, seguidora das tradições das oficinas de Arras
daquela Família, ao tempo. E atingimos uma primeira certeza. – cidade que o próprio rei português conhecerá por ocasião da
Avancemos, brevemente, para outras, não todas, mas para as sua viagem a França, entre 1476-1477. A sua composição,
que podem fazer apontar algumas hipóteses, deixando de fora, derivada dos cânones pictóricos luso-flamengos de finais do
desde já, o facto de D. João II ter havido em D. Ana Hurtado de séc. XV, consubstancia assim a válida filiação que José de
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Figueiredo, em 1926, delas fez, na Escola do autor dos não Pensamos ter deixado patente quanto há ainda, mormente nos
menos famosos Painéis de São Vicente, comummente arquivos nacionais, nos espanhóis, nos franceses e nos relativos
atribuídos a Nuno Gonçalves, como adverte em biografia ao ducado da Borgonha, para investigar. A nós Portugueses
recente do «Africano», Saúl António Gomes. fica-nos a certeza de que a vitória da conquista de Arzila e de
Tânger, bem como de Alcácer Ceguer não poderiam deixar de
E passamos a concluir. Se cá foram confeccionadas, por cá perfigurar um motivo bastante para a glória de D. Afonso V,
teriam ficado, mais ou menos tempo. Se o foram no que judiciosamente foi cognominado de «o Africano».
estrangeiro, teriam, ou não, chegado alguma vez a Portugal. E
as hipóteses multiplicam-se, a saber:

 Teriam sido oferecidas pelo próprio D. Afonso V ao


cardeal Mendoza, como reconhecimento pela sua
compaixão misericordiosa, pós batalha de Toro. Opinião
defendida por Afonso de Dornelas. Ou teriam
constituído saque!
 Teriam passado a Espanha, por oferta pessoal de Filipe
II, enquanto Filipe I de Portugal, a Rui Gomes da Silva,
1.º duque de Pastrana. Opinião defendida por Joaquim
Veríssimo Serrão;
 Teria sido Filipe, «o Belo», a trazê-las para Espanha
ficando a pertencer aos bens da Casa Real, ou
constituindo-se como herança de sua filha D. Leonor de
Áustria. No primeiro caso seguiria entroncada a hipótese
de Filipe II a doá-las a Rui Gomes da Silva, enquanto no
segundo entroncaria na versão da doação de D. Leonor a
D. Isabel de Aragão, duquesa do Infantado;
 Teria sido o duque de Alba que, ao regressar do seu
governo da Flandres, as traria para oferecer a Filipe II. E
este, por sua vez, as ofertaria ao 1.º duque de Pastrana.
Sabendo, como sabemos, a rivalidade entre o duque de
Alba e o duque de Pastrana, constituindo mesmo na
Corte partidos antagonistas, não nos parece razoável tal
hipótese.

João Abel da Fonseca

Presidente do Conselho Superior do Instituto de Cultura Europeia e


Atlântica,
sócio da SHIP
Académico da Academia Portuguesa da História e da Academia de
Marinha

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Comemorações do 1.º de
Dezembro 2010
Programa

12h00 - Missa Solene de Acção de Graças na Igreja Paroquial de Santa Justa (Largo de São
Domingos)

16h00 - Homenagem aos Heróis da Restauração na Praça dos Restauradores

17h30- Inauguração da Exposição "D. João IV e a Restauração" da pintora Gabriela


Marques da Costa, no Espaço Fernando Pessoa do Palácio da Independência

18h00 - Assinatura do Livro de Honra da SHIP e apresentação da revista "Independência"


(nova série)

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1.º de dezembro de 2010
Mensagem

Exmas. Autoridades e Digníssimos Representantes de com os outros e com outros criou intercâmbio, aliança e
Instituições Oficiais, Militares e Civis, e Organismos comunhão de destino, tornando-se mátria geratriz de
Associativos, de Natureza Académica, Cívica, Cultural e Juvenil comunidades irmanadas.
Permanecendo fiel a si próprio, conseguiu e soube entender-se
Portugueses com os outros, podendo de todos exigir igual respeito e
entendimento.
Estamos uma vez mais reunidos junto do monumento que É este o significado real da sua independência. Mantê-la
assinala um dos mais altos momentos da História Pátria, neste restaurada é revivificarmo-nos todos com ela para manter
dia que a Sociedade Histórica da Independência de Portugal acesa a chama da esperança, especialmente em tempos de
escolheu para também dar início às comemorações do 150.º maior dificuldade. É um imperativo de agora como foi
aniversário da sua fundação. imperativo de sempre.
Há datas que são marcos vivos no caminho do porvir, porque Reunirmo-nos aqui é reviver e comungar do espírito dos
mergulham directamente nas raízes dos povos e enformam o conjurados de todas as classes que, no dia 1 de Dezembro de
espírito das nações. O primeiro de Dezembro é, para nós, 1640, ousaram escolher o caminho da Liberdade.
portugueses, sem dúvida, uma destas mais relevantes e
significativas datas. Exmas. Autoridade
É por isso que aqui estamos, para, com a Câmara Municipal de A presença de Vossas Excelências dignifica esta festa que,
Lisboa e dezenas de instituições públicas e privadas sendo da cidade de Lisboa, também o é de Portugal e deve ser
celebrarmos a independência de Portugal, consistentemente de todos os Portugueses. Agradecemos o apoio recebido, bem
manifestada ao longo de quase nove séculos de História. E, assim a colaboração imprescindível dos Serviços Municipais e
como tem acontecido nos últimos anos, quis a Sociedade de todas as demais entidades, civis e militares, cuja
Histórica da Independência de Portugal que a mensagem do participação dá brilho a esta singela cerimónia que, ano após
Dia da Restauração fosse lida por um jovem, em nome de todas ano, aqui realizamos, renovando a nossa declaração de fé no
as gerações de Portugal que sabem e querem honrar o precioso futuro de Portugal, Pátria amada.
legado dos nossos maiores.
Num tempo de globalização niveladora e de integração em Senhoras e Senhores
espaços geográficos e sociopolíticos mais amplos, o sentido Jovens de Portugal
nacional, que é o sentido das Pátrias e o sentido da identidade, Congregados em torno deste simbólico monumento,
é insubstituível, sendo mesmo a maior garantia de que a construído por iniciativa da Sociedade Histórica da
realidade fundadora da própria cooperação internacional não Independência de Portugal, prestamos a nossa sentida
dá passos em falso e se consolida com coerência, seriedade e homenagem aos heróis da Restauração e, sabendo merecer a
verdade. sua dádiva, coragem e exemplo, reafirmamos solenemente o
Portugal não foi obra do acaso. Fundou-se, afirmou-se e compromisso de continuarmos a lutar por Portugal, pela sua
dilatou-se porque assim o quis a vontade do seu povo e porque independência e pelos valores que caracterizam a nossa
tinha valores e princípios que lhe permitiram garantir a identidade.
travessia do tempo.
Portugal soube ser próprio e sendo próprio deu-se aos outros Viva Portugal!
como ninguém. Quando se respeitou a si mesmo, soube estar
Lisboa, 1 de dezembro de 2010

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A SHIP no limiar da celebração
do seu 150.º aniversário -
Página de Abertura
No fim de mais um mandato, e em vésperas da celebração do 150.° aniversário da SHIP, tornou-se oportuna esta conversa
com o presidente da Direcção Central, sobre o papel da SHIP, o significado das comemorações e um balanço da acção rea-
lizada, no cumprimento dos objectivos estatutários.

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A SHIP no limiar da celebração
do seu 150.º aniversário
Conversa com o Presidente da Direcção Central

Breve Perfil do Entrevistado

Membro do Conselho Supremo e presidente da Direcção Central da SHIP nos últimos dois mandatos, o Dr. Jorge Alberto
Hagedorn Rangel é natural de Macau, onde desempenhou altos cargos públicos, entre os quais os de deputado à
Assembleia Legislativa, presidindo às Comissões de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e do Regi-
mento e Mandatos, director do Turismo e da Comunicação Social, presidente da Fundação Macau e, durante treze anos,
membro do Governo, tendo tutelado as áreas da Administração Pública, Educação, Ensino Superior, Cultura, Turismo,
Juventude e Desporto, bem como o Gabinete da Transição.No âmbito do ensino superior, além da actividade docente, em
Macau, em Portugal e em universidades estrangeiras, presidiu à comissão instaladora do Instituto Politécnico de Macau e
à comissão que converteu a então Universidade da Ásia Oriental em instituição pública, foi consultor e é membro do Con-
selho Consultivo da Universidade Aberta Internacional da Ásia e director honorário do Centro de Estudos de Culturas da
Universidade de Soka (Tóquio) e integrou o Conselho e a Assembleia da Universidade de Macau e a comissão instaladora
da Faculdade de Ciências da Educação da mesma universidade.

Cumpriu o serviço militar nos Açores e na Guiné, onde, como capitão miliciano, comandou uma companhia de infantaria
em zona de guerra e dirigiu a instrução de tropas no seu comando operacional. Desempenhou intensa actividade em orga-
nismos internacionais e associativos, tendo sido presidente do Elos Internacional - Movimento da Comunidade Lusíada e
da EATA - Associação de Turismo da Ásia Oriental, presidente regional e membro vitalício da PATA - Organização de
Turismo da Ásia-Pacífico, membro do Conselho Executivo da Organização Mundial de Turismo e membro vitalício da
EROPA - Organização Regional para a Administração Pública, com sedes, respectivamente, em Santos (Brasil), Tóquio,
Banguecoque, Madrid e Manila, e ainda em actividades da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas.
É presidente do Instituto Internacional de Macau e, nessa qualidade, participa regularmente, como orador, em con-
ferências internacionais e encontros académicos, tendo coordenado o grupo de trabalho e as sessões sobre Multicultura-
lismo da Conferência Mundial sobre o Diálogo das Civilizações, em Tóquio e Osaca, no âmbito da Universidade das
Nações Unidas.

É também dirigente de organismos da sociedade civil, como a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses, o Con-
selho das Comunidades Macaenses, o Observatório da Língua Portuguesa e diversas fundações e associações de natureza
académica, cultural e social.

Tem obra publicada e recebeu altas condecorações e outras distinções, nacionais e estrangeiras, entre as quais a Ordem do
Infante D. Henrique (Grande Oficial e Grã-Cruz), a Medalha de Valor de Macau (a mais elevada no território na vigência
da Administração Portuguesa), a Medalha de Mérito da Cidade do Rio de Janeiro, a Comenda Eduardo Dias Coelho do
Elos Internacional, o troféu D. Quixote, do Conselho da Europa, a "Award of Excellence" do Instituto de Estudos Orientais
de Tóquio, vários doutoramentos "honoris causa" e os títulos de membro de mérito, honorário ou benemérito de orga-
nismos como a Fundação Rotária Internacional, o Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, o Liceu Literário
Português, a Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras do Brasil e a Academia Portuguesa de História.

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Independência – No final de mais um mandato, que balanço pode fazer destes anos em que presidiu ao órgão executivo da SHIP?
Jorge Rangel – Não devo ser eu a fazer o balanço, na perspectiva duma apreciação crítica. Quero, porém, aproveitar esta
oportunidade para agradecer aos titulares dos órgãos sociais, e em especial aos colegas da Direcção Central, assim como aos sócios
e funcionários da SHIP, toda a valiosíssima colaboração prestada, permitindo-nos ir tão longe quanto as circunstâncias, os meios e
a nossa vontade, capacidade e disponibilidade o permitiram. Fez-se muito, o Palácio da Independência, sede da SHIP, funcionou
verdadeiramente como uma Casa da Cultura e da História, com um diversificado e intenso programa de actividades, as parcerias
úteis com outras instituições multiplicaram-se e a participação dos associados foi gratificante. Mas o nosso inconformismo faz-nos
acreditar que ainda podíamos ter ido mais longe. Era esse, pelo menos, o nosso desejo.
Assumi a presidência, por substituição, num momento extremamente difícil, quando faleceu o então presidente, General Manuel
Freire Themudo Barata, que recordo sempre com saudade e respeito. Apesar de estar ainda em Macau, embora fizesse deslocações
frequentes a Lisboa, quis ele que eu integrasse, como vice-presidente, a última Direcção por ele presidida, para que, conforme me
confidenciou, me preparasse para, "um dia", o substituir.
Fiz-lhe ver que não podia dar-lhe a garantia de "um dia" mudar definitivamente a residência para Lisboa, preferindo, por isso, e
correspondendo à sua confiança, ser apenas um dos vogais da Direcção e não o vice-presidente, até porque iria estar demasiado
longe para o substituir nos seus impedimentos e ausências e para partilhar com ele especiais responsabilidades. Garantiu-me que
isso não era necessário, porque, sendo também presidente a Comissão Portuguesa de História Militar, organismo oficial instalado
num espaço do Palácio da Independência, passava ali muitas horas, todos os dias úteis. Além disso, já havia consenso quanto à lista
a submeter a sufrágio, sendo de todo inconveniente qualquer alteração de última hora. Quando faleceu, a SHIP "caiu-me nos
braços", obrigando-me a mais deslocações e a mais prolongadas permanências em Lisboa, suportando pessoalmente todos os
encargos inerentes.
Fiz depois, mais dois mandatos, estando agora preparado para, tranquilamente, passar o testemunho. Não me canso de dizer que
tudo o que de positivo se fez foi obra de muitos e que a SHIP é um organismo verdadeiramente exemplar no que concerne à
iniciativa, participação e envolvimento activo da massa associativa.

Independência – Em vésperas da comemoração do 150.º aniversário da SHIP, como perspectiva o seu desenvolvimento futuro?
Jorge Rangel – A parte mais pesada do nosso trabalho foram as batalhas quotidianas para a SHIP sobreviver e desenvolver-se num
contexto de crescentes dificuldades financeiras. Houve um tempo em que vários Ministérios (Finanças, Cultura e Defesa Nacional)
apoiavam a SHIP, subsidiando as obras de manutenção do Palácio da Independência, como monumento nacional que é, as
actividades culturais e a comemoração das grandes datas nacionais. Quando substituí o General Themudo Barata, já só o
Ministério da Defesa Nacional ainda nos concedia um subsídio anual, cujo valor foi minguando, ano após ano, apesar do aumento
muito significativo de projectos e actividades, representando, hoje, menos de 1/3 do montante então concedido. E, curiosamente,
na mesma altura em que o Ministério das Finanças nos comunicou que os subsídios dali provenientes deviam passar para a tutela
da Cultura, este Ministério não só não assumiu essa responsabilidade, como também cortou os seus apoios, restando-nos ainda a
Defesa, área do Governo a que temos estado sempre mais ligados.
Foi através duma forte contenção de despesas e da procura de mais receitas próprias, especialmente através da cedência de
espaços e da angariação de mais sócios, efectivos e extraordinários, que fomos equilibrando a nossa dificílima gestão financeira. Eu
próprio, bem como os restantes colegas da Direcção decidimos não imputar à SHIP as despesas normais inerentes ao exercício dos
nossos cargos, mesmo quando as verbas estavam orçamentadas. Ao longo destes 7 anos, assumi, pois, pessoalmente, os encargos
com deslocações, transportes, gasolina e até de representação, que foram bastante significativos. Foi assim, porque não havia
dinheiro. Vários núcleos de actividades também conseguiram funcionar sem encargos para a SHIP.
Acho que nenhum governo do mundo, para alcançar os seus objectivos políticos, culturais e sociais, pode prescindir da colaboração
efectiva e permanente da sociedade civil, que, em muitas situações e circunstâncias, sabe e pode fazer mais e melhor pelo país e
pelos cidadãos do que os organismos públicos que, em alguns países como o nosso, cresceram e multiplicaram-se inutilmente,
absorvendo fatias exageradas dos orçamentos. Não obstante a impressionante voracidade fiscal praticada no nosso país, o Estado
partilha demasiado pouco os seus recursos, obtidos através de elevadíssimos e diversificados impostos, com as instituições da
sociedade civil. Mesmo as mais prestigiadas e antigas, como a SHIP e a Sociedade de Geografia de Lisboa, por exemplo, estão
incompreensivelmente entregues a si próprias, apesar de prestarem serviços relevantes ao país. Convém lembrar que os recursos
obtidos pelo Estado são para Portugal (Estado e sociedade civil) e não para uso quase exclusivo do Governo. Quem não perceber
isto, falhará irremediavelmente os objectivos políticos que traçou.
Perspectivo, por isso, a manutenção das dificuldades na SHIP, tendo também em conta a crise que se instalou entre nós e que não
se deve apenas à conjuntura internacional.
Perspectivo, igualmente, os resultados dos esforços e da vontade dos responsáveis da SHIP e dos seus associados, que continuarão
a defender e a afirmar a SHIP. O 150.° aniversário e o percurso feito, nunca isento de dificuldades e incompreensões, justificarão
sempre esses esforços e darão renovado alento a todos.
16 |
Dr. Rangel na Inauguração da
Exposição Fotográfica "Macau é um
Espectáculo"

Chaminés do Palácio da
Independência

Pia e painel de azulejos evocando as


reuniões dos conjurados

Independência – O lançamento da nova série da revista é feito precisamente no enquadramento das comemorações do 150.º
aniversário. O que significa para a Direcção da SHIP a concretização deste projecto?
Jorge Rangel – Creio que deve ser para toda a SHIP motivo de regozijo este lançamento. Estava no nosso programa para este
mandato e só não foi feito mais cedo porque quisemos primeiro assegurar-lhe o indispensável sustentáculo financeiro. O generoso
gesto do General Vasco Rocha Vieira, ao oferecer à SHIP, para este fim, a parte pecuniária do prémio que lhe foi atribuído (Prémio
Aboim Sande Lemos - Identidade Portuguesa) e os apoios publicitários que várias entidades e amigos da SHIP nos prometeram,
viabilizaram a iniciativa.
A colaboração foi, por outro lado, excepcional. Enquanto os portugueses gozavam as férias de Verão, fizemos, em Julho, Agosto e
Setembro, as reuniões de trabalho necessárias. Ao contrário de muitos organismos da sociedade civil, que fecharam mesmo as
portas, a SHIP esteve sempre aberta e em funcionamento. A trabalhosa coordenação de toda a parte executiva da revista foi
entregue ao nosso colega da Direcção António Marques Francisco. A sua competência e dedicação merecem o nosso
reconhecimento.
O lançamento da nova série da revista é uma afirmação da nossa confiança na SHIP, no seu papel, porventura ainda mais
necessário nos tempos que correm, e em Portugal, cuja memória, legado e futuro deverão ser permanentemente preocupações
nossas.

Independência – Quem frequenta regularmente ou visitou recentemente o Palácio da Independência, sede da SHIP, sabe que ele
foi substancialmente valorizado nos últimos anos. Pode fazer uma síntese das principais obras realizadas?
Jorge Rangel – Sugiro que o n.° 2 da nossa revista dedique um amplo espaço de reportagem a este tema. Posso, resumidamente,
identificar as seguintes obras: a recuperação total da lindíssima sala de azulejos, que se transformou num excelente espaço
polivalente, sendo ali realizadas reuniões, exposições, palestras e actividades sociais; a regeneração completa dos espaços, nas
chaminés do Palácio, onde se instalou a nossa cafetaria; a renovação da área destinada, no r/c do Palácio, a exposições temporárias,
agora denominada "Espaço Fernando Pessoa", após a instalação ali do busto do Poeta da "Mensagem", oferecido pela saudosa
escultora Irene Vilar, pouco antes do seu falecimento; a transferência da secretaria e dos serviços administrativos para área mais
adequada, também recuperada, permitindo o aproveitamento de um óptimo espaço para a instalação do Instituto D. Antão de
Almada, com auditório próprio, equipado para conferências, seminários, encontros e cursos, que também se multiplicaram na
| 17
SHIP; a instalação, logo à entrada do Palácio, do nicho com a imagem da Padroeira de Portugal, linda e sóbria imagem cedida pelo
Museu Nacional de Arte Antiga, e da capela votiva ao culto do Santo Condestável, São Nuno de Santa Maria, cuja memória e
exemplo são do mais alto significado para a SHIP, sendo esta a primeira inaugurada após a sua canonização; a abertura da Sala
Evocativa da SHIP; a dignificação do átrio principal do Palácio, que é a nossa sala de visitas, onde foram colocadas as bandeiras de
Portugal, de D. Afonso Henriques à República; melhoramentos nos jardins do Palácio, enquanto se aguarda uma intervenção de
fundo, com a colaboração da Câmara Municipal; a instalação e abertura ao público da Sala dos Conjurados, tornando mais
atractivas as visitas de estudantes e membros de organismos socioculturais; e outras obras em diversos espaços, tornando-os mais
úteis e funcionais, além das constantes obras de manutenção regular das instalações próprias. Também entrou em fase de restauro
completo a Sala de Armas, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, com benefício evidente para o desenvolvimento da
esgrima na SHIP, onde temos campeões nacionais. Este pelouro está entregue ao nosso colega Eng.° José Luís Tavares de Andrade,
sendo a gestão dos espaços e da sua utilização confiada ao colega Dr. José Ângelo Lobo do Amaral, e pertencendo a gestão
financeira ao vice-presidente, Dr. Eugénio Ramos.

Independência – Tem dito que a passagem do testemunho deve ser um acto normal e positivo em qualquer organismo. Quer isto
dizer que vai fazê-lo na SHIP?
Jorge Rangel – A passagem do testemunho é, efectivamente, um acto salutar em qualquer organismo, público ou privado, mesmo
de natureza associativa e sem os dirigentes auferirem qualquer espécie de remuneração, como é o caso da SHIP. Entendi sempre
que, em todos os cargos executivos que desempenhamos, há um tempo de entrada e um tempo de saída. É errado as pessoas eter-
nizarem-se nos lugares que ocupam e só circunstâncias muito excepcionais podem justificar uma permanência para além de um
certo tempo, mesmo quando as pessoas são escolhidas sucessivas vezes por vontade dos eleitores. Assim deve ser também na
SHIP. Os membros da Direcção, ao cessarem funções, poderão continuar a dar à SHIP a melhor colaboração ao seu alcance. Na
parte que me toca, ficarei sempre grato pela confiança e solidariedade que muitos associados foram expressando e pela resposta
afirmativa que deram em todos os momentos, bons e menos bons, intensamente vividos ao serviço da mais justa e apaixonante das
causas cívicas que é, para nós, Portugal.

Novos Estatutos da SHIP

Está em fase final de preparação o anteprojecto dos novos Estatutos da SHIP. Pre-
side ao grupo de trabalho, criado no âmbito do Conselho Supremo, o Dr. Eugénio
Ribeiro Rosa, presidente daquele órgão, e dele fazem parte os Drs. José Augusto
de Alarcão Troni, Carlos da Silva-Gonçalves, José Manuel Marques Palmeirim e
João Manuel de Almeida Loureiro, respectivamente, vice-presidente e membros
do Conselho.

18 |
Prémio Aboim Sande Lemos -
Página de Abertura
identidade portuguesa

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Instituições e personalidades
contempladas
Instituído em 1987, no âmbito da SHIP, o prémio denominado "Aboim Sande Lemos - Identidade Portuguesa", de carácter
perpétuo e atribuição anual, destina-se a galardoar pessoas singulares ou colectivas, cuja obras notáveis e originais, nas áreas das
Ciências Humanas, Artes, Feitos Excepcionais, Ciências da Natureza, Técnicas e Tecnologias, "contribuam ou hajam contribuído,
de forma significativa, para o robustecimento da identidade da imagem cultural portuguesa e afirmação de Portugal como país livre
e independente".
O fundo de suporte à atribuição do prémio foi doado pelo consócio Cor. Eng.° Manuel Aboim Ascensão Sande Lemos e são
anualmente constituídos os respectivos júris, o último dos quais, presidido pelo General José Baptista Pereira, presidente da Mesa
da Assembleia Geral da SHIP, integrou o Prof. Eng.° Luís Aires Barros, a Prof.a Doutora Maria da Conceição Sande Lemos, o Dr.
Mário Luís Nunes Correia Ribeiro e o Prof. Doutor Justino Mendes de Almeida.
Foram já contempladas 25 personalidades e instituições ligadas às diversificadas áreas abrangidas no regulamento deste que é o
maior prémio anual da SHIP, compreendendo um diploma e um troféu, além do valor pecuniário fixado.
Em 2010, o prémio Aboim Sande Lemos - Identidade Portuguesa foi atribuído, por deliberação unânime do júri, ao General Vasco
Rocha Vieira, "em reconhecimento de uma excepcional carreira militar e de servidor do Estado, onde sobressaem o seu
notabilíssimo desempenho nos cargos de Chefe do Estado- -Maior do Exército, de 1976 a 1978, representante Militar Nacional
junto do Comando Supremo Aliado da Europa na Bélgica, de 1978 a 1982, Ministro da República para a Região Autónoma dos
Açores, de 1986 a 1991, e último Governador de Macau, de 1991 a 19 de Dezembro de 1999, e pelo seu extraordinário e patriótico
contributo para a consolidação da herança de matriz portuguesa nas suas múltiplas facetas, para o desenvolvimento do território
de Macau e - passados que são dez anos sobre o evento final - para a efectivação de uma transferência de soberania tranquila e com
alta dignidade, factos que as autoridades chinesas têm repetidamente vindo a louvar e a pôr em destaque como exemplares, deste
modo concorrendo para o excelente relacionamento que se mantém entre os dois países e, assim, contribuindo decisivamente para
o robustecimento da identidade portuguesa e prestígio do nosso País no contexto internacional".
Ausente, em serviço oficial no estrangeiro, recebeu o prémio a esposa, Sr.a Dr.a Maria Leonor Rocha Vieira, num momento de
grande emoção e com o vasto auditório de pé, em prolongada e intensa ovação, na cerimónia comemorativa do Dia da SHIP, em
Maio do corrente ano.

Instituições e personalidades contempladas

1988 1993
Comandante Virgílio de Carvalho Prof. Doutor Joaquim Veríssimo Serrão
1989 1994
UCCLA - União das Cidades Capitais AMI - Fundação de Assistência Médica Internacional
Luso-Afro-Américo-Asiáticas 1995
1990 Grupo Musical Madredeus
Ex aequo - Prof. Eng.° Edgar António de Mesquita Cardoso 1996
e Dr. Corino de Andrade
Prof. Doutor António de Oliveira Carvalho Rodrigues 1997
1991 Ex aequo - Padre Doutor Henrique Pinto Rema
Dr. Afonso Botelho e
1992 Poeta António Manuel Couto Viana
Instituto de Higiene e Medicina Social da Faculdade de 1998
Medicina da Universidade de Coimbra Misericórdias Portuguesas

20 |
1999 2004
Exa equo - Arq.º Amâncio Miranda Guedes Prof. Doutor António Damásio
e 2005
Dr. José Cordeiro Blanco Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
2000 2006
Liga para a Protecção da Natureza (Não atribuído)
2001 2007
Compositor Eurico Carrapatoso Atleta Vanessa Fernandes
2002 2008
Capitão-de-Fragata Augusto Mourão Ezequiel Prof. Eng.° José Epifânio da Franca
2003 2009
Colégio Militar Prof. Doutor Ernâni Rodrigues Lopes
2010
General Vasco Rocha Vieira

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22 |
Protocolos de Cooperação
Firmados pela SHIP
Com vista a ampliar colaborações úteis e alargar o nosso espaço de intervenção, foram firmados muitos protocolos, especialmente
nos últimos anos, com diversificadas entidades públicas e da sociedade civil:

- Sociedade Hípica Portuguesa


- Instituto de Filosofia Luso-Brasileira
- Comissão Portuguesa de História Militar
- Instituto Internacional de Macau
- Escola Superior de Música de Lisboa
- Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras do Brasil
- Liceu Literário Português, Rio de Janeiro
- Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
- Associação "Danças com História"
- Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar
- Instituto Português de Museus
- Associação Promotora da Instrução dos Macaenses
- Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano
- Guião
- Centro de Estudos Portugueses
- Instituto Português de Heráldica
- Associação Portuguesa de Imprensa
- Fundação INATEL
- Instituto para Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores
- Associação das Antigas Alunas do Instituto de Odivelas
- Elos Internacional
- Movimento da Comunidade Lusíada
- DECIDE
- Associação de Jovens Auditores para a Defesa, Segurança e Cidadania
- Associação de Cultura Lusófona
- Comité Olímpico de Portugal
- Grupo dos Amigos do Convento de Cristo
- Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
- Câmara Municipal de Ponta Delgada
- Fundação Lusíada
- Associação de Auditores dos Cursos de Defesa Nacional
- Observatório da Língua Portuguesa

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Protocolos de Cooperação Firmados pela SHIP

Protocolos de Cooperação Firmados pela SHIP

Outros protocolos estão em fase final de preparação, incluindo um com a Sociedade de Geografia de Lisboa. São parcerias que se
consolidam e sinergias que se desenvolvem no seio da sociedade civil, assumindo a SHIP a liderança no processo do seu
estabelecimento.

24 |
Observatório da Língua
Portuguesa - Página de
Abertura
estabeleceu parceria com a SHIP
Observatório da Língua
Portuguesa
Associação sem fins lucrativos, constituída em Junho de 2008 comunidades migrantes nos cinco continentes e pertencentes a
com a apresentação pública dos seus estatutos, o Observatório diversas organizações internacionais de âmbito regional, o
da Língua Portuguesa (OLP) tem por objectivos principais Português é a língua veicular de cerca de 250 milhões de
contribuir para o conhecimento e divulgação do estatuto e pessoas, o que o afirma como o 6.° idioma materno à escala
projecção da Língua Portuguesa no mundo e fomentar a universal e, depois do Espanhol e do Inglês, como o 3.° europeu
formulação de políticas e decisões, bem como o mais falado no Mundo.
desenvolvimento de iniciativas concertadas que concorram A importância da Língua Portuguesa tem-se acentuado nas
para a afirmação da Língua Portuguesa como língua estratégica décadas mais recentes, impulsionada por um crescimento do
de comunicação internacional. número de falantes que ultrapassa o ritmo de aumento
Com sede em Lisboa, a associação póde criar dependências ou demográfico nos países que têm o Português como factor
delegações em qualquer local, nomeadamente nos países estruturante da sua identidade e da sua soberania.
integrantes da CPLP - Comunidade dos Países de Língua Tal decorre da atracção que a acrescida relevância cultural,
Portuguesa, e orienta a sua acção exclusivamente por fins de económica e política do Português vem exercendo sobre países
utilidade pública, seguindo como norma permanente de integrados em outros espaços linguísticos como são, por
actuação a cooperação com os departamentos exemplo, os casos da China, da índia, do Japão, da América
culturais e educacionais das administrações central, regional e Latina, de alguma África francófona sub-saariana, etc.
local dos Estados da CPLP e com outras pessoas colectivas de Todavia, e não obstante a percepção rigorosa e pormenorizada
utilidade pública, designadamente universidades e instituições desta situação ser imprescindível à formulação de políticas de
científicas e culturais. língua coerentes e eficazes que dêem respostas consistentes às
Na Assembleia Geral, realizada em 26 de Março de 2009, foram expectativas e solicitações existentes ou previsíveis em futuro
eleitos os seus órgãos sociais, ficando a presidir ao Conselho de próximo, são estimados e genéricos o conhecimento e a
Administração o Embaixador Eugénio Anacoreta Correia, à informação sobre a realidade actual e a sua evolução a médio
Mesa da Assembleia Geral o Dr. Guilherme d'Oliveira Martins, prazo.
presidente do Tribunal de Contas e presidente do Centro Sendo uma associação da sociedade civil que desenvolve a sua
Nacional de Cultura, ao Conselho Consultivo o Embaixador acção com sentido de missão e espírito de serviço público, o
Luís Fonseca, ex-director-geral da CPLP, e ao Conselho Fiscal Observatório elegeu como um dos seus principais objectivos
o Dr. Almerindo Marques, presidente da Estradas de Portugal, concorrer para que seja colmatada essa lacuna, e, a partir do
E.P. e ex-presidente da RTP. O seu corpo de membros conhecimento rigoroso do universo de falantes e das
fundadores integra personalidades ligadas à cultura, à educação peculiaridades dos seus diversos conjuntos, poder contribuir
e à diplomacia, como Fernando Alves Cristóvão, João Malaca para processos de decisão que no âmbito da CPLP ou de cada
Casteleiro, Pedro Lourtie, Eugénio Anacoreta Correia, Luís um dos países que a integram devam ser ponderados em prol
Fonseca, Marcello Duarte Mathias, Luís Sousa de Macedo, da afirmação e difusão da Língua Portuguesa.
Manuel Carmelo Rosa, António-Pedro Vasconcelos, Cristina
Robalo-Cordeiro, Linhas estratégicas para 2009-2012
Jorge Rangel, Renato Borges Sousa, Francisco Nuno Ramos, O Observatório concedeu imediata prioridade à mais ampla
Annabela Rita, Maria Eduarda Boal, Nazim Ahmad e Maria identificação do estatuto e projecção da Língua Portuguesa no
Isabel Alçada Vilar. mundo como língua veicular de ensino e aprendizagem, como
língua de acesso à informação científica, técnica, económica,
Declaração de princípios desportiva, etc., como língua produtora de cultura e código
Língua oficial, de ensino, de património, de comunicação nos básico da literatura e como língua de comunicação política e de
domínios cultural, científico, político, técnico e tecnológico trabalho em organizações internacionais.
dos oito Estados-membros da CPLP e de regiões e

26 |
Dedica-se, igualmente, à divulgação de dados estatísticos sobre
o uso do Português enquanto língua materna, segunda e/ou
estrangeira e de comunicação na internet. Cuida, em terceiro
lugar, da verificação e controlo de informações e dados
difundidos por instituições nacionais ou organismos
internacionais sobre a Língua Portuguesa, tendo em
consideração o seu rigor.

Observatório da Língua Portuguesa estabeleceu parceria


com a SHIP

O Observatório concedeu imediata prioridade


à mais ampla identificação do estatuto e Salão Nobre da SHIP
projecção da Língua Portuguesa no mundo
como língua veicular de ensino e
aprendizagem, como língua de acesso à
informação científica, técnica, económica,
desportiva, etc., como língua produtora de No desenvolvimento da sua actividade, elegeu como grande
cultura e código básico da literatura e meio instrumental o recurso às tecnologias de informação e
como língua de comunicação política e de comunicação com a utilização de um sítio web e de um portal
trabalho em organizações internacionais. em parceria com a Universidade de Aveiro e a empresa Sapo.pt.
O sítio permite corresponder à necessária divulgação de
informação relativa à projecção do Português no mundo e no
tempo e à constituição de fóruns de reflexão e debate. 0 portal,
por seu lado, potencia o alargamento do conhecimento e de
uma informação rigorosa, bem como a divulgação de práticas
de ensino e de aprendizagem, envolvendo investigadores,
professores e alunos não só nos Estados-membros da CPLP,
mas também em todos os países em que se lecciona o
Português, reforçando essas mesmas práticas e abrindo
caminhos à inovação nas metodologias de ensino a distância.
Para que o conjunto de acções mais facilmente atinja os
desígnios pretendidos, considerou-se fundamental o
estabelecimento de parcerias, protocolos e acordos numa
perspectiva de trabalho em rede no mundo, abrangendo os
países lusófonos, os migrantes de fala portuguesa espalhados
Programa de Preparação Olímpica
pelos cinco continentes, oriundos dos vários Estados-membros
da CPLP, e as diversas comunidades estrangeiras que, em
numerosos países, por razões de ordem cultural, económica ou
política, pretendem conhecer, aprender e falar a Língua
Portuguesa.
| 27
Assim, o Observatório assume-se como uma plataforma de coerência do seu resultado final.
diálogo e cooperação entre instituições empenhadas na defesa Foi neste contexto que, reconhecendo os propósitos de defesa
e promoção da Língua Portuguesa, procurando estimular a e valorização da Língua Portuguesa que incumbem à SHIP,
coordenação de programas e acções com vista a potenciar a desde a primeira hora, o Observatório firmou com ela um
complementaridade das diferentes intervenções e a acrescida protocolo de cooperação, em Maio de 2010, estabelecendo uma
parceria que será útil às duas entidades.

28 |
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Sessão de Poesia de
Homenagem a Camões no Dia
de Portugal
10 de Junho, Dia de Portugal
Sessão de Poesia de Homenagem a Camões
A SHIP e o Guião - Centro de Estudos Portugueses organizaram conjuntamente uma sessão de poesia, de homenagem a Camões,
no dia 10 de Junho do corrente ano, complementando as habituais comemorações do Dia de Portugal, em Lisboa, que incluíram a
Santa Missa, no Mosteiro dos Jerónimos, rezada por intenção de Portugal e de sufrágio pelos que tombaram pela Pátria, e a
Homenagem aos Combatentes junto do respectivo monumento.
Na sessão de poesia, que decorreu junto ao túmulo de Camões, foram apresentados três poemas de associados da SHIP (Dr.
Eugénio Ribeiro Rosa, presidente do Conselho Supremo, Eugénio Roque, membro do Conselho Fiscal, e Coronel Roberto Ferreira
Durão), além da declamação, pela nossa consócia Dr.a Elvira Correia, de dois poemas, alusivos ao tema ("Camões" in Poemas
Ibéricos e "Lápide" no Diário XIII), de Miguel Torga, e pelo consócio Dr. João Abel da Fonseca, das "Palavras do Condestável" in
Os Lusíadas, Canto IV. A sessão terminou com a leitura, pelo presidente da Direcção Central, Dr. Jorge Rangel, de um poema do
saudoso poeta macaense José dos Santos Ferreira, em crioulo português de Macau (patuá), intitulado "Camões - Grándi na
Naçám", que suscitou grande curiosidade.
O sucesso desta sessão recomenda a realização de idênticas iniciativas no futuro.

Camões Nem tenho versos, cedro desmedido


Da pequena floresta portuguesa!
Não morreste com a Pátria, és imortal Nem tenho versos, de tão comovido
E a Pátria renasceu da tua voz, Que fico a olhar de longe tal grandeza.
Da força que tu deste a Portugal
Da força que tu dás a todos nós. Quem te póde cantar, depois do Canto
Que deste à pátria, que to não merece?
Como tu, enfrentamos hoje o perigo O sol da inspiração que acendo e que levanto
De perder o que temos mais sagrado. Chega aos teus pés e como que arrefece.
Por isso estamos hoje aqui contigo.
Precisamos de ti ao nosso lado! Chamar-te génio é justo, mas é pouco.
Chamar-te herói, é dar-te um só poder.
Precisamos do amor e da coragem, Poeta dum Império que era louco,
Da lucidez, da força, da vontade Foste louco a cantar e louco a combater.
Com que chegaste exausto à outra margem
Salvando o hino à lusitanidade. Sirva, pois, de poema este respeito
Que te devo e professo,
Chegou a nossa vez de entrar na arena Única nau de sonho insatisfeito
Onde a vida vale tudo ou não vale nada. Que não teve regresso.
Inspira-nos, Camões, com a tua pena,
Empresta-nos, Luis Vaz, a tua espada. Poesia da autoria de Miguel Torga
Declamada por Elvira Escarduça Correia
Poesia da autoria de Eugénio Roque (sócio n.° 4807)
Declamada pelo autor
(sócio n.° 2802) Camões

Nesta data celebrada,


Camões in Poemas Ibéricos, Os Heróis
30 |
Neste local, que é memória, Mas sempre, e, em grande plano, o Mar!
Estamos aqui reunidos
Ao chamamento da História.

Nesta data celebrada


Foi Camões que aqui nos trouxe,
Um Camões de capa e espada,
Fosse lá ele quem fosse.

Nesta data celebrada


Um Camões de capa e espada,
Torna a memória activada
Por vivências variadas…

Ao longo das nossas vidas


Das de cada um de nós,
Temos presenças sentidas

Muitas vezes, sem maldade,


O Camões foi pesadelo,
Bem lembrado,
No dividir de orações
Do poema celebrado.
Mas eu digo, quem o leu,
Foi graça que Deus lhe deu,
Está liberto do pensado!…
Retrato de Luís de Camões de Manuel de Faria
Tanto dele nos falou,
Das terras onde viveu,
Dos muitos amores que amou…
De Constância, da inconstância.
Camões estará presente ao nosso lado.
Deu nome a um largo em Lisboa Foi Ceuta a combater.
E em muitos sítios mais. Olho vazado. Foi à índia e Macau
Recordo o Pátio do Tronco, Da sua Dinamene…
Onde esteve aprisionado Moçambique, na Ilha, em pores do sol a arder…
Rico sim, só no sentir,
E Coimbra onde estudou No demais, arruinado!
E brigou de capa e espada. Fora um pobre Poeta naufragado,
No sabor do saber apaixonado, Que na foz do rio Mekong,
Nos clássicos se mostrou aprimorado. Póde salvar a memória
São os largos percursos percorridos. Do velho Portugal!
Os vigorosos anos que ditaram,
Para a memória, os versos que ficaram… Nesta data celebrada,
Neste local, que é memória,
Ao acaso recordo a "linda Inês". Mergulhámos em Camões,
Na vida, tanta vez, Num pouco da sua história…
O Cabo das Tormentas,
Melhor, da Boa Esperança. Foi, no fundo, um Português
Vivendo glórias e perigos.
Quem espera sempre alcançai… Hoje podemos chamar-lhe
E os "Doze de Inglaterra"? Um Português dos antigos!
Só de neles pensar Nos defeitos, nas virtudes,
Recordo o Amor, que tão bem soube cantar… Nos saberes, na doação,
Natércia e a Infanta, Violante, também? Num "finis patriae" vivido,
Mitos? Verdades? Quem o póde saber? Projectado no Futuro.
| 31
Querendo saber-lhe a Lição, Poesia da autoria de Miguel Torga
Agora vivemos todos, Declamada por Elvira Escarduça Correia
Que aqui estão reunidos, (sócia n.° 4807)
No temor de um "finis patriae"
Mas com Ele, nesta hora Palavras do Condestável in Os Lusíadas, Canto IV
Já não nos sentimos sós.
Seja esta Hora a da Esperança
13
E seja nossa a vitória,
Não falta com razões quem desconcerte
Vitória de todos nós!
Da opinião de todos, na vontade,
Em quem o esforço antigo se converte
Poesia da autoria de Eugénio Ribeiro Rosa
Em desusada e má deslealdade;
Declamada pelo autor
Podendo o temor mais, gelado, inerte,
(sócio n.° 2642)
Que a própria e natural fidelidade:
Negam o Rei e a Pátria, e, se convém,
Negarão, como Pedro, o Deus que tem.

14
Mas nunca foi que este erro se sentisse
No forte Dom Nuno Álvares; mas antes.
Posto que em seus irmãos tão claro o visse,
Reprovando as vontades inconstantes,
Àquelas duvidosas gentes disse,
Com palavras mais duras que elegantes,
A mão na espada, irado, e não facundo,
Ameaçando a terra, o mar e o mundo.

15
Como?! Da gente ilustre Portuguesa
Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?
Como?! Desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda a parte,
Há-de sair quem negue ter defesa?
Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte
Fundo com retrato de Luís de Camões
De Português, e por nenhum respeito

O próprio Reino queira ver sujeito?

16
Lápide in Diário XIII
Como?! Não sois vós inda os descendentes
Daqueles, que debaixo da bandeira
Luis Vaz de Camões.
Do grande Henriques, feros e valentes,
Poeta infortunado e tutelar.
Vencestes esta gente tão guerreira?
Fez o milagre de ressuscitar
Quando tantas bandeiras, tantas gentes
A Pátria em que nasceu.
Puseram em fugida, de maneira
Quando, vidente, a viu
Que sete ilustres Condes lhe trouxeram
A caminho da negra sepultura,
Presos, afora a presa que tiveram?
Num poema de amor e de aventura
Deu-lhe a vida,
17
Perdida.
Com quem foram continuo sopeados
E agora,
Estes, de quem o estais agora vós,
Nesta segunda hora
Por Dinis e seu filho, sublimados,
De vil tristeza,
Senão co' os vossos fortes pais, e avós?
Imortal,
Pois se com seus descuidos, ou pecados,
É ele ainda a única certeza
Fernando em tal fraqueza assim vos pós,
De Portugal.
Torne-vos vossas forças o Rei novo:
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Se é certo que co' o Rei se muda o povo. 1
Cantaste o teu País, nossa Pátria Imortal
18 Que foi e será sempre o Mar universal.
Rei tendes tal, que se o valor tiverdes Foste como um farol: no Mar não naufragou,
Igual ao Rei que agora alevantastes, Deus com terra e com sal foi no Mar que a sagrou.
Desbaratareis tudo o que quiserdes,
Quanto mais a quem já desbaratastes. Conseguiste, poeta e soldado, juntar:
E se com isto enfim vos não moverdes Terra!: Quase deixou de florir e sonhar.
Do penetrante medo que tomastes. Povo!: Que o Mar ungiu de Glória e de Tormento
Atai as mãos a vosso vão receio, Contigo ele estará nas ondas e no vento.
Que, eu só, resistirei ao jugo alheio.
Foste guerreiro - poeta: Ousar, sonhar - viver!
19 Perdeu-se Alma e Distância, dá-nos teu saber
Eu só com meus vassalos, e com esta Para acharmos um rumo em nosso caminhar.
(E, dizendo isto, arranca meia espada),
Defenderei da força dura e infesta Houve algo grande em nós que desprezámos: Ser! …
A terra nunca de outrem subjugada. Tudo isso perdemos, não soubemos ver
Em virtude do Rei, da pátria mesta, Que lavrarmos a terra era cumprir o Mar.
Da lealdade já por vós negada,
Vencerei não só estes adversários 2
Mas quantos a meu Rei forem contrários." […] Na língua Pátria e Deus se cumpre o meu destino.
Em versos esculpi a voz da Liberdade
Poesia da autoria de Luis Vaz de Camões De Portugal ergui, nosso universo, um hino
Declamada por João Abel da Fonseca Feito de Raiva, Amor, de Paixão e Verdade.
(sócio n.° 3962)
Despertai-nos Senhor! Lusa Pátria esquecida
Quinto Império perdido em ganância e vã glória,
Na índia, no Brasil, em África traída
Renascerá um dia, pura, em nova História.

Poeta sou e a Deus me dou com humildade,


Sua Luz brotará no seio da cristandade
No sangue que lavrou todo o Mar já sem fim.

Sempre me acompanhou e inspirou Jesus


E se não fui, como Ele, cravado na cruz,
A cruz, Palavra e Luz, vai-se cravando em mim.

Poesia da autoria de Roberto Ferreira Durão


Declamada pelo autor
(sócio n.° 4733)

Camões - Grándi na Naçám


(Poema em patuá, crioulo português de Macau)

Poeta qui onçom capaz cantá


Retrato de Luís de Camões Tudo estória di nôsso Portugal;
Poeta qui isquevê pá mundo olá

Grandeza d' alma, gente sim igual.

"Cantando espalharei por toda a parte se a tanto me ajudar


Qui si miséria na vida passá
o engenho e arte"
Atormentado pa sina fatal;
Poeta co talénto levantá
Para ti Camões:
Fama di su quirido Portugal.
Nosso Mestre, nossa Pátria, nosso Futuro - Passado.
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Luis di Camões sã nómi isquivido Na vida conheceu misérias
Co ternura na nosso coraçám Atormentado por uma sina fatal;
Lembrado co doçura na uvido. Poeta com talento levantou
A fama do seu querido Portugal.
Na vida fuzi di persiguiçám,
Vôs quelora quelé disconhicido, Luis de Camões tem o nome gravado
Agora sã qui Grándi na Naçám! Com ternura no nosso coração
E é por todos com doçura lembrado.
Camões - Grande na Nação
(Versão livre, em português) Na vida vítima foi de perseguição
E quase desconhecido por ela passou;
Poeta que sozinho inspirado cantou Agora é, por mérito, o maior da nossa Nação!
Toda a história do nosso Portugal;
Poeta que para o mundo descreveu Poesia da autoria de José dos Santos Ferreira (Adé)
A grandeza de alma desta gente sem igual. Declamada por Jorge Rangel
(sócio n.° 2825)

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O Santo Padre em Lisboa com
o mundo da cultura
"Quanto a Portugal, experimento, sobretudo, sentimentos de alegria, de gratidão,
por tudo quanto fez e faz este país no mundo e na história".

A visita do Santo Padre a Portugal permitiu irradiar uma forte missionário, partilhando o dom da fé com outros povos. O ideal
mensagem de esperança, num tempo de acrescidasdificuldades cristão da universalidade e da fraternidade inspiravam esta
e num espaço afectado por crises morais e financeiras. Os aventura comum, embora a influência do iluminismo e do laicismo
conteúdos das homilías e dos discursos proferidos são de uma se tivesse feito sentir também.
riqueza inegável. Pelo seu alto significado, profundidade e
oportunidade, quisemos incluir neste primeiro número da nova A referida tradição originou aquilo a que podemos chamar uma
série da nossa revista a comunicação feita no memorável «sabedoria», isto é, um sentido da vida e da história, de que fazia
encontro com o mundo da cultura, realizado no grande parte um universo ético e um «ideal» a cumprir por Portugal, que
auditório do Centro Cultural de Belém no dia 12 de Maio de sempre procurou relacionarse com o resto do mundo.
2010:
A Igreja aparece como a grande defensora de uma sã e alta tradição,
Sinto grande alegría em ver aquí reunido o conjunto multiforme da cujo rico contributo coloca ao serviço da sociedade; esta continua a
cultura portuguesa, que vós tão dignamente representais: mulheres e respeitar e a apreciar o seu serviço ao bem comum, mas afasta-se da
homens empenhados na pesquisa e edificação dos vários saberes. A referida «sabedoria» que faz parte do seu património. Este
todos testemunho a mais alta amizade e consideração, reconhecendo «conflito» entre a tradição e o presente exprime-se na crise da
a importancia do que fazem e do que são. (…) Obrigado a quantos verdade, pois só esta pode orientar e traçar o rumo de uma
tornaram possível este nosso encontro, nomeadamente à Comissão existência realizada, como indivíduo e como povo. De facto, um
Episcopal da Cultura com o seu Presidente, Dom Manuel Clemente, povo, que deixa de saber qual é a sua verdade, fica perdido nos
a quem agradeço as expressões de cordial acolhimento e a labirintos do tempo e da história, sem valores claramente definidos,
apresentação da realidade polifónica da cultura portuguesa, aqui sem objectivos grandiosos claramente enunciados. Prezados amigos,
representada por alguns dos seus melhores protagonistas, de cujos há toda uma aprendizagem a fazer quanto à forma de a Igreja estar
sentimentos e expectativas se fez porta-voz o cineasta Manoel de no mundo, levando a sociedade a perceber que, proclamando a
Oliveira, de veneranda idade e carreira, a quem saúdo com verdade, é um serviço que a Igreja presta à sociedade, abrindo
admiração e afecto juntamente com vivo reconhecimento pelas horizontes novos de futuro, de grandeza e dignidade. Com efeito, a
palavras que me dirigiu, deixando transparecer ânsias e disposições Igreja «tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em
da alma portuguesa no meio das turbulências da sociedade actual. todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do
ser humano, da sua dignidade, da sua vocação. […] A fidelidade à
De facto, a cultura reflecte hoje uma «tensão», que por vezes toma pessoa humana exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia
formas de «conflito», entre o presente e a tradição. A dinâmica da de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento
sociedade absolutiza o presente, isolando-o do património cultural humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia
do passado e sem a intenção de delinear um futuro. Mas uma tal incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se
valorização do «presente» como fonte inspiradora do sentido da apresente. Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é
vida, individual e em sociedade, confrontase com a forte tradição irrenunciável» (Bento XVI, Enc. Caritas in veritate, 9). Para uma
cultural do Povo Português, muito marcada pela milenária sociedade composta na sua maioria por católicos e cuja cultura foi
influência do cristianismo, com um sentido de responsabilidade profundamente marcada pelo cristianismo, é dramático tentar
global, afirmada na aventura dos Descobrimentos e no entusiasmo encontrar a verdade sem ser em Jesus Cristo. Para nós, cristãos, a

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Verdade é divina; é o «Logos» eterno, que ganhou expressão humana vosso talento, a possibilidade de falar ao coração da humanidade, de
em Jesus Cristo, que póde afirmar com objectividade: «Eu sou a tocar a sensibilidade individual e colectiva, de suscitar sonhos e
verdade» (Jo 14, 6). esperanças, de ampliar os horizontes do conhecimento e do empenho
A convivência da Igreja, na sua adesão firme ao carácter perene da humano. […] E não tenhais medo de vos confrontar com a fonte
verdade, com o respeito por outras «verdades» ou com a verdade dos primeira e última da beleza, de dialogar com os crentes, com quem,
outros é uma aprendizagem que a própria Igreja está a fazer. Nesse como vós, se sente peregrino no mundo e na história rumo à Beleza
respeito dialogante, podem abrir-se novas portas para a infinita» (discurso no encontro com os Artistas, 21/XI/2009).
comunicação da verdade. «A Igreja - escrevia o Papa Paulo VI - deve Foi para «pôr o mundo moderno em contacto com as energias
entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se vivificadoras e perenes do Evangelho» (João XXIII, Const. ap.
palavra, a Igreja torna-se mensagem, a Igreja faz-se diálogo» (Ene. Humanae salutis, 3) que se fez o Concílio Vaticano II, no qual a
Ecclesiam suam, 67). De facto, o diálogo sem ambiguidades e Igreja, a partir de uma renovada consciência da tradição católica,
respeitoso das partes nele envolvidas é hoje uma prioridade no assume e discerne, transfigura e transcende as críticas que estão na
mundo, à qual a Igreja não se subtrai. Disso mesmo dá testemunho a base das forças que caracterizaram a modernidade, ou seja, a
presença da Santa Sé em diversos organismos internacionais, Reforma e o lluminismo. Assim a Igreja acolhia e recriava, por si
nomeadamente no Centro Norte-Sul do Conselho da Europa mesma, o melhor das instâncias da modernidade, por um lado,
instituído há 20 anos aqui em Lisboa, tendo como pedra angular o superando-as e, por outro, evitando os seus erros e becos sem saída.
diálogo intercultural a fim de promovera cooperação entre a 0 evento conciliar colocou as premissas de uma autêntica renovação
Europa, o Sul do Mediterrâneo e a África e construir uma cidadania católica e de uma nova civilização - a «civilização do amor» - como
mundial fundada sobre os direitos humanos e as responsabilidades serviço evangélico ao homem e à sociedade.
dos cidadãos, independentemente da própria origem étnica e adesão Caros amigos, a Igreja sente como sua missão prioritária, na
política, e respeitadora das crenças religiosas. Constatada a cultura actual, manter desperta a busca da verdade e,
diversidade cultural, é preciso fazer com que as pessoas não só consequentemente, de Deus; levar as pessoas a olharem para além
aceitem a existência da cultura do outro, mas aspirem também a das coisas penúltimas e porem-se à procura das últimas. Convido-
receber um enriquecimento da mesma e a dar-lhe aquilo que se vos a aprofundar o conhecimento de Deus tal como Ele Se revelou
possui de bem, de verdade e de beleza. em Jesus Cristo para a nossa total realização. Fazei coisas belas,
Esta é uma hora que reclama o melhor das nossas forças, audácia mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza. Interceda
profética, capacidade renovada de «novos mundos ao mundo ir por vós Santa Maria de Belém, venerada há séculos pelos
mostrando», como diria o vosso Poeta nacional (Luis de Camões, navegadores do oceano e hoje pelos navegantes do Bem, da Verdade e
"Os Lusíadas", II, 45). Vós, obreiros da cultura em todas as suas da Beleza.
formas, fazedores do pensamento e da opinião, «tendes, graças ao

"Glorioso é o lugar conquistado por Portugal entre as nações pelo serviço prestado à
dilatação da fé: nas cinco partes do mundo, há Igrejas locais que tiveram origem na
missionação portuguesa".

O Santo Padre em Lisboa

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O Santo Padre em Lisboa

Presença da SHIP
A Sociedade Histórica da Independência de Portugal esteve
presente, nos vários momentos da visita do Santo Padre,
através de muitos associados nossos, anonimamente, e pela
participação do presidente da Direcção Central Dr. Jorge
Rangel, no grande "Encontro com o Mundo da Cultura", como
convidado, e pelo director, Eng.° José Luis Andrade, que cola-
borou, como especialista nesta área, directamente com os res-
ponsáveis pela concepção e supervisão da segurança, tendo
sido convidado a cumprimentar pessoalmente Sua Santidade.
E ainda pelo quadro "São Nuno de Santa Maria", da autoria da
artista e nossa consócia Maria de Fátima Sobral Mendonça,
seleccionado para oferta de boas-vindas a Bento XVI.

O Santo Padre em Lisboa

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Macau, uma década após a
transição
Mais de dez anos após a transição, é possível e justo fazer uma Os resultados são muito positivos, registando-se um
apreciação crítica positiva do percurso da nova região chinesa, impressionante desenvolvimento económico e,
formalmente estabelecida, por acordo com Portugal, no dia 20 consequentemente, um invejável desafogo financeiro, pese
de Dezembro de 1999. Um balanço correcto desta primeira embora a excessiva dependência em relação às abundantes
década revelará, inequivocamente, o sucesso da aplicação do receitas geradas pelos jogos de fortuna ou azar, e não obstante
princípio "um país, dois sistemas" e a solidez do trabalho alguns assinaláveis acidentes de percurso e visíveis
realizado, pela administração portuguesa, no período de desequilíbrios que não foram suficientemente acautelados e
transição, quando se fez uma enorme aposta nas infra- que resultaram, em especial, do rápido crescimento
estruturas, na consolidação das instituições da sociedade civil, verificado.A sua correcção constitui, agora, a maior prioridade,
no reforço da capacidade da administração pública, na e também o maior desafio, na acção governativa nos próximos
economia, na acção social, na educação e na cultura. anos, estando a atenção da população, mais exigente e
interventora, muito insistentemente virada, também, para o
É também correcto reconhecer que o acordo firmado com reforço de medidas de combate à corrupção e à ilegalidade
Portugal, em 1987, foi respeitado, gozando a região, administrativa.
efectivamente, de ampla autonomia, sob o acompanhamento
sempre atento das autoridades centrais chinesas. As Merece igualmente, menção a intensificação das relações com
instituições funcionaram e a maneira de viver da população foi os Países de Língua Portuguesa, desejando a China que Macau
mantida, sendo preservados os direitos, liberdades e garantias utilize esta sua mais-valia, que é a ligação histórica, cultural e
assegurados anteriormente pela Constituição da República comercial ao mundo lusófono, cabendo também a Portugal
Portuguesa e agora incorporados na Lei Básica da Região. saber tirar maior proveito deste desígnio pragmaticamente
expresso e constantemente reafirmado. Foi ali que o governo
chinês decidiu fazer funcionar, em permanência, o Fórum para
a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países
de Língua Portuguesa, multiplicando-se, desde então, as
iniciativas neste contexto, estendidas às mais diversas áreas,
incluindo a académica e a cultural. Ainda agora, em Novembro
de 2010, se realizou a 3.a Conferência Ministerial, no âmbito
deste Fórum, que contou com a presença de altas entidades
dos respectivos Estados.

É, obviamente, importante que a SHIP e sua


revista acompanhem, tão de perto quanto
possível, os marcos históricos e a presença
viva de Portugal e dos Portugueses no
mundo. Por isso, este primeiro número da
nova série da nossa revista contém
trabalhos sobre a África lusófona, o Brasil
e Macau.
Cerimónia de Transferência de Poderes de Macau

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público-privada, que ligará Hong Kong a Macau

Foi também em Macau que se realizaram os I Jogos da


Lusofonia, ali reunindo em competição os melhores atletas dos
países lusófonos. Fazendo uso pleno do seu modelar parque
desportivo, Macau foi, em anos recentes, palco de outras
relevantes competições, como os Jogos da Ásia Oriental e os
Jogos Asiáticos em Recinto Coberto, para além do seu
mundialmente famoso Grande Prémio e de vários outros
eventos desportivos internacionais. Os II Jogos da Lusofonia
realizaram-se em Lisboa, devendo os próximos ter lugar em
Goa.
A classificação, pela UNESCO, em 2005, do centro histórico da
cidade como património mundial contribuiu, por outro lado,
para garantir uma intervenção mais consequente e correcta na
preservação do legado histórico e arquitectónico, ainda mais
importante agora face às ameaças de descaracterização que
abundantes e desproporcionadas construções ligadas aos novos
operadores dos casinos então a provocar. A proposta,
preparada vinte anos antes pela administração portuguesa, foi
reformulada e retomada após a transição e mereceu o apoio
total da China.
Aprovação da construção da ponte, uma parceria
público-privada, que ligará Hong Kong a Macau De acordo com um documento governamental central,
estabelecendo directivas e metas económicas, até 2020, para
todo o vasto delta do Rio das Pérolas, uma das zonas de mais
espectacular desenvolvimento em todo o mundo e onde Macau
se insere, privilegiam-se, para esta região especial, o papel de
plataforma de cooperação com o mundo lusófono e o de
grande e diversificado centro de turismo, valorizado pela
existência, exclusiva em todo o território chinês, de
modalidades diversas de jogos de fortuna ou azar e orientado,
complementarmente, para congressos e convenções, incentivos
e grandes espectáculos. Também se pretende que Macau se
assuma como importante centro educativo regional, com a
Universidade de Macau como pólo dinamizador, para o que foi
já disponibilizado um amplo espaço, numa ilha chinesa vizinha,
para a construção de um novo "campus", que será maior do que
o de qualquer universidade de Portugal. Estas novas instalações
estão já em acelerada edificação.

Para viabilizar o crescimento desejado, acaba de ser autorizado


o alargamento da área de Macau em cerca de 12%, ao mesmo
tempo que foi aprovada a construção da ponte, uma parceria
público-privada, que ligará Hong Kong a Macau e que será uma
das mais longas do mundo.

Abrem-se, assim, aos interessados, locais e do exterior,


renovadas e aliciantes oportunidades de participação e de
investimento na próxima década.
Recordando a história de sucesso que foi o percurso de Macau
dez anos após a transferência de poderes de Portugal para a
Aprovação da construção da ponte, uma parceria República Popular da China, vem-nos inevitavelmente à
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lembrança aquele momento profundamente sentido quando o Vista aérea de Macau
governador Vasco Rocha Vieira recebeu a bandeira nacional e a
apertou comovidamente ao coração. Aquela impressionante
imagem que correu mundo, representou o fim de um tempo de
Portugal, em cujo nome a missão fora exemplarmente
cumprida. Estavam criadas as condições para o território Um balanço correcto desta primeira década
trilhar, sem temor e em segurança, os novos caminhos que lhe revelará a solidez do trabalho realizado,
foram traçados, ficando bem preparado para enfrentar e vencer pela Administração portuguesa, no período
os desafios que a sua nova situação político - administrativa lhe de transição.
lançou, no dealbar do novo milénio.
Presidente do Instituto Internacional de Macau Membro do
Conselho Supremo
e presidente da Direcção Central da SHIP Académico
Honorário da Academia Portuguesa de História
Ex-membro do Governo de Macau

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Desafios de Portugal - Página
de Abertura
O Prof. Doutor Adriano Moreira foi a escolha óbvia para abrir o ciclo “Os Grandes Desafios de Portugal”, promovido pela
SHIP e em que intervieram prestigiadas personalidade ligadas a diversificadas áreas da actividade, como os Professores
Marcelo Rebelo de Sousa e João César das Neves, os Generais José Gabriel Espírito Santo e José Eduardo Garcia Leandro,
o Eng.° Ângelo Correia e o Dr. José Miguel Júdice.“Desafios de Portugal” foi o título da comunicação de Adriano Moreira,
que presidia então ao Conselho Supremo da SHIP, de que é o membro n.° 1. Nela são lúcida e serenamente identificados
os mais relevantes desafios que se colocam a Portugal no dealbar do século e do milénio.
Desafios de Portugal
Portugal foi de regra um país dependente de factores externos, mais uma vez os condicionamentos externos
decidido a procurar fora do território matricial apoios políticos foram determinantes, mais uma vez foi
e recursos materiais que habilitassem o Estado a desempenhar necessário reequilibrar o sistema político
as funções e realizar os objectivos do seu conceito estratégico nacional com uma amarra externa, a qual foi
variável em cada época. Logo na fundação procurou o apoio da a nova Europa sem qualquer outra escolha".
Santa Sé; desde a primeira dinastía que as relações com os
poderes europeus foram objecto de cuidado, e a necessidade de A permanência deste conceito estratégico, de conteúdo
a soberanía ir adquirir os fundos estruturais indispensáveis variável, e com invariável dependência de factores externos,
mudou mais de uma vez de sentido, mas sem afectar a teve numa diplomacia de excelência um instrumento
permanência da determinação. fundamental, e no apego da nossa diáspora às raízes um
Digamos que a definição jurídica, também variável no tempo, suplemento do amor pátrio e de remessas das poupanças. A
do sistema político foi tendencialmente mais restrita do que o Revolução de 1974 foi um ponto final no Império Euromundista
próprio sistema que incluí elementos exteriores à soberanía, de que éramos parte por responsabilidade histórica fundadora,
específicamente as alianças, das quais a mais duradoira é a mais uma vez os condicionamentos externos foram
inglesa, que no século vinte foi a NATO, para depois de 1974 ser determinantes, mais uma vez foi necessário reequilibrar o
a Europa em formação. sistema político nacional com uma amarra externa, a qual foi a
É por outro lado certo que durante séculos o modelo político nova Europa sem qualquer outra escolha. Por leitura apressada,
foi o da cadeia de comando, com o regime monárquico a um alto responsável político anunciou por então as novas
colocar o Reí no topo de um povo em armas durante toda a caravelas portadoras dos fundos estruturais europeus, sem
longa dinastia da reconquista, depois o povo deitado a longe na reparar em que nestas não estava qualquer contribuição dos
dinastia da expansão marítima, com D. João II a amarrar ao pinhais de D. Diniz, e amarrados os críticos ao Velho do
leme a mão do marinheiro de Pessoa, para finalmente, com o Réstelo, com o equívoco de não reconhecer no personagem o
desastre de Alcácer Quibir, se desagregar a cadeia de comando, primeiro dos europeístas, contrário como foi à decisão de
e logo o Estado, e finalmente a desamparada sociedade civil. O deitar o país a longe.
sebastianismo recorrente, aínda por vezes presente na A severa crise com que entramos no terceiro milénio, esgotado
interpretação existencial do modelo constitucional em que o conceito estratégico nacional secular, também parece
vivemos, guardou a memória dessa cadeia de comando. Em finalmente despertar a compreensão de que a conjuntura é
mais de uma crise animou o carisma de interventores radicalmente nova em relação à experiência secular, que as
eventualmente vistos no modelo do Presidente-Rei, que mais exigências dirigidas à capacidade do Estado ameaçam colocá-lo
uma vez Pessoa julgou reconhecer em Sidónio, e que talvez na categoria de Estado exíguo, quer na definição em progresso
fosse a inspiração de Mouzinho quando proclamou que este das hierarquias internas da Europa, quer na hierarquia da
Reino é obra de soldados, no tempo em que Antero dirigia os Europa nas balanças de poderes mundiais, balança estratégica,
olhares para a Europa. É do livro do nosso desassossego que balança científica e técnica, balança económica. Assim como o
ambos se tenham suicidado. Império Euromundista teve o seu ponto final, assim como o
Assim como a india foi uma deslumbrante origem de fundos conceito histórico português esgotou com a derrocada daquele,
estruturais, o esgotamento do modelo encontrou substituto no assim agora o desafio europeu é colectivo, a recuperação da
Brasil das ilusões, e mais tarde, perdida ali a soberanía, no Europa dos desastres das suas guerras civis depende
arranque para África depois da Conferência de Berlim de 1885. reconhecidamente de solidariedades funcionais das várias
soberanias. E por isso Portugal está estruturalmente envolvido
"A Revolução de 1974 foi um ponto final no no processo europeu, e inscrito na Europa que ela, ainda com
Império Euromundista de que éramos parte definição incerta, está envolvida no turbilhão do globalismo
por responsabilidade histórica fundadora, que colocou todas as áreas culturais do mundo a intervir no

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processo com independência política. vezes em relação ao povo que fomos. Reeditam-se as
É uma novidade estar Portugal envolvido na primeira linha das Conferências do Casino, volta a circular o alarme de João de
contradições do processo interno europeu, com a evidência de Andrade Corvo (Perigos: Portugal na Europa e no Mundo,
que, por experiência passada, é a capacidade diplomática que 1870), onde escreveu estas palavras: "é grave a situação de
exige reforço e criatividade para estar nos centros de decisão, e Portugal. Confusão e incoerência nos princípios, grande
não ser apenas destinatário dos efeitos das decisões em que desordem nas finanças; enfraquecimento deplorável da
não participa. É pela participação respeitada nessa gestão do autoridade; falta de confiança na vitalidade do país, e nas suas
interesse comum europeu que pode conseguir apoio à reserva faculdades políticas e económicas; um desalento injustificável
de um espaço de liberdade para agir em favor do vasto atrás do qual se esconde um perigoso indiferentismo…". Leia-se
património de presenças que espalhou pelo mundo. o de novo publicado trabalho de Augusto Fuschini, O Presente
Para responder à exigência de reinvenção de um conceito e o Futuro de Portugal (1899), onde se encontram
estratégico nacional renovado, é prioritária a meditação sobre considerações semelhantes. Ou o desâ nimo de Eça de Queiroz
as capacidades reais do Estado, e sobre a coerência da sua (O Francesismo) quando escreveu: "porque nós somos
relação com a comunidade nacional. realmente o povo que se compraz em estar quieto entre os
Nesta rede de exigências, acontece que muitas referências choupais, a ver correr as águas meigas, pensando em coisas
históricas estão ultrapassadas: a fronteira geográfica é hoje saudosas. Fomos à índia, é verdade, mas quase três séculos são
simples apontamento administrativo vista a livre circulação passados, e ainda estamos descansando, derreados, desse
europeia; a fronteira de segurança é a da NATO; a fronteira violento esforço a que nos obrigaram alguns aventureiros que
económica é a da União; a livre circulação de pessoas e o tinham pouco do fundo comum da nossa raça…". Tudo traduz o
descontrolo das migrações reconstituem uma composição mesmo estado de espírito, que tarda em reconhecer que
populacional que recorda a época em que os Reis de Portugal alguma frequente necessidade, não assumida, de avaliar em
eram os Reis das três Religiões, com todas as dificuldades cada conjuntura a relação entre o Estado, a época, a sociedade
inerentes; a cidadania desdobra-se em fidelidades múltiplas, civil, e o tempo perspectivável, caracteriza a história política
que se especificam na fidelidade ao Estado português, na portuguesa, e desperta esta angústia. Uma angústia que parece
fidelidade à Europa em formação, e na fidelidade aos interesses por vezes imaginar que a definição do Estado, e da sua relação
comuns da Humanidade, fidelidades nem sempre fáceis de com o povo e a conjuntura, diz respeito a elementos invariáveis
relacionar coerentemente: é uma exigência do novo conceito na sua história. Ora aquilo que não parece fundado é desfiar
estratégico nacional a formular procederá racionalização do uma teoria intimista de pontos fracos da memória de existir do
pluralismo cultural que regressou às nossas problemáticas do povo, evitando o doloroso realismo de confrontar o Estado
futuro, e assegurar a coerência das fidelidades múltiplas com a situação exógena que o globalismo acentuou, para o
desafiantes. redefinir com lucidez em termos de eliminar a recuperada
Não é possível assegurar o desenvolvimento destas traves actualidade das palavras de Andrade Corvo. Em resumo, como
mestras sem que uma vontade cívica consistente assuma a doutrina um renovado Fukuyama (State-Building, 2005),
responsabilidade da escolha e crítica das decisões políticas reconstruíra relação entre a população e o Estado, a partir de
envolvidas, e sem que esteja assegurado que o Estado não sofre uma consciência cívica assumida das reais capacidades e da
do fenómeno de redundância que mais de uma vez se verificou direcção a seguir na conjuntura nova, por vezes imprevista, de
ao longo da história. regra apenas conhecida pelo conjunto de efeitos colaterais que
a definem, e não foram antecipados.
"A severa crise com que entramos no Sugerimos que a vinculação à nova forma de ser Europa é um
terceiro milénio, esgotado o conceito projecto para a nova época posterior ao colapso do Império
estratégico nacional secular, também parece Euromundista, mas não é um envolvimento português sem
finalmente despertar a compreensão de que a precedentes nas passadas formas de a Europa se entender a si
conjuntura é radicalmente nova em relação à própria. Este facto desafiante e imperativo exige agora a
experiência secular, que as exigências presença de Portugal em todos os centros de decisão, para não
dirigidas à capacidade do Estado ameaçam ser apenas o destinatário delas. Tendo porém sempre presente
colocá-lo na categoria de Estado exíguo, a experiência da sua valiosíssima história nacional, porque o
quer na definição em progresso das esquecimento dela, e do que ensina, facilita que o passado mais
hierarquias internas da Europa, quer na sombrio subitamente bata com estrondo à porta do futuro,
hierarquia da Europa nas balanças de destroçando projectos e ilusões. Por exemplo, não pode
poderes mundiais, balança estratégica, continuar a verificar-se a prática da política furtiva europeia,
balança científica e técnica, balança econó- que caracteriza muitos dos passos dados, com total falta de
mica". participação da opinião pública informada e dos Parlamentos
nacionais. Não é recomendável que o alargamento europeu se
Infelizmente, o pessimismo frequenta excessivas vezes as faça, como se tem feito, sem estudos e discussão assumida
nossas circunstâncias de desafio, e nesta data multiplicam -se sobre a questão da governabilidade; não é da prudência
os textos de desânimo em relação ao povo que somos, por governativa que o alargamento das fronteiras se faça sem
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estudos e discussão assumida sobre a garantia de obter uma anunciadas para serem ameaçadoramente usadas na defesa de
fronteira de países amigos: os pequenos paí ses são os mais interesses próprios, designadamente energéticos.
interessados em que o diálogo europeu seja reestruturado, e
essa é apenas uma das muitas razões que exigem a lembrada "Portugal fez uma longa caminhada de
revalorização da vertente diplomática. séculos, certamente com pontos fracos e
pontos fortes na avaliação feita em cada
nova conjuntura, mas o quefica de
permanente no património da Humanidade são
as emergências em que se inscreve a criação
de novos países, entre os quais se destaca
o Brasil, a contribuição para quefinalmente
chegássemos a uma Declaração Universal dos
Direitos Humanos, a marca no direito
internacional sobrevivente às catástrofes
militares, a doação da língua ao diálogo de
milhões de seres humanos, a inscrição de
valores inovadores no património de áreas
culturais por onde passaram ou a soberania
ou a evangelização, e a mundialização das
interdependências que desafiam agora as
intervenções da globalização emprogresso.
Na génese dos pontos fortes e dos pontos
fracos dessa globalização estão a
intervenção e a responsabilidade
portuguesas".

Nesta perspectiva de solidariedade atlântica se articula a


manutenção de uma janela de liberdade governativa e
soberana, para desenvolver a política que recebeu forma na
Desafios de Portugal CPLP. É uma vertente que envolve articulação da segurança do
Atlântico Norte com a segurança do Atlântico Sul, reconhece a
importância dos Arquipélagos Portugueses, e também de Cabo
Verde, que ajuda a renovar e modernizar a solidariedade do
Brasil, que presta ao globalismo o serviço da solidariedade
A definição dos espaços em que tal intervenção
horizontal dos povos de língua portuguesa. E valoriza também
necessariamente vai decorrer tem uma exigência de opção que
a solidariedade das comunidades espalhadas pelo mundo, as
diz respeito ao conflito crescente entre o americanismo e o
quais, ainda que não falando a língua, não esquecem as raízes e
europeísmo, com referências simplificadoras que vinculam os
os laços com um Portugal que por ali passou no exercício da
EUA a Marte e os europeus a Vénus. Passando por alto os erros
soberania, ou na função de pregar a todas as criaturas, ou
do unilateralismo americano, e o despropósito de alguma
simplesmente instalando a diáspora que é uma dimensão
pontual arrogância de europeus, as novas ameaças globais,
estruturante da presença de Portugal no mundo.
sobretudo a partir do 11 de Março, aconselham todos, e
sobretudo os pequenos países, entre estes aqueles que pela Esta estrutura multifacetada implica que, se a competição
história dos ocidentais e pela geografia estão na frente económica é hoje uma frente europeia e por isso também
atlântica, a intervir para impedir que se reproduza agora nesse específicamente portuguesa, a dimensão cultural vai
mar a desastrada experiência europeia de os Estados não terem acentuadamente para além do espaço europeu e ocidental, com
vizinhos, mas sim inimigos íntimos. Para Portugal, a uma dimensão de liberdade que se destaca dos deveres de
solidariedade atlântica coloca-o na centralidade dos interesses cooperação dentro dos Tratados da União, da NATO, e da
ocidentais, enquanto que a ruptura agrava o risco do ONU, com destaque para a cooperação militar que se
agravamento da condição periférica, que já nos inquieta. desenvolveu com êxito no antigo Ultramar.
Temos por suficientemente experimentado que aquela
perspectiva da articulação a Marte e a Vénus estimula
irracionalismos unilateralistas, como se passa com o anúncio
francês de um novo conceito de utilização das armas
estratégicas, no passado tidas para não serem usadas mas sim
para assegurar conten ção recíproca dos Blocos, agora
| 47
Desafios de Portugal

"Trata-se de um desafio agudo, agravado


pela longa falta de regulação a que se
entregou o Estado português, o qual
despertou finalmente na data em que uma Desafios de Portugal
crise financeira com pouco precedente
alarga o risco de o fazer evoluir para
Estado exí guo. Trata-se de um risco que
afecta quer o desempenho no espaço europeu
e ocidental, quer na área de liberdade que Trata-se de um desafio agudo, agravado pela longa falta de
outras antigas soberanias coloniais regulação a que se entregou o Estado português, o qual
europeias ciosamente guardam, com relevo despertou finalmente na data em que uma crise financeira com
para a França, a Inglaterra, a Bélgica, e a pouco precedente alarga o risco de o fazer evoluir para Estado
Holanda". exíguo. Trata-se de um risco que afecta quer o desempenho no
espaço europeu e ocidental, quer na citada área de liberdade
Daqui resulta a evidência de que, quer na frente interna que outras antigas soberanias coloniais europeias ciosamente
europeia e ocidental, quer na referida frente de liberdade, o guardam, com relevo para a França, a Inglaterra, a Bélgica, e a
objectivo da qualificação, o ensino e a investigação, exigem Holanda.
uma mobilização prioritária. Talvez não seja difícil reconhecer
que as chamadas Declaração de Lisboa e Declaração de "…não pode continuar a verificar-se a
Bolonha se conjugam para exigir políticas que tendem para o prática da política furtiva europeia, que
modelo das políticas dos Estados unitários, e que as redes, caracteriza muitos dos passos dados, com
embora contratualizadas, ganham uma autonomia sisté mica totalfalta de participa ção da opinião
que constrange a liberdade residual dos Estados. É por isso pública informada e dos Parlamentos
que, ao mesmo tempo que o objectivo de obter uma nacionais".
competitividade que exceda a dos EUA arrisca afectar a
solidariedade atlântica, também a hierarquização qualitativa Pareceu-nos que as políticas de contenção não podem atingir
das universidades do espaço europeu e ocidental ameaça impor esta frente fundamental com critérios que ameaçam a
a situação periférica às instituições dos pequenos paí ses, mercadorização do ensino, o enfraquecimento da investigação
abrindo novos Caminhos de Santiago para sedes pouco fundamental, a menorização das ciências sociais em relação
numerosas num centro activo. com o espaço definido principalmente pela língua. A língua
que, pela expansão, já não é nossa, é também nossa. Tão
exigente identificação e coordenação de interesses aponta para
que as despesas com a investigação, o ensino, e a promoção da
área cultural, sejam consideradas despesas de soberania,
salvaguardadas da teologia de mercado que anda a contribuir
para relativizar os valores ocidentais, europeus e portugueses.

Portugal fez uma longa caminhada de séculos, certamente com


pontos fracos e pontos fortes na avaliação feita em cada nova
conjuntura, mas o que fica de permanente no património da
48 |
Humanidade são as emergências em que se inscreve a criação esforço indispensável para que essa participação seja
de novos países, entre os quais se destaca o Brasil, a mundialmente válida e reconhecida. Começando por dar
contribuição para que finalmente chegássemos a uma notícia de que o património humano ocidental, europeu, e
Declaração Universal dos Direitos Humanos, a marca no direito mundial, que se trata de preservar e dinamizar, não é nosso.
internacional sobrevivente às catástrofes militares, a doação da Mas também é nosso.
língua ao diálogo de milhões de seres humanos, a inscrição de
valores inovadores no património de áreas culturais por onde Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa
passaram ou a soberania ou a evangelização, e a mundialização Presidente da Academia das Ciências de Lisboa
das interdependências que desafiam agora as intervenções da Membro n.° 1 e ex-presidente do Conselho Supremo da SHIP
globalização em progresso. Na gé nese dos pontos fortes e dos
pontos fracos dessa globalização estão a intervenção e a
responsabilidade portuguesas. Não podemos ignorar o dever de
continuarmos participantes nas respostas, desenvolvendo o

| 49
Saúde em Africa - Página de
Abertura
O Prof. Doutor António Ferreira, presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, no Porto, apresentou,
como convidado, uma notável comunicação na Sala do Conselho Supremo da SHIP, em 26 de Abril do corrente ano, em
que não só identificou lucidamente os grandes desígnios de Portugal na hora presente, como também apontou os graves
problemas da saúde em África, explicando, neste contexto, a capacidade revelada por aquele hospital no desenvolvimento
duma cooperação eficaz com Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Foi um prazer ouvi-lo e conhecer a sua deter-
minação e o seu sentido de liderança na coordenação das acções de cooperação e no bom funcionamento daquele hospital,
bem como a sua compreensão do sentido da História e dos desafios que se colocam a Portugal e aos portugueses.
Saúde em África
mito e horizonte
Os desígnios de Portugal
Creio que Portugal, uma das mais antigas nações organizadas riqueza dos portugueses, criaram, no cidadão comum, alguma
em Estado com fronteiras estáveis, pelo menos na sua ideia de facilitismo, a ideia de que tudo se pode alcançar sem
dimensão europeia, construiu a sua História secular porque os esforço, sem sacrifício. O nobre valor do trabalho desvanesceu-
seus filhos sempre puderam perceber um desígnio que os se e não se assistiu, nem que fosse por simpatia, à adopção dos
orientava e pelo qual lutavam, fosse ele o da nacionalidade, o conceitos de rigor e organização que caracterizam muitos dos
do império ou, há quem sustente, por certo com fundamento, o nossos parceiros europeus. Esfumou-se a indústria tradicional,
da Europa. Uma visão, um sonho, um desejo comum, abandonaram-se as pescas, desfez-se a agricultura e não
interiorizado, partilhado e mobilizador. Creio, também, que a emergiram verdadeiras alternativas produtivas, nem verdadeira
crise dos nossos tempos - e não me refiro à actual crise inovação. E os fluxos financeiros avultados que vieram da
económica, certamente muito importante mas seguramente Europa, que permitiram construir uma das melhores redes
circunstancial, mas antes à crise dos valores, à crise do viárias existentes, que fomentaram obras públicas, que
desânimo, à crise da confiança, à crise do orgulho nacional - patrocinaram investigação, infelizmente, algumas vezes, pouco
creio que esta, mais profunda e prolongada crise, se deve, pelo produtiva, que também subsidiaram a ineficiência e a
menos em parte, à ausência de um desígnio, tal como acima o inoperância chegarão, mais cedo que tarde, ao fim. E
defini, para Portugal. Durante séculos, garantida a estabilidade voltaremos a depender exclusivamente de nós. Este desafio,
territorial ibérica, Portugal centrou a sua estratégia no mar e no apesar de aqui apresentado de forma excessivamente
além-mar. Como potência europeia marítima, encontrou no dramática, é um formidável desafio, porventura, o maior
mar o seu desígnio, deu novos mundos ao mundo, disseminou desafio dos últimos tempos. A meu ver, será possível vencê-lo
a língua, expandiu a sua cultura, influenciou milhões e milhões se formos capazes de honrar a gesta das gerações passadas, o
de seres humanos em todo o planeta, criou o mistério da patrimó nio que nos legaram, o sangue ancestral sobre o qual
diáspora, e, como povo, gerou a Portugalidade. E, nos últimos se construiu este país. E fazê-lo com imaginação, com
decénios, de forma traumática e súbita e, julgo, pouco discutida modernidade, com trabalho, com a mente aberta,
e ainda menos explicada, mudou radicalmente a sua orientação permanentemente dispostos à mudança - a única constante da
- voltou costas ao mar, olhou para as potências continentais equação para o desenvolvimento, tal como decorre da lírica
europeias, centrou-se na ideia de uma Europa unida. De facto, Camoniana - "Todo o mundo é composto de mudança,
o fim do império, a transição democrática e a integração /Tomando sempre novas qualidades".
europeia promoveram o ancoramento, ocorrido em curto
período histórico, da economia portuguesa na Europa. "Durante séculos, garantida a estabilidade
As relações entre Portugal e África, que se mantiveram, do territorial ibérica, Portugal centrou a sua
ponto de vista da economia, da política e da opinião pública, estratégia no mar e no além-mar. Como
durante muito do tempo deste curto período histórico, potência europeia marítima, encontrou no
exclusivamente centradas nos novos Estados de expressão mar o seu desígnio, deu novos mundos ao
oficial portuguesa, representam um peso relativamente mundo, disseminou a língua, expandiu a sua
pequeno no total dos investimentos e do comércio. E, com esta cultura, influenciou milhões e milhões de
opção europeísta, com os, aparentemente intermináveis, seres humanos em todo o planeta, criou o
milhões que vêm da Europa, Portugal desenvolveu-se, mistério da diáspora, e, como povo, gerou a
aproximou-se, não sei se de forma sustentada, dos padrões Portugalidade".
devida dos países industrializados. Qual ouro do Brasil, os
fundos europeus, obtidos sem recurso a verdadeiro aumento Sinto, sem nenhuma espécie de saudosismo, que as ideias
do trabalho, ou melhor, da capacidade produtiva e geradora de chave deste projecto de mudança, os desígnios que nos devem
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orientar são a língua, o mar e a diáspora. E uma séria e permanentemente dispostos à mudança - a única constante da
profunda aposta no conhecimento. Seja através das auto - equação para o desenvolvimento, tal como decorre da lírica
estradas da informática e dos novos sistemas de informa ção, Camoniana - "Todo o mundo é composto de mudança,
seja pela presença económica e cultural, seja pelo forte /Tomando sempre novas qualidades". Sinto, sem nenhuma
investimento e mobilização de recursos humanos nacionais, espécie de saudosismo, que as ideias chave deste projecto de
acredito que o futuro de Portugal passa pelos países de língua mudança, os desígnios que nos devem orientar são a língua, o
oficial portuguesa em África e na América e pelas portas e mar e a diáspora. E uma séria e profunda aposta no
mercados regionais que eles nos podem abrir. Sem, com isto, conhecimento. Seja através das auto -estradas da informática e
ser necessário voltar, novamente, as costas à do Brasil, os dos novos sistemas de informa ção, seja pela presença
fundos europeus, obtidos sem recurso a verdadeiro aumento económica e cultural, seja pelo forte investimento e
do trabalho, ou melhor, da capacidade produtiva e geradora de mobilização de recursos humanos nacionais, acredito que o
riqueza dos portugueses, criaram, no cidadão comum, alguma futuro de Portugal passa pelos países de língua oficial
ideia de facilitismo, a ideia de que tudo se pode alcançar sem portuguesa em África e na América e pelas portas e mercados
esforço, sem sacrifício. O nobre valor do trabalho desvanesceu- regionais que eles nos podem abrir. Sem, com isto, ser
se e não se assistiu, nem que fosse por simpatia, à adopção dos necessário voltar, novamente, as costas à Europa. Creio mesmo
conceitos de rigor e organização que caracterizam muitos dos que quanto maior for a nossa vocação e expansão atlântica
nossos parceiros europeus. Esfumou-se a indústria tradicional, mais respeitados seremos na Europa e no Mundo. Os laços
abandonaram-se as pescas, desfez-se a agricultura e não culturais que nos ligam aos povos africanos e os hábitos
emergiram verdadeiras alternativas produtivas, nem verdadeira comuns construídos ao longo de decénios e de séculos, não
inovação. E os fluxos financeiros avultados que vieram da tendo garantida a sua perenidade, também não desaparecem de
Europa, que permitiram construir uma das melhores redes um momento para o outro. Porém, embora seja legítima a
viárias existentes, que fomentaram obras públicas, que expectativa de que esta comunhão de valores possa facilitar o
patrocinaram investigação, infelizmente, algumas vezes, pouco investimento e a actividade comercial portuguesa em África,
produtiva, que também subsidiaram a ineficiência e a ela não é, por si só, garantia de sucesso, embora possa
inoperância chegarão, mais cedo que tarde, ao fim. E funcionar como catalizador do maior relevo. Defender o
voltaremos a depender exclusivamente de nós. Este desafio, retorno a uma actividade externa voltada para o mar (despido
apesar de aqui apresentado de forma excessivamente de carga política depreciativa) significa, apenas, que o empenho
dramática, é um formidável desafio, porventura, o maior negocial e o pragmatismo económico podem contribuir, de
desafio dos últimos tempos. A meu ver, será possível vencê-lo forma decisiva, para incrementar e reforçar o relacionamento
se formos capazes de honrar a gesta das gerações passadas, o com os países africanos e ajudar a cumprir um desígnio de
patrimó nio que nos legaram, o sangue ancestral sobre o qual Portugal.
se construiu este país. E fazê-lo com imaginação, com
modernidade, com trabalho, com a mente aberta, E porque o sinto e porque acredito, esse é também um desígnio
do Hospital de São João.

O Hospital de São João e a cooperação


O Hospital de São João, mais do que as paredes, já muito reno- governativa e gestionária, chegou ao século XXI e aos dias de
vadas, do seu vetusto edifício, mais do que a sofisticação do seu hoje, altura em que, com rejuvenescida pujança, sustenta um
parque tecnológico, mais do que a assépsia das suas unidades verdadeiro projecto de refundação, que o relança para a mais
intensivas, mais do que a técnica e a arte magistral dos seus elevada notoriedade entre os pares, que faz renascer a espe-
especializados profissionais, o Hospital de São João, sendo rança e que o projecta para mais 50 anos de excelência assis-
tudo isto, é, superlativa e essencialmente, o conjunto de 5.400 tencial, investigacional, formativa, humanista e cultural.
pessoas que nele trabalham e interagem com o objectivo pri-
mordial de acolher e tratar bem os que de nós necessitam. Por
isto, por ser um lugar do Homem, por ser um lugar de Vida, é
um lugar de cultura e um lugar com cultura. É, pois, um lugar
com História - que começa no século XIX, mais propriamente
em 1825, com a criação da Real Escola de Cirurgia do Porto e se
concretiza mais de 200 anos depois, em 1959, com a construção
do Hospital Escolar de São João - que acompanhou a evolução
do País e do Mundo e por ela foi influenciado, que, atraves-
sando, com esforço desmedido dos seus profissionais, períodos
tempestuosos ou sendo conduzido pela corrente benigna do
mais calmo dos rios, vivendo tempos de entusiástico desenvol-
vimento ou, por vezes, pasmando na adinamia da inoperância
52 |
Hospital de São João Hospital de São João

O Hospital de São João nasceu e viveu num período particular- "Ocorresse, em todas as áreas da sociedade
mente conturbado da História de Portugal e acompanhou os portuguesa, a mesma produtividade que se
tempos traumáticos que caracterizaram, nos últimos decénios, verifica no Hospital de São João e a crise,
as relações de Portugal com os povos de África. Muitos dos de que tanto se fala e que tanto se sente,
seus filhos nasceram ou viveram em África. Muitos dos seus seria, porventura, mais facilmente ultrapas-
filhos deixaram o seu sangue e as suas lágrimas nas terras sada. Estes resultados conferem-nos legiti-
africanas banhadas pelo mar que sempre nos uniu, muitos, com midade, aliás previamente validada pelo
genuína generosidade e esforço, ajudaram e ajudam a construir Governo da República Portuguesa, para
os novos países que, com visionária decisão, adoptaram a assumir os compromissos das parcerias com
língua portuguesa como forma oficial de expressão, muitos, em os países de língua portuguesa em África".
nome de um desígnio que, porventura, não perfilhavam, lá per-
deram as suas vidas. Recentemente visitei a Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe,
correspondendo a honrosos e amáveis convites dos seus Mini-
stros da Saúde. Na Guiné, emocionei-me até às lágrimas ao
assistir ao comovido abraço com que dois antigos combatentes,
após reviverem os dramáticos momentos passados, há muitos
anos atrás, em cada um dos lados da barricada, nas margens de
um belíssimo rio selaram aquele reencontro.
É em nome dos que em África, no passado, sofreram e hoje
sofrem, é por imposição da nossa História comum, é por que-
rermos continuar unidos por esse mar que sempre falou portu-
guês, é por termos uma pátria ou, se preferirmos, uma mátria
comum - a nossa língua, que nós, as mulheres e os homens do
| 53
Hospital de São João, queremos repetir com os povos de África, rando os seus processos de gestão e contando com profissio-
à semelhança daqueles dois ex-combatentes, um abraço igual- nais cujo orgulho de pertença, cuja disponibilidade e capaci-
mente sincero e sentido, um abraço que atravessa a imensidão dade de realização, cujo sentido de corpo e vontade de fazer
desse mar cujo sal são lágrimas de Portugal, um abraço de ent- são exemplo único, é, neste momento de crise mundial e des-
reajuda recíproca. alento generalizado, graças ao envolvimento de todos os que a
Um hospital não pode ser um gueto onde se acumulam seres ele dedicam, com o seu trabalho eficiente, uma parte impor-
humanos doentes. Ora, o Hospital de São João, pretendendo tante das suas vidas, é um exemplo de esperança. Realmente,
ser um verdadeiro lugar para os seus doentes, por respeitar os nesta instituição, o produto do trabalho dos seus profissionais
seus valores e referências, por se constituir como mais do que ultrapassa as despesas e os custos. Encerrámos mais um ano
um mero espaço físico onde se atende a pessoa doente, ao res- com resultados líquido e operacional positivos. Ocorresse, em
peitar conceitos metafísicos que o lugarizam, por entender a todas as áreas da sociedade portuguesa, a mesma produtividade
multifacetada complexidade do ser humano doente, envol- que se verifica no Hospital de São João e a crise, de que tanto
vendo as dimensões física, psicológica, social, cultural, espiri- se fala e que tanto se sente, seria, porventura, mais facilmente
tual e religiosa, o Hospital de São João revê-se, também, como ultrapassada. Estes resultados, mais do que a autonomia admi-
tendo um lugar - o seu lugar - na Cidade. Na invicta cidade do nistrativa e a regência pelas normas do direito privado, con-
Porto, mas, de forma mais abrangente, na Cidade enquanto ferem-nos legitimidade, aliás previamente validada pelo
imbricado de relações sociais, culturais, artísticas, empresariais Governo da República Portuguesa, para assumir os compro-
e políticas, na Polis, enquanto complexa rede que promove o missos das parcerias com os países de língua portuguesa em
desenvolvimento. Por outro lado, este Hospital, dotado de auto- África.
nomia administrativa e sustentado pelo direito privado, alte-

A Saúde em África
"Os portugueses têm uma relação natural com
África que os diferencia dos outros. Nós
não vamos lá, nós gostamos de ficar lá. Os
investidores, por seu lado, necessitam de
um conjunto de condições para se fixarem no
terreno. Entre elas, está seguramente a
necessidade de serviços de saúde que
garantam o apoio aos muitos que terão que
viver nas áreas onde ocorrem os empreendi-
mentos".

Julgo não errar ao afirmar que África necessita de investimento


nas mais diversas áreas, desde a agro-pecuária à construção
Casa do Hospital de S. João em S. Tomé e Príncipe
civil, da formação e educação aos cuidados de saúde, da incor-
poração de novas tecnologias às tradicionais explorações das
riquezas naturais. Os portugueses têm uma relação natural
com África que os diferencia dos outros. Nós não vamos lá, nós
gostamos de ficar lá. Os investidores, por seu lado, necessitam Os números da saúde em África constituem uma interpelação
de um conjunto de condições para se fixarem no terreno. Entre chocante às consciências de todos nós: • morrem 30.000
elas, está seguramente a necessidade de serviços de saúde que recém-nascidos todos os dias em condições de pobreza ext-
garantam o apoio aos muitos que terão que viver nas áreas rema em comparação com uma morte por dia entre nós;
onde ocorrem os empreendimentos. Esta é, em minha opinião, • dos 11 milhões de chanças falecidas com menos de 5 anos em
uma oportunidade para, tendo como base projectos susten- 2002, 98% eram de países em desenvolvimento;
tados pelos conceitos de economia da saúde, estabelecer parce- • na Serra Leoa, cada cidadão vive, em média, menos 48 anos
rias que, acrescentando valor, permitam, simultaneamente, do que no Japão;
financiar serviços da maior relevância social a prestar às comu- • a probabilidade de morte de um ser humano entre os 15 e os
nidades locais. 60 anos é de 90,2% no Lesotho, 46,4% na Rússia e 8,3% na
Suécia;
• o tratamento da diarreia através da correcta hidratação oral
evitaria 1,4 milhões de mortes em África.
A saúde não pode ser encarada isoladamente. Ela está intima-
mente ligada às condições de vida e de trabalho, às condições
socio-económicas, culturais e ambientais, aos estilos de vida e à
54 |
existência de redes sociais de apoio. Por exemplo, o simples
facto de se disponibilizarem medicamentos não garante a
eficiência do tratamento. No Lesotho, como decorre dos dados
da Cooperação Internacional da Fundação Bill e Melinda Gates,
muitos do doentes com SIDA vomitam os comprimidos anti-
retrovirais porque estão em situação de fome e subnutrição
grave, anulando-se, assim, a sua eficiência e perdendo-se todo o
esforço para os levar até aos doentes.
Estes problemas não se resolvem por existir uma Declaração
Universal dos Direitos Humanos, um Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos ou um Pacto Internacional dos
Direitos Económicos, Sociais e Culturais. A melhoria das con-
dições de saúde em África exige a remoção de obstáculos à
saúde, tais como a subnutrição, a ignorância, as péssimas con-
dições habitacionais, a inexistência de infra-estruturas sanitá-
rias (por exemplo, água potável), etc. Tal só pode ocorrer
através do desenvolvimento sustentado, para o qual é funda-
mental o investimento dos países industrializados. Sei bem que
as dificuldades relacionadas com a qualidade da governação,
com a corrupção, com conflitos étnicos, com a existência de
zoonoses e doenças infecciosas, com a fuga de cérebros e a
carência de pessoal qualificado, com a exploração incontrolada
de recursos naturais, com políticas internacionais de comércio
injustas, com as acções dúbias da indústria farmacêutica (big
pharma), etc., etc., são, por si, tremendos obstáculos ao mesmo
investimento e ao desenvolvimento.

"…os desígnios que nos devem orientar são a


língua, o mar e a diáspora. E uma séria e Saúde em África
segura aposta no conhecimento. Seja através
das auto-estradas da informática e dos
novos sistemas de informação, seja pela pre-
sença económica e cultural, seja peloforte
investimento e mobilização de recursos É que eu entendo a cooperação, não apenas como um mero con-
humanos nacionais, acredito que o futuro de junto de donativos monetários ou materiais, por vezes desper-
Portugal passa pelos países de língua diçados por incoerentes - é o aparelho altamente sofisticado
oficial portuguesa em África e na América e que avaria e não existe "know-how" para assegurar a sua manu-
pelas portas e mercados regionais que eles tenção, é a máquina que se abandona porque se esgotaram os
nos podem abrir". consumíveis, é a tecnologia instalada mas não disponível por
não existir quem a saiba utilizar, etc., etc., mas entendo a coope-
Nós, o HSJ, não somos uma organização rica, tudo o que ração como uma verdadeira parceria estratégica. Primeiro, em
alcançamos é fruto do trabalho das nossas gentes, não dis- conjunto com os Governos locais, definimos as áreas de inter-
pomos de fundos intermináveis que nos permitam enveredar venção e os processos em que poderemos ser úteis e temos
por aventuras irresponsáveis. Perguntar-se-á, então, como capacidade para ser úteis e, pelos quais, se possa estabelecer
poderemos cooperar? A primeira evidência da nossa capacidade verdadeira reciprocidade. Depois, graças ao facto de o Hospital
para cooperar está naquilo que já fizemos e continuamos a de São João estar envolvido numa já vasta rede internacional
fazer em São Tomé e Príncipe e na Guiné-Bissau. De facto, os de parcerias e protocolos de colaboração, nomeadamente com
projectos que abraçamos no âmbito da prevenção e tratamento hospitais e organizações não governamentais, constituímo-nos
da doença renal, no âmbito da pediatria em múltiplas áreas da como pólo aglutinador de vontades e, envolvendo terceiros
prevenção e tratamento, no âmbito da transferência de conheci- parceiros, de financiadores (e, particularmente, de oportuni-
mento e da formação médica e para a gestão, no âmbito do dades de negócio).
apoio aos processos logísticos, têm sido um caso de sucesso A este propósito, dou como exemplo uma parceria destas para
que gostaríamos de reproduzir. uma área específica da cirurgia pediá trica na República da
Guiné. Nesta parceria, através da qual se construiu e colocará
em funcionamento um bloco operatório, o terceiro parceiro faz
o investimento e o Hospital de São João assegura os recursos
| 55
humanos e a formação no local que, a prazo, o torne auto-sus- África: horizonte - a ideia de que será através de processos sus-
tentável. Depois, como temos tido a oportunidade de constatar tentados nos conceitos de economia da saúde, em parcerias
também com a experiência de São Tomé e Príncipe e da Guiné auto-sustentáveis, em investimento capaz de originar retorno
-Bissau, a disponibilidade dos nossos profissionais, o que se promoverá a melhoria dos cuidados sanitários e a auto-
entusiasmo com que voluntariamente aderem a estes pro- nomia dos serviços de saúde destes países.
jectos, a generosidade com que se entregam a esta causa indo Mito e horizonte, porque ambos se podem complementar na
viver por longos períodos para estes países, são o mais impor- presença portuguesa em África e, em particular, no apoio ao
tante garante de sucesso - porque sem pessoas disponíveis e desenvolvimento destes países - o factor crítico de sucesso
competentes nada se faz. Por outro lado, o Hospital de São para a melhoria dos cuidados de saúde.
João dispõe, juntamente com a Faculdade de Medicina e outras
instituições parceiras, de uma quase infindável capacidade de Presidente do Conselho de Administração do Hospital de São
formação em termos qualitativos - formação de médicos, de João
enfermeiros e de profissionais de outras áreas, nomeadamente Professor convidado da Faculdade de Medicina do Porto
da gestão. O problema é que, quando se deslocam para Por-
tugal os profissionais de países africanos para aqui passarem
longos períodos de formação de 5 ou 6 anos, acabam, em
função da sua juventude, por aqui estabelecer um novo mundo
de relações sociais, muitas vezes uma família e um projecto de
vida que os impede de regressar. Também assim se desper-
diçam muitos milhares de euros investidos sem qualquer
retorno para os países e para os povos de onde esses profissio-
nais são oriundos. É por isso que existem mais médicos gui-
neenses fôra da Guiné-Bissau do que no próprio país, o mesmo
acontecendo com São Tomé e Príncipe e com outros países da
CPLP. Urge, portanto, mudar o paradigma da formação. No
caso dos médicos, existe na Guiné-Bissau uma experiência
notável no âmbito do processo de ensino -aprendizagem, cujo
exemplo devíamos estudar e, porventura, seguir. Refiro-me à
Faculdade de Medicina que em breve lançará mais de 90
médicos nas várias instituições de saúde do país e que resulta Dia da inauguração da casa do Hospital de S. Tomé e
de uma parceria com o Governo de Cuba. Importa, a meu ver, Príncipe
implementar outros ou análogos modelos com vista à formação
de profissionais de outras áreas essenciais ao funcionamento
do sistema de saúde. Aqui, também, o Hospital de São João
póde desempenhar um papel muito relevante.
Por fim, o papel que organizações com o prestígio e a marca do
São João venham a desempenhar em projectos bem susten-
tados nos conceitos da economia da saúde, englobando a área
da saúde em projectos de investimento e negócio a que já me
referi anteriormente, poderão ser o garante e a fonte de
suporte de acções muito profícuas, por auto-sustentáveis,
visando a melhoria dos cuidados de saúde prestados às popu-
lações destes países. Saúde em África: mito - a ideia de que, por
mais generosas que sejam as intenções, por mais dedicadas que
sejam as pessoas, por mais benéficas que sejam as acções, se Festa das crianças no Hospital
responde eficazmente ao tremendo desafio sanitário de África
através dos clássicos processos de doações e acções humanitá-
rias, embora se reconheça que têm sido estas a minorar o sofri-
mento e a dar alento a milhões de seres humanos; Saúde em

56 |
Os Portugueses no Brasil
condições para quem, vindo de fora, queria vencer num país
"…o Brasil, que recebia, desde a 1.a metade
que, noutras épocas, e de modo especial para os portugueses,
do século, dezenas de milhares de
mostrava-se com a aura sedutora de um "el dorado".
imigrantes todos os anos - as estatísticas
Tudo isso era consequência de novas realidades. À Europa era
mostram que mais de 3 milhões de
mais fácil de chegar, cruzando fronteiras por caminhos
portugueses, desde a Independência de 1822,
clandestinos, ou pelas vias da ilegalidade. Não se precisava
desembarcaram no país - passou a ter uma
fazer dívidas para a compra da passagem de navio, nem ficar
posição inversa a ponto dos emigrantes que
nas filas de embarque da Junta da Emigração, suportar a
retornavam à terra de origem serem em maior
ausência, por muitos anos, até poder de novo rever a família e
número do que os novos que chegavam".
visitar a terra de berço, como acontecia com os que migravam
A partir da segunda metade do século passado começou um para o outro lado do Atlântico. Acima dos Pirenéus, tudo ficava
novo ciclo da emigração portuguesa. O Brasil, que desde mais perto, os salários eram mais compensadores, as moedas
sempre tinha sido o país de destino dessa emigra ção, deixou de eram mais fortes, o emprego não faltava, o agregado familiar
o ser e foi saindo, pouco a pouco, do imaginário dos mantinha-se, não havia ausências compridas de anos, a mulher
portugueses que tencionavam realizar seus projectos de vida também se empregava para acrescer os ganhos, a legislação
em terra alheia. A Europa, e principalmente a França, tornou-se trabalhista e as reformas laborais eram mais favoráveis e, todos
o grande pólo de atração dos trabalhadores das provincias os anos, nas férias, vinha-se à terra para curtir as saudades, as
menos desenvolvidas de Portugal. Era gente que não conseguia economias no banco cresciam, construíam-se casas nas aldeias
emprego, ou, se o tinha, ganhava salários de fome, em cenários do Minho, das Beiras ou de Trás-os-Montes, realizavam-se os
de pobreza. Quando não, eram jovens que, para fugir do serviço sonhos de quase todos. Quando não era a Europa, eram os
militar e da guerra colonial, tinham um motivo a mais para sair Estados Unidos, 0 Canadá, a própria Venezuela, ou a África do
do país "a salto". Sul e até a Austrália, a Rodésia ou o Congo, que passaram a ser
Por outro lado, as próprias condições económicas e sociais do opções preferenciais para a emigração portuguesa. E o Brasil,
Brasil, com a concentração, na periferia das grandes cidades, de que recebia, desde a 1.a metade do século XIX, dezenas de
milhares de retirantes dos Estados do norte e do nordeste, milhares de imigrantes todos os anos - as estatísticas mostram
flagelados pela seca e pela miséria; o achatamento dos salários que mais de 3 milhões de portugueses, desde a Independência
da classe trabalhadora; as crises cambiais e a desvalorização de 1822, desembarcaram no país - passou a ter uma posição
progressiva da moeda; o aprofundamento das desigualdades de inversa a ponto dos emigrantes que retornavam à terra de
renda; o próprio processo de industrialização e outras causas origem serem em maior número do que os novos que
faziam com que cada vez se tornassem mais difíceis as chegavam.

58 |
Sala de Leitura do Real Gabinete

Apesar disso, durante duas ou três décadas, e por ser imenso o começar uma vida cheia de desafios e uma ascensão social
"estoque" da emigração portuguesa, as consequências desse difícil; eram grandes e médios empresários, administradores,
processo não foram de imediato tão visíveis, nem tão sentidas médicos, professores universitários, engenheiros, profissionais
como estão sendo agora principalmente naquelas cidades onde de alto nível que, naturalmente, traziam experiências vividas e
a "colónia" tinha uma maior expressão. Poderíamos dar uma outra visão do mundo. Não demorou muito, entretanto,
exemplo no quadrante do comércio, tanto no atacado como no para se dar conta de que pelas circunstâncias traumáticas que
varejo, na construção civil ou no mobiliário, setores em que os tinham provocado a vinda desses novos emigrantes e também
portugueses ocuparam, tradicionalmente, uma posição porque a situação de Portugal, depois dos redemoinhos e da
importante. Ou, se quisermos outro exemplo, encontrá-lo- agitação política dos anos 70, foi-se normalizando, que a
emos no universo associativo, que se tornou, em todo o Brasil, comunidade portuguesa do Brasil não iria poder contar com
um admirável "ex-libris" da Pátria e que passou, em anos eles. E, na verdade, antes mesmo de terminar a década, com a
recentes, por mutações profundas tanto no formato, como no normalidade constitucional, o afastamento dos elementos mais
funcionamento, precisamente porque lhe faltava cada vez mais radicais do processo revolucionário e com a vitória nas urnas
o "combustível humano", ou seja, faltavam-lhe portugueses da "Aliança Democrá tica", constituída por partidos políticos
que, chegados ao país de destino, entravam para os quadros das moderados, a grande maioria dos que tinham vindo após o "25
associa ções, levados por seus conterrâneos e conhecidos. Com de Abril" começou a regressar ao país. E, com o retorno, ficou
a revolução de "25 de Abril", 0 Brasil recebeu milhares de apenas, outra vez, o "estoque" dos emigrantes antigos que, com
empresários e de técnicos portugueses que saíram do país, ou o passar dos anos, foi-se reduzindo cada vez mais. Apesar das
foram obrigados a abandonar as antigas colónias da África, em tentativas feitas, não se obteve grande êxito em induzir esses
função das turbulências políticas provocadas pela mudança do novos emigrantes a entrar nas associações luso-brasileiras,
regime. Nos primeiros tempos pensava -se que o fenómeno iria principalmente naquelas de natureza cultural, como os
influir bastante no seio da comunidade portuguesa no Brasil. Já Gabinetes de Leitura, os Liceus, os centros de estudos, onde
não era o emigrante de outros tempos que desembarcava no poderiam dar um contributo importante, seja por força da sua
cais do porto, de mala às costas, e roupa remendada, para formação superior, seja pelo nível intelectual e profissional que
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a grande maioria deles possuía. E até se compreende que as economia brasileira - nas telecomunicações, na eletricidade, no
dificuldades tenham surgido. Primeiro, porque esses turismo, na banca, na hotelaria e nalgumas indústrias - também
portugueses chegavam em uma situação quase sempre se pensou que com o fluxo dos investimentos viriam técnicos e
dramática, tinham deixado para trás as suas empresas, as suas gestores das empresas e com eles um reforço para a
casas, as suas cátedras, os seus escritórios, o seu emprego, o comunidade portuguesa no Brasil. Tudo não passou de uma
seu negócio, tudo, enfim, que tinham construído, e, de uma expectativa pois o que se deu foi o aproveitamento de quadros
hora para a outra, viram-se obrigados a começar uma vida nova: nacionais, o que até se compreende, e os poucos portugueses
arranjar casa para morar, colégio para os filhos, trabalho para que vieram em fun ção desses investimentos quase sempre
sobreviver e com essas preocupações diárias é evidente que estão ligados a contratos de trabalho a prazo fixo e não se
ninguém poderia pensar na participação num clube, em interessaram muito pelos valores e pelos patrimónios coletivos
frequentar uma biblioteca, ou em fazer palestras num liceu. E que enriquecem a nossa presença no Brasil.
quando, mais tarde, a situação começava a normalizar-se, veio a A conclusão que se tira e com a qual temos de lidar é esta:
hipótese e a opção do regresso a Portugal. existe uma comunidade portuguesa que está em vias de
A conclusão que se tira e com a qual temos de lidar é esta: desaparecer dentro dos próximos 20 anos. Se excluirmos os
existe uma comunidade portuguesa que está em vias de registos de nacionalidade adquirida por filhos de portugueses
desaparecer dentro dos próximos 20 anos. Se excluirmos os (e essa aquisição em grande parte dos casos é feita com a
registos de nacionalidade adquirida por filhos de portugueses finalidade de se obter um passaporte da União Europeia para
(e essa aquisição em grande parte dos casos é feita com a poder circular na Europa e entrar mais facilmente nos Estados
finalidade de se obter um passaporte da União Europeia para Unidos da América e não como prova de afeto pela Pátria dos
poder circular na Europa e entrar mais facilmente nos Estados progenitores) já devem ser menos de 200.000 os portugueses
Unidos da América e não como prova de afeto pela Pátria dos de origem que vivem hoje no país. Numa população de 183
progenitores) já devem ser menos de 200.000 os portugueses milhões esse número é insignificante, principalmente se nos
de origem que vivem hoje no país. Numa população de 183 lembrarmos que no final do século XIX a população portuguesa
milhões esse número é insignificante, principalmente se nos no Rio Janeiro chegou a ser 10% da população carioca e em
lembrarmos que no final do século XIX a população portuguesa Santos, algumas décadas depois, ultrapassava os 40% de
no Rio Janeiro chegou a ser 10% da população carioca e em habitantes da cidade. Desses 200.000 portugueses, dois terços
Santos, algumas décadas depois, ultrapassava os 40% de devem ter uma estimativa de vida de mais 10 ou 15 anos, isso
habitantes da cidade. Desses 200.000 portugueses, dois terços porque a média de idade, hoje, gira em torno dos 60 anos. Isto
devem ter uma estimativa de vida de mais 10 ou 15 anos, isso significa dizer que ao redor do ano de 2020, não existirá mais
porque a média de idade, hoje, gira em torno dos 60 anos. Isto uma comunidade portuguesa no Brasil. Observa-se, desde logo,
significa dizer que ao redor do ano de 2020, não existirá mais que se excluirmos os Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo,
uma comunidade portuguesa no Brasil. Observa-se, desde logo, de Pernambuco e de Minas Gerais, onde ainda vivem alguns
que se excluirmos os Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, milhares, noutros Estados o número de portugueses já se conta
de Pernambuco e de Minas Gerais, onde ainda vivem alguns por poucas centenas.
milhares, noutros Estados o número de portugueses já se conta
por poucas centenas. "Cometeremos um equívoco se pensarmos que
podemos construir, em bases sólidas e
"Com a revolução de '25 de Abril', o Brasil duradouras, uma comunidade luso-brasileira
recebeu milhares de empresários e de assente exclusivamente no estatuto da dupla
técnicos portugueses que saíram do país, ou nacionalidade"
foram obrigados a abandonar as antigas
colónias de África, em função das Desses 200.000 portugueses, dois terços devem ter uma
turbulências políticas provocadas pela estimativa de vida de mais 10 ou 15 anos, isso porque a média
mudança do regime". de idade, hoje, gira em torno dos 60 anos. Isto significa dizer
que ao redor do ano de 2020, não existirá mais uma
De qualquer forma, é oportuno registrar que esse fluxo da comunidade portuguesa no Brasil. Observa-se, desde logo, que
emigração do pós-25 de Abril teve um mérito: contribuiu para se excluirmos os Estados do Rio de Janeiro, de São Paulo, de
mudar no Brasil a imagem do país. De repente, sob o impacto Pernambuco e de Minas Gerais, onde ainda vivem alguns
da queda do antigo regime político, os brasileiros aperceberam- milhares, noutros Estados o número de portugueses já se conta
se de que existia um outro Portugal, bem diferente daquele que por poucas centenas.
imaginavam, e que era carregado de estereótipos contra a Não obstante essa realidade demográfica e o fato dos ponteiros
antiga metrópole e maltratado pelas deformações do passado, trabalharem em direcção contrária - o Brasil a aproximar-se
um Portugal que já nada tinha a ver com a figura tosca e rude dos 200 milhões de habitantes e a população portuguesa que
do emigrante que trabalhava nos armazéns do subúrbio ou nas vive no país a extinguir-se - o certo é que existe uma
feiras das cidades. Mais tarde, ao correr dos anos 90, por força comunidade alargada constituída também por luso-
da entrada de capitais portugueses em vários setores da descendentes e brasileiros ligados de uma forma ou de outra a
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Portugal. E essa comunidade é herdeira, não do "país das
lágrimas", mas de uma cultura e de uma História de que os
portugueses foram os principais protagonistas. Como escreve
Eduardo Lourenço, temos lares que se extinguiram deste lado
do Atlântico, mas que renasceram, mais belos, no Brasil.
É nessa comunidade que devemos apostar para não deixar o
Brasil afastar-se cada vez mais de Portugal. Sem querer ¡mpor-
lhe, pela descendência, ou pelos cânones do passado, uma
espécie de obrigação de cultuar o Portugal meu avozinho, ou a
velha matriz lusitana, temos de a levar a reconhecer, por sua
própria vontade, a singularidade e a magia da herança deixada
pelos portugueses. E fazer com que essa comunidade, com
devoção e com gosto, queira e procure enriquecer patrimónios
e afinidades, traçar linhas de convergência, promover futuros
de entrelaçamento e amizade.

Fachada do Real Gabinete de Leitura - Rio de Janeiro

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Guião Centro de Estudos Portugueses

"… a autêntica comunidade, aquela que


vislumbramos como um desafio do presente,
está muito além do passaporte ou do
ingresso de capitais, das metáforas ou dos
discursos, para ser uma realidade
abrangente e plural - na língua, na
cultura, na política, na história, na
economia, na arte e no destino".

Cometeremos um equívoco se pensarmos que podemos


construir, em bases sólidas e duradouras, uma comunidade
luso-brasileira assente exclusivamente no estatuto da dupla
nacionalidade. Não serão alguns milhares de filhos de
portugueses portadores do passaporte comunitário (e que são
movidos quase sempre por outros objetivos que não o de se
ligar ao espaço sentimental da lusofonia, conforme já
dissemos) que irão dar corpo à comunidade. Nem podemos
pensar que alguns investimentos recíprocos, que ganharam
importância nos últimos anos, irão servir de embasamento para
essa comunidade. Os capitais saem, ou mudam de mãos, com
muita volatilidade e na hora em que se forem, num toque da António Gomes da Costa
globalização, de novo ficaremos reduzidos, em termos de
relações económicas, ao comércio bilateral das sobremesas das
saudades. Também não se pense que uma comunidade sólida e
dinâmica se mantém apenas com o pronunciamento dos
Já passámos, no Brasil, por duas fases distintas. Tivemos uma,
políticos, ou com as boas intenções dos diplomatas. Tudo isso -
em que a leitura era feita em torno de apologias e de miragens,
direitos de cidadania, troca de investimentos, vontade política
de encontros e de sintonias; e tivemos outra, marcada pelos
dos governos e ação das chancelarias - são referências e dados
antagonismos e ressentimentos, pelo antiportuguesismo e pela
estruturantes da comunidade. Dão-lhe conteúdo em vários
obsessão de esquecer o "tempo português". A comunidade em
setores. Tiram-na da inércia. No entanto, a autêntica
que queremos apostar nem é aquela que se mantém da retórica
comunidade, aquela que vislumbramos como um desafio do
dos governos e das construções exclusivamente sentimentais e
presente, está muito além do passaporte ou do ingresso de
utópicas, nem é, tampouco, aquela outra, traçada pela sombra e
capitais, das metáforas ou dos discursos, para ser uma
pelo jacobinismo, que só serve para contrariar e reduzir
realidade abrangente e plural - na língua, na cultura, na política,
qualquer projeto de aproximação dos dois países.
na história, na economia, na arte e no destino. O fundo há-de
Num mundo globalizado, em que os países interagem,
ser espontâneo, vindo como vem das raízes e do sangue, mas os
sobretudo, em função de interesses políticos, económicos e
contornos hão-de ser definidos pelo imaginário, dos dois
financeiros, nem sempre é fácil potenciar uma comunidade que
povos. Será isso o superlativo da utopia? Talvez seja. Mas entre
tem como lastro permanente a Língua comum, a História
o sonho e a realidade o certo é que queremos os dois: o sonho
entrelaçada, a convivência de pessoa, a partilha do passado e a
para antecipar a realidade e esta para cumprir o sonho.
aproximação de gens e "pattems" culturais. As novas gerações,
muitas vezes, levadas por outras realidades e por outras
condicionantes, não se dão conta do percurso e da construção
que as antecedem. E também, muitas vezes, os desafios são
maiores do que as nossas próprias forças. Quando pensamos,
por exemplo, nos meios que tem Portugal para manter uma
presença viva no Brasil, do Amazonas ao Rio Grande do Sul -
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uma presença da sua cultura, da sua História, da sua imagem, brasileiros e portugueses.
dos seus patrimónios - certamente que não podemos repousar
essa tarefa na ação de um órgão do Estado, no intercâmbio e Presidente do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de
uma Universidade ou nos projetos de uma organização. Janeiro e
Precisamos de criar mecanismos que sejam capazes de ter um da Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras
efeito multiplicador e permanente - e entre esses mecanismos do Brasil
a escola, certamente, desempenha um papel importante e Delegado da SHIP
decisivo. A comunidade luso-brasileira só terá a dimensão do
nosso sonho quando fluir com naturalidade, da alma dos

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O exemplo de D. Nuno Álvares
Pereira
Generalidades
Os exércitos para resolverem necessidades em combate usaram, desde sempre, determinados sinais. O aparecimento do
elmo fechado, que ocultava o rosto dos combatentes, obrigou ao uso de sinais de reconhecimento em que se salientaram
as bandeiras. Servia para assinalar no campo de batalha os exércitos, respectivos chefes, identificar e localizar as unidades,
transmitir ordens e dar coragem aos combatentes.
Para isso utilizava-se uma "bandeira", pano de certas cores, desenhos e formas, presa a uma haste e elevada quando
necessário. Assim se entende a importância de quem tinha a responsabilidade de utilizar e defender a bandeira. Era desig-
nado por alferes, do árabe alferis (cavaleiro ágil e destemido).
A bandeira quando apresenta as cores e o escudo de armas nacional representa a Nação, isto é, todos nós. É merecedora do
maior respeito pois lembra o passado colectivo. A Bandeira Nacional, motivo de orgulho para todos, é indispensável no
estímulo ao amor pelas coisas nacionais. É perante ela que os militares prestam o seu juramento solene, de fidelidade, em
cerimónia pública designada por Juramento de Bandeira. Juram defendê-la com o sacrifício da própria vida. Arriar ou
abater bandeira significa rendição. É sinónimo de desistência, derrota e aceitação da vontade do antagonista. Recordamos
que na batalha Real ou de Aljubarrota, após as primeiras forças do exército de Castela terem penetrado no dispositivo por-
tuguês, ao serem dizimadas, a bandeira castelhana foi derrubada. Esta queda provocou enorme confusão entre os
atacantes, levando-os a fugir de forma desordenada, o que terá facilitado a vitória das forças de D. João I de Portugal. A
Bandeira Os exércitos para resolverem necessidades em combate usaram, desde sempre, determinados sinais. O apareci-
mento do elmo fechado, que ocultava o rosto dos combatentes, obrigou ao uso de sinais de reconhecimento em que se
salientaram as bandeiras. Servia para assinalar no campo de batalha os exércitos, respectivos chefes, identificar e localizar
as unidades, transmitir ordens e dar coragem aos combatentes. Para isso utilizava-se uma "bandeira", pano de certas cores,
desenhos e formas, presa a uma haste e elevada quando necessário. Assim se entende a importância de quem tinha a res-
ponsabilidade de utilizar e defender a bandeira. Era designado por alferes, do árabe alferis (cavaleiro ágil e destemido). A
bandeira quando apresenta as cores e o escudo de armas nacional representa a Nação, isto é, todos nós. É merecedora do
maior respeito pois lembra o passado colectivo.
A Bandeira Nacional, motivo de orgulho para todos, é indispensável no estímulo ao amor pelas coisas nacionais. É perante
ela que os militares prestam o seu juramento solene, de fidelidade, em cerimónia pública designada por Juramento de Ban-
deira. Juram defendê-la com o sacrifício da própria vida. Arriar ou abater bandeira significa rendição. É sinónimo de
desistência, derrota e aceitação da vontade do antagonista.
Recordamos que na batalha Real ou de Aljubarrota, após as primeiras forças do exército de Castela terem penetrado no dis-
positivo português, ao serem dizimadas, a bandeira castelhana foi derrubada. Esta queda provocou enorme confusão entre
os atacantes, levando-os a fugir de forma desordenada, o que terá facilitado a vitória das forças de D. João I de Portugal.

A bandeira
Na Idade Média o fervor religioso era particularmente forte. Amparava o homem nas empresas mais difíceis, que em
alturas de perigo tinha necessidade de se sentir protegido por Deus e Santos Protectores.
D. Nuno, em manifestação de fé, como pedido de ajuda para si e companheiros, para terem comportamento corajoso na
luta, mandou fazer uma bandeira, que quando desfraldada mostrava a figura do Salvador e de sua Santa Mãe.
Tinha grande significado, invocando com ela protecção espiritual para todos e incentivo para alcançar vitória, nas pelejas
que fossem obrigados a travar. Enchia de ânimo e coragem o coração dos combatentes que sentiam ter protecção Divina,
de Santa Maria, de S. Jorge e de Santiago.
A bandeira de D. Nuno era branca, simbolizando pureza. Tinha ao meio uma grande cruz da cor do sangue do Redentor,
que a dividia em quatro partes iguais:
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• Na metade de cima, do lado da haste, apresentava a imagem de Jesus Cristo crucificado, de sua Santa Mãe Nossa Sen-
hora, símbolo de virtude e intercessora entre Jesus Cristo e a sua Igreja, que rezava ajoelhada a seus pés. Estava acompan-
hada por S. João que recordava a evangelização dos povos;
• Na mesma metade superior, distante da haste, estava representada a imagem da Virgem com o Menino Jesus ao colo,
lembrando o amor maternal e a protecção particular das mães a seus filhos;
• Na metade inferior, junto à haste, S. Jorge orava de joelhos e mãos postas, com o bacinete pousado a seu lado. Era consi-
derado o "padroeiro" (protector) de Portugal desde D. Afonso Henriques;
• Na mesma metade, distante da haste, Santiago Maior, protector de toda a Espanha rezava de joelhos e mãos postas, junto
ao seu bacinete. D. Nuno tinha-lhe grande afeição.
Alguns estudiosos são de opinião que estando S. Jorge e Santiago voltados um para o outro, em postura de diálogo, pre-
tende significar que D. Nuno teria gostado de resolver as "diferenças de opinião" pela via do diálogo e que só tomava a via
do confronto quando a isso era obrigado.
A bandeira de D. Nuno apresenta a cada canto o escudo de armas dos Pereiras, composto por uma cruz branca, aberta pela
metade, em campo vermelho.

"Foi o homem necessário no momento certo. Evocar Aljubarrota é recordar, embora telegraficamente, a
Reuniu e empregou, com acerto, escassos personalidade e a vida de D. Nuno Álvares Pereira.
meios e vontades disponíveis, por vezes Filho de Álvaro Gonçalves Pereira, prior da ordem militar dos
contra a opinião geral, e com eles realizou Hospitalários, nasceu no Alentejo, talvez em Flor da Rosa,
obra quefirmou a nacionalidade". arredores do Grato, a 24 de Junho de 1360. Conviveu com o pai
até aos treze anos, de quem ouviu narração de guerras
passadas, em especial a que na altura opunha a França à
Inglaterra.
Muito jovem aprendeu as artes da guerra e a observar com
atenção a luta que opunha a tradicional cavalaria feudal à
renovada peonagem. Obediente à vontade do pai, frequentou a
corte como escudeiro da Rainha, onde recebeu educação de
acordo com o seu estatuto.
Voluntarioso, idealista, de inteligência viva e vincada
personalidade, viveu a juventude em ambiente que auxiliou
uma formação de marcado pendor misticista, própria da época.
O modo de ser e sentir, caracterizado por forte exaltação
cavalheiresca e religiosa, era contido por invulgar pondera ção
e elevada exigência moral.
O compromisso patriótico de D. Nuno foi desencadeado pela
morte de D. Fernando, em Outubro de 1383, em período de
enorme instabilidade social e forte crise de nacionalidade que
confirmava a necessidade urgente de reconquistar a
independência.
Considerar D. Nuno possuidor de poderes sobrenaturais, é
opinião apressada e simplista do seu comportamento exemplar,
orientado por vontade forte ao serviço de um ideal superior.
É preciso situar o herói em tempo medieval e condições
humanas normais.
A qualidade da sua atitude resultou de prática diária que sem
hesitação o orientou ao longo da vida. Começou por ser rapaz
enérgico e corajoso com invulgar talento guerreiro.
Místico e generoso tomou a responsabilidade de comandar
pelo exemplo, empolgando e conduzindo os companheiros à
vitória pelo entusiasmo e determinação. Pouco depois vieram a
O exemplo de D. Nuno Álvares Pereira ponderação, a clareza de propósitos, a prática da disciplina e a
inteligência das decisões que o guiaram nas acções que

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praticou. Foi o homem necessário no momento certo. Reuniu e virotes, setas e pedras sobre o atacante. D. Nuno montado
empregou com acerto, escassos meios e vontades disponíveis, numa mula, fora do quadrado, face ao invasor, seguro e
por vezes contra a opinião geral, e com eles realizou obra que tranquilo da força da sua razão fez as últimas recomendações.
firmou a nacionalidade. Após a aclamação de D. João I em Com o inimigo à vista, apeou, ajoelhou e solicitou protec ção
Coimbra, foi nomeado fronteiro (defensor da fronteira) do divina. Finda a oração, beijou a terra, levantou-se, montou,
Alentejo, dando início à pesada tarefa de realizar a armou -se de lança e pediu em voz alta "Amigos, que ninguém
independência do reino. duvide de mim..."
A 6 de Abril de 1384, a meia légua de Fronteira, em Atoleiros, Ouviram-se brados de guerra. Portugal S. Jorge! Castela
travou luta contra força superior composta por muitas das Santiago! Os grandes de Castela, confiantes e bem armados,
melhores lanças de Castela. Perante a evidente superioridade lançaram sem demora os cavalos sobre a pequena mas corajosa
do inimigo deu provas de invulgar senso no modo como se força que se opunha à sua vontade. Pesados, devido às
adaptou às circunstâncias e resolveu as dificuldades a seu armaduras, começaram a ser dizimados por projécteis certeiros
favor. Mandou a hoste apear, formar em quadrado e defender que do interior do quadrado os iam atingindo. Poucos
com as lanças, cravadas no chão, inclinadas para fora. conseguiram chegar às lanças onde se espetaram.
Dentro do dispositivo ficaram os besteiros e peões para lançar

A Capela de São Nuno

Em consonância com a canonização de São Nuno de Santa Maria, a SHIP fez inaugurar no Palacio da Independencia, em
Maio do corrente ano, no dia do seu 149.º aniversario, uma capela votiva ao culto desta relevantísima figura do nosso histo-
rial de afirmação da independencia nacional, venerada e invocada amplamente aquém e alem -fronteiras.Fruto de múl-
tiplas doações, de particulares e de paroquias, merece especial menção a parceria estabelecida com o Guião - Centro de
Estudos Portugueses, cuja accáo foi muito importante para a instalação desta capela, a ptimeira que foi aberta em Portugal
desde a aguardada e muito bem recebida decisão do Papa Bento XVI.

Salvaterra continuava a justificar as pretensões de Castela, que


invadiu Portugal pelas Beiras com um exército numeroso e for-
temente armado. O conselho real de D. João I, chamado com
urgência a Abrantes, perante a esmagadora superioridade do
invasor, entendeu prudente adiar a luta.
D. Nuno, contrário à opinião geral, recordou a promessa real de
defender a capital do Reino e salientou a necessidade urgente
de atalhar o passo ao invasor. As forças portuguesas, reunidas
em Tomar, passaram por Ourém, com destino a Porto de Mós.
A 13 de Agosto de 1385, após reconhecimento do terreno para
os lados de Leiria, foi escolhido o local onde iam travar luta. Na
madrugada seguinte ocuparam o esporão setentrional do pla-
nalto de Aljubarrota. O dispositivo português, virado a norte,
aproveitava bem o terreno, dificultando o ataque castelhano,
mais difícil por o Sol estar de frente para o atacante. O Rei de
Castela ao sentir a dificuldade no ataque evita o confronto e
rodeia a posição pelo lado do mar, na procura de terreno
O exemplo de D. Nuno Álvares Pereira favorável ao seu propósito.
D. Nuno, atento, antecipa-se. Em decisão oportuna mas
arriscada, pela proximidade do inimigo e tacanhez do terreno,
inverte o dispositivo e vai instalar-se dois quiló metros a sul.
Esta atitude demonstra enorme coragem física e moral, elevada
E os portugueses triunfaram. capacidade de comando, invulgar disciplina e superior conheci-
A batalha de Atoleiros foi decisiva na consolidação da inde- mento táctico. Chegados a S. Jorge começaram logo a construir
pendência. Foi brado irreprimível que ecoou na Europa abatizes, covas de lobo e fossos, para complementar as dificul-
medieval anunciando que Portugal teria de ser respeitado. Foi dades naturais das ribeiras de Madeiros e da Mata que, cor-
marco que iniciou a identidade de Portugal como povo, nação e rendo de sul para norte, limitavam o terreno de confronto a
reino, significativo pela liderança de D. Nuno que provou ser poente e nascente, permitindo aos portugueses a concentração
merecedor da confiança de seus companheiros. O tratado de de mais forças na frente do atacante. O embate, brutal e rápido,
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deu-se ao entardecer e durou cerca de uma hora. D. Nuno mais uma vez ficou vencedor no campo de batalha.
O exército castelhano, vencido, retirou em debandada Consolidada a independência foi assinada a paz com Castela a
deixando o terreno juncado de corpos e despojos.Foi o triunfo 31 de Outubro de 1411. Anos depois, em 1415, o Condestável
da inteligência e da vontade sobre o orgulho preconceituoso. pediu autorização real para participar na conquista de Ceuta.
A diferença do saber da decisão pensada sobre a ignorância e a Foi o último serviço a Portugal como guerreiro. Sentindo termi-
razão da força. nada a tarefa perante os homens, decide iniciar outra ao serviço
Aljubarrota foi decisiva. Acabou com os desejos expansionistas de Deus.
de Castela e teve efeitos importantes que ao longo dos séculos Guerreiro e monge completam-se no mesmo ideal de Servir. D.
se tornaram referência. Nuno, no decurso das pelejas e ainda mais depois da guerra
A independência de Portugal parecia consolidada. As batalhas, acabar, estabelecia uma relação íntima entre o futuro de Por-
em que se inclui a de Trancoso (1-8 de Junho de 1385), haviam tugal e o sucesso no Céu. Cada batalha tinha o seu voto,
terminado. ficando os feitos perpetuados em pedra, dispersos pelo reino. A
Contudo na fronteira sul entre Portugal e Castela, continuavam imaginação da juventude gerara enorme devoção à Virgem. O
os confrontos armados. D. Nuno, desejoso de anular as forças heroísmo era penitência e humildade e a devoção ardente e
estacionadas na área, reuniu meios em Estremoz e invadiu Cas- activa.
tela, para lá de Mértola, conquistando terras e troféus. No Alentejo, coração da "sua" fronteira e teatro de feitos valo-
rosos, mandou erguer templos votivos em agradecimento pelo
resultado das lutas travadas.

"O embate, brutal e rápido, deu-se ao entar-


decer e durou cerca de uma hora. O exército
castelhano, vencido, retirou em debandada
deixando o terrenojuncado de corpos e des-
pojos. Foi o triunfo da inteligência e da
vontade sobre o orgulho preconceituoso".

D. Nuno, no dia imediato à batalha de Atoleiros, foi descalço


em romagem a Santa Maria do Assuma, distante de Monforte
duas léguas. A igreja estava profanada pelas montadas dos cas-
telhanos pelo que humildemente ajudou a limpar e fez voto de
construir um templo que mais tarde ali levantou.
Em Estremoz concluiu outro a Nossa Senhora dos Mártires,
começado por D. Fernando.Em Vila Viçosa levantou capela a
Nossa Senhora da Conceição.
Em Sousel, Portei, Monsarás, Mourão, Évora e Camarate, junto
O exemplo de D. Nuno Álvares Pereira a Lisboa, mandou construir outros templos à Virgem Maria.
Em S. Jorge, onde tinha içado a bandeira durante a batalha Real
mandou edificar uma ermida dedicada a Nossa Senhora da
Vitória.
Em Lisboa fez construir grandiosa catedral, dedicada à Virgem
Os castelhanos receosos e vigilantes seguiam-no de longe, do Carmo, em agradecimento pela vitória alcançada em Val-
procurando reunir forças, que chegaram a ser muito superiores. verde.
D. Nuno, apercebendo-se deste temor, aproveitou as vantagens
do terreno e procurou o confronto. Voltava a ser o táctico Monge
atento, de actuação enérgica e oportuna. Após reza solitária D. Nuno com sessenta e três anos, a 15 de Agosto de 1423,
deu início à batalha de Valverde, em Agosto de 1385, que se pro- decidiu professar.
longou por dois dias "de sol a sol em pelejar, com grandes e Ao ser admitido no convento do Carmo repartiu tudo o que
boas escaramuças, e assaz de feridos e mortos". Começou por tinha e perdoou as dívidas, ficando sem nada. Trocou a seda
atacar o oponente principal, D. Pedro Muñoz, mestre de San- pelo burel (pano grosseiro de lã) e recolheu ao isolamento da
tiago, seguro que a sua derrota provocaria debandada geral do cela. No convento praticou vida simples e austera, ao serviço
inimigo. dos outros. Descalço, de hábito carmelita donato, túnica talar
Os cavaleiros castelhanos, imitando D. Nuno, apearam para (até aos calcanhares) com escapulário (parte do vestuário
combater a pé, mas pesadamente equipados e pouco habi- monástico que cai sobre as espáduas e peito) e samarra de esta-
tuados a lutar deste modo, apesar de comportamento valoroso, menha, esmolou sete anos pelas ruas, para os pobres da capital
foram derrotados. Morto o mestre de Santiago e os seus mel- do Reino.
hores companheiros deu-se a fuga do resto da hoste de Castela. No Dia de Todos os Santos de 1431, perante a família real em
68 |
pranto entregou a alma ao Criador. Logo que os sinos tocaram reabertura do processo de canonização do Beato Nuno de
a finados enorme multidão acorreu chorando e gritando que Santa Maria e a 3 de Abril do mesmo ano, a outra cerimónia rea-
havia morrido um Santo. lizada na igreja do Santo Condestável, em Lisboa, sendo o
O Papa Bento XV, a 23 de Janeiro de 1918, ao promulgar o dec- processo de canonização encerrado e enviado à Santa Sé.
reto de Beatificação "Clementíssimos Deos" deu aprova ção A realização deste desejo constituía acto de justiça e reconheci-
formal ao culto a Beato Nuno de Santa Maria. mento com enormes benefícios morais para Portugal e para os
O Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, a 13 de Junho de 2003, povos com quem partilhou vivências ao longo de uma
presidiu à sessão solene realizada no convento do Carmo, da existência multissecular.

O exemplo de D. Nuno Álvares Pereira

“Muito conhecido e venerado em Portugal, é


também invocado além-fronteiras.”

O Culto Universal ao Beato Nuno de Santa Maria

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milagreiro do Santo Condestável era grande conforme as "Chro-
nicas dos Carmelitas" que referem terem-lhe sido atribuídas 21
curas de cegueira, 21 de surdez, 24 de paralisia e 18 de doenças
internas.
Uma cura actual, alegadamente milagrosa, de uma vista quei-
mada com azeite a ferver, era a peça que faltava para a
conclusão da canonização do Beato Nuno de Santa Maria.
Muito conhecido e venerado em Portugal, é também invocado
além-fronteiras, como resumidamente se refere:
• No reinado de Isabel "a católica" teve início em Espanha
oculto a São Frei Nuno de Santa Maria, sendo fre quente a
suainvocação nas missas celebradas na corte;
• No reinado de Joana "a louca", em 1512, primeira Rainhada
Espanha unificada, a devoção a Beato Nuno tornou-se mais
forte. Esta Rainha veio a Lisboa, em peregrinação ao convento
do Carmo, para trasladar os restosmortais de D. Nuno para um
mausoléu de alabastro quetinha mandado esculpir em Flo-
rença;
• No séc. XX São Escrivã de Balaguer afirmou em
sermão"abençoado seja D. Nuno de Santa Maria e a batalha
deAljubarrota que deu à Virgem dois braços, Portugal eEs-
panha, com os quais abraçou e evangelizou o mundo";
• Em Portugal e Espanha o Beato Nuno foi imortalizadoem arte
acontecendo o mesmo em Itália, Holanda eAlemanha, em
quadros, registos e santinhos que sãoprova documental da
dimensão europeia da devoção aD. Nuno;
• O culto ao Beato Nuno surgiu na Itália em meados do séc. XV
conforme o Calendário Carmelitano, composto entre 1456 e
1478, da biblioteca de Parma. As igrejas de Santa Inês e de
Nossa Senhora do Carmo também apresentam provas do culto
ao mesmo beato em Itália, como testemunha o óleo "La ves-
tizione del Beato Nónio Álvares Pereira, notabilede Portogallo"
São Nuno de Santa Maria (desenho de Victor Portugal do mestre Cresti Dominico IL Passignamo;
Valente dos Santos) • O culto a Beato Nuno também era praticado na Corte Papal
conforme atesta o pedido de protecção do Papa Eugénio IV a D.
Nuno quando se viu ameaçado por forças inimigas;
• O culto a Beato Nuno esteve presente em devoções emissas
celebradas na igreja de Santo António dos portugueses em
“Consolidada a independência foi assinada a Roma que conserva o seu quadro na sacristía;
paz com Castela a 31 de Outubro de 1411. • D. Nuno é invocado em Espanha, Itália e Alemanha comopat-
Anos depois, em 1415, o Condestável pediu rono da Arquiconfraria dos apóstolos São Pedro e SãoPaulo de
autorização real para participar na Casale Monteferrato, sendo relembrado todosos anos em missa
conquista de Ceuta. Foi o último serviço a votiva;
Portugal como guerreiro. Sentindo terminada • Secularmente é invocado no missal da Ordem de Maltacomo
a tarefa perante os homens, decide iniciar protector da Ordem a que pertenceu em vida. É patrono da
outra ao serviço de Deus”. Irmandade de São Gerardo e da Ordem de SãoMiguel da Ala de
que era membro;
O Beato Nuno de Santa Maria, agora Santo, é sinónimo de • D. Nuno e São Patrício são invocados pelos católicosirlan-
humanidade, humildade, verdade, fraternidade edignidade. O deses como Protectores da independência nacionalda Irlanda;
seu exemplo representa a vitória do Bem sobre o Mal. É • O "Diário da jornada ao Concílio de Basileia", de 1435,refere
referência universal que terá levado o Papa Bento XV a declarar que, quatro anos após ter morrido, o Beato Nuno tinha fama de
que servia de modelo aos militares que combatiam na I Guerra santidade e era motivo de culto em Espanha, França e Ale-
Mundial. manha. O mesmo acontecia em Sabóia, Génova, Piemonte e
D. Duarte, sete anos após a morte de D. Nuno, em 1431, Flandres;
solicitou ao Papa a canonização do Condestável evocando o • Em países de língua inglesa Beato Nuno é recordadocomo res-
exemplo de bondade e devoção aos pobres. A fama de ponsável pela devoção ao escapulário mais pequeno da Ordem
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Terceira Carmelitana tendo sido criadoo "Holy Constable • A sociedade Beato Nuno, fundada nos EUA na década de90
Nuno", extinto pela reforma anglicana; do século passado, presta auxílio a viúvas e criançasórfãs no
• Em Inglaterra um regimento pessoal da Rainha, dedicadopor México, Colômbia, Argentina e outros países docontinente sul-
Carlos II a Catarina de Bragança, tem D. Nuno por patrono e o americano;
25.° Batalhão de Fuzileiros Reais, com a designaçãode Santo • Em 1948 a biografia ''Obreiro da Paz", relativa a BeatoNuno,
Condestável tem como patrono o mesmo Beato; tinha distribuído cerca de vinte milhões de exemplares em
• A fraternidade sacerdotal de São Pio X tem o Beato Inglaterra, Irlanda, EUA, Canadá e Filipinas;
Nunocomo patrono do grupo de oração português, veneradona • As revistas Soul (alma) e Scapular (escapulário) davam acon-
Suíça e em França, onde aparece em estandartes aolado de hecer Beato Nuno a todos os povos do mundo.Durante trinta
Santa Joana de Arc; anos esteve presente nos voos de paz quetransportavam a
• O Exército Azul, fundado em 1947 nos EUA, com cercade imagem da Virgem Peregrina;
oitenta milhões de membros espalhados pelo mundo,tem pro- • O interesse que o culto a São Nuno desperta no mundocató-
palado a fama de santidade de Beato Nuno eajudado e espalhar lico é tão avassalador que está em preparação oguião para um
o seu culto, renovado de modosignificativo, durante o período filme épico "o último cavaleiro da távolaredonda";
da guerra-fria; • Em Angola, Macau e Timor, nas décadas de 60 e 70 doséculo
• O Beato Nuno, em cerimónias do Exército Azul, foi invocado passado, o culto a Beato Nuno esteve bastante activo;
por alguns líderes mundiais, designadamenteConrad Adenaur, • O Papa Bento XVI canonizou o Beato Nuno de SantaMaria
primeiro chanceler da Alemanha após aII Guerra Mundial e em Abril de 2009.
John F. Kennedy, senador e promotorde Fátima;

O exemplo de D. Nuno Álvares Pereira

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Victor Portugal Valente dos Santos

Coronel de Infantaria (Ref.),


sócio da SHIP
Ex-director do Museu do Campo Militar de S. Jorge
Mestrando em História Regional e Local na Faculdade de
Letras de Lisboa

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Lembrar a Batalha - Página de
Abertura
No âmbito da colaboração existente entre a SHIP e as entidades responsáveis pela organização das cerimónias comemora-
tivas da Batalha de Aljubarrota, foi, pela SHIP, escolhido o Dr. António Leite da Costa para fazer a alocução no Mosteiro da
Batalha, no dia 14 de Agosto de 2006. Pelo seu interesse, sintetizando muito bem o enquadramento histórico e o alto signi-
ficado da vitória das forças portuguesas, decidimos publicar na nossa revista a comunicação feita.
Lembrar a Batalha

D. João I de Portugal, D. Nuno Álvares Pereira - guerreiro vencedor de batalhas e D. João I de Castela

A História é também feita de pequenos actos simbólicos que batalhas, na sua rudeza e crueza, não há simplesmente história
servem para manter viva a memória colectiva e recordar feitos militar. É que há, nunca é demais dizê-lo, batalhas que marcam
gloriosos, mesmo quando os tempos possam ser adversos. A definitivamente a história, constituindo pontos de referência e
vivência e a convivência com o passado leva-nos sempre a balizas cronológicas que encerram um ciclo e abrem um novo
perceber claramente o passado e a preparar, sem medo, o tempo. Assim, Aljubarrota. Mas voltemos um pouco atrás.
futuro.Não é, por isso, um mero exercício académico, vão e
estéril, este rememorar do passado, este revigorar do presente, "E, de repente, rompe-se a vanguarda
este relançar do futuro. A actualidade permanente deste feito é portuguesa. Mas logo se refaz. E contra-
por demais evidente e quase nem valia a pena esmiuçá-lo. Ou ataca, com talforça e ímpeto que deita por
talvez, precisamente por isso, é que se torna necessário dizer terra o pendão de Castela, gerando de
de novo o que já foi dito e trazer à lembrança de todos o que imediato o pânico entre o inimigo. Ainda
para muitos foi propositadamente esquecido. A história das eram sete da tarde quando se ouvem gritos
nações está repleta de batalhas: ofensivas, umas; defensivas, de alguns portugueses: ‘Já fogem! Já
outras. Nem sempre necessárias - e nem todas vitoriosas - fogem!’ Era verdade. Os castelhanos,
constituem, no entanto, marcos de referência fundamentais na desnorteados e sem ter quem os
formação da consciência colectiva, na definição de fronteiras, comande,fogem em debandada".
na manutenção da independência, na visão geoestratégica e na
concepção geopolítica. Para alguns, a história militar não se A 22 de Outubro de 1383, nove dias antes de completar 38 anos
resume à história das batalhas no seu sentido estrito, buscando faleceu em Lisboa D. Fernando. De acordo com as cláusulas do
ir mais além através da investigação e estudo do armamento tratado de Salvaterra de Magos, ficou D. Leonor Teles como
utilizado, do seu fabrico e armazenamento, dos recursos regente, com o título de Governadora e Regedora do Reino de
militares e recrutamento de soldados e alimária, da estratégia Portugal e do Algarve. Não era a Rainha amada pelo seu povo e
gizada, da táctica aplicada, da balística da época, das crenças e bem vista pela Nação, que não lhe perdoara atitudes e
devo ções, dos santos invocados, das fidelidades pessoais e do comportamentos antigos, nem a excessiva influência que junto
nascimento do novo conceito de pátria, enfim, dos medos e dela gozavam alguns fidalgos, como o galego João Fernandes
coragem perante a foice da morte que transporta os heróis Andeiro, conde de Ourém. Julgavam também muitos que não
desta pálida pátria terrestre para a inevitável pátria celeste. tardaria D. Leonor a entregar o reino a seu genro, o Rei de
Tudo isto é, naturalmente, verdade mas sem o estudo das Castela, e temiam, por isso, que perdesse Portugal a
74 |
independência. Mas pesava em quase todos o juramento, irmão, preso em Castela, que julgava mais merecedor de cingir
sagrado e solene, feito em Santarém, que obrigava à lealdade a Coroa portuguesa. O tempo, porém, se encarregará de provar
para com D. Beatriz casada com o monarca castelhano. o contrário e de demonstrar com toda a evidência que só ele
Convém lembrar que eram então os juramentos feitos sobre a tinha capacidade e merecimento para se sentar no trono de seu
hóstia consagrada, implicando pecado grave a falta a tão solene pai.
compromisso.
Entretanto D. João de Castela exige a D. Leonor Teles que seja
lançado pregão por D. Beatriz. Mas nem todos aceitam a ordem
da Rainha viúva e ouvem-se, aqui e além, vozes de "Arraial,
arraial por Portugal!". Em Lisboa, é morto o Conde de Andeiro.
A partir daqui, os acontecimentos precipitam -se. O Mestre é
proclamado Regedor e Defensor do Reino. A Rainha, temendo
pela sua vida, foge para Alenquer e daí para Santarém, de onde
escreve ao genro a pedir-lhe que tome posse do trono
português. Não se fez rogado o Rei de Castela que invade
Portugal pela Guarda e vai ter com D. Leonor a Santarém. Mais
tarde, decide marchar sobre Lisboa que resiste ao cerco
castelhano. E quando a fome e o desespero pareciam já não ter
limites entre os habitantes da cidade, declara-se a peste no
acampamento do monarca castelhano, pelo que este se retira
apressadamente. Aproveitando estas tréguas, o Mestre de Avis
convoca Cortes para Coimbra.

"É que há, nunca é demais dizê-lo, batalhas


que marcam definitivamente a história,
constituindo pontos de referência e balizas
cronológicas que encerram um ciclo e abrem
um novo tempo. Assim, Aljubarrota".

Lembrar a Batalha

Mas já outros sentiam na sua consciência que, mais do que a


lealdade pessoal que os obrigaria à perda da independência, se
impunha agora a lealdade nacional que a mesma preservava e
defendia. A questão estava apenas em saber quem melhor
assumiria a bandeira da independência face à ambição de
Castela.

Voltaram-se então para a figura do infante D. João, filho de D.


Pedro I e de D. Inês de Castro, o qual, vivendo embora em
Castela, gozava de grande prestígio no reino e tinha a seu favor
- pelo menos era essa a opinião corrente - ser filho legítimo do
Rei. Mas não dormia o monarca castelhano que, conhecedor
das intenções dos portugueses, logo mandou prender em
Toledo o infante D. João.Tivera, contudo, D. Pedro I outro
filho, a quem também dera o nome de João e que, embora
ilegítimo, ocupava o alto cargo de Mestre de Avis. É para ele
que se voltam agora todos quantos se opõem a D. Leonor Teles,
pedindo-lhe que assuma o pendão da liberdade nacional. Aceita
Lembrar a Batalha
o Mestre de Avis fazê-lo mas apenas em nome de seu meio-
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Viseu, deixando ao passar um rasto de destruição. Mas
esperam-nos no regresso forças portuguesas sob o comando de
Gonçalo Vasques Coutinho, as quais, perto de Trancoso, lhes
"Os grandes estadistas não são apenas aqueles que têm uma visão infligem pesada derrota. No Alentejo, atacaram os castelhanos
superior da política e um sentido profundo da realidade humana. Eivas, que cercaram durante alguns dias, porém sem grande
São também os que sabem rodear-se dos homens certos no momento êxito.Nos princípios de Julho, entraram de novo em Portugal
exacto, e deles recebem incondicional apoio e entusiástica dedicação. com um numeroso exército que de Almeida se dirige para
Contou D. João, Mestre de Avis, com homens deste calibre". Santarém, com o objectivo de conquistar, de uma vez por
todas, a cidade de Lisboa e acabar com a rebeldia desse "Rei de
Os grandes estadistas não são apenas aqueles que têm uma Avis como depreciativamente tratava o monarca castelhano o
visão superior da política e um sentido profundo da realidade novo Rei português.E aqui levanta-se uma questão
humana. São também os que sabem rodear-se dos homens fundamental: será que para ser efectivamente Rei não terá D.
certos no momento exacto, e deles recebem incondicional João I de o provar militarmente, no campo de batalha,
apoio e entusiástica dedicação. Contou D. João, Mestre de Avis, vencendo e assim convencendo definitivamente o Rei de
com homens deste calibre. Primeiro, o antigo chanceler mor do Castela? Esta ideia está de acordo com a mentalidade da época
Reino, Álvaro Pais; depois, esse militar brilhante que foi D. e é seguida, de imediato, por D. Nuno Álvares Pereira que se
Nuno Álvares Pereira, futuro Condestá vel. E eis que surge encontra com o seu Mestre de Avis em Abrantes, vindo do
agora, porque o combate é outro e diferentes são as armas, o Alentejo, onde se realiza um conselho para debater esta
Doutor João das Regras, professor de Direito da Universidade, questão. Sugerem alguns que se deve fazer "guerra guerreada"
que nas Cortes de Coimbra vai, com inteligência e habilidade, na Andaluzia - uma espécie de guerra de guerrilhas - para
defender a causa do Mestre. Reúnem-se as Cortes em Coimbra obrigar o monarca de Castela a desistir da conquista de Lisboa,
nos meses de Março e Abril de 1385. Como era habitual, o que, além do mais, não parecia muito lógico. Há aqui uma
encontram-se presentes membros do clero, da nobreza e clara estratégia, um pensamento estratégico bem definido que,
procuradores das cidades e vilas. As Cortes começam por naturalmente, transforma a futura batalha de Aljubarrota na
declarar vago o trono, seguindo-se uma acalorada discussão batalha, pura e simples, na batalha por excelência. Não nos
sobre quem devia ser o futuro Rei de Portugal. De facto, o país esqueçamos que o monumento erigido em honra de Santa
encontrava-se dividido em três partidos. O partido legitimista Maria da Vitória é conhecido como Mosteiro da Batalha - sem
considerava D. Beatriz como herdeira legítima e, por isso, não dizer qual - e a povoação que à sua sombra nasceu, cresceu e
estava presente nas Cortes, tendo seguido o monarca tão bem se desenvolveu, igualmente se chama, com todo o
castelhano ou tomado voz por Castela. O partido legitimista- orgulho, a Batalha.D. João I e D. Nuno Álvares Pereira
nacionalista defendia o infante D. João, filho de D. Pedro e D. congregaram, pois, as suas forças e decidiram cortar o passo às
Inês de Castro, e, assim, natural herdeiro ao trono português, hostes castelhanas na estrada Leiria - Alcobaça. Saindo do
embora se encontrasse preso em Toledo. Finalmente, tinha acampamento de Porto de Mós, na manhã zinha do dia 13 de
vindo a afirmar-se cada vez mais, contando com fortes apoios Agosto - que eram um domingo - D. Nuno Álvares Pereira fez
em todos os grupos sociais, a candidatura do Mestre de Avis, um reconhecimento do local e escolheu, como todos sabemos,
que constituía o partido nacionalista, não só pela o planalto de S. Jorge, pela sua excelente posição, para dar
impossibilidade de o irmão ocupar o trono por se encontrar combate ao inimigo. Este local era um ponto alto, penoso
preso em Castela, se não também, e sobretudo, pelas inegáveis portanto de subir para homens de armas pesadamente
provas de coragem e de patriotismo que tinha demonstrado e equipados e magnífico para os atiradores adversários, além de
pelas garantias que oferecia na intransigente defesa da estar protegido, quer na frente, quer nos flancos pelas linhas de
independência nacional. Estavam, porém, ainda alguns água que corriam para o rio Lena. Virado a norte, de frente para
membros da velha nobreza relutantes em aceitar o Mestre, por Leiria, podiam ver chegar os castelhanos e estavam com o Sol
ser filho ilegítimo de EI-Rei D. Pedro. Foi então que se ouviu a pelas costas, o que lhes facultava também a visão do
sólida argumentação do Doutor João das Regras que todos inimigo.Colocaram-se no terreno previamente escolhido e
venceu e convenceu. E a 6 de Abril de 1385 é o Mestre de Avis, aguardaram pacientemente a aproximação do exército
D. João I, aclamado Rei de Portugal. Resolvido o problema castelhano. Muito se tem discutido qual o número de
jurídico, outros havia que não esperavam demora. Era combatentes, de parte a parte. As fontes escritas e os dados
necessário que D. João I, agora como Rei, chamasse à razão os arqueológicos, recentemente actualizados, não nos dão
que tinham tomado o partido de Castela, pela força das armas números coincidentes. Mas é de crer que a desproporção fosse
se necessário fosse, conquistando castelos ou assenhoreando- grande, com vantagem para D. João de Castela, se bem que a
se de praças-fortes. Havia que impor a ordem interna, para táctica adoptada por D. Nuno - um estreito corredor - e a
fazer face à invasão externa que se avizinhava. Assim se fez. Vai morosidade da deslocação do exército castelhano, terá
EI-Rei ao norte, onde é recebido festivamente no Porto, entra constituído grande vantagem para a hoste portuguesa.Os
em Guimarães, Braga, Ponte de Lima, recuperando terras, portugueses colocaram-se no terreno, por volta das 7 horas do
recebendo apoios, engrossando o exército. Aproveitam os dia 14 de Agosto de 1385, segunda-feira, véspera do dia da
castelhanos para invadir Portugal pela Beira, na direc ção de Assunção de Nossa Senhora. Meia hora depois, chegou D. João
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I. Às dez horas as posições estavam definidas. Porém, só por
volta do meio-dia surgem no horizonte os primeiros
castelhanos. Mas não combatem ainda. São poucos e a posição
da hoste portuguesa é extremamente vantajosa. Iniciam então
a sua marcha torneando a posição portuguesa. A vanguarda
portuguesa desloca-se mais para sul, completando ou
reforçando a sua posição com valas, abatises e covas de lobo.
Cerca das 15 horas as tropas portuguesas estão com as suas
posições bem definidas. É então que se agitam alguns
cavaleiros e escudeiros. É um pequeno reforço que vem das
Beiras, sob o comando de João Fernandos Pacheco. Entretanto,
vão-se juntando os castelhanos mais atrasados, entre os quais
vem o próprio monarca de Castela. O nervosismo aumenta, o
sol aperta e a sede espalha-se por todo o lado. Nisto, a
vanguarda castelhana avança. Pouco passa das seis da tarde. D.
Nuno, à frente dos seus homens, sustém o ataque. Das alas, os
arqueiros e besteiros - entre os quais alguns ingleses - lançam
sobre o inimigo uma nuvem de setas. Mesmo assim os
castelhanos continuam a avançar. E, de repente, rompe-se a
vanguarda portuguesa. Mas logo se refaz. E contra-ataca, com
tal força e ímpeto que deita por terra o pendão de Castela,
gerando de imediato o pânico entre o inimigo. Ainda eram sete
Lembrar a Batalha
da tarde quando se ouvem gritos de alguns portugueses: "Já
fogem! Já fogem!" Era verdade. Os castelhanos, desnorteados e
sem ter quem os comande, fogem em debandada. É o salve-se
quem puder. E até o próprio Rei de Castela foge para Santarém
e daí para Lisboa, onde aguarda a esquadra que o há-de levar de Mas não é só no plano militar que a Batalha de Aljubarrota é
regresso ao seu país. Aí, proclamou luto nacional durante dois um marco fundamental, não apenas na nossa história militar
anos, tão grande foi para si a dimensão da derrota. E durara a mas na própria história militar europeia, no contexto da Guerra
batalha pouco mais de meia hora, o suficiente para desbaratar o dos Cem Anos no final da Idade Média. É em Aljubarrota, e
poderoso exército castelhano e manter EI-Rei D. João I no sobretudo a partir de Aljubarrota, que se afirma cada vez mais a
trono de Portugal independente.Mas tal só foi possível devido à consciência nacional, a noção de que Portugal é um ente, algo
capacidade técnica e moral do comando português, que existe de per si, autónomo e independente. "Arraial, arraial,
personificado no Condestável do Reino, D. Nuno Álvares por D. João I". Com certeza Mas, como já se disse antes,
Pereira. Tinha uma estratégia clara, obrigando o inimigo a sobretudo "Arraial, arraial por Portugal".Também em
desviar-se do seu objectivo prioritário - a conquista de Lisboa - Aljubarrota, a 14 de Agosto de 1385, nasceu ou renasceu
e a dar-lhe batalha campal. Aí soube escolher a posição mais Portugal. E não é, por isso, por acaso, que digo apenas que aqui
favorável, reforçando-a convenientemente e manobrando as foi a batalha. A batalha da vitória, a batalha do futuro. Caiu por
suas hostes de modo a cortar a progressão do inimigo, fazendo- terra o pendão de Castela; ficou bem alta a bandeira das quinas.
o sempre em segurança, isto é, sem deixar a sua posição E o povo que apoiou o Mestre, o povo português, foi-lhe fiel.
vantajosa no planalto de S. Jorge, concentrando as suas forças - Ontem como hoje, também, repetirei como o Poeta Fernando
ou concentração de massa - ao contrário dos castelhanos que Guedes "Sou do meu Povo / É tarde já para escolher bandeira".
as dispersaram, mantendo também sempre a unidade de
comando - o que não sucedeu com os castelhanos - e sabendo
passar, no momento próprio, de uma atitude defensiva para
uma atitude ofensiva.

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António Leite da Costa

Licenciado em História, sócio da SHIP


Ex-director da Casa de Cultura de Coimbra
Autor da História de Portugal em 3 Volume da Editorial Verbo

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Portugal, o Mar e o Futuro
Considero que todo e qualquer cidadão não se deverá limitar que circulam na nossa sociedade acerca do nosso papel no
apenas a constantemente criticar os outros, a zurzir nas mundo no passado e no presente, sobre a permanente atitude,
atitudes ou decisões do Governo, ou a dizer permanentemente bem Portuguesa, de disparar críticas em todas as direcções e à
mal do vizinho. vergonha que têm do passado histórico do seu País, sobre
É numa tentativa, embora modesta, de não pertencer a esse aquilo que em contrapartida tenho sentido quando visito os
grupo, que me esforçarei por apresentar algumas soluções, locais por onde os Portugueses passaram e sobre a minha
começando por expor brevemente algumas coisas que me opinião acerca da Europa, do Mar e do Mundo, e ainda do papel
atormentam como cidadão, como ex-combatente, como Pai de que a nossa venerável Nação poderá nele desempenhar.
familia (e agora já principalmente como avô), como Estas ideias são fundamentalmente baseadas em algumas
sexagenário, caminhando a passos largos para septuagenário, e leituras, na atenção permanente ao que se passa ao meu redor,
como membro da Sociedade Histórica da Independência de no estudo relativamente profundo que tive oportunidade de
Portugal. fazer sobre a História dos Descobrimentos e da Expansão
A alguns dos nossos decisores polí ticos falta experiência de Portuguesa e ainda na minha experiência anterior e actual, não
vida e conhecimentos sobre a nossa história recente ou antiga, só na Armada durante o serviço activo, como posteriormente
tendo sobre esta última matéria uma opinião distorcida ou devido ao meu envolvimento na História Marítima de Portugal.
influenciada pelo pensamento corrente na época actual. Além disso, a minha educação na Armada ensinou-me a ter
Aliás, muitos desses decisores desconhecem os territórios que como principal preocupação servir o meu país, e esse princípio,
os Portugueses administraram até 1974, ou por não terem talvez por alguns considerado um defeito, se fosse utilizado por
participado directamente na vida social e política da Nação por um maior número de responsáveis pela condução dos negócios
se encontrarem fora do País ou dele voluntariamente se terem públicos presentes e passados daria porventura melhores
afastado, ou porque a sua tenra idade não lhes permite saber o resultados práticos.
que por lá se passava. Como acima disse, visitei muitos locais onde os vestígios da
Como já atrás referi sou sexagenário, avô, militar da Armada, cultura Portuguesa, misturada com outras culturas, são
ex-combatente e membro da SHIP. Entendo que isto é marcantes, actuantes e vivos.
suficiente para me permitir expor algumas ideias sobre Acrescento ainda que durante 0 serviço activo tive
Portugal, embora não seja político, estratega ou historiador. oportunidade de permanecer em operações militares 4 anos na
Sou apenas um marinheiro, que por isso mesmo tem viajado Guiné, primeiro como fuzileiro e mais tarde no comando de
alguma coisa e que recentemente tem tido oportunidade de uma lancha de desembarque, e que assisti à revolução de 1974
melhor analisar aquilo que se passa em muitas partes desse em Moçambique, onde permaneci mais de quatro anos em
mundo de além-mar que se relaciona com o Portugal daqui. cargo essencialmente administrativo, na capitania do Porto de
Peço portanto aos estrategas, aos frequentadores do Instituto Inhambane, donde saí em Março de 1975.
de Defesa Nacional e às pessoas que são especialistas nesta
área, que perdoem este humilde marinheiro, que se tem "…irei expor algumas ideias que incidirão,
fundamentalmente preocupado com a História da Náutica e principalmente, sobre as minhas mágoas de
dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa e que é a segunda ex-combatente, que assistiu em Moçambique à
vez que se atreve a fazer uma exposição sobre esta matéria, sucessão de acontecimentos, muitos deles
tendo sido a primeira num Congresso do Mar na Nazaré. trágicos, a partir de 1974, sobre as ideias
Depois desta breve tentativa de justificação do meu preconcebidas que circulam na nossa
atrevimento, irei expor algumas ideias que incidirão, sociedade acerca do nosso papel no mundo no
principalmente, sobre as minhas mágoas de ex-combatente que passado e no presente, sobre a permanente
assistiu em Moçambique à sucessão de acontecimentos, muitos atitude, bem Portuguesa, de disparar
deles trágicos, a partir de 1974, sobre as ideias preconcebidas críticas em todas as direcções e à vergonha

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que têm do passado histórico do seu País, Europeia, por via marítima, à China e ao Japão. E tudo isto
sobre aquilo que em contrapartida tenho concretizado com uma massa humana de pouco mais de um
sentido quando visito os locais por onde os milhão de habitantes, quando as suas congéneres Europeias
Portugueses passaram e sobre a minha tinham entre cinco a dez vezes mais população.
opinião acerca da Europa, do Mar e do Por fins dos séculos XVI até meados do século XVII, quando a
Mundo, e ainda sobre o papel que a nossa união das coroas Portuguesa e Espanhola trouxeram para
venerável Nação poderá nele desempenhar" Portugal os inimigos de Espanha, tendo-se em consequência
perdido vários territórios, alguns foram posteriormente
É claro que me considero um felizardo em comparação com os recuperados e noutros se alargou a influência da administração
meus camaradas do Exército, visto que alguns deles chegaram a e da cultura Portuguesas, onde predominou em grande parte a
fazer cinco comissões no Ultramar. natural miscigenação com outros povos e outras culturas.
Sobre a minha vida no Ultramar, gostaria apenas de referir que Por todo o século XVII e XVIII se alargaram os territórios sob
fui nomeado para o comando da LDG na Guiné em 1968 com administração Portuguesa, nomeadamente os novos territórios
uma antecedência de apenas uma semana, tendo que me do Estado da índia e a exploração e consolidação da soberania
deslocar para aquele território com a minha mulher, que levava no interior do Brasil.
nos braços o nosso primeiro filho, esperando já o segundo. No século XIX passámos da Monarquia Absoluta para a
Não tinha à chegada a Bissau um psicólogo à minha espera para Monarquia Constitucional e criámos uma grandiosa e única
me acompanhar a mim ou à minha família naquela aventura. Nação, pronta a servir, o Brasil, enquanto que a vizinha
Como não tínhamos qualquer apoio logístico, dirigimo-nos ao Espanha originou dezenas de Estados nas Américas do Sul e
Grande Hotel de Bissau, só grande no nome e na diária exigida. Central.
Recebi ordens nesse mesmo dia para efectuar uma saída de Criámos ainda, sob a pressão das potências europeias, os
treino em zona de combate, em navio semelhante àquele onde Estados de origem Portuguesa de África, cujas fronteiras
ficaria a servir por dois anos. delimitámos e que ainda hoje se mantêm.
Nas semanas seguintes, a casa por nós alugada foi sendo aos No século XX derrubámos uma Monarquia Constitucional,
poucos mobilada, com móveis do depósito de inúteis e substituindo-a por várias anarquias constitucionais, e em 1926
recuperáveis, o que nos espicaçou a imaginação decorativa. iniciámos um regime de partido único que foi derrubado em
Eram de facto outros tempos! 1974 e que foi seguido por uma época muito turbulenta e
Mas regressando à história do nosso País, na minha opinião a finalmente conseguimos estabilizar uma democracia em
História de Portugal não se resume à época dos moldes Europeus.
Descobrimentos, aos séculos XV e XVI, normalmente
considerados a época de ouro Portuguesa. "Todo este percurso histórico da nossa Nação de quase 900 anos de
De facto, a expansão ultramarina Portuguesa desses séculos, já existência, que nunca é demais dizer é a mais antiga da Europa e
inequivocamente interpretada actualmente como o início da uma das mais antigas do mundo, foi sempre ligado ao mar e ao mar
globalização, foi precedida de uma opção política marí tima deve a sua independência".
logo em fins do século XIII, com o estabelecimento de relações
comerciais regulares com o Norte da Europa, passando ainda Todo este percurso histórico da nossa Nação de quase 900
Lisboa a ser porto frequentado pela navegação que do anos de existência, que nunca é demais dizer é a mais antiga da
Mediterrâneo ligava as cidades-estados italianas, que também Europa e uma das mais antigas do mundo, foi sempre ligado ao
por essa época substituíram a sua ligação continental à Europa mar e ao mar deve a sua independência.
do Norte, pela ligação marítima. Antes de prosseguir, gostaria apenas de fazer alguns breves
Em 1990 tive oportunidade, quando prestava serviço a bordo da comentários, que me parecem oportunos, relativos às minhas
Sagres, de ser o convidado de honra em Bruges, na Bélgica, para impressões de carácter socioló gico e político, correspondentes
um jantar medieval feito com a periodicidade de 25 anos, que às minhas vivências na Guiné, na primeira e segunda
reconstituía a boda nupcial de Isabel de Portugal, irmã do comissões, e em Moçambique.
Infante D. Henrique, com Filipe o Bom de Borgonha, que no Na Guiné, território onde havia grande percentagem de tropas
seu condado incluía Bruges, onde existia há mais de um século, metropolitanas a viver na cidade de Bissau, nunca assisti a
uma feitoria Portuguesa. qualquer conflito de ordem étnica entre os soldados,
Prosseguindo no resumo histórico, se recuarmos mais um marinheiros e aviadores do Continente e os soldados e
pouco, a reconquista do nosso território teve em muitos casos marinheiros oriundos da Guiné ou entre estes e a população
um carácter anfíbio, como por exemplo as conquistas de Lisboa local, cuja diversidade étnica é bem conhecida.
e de Silves, sendo o mar o nosso permanente trunfo estratégico As namoradas do nosso pessoal tinham os mais variados
e táctico, e o garante posterior da nossa independência, face às matizes, e os únicos conflitos a que assisti foram alguns
tentativas centrípetas de Castela. interarmas, tal como os provocados, por exemplo, pela
Depois da conquista de Ceuta em 1415, mais uma opera ção rivalidade entre pára-quedistas e os fuzileiros.
anfíbia, Portugal iniciou a sua expansão ultramarina em larga Os bailes a que assisti eram praticamente monorraciais, isto é,
escala, tendo em pouco mais de um século levado a cultura a maioria esmagadora dos seus intervenientes eram negros,
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aliás, negras ou mulatas. Na minha segunda comissão, já
acompanhado pela minha mulher, não tivemos notícia de
nenhum conflito, a não ser os já referidos interarmas.
Em Moçambique, onde como disse permanecemos quatro anos
já entre 1971 e 1975, nunca sentimos ódio racial, conflito étnico
ou terrorismo em cidades. O conflito militar estava muito
limitado ao Norte do país e se problemas havia, eram entre a
população branca e os militares metropolitanos, em zonas do
Norte do território.
Aliás em Inhambane, na Escola Técnica onde minha mulher
dava aulas, 90 por cento dos alunos eram negros, mulatos ou
indianos, sendo a maioria dos professores Moçambicanos de
variada origem étnica.
O Intendente Administrativo era Cabo-Verdiano, o escrivão da
Capitania (a entidade hierarquicamente a seguir ao Capitão do
Porto) era um mulato com Pai Português e Mãe angolana e Inhambane, 2004. Calorosa recepção ao antigo Capitão
cerca de 90% do pessoal da mesma era pertencente à
do Porto
população do território.
Está claro que eu nunca estive em Moçambique nos anos trinta,
onde havia problemas sociais graves nas áreas de plantação de
algodão, assim como também não vivi no Alentejo no tempo da
Catarina Eufémia. Também não vivi na Guiné nos anos 40 ou 50, no tempo dos
incidentes do Pidgiguiti, como também não vivi nos Estados do
Sul dos Estados Unidos, nessa época com os problemas
conhecidos de conflitos raciais.
Também não vivi em Moçambique ou no Brasil em fins do
século XVIII e durante o século XIX com os seus problemas de
consolidação da soberania Portuguesa e de desenvolvimento do
território, como também não vivi na Austrália, Nova Zelândia,
ou nos Estados Unidos na mesma época, com problemas
idênticos e porventura com soluções muito mais brutais do que
as que se adoptaram nos territórios sob administração
Portuguesa.
Uma coisa é certa, aquilo que vivi no terceiro quartel do século
XX, foi em parte contemporâneo com o que viveu um soldado
americano no Vietname ou um francês no Vietname ou na
Argélia, salvo as devidas proporções cronoló gicas para o caso
Cacheu, Guiné, 1968
Francês. E Deus sabe quão diferentes eram as situações sociais
em Saigão ou Argel.
Isto é apenas para tentar demonstrar a opinião que tenho, por
observação directa dos territórios onde vivi, de que a nossa
"Esse Mar onde cerca de 230 milhões de maneira de conviver com os povos do Ultramar terá sido
seres humanos falam esta nossa língua e diferente para melhor, aos olhos dos princípios morais actuais,
onde deixámos património edificado, muito do que a que foi prosseguida pelos outros povos com
dele fruto da mistura de estilos, que é responsabilidades Imperiais.
extraordinariamente representativo, mesmo
se comparado com o património criado por
outras nações no mundo".

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dos territórios ultramarinos só se deu depois dos massacres em
Angola em 1961, quando os economistas e historiadores sabem
que o desenvolvimento mais acelerado dos mesmos começou
na década de 50 e que naturalmente se acelerou nas décadas
posteriores, tendo a pressão social motivada pelo conflito
militar tido a sua importância.
Também se diz que a economia Portuguesa em 1974 estava em
estado lastimoso. Contudo, uma análise desassombrada do
desenvolvimento económico entre 1950 e 1974 feita por
economistas conhecedores do assunto, permite-nos concluir
que o mesmo era um dos mais dinâmicos do mundo, só
suplantado pelo Japão e pelos chamados "tigres asiáticos". Se
em 1950 o rendimento per capita de Portugal era de 30% do dos
Pessoal da Capitania de Inhambane. Moçambique países mais desenvolvidos do mundo, em 1973 esse rendimento
era de 65%, tendo portanto subido 35% em 24 anos. Nos
últimos 30 anos esse valor subiu apenas 5%. Se Portugal tomou
a prudente e possivelmente inevitável atitude de integrar na
década de 80 a Comunidade Econó mica Europeia, também foi
"E o nosso futuro será a Europa e só a importante a nossa adesão à EFTA e à NATO na década de 50
Europa, onde estamos integrados de pleno do século XX.
direito, até porque fomos, entre outras Outro factor que se aponta é o carácter esclavagista da
coisas, os responsáveis pelo arranque colonização Portuguesa. Chega-se a resumira nossa expansão a
inicial da sua imparável expansão pelo este comércio, esquecendo todos os outros tipos de comércio e
mundo?Considero que não, e que um esforço todas as facetas de carácter social ou político que envolveram a
grande se deve fazer para não só não perder nossa expansão. Esquece-se que a sociedade africana tem na
como também alargar o nosso espaço de sua organização de raiz a prática da escravatura, que este
influência e intervenção no tal Mar comércio já existia e que actualmente ainda existe, apesar da
Português, criando condições para que esses sua abolição oficial no século XIX.
laços afectivos e humanos sirvam também os Esquece-se também que os Portugueses compravam os
seus povos em todos os outros aspectos, escravos às entidades políticas locais, e se se levantar
nomeadamente o económico, porque o actualmente um processo aos responsáveis lusos da época, os
coraçãopara viver, além de alimento reis africanos também serão necessariamente arguidos. O
afectivo também precisa do tal cifrão" mesmo acontecerá com os nossos antecessores Árabes e com
os nossos contemporâneos Franceses, Espanhóis, Ingleses, etc.,
É por isso e por outras razões, que exporei mais adiante, que etc., etc.
me custou, depois da revolução de 74, à qual, como disse assisti Também se, se adoptar a moda actual de pedir desculpa pelos
nos seus primeiros passos em Moçambique, ouvir dizer que eventuais erros do passado, os compradores têm que pedir
nem mais um soldado deveria ser enviado para o Ultramar, e desculpa aos vendedores e os vendedores aos compradores e
que todas as culpas dos anos de guerra em que estávamos todos estes, por sua vez, desculparem-se perante os escravos.
envolvidos e dos conflitos que se seguiram à nossa saída Acontece ainda que foram os Europeus a acabar com a
imprudente e precipitada, eram devidos ao regime anterior e à escravatura, facto que muitos reis africanos do século XIX
sua teimosia. nunca lhes perdoaram porque lhes estragaram o negócio.
Também se disse que tal só se tinha passado por vivermos em Nestas condições lá terão os Europeus que pedir desculpa aos
regime de partido único, porque se vivêssemos em democracia, reis africanos por os terem obrigado a acabar com a
nunca se teria sequer iniciado a guerra. Eu pergunto se a escravatura. Permitam-me agora que peça desculpa por estar a
França não vivia em democracia quando resistiu no Vietname e pedir desculpa não sei bem de quê nem porquê!
na Argélia, o mesmo tendo acontecido aos Estados Unidos no Outra ideia corrente é considerar que a atitude mais acertada
Vietname, só para falar em casos quase contemporâneos. para a Europa era sair de África logo a seguir ao fim da segunda
Não quero com isto dizer que considero que o regime político guerra mundial, sendo a atitude Portuguesa de conservar os
anterior ao 25 de Abril seja o melhor sistema de governo. O que seus territórios por mais tempo, um erro estratégico e
eu quero apenas dizer é que há sempre a tendência para atirar prejudicial às populações africanas.
as culpas de uma determinada época para a época antecedente, Veja-se o que resultou dessa saída da Europa. O que se verifica,
visto que tal é extremamente cómodo para alijar as ao fim de cerca de 50 anos de independência, é o descalabro
responsabilidades dos que a seguir estão a tomar as decisões. das suas economias e do seu ambiente social, e a constante
Outra afirmação actual é considerar que o desenvolvimento dependência dos novos Estados africanos da ajuda
internacional, sendo os seus povos, na esmagadora maioria dos
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casos, governados por déspotas corruptos que utilizam a ajuda suave e cristianizador e civilizador da nossa colonização.
internacional em proveito próprio ou da sua família e amigos, Contudo gostava de transcrever uma passagem deste pensador
enquanto a população morre de fome. Português, que para mim corresponde a uma verdade
Outra voz corrente é a de que não havia outra solução para o adquirida. Comentando as motivações reais dos nossos
modo como se efectuou a descolonização Portuguesa, sendo empreendedores ultramarinos e comparando-as com as dos
tudo o que se passou depois, consequência da teimosia do protagonistas da formação dos Impérios desde a antiguidade
anterior regime. aos nossos dias, diz António Sérgio: "O que estava em jogo,
Pessoalmente recuso-me a admitir que não houvesse outra para qualquer desses chefes, era uma necessidade vital dos
solução e sinto uma grande mágoa por ver o estado em que se núcleos sociais da Europa, que em todos influiu: e o papel de
encontram a maior parte dos territórios que nós um político propriamente dito foi sempre o de tratar das
administrámos, que eram viáveis e talvez os mais equilibrados necessidades básicas, primordiais, prementes, das populações
e desenvolvidos a sul do Saara, com excepção da África do Sul, que eles governam. Jamais consistiu na santificação dos
e que abandonámos à sua sorte. homens: seus deveres eram outros. Nos políticos e executores
do expansionismo de Portugal, os seráficos intuitos de
cristianização das almas (de cristianização genuína, segundo o
espírito do Evangelho), foi um rebuço hipócrita. Mais ou
menos inconsciente, houve sempre aí hipocrisia.".
Concordo em parte com estas ideias, que afinal correspondem
aos desígnios reais de qualquer povo, e que é em resumo
defender os seus interesses.
Mas na realidade, há sempre nas acções humanas um lado yin e
Casa do Capitão do porto de Inhambane em 1974, à um lado yang, um lado mau e um lado bom, se utilizarmos por
esquerda e 2004 à direita analogia a filosofia taoista. E se pensarmos em economia e
sociologia, haverá sempre o cifrão e o coração. Devido a isso, as
acções dos protagonistas de qualquer expansão e as suas
consequências têm também elementos positivos, que são de
gradação variável conforme a origem desses protagonistas.
Também me custa constatar que não tivéssemos conseguido Se analisarmos apenas o caso português, e de acordo com a
defender os interesses dos nossos compatriotas que lá situação actual, não houve uma dramática expansão do
labutavam e que por lá deixaram tudo o que tinham amealhado cristianismo pela América do Sul e pela África e Ásia, e também
em capital e infra-estruturas. em muitas das ilhas da actual Indonésia, onde perdura essa
Custa-me ter verificado, pelas informações que me chegavam doutrina de amor e tolerância?
da metrópole a Moçambique, que a única preocupa ção das Não houve também uma expansão de ideias e de ferramentas
forças políticas que aqui se movimentavam era a sua luta pelo de organização social e política, como sistemas de governo,
poder, sem prestar qualquer atenção aos seus compatriotas que normas de direito, etc. que são actualmente adoptadas, com os
estavam em África. devidos ajustamentos, por sociedades aglutinadas pela acção
Também se diz que os Portugueses que emigravam para África dos nossos antepassados em África, na índia, na América do
se limitavam a explorar os seus habitantes e a amealhar Sul, e mesmo no Japão ou na China?
dinheiro e riqueza. Mas ninguém diz que durante largos anos, Não nos orgulhamos nós afinal de ter este espí rito latino e da
antes de 1974, era praticamente impossível transferir dinheiro nossa língua, de cuja institucionalização são responsáveis os
ou bens do Ultramar para a Metrópole, razão pela qual os colonialistas romanos?
colonos lá deixaram tudo, depois da independência. Eu só gostava que António Sérgio lá no Céu, onde eu
Custa-me também verificar que se considera natural que Cabo sinceramente, como cristão, desejo que esteja, abra o sítio da
Verde e S. Tomé e Príncipe, que eram ilhas desabitadas e que Sociedade Histórica da Independência de Portugal e leía o
foram colonizadas por Portugueses e Africanos, e que me texto apresentado pelo ilustre presidente durante a sessão de
parece deverem ser consideradas legitimamente Portuguesas, abertura do ciclo "Os Grandes Desafios de Portugal". Talvez
tenham sido entregues a partidos políticos sem reveja as suas posições, visto que aquilo que lerá é fruto da
representatividade reconhecida. experiência de quem viveu não só durante o período em que
Temos naturalmente que admitir que nem tudo foram rosas na administrávamos territórios ¡mensos mas também depois do
expansão Portuguesa ou na expansão de qualquer povo. nosso refluxo para este cantinho da Europa.
Quantos conhecem a figura de António Sérgio, um hipercrítico As ideias de António Sérgio, com diferentes matizes, são as que
da colonização Portuguesa, bastando por exemplo ler o seu vigoram na maior parte dos círculos dos chamados formadores
estudo "Em Torno da «História Trágico-Marítima»" incluído na de opinião, que nos meios de comunicação social, em mesas
edição de 1956 desta compilação de Bernardo Gomes de Brito. redondas, elípticas, octogonais ou de outras desvairadas
Bastará ler esse estudo, para se perceber que não é unânime, na formas, debitam opiniões que, devidamente absorvidas por
intelectualidade Portuguesa de qualquer época, o carácter alguns sectores do povo nas ocasiões em que não está distraído
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com a Floribela, o futebol, ou os Morangos com Açúcar, fazem e cultura Afro-Portuguesa, aos territórios do Industão e da
com que esse mesmo povo esteja constantemente Insulíndia e a todas as comunidades lusófonas espalhadas pelo
envergonhado do seu passado. mundo, nomeadamente as dos Estados Unidos, Canadá e
Esse mesmo povo fica assim apto a aceitar muito facilmente, América do Sul.
como única solução política e social para o nosso país, a sua Esse Mar da em boa hora formada Comunidade de Países de
integração na Europa, cada vez mais alargada e cujo objectivo Língua Portuguesa, ao qual estranhamente desejam pertencer a
final é a constituição de uma federação de Estados que Guiné Equatorial, a Galiza, as Maurícias.
necessariamente terão de ter uma política externa e de defesa Esse Mar que a milenária Nação chinesa utiliza, através de
comuns, além de outras que já estão instituídas. Macau, onde existe um fórum permanente de Cooperação com
E é muito fácil convencer o povo a aceitar soluções deste os Países de Língua Portuguesa, como meio de expansão dos
género, visto que até agora a Europa foi uma benevolente seus interesses em África, no Brasil ou noutras áreas
fornecedora de dinheiro que, é conveniente assinalar, não geográficas onde se fala Português. Esse Mar dos Jogos da
corresponde ao esforço produtivo da Nação Portuguesa. Lusofonia, onde participaram além dos oito Estados da CPLP,
Esse dinheiro, a fundo perdido, tem de facto como objectivo a Sri Lanka, Macau, Guiné Equatorial e índia.
harmonização das economias dos diferentes países, mas a Esse Mar onde se efectuam exercícios militares conjuntos,
maioria dos votantes apenas sabe que o capital entra, e nomeadamente os exercícios Felino.
enquanto entrar não se opõe nas urnas a outras soluções. Esse Mar onde ainda labutam missionários, que a nossa
E é facílimo também convencer os nossos representantes sociedade abandonou também à sua sorte, e cuja acção não só
eleitos ou nomeados para servir nos organismos comunitá rios na difusão do cristianismo, como nos sectores da educação,
na Europa, por razões que não me atrevo a esclarecer, ou que prestação de serviços de saúde e outras intervenções na área
são de desnecessário esclarecimento! social, tem sido uma mais-valia para as sociedades locais,
atenuando os efeitos perniciosos da nossa retirada precipitada.
Esse Mar onde cerca de 250 milhões de seres humanos falam
esta nossa língua e onde deixámos património edificado, muito
dele fruto da mistura de estilos, que é extraordinariamente
representativo, mesmo se comparado com o património criado
por outras nações no mundo. Mas conhecem muitos dos
Portugueses este Mar, ou têm dele notícia através dos nossos
meios de comunicação social?
Sabem também que em Washington se realizou de Junho a
Setembro de 2007 uma exposição intitulada, Encompassing the
Globe. Portugal and the World In the XVI,h and XVIIth
centurias?
Não têm, porque não se fala dele, porque, insisto, se tem
Ouro Preto, Brasil, património da humanidade vergonha do nosso passado e a moda é a Europa. E do que se
fala sobre o nosso passado é normalmente negativo e
pejorativo.
A propósito deste tipo de procedimento, refiro muito
brevemente uma opinião, expressa numa coluna do Diário de
Notícias, de um prestigiado jornalista e formador de opinião,
Embora considere que a nossa entrada na Europa foi inevitável que disse com o seu habitual ar de desdém, há algum tempo,
e benéfica e que a actual livre circulação de pessoas e bens e a que Portugal, no que respeita a património, era miseravelmente
moeda única, entre muitas outras coisas boas, tem sido na pobre.
prática um factor de desenvolvimento económico e social, não A respeito desta matéria, lembro que Portugal tem no seu
concordo de maneira nenhuma com o seu objectivo final, que é território Europeu 13 sítios classificados pela UNESCO como
a federação de Estados. património da Humanidade e que dos 144 Estados incluí dos
Considero que a defesa dos nossos interesses como Nação nessa classificação, só 1 5 têm maior número de sítios
passam pelo mar e pela nossa relação com esse veículo da classificados.
nossa expansão e dar-nos-ão na Europa maior poder negociai e Mas se adoptarmos o critério de considerar apenas o
nos territórios e áreas externas à Europa de influência ou património classificado que corresponda à intervenção
cultura Portuguesa um veículo de influência na Europa humana, excluindo assim os que correspondem a património
Comunitária. natural, como parques nacionais, etc., Portugal passa a ter
Esse Mar que é o de Camões, de Pessoa, ou de Agostinho da somente 9 Estados com maior número de sítios classificados.
Silva, e não fisicamente o mar da zona económica exclusiva, ao
qual, não se duvida, se deva também prestar a máxima atenção.
Esse Mar que nos liga ao Brasil, aos Estados Africanos de língua
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expansão, têm em grande parte semelhantes sentimentos. E
tudo isto não apenas por razões afectivas, mas por inegável
interesse estratégico.
Basta ver que a Inglaterra não aceitou a moeda única, por ter as
costas quentes, permitam-me o coloquialismo, com a
Commonwealth, e todos estes países continuam a ter uma
agressiva política de influência nos seus antigos territórios
coloniais.
No que respeita por exemplo à França, o seu interesse em se
substituir a Portugal em Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe é
conhecido, o mesmo acontecendo à Inglaterra que em
Moçambique conseguiu que esse território pertencesse à
Commonwealth.
E a que se deve a riqueza actual da nossa vizinha Espanha,
senão aos seus avultados investimentos na América do Sul e
também na África lusófona.
Acentuemos também que a Espanha compreendeu que a
lusofonia e a castelhanofonia (???), engloba quase 600 milhões
de falantes, que se entendem mutuamente, ou pelo menos que
os que falam Português os entendem a eles, falantes do
Espanhol, tirando deste facto as respectivas vantagens.
Mas o que é verdade é que temos que olhar para o futuro e é
para isso que eu humildemente pretendo contribuir. E o nosso
futuro será a Europa e só a Europa, onde estamos integrados de
pleno direito, até porque fomos, entre outras coisas, os
responsáveis pelo arranque inicial da sua impará vel expansão
pelo mundo?
Portugal o mar e o futuro

"...parece-me que o nosso lugar na Europa


das Nações, e só das Nações, onde
pertencemos de pleno direito, só poderá
enriquecer essa mesma Europa devido às
nossas ramificações transcontinentais, e
que os habitantes do nosso Mar só
beneficiarão da nossa posição na Europa,
para a qual poderemos ser uma ponte de
valor inestimável"

Se agora se considerar o nosso património edificado no


Ultramar, retirando-o aos Estados que o detêm, uma vez que
são fruto da cultura Portuguesa, embora miscigenada com a
cultura local, Portugal irá ficar com mais cerca de 20 sítios,
espalhados por todos os continentes, totalizando cerca de 33, o
que nos colocaria entre o 5.° e o 2.° lugar! Por tudo o já
exposto, e por muitas outras razões é que eu considero que
tenho muito mais afinidade com um Cabo- -Verdiano do que
com um Sueco, com um Chinês do que com um Cipriota, com
um Brasileiro do que com um Finlandês, com um
Moçambicano do que com um Polaco, e tudo isto sem
menosprezo dos povos que habitam esses países Europeus.
E também me parece que os Franceses, Ingleses, Espanhóis e
Holandeses, que mais de perto nos acompanharam na Portugal o mar e o futuro
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e agir é muito idêntica a muitas das elites governativas
Portuguesas actuais, que como se sabe são fruto das massas
vitoriosas da revolução do 25 de Abril. Considero que será
necessário rever toda a nossa política externa e de emigração e
que se deve avançar rapidamente para o estatuto de cidadão
lusófono, devendo estes cidadãos ter tratamento diferenciado
do dos outros emigrantes, nos países integrantes do espaço
lusófono.
A dinamização do Instituto Internacional da Língua Portuguesa
é fundamental e a ratificação do acordo ortográfico recente
deverá ser estendida a todos os membros da CPLP, assim como
ao Instituto Camões se deverá proporcionar todos os meios
para cumprir os seus objectivos.
A integração política dos cidadãos portugueses oriundos da
CPLP deveria ser acelerada, através da abertura dos partidos
políticos a mais indivíduos nessas condições, o que permitiría,
Estátua do Infante D. Henrique evocativa da chegada dos
na Assembleia da República ou no poder local uma mais
portugueses à ilha de Tanegashima (Japão) em 1543
equitativa representatividade.
Considero que não deverá apenas ser o futebol, o atletismo ou
o desporto de uma maneira geral, que tenha representantes dos
países que falam Português. Não faríamos mais do que faz a
Considero que não, e que um esforço grande se deve fazer para Inglaterra, a França e a Holanda em casos idênticos, apesar de
não só não perder como também alargar o nosso espaço de nesses países a integração social dos cidadãos oriundos do
influência e intervenção no tal Mar Português, criando Ultramar ser mais problemática do que em Portugal.
condições para que esses laços afectivos e humanos sirvam A organização consistente de um força militar lusófona, de uma
também os seus povos em todos os outros aspectos, ainda maior contribuição portuguesa para a formação das
nomeadamente o económico, porque o coração para viver, forças armadas nas áreas do ensino e do fornecimento de
além de alimento afectivo, também precisa do tal cifrão. E armamento e na dinamização da divulgação pública dessas
entre nós algo se tem feito, como a criação da CPLP, da RDP acções sem o permanente complexo pós-colonial que
África e da RTP África, tendo estas últimas instituições sido um aparentemente pretende esconder essas acções, deverá ser
excelente meio de difusão da língua e cultura Portuguesas e da incentivada.
integração das outras culturas na nossa. Podem crer que nos Também na área da educação, as bolsas de estudo devem ser
países lusófonos por mim recentemente visitados, estas duas alargadas e a instalação de Universidades nas capitais da
estações são uma referência para os povos dessas paragens. lusofonia incentivada e alargada.
Também no sector privado e na área da comunicação social, a Também me parece que um maior investimento se deverá fazer
SIC Notícias é outro factor de união, visto estar acessível, na intensificação de relações entre a Região Administrativa
através de satélite, a todo o mundo. Especial de Macau e Portugal nos diversos dominios,
As recentes visitas à China e à índia de altas entidades do nomeadamente no da educação, visto que este rico território,
Estado Português, são também factores importantes para o integrado num espaço para o qual parece estar a deslocar-se o
estreitamento de laços com os países lusófonos, até porque por eixo do mundo, será um excelente meio de manter, amplificar e
exemplo uma visita à China é praticamente uma visita aos dar significado vivo e actuante ao capital humano por nós
órgãos directivos da CPLP! legado a essa área do globo, onde tantas comunidades, que se
Na área da educação também se tem proporcionado aos países reclamam de cultura Portuguesa, subsistem no seio das
lusófonos o acesso ao ensino em Portugal, através de bolsas de comunidades locais.
estudo, e as Escolas Portuguesas têm também sido factor Outra área a não descurar é a do transporte marítimo, que nos
importante de difusão e da interpenetração das culturas da livre da nossa dependência permanente dos humores dos
lusofonia. Tive oportunidade de visitar a Escola Portuguesa de camionistas Espanhóis ou Franceses. Não se compreende como
Moçambique, que é um exemplo a seguir por outras escolas uma nação marítima, que já teve uma das grandes marinhas
congéneres, já em formação noutros territórios. mercantes do mundo, se tenha transformado em frotas de
Mas só uma política desassombrada e muito mais agressiva, camiões TIR, navegando no asfalto.
sem complexos pós-coloniais, que envolva os poderes pú Em suma, parece-me que o nosso lugar na Europa das Na ções,
blicos, com o objectivo de abrir portas ao sector privado, póde e só das Nações, onde pertencemos de pleno direito, só poderá
atirar para trás das costas ressentimentos ainda existentes nas enriquecer essa mesma Europa devido às nossas ramificações
elites governantes da África lusófona, que atingiram o poder transcontinentais, e que os habitantes do nosso Mar só
depois da independência. Note-se que a sua maneira de pensar beneficiarão da nossa posição na Europa, para a qual
poderemos ser uma ponte de valor inestimável. E também me
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parece que os problemas da época actual só se atenuarão se as
pessoas forem reconhecidas ou apreciadas apenas pelo seu
carácter, pelo seu mérito, pelo seu comportamento cívico e não
pela cor da pele ou crença religiosa. E no Mar Português há
muitos exemplos a seguir que o Mundo poderá copiar.
Por isso digo, e para terminar, que a capital do meu País não é, Capitão-de-Mar-e-Guerra (Ref.)
nem deverá ser nunca Bruxelas, Bona ou Paris. A capital do Académico da Academia de Marinha e
meu País é sim o Martim Moniz. Mestre em História dos Descobrimentos e da Expansão
Portuguesa
Membro do Conselho Supremo da SHIP

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União Europeia e Direitos
Soberanos de Portugal nas
Águas Marítimas - Página de
Abertura
Portugal e o Tratado Europeu
A SHIP não podia alhear-se das implicações do Tratado Europeu e do seu significado e consequências para Portugal. Por
isso, por iniciativa do Conselho Supremo, foi promovido um ciclo de conferências e debates, sob a orientação e coorde-
nação do Prof. Adriano Moreira, com muito boa participação e oradores de alta craveira intelectual, conhecedores do tema
em apreço.Novos problemas irão surgindo nestes complexos processos de consolidação e de alargamento da União Euro-
peia. A crise financeira que abalou o mundo veio trazer-lhes, inevitavelmente, dificuldades acrescidas. A SHIP continuará,
por isso, a dedicar a esta temática a maior atenção.
União Europeia e Direitos
Soberanos de Portugal nas
Águas Marítimas
"...o mar deu à Europa uma notável Trata-se, pois, de uma linha de costa longuíssima, estimada em
relevância, quer na antiguidade, sobretudo 70.000 km, valor enorme, sobretudo quando comparado com
com a Grécia e Roma, quer com a abertura da os 7.000 km da fronteira terrestre e com os 25.000 km de fron-
Idade Moderna conseguida pelos Descobri- teira marítima dos EUA. É recortada, quer pelo oceano aberto,
mentos" o Atlântico, quer por muitos mares, mais ou menos fechados e
por diversos golfos de vasta dimensão. Não se encontra, con-
Defendo a existência de uma política europeia concertada, mas, tudo, nenhum mar com a designação de europeu. É uma falta
ao mesmo tempo, não estou de acordo com uma gravosa, revol- que demorará tempo a suprir, mas existem condições e até um
tante mesmo, norma sobre o mar, contida no Tratado Refor- racional histó rico para que isso aconteça.
mador Europeu, dito de Lisboa. A esta afirmação, que contém De facto, o "Mar Europeu" começou a existir há muito, ao dar
duas certezas de sinais contrários, junto uma outra. Essa é cons- aos povos que habitavam este velho continente a possibilidade
tituída por uma dúvida sobre outra questão, a da estrutura orgâ- de viajarem à roda dele, comerciando, trocando experiências
nica de uma eventual guarda costeira europeia, incluindo os técnicas e conhecimentos e misturando pessoas de várias ori-
seus comando e controlo. gens. A periferia europeia foi navegada por Fenícios, Gregos,
Irei, pois, de forma sucinta, procurar abordar apenas estes três Romanos, Normandos, Árabes, Ingleses, Portugueses, etc., que
pontos, já que o tratamento extensivo de temas tão vastos deram um começo à vocação marítima da Europa.
como o Tratado Reformador Europeu ou a totalidade das polí- Mais tarde, nos séculos XV e XVI as descobertas marítimas
ticas marítimas da União Europeia constituem matéria, cujo europeias, lançadas pelos Portugueses, mudaram radicalmente
volume não caberia numa única intervenção. Começando então o mundo, por três razões:
pelo princípio, como é de boa regra, afirmo que a política marí- 1 - A ligação entre oceanos diferentes abriu a porta à globa-
tima da União Europeia, em fase adiantada de elaboração, tem lização, tão discutida hoje;
o cunho português, sem sombra de dúvida. De facto, em 2004, 2 - O fluxo de conhecimento científico que tinha tido a orien-
o então Primeiro -Ministro de Portugal, Dr. Durão Barroso, tação de Oriente para Ocidente foi invertido com a conquista
perante o Relatório elaborado pela Comissão Estratégica dos portuguesa e europeia da supremacia do saber;
Oceanos, que nomeara no ano anterior, manifestou a ideia de 3 - O obscurantismo da Idade Média foi substituído pelas
que, quando assumisse a Presidência da União Europeia, para forças do progresso da Idade Moderna.
que já estava nomeado, iria procurar, nesse nível, desenvolver Por isto se pode concluir, em termos históricos, que o mar deu
também a maritimidade da Europa. à Europa uma notável relevância, quer na antiguidade, sobre-
E será que isso se justifica? tudo com a Grécia e Roma, quer com a abertura da Idade
Na minha perspectiva sim, sem reticências. E para o provar Moderna conseguida pelos Descobrimentos. Então, quer por
olhemos o mapa da Europa com os 27 países da UE a cor mais razões geográficas, quer por herança histórica, a Europa, ou
forte e o que vemos é uma longa península com eixo NE-SW, antes, a UE dispõe de bases para ser uma potência marítima.
do Rio Tana, na Finlândia, quase no Cabo Norte, até ao Cabo Mas há mais. Reparemos também na comparação do valor
de São Vicente no Atlântico, a 4.500 km. E como península que económico do mar para a UE e para os EUA.
é está rodeada de água, excepto a leste, mas também por A UE movimenta 90% do seu comércio externo e 40% do
muitas ilhas, mais de 900, número impressionante, quais comércio interno por mar e a grande potência marítima, os
guardas avançadas do continente a que dão a profundidade que EUA, semelhantemente, usam a via aquática, oceanos e grandes
nalguns locais lhe falta. Para ser apenas exemplificativo, refiro, lagos, para deslocar 78% do comércio internacional, em
entre elas, o caso emblemático dos Açores, que levam a Europa volume, e 38% em valor. Vale a pena salientar que o comércio
quase até meio do Atlântico, com as duas ilhas mais ocidentais internacional da UE é bastante superior ao dos EUA. Este país
a constituírem afloramentos visíveis da placa geológica do con- exporta 12,3% da cifra mundial, enquanto que só a soma dos
tinente americano. valores da Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Holanda

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totaliza 24,9%.

União Europeia e Direitos Soberanos de Portugal nas Águas Marítimas

A UE dispõe de 40% da frota mundial de navios mercantes, importância polifacetada do mar para o nosso Continente. Por
enquanto que, por opção económica, os EUA apenas detêm 1% isso, é importante, e concordo com ele, o plano de acção que a
dessa frota e fazem transportar muito do seu comércio em UE desenhou para a sua política marítima, na sequência do
navios de bandeiras de conveniência. É, por isso, igualmente Livro Verde. Consagra dez projectos que, sinteticamente,
um sector de actividade relevante para a importância ocidental podemos designar por:
e deve determinar, por razões estratégicas de segurança e 1 - Espaço para transporte marítimo europeu sem barreiras
defesa, uma estreita cooperação atlântica. (hoje há barreiras ao transporte marítimo que não são
Do nosso condomínio marítimo também retiramos muitos ali- colocadas ao transporte terrestre);
mentos, sobretudo peixe e crustáceos. Pondo de lado as algas, 2 - Estratégia europeia para a investigação científica do mar;
os mares contribuem com 6 kg de pescado para a alimentação 3 - Políticas marítimas nacionais integradas para serem desen-
anual de cada americano. Os Europeus consomem mais. volvidas pelos Estados-membros;
Comem 20 kg de peixe por ano e os Portugueses ainda mais do 4 - Rede europeia para vigilância marítima;
que a média europeia, 60 kg /ano. A nossa prosperidade pas- 5 - Roteiro para planeamento de espaços marítimos, da respon-
sará, seguramente, pela capacidade de gerirmos os recursos sabilidade dos Estados-membros;
vivos do mar que estão, sem dúvida, em forte declínio em todo 6 - Estratégia para mitigar os efeitos das mudanças climá ticas
o mundo, segunda a FAO e, claro, também no Atlântico. Para nas regiões costeiras;
Americanos e Europeus o grande ecossistema marítimo é o 7 - Redução das emissões de CO2 e da poluição pela navegação;
mesmo e muitas espé cies são migratórias o que impõe gerir 8 - Eliminação da pesca de arrasto pirata em alto mar;
bem e coordenadamente, nas duas margens do Atlântico, esta 9 - Uma rede europeia de "clusters" marítimos;
fonte de prosperidade. 10 - Revisão das leis das isenções laborais para os sectores do
O oceano desempenha também um papel essencial no aprovi- transporte e das pescas marítimos.
sionamento energético. O mar do Norte, um recanto do Atlân- Relevo que neste conjunto de tópicos residem as ferramentas
tico, é, depois da Rússia, dos EUA e da Arábia Saudita a quarta necessárias para uma Política Marítima Integrada da UE, a qual
maior fonte de petróleo e de gás do mundo. O vento, as cor- manifesta a intenção de as usar guiadas pelos princípios da sub-
rentes e as ondas representam uma vasta reserva de energia sidiariedade e da concorrência, respeito pelos ecossistemas e a
renovável ainda pouco explorada, mas que poderia assegurar participação dos agentes interessados. Há, pois, aqui o bom
uma importante parte do abastecimento de electricidade, ou de senso de evitar a centralização excessiva, o que é de aplaudir,
hidrogénio para pilhas de combustível, em muitas zonas cos- mas que não chega para tranquilizar, e menos ainda para
teiras. apagar, a norma do Tratado Reformador Europeu que me
A economia do mar junta-se, pois, à geografia da Europa para angustia e que ainda não explicitei.
confirmar aquilo que a história já tinha demonstrado - a E antes de o fazer permito-me expor a ampliação do cenário
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enquadrador, de molde a melhor se avaliar a tal questão. hecemos. Para Portugal, que tem a maior zona marítima da UE,
As costas dos países da UE, pela forma recortada que as caracte- a medida póde ser de extrema gravidade. Repare-se que a
riza, pelo seu espaçamento em longitude e em latitude, pelos redacção da norma fala em: (1) "recursos biológicos" e (2) "do
tipos de mares e dos oceanos que as banham, pelo número de mar". Recursos biológicos incluem peixes, mamí feros,
ilhas que as bordejam (mais de 900), pela diferente forma crustáceos, moluscos, plantas e produtos de biotecnologia,
como estas se inserem no continente, pela extensão da costa, todos de enorme importância ecológica e econó mica. E "mar"
incluindo a periferia das ilhas (70.000 km), por tudo isso, apre- envolve todas as águas marítimas, quer elas sejam interiores,
sentam uma variedade de ambientes difícil de repetir em territoriais, da zona contígua ou da Zona Económica Exclusiva.
qualquer outra parte do mundo. Os mares tanto podem ser Isto é, a partir das praias, ou do Bugio, por exemplo, até às 200
muito frios a norte, como temperados no centro, ou quentes no milhas marí timas, a conservação desses recursos passa a com-
Mediterrâneo. Têm águas profundas no Atlântico e baixas petir à UE, em exclusivo. Se, como dizem altos responsáveis do
noutros mares, como no Báltico. Tem zonas de marés de Estado português, o Tratado Reformador é uma realidade dife-
grande amplitude e algumas de variação quase nula. rente do anterior projecto de Tratado Constitucional, não
entendo porque é que esta gravosa medida não foi alterada,
"Como é possível gerir, centralizadamente, nem sequer mitigada, passando, quando muito, para uma
a partir dos gabinetes em Bruxelas, ou em medida de gestão partilhada. Exclusiva, é que nunca! Por fim e
qualquer outro local, a miríade de brevemente, uma alusão de dúvida ao futuro de uma guarda cos-
situações biológicas dos 70.000 km de peri- teira europeia.
feria europeia mais os específicos mares da
cordilheira central atlântica, como os dos "...a normalização de medidas deve ser
Açores?" extensivamente aceite, mas a verificação da
sua execução deve ser responsabilidade dos
Obviamente que a esta enorme diversidade ambiental corres- Estados-membros, embora, naturalmente,
pondem ecossistemas variados. Para mais, uns são de fácil sujeita a processos de avaliação".
comunicação e interpenetração com outros vizinhos,nas plata-
formas continentais, mas também existem alguns isolados, Parece-me evidente que tendo a UE uma tão vasta fronteira
como nas ilhas que afloram em zonas abissais - casos dos marítima e sendo conhecidos os riscos ambientais, a necessi-
Açores e da Madeira. E até há ecossistemas muito especiais dade de protecção de pessoas e de bens, a exigência de
como os das áreas das fontes termais e chaminés submarinas disciplina em todas as actividades marítimas, etc., haverá que
da cordilheira média atlântica. estabelecer normativos envolventes e actuações coordenadas e
Pois bem, toda esta diversidade ambiental, em áreas tão dis- em sintonia, ao longo de toda essa periferia. Portanto, a norma-
tintas e tão extensas deixa-me perplexo, abismado mesmo, lização de medidas deve ser extensivamente aceite, mas a veri-
quando vejo que o Tratado Reformador da UE, dito Tratado de ficação da sua execução deve ser responsabilidade dos Estados-
Lisboa, mantém intacta a cláusula que se encontrava no pro- membros, embora, naturalmente, sujeita a processos de ava-
jecto de "Tratado que Institui uma Constituição para a liação. No entanto, não seria de forma alguma aceitável que
Europa", pelo menos desde a reunião do Conselho Europeu de uma guarda costeira europeia se encarregasse, com comando e
Saló nica, em 2003. Está, portanto, viva e pelos vistos não con- controlo centralizados em Bruxelas, dessas tarefas. Isso parece-
testada por Portugal a tal disposição que estabelece que a me uma utopia. Mas como a gestão dos recursos biológicos do
União dispõe de "competência exclusiva" no domínio da "Con- mar foi tratada utópicamente, será que a apetência pela nossa
servação dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política vasta zona marítima não levará os poderes (ocultos?) da UE
comum de pescas". mais longe, amputando também o Estado Português do cont-
Note-se que as outras competências exclusivas de Bruxelas são rolo das suas águas.
só quatro e têm a ver com questões aduaneiras, de
concorrência, comerciais e monetárias, o que mais aumenta o Fica, para já, a minha dúvida e a minha desconfiança. Apre-
pasmo por aquela medida, qual corpo estranho aqui metido à sento-as no meio adequado. Neste instrumento da Sociedade
força. Histórica da Independência de Portugal, com sede no Palácio
Ninguém, até agora, me conseguiu esclarecer a seguinte interro- da Independência, esperançado que, ao menos, a mística deste
gação: como é possível gerir, centralizadamente, a partir dos ambiente nos ajude.
gabinetes em Bruxelas, ou em qualquer outro local, a miríade
de situações biológicas dos 70.000 km de periferia europeia Almirante (Ref.), sócio da SHIP
mais os específicos mares da cordilheira central atlântica, Ex-chefe do Estado-Maior da Armada
como os dos Açores? Presidente da Academia de Marinha
Esta fúria centralizadora podia levar-me a cogitações longas
quanto aos motivos de origem e quanto às consequências, mas
fico-me pelo paralelismo com a gestão centralizada da eco-
nomia de estado soviética, com os resultados que lhe con-
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A importância de comemorar
Mouzinho no 150.° aniversário
(01)
do seu nascimento
"Essas poucas páginas brilhantes e consoladoras que há na História do Portugal Con-
temporáneo escrevemo-las nós, os soldados, lá pelos sertões da África, com as
pontas das baionetas e das lanças a escorrer em sangue. Alguma coisa sofremos, é
certo; corremos perigos, passámos fomes e sedes e não poucos prostraram em terra
para sempre as fadigas e as doenças. Tudo suportámos de boa mente porque servíamos
EI-Rei e a Pátria, e para outra coisa não anda neste mundo quem tem a honra de
vestir uma farda. Por isso nós também merecemos o nome de soldados; é esse o nosso
maior orgulho".

Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bragança)

Esta citação foi retirada da carta que Mouzinho escreveu, em


1901, ao Príncipe D. Luis Filipe de quem era aio. Esta carta por
demais notável - e que deveria ser lida e meditada em todas as
escolas do País - constitui a síntese do seu pensamento de
Homem, de Português e de Militar e reflecte em alto grau a ele-
vada estatura moral do seu autor, espírito superior que não
cabia no Portugal de então.
A figura de Mouzinho já foi evocada e estudada de todos os
ângulos possíveis; as suas acções como militar, administrador e
educador, dissecadas por numerosos autores, e bem assim o
seu perfil como Homem, cidadão e o político que nunca foi.
Personalidade complexa, era dotado de grandes qualidades e
algumas sombras, como é inevitável em todos os humanos. Mas
entre umas e outras, o saldo recai amplamente nas primeiras e
tudo deve ser avaliado à luz de um todo e de uma época.

"Aqueles que por obras valorosas se vão da


lei da morte libertando"
Camões

Exemplar do Relatório do Governo de Moçambique com


dedicatória de Mouzinho de Albuquerque ao então
Capitão Manuel Gomes da Costa, Presidente da
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República em 1926 É pois a esta luz, isto é, fazendo um paralelo entre os exemplos
de Mouzinho e alguns eventos dos nossos dias, que nos pro-
pomos alinhavar a prosa restante.Será mais um serviço que ele
indirectamente presta à terra que tanto amou.
Assim antes de fazermos uma incursão no seu exemplo como
Joaquim Mouzinho de Albuquerque nasceu na Quinta da Homem, Militar e Administrador, tentaremos situar o perso-
Várzea, freguesia de S. Maria da Vitória, concelho daBatalha, a nagem no Portugal de então e concluiremos com uma certeza e
12 de Novembro de 1855. Descendente de uma das famílias mais uma obrigação a cumprir.
ilustres portuguesas, foi baptizado um mês depois no Mosteiro A introdução fica assim feita, faltando apenas explicitar duas
de Santa Maria da Vitória. Mouzinho distinguiu-se entre os razões ponderosas da importância de comemorar a figura de
Homens da sua geração e ganhou jús a figurar na plêiade de por- Mouzinho:
tugueses que no dizer do poeta "se vão da lei da morte liber- • para se voltar a evocar os nossos Heróis, Sábios e Santos,aju-
tando". dando desse modo a enterrar definitivamente umaleitura
E uma das provas que assim é, resulta no facto dos aniversários marxista da História que se impôs entre nós desdea época con-
relevantes tanto da sua morte como dos seu nascimento conti- turbada de 1974/5 e que tão perniciososresultados tem dado;
nuaram a ser lembrados e comemorados das mais diferentes • e para ajudar a reganhar a nossa auto-estima comonação,
maneiras desde o seu trágico passamento. Quando se fala de muito abalada por más consciências recentes,lideranças polí-
Mouzinho, logo vem à memória o nome de Chaimite, onde o ticas medíocres, autoflagelações pseudo-intelectuais e escassez
seu valor se revelou na sua plenitude, bem como a coragem de sucessos colectivos.
tanto física como moral que Mouzinho tinha no mais alto grau. E à mingua de se evocar os heróis, condecoram-se ex -terro-
Individualizamos este memorável acto de coragem temerária - ristas confessos e políticos que desqualificaram o país.
embora reflectida -, só possível num ser dotado de grande espí-
rito militar e capacidade de liderança, por ser um feito de O Portugal Contemporâneo de Mouzinho
armas singular, gló ria exaltante dos nossos brios patrióticos e "Foram-se-nos mais de três partes do
cujo valor encontrou eco nos principais países de então, império de Além-Mar e Deus sabe que dolo-
confrontados com derrotas dolorosas de importantes exércitos rosas surpresas nos reserva o futuro ..."
da época (o feito foi tão assombroso que a Rainha Victória se Mouzinho de Albuquerque
recusou a acreditar quando lho contaram...). (in carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bra-
Valor que fez reconhecer à generalidade da população portu- gança)
guesa o direito que aqueles 50 bravos passaram a ter de nin-
guém se lhes dirigir sem se descobrir.E tanto é de espantar o Mouzinho nasceu no reinado efémero do muito prometedor
golpe de asa que fez Mouzinho entrar no Kraal do Gungunhana Rei D. Pedro V que a doença ceifou prematuramente. Portugal
- protegido pela sua mais aguerrida "impie"(1) de 3000 guer- tinha começado a viver, desde 1851, um período de paz civil,
reiros, derrubando com decisão a paliçada que o protegia, recuperação financeira e desenvolvimento económico. Este
todos petrificando com assombro; como, já na retirada, sen- período seguia-se aos terríveis 50 anos anteriores, que tinham
tindo os Vátuas que os seguiam de perto, inquietos por não visto o país invadido pelos franceses por três vezes, que
completamente dominados, mandou parar a coluna e num deixaram atrás de si um rasto de morte e destruição; assistido à
gesto intuitivo de alto risco, ordenou aos orgulhosos negros partida da Família Real e de cerca de 10.000 pessoas de maior
que depusessem os seus escudos no chão de modo a sobre eles condição para o Brasil; à ocupação inglesa e perda do
poderem os soldados portugueses descansar. E assim se fez, monopólio do comércio do Brasil e restantes territórios, para a
ficando completa a humilhação vátua e por arrasto a sua sub- Inglaterra; à Revolução Liberal de 1820, que veio a expulsar o
missão. governo de Beresford, e está na origem da independência brasi-
Mas hoje não se ensina mais o significado de Chaimite à popu- leira, da primeira Constituição portuguesa e da posterior
lação portuguesa e muito menos à sua juventude. Provavel- divisão da Família Real e subsequente guerra civil; da guerra
mente, em muitos meios, este e outros actos heroicos são consi- civil que durou de 1828 a 1834, que devastou o país; da revo-
derados "demodés"; uma acção de violência que nada justifica; lução social que se seguiu ao seu termo, cujo expoente se situa
uma aventura imperialista; um esforço escusado, uma afronta à na extinção das Ordens Religiosas e na reforma administrativa
paz entre os povos e outras considerações de semelhante jaez. de Mouzinho da Silveira e ainda na formação de uma nova
Hoje em dia os portugueses deixam-se dominar pelos pseudo- nobreza e na emigração da antiga; tudo isto seguido de uma tre-
intelectuais de serviço que primam em aviltar a memória de menda e demorada crise política, social, económica, financeira
quem se portou bem; de fazerem filmes sobre as derrotas nacio- e religiosa, que acabou por desembocar noutra guerra civil, em
nais; ou ainda - a lista é extensa - das peças teatrais, em que se 1847, a Patuleia, apenas terminada por uma intervenção militar
evoca a batalha de Alcácer Quibir com artistas marroquinos. anglo-espanhola!(2)
Tudo isto sob o olhar distraído ou conivente de autoridades e Foi na sequência desta devastação que o Marechal Saldanha,
instituições. conhecido cabo de guerra de outras batalhas e golpes de
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Estado, forçou, "manu militan", a sua ida para primeiro -mini- industriais ao passo que viu destruído quase tudo o que
stro, em 1851. detinha. A independência brasileira deu o golpe de misericórdia
A partir daqui as forças político-partidárias, vendo o descalabro na economia e finanças. Portugal, que no início do século XIX,
em que se encontrava a Nação, promoveram um entendimento se poderia considerar uma média potência, estava em meados
em que dois partidos constituídos, um mais à direita - O Rege- do século quase desqualificado no conceito das nações e
nerador - e outro mais à esquerda - o Progressista - se alterna- incapaz de acompanhar o desenvolvimento tecnológico e social
riam no Poder, numa tentativa de imitação do parlamentarismo em acelerada expansão.
inglés. Face às dificuldades existentes o Marquês de Sá da Bandeira,
Deu-se assim início ao "rotativismo", que funcionou sem homem de incontestável valor (mas que se ficou por marquês
percalços de maior até 1890, período marcado pela figura do enquanto outros, de inferior estofo, foram a duque...), no
general Fontes Pereira de Meio. Esse ano de 1890 viu surgir preâmbulo do decreto-lei que abolia a escravatura, datado de
uma crise financeira o que acompanhado do "ultimá tum" 1836, apontou a necessidade de se mudar o esforço estratégico
inglês, mergulhou o país em prolongada crise social e política. para África de modo a lá se constituírem novos Brasis. O
A monarquía portuguesa ia viver os seus últimos 20 anos de desafio foi aceite mas as guerras estrangeiras e internas, já
existência em que aumentaram sem cessar os ataques à Família citadas; os desatinos político -partidários; o caos financeiro; as
Real e ao Trono a que não eram estranhas as ideias socialistas querelas religiosas e a desorganização militar e administrativa
introduzidas na sociedade portuguesa e, sobretudo, a fizeram gorar qualquer tentativa séria de desenvolver os territó-
emergência em força do partido republicano, apoiado pelas rios de além -mar, há demasiado tempo entregues à sua sorte.
lojas maçónicas. Tudo veio a desembocar na revolta Tal só veio a mudar quando o interesse sobre a África e as
republicana gorada de 1891; no governo "ditatorial" de João cobiças internacionais, que culminaram na Conferência de
Franco; pelo assassinato do Rei D. Carlos e do herdeiro do Berlim de 1884/5, fizeram com que os governos portugueses
trono, em 1 de Fevereiro de 1908 e, finalmente, no 5 de acordassem da sua letargia e intentassem estudar, delimitar e
Outubro de 1910, onde a divisão e desorientação das forças ocupar "de facto" os territórios onde a Bandeira Portuguesa flu-
monárquicas e a falta efectiva de liderança fizeram soçobrar tuava há quatro séculos. Isto só foi possível, porém, pelos
uma Monarquia antiga de quase 800 anos, em menos de 24 progressos registados no período de 1851 a 1890 e que se tra-
horas, às mãos de cerca de 500 civis armados, meia dúzia de duziram na estabilidade das finanças, desenvolvimento da
peças de artilharia e um subalterno de Administração Naval. E agricultura (Portugal continuava a ser um país essencialmente
isto depois do chefe da revolta, Almirante Reis, se ter suicidado agrário) e na melhoria das vias de comunicação, transportes e
julgando a partida perdida! infra-estruturas sociais. E, naturalmente, no reforço possível do
Talvez o resultado de tudo isto tivesse sido diferente se a Exército e da Armada.
espada de Mouzinho não o tivesse acompanhado no túmulo... A partir do início do século XIX, a África Negra deixou de ser
Quando Mouzinho nasceu, Portugal mantinha presença em olhada apenas como reservatório de escravos, local de expiação
quatro continentes, mas à excepção da índia, o controlo efec- de condenados e ponto de apoio de armadas, para passar a local
tivo dos territórios ultramarinos era escasso. O esforço estraté- apetecível de ocupação. Concorreu para isto a curiosidade
gico dos últimos 200 anos tinha-se concentrado no Brasil, ter- científica, a procura crescente de produtos tropicais, a necessi-
ritório que, à data da independência, tinha umnível de desenvol- dade de matérias-primas e a cativação de novos mercados que a
vimento idêntico à Metrópole e um potencial incomparavel- Revolução Industrial não só potenciava, como exigia. Os
mente superior. Por via das invasões francesas e das guerras avanços no campo da higiene e da medicina ajudaram em
civis subsequentes, Portugal falhou as duas revoluções muito a prevenção e combate às doenças tropicais, facilitando
desse modo a fixação dos europeus.

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Joaquim Mouzinho com sua esposa, D. Maria José Mascarenhas Mendonça Gavião Mouzinho de Albuquerque. Retrato
tirado quando da viagem ao Porto em 1898.

A perda do controlo dos territórios que dispunham na Amé rica Portugal, cujo ambiente lhe era hostil, conseguiu apenas duas
do Norte, por parte da França e da Inglaterra encaminhou, natu- vitórias:
ralmente, estes países para outras paragens. À medida que se • impediu-se o estabelecimento da Associação Internacional
entrava na segunda metade de oitocentos o interesse por África Africana na margem direita do Zaire;
cresceu desmesuradamente. • ter sido retirada do acto geral a referência inglesa à internacio-
Constatava-se a ignorância sobre tão vasto territorio, sobre- nalização do Zambeze.
tudo o seu interior. E do interesse dos governos passou-se para As decisões de maior peso que afectaram directamente Por-
a opinião pública e desenvolveu-se a Geografía de que é tugal foram a declaração sobre a liberdade de culto e a ocu-
exemplo em Portugal a criação da respectiva Sociedade, em pação efectiva dos territórios. Sabia-se que só as grandes
1875. As viagens de exploração sucederam-se e toda esta activi- potências estavam em condições de fazer isto. Portugal não
dade veio a culminar na Conferência de Berlim de 1884/5, pro- estava capacitado na altura para lidar com estas exigências e as
movida e organizada pela Alemanha de Bismark, onde se fez a outras potências sabiam-no. Portugal era o país que mais tinha
partilha do continente e se desencadeou uma auténtica corrida a perder, percebeu o aviso e encetou numerosas acções para
a África. tornar mais efectiva a sua presença e salvaguardar os seus inte-
Sob forte pressão dos lóbies industriais alemães, Bismark resses.
acabou por lançar os seus olhos sobre o Continente Africano e, Os "ventos da História" da época - um dos mitos do nosso
em apenas três ou quatro anos, formou-se o império alemão tempo - assim o impunham...
em África que englobava Angra Pequena, Camarões, Togo, o A situação no Ultramar era confrangedora. E, se no Oriente, as
Sudoeste Africano e a África Oriental Alemã. nossas posições, por modestas, não despertavam grandes
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cobiças, já a situação em África era de molde a suscitar os mai- Com a Conferência de Berlim, germinou em Portugal o sonho
ores ataques. Foi isso que veio a suceder. do mapa cor-de-rosa, que encontra os seus primórdios no
E se na índia se tinha enraizado uma casta aristocrática baseada século XVI.
na rede de familias portuguesas estabelecidas, as possessões No entanto este sonho chocava com os interesses britânicos
portuguesas de África, foram quase apenas ponto de passagem que pretendiam ligar o Cabo ao Cairo e daí resultou o "ulti-
das caravelas, ou lugar de degredo de quem caía sob a alçada da matum" de 1890. O "Direito da força" tinha-se sobreposto à
justiça, durante três séculos e meio. As estruturas sociais eram, força do Direito. Uma reflexão sempre actual.
assim, muito débeis. A seguir à Conferência de Berlim, o governo português desenca-
deou um conjunto de acções de âmbito militar, administrativo,
Foi, portanto, um povo desmoralizado e governos hesitantes e de investigação e de delimitação de fronteiras e também de mel-
fracos, que em meados do século XIX tiveram que passar a horia de infra-estruturas, comunicações e comércio. E, natural-
olhar para Africa, por um lado para encontrar alternativas à mente, aquilo sem o qual qualquer acção seria estultícia: o
perda do Brasil; por outro, para fazer face às potências que nos reforço da presença e acção do Exército e Armada nacionais. As
queriam esbulhar. Mesmo assim o que se conseguiu fazer e sal- campanhas militares e a completa pacificação dos diferentes
vaguardar foi espantoso. territórios iriam estender-se até aos anos 30 do século XX.

Mouzinho de Albuquerque - A voz dos vigência de governos fracos e de menosprezo pela Instituição
documentos e o exemplo da acção Militar. Vivemos hoje novamente uma época dessas e o que se
"Enfim não houve forte capitão que não tem passado não augura nada de bom.
fosse também douto e ciente".
Camões Mouzinho como Homem
"Em resumo Exmo. Senhor, a minha
Joaquim Mouzinho não se limitou a ser um homem de acção, superioridade consiste em ter só uma cara".
foi também um homem de pensamento e um escritor de Mouzinho de Albuquerque
mérito. Apreciava Eça de Queiroz, a quem chamava o "ilustre (in carta ao Presidente de Conselho de
José Maria". Ministros)
Este último aspecto não tem sido objecto de estudo e realce.
Mas ao ler-se a sua vasta correspondência, os relatórios das Como disse Júlio Dantas, Mouzinho era grande demais para
campanhas e o livro "Moçambique", que escreveu em apenas caber na sociedade portuguesa de então, que não sabia o que
três meses, pode facilmente vislumbrar-se os seus dotes para a havia de fazer dele. E embora a lealdade desse "chevalier sans
escrita. Três das suas cartas podem considerar-se de antologia: peur et sans reproche" estivesse acima de todos as dúvidas,
a carta que escreveu ao Presidente do Conselho de Ministros, temiam-no.
José Luciano de Castro, em que justifica a sua demissão de Parece poder apontar-se Robert Clive, Lyautey, Caldas Xavier e
Comissário Régio de Moçambique; a missiva que deixou para o Joaquim Durant, Comandante da Cavalaria de Napoleão, como
Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira, seu substituto no inspiradores da sua acção.
governo da Província e esse monumento de sabedoria e Mouzinho não era simpático para com o comum das pessoas,
honradez que representa a Carta ao Príncipe D. Luis Filipe, já que não poderiam assim apreciar a lhaneza do seu trato íntimo.
referida. E através do que escreveu pode vislumbrar-se muito Era um Homem de carácter e um Homem de bem. Era rijo e
do que pensava e sentia. Por esses documentos podemos possuía uma resistência fôra do comum à fadiga, ao frio, à fome
constatar algumas constantes: um acrisolado amor pátrio; a e era um trabalhador incansável. Era autocrata: "ninguém
lealdade às instituições e sobretudo ao Rei; a ânsia pelo manda aqui senão eu enquanto for governador geral", chegou a
engrandecimento do Reino; um grande orgulho por ser militar afirmar. Tinha um orgulho desmedido e uma decisão rápida.
e o que tal representava e um desprezo ácido pelos políticos e "Audácia e Método", é um lema que se lhe aplica e que é bem
pela baixa política. ilustrada pela sua frase

"Todos sabem os apuros financeiros do país "Aproveitar na vida e na guerra as ocasiões


e sabem por igual que, para segurar o Poder e cair-lhe em cima como o milhafre sobre a
por mais 2 ou 3 anos, V. Exa. e o gabinete presa".
a que preside não hesitarão em sacrificar o
futuro". Chaimite é o exemplo acabado desta tese. Joaquim Mouzinho
Mouzinho de Albuquerque era um chefe nato, um líder carismático, que arrastava os
(in carta ao Presidente do Conselho de Homens - que o respeitavam, atrás de si. E é apropriado o que o
Ministros) Professor Marcello Caetano, dele disse

Estes desencontros entre militares e civis não são raros na "a figura de Mouzinho de Albuquerque como
nossa vivência colectiva e manifestam-se mais durante a
98 |
chefe, tão grande como nenhuma outra". não gozava e impotente para evitar os desmandos políticos e
afastar a intriga da sua pessoa.Dele se pode dizer o que Eça de
Por outro lado, Mouzinho como pedagogo está bem ilustrado Queiroz disse sobre Guerra Junqueira:
na célebre carta ao Príncipe D. Luis Filipe e que este nunca
chegou a ler, já que só foi divulgada em Maio de 1908, já depois “Concluindo que a vida lhe não convinha,
da sua morte. D. Carlos, ao apresentar-lhe o Príncipe, disse: saiu dela voluntariamente".
"Aqui o tens, faz dele um homem e lembra-te de que há-de ser
Rei". E foi pena que o Príncipe, que nutria grande admiração Mouzinho libertou-se assim do "sol negro da melancolia", no
pelo seu aio, não tivesse lido essa missiva pois representa uma dizer de Roberto de Morais(3).
extraordinária lição de amor pátrio, nobreza moral, alta política Mouzinho sempre teve uma relação estreita com a morte,
e inteireza de carácter. queria "morrer bem" e era seu ideal "morrer a tempo". E muitas
Numa palavra de grande pedagogia política moral e social. vezes se tentou interpor entre a morte e os seus homens. Eis
Bastava esta carta, mais tarde apelidada de "entre mortos", para alguns dados elucidativos: após o combate de Coolela, dizia
que D. Carlos tivesse dado por bem julgada a decisão de tornar "chega-se a ter inveja dos mortos"; depois de Macontene:
Mouzinho preceptor do seu herdeiro, numa tradição que vinha "Maria José, que bela oportunidade perdi hoje de morrer"; após
de D. Afonso III, que foi o primeiro rei português a dar a casa a a morte do Maniguana, ao lamentar-se de que a bala que ferira
seu filho - o esclarecido D. Dinis -, e a ter a noção da Vieira da Rocha na perna, não lhe tenha acertado na cabeça;
necessidade de cedo o preparar para ser Rei. E Mouzinho, "Falhou-me em Macontene", desabafava com o seu íntimo
querendo fazer do Príncipe um militar, dizia: "Por isso repito, amigo Bernardo Pindela, referindose à morte desejada, "porque
primeiro que tudo tem Vossa Alteza que ser um soldado". Sem os pretos não sabem atirar, falha-me agora a guerra do
embargo, Mouzinho nunca se adaptou à sua vida na Corte, o Transval. Só resta o fuzilamento no Rossio"; e em passagens da
que é bem ilustrado numa carta que escreveu ao seu amigo nunca por demais citada carta ao seu Príncipe. "Do cativeiro
Conde de Arnoso, ondechegou a dizer "sentir-se como um infamante salvou-o a morte, única libertadora invencível
eunuco de serralho" e a "escorrer sangue da mutilação a cada porque não há algemas que prendam um morto"; e "...nomeado
momento". Sentiu-se diminuído e considerava uma derrota a por Deus, só Ele o pode render e então envia-lhe a morte a
sua ascenção palaciana e, até, o preceptorado do Príncipe. E chamá-lo ao descanso".
tudo isto depois do Rei D. Carlos ter dito a Luciano de Castro, É ainda Mouzinho que escreve, ao evocar o Natal que ele
Presidente do Conselho de Ministros, "Não posso pôr diante passou em Languene na véspera da partida para a Jornada de
dos olhos do meu filho nem mais valentia, nem mais amor ao Chaimite: "Tivesse eu a esperança de outro Natal semelhante e
seu Rei, nem mais lealdade à Pátria"; tê-lo feito seu Ajudante de veria correr os anos sem desgosto, olharia cheio de ânimo para
Campo e cumulado com outras distinções. a vida, sem a considerar apenas como um caminho lento mas
E outros paralelismos se podem fazer com o presente: a falta de seguro para a morte, consoladora suprema do que se sofre
preparação das elites políticas para a governação; a ignorância neste mundo, destruidora providencial de quantos enfados,
de muitos sobre matérias fundamentais e até do próprio país e desgostos e desilusões".
da sua gente, por terem sido formados em universidades E dele disse o também grande militar, general Gomes da Costa
estrangeiras, alguns deles por terem fugido aos seus deveres
militares para com a comunidade; outros por saírem "...desse grande soldado chamado Mouzinho
directamente dos partidos políticos, que em vez de serem de Albuquerque que teve a coragem de se
escolas de cidadania, se deixaram transformar em agências de meter na sepultura quando começou a
empregos. Isto, claro, sem referir a evidência de que a derrocada que conheceu não poder
esmagadora maioria de todos eles nunca ter passado, pelo sustar...".
serviço militar. E temos que considerar a coragem, qualidade
que Mouzinho possuía em elevado grau. Coragem física, sim, E até na morte, quis Mouzinho demonstrar a sua determinação
mas, sobretudo, coragem moral, que o levava a arrostar com a e perfeccionismo. Possuindo um revolver regulamentar, usou
responsabilidade independentemente das consequências e a só um outro, "Bulldog", de calibre superior (45) e velocidade
ter uma cara. inicial mais lenta a fim de ter a garantia que não falhava
Qualidades raras em todos os tempos, onde imperam os (munições que comprou na rua do Ouro, na casa Reynolds).
pseudochefes que preferem "burro que os louve, a cavalo que Este acto foi antecedido de um almoço no Turf Club (ao
os critique" e as personalidades que respondem a uma simples Chiado), onde escreveu também as suas últimas cartas.
pergunta "que horas são", qualquer coisa do género "são as Mesmo assim o suicídio continuou, pelo tempo fôra, a
horas que V. Exa., Senhor Ministro, quiser que sejam..." constituir um enigma para muitos e a frase do seu íntimo
Joaquim Mouzinho não era ambicioso, senão outro teria sido o amigo Conde de Arnoso, ao afirmar que tinha morrido
desfecho do drama. de"Mouzinhice", não ajudava a esclarecer o mistério.
O seu desaparecimento constituiu um alívio para os medíocres. Três cartas expedidas no dia da sua morte, uma à sua mulher,
Até o suicídio aparenta ter sido um acto de estoicismo de outra ao Conde de Tarouca e a terceira à Rainha D. Amélia,
quem, inconformado, estiolava, levando uma existência que
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esclareceriam, por certo, o mistério. Mas a primeira foi para o por Mouzinho, que melhor levantou o véu do mistério, no livro
túmulo com D. Maria José; a segunda foi queimada e nunca que escreveu antes da sua morte: "Eu, Amélia, Rainha de
lida, após a morte do seu destinatário por decisão Portugal." Por ele ficámos a saber que era convicção da
testamentária e a última desapareceu, sendo encontrada, mais soberana que Mouzinho pretendeu, com o seu sacrifício, pôr
tarde na Torre do Tombo. Dizia: fim definitivo às atoardas postas a correr e que atentavam
contra a honra de ambos.
Num balanço rápido pode afirmar-se que Mouzinho foi
sobretudo um português e patriota, outra característica que
nos faz muita falta nos tempos que correm.

Joaquim Mouzinho - O Militar


"Este reino é obra de soldados"
Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe de
Bragança).

Mouzinho e o real pupilo. Sua Alteza o Príncipe D. Luis


Filipe

"Minha Senhora
Perdoe-me Vossa Majestade e não me ache
cobarde pelo que fiz. Mas ser tido em mau
conceito, ser desprezado é mais do que
posso. Não creio que o suicídio nestas 12 de Novembro PRIMEIRO CENTENÁRIO do
circunstâncias não seja um direito. Minha Nascimento o Heroi que venceu e capturou o Grande
Senhora! Vossa Majestade nada perde senão
um homem que no seu serviço faziaMouzinho e
o real pupilo. Sua Alteza o Príncipe D.
Luis Filipe97tudo e de tudo era capaz. Mas A carreira militar de Mouzinho ilumina-se através de acções
não poude ser. Paciência. Perdoe-me Vossa militares, todas elas vitoriosas.
Majestade e reze por mim, se acredita que Participando no combate de Coolela e ocupação de Manjacaze,
existe alma. Eu não acredito. Beijo as mãos comandou pessoalmente:
de Vossa Majestade cheio como sempre de • o golpe de mão sobre Chaimite e aprisionamento do
reconhecimento e dedicação. Seu maior Gungunhana(4);
criadoMouzinho de Albuquerque". • a pacificação do Maputo;
• a campanha dos Namarrais onde se travaram os combates de
Foi no entanto a Rainha D. Amélia, que nutria especial afeição
100 |
Mujenga, Naguema, Ibrahimo e Mucuto-Munu; combate de Magul:
• a campanha de Gaza onde se registaram os combates
deMacontene, Mapulanguene e Calapati; guia civil, António:"
• as campanhas da Zambézia em 1897 e 98. - meu capitão, 6500 negros, são muitos
Em todas estas acções que espantaram o mundo, tendo em negros...
conta os nossos muito limitados recursos e as derrotas que
outros, mais fortes que nós, tinham sofrido, o espírito que as "Paiva Couceiro:"-
animou é bem ilustrado pelo seguinte diálogo, que antecedeu o mas 123 portugueses também são muitos
portugueses".

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militar, como é bem demonstrado por mais uma passagem da
carta, tantas vezes citada:

"Porque ser soldado não é arrastar a


espada, passar revistas, comandar
exercícios, deslumbrar as multidões com os
doirados da farda. Ser soldado é dedicar-se
por completo à causa pública, trabalhar
sempre para os outros".
Mouzinho de Albuquerque
(ín carta ao Príncipe D. Luis Filipe de
Bragança)

de 1855-1955 de MOUZINHO DE ALBUQUERQUE e


Regalo Gungunhana em Chaimite Mouzinho e os oficiais da campanha dos Namarrais -
1896

Em todas estas acções Mouzinho demonstrou as suas


extraordinárias qualidades de chefe e de militar das quais se Mouzinho não deixava nada ao acaso e preparava as suas
destacam a sua serenidade e bravura debaixo de fogo, como é acções. Antes de ser mobilizado para Moçambique, estudou as
¡lustrado pela sua postura na batalha de Coolela fumando campanhas que outras potências europeias já tinham realizado
charuto à direita do Coronel Galhado que tinha à sua esquerda em África e aconselhava-se com quem sabia, nomeadamente
o Tenente Pinheiro, que empunhava a primeira bandeira que Caldas Xavier. Obtinha informações sobre o inimigo, o
acompanhou as forças expedicionárias em África e que está armamento e as tácticas e tentou preparar o seu esquadrão o
hoje à guarda da Sociedade de Geografia. Mouzinho viu o seu melhor possível para o que ¡a encontrar e em fazer dele "uma
cavalo ser morto nesta acção®. Além de corajoso, era intrépido boa tropa".
e bravo. Recorde-se a famosa carga de Macontene em que Quando embarcou já tinha ideias assentes sobre como se
Mouzinho sai do quadrado à frente dos seus 50 lanceiros, deveriam processar as operações e disso deu conta em artigos
levando apenas um... stick! que escreveu no jornal Novidades e expôs o que pensava ao
Mas sabia ser temperado; quando em Mujenga intentava liderar próprio ministro do Ultramar. Mas não o conseguiu fazer ao
uma perigosa carga, foi detido por Gomes da Costa que lhe governador de Moçambique António Ennes, quando aportou a
chamou a atenção de que os seus deveres de comandante o Lourenço Marques. A nomeação de Ennes tem uma história
impediam de se arriscar tanto. Mouzinho apesar de contrariado curiosa: Quando os Vátuas cercaram Lourenço Marques, em
acatou o alvitre. 1894, o governo português não sabia muito bem o que fazer.
Mouzinho tinha, enfim, um conjunto alargado de virtudes Ennes estava em Lisboa e erajornalista, na altura. E como tal
militares: iniciativa, capacidade de decisão, sangue frio, zurzia o governo. D. Carlos chamou-o e disse-lhe: "Se tu dizes
estoicismo etc. Comandava pelo exemplo e tinha estofo de tão mal do governo é porque és capaz de fazer melhor", ao que
general. Aliava a visão estratégica à flexibilidade táctica as quais aquele respondeu, afirmativamente, desde que o governo lhe
eram suportadas por vasta cultura e capacidade intelectual e desse plenos poderes. O rei convenceu o governo a nomeá-lo
organizativa. E punha em tudo a mais estrita ética.Mouzinho Comissário Régio. António Ennes, que chegou a Moçambique
não estava apenas eivado de espírito militar: ele era o espírito em Janeiro de 1895, tinha experiência de África mas não

102 |
percebia nada de tropa; teve, contudo, a inteligência e a
humildade de ir escolher os melhores oficiais que havia na
Marinha e no Exército. As operações que vieram a ser
planeadas estão, assim, competentemente delineadas (e já
tinham come çado, tendo-se ferido no combate de Marracuene,
em 2 de Fevereiro) e ajustavam-se ao pensamento de
Mouzinho, que entretanto chegou em Maio. Este, porém, não
gostava de Ennes, embora nunca deixasse transparecer isso em
público.
Mas com os seus íntimos tratava-o por "chungocongolo",
expressão depreciativa que no dialeto Quitonga, de Inhambane,
quer dizer, europeu grande. Mouzinho era teimoso, acreditava
no valor dos militares e não gostava em geral dos paisanos,
especialmente dos políticos, que acusava de terem duas caras.
Sem embargo, acabou derrotado por eles(6). Os prisioneiros das campanhas de Mouzinho,
Finalmente, Mouzinho era um inovador. Sendo o primeiro a Gungunhana e outros guerreiros vátuas, foram tratados
utilizar e a desenvolver o conceito de armas combinado, com humanidade no seu exilio em Angra do Heroísmo
utilizando o movimento, o choque e a manobra e adequando a
infantaria, a cavalaria, a artilharia, as metralhadoras, a
engenharia, a intendência e até a marinha, às necessidades de
cada acção; desenvolveu novas tácticas, como foram, por
exemplo, as cargas de cavalaria em mato cerrado (contra tudo Mouzinho, o herói militar, veio a revelar-se também como um
o que se ensinava); e a formação de pequenos grupos de excelente administrador e, como nós outros campos, também
atiradores que procuravam limpar o terreno à volta do neste estava à frente do seu tempo. Esta fama obteve-a como
quadrado. E a campanha de Gaza foi considerada por Comissário Régio em Moçambique, nomeação algo forçada
numerosos especialistas a mais bem concebida e levada a cabo, pelo Rei, não sem que tivesse de ultrapassar alguma oposição
de todas as que se realizaram no Sul da África. Este espirito de surda de políticos influentes. A sua fama deveu-se não só ao
inovação e gosto pelo risco são características que muito fazem trabalho desenvolvido mas também ao modo como decorreu a
falta nos dias que correm... Pode considerar-se como epílogo da sua demissão do cargo. Mouzinho, porém, tinha já basta
vida militar activa de Mouzinho a ordem à força armada do experiência dos assuntos ultramarinos, por ter exercido o cargo
exército da África Oriental, datada de 30 de Julho de 1898, após de secretário geral, do governo da índia, por três anos, a partir
a sua demissão de Comissário Régio. Eis um pequeno excerto: de 1886 e governador do Distrito de Lourenço Marques entre
1890 e 1892. E conhecia ainda muito bem o modo de
"Srs. oficiais, oficiais inferiores e mais funcionamento do Ministério da Marinha e Ultramar, que se
praças desta guarnição... Tenho a veio a revelar o seu pior inimigo. Mouzinho era grande adepto
consciência que, enquanto estivestes sob as dos métodos de administra ção colonial inglesa e pretendeu
minhas ordens, não teve o vosso brio de impor as ideias de descentralização administrativa em África
soldados portugueses que sofrer a afronta que apenas vieram a ser adoptados, e por pouco tempo, após a
de ver pactuar com rebeldes, poupar o República, ensaiados em 1914 e reforçados em 1920, com a
castigo a traidores, nem recuar perante os nomeação de Altos Comissários para Angola e Moçambique.
inimigos de EI-Rei e da Pátria. Entregando O seu pensamento é bem ilustrado pelo seguinte extracto de
o comando resta-me a esperança de que uma circular enviada aos governadores de Distrito, em 29 de
continuem a manter-se intactas nesta Julho de 1896:
província a honra da nossa bandeira e as
gloriosas tradições do Exército e da Armada “A grande distância e morosidade e pouca
portuguesa". frequência de comunicações e o pouco
conhecimento e defeituosa compreensão que
Que grande contraste encerra esta missiva com aquilo que, há na Europa das necessidades e
durante muito tempo, se apelidou de "Descolonização circunstâncias mais atendíveis nós países
Exemplar"! ... do Ultramar, tornam improfícua, quando não
nociva, a administração directa do governo
Mouzinho o administrador da Metrópole nas colónias".

E aqui está outro ponto importante que podemos aproveitar


para os dias de hoje: a dificuldade em descentralizar, ou,

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fazendo-a, a incapacidade que tem sido demonstrada em Ferreira, seu sucessor no governo da província. É mais um
fiscalizar a autoridade delegada. E temos numerosos exemplos notável documento em que vem ao de cima a sua integridade e
destes no Ensino, na Saúde, na Administração do Estado, etc. saber.
Enfim uma questão que percorre transversalmente a sociedade Nele Mouzinho coloca o novo governador ao corrente da
portuguesa, consequência directa da falta de autoridade que é o situação do território ao mesmo tempo que se permite dar -lhe
problema número um, com que se debate o país. Citamos mais alguns conselhos fundados na sua experiência. E bem se pode
uma vez Mouzinho: dizer que seguiu a ordem de D. João IV ao Vice-Rei da índia,
Conde de Sarzedas:
"... mais ensejo dera de provar que sabia,
custasse o que custasse, obedecer ao que "Dareis a posse do dito Governo e as
lhe era ordenado e que também sabia, doesse notícias e informações que julgardes
a quem doesse, fazer cumprir as ordens que convenientes ao meu serviço e ao bem e
dava". segurança desse Estado".

Mouzinho anteviu e vislumbrou as reais intenções inglesas Da dita carta vamos escolher três trechos que nos dão uma
relativamente a Moçambique e tomou as suas medidas, ideia do que era a vida em Moçambique naqueles tempos e das
exactamente o contrário daquilo que os sucessivos governos de preocupações de Mouzinho.
hoje fazem relativamente à União Europeia e sobretudo em
relação à Espanha. Agem como se Portugal não tivesse "Uma das coisas que pior regulada andava
interesses a defender, que as restantes potências são todas nesta Província... era a administração da
nossas amigas e que as ameaças são coisas do passado. Não justiça aos indígenas, para com quem,
cuidam de ter um sistema de informações minimamente capaz segundo a lei vigente, se devia proceder
e nem sequer aprendem com os percalços da História, em que a como para os europeus. Era impossível
falsa posição do governo francês perante nós, aquando do considerar este absurdo, pois cada estado
conflito da Guiné-Bissau, é um dos exemplos mais recentes. de civilização dum povo corresponde o
Muita da configuração actual de Moçambique se deve a conjunto de leis por que se deve reger e
Mouzinho, que viu o seu sonho de poder continuar o não há pior ilusão do que supor que pela
engrandecimento da província coarctado pelo decreto-lei de 7 simples aplicação de leis e regulamentos
de Julho de 1898, que lhe cerceava a autoridade como inadequados se passa do estado de
governador. De imediato se demitiu, demissão apenas aceite selvajaria para o de civilização completa".
depois de algumas tentativas para o demover. A aceitação do
"status quo" pelo Rei, causou alguma mágoa no nosso herói, Este trecho do final do século XIX traz-nos duas reflexões
como é revelado na sua correspondência para o Conde de apropriadas para o início do século XXI, uma de ordem
Arnoso, seu particular amigo e secretário de D. Carlos. internacional e outra de âmbito interno. A primeira sendo a de
A carta que escreveu ao Presidente do Conselho, Luciano de que os países do chamado primeiro mundo, continuam a
Castro, é mais um documento de grande nobreza de carácter e querer impor a Democracia, como ela é entendida no Ocidente,
rara altivez, que contém verdades como punhos, e constitui um a numerosos povos da África, Ásia e América Latina que não
libelo contra a política dos medíocres. Nela Mouzinho estão preparados para ela, alguns deles vivendo ainda no pós-
desmonta todas as intrigas e conluios de bastidores, daqueles neolítico ou na baixa Idade Média. E intenta -se tal desiderato
que conspiravam contra a sua pessoa e o bom governo de tal como se a Democracia fosse mezinha para todos os
Moçambique. Mouzinho desafronta -se. Mas a carta é também problemas; quanto à coisa doméstica, semeou-se o país de leis
uma justificação que sentiu dever dar, ao seu Rei e ao povo pouco apropriadas aos usos e às gentes, eivados de idealismos
português que nele tinham confiado, por via da sua renúncia ao bacocos, baseados na "Teoria do Bom Selvagem", de Rousseau e
cargo. atravessadas por utopismos fôra das realidades originadas nos
Numa atitude única, todos os principais colaboradores do sobreviventes do Maio de 68, em França e afins. Piorou-se o
Comissário Régio demitiram-se com ele. A carta era também quadro desautorizando as polícias e permeabilizando o acesso à
um ataque cerrado aos políticos e José Luciano de Castro ainda magistratura de uma quantidade de meninos e meninas que
tentou, junto do Rei, levar Mouzinho a Conselho de Guerra. ainda nem sequer sabem o que é a vida. Isto claro, sem falar da
Mas este escusou-se alegando que organização superior da justiça que origina conflitos de
competência constantes, resultando de tudo isto uma
"não haveria no exército português oficiais barafunda geral, a desmotivação dos agentes, a paralisia dos
que se prestassem a juízes de semelhante tribunais e o facto de ninguém, aparentemente, em Portugal se
réu". preocupar com o fazer-se justiça e com a prevenção do crime, e
satisfazer-se apenas com o exercício deletério do Direito.
Uma última carta escreveu Mouzinho antes de abandonar Mouzinho tinha razão, mas também ninguém lhe ligou.
Moçambique. Dirigiu-a ao Conselheiro Álvaro da Costa
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"Os piores inimigos para a sua não se dá ao respeito, não pode ser respeitado. Um último
administração nesta Província são os aspecto que Mouzinho focou ao seu sucessor:
especuladores que sem sacrifícios de
capitais, que não têm, nem trabalhos, e "As companhias recrutavam-se de indígenas
fadigas em que não são capazes de se meter, vadios, agarrados a cordel em Angola e na
pretendem enriquecer à custa da Província, própria província. O resultado de tão mau
que nada lhes deve, aliando-a a recrutamento era serem os soldados da
estrangeiros cujos capitais conseguem assim guarnição uma quadrilha de bêbados
aliciar para à sombra deles, em jogos de miseráveis, sem instrução nem disciplina de
bolsa e golpes de agiotagem, adquirirem a espécie alguma, pessimamente armados e
cobiçada riqueza". equipados e fardados à europeia! e é
indispensável que o Governo desta vez seja
A que se pode acrescentar uma outra frase do grande apóstolo honesto, cumpra o contrato, doutra forma
da índia, S. Francisco Xavier: nunca terá recrutas em termos".

"No acabo de admirar los nuevos modus y Isto diz alguma coisa sobre o desleixo a que têm sido votadas
tiempos, sobre las comunes y regulares que as Forças Armadas ao longo dos tempos, sobretudo
há inventado la avaricia de conjugar este emsituações de paz onde as ameaças aparentam estar
verbo - Rapio, Rapies". esbatidas. Vivemos actualmente tempos destes e já se logrou
aprovar esse tremendo erro que representa a
Que dizer de tudo isto? Não sugere uma grande similitude com desconstitucionalização do serviço militar obrigatório!
o presente? Não serão os vários manifestos assinados por Na esperança de não perturbar muito as consciências, também
diferentes personalidades do nosso meio empresarial e nós parece ser útil deixar este tema para meditação.
financeiro e político alertando para a alienação em mãos
estrangeiras, de muitos dos sectores estratégicos da economia Conclusão
nacional um grito desesperado para evitar o desaparecimento
do Estado-Nação português? "Verba volant
Estas tomadas de posição são, sem dúvida, benéficas para o scripta manent
país. Mas não é estranho que levassem tanto tempo a ver a luz exempla traunt"
do dia, tratando-se de personalidades de alto coturno Aforismo Latino
intelectual e profissional?
E estarão todos a fazê-lo apenas por patriotismo tendo em "As palavras voam
conta algumas recentes e controversas alienações de os escritos permanecem
património, algum do qual adquirido com facilidades dadas o exemplo arrasta"
pelo Estado Português?
Eis algumas reflexões que convém fazer.. Passou a ser chavão dizer-se que já tudo foi dito sobre
Já que falámos de estrangeiros não queríamos deixar de contar Mouzinho. E se calhar foi. As pessoas dizem isto para tentar
um episódio - também ele revelador do espírito de Mouzinho -, encontrar algo original para afirmar ou como desculpa para o
que se passou com o cônsul alemão em Lourenço Marques. não terem feito.
Este, que nos era hostil, ao assistir à passagem de uma E, no entanto, Mouzinho é uma personalidade tão rica e a sua
procissão, enterrou o chapéu na cabeça. vida encerra tão grandes exemplos, virtudes e ensinamentos
Tal facto originou o apedrejamento das janelas do consulado que falar dele, em diferentes épocas, não é falta de imaginação
por uma multidão irada. Perante a queixa do cônsul, o governo nem recordação de passadismo serôdio. Não. Trata-se de
português enviou a Mouzinho instruções para que fosse rejuvenescer conceitos de sempre - por intemporais - e de
apresentar desculpas, o que este depois de informado de como alimentar a alma com a comida do espírito, que é uma
as coisas se passaram enviou o seguinte telegrama: "Cumprirei necessidade intrinsecamente humana. E de apontar o caminho
as ordens de V. Exa, mas perante tanta inépcia e cobardia, peço aos mais novos.
a minha demissão". Intervém o Rei e pede a Mouzinho o A vida de Mouzinho é uma bíblia. É uma bíblia de pundonor, de
sacrifício de cumprir as instruções. E em atenção ao soberano, nobreza, de altos valores políticos, morais e sociais e de bem-
Mouzinho, no dizer de Aires de Orneias "...cumpriu a ordem fazer. Por isso os seus escritos ficam e o seu exemplo arrasta.
governamental por modo tão insólito que as desculpas mais Esta vida, este testemunho deixam uma certeza e uma
foram manifestações de altivez". Mas quando dias depois, obrigação a cumprir. A certeza é esta: Mouzinho continuará
Mouzinho embarcava em direcção ao Norte despediu-se vivo e lembrado através dos tempos, ao contrário dos seus
afectuosamente de todo o corpo consular, excepto do cônsul detractores e dos maus políticos que ninguém falará deles nem
alemão que deixou de mão estendida. lhes fixará o nome, a não ser para serem apostrofados. A
De facto é preciso ter brio e é preciso ter vergonha, pois quem obrigação prende-se com o pagamento de uma dívida que a
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Nação Portuguesa tem para com Mouzinho e sua esposa:
cumprir o seu desejo de ser sepultado no Mosteiro da Batalha,
onde foi baptizado, com sua mulher a seu lado.
Os seus familiares certamente não se iriam opor a semeIhante
designio que devia ser de todos nós, a começar pelos órgãos do
Estado e chefias militares.
E se a Mouzinho assiste todo o direito de repousar na Batalha,
não menos direito goza sua mulher de o acompanhar. D. María
José Gaivão Mouzinho de Albuquerque foi esposa amantíssima
e dedicada que sempre acompanhou seu marido mesmo nas
condições mais difíceis, chegando a chefiar um hospital de
campanha, no Chibuto, onde orientou e ajudou nos cuidados a
prestar aos feridos. É pois digna de ombrear com as várias
Filipas de Vilhena e Marianas de Lencastre, da nossa História.
E seria também um tributo que a Nação prestaria a todas as
mães de Portugal que seguraram a familia na retaguarda,
quando a diáspora portuguesa espalhou, durante seis séculos,
os seus filhos e maridos pelos quatros cantos do mundo.
E como epitáfio para o herói, sugere-se as palavras de D.
Carlos, quando soube da sua morte: João J. Brandão Ferreira

Ten. Cor. Piloto Aviador (Ref.)


"De Mouzinho ficará sempre a memoria do
Membro do Conselho Supremo da SHIP
homem que prestou ao País e ao seu Reí os
Mestre em Estratégia pelo ISCSP
mais relevantes serviços".
Piloto Comandante de Linha Aérea

Cumulativamente, dever-se-ia transformar a quinta de


Mouzinho, na Batalha, num Museu. E quanto à sua estátua que
desde 1940 se encontrava numa praça da antiga Lourenço
Marques, lá deve ficar porque Mouzinho também pertence à
NOTAS:
História de Moçambique, território que a ele muito deve e que,
(1)
sem a sua acção, não seria o que é hoje. Apaziguados os ânimos "Exércitos" do Gungunhana organizados à semelhança dos
por recentes fricções da História, importante se torna que Zulus, e que se subdividiam em "mangas", de 500 ou mais
ambos os povos, que em tempos formaram uma mesma nação, homens.
tomem consciência do que os une de molde a perspectivar um (2)
No âmbito da Quádrupla Aliança.
melhor entendimento e coopera ção futura. E se se pretender (3)
"Mouzinho de Albuquerque, o outsider", Diário de Noticias
ter por cá uma estátua de Mouzinho, pois que se faça outra.
de 16/4/02.
Mouzinho póde ombrear, salvo as distâncias da canoniza ção
(4)
de São Nuno de Santa Maria, com o grande Condestá vel Nuno Embora não se deva esquecer a grande figura de oficialque
Álvares Pereira. foi o Tenente Sanches de Miranda, adjunto de Mouzinho nesta
Fica bem a cavalaria ao lado da infantaria. Como devem estar acção.
os verdadeiros camaradas de armas. (5)
O cavalo do Coronel Galhardo, Comandante da colunanorte,
chamava-se Mike e tinha sido comprado por Airesde Ornelas,
no Transval, por 35 libras. Este magnífico animal veio a passar
para a posse de Mouzinho que com elefez toda a Campanha
dos Namarrais.
(6)
O que também acontece nos dias de hoje.

106 |
| 107
Uma perspectiva Europeia
“Ao longo de cerca de dois mil anos a Euro- Assim chegámos ao século XX quando essa contradição atinge
pafoi, como sabemos, território de dimensão sem precedentes. George Steiner constata: "entre
confrontos violentos, de invasões, ocupa Agosto de 1914 e Maio de 1945, de Madrid ao Volga, do círculo
ções e resistências. Com fronteiras vio- árctico à Sicília, calcula-se que cem milhões de homens, mul-
ladas e cidades destruídas. Lealdades heres e crianças tenham perecido devido à guerra, à fome, à
traídas, soberanias contestadas. Afirmações deportação e à chacina étnica". Tinha a Europa chegado ao
de poder manifestadas pela arrogância e a limite da autodestruição. Com justeza se qualificavam essas
força” guerras de "civis" pelo seu carácter fratricida. As sequelas desta
situação não se ficavam pelas cidades arrasadas e os países
Quando aderimos à então Comunidade Económica Europeia, destroçados. Como uma espécie de contágio, se haviam espal-
em 1985, o processo tinha mais de 30 anos. As ideias e as polí- hado, sobretudo entre as na ções europeias que haviam partici-
ticas relativas à sua formação e o significado do caminho pado nesses conflitos, sentimentos de ódio de umas em rela
percorrido, como excepcional elemento de cooperação e de paz ção às outras e que prevaleciam entre vencidos e vencedores,
na Europa, merecem ser recordadas porque ajudam a situar os exaltado o sentido nacional, sublimada a noção de soberania.
acontecimentos no seu enquadramento histórico e podem cont- Quem, nessa altura, imaginaria construir, a partir dessas ruínas,
ribuir para melhor compreender os desafios do presente políticas de entendimento, aliança, cooperação visando criar
quando a aceleração da história e as transformações ocorridas em paz desenvolvimento e progresso?
no mundo e na Europa acabaram por alterar objectivos iniciais E foi, no entanto, o que aconteceu. Mas não por obra ou
ou introduzir diferentes ponderações e juízos em relação ao influência de movimentos ou forças clássicas das sociedades
seu futuro. democráticas. Não foi o resultado da acção colectiva de meios
Ao longo de cerca de dois mil anos a Europa foi, como político-partidários, de sindicatos, de órgãos de informação ou
sabemos, território de confrontos violentos, de invasões, ocu- da mobilização da opinião pública, esta última aliás, curiosa-
pações e resistências. Com fronteiras violadas e cidades mente, em larga medida alheia das realidades europeias que se
destruídas. Lealdades traídas, soberanias contestadas. Afir- foram criando ao longo dos tempos, situação que mantém
mações de poder manifestadas pela arrogância e a força. E no actualidade. Foi na origem o resultado do pensamento e da
entanto a Europa durante esse período foi sendo também o ter- acção de um homem, Monnet, e de elites dirigentes, sem con-
ritório em que se criou e moldou a civilização ocidental, pat- sultas ou debates públicos que antecedessem a decisão e lhe
rimónio cultural partilhado pelos povos que a habitaram e dessem contorno democrático. O momento histórico explica,
habitam, com as suas catedrais, mosteiros e universidades, as em certa medida, o recurso a este processo. A rejeição da Comu-
suas obras de arte em todos os domínios, da pintura á litera- nidade Europeia de Defesa veio demonstrar a influência que
tura, da música à escultura ou aos mais actuais conceitos da esse momento histó rico exercia na opinião pública. No Parla-
vida em sociedade. mento francês, deputados gaulistas e comunistas juntaram-se
Uma Europa onde os povos, distantes que estivessem uns dos para votar contra a simples ideia de uma Comunidade desse
outros, souberam apurar formas subtis de idêntica sensibili- tipo.
dade, de respeito por valores comuns, de gosto e admiração Monnet ao querer evitar o regresso ao que essas guerras
pelo mesmo tipo de atitudes, em termos éticos ou estéticos. tinham representado, teve consciência de que se impunha
Esta trágica contradição parecia caracterizar o destino do conti- encontrar um modelo original de convívio na Europa, que
nente, constantemente dividido entre a paz e a guerra, o bem e iniciasse novo capítulo da História do continente, em função de
o mal, entre o culto da beleza, a procura de respostas na ciência uma responsável visão do futuro. E intuiu que seria necessário
ou na arte para satisfazer a curiosidade e as inquietações da convencer parceiros e aliados, combatentes da véspera, da bon-
alma humana e as suas piores perversidades, a maldade, a cruel- dade de posições políticas e económicas que acabassem por ser
dade e a barbárie. partilhadas e vividas pelos países europeus saídos daquela

108 |
última confrontação. E ainda que para atingir esse fim preci-
sava de começar pelo mais difícil, a menos previsível das
alianças, a que teria de alicerçar-se entre franceses e alemães.
Salvar, recriando-a, a civilização europeia, fazendo prevalecer o
respeito pela dignidade alheia como princípio da dignidade
própria. Valorizar o que de melhor, ao longo dos séculos, for-
mara também a Europa, tão associada à cultura, e, na diversi-
dade e variedade da riqueza desse património, assentar as bases
de uma paz duradoura essencial para o progresso colectivo. E,
nesse contexto, consolidar a democracia com o que ela deva sig-
nificar de salvaguarda e garantia de direitos e liberdades e um
sistema económico aberto aos seus múltiplos desafios no
comércio como na indústria.
Tarefa a desafiar a imaginação até porque parecia pôr em causa Portugal 2007
valores pelos quais se tinham sacrificado gerações, a soberania,
as fronteiras, os recursos naturais. Existia naturalmente, e
cumpre salientá-lo também, um contexto polí tico geral em que
prevalecia a convicção de que era necessário criar condições
Monnet soube dar outro sentido político a este continente
que viessem a evitar novos conflitos e, nesse sentido, a
onde "as distâncias têm uma escala humana", como diz Steiner.
aproximar os povos do continente europeu.
Tinha uma visão das coisas que o afastava de conceitos naciona-
Em termos de segurança colectiva o Pacto do Atlântico, assi-
listas que considerava também responsáveis pela situação a que
nado em 1949, com os Estados Unidos e o Canadá, ilustrava já a
se chegara. Trabalhara fora do seu país, antes e depois da
preocupação que suscitava a ameaça do expansionismo sovié-
guerra ora com americanos, ora com ingleses, mas também na
tico, depois do golpe de Praga e do bloqueio de Berlim e da
Europa de Leste e na China. E não se identificava, na França do
notícia da explosão da primeira bomba ató mica na URSS. O
final da guerra, com as posi ções do General de Gaulle, sempre
receio de todos os totalitarismos, como lembra Adriano
contrário a soluções de supra nacionalidade. Vale a pena
Moreira, estava no espírito dos povos e dos seus dirigentes.
lembrar o que De Gaulle disse a propósito da ideia da criação
Uma ameaça que havia levado Churchill a aludir à criação dos
de uma Comunidade Europeia de Defesa: "uma abdicação
Estados Unidos da Europa e a mencionar a cortina de ferro ele-
nacional; uma fraude; um monstro artificial; um robot; um Fran-
vada ali onde chegavam, no centro da Europa, os exércitos da
kenstein a que, para enganar o mundo, chamam Comunidade".
União Soviética. Essa aliança, a OTAN, vai a durar e a constituir
Monnet procurava dar solução aos problemas com que via a
um travão àquele expansionismo. Depois do fim da URSS, é nos
Europa enfrentar-se e só nesse sentido, mais amplo, situava o
nossos dias que essa aliança é posta em causa. Porque o
seu próprio país. Pressentia a necessidade da reconciliação
principal adversário desaparecia mas ainda por se tornarem
entre vencedores e vencidos sabendo que a grande e inquieta
demasiado claras, e preocupantes, as divisões internas, designa-
pergunta da altura, inspirada num fantasma de Hitler, era "o
damente na participação ou não de acções de combate no Afega-
que fazer com a Alemanha".
nistão. Mas já não pareciam tão sólidas, as instituições nascidas
na mesma altura, no domínio económico, a Organização Euro-
“Os visionários que haviam pensado a Europa
peia de Cooperação Económica, em 1948 e, ainda em 1949, em
há cerca de cinco décadas não podiam ima-
termos políticos, o Conselho da Europa. Não se propunham
ginar a situação actual. Nesse curto inter-
construir um projecto de integração europeia e revelavam
valo de tempo o contexto geopolítico, como
antes, na forma como se desenrolaram os primeiros trabalhos,
sabemos, alterou-se, a história foi sujeita
a vontade de defesa de posições nacionais.
a uma dramática aceleração, a globalização
criou diferentes interdependências de inte-
“E no entanto a Europa durante esse período
resses, surgiram novos actores na cena
foi sendo também o território em que se
internacional, empresas multinacionais,
criou e moldou a civilização ocidental, pat-
países emergentes, religiões e culturas,
rimónio cultural partilhado pelos povos que
assumindo vertiginosa influência nos
a habitaram e habitam, com as suas cate-
assuntos mundiais. E multiplicaram-se as
drais, mosteiros e universidades, as suas
ameaças do terrorismo, algumas dentro do
obras de arte em todos os domínios, da pin-
próprio espaço europeu”
tura à literatura, da música à escultura ou
aos mais actuais conceitos da vida em socie-
Considerava que a resposta a essa pergunta só prevaleceria se
dade”.
tivesse dimensão europeia, isto é se incluísse a Alemanha na
solução desejável, valorizando com a França, e logo a seguir
| 109
com a Itália e o Benelux, nessa fase primeira, interesses que uma fusão ou gestão em comum de poderes exercidos pelos
lhes eram comuns e teriam de ser geridos em conjunto por governos.., para ultrapassar os egoísmos nacionais, os antago-
instrumentos a que fossem dando consistência. Para o fazer nismos e as estreitezas que matam".
imaginou instituições que queria democráticas e lançou nesse
sentido ideias, sugestões, propostas que com o tempo foram “Enfrenta a União Europeia, mais uma vez,
tomando forma e a garantir um constante diálogo entre os questões de fundo. Na urgência de dar novas
Estados-membros para ir ao encontro de decisões que seriam respostas aos desafios da modernidade, dos
consensuais. A Comissão, talvez o mais original e poderoso alargamentos e da mudança são questões que
instrumento impulsionador da constru ção europeia, o Parla- ultrapassam de longe a visão dos pioneiros
mento Europeu, com os seus membros eleitos e o constante da construção europeia”.
aumento dos seus poderes e a institucionalização do Conselho
Europeu, serviram para consolidar o projecto inicialmente
concebido por Monnet. Tinha consciência da complexidade
dos desafios e por isso sustentava a cautela com que se devia
agir ao ir transferindo, paulatinamente e sempre de comum
acordo, as parcelas de soberania que fossem alicerçando e
dando identidade própria à comunidade a criar. Era uma polí-
tica que exigia prudência e determinação no respeito pela
democracia, os direitos do homem e a economia de mercado.
Embora afectasse, em certas áreas, a competência dos Estados,
para a transferir para instituições europeias, não punha em
causa a identidade de cada Estado, das suas tradições históricas
ou culturais e designadamente das suas políticas externas.
Portugal 2007
Promo

vida com pragmatismo e de forma convincente, essa política foi


ganhando responsáveis europeus, à esquerda, nos meios socia-
listas ou próximos destes, de antemão ganhos para posições
Na altura parecia urgente dar respostas económicas e sociais às
pró-europeias e antinacionalistas, no centro direita, junto dos
questões que se colocavam à Europa. Não se punha, nos anos
democratas cristãos e seus aliados, conscientes da necessidade
que se seguiram à guerra, intenções de domínio ou de pre-
de que a Europa deveria unir-se para ter peso, influência e
domínio de uns Estados em relação a outros ou de referências
capacidade de intervenção no mundo. Foi pois sendo possível
ao poder militar. A noção da igualdade formal dos Estados era
encontrar, entre os Estados-membros como refere Adriano
repetidamente afirmada e constituía um dos grandes méritos
Moreira, "aquela linha que representava a média entre o
do que se pretendia conceber. Essa institui ção assumiria
desejável e o possível," mas uma linha que acabaria por alterar,
dimensão política, depois da queda do muro de Berlim e da
em termos revolucionários, o contexto clássico que até então
desagregação do império soviético, quando os Estados -mem-
era o da relação política desses Estados entre si. E isso também
bros em 1991, em Maastricht (apenas com reservas por parte do
terá sido possível porque as ideias relativas à construção euro-
Reino Unido), reconheceram a necessidade de formar uma
peia encontraram eco em interlocutores de qualidade, que se
união política, paralelamente à sua dimensão económica e
terão apercebido da grandeza da tarefa e dos aspectos inova-
financeira. A qualidade intelectual e política do Presidente da
dores que continha, como Schuman, em França e Adenauer na
Comissão, Jacques Delors, e a sua visão da Europa, contri-
Alemanha ou, como observaria com cínica lucidez o americano
buíram para consolidar um período de paz, de coopera ção e de
Brezinski, porque esse processo permitia à França uma certa
desenvolvimento sem precedentes na Europa e sucessivamente
forma de reincarnação e à Alemanha uma certa forma de
atraindo a esse processo mais nações do continente. Embora
redenção.
tendo sempre que vencer posições inicialmente divergentes
Estendendo a mão à Alemanha que no decurso de numerosas
relacionadas com o exercício ou a partilha do poder, o peso e a
gerações tanto a França tivera de combater, Schuman propôs
influência dos Estados, do Conselho, do Parlamento ou nas atri-
estabelecer entre os dois países a famosa "solidariedade de
buições de responsabilidades na Comissão, é certo que os
facto", aberta a outras nações livres e na altura em relação a um
obstáculos foram sendo ultrapassados em soluções acordadas.
objectivo decisivo: a produção franco-alemã do carvão e do aço
E assim se passou de 6 para 9 membros e mais tarde para 10,
dirigida por uma Alta Autoridade comum, embrião da ideia da
para 12 - quando Portugal aderiu, sábia decisão que a descolo-
Comissão, constituída por "personalidades independentes
nização impunha mas que, na altura, nem sempre foi compreen-
designadas sob uma base paritária pelos respectivos governos...
dida - e mais tarde para 15 e, sobretudo a partir do fim da União
sendo as suas decisões executórias". O primeiro grande passo
Soviética e da reunificação da Alemanha, para 27, numa perspec-
numa visão de supranacionalidade estava dado. Schuman alu-
tiva de alargamentos para os quais não se vislumbra fim,
diria ainda com prudência "a um certo abandono de soberania,
110 |
embora a lógica tenha a prazo que a impor à própria União. suficiente, em termos de esperança e de ambição, para manter
Enquanto se iam assimilando esses alargamentos - que pressu- vivo o esforço integrador. E isto, mesmo havendo entre os mais
punham reformas institucionais - sem deixar de robustecer o lúcidos, a consciência de que, como toda obra humana, a UE
processo integrador, enriquecido em termos politicamente também é perecível.
federalistas, pela criação da moeda única e por iniciativas como A partir da rejeição do texto da Constituição, no entanto, não
Schengen, tinha a UE de acompanhar as mudanças profundas era o passado que estava em causa mas antes o futuro.
que alteravam ou baralhavam as suas antigas referências inter- A solução encontrada com o Tratado de Lisboa, muito próxima
nacionais. Os visionários que haviam pensado a Europa há da Constituição, não será em princípio objecto de referendo
cerca de cinco décadas não podiam imaginar a situação actual. pelos Estados-membros, com a excepção da Irlanda, onde ali se
Nesse curto intervalo de tempo o contexto geopolítico, como impõe o recurso a esse instrumento. Mas a percepção, em
sabemos, alterou-se, a história foi sujeita a uma dramática acele- largos meios da opinião pública europeia, foi de considerar polé-
ração, a globalização criou diferentes interdependências de inte- mica uma decisão, aparentemente acordada por uma maioria
resses, surgiram novos actores na cena internacional, empresas de Governos, de não aceitar esse recurso, não só porque retira
multinacionais, países emergentes, religiões e culturas, assu- democraticidade ao processo, como porque se parece situar
mindo vertiginosa influência nos assuntos mundiais. E mul- numa lógica de exclusão dos cidadãos europeus e de receio de
tiplicaram-se as ameaças do terrorismo, algumas dentro do reviver resultados negativos como os ocorridos aquando dos
próprio espaço europeu. A vitória na guerra fria não garantia ao referendos à Constituição. É naturalmente muito cedo para ava-
Ocidente hegemonia internacional sendo antes necessário liar até que ponto o Tratado de Lisboa responde aos desafios
enfrentar, com novas ideias e novas orientações, uma mais rica que se colocam à Europa. Desde logo em relação a futuros alar-
e complexa realidade mundial e rever o papel que nessa reali- gamentos, aos seus limites geográficos, políticos e eventual-
dade, sujeita a constante mobilidade, podia ou devia caber a mente culturais e penso na Turquia, país membro da NATO e
uma Europa que se queria adequada à mudança. que representa um Islão moderado a que o Ocidente devia
Assim o foram tentando fazer os Estados-membros ao longo estender a mão e valorizar. Mas também penso na declaração
dos anos em Maastricht, em Amesterdão, em Nice e em Lisboa unilateral de independência do Kosovo e nas suas con-
considerando prioritária a reforma institucional imposta pelos sequências nos Balcãs, sabendo que essa realidade divide a
alargamentos e a necessidade de dar eficácia às decisões da União, pode suscitar reacções graves na Sérvia e na Rússia, e
União. Por entre claros progressos no domí nio da integração e ainda alimentar reivindicações da mesma natureza, embora em
dos seus sempre sensíveis equilíbrios, outros factores tiveram graus diferentes, na Bélgica, na Escócia, na Irlanda do Norte, na
carácter negativo como aconteceu quando se rompeu o Córsega, em Chipre, na Catalunha, no País Basco.
conceito da igualdade formal dos Estados que em Nice, com a A experiência dirá também, por outro lado, se as soluções
introdução do elemento demográfico e discriminatório, na pon- encontradas, para o exercício do poder na União, não criam
deração de votos para as votações por maioria qualificada, afinal desequilíbrios e tensões entre Estados-membros, que a
suscitou intervenções de rara agressividade, designadamente demografia pode hierarquizar em três grupos, com visões dife-
por parte da Presidência francesa. A notícia dos confrontos ver- rentes da defesa dos seus interesses, da sua representatividade
bais naquele Conselho Europeu, com intervenções que terão na Comissão ou na sua capacidade de influenciar a negociação
justamente feito valer a ausência de igualdade entre os permanente que decorre nas suas instâncias. A experiência
Estados-membros, revelou afinal a permanência de egoísmos, também esclarecerá como irão decorrer as relações entre o Pre-
ingenuidades ou ambições nacionais que se podiam julgar afas- sidente da Comissão e o Presidente do Conselho Europeu,
tadas embora algum espírito de equilíbrio tenha acabado por eleito pelo próprio Conselho por maioria qualificada e com
moderar em parte o texto finalmente aprovado em Nice. Mas funções classicamente atribuídas às presidências rotativas, mas
mais polémico do que o Tratado de Nice seria o projecto de com poderes pouco definidos e meios de acção orçamentais
Constituição europeia rejeitado por referendo em França -55% ainda menos definidos. O Presidente da Comissão já o terá
e na Holanda -62%. A tendência federalista que se revia no admitido quando disse ao jornal belga De Standaard: "o novo
texto constitucional fôra rejeitada embora, a meu ver, não a Tratado tem grandes riscos... com o Presidente do Conselho...
ideia da UE. poderá haver um novo circuito de decisões tomadas ao lado da
Não obstante as posições tantas vezes diferentes, ou mesmo Comissão e do Parlamento Europeu".
opostas em relação à situação internacional, ou ao que se pre- Haverá ainda que definir, e trata-se de outro ponto igualmente
tenderia levar a cabo no plano da UE, e com que método e em sensível, as responsabilidades do Alto Representante para a
função de que modelo, ou talvez por isso mesmo, o processo de Política Externa e a Diplomacia que será a sua, partindo do
integração europeia, em termos de cooperação europeia e de princípio que essa diplomacia possa existir a 27 ou mais países,
desenvolvimento económico e social, não creio que estivesse uma diplomacia a que ainda falta expressão militar, e que se
em causa. Os governos, os parlamentos, as universidades, os pretende venha a sobrepor-se à dos Estados -membros nas
meios de informação, e nessa medida as opiniões públicas, relações internacionais por exemplo com aRússia, a China, a
puderam acompanhar e em diferentes Estados-membros pro- índia, o Brasil ou o mundo árabe, e se afirme nas organizações
nunciar-se sem comprometer ou entender dever ser revisto o internacionais como as Nações Unidas e o Conselho de Segu-
que foi sendo realizado, se pretendia preservar e parecia rança. Aceitando-se portanto, nessa perspectiva, que a Ale-
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manha, a Inglaterra, a França, a Polónia, e Portugal, a Holanda, limando ambições de integração que o possam comprometer.
a Grécia, a Hungria e os demais Estados-membros tenham
posições comuns, ou que essa diplomacia, por falta de acordo
entre esses Estados- -membros, revele as divisões existentes na
União. Nas declarações que lhe foram atribuídas ao jornal belga
De Standaard a que fiz alusão, o Presidente da Comissão
também reconheceu que haveria "um risco real de que os
Governos resolvam os seus problemas entre si e de uma forma
intergovernamental e sem ter em conta as restantes insti-
tuições".Este tipo de situações e as interrogações que suscita,
terão levado uma personalidade de prestígio, como Hubert Vé
drine, antigo Ministro dos Estrangeiros da França, a não hesitar
em sugerir, em obra recente e com o sugestivo título de "Conti-
nuer l'Histoire", a devolução aos Estados de certas responsabili-
dades atribuídas á União assim voltando a responsabilizar os
governos nacionais em políticas que digam respeito à própria
União, acrescentando: "deixando o caminho livremente aberto
a políticas comuns, a cooperações reforçadas, de geometria
variável, mas sem abandono de soberania".
Enfrenta pois a União Europeia, mais uma vez, questões de
fundo. Na urgência de dar novas respostas aos desafios da
modernidade, dos alargamentos e da mudança são questões Leonardo Mathias
que ultrapassam de longe a visão dos pioneiros da construção
Embaixador em Washington, Brasília, Madrid e Paris
europeia. Confiemos, mais uma vez também, que os Governos
Ex-secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros
e as instituições europeias se encarreguem, no contexto do Tra-
tado de Lisboa ou fora dele, com sabedoria e maturidade e
tendo em consideração necessários conceitos de conciliação e
compromisso, de dar continuidade ao projecto europeu

112 |
A 24 de Maio de 2011 celebra a Sociedade Histórica da Independência de Portugal 150 anos de
existência.
Criada num momento importante, decisivo, da vida nacional, continua activa pela acção intelectual,
cultural, social e moral, na hora presente.
Nascida no seio da sociedade civil para responder às inquietações históricas do momento, atenta e
interventora se mantém hoje. Por Portugal, valorizando o legado e perspectivando o futuro.

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