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Edição especial: 25 anos do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento

Vol. 47, outubro 2018. DOI: 10.5380/dma.v47i0.62428. e-ISSN 2176-9109

DESENVOLVIMENTO
E MEIO AMBIENTE

Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinaridade

Paradoxes and ambiguities in interdisciplinarity

Paradoxes et ambiguités de l’idée interdisciplinaire

Claude RAYNAUT1*
1
Antropólogo, foi Diretor de Pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, França) e Diretor do Laboratório de Pesquisa
Santé, Sociétés, Développement, Universidade Bordeaux 2. É Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e conferencista
da Escola de Altos Estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

*
E-mail de contato: clauderaynaut@hotmail.com

RESUMO: A prática da interdisciplinaridade nos coloca diante de um paradoxo: embora a ideia que a inspira ainda
nos pareça pioneira, ela não tem nada de efetivamente novo. Apareceu há quase um século e desde então
nunca deixou de ser aprofundada e aplicada em vários contextos da pesquisa e do ensino. No entanto,
apesar de seu aparente sucesso, o projeto de ultrapassagem do quadro disciplinar continua a ser objeto de
múltiplas controvérsias e resistências. Quais as razões das dificuldades que essa visão inovadora da prática
científica encontra para alcançar um pleno reconhecimento no quadro acadêmico? Em primeiro lugar, há de
constatarmos que, como qualquer outra forma de inovação, ela é percebida como ameaça por instituições
e atores sociais que se beneficiam da estabilidade de quadros organizacionais estabelecidos e que impõem
resistências a toda perspectiva de mudança. Contudo, além dessa blocagem de cunho político – no sentido
amplo da palavra – existem também razões mais essenciais, de caráter conceitual e epistemológico, ligadas à
confusão que geram a multiplicidade e a heterogeneidade das interpretações da noção e dos conteúdos a ela
atribuídos. É esse caráter heterogêneo do pensamento interdisciplinar que gostaria de explorar aqui. Para isso,
proponho que, em um primeiro momento, nós nos interroguemos sobre a própria noção de disciplina e sobre
a dinâmica de redefinições, de trocas de conceitos e métodos, de passagem de fronteiras, intrínseca ao recorte
disciplinar. O primeiro passo para clarificar a ideia interdisciplinar consiste em abster-se de confundi-la com
esse movimento constitutivo da vida das disciplinas. Em segundo lugar, se o projeto interdisciplinar se define
como esforço para ultrapassar essa dinâmica espontânea das disciplinas e construir algo novo no domínio da
produção e da transmissão do conhecimento, quais as características e os objetivos dessa tentativa original para

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dar conta da complexidade e da hibridização do mundo real? Aqui diversas são as metas almejadas, múltiplos
os caminhos seguidos e dispares os públicos visados pelos projetos que se reclamam da interdisciplinaridade.
Tal diversidade não é um problema em si. Entretanto, torna-se problemática quando a confusão reina, bem
como as nuanças e divergências não são suficientemente explicitadas, clarificadas, articuladas. Nesse caso,
surge uma incoerência que prejudica a elaboração de uma estratégia institucional comum necessária para
combater as falsas interpretações, os preconceitos, as resistências que até hoje impedem que a abordagem
seja integrada de modo duradouro e incontestável nas instituições científicas acadêmicas. É esse trabalho de
identificação e clarificação da diversidade e das ambiguidades da interpretação da prática interdisciplinar que
procurei iniciar nesse texto.

Palavras-chave: história das ciências; disciplinas científicas; interdisciplinaridade; ensino superior; pesquisa.

ABSTRACT: The practice of interdisciplinarity places us before a paradox: although the idea that inspires it still seems
to us innovative, it has nothing really new. It appeared almost a century ago and since then has never
ceased to be deepened, debated and applied in various contexts of research and teaching. However, despite
its apparent success, the project of overcoming the disciplinary framework continues to be the subject of
multiple controversies and resistances. What are the reasons for the difficulties that this innovative vision
of scientific practice encounters in order to achieve full recognition in the academic field? In the first place,
it should be noted that, like any other form of innovation, it is perceived as a threat by institutions and
social actors that benefit from the stability of established organizational frameworks and that, therefore, resist
any prospect of change. But beyond this political blockade - in the broad sense of the word - there are
also more essential reasons, of a conceptual and epistemological character. Such reasons are linked to the
confusion generated by the multiplicity and the heterogeneity of the interpretations of the notion and the
contents attributed to it. It is this heterogeneous character of interdisciplinary thinking that I would like to
explore here. To that end, I propose that, at first, we ask ourselves about the very notion of discipline and
about the dynamics of redefinitions, of exchanges of concepts and methods, and of crossing borders, which
are intrinsic to the disciplinary division. The first step in clarifying the interdisciplinary idea is to refrain from
confusing it with this constitutive movement that has long accompanied the life of the disciplines. Second, if
the interdisciplinary project is defined as an effort to overcome this spontaneous dynamic of the disciplines
and build something new in the field of knowledge production and transmission, what are the characteristics
and objectives of this original attempt to account for the complexity and hybrid nature of the contemporary
world? Here, several goals are aimed at, multiple paths are followed and disparate audiences are targeted by
projects that claim interdisciplinarity. Such diversity is not a problem in itself. But it becomes problematic
when confusion reigns and the nuances and divergences are not sufficiently explicit, clarified and articulated.
In this case, there is an incoherence that hampers the elaboration of a common institutional strategy necessary
to combat misinterpretations, prejudices, and resistances that have hitherto prevented the approach from being
integrated in a lasting and unchallenged way in academic scientific institutions. It is this work of identification
and clarification of the diversity and ambiguities of interpretation of the interdisciplinary approach that I tried
to initiate in this text.

Keywords: history of science; scientific disciplines; interdisciplinarity; higher education; research.

RÉSUMÉ: La pratique interdisciplinaire nous place devant un paradoxe : bien que l’idée qui l’inspire nous paraisse
toujours pionnière, elle n’a rien de réellement neuf. Elle a fat son apparition il y a près d’un siècle et,
depuis, n’a cessé d’être approfondie, débattue et mise en application dans divers contextes de recherche et
d’enseignement. Cependant, malgré son apparent succès, le projet de dépasser le découpage disciplinaire
demeure l’objet de multiples controverses et résistances. Quelles sont les raisons des difficultés que

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rencontre cette vision innovante de la pratique scientifique pour atteindre une pleine reconnaissance dans le
cadre académique? En premier lieu, nous devons constater que, de même que n’importe quelle autre forme
d’innovation, elle est perçue comme une menace par les institutions et les acteurs sociaux qui tirent parti de
la stabilité de cadres d’organisation bien établis et qui opposent résistance à toute perspective de changement.
Mais, au-delà de ce blocage de caractère politique – au sens large du terme – il y a également des raisons
plus essentielles, de nature conceptuelle et épistémologique. Des raisons liées à la confusion que génèrent
la multiplicité et l’hétérogénéité des interprétations de la notion d’interdisciplinarité et des contenus qui lui
sont attribués. C’est ce caractère hétérogène de la pensée interdisciplinaire que je voudrais explorer ici. Pour
cela, je propose que nous nous interrogions, dans un premier temps, sur la notion même de discipline et
sur la dynamique de redéfinitions, d’échanges de concepts et de méthodes, de franchissement de frontières,
qui est intrinsèque au découpage disciplinaire. Le premier pas en vue de clarifier l’idée interdisciplinaire
consiste à s’abstenir de la confondre avec ce mouvement spontané qui accompagne depuis longtemps la vie
des disciplines. En second lieu, si le projet interdisciplinaire se définit comme un effort pour dépasser cette
dynamique spontanée des disciplines et construire du nouveau dans le domaine de la production et de la
transmission de la connaissance, quelles sont les caractéristiques et les objectifs de cette tentative originale
pour rendre compte de la complexité et du caractère hybride du monde contemporain ? Ici, divers sont
les buts visés, multiples les chemins suivis et distincts les publics visés par les projets qui se réclament de
l’interdisciplinarité. Une telle diversité n’est pas un problème en soi. Mais elle en devient un quand la confusion
règne et que les nuances et divergences ne sont pas suffisamment explicitées, clarifiées et articulées. Dans ce
cas, nait une incohérence qui fait obstacle à l’élaboration d’une stratégie institutionnelle commune nécessaire
pour combattre les fausses interprétations, les préjugés, les résistances qui, jusqu’à présent, empêchent que
cette démarche soit intégrée de façon durable et incontestable dans les institutions scientifiques académiques.
C’est ce travail d’identification et de clarification de la diversité et des ambigüités d’interprétation de la
démarche interdisciplinaire que j’ai voulu entamer dans ce texte.

Most-clé: histoire des sciences; disciplines scientifiques; interdisciplinarité; enseignement supérieur; recherche.

A prática da interdisciplinaridade no ensino científicas até então pouco relacionadas entre si.
e na pesquisa nos coloca diante de um paradoxo: Esse processo ocorreu especialmente na França,
ainda que a ideia nos pareça pioneira, ela não tem com o reagrupamento das antigas faculdades es-
nada de efetivamente novo. Desde o final dos anos pecializadas em universidades pluridisciplinares.
1930, o termo é utilizado nos estudos sobre educa- Entretanto, a mesma preocupação também se deu
ção e seu emprego torna-se frequente a ponto de ser em escala internacional, uma vez que, desde 1972, a
incluído no suplemento do Oxford English Diction- Organisation de Coopération et de Développement
nary (Klein, 1996, p. 9). Durante várias décadas, Économiques já publicava um relatório sobre esse
essa noção continua a avançar discretamente nas tema (Apostel, 1972).
“shadows structures” da instituição universitária Em 1979, nos EUA, esse projeto era com-
(Klein, 1996, p. 3) para se manifestar, no final dos partilhado por um número bastante expressivo de
anos 1960, como uma ideia diretriz na reforma intelectuais e pesquisadores, o que os levou a se
de muitas universidades e centros de pesquisa reunirem e criarem a Association for Integrative
em praticamente todo o mundo, com o objetivo Studies, uma associação profissional destinada a
de propiciar melhor colaboração entre disciplinas oferecer um espaço de encontro e uma tribuna para

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os pensadores engajados na reflexão e na ação volta- nos deter às mais recentes, destacaremos a obra
das para a ultrapassagem das barreiras disciplinares. pedagógica publicada por Repko, em 2008; já em
No mesmo período, na França, os poderes públicos 2010, merece atenção um Manual da Interdiscipli-
lançavam, por intermédio da Délégation à la Recher- naridade, publicada pela Editora Universitária de
che Scientifique et Technique (DGRST), diversas Oxford (Frodeman et al., 2010) e uma obra coletiva
incitativas que visavam a estimular a aproximação sobre a renovação da abordagem interdisciplinar
de várias disciplinas científicas ao redor de temas (Origgi & Darbellay, 2008). No Brasil, com o apoio
de pesquisa voltados para problemas de interesse da CAPES, 2011, 2015 e 2017 foram marcados pelo
geral. Durante as últimas décadas do século XX, aparecimento de três obras maiores consagradas aos
formações universitárias de caráter interdisciplinar aspectos teóricos e práticos da interdisciplinaridade,
começam a surgir em diferentes países. Embora isso tendo como base exemplos locais e internacionais
tenha ocorrido especialmente nos Estados Unidos, (Philippi & Silva Neto, 2011; Philippi & Fernandes,
o Brasil foi igualmente percursor nesse domínio, 2015).
não apenas devido à criação de diversos diplomas Atualmente, não há ao certo uma palavra uti-
universitários – por exemplo, o MADE da UFPR em lizada com mais frequência nas discussões sobre a
1993 –, mas sobretudo por se dotar de um quadro inovação na formação e na pesquisa que “interdis-
institucional nacional de acompanhamento e apoio a ciplinaridade”. O termo tornou-se praticamente uma
esse movimento. De fato, em 1999, a CAPES criava referência obrigatória nos projetos pedagógicos que
uma comissão especialmente incumbida de avaliar almejam destacar seu caráter inovador. A tal ponto
tais diplomas, cuja avaliação não poderia ser feita que puderam se referir ao conceito como o “buz-
com as ferramentas habituais de análise. Essa co- zword of the moment” (Klein, 1996, p. 9). O parado-
missão se transformou, aproximadamente dez anos xo é que, apesar desse aparente sucesso, após mais
mais tarde, na Coordenação da Área Interdisciplinar de meio século de reflexão e de prática, esse projeto
que, desde então, desempenha um papel ativo na de ultrapassagem do quadro disciplinar continua
promoção da prática interdisciplinar nas universi- a ser objeto de múltiplos debates e controvérsias.
dades do país. O sucesso desse esforço foi tal que Desde 1990, Dogan & Pahre propõem que o uso do
se contam hoje mais de 250 cursos universitários termo “interdisciplinaridade” seja banido, por conta
interdisciplinares no Brasil. da ausência de um real significado (apud Klein,
Essa mobilização, voltada para a renovação do 1996, p. 10). Até hoje, as resistências são múltiplas.
ensino e da pesquisa além das fronteiras disciplina- Os diplomas interdisciplinares muitas vezes penam
res, foi acompanhada de um esforço significativo para se beneficiarem de um pleno reconhecimento
de reflexão teórica e metodológica. Isso se traduziu, científico e estatutário nas universidades, em que
especialmente desde o início dos anos 1990, em um a separação por disciplinas continua a reinar na
aumento de publicações dedicadas ao tema1. Para definição dos programas, na atribuição dos recursos

1
Ver, por exemplo, a abundante bibliografia proposta por Repko (2008).

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e na gestão de carreira dos professores. Em 2010, Os projetos intelectuais ou pedagógicos unidos sob
S. Fuller, um universitário que há muito tempo to- essa mesma bandeira têm pontos de partida episte-
mava parte na reflexão crítica sobre as disciplinas, mológicos muito díspares; eles não se voltam para
constatava a contradição existente entre a estratégia os mesmos objetivos nem preconizam os mesmos
de desenvolvimento das universidades e a possibi- métodos de trabalho. A diversidade das abordagens
lidade dos professores de terem um cargo fora dos não é, em si, um problema, se ela for explicitada e
departamentos disciplinares (Fuller, 2010). Em um tratada com clareza. Infelizmente, porém, as posi-
plano mais fundamental, outro autor colocava em ções adotadas são muitas vezes doutrinárias; elas
dúvida a própria pertinência da noção de interdis- ignoram ou depreciam as concepções que delas se
ciplinaridade enquanto procedimento intelectual. diferenciam. Essa confusão gera uma deficiência
A ela, prefere o caminho que segue o especialista, em dois sentidos.
quando ele é solidamente enraizado em sua espe- Por um lado, a noção se torna mais frágil e
cialidade disciplinar, mas, pela qualidade de seus mais exposta a críticas na medida em que suas
talentos e por seu inconformismo, mostra-se capaz contradições internas e as divergências encontradas
de aplicar suas competências em várias direções e a nas suas formas de aplicação impedem de responder
um leque de assuntos que não são tradicionalmente às contestações de modo construtivo e coerente.
de sua área (Hacking, 2010). Após mais de meio Segundo o ângulo do qual parte o questionamento
século de pensamento científico, ao longo do qual, e segundo seu alvo, é possível tanto criticar a ideia
entretanto, ocorreram tantas revoluções conceitu- de interdisciplinaridade, por pregar um desconstru-
ais, a interdisciplinaridade não conseguiu ainda tivismo pós-moderno que torna subjetiva a busca
conquistar uma posição intelectual e institucional pela racionalidade, como acusá-la de conduzir à
sólida nem a se apresentar de forma incontestável instrumentalização do pensamento científico que o
como uma das respostas incontornáveis aos desafios subordina a interesses que lhe são externos. Ou ain-
a que são confrontados atualmente a produção e a da pode-se ver nela nada mais do que um novo des-
transmissão de conhecimento. dobramento de um antigo projeto de unificação da
As causas desse atraso são diversas. Os jogos ciência. E cada flecha poderá atingir seu alvo entre
de interesse e de poder, que toda inovação intelectu- as diferentes facetas do pensamento interdisciplinar,
al desencadeia quando ameaça territórios institucio- sob o risco de desacreditar ao mesmo tempo todas
nais estabelecidos há muito tempo, desempenharam, as outras interpretações que são dadas ao termo. Por
sem dúvida, um papel significativo nessa situação. outro, a heterogeneidade dos projetos intelectuais e
No entanto, parece existir, ao meu ver, uma causa pedagógicos que se rotulam como interdisciplinares
mais substancial e mais profunda, atrelada ao modo – tendo muitas vezes como único ponto comum o
como a própria ideia de interdisciplinaridade foi fato de relacionar várias especialidades científicas
trabalhada e construída. Um percurso pela literatura – configura-se como um “freio” para sua inserção
faz rapidamente saltar aos olhos que o mesmo termo institucional. Com pressupostos teóricos distintos,
é utilizado para designar uma multiplicidade de objetivos discordantes, públicos-alvo diferentes, sua
visões diferentes, sendo muitas divergentes entre si. imagem torna-se confusa. Esses projetos diversos
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custam a se inserir em quadros institucionais co- nizado para responder à complexidade e ao caráter
muns, tais como os departamentos universitários, híbrido da realidade contemporânea por meio de
e não conseguem responder aos mesmos critérios uma articulação metódica dos múltiplos olhares que
de avaliação. Inovar em relação às formas insti- a ciência pode portar sobre ela mesma.
tucionais que foram criadas há muito tempo em
função da grade de disciplinas implica a aplicação As disciplinas: uma história movimentada,
de estratégias coerentes e afinadas. Isso é difícil uma dinâmica constante
não porque os atores têm pontos de vista distintos,
mas sobretudo porque eles não se dão ao trabalho
A partir do momento em que empregamos as
de explicitar suas diferenças e as aceitar a fim de
noções de inter, de multi ou de transdisciplinari-
poder pensar sobre seu posicionamento mútuo e
dade, mobilizamos, ao mesmo tempo, a noção de
identificar os possíveis pontos de articulação que
disciplina. Esse termo se tornou tão banal, com uso
lhes permitiriam criar um fronte de batalha comum.
tão frequente no campo do ensino tanto pré-uni-
É esse caráter heterogêneo do pensamento
versitário quanto universitário, que seu conteúdo
interdisciplinar que gostaria de explorar aqui, pois
parece ser óbvio, como um fato que se impõe com
me parece ser o primeiro passo indispensável de
a força da evidência, como uma ordem que extrai
um percurso intelectual cujo propósito é se desfazer
sua legitimidade da própria diversidade dos objetos
das imprecisões conceituais atuais. Reconhecer e
e dos questionamentos que se colocam diante do
considerar as diferenças, como também não con-
espírito humano para serem conhecidos e pensados.
fundir indistintamente todas as formas de troca
Um rápido olhar sobre a história da ciência
e de relações entre disciplinas em uma acepção
ocidental mostra, entretanto, que a realidade é bas-
confusa de interdisciplinaridade é, ao meu ver, a
tante diferente. Como vários autores nos lembram,
primeira etapa indispensável de uma estratégia
o recorte das fronteiras das disciplinas enquanto
destinada a restaurar uma imagem legível e coerente
domínios de ensino e de pesquisa, como o conhe-
das novas perspectivas científicas inauguradas por
cemos atualmente, é produto de uma história social
esse projeto intelectual, nas diferentes formas que
(Repko, 2008; Klein, 1996). Uma história marcada,
ele pode assumir. Para isso, proponho que, em um
num primeiro momento, pela progressiva laicização
primeiro momento, nós nos interroguemos sobre a
das sociedades europeias e pela lenta emancipação
própria noção de disciplina e sobre a dinâmica de
da busca por conhecimento em relação aos dogmas
redefinições, de trocas, de passagem de fronteiras
religiosos e caracterizada, em seguida, por uma
que lhe é intrínseca. Examinaremos, em seguida,
articulação crescente entre a ciência e a técnica,
diferentes formas de uma interdisciplinaridade que
em busca de objetivos induzidos pela sociedade. A
não se confunde com esse movimento espontâneo
ideologia do progresso, fio condutor da revolução
que acompanha há muito a vida das disciplinas co-
industrial do século XIX, fazia da ciência e de
mo manifestação da liberdade de todo pensamento
suas aplicações o fundamento de melhorias para
humano. Uma busca pela interdisciplinaridade que
a condição humana. Rapidamente, as descobertas
represente um esforço inovador, deliberado e orga-

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científicas e as inovações tecnológicas se impu- A existência de conhecimentos práticos e de
seram também como armas poderosas ao serviço savoir-faire era igualmente reconhecida: medi-
de estratégias de dominação econômica, política cina, botânica, arquitetura e agricultura. Porém,
e militar. Ao longo desse processo histórico, que essas “Artes mecânicas” (mesmo quando eram
se iniciou há mais de duzentos anos, a lógica que responsáveis pela reputação de universidades como
inspirava a divisão do campo de conhecimento em Padoue, Salerne ou Montpellier, célebres por seu
domínios distintos não parou de evoluir, a nomen- ensino de Medicina) vinham em segundo plano e
clatura e as identidades disciplinares passaram por se legitimavam intelectualmente de acordo com a
uma constante evolução e sua inserção no campo contribuição que podiam oferecer ao esforço mais
institucional e social se diversificou. geral de compreensão conduzido pelas artes liberais.
O ensino, no modo como era praticado na O universo do conhecimento, por mais dividido que
universidade na Idade Média, especialmente após seja em campos diferenciados, era então percebido
Thomás de Aquino, era entendido como um cami- como uma paisagem coerente organizada de modo
nho construído e ponderado rumo a uma compre- hierárquico em função de uma finalidade comum: a
ensão mística do mundo (Panofsky, 1975 p. 89 et mobilização dos recursos do cérebro humano a ser-
sq). A aplicação do método escolástico, apoiado na viço da compreensão e glorificação da obra divina.
herança do pensamento da Antiguidade, permitia É significativo, a esse respeito, que a referência à
aprofundar a compreensão da verdade que os textos constelação dos saberes tenha constituído um mo-
sagrados, muitas vezes de forma velada, transmi- tivo recorrente na ornamentação dos edifícios reli-
tiam. Esse encaminhamento passava pela aquisição giosos góticos. Um exemplo claro dessa presença é
de competências na formação e expressão do pen- o Campanário do Duomo de Florença, construído no
samento: gramática, dialética e retórica (agrupadas século XIV, iniciado por Giotto e continuado após
sob a denominação de Trivium). Passava também sua morte, decorado por aproximadamente cinquen-
pelo domínio da aritmética e da geometria, enten- ta quadros esculpidos, que se constitui como uma
didas como ferramentas de pensamento capazes de enciclopédia que representa a história do homem
submeter a observação do mundo ao procedimento desde a criação e detalha o conjunto das atividades
da medição, aprendizagens as quais se conciliavam humanas, intelectuais e práticas, como tantas etapas
com a exploração de dois domínios da experiência na via da espiritualidade e da salvação eterna2.
em que se impõe de forma mais evidente o reino Com a revolução conceitual do Renascimento,
dos números: a astronomia e a música (essas quatro a realidade empírica começa a se libertar do estatuto
últimas matérias eram agrupadas sob a denominação que lhe era conferido durante toda a Idade Média,
de Quadrivium). O conjunto dessas competências ou seja, uma compilação de signos que somente
formava as “Artes Liberais” e abria caminhos ru- merecia nossa atenção se procurássemos decifrar
mo à Sabedoria. Seu ensino se configurava como a o poder divino de que eram manifestação (Duby,
vocação superior da Universidade. 1976; Grabar, 1992). Com os progressos técnicos da
2
Os originais desses quadros estão expostos no museu da Ópera del Duomo, em Florença.

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navegação, a exploração do planeta, conduzida ini- amento e descrição das coisas da natureza – não era,
cialmente por objetivos exclusivamente comerciais, finalmente, mais do que uma preliminar a uma busca
mas posteriormente inspirada de mais em mais no de sentido mais fundamental (Weingart, 2010). Foi
apetite de conhecimento, defronta a uma multipli- em 1633, em plena era dita “clássica”, que Galileu
cidade de fatos naturais e humanos absolutamente foi condenado pelo Santo Ofício por suas teses
novos um saber estabelecido, firmemente arraigado cosmográficas contrárias à doutrina da Igreja. Foi
até então, no corpus de conhecimentos herdados preciso aguardar ainda mais de um século para
da Antiguidade e na revelação de textos sagrados. que, com a Enciclopédia coordenada por Diderot
Tornou-se desde então imperativo descrever esses e D’Alembert, o esforço do espírito humano para
fatos, classificá-los e relacioná-los entre si para descrever o mundo se libertasse da tutela da teologia
tentar compreender uma diversidade do mundo à e da supremacia da filosofia (Durel, 2003). Muitas
qual os espíritos não estavam preparados. Simul- décadas e uma revolução foram ainda necessárias
taneamente, o progresso da ótica e da observação na França para que, no começo do século XIX, o
do céu explodiam o modelo geocêntrico dominante físico e astrônomo Laplace pudesse responder, sem
até então na concepção cosmográfica do universo. correr riscos, a Napoleão, que o interrogava sobre
Assim, todos os antigos moldes de pensamento do o lugar de Deus em seu sistema explicativo: “Não
mundo deveriam ser reconstruídos. Transformada preciso dessa hipótese”.
em um campo de questionamentos não resolvidos A exploração científica do mundo passou
e não mais em um texto a decifrar para confirmar então a ser conduzida apenas pelos princípios da
certezas fundadas na fé, essa nova realidade merecia razão. Fundada na dúvida, libertou-se de respostas
dali em diante que lhe consagrassem energia para a priori impostas por dogmas. Não tinha mais
observar, ordenar, identificar as leis próprias às que se colocar a serviço de uma reflexão sobre as
quais ela obedece. causas primeiras. Livra-se, assim, da exigência de
Essa mudança radical de paradigma, apesar fazer convergir as interrogações sobre o mundo
de ter partido de uma ruptura primeira que carac- empírico em uma finalidade comum: a decifração
teriza o Renascimento, apenas ganhou espaço de de um grande propósito que daria à natureza sua
forma progressiva na sociedade europeia. A Igreja coerência. O exercício do pensamento e o ensino
continuou por muito tempo a dominar o sistema do saber não tiveram mais que se estruturar em
de pensamento e as instituições de transmissão de torno das diferentes “vias” do conhecimento e da
saber, especialmente as universidades. No final do sabedoria. Tornaram-se livres para tomar o real
século XVI, Francis Bacon, considerado um dos como único objeto e para adotar diante dele uma
fundadores do pensamento científico moderno, abordagem analítica, fragmentando-o em territórios
inclusive por seu esforço para estabelecer um re- de observação distintos que constituíam, por sua
pertório ponderado dos domínios do conhecimento, vez, vários temas de estudo legítimos.
continuava a colocar a filosofia e a teologia, en- É apenas de forma bem progressiva e tardia
quanto reflexão sobre as causas últimas, no topo de que essa evolução dos quadros conceituais, a partir
uma hierarquia na qual a história natural – recense- dos quais se estruturava o olhar sobre o mundo,

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passou a refletir nas instituições. Durante todo o Foi somente com atraso que as universidades
século XVIII, as instituições científicas predomi- se adaptaram ao novo cenário da ciência, à nova
nantes foram as Academias Reais, em que convergia separação dos conhecimentos que se dava. O mo-
o conjunto da produção do saber. Elas reuniam vimento ocorreu em ritmos e formas diferentes de
competências variadas e abordavam coletivamente acordo com o país, em função de situações políticas
temas científicos dos mais diversos. Porém, com e sociais particulares. Na França, por exemplo, a
esse tipo de funcionamento, elas tiveram de mais em Revolução fez tábula rasa das antigas universidades,
mais dificuldades de se adaptar à multiplicação de consideradas tacanhamente submissas ao poder da
objetos de conhecimento e de assuntos trabalhados, Igreja. Ao longo de todo o XIX, entre sobressaltos
diversidade que exigia competências cada vez mais históricos e mudanças do sistema político, refor-
aprofundadas e especializadas (Weingart, 2010). mas, dissoluções e recomposições se sucederam: o
A resposta a essa necessidade de especiali- ensino superior se desdobrou em uma constelação
zação se deu pelo viés da criação de comunidades de grandes escolas profissionais (Polytechnique,
científicas que compartilhavam os mesmos inte- École Centrale etc.) e de faculdades, dentre as quais
resses. Seus membros se dirigiam prioritariamente algumas tinham uma visada profissional (Medicina,
uns aos outros, referindo-se a um corpus comum Direito...) e outras respondiam a uma ampla cate-
de conhecimentos e empregando uma linguagem gorização dos campos de conhecimento (Letras,
cada vez mais especializada. Essas comunidades Ciências, depois Economia e Ciências Sociais).
formaram as Sociedades ou Associações científicas Mesmo as regras para atribuição dos diplomas
especializadas, o que garantia a divulgação e a cir- sendo, em grande parte, fixadas pelo Estado, o
culação de conhecimentos por meio de publicações conteúdo de ensino era determinado, com muita
temáticas cuja difusão se centrava nos membros de autonomia, pelas faculdades e seus professores.
cada comunidade. A cátedra, com seu professor titular, constituía o
eixo ao redor do qual se estruturava localmente
“Previously, throughout the eighteenth century, books, a identidade disciplinar – recorte profundamente
articles, and even experiments were still addressed marcado, segundo à própria etimologia do termo
to the general public. The more specialized commu- “disciplina”, pela relação singular que se estabelece
nication among scholars became, the more it was
addressed to themselves. This ‘closure’ of disciplinary entre o mestre e seus discípulos. Simultaneamente,
communication communities was expressed through as estruturas transversais, tanto as públicas, como
specialized journals and in the organization of scho- os comitês nacionais de avaliação e validação dos
larly associations” (Weingart, 2010, p. 6). diplomas e da gestão da carreira dos docentes,
quanto as privadas, como as Sociétés Savantes3
ou os comitês editoriais das revistas científicas,
3
Em vários países europeus, durante o século XIX, multiplicaram-se associações de cientistas e eruditos (“Sociétés savantes”, na França; “Learned
Societies”, na Inglaterra) organizadas conforme campos científicos especializados e reunindo cientistas e pessoas eruditas da sociedade civil
para compartilhar e divulgar os resultados de suas pesquisas. Muitas dessas sociedades formaram redes internacionais que, até hoje, constituem
um dos quadros mais ativos da circulação das ideias científicas.

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ajudaram a inscrever o processo de construção das ocidental moderna, ao redor de uma função espe-
identidades disciplinares em uma rede mais ampla. cializada: a produção e a transmissão de um saber
Essa transversalidade atingia às vezes uma dimen- científico independente da esfera religiosa. Cada
são internacional, no caso das Sociétés Savantes, e um desses componentes assume a forma de uma
conferia à nomenclatura dos saberes em processo comunidade social cujos membros estabelecem
de lapidação argumentos de legitimidade e de uni- relações marcadas tanto pela troca e solidariedade
versalidade que a relação singular entre o mestre e quanto pela concorrência entre si. Cada disciplina
seus discípulos era incapaz de fornecer. se inscreve e perdura no âmago das instituições de
As condições de implantação das estruturas ensino e pesquisa públicas ou privadas, que se ar-
do ensino superior foram distintas de um país a ticulam tendo em vista os contextos nacionais e em
outro devido à história própria de cada um. É o conformidade com as circunstâncias particulares de
que atualmente evidenciam as discordâncias na cada um deles (Weingart, 2010, p. 6). Ela se torna,
nomenclatura das disciplinas que observamos ao mesmo tempo, entidade institucional e território
entre instituições acadêmicas de diversos países. social organizado em função de códigos que lhe são
Isso ocorre, por exemplo, quando comparamos os próprios, preocupados em proteger suas fronteiras e
comitês e as seções de avaliação do Conseil Natio- em defender seus interesses tanto simbólicos quan-
nal des Universités, na França, com as comissões to materiais e econômicos – teatro de estratégias
da CAPES no Brasil ou com as seções da National individuais e coletivas (Becher & Trowler, 1989).
Science Foundation, nos EUA. Todavia, o que há de Ao longo do movimento histórico em que fo-
comum a todas as situações particulares observadas ram construídos e estruturados os estabelecimentos
aqui e acolá é o fato de que o recorte institucional de ensino superior, esses territórios se traduziram
dos campos de saber, ou seja, o leque de discipli- institucionalmente, e em termos administrativos,
nas diante do qual deve se situar o estudante, o em unidades de ensino, em departamentos, em
professor ou o pesquisador, não é um mero reflexo laboratórios de pesquisa. Sob formas e em níveis
da heterogeneidade do real e das questões que sua diferentes, de acordo com o país e em função do
análise desencadeia (mesmo se esses elementos papel mais ou menos predominante desempenhado
devam também dar conta dessa heterogeneidade). É pelo Estado na organização acadêmica, o pertenci-
principalmente o produto de uma construção social, mento a uma disciplina e a conformidade com que
relativa a um contexto social, político e econômico. fundamenta sua singularidade conceitual e meto-
As disciplinas científicas são, portanto, muito dológica se tornou o primeiro critério no processo
mais do que um artifício epistemológico destinado de seleção e avaliação dos cursos, bem como na
a reduzir a complexidade do real, desmembrando-o evolução dos recursos para a pesquisa. Esse refe-
em facetas que podem assim serem examinadas rencial disciplinar desempenha também um papel
individualmente, com o auxílio de uma ferramen- predominante na gestão de carreiras individuais dos
ta conceitual apropriada a cada uma delas. Elas docentes, na atribuição de diplomas aos alunos. Ele
também são componentes do campo social que se estrutura, enfim, a difusão de resultados de pesquisa
estruturou ao longo da emergência da sociedade pelo meio das revistas científicas especializadas.

22 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


O funcionamento do sistema como um todo se na concretização do pensamento interdisciplinar,
apoia em um princípio central: a avaliação por pa- cuja precocidade foi lembrada anteriormente, são
res. São os membros de uma mesma comunidade em parte decorrentes da subestimação do desafio
científica, os quais compartilham competências e que essa ideia coloca em diversos domínios, e não
um vocabulário similar a propósito de um campo apenas do ponto de vista científico.
comum de questionamentos, que são capazes de O processo histórico de laicização que acaba-
julgar a pertinência de um projeto de ensino ou mos de resumir atribuía ao conhecimento científico
pesquisa, apreciar o valor científico de uma pessoa um valor intrínseco. Tal valor era instituído como a
ou a qualidade de uma publicação. Esse método expressão mais elevada do que se constitui a iden-
teve um lugar de destaque na definição e na defesa tidade e a dignidade do ser humano: seu espírito,
da identidade de uma disciplina, na limitação de sua inteligência. No percurso desse movimento, o
suas fronteiras, na preservação de sua integridade olhar científico, difratado em disciplinas distintas
conceitual e metodológica (Klein, 1996, p. 58-59; e autônomas, institucionalizou-se no âmago das
Holbrook, 2010, p. 321-332). estruturas – estabelecimentos de ensino e de pesqui-
O estatuto das disciplinas, como conhecemos sa – criadas em nome da produção, do ensino e da
atualmente, é fruto desse lento processo de cons- difusão desse conhecimento. Essa não foi, porém,
trução iniciado na Europa há pouco mais de dois a única finalidade que a ciência assumiu após sua
séculos e que se propagou progressivamente, a emancipação da religião. Ao lado da imagem do
partir do mesmo modelo, mas com diferenças de cientista, surgia a do engenheiro e de outras profis-
temporalidade, ritmo e nuances, em todo planeta. sões de caráter mais técnico.
No plano institucional, no campo de ação do mundo Na cidade da Antiguidade, o técnico, seja qual
acadêmico – formação inicial, média e superior, fosse sua competência, devia se contentar com um
pesquisa universitária – o recorte disciplinar se lugar modesto ao lado do sábio e do filósofo. Isso
impõe doravante como um dado que cada ator, seja porque, enquanto esses últimos evoluíam no mundo
ele estudante, professor ou pesquisador, deve levar das ideias e das causas primeiras, da harmonia e da
em conta tanto no exercício de seus projetos inte- imutabilidade do transcendente, o primeiro se batia
lectuais como na conduta de seu curso de formação com as contradições, contingências e contradições
ou em sua carreira profissional. Todo projeto com do mundo material (Vérin, 1998). A Idade Média,
o propósito de estabelecer uma forma de transver- em que o tangível e o visível não passavam de
salidade entre as disciplinas, colocando, portanto, reflexos de uma realidade mais essencial, da luz
em questão, mesmo com prudência, uma geografia de Deus e da cidade divina, não foi capaz de reabi-
territorial solidamente estabelecida, terá não apenas litar o técnico a despeito de numerosas invenções
que resolver questões científicas, mas também, e decisivas criadas nesse período da história europeia
talvez principalmente, deverá ultrapassar obstáculos (Parain, 1979).
que suas iniciativas geram, no plano simbólico, em É, mais uma vez, no Renascimento que aquele
termos de poder ou embates econômicos, ou ainda que lida com a materialidade do mundo começa a
no plano institucional. As lentidões observadas se libertar de sua posição subalterna. Essa evolução
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toca tanto o artista como aquele que chamaríamos cos. Na França, antes mesmo que começassem a
atualmente de engenheiro. Não era, aliás, fácil de ser desmanteladas as universidades herdadas da
estabelecer essa distinção na época: mesmo sem Idade Média, essa legitimação foi confirmada pela
aludir à imagem emblemática de Leonardo da criação das primeiras instituições elitistas de ensino
Vinci, podemos destacar que Giotto, Brunelleschi características desse país: as “Grandes Écoles”. A
e Michelangelo eram tanto arquitetos e inventores École des Ponts et Chausseés, fundada em 1747; a
quanto artistas, pintores e escultores. Não apenas École des Mines, em 1783; a École Polytechnique,
essas funções, que hoje em dia tendemos a distin- em 1794; a École des Eaux et Forêts, em 1824.
guir e a opor, reuniam-se frequentemente na mesma Esses estabelecimentos visavam de antemão à ex-
pessoa, mas os avanços obtidos por esses indiví- celência. Devido a uma seleção de estudantes que
duos que se dedicaram à resolução de problemas retinha apenas os melhores; a um ensino de mais alto
práticos acarretaram progressos decisivos em áreas nível, que se esforçava para levar em consideração
da ciência mais abstratas e especulativas. É assim os avanços mais recentes da ciência, aos poucos,
que os trabalhos sobre a perspectiva empreendidos esses estabelecimentos passaram a ter um lugar
por Brunelleschi, Piero della Francesca ou Paolo mais proeminente na produção do saber tanto em
Ucello permitiram lançar as bases do que se tornou seus próprios laboratórios quanto naqueles criados,
a geometria descritiva (Damisch, 1993) e são inse- graças à iniciativa das pessoas ali formadas, no
paráveis das revoluções conceituais que abalaram espaço em que exerciam sua atividade profissional.
o pensamento europeu entre o século XV e XVI Essa distinção entre Universidade e grandes
(Panofsky, 1975). instituições profissionais de formação dos enge-
Como resume Hélène Vérin: nheiros é tipicamente francesa. Nos Estados Unidos,
por exemplo, a separação não é tão nítida, pelo
“Os engenheiros do século XVI ajudaram a abrir ca- menos em termos institucionais, inclusive porque,
minho para uma filosofia, uma ciência que não temia ao observamos a genealogia de muitas universi-
ser desvalorizada ao se declarar “mecanista” e que se dades norte-americanas, notamos que várias delas
colocou como tarefa descobrir as “leis da natureza”.
No século XVIII, a “Science des ingénieurs” de B.F. surgiram a partir de escolas de agricultura criadas
Bélidor (1734), reeditada até o começo do século no contexto do Land Grant (Morril Act), em 1862
XIX, sanciona a legitimidade científica das práticas (Weingart, 2010). Entretanto, uma instituição como
do engenheiro” (Vérin, 1998, p. 17). o Massachusetts Institute of Technology representa
a quintessência de um estabelecimento de ensino
O mesmo movimento de laicização do co- e de pesquisa cuja finalidade é associar, no mais
nhecimento que criou, aos poucos, a Universidade alto nível de excelência, ciência teórica e ciência
moderna, cuja finalidade primeira era a progressão aplicada.
e a difusão do saber enquanto valor intrínseco, Apoiando-se na formação de engenheiros
também exerceu um papel decisivo na legitimação de alto nível, a ciência de ponta alça voo fora do
de uma ciência que não era mais desacreditada por domínio universitário. A função dos laboratórios
ser voltada para a resolução de problemas práti- criados nas universidades, especialmente nas últi-

24 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


mas décadas do século XIX, é antes de mais nada mundo acadêmico, ou que ultrapassa os limites de
pedagógica. São lugares “onde se aprende fazendo seu papel pedagógico fundamental; ao me perguntar
e fazendo os estudantes fazerem” (Pestre, 2008, p. o que isso implicará o ponto de vista do recorte das
41). Paralelamente, nas décadas que antecedem a disciplinas, em suas identidades, nas relações que
Primeira Guerra Mundial, a pesquisa se desenvol- elas estabelecem entre si e em sua projeção no cam-
ve como uma atividade essencial nas indústrias, po social. A constatação que podemos fazer a esse
especialmente nos setores que então em pleno respeito é que, na pesquisa industrial, as relações
desenvolvimento, como a telegrafia submarina, a entre especialidades científicas não são marcadas
utilização e produção de energia elétrica, a rádio e pela mesma rigidez que no sistema institucional
a química orgânica. As grandes indústrias, apoian- universitário. Os desafios propostos pela resolução
do-se em um grupo de cientistas de excelência, de problemas concretos em setores inovadores mo-
dos quais muitos tinham formação em engenharia, bilizam competências científicas e savoir-faire em
empreendem pesquisas que, apesar de terem como torno de objetivos comuns de reflexão e criação.
objetivo final aplicações, tocam em problemáticas
científicas fundamentais. A universidade, enquanto “O programa de pesquisa da Bell sobre os materiais
instituição incumbida de promover o valor intrín- nos anos [19]30 é um exemplo ideal: por apostar em
seco da ciência, está longe, portanto, de ter tido novos tipos de objetos (o transistor será o produto
mais conhecido), foram reunidos em espaços co-
monopólio no processo de construção da ciência muns químicos, físicos especialistas em metais, em
moderna. Ela mesma, aliás, ao longo do século XX, magnetismo ou eletrônica, especialistas em mecânica
será de mais em mais levada a se distanciar de um quântica [...], cristalógrafos - além de engenheiros de
ideal de progresso desinteressado do conhecimento todos os tipos. Cada um tinha uma grande margem de
manobra nos programas que ele acompanhava, mas
para responder às solicitações e às exigências da
se esperava que participasse de trocas formais orga-
sociedade, seguindo orientações impostas, cada nizadas: por exemplo, os especialistas das patentes na
vez com maior pressão, pelos poderes públicos e companhia4 circulavam entre os grupos para decidir
estabelecendo parcerias entre os atores econômicos os encontros que deveriam ser articulados” (Pestre,
privados e a sociedade civil. 2008, p. 42).
Essa realidade desencadeia vários debates
sobre o estatuto da ciência na sociedade. Ao se Esse movimento se amplia na Segunda Guerra
libertar da tutela da religião – etapa determinante Mundial e durante a Guerra Fria, com enfoques
no voo que ela alçou no curso dos dois últimos militares ou industriais. A RAND Corporation, um
séculos –, será que se enredou em outros laços que organismo com algumas centenas de pesquisadores,
lhe fariam perder sua independência e limitar sua criada inicialmente pela aeronáutica norte-america-
criatividade? Sobre essa polêmica, não me debru- na e que reunia matemáticos, lógicos, físicos, enge-
çarei aqui. Limitar-me-ei a registrar o fato de que nheiros, economistas, administradores e cientistas
existe uma intensa atividade científica exterior ao sociais, é um exemplo típico dessa evolução. Foi lá
4
Pessoas incumbidas de fazer com que os achados científicos dos pesquisadores gerassem patentes que garantissem os lucros da companhia.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 47, Edição especial: 25 anos do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento, p. 13-48, outubro 2018. 25
que trabalharam com a teoria dos jogos e com a aná- das pela utilidade que ele pode assumir diante dos
lise de sistema, entre outros. Em torno de objetivos objetivos almejados. Portanto, elas se estruturam
técnicos e operacionais inspirados por preocupações e funcionam de acordo com essa finalidade. Um
militares, estratégicas ou industriais, desponta uma relatório da Organização de Cooperação e de
nova forma de praticar a ciência, baseada em articu- Desenvolvimento Econômico (OCDE) ressaltava
lações de conhecimentos e competências. É assim essa oposição de forma polêmica, intitulando um
que nascerá, por exemplo, uma nova técnica como de seus capítulos “As comunidades têm problemas,
a dos lasers (Pestre, 2008). as universidades têm departamentos” (1982, p. 127,
O contexto sócio-político da Guerra Fria e a apud Klein, 1996). O termo “comunidade” aqui faz
competição científica e técnica por ele gerada tive- referência à sociedade em seus diversos componen-
ram um lugar determinante no desenvolvimento de tes, confrontada com a “vida real”, ao contrário da
um modo de produção do saber no qual a diversida- instituição acadêmica supostamente movida por
de das disciplinas constituía um recurso e em que, visadas abstratas e especulativas.
ao contrário do sistema acadêmico, a multiplicidade Há muito tempo, porém, esse contraste não é
dos saberes e competências não se projetava em ins- mais tão marcado na prática. Ao longo do século
tituições distintas e potencialmente rivais5. De modo XX, os pesquisadores e os laboratórios universitá-
mais amplo, ao longo do século XX até hoje, essa rios passaram a estabelecer vínculos de mais em
forma de praticar a ciência se tornou característica mais estreitos com empresas privadas, com as quais
de todos os grandes projetos industriais ou de en- essas trocas se multiplicaram. São inúmeras, por
genharia civil. Construir um novo avião, lançar um exemplo, as descobertas farmacológicas decorrentes
satélite, criar um novo remédio, perfurar um túnel de trabalhos empreendidos por universitários. Como
submarino exigem a colaboração não apenas de não citar a descoberta emblemática da penicilina por
técnicos competentes, mas também de cientistas de Alexander Flemming, em 1928, publicada primeira-
alto nível que representam uma grande gama de es- mente em revistas científicas e que faria surgir uma
pecialidades, a fim de fazer funcionarem inovações substância explorada industrialmente destinada a
que permitirão resolver os problemas encontrados. revolucionar a luta contra as doenças infecciosas?
O contraste entre esses dois tipos de organiza- Desde então, em todos os países, as relações entre a
ção é real. A Academia tem como missão principal indústria e a pesquisa universitária não pararam de
fazer com que saberes de valores intrínsecos pro- se reforçar e de se contratualizar. Paralelamente, o
gridam e sejam transmitidos. Ela se organiza, pois, financiamento da pesquisa pública tomou a forma
em função das facetas desse saber: as disciplinas. de grandes projetos e de licitações cujo conteúdo
As instituições públicas ou empresas privadas obedece a prioridades definidas em função de
encarregadas da resolução de problemas concretos objetivos econômicos, urbanísticos, estratégicos,
também produzem um novo saber, mas são guia- sanitários, ambientais fixados pelo poder público
5
Isso não quer dizer que essas organizações de finalidade tecnocientífica sejam isentas de recortes institucionais e de barreiras, suscetíveis de
produzir concorrências e bloqueios. Essa diferenciação existe, como nota Klein (1996, p.13), mas ela se dá sobre uma base operacional, em
função dos tipos de problemas a serem resolvidos ou das funções a preencher, não a priori em função de disciplinas.

26 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


em resposta mais ou menos direta de preocupações que colocou em questão o recorte das disciplinas.
da sociedade civil. No decorrer dessa evolução, que O pensamento científico não conhece barreiras. É
se acelerou nos últimos cinquenta anos, a produção fundado sobre a dúvida, sobre o questionamento
de conhecimento nas universidades, bem como os das certezas adquiridas. Sob esse prisma, a divisão
conteúdos dos currículos de formação passaram a do real em facetas, examinadas separadamente
interagir de mais em mais com a “vida real”, com com ajuda de um aparato teórico e metodológico
a sociedade, em instâncias públicas e civis, em científico específico, representa antes de mais nada
resposta a solicitações ou mandados decorrentes uma comodidade intelectual. Seguindo o percurso
tanto de instituições públicas quanto de empresas da reflexão e do aprofundamento do conhecimento,
ou, mais recentemente, do meio associativo6, e as divisões instauradas pela separação em discipli-
acompanhados dos financiamentos necessários para nas podem se tornar mais uma fonte de incômodos
sua execução. do que a condição de uma abordagem rigorosa no
Duas conclusões advêm dessas constatações. exercício do pensamento. Nas Ciências Humanas,
Por um lado, que as disciplinas científicas não são a divisão entre diferentes ramos como sociologia,
irremediavelmente fechadas a relações entre si; em antropologia, história, geografia humana, economia
algumas condições, podem perfeitamente colaborar e humanidades é com frequência transposta por
em nome de uma tarefa comum. Por outro, que a pensadores que, entretanto, são identificados for-
universidade não é exclusivamente consagrada à malmente em função de um rótulo disciplinar parti-
ciência especulativa: boa parte das pesquisas empre- cular. Polanyi é tanto economista quanto historiador
endidas e dos docentes estabelecem vínculos com e seus trabalhos são abundantemente utilizados por
problemáticas “exógenas” e respondem a demandas antropólogos (Godelier, 1968). Bourdieu, ícone da
de ordem social, profissional, econômica, industrial. sociologia, escreveu um notável posfácio ao texto
Cada vez mais, equipes de pesquisa e departamentos do historiador de arte Panofsky para mostrar a per-
de ensino trabalham com temáticas transversais tinência sociológica do método aplicado por esse
comuns a várias disciplinas, como o gênero, o ur- último (Bourdieu, 1967). Os trabalhos de Amartya
banismo, o meio-ambiente e a saúde. Nesse caso, o Sem, prêmio Nobel de Economia em 1998, são
quadro institucional em que foram cristalizadas as de grande valia para todos os pesquisadores em
especialidades científicas no decorrer da construção ciências humanas que trabalham com a questão
da instituição universitária perde sua pertinência; da pobreza e do desenvolvimento. A obra de Levi
os territórios de identidade e de poder constituídos Strauss alimenta tanto a reflexão filosófica quanto o
em seu nome veem suas fronteiras se desfazerem. pensamento antropológico. Poderíamos multiplicar
Porém, a permeabilidade às preocupações e exemplos desse tipo, os quais comprovam que, do
demandas de diferentes atores da sociedade – pú- ponto de vista do pensamento, o recorte do estudo
blicos, privados e industriais – não é o único fator das sociedades humanas em especialidades distintas
6
É assim, por exemplo, que na França uma parte considerável do financiamento das pesquisas empreendidas sobre a Aids ou as miopatias por
universidades ou pesquisadores de grandes instituições de pesquisa, como o CNRS ou o INSERM, é feito por grandes associações como AIDES
ou a Associação Francesa contra as miopatias.

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não passa de uma ficção metodológica, útil para a autor mostra de modo convincente, atrás da aparente
exploração metódica dos fatos, mas que o espírito evidência da separação em disciplinas que se impõe
ultrapassa espontaneamente assim que ele ganha no âmago da estrutura universitária como um dado,
certa altura. Entretanto, a coerência interna de a realidade é muito mais flexível. A permeabilidade
algumas dessas Ciências Humanas é fraca. Muitas das fronteiras seria mesmo, segundo ele, inerente à
são divididas no interior por oposições dogmáticas própria noção de disciplina: “Permeation is a part
ou pela diversidade dos objetos de estudo, de forma of their character” (Klein, 1996, p. 38).
que alguns pesquisadores e professores institu- Confrontando-se à inércia e às reações de
cionalmente pertencentes à mesma especialidade proteção identitárias que amiúde caracterizam as
científica quase não estabelecem trocas entre si, disciplinas quando são institucionalizadas dentro
enquanto entretêm relações regulares com colegas de uma estrutura voltada ao ensino e à pesquisa, o
que, apesar de pertencerem a outras disciplinas, movimento do pensamento científico, estimulado
compartilham suas ideias ou seus mesmos ques- tanto por sua própria dinâmica interna quanto pe-
tionamentos. Um antropólogo, um geógrafo e um las questões que lhe vêm “de fora”, resulta em um
economista da saúde não terão grandes dificuldades potente efeito de transgressão e deslocamento de
de se comunicarem entre si, mas frequentemente fronteiras. Esse se traduz por uma recomposição
desconhecem os trabalhos de colegas de disciplina frequente da divisão das disciplinas, marcada por
cujas temáticas diferem das suas. Algumas disci- fenômenos de fragmentação e especialização, mas
plinas, no entanto, têm uma estrutura multipolar também por reagrupamentos e hibridizações que se
e se dividem em identidades opostas: é o caso da dão em torno de áreas de estudo situadas na interface
geografia, que é desmembrada em geografia física, de disciplinas existentes: “In order to study new
geomorfologia e geografia humana. Segundo as subjets that do not fit into the domains of established
tradições próprias de cada sistema universitário subjects, or even take on the classical characteristics
nacional, a polarização da disciplina pode ser mais of a discipline, new scholarly domains have been
ou menos marcada por uma especialização ou outra. created [...] and boundaries redrawn...” (Klein,
Se as fronteiras nas ciências humanas são po- 1996, p. 42).
rosas, as pontes, as convergências e as hibridizações Eis um movimento complexo e, às vezes, con-
são talvez ainda mais frequentes nas ciências exatas. traditório, que está em processo. De um lado, uma
Por exemplo, como lembra J. Klein, retomando con- fragmentação e uma especialização crescentes8 e, de
siderações feitas desde 1986 pelo National Research outro, reagrupamentos que geram novas disciplinas
Council, nos EUA, as interfaces entre a física e a híbridas como a astrofísica, a biologia molecular,
química são tão numerosas que a fronteira entre as nanotecnologias, as ciências cognitivas, os estu-
ambas tende a se esfumaçar7. Como esse mesmo dos urbanos e a saúde pública. As duas tendências

7
Mesmo se estamos, sem dúvida, bastante longe de uma total convergência, como analisam Vink & Robles Belmont (2012).
8
Como exemplo, o Conselho Nacional das Universidades, na França, que avalia e cria as carreiras dos professores universitários, divide as
disciplinas médicas em 51 subseções autônomas, em função das patologias e dos órgãos tratados, dos meios terapêuticos utilizados, dos tipos
de abordagem (clínica, epidemiologia, saúde pública etc.).

28 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


ocorrem simultaneamente – a fragmentação, sendo the boundaries between chemistry, physics, and to
ela mesma resultado de dissidências que tornam some extent biology have blurred in macromolecular
research, academic reward systems continue to favor
possível novas combinações de competências de institutionalized categories” (Klein, 1996, p. 6-7).
disciplinas distintas, mas que se aproximam por
interesses científicos comuns. O panorama das
disciplinas, do modo que são “rotuladas” no mundo No final das contas, a história das disciplinas
acadêmico, está longe de se constituir como uma é perpassada por esse confronto dialético entre
realidade congelada. Ao contrário, ele passa por mudança e reprodução. Ao assumirmos uma pers-
uma constante recomposição sob efeito de múltiplos pectiva histórica, as fronteiras entre os campos cien-
fatores: o surgimento de novos espaços a explorar tíficos parecem porosas e escorregadias. Longe de
decorrentes dos progressos do conhecimento e da serem cristalizadas e fechadas sobre elas mesmas,
evolução do aparato de pesquisa; um desenvolvi- as disciplinas estão em constante recomposição.
mento econômico e tecnológico movido por um Não cessam de compartilhar objetos de estudo,
turbilhão sempre acelerado da busca por inovações; noções, métodos. Temáticas transversais, como
uma socialização crescente da ciência, que é de mais a pobreza, a saúde, o meio ambiente e o gênero
em mais diretamente exposta às questões propostas criam pontes entre elas. Conceitos caminham entre
pela sociedade, em suas instâncias públicas e civis. as especialidades próximas ou distantes (Stengers,
Essa dinâmica, entretanto, é acompanhada por 1987; Christin, 2010), muitas vezes ao preço de
um paradoxo maior. Os novos campos de pesquisa audácias intelectuais que provocam controvérsias
e de formação, e as novas comunidades de pesqui- (Bouveresse, 1999; Sokal & Bricmont, 1997). Po-
sadores que se formaram em torno deles, estabili- rém, a despeito dessa dinâmica de médio em longo
zam-se sob a forma de disciplinas reconhecidas que prazo, aqueles que, em determinado momento,
contribuem para uma recomposição geográfica do querem inovar em relação à ordem institucional es-
saber. No entanto, ao mesmo tempo, essas iniciati- tabelecida, devem frequentemente lutar para vencer
vas inovadoras também se tornam reféns da lógica resistências suscitadas tanto pela ameaça que sua
dominante das instituições acadêmicas, pois são iniciativa representa para os poderes e as hierarquias
incitadas a afirmar sua identidade em um contexto vigentes quanto pela perspectiva dos rearranjos de
marcado pela concorrência em busca da notoriedade estruturas e procedimentos que as mudanças pre-
e do acesso a recursos. Engajam-se, pois, por sua conizadas por eles desencadearão. É, certamente,
vez, em uma estratégia de defesa dos territórios em nas instituições acadêmicas que essa contradição se
que elas acabaram de ser reconhecidas. manifesta com mais força. Isso porque é nelas que
a noção de disciplina em seu sentido etimológico9 e
histórico conserva todo seu sentido, permanecendo
“Yet even as the cultures of physicists and chemists
are merging at major synchrotron facilities, even as

9
Ou seja, uma comunidade reunida pelo compartilhamento e aprendizagem de um patrimônio singular de conhecimentos. Como lembra Repko
(2008, p. 32), o próprio termo “universidade” designava inicialmente uma corporação, uma comunidade que compartilhava as mesmas atividades
ou as mesmas características. Em seguida, passou a designar estudantes que seguem uma mesmo tipo de ensino.

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a referência primeira sobre a qual se baseia sua sua reflexão elementos vindos de fora e colaborar
organização e seu funcionamento. pontualmente com outros olhares em torno de uma
Onde situar a questão da interdisciplinari- temática comum faz parte de toda prática criativa
dade em relação ao movimento histórico ao mesmo da ciência (Hacking, 2010). Qual é a serventia de
tempo intenso e contraditório que acabamos de criar uma categoria particular para designar essa
resumir? Podemos, como parece fazer Klein (1996), forma livre de conduzir seu pensamento? Para que
ver nessas trocas, recomposições, fragmentações e serve aprisioná-lo em uma categoria institucional
hibridizações variadas manifestações de uma di- que corre mais o risco de reprimi-lo do que de es-
nâmica interdisciplinar que não se explicita como timulá-lo?
tal (concealed interdisciplinarity)? Ou devemos
ver nessa interpretação uma extensão abusiva da “Nunca pensei nesses termos e nunca ouvi qualquer
noção de interdisciplinaridade, uma fonte de equí- colega meu utilizar a palavra “interdisciplinaridade”.
vocos que faça perder de vista aquilo que a ideia É claro que essa palavra estava lá, no nome da institui-
ção que nos acolhia, mas como a chamávamos apenas
de interdisciplinaridade possa ter de original e de ZIF10, nós nunca a ouvíamos. Nós nos considerávamos
específico? Por querer ampliar o conceito, será indivíduos oriundos de disciplinas diferentes com
que não corremos o risco de perder seu rigor e não certos interesses comuns” (Hacking, 2010, p. 81).
mais dispor de um aparato conceitual pertinente
para elaborar uma estratégia capaz de lhe atribuir Às dúvidas que o pensamento interdisciplinar
a forma de uma realidade institucional concreta pode suscitar no seio do mundo acadêmico se acres-
e perene? Se as disciplinas já se subordinam a centa o fato de que, nas pesquisas científicas com
uma dinâmica de mudança permanente, ainda que perspectiva aplicada – como a inovação tecnológica,
submetida a uma tensão constante entre forças de a cirurgia de ponta ou o urbanismo, por exemplo – a
conservação e renovação, o que traz de novo o colaboração entre especialidades tecnocientíficas
projeto interdisciplinar? Se integramos à sua de- é natural, dispensando a necessidade de criar uma
finição esses deslocamentos, essas hibridizações categoria metodológica ou teorizar a esse respeito.
inerentes à própria trajetória das disciplinas e àquilo Assim, somos levados a nos perguntar se a dificulda-
que constitui a história de sua construção, será que de que o pensamento interdisciplinar há tanto tempo
não vamos criar uma confusão que pode entravar e enfrenta para se impor não se deve, em parte, ao fato
bloquear essas forças de renovação que se exercem de não se distinguir suficientemente de um modo de
naturalmente? Com muita frequência, a reação que produção de conhecimento baseado em disciplinas
suscita o projeto interdisciplinar entre professores e que, ao mesmo tempo, provaram seu rigor e efici-
pesquisadores que permanecem fortemente ligados ência e também sua flexibilidade face aos desafios
às sua identidade disciplinar é uma denúncia de sua instaurados pelo progresso do conhecimento e pela
inutilidade. Trocar pontos de vista diferentes, enri- crescente socialização da ciência. É essa discussão
quecer-se com as ideias que circulam, introduzir em que será objeto de minha reflexão a partir de então.
10
Zentrum für Interdisciplinäre Forschung – Centro de Pesquisa Interdisciplinar (Bielefeld, Allemagne).

30 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


Não tenho a pretensão de esgotá-la, mas sim de Em busca da unidade perdida
tentar colocar algumas linhas de pensamento que
podem ajudar a avançar nesse terreno. Como acabamos de ver, o que define talvez de
forma mais geral o pensamento científico moderno,
As múltiplas facetas do pensamento como ele gradativamente se construiu no cerne
interdisciplinar do mundo cultural europeu no prolongamento da
revolução paradigmática do Renascimento, é o
O pensamento interdisciplinar que, durante abandono de uma hierarquia entre as vias pelas
grande parte do século XX, caminhou paralela- quais o espírito humano apreende o mundo; o fim
mente a um movimento de intensa especialização da busca por uma convergência de olhares e de
da ciência e da técnica, ramificou-se em percursos questionamentos voltados para a identificação de
diferentes, inspirados por motivações díspares. Ge- causas e princípios primeiros. Cada nível de ob-
rou projetos que, mesmo quando reivindicam essa servação do real, cada ângulo a partir do qual ele
mesma perspectiva interdisciplinar, têm frequente- é explorado, cada perspectiva metodológica, cada
mente pouca coisa em comum. Essa diversidade não corpus de conhecimento passa a ser reconhecido
é em si criticável, mas, como disse na introdução, com uma pertinência e uma legitimidade própria.
é preciso que ela seja explicitada e assumida. Caso Se aproximações e conexões aparecem entre vários
contrário, instaura-se uma confusão de ideias que achados, sua utilidade se impõe a partir da obser-
impede identificar claramente a contribuição da vação dos fatos, e não a partir de um esquema de
abordagem interdisciplinar na prática científica e articulação estabelecido a priori.
que prejudica a elaboração de estratégias capazes de Desde o século XIX, vozes se levantavam
lhe dar um lugar em um universo institucional am- para condenar essa fragmentação do saber. É o que
plamente dominado pela separação em disciplinas. ocorreu na Alemanha com August Boeckh e Du
Certamente, se analisarmos minuciosamente, Bois- Reymond (citados por Weingart, 2010). Na
as nuances entre as iniciativas que se dizem inter- França, Auguste Comte, na perspectiva de sua “filo-
disciplinares são inúmeras. O que as separa nem sofia positiva”, também aspirava reunir as ciências
sempre é salientado de forma clara, até porque com em um tronco comum:
frequência elas mesmas mantêm certa confusão
quanto a seus fundamentos teóricos e seus objetivos. “Torna-se possível e mesmo necessário esquematizar
diversos conhecimentos adquiridos, que atingiram
Para começar a colocar um pouco de ordem nesse
um estado fixo e homogêneo, para coordená-los a
emaranhado, acredito que é possível tentar agru- fim de os apresentar como vários ramos de um único
pá-las em três grandes categorias, sendo que cada tronco, ao invés de continuar a concebê-los apenas
uma almeja estabelecer relações entre as disciplinas como vários corpos isolados” (citado por Kremer-
a partir de um ângulo de visão diferente, em busca -Marietti, 2003).
de objetivos distintos.

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Essa aspiração à unidade do conhecimento não exigência de abertura se afastou das perspectivas
parou de acompanhar, em paralelo, o movimento de geopolíticas que podiam tê-la inspirado por um
fragmentação e de recomposição que caracteriza, momento para se tornar, em vários países, uma rei-
desde o início, a evolução da ciência e das técnicas. vindicação poderosa da juventude. Não eram apenas
Ela está na raiz de uma corrente de pensamento que as barreiras impostas por regras sociais e morais
assumiu um lugar de bastante destaque, ao longo do rígidas que era necessário derrubar, mas também
século XX, na filosofia das ciências e na pedagogia, as que enclausuravam o pensamento em categorias
sob a influência , entre outros, de Otto Neurath e dissociadas umas das outras. Na França, a reforma
de Rudolph Carnap que, em 1938, organizaram a radical do ensino superior ocorrida imediatamente
publicação de uma Enciclopédia da Ciência Unifi- após as manifestações dos estudantes de maio de
cada (Neurath et al., 1938). 1968 (lei Faure para a reforma das universidades)
O apelo de um retorno à coerência perdida do foi amplamente inspirada no objetivo de aproximar
saber está no âmago de tal abordagem pedagógica. disciplinas que, no antigo sistema das faculdades
Seu propósito é restituir o espírito de uma formação (de letras, de ciências, de direito, de economia e de
humanista que forneça aos indivíduos conhecimen- medicina), permaneciam estrangeiras em relação
tos e ferramentas intelectuais de que eles precisam às demais. Assim, foram criadas as Universida-
para se comportarem como cidadãos responsáveis. des multidisciplinares, reunindo em uma mesma
Era esse o fio condutor do General Education Move- estrutura administrativa especialidades científicas
ment, que surgiu nos Estados Unidos no entre-guer- que, até então, não tinham tido oportunidade de se
ras. Após o segundo conflito mundial, no contexto encontrarem e, muito mesmo, de colaborarem entre
da Guerra Fria, esse enfoque pedagógico se tornou si: aqui, a medicina e a sociologia; acolá, a economia
uma arma que alguns queriam colocar a serviço e a física etc. Não comentaremos o sucesso modesto
da defesa da democracia e da resistência ao totali- que essas aproximações administrativas tiveram em
tarismo. Essa visada é explicitada no título de um termos de colaborações efetivas. Mais significativo
relatório publicado em 1945: “General Education para nós é o fato de a ideia já estar presente. Ampliar
in a free society” (Harvard Education Committee, as formações e lutar contra uma especialização
1945, citado por Repko, 2008, p. 5). excessiva que não prepara bem o estudante para
Essa abordagem de ensino estabelecia vín- lidar com uma multiplicidade de questões às quais
culos com o pensamento interdisciplinar, sem ele deverá responder em sua vida profissional e de
necessariamente reivindicar essa relação. Ao me- cidadão se tornaram objetivos da universidade. A
nos o prefigurava na medida em que pregava uma realização desse projeto intelectual nem sempre
ultrapassagem das especializações e uma abertura esteve à altura das ambições anunciadas, mas a ideia
do ensino acima das barreiras que separam as dis- ganhou legitimidade por ter inspirado o próprio
ciplinas. Nos anos 1960 e 1970, com o profundo projeto institucional.
questionamento dos moldes de organização e de Essa abordagem está longe de ser exclusivi-
pensamento que constituíam a base imaterial das dade da França. Ao contrário, ela passa a inspirar
sociedades filiadas à herança cultural europeia, essa numerosas universidades no mundo. É o caso, por

32 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


exemplo, nos Estados Unidos, do programa General impõem daqui em diante, mais do que nunca, para
Education, assim definido atualmente pela Univer- descrever o desafio com o qual nos confrontamos
sidade de Harvard: na tentativa de conhecer e compreender o mundo.
Formações altamente especializadas, apesar
“Harvard has long required that students take a set of de apresentarem inigualável profundidade de com-
courses outside their concentration in order to insure petências e conhecimentos, não conseguem dar o
that undergraduate education encompasses a broad campo de visão amplo indispensável para apreender
range of topics and approaches. The new Program
in General Education seeks to connect in an explicit a multiplicidade dos determinantes que intervêm na
way what students learn in Harvard classrooms to life gênese de muitos problemas (ambientais, sanitários,
outside the ivied walls and beyond the college years. urbanos, econômicos, dentre tantos outros) os quais
[…] These courses aim not to draw students into a temos que resolver atualmente; tampouco para
discipline, but to bring the disciplines into students’
identificar o modo como esses fatores interagem a
lives.”11
fim de achar soluções.
Esse caráter compósito não diz respeito
Nas últimas décadas do século XX, assistimos somente a problemas de ordem pragmática. São
a um profundo abalo nos aparatos conceituais a novas categorias de pensamento que as reviravol-
partir dos quais as sociedades humanas refletem tas conceituais trazidas pelos avanços da ciência
sobre si e analisam o mundo em que existem. Um e das técnicas tornam necessárias. No campo da
movimento de globalização econômica e social de biologia e das neurociências, o ser humano perde
uma dimensão sem precedentes estabelece entre elas progressivamente o estatuto de extraterritorialidade
estreitas interdependências em escala mundial. Os que, na cultura europeia, a religião cristã e, depois,
avanços da ciência exigem a reconsideração pro- o pensamento cartesiano lhe tinham outorgado. Ele
funda da condição humana e de suas relações com passa a se inserir na filiação comum compartilhada
a matéria. O surgimento da questão ambiental como por todos os seres vivos do planeta. Seu corpo se
tema maior para o futuro da humanidade obriga a torna manipulável como qualquer outra matéria
revisar a clivagem homem/natureza sobre a qual viva ou inerte. Seu cérebro é explorado pela ciência
se construiu a civilização moderna europeia e o para identificar os mecanismos biofísicos dos quais
pensamento científico que nela achou suas primeiras emana a consciência – mecanismos complexos em
raízes (Raynaut, 2015b). É uma realidade complexa sua arquitetura, mas cujos componentes, no final
e híbrida que precisamos procurar compreender a das contas, pertencem a um mesmo fundo biológico,
fim de agir sobre ela da melhor forma possível. comum a todos os seres vivos. A consciência não
Uma realidade que é fruto da imbricação de fato- pode mais ser invocada como uma faculdade sui
res de natureza diversa: culturais, sócio-políticos, generis, cuja posse fundaria o estatuto ontologica-
econômicos, técnicos e biofísicos. Hibridização mente diferente do ser humano.
e complexidade se tornam palavras-chave que se

11
Fonte: www.generaleducation.fas.harvard.edu (2015).

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Se o ser humano se junta assim à natureza, ela campo de trabalho que se abre para o pensamento.
sofre, por sua vez, um movimento intenso de antro- Não estão em questão aqui meros jogos de ideias,
pização. O planeta inteiro, do nível mais local ao mas questões candentes às quais as sociedades con-
mais global, passa a ser profundamente remodelado temporâneas devem responder para poder decidir e
pela intervenção humana. Ele se torna progressiva- agir. É o que evidencia o lugar ocupado pelos de-
mente um artefato (as mudanças globais do clima bates éticos, na sociedade civil, nas empresas e até
sendo o exemplo mais evidente dessa evolução). nos parlamentos; os quais, como na França, podem
Entramos na era da Antropocena. Simultaneamente, desembocar em disposições legais destinadas a en-
as escalas de tempo e espaço se misturam. De modo quadrar com princípios jurídicos as respostas dadas
cada vez mais evidente, o que acontece aqui e agora a dilemas jamais encontrados na história humana.
se impõe como algo que pode ter consequências Conduzir essa reflexão, empreender essas
decisivas sobre o que vai acontecer em outros discussões e colocar esses princípios em prática exi-
lugares e um futuro talvez longínquo. As decisões gem abertura de espírito, visão ampla, capacidade
políticas, econômicas e técnicas devem então levar de lidar com a complexidade. Essa exigência não
em conta suas possíveis repercussões nas gerações se limita a uma pequena elite de pensadores e de
futuras. Devem considerar também as estreitas in- responsáveis que seriam habilitados a destrinchar
terdependências culturais, políticas e econômicas esses temas. Nas sociedades contemporâneas que
tecidas pela globalização, que se coordenam com se dizem democráticas, não é mais suficiente que as
a aceleração e intensificação da comunicação, de regras sejam impostas por uma autoridade moral su-
modo que, em um curto intervalo de tempo, um perior para que elas sejam aplicadas. Elas precisam
acontecimento local pode repercutir até nos confins também serem reconhecidas como legítimas pelos
mais recônditos do planeta. indivíduos que terão de aplicá-las. É, portanto, o
As categorias do pensamento antigo que fun- próprio cidadão que deve acompanhar a necessária
davam a cultura ocidental – e, em seu rastro, o pen- reconstrução dos moldes de pensamento e ser capaz
samento científico – não conseguem mais apreender de ultrapassar um ponto de vista estritamente pes-
essa nova realidade. Os limites aparentemente claros soal para pensar nas múltiplas implicações de suas
e estáveis nos quais se fundava outrora o cenário escolhas e atos. Em alguns casos, tal capacidade é
mental em função do qual a ação individual ou co- adquirida por meio de uma reflexão pessoal nutri-
letiva podia traçar seu caminho, tendem a se dissol- da pela experiência. Na maioria, porém, ela exige
ver. Humano/não-humano; vida/morte; identidades a aprendizagem de ferramentas intelectuais que
sexuais; modalidades da filiação biológica – para permitem pensar a complexidade da realidade, a
citar apenas alguns exemplos – não se impõem mais diversidade de ângulos sob os quais é possível apre-
como dados intangíveis, constitutivos das próprias endê-la. As formações tradicionais – tanto no ensino
condições nas quais se constrói a existência humana, básico quanto no superior – não foram concebidas
mas se tornam objeto de debates, sujeitos a reinter- nesse espírito – ao menos, não de forma suficiente.
pretações, a redefinições em resposta às aspirações É por isso que um dos maiores eixos de reflexão que
individuais e aos propósitos coletivos. É um imenso inspiram a busca pela renovação das abordagens

34 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


pedagógicas põe em destaque a necessidade de do ensino superior (CAPES). Também, na Ásia,
adotar um enfoque que ultrapasse a fragmentação várias universidades evidenciaram sua preocupação
em domínios de conhecimento, para estabelecer em promover a interdisciplinaridade. É o caso, por
pontes entre as disciplinas e formar os alunos para exemplo, em Singapura, da criação do National
operar sínteses do que elas nos dizem da realidade. Environment Research Institute.
Essa chamada à interdisciplinaridade é um desafio O objetivo dessas formações, geralmente
identificado pela OCDE12 desde 1972, no ensino centradas em uma problemática híbrida e complexa
superior e na pesquisa (Apostel, 1972). Porém, ele como o desenvolvimento urbano, o meio ambiente,
também está em questão no ensino escolar básico a saúde ou o gênero, é permitir que os estudantes
(Lenoir & Sauve, 1998), cujo objetivo é formar, tenham uma visão transversal e sintética do tema
desde a mais tenra idade, cidadãos responsáveis. abordado. O que implica, em primeiro lugar, intro-
A interdisciplinaridade se tornou, portanto, duzi-los a conhecimentos científicos em diferentes
uma temática central da reflexão sobre a renovação especialidades disciplinares relativas à temática
das abordagens pedagógicas em todos os níveis estudada. Não está em questão formar especialistas
de ensino. Nos anos de 1970, como mencionamos em cada área, mas sim tornar os alunos capazes de
anteriormente, a ideia inspirou reformas universi- identificar os fatores diversificados e as dinâmicas
tárias na França e em outros países. Repercutiu, múltiplas operando nas situações concretas que
de forma particular no projeto, a concepção de analisam; de estabelecer relações entre fenômenos,
diversificar as formações oferecidas em currículos tendências e amarras referentes a campos distintos da
antes altamente especializados: os estudantes de realidade, às vezes muito afastados uns dos outros. A
medicina, por exemplo, passando a ter uma forma- segunda competência essencial que deve ser adquiri-
ção complementar em sociologia, antropologia ou da é justamente a capacidade intelectual de integrar
economia. A partir dos anos de 1990, a novidade e sintetizar informações múltiplas e heterogêneas.
foi a multiplicação de formações organizadas es- Trata-se de um procedimento pedagógico
pecificamente em torno da visada interdisciplinar. específico, necessariamente inovador por se afastar
Esse movimento foi especialmente ativo nos países dos currículos acadêmicos tradicionais, cujo objeti-
cuja estrutura universitária é mais flexível do que vo final é conduzir o estudante, degrau por degrau,
na Europa, em que o peso da história cria amiúde a um nível de competência máxima em um domínio
uma rigidez ainda muito difícil de superar. É o que de conhecimento específico. Exige também muito
ocorreu nos Estados Unidos, em que os diplomas rigor, pois o esforço de síntese realizado não deve
universitários interdisciplinares se multiplicaram conduzir à formulação de simples opiniões, mas a
nas últimas décadas. O Brasil foi pioneiro nesse conclusões apoiadas em um raciocínio solidamente
movimento, a ponto de o desenvolvimento da construído. Allen Repko descreve e propõe de forma
abordagem disciplinar se tornar um dos objetivos muito detalhada uma metodologia de formação que
centrais da instituição de coordenação e avaliação responde a esses objetivos (Repko, 2008). Não a
12
Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 47, Edição especial: 25 anos do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento, p. 13-48, outubro 2018. 35
retomarei detidamente aqui. Ressalto apenas que ter instrumental que a interdisciplinaridade assume
ela ilustra perfeitamente uma abordagem de in- quando se aplica à resolução de problemas. “Solving
terdisciplinaridade, cuja finalidade é formar o que social and technological problems and borrowing
chamamos, em outro momento, de “espíritos es- tools and methods exemplify instrumentalism”,
clarecidos” (Raynaut & Zanoni, 2011), que tenham observa Klein (1996, p. 10-11), acrescentando, na
certo recuo em relação aos saberes compartimenta- sequência: “Instrumentalism, though, minimizes
dos produzidos pelas disciplinas e que sejam, por critical reflection. It retards or altogether ignores
isso, capazes de se confrontarem aos novos desafios analysis of ends and means, even when impediments
intelectuais aos quais nossas sociedades contem- to efficient problem solving are acknowledged”.
porâneas devem fazer face. A interdisciplinaridade A noção de instrumentalização é usada aqui
é considerada aqui fundamentalmente como um de forma excessivamente geral e vaga, pois pode
modo de pensamento que privilegia a pesquisa da ser aplicada a situações muito diferentes. Com
transversalidade e que se esforça para valorizar o efeito, os problemas que procuramos resolver não
patrimônio de conhecimento que as disciplinas co- são exclusivamente de natureza empírica, poden-
locam à sua disposição. Essa forma de pensamento do também ser de ordem conceitual e filosófica
pode se exercer tanto de modo individual quanto – mesmo quando se espera que a resposta trazida
de modo coletivo, e pode se dedicar à resolução de tenha grandes consequências na prática. É o caso,
problemas concretos, bem como investir em uma por exemplo, da ética médica, que deve trabalhar
reflexão teórica destinada a esclarecer questões à luz dos avanços mais recentes da genética, da
conceituais ou éticas à luz dos avanços recentes do bioquímica, da medicina e da cirurgia, mas também
conhecimento científico. Há aqui uma concepção levar em conta as evoluções sociais e criar novos
legítima de interdisciplinaridade, a qual se insere em conceitos e novos princípios para pensar sobre no-
uma longa tradição que visa à restauração da unida- ções fundamentais como as de vida (em todas suas
de do conhecimento, à exploração do pensamento formas), de reprodução sexual, de morte. Trabalho
complexo e à formação de cidadãos responsáveis. de crítica e de inovação conceitual que não deixa de
Sua legitimidade será cada vez mais forte à medida se inserir em uma perspectiva predominantemente
que ela saberá se distinguir de outras abordagens instrumental, pois tornará possível definir de mo-
que, embora almejem também ultrapassar as fron- do mais concreto as práticas e os procedimentos
teiras disciplinares, fazem-no com outros objetivos, terapêuticos relacionados a enxertos, à medicina
segundo outra perspectiva e outros métodos. reprodutiva e ao acompanhamento do fim da vida. A
dimensão conceitual e a instrumental não se opõem
Rumo a uma interdisciplinaridade nesse caso, mas são intimamente ligadas e o modo
operacional de pensamento transversal que evocamos anterior-
mente pode também desembocar em uma práxis.
Inversamente, trabalhar de forma interdisci-
Às vezes escutamos falar, de maneira crítica ou
plinar sobre questões de pesquisa aplicada pode
ao menos com certa condescendência, sobre o cará-
levar as disciplinas envolvidas a renovar sua pró-

36 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


pria abordagem teórica. Especialmente, esse foi o científicas e técnicas, mas amiúde também econô-
caso das pesquisas conduzidas em conjunto pela micas e sociais. Unir competências diversas era,
medicina, pela epidemiologia e pelas ciências so- por exemplo, o objetivo da RAND Corporation,
ciais a propósito da Aids. Esses trabalhos levaram que citamos anteriormente. Não é, aliás, apenas
disciplinas como a antropologia e a sociologia a no domínio técnico que essas competências são
aprofundar questionamentos relacionados à sexu- procuradas. Empreender um projeto destinado a
alidade, às relações homem/mulher e ao papel da revitalizar um espaço urbano, a combater a pobreza,
sociedade civil na formulação das políticas públicas a violência ou a elaborar uma estratégia de proteção
– temáticas que, antes disso, elas haviam apenas ambiental também exige a reunião de profissionais
levantado (Raynaut, 1997). A necessidade de se de múltiplos horizontes disciplinares para fazê-los
confrontar com um problema de saúde pública lhes colaborar em uma perspectiva aplicada.
trouxe avanços teóricos consideráveis. Mais uma Estamos aqui diante de uma forma de interdis-
vez, visada prática e trabalho teórico podem ser ciplinaridade que não chamaremos de instrumental,
complementares. para evitar a confusão que esse termo pode trazer,
Também é fato que certas cooperações entre mas sim de operacional. A distribuição de papéis
especialidades científicas e técnicas têm como meta entre os diferentes participantes se organiza em
a realização de uma tarefa específica, a obtenção torno de um objetivo comum, de uma meta a se
de um resultado identificado previamente. Isso atingir. Tanto esses papéis quanto o modo como
ocorre frequentemente na indústria, na engenharia eles se articulam são mais ou menos precisados
civil, no planejamento territorial e na medicina, de forma clara com antecedência, dependendo se
entre muitos outros exemplos. Quando é assim, o tratam de em uma fase de ajustes ou, ao contrá-
objetivo é fixado desde o início. As questões que rio, se são seguidos procedimentos já conhecidos
permanecem abertas são as da forma de atingi-lo, graças à experiência adquirida. Em alguns casos,
das múltiplas competências que devem ser reunidas estabelece-se entre as especialidades uma relação
para tal e das condições nas quais essa colaboração de trabalho em que os envolvidos realizam tarefas
será organizada. Esse modo de organização de definidas ou respondem a perguntas precisas em
conhecimentos e habilidades em uma prática cole- resposta às demandas formuladas por uma disci-
tiva foi praticado ao longo dos séculos nas grandes plina que conduz o processo como um todo. É o
obras arquitetônicas ou nas realizações técnicas que que observamos, por exemplo, na área médica,
exigem a intervenção conjunta de profissionais de como no caso do tratamento cirúrgico das patolo-
diversas áreas de especialização. Foi desse modo gias cardíacas, em que se coordenam, visando ao
que, no passado, foram construídas as catedrais e processo de cura, as competências do radiologista,
também que, recentemente, aconteceu a Revolu- do imunologista, do anestesista, do farmacêutico e
ção Industrial. Hoje em dia, as grandes inovações até mesmo do especialista em materiais compósitos
contemporâneas, seja no espaço, na aeronáutica, na ou da engenharia genética. Ainda na área da saúde,
bioquímica ou na área médica, são, em mais alto em oncologia, por exemplo, a rede de colaboração
nível, fruto de uma coordenação de competências pode ultrapassar as disciplinas técnicas e médicas
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para integrar competências de ordem psicológica ou passou a ser um objetivo explicitado, bem como
social, cujas intervenções concomitantes ao próprio em instituições norte-americanas prestigiosas, como
tratamento podem ser determinantes para o sucesso o Massachusettes Institute of Technology (MIT).
final do percurso terapêutico. A um nível mais amplo, a aplicação do enfoque
Poderíamos citar muitos exemplos dessa interdisciplinar nas formações profissionais tem-se
interdisciplinaridade operacional, que também tornado hoje uma questão pedagógica amplamente
pode ser encontrada no campo do meio ambiente, debatida (Lenoir, 2000; Lenoir et al., 2006; Delhaye,
do planejamento territorial e do urbanismo, entre 2014). Essa discussão envolve, em primeiro lugar,
muitos outros. Sua aplicação se dá frequentemente profissionais como os professores, os profissionais
de forma pragmática, por meio de colaborações que de saúde e os de assistência ou trabalhos sociais. Po-
aos poucos se estabeleceram em resposta às questões demos, porém, encontrar essa preocupação em cam-
que surgiam e às dificuldades encontradas. Durante pos mais técnicos, como as ciências biológicas ou
muito tempo, essas práticas não sentiram necessida- as disciplinas do meio ambiente. Em 2013, o Brasil
de de se referirem à noção de interdisciplinaridade, tinha 174 mestrados profissionais interdisciplinares
a qual advém de uma esfera abstrata que lhes era reconhecidos pela CAPES. A questão da abordagem
estrangeira. Progressivamente, porém, a necessida- interdisciplinar na formação dos engenheiros ocupa
de de conciliar as formações especializadas com as um lugar central na reflexão pedagógica conduzida
novas condições para o exercício das profissões se pela universidade brasileira (Bevilacqua, 2014;
impôs. Dali em diante, além de competências mais Weber et al., 2014).
consolidadas em um campo científico e técnico Há realmente, nesse caso, busca pela interdis-
específico, os profissionais devem ser capazes de ciplinaridade no sentido geral que podemos atribuir
trabalhar em equipe, com parceiros de outras áreas à noção, ou seja, trocas e cruzamento entre conheci-
de conhecimento, dotados de competências e habi- mentos e competências especializados. Porém, aqui,
lidades distintas das suas. Isso significa ter a capaci- ao contrário do tipo de abordagem a que aludimos
dade de compreender sua linguagem e seus métodos previamente, essa visada não é fundamentalmente
e de dialogar com eles para encontrar campos de conceitual. Sem dúvida, a reflexão teórica também
convergência, conseguindo assim articular suas deve se fazer presente, pois toda prática põe em
intervenções. Daí surgiu a necessidade de sistema- jogo conceitos, mas o objetivo não é criar novos
tizar a aquisição dessas capacidades por intermédio instrumentos de pensamento e sim formar profis-
de uma pedagogia apropriada. Formar profissionais sionais que possam colaborar melhor na busca de
que possam pôr em prática suas competências num um objetivo operacional comum.
âmbito interdisciplinar tornou-se, então, um objetivo Embora a questão da relatividade dos saberes
pedagógico nos cursos de ensino profissionalizante. continue sendo central nesse tipo de formação, co-
É o que ocorreu nos grandes centros de formação mo em qualquer outro projeto interdisciplinar, os
em engenharia, que já tinham há muito uma tradição objetivos pedagógicos, o conteúdo das formações e
de diversificação de ensino. Nas “Grandes Écoles” a natureza das aprendizagens são necessariamente
de engenharia francesas, a interdisciplinaridade muito diferentes daqueles dos projetos cuja finali-

38 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


dade é contribuir para a emergência de uma nova orgânica. Esses sistemas complexos, que englobam
forma de pensar em um mundo contemporâneo em campos parciais da realidade sobre os quais cada
permanente mudança. No entanto, essa interdiscipli- disciplina lança seu próprio olhar, constituem um
naridade que chamamos de operacional não deve, novo território científico que deve ser descoberto e
por conta disso, ser julgada com condescendência, explorado. Trata-se aqui de ir além de um percurso
pois remete a questões de fundamental importância intelectual que se limita a aproximar, cruzar e sin-
para o nosso futuro, visto que o tratamento dos pro- tetizar a posteriori os conhecimentos já produzidos
blemas complexos que as sociedades contemporâ- por diferentes ciências. O alvo é reunir essas ciên-
neas devem encarar exige uma renovação profunda cias em dispositivos de pesquisa combinados que se
das práticas profissionais, a qual somente poderá ser voltem para temáticas e objetos científicos situados
efetiva se levar em conta uma reflexão crítica sobre na interface entre os espaços de observação, análise
princípios e categorias de pensamento que inspiram e teorização, almejados até então separadamente.
a ação. Para citar apenas um exemplo, a formação Essa abordagem não pode mais se confundir
atual dos profissionais de saúde envolve obrigato- com os movimentos espontâneos de aproximação e
riamente questões éticas colocadas atualmente pela de troca que, como vimos na primeira parte deste ar-
evolução radical de práticas e instrumentos terapêu- tigo, caracterizam a própria vida das disciplinas. Não
ticos. Operacionalidade e trabalho conceitual são, é preciso retomar aqui essa flexibilidade e essa dinâ-
assim, estreitamente complementares. mica. No entanto, parece-me necessário afirmar que
teríamos mais clareza, nesse debate amiúde confuso
Inovar na produção de conhecimentos sobre sobre a interdisciplinaridade, se distinguíssemos
uma realidade híbrida e complexa essa porosidade das fronteiras das disciplinas, esses
movimentos de “crossing boundaries” ou de “bridge
Não se pode negar que seja essencial encontrar building” – como é chamado por Klein (1996) – de
meios para tirar partido da diversidade de saberes e uma abordagem de pesquisa baseada justamente
habilidades de que dispomos, seja para renovar os na diversidade de olhares e de métodos científicos
instrumentos conceituais pelos quais pensamos o para confrontar a heterogeneidade e a complexi-
mundo, seja para agir sobre ele de forma mais eficaz dade do real, a fim de compreender os problemas
e mais sustentável tecnicamente, economicamente que temos de resolver atualmente. Essa afirmação
ou socialmente. Todavia, o desafio da interdiscipli- parece levar a um paradoxo: a interdisciplinaridade,
naridade não se limita à simples formalização, sob assim concebida, não significa o questionamento das
novas configurações, daquilo que já conhecemos identidades disciplinares. Ela implica, ao contrário,
e sabemos fazer. Ele alcança sua plena dimensão um reconhecimento da especificidade dessas iden-
quando nos preocupamos em produzir novos tidades – considerando-as não congeladas em uma
conhecimentos sobre uma dada realidade, já que forma definitiva, mas dinâmicas. Assim, trata-se de
tomamos de mais em mais consciência de que ela é entendê-las no modo em que se apresentam em um
produto de uma combinação de fatores e dinâmicas determinado momento do seu constante movimento
heterogêneos, cuja interação lhe dá uma coerência de recomposição. A interdisciplinaridade representa
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aqui um esforço determinado e inovador para ela- hoje a espécie humana, na medida em que se impõe
borar uma metodologia que permite articular essa a evidência de que a teia da nossa história e de nosso
diversidade de aparatos teóricos e metodológicos a destino é traçada, em última instância, não pelas leis
serviço de um percurso de pesquisa comum. Pode que regem a matéria, mas pelos objetivos, sonhos,
acontecer que as colaborações desemboquem, no fantasmas que inspiram nossa ação sobre ela, os
final das contas, em redefinições das fronteiras entre usos que fazemos dela.
as disciplinas, inserindo-se assim no movimento Não é apenas do movimento de um pensamento
mais geral de recomposição do cenário científico. especulativo que nascem as dúvidas e as questões que
Isso somente pode acontecer, porém, ao cabo de uma surgem dessa nova realidade híbrida. Elas derivam
experiência compartilhada que conduz à conclusão antes de mais nada dos desafios inéditos trazidos pe-
de que essa redefinição se faz pertinente. Não é tal las interdependências não elucidadas e muito menos
recomposição, de forma alguma, o objetivo a priori controladas que se desenvolvem entre a capacidade
do percurso disciplinar que, ao contrário, é fértil de intervenção sobre a matéria – que as ciências e as
graças à diversidade de olhares e de abordagens que técnicas dão mais do que nunca ao ser humano – e o
almeja articular. universo imaterial das ideias, objetivos, aspirações,
É, sem dúvida, o caráter híbrido das questões desejos, emoções e fantasias que inspiram o uso que
que temos de tratar dessa forma que constitui o ele faz dessa capacidade. Enquanto, seguindo um es-
desafio maior de tal projeto. A tarefa se torna mais quema de pensamento cartesiano, era possível separar
árdua quando esse hibridismo exige aproximações em dois universos distintos a mecânica das coisas, que
entre campos de pesquisa até então estranhos en- segue seu curso inflexível, e uma humanidade cuja
tre si. Com efeito, os avanços recentes da ciência, natureza, em suas dimensões físicas e espirituais, lhe
conciliados com a ampliação crescente do campo de era completamente irredutível, as ciências podiam
intervenção das técnicas que eles possibilitam, es- atuar em um ou outro desses campos sem ter de se
fumaçam tanto os limites conceituais quanto físicos cruzar. Hoje, porém, a experiência cotidiana nos co-
que se colocavam antigamente entre o ser humano loca diante da evidência de que essa separação não
e o resto do mundo. É o hiato entre o homem e é mais sustentável. O exemplo mais elucidativo diz
a natureza, constitutivo da cultura ocidental e do respeito às possibilidades que a biologia, a genética e
pensamento científico que a ela se fundiu, que passa a medicina nos deram de manipular o corpo humano
assim a ser colocado em questão (Raynaut, 2015a). e suas funções orgânicas como qualquer outro tipo de
É na exploração desse espaço novo, a ser des- matéria. Essas possibilidades abrem espaços comple-
coberto com a indispensável colaboração entre as tamente novos às estratégias individuais e coletivas
ciências humanas e as que tratam da materialidade no campo, por exemplo, da procriação, da definição
do mundo, que a exigência de uma conduta inter- do gênero, dos princípios que guiam a decisão de
disciplinar de pesquisa encontra sua mais ambiciosa manter ou não em vida um ser humano em situação de
fonte. É nesse prisma também que essa colaboração doença extrema. Portas fechadas até então se abrem
pode se revelar mais inovadora e mais fecunda para para a satisfação dos desejos, para a realização de so-
a resolução dos problemas nos quais se confronta nhos que, em outras épocas, estavam completamente

40 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


fora da nossa alçada. Na medicina, mais e mais gestos são também interrogações que demandam pesquisa
técnicos (enxertos, manipulações genéticas, repro- científica. Nossa ignorância é grande a respeito das
dução assistida etc.) acarretam questionamentos da interações que se estabelecem entre os fenômenos
nossa própria definição de humanidade e do estatuto e as dinâmicas de dois campos até então bastante
que lhe atribuímos, tornando necessárias escolhas separados da ciência: o que se dedica à matéria
políticas e sociais. De forma mais ampla, e em múl- considerada sob todas formas e facetas (inclusive
tiplas escalas, nosso conhecimento sobre a estrutura aquela, viva, do ser humano) e aquele, incorpóreo,
e os mecanismos da matéria tanto viva quanto inerte que se volta às ideias, às representações, aos prin-
nos convida a tentar submetê-la à nossa vontade, cípios, às normas e aos sentimentos que inspiram a
de moldá-la de acordo com nossos projetos. Assim, ação humana e pautam a organização das sociedades.
não podemos mais pensar sobre o futuro do clima Numerosas são as questões cujo tratamento exige
do planeta e suas consequências sobre as condições que examinemos conjuntamente essas duas grandes
de nossa vida material sem nos interrogar sobre as vertentes da realidade, considerando as relações que
aspirações, os desejos e as fantasias que comandam estabelecem entre si. Nós nos deparamos, de mais
nosso uso dos recursos naturais. em mais, com a evidência de que, para compreender
Essa realidade híbrida, nascida do confronto a marcha do mundo e resolver os problemas aos
entre nossas aspirações e um mundo objetivo que quais somos confrontados, é indispensável integrar
se submete parcialmente a elas sem perder nada em uma mesma análise as molas e rodagens da me-
das leis que o regem, desencadeia, por sua vez, in- cânica que governa o mundo em suas manifestações
contáveis questões, decorrentes das consequências materiais e a alquimia complexa das ideias, valores,
imprevisíveis de uma apropriação do mundo ainda desejos e sonhos que molda a forma como nós o con-
nunca ocorrida na história da humanidade. Surgem, sideramos, interpretamos suas injunções e tentamos
também, dos desafios culturais e sociais provocados agir sobre ele para submetê-lo às nossas intenções.
pelo desabamento ou pelo recuo dos limites objeti- Avançar na compreensão dessa realidade
vos até então intangíveis que envolviam as capaci- híbrida implica ir muito além das interpretações
dades do homem de intervir sobre ele mesmo e sobre sugeridas pelas opiniões do senso comum (Bache-
seu entorno. Quais repercussões as possibilidades lard, 1983), a que somos amiúde tentados a nos
dadas pelas ciências e pelas técnicas têm sobre as contentar quando pretendemos integrar o “fator
relações entre membros de uma mesma sociedade humano” na análise desses problemas. É preciso
(em função do sexo, da idade, da posição e do papel produzir um novo tipo de conhecimento científico,
que ocupam)? Como analisar e prever as consequên- por meio de uma pesquisa concebida de modo a
cias que escolhas técnicas e econômicas feitas aqui articular as contribuições de diferentes disciplinas,
e agora podem ter para outros habitantes do planeta as quais possuem ferramentas teóricas e metodoló-
e para as gerações futuras? Eis aqui, como dissemos gicas que permitem examinar essa realidade em suas
anteriormente, perguntas que mobilizam reflexões dimensões tanto material e como imaterial. A fim
éticas e políticas que podemos conduzir tomando de selecionar um exemplo, entre muitos outros, são
como base o estado atual do conhecimento. Contudo, colaborações desse tipo que permitiram entender
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melhor a dinâmica da epidemia da Aids no mundo, que Godelier chama de “a parte não social do social”
ultrapassando principalmente ideias concebidas so- (Godelier, 1984). Dar conta da existência e da história
bre a sexualidade e reunindo em campos de pesquisa humana tanto em escala individual quanto coletiva
comum antropólogos, sociólogos, epidemiologistas, somente é possível a partir dessa dualidade, pois o
biólogos e médicos (Raynaut, 1996; 1997). universo imaterial de representações, símbolos, cren-
É nessa aproximação, numa perspectiva de ças, sabores, normas sociais e emoções que constitui
pesquisa comum, de disciplinas que se ignoraram a própria matéria sobre a qual trabalham as ciências
durante tanto tempo que reside, sem dúvida, um dos humanas é estreitamente ligado a uma base física que
maiores desafios da prática interdisciplinar e seu é, ao mesmo tempo, condição de sua existência e um
maior potencial de inovação. A invenção de outra objeto para o pensamento e para os afetos.
prática científica se faz necessária. Uma ciência Entretanto, as ciências físicas e naturais devem
integrada à vida cotidiana, que leve em conta as admitir que as produções do espírito humano não
interrogações que partem da experiência vivida, são meras fantasias que servem para ornar ou mas-
totalmente estranha, portanto, ao recorte discipli- carar uma realidade mais essencial e determinante
nar13. No entanto, considerar esses aspectos não que seria a da matéria. Devem reconhecer que essas
pode significar a perda de rigor nos procedimentos produções fazem tanto parte da realidade quanto os
da pesquisa. Essa ciência não pode levar a demanda fatos tangíveis que merecem sua atenção; que elas
social ao pé da letra, mas transformá-la em uma obedecem a uma lógica interna, a relações de cau-
problemática científica que lança luz sobre as múl- salidade que lhes são próprias, sem que seja preciso
tiplas facetas do problema escolhido. Deve também buscar sua origem primeira em determinações de
formular hipóteses as quais diferentes disciplinas ordem material. Ideias são capazes de engendrar
terão de submeter seus próprios processos de vali- outras ideias; as relações sociais criam condições
dação e traçar um caminho de articulação de seus (tensões, conflitos, solidariedade, construção de
resultados, capaz de levar a um modelo integrado identidades etc.) que desembocam na emergência
de interpretação da realidade assim analisada. de novas relações sociais; os saberes tornam pos-
O sucesso da colaboração entre as ciências sível a constituição de outros saberes. As ciências
sociais e as ciências da matéria pressupõe uma con- exatas têm de aceitar que, em um número crescente
dição fundamental: o reconhecimento recíproco da de questionamentos que lhes são dirigidos, essa
pertinência das questões tratadas por cada uma delas, lógica própria dos fatos imateriais é inseparável de
inclusive para responder a perguntas que cada uma seu objeto de estudo e também que ela desempenha
se coloca por conta própria. um papel determinante não apenas na dinâmica das
As ciências humanas devem reconhecer a na- sociedades humanas, mas também nos sistemas
tureza profundamente ambivalente do ser humano e físicos e naturais que elas estudam.
das sociedades, sua dupla natureza, ao mesmo tempo A pesquisa interdisciplinar, quando conduzida
imaterial e profundamente arraigada na matéria – o nesse espírito, implica um trabalho de equipe que

13
Essa é a pesquisa de “modo 2”, como a descrevem e analisam Nowotny et al. (2001).

42 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


reúne especialistas com um domínio profundo de resultados obtidos por todos possam, no final do
sua respectiva área de estudo, capazes de trazer a percurso, serem aproximados e cruzados. Por fim, é
mais eficiente e rigorosa contribuição para a explo- necessário que saibam contribuir com a elaboração
ração do campo considerado no âmbito do trabalho de uma síntese que coloque em sinergia os saberes
coletivo. Formar essas equipes não é fácil, uma vez particulares trazidos por cada um. Tal itinerário de
que as formações especializadas dos pesquisadores, formação, assim como um exemplo concreto de um
seja qual for a disciplina considerada, preparou-lhes programa de pesquisa concebido nesse espírito, foi
muito pouco para sair dos contornos definidos de detalhado em outros trabalhos (Raynaut & Zanoni,
sua especialidade científica. Estamos então, aqui 2011; Raynaut, 2015b). Aqui me deterei a destacar
também, diante de um desafio pedagógico. Ele é que essa prática de interdisciplinaridade não pode
diferente, porém, daquele que destacamos quando, ser equiparada às duas outras visadas que examina-
como vimos anteriormente, procura-se formar mos anteriormente. O desafio que ela se propõe é
“mentes esclarecidas” que saibam ter uma visão maior, pois se baseia em uma contradição. Por um
global ao abordar uma questão teórica ou prática lado, ela não questiona a divisão em disciplinas, mas
e, por isso, consigam integrar em sua reflexão um reconhece sua validade com o anseio de tirar partido
amplo leque de conhecimentos advindos do estado das competências advindas da especialização. Por
atual da pesquisa. Trata-se, no caso evocado aqui, outro, ela afirma que devemos e podemos ultrapas-
de aprender um procedimento de produção de co- sar essas divisões a fim de inovar na produção de
nhecimentos baseado em um trabalho de equipe que novos conhecimentos, dando conta de compreender,
assegura a articulação das abordagens teóricas, dos assim, a complexidade e o caráter híbrido da reali-
questionamentos e métodos de trabalho de parceiros dade que se coloca diante de nossos olhos.
vindos de horizontes científicos distintos. O objetivo Esse desafio pode desencadear abalos signi-
não é fazer com que a antropologia integre em sua ficativos quando se pretende questionar o âmago
reflexão sobre a saúde saberes da medicina ou que de uma clivagem que divide profundamente nossa
o botânico leve em conta, ao analisar o ecossistema prática científica, e fazer colaborar, em pé de igual-
que ele estuda, o que já sabemos sobre os usos que dade, disciplinas que se debruçam sobre dimensões
dele fazem as populações humanas que o exploram. da realidade diferentes na sua essência. Não mais
O que é preciso ensinar a esses diferentes pesquisa- se trata aqui de empréstimos que conduzem a um
dores é a ter consciência dos limites de sua própria uso aproximado e metafórico de conceitos que
abordagem, bem como a conhecer e compreender migram entre esses dois grandes domínios – como
o modo de trabalho dos outros e a colaborar com ocorre em uma abordagem mais especulativa da
eles na elaboração de uma problemática comum. interdisciplinaridade. O objetivo é integrar objetos
Precisam, em seguida, saber integrar em seu pró- materiais e imateriais em um percurso de pesquisa
prio campo de reflexão e de investigação algumas combinado que, respeitando tanto as exigências de
questões formuladas por essa problemática, ajus- rigor próprias às ciências humanas como às que
tando seus métodos de coleta de dados com os de lidam com a matéria, visa a articulá-las em um
outros pesquisadores da equipe, a fim de que os modelo integrado de compreensão. Almeja-se aqui
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uma verdadeira revolução epistemológica, como inovadora se baseia justamente no questionamento
também uma revisão profunda dos paradigmas que permanente das certezas estabelecidas. Podemos
estruturaram até então nosso pensamento científico. certamente considerar que essas transgressões de
fronteiras, essas pontes lançadas de uma disciplina
Conclusão a outra, constituem certa forma de interdisciplinari-
dade, uma vez que estabelecem uma relação entre
A formulação da ideia de interdisciplinaridade as disciplinas. Podemos, porém, perguntar o que se
é frequentemente marcada por certa imprecisão ganha em enquadrar, desse modo, em uma rubrica
tanto no que diz respeito às próprias disciplinas comum, movimentos intelectuais cuja fertilidade
envolvidas como no que envolve as relações que advém de seu caráter livre e espontâneo. Ao tentar do-
estabelecem entre si e o modo como se almeja mesticá-los, prendendo-os em moldes institucionais
reformular esses laços para responder aos desafios pré-estabelecidos, não corremos o risco de os tornar
atuais da produção de conhecimento. A diversidade estéreis ao invés de estimulá-los? Em contrapartida,
de abordagens interdisciplinares e suas concepções como evidentemente essas abordagens inovadoras
não é, de forma alguma, um problema em si. Ela podem entrar em conflito com forças conformistas
pode mesmo se configurar como uma riqueza. Toda- que vigiam a integridade das disciplinas, é preciso
via, somente se uma distinção clara for estabelecida estar atento para que os processos de avaliação dos
entre essas diferentes interpretações: clareza indis- projetos, as publicações, as carreiras, atreladas ao
pensável para a coerência dos projetos elaborados julgamento dos pares, não penalizem as iniciativas
sob a égide dessa noção e para a pertinência das que podem parecer uma ameaça para a ortodoxia dis-
estratégias pelas quais nos esforçamos para lhe dar ciplinar. Devem existir, no cerne das universidades,
uma expressão institucional eficaz e duradoura. nos organismos de pesquisa e nos comitês editoriais,
O primeiro risco é dar à noção de interdiscipli- instâncias cuja função é acompanhar e dar apoio ins-
naridade uma acepção tão ampla a ponto de não a titucional às atividades científicas, aos procedimentos
distinguir dos movimentos espontâneos que, ao longo e aos espaços favoráveis à inovação, de modo a fazer
do tempo, marcaram o cenário científico e que fazem um contrapeso às forças que trabalham para manter
parte da própria história das disciplinas: circulação a homogeneidade interna nos campos disciplinares.
de conceitos e métodos, integrações recíprocas de Sem dúvida, ganharíamos em clareza e em efi-
elementos de informação, reflexão crítica sobre os ciência ao reservar o termo interdisciplinaridade às
modelos de interpretação desenvolvidos por cada perspectivas que, ao invés de colocarem em questão
disciplina e convergências em torno de objetos de a divisão em disciplinas, valorizam, ao contrário, o
estudo comuns. Sob efeito dessa dinâmica, cisões embate de pontos de vista decorrentes dessa divisão.
não pararam de ocorrer no âmago dos campos disci- O questionamento das fronteiras disciplinares, a
plinares, assim como aproximações entre abordagens lembrança de seu caráter de artifício metodológico
científicas que tinham se afastado da ortodoxia de e a exploração de sua porosidade constituem, sem
suas respectivas disciplinas. Tal evolução é inerente dúvida, uma problemática pertinente e ambiciosa.
ao próprio exercício da reflexão científica, cuja força Entretanto, ela não pode ser confundida com o obje-

44 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


tivo mais imediato de explorar a natureza complexa desdobramentos desde o ensino básico, com o
e híbrida de uma realidade a ser compreendida. Ou propósito de formar cidadãos responsáveis, até o
com o anseio de resolver um problema valendo-se ensino universitário de mais alto nível que se volta
da variedade de ferramentas conceituais e metodoló- para a formação de generalistas, de “espíritos escla-
gicas que a multiplicidade das disciplinas nos coloca recidos” capazes de lidar com problemas complexos
à disposição, visando à aproximação e articulação de natureza teórica e prática. Nessa perspectiva, a
de elementos de conhecimentos heterogêneos que formação em questão frisa, antes de mais nada, à
elas fornecem. Pode ocorrer que, no final do pro- abertura da mente e à capacidade de síntese.
cesso, essas aproximações e colaborações desembo- Uma outra abordagem interdisciplinar diz
quem em uma recomposição duradoura dos campos respeito aos profissionais cuja atividade implica
científicos, mas isso seria a consequência de uma colaboração constante de especialistas que têm
prática interdisciplinar e não seu ponto de partida. competências diferentes das suas. Trata-se de uma
Mesmo quando se adota essa definição mais abordagem operacional voltada à realização de
restrita de interdisciplinaridade, o leque de interpre- objetivos concretos que só podem ser atingidos a
tações dessa noção permanece amplo, bem como os partir da cooperação de profissionais com pleno do-
objetivos ao serviço dos quais ela é aplicada. Ainda mínio de suas habilidades. Nesse caso, a prioridade
aqui, explicitar as diferenças é indispensável para pedagógica se concentra na capacidade de escuta,
manter a pertinência e a coerência dos projetos im- no trabalho de equipe e na assimilação de métodos
plantados. As nuances são inumeráveis, mas nós ten- de trabalho baseados na interdependência de tarefas.
tamos agrupá-los em três grandes categorias. Cada Essas práticas são antigas como as grandes realiza-
uma delas corresponde a uma abordagem diferente ções técnicas, cujo sucesso se baseia na cooperação
de cooperação entre as disciplinas, com objetivos de diferentes segmentos profissionais. A aprendiza-
diferentes, participantes com perfis distintos e es- gem se deu, durante muito tempo, no curso da ação,
tratégias de formação que não podem se confundir. sem que a ideia de interdisciplinaridade fosse sequer
Destacaremos, primeiramente, uma interdis- evocada. Porém, é de mais em mais necessário atu-
ciplinaridade exercida a partir de conhecimentos almente que essa instrução seja integrada na própria
já produzidos pelas diferentes especialidades cien- formação profissional. Essa necessidade se dá por
tíficas, a qual se propõe a ultrapassar a imagem conta da complexidade crescente das operações
fragmentada e caleidoscópica da realidade que elas técnicas, mas também, e sobretudo, por causa da
nos fornecem quando as recebemos de forma disper- imbricação cada vez maior entre fatores de natureza
sa. O objetivo é, portanto, a integração e a síntese. heterogênea na gênese dos problemas que devem
Essa abordagem visa à formação de pensadores ser resolvidos. Dimensões técnicas, econômicas,
que não se deixam emprisionar na estreiteza do sociais, psicológicas, políticas, culturais e éticas são,
espaço intelectual de um saber especializado, mas entretanto, estreitamente ligadas quando estão em
sim são capazes de tecer laços entre conhecimentos questão realizações que dizem respeito à energia, ao
advindos de diferentes horizontes científicos. Ela urbanismo, à saúde ou ao meio ambiente. Trabalhar
inspira um projeto pedagógico com numerosos com parceiros advindos de horizontes intelectuais
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e profissionais tão distintos não é natural, mas sim pesquisador em sua própria especialidade. Inúmeras
algo que deve ser aprendido. Esse é o desafio a experiências mostraram que não basta reunir os
que, ainda por cima, devem se confrontar os cur- melhores especialistas para instaurar uma dinâmica
sos de ensino que formam especialistas altamente de trocas e de colaboração. Menos que qualquer
qualificados em uma área específica, mas que são outra, essa prática de interdisciplinaridade não se dá
igualmente capazes de trabalhar com pessoas cujas imediatamente; ela se constrói metodicamente. Os
preocupações e métodos lhes são estrangeiros. obstáculos são particularmente difíceis de superar
Por fim, identificamos outra abordagem de quando, como ocorre de forma mais frequente hoje
interdisciplinaridade que tem como propósito a pro- em dia, os temas explorados demandam a colabora-
dução de novos conhecimentos sobre temáticas cuja ção de cientistas cujos universos de referência são
complexidade exige a formação de programas de distintos entre si: as ciências humanas, de um lado; e
pesquisa que associam cientistas advindos de uma as ciências que lidam com as dimensões materiais da
ampla gama de campos disciplinares. O objetivo, realidade, de outro. Não podemos nos contentar com
nesse caso, não é cruzar saberes já adquiridos nem um jogo de analogias e de metáforas com as quais
coordenar intervenções voltadas à realização de pensadores dos dois lados tentam estabelecer corres-
tarefas previamente estipuladas. Trata-se de se en- pondências entre esses dois campos de pensamento.
gajar em uma nova aventura intelectual, de explorar O desafio é obter modelos explicativos apoiados em
o real sobre terrenos ainda não desbravados. Essa um trabalho empírico que permita lançar luz sobre
interdisciplinaridade não pode ser solitária. Exige as interações entre os fatores advindos de cada um
um trabalho de equipe em que se reúnem pesqui- desses domínios. Para tal, métodos de pesquisa ino-
sadores com absoluto domínio nas competências vadores devem ser experimentados e, em seguida,
de suas respectivas disciplinas. Isso pressupõe a transmitidos aos pesquisadores com o propósito
convergência de todos em torno de uma problemá- de ultrapassar sua formação especializada para se
tica comum que dê conta das múltiplas facetas do engajarem nesse novo modo de trabalho coletivo.
problema tratado, a qual permita, ao mesmo tempo, Sob o termo geral de interdisciplinaridade,
que cada um possa contribuir no trabalho coletivo estão em questão projetos científicos e pedagógi-
com os recursos de sua própria disciplina. Está em cos muito diferentes. Tentei aqui destacar algumas
jogo todo um processo de compreensão mútua, de linhas de força que permitem organizar essa diver-
negociações e de conciliações envolvendo tanto sidade. Sem dúvida, é preciso ir mais longe e ser
dimensões conceituais quanto aspectos metodoló- mais profundo nesse esforço de diferenciação. En-
gicos. Ou seja, exige não apenas uma disposição tretanto, é certo, desde já, que o debate permanecerá
de espírito, mas também habilidades e até mesmo estagnado enquanto não se tornarem mais claros os
um aparato metodológico adequado que permite princípios, os objetivos, os métodos, muitas vezes
a síntese de informações heterogêneas dentro de díspares, ao redor dos quais essas posições se orga-
um modelo de compreensão e de explicação que nizam. É a condição necessária para que possamos
as ponha em relação. Essas competências não se sair da confusão que frequentemente ainda reina
improvisam, seja qual for o grau de excelência do quando falamos em interdisciplinaridade; condi-

46 RAYNAUT, C. Paradoxos e ambiguidades na ideia de interdisciplinariedade


ção também para conseguir ultrapassar as falsas em muitos estabelecimentos de ensino e pesquisa.
interpretações, preconceitos e resistências que a Um lugar que não a torna antagônica ao percurso
impedem de ser integrada de modo duradouro e in- disciplinar clássico, mas faz dela o desdobramento,
contestável nas instituições. A interdisciplinaridade, o complemento desse percurso uma vez que este
enquanto abordagem de produção e transmissão de conserva sua pertinência própria e prossegue na sua
conhecimento, tem ainda que encontrar seu lugar própria lógica de evolução e recomposição.

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