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O que diz o primeiro documento escrito da


história
8 maio 2017

ISTOCK

Esses símbolos abstratos formam o documento escrito mais antigo de que se tem conhecimento
até hoje

Na Antiguidade, acreditava-se que a escrita vinha dos deuses. Os gregos pensavam tê-la
recebido de Prometeus. Os egípcios, de Tot, o deus do conhecimento. Para os sumérios, a
deusa Inanna a havia roubado de Enki, o deus da sabedoria.

Mas à medida que essa visão perdia crédito, passou-se a investigar o que levou civilizações
antigas a criar a escrita. Motivos religiosos ou artísticos? Ou teria sido para enviar
mensagens a exércitos distantes?

Como satélites estão revelando segredos da civilização maia

O enigma ficou mais complexo em 1929, após o arqueólogo alemão Julius Jordan
desenterrar uma vasta biblioteca de tábuas de argila com figuras abstratas, um tipo de
escrita conhecida como "cuneiforme", com 5 mil anos de idade, mais antigas que exemplares
semelhantes encontrados na China, no Egito e na América.

As tábuas estavam em Uruk, uma cidade mesopotâmica - e uma das primeiras do mundo - às
margens do rio Eufrates, onde hoje fica o Iraque. Ali, desenvolveu-se uma escrita que
nenhum especialista moderno conseguia decifrar. E o que diziam as tábuas?

Quebra-cabeça

Havia ainda em Uruk outro quebra-cabeça arqueológico que não parecia ter nenhuma
relação com as escrituras: suas ruínas e de outras cidades da Mesopotâmia estavam repletas
de pequenos objetos de argila, uns em formato de cone, outros, de esferas, e alguns, de
cilindro.

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Em seu diário, Jordan descreveu que esses objetos se pareciam com "itens cotidianos, como
frascos, pães e animais". Para que serviam? Ninguém entendia, até a arqueóloga francesa
Denise Schmandt-Besserat catalogar nos anos 1970 peças similares localizadas em toda a
região, da Turquia ao Paquistão, algumas com até 9 mil anos de idade.

Uruk foi uma das primeiras cidades do mundo: tinha ruas, lojas, casas e edifício de até dez andares

Schmandt-Besserat concluiu que os objetos tinham um propósito simples: eram usados em


um método de contagem por correspondência, ou seja, feito por meio da comparação entre
grupos de objetos e suas quantidades.

Assim, peças com formato de pão poderiam ser usadas para contar pães; de jarra, para jarras;
e assim por diante. Desta forma, não é preciso saber fazer uma contagem nem conhecer os
números envolvidos, apenas verificar quantidades de cada grupo de itens e checar se são
iguais.

A contagem por correspondência é inclusive mais antiga que Uruk. Com 20 mil anos de
idade, o Osso de Ishango, fíbula de um babuíno encontrada próxima de uma nascente do rio
Nilo na República Democrática do Congo, parece ter sido usado para contar fazendo marcas
nele.

Mas as peças de Uruk eram mais avançadas, porque podiam ser usadas para contar
quantidades diferentes, além de servir para somar e subtrair.
ALAMY

Na Antiguidade, acreditava-se que a escrita era um presente divino


ISTOCK

Artefato dos sumérios, que acreditavam que a deusa Inanna roubara a escrita de Enki, o deus da
sabedoria

A economia de uma grande cidade como Uruk envolvia comércio, planejamento e


arrecadação de impostos. Então, é possível imaginar os primeiros contadores da história,
sentados na entrada de um armazém, usando peças com formato de pão para contar sacos
de grãos que entravam e saíam.

Peças e tábuas

Mas Schmandt-Besserat notou outro aspecto revolucionário. As marcações abstratas nas


tábuas cuneiformes coincidiam com as formas de diferentes peças.

Ninguém havia se dado conta da semelhança, porque a escrita não parecia representar nada.
Mas Schmandt-Besserat entendeu o que havia ocorrido.

A enigmática joia que revela a agonia da civilização maia

As tábuas tinham sido usadas para registrar o ir e


vir das peças, que, por sua vez, registravam o
trânsito de bens, como ovelhas, grãos e jarras de Podcast
mel.

Assim, as primeiras tábuas podem ter sido feitas


com impressões das próprias peças sobre a argila
ainda mole. E os antigos contadores logo se
deram conta de que seria mais simples fazer
marcas nelas com uma lâmina.

Então, a escritura cuneiforme era uma símbolo


estilizado de uma impressão de uma peça que
representava um bem. Não surpreende que
ninguém tenha feito tal conexão antes de
Schmandt-Besserat.

Ela resolveu duas questões ao mesmo tempo. As Brasil Partido


tábuas de árgila adornadas com a primeira
João Fellet tenta entender como
escrita abstrata do mundo não haviam sido
brasileiros chegaram ao grau atual de
usadas para escrever poesia ou enviar divisão.
mensagens a lugares remotos. Foram
Episódios
empregadas para fazer contas - e também para elaborar os primeiros contratos.

Isso graças a uma combinação das peças e da escrita cuneiforme que permitiu criar uma
ferramenta brilhante: uma bola oca de argila.

DOMINIO PÚBLICO

As partes externa e interna destas bolas de argila serviam para registrar os termos de um
contrato

Na parte externa da bola, as partes envolvidas no contrato podiam escrever os detalhes do


acordo. Dentro, colocava-se peças que representavam o contrato: a partir do que estava
escrito do lado de fora, era possível checar a validade do que estava dentro.

Não se sabe quais eram as partes nestes contratos. Podiam ser dízimos religiosos para
templos, impostos ou dívidas privadas. Mas as bolas serviam como ordens de compra e
venda e tornaram possível a vida em sociedade em uma cidade complexa.

Trata-se de algo muito importante. A maioria das transações financeiras estão baseadas em
contratos escritos: seguros, contas de banco, bônus do governo, acordos hipotecários. Tudo é
registrado desta forma, e as bolas mesopotâmicas são a primeira evidência arqueológica de
que contratos escritos existiam naquela época.

Números

O legado dos contatos de Uruk incluiu outra inovação. Em princípio, o sistema para registrar
cinco ovelhas simplesmente requeria cinco impressões separadas para representá-las. Mas
isso era trabalhoso.

Por isso, foi criado um novo sistema que incluía usar um símbolo abstrato para diferentes
números: cinco linhas para o número cinco, um círculo para o número dez e três linhas para o
número 23.
LIBRARY OF CONGRESS/PHOTO SCIENCE LIBRARY

Essa tábua é um recibo com registro de uma transação envolvendo gado

Os números sempre eram usados para se referir a uma quantidade de alguma coisa: não
haviam "dez", apenas "dez ovelhas". Mas esse sistema era suficiente para registrar grandes
quantidades, centenas e milhares.

Um pedido de indenização por um ato de guerra de 4,4 mil anos atrás exigia, por exemplo,
4,5 bilhões de litros de grãos de cevada ou 8,94 "guru". Era um valor impagável, equivalente
a 600 vezes a produção anual dos Estados Unidos hoje.

Foi desta forma que os cidadãos de Uruk resolveram um grande problema de qualquer
economia moderna: como lidar uma rede de obrigações e planos de longo prazo entre
pessoas que não se conheciam bem ou nem sequer se conheciam?

Para isso, criaram não só as primeiras contas e contratos, mas também os primórdios da
matemática e da escrita. Então, escrever não foi um presente dos deuses, mas uma
ferramenta desenvolvida por uma razão muito clara: gerenciar a economia.

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