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Dark Room aqui: um ritual de escuridão e silêncio

MARÍA ELVIRA DÍAZ BENÍTEZ

resumo Entre os diversos espaços destinados a funciona como uma espécie de “lugar-templo”,
encontros sexuais ocasionais, analiso neste artigo a cheio de signos, repleto de possibilidades.
forma como se estrutura o ritual de interação den- Quando atravessam a porta, aqueles que
tro do dark room em uma boate de socialização de esperavam ansiosamente que fosse aberta e
homens que exercem práticas homoeróticas. Ela- aqueles que sucumbiram diante da curiosida-
boro uma aplicação da teoria dos atos da fala de J. de, encontram-se com uma luz clara que pende
L. Austin em um contexto onde são os gestos, os do teto e ilumina outros cartazes. O primeiro
movimentos, a localização no espaço, entre outros adverte: “A casa não se responsabiliza por ob-
signos corporais, os atos performativos que não só jetos perdidos. Favor manter nos armários”.
dizem, mas fazem algo. How to do things without O segundo sentencia: “Está proibido o uso de
words? Como etnografar no silêncio? Que dizem os drogas neste estabelecimento, os infratores es-
gestos? Como se fazem coisas com os gestos? Qual tarão sujeitos às penalidades previstas pela lei”.
é seu poder “mágico”? Qual é a energia que está Ninguém se detém na leitura dos avisos com
contida neles assim como nas palavras? Utilizo para cuidado, quiçá porque já sabe o que dizem,
este fim considerações teóricas que na antropologia talvez porque não lhe interesse obedecer. A luz
têm desafiado a preeminência da linguagem e do que pende do teto ilumina um corredor estrei-
sentido da visão na prática etnográfica e no exame to, com chão úmido, que termina em um salão
das formas como os coletivos organizam suas expe- quadrado. Ali também termina a luz abrindo
riências. passo para uma penumbra leve através da qual
palavras-chave Antropologia ritual. Corpo. se vislumbram sombras, corpos que entram e
Etnografia. Atos performativos. Silêncio. saem, que estacionam em algum lugar do espa-
ço ou se perdem de vista quando se internam
na escuridão. Quando a penumbra se torna
Na parte alta da porta, um cartaz branco leva mais espessa e já não permanecem rastros da-
escrito em letras maiúsculas de cor negra duas quela luz que iluminava o corredor, começa a
palavras: “Dark room”. A seu lado, uma flecha segunda sala: o quarto do breu.
vermelha complementa a mensagem levando Eu tenho entrado. Inúmeras vezes. Na pri-
escrito em seu interior: “Aqui”. Ambos os sig- meira vez me localizei na penumbra, perto do
nos, palavras e flecha, indicam a localização de corredor. Dali recebi uma linha tênue de luz
um lugar, mas, no contexto em que aparecem, que permitiu que meus olhos se acostumassem
funcionam melhor como um convite. Sempre à escuridão e pudessem perceber, com certa
há pessoas do lado de fora olhando – inquie- clareza, sombras e corpos se movimentando ao
tamente – em direção à porta, deixando que meu redor. Poucos minutos depois, notei que
sorrisos e gestos denunciem a curiosidade por alguns rapazes que estavam no mesmo lugar
atravessar essa espécie de “umbral”. Apesar de a que eu começaram a sair intempestivamente, e
flecha vermelha ter estado ali desde 1992, para supus que podiam estar intimidados com a mi-
algumas pessoas o caminho que indica conti- nha presença. Decidi ficar ali um tempo mais.
nua sendo enigmático, enquanto para muitos No entanto, os rapazes continuaram saindo.

cadernos de campo, São Paulo, n. 16, p. 1-304, 2007


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Pensei que eu poderia estar infringindo algum transgressão que não é irrevogável e mas nego-
código de interação daquele espaço de socia- ciável, que não impede que as coisas aconteçam
lização – quase exclusivamente – masculino. como acostumam acontecer, porém, ainda as-
Então, percebi que minha primeira incursão sim, não sou ali uma pessoa autorizada, se con-
no ritual da escuridão e do silêncio tinha sido siderarmos os termos de Austin (2003 [1962]).
infeliz. Embora seja certo que toda observação implica,
Durante várias noites em que visitei a boa- em si, uma participação, acredito que meu es-
te fiquei do lado de fora, exatamente na porta forço etnográfico tenha se constituído, princi-
que separa o dark room do balcão. Assim po- palmente, em uma observação acompanhante.
dia ver as pessoas que entravam e as freqüên- Existe também na antropologia mainstream
cias relativas ao ingresso. Algumas semanas e na prática etnográfica uma tendência a valorar
depois, quando acreditei compreender as nor- o referencial falado. Tem-se ponderado o poder
mas que orientavam a participação no ritual, e a importância do que é dito, o significado das
decidi entrar e localizar-me em uma parte um palavras dentro de um contexto cultural e a for-
pouco mais escura, justamente no lugar que ça que estas têm para transformar sociedades.
divide simbolicamente a penumbra do breu. Malinowski ensina que a linguagem é nossa
Nessa ocasião demorei duas horas no dark principal ferramenta, sem ela “o conhecimen-
room, e dessa vez nenhum dos rapazes saiu de to de qualquer cultura é incompleto” (1935,
lá precipitadamente. Comecei a entender que p. 21). Para Leach, o ritual em comunidades
o problema que enfrentei na minha primeira primitivas é um complexo que reúne palavras
tentativa não tinha sido entrar no dark room, e ações: “Não é o caso de que as palavras são
mas ficar na penumbra onde os olhares podiam uma coisa e o rito é outra. A expressão das pala-
alcançar-me através daquela claridade sutil. vras é, em si mesma, um ritual” (2000 [1966],
As tentativas têm continuado. Tenho cami- p. 407). Tambiah (1968) fala das “expressões
nhado entre a escuridão e a penumbra, tenho mágicas”. Destaca o poder criativo das pala-
ficado quieta. Tenho agüentado o calor e guar- vras, a maneira como os objetos ganham vida
dado silêncio, tenho bebido guaraná e cerveja, por meio delas, como criam efeitos ao estar
tenho jogado o copo no chão, tenho tentado relacionadas à realidade social onde são pro-
participar. No entanto, não tenho me mastur- nunciadas, e as maneiras como incidem sobre
bado, nem tenho masturbado ninguém, não o mundo (o que para Malinowski é a função
tenho feito sexo oral em nenhum dos rapazes pragmática da linguagem). Herzfeld (2003)
nem tenho sido penetrada, não tenho efetuado chama a atenção sobre as intenções daquilo
todos os gestos que estruturam o ritual, nem que é dito, pergunta-se se existe uma analogia
pronunciado as pouquíssimas palavras que o completa entre o que se quer dizer e aquilo
complementam. que efetivamente é dito.
O mainstream antropológico tem estabe- Apesar destes autores, entre muitos outros,
lecido como principal método etnográfico a entenderem a importância do que é dito, estes,
observação participante. Mas, para mim, a simultaneamente, desafiam seu poder exclusivo
experiência do dark room me impede de par- na prática etnográfica. O mesmo Malinowski
ticipar, de fato. Aliás, nem sequer me permite (1935) ensina a “desconfiar” das palavras dos
observar nitidamente. O dark room é um espa- nativo; para ele, a linguagem não é necessaria-
ço masculino e minha presença ali, de alguma mente sinônimo ou análogo ao pensamento
maneira, é uma espécie de transgressão. Uma humano. Com isto, convida a pensar em como

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se usam os gestos para designar metaforicamen- a escuta, enfim, os sentidos a partir dos quais
te algo. Para Leach, gestos e movimentos tam- muitas sociedades organizam suas experiências
bém são rituais. Tambiah (1985), por sua vez, e constroem seus mundos. Em sua belíssima
confronta a institucionalização da linguagem etnografia, intitulada Sound and things (Sons e
na prática etnográfica se perguntando como coisas) e feita em Songhay (Tillaberi, Nigéria),
palavras e gestuais têm sentidos que não são o autor concentrou sua atenção no som do vio-
obrigatoriamente concomitantes ao seu senti- lino godji e no tambor gasi, “o godji chora”,
do referencial. Em seu estudo sobre mantras de sublinhando que através desse lamento falam
exorcismo (Tambiah, 1968), chama a atenção os ancestrais, o poder de suas vozes une os vi-
para a necessidade de se entender o significado vos com seu passado, são: “[...] poderes sonoros
dos mantras, não só através do entendimento que podem trazer a chuva, erradicar pestilências
de palavra por palavra, nem apenas a partir de e prevenir epidemias” (Stoller, 1966, p. 178).
uma análise das formas verbais como se fossem Em um contexto sociocultural como o de
uma categoria diferenciada, mas mediante as Songhay, não escutar o mundo é aprender pou-
seqüências nas quais as palavras são ditas, em co sobre ele. Se para eles o som é o transporte
relação ao seu sentido emocional e ao seu cará- dos espíritos, pergunta-se Stoller: Como limi-
ter sagrado objetivado em canções, orações ou tar a análise à visão? Como reduzir o som do
bençãos. Herzfeld (2003) desafia o referente godji às anotações de página?1
falado explicando que, apesar de existir uma Neste artigo, pretendo me unir aos esforços
prática coletiva e um engajamento no ritual, de diversos antropólogos em desafiar a preemi-
não necessariamente aquilo que está sendo dito nência do que é falado na análise do ritual. A
é totalmente entendido por seus agentes. posição de Stoller acerca da maneira como as
Já em Stoller (1966) encontramos que esse pessoas se conectam aos sons, através de sua
desafio é levado até as últimas conseqüências. própria orientação de mundo, serve-me de
Referindo-se ao papel dos griots do Sahel e mais inspiração para fazer o seguinte questionamen-
especificamente à prática de praise-naming dos to etnográfico: Como “o povo” do dark room
griots entre os Wolof do Senegal, o autor expli- orienta sua experiência a partir do silêncio?
ca que, muito além das palavras, o que produz Qual a relação entre o silêncio e os significados
transformações mágicas em quem as escuta é a culturais da interação na escuridão? Como fa-
emoção que ocasiona o som das palavras: zer etnografia no e do silêncio?
Se em muitas sociedades e coletivos utiliza-
São sopros e vibrações de ar, constituídos e mol- se a visão como maneira de conhecer e apreen-
dados pelo corpo e as motivações do orador, as der o mundo, no dark room a visão é só um
quais tocam e influenciam fisicamente ao desti- dos elementos que compõem o ritual de inte-
natário. Assim, o efeito do louvor de um griot ração. Nesse contexto, o tato é privilegiado. As
que o informante tem sobre seus destinatários palavras são comumente substituídas pela lin-
é equivalente ao efeito do vento sobre o fogo guagem corporal: as coisas que se desejam dizer
(Irvine 1980 apud Stoller 1966, p. 177). e fazer, explicitam-se mediante gestos, poses e
localização dos corpos no espaço. Se no restante
Stoller debate também sobre o fato de que da boate os códigos de relacionamentos permi-
a prática etnográfica tem priorizado aquilo que tem o contato verbal, no dark room os contatos
se pode ver, deixando de lado análises baseadas
em dimensões como o tato, o olfato, o gosto e
1. Criticando a noção de textualismo de Clifford Geertz.

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começam com os toques, no ato de apalpar e termos de Malinowski). Para ser adequado,
se deixar ser apalpado pelos outros. Permitir ser um procedimento deve incluir a emissão de
acariciado ou impedir uma carícia é um método certas palavras por parte de certas pessoas e
mais eficaz que as palavras para começar ou ter- em certas circunstâncias. Aliás, deve gerar
minar uma aproximação. Em poucas palavras, certo efeito, ou seja, precisa que sobrevenha
são o silêncio, a escuridão, os gestos, o tato e uma dada conduta correspondente. Se algu-
a alteração das emoções que, muito além das ma ou várias destas pautas não se cumprem, a
palavras, preenchem o ritual de significados. expressão performativa será, de um ou outro
Já mencionei que minha participação nes- modo, infeliz.
te ritual privilegiou a escuta e a observação, na O ato da fala, segundo o autor, está ca-
medida em que aproveitei as probabilidades racterizado por um esquema tríplice: Ato
que a escuridão me ofereceu, diante da impos- locucionário, ilocucionário e perlocucionário.
sibilidade de colocar em funcionamento alguns O ato locucionário é a expressão mesma que
dos meus outros sentidos, especialmente o tato. possui significados. Quando alguém diz algo,
No entanto, como já advertiu Herzfeld (2003), é importante distinguir o ato de dizê-lo, que
não existe a obrigação de participar no ritual consiste em emitir certas palavras com deter-
como “ele é”, mas pode-se vivê-lo de diversas minada entonação e acentuação e que tem
formas. Então, seguindo a sugestão de Stoller, fixado um dado sentido de referência. Isto é
tentei colocar para funcionar minha percep- chamado por Austin dimensão locucionária
ção por meios sensoriais. Além da visão, tentei do ato lingüístico. Ilocucionário é o ato que
me deixar penetrar pelo silêncio como ele fez exercemos ao dizer algo: prometer, afirmar,
com o som do godji, tentei sentir a escuridão e advertir, insultar, parabenizar, ameaçar etc.
inclusive, tentei me alterar com cerveja,  Consiste em provocar a compreensão do sig-
, para ver se dessa maneira conseguia nificado e a força da locução. Seu efeito reside
compreender o significado do dark room atra- na força que possui ao dizer algo. Já o perlo-
vés do meu próprio corpo. cucionário consiste em lograr efeitos pelo fato
de dizer algo: intimidar, assombrar, conven-
cer, ofender etc.
How to do things without words: um Embora no dark room o silêncio não seja
uso da teoria do ato de fala de J. L. absoluto, ele é privilegiado. As palavras são
Austin substituídas por gestos e movimentos algumas
vezes seqüenciais. Austin explica que os atos
Expressões performativas, diz Austin (2003 que possuem o caráter geral de serem rituais
[1962]) são aquelas que mediante sua emissão ou cerimoniais (apostar, transferir o domínio
realizam uma ação e não podem ser concebidas de uma coisa, por exemplo) podem ser rea-
como um mero “dizer algo”. lizados por meios não verbais. Nossos atos
Por sua vez, ao pronunciar as palavras cor- ilocucionários (advertir, ordenar, dar, protes-
respondentes do performativo, é importante tar, pedir desculpas, por exemplo) podem ser
como regra básica que outras coisas ocorram efetuados sem o uso das palavras e mediante
bem. Ou seja, que existam as circunstâncias gesticulações. Da mesma maneira, a perlocu-
adequadas para poder dizer que a ação tem ção, ou seja, os efeitos ou respostas à ilocução,
sido executada com sucesso (precisa-se de também podem ser logrados de maneiras não
um apropriado “contexto da situação”, nos verbais.

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Apesar de Austin (2003 [1962]) ressalvar objetivos, motivo que leva ao acontecimento
que nossos atos de fala podem incluir o gesto de múltiplos infortúnios2.
(cf. p. 60, 163, 164, 166), Grimes (1996, p. Tambiah (1985) já disse que, embora nos
283) enfatiza o fato de que esta teoria tem sido rituais haja um conjunto de regras aparente-
majoritariamente aplicada em contextos que mente invariáveis, existem também nos atores
incluem formas verbais: interesses relacionados a uma expansão de sig-
nificado. Desta maneira, tentarei examinar as
A teoria dos atos da fala poderia ser de pouco formas como se criam situações infortunadas,
uso em ritos caracterizados principalmente por ou seja, momentos nos quais se erra na execução
silêncio ou movimentos. O ritual é uma forma do ritual, efetuam-se procedimentos que não
cultural mais complexa que a fala, porque pode devem aplicar-se, executam-se procedimentos
incluir todas as variantes da fala, enquanto a fala que não podem ser aplicados, momentos onde
não pode incluir todas as variedades de ritual. a cerimônia não se efetua completamente, ou
[...] A teoria dos atos da fala, desenvolvida além se realizam atos não autorizados. Por exemplo:
de análises lingüísticas filosóficas, é usualmente não receber uma carícia, não aceitar uma apro-
aplicada só a fenômenos verbais. Aqui podemos ximação, não permitir um tipo específico de
estender sua aplicação ao ritual, a um fenômeno relacionamento sexual, entender um gesto de
performativo. maneira errada, efetuar de forma equivocada
um gesto, localizar-se em um lugar incorreto
Levando em conta que “A tipologia austi- no espaço etc.
niana é aplicável não só a coisas ditas nos con- Da mesma maneira como me pergunto
textos rituais, mas também a coisas feitas neles” pela eficácia dos gestos, é interessante observar
(Grimes, 1996, p. 283), tentarei aqui analisar quais pessoas (autorizadas, diria Austin 2003
o ritual (ou os rituais) do dark room prestando [1962]) estão em uma posição de efetuar o ri-
atenção nas expressões performativas conti- tual de maneira mais eficaz e quais estão mais
das nos gestos e movimentos e na força destas propensas a infortúnios.
expressões; nos atos ilocucionários efetuados
mediante trejeitos, senhas, acenos, piscadas e
posturas do corpo, e nas respostas ou efeitos Ritual de “pegação” em dois episódios
que se obtêm por meios igualmente não ver-
bais. Em poucas palavras, analisarei: o que nos Tentar descrever o ritual de interação que
dizem os gestos? Como se fazem coisas com os acontece no dark room é como tentar relatar
gestos? Que gestos dizem que coisas? Qual o minuciosamente um show da orquestra sinfô-
poder “mágico” dos gestos? Qual é a energia nica. O narrador poderia deter-se nos detalhes
que está contida neles da mesma forma que há da melodia interpretada pelo piano, pelo vio-
energia contida nas palavras? lino ou pelo trombone de forma singular ou
Por outro lado, no caso do ritual de es- poderia tentar explicar as cadeias de sons de
curidão e silêncio, cumpre-se o anunciado todos os instrumentos que, ao soarem simul-
por Leach (2000 [1966]): o ritual é um ato taneamente, compõem uma mesma harmonia.
voluntário porque quem participa nele, en- O dark room é um lugar onde sucedem várias
contra um sentido. No entanto, dentro do
dark room nem todas as pessoas participam 2. Na última parte deste artigo, elaborarei uma explica-
da mesma forma, perseguindo os mesmos ção mais detalhada daquilo que Austin chamou “dou-
trina dos infortúnios”.

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situações distintas ao mesmo tempo, onde não mais devagar enquanto passam a mão lenta-
existe uma norma acerca do número de pesso- mente sobre a virilha. Tanto os que se apressam
as que podem participar do ritual e onde nem em acabar os tragos de cerveja quanto os que
todos possuem as mesmas intenções quanto à saboreiam seu conteúdo parcimoniosamente,
própria participação. Da mesma maneira como jogam o copo branco no chão para liberar as
em uma orquestra o contrabaixo segue uma mãos.
partitura escrita em clave de Fá, o xilofone uma Sem saírem do lugar, observam os corpos
em clave de Sol e os instrumentos participam que entram e os que se movimentam ao seu
de uma mesma melodia, mas cada um deles redor, sabendo que são observados por aqueles
conservando um momento e uma forma dife- que estão no breu. A luz do corredor permite
renciada, no dark room todos participam guia- que se vislumbrem as silhuetas, suas formas,
dos por seu próprio desejo, mas, no entanto, seus contornos, seus traços. No entanto, im-
reconhecendo e obedecendo as expressões e os pede a distinção dos rostos e a apreciação dos
movimentos a partir dos quais podem compor semblantes.
o ritual maior. Através do tom cinza do ambiente, os rapa-
O dark room tem seu próprio ritmo, que se zes da penumbra podem efetuar um primeiro
compõe dos ritmos individuais de seus parti- critério de seleção do homem ou dos homens
cipantes. Tem uma temporalidade que todos com os quais desejam começar um intercur-
reconhecem, que, por sua vez, é determinada so sexual ou uma “brincadeira”, modo como
não só pelos agentes, mas pelo ritmo da boate eles mesmos chamam o ato de se acariciar sem
como um todo. transformar esse jogo erótico em uma transa
Descreverei em seguida o ritual de “pega- propriamente dita. Ao mesmo tempo, o fato de
ção” que ocorre no dark room. Apresento as estarem na penumbra lhes permite que sejam
diversas situações que o compõem, ressaltan- selecionados pelos outros.
do as seqüências a partir das quais o ritual se De um momento para outro, um ou vários
estrutura. Ao terminar a descrição, elaborarei rapazes que se acariciavam, tocando a virilha,
um exame cuidadoso dos detalhes em relação abrem o zíper, tomam o pênis e o colocam para
à teoria dos atos de fala de Austin, tendo como fora da calça, acariciam-no cuidadosamente
foco as expressões performativas contidas nos sem sair do lugar em que haviam “estaciona-
gestos, sua força ilocucionária, sua resposta do”. Alguém que entra ou que simplesmente
perlocucionária e os infortúnios. permanece em silêncio, encostado na parede,
aproxima-se de um homem que já está com
[A PENUMBRA] o pênis ereto, estende a mão em direção ao
genital e o acaricia. Se o outro homem não o
À meia-noite abrem-se a porta. Os clientes impede, afastando-o com um gesto ligeiro e
da boate começam a entrar um a um, às vezes leve, rapidamente começa a masturbá-lo, apro-
de dois em dois ou em pequenos grupos. Na ximando seu corpo e unindo-se ao outro em
maioria das vezes, ficam de início na penum- um abraço.
bra, encostando-se nas paredes. Alguns acen- Enquanto isso acontece, numa das esquinas
dem um cigarro ou acabam de fumar o cigarro da penumbra, um homem se coloca de costas,
que traziam desde a pista de dança. Outros ra- desce a calça deixando as nádegas descobertas, e
pidamente terminam de beber a cerveja que se- aproxima as mãos da genitália, ficando na posi-
gundos atrás solicitaram no balcão ou a bebem ção de quem está urinando. No entanto, todos

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sabem o que ele está fazendo: suas mãos estão Um rapaz, que durante todo o tempo só fi-
concentradas em uma carícia lenta que não pre- cou observando, sai da penumbra e atravessa
tende se transformar em masturbação. Outro o corredor, esquivando-se das poças de água e
rapaz se aproxima dele até que seus braços se de cerveja que se misturam no chão comple-
rocem, observa-lhe o pênis durante vários se- tamente molhado. Minutos depois, entra no-
gundos, estica sua mão até tocá-lo, mas antes vamente com um copo plástico na mão cujo
de conseguir fazê-lo, o homem seminu dá meia conteúdo seguramente é  , a única
volta e se coloca em outro lugar da penumbra. bebida alcoólica que se distribui de maneira li-
Ao mesmo tempo, um rapaz que observa- berada dentro da boate. O garoto se coloca em
va a cena se aproxima do homem que ainda outro ponto da penumbra e apenas observa,
acaricia o próprio pênis. Passa-lhe a mão pelo sem permitir que alguém comece uma aproxi-
rosto, tenta beijá-lo. O outro esquiva-se deli- mação erótica.
cadamente, virando o rosto da esquerda para Dois rapazes se aproximam do casal que fa-
a direita, impedindo que seus lábios se unam. zia sexo oral. Um deles os observa. Acende seu
No entanto, permite que aquele desconhecido telefone celular perto do intercurso oral crian-
lhe acaricie o pênis. O rapaz insiste em beijá-lo do uma fileira fina de luz de tom verde, que lhe
e, enquanto o masturba, aproxima a mão do permite observar a cena com detalhe. O outro
outro para seu próprio pênis, sinalizando que rapaz passa uma de suas mãos pelas nádegas
também deseja ser masturbado. Segundos de- de quem está sendo “chupado”3, mas este lhe
pois ambos se unem em um beijo intenso. impede continuar a caricia mediante um gesto
O casal que, alguns minutos antes, estava rápido e delicado.
se abraçando, agora separam seus corpos. Ca- De repente, um rapaz alto, de corpo sarado
minham poucos passos até a parte mais escura e cabelos molhados entra na penumbra. Veste
da penumbra. Um deles, aquele que iniciou a uma camisa branca colada ao corpo, que ressal-
aproximação, abaixa-se à altura do pênis do ou- ta seus músculos peitorais e abdominais, e uma
tro, aproxima sua boca e começa a lambê-lo. calça de jeans azul apertada nas nádegas, pernas
No corredor, dois rapazes param alguns e virilha. Ele não se encosta às paredes, não faz
centímetros antes de entrar na penumbra. movimento nenhum. Fica naquele lugar do sa-
Com um gesto rápido, um deles aspira cocaí- lão perto da luz do corredor onde a penumbra
na em um papelzinho de cor prata. Oferece ao ainda não é muito espessa. Um rapaz se aproxi-
seu amigo, que também cheira e depois guarda ma e lhe oferece um cigarro, que ele não aceita.
o papel em um dos bolsos da calça. Entram. O rapaz se afasta e, com um movimento de ca-
Várias pessoas os observaram, mas ninguém faz beça, indica para um de seus amigos que dirija
comentários. Este não é um evento extraordi- seu olhar em direção do novo visitante do dark
nário, apesar de o consumo de drogas na boate room, aquele de corpo sarado percebe que está
não ser completamente freqüente e ser feito, sendo observado.
preferencialmente, nos banheiros. Ambos os Pouco depois, um grupo de três rapazes
rapazes param debaixo da linha de luz e, minu- entra na penumbra, colcando-se atrás do novo
tos depois, “internam-se” no breu. “centro das atenções”. Um deles pára justa-
Uma moça entra de mãos dadas com um mente ao seu lado e começa a acariciar seu pró-
rapaz. Pára na penumbra. Faz um comentário
ao ouvido do acompanhante, ambos sorriem e, 3. Usarei neste artigo vários termos nativos. No circui-
alguns minutos depois, saem do lugar. to pesquisado uma palavra utilizada frequentemente
para denominar o sexo oral é “chupação”.

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prio pênis sem tirá-lo da calça. Acelera a carícia possa organizar a experiência. Se na penumbra
enquanto fuma um cigarro com a outra mão. observar é importante como um primeiro crité-
O homem de camisa branca e jeans azul olha rio de seleção de parceiro, no breu o essencial é
para o pênis de seu “vizinho”, observando-lhe o não ser observado. Se a penumbra permite que
corpo inteiro. Sem poder distinguir claramente se enxergue ligeiramente os corpos e se imagine
o aspecto do rosto, coloca a mão no pênis do as partes impossíveis de se ver, no breu é neces-
rapaz e, segundos depois, os dois se dirigem até sário imaginar o corpo todo ou permitir que o
a parede lateral mais escura da penumbra. tato seja o sentido que induza a descoberta das
O garoto que só observava sai procurando formas do corpo alheio com o qual se começa
por mais cerveja e volta rapidamente. Tropeça um intercurso sexual.
com outro que, rompendo o silêncio, grita: Não quero dizer com isto que naquele lugar
“João! João está aqui?”. Ninguém lhe responde. a escuridão seja completa, total. A escuridão na
Do lado de fora, embaixo da flecha verme- sala do breu é similar à sensação de ver onde
lha, um dos funcionários da boate distribui não se vê, como quando apagamos a luz do
gratuitamente preservativos em uma cesta que quarto antes de dormir e não encontramos nos-
traz escrito: “fique esperto”. De um momento sa cama. No entanto, alguns segundos depois,
para outro, um rapaz atravessa rapidamente o quando nossos olhos se acostumam à escuridão,
corredor, chega à penumbra e toma brusca- conseguimos percebê-la entre as sombras mes-
mente em seu braço um dos garotos que co- mo que não possamos distinguir nitidamente
meçava a participar de uma masturbação: “Já sua aparência. Desta maneira, é na sala do breu
chega!”, diz, e precipitadamente o empurra onde os outros sentidos – tato, olfato e pala-
para fora do salão. dar – começam a operar com mais efetividade
Com o passar do tempo, a penumbra co- do que a visão. Diferentemente da penumbra,
meça a ficar mais cheia de gente. Muitos corpos onde todas as pessoas permanecem encostadas
se encostam às paredes, o espaço do centro se nas paredes, no breu, os corpos se espalham no
enche de homens que observam, se tocam, fu- espaço. Enquanto alguns se posicionam nas la-
mam e se acariciam. Alguns entram no breu, terais, outros caminham, transitam de um lado
outros saem pelo corredor. O ar começa a es- para o outro da sala, circulando sempre para
quentar, escutam-se respirações cada vez mais não tumultuar o centro e impedir o passo da-
aceleradas. Nesse momento, saio para buscar queles que vêm logo atrás.
uma cerveja. Volto rapidamente. Os ventilado- Os que permanecem quietos, na maio-
res que pendem do teto parecem insuficientes. ria das vezes têm seus corpos apontando para
Observo alguns rapazes secarem o suor com as frente, e mesmo que isso ocorra, no breu, são
mãos, outros se secam com suas camisas que, poucos os que se colocam de costas. Geralmen-
nessa altura da noite, muitos deles já não ves- te todos aqueles que se encostam às paredes e
tem mais. que ainda não tenham começado uma aproxi-
mação com outros rapazes, masturbam-se ou
[O BREU] acariciam seu pênis sem obrigatoriamente tirá-
lo da calça. Ao mesmo tempo, outros garotos
No espaço onde a penumbra acaba, uma caminham, alguns se acariciam, outros descem
outra dinâmica se apodera do lugar. A escu- as calças para baixo da virilha deixando o pê-
ridão fica mais densa impedindo que a visão nis e as nádegas descobertos. Aqueles que se
seja utilizada como o sentido a partir do qual se movimentam no espaço, dirigem as mãos aos

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DARK ROOM :       | 

corpos que tropeçam e dos que estão estáticos. Naquele horário, quase duas horas da ma-
As mãos procuram os peitorais, as nádegas, drugada, várias pessoas do breu levam adiante
mas, especialmente os genitais. A maioria deles relações sexuais que incluem a penetração. É aí
enfoca seu desejo nos pênis e é a partir dessa que silêncio é quebrado, não por palavras, mas
localização explícita que se inicia ou se impede por gemidos e respirações aceleradas que pre-
uma interação sexual. enchem o ambiente com uma sensação etérea,
A partir da meia-noite, quando se abre a por- na qual se mesclam calor, umidade, cheiro de
ta do dark room, o breu começa a se encher, rece- cerveja e fluidos corporais, zumbido dos venti-
bendo os clientes da casa. Mas é a partir de uma ladores, enjôo causado pelo álcool, movimento
hora da manhã que o local realmente começa dos corpos que se roçam e interpenetram, além
a “ferver”. No meio da efervescência, um rapaz da música que, vinda do balcão, no dark room
passa ao meu lado. Eu estou quieta encostada na soa como um barulho distante.
parede. Passa a mão no meu peito, e rapidamen- As relações em que ocorre a penetração cha-
te descobre que sou mulher e, portanto, pelo mam sempre a atenção das pessoas presentes,
menos naquele momento, que não sou objeto que se aproximam para enxergar de perto ou
de seu desejo. Continua caminhando. tentar começar um Baco.4 Como observar no
Outro rapaz entra no salão e atravessando breu não é fácil, alguns dos rapazes “trasladam” a
a penumbra diz em voz alta: “Vinte centíme- penumbra acendendo relógios, celulares, isquei-
tros chegou!” e entra na escuridão, unindo-se ros ou fósforos. Aqueles que não se interessam
à massa de gente que circula de um lado para por observar, mas por participar, fazem carícias
outro. Alguns minutos depois, dois rapazes nos dois homens envolvidos na transa, caso eles
entram no dark room, um deles aponta outro permitam ou não a intervenção de terceiros.
com o dedo indicador, rompendo o silêncio ao Muitas vezes, as carícias são aceitas. Então,
falar em voz alta: “Essa aí voltou mais doida de unem-se ao duo outros rapazes que vão che-
Londrina!”. Outros rapazes observam quem foi gando um a um até formarem uma turma. Es-
apontado e continuam em suas posições sem tes interagem tocando os pênis e as nádegas dos
fazer nenhum comentário. outros, penetrando e sendo penetrados, mas-
Um garoto está em uma das paredes late- turbando-se ou praticando a felação entre si.
rais acariciando o pênis. Um dos meninos que Por meio de sussurros, às vezes se dizem coisas
transita pelo centro do breu dirige a mão para como: “quer dar?”, “Pô, chupa aí!”, “Pô estou a
ele e começa a acariciá-lo. O primeiro rapaz fim de comer!”, “Gostoso!”.
aceita a carícia e o aproxima de seu corpo. En- Tenho escutado algumas pessoas dizerem
tão, passa a mão pelas nádegas do outro, que em voz alta: “Chegou a vagabunda!”, “Um me-
ao mesmo tempo em que aceita a carícia, tenta tro está aqui!”, entre outras frases do mesmo
beijá-lo. Beijam-se. Minutos depois, o garoto estilo.
que começou a aproximação se vira de costas Para alguns rapazes o dark room é um lugar
com a intenção de que ambos os corpos fi- de passagem dentro da boate, no qual só se entra
quem posicionados de frente em relação às de-
mais pessoas da sala. Abaixa a calça à altura dos 4. Baco é uma palavra utilizada em diversos ambientes
joelhos e, por meio de movimentos ligeiros, é gays cariocas. O pesquisador Luiz Felipe Rios (2004,
penetrado. Quase todas as vezes que presenciei p. 94) define baco como “uma forma condensada de
penetrações, estas eram feitas com os corpos na bacanal; refere-se ao que, em geral, se conhece como
posição descrita acima. práticas sexuais (masturbação, felação, sexo anal etc.),
onde duas ou mais pessoas estão envolvidas”.

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 | M E D B

após ter permanecido tempo suficiente na pista geralmente circulam pelo restante da boate
de dança, no balcão ou na sala de sinuca, uma e, na pista, sua interação se limita a observar,
vez a boate começa a atender seu público a partir aproximar-se de um ponto de abastecimento de
das 22 h, e só duas horas depois abre a porta do cerveja, falar com o DJ ou com algum dos fun-
quarto escuro. Por este motivo, quando os rapa- cionários. Às vezes, os garotos solitários se diri-
zes entram no dark room, já passaram por diver- gem ao salão de espelhos e dançam observando
sas experiências durante a noite. Neste sentido, a si mesmos. É comum que, em um momento
o dark room, e especialmente o breu, rompem avançado da noite, aqueles que continuam soli-
com a estrutura que guia o ritual de pegação do tários na pista de dança e desejam começar um
restante da boate e particularmente com a dinâ- intercurso sexual, dirijam-se ao dark room.
mica que se experimenta na pista de dança. Além da diversão, a dança permite aos rapa-
Percebi pela etnografia que a pista de dança zes se mostrarem atraentes, chamarem a atenção
funciona como uma passarela e um laboratório do sujeito de seu desejo. A pista é uma espécie
de performances que possui certas regras em de vitrine onde as pessoas podem mostrar-se
relação ao uso do espaço e do corpo muito di- utilizando seu visual, seus corpos e os passos de
ferentes daquelas do dark room. Na pista, os ga- dança como mecanismos para atrair e encontrar
rotos que possuem corpos malhados são quase parceiros. Enquanto na pista é importante ob-
exclusivamente os únicos que tiram suas cami- servar esse outro em quem se deposita o desejo,
sas e geralmente ficam junto às esquinas do sa- no breu a pegação fica “nas mãos” da escuridão,
lão. Os modos de se vestir são similares: calças “pega-se no sorteio”, como muitos dizem.
jeans azuis ajustadas às pernas e camisas sem No entanto, essa dança tem suas normas e
mangas, de malha, de cor branca ou preta. limites: foi masculinizada, é uma manifestação
No gueto gay5 estes rapazes são chamados de mais da masculinização da imagem gay, obede-
barbie. O estilo “barbie” é um dos mais deseja- ce a certas técnicas corporais generificadas.
dos no nível erótico e representa uma das esté- Quem dança e se importa com essa “norma”
ticas gays mais aceitas nestes circuitos. É pouco tem que prestar atenção aos limites dos movi-
comum encontrar alguém considerado barbie mentos corporais para não se afastar dos câno-
fazendo pegação no breu. Se entrar no dark nes valorizados. Quem transgride essa
room, geralmente está acompanhado por outra performance e “se solta muito”, ou faz um uso
pessoa com quem já começou uma paquera ou do corpo que não seja basicamente masculino,
uma aproximação corporal na pista de dança. corre o risco de ser acusado de exdrúxulo, ridí-
Também nos cantos da pista de dança se culo, por ter passado do ponto na extravagância
localizam os homens que estão sós (é estranho e na excentricidade. Então, frente à possibilida-
encontrar alguém que não esteja acompanha- de de encontrar um parceiro, a dança deve ser
do dançando no centro da pista). Estes homens suficiente atraente para chamar a atenção, mas
prudente para não estragar a possibilidade de pe-
gação. A paquera, quer se esteja dançando ou
5. A palavra gueto referese aos indivíduos homossexu-
não, começa com os olhares, dificilmente com
ais, “entendidos” ou conhecedores das dinâmicas dos
“mundos gays” e seus locais de socialização como, por os toques ou sarrações6. Olhar é o ponto-chave:
exemplo, boates, saunas, cinemas, parques. Gueto,
como explica Perlongher (1987) é uma área nômade, 6. A palavra sarração faz parte do vocabulário do cir-
que se desloca com a população envolvida e que não cuito. Rios (2004, p. 81) a define como o ato de
possui um limite geográfico fixo, dependendo da mo- “esfregar-se, roçar as partes erógenas em busca de ex-
vimentação das redes. citação sexual”.

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DARK ROOM :       | 

quem está interessado no outro o olha sutil- nos espaços iluminados. Ou seja, pessoas que
mente, em intervalos, durante os quais dá goles na penumbra, na pista de dança ou no restante
em seu copo de cerveja ou faz algum comentá- da boate não teriam “sucesso” ou teriam menos
rio ao pé do ouvido de quem está perto. Olha possibilidades de arranjar um encontro íntimo,
insistentemente, mas guardando algum limite podem no breu se relacionar sexualmente com
para não parecer desesperado. Quando a outra pessoas que quiçá em outro contexto as exclui-
pessoa percebe que está sendo alvo de observa- riam, ou podem se relacionar com aqueles que
ção, pode corresponder olhando quem a obser- se dirigem ali pelos mesmos motivos, porque
va de forma recíproca ou descartá-la, desviando estão sendo rechaçados pela aparência, cor ou
o olhar para outro lugar da pista, ou não cru- estilo: geralmente os considerados muito feios,
zando os olhares, novamente, com quem come- muito negros, muito gordos, muito velhos,
çou o ritual de pegação. Uma vez que ambos muito efeminados ou alguma imbricação destas
demonstrem interesse na interação, inicia-se características. A escuridão produz anonima-
uma troca de palavras ou dançam alguma mú- to e este admite a produção de novos códigos
sica juntos. Se o interesse progredir, podem di- de interação cuja mediação direta é o segredo.
rigir-se às quinas da pista onde a interação passa Pessoas que possuem gostos por indivíduos que
do verbal aos contatos corporais, como o beijo não são os mais aceitos no mercado erótico ou
e a sarração. Os espelhos que pendem do alto por práticas sexuais como “dar”, que hierarqui-
das paredes, além de servirem para admirar os camente se situa abaixo de “comer”, podem no
outros dançando e a si mesmo, servem como dark room encontrar essa liberdade proporcio-
mecanismo para cruzar olhares e começar pa- nada pelo anonimato.
queras, compartilhar sinais e gestos que indi- O dark room, por outro lado, possui uma
quem gosto ou desinteresse. A oralidade na temporalidade que está influenciada pela tem-
pista de dança é muito mais valorizada do que poralidade da boate como um todo. Da meia-
em lugares de pegação como parques ou dark noite às quatro horas, as coisas costumam
rooms, e nem sempre uma aproximação, mes- acontecer da maneira anteriormente descrita
mo que desejada, culmina em sexo. variando apenas em relação ao número de par-
No dark room, ao contrário, a intenção na ticipantes e na intensidade referida aos estados
maioria das vezes é explícita. Não conseguir emocionais e às sensações causadas pelo calor,
levar adiante uma relação sexual, ou não con- os cheiros, a multidão, o cansaço, a dança, a
seguir masturbar ou ser masturbado, fazer sexo festa no restante da casa e os estados alterados
oral ou recebê-lo pode ser pensado nesse con- de consciência pelo consumo de bebidas alcoó-
texto como um infortúnio7. De fato, a densi- licas e drogas, em menor escala.
dade da escuridão garante que o ritual possa A sala da penumbra, com o passar das ho-
ocorrer da maneira como ocorre. A escuridão ras, muda de características. Quando o breu se
não faz parte da estrutura do ritual, a escuridão encontra completamente abarrotado, as coisas
é a sua própria estrutura. que acontecem ali quase exclusivamente (como
Assim, o breu, para aqueles que dispensam as penetrações), deslocam-se também em dire-
completamente a penumbra, parece ser um me- ção à penumbra, ocasionando uma homoge-
canismo para encontrar um parceiro sexual sem neização das ações dentro do espaço total.
ter que passar pelos olhares seletivos presentes Quatro horas da manhã é um momento
liminar: representa um deslocamento de um
7. À exceção das pessoas que entram no dark room com período temporário e relativo para uma outra
intenções voyeuristas.

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 | M E D B

situação. Nessas alturas da madrugada, o tem- flecha vermelha fazendo de conta que nunca
po da boate está terminando e o dark room so- se conheceram.
fre movimentações. Algumas das pessoas que
tinham permanecido a maior parte da noite ali,
saem querendo aproveitar as últimas horas na O poder dos gestos para dizer e para
pista de dança ou para beber os últimos copos fazer
de cerveja. Vários daqueles que permaneceram
na penumbra ou no breu, e que não haviam se [...] E é que o gesto não pode ser considerado como
relacionado da maneira desejada no princípio, uma expressão do indivíduo, como uma criação
apressam-se em começar um intercurso que sua [...] nem sequer pode ser considerado como seu
satisfaça seus desejos e intenções. Igualmen- instrumento; pelo contrário, são os gestos os que nos
te, vários daqueles homens que durante sua utilizam como seus instrumentos, seus portadores,
permanência na boate não tiveram “boa sor- suas encarnações.
te” na pegação ou que desejavam se relacionar A imortalidade, Milan Kundera.
com outras pessoas, entram no dark room para
“pegar as sobras”, expressão que escutei pejo- Se concordarmos com Milan Kundera, po-
rativamente e que se refere às relações que se demos entender que o gesto possui agência e
dão na escuridão nas altas horas da madrugada, é ele quem usa a nós próprios, seres humanos,
indicando-as como últimas possibilidades de como ferramentas a partir das quais se aciona
intercursos. algo. A partir deste ponto de vista, o gesto não
Entre 4h45 e 5h, um dos funcionários da diz, o gesto faz, sendo uma expressão do tipo
boate acende a luz do quarto, eu diria que de performativo.
forma intempestiva. Notei que, apesar de cos- Austin (2002 [1962]), de alguma maneira,
tumeiro, isto sempre causa surpresa às pessoas concorda com Kundera. Para ele, as expressões
que ali estão, creio que pelo fato de que no dark performativas são aquelas que, mediante sua
room o tempo parece correr em um ritmo mais pronunciação, realizam uma ação e não apenas
lento do que no restante da boate, quiçá pelas uma descrição. Sendo estas expressões possíveis
sensações causadas pela escuridão ou ainda pelas de se realizar não somente por meios verbais, mas
carícias íntimas e pelo silêncio compartilhado. também mediante os gestos. A tipologia austi-
A luz apenas dá um tempo para as pessoas niana permite lidar com aquelas coisas ditas, que
se ajeitarem. Aqueles que não estão completa- não são ditas por meio de palavras, e estender a
mente vestidos arrumam a roupa em seu devido análise às coisas/atos que, em um contexto ritual,
lugar. A luz impede vários deles de continuar correspondem a um fenômeno performativo.
praticando a penetração, felação ou beijo. To- No dark room, os gestos que os indiví-
dos saem dali e se dirigem a outros lugares da duos efetuam são essenciais para estruturar as
boate, já que ela fechará suas portas, aproxima- relações; por meio deles se organizam formas
damente, meia hora depois. particulares de negociação e distribuição dos
Algumas das relações que se estabeleceram papéis que permitem realizar o ritual satisfato-
na escuridão continuam no balcão da casa riamente. Por isso, têm uma força performativa
ou na pista de dança com conversas, troca de e “ilocucionária” formal: um ato gestual marca
números telefônicos ou beijos. Alguns casais formalmente o começo de uma interação, de-
saem juntos da boate imediatamente quando lineia seu desenvolvimento e igualmente deter-
a luz é acesa. Outros se separam embaixo da mina seu fim.

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DARK ROOM :       | 

Na escuridão nada ou poucas coisas são Alguns dos signos/gestos-chave desta et-
pronunciadas: os signos que transitam são nografia, como localização no espaço, beijar,
determinados pelo contexto da situação, per- acariciar o pênis, focar o desejo no pênis, ter
tencem a uma natureza distinta das palavras a nádega descoberta etc., fazem algo acima
(silêncio, movimentos, localizações, senhas, de dizer algo e nesse fazer alguns de seus sig-
toques, corpo). Estes signos são comparti- nificados conduzem a metáforas. Ao analisar
lhados na situação da pegação e só ali fazem os gestos ou qualquer outra expressão, ensina
sentido. As pessoas que participam do ritual Austin, é necessário observá-los não de forma
de pegação no dark room sabem perfeitamente isolada, mas em relação ao contexto em que se
como manipular os signos, conhecem o poder desenvolvem, aos procedimentos e as relações
que os signos têm para expressar vontades e envolvidas. Seguindo esta sugestão, interessa-
criar ações, existindo uma manipulação ciente me agora explicar os significados desses gestos
deles e nada arbitrária, contradizendo assim e sua força ilocucionária para entender como
Saussure (1994 [1916]). as dinâmicas que suscitam organizam aquela
Jakobson (1968 [1960]) chama a atenção experiência ritual.
sobre a forma como os signos são manipulados No breu as pessoas costumam andar ou per-
de maneira intencional para fazer o mundo e manecer encostadas às paredes. Aqueles que se
como estes podem ser usados como meios de encontram encostados às paredes estão de fren-
comunicação de mensagens. Esta função me- te, às vezes se masturbam, às vezes apenas se
tafórica dos signos foi definida por Jakobson acariciam, às vezes só observam, mas sempre
como a função poética e metalingüística. Que- estão de frente. Esta localização do corpo, esse
ro sublinhar aqui como essa função metafórica “estar de frente” no dark room significa que a
dos gestos, pensando em Jakobson, tem rela- pessoa não deseja começar o intercurso sexual
ção com a força ilocucionária que caracteriza a sendo acariciado em suas nádegas e que possi-
análise de Austin. Já tenho mencionado que a velmente não desejaria exercer o papel de pas-
ilocução consiste em provocar a compreensão sivo sexual.
do significado, só que esses significados no dark As pessoas que se movimentam pelo espa-
room também possuem uma força metafórica ço, ao mesmo tempo em que vão tateando (e
que, como conseqüência do conhecimento que testando) os corpos que encontram no cami-
os agentes têm do funcionamento dos signos, nho, vão sendo tateadas e testadas pelos outros.
são compreendidos e manipulados. Ao caminhar, estes expõem tanto suas nádegas,
Ao invocar um mantra de exorcismo, Tam- quanto seu genital ao contato alheio. Embora
biah (1968) diz que não há ignorância nem in- isso não queira dizer que todos os que cami-
genuidade dos nativos, eles sabem quais signos nham estejam obrigatoriamente dispostos a
são signos, quais palavras servem para exorci- serem os passivos sexuais, sugere que eles per-
zar os demônios, qual é o poder das palavras e mitiriam que esse tipo de interação ao menos
como elas atuam em domínios que não são os fosse tentada.
nossos. No dark room aqueles signos que per- Se alguém efetua o ato ilocucionário de
tencem ao discurso da comunicação não verbal colocar a mão na nádega de quem caminha e
e que são manipulados intencionalmente têm este o permite, então o primeiro poderá com-
força ilocucionária porque suscitam respostas e preender que pode começar uma relação eró-
têm força metafórica porque podem remitir a tica na qual ele será o penetrador. Igualmente,
uma mensagem que não é somente referencial. masturbar-se e acariciar o pênis é um claro ato

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 | M E D B

ilocucionário que convida os outros a intera- organização ritual depende da troca de expres-
girem – pelo menos em princípio – de uma sões performativas.
maneira muito específica: mediante o “uso” Um exemplo destas negociações são os bei-
do pênis. Pelo contrário, se uma pessoa nega a jos. Ao tentar beijar alguém se espera que esse
possibilidade a outrem de acariciar seu pênis, outro aceite. Uma vez que ambos aceitam se
isto pode significar que não existe interesse em beijar, geralmente começa uma relação de dois
começar uma aproximação com o sujeito em e assim é normalmente entendido pelos outros.
particular, que deseja ser acariciado e possivel- Nos bacos, ao contrário, nem sempre as pessoas
mente penetrado, ou que não há interesse em se beijam, a boca fica mais para outro tipo de
penetrar. A elucidação do significado do gesto interações: o sexo oral, por exemplo.
depende de outros atos ilocucionários e perlo- No contexto da escuridão, a localização no
cucionários complementares. espaço também diz e faz algo. Descrevi que
Tenho descrito que a maioria das pessoas algumas pessoas se localizam nos cantos e al-
dirige as mãos aos pênis dos outros localizan- gumas nas paredes laterais. Geralmente quem
do seu desejo diretamente ali. Contudo, este deseja ter uma relação exclusivamente de casal,
ato, paradoxalmente, é independente da inten- onde as carícias são muito íntimas (como a
ção de distribuir as atitudes passivo/ativo; por penetração) permanecem nos cantos, preferen-
isso acredito haver metáfora no uso dos sig- cialmente naqueles mais escuros. Desta manei-
nos. Tocam-se os pênis como primeira forma ra, evitam ser interrompidos por outras pessoas
de aproximação porque assim se estruturou a que poderiam desejar participar no interlúdio.
participação ritual, porque é um passo a seguir De fato, todos reconhecem que quem está nos
(quase obrigatório) que legitima a permanên- cantos não pretende participar de um baco.
cia no espaço e no ato. Inclusive para aquelas Pelo contrário, é nas paredes laterais onde os
pessoas que não estão interessadas em mastur- bacos acontecem, os participantes sabem que
bar, fazer sexo oral ou serem penetradas, sua estão expostos a interferências.
participação os empurra a interagir indireta ou Do mesmo modo, realizar uma penetra-
parcialmente com o genital de outro ou que ção na penumbra é também uma expressão
outros interajam (pelo menos olhando) seu ge- com força ilocucionária que geralmente recebe
nital, inclusive, sem tirá-lo da calça. como resposta a aproximação de muitos outros
Gestos ilocucionários como os descri- que tentarão participar observando ou inician-
tos anteriormente em uma negociação sexu- do um baco.
al dependem de outros atos ilocucionários e Mencionei também que na maioria das re-
perlocucionários para a efetivação do ritual. lações sexuais com penetração ambos os cor-
Ou seja, algumas expressões ilocucionárias pos, ativo e passivo, colocam-se de frente à
não terminam até que o outro, gestualmente, multidão. Esta localização também faz algo,
responda positiva ou negativamente à ilocu- permite a quem está sendo penetrado manter
ção. Finnegan (1969) chama a atenção sobre o controle da situação, ou seja, saber quem o
como o intercâmbio de atos ilocucionários é, está penetrando (na medida das possibilidades
de muitas formas, análogo ao ato de dar e re- que permite a escuridão). Ao mesmo tempo lhe
ceber um presente, questão que nos remete a permite ter livre seu pênis para a possível apro-
Mauss (1974) para quem a dádiva gerada pe- ximação de um terceiro.
los presentes é uma maneira de reconhecer e De forma geral, os gestos conformam um
manter relações sociais. Assim, no dark room a estilo de comunicação indispensável neste tipo

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DARK ROOM :       | 

de contexto de pegação. Para alguns rapazes, a parte de certas pessoas, em circunstâncias ade-
gestualidade é a contrapartida do uso das pala- quadas. Além disso, o procedimento deve se
vras que se relega preferencialmente a situações realizar por todos os participantes de forma
nas quais as interações se dão com pessoas co- correta, em todos seus passos. Naqueles pro-
nhecidas ou com pessoas pelas quais se sente cedimentos que requerem que as pessoas que
algum afeto. O gesto funciona no dark room os efetuam possuam certos pensamentos ou
porque ali a intenção, majoritariamente, não sentimentos e que estão dirigidos a que ocorra
reside em conhecer o outro, ao contrário, a uma conduta correspondente dos participan-
composição mesma se baseia em seu desconhe- tes, precisa-se que tais participantes possuam
cimento8. tais pensamentos e sentimentos e que estejam
animados para conduzir-se da forma adequada,
comportando-se efetivamente em sua oportu-
Os infortúnios do dark room nidade. A transgressão, de uma ou várias destas
normas, causará o infortúnio da expressão.
Austin (2003 [1962]) explica que ao pro- Austin sublinha os seguintes casos de infor-
nunciar as palavras correspondentes à expres- túnios: Desacertos ou atos intentados, mas nu-
são performativa é necessário, como regra geral, los que por sua vez se dividem em: i) Apelações
que outras coisas aconteçam bem para que se ruins ou atos não autorizados presentes quando
consiga dizer que a ação foi executada com su- não existe um procedimento ou quando este
cesso. Se uma das convenções que compõem a procedimento não pode valer da forma em que
expressão não cumpre os requisitos, não se diz se tentou, aplicando-se mal. ii) Execuções ruins
que a expressão é falsa, mas infortunada. Aus- ou atos afetados presentes quando o procedi-
tin chamou de doutrina dos infortúnios às coisas mento existe e é aplicável à situação, mas falha
que podem sair mal durante tais expressões. na execução do rito criando atos viciados ou
No geral, tais regras, segundo Austin (2003 atos inconclusos.
[1962], p. 56), supõem um procedimento O outro tipo de infortúnio é chamado de
convencional aceito, que possua um efeito abusos ou atos pretendidos, mas ocos, isto é,
ajustado e que inclua – como expliquei ante- aqueles onde o ato é realizado sem os senti-
riormente – a emissão de certas palavras, por mentos e sem os pensamentos necessários para
sua efetuação. Sendo assim, são considerados
insinceros.
8. Escrevo a palavra majoritariamente porque não é pos-
Ronald Grimes (1996) opina que a análi-
sível generalizar em se tratando de intenções e pro-
pósitos de participação no ritual. Mesmo que muitos se dos infortúnios, proposta por Austin, deve
opinem que não seja viável começar um namoro a considerar o contexto ou situação social como
partir de um encontro no dark room e que ali entrem um todo e não as palavras soltas. Deve também
para arranjar uma relação sexual casual, é necessário ser adicionada a psicologia do ritual, ou seja,
não esquecer a dimensão das projeções ideais de al- aqueles abusos que se podem inferir pelos tons
guns deles. Mesmo tendo relações sexuais ocasionais
de voz, modos gramaticais e gestos.
nestes espaços, muitos rapazes compartilham a idéia
de uma ética conjugal, desejam encontrar uma pessoa É importante destacar que nem todas as
para se relacionar e estabelecer um comprometimen- expressões performativas, nem todos os atos
to, um namoro. O gueto, mesmo se tratando de um rituais estão expostos a estas formas de infortú-
espaço de vínculos impessoais como o dark room, re- nio. O dark room não é exceção a esta regra. Os
presenta, para vários, o lugar onde se pode achar um infortúnios que acontecem ali pertencem, em
parceiro ideal.

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 | M E D B

sua maioria, ao tipo dos desacertos (com suas pessoas durante o transcurso da noite saem e
apelações e execuções ruins), sendo os abusos se dirigem para a porta da boate para comer
muito menos freqüentes. churrasquinho, cachorro-quente ou caldo de
Contudo, há um tipo de infortúnio que se mocotó, ou à portaria para comprar cigarros,
apresenta no dark room que bem poderia per- chicletes ou balas de menta. Também compram
tencer a uma categoria em que se reúnam am- fichas para a mesa de totó e para a sinuca, ou
bos: desacertos e abusos. Tenho indicado que compram batatas fritas ou frango à passarinho
no breu as coisas que não se desejam fazer se no balcão.
explicam mediante gestos, os quais todos com- Há sessenta armários à disposição do públi-
preendem e que não dão margem a atitudes de co, número insuficiente nas noites que em que
violência. Não obstante existam, muito even- entram aproximadamente mil clientes. Por este
tualmente, atos que têm gerado experiências de motivo, são poucas as pessoas que usam os ar-
violência na escuridão e que, embora tenham mários. Alguns deixam seus pertences guarda-
sido menos freqüentes do que poderiam (con- dos ali antes de entrarem no dark room, outros
siderando o contexto da situação) têm ocorrido os deixam aos cuidados de amigos ou entram
e sido lembrados pelas pessoas e têm consegui- com eles na escuridão, conscientes do perigo
do, de alguma maneira, mudar seus compor- de serem furtados.
tamentos. Outros tipos de infortúnios, certamente os
Refiro-me aos roubos. Esse procedimento é mais comuns, relacionamse com as execuções
facilitado por um contexto caracterizado pela ruins dos atos rituais, especialmente os que
escuridão, o anonimato e a multidão, mas ob- geram atos inconclusos ou Hitches em termos
viamente não faz parte das normas do ritual, de Grimes (1996, p. 286). Refiro-me àqueles
afastando-se das expectativas da cerimônia. A atos muito corriqueiros no breu e na penum-
partir deste ponto de vista, poderíamos dizer bra, como não aceitar a carícia de uma pessoa
que o roubo é um infortúnio relativo a um ato que com ela pretende começar um intercurso
não autorizado, segundo Austin. Poderíamos sexual, ou aceitar a aproximação desse outro,
dizer também que o roubo é o que Grimes mas não consentir com alguns de seus pedidos,
(1996, p. 285) chamou de infortúnio Nonplay, como fazer sexo oral, ser penetrado ou mesmo
isto é, um procedimento que não existe dentro ser beijado.
das convenções do ritual. Por outro lado, o rou- É importante considerar que existem pesso-
bo é também um abuso do tipo das insinceri- as mais autorizadas do que outras para se “dar
dades. Espera-se que quem entra no dark room bem”. Existe uma preferência por pessoas de
tenha pensamentos e sentimentos sinceros de aparência atraente, de corpos que despertam o
relacionar-se sexualmente com outros homens desejo erótico dos participantes do rito. Portan-
sem aproveitar aquela situação para furtar. to, é muito mais comum que sejam as pessoas
As situações em que têm acontecido roubos antagônicas ao padrão de beleza amplamente
ocasionaram mudanças nos comportamentos: aceito que mais encontram impossibilidades
as pessoas tentam ingressar ao dark room sem para concluir a cerimônia. Não obstante, estes
seus pertences de valor, especialmente, sem tipos de infortúnios no dark room são passagei-
levar carteiras nos bolsos da calças. Dentro da ros. Aquelas pessoas que são rejeitadas por ou-
boate circula pouco dinheiro porque, como tro ou por algum grupo, minutos após podem
expliquei antes, a cerveja, água e refrigerante mudar o jogo, pois a dinâmica do ritual lhes
são de distribuição liberada. Contudo, algumas permite, inclusive, concluir seu ato com outro

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ou outros participantes, e serem eles mesmos ritual como um todo. De qualquer forma, fica
quem, posteriormente, impedem a aproxima- a dúvida: se o ritual maior se compõe das in-
ção de um terceiro. Igualmente, estas pessoas tenções individuais de seus participantes, cabe
consideradas feias ou não atraentes, estão pro- nele a possibilidade de que alguns homens in-
pensas a sofrer mais infortúnios na penumbra gressem ao dark room com o propósito de des-
do que no breu, uma vez que para eles dispen- pertar ciúmes em seus parceiros. Neste caso,
sar a penumbra é uma estratégia de levar adian- participar do ritual seria um ato ilocucionário
te o rito satisfatoriamente. que teria como resposta ou perlocução justa-
Os rituais denominados por Grimes (1996, mente a manifestação de ciúmes.
p. 285) de Flaws, cujos procedimentos se em-
pregam incorretamente ou de forma vaga ou
mediante fórmulas não explícitas, acontecem As palavras que rompem o silêncio:
também no dark room, embora com menos sua força performativa
freqüência do que os de tipo inconcluso. Um
exemplo são as pessoas que ingressam ao dark Embora no dark room impere o silêncio,
room pela primeira vez. Embora estes possam existem algumas palavras que valem a pena se-
ter referências prévias sobre as formas como os rem contempladas por sua força performativa.
gestos recriam expressões performativas, sua Austin chama a atenção sobre as ações que oca-
gestualidade “novata”, “tímida” ou uma inade- siona a linguagem, contrapondo-se à metodo-
quada localização no espaço podem criar mal logia que tem atribuído um caráter privilegiado
entendidos. Os gestos dos novatos ou iniciados, aos enunciados de tipo descritivo. Expressões
ou inclusive os gestos dos “outsiders” (pessoas performativas como, por exemplo: “prometo
muito bêbadas, muito excêntricas ou ignorantes te devolver o livro amanhã”, ditas em certas
da linguagem gestual), podem ser vistos como circunstâncias, executam uma ação, no caso, a
exagerados ou improcedentes, impedindo-lhes, ação de prometer.
portanto, uma correta participação no ritual. No dark room têm lugar as enunciações de
Da mesma maneira, as mulheres no dark expressões performativas com qualidade de
room, mesmo executando efetivamente os mo- anunciar ou notificar algo e, portanto, realizar a
vimentos, gestos e localizações que legitimam declaração de um propósito. Refiro-me àquelas
o rito, tendem a ser pessoas consideradas como do tipo: “Vinte centímetros chegou!”, “Essa aí
inadequadas ao contexto cerimonial, fato pelo chegou mais doida de Londrina!”, “Chegou a
qual podem estimular infortúnios do tipo mi- vagabunda!”, “Um metro está aqui!”
sapplication (Grimes, 1996, p. 285). Cada uma destas locuções são expressões
Grimes (1996, p. 287) chama de contagion com força ilocucionária. Austin (2003 [1962],
às situações nas quais o rito transborda seus p.180) opina que até em seu mais mínimo as-
próprios limites. Na descrição da interação na pecto, enunciar algo é realizar um ato ilocucio-
penumbra, mencionei o episódio de um ho- nário, como, por exemplo, prevenir ou declarar.
mem furioso que tirou bruscamente um outro Ao mesmo tempo, o fato de enunciar pode ser
de uma interação, puxando-o pelo braço. Não uma expressão constatativa da mesma maneira
tenho certeza de que contagion seja a categoria que uma expressão do tipo “o gato está sobre a
mais adequada para denominar atos como os almofada” pode ser verdadeira ou falsa.
ciúmes. Não obstante, acredito que os ciúmes Assim, o enunciado “Vinte centímetros
são situações que ultrapassam as intenções do chegou!” é constatativo na medida em que

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pode ser verdadeiro ou falso; pode ser mentira para muitos, neste contexto, aceder a ser o pri-
que o homem que o disse tenha um pênis de meiro em fazer sexo oral significa que é tam-
vinte centímetros. Ainda sendo constatativo bém quem mais disposto estaria a permitir ser
tem força ilocucionária porque tem um efei- penetrado. Assim, da resposta que o receptor
to que consiste em provocar a compreensão de dará a essa pergunta (seja negativa ou positi-
seu significado. va) dependerá a forma como pode chegar a ser
Da mesma forma, dizer “Vinte centímetros visto ou interpretado no contexto ritual e, des-
chegou!” dentro do dark room é um enunciado ta maneira, pode determinar as formas de sua
performativo porque a expressão é produzida participação.
sob certas circunstâncias apropriadas em um Por outro lado, expressões como “chupa aí”
contexto social que admite sua enunciação. Se têm o mesmo efeito de “fecha a porta”. Estes
o enunciado fosse dito dentro de uma igreja, enunciados ordenam (ou sugerem) a execução
por exemplo, não deixaria de ser performativo, de um ato e nisso consiste sua força ilocucio-
simplesmente estaria exposto a ser um infortú- nária. A expressão “estou a fim de comer” no
nio que Grimes (1996) chamou de Nonplay. contexto do dark room mais que a simples
As palavras mencionadas, que rompem o descrição de um desejo, anuncia a intenção de
silêncio do dark room, são performativas por- converter esse desejo em um ato.
que são explicitamente uma declaração. Quem Seguindo a caracterização tríplice dos atos
as disse não só leva a cabo o ato de declarar, de fala como os descreve Austin, poderia se
mas também pode despertar efeitos em quem dizer que na expressão “chupa aí” o ato locu-
as escuta. Sob este ponto de vista, não só di- cionário consiste na produção dessas duas pa-
zem algo, mas afirmam que fazem algo: podem lavras, o ilocucionário consiste em que se deu
despertar o interesse sexual em quem escuta a uma ordem ou uma sugestão e o perlocucioná-
mensagem ou podem simplesmente ser toma- rio terá sido que o outro a recebeu como uma
das como uma brincadeira. graça, um convite ou uma ofensa, dependendo
Outro tipo de expressões verbais tem lugar da relação que exista entre eles, do contexto
no dark room, como por exemplo: “chupa aí”, social da situação e dos estados emocionais de
“quer chupar?”, “estou a fim de comer”, “você quem a vive.
dá?”, “gostoso”. Perguntar a alguém no contex- Outras expressões verbais ou locuções com-
to do dark room (e em geral no contexto da postas por palavras chulas que não mencionei
pegação) “você dá?” ou “quer chupar?” são atos neste artigo, mas que fazem parte da pegação,
performativos com força ilocucionária cuja parecem fazer muito mais sentido em uma
perlocução pode dar-se por meios verbais ou interação cujo contexto da situação esta ca-
gestuais. Já o efeito que a pergunta suscita em racterizado pelo anonimato, a escuridão, o des-
quem a recebe, depende, em grande medida, conhecimento do outro e a carência de afetos
da organização das relações sociais. Neste sen- ou sentimentos para esse outro desconhecido.
tido, “aceitar chupar”, seja mediante a emissão
de um sim, mediante um gesto ou mediante o
ato de começar a chupar, permite a disposição Considerações finais
dos papéis que compõem o intercurso sexual.
Ser quem faz sexo oral em uma situação Para finalizar, desejo enfatizar como os ges-
de pegação pública pode significar também tuais, as localizações e deslocamentos pelo es-
ser quem “dá”, levando em consideração que, paço físico no dark room posicionam os sujeitos

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nas relações face a face e estruturam as formas FINNEGAN, Ruth. How to do things with words: per-
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pological perspective. Cambridge: Harvard University Agradecimentos
Press, 1985. 411 p.
Sou grata a Antonádia Borges e Bruno
Gomes da Rosa pelas contribuições concei-
Notas tuais na elaboração deste artigo. A Rodrigo
Fernandes, Tatiana Siciliano e Camilo Braz
Esta etnografia foi realizada em uma boate pela cuidadosa revisão gramatical da língua
de socialização de homens que exercem práti- portuguesa.

autor María Elvira Díaz Benítez


Doutoranda em Antropologia Social/MN-UFRJ

Recebido em 31/03/2007
Aceito para publicação em 28/11/2007

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