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ANTHONY GRAFTON

tradução
Enicl Abreu Dobránszky

AS ORIGENS TRÁGICAS DA ERUDIÇÃO


PEQUENO TRATADO SOBRE A
NOTA DE RODAPÉ

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6. DE VOLTAAO FUTURO 2: O TRABALHODE


FORNlIGADOS HISTORIADORESE ANTIQuÁRIos
ECLESIÁSTICOS 129
7. CLAREZAE DISTINÇÃONAS PROFUNDEZASDA
ERUDIÇÃO:AS ORIGENS CARTESIANASDA
MODERNANOTA DE RODAPÉ 157
8. EPÍLOGO: ALGUMASNOTASDE RODAPÉ FINAIS 183

PREFÁCIO

Muitos livros fornecem notas de rodapé à história: narram


histórias marginais, reconstroem batalhas menos importantes ou
descrevem detalhes curiosos. Que eu saiba, no entanto, jamais
alguém dedicou um livro à história das notas de rodapé que
realmente aparecem nas margens das obras históricas modernas.
Todavia, as notas de rodapé são importantes para os historiadores.
De certo modo, elas constituem nas ciências humanas um equiva-
lente das referências a dados nos relatórios científicos: fornecem
suporte empírico para as histórias contadas e os argumentos
apresentados. Sem elas, pode-se admirar ou desaprovar as teses
históricas, mas não verificá-lasou refutá-las. Como prática elemen-
tar profissional e intelectual, elas merecem o mesmo tipo de
escrutínio que as anotações de laboratório e os artigos científicos
~.
to
receberam de historiadores da ciência.
Afirmações acerca da natureza e das origens da nota ele
rodapé aparecem em histórias da historiografiae nos manuais para

7
escritores de dissertações históricas. São particularmente mais
freqüentes em polêmicas sobre os bons dias de outrora, quando os
historiadores eram homens e notas de rodapé eram notas de
rodapé. Essas discussões sugerem muitas vezes que uma época -
geralmente o século XIX - e um lugar - na maioria das vezes, as
universidades alemãs do período imediatamente anterior à Primei-
ra Guerra Mundial - específicos marcaram o auge das notas de
rodapé, caracterizadas por sua solidez e exatidão. Tais afirmações,
no entanto, raramente se assentam sobre uma pesquisa ampla e
muitas vezes são feitas com o intuito antes de apoiar ou atacar as
práticas de uma dada escola do que de reconstruir suas fontes e
seu desenvolvimento. Os estudos dispersos realmente existentes,
além disso, refletem naturalmente as limitações do treinamento e AGRADECIMENTOS
das perspectivas especiais de seus autores. Os estudiosos situaram
o nascimento da nota de rodapé nos séculos XII, XVII, XVIII e XIX,
e sempre por um bom motivo, mas geralmente sem se deter nos
outros capítulos dessa história. Um objetivo de meu ensaio é
simplesmente reunir essas correntes dispersas de pesquisa. Um
outro, mais importante, é mostrar que, quando inter-relacionadas,
compõem uma história tão rica em insuspeitado interesse humano
Meu interesse sobre esse assunto se mIC10U na graduação,
e intelectual quanto muitos episódios mais famosos da história
quando li partes do Dicionário de Bayle e os Estudos em historio-
intelectual. A nota de rodapé não é tão uniforme nem tão confiável
grafia de Momigliano. Um plano, concebido com amigos, de criar
quanto acreditam muitos historiadores. Porém, é criação de um
um jornal pseudo-erudito e dedicar um número inteiro ao tópico
grupo diversificado e talentoso, que incluiu tanto filósofos quanto
infelizmente fracassou. Porém, lentamente continuei a coletar in-
historiadores. Seu desenvolvimento levou muito tempo e seguiu
formações. Por fim, uma conferência sobre prova e persuasão em
um caminho cheio de obstáculos. E sua história lança uma nova
história, realizada em 1993 no Davis Center for Historical Studies,
luz sobre muitos recantos obscuros da história não escrita dos
na Universidade de Princeton, forneceu o impulso para reunir meu
estudos históricos.
material e avançar na sua interpretação. Devo muito a Sue Mar-
chand, com quem organizei a conferência, e a Mark Phillips e
Randolph Starn, que me auxiliaram com críticas precisas ao manus-
crito original. Um rascunho revisado desse trabalho aparece, com
outros apresentados na conferência, em History and tbeory, núme-
ro temático 33 (994). Richard Vann gentilmente permitiu que,
neste livro, eu me apoiasse em minhas formulações originais.

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Um convite para passar o ano acadêmico de 1993-1994 no fora dela, viu o potencial de um livro acerca da nota de rodapé
Wissenschaftskolleg zu Berlin permitiu e estimulou o ataque à nota muito antes de mim; Petra Eggers e Maurice Olender ajudaram-me
de rodapé uma segunda vez. O Wissenschaftskolleg propiciou a torná-lo realidade.
tempo livre para trabalhar na cidade de Ranke e de Meinecke.
Finalmente, meus agradecimentos àqueles que leram a pri-
Gesine Bottomley e sua equipe na biblioteca do Wissenschaftskolleg
meira versão deste livro, publicado pela Berlin Verlagem 1994sob
encontraram os tipos de material mais comuns e mais obscuros
o título Die tragiscben Ursprünge der deutscben Fussnote, e ofere-
comi a' mesma facilidade e rapidez. Eles também me guiaram pelo
ceram sugestões para a edição em inglês: Sue Marchand e Wilhelm
magnífico labirinto das coleções de manuscritos e de livros raros
Schmidt-Biggemann, com os quais minha dívida já era grande, e
de Berlim. Tenho uma dívida especial para com a equipe do f'JeterMiller.
Handschriftenabteilung da Staatsbibliothek zu Berlin Preussischer
Kulturbesitz, Haus II, que me auxiliou a explorar as caixas pretas, Como sucessivos diretores do Davis Center, Lawrence Stone
cada uma delas uma caverna de Ali Babá, que hospedam o rico e Natalie Davis fizeram do Departamento de História de Princeton
Nachlass de Ranke; para com as bibliotecas universitárias da Freie um centro para reflexão crítica sobre o método histórico. Como
Universitãt e ela Humboldt Universitãt, e mais ainda para com as historiadores, ambos fizeram uma reflexão séria e escreveram
bibliotecas elo Meinecke Institut e do Seminar für Klassische trabalhos esclarecedores sobre a natureza dos documentos de
Philologie da Freie Universitât. Uma pesquisa anterior foi feita arquivo e os problemas da documentação histórica. Como amigos
principalmente na Biblioteca Firestone da Universidade de Prince- e conselheiros, ambos me deram, assim como muitos outros, um
ton e na Biblioteca Nacional da França; outras pesquisas comple- apoio irrestrito, muitas vezes na melhor de todas as formas para o
mentares na Biblioteca Britânica, na Fundação Hardt, no Instituto historiador: a crítica construtiva. E ambos escreveram - e irão
Warburg e, sobretudo, na Biblioteca Blodleiana, em Oxford. escrever - muitas notas de rodapé magníficas. Este livroé dedicado
como um pequeno tributo a dois mestres da arte que ele discute.
Muitos amigos contribuíram com críticas e informações.
Meus agradecimentos a ].W. Binns, Robert Darnton, Henk jan de
Jonge, Erhard Denninger, Carlotta Dionisotti,John Fleming, Simon
Hornblower, Reinhart Markner, Reinhart Meyer-Kalkus, Wilhelm
Schmidt-Biggemann,].B. Trapp, Giuseppe Veltri,David Wootton e
Paul Zanker, que contribuíram com sugestões valiosas ou fizeram
perguntas irrespondíveis. François Hartog, Glenn Most e Nancy
Siraisi fizeram a crítica de versões anteriores do texto. Tim Breen,
Christopher Ligota e Wilfried Nippel convidaram-me a apresentar
meus argumentos a um público de seminários bem informado e
crítico. Não tivesse Arnaldo Momigliano me ensinado tanto sobre
os assuntos tratados aqui, eu jamais teria me aventurado a fazer
ressalvas a uma ou duas de suas teses. Christel Zahlmann, cuja
morte foi um golpe tão duro para tantos amigos na Alemanha e
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NOTAS DE RODAPÉ:
A ORIGEM DE UMA ESPÉCIE

No século XVIII, a nota de rodapé das obras históricas


constituía uma forma nobre da arte literária. Nenhum historiador
iluminista atingiu uma escala mais épica ou um estilo mais clássico
do que Edward Gibbon em Declínio e queda do Império Romano.
E nada nessa obra divertiu seus amigos ou enfureceu seus inimigos
mais do as notas de rodapé.' Com justiça, sua irreverência religiosa
e sexual tornou-se célebre. "Em suas meditações", diz Gibbon,
historiador do imperador Marco Aurélio, marido da notoriamente
"galante" Faustina, "ele agradece aos deuses, que lhe haviam
concedido uma esposa tão fiel, tão amável ~ de maneiras tão
maravilhosamente simples"." "O mundo", reflete cortesmente Gib-
bon, o comentarista, "riu da credulidade de MarcoAurélio; porém

1. Ver, em geral, G.W. Bowersock, "The art of the footnote", American Sebo/ar 53,
1983-1984, pp. 54-62. Para o contexto mais amplo, ver o notável estudo anterior de l\l.
Bemays, "Zur Lehre von den Citaten und Noten", Scbriften zur Kritik und Litteratur-
gescbicbte IV. Berlim, 1899, pp. 255-347 e 302-322.
2. E. Glbbon, Tbe bistory of tbe decline andfall oftbe Roman Emptre. Organizado por D.B.
Womersley. Londres, 1994, cap. 4, I, pp. 108-109.

13
Madame Dacier nos assegura (e podemos acreditar em uma dama) Ele podia revestir uma citação bibliográfica com a grave simetria
que o marido será sempre enganado se a esposa se dignar a de uma peroração ciceroniana: "No relato dos gnósticos do segun-
fingir"." "O dever do historiador", observa Gibbon em sua ostensi- do e terceiro séculos, Mosheim é inventivo e sincero; Le Clere,
vamente franca investigação dos milagres da Igreja primitiva, "não tedioso, porém exato; Beausobre, quase sempre um apologista; e
exige dele que insira seu julgamento privado sobre essa bela e temos fortes motivos para crer que os pais primitivos fossem muito
importante controvérsia." "Pode parecer notável," comenta Gib- freqüentemente caluniadores."lo Ele podia acrescentar um paralelo
bon numa nota de rodapé que abandona toda pretensão de cômico com uma gravidade comumente reservada para o elogio
decoro, "que Bernard de Clairvaux, que registra tantos milagres de ou a condenação de um herói: "Para a enumeração das divindades
Se\l amigo são Malaquias, nunca se dê conta dos seus próprios, os sírias e árabes, devemos observar que Milton comprimiu, em 130
quais, por sua vez, no entanto, estão cuidadosamente relatados por versos belíssimos, os dois sintagmas longos e cultos que Selden
seus. companheiros e discípuios".? "O culto Orígenes" e alguns havia composto sobre aquele assunto abstruso."!' Ou podia saudar
outros, explica Gibbon em sua análise da habilidade dos primeiros os primeiros eruditos, todos eles bons cristãos, em cujas obras ele
cristãos a permanecer castos, "julgavam ser mais prudente desar- se baseava para milhares de detalhes curiosos, com uma combina-
mar o tentador"." Apenas a nota de rodapé esclarece que o teólogo ção singular de despreocupada rejeição de suas crenças com
evitara a tentação pelos meios drásticos da autocastraçào - e revela respeito genuíno por sua erudição." Gibbon sem dúvida estava
o julgamento de Gibbon sobre essa operação: "Como era sua certo em julgar que um relato abrangente de suas fontes, escrito no
prática geral alegorizar as escrituras, parece uma infelicidade que, mesmo estilo, teria "proporcionado tanto diversão quanto informa-
aper.as nesse caso, ele devesse ter adotado o sentido literal.,,7 Tais ção" l~Embora suas notas de rodapé ainda não fossem românticas,
comentários jocosamente sarcásticos gravaram-se como excrescên- apresentavam tudo aquilo que o estilo altamente romântico pode
cias nas memórias ortodoxas e reapareceram para assombrar seu .,?ferecer. E sua "profusão informativa" recebeu o elogio do brilhan-
autor nos inumeráveis panfletos de seus críticos." te erudito do século XIX, Jacob Bernays, assim como o de seu
irmão, o germanista Michael Bernays, cujo ensaio pioneiro sobre a
A arte de Gibbon tinha uma finalidade tanto erudita quanto
história da nota de rodapé ainda fornece mais informações e
polêrníca - exatamente na medida em que suas notas de rodapé
intuições do que a maioria de seus concorrentes. H
subvertiam, mas não apoiavam, o magnífico arco de sua história."

10. Cap. IS, n. 32; 1, p. 458.


3. Cap, 4, n. 4; ibid., p. 109. 11. Cap. 15, n. 9: ibid., p. 449.
4. Ibid., cap. 15; I, p. 473. 12. Ver. por exemplo. a nota 98 do cap. 70, na qual Gibbon faz uma revisão acurada e
5. Cap. 15, n. 81; ibid., p. 474. aprecíatlva da obra do incansável historiador e editor de textos Ludovico Antonio
6. Ibid., p. 480. Muratori, "meu guia e mestre na história da Itália". "Em todas as suas obras". comenta
7. Cap, 15, n. 96, ibid. Para uma discussão crítica recente da história da autocastraçào de Gibbon, "Muratori julga-se um escritor diligente e laborioso, que aspira a estar acima
Orígenes, ver P. Brown, Tbe body and society. Nova York, 1988, p. 168 e n. 44. dos preconceitos de um sacerdote católico" (Muratori teria afirmado que escrever uma
8. Bernays enfatiza muito essa questão. Para estudos mais recentes na mesma linha, ver história detalhada estaria compreendido nos deveres de um bom sacerdote); organizado
F. Palmeri, "The satiric footnotes of Swift and Gibbon", Tbe Eigbteentb Centurv 31, 1990, por \'(!omersley, m, p. 1.06l.
pp. 245-262, e P.\'(l Cosgrove, "Undennining the footnote: Edward Gibbon, Alexander 13. "Advertisement", I, ~ (esse texto aparece pela primeira vez sob o mesmo título no verso
Pope, and the anti-authentícating footnote", em S. Barney (org.). Annotation and its do subtítulo para as notas finais da primeira edição do primeiro volume de Declinio ('
texts. Oxford, 1991, pp. 130-151. queda. Londres, 1776).
9. Para dois estudos de caso úteis, ver j.D. Garrison, "Gibbon and the Treacherous language 14. O sintagma "lehrreiche Fülle' é de Jacob, citado como bom exemplo por Michael
of panegyrics''', Eigbteentb-Century Studies 11, 1977-1978,pp. 40-62;Garrison, "Livelyand Bernays (p. 30\ n. 34) A relação entre os dois merece um estudo. Jacob pranteou seu
laborious: Characterization in Gibbon's metahistory", Modem Philology76, 1978-1979,pp. irmão como malta quando este se converteu ao cristianismo; porém Michael emulou
163-178. a análise de Jacob da tradução manuscrita de Lucrécio no seu próprio tratamento

14 15
Atualmente, os argumentos dos historiadores ainda devem seu professor. Nesse ponto, suas notas de rodapé são apenas vistas,
saltar para a frente ou oscilar para trás em suas notas de rodapé. não lidas. Elas formam uma massa indistinta de texto impresso em
Porém .o chumbo da prosa oficial substituiu o ouro da oratória caracteres minúsculos, vista de relance no pé da página, que se move
clássica de Gibbon. No mundo moderno - como explicam os para cima e para baixo nas mãos trêmulas do balbuciante e nervoso
manuais para escritores de dissertações -, os historiadores realizam orador. Mais tarde, nos longos meses gastos na composição de uma
duas tarefas complementares." Devem examinar todas as fontes dissertação, os estudantes passam do estilo artesanal para o industrial
relevantes para a solução de um problema e construir uma nova na produção de notas de rodapé, na esperança de que seu orientador
narrativa a partir delas. A nota de rodapé prova que ambas as e outros membros da banca examinem sua obra e até mesmo futuros
tarefas têm sido levadas a cabo. Ela identifica tanto a prova colegas e empregadores fiquem impressionados com as horas de
primária que garante a solidez da novidade da história quanto as árduo trabalho no arquivo e na biblioteca, atestadas pela longas notas.
obras secundárias que não minam a forma e a tese de sua Uma vez alçados ao doutorado e empregados, finalmente, os histo-
novidade. Contudo, ao fazê-lo, ela identifica a obra de história em riadores ativos continuam a produzir notas de rodapé. Infelizmente,
questão como a criação de um profissional. Como o ruído da broca os historiadores para os quais a redação de anotações se tornou uma
do dentista, o murmúrio da nota de rodapé na página do historia- segunda natureza - como os dentistas que se tornaram totalmente
dor reafirma: o tédio que ela inflige, como a dor infligida pela habituados a infligir dor e derramar sangue - dificilmente tomam
broca, não avança aleatoriamente, mas diretamente, como parte do conhecimento de que ainda expelem nomes de autores, títulos de
custo exigido pelos benefícios da ciência moderna e da tecnologia. livros e quantidades de pastas ou de folhas em textos inéditos. No
fím, a produção de notas de rodapé, por vezes, assemelha-se menos
Como sugere essa analogia, a nota de rodapé está ligada, na
ao trabalho habilidoso de um profissional que exerce uma função
vida moderna, à ideologia e às práticas técnicas de uma profissão.
precisa com vistas a um fim mais alto do que à produção e ao arranjo
Uma pessoa se torna historiadora como se torna dentista, passando
descuidado de objetos inúteis.
por um treinamento técnico: continua-se a ser historiador, como se
continua a ser dentista, se seu trabalho recebe a aprovação de seus Como o banheiro, a nota de rodapé moderna é essencial
professores, de seus pares e, sobretudo, de seus pacientes (ou seus à vida histórica civilizada; como o banheiro, ela parece ser um
leitores). Aprender a redigir notas de rodapé constitui parte dessa assunto entediante para a conversação polida e chama a aten-
versão moderna de aprendizado. A maioria dos historiadores começa ção, na maioria das vezes, quando funciona mal. Como o
em pequena escala, durante as semanas frenéticas em que se dedicam banheiro, a nota de rodapé permite lidar privadamente com
a escrever artigos que devem ser lidos em voz alta nos seminários de tarefas feias; como o banheiro, as notas de rodapé descem
suavemente pela tubulação - muitas vezes, recentemente, nem
mesmo no pé da página, mas no fim do livro. Fora da vista, e
genealógico das edições de Goethe. Para Jacob, ver A. Momiglíano, "Jacob Bernays".
Quinto contributo alia storia degli studi classici e dei mondo antico. Roma, 1975, pp.
até mesmo fora das reflexões, parecem ser exatamente o lugar a
127-158; para sua obra sobre Lucrécio, S. Timpanaro, La genes i dei metodo dei que um dispositivo tão banal deve pertencer.
Lacbmann. 2" edição. Pádua, 1985. Para Michael Bernays, ver W. Rehm, Spâte Studien.
Berna e Munique, 1964, pp. 359-458, e H. Weigel, Nur uias du nie gesehn unrd eurg Contudo, o historiador muitas vezes precisa penetrar nos
°
dauern. Friburgo, 1989. Tanto quanto sei, terceiro irmão, sogro de Freud, Berman,
lugares escuros e malcheirosos que as pessoas civilizadas evitam.
não arriscou uma opinião sobre as notas de rodapé de Gibbon.
15. Ver, por exemplo, E. Faber e I. Geíss, Arbeitsbucb zum Gescbicbtsstudíum. 2" edição. A exploração dos banheiros e dos esgotos foi comprovadamente
Heidelberg e Wiesbaden, 1992.

17
16
sempre compensadora para historiadores da população, do plane- da pesquisa do autor ao apresentar um relato das fontes utilizadas.
jarnento urbano e dos cheiros. Os estágios de seu desenvolvimento Na verdade, entretanto, apenas os relativamente poucos leitores
distinguem a textura da vida social moderna da textura pré-moder- que lançaram suas redes nas mesmas águas podem decifrar qual-
na de modo muito mais vívido do que as periodizações mais quer série determinada de notas com facilidade e mestría." Para a
grandiosas encontradas nas histórias políticas e intelectuaís." maioria dos leitores, as notas de rodapé exercem um papel
Quem quiser aprender como uma sala de aula do século XVI na diferente. Em uma sociedade moderna, impessoal, na qual os
França difere mais fortemente de uma sala de aula moderna não indivíduos precisam, para a maioria dos ofícios, confiar em outros
deve examinar os manuais populares de Petrus Ramus, mas pon- dos quais nada sabem, as credenciais fazem o que a recomendação
derar sobre a afirmação de que ele se banhava uma vez por ano, pessoal costumava fazer: elas dão legitimidade. Como a tribuna
.no solstício de verão." Do mesmo modo, o estudo daquelas partes gasta, a garrafa de água e a apresentação desconexa e imprecisa,
da história que jazem abaixo do nível do chão pode revelar fendas que revelam que uma pessoa em particular merece ser ouvida
ocultas e tubulações esquecidas tanto na prática moderna quanto quando se apresenta para uma conferência pública, as notas de
nas tradições milenares da erudição histórica. rodapé conferem autoridade a um escritor."
Até mesmo um breve exercício de comparação revela uma Diferentemente de outras formas de credencial, todavia, as
classe espantosa de práticas divergentes sob os trilhos da história. notas de rodapé podem, às vezes, ser divertidas - normalmente na
À primeira vista, é claro, todas as notas de rodapé parecem muito forma de facas cravadas nas costas dos colegas do autor. Algumas
semelhantes. Em todo o mundo histórico moderno, os artigos dessas facas são enfiadas com polidez. Algumasvezes, os historia-
começam com um equivalente da civilização industrializada para a dores simplesmente citam uma obra; em outras, silenciosamente
antiga invocação da Musa: uma longa nota na qual o autor põem o sutil, mas mortal, "cf." ("compare", alemão "vgl.") antes
agradece a professores, amigos e colegas. Essas notas evocam uma dela. Isso indica, pelo menos ao leitor experiente, que tanto uma
confraria da República das Letras - ou, pelo menos, um grupo visão alternativa aparece na obra citada quanto que ela está errada.
acadêmico de apoio - reivindicada pelo escritor. Uma vez que tais Mas nem todo mundo que lê o livro conhece o código. Desse
notas, ~a verdade muitas vezes, descrevem algo muito mais sutil, modo, às vezes, a punhalada precisa ser mais brutal, mais direta.
o grupo daqueles que o autor gostaria que tivessem lido sua obra, Pode-se, por exemplo, descartar uma obra ou tese de modo
ofereceu-lhe referências ou, pelo menos, os pontos cardeais, essas lacônico e definitivo, com uma única frase ou adjetivo bem
notas introdutórias conservam algo da qualidade literária - para escolhido. Os ingleses cometem essa forma de assassinato com
não dizer ficcional - das tradicionais. Porém, a grave luz do dia uma construção adverbial irôníca: "estranhamente superestimada".
logo dispersa as sombras frias, perfumadas, da autobiografia letra- Os alemães usam o direto ganz abuegig: os franceses, um discu-
da. Longas listas de livros e artigos anteriores e séries de referências table mais frio, mas menos barulhento. Todas essas formas indis-
codificadas a documentos inéditos supostamente provam a solidez pensáveis de ofensa aparecem na mesma posição proeminente e
perpetram a mesma versão erudita de assassínio. Quem quer que

16. Ver A. Corbin, Le miasme et lajonquille. Paris, 1982; L. Chevalier, Classeslaborieuses et 18. Cf. v. Ladenthin, "Geheime Zeichen und Botschaften", Süddeutscbe Zeitung, 8-9 de
classes dangereuses à Paris pendant lapremiem moitié du 1ge. siêcle. Paris, 1984.
outubro de 1994.
17. P. Sharratt, "Nicolaus Nancelíus, Petri Rami vira, editado com lima tradução inglesa", 19. Cf. Bruce Lincoln, Autbority. Chicago e Londres, 1994.
Humanistica looaniensia 24, 1975, pp. 238-239.

19
18
tenha lido um exemplo comum de história profissional recente- Na Alemanha, ao contrário, a omissão parece ser menos uma
mente produzido na Europa ou na América pode fornecer detalhes questão de declaração particular do que geral. Os historiadores da
desses procedimentos e de outros análogos. Os códigos e as Alemanha Ocidental adoravam condenar outros por terem deixado
técnicas profissionais que subjazem a eles parecem ser tão univer- de citar "a literatura alemã mais antiga". Eles próprios, no entanto,
sais l10 que diz respeito a seu uso quanto limitados no que diz regularmente deixavam de citar obras mais recentes - especialmen-
. . 20
respeito a seus atrativos. te sobre história alemã - em outras línguas que não o alemão, e
Um exame mais detalhado, no entanto, revela que as aparên- muitas vezes também de notar ou assimilar as formas mais novas,
cias de uniformidade são enganadoras. Para o não especialista, as interdisciplinares, de história que floresciam na França e nos
notas de rodapé parecem-se com sistemas radiculares profundos, Estados Unidos. Ao fazê-lo, não revelavam ignorância (isso nunca).
sólidos e imóveis; para o connoisseur, entretanto, elas revelam ser Pelo contrário, demonstravam uma convicção: a de que habitavam
formigueiros que pululam de atividade construtiva e bélica. Na Itália, um Reino Médio da mente histórica, organicamente ligado com a
por exemplo, a nota de rodapé muitas vezes funciona tanto por disciplina Begriff-stricleen, de hegemonia germânica, do século
omissão quanto por afirmação. Deixar de se referir a um erudito ou XIX.Por conseguinte, não precisavam admitir os bárbaros de fora
a uma obra em particular equivale a uma afirmação polêmica, a uma - exceto naqueles casos privilegiados em que os bárbaros tivessem
damnatio memoriae, que o círculo de partidos interessados irá dominado suficientemente os procedimentos e os mistérios da
imediatamente reconhecer e decodificar. O autor, desse modo, marca erudição alemã para se tornar civilizados. A comunidade histórica
uma posição para a pequena comunidade de especialistas que assim revelada coincidia claramente, em todas as suas divisões,
conhece o idioma nativo, e uma outra para a comunidade muito com as fronteiras nacionais.
maior de historiadores e outros leitores que poderiam pegar a Ao mesmo tempo, contudo, os historiadores da Alemanha
estranha cópia da Riuista Storica Italiana ou dos Quaderni Storici. Ocidental não apenas perpetuaram um preconceito, mas deram
Apenas aqueles que memorizaram os sinais em código morse da continuidade a uma prática de pesquisa que se harmonizava
citação - um código que muda, naturalmente, sem cessar - irão ler perfeitamente com a percepção de sua própria posição no mundo
as lacunas como inflamadas e argumentativas. Para o público externo, do conhecimento. Eles (ou seus assistentes de pesquisa) comu-
as mesmas notas parecerão calmas e informativas. Muitos textos mente trabalhavam em uma biblioteca de seminário destinada a
históricos italianos com notas de rodapé, em outras palavras, contam fornecer a literatura básica de uma única disciplina. O acervo dessa
não apenas as duas histórias teoricamente exigidas, mas três. Elas se coleção limitada, eles o citavam detalhada e extensivamente. Obras
dirigem não apenas ao público de historiadores teoricamente univer- não representadas no seminário, por outro lado, poderiam ser
sal, à "comunidade dos competentes" em qualquer país, mas a um trazidas para informação, se o estudante assistente de alguém
grupo muito menor, o concílio dos bem informados. conseguisse encontrá-las na biblioteca da universidade ou obtê-las
por empréstimo entre bibliotecas. Porém, elas não exerciam um
papel importante na formação dos debates históricos e comumente
20. Para um estudo (e uma sátira) elegante dessas práticas na jurisprudência alemã, ver P.
Riess, Vorstudien zu einer Tbeorie dei' Fussnote. Berlim e Nova York, 1983-1984,por ocupavam pouco espaço nas notas de rodapé. Naturalmente, havia
exemplo, p. 3: "Die Fussnote ist (oder gibt vor, es zu sein) Trager wíssenschaftlichen uma probabilidade maior de que os livros estrangeiros repousas-
Information..." A nota de rodapé; (uma das três para esta frase), sobre a palavra
"Informatíon", diz: "Oder auch nicht..." Ver também pp. 20-21 e U. Holbein, Samtbase
sem nas estantes mais inacessíveis da biblioteca universitária em
und Odradek. Frankfurt, 1990, pp. 18-23. vez de ficar à vista nas prateleiras abertas do seminário. As

20 21
dificuldades práticas de acesso, desse modo, reforçavam as guardas artigos eruditos de Walter Ulbricht sobre a história dos sindicatos e
alfandegárias intelectuais já postadas pelas tradições da instrução das políticasalemãs em Beitrâge zur Gescbicbteder deutscben Arbei-
e da erudição. Os historiadores da Alemanha Oriental, por sua vez, terbeuegung, resultam de um trabalho em equipe e fornecem infor-
tinham guardas alfandegárias reais, tridimensionais, com as quais mações obtidas depois, e não antes que ela fosse escrita, a fim de
se defrontar. Eles faziam suas declarações de centralidade e de apoiar uma tese preexistente. Os dois tipos de nota parecem seme-
subordinação intelectual de modo mais direto - sobretudo, talvez, lhantes,mas obviamente têm relações distintastanto com o texto que
pelo ato de colocar as obras de Marx e Engels, fora da ordem supostamente surgiram para apoiar quanto com as concepções
alfabética, no início de suas listas de citações. A história da nota de históricas que supostamente regulam sua produção." As citações
rodapé que as forças conjuntas da erudição oriental e ocidental irão em obras científicas - como mostraram inúmeros estudos - fazem
criar em uma Alemanha unida ainda está, é claro, por ser escrita. muito mais do que identificar as origens das idéias e as fontes dos
dados. Elas refletem os estilos intelectuais de diferentes comunida-
Como sugerem tais casos, a nota de rodapé varia tão ampla-
des científicas nacionais, os métodos pedagógicos de diferentes
mente em natureza e conteúdo quanto qualquer outra prática cientí-
programas de graduação e as preferências literárias de editores
fica ou tecnológica complexa. Como "medida quantitativa exata" ,
de periódicos influentes. Elas podem se referir não apenas às
"experimento controlado" e outras garantias de que uma dada
fontes exatas dos dados dos cientistas, mas também a teorias
afirmação sobre o mundo natural é rigorosa e válida, as notas de
mais gerais e a escolas teóricas com as quais desejam ou
rodapé aparecem em formas suficientes para desafiar a engenhosida- esperam ser associadas. 2.~ As citações em escritos históricos
de de qualquer taxonomista. Cada uma possui uma relação orgânica
mostram, pelo menos, tantos sinais de sua origem em esforços
com a comunidade histórica particular na qual foi gerada - uma
humanos falíveis e preconceituosos quanto esses.
relação pelo menos tão importante quanto a de sua relação com a
comunidade supostamente internacional de historiadores, essa qui- Do mesmo modo, quem realmente segue as notas de rodapé
mera imaginada pelo historiador católico inglês lorde Acton, que dos historiadores até suas fontes, tendo paciência para perseguir
tanto fez para introduzir o método da história científica alemã na as raízes profundas, tortuosas, das árvores desbastadas da polêmica
Inglaterra. Acton esperava editar uma Cambridge modern bistorv na acadêmica, pode efetivamente descobrir mais objetos de interesse
qual as nacionalidadesdos colaboradores não pudessem ser inferidas humano do que se poderia esperar enterrados no subsolo áspero.
do método e da substância de seus artigos - uma história que será Considere-se apenas um procedimento, felizmente raro, mas infe-
. quando as vacas voarem.n
escnta lizmente comprovado: o do punguista erudito. Quando pego no
ato, o criminoso adepto suplica a sua vítima que tome sua carteira
Além disso, as notas de rodapé não variam apenas quanto ao de volta silenciosamente: assim que a vítima estende a mão, é claro,
estilo, mas também quanto às condições de sua produção. Algumas
longas listas de citações de arquivo documentam um conhecimento
individual arduamente conquistado por um estudante pesquisador 22. Ver, por exemplo, W. Ulbrtcht, "Díe Novernberrevolutíon und der nationale Kampf
acerca de uma questão obscura; outras, como as que adornaram os gegen den deutschen lmperialismus", Beitrãge zur Gescbicbte der deutscben Arbeiter-
beuegung 1, 19;9, pp. 8-2;, em 17-18. O "Prefácio", p. 7, também enfatiza que o
periódico iria publicar "unverôffentlíchte, für die Forschung wle für die Propagandaar-
r I beit wertvolle Dokumente und Materialíen", corno fez em artigos agrupados sob o título
"Dokumente und Materialien".
21. Para o programa de Acton, ver Tbe tarieties of bistory. Organizado por F.Stern. 2' ed. 23. Ver, em geral, B. Cronin, Tbe citation. processo Londres, 1984, com extensa bibliografia.
Londres, 1970, p. 249; e o comentário de H. Butterfíeld, Man on bis pasto Boston. 1960.

23
22
o ladrão grita: "Socorro, ele está me roubando". Do mesmo modo, grave ainda, até mesmo uma sene de notas de campo normais
mais! de um estudioso plagiou material de um outro, enquanto geralmente é extensa demais para ser publicada de uma forma
simultaneamente acusava a vítima, na nota de rodapé pertinente, normal." Outros historiadores atualizados ainda reúnem e citam
de ter feito o mesmo. Poucos leitores terão a tenacidade de verificar provas de arquivo da maneira tradicional, mas as utilizam para
a história, e a maioria irá aceitar que o elegante punguista, e não a responder a novas perguntas derivadas da economia política, da
desgrenhada vítima, disse a verdade. O caminho de um fato ou teoria literária e de todas as disciplinas íntermedíárias."
factóide do arquivo para o caderno de anotações, da nota de Cem anos atrás, a maioria dos historiadores teria feito uma
rodapé para a resenha, é, em suma, extremamente curto. Nesse distinção simples: o texto convence, as notas provam." Já no
caso, assim como em outros, o leitor crítico pode muito bem século XVII, afinal, alguns antiquários intitulavam os apêndices
descobrir que "o que importa é a jornada, e não a chegada". documentais de suas obras simplesmente "Preuoes' - "Provas"."
A nota de rodapé exige atenção também por outros motivos: Atualmente, ao contrário, muitos historiadores sustentariam que
não apenas como uma parte generalizada da prática da ciência e c;...~us
textos apresentam suas provas mais importantes: provas que
da erudição, mas também como um objeto de nostalgia aguda e de tomam a forma de análise de comprovação estatística ou herme-
um debate acirrado. Os historiadores do século XX acrescentaram nêutica, das quais apenas as fontes são especificadas por notas. Em
uma sala moderna depois da outra às mansões tradicionais de sua cada um desses casos, não obstante todas as suas diferenças,
disciplina. Ao fazê-lo, é claro, algumas vezes vedaram as janelas, muitos críticos reagiram como um zagueiro lento numa partida de
para não falar das expectativas de promoção, de colegas mais futebol acirrada à tática evasiva de um atacante veloz: atracando-se
tradicionais. O processo infligiu muito sofrimento, e o clamor com ele. Chute as pernas de seus adversários - mostre que eles
resultante tomou mais de uma vez a forma de gritos estridentes de leram mal ou interpretaram maIos documentos - e não se
que a nota de rodapé tradicional fora menosprezada. preocupe em refutar seus argumentos. Tais críticas variam radical-
mente quanto à qualidade intelectual, ao rigor acadêmico e ao tom
Algumas das novas formas de história apóiam-se no fato de
retórico. Porém, a maioria delas repousa, em parte, em uma
que as notas de rodapé não podem se ajustar - como as análises
pressuposição comum e problemática: a de que os autores podem,
compactas de dados estatísticos empreendidas por demógrafos
como os manuais sobre dissertação recomendariam, citar exausti-
historiadores, que podem ser verificadas apenas quando eles
vamente a prova para cada asserção de seus textos." Na verdade,
permitem que os colegas vejam seus arquivos de computador.
Outras apóiam-se no fato de que as notas de rodapé normalmente
não podem incluir - como as notas de campo de antropólogos, que 24. Ver Fieldnotes. Tbe maeing of antbropology, organizado por R. Sanjak. Ithaca, Nova
registram acontecimentos efêrneros, de rituais a entrevistas, e York, 1990, e R.M. Emerson, R.I. Fretz e L.L. Shaw, Wrlttng etbnograpbic fieldnotes.
Chicago e Londres, 1995.
documentam costumes que mudam à medida que são registrados. 25. Para uma discussão pioneira dessas questões, ver L. Stone, Tbe past and tbe present
Estas, em princípio, não podem ser verificadas: como percebeu reuisited. Londres, 1987, pp. 33-37.
26. Ver, por exemplo, c.v. Langlois e C. Seignobos, Introduction to tbe study of bistory.
Heráclito, nenhum antropólogo pode viver e trabalhar na mesma Tradução de G.G. Berry. Londres e Nova York, 1898, reímpr. 1912, pp. 305-306.
aldeia duas vezes. Dois antropólogos nunca irão descrever a 27. Por exemplo, A.V. Duchesne, Preuves de l'btstoire de la matson fies Cbasteigners. Paris,
1633.
mesma negociação em termos idênticos ou analisar e codificar a 28. Para uma discussão provocadora - e nostálgica - do que as notas de rodapé podem e
mesma descrição de uma negociação em idênticas categorias. Mais nào podem fazer, ver G. Himmelfarb, "Where have all the footnotes gone?", em On
looking into tbe abyss. Nova York, 1994, pp. 122-130.

24 25
é claro, ninguém pode jamais esgotar a série de fontes relevantes
anotação." Em resumo, como freqüentemente acontece, os críticos
para um problema importante - e muito menos citar todas elas em
se recusaram a ver da maneira correta os erros verdadeiros que
uma nota. Na prática, sobretudo, cada anotador reordena o mate- haviam descoberto - ou a admitir sua própria falibilidade. Quando
rial .para provar uma posição, interpreta-o segundo uma visão
surgiu o livro do próprio Turner, igualmente polêmico, ele natural-
individual e omite o que não se adapta a um padrão necessaría-
mente atraiu um escrutínio maior do que o habitual por parte de
mente pessoal de relevância. A próxima pessoa que passar em historiadores que não partilhavam de suas simpatias. Mais de um
revista o mesmo material de arquivo irá provavelmente ordená-lo apontou que Turner também reordenara os documentos de modo
de um mo doo inteiramente
intei dif
ireren t e. 29 a adequá-los a sua tese e deixara de citar provas que iam no sentido
contrário." Os erros comprovados de Abraham eram muito mais
Um grande número de controvérsias sobre notas de rodapé numerosos do que os de Turner (pois seu livro era muito mais
revela alguns modos usados - e mal usados - pelos polemistas no ambicioso intelectualmente); Ambos os casos exemplificam a fali-
mais das vezes, talvez para fazer uma acusação de incompetência bilidade de todos os estudiosos - e o fato de que uma obra histórica
tomar o lugar de um contra-argumento. Um, em particular, provo- e suas notas nunca, pela natureza das coisas, reproduzem ou citam
cad~ ~or um estranho inovador, espalhou ondas de turbulência por toda a série de provas sobre as quais se apóíam.f Contudo, as
toda a comunidade histórica do Atlântico Norte.3o Henry Turner, t:)ticas dos críticos de Abraham continuam a encontrar no que se
um historiador sênior do comércio alemão e dos nazistas, que apegar. Dois ilustres antropólogos, nenhum deles mestre nos
leciona na Universidade Yale, descobriu, já na década de 1980, que enigmas da arte da historiografia, recentemente ofereceram ao
um jovem estudioso de Princeton, David Abraham, havia cometido público caso semelhante de advertência. Cada um escarneceu das
erros na identificação e na citação de documentos de arquivo em notas de rodapé do outro com o equivalente acadêmico de espadas
seu Tbe collapse of tbe Weimar Republic: Politicai economv and e porretes, na esperança de destruir as interpretações dadas no
crisis (Princeton, 1981). Os erros de Abraham, segundo argumen- texto do outro: nenhum mostrou ter consciência clara das inevitá-
taram Turner e outros, não eram apenas grosseiros, mas proposi- veis lacunas no procedimento normal de citação - ao menos no
tais: Abraham havia deliberadamente cometido erros de datação, que diz respeito ao seu uso pelo outro. O prestígio de que ainda
de atribuição e de tradução quanto a textos de arquivo, a fim de
que as relações entre os nazistas e os homens de negócios
parecessem muito mais estreitas do que realmente tinham sido. 31. Esse não foi o primeiro ataque desse tipo armado por Turner. Ver H.A. Turner,
Esses críticos denunciaram Abraham, injustamente, como falsifica- "Grossunternehmerturn und Natíonalsozíalísmus 1930-1933.Krltisches und Ergãnzendes
zu zweí neuen Forschungsbeitriigen", Historiscbe Zeitscbrift 221, 1975, pp. 18-68, com
dor, em vez de reconhecer que ele havia sido um estudante bem à a resposta de D. Stegmann, "Antiqulerte Personalislerung oder sozíalõkonorrusche
maneira americana, que ia aos arquivos alemães com interesses Faschlsmus-Analvse?'', Arebtv.farSozlalgeschtchte 17, 1977, pp. 275-296.
32. Ver K. Wernecke, "ln den Quellen steht zuweilen das Gegenteil", Frankfurter Runds-
teóricos altamente desenvolvidos, um ponto de vista novo e pouco cbau, 17 de maio de 1986, ZB 4; F.L.Carsten, resenha de H.A.Turner, German Historical
conhecimento prático da língua alemã ou das melhores técnicas de Institute, London, Bullettn 22, vemo de 1986, pp. 20-23; ambos anteriormente citados
por Novick, p. 619 n. 60; "The David Abraham case: Ten comments from historlans",
Radical HistoryReview 32, 1985, pp. 75-96, em 76-77. Para um outro exemplo, ver R.JlI.
Bell e J. Brown, "Renaíssance sexualíty and the florentlne archlves: An exchange",
29. Cf. P. Veyne, Comment on écrit l'bistotre. Paris, 1977, pp. 273-276.
Renaissance Quarterly 40, 1987, pp. 485-511.
30. Para o que se segue e para os textos publicados e inéditos a ql61ea-6c201ntrDovérsi~
deu 33. Para um outro episódio, em alguns aspectos semelhante ao caso de Abraham, ver R.JlI.
origem, ver P. Novick, Tbat noble dream. Cambridge, 1988, pp. 12 . .evo a ertar Bell e J. Brown, "Renalssance sexuality and the florentine archives: An exchange",
o leitor de que David Abraham foi durante muitos anos meu colega em Pnnceton (cf. Renaissance Quarterly 40, 1987, pp. 485-511.
Novíck, p. 612, n. 51).

27
26
goza o positivismo aflorou com a força da energia esperançosa Dois anos depois da publicação do livro de Kantorowicz
com que esses devotos da outrora altiva arte da etnolografia Albert Brackmann o atacou em público na Academia Prussiana de
buscava salvação nas disciplinas do pedantismo hístórico." Ciências:um relato de sua conferência apareceu em um importante
jornal de Berlim,o vossiscbe Zeitung, e o texto integral no principal
Porém a obra dos mestres, assim como a dos aprendizes, nas
periódico histórico alemão, o Historiscbe Zeitscbrift'" Em seu livro,
artes da erudição técnica também originou controvérsias sobre
Kantorowiczafirmara que o próprio Frederico II via-se, durante sua
notas de rodapé. Em 1927,Ernst Kantorowicz publicou sua biogra-
coroação em Jerusalém, como um rei divino, o sucessor direto de
fia do imperador Frederico II. Seguidor de Stefan George, que via . , . J esus.: ~7 Brackmann concentrou sua crítica
DaVI,como o propno
a si próprio como o historiador de uma "outra Alemanha" perdida,
nessa tese. Quando Kantorowicz retrucou, citando o alemão Mar-
Kantorowicz desejava alcançar um público não-acadêmico. Ele
quardt de Ried, que proclamou Frederico II como servo de Deus
criou sua obra com uma retórica ardente, não soterrada por notas
famulus Dei, Brackmann não se convenceu. Kantorowicz subli~
de rodapé, porém adornada, na página de rosto, com uma elegante
nhou ele, omitira de seu livro a linha crucial na qual Marquardt
suástica, na coleção Blaetter für die Kunst do editor berlinense
fazia uma distinção clara entre Jesus e Frederico II: "Hic Deus, ille
Georg Bondi. O livro tornou-se imediatamente um best-seller, com
Dei pius ac prudens imitator" ("Um é Deus; o outro, o imitador
inúmeras cópias expostas nas vitrines de livrarias da moda na
devoto e prudente de Deus."). Ao citar essa linha em sua objeção,
Kurfürstendamm. Mas suscitou igualmente a fúria de medievalistas
argumentou Brackmann, Kantorowicz subrepticiamente modificou
acadêmicos, que denunciaram em Kantorowicz aquilo que viam
seu livro, no qual havia traduzido diferentes linhas, mas omitira a
como uma tendência intelectualmente perigosa de tomar errada- . . ~8
mais Importante: Entretanto, Kantorowicz claramente aferrou-se
mente os mitos e as metáforas de suas fontes por fatos históricos.
a sua posição. Em 1931, quando finalmente deu a público seu
E a decisão de Kantorowicz de publicar o texto, em primeiro lugar,
volume complementar de anotações, ainda enfatizava o tom come-
sem um instrumental, em nada ajudou a apaziguar os humores de
morativo do poema de Marquardt, e não sua distinção entre o
seus críticos - que consideraram a omissão ainda mais frustrante
Imperador e o Salvador. Ele não acrescentou nenhuma referência
porque sabiam que esse ex-soldado conservador e janota era um
à refutação de Brackmann, embora citasse seu próprio artigo/" A
mestre nas artes da edição e da interpretação de textos, alguém que
questão aqui não é saber qual dos dois, Kantorowicz ou Brack-
se destacava em uma geração de estudantes de Heidelberg, famosa
mann, estava certo, mas, sim, que, até agora, a despeito da riqueza
pela profundidade de sua preparação técnica e que conhecia em
do conjunto dos documentos gerados por esse episódio, o leitor
seus mínimos detalhes toda a literatura sobre o assuntc.Y
não pode acompanhar em todos os detalhes o movimento do
pensamento de Kantorowicz sobre essa fonte específica, funda-
34. Ver G. Obeyesekere, Tbe apotbeosis of Captam Cook: European mytbmaeing in tbe
Pacifico Princeton e Honolulu, 1992; e M. Sahlins, HoU' "natioes" tbink. About Captain
Cook, for example. Chicago e Londres, 1995. Somente em termos de crítica histórica andererseits die Lesbarkeít nicht herabzumindern, unterblieb jede Art von Quellen -
Sahlins levou a melhor na troca, como I. Hacking com razão apontou em sua resenha und Lítteratumachwelsen." Kaiser Priedricb der ZUl(?ite. Berlim, 1927, p. 651.
do livro de Sahlins, London Retneurof Books, 7 de setembro de 1995, pp. 6-7, 9. Porém, 36. Grünewald, pp. 86-87; A. Brackmann, "Kaiser Fríedrich II ln 'mythíscher Schau'",
Sahlins também, por vezes, transforma o que constituem claramente atalhos normais Historiscbe Zeitschrift 140, 1929, pp. 534-549.
nos argumentos de Obeyesekere em erros inexistentes. 37. Kantorowícz, Kaiser Priedricb der ZUJeite, pp. 184-186.
35. Sobre o treinamento anterior de Kantorowícz, E. Grünewald, Ernst Kantorouncz und ,38. Kantorowicz, ·".Mythenschau'. Eíne Erwiderung", Historiscbe Zeitschrift 141, 1930. pp.
Stefan George. Wiesbaden, 1982, fornece muitas informações novas; para sua época em 534-549, em 469-470; Brackmann, "Posfácio", ibid., pp. 472-478, em 476-477.
Heldelberg, ver pp. 34-56. Kanrorowícz afirmava que havia omitido notas de rodapé 39. E. Kantorowicz, Kaiser Frledrich der ZUl(?jte. Erganzungsband. Berlim, 1931; relmpr.
por duas razões: "Um einerseits den Umfang des Buches nicht zu vergrõssern, Düsseldorf e Munique, 1964, p. 74.

28 29
(

mental. Ele mudou de idéia? Decidiu que tinha uma resposta para universais;descreviam com eloqüência exemplos do bem e do mal,
a crítica de Brackmann? A documentação é de uma riqueza discursos e ações prudentes e imprudentes que forneceriam lições
incomum, mas a série completa de operações mentais pelas quais morais e políticas válidas em qualquer tempo ou lugar." Os
o documento se tornou parte do instrumental de Kantorowicz e historiadores modernos, ao contrário, distanciam-se de suas pró-
este, por sua vez, parte de uma história, de um argumento e de prias teses até mesmo quando tentam sustentá-las. As notas for-
uma série de notas de rodapé, permanece misteriosa. mam uma história secundária, que acompanha a primeira, mas dela
se diferencia fortemente. Ao documentar o pensamento e a pesqui-
Tanto a experiência quanto a lógica, portanto, sugerem que
sa que corroboram a narrativa situada acima delas, provam que ela
a nota de rodapé não pode se encarregar de todas as tarefas, como
é um produto historicamente contingente, dependente de formas
afirmam os manuais: nenhuma acumulação de notas pode provar
particulares de pesquisa, oportunidades e estados de perguntas
que cada afirmação no texto repousa em uma montanha inexpug-
específicas que existiam quando o historiador se pôs a trabalhar.
nável de fatos comprovados. As notas existem, pelo contrário, para
Como o diagrama de um esplêndido edifício, feito por um enge-
exercer duas outras funções. Em primeiro lugar, elas convencem:
nheiro, as notas de rodapé revelam os suportes ocasionalmente
convencem o leitor de que o historiador realizou uma quantidade
toscos, os inevitáveis pontos fracos e as cargas ocultas que uma
aceitável de trabalho, o suficiente para mentir dentro dos limites
elevação da fachada esconderiam.
toleráveis do campo. Como os diplomas na parede do dentista, as
notas provam que os historiadores são praticantes "bons o bastan- O surgimento das notas de rodapé - e dos artifícios a ela
te" para ser consultados e recomendados - mas não que possam associados, como apêndices documentais e críticos - separa a
executar qualquer operação específica. Em segundo lugar, indicam modernidade histórica da tradição. Tucídides e joinville, Eusébio e
as principais fontes que o historiador realmente usou. Embora as Matthew Paris não identificavam suas fontes ou refletiam sobre
notas de rodapé comumente não expliquem o curso exato da seus métodos em textos paralelos a suas narrativas - um fato que
interpretação que o historiador fez desses textos, elas muitas vezes provoca manifestações de consternação da parte de hipócritas, mas
dão ao leitor que possui um espírito suficientemente crítico e também dá emprego a pelotões de classicistas e medievalistas."
aberto pistas para permitir que o imagine - em parte. Nenhum Nos últimos séculos, ao contrário, a maioria das histórias - exceto
instrumental pode dar mais informações - ou mais garantia - do aquelas escritas para divertir o público mais vasto de não-especia-
que essas. listase umas poucas destinadas a provocar a pequena comunidade
de especialistas - tem adotado uma versão da forma padrão
Ainda que as intenções do texto e da anotação se tornem um
dupla." A presença das notas de rodapé é essencial. Elas consti-
tanto vagas, a natureza radical da mudança do fornecimento de
tuem sinais exteriores e visíveis de graciosidade interior - a
uma narrativa contínua para a produção de um texto no qual a
própria pessoa fez anotações parece óbvia. Uma vez que o
historiador escreve com notas de rodapé, a narrativa histórica se 40. Ver G.H. NadeI, "Phílosophy of history before historicism", History & Tbeory 3, 1964,
torna claramente uma forma moderna, dupla. Os historiadores pp. 291-315; R. Koselleck, vergangene Zueunft. Frankfurt, 1984, pp. 38-66; E. Kessler,
"Das rhetorísche Modell der Historiographie", em R. Koselleck et ai. (orgs.), Formen der
políticos tradicionais, no mundo antigo ou na Renascença, escre-
Gescbicbtsschretbung. Munique, 1982, pp. 37-85.
viam dentro de uma tradição histórica, como os estadistas ou 41. Ver Bernays.
generais que se dirigem a seus pares. Suas obras faziam afirmações 42. Para um esforço recente e bem-sucedido de perturbar, ver S. Schama, Dead certainties
Unuiarranted speculations. Nova York, 1991.

31
30
graciosidade infundida na história quando esta foi transformada de mente no direito, em que uma única nota de rodapé em um parecer
narrativa eloqüente em disciplina crítica. Nesse ponto, o escrutínio jurídico ou em um código pode exercer uma imensa influêncianas
e a citação sistemáticos da prova original e dos argumentos formais vidas de indivíduos e na sorte de empresas. Os melhores alunos
em favor de uma fonte em relação a outra se tornaram ocupações das melhores escolas de direito - que devem dedicar boa parte de
necessárias e atraentes para os historiadores. Quanto ao locus seu tempo, durante um ano ou dois, à verificaçãoe à compilação
classicus para essas ocupações, a nota de rodapé erudita natural- de notas de rodapé exaustivas para os jornais de direito que editam
mente compôs uma parte vital de qualquer obra de história sólida. - têm uma desculpa particularmente boa para ver as notas de
Presumivelmente, a ascensão da nota de rodapé a uma posição rodapé com desagrado, embora suas paródias ocasionais raramen-
elevada ocorreu quando se tornou legítima, depois que a história te se distingam por sua espirituosidade ou seu bom gosto.l"
e a filologia, seus pais, finalmente se casaram. A questão, pois, é Entretanto, o que argumentou Peter Riess por troça também vale
simplesmente identificar a igreja na qual o matrimônio ocorreu, e na realidade: "Afreqüência com que as notas de rodapé aparecem,
o sacerdote que o oficiou. particularmente na erudição jurídica, contrasta fortemente com a
quantidade mínima de atenção dos estudiosos dada às notas de
Ou assim, pelo menos, pensava eu - até que comecei a rodapé. ,,45
examinar estudos modernos de notas de rodapé e da historiografia
em busca do ponto exato em que a história publicamente se A maioria dos estudantes de historiografia, por sua vez,
dobrou sobre si mesma. Curiosamente, quando mais me aplicava, interessou-se mais pelas declarações explícitas de seus sujeitos do
menos seguras se tornavam minhas respostas. A maioria dos que por suas práticas técnicas - especialmente aquelas que eram
estudiosos da nota de rodapé, em épocas recentes, acabou antes mais tácita do que explicitamente transmitidas e praticadas. A
por enterrá-las do que por louvá-las. Um monte de artigos recentes filosofiada história tem recebido uma atenção muito maior do que
e uns poucos livros discutem detalhadamente as notas de rodapé. sua filologia. A maior parte dos estudos de filologia, além disso,
dirigiu-se apenas aos modos como os historiadores realmente
Porém, a maioria de seus autores está menos interessada em
pesquisam - como se a seleção e a apresentação dos dados não
estudar, histórica e empiricamente, o que as notas de rodapé
tivesse sobre ela efeitos cruciais. Jack Hexter é um historiador
fizeram e por que passaram do que em zombar delas. Os estudan-
americano ilustre da Europa e da Inglaterra do início da era
tes de direito norte-americanos, por exemplo, escrevem paródias moderna; ele pretendeu, nos últimos anos de sua carreira, ser um
nas quais cada palavra possui um número de nota de rodapé que instrutor do método histórico para seus colegas (um pouco como
leva a citações detalhadas para elucidar as origens da lei consue- A.E.Housman afirmava ter editado Lucano não para o público em
tudinária das regras de beisebol; os juristas alemães escrevem geral, mas editorum in usum - para o esclarecimento de seus
sátiras clamando pela criação de novas disciplinas como Fussno-
tenunssenscbaft e Pussnotologie/" Ambos tratam a nota de rodapé
como a quintessência da tolice acadêmica e do esforço mal 44. Ver os artigos citados por B. Hilbert, "Elegy for excursus: The descent of the footnote" ,
orientado. O pedantismo estéril dos eruditos constitui um tema CollegeEnglisb 51, 1989, pp. 400-404, em 401. Esse artigo é uma das várias exceções à
descrição apresentada acima. em meu texto. Sobre o excessivo impacto das notas de
sempre' atraente, e a crítica é habitualmente justificada- especial- rodapé de alguns juízes, ver A. Míkva, "Goodbye to footnotes", Unitersityof Colorado
Iaui Retneui 56, 1984-1985, pp. 647-653, em 649.
45. Riess, op. cit., p. 3: "Díe Hâuflgkeít der Fussnote, namentlich ím rechtswissenschaftlichen
43. Ver, respectivamente, "Common-law origins of the infield fly rule", Untoersity 0/ Schriftturn, steht in einem auffallígen Gegensatz zu der geringen wíssenschaftlíchen
Pennsylvania Laui Reuieui 123, 1975, pp. 1.474-1.481, e Riess, op. cito Behandlung, díe die Fussnote ais solche erfahren hat."

32 33
i '
incorw;,etentes colegas editores). Mais tarde, nos anos 70, Hexter mentos - X escrevendo comentários sobre Y - começou no mundo
descobriu que Christopher Hill, um historiador inglês ainda mais antigo e se desenvolveu em toda cultura que possuísse um cânon
c:
rormar,I escnto.
. 48 O s textos complexos, geralmente de origens
ilustre, citara impropriamente alguns textos do século XVII. Hexter
deduziu, de uma série de erros, que Hill normalmente lia seus drversas, que compõem as escrituras sagradas de uma sociedade,
textos de um modo uniforme, preconcebido. Hill, segundo Hexter, normalmente incluem comentários de vários tipos: talvez eles
passava pelas fontes não para entendê-las, mas para garimpar em sempre o façam. Desse modo, Michael Fishbane mostrou, em um
busca de citações que pudessem, quando descontextualizadas, livro notável, como os escribas, assim como os autores, incorpora-
fornecer sustentações sólidas para uma tese astuciosa. Ao defender ram comentários valiosos diretamente no texto da Bíblia hebraica.
essa posição, Hexter aparentemente deixou de perceber que havia Breves notas explicativas sobre palavras e frases incomuns torna-
baseado uma condenação das anotações privadas de Hill em uma ram-se partes orgânicas dos textos que elas esclareciam; os livros
análise de um segmento de seus escritos publicados - um erro subseqüentes citaram e comentaram os anteriores; algumas vezes
metodológico que ele complicou, quando reimprimiu sua resenha, deliberadamente, outras inadvertidamente, as Escrituras se torna-
, . . '. 49,
ao abrandar sua retórica excessiva sem revelar que o havia feito e ram seus propnos Interpretes. Ate mesmo comentários posterio-
afirmar que não podia entender por que sua vítima se sentira tão res - como os assim chamados Glossa ordinaria, ou glosas literais
ofendida.46 Polêmicas como essa antes obscurecem do que revelam longas, que se entrelaçam com o texto latino da Bíblia Vulgata
as origens passadas e a função atual da nota de rodapé histórica. usada no Ocidente medieval, ou a Glosa de Accursio,comentador
medieval do C01pUS iuris romano -, com o tempo, acabaram por
Os historiadores franceses Langlois e Seignobos, tão injuria- ser vistos como partes dos textos que explicavam. Estes eram
dos autores, em fins do século XIX, de um manual de escrita regularmente ensinados com seus comentários.
histórica tão fora de moda que algumas de suas partes parecem
hoje estranhamente modernas, pelo menos admitiam que "seria As escrituras seculares também contêm observações explica-
interessante descobrir quais são os livros impressos mais antigos tivas. Algumas delas são ocasionais e isoladas; outras, sistemáticas
providos de notas segundo a maneira moderna". Mas eles confes- e longas. Dante e Petrarca julgaram necessário escrever comentá-
saram que "os bibliófilos que consultamos não souberam dizer, rios formais sobre segmentos de sua própria produção poética -
pois nunca prestaram atenção a essa questão". E sua própria uma tradição que continuou, desde os comentários eruditos de
sugestão - de que a prática começou em coleções anotadas de Andreas Gryphius sobre suas desagradáveis tragédias eruditas de
documentos históricos - não foi seguida.47 A anotação de doeu- seis horas, até as notas de T.S.Eliot sobre 17.Jetoaste land." Muitos
autores renascentistas, a partir de Petrarca, vieram a se considerar

46. J .H. Hexter, resenha de Christopher Hill, Times Iiterary Supplement, 24 de outubro de
48. Ver, por exemplo, J.B. Henderson, Scripture, canon, and commentary. Princeton, 1991;
1975; reimpr. em Hexter, On bistorians. Londres, 1979, pp. 227-251. Para uma crítica
mais profunda de Hill, ver H.R. Trevor-Roper, resenha de Intellectual origins of tbe
J. Assmann, Das eulturelle Gedãcbtnis. Munique, 1992, pp. 102, 174-177.
englisb Reoolution, em History and Tbeory 5, 1966, pp. 61-82. Esta questão específica, 49. M. Fishbane, Biblical tnterpretation in ancient Israel. Oxford, 1985.
assim como outras mais amplas, devo a uma conversa com o falecido Arnaldo 'SO. B. Sandkühler, Diefrúben Danteeommentare und ibr Verbâltnis zur mittelalterlicben
Morniglíano, ocorrida em Chicago logo depois do aparecimento da resenha original de Kommentartradition. Munique, 1967; K. Krautter, Die Renaissance der Bukolik ln der
Hexter. Ver mais sobre isso em T. Bender, '''Facts' and history", Radical History Reuieui lateintscben Litteratur des xiu. [abrbunderts. vcm Dante bis Petrarca. Munique, 1983;
W. Rhem, "Jean Pauis vergnügtes Notenleben oder Notenmacher und Notenleser", Spâte
32, 1985, pp. 81-93.
Studien. Berna e Munique, 1964, pp. 7-96, em 7-10; cf.io comentário de Goethe sobre
47. Langlois e Seignobos, Introduction to tbe study of bistory. Trad. de Berry, p. 299 e n. 1.
as Rõmiscbe Elegien, citadas ibid., p. 10: "Denn bei den alten líeben Toten/Braucht man
Eies fazem a seguinte observação: "Foi nas coleções de documentos e nas dissertações
Erklârung, will man Noten;/Die Neuen glaubt man blank zu verstehn;IDoch ohne
críticas que se empregou pela primeira vez o artifício da anotação; daí ela se introduziu,
Dolmetsch wird's auch nicht gehn."
lentamente, nas obras históricas de outros tipos."

35
34
como quem escrevia para uma posteridade tão distante quanto eles narum et mosaicarum, por exemplo - um tratado que compara
estavam dos clássicos. Por conseguinte, começaram a registrar por às leis de Roma com as de Moisés -, cita estas últimas de modo
escrito os tipos de informação histórica e biográfica que eles vago, mas fornece capítulo e verso para cada referência daque-
próprios valorizavam muito quando estudavam os romanos - como las. Notas conservadas fragmentariamente de uma conferência
fez Petrarca em sua carta em prosa à posteridade e em outros jurídica do último período da Antigüidade revelam que os
escritos. johannes Kepler - cujo sentido de história é tão agudo
professores remetiam os estudantes a suas fontes não apenas por
quanto seu talento científico - escreveu um comentário formal na
livro e divisões de capítulos, mas também pelo número de
meia idade sobre seu primeiro livro, Mysteriurn cosmograpbicum,
página, obviamente nos casos em que havia cópias uniformes."
a fim de explicar a leitores de um futuro distante as circunstâncias
pessoais e as experiências particulares qu~ haviam dado àquele Na Idade Média, os eruditos que trabalhavam nas novas escolas
livro sua forma e seu conteúdo específicos." do século XII e nas universidades que se formaram depois delas
desenvolveram padrões elevados de citação precisa e códigos
A nota de rodapé histórica está também ligada a uma
claros de citação para outras disciplinas além do direito. Eviden-
segunda forma mais antiga de anotação - a que fornece referên-
temente, o arrazoado acompanha a profissionalização.
cias precisas à seção de um texto oficial, a partir do qual provém
uma determinada citação numa obra posterior. Tais referências As margens dos manuscritos e dos primeiros textos impres-
raramente apareciam na prosa literária antiga, uma vez que o sos sobre teologia, direito e medicina estão cheias de glosas que,
autor culto citava textos de memória, não de livros, muitas vezes como a nota de rodapé histórica, permitem ao leitor trabalhar do
introduzindo uma pequena mudança para mostrar que o havia argumento final para trás, referindo-se aos textos sobre os quais ele
se apóia. Peter Lombard, o teólogo cujos comentários sobre os
feito desse modo." Até mesmo os autores de obras confessada-
Salmos e as Epístolas de Paulo "são provavelmente a forma mais
mente escritas como compêndios nem sempre identificam suas
desenvolvida dos livros glosados", indicava sistematicamente suas
fontes com exatidão: se Plínio, o Velho, arrolava os autores dos
fontes em comentários marginais, criando o que Malcolm Parkes
quais obtivera o material para sua História natural e Aulo Gélio
chamou de "o ancestral do moderno instrumental erudito de notas
citava os autores e, às vezes, os livros citados por ele nas suas
de rodapé". 55 Peter certamente merece crédito por uma façanha
Noit~s âticas, Macróbio muitas vezes deixava até mesmo de tipicamente moderna: provocar a primeira controvérsia com base
mencionar os escritores que citava literalmente nas suas volumo- em uma referência errada em uma nota. Um de seus comentários
sas e importantes Saturna1ta.'· 5~ Mas os juristas
., romanos forne- mencionava são jerõnímo como uma fonte para a história, popular
ciarn referências muito precisas aos tratados legais anteriores nos no século XII, de que a Salomé do Evangelho de são Marcos não
quais se apoiavam. O texto antigo tardio Collatio legum roma- era uma mulher, mas o terceiro marido de santa Ana. Herbert de
Bosham, que atacou essa tese, argumentou enfurecido que o
51. Para Petrarca e Kepler, ver a análise estimulante e cheia de insigbts ôeH. Günther, Zeit
dcr Gescbicbte. Frankfurt, 1993. O comentário de Kepler sobre o Mysterium aparece no
vJlLime VIII das suas Gesammelte Werke, organizadas por ]1.(. Caspar et al., Munique, 54. P. Steln, Regulae iuris. Edimburgo, 1966, pp. 115-116.
1937. 55. Ver o artigo seminal de M.B. Parkes, "The influence of the concepts of ordinatio and
52. Ver J. Whittaker, "The value of indirect tradítíon in the establishment of greek compilatio on the development of the book", em J.J.G. Alexander e M. Gibson (orgs. l,
phllosophícal texts or the art of mísquotation", em J. Grant (org.), Editing greek and ..,. Mediaeual literature and learntng fFS R.W. Huntl. Oxford, 1976, pp. 115-141, em
latin texts. Nova York, 1989, pp. 63-95. 116-117; cf. também P. Lombard, Sententiae in Iv. libris distinctae, Spicilegium Bona-
53. Ver A.L.Astarita, LA cultura nelle "Noctes atticae". Catanía, 1993, pp. 23-26. venturianum, 4. Roma, 1979, I, pt, 1, prolegômenos, ·138-139".

36 37
comentário de Peter estava errado - embora ele preferisse atribuir gem de valor e relevância eternos. Os leitores humanos precisam
o engano antes a um escriba ignorante do que ao autor emdito.56
de comentários apenas porque suas necessidades e seus interes-
A experimentação de formas novas e mais seguras de referência
ses estreitos podem desviá-los.
começou cedo: o enciclopedista do século XIII Vincent de Beau-
vais tentou evitar erros dos escribas incorporando a seus textos As notas de rodapé históricas assemelham-se às glosas
suas fontes de referência." quanto à forma. Porém, elas buscam mostrar que a obra que
sustentam reivindica autoridade e solidez com base nas condi-
Mas nenhuma forma tradicional de anotação - das glosas
ções históricas de sua criação: que seu autor cavoucou suas
dos gramáticos às alegorias dos teólogos e às emendas dos
fundações e descobriu seus componentes nos lugares certos e
filólogos - é idêntica à nota de rodapé histórica. Os historiadores
usou os artifícios corretos para juntá-los. Para fazê-lo, localizam
modelrnos exigem que cada texto novo sobre o passado seja
a produção da obra em questão no tempo e no espaço, enfati-
acompanhado de notas sistemáticas, escritas por seu autor, sobre
zando os horizontes e as oportunidades limitados de seu autor,
suas fontes. Essa é uma regra de erudição histórica profissional.
é nâo os de seu leitor. A notas de rodapé sustentam e minam, ao
Ela não possui nenhuma ligação óbvia com o fato há muito
mesmo tempo - ao passo que os comentários escriturais minam
admitido de que todos os escritos tidos como importantes por
apenas quando ocorre algum acidente.
uma comunidade acadêmica ou religiosa tenham recebido co-
mentários de intérpretes posteriores. Os comentários escriturais O instrumental do historiador também não deriva dos
sustentam um texto que obtém sua autoridade de qualidades das comentários dos autores do último período da Idade Média e da
quais as histórias não podem se vangloriar: do fato de que seu Renascença sobre suas próprias obras. O historiador que cons-
autor foi divino ou, mais freqüentemente, inspirado pelo deus; trói uma casa literária sobre uma fundação de documentos não
de sua antiguidade: de sua forma literária. Tais notas funcionam empreende a mesma tarefa que o autor de uma obra religiosa,
como intermediárias entre um texto considerado de valor eterno literária ou científica, que tenta fixar inequivocamente a mensa-
e um leitor moderno cujos horizontes são obrigatoriamente gem do texto para a posteridade. Um explica os métodos e os
limitados pelas necessidades e pelos interesses. Alguns anotado- procedimentos usados para produzir o texto; o outro, os méto-
res vêem as Escrituras como uma bomba que pode explodir se dos e os procedimentos que deveriam ser usados para consumi-
manuseada sem cuidado pelas pessoas comuns; outros, como lo. Finalmente, o historiador que cita documentos não cita
um baluarte da ordem teológica e social. 58 Todos eles concor- autoridades, como os teólogos e os advogados da Idade Média
dam, entretanto, que o texto, como um farol, envia uma mensa- e da Renascença, mas fontes. As notas de rodapé históricas
arrolam não os grandes escritores que sancionam uma determi-
nada afirmação ou cujas palavras um autor adaptou criativamen-
56. Ibid., '140. Para o texto integral, ver Patrotogia latina, 190, 1418 B-C; para o contexto, te, mas os documentos - muitos dos quais, ou mesmo a maioria
ver B. Smalley, "A commentary on the Hebraica by Herbert of Bosham", Recbercbes de
tbéologte ancienne et médiéoale 18, 1959, pp. 29-65, em 37-40. deles, não são absolutamente literários - que forneceram seus
57. Parkes, p. 133. Ver também ].P. Gurnbert, '''Typography' in the rnanuscript book", ingredientes essenciais. O historiador profissional moderno não
journa/ of tbe Printing History Society 22, 1993, pp. 5-28, em 8, e, para o contexto geral,
M.A. Rouse e R.H. Rouse, Autbentic untnesses. Notre Dame, 1991, caps. 4-7. é, de uma forma simples, o descendente direto do intelectual
58. Ver, por exemplo, E.B. Tríbble, Margins and marginality. Charlottesville e Londres, profissional das escolas medievais ou da corte renascentista.
1993, cap. 1.

38 39
Meu objetivo, neste ensaio necessariamente especulativo,
é simples. Desejo descobrir quando, onde e por que os historia-
dores ado taram sua forma claramente moderna de arquitetura
narrativa - para saber quem pela primeira vez ergueu essa
curiosa galeria com seu piano nobile vazio e sua base aberta,
que oferece lampejos de tantos utensílios fascinantes. Minhas
respostas serão necessariamente esquemáticas e experimentais,
porém espero mostrar que a nota de rodapé tem um pedigree
mais antigo do que nos habituamos a crer - e que as origens do
animal lançam uma luz própria sobre sua natureza, suas funções
e seus problemas.
2
RANKE: UMA NOTA DE RODAPÉ
SOBRE A HISTÓRIA CIENTÍFICA

Todo colegial sabe - pelo menos todo secundarista alemão


sabia outrora - o que é história científica e quem a inventou. A história
científica repousa sobre fontes antes primárias do que secundárias:
Leopold von Ranke, filho do jurista protestante da cidade turingiana
de belo nome, Wiehe a. d. Unstrut, que se tornou uma das figuras
dominantes da Universidade de Berlim no século XIX, foi seu
primeiro praticante célebre. Embora Ranke tenha se tornado o
historiador acadêmico par excellence, suas realizações, além disso,
excederam de muito o interesse acadêmico. A Universidade de
Berlim, onde ele lecionou, foi fundada depois da derrota da Prússia
por Napoleão. Destinada por Wilhelm von Humboldt a fomentar
antes a pesquisa original do que a reprodução das disciplinas
tradicionais, ela constituía uma parte orgânica de um empreendimen-
to cultural que também levou à construção da ilha de esplêndidos
museus clássicos oficiaisde Berlim e ao legado da esplêndida filosofia
da história não-clássica de Hegel.' Por volta de meados do século XIX,

1. Sobre a fundação e o período inicial da história da Universidade de Berlim, ver os relatos

40 41
r I

a universidade ftrmou sua preeminência na ciência natural, na filoso- Aqui está ele novamente, em agosto de 1829, desta vez nas
fia sistemática e na erudição filológica. Ela construiu o palco adequa- bibliotecas de Roma:
do para um grande drama intelectual no reino da história - o reino
no qual, segundo o consenso entre muitos pensadores alemães de Aproveito bem as tardes e noites frescas e silenciosas. O corso
trabalha até a meia-noite. Os cafés permanecem abertos até 2:00
diferentes escolas, o espírito da época deve se manifestar. E Ranke-
ou 3:00 da madrugada, e o teatro multas vezes não fecha até 1:30.
cujos livros fizeram vibrar milhares de leitores e cujas conferências e Então, janta-se. Mas não eu, naturalmente. Corro para a cama, já
seminários converteram centenas de jovens à crença de que a história, que quero estar no Palazzo Barberini por volta das 7:00 na manhã
estudada da maneira certa, permitiria a eles e a seu país pôr ordem seguinte. Lá eu uso uma sala que pertence ao bibliotecário, que
no caos do mundo moderno - era um protagonista adequado. tem a Tramontana [uma brisa]; meus manuscritos estão empilhados
lá. Meu escriba chega logo depois de mim e entra de mansinho,
Ninguém, com certeza, acreditava nisso mais firmemente do com um "Ben letato'. O criado do bibliotecário, ou a mulher do
que o próprio Ranke. Outros historiadores se queixam de precisar ler criado, mostra-se à porta e me oferece seus serviços com o habitual
fontes entediantes e visitar arquivos empoeirados e distantes ele casa. "Occorre niente? Também o bibliotecário, chamado Razzi, é
realmente bom e tem me prestado, assim como a outros alemães,
Porém as coleções de fontes primárias e pastas de arquivos tinham
uma excelente ajuda. A alguns passos daqui, está a Biblioteca
sobre Ranke o efeito de uma folha de alface sobre um coelho. Suas Albani, onde Winckelmann escreveu sua história da arte ... eu uso
cartas evocam os requintados prazeres de mergulhar em documentos duas outras bibliotecas, com bastante proveito. Como o dia passa
com uma vivacidade raramente alcançada nesse contexto. Aqui está depressa quando se estuda:'
ele, em 1827, escondido alegremente nos arquivos em Viena:
Com essas palavras eloqüentes, Ranke evocou o que se
Depois das 15:00, dirijo-me ao arquivo. Hammer ainda está traba- tornou, para muitos eruditos alemães e muitos admiradores não-
lhando aqui, nas questões otomanas, e um senhor von Buchholtz, alemães, uma das grandes descobertas ela história do início do
que deseja escrever uma história de Ferdinando L É realmente uma século XIX: os prazeres do arquivo." Pois Ranke, a despeito do
chancelaria completa [no tradicional estilo diplomático]. Encontra-
encanto de seu estilo e da profundidade de seu pensamento
mos nossas penas, facas de afiar as penas, tesouras e assim por
diante, tudo pronto para o uso, e temos nosso lugar de trabalho
bem definido. Geralmente, escurece muito cedo, e me apraz schreiben will. Es ist eine vollíge Kanzlei: man fíndet Fedem, Fedennesser, Papierschere
imensamente quando o inspetor ordena "A Liecht" ["Uma luz", no usw. vorbereitet, hat seinen umzãunten Platz. Gewôhnlích wírd es bald etwas dunkel,
und ein angenehmer Augenblick ist mir, wenn der Vorsteher ruft: 'a Liecht', worauf der
dialeto vienense]: imediatamente o criado traz duas para cada Díener für jeden, der da arbeitet, deren zwel bríngt."
pessoa que está trabalhando lá.2 3. Ibid., p. 194: "Eln grosser Genuss slnd die frlschen, kühlen, stillen Abende und Nãchte.
Bis Mittemachr ist der Corso belebt. Díe Cafés sind 2-3 Uhr nach Mítternacht erõffnet.
Das Theater schliesst oft erst halb zweí. Dann nimmt rnan noch díe Cena ein. Ich
complementares de U. Muhlack, "Díe Unlversitãten im Zeíchen von Neuhumanisrnus natürlích nícht. 1ch eile ins Bett; ich rnôchte geme des andem Margens um síeben beim
und Ideallsmus: Berlin", Beitrâge zu Problemen deutscber Untoersitãtsgrundungen der Palast Barberíní anlangen, Dort benutze ich ein Zimmer des Bíblíothekars, welches die
fruben Neuzeit, organizado por P. Baumgart e N. Hammersteín, Wolfenbütteler Fors- Tramontana hat, wo meíne Manuskrípte aufgehãuft sind. Baid nach mil' iangl mein
chungen 4. Nendeln/Liechtenstein, 1978, pp. 299-340, e C. McClelland, '''To Iive for Sehrelber an und huscht mit einem Ben levato! zur TUr herein. Der Dlener des
science.' Ideais and realities at the University of Berlin", em T. Bender (org.), 7be Bibliothekars oder dle Frau des Dieners erscheint und bietet mir mit dem gewbhnlichen:
universlty and the city. Nova York e Oxford, 1988, pp. 181-197. Sobre a reformulação occorre niente? ihre Dienste ano AlIch der Bibliothekar namens Razzi 1stwahrhaft gut
das instintições culturais alemãs nesse período, ver a obra instrutiva de R. Ziolko"'ski, und hat mil' lInd anderen Deutschen die besten Dienste geleistet. Wenige Schritte "on
Gennan romanNcism. and 11$ InsNtuNons. Princeton, 1990. da ist die Bibliothek Albani, wo Wlnckelmann die KlInstgeschichte schrieb ... Noch zwei
2. L. von Ranke, Das Briefu.oerk, organizado porW.P. Fuchs. Hamburgo, 1949, pp. 131-132: andere Bibliod1eken besuche ich mit glltem Fortgang, Wie bald ist ein Tag wegstlldiertl"
"Nach drei Uhr begebe ich mich nach dem Archiv. Hier arbeitet noch Hammer (an den 4. A. Farge, I.e goílt de I'arcbive. Paris, 1989 - uma maravilhosa descrição da nantreza do
osmanischen Sachen) und ein Herr v. Buchholtz, der eine Geschichte Ferdinands l. trabalho de arquivo numa das grandes coleções nacionais.

42 43
histórico, conquistou seu lugar de fundador de uma nova escola alemães - era confiável em certos aspectos. Apenas o estudo
histórica pelo apelo retórico de sua documentação. atento, comparativo, podia produzir uma história crítica.'
No fim da vida, Ranke ditou uma breve autobiografia. Ele A obra, publicada em 1824, proporcionou a Ranke tudo o que
dramatizou sua vida como a história de uma vocação tão irresistível ele poderia ter almejado. Seu estilo narrativo ainda imaturo, com seus
e singular quanto o chamado da filosofia para Bertrand Russell. Sua torneios de frase classicizantes e galicizantes, provocou objeções. Ele
educação inicial fora clássica: ele dominara o grego e o latim numa tencionara chegar a meados do século XVI,mas permitiu a seu editor
antiga e famosa escola secundária, Schulpforta, onde jovens filólo- - que começou a compor o texto muito antes do que Ranke julgara
gos eram recheados, como patos de Estrasburgo, de literatura ser possível - a produção uma versão inacabada de seu projeto
antiga. Depois, ele aprendeu os métodos da filologia clássica original, que terminava nos anos 1510. Mas a mesma habilidade de
moderna na Universidade de Leipzig, onde estudou com um romancista para encontrar detalhes vívidos que mais tarde animariam
estudante pioneiro da tragédia grega, Gottfried Herrnann. suas cartas sobre bibliotecas já inflamava sua discussão sobre pesqui-
Gradativamente, no entanto, desenvolveu interesse por his- sa crítica. O prefácio de Ranke a seu extenso segundo volume, Zur
Kritik net terer Oescbicbtschreiber (Sobre a critica dos historiadores
tória - tanto a da Europa moderna, incluindo a vida de Martinho
Lutero, quanto a de Roma, que estudou no tratamento pioneiro de moderno.'), retratou o contato entre o historiador crítico e suas fontes
Barthold Georg Niebuhr. Enquanto lecionava no Gymnasium; ou como complexo e formal, árduo, mas compensador:
escola secundária, em Frankfurt-am-Oder, Ranke apaixonou-se por Pense nos estranhos sentimentos que provocariam em alguém que
Walter Scott, cujos romances ressuscitaram a Idade Média e a entrasse em uma grande coleção de antigüidades, na qual objetos
Renascença para ele e para muitos outros. Porém o caso amoroso genuínos e espúrios, belos e repulsivos, espeta culares e insignifi-
sofreu uma perturbação profunda. Verificou-se que Scott era tão cantes, provindos de muitas nações e períodos, jazessem próximos
uns aos outros, em completa desordem. É assim também que se
pouco confiável quanto encantador. Uma comparação com a
I deveria sentir alguém que se encontrasse de súbito diante de
tradição histórica, tal como a preservada pelo cronista Philippe de diversos monumentos da história moderna. Ele nos falam com mil
Comines e pelos relatos contemporâneos, revelou que o Carlos da vozes diferentes; revelam as naturezas mais diversas; vestem-se de
Borgúndia e o Luís XI do Quentin Duruiard de Scott nunca haviam todas as cores imagináveis."
existido realmente. Ranke considerou esses erros - que julgou
deliberados - imperdoáveis. Mas julgou-os igualmente inspirado- A biblioteca e o arquivo se transformam, pela magica da
res: "Ao fazer a comparação, convenci-me de que a tradição metáfora, em uma galeria de antigüidades tridimensionais; as
histórica é mais bela e certamente mais interessante do que a ficção
romântica". Desse modo, pôs-se a escrever sua Gescbicbten der 5. Ranke, Sãmmtliche W"erke,(';3/54), Leipzig, 1890, pp. 61-62: "Bei der vergleíchung
überzeugte ich mích, dass das hístorisch Ueberlieferte selbst schôner und jedenfalls
romarlis'cben 1ind germaniscben V6lker (Histórias dos povos româ- ínteressanter sei, ais die romantísche Fiction."
nicos e germânicos), com base apenas nas fontes contemporâneas. 6. Ranke, Gescbicbtcn derromaniscben und germaniscben V6/kervon 1494 bis 1514, 21.,,·
Kritik neuerer Geschicbtschl-eiber. Leipzig e Berlim, 1824, p. iv: "Wie eínem zu I\I11th
Infelizmente, essas também eram discordantes; por conseguinte, seyn würde, der in eine grasse Sarnmlung von Alterthümern trate, worin Aechtes und
Ranke precisou construir sua narrativa desmontando as de seus Unãchtes, Schõnes und Zurückstossendes, Glãnzendes und Unscheinbares, aus man-
cherley Nationen und Zettnltern, ohne Ordnung neben einander lãge, 50 etwa rnüsste
predecessores, pois descobriu que nenhum deles - nem mesmo os sich auch der fühlen, der sích mit Eínem Mal nn Anschaun der mannichfaltígen
Denkmale der neuern Geschichte funde. Sie reden uns ln tausend Stímmen anosíe zeígen
díe verschiedensten Naturen: síe sínd in alie Farbe gekleidet."

44 45
fontes a serem interrogadas, em objetos preciosos. O historiador, por pelo mais eloqüente e recente predecessor de Ranke, o filólogo
sua vez, transforma-se no homem de bom gosto, cuja percepção genovês Sismonde de Sísmondi," Sua história em oito volumes das
mágica do que é genuíno e do que é falso se torna a pedra de toque. repúblicas italianas no auge da liberdade política e da criatividade
Ao aplicá-la habilidosamente, o historiador astuto e crítico realiza uma artísticano período medieval alcançou seu clímax melancólico na alta
mágica: reúne a poeirenta miscelânea em conjuntos coerentes de Renascença, quando a queda da Itália e a hegemonia da Espanha
material de períodos históricos distintos organizado em diferentes puseram um fim ao progresso. As notas de rodapé compactas de
I I '

salas, datado, etiquetado e comprovado. O próprio Ranke passou por Sismondi referiam-se a todos os cronistas mais importantes do século
uma metamorfose semelhante, como um grande escritor e professor XVI,mas ele se apoiou especialmente em Guicciardini.
emergiu da crisálida do mestre-escola provinciano. Viu-se possuidor Ranke apreciava a profundidade e a complexidade das
de uma cátedra em Berlim, beneficiário de uma permissão especial análises políticas de Guicciardini, que considerava tipicamente
para usar os arquivos e de subsídios para se deslocar até arquivos e florentina. A passagem que dedicou à caracterização do historiador
bibliotecas estrangeiros. constitui por si só uma pequena obra-prima de história cultural:
O "método de pesquisa" de Ranke possuía uma força e um vigor
intelectual dignos de seu estilo brilhante. A história das guerras italianas Ele quer mostrar o que se deveria esperar em cada caso, o que
deveria ser feito, qual o real motivo de cada ação. Portanto, é um
do início do século XVIescritas pelo amigo de Maquiavel, Francesco
verdadeiro virtuose e mestre em suas explicações do grau em que
Guicciardini,fora considerada durante muito tempo como o relato mais cada ação humana se originava de uma paixão inata, da ambição,
exato e mais penetrante daqueles anos terríveis, quando os enormes do egoísmo. Esses discursos não são produto apenas do talento de
exércitos francês e espanhol, equipados com canhões e mosquetes em Guicciardini. Eles dependem, de dois modos distintos, do estado
uma quantidade sem precedentes, percorreram de cima a baixo a dessa pátria florentina. Por um lado, o poder florentino não era
independente, e a situação nas questões públicas muitas vezes
península italiana. Até mesmo os poderosos Estados italianos viram-se
oscilava de um extremo a outro. Portanto, a atenção de todos se
reduzidos, por sua carência de força militar,a peões em um jogo de dirigia espontaneamente para as questões e sua possibilidade de
política de força que eles haviam tradicionalmente dominado pela sucesso ... Esse é um lado. Mas seu comportamento era o mesmo
astúcia. Como parte da base para sua própria análise políticado fracasso nas questões domésticas. Para realmente compreender a origem
da Itália em resistir às grandes forças do norte, Guicciardini citou de uma obra como a de Guicciardini, é preciso em primeiro lugar
ler em Varchi e Nerli o quanto o pensamento, o boato, a negocia-
integralmente os discursos de muitos atores políticos. Além disso,
ção, a suspeita e o julgamento estavam presentes antes da eleição
descreveu todos os eventos nos quais ele ou seus amigos haviam de um gonfaloniere [um oficial da Comunal. Relacionamentos,
tomado parte. Em suma, Guicciardini cumpriu todas as exigências alianças e contra-alianças se formavam nesse pequeno círculo,
tradicionalmente feitas aos historiadores na tradição clássica: que eles exatamente como nas questões européias, para ganhar alguns
próprios tenham tido experiências políticas e militares, que façam outros poucos feijões pretos [no processo de seleçãol. Uma enor-
me quantidade de coisas devia ser levada em consideração:
relatos como testemunhas oculares ou com base em entrevistas com
observações, regras e avisos tomavam forma,"
outras testemunhas oculares e que tenham um amor manifesto pela
verdade? Evidentemente, Guicciardini mereceu a fé depositada nele
Sobre Sísmondí, ver, por exemplo, P.B. Stadler, Geschichtschretbung und bistoriscbes
Denken in Frankreich 1789-1871. Zurique, 1958,cap. ;.
9. Ranke,ZUI·Krttik, pp. 47-48:"Wasln jedemFali zuerwarten,zuthun,wasder eígentliche
7. G. Nadei, "Philosophyof history before hístoricísm", History and Tbeory 3, 1964,pp. Grund einer Handlunggewesen, wíll er zeigen. Daher íst er in den Erlâuterungen,in
291-315.

47
46
Ranke delineou as conexões entre as artes da política e da especial como pesquisador: "O sobrinho de Francesco, Agnolo,
história, mostrando que um único estilo cultural determinava o que editou sua história, sustenta que seu tio mostrava um empenho
comportamento político florentino e a exposição histórica. Não especial em explorar os monumentos públicos [fontes] e tinha fácil
admira que aquele que veio a ser seu aluno mais tarde, Jacob acesso a eles.,,12Na verdade, contudo, muitos erros desfiguraram
Burckhardt, que aplicou um método semelhante a um âmbito essas passagens. Até mesmo os célebres discursos careciam de
muito maior de formas culturais, do teatro à dança, tenha conside- credibilidade histórica. Alguns diferiam dos textos realmente pro-
rado seu método inspirador. 10 Nunca até então o método histórico
feridos, ao passo que outros careciam de qualquer confirmação de
havia sido analisado com tanta intensidade ou os resultados apre-
fontes externas. Não se poderia comprovar que nenhum dos
sentados com tanto brilho. Todavia, os resultados principais de
exemplos de discurso em Guicciardini, argumentou Ranke, hou-
Ranke foram negativos. As mesmas habilidades que proporciona-
vesse sido proferido como o historiador o registrava. Ao contrário,
ram a escritores renascentistas como Guicciardini um alto cargo e
eles constituíam um exemplo típico do método dos historiadores
inspiraram sua brilhante reportagem política produziram uma
renascentistas, que tentavam emular os antigos e mostravam seu
história mim. Em virtude de ter Guicciardini cuidado apenas dos
motivos, das intenções e das habilidades de seus atares, argumen- brilhantismo na retórica formal, exatamente como Tito Lívio. Eles
tou Ranke, ele permitiu que sua narrativa como um todo se não relatavam, mas compunham discursos que poderiam fornecer
tornasse confusa e sem forma. Pior ainda, porque o estabelecimen- um comentário penetrante sobre uma situação, mas "nada tinham
to dos fatos não importava muito a Guicciardini, ele não fez em comum com fontes históricas". B Apesar de toda sua intuição
nenhum esforço sistemático para obter informações de primeira política, Guicciardini não era um historiador "documental". Portan-
mão. Na verdade, copiou material de outros historiadores nào to, o estudioso moderno crítico que desejasse, como Ranke,
apenas na parte inicial de suas histórias, que cobriram os anos de aprender e mostrar "wie es eigentlich gewesen" , "como realmente
sua infância, mas até mesmo nos eventos de sua maturidade." era", não deveria citá-lo."
Guicciardini também cometeu muitos erros. Seus relatos Em outras palavras, notas de rodapé não eram o bastante.
sobre os tratados, por exemplo, haviam-lhe granjeado um respeito Sismondi tinha muitas delas. Ranke até mesmo contou-as, afirman-
do que as 27 referências de Sismondi a Beaucaire no capítulo 104
Grund einer Handlung gewesen, wíll er zeígen. Daher ist er in den Erlauterungen, in
e pelo menos 27 mais no capítulo 105 punham o historiador francês
wiefem eine jede menschliche Handlung aus angebomer Leídenschaft, Ehrgeiz, Eigen- em segundo lugar, depois de Guicciardini, entre as fontes deste.
nutz, komme, ein wahrer Vírtuos und Meíster. Diese Discorsen sind nicht eine Porém, a quantidade de breves referências a autores, títulos e
Hervorbringung von Guíccíardlnís Geist allein; sie ruhen, un zwar in doppelter Hinsicht,
nur allzuwohl auf dem Zustand seiner Vaterstadt Fiorenz. Erstens nãmlích, da die ~lacht
von Florenz nícht selbstãndíg war, und die Lage der ôffentlíchen Angelegenheiten
zuweilen von dem einen Extrem zum andem schwankte, ríchtete sich die Aufrnerksam- 12. Ibid., p. 38: "Agnolo, der Neffe Franzescos, der Herausgeber dieser Geschíchte,
keit unwillkürlich auf die moglíchen Erlolge der Dinge ... Das ist das Eine. Aber auch in behauptet, sein Oheím habe mit besonderem Fleiss díe offentlíchen Denkmaler
den innem Angelegenheiten pflegen sie derselben Art und \Veise. Wenn rnan in Varchi (pubblíche memorie) erforscht, und habe víelen Zugang Z1.1 íhnen gehabt." Continua
und Nerli líest, wíe vlel vor eíner Gonfalonierewahl gesonnen, geschwarzt, unterhandelt, Ranke: "Wir sahen, wíe johann Bodin auf diese ortginale Kunde der Beschlüsse und
vermuthet, geurtheílt ward, "l;vieman in diesem kleinen Kreis, 50 gut ais in den Bündnisse einen besondem \Verth legte". - "Como vimos, Jean Bodin atribuía um valor
europaischen Angelegenheiten, Verwandtschaften, Bündnisse, Gegenbündnisse especial a esses relatos originais sobre decisões e alianças." Para a importância do uso
schloss, um einige schwarze Bohnen mehr zu bekommen, wie viel es da zu berück- que Ranke faz de Bodin, ver cap. 3 a seguir.
sichtigen gab, wie sich nun Beobachtungen, Regeln, Rathschlage entwickelten, 50 lbid., p. 27: "... mit historischen Monumenten 50 gut wie nichts gemein hatten."
versteht man erst Urspmng eines Werks, "'ie Guicciardini's Werk ist." Ranke exagerou aqui: ver, por exemplo, E. Schulin, Traditionskritik und Rekonstruk-
10. W. Kaegi, Jacob Burckhardt: Eine Biographie. vol. II. Basiléia, 1950, pp. 54-74. Itonsversuch. Gôttingen, 1979, pp. 48-50; e de modo mais geral a obra clássica de F.
11. Ranke, Zur Kritik, pp. 8-20. Gilbert, Machiauel/i and Guicciardini. Plinceton, 1965.

48 49
números de páginas que supostamente provavam os ofícios cons- mais velho, Gustav Stenzel, que se tornaria ele próprio um medie-
cienciosos de Sismondi na verdade revelavam apenas que ele valista ilustre, que o historiador deveria começar a trabalhar com
deixara de fazer a pergunta correta em primeiro lugar: "Quem, determinado reino ou período, obtendo excertos sistemáticos
desses muitos escritores, possui a informação re_almente original; das fontes." Na verdade, estes acabavam por constituir resumos
quem pode nos fornecer a informação genuína?"]) Uma explicação muito longos, detalhados, dos textos em alemão, Ranke dividia as
história que se baseasse na prova de Guicciardini estava fadada a }""'.!5"'''''' cio seu caderno in-folio em duas colunas, uma dedicada 3
desmoronar, na melhor das hipóteses: Guicciardini, e a outra a relatos complementares ou divergentes. A
comparação sistemática revelava as subordinações e os defeitos do
Reconheçamos claramente, de uma vez por todas, que esse livro mstoriador. À medida que Ranke se pôs a explicar suas conclusões,
não merece o respeito incondicional de que desfrutou até agora.
ps,cadernos metamorfosearam-se espontaneamente em uma crítica
Ele deveria ser descrito não como uma fonte, mas apenas como
uma reelaboração de fonte - e de uma forma imperfeita. Se o
"radical.Ficou claro, quase imediatamente, tanto para Ranke quanto
fizermos, teremos atingido nosso objetivo: os Sismondis devem para seu editor, que esse material, muito mais do que a narrativa,
parar de citar Guicciardini no rodapé de cada página e sempre o causaria uma impressão muito forte no público: ele significava
mesmo Guicciardini. Eles deverão saber que ele não fornece dinamitar o que parecera ser um alicerce histórico. Como escreveu
nenhuma prova.i" Ranke a seu irmão em outubro de 1824:

Apenas as notas de rodapé corretas, não uma reunião alea- Você provavelmente ainda se lembra do caderno in-fôlio manus-
tória de referências, podiam permitir a resistência altiva de um crito (ou antes, do ainda não manuscrito) no qual registrei todas
texto diante de um escrutínio crítico. as minhas notas sobre os historiadores que leio. Nào pude deixar
de apresentar algumas justificativas para meu tratamento desses
O instrumental de Ranke, ao contrário, atestava sua pesquisa historiadores na minha história. Então, transformei o caderno
sistemática, original. Até mesmo quando estava lecionando na in-fálio em um ui-quarto, e o in-quarto, por sua vez, está sendo
Frankfurt-am-Oder desprovida de livros, conseguira obter as prin- transformado em um in-octato impresso. A previsão, segundo
dizem, é que este me trará maior sucesso do que o outro.i''
cipais histórias impressas da Renascença, da Biblioteca Real de
Berlim, na qual testou a paciência dos funcionários (quando
recebeu sua convocação para Berlim, circulou uma piada de que 18. Ver o ótimo relato em Schulin, p. 49.
seria necessário ou levar toda a biblioteca a Ranke ou trazê-lo para 19. Ranke, Das Briefuerle, organizado por Fuchs, p. 65: "Ou wirst Dích wohl noch auf das
a biblioteca; dado seu tamanho reduzido, a segunda alternativa geschriebene Foliobuch besinnen (víelmehr das noch nicht geschriebene) in das ich
alle Notizen über die Geschichtschreíber, die Ich las, eíntrug. Nun war es unerlãsslích,
fora mais fácil)." Também aprendera com um estudante e amigo dass ich meine Behandlung dieser Geschichtschreiber in der Geschichte selbst eíníger-
massen rechtfertigte. Da habe ích mm aus jenem Folíobuch eíns ln quarto gemacht,
und daraus wírd eíns in octavo gedruckt: Q~15dtesem pl'ophe<l:eitman mir elnen gr6"ern
15. Ranke, Zur Kritie. p. v: "... wem von so Vielen eine originale Kenntniss beygewohnt, Erfolg ais aus dem andem." Os alunos de Burckhardt se lembrarão de que ele também
von wem wir wahrhaft belehrt werden kônnen." fazia excerto de fontes primárias com notável energia e assiduidade (\'\I. Kaegi, Jacob
16. Ibid., p. 36: "Erkennen wír klar, dass das unbedíngte Ansehen, ':"elches diess Buch b~sjetzt Burcebardt. Eil1CBiograpbio. vol, III. Basiléia, 1956, pp. 383-396. Essa história cultural
g.i:n\l)ssen,i.hm mít Unrecht gewâhrt worden, dass es mcht eme Quelle, eme Urkunde, da Renascença também foi reunida ii medida que ele reelaborava uma enorme
sondemalleineineBearbeitung.lIndzwareinemangelhaftezunennenlst.solst unser quantidade de excertos. Cf. sua carta célebre a Paul Heyse de 14 de agosto de 18';8,
Zweck erreicht; 50 mi.issendle Sismondi aufhbren, unter jeder Seite den Guicciardini und citada ibid., p. 666: "Gestern habe ich zum Beispiel 700 kleine Zeddel nur mit Citaten
immer den namlichen zu citiren; sle mi.issenwissen, dass er nicht beweist." aus Vasari, die ich in ein Buch zusammengeschrieben hane, auseinandergeschninen
17. Para o uso que Ranke faz da Biblioteca Real, ver C. Varrentrapp, "Briefe ~n Ranke ...", und sortiert zum neuen Aufkleben nach Sachen. Aus andem Autoren habe ich noch
Historiscbe Zeitscbrift 105, 1910, pp. 10'5-131,e Ranke, Neu·'CBnefe, orgamzado por B. etwa 1000 Quartseiten Excerpte über die Kunst und 2000 i.iber die Cultur. Wie viel von
Hoeft e H. Herzfeld. Hamburgo, 1949, pp. 22, 24-25, 39,41-42, 44-45, 54-55. ali diesem werde ich wohl wirklich verarbeiten?" Sobre os métodos de trabalho de

50 51
Os profetas estavam certos. Os primeiros leitores de Ranke historiadores modernos" eram "a melhor parte da obra do senhor
tinham muitas dúvidas sobre sua narrativa. Porém quase todos - de Ranke, pelo menos, revelam que ele comparou os diferentes extratos
Stenzel ao velho erudito de Gottingen Arnold Heeren e ao exilado sob diferentes perspectívas''."
alemão Karl Benedikt Hase, um brilhante lexicógrafo e obstinado Nos anos seguintes, o interesse de Ranke pela historiografia iria
forjador, cujo diário, em grego clássico, oferece um guia singular pelos decrescer à medida que se acendia seu interesse por documentos. Na
bordéis e cafés da Paris de Balzac - concordaram que nunca haviam conclusão de seu Zur Kritik neuerer Geschichtscbreiber,não deixou
visto tantos argumentos críticos brilhantes, convincentes e eruditos de incluir uma análise final das histórias publicadas, mas com um
produzidos por um estudioso tão jovem." O autor de uma resenha capítulo intitulado "O que ainda há por fazer". Nesse capítulo, ele
favorável no Allgemeine Literatur-Zeitung enfatizou o brilhantismo argumentou que os historiadores deveriam agora ir além dos textos
iconoclasta da análise de Ranke sobre suas fontes, que despia textos impressos. Em toda a Europa, mas sobretudo na Alemanha, as fontes
consagrados de sua aura de autoridade: "Ele ilumina as obras dos originais jaziam inexploradas e inacessíveis: "Para esse período temos
historiadores que anteriormente foram consideradas as principais arquivos, cartas, biografias e crônicas da maior importância, para os
fontes para o historiador do período em questão ... assim como as quais a impressão parece não ter sido nunca ínventada.?" Nem
personalidades de seus autores, com a tocha de sua crítica mesmo as qualidades dos melhores historiadores modernos tinham
implacável, rigorosa. Impiedosamente, ele despoja ambos da uma importância maior do que as das fontes primárias, os documen-
auréola na qual eles anteriormente brilhavam - ou então, pelo tos que revelavam as verdadeiras intenções dos políticos e generais.
menos, determina exatamente até que ponto merecem, ou não, Abri-losdeveria tornar-se a vocação de um eleito, que viajaria com a
um crédito real - e, em geral, até que ponto deveriam ser ousadia do explorador da Arábia, no século XVIII,Carsten Niebuhr,
considerados fontes genuina.'I.,,21 Até mesmo os mais ferozes críticos não para um deserto da África ou do Oriente Próximo, mas para
de Ranke admitiram que suas "Contribuições para a crítica dos âmago alemão da escuridão dos arquivos:

o que precisamos é de um homem equipado com um conheci-


Burckhardt, ver P. Ganz, "[acob Burckhardts Kultur der Reru:lissance in Italien. mento razoável, cartas de recomendação pomposa e boa saúde,
Handwerk und Methode", Deutscbe vtertetfabrsscbrtf: für Luteraturusssenscbaft UM
que cruzaria a Alemanha de ponta a ponta para caçar os restos
Geistesgescbtcbte 62, 1988, pp. 24-59. Próximo ii história não escrita da ;mo~'lçàoque
assombra as bibliotecas dos seminários históricos, geme o fantasma da hlstória ainda deste mundo, que estã meio imerso e no entanto tão próximo de
mais volumosa do ato de tomar notas. nós. Perseguimos pastos desconhecidos nos desertos da Líbia: Não
20. Ver o material publicado por Varrentrapp em Historische Zettscbrift 105, 1910, pp. 109 deveria a vida de nossos antepassados, em nosso próprio país,
(Heeren), 112 (v. Raumer), 114 (Schulze), 115 (Karnptz): A. von Hase: "BIückenschla,? merecer o mesmo enrusíasmor'"
nach Paris. Zu elnem unbekannten Vorstoss Rankes bel Karl Benedíkt Hase (1825) ,
Archtv for Kulturgeschichte 60, 1978) pp. 213-221 em 215. Sobre o próprio Hase, ver.o
espirituoso e erudito artigo de P. Petitrnengin, "Deux têtes, de pont, de la phílologle
22. H.L. Manin [H. Leol, resenha de Ranke, Ergãnzungsblâuer zur jenaiscben Allgemeinen
allernande en France: Le Thesaurus linguae graecae et la Bíblíothêque des auteurs
Litteratur-Zeüung 16, 1828,n~ 17-18,cols. 129-140,em 138:A "Beítragezur Kritikneuerer
grecs' (1830-1867)", em M. Bollack eH. Wismann (orgs.), Pbilologie und Herrneneutik
Geschíchtschreíber", de Ranke, era "das Beste an Hn. RankesArbelt, und zeígen wenígstens
tm 19.jahrhundert. Vol. II. Gõttíngen, 1983, pp. 76-98. . .
zuglelch von mannichfacher Vergleíchung der verschiedenen Excerpte unter sích."
21. Resenha anôníma de Ranke, Erganzungsbliiller zur Allgemeil1en LttlemtUl'-ZeltUl1g,
fevereiro de 1828, nUli 23-24, cols. 183-189 em 183-184:"Mitder Fackel einer unbe~tec1~-
23. Ranke, Zw' Kn'tik, p. 177: "Es sind über diese Zeit Acten, Brlefe, Lebensbeschreibungen,
Chroniken von der grossten Wichtigkeit vorhanden, für die es aber ist, ais w:ire die
lichen, strengen Kritik beleuchtet er die Werke der bisher ais Hau~tquell~n fuI' dIe
Buchdmckerkunst noch gar nlcht erfunden:
Geschichten der bezeichneten Periode ... geachteten Historiker wle. dl~ personh~hkelt
ihrer urheber, und beraubt beide schonungslos des Nimbus, ~'orin Sleb~sher geglanzet, 24. Ibid., p. 181:"Hier ware eln Mann erforderlich, der mit leidlichen Kenntnissen, sattsamen
oder bestlmmt wenigstens genau, in wie fem und ln wie fem nicht SlewI~~hchGlauben Empfehlungen und guter Gesundhelt ausgerüstet, Deutschland nach allen Seiten
verdlenen, liberhaupt in wiefern sie ais wahre Quellen zu achten seyen. durchzoge, und die Reste elner halb untergegangenen und 50 nahe liegenden Welt

52 53
o homem certo, é claro, era o próprio Ranke. Sua inspiração mostra o velho historiador encolhido, quase esmagado,
foram as primeiras publicações do jovem G.H. Pertz, um erudito concretude material de sua erudição."
mais bem situado que já havia começado a invasão germânica das ,. Ranke não acumulava simplesmente: o que lia e copiava, ele
bibliotecas italianas e que lideraria o maior de todos os empreen- iÍsava. Descrevia sua história da Alemanha durante a Reforma, por
dimentos históricos alemães, os Monumenta germaniae historica, exemplo, sua principal obra dos anos 1830 e 1840,como o resultado
que produziu - e ainda produz - edições. ~ríticas exaustivamente de um progresso triunfal pelos arquivos alemães. Em palavras que se
preparadas das fontes da história medieval. 2, Ranke estava também tomaram célebres, Ranke profetizou que esse livropesado era apenas
entusiasmado com o sucesso de seu primeiro livro. Mandou uma a primeira andorinha, o arauto de uma revolução histórica:
chuva de cartas e cópias complementares a eruditos, ministros e ao
intelectual e estadista Barthold Georg Niebuhr, que foi simultanea- Vejo aproximar-se a época em que já não teremos de basear a
mente embaixador em Roma e historiador. Em suma, Ranke história moderna em relatos, nem mesmo nos dos historiadores
procurou todos aqueles que, segundo julgava, pudessem ajudá-lo contemporâneos - exceto na medida em que tenham um conhe-
a obter um cargo numa universidade, subsídios para viagens e as cimento de primeira-mão -, para não falar nas reelaborações
. .
chaves dos reinos dos arquivos no paIs e no extenor.
. ~ derivadas das fontes. Ao contrário, nós a construiremos dos relatos
( das testemunhas oculares e das fontes mais genuínas e diretas."
A exploração e a utilização das fontes primárias da história - a
princípío, os relatos dos embaixadores venezianos ao governo, mas,
Seu entusiasmo subsistiu durante anos de trabalho árduo, de
no fim, muitos tipos de papéis públicos e privados - tornaram-se o busca e cópia, exame e revisão, comparação de edições impressas
princípio orientador do trabalho de Ranke para toda a vida. Desde o com textos manuscritos. Quando preparava o apêndice documental
fim dos anos 1820, Ranke enclausurou-se no material original da da história da Reforma, por exemplo, Ranke fez repetidos rascunhos
história. Ele viajava regularmente, com auxílio oficial, para ter acesso para uma introdução na qual apelaria para "leitores que participam
ao que eram ainda, nos primeiros anos, arquivos bem guardados." do trabalho", "leitores participantes". Ele admitia que não podia
Ele e:icp'loravacom rigor o mercado de livros pós-revolucionário, no imprimir todas as fontes relevantes, ou todas as que usara: "Ninguém
qual os papéis de muitas famílias italianas estavam à venda. Usava
sistematicamente as máquinas humanas de cópia que surgiram muito
",;. Para os procedimentos de Ranke, ver U, Tucci, "Ranke and the venetian document
antes da câmera de microfilmagem e da Rank Xerox: os escribas market", em G.G. Iggers e J. Powell (orgs.), l.eopold vem Ranke and tbe sbaping of tbe
profissionais. A aquisição contínua de novas edições importantes bistortcal discipline. Syracuse, 1990, pp. 99-107; para uma imagem dele e de sua
biblioteca, ver o frontispício, ibid. Ver também o notável catálogo de E. Muír, Tbe Leopold
como as contidas nos Moru ementa produziu a montanha de livros e vem Ranke manuscript collection 0/ Syracuse Unioersity. Syracuse, 1983.
manuscritos agora preservados na Universidade de Syracuse. Uma 29. Ranke, Deutscbe Gescbtcbte im Zeitalter der Reformation, organizado por P. joachímsen
et ai. Munique, 1925-1926, I, 6·: "Ich sehe die Zelt komrnen, '1\'0 wír dle neuere
Geschíchte nicht mehr auf die Beríchte, selbst nicht der gleichzeitigen Historiker, ausser
ínsoweít ihnen eine orígtnale Kenntnis beíwohnte, geschweíge denn lIuf díe weíter
abgeleiteten Bearbeínmgen zu gri.inden haben, sondem aus den Relatíonen der
aufsuchte. Wir jagen unbekannten Grâsern bis in die \'(Tüste.nLibyens nach; soll[~ ~~s
Augenzeugen und den ãchtesten unmittelbarsten Urkunden aufbauen werden." Apesar
Leben unserer Alt:vordem nlcht denselben Eifer in unserm eigenen Land werth sem.
de um grande progresso no estudo de Ranke e de seu Nacblass, alguns dos quais
25. Ranke, Das Briefuere, organizado por Fuchs, p. 70. Para Pertz, ver D. Knowles, Great
resultaram em import:lntes correçóes para a obra de Joachlmsen e seus colaboradores,
bistorical cnterprises. Problems i11 monastic bistOl)'. Edimburgo, 1963, cap. 3, com
sua introdução a essa edição continua sendo um dos melhores tratamentos dos estudos
referências à literatura mais antiga. e do pensamento de Ranke. Ela foi reeditada em Gesamme/teA~fstitze, organizado por
26. Ver, por exemplo, Ranke, Neue Briefe, organizado por Hoef[ e Herzfeld, pp. 56-59. N. Hammerstein. Aalen, 1970-1983,I, pp. 627-734; sobre o pensamento e os esnldos de
27. Para um estudo fascinante sobre o degelo de um dos arquivos mais ricos da Europa, Ranke, \'er também ibid., pp. 735-758.
ver H. Chadwlck, Catbolicis117and bistory. Cambridge, 1978.

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54
desejaria publicar arquivos inteiros." Porém insistia em que esse lessem: então, tiraria as dificuldades com que se defrontassem no
material era vital para leitores inteligentes. Instava-os a superar o que correr da leitura. Daríamos o mesmo tratamento à história medie-
descrevia como pequenas dificuldades lingüísticas apresentadas pelas val.,,33 Decidiu não fazê-lo apenas porque as habilidades e os
fontes, para seguir os relatos "particularmente vívidos" de grandes interesses de seus alunos eram variados, e para alguns um estudo
eventos que os documentos originais ofereciam. Se possível, deve- crítico desse tipo era muito árduo. Ninguém podia sair da casa de
riam trabalhar com os textos e os documentos juntamente - uma Ranke sem perceber essa forte preferência pelos estudantes real-
recomendação que sugere que o método de Ranke não era tão mente dotados que insistiam em descobrir os tesouros das fontes
ingênuo quanto se supõe atualmente." por si próprios, ou que pelo menos relutavam em simplesmente
repetir o que liam em obras secundárias, sem o conhecimento das
Ranke também dedicou muita atenção a suas fontes em suas
fontes de informação. O seminário naturalmente se concentrava -
aulas - especialmente no seminário que organizou em sua própria
embora não exclusivamente - na crítica de fonte, e esse interesse
casa. :Explicou, no discurso latino de 1825 com o qual abriu sua
acompanhou os estudantes a outros centros de pesquisa histórica,
institúição informal,porém fundamental, que teria preferido concen-
como a Munique de Sybel/"
trar-se inteiramente em problemas selecionados que emergissemdas
fontes primárias. Para os melhores alunos, isso teria sido a abordagem A maioria dos cursos de Ranke também começava com
ideal. Eles, explicava, "decidiram dedicar suas vidas a aprender explicações detalhadas sobre as fontes e algumas referências às
história de um modo realmente profundo: julgo que uma espécie ele dificuldades específicas que elas apresentavam.f Até mesmo no
impulso da alma e uma qualidade singular de espírito os atrai para fim de sua vida, quando deixara de lecionar e trabalhava com
esses estudos. Certamente, desejarão conhecer as fontes das quais se grande dificuldade, Ranke ainda dedicava horas todos os dias ao
originam as histórias: não se contentarão em ler os escritores costu- estudo de documentos. Cercado pelos objetos irremediavelmen-
meiros, exigidos, e desejarão conhecer os provedores de cada narra- te confusos de sua biblioteca particular, a maior da Alemanha,
tíva"." Até historiadoresmenos dedicados, mesmo se muito habilido- ouvia a leitura em voz alta, feita por seus jovens secretários, de
sos, "não se contentam em aceitar, crer e ensinar, confiar em outros, excertos dos documentos que já não podia ele mesmo fazer - e
mas desejam usar seu próprio julgamento nessas questões"52 Ranke os interrompia assim que começavam, quando seu excepcional
teria desejado ensinar, rigorosamente, apenas para o primeiro grupo: sexto sentido dizia que um dado documento era relevante e o
"Eu estabeleceria uma série de loci classici e faria com que os que significava. Ranke insistia em que conhecia melhor do que
qualquer um de seus rivais historiadores, que trabalhavam com
30. Ranke, Deutscbe Gescbicbte tm zeuatier der Reformation, VI, pp. 3-4: "Wer will auch
díe ganzen Archíve drucken lassen?"
31. Leopold von Ranke Nachlass, Staatsbibliothek zu Berlin Preussischer Kulturbesitz (Haus
Il), 38 II A, fi. 72 recto: "... eorum, qui historiae rereum díscendae penítusque imbibendae
33. Ibid., fi. 72 verso: "Si primum tantum genus hic adesset, rem ita instltuerem -
diger<er>em seriem locorum classlcorum - eos legendos proponerem. Dlfficultates,
vítam suam dícare constítuerunt. Istos anímí quodarn impetu ingeniique sui natura ad
quae legentibus offendunt, e mdio tollere curarem. Eadem ratione hísoríam medii aevi
haec studía ferri credo. Hi sine dublo fontes, e qulbus historiae hauriunrur, cognoscere
tractaremus. "
volent. Non satís habentes scriptores perlegisse quos schola suppedídat, promos omnis
relatí volent cognoscere." Sobre esse texto (e o seminário ele Ranke), ver a excelente 34. Ibid., I, pp. 83-84. Cf. num aspecto mais geral, Gescbicbtsunssenscbaft in Berlin im 19
monografia de G. Berg, Leopold von Ranke ais bistoriscber Lebrer. Góttíngen, 1968, pp. und 20. fabrbundert.. Berlim, 1992; e para o seminário Sybel em Munique, ver V.
Dotterweich, Heinricb von Sybel. Góttlngen, 1978, pp. 255-284.
51-56, em 52 e n. 2.
32. Ranke Nachlass, 38 II A, fi. 72 recto: "Non tamen satís habent accípere ea, credere, Ver Berg: L. von Ranke, Am Werke und Nacblass, organizado por W.P. Fuchs et aI.
docere, fldem alíís habere, sed suo Ipsorum judicio in his rebus uti cuplunt." Munique e Viena, 1964-1975, IV.

57
56
Ranke insistia em que esse tipo de história não reproduzia
base em meras seleções, ou do que os próprios arquivistas, quais
nenhum modelo existente - nem mesmo a erudição crítica clássica
preciosidades os documentos inéditos poderiam fornecer.~6
da geração imediatamente anterior à sua, a obra de Wolfe Niebuhr.
Mais importantes ainda do que seu fecundo gérmen de Retornaremosa essa afirmação, que agora parece tão provocadora
erudição, é claro, eram os livros nele gerados: a infinita série de quanto a insistênciado grande historiadorda antigaInglaterra,Ronald
histórias da Europa medieval e de inícios da era moderna (e muito Syme,em que a obra de LewisNamier sobre a história inglesa, que
mais) assistidas, cada uma, por uma majestosa série de documentos
antecipara seu uso dos métodos prosopográficos, não causara nele
e sustentadas por uma massa de notas de rodapé que fornecem
impacto algum." Em sua própria época, a retórica de Ranke geral-
não apenas referências, mas passagens inteiras das fontes. Ranke
mente convencia. Caçadores experientes de arquivos, como o histo-
criou uma nova teoria da história e escreveu com um cosmopoli-
riador de Kõnigsberg ]ohannes Voigt,sentiam que Ranke havia de
tismo não igualado durante um século, quando Braudel o alcançou
certo modo lhes dado voz, ou uma linguagem com a qual podiam
- porém não o superou. Não me ocuparei diretamente dessas
realizações aqui. ~7 Mas ele também criou e deu ênfase a uma nova
explicar a importância do que há muito tempo estavam fazendo.11
prática, baseada num novo tipo de pesquisa e manifestada por uma Profissionaisde diversoscampos reconheceram que o tipo de história
nova forma de documentação. Toda obra séria de história deve de Ranke era algo radicalmentenovo. Em 1863, o classicistaHeinrich
agora viajar num barco de casco impermeável, como uma tartaruga Nissenpropôs-se a mostrar,em seu célebre estudo sobre Tito Lívioe
de costas. O fracasso em alcançar esse ideal de descoberta e de suas fontes, que os historiadores antigos haviam normalmente traba-
apresentação trouxe a desgraça para adeptos do método tradicio- lhado não como os historiadores, mas como os jornalistas atuais.
nal (ou da ausência de método) como Froude - que deu seu nome, Haviam obtido suas informações, argumentou ele, de uma fonte
como Holland, a uma enfermidade detectável." Alcançá-lo signifi- ~rincipale apenas ocasionalmente usaram outros textos para corrigi-
cou produzir um rico instrumental, uma série de suculentas notas las ou complementá-Ias.Nissen baseou sua tese em parte num uso
de rodapé que os novos estudiosos podiam espremer com proveito engenhoso de diversas formas de provas colaterais - como o fato
- como indicou Ranke na prática, quando fazia seu secretário ler de que os livros antigos, na forma de rolos, teriam praticamente
em voz alta extratos não do texto, mas das notas de rodapé, da Impossibilitado sua confrontação com outros de maneira sisterná-
História da Prússia de Droysen, enquanto preparava sua própria
abordagem do mesmo assunto.i" O homem, o momento e o Ranke, Sâmmtlicbe Werke, 53/54, p. 62; cf. L. Stone, Tbe past and tbe present reoisited.
método surgiram conjuntamente com uma nitidez que imediata- Londres, 1987.
mente levanta suspeitas. Ver a carta de Voigt a Ranke, surpreendentemente humilde para o compilador de todo
.o Codex diplomaticus prussiano e autor dos fartamente documentados e metodologi-
camente inovadores Geschichte Marienburgs. Kônígsberg, 1824e Hildebrand. Weimar,
1815,em Varrentrapp, pp. 127-128,e sua cltação estratégica das linhas de Ranke sobre
36. T. Wiedemann, "Sechzehnjahre in der WerkstattLeopold von Rankes", Deutsehe Reuue,
a era vindoura da história baseada em manuscritos, citadas acima, em seu Briefuecbsel
novembro de 1891, pp. 177-179. der berübmtesten Gelebrten des Zeitalters der Reformation mit Herzog Albrecbt oon
37. Ver a apreciação magistral de F. Gílbert, History: Politics ou culture? Princeton, 1990. Preussen. Kontgsberg, 1841, Ivl. Reconhecidamente, Voigt era um historiador muito
Para um ponto de vista mais crítico, que enfatiza a extensão e a originalidade da menos original e críticodo que Ranke e acabou desiludido, incapaz de obter permissões
historiografia do século XVIII(e traz à luz aspectos dessa tradíção, como seu interesse para pesquisar, e ultrapassado em sua técnica crítica. Ver, por exemplo, o longo e bem
pela história cultural e social, que não é abordado aqui), ver P. Burke, "Ranke the documentado artigo sobre Voigt no Allgemeine Deutscbe Biograpbie; H. Prutz, Die
reactionary", em Iggers e Powell (orgs.), Leopold vem Ranke, pp. 36-44. K6nigliche Albertus-Urüoersitât ZU K6nigsberg i. Pr. im neunzebruen [abrbundert.
38. Para o "mal de Froude", ver C.V. Langlois e C. Seignobos, Introduction to tbe study Df Kéinigsberg, 1894, pp. 186-188; G. von Selle, Gescbicbte der Albertus-Untpersitâtzu
bistory. Trad. de G.G. Berry. Londres e Nova York, 1898;reimpr. 1912, pp. 124-128. K6nlgsberg in Preusscn. Konígsberg, 1944, pp. 278-280.Mas seu testemunho é apesar
39. T: Wiedeman, "Sechzehn lahre in der Werkstatt Leopold von Rankes", Deutsche Reoue, de tudo, o mais representativo.
dezembro de 1891, p. 322.

59
58
tica.42 Porém ele recebeu seu maior estímulo de Ranke - que, julgava Surgiram dúvidas, é verdade, até mesmo nos últimos anos da
ele, mostrara que os historiadores medievais e renascentistas ainda excepcionalmente longa de Ranke - principalmente à medida
trabalhavam do mesmo modo, até mesmo em situações literárias seu fascínio como professor começara a declinar. Tornou-se
. teíramente
ln . díf
írerentes."4~ "A Ier. de Nissen"
. - como veio a ser que ele injustificadamente acolhera certos tipos de docu-
denominada - era tão exagerada quanto inventiva e refletia a tendên- mentos - como os relatos oficiais de embaixadores venezianos ao
cia de seu criador a transformar hipóteses fantásticas em fatos senado - como se fossem janelas transparentes para estados e eventos
sólidos.44 A visão que tinha o próprio Ranke da tradição histórica era pretéritos, e não reconstruções vívidas, escritas sob um sistema rígido
muito mais complexa. Mas o Ranke da versão de Nissen tornou-se o convenções, e cujos autores não haviam ouvido nem visto nada
princípio fundamental de pesquisa em história antiga durante os anos do que relatavam e muitas vezes desejavam antes convencer seus
seguintes. Durante quase um século após a época de Ranke, seus próprios ouvintes de sua teoria pessoal do que simplesmente contar
discípulos repetiriam como um mantra uma versão exagerada daquilo o que acontecera. Mais grave ainda, tornou-se evidente que, em sua
em que ele lhes ensinara a acreditar: "A afirmação de que antes do confiança nos arquivos centrais e nos documentos de famílía, Ranke
início do último século o estudo de história não era científico pode aceitara, sem se deter numa reflexão mais profunda, uma certa
ser sustentada não obstante algumas poucas exceções ... A erudição interpretação da própria história, na qual a história das nações e das
estava agora sendo complementada pelo método científico, e deve- monarquias tinha precedência sobre a dos povos ou das culturas, que
mos essa mudança à Alemanha." Foi o que declarou ecumenicamente havia inicialmente atraído seu interesse pelo passado."
].B. Bury, em sua aula inaugural em Cambridge em 1902.45 Curiosamente, no entanto, as reivindicações de originalidade
no método por parte de Ranke levaram muito mais tempo para
42. H. Nissen, Kritische Untersucbungen úber die Quellen der uierten undfünften Deeade atrair o escrutínio crítico do que suas reivindicações de objetivida-
des Litnus. Berlim. 1863. pp. 70-79. Para uma discussão recente sobre como os antigos de nos resultados. Após a Segunda Guerra Mundial, estudiosos
historiadores usavam seus antecessores - que mostra tanto a utilidade quanto os limites
da perspectiva de Nissen -, ver S. Hornblower, "Introductíon", em S. Hornblower (org.),
não-germânicos empreenderam sistematicamente a investigação
Greek bistortograpby. Oxford, 1994, pp. 1-71, em 54-7l. da história e do pensamento histórico. Arnaldo Momigliano e
43. Nissen, Krttiscbe Untersucbungen, p. 77: Tito Lívio "steht unter dem Eínfluss desselben Herbert Butterfield, livres de limitações provenientes dos pressu-
Grundgesetzes, welches díe ganze Hístoriographíe bis auf die Enrwícklung der moder-
nen Wissenschaft beherrscht. Ranke hat zuerst in glanzender \'X'eisean einer Reihe von postos tradicionais, muito menos inclinados do que seus anteces-
Geschlchtschreibern des 15. und 16. jahrhundersts nachgewiesen, wie sie die Werke sores haviam sido a aceitar uma explicação de "como realmente
Ihrer Vorganger in der Art benutzten, dass sie dieselben einfach ausschríeben." Ranke,
é claro, jamais teria confundido Tucídides com os jornalistas de sua própria época - ou ácontecera", não aceitaram o que parecera tão óbvio a Acton assim
tratado toda a tradição da historiografia como algo uniforme. como a Ranke: que a aplicação de um escrutínio crítico preciso à
44. "Das Bege in selnem schleswlgholsteinernen kopf", escreveu Hermann Usener larnen-
tando-o, explicando como ele havia falhado em convencer seu velho amigo a não
coleção integral de fontes históricas era parte da revolução intelec-
argumentar que os reis antigos do Lácio representassem de algum modo a época bíblica tual iniciada nas universidades alemãs por volta de 1800 pela
da Criação. H. Diels, H. Usener e E. Zeller, Briefuecbset, organizado por D. Ehlers.
Berlim, 1992, I, p. 425. A obra em questão era o Das Templum. Berlim, 1869, p. 127.
revolução mais ruidosa que partira das ruas parisienses e levara à
Nlssen foi alvo de acerbas críticas tanto quanto de imitações: ver, por exemplo, L.O. abertura compulsória de algumas das chancelarias e dos arquivos
Brocker, Modeme Quellenforscber u. antiee Gescbicbtscbreiber. Innsbruck, 1882. Mas
a era de Quellenforscbung, que iniciou com sua obra, foi também em boa parte
dominada por seu espírito de simplificação Imprudente: ver C. Wachsmuth, Einleitung
in das Studtum der Allen Gescbicbte. Leipzig, 1895, pp. 55-56, e a obra erudita (ainda 46. Ver principalmente E. Fueter, Gescbicbte der neueren Htstoriograpbte. Munique e
que sua organização e estilo sejam singulares) de B .A. Desbords, Introduction àDiogêne Berlim, 1911, pp. 480-482; H. Butterfíeld, Man on bis pasto Cambridge, 1955: reimpr.
Laêrce. Díss. Utrecht, 1990. Boston, 1960;G. Benzoni, "Ranke's favoríte source", em Iggers e Powell (orgs.), Leopold
45. Ver F. Stern (org.), Tbe uarieties of bistory. 2a edição. Londres, 1970, p. 21l. von Ranke, pp. 45-57.

60 61
I '
outrora secretos. A própria versão de Ranke foi identificada, com
razão, mais com aquilo que os historiadores da ciência denominam
"história disciplinar" do que com a história da disciplina. Ele contou
sua própria história, em outras palavras, para dar relevo ao atrativo
técnico e emocional do tipo de história que praticava, mais do que
para apresentar uma explicação em grande escala, documentada,
do desenvolvimento da historiografia. Sobretudo, ao fazê-lo, Ranke
exagerou consideravelmente o componente documental de sua
obra. Quando A.G. Dickens analisou as notas de rodapé da história
da Reforma de Ranke, por exemplo, descobriu que menos de 10%
delas citavam fontes documentais. O restante se referia, em sua
maioria, à riqueza das fontes primárias que os eruditos alemães
anteriores haviam publicado entre o século XVIe início do XIX- 3
um resultado que tanto confirma a qualidade do conhecimento da COMO O HISTORIADOR ENCONTROU SUA MUSA:
literatura histórica possuído por Ranke quanto mina sua reputação A TRILHA DE RANKE PARA A NOTA DE RODAPÉ
de espeleólogo das profundezas dos arquivos." A primeira tarefa
com que nos defrontamos, portanto, é simples: precisamos desen-
volver essa crítica, abandonar o esquema retrospectivo próprio de
Ranke e retornar - como ele sempre exigia - aos documentos.
Felizmente, estes são abundantes, tanto na forma impressa quanto
na manuscrita, e os estudos recentes já chamaram a atenção para O caminho tomado por Ranke, à medida que aprendia a dar
muitos deles. Como um conjunto, as fontes negligenciadas e as ênfase à importância fundamental dos documentos na exploração
obras de investigação originais permitem contar uma história muito do historiador, era, por um lado, mais direto, mas, por outro, muito
diferente tanto sobre Ranke quanto sobre a tradição com a qual ele mais tortuoso do que ele lembrava quando já bem mais velho. Para
sustentava ter rompido. seguir Ranke até as origens da sua nova história, precisamos
começar no centro do Meio Oeste americano. Imediatamente antes
Guerra Mundial, os historiadores da Universidade de
decidiram seguir os precedentes estabelecidos na johns
e em outras universidades americanas, criando um serni-
segundo o modelo científico alemão. Para adornar sua sala
reunião, compraram retratos daqueles que julgavam ser os
maiores historiadores americanos e não-americanos: respectiva-
Francis Parkman e Edward Gibbon. Embora Ranke não
e a melhor na competição para ter seu retrato na parede,
47. A.G. Díckens, "Ranke as reformation historian'', Stentori Lecture 12. Readíng, 1980, pp.
recebeu um prêmio de consolação. Uma de suas cartas, comprada
. 12c17, resumido em Díckens e J. Tonkin, com K. Powell, Tbe reformation in bistortcal
tbougbt. Cambridge, Massachusetts, 1985, pp. 174-175. de um comerciante de Frankfurt, foi também emoldurada e pendu-

62 63
rada no seminário do qual era naturalmente o santo padroeiro. desconhecido Ranke professava seu desinteresse pelos aspectos
Anos mais tarde, quando a universidade encontrou uma nova formais de documentação e sua aversão à aparência de pedantis-
função para a sala, a carta desapareceu. Talvez algum aficionado não estava fazendo pose. A coleção de escritos de Ranke em
da história possuidor de alta curiosidade e baixo senso moral a Berlim inclui não apenas seus cadernos de anotações, mas parte
tenha roubado. do manuscrito de seu primeiro livro. Como as referências no seu
Felizmente, uma cópia desse manuscrito perdido sobreviveu. livro concluído, as do rascunho são as citações extremamente
Ranke endereçou a carta - dentre as primeiras que escreveu, essa breves que Ranke afirmava preferir: autores, títulos, números de
foi uma das poucas a serem publicadas - a seu editor, Georg j:>aginas.Algumas páginas não possuem nenhuma nota; outras
Reimer. Nela abordava com compreensível ansiedade a questão ãpresentam vários números de notas de rodapé, mas nenhuma
delicada da possibilidade de seu primeiro livro sobreviver intacto referência. E muitas notas de rodapé fornecem o nome do autor e
à ação da censura oficial. Porém igualmente levantava, com ansie- ~·trfulo, mas não o número da página.i O documento permite pelo
dade ainda maior, a questão da nota de rodapé. Surpreendente- menos duas inferências óbvias. Em primeiro lugar, Ranke, o funda-
mente - principalmente para o leitor do fim do século XX, que já dor do ofício do historiador moderno, exercia-o com uma discipli-
tem como certos o amor dos autores cultos pelas notas de rodapé na não mais rigorosa do que seus netos e bisnetos profissionais.
e a aversão a elas por parte de editores famintos -, Ranke frisava Escrevia seu texto e somente depois procurava seus livros e suas
que sentia ser necessário usar notas apenas porque um autor jovem notas, extra tos e sumários para a prova exata que o sustentassem:
precisava citar suas fontes. De qualquer modo, limitara essas coisas usava um saleiro para acrescentar referências a um guisado já
desagradáveis tanto quanto possível: "Evitei cuidadosamente apre- pronto. Essa prática parece ter sido constante em Ranke. Até
sentar notas explicativas. Mas senti que citações eram indispensá- mesmo quando, já em idade avançada, trabalhava com e através
veis na obra de um iniciante que deve abrir caminho para si de secretários, suas práticas não sofreram uma mudança funda-
próprio e convencer." Ranke ainda esperava encontrar um meio de mental. O jovem tivera de caçar referências, das quais Ranke
evitar: desfigurar seu texto com inserções de notas de rodapé, e fornecia apenas pistas, que às vezes absolutamente não existiam -
suas páginas com referências excessivas: talvez, sugeria, pudessem "um problema ao qual Ranke quase nunca se rendia"."
ser as Iinhas numeradas em cada página ou em cada seção, Na verdade, a escassez de notas no Gescbicbten de Ranke
segundo a prática já corriqueira em edições de autores clássicos, e levou ao maior constrangimento público de sua carreira. Em 1828,
as notas colocadas no fim, ligadas ao texto. Claramente, para ele, percebeu que havia proporcionado uma munição poderosa ao mais
a presença de notas em sua obra parecia ser um mal necessário.' feroz de seus críticos. Heinrich Leo, um outro jovem historiador
Os historiadores, jovens ou velhos, não devem ser tomados
alemão, reagiu à rápida ascensão de seu rival à estratosfera acadêmica
com um ciúme compreensível, ainda que desagradável. Esmerou-se
à letra em suas cartas a editores. Porém, quando o jovem e
em explodir o balão da simulada erudição de Ranke. Numa resenha
I I

1. G. Stanton Ford, "ARanke letter",journal of Modern History 32,1960, p. 143: "Sorgfâltíg


habe ich mich vor der eigentlichen Adnotation gehütet: das Citar schien mir in dem 2. Ranke Nachlass, Staatsbibliothek ZlI Berlin Preussischer Kulturbesítz (Haus II), Fasz. 1, I.
Werk eínes Anfangers, der sich erst Bahn machen und Glauben verdienen soll, 3. T. Wledemann, "SechzehnJahre in der Werkstatt Leopold von Rankes", Deutscbe Reoue,
unerlaszlích. " dezembro de 1891, p. 333: "... wovon Ranke immer nur sehr schwer überzeugt wurde."

64 65
longa e desdenhosa, criticou o estilo de Ranke e sua filosofia, futuro. Uma simples lista das fontes utilizadas em cada seção traria
vaticinando que seu livro rudimentar, sentimental, encontraria uma melhor proveito ao leitor do que anotações ligadas aleatoriamente a
receptividade mais calorosa "entre damas letradas" - "bei gelehrten partes do texto "nas quais se encontram coisas completamente
Weiberri". Pior ainda, Leo identificava muitas passagens em que o diferentes daquelas presentes nas citações." Michael Bernays - que
texto de Ranke não correspondia exatamente à fonte citada nas notas ainda é o melhor analista do papel exercido pelas notas de rodapé
de rodapé que fornecera." Ranke ficou estupefato e furioso com essa na tradição histórica - descreveu as do primeiro livro de Ranke como
"resenha infernal", que o atacava "no ponto mais sensível de sua exemplares: "Ninguém que mereça ler Ranke desejaria dispensar as
pesqulsa.' Em uma longa réplica, argumentou que a sustentação notas desse tipo. Mas todos percebem que o material que elas contêm
de cada uma das asserções contestadas por Leo poderia ser não poderia ser transportado para o texto.?" Nenhum elogio teria
encomrada em uma das fontes que ele citara - embora não necessa- agradado mais seu destinatário. Porém nem todos os leitores originais
riamente na passagem referida por alguma nota de rodapé específica. teriam concordado.
O leitor que desejasse testar as fontes de Ranke deveria compará-las
Em segundo lugar, Ranke evidentemente preservou sua adesão
todas de modo sistemático, como Leo claramente deixara de fazer.
à noção clássica do que uma história deveria ser. Longe de aceitar
"Cito", escreveu Ranke numa nota de rodapé indignada, "para aqueles
alegremente que uma história deveria contar a dupla história do
que desejam encontrar, mas não para aqueles que procuram para não
passado histórico e da pesquisa do historiador, Ranke evitava desfi-
achar. A propósito, esse livro não é do tipo que alguém possa gurar sua narrativa impressionante e cenas de efeito com batalhas
examinar sobre uma xícara de café, tendo à mão apenas uma das com as feias limitações da maquinaria erudita. Nisso ele não estava
edições citadas por mim.,,6A respoeta de Leo a essa réplica foi ainda absolutamente sozinho entre os revolucionários históricos da Alema-
mais desdenhosa do que sua resenha original, e seu julgamento sobre nha. Barthold Georg Niebuhr, o revisionista que se tornou famoso ao
Gescbichten ainda mais absurdamente negativo. Porém, ele não insistir em que a narrativa tradicional da história primitiva de Roma
encontrou nenhuma dificuldade em usar as próprias palavras de devia ser dissecada por crítica de fontes e depois substituída por uma
Ranke para mostrar que as práticas de sua vítima como escritor de análise histórica da ascensão da cidade, adorava os detalhes da
notas de rodapé eram verdadeiramente problemáticas. Leo aconse- investigação histórica e fazia preleções a seus alunos sobre eles."
lhou Ranke a abandonar completamente as notas de rodapé no Também ele, no entanto, julgava que a melhor narrativa histórica era
a clássica, desprovida de notas. Desejava ardentemente escrever sem
4. H.L. Manin [H. Leol, resenha de Ranke, em Erganzungsblatter zur jenaiscben Allgemei-
um aparato erudito, se pudesse resolver todos os problemas técnicos
nen Litteratur-Zeitung 16, 1828, n~ 17-18, cols. 129-140, esp. 136: "Doch WOZll noch e depois tirá-los do caminho: "Se a obra erudita, que reconstrói o
mehr anführen? - Man schlage nach, auf jedem Blatte fast wírd ein verdrehtes, eín
nlchtssagendes oder nachlãssíg benutztes Citat zu finden ~,eyn.Heis~t das _nll~ nackte
Wahrhelt? Heísst das gründlíche Erforschung des Einzelnen? Sobre a dunensao filosófica
do debate entre Leo e Ranke, ver G.G. Iggers, Tbe gennan conception of history. 7. H. Leo, "Replik", Intelligenzblan der fenaiscben Allgem. Litteratur-Zeitung, junho de
Míddleton, 1968, pp. 66-69. 1828, n. 39, cols. 305-312, em 310: ,.... ln denen ganz andere Dinge zu finden sind, als
5. L. von Ranke, DasBriefwerk, organizado porW.P. Fuchs. Hamburgo, 1949, pp. 156-161, in den Citaten."
165, 168, 241: "... auf dem kítzlíchsten Punkt der Forschung." . 8. M. Bernays, "Zur Lehre von den Cítaten und Noten", Scbriften zur Kritik und
6. L. Ranke, "Repllk", Intelligenzblatt der Allgemeinen Litteratur-Zeitung, maio de 1~28, Iitteraturgescbicbte. IV. Berlim, 1899, p. 333: "Keíner, der Ranke zu lesen verdíent,
n. 131, cols. 193-199, em 195-196 n.: "Ich citire für díe, welche fínden wollen, aber nícht mõchte Noten dieser Art entbehren; jeder aber sleht eín, dass Ihr Inhalt sích in den Text
für solche, díe da suchen, um nichtzu fínden, bey einerTasse Kaffee, mit einem einzigen nlcht schicken würde."
der c1tlrten Ausgaben ln der Hand, lâsst slch übrigens díess Buch nicht prüfen."; cf. Ver agora o notável estudo de G. Walther, Niebubrs Forscbung. Stuttgart, 1993, com
Fuchs (org.), Das Brtefuerk, p. 159. extensas referências à literatura mais antiga.

66 67
material, pudesse ser algum dia concluída, seria tentado a escrever Konrad Repgen, a célebre máxima de Ranke sobre suas intenções
uma narrativa histórica direta dos romanos, sem investigações, provas como historiador era na verdade uma citação estrategicamente
e erudição, como se tivesse sido escrita 1800 anos atrás.':" Para situada de uma passagem ainda mais célebre de Tucídides (1.22).15
Niebuhr, como para Ranke, a esperança provou ser impossível de se Alguém que citasse o mais profundo dos historiadores políticos
realizar: o historiador que comera da árvore da crítica de fonte não gregos como seu modelo dificilmente estaria ansioso por turvar a
podia recuperar a inocência e a narrativa simples. Porém suas relação entre seus textos pelo acréscimo de um comentário ao
aspirações continuaram retóricas e literárias, a um ponto que sur- corpo de sua própria obra.
preenderia muitos historiadores profissionais posteriores. Alguns po-
sitivistas americanos de uma geração mais velha, certos de seu Mais de um crítico recente chamou a atenção para o fato de
próprio direito à reivindicação de descendência profissional de Ran- que as notas de rodapé interrompem a narrativa. As referências
ke, insistiram em que escrever bem era incompatível com os deveres realmente prejudicam a ilusão de veracidade e de relação imediata
de um historiador profissional.r' Ao fazê-lo, dificilmente se poderia que Ranke e tantos outros historiadores do século XIX desejavam
dizer que seguiam seu mestre. criar, uma vez que elas incessantemente interrompem a unicidade da
história narrada por um narrador onisciente (Noel Coward afirmou o
Ranke, afinal de contas, almejava - como disse na frase
mesmo de modo mais enfático quando observou que precisar ler uma
muitíssimo citada e muito raramente analisada - "apenas dizer
nota de rodapé assemelha-se a ter de descer as escadas em meio a
como realmente era" - "nur sagen, wie es eigentlich gewesen".12
uma relação amorosa para atender à porta)." O modelo histórico
Mas o que isso significa? Como demonstraram Hajo Holborn e
clássico de Ranke e suas preferências modernas militavam contra o
uso excessivo de notas. Não admira, portanto, que Ranke lutasse para
10. B.G. Níebuhr, Briefe. Neue Folge. 1816-1830, organizado por E. Víscher, IV: Briefe aus preservar a coerência de sua narrativa - e até mesmo tentasse,
Bonn (fult bts Dezember 1830). Berna e Munique, 1984, p. 117: "Es war für mích ein
reízender Gedanke, wenn dles gelehrte Werk, wodurch der Stoff wieder geschaffen mediante a colocação dos textos integrais de documentos depois de
wírd, vollendet seyn würde, eine ganz erzâhlende Geschichte der Rôrner zu schreíben, seu próprio texto, dar ao leitor a experiência dos dois tipos de
ohne Untersuchung, Erweís und Gelehrsarnkeit; wle man síe vor 1800jahren geschríe-
ben haben würde." Cf. W. Nlppel, '''Geschichte' und 'Altertümer': Zur Periodisienmg ln autenticidade, a literária e a documental. Não admira, igualmente, que
der Althlstorie", Gescbicbtsdtseurs, organizado por W. Küttler et ai. I. Frankfurt, 1993, os estudiosos modernos não estejam seguros quanto a considerá-lo
pp. 310-311.
11. Para as qualidades de Ranke como escritor, ver o belo relato de P. Gay, Style in bistory. como o primeiro historiador científico ou como o último romântico."
Londres, 1975, cap. 2. Dois outros ates de resistência contra a necessidade de fornecer Muitos historiadores ilustres posteriormente também se rebelaram
notas de rodapé, ambos empreendidos por historiadores ilustres que possuíam um
conhecimento pormenorizadamente exato dos documentos que utilizavam, estão contra a necessidade de fornecer uma documentação numerosa.
descritos num ensaio caracteristicamente elegante de ).H. Hexter, "Garrett Mattíngly,
hlstorian", em C.H. Cárter (org.), From tbe Renatssance to tbe Counter-Reforrnanon.
Londres, 1966, pp. 13-28, em 15-17, e nos tratamentos marcadamente contrastantes de 13. H. Holborn, Htstory and tbe bumanittes. Garden City, Nova York, 1972, pp. 90-91; K.
G.H. Selement, "Perry Miller: A note on his sources ln Tbe new England rnind: Tbe Repgen, "Ueber Rankes Díkrum von 1824: 'Bloss sagen, wíe es eígentlich gewesen'",
seoenteentb century', Wtl/iam and Mary Quarter/y 31, 1974, pp. 453-464, e P. Miller, Historiscbesfahrbucb 102, 1982, pp. 439-449. Cf. F. Gilbert, History.Politicsor culture?
Sources for "Tbe neta England mind: Tbe seoenteentb century", organizado por J. Princeton, 1990.
Hoopes. Willlamsburg, Virgínia, 1981; sobre o segundo caso, cf. D. Levin, Exemplary 14. L. Gossman, Between btstoryand literature. Cambridge, Massachusetts, e Londres, 1990,
e/dm. Atenas e Londres, 1990, pp. 30-32. pp. 249-250;F. Hartog, I.eXIX' siec/eet/'btstoire. Paris, 1988,esp. pp. 112-115;G. Pomata,
12. Para o estilo desse texto, verW.P. Fuchs, "Was heisst das: 'bloss zeigen, wie es eigentlich "Versions of narratlve: Overt anel covert narrators in nineteenth century historiography",
gewe~n'?", Gescbicbte in Wtssenscbaft und Unterricbt11, 1979, pp. 655-667, mostrando Htstory Worksbop 27, 1989, pp. 1-17. Para Noel Coward, cf. B. Hilbert, "Elegy for
que, em 1874, Ranke mudou a frase original citada no texto, para "bloss zeigen, wie es excllrsus: 111edescent of lhe footnote", Co/legeEng/tsb 51, 1989, p. 40l.
elgentllch gewesen". 15. Ele parece desempenhar ambos os papéis em Pomata, pp. 12 e 14.

68 69
Fustel de Coulanges, que acreditava fervorosamente na importância com a intenção de ridicularizá-lo. E proporcionaram a experiência
de utilizar uma documentação numerosa e exata das fontes, apenas de ler em Ranke algo da mesma densidade sinfônica, com a mesma
gradativa e relutantemente aceitou 0 que via como a nova moda de ínter-relação entre a narrativa cronológica e reflexão sistemática
fornecer uma documentação formal extensa.16 Ernst Kantorowicz que Gibbon proporcionou a seus leitores.
provocou um escândalo com seu Kaiser Priedricb II, obra brilhante e
Contudo, apesar de todo seu brilhantismo e seu impacto, o
sucesso de vendas, que em primeiro lugar não apresentava, como
aparato textual de Ranke também surgiu de um modo diferente, e
vimos, nenhum aparato.i Ele, assim como outros, foi mais herdeiro
mais complexo, do que ele próprio afirmou. Nos seus últimos
de Ranke do que ele mesmo e seus críticos imaginavam.
ditados, Ranke descreveu sua virada para a crítica como uma
As notas de rodapé, portanto, tinham se imposto a Ranke. experiência de conversão, com toda a imprevisibilidade e o choque
Mas e quanto ao segundo, e mais importante, componente de seu de valores que normalmente revestem esses momentos. Como
aparato em dito - o comentário extenso sobre suas fontes, na forma alguém que pisa em falso em um terreno aparentemente confiável,
de um ensaio sobre historiadores ou, posteriormente, de uma ele subitamente percebeu que a história deve se apoiar em pilares
seleção de documentos primários com comentário? Os apêndices e vigas sólidos, que somente a crítica pode moldar e colocar no
na verdade constituíam a parte mais importante e mais distintiva lugar correto. Essa percepção tornou-se o alicerce de seu brilhante
do comentário de Ranke sobre seu próprio texto. Eles lhe deman- segundo volume. A ninguém, pensou ele, ocorrera esse momento
daram todo seu empenho como pesquisador e como escritor. de revelação - nem mesmo aos eruditos clássicos, cuja obra
Mostraram claramente a leitores inteligentes que suas idéias sobre revolucionária sobre a história e a literatura grega e romana
a possibilidade de obter uma exatidào absoluta na descrição do apresentava alguns paralelos visíveis com sua própria iniciativa. A
passado não era tão simples quanto as versões modernas de seu expectativa de Ranke era receber elogios por isso, mas não
pensamento sugeriram, quer com a intenção de aprová-lo, quer reconheceu nenhuma dívida para com as abordagens que via
como inteiramente diferentes das suas: "Nessa questão, não recebi
16. Ver a declaração de Fustel, publicada por jullían em 1891, em Hartog, p. 360: nenhum reconhecimento nem por parte de Niebuhr, que na
"J'appartlens à une génératíon que n'est plus jeune, et dans laquelle les travailleurs verdade desejava antes dar à tradição um significado, nem, parti-
s'lmposalent deux rêgles: d'abord d'étudíer un sujet d'aprês toutes les sources observées
dírecternent et de prés, ensuíte de ne présenter au lecteur que le résultat de leurs cularmente, por parte de Gottfried Herrnann, cujas críticas a
recherches, on luí épargnalt l'appareíl d'érudítion, l'érudítíon étant pour l'auteur seul et autores concentravam-se em detalhes - embora eu confiasse que
non pour le lecteur; quelques Indlcations au bas des pages suffisalent au lecteur, qu'on
invítalt à vérífíer. Depuis une vingtaine d'années les procédés habitueIs ont changé: homens d essa estatura me ap Iau diri
mamo,,18
l'usage aujourd'hui est de présenter au lecteur l'appareil d'érudítion plutôt que les
résultats. On tient plus à l'échafaudage qu'à la constructíon. L'érudítion a changé ses Este último testemunho na verdade contradiz o que o próprio
formes et ses procédés; elle n'est pas plus profonde, et l'exactitude n'est pas d'aujour- Ranke teria considerado a prova mais conclusiva: a das fontes
d'huí: mais l'éruditíon veut se montrer davantage. On veut avant tout paraitre érudit."
17. Ver, por exemplo, Y.l\lalklel, "Ernst H. Kantorowícz", em A.R.Evans.jr. (org.), Onfour anteriores e originais. Em primeiro lugar, os historiadores anteriores a
modem bumarusts. Prlnceton, 1970, pp. 150-151, 181-192. Malkiel observa que as visões
de Kantorowlcz mudaram consideravelmente quando mais velho, quando normalmente
escreveu em Inglês, sem ambições artísticas e com um senso agudo dos perigos
colocados pelas teses históricas que não derivavam de documentos. Ele atacou uma 18. Ranke, Sâmmtlicbe Werke,53/54. Leipzig, 1890, p. 62: "Ich habe híer weder auf Níebuhr.
proposta de eliminar as notas de rodapé do Speculum, o principal periódico norte-ame- der elgentlích mehr der Tradítion elnem Sínn verschaffen wíll, noch vollends auf
ricano sobre estudos medievais e complementou a obra que escreveu em Berkeley e Gottfried Herrnann, der die Autoren 1m elnzelnen kritislrt, Rücksicht genommen, obwohl
Princeton com um aparato técnico extraordinariamente complexo. Ich mir bei grossen Mânnern dieser Art Beifall versprach."

70 71
Ranke não eram de todo compiladores inocentes e pouco críticos. descreveu-a em seu Metbodus adfacilem bistoríarum cognitionem.
Uma pesquisa recente mostrou que muitas das técnicas críticas ~Seu rigor na descoberta da verdade é notável. Dizem que ele
utilizadas por Ranke - comparação sistemática de todas as fontes para obteve cartas, leis e tratados das fontes originais e os copiou.
um dado acontecimento, identificação das que foram produzidas ele muitas vezes usa termos como 'Ele disse estas
mais proximamente a ele ou se apoiaram em documentação oficial, ... ou, se o texto original estava perdido, 'Foi esse o sentido
eliminação de fontes posteriores cujas informações são herdadas - suas palavras'. A opinião de Bodin não deixa dúvidas: os
surgiram na Renascença. Humanistas italianos e nórdicos, seguindo discursos em Guicciardini são genuínos ... E essa opinião se man-
pistas em modelos clássicos, denunciaram textos conclusivos como teve, embora não sem alguma contestação, até a época presente.r"
falsificações, ~o fazer aplicações sistemáticas desses procedimentos. Como se sabe, Ranke citou a opinião de Bodin para refutá-la.
Lorenzo ValIa, por exemplo, demoliu a Doação de Constantino. Esse Porém, o fato de ter citado um dos primeiros tratados sistemáticos
texto, durante muito tempo guardado como um tesouro na cúria sobre como ler textos históricos mostra que ele sabia não estar
papal, passava pela narrativa de como o grato imperador Constantino, adentrando território desabitado quando atacou o problema do uso
curado de sua lepra pelo papa, deu ao papado, com reconhecimento, que Guicciardini fazia das fontes." Mais tarde, quando Ranke expôs
toda a parte ocidental do Império Romano e correu para Constanti- sua avaliação da sutileza política da retórica posta por Guicciardini na
nopla. Valla provou que esse texto mencionava instituições e costu- boca de seus falantes, citou tanto Bodin quanto um leitor contempo-
mes e utilizava uma linguagem que não poderiam ser encontrados na râneo de Bodin, Michel de Montaigne."
Roma da qual supostamente viera.19
Essa tradição humanista tardia de debate historiográfico,
No século XVI, Jean Bodin e outros escreveram manuais
detalha~os sobre como ler e utilizar fontes históricas, antigas e sobretudo, não estava absolutamente extinta na Alemanha de fins
modernas. Eles incluíam instruções precisas sobre como selecionar do século XVIII e inícios do XIX.24 O teólogo de Halle, johann
historiadores com base na exatidão, assim como na profundidade,
21. Ranke, Zur Kritik neuerer Gescbicbtscbreiber, pp. 20-21: "Fünfjahr, nachdern das Werk
e sugeriam que um critério útil era avaliar até que ponto um dado Guicciardinís zuerst erschíenen, schríeb johann Bodin im rnethodus ad facílern hístoriae
escritor se baseara em fontes oficiais para construir sua narrativa cognitionem cap. iv. von demselben: Est mírum in eo studium veritatis inqulrendae.
Fertur epistolas, decreta, foedera, ex ipsis fontibus hausisse et expressisse. Iraque
ou relatar discursos e deliberações." Esses livros chegaram até frequenter occurrit illud: 'locutus est haec verba', aut si ipsa verba defuerint: 'IOClltLIS
vários eruditos e intelectuais de fins do século XVI e exerceram est in hanc sententiam'. Man sieht, die IIleynung Bodíns ist: die Reden bei Guicciardini
seyen acht ... Díese Meynung, obwohl nicht ohne eínígen Widerspmch, hat sích jedoch
influêrlcta sobre eles, que aplicaram os critérios de Bodin quando bis auf den heutigen Tag erhalten."
22. Para outra citação crítica, porém reveladora, de Bodin, ver ibtd., p. 73 e n. 1.
liam historiadores antigos. Ranke, com efeito, citou Bodin no início ~23. Ibid., pp. 46-47: "Es ist wohl nie eine Zelt gewesen, welche in lebendiger Theílnahme
de sua discussão sobre os discursos de Guicciardini: "Cinco anos an dem õffentlíchen Leben, an jedem kleínsten Ereigniss díe letzte Hâlfte des 16
jahrhunderts übertroffen, Allenthalben Selbststandígkeit, und doch durch díe beyden
após a primeira publicação da obra de Guicciardini, Jean Bodin Partheyen eine so enge Vereinlngung, dass fasl keine Geschichte geschrieben werden
konnte, sie ware denn allgemeine Weltgeschlchte geworden. Da kamen denn die
Discorse GlIicciardinis, diese Betrachtllngen jeder Begebenheit von allen Seiten ztlr
rechten Stunde. 'Ubi quid in deliberationem cadit', sagt Badin, 'quad inexplicabile
19. Para um levantamento recente dos desenvolvimentos resumidos aqui. ver U. Muhlack, videatur illic admirabilem in disserendo subtilitatem ostentat.' Man fühlte sogleich, dass
Geschicbtsu>issenschaft1mHumanismus und in der Aujktãrung. Munique, 1991. diess di~ Hallptsache in dem Werk sey. 'La partie', sagt i\Iontaigne, 'de quoi ii se semble
20. Ver, por exemplo, J. Franklin, Jean Bodin "md tbe sixteenth-century revolutiol1 il1 the vOllloir prévaloir le plllS, sont ses digressions et ses discours'."
methodology oftaU' and bistory. Nova York e Londres, 1963. 24. Ver esp. P.H. Reill, 7be german enlighumment and tbe rise of historicism. Berkeley,

72 73
Salomo Semler, analisou as fontes para a história medieval em um .'e caráter da época que o produzira: "Quando consideramos essa
ensaio amplamente divulgado. O erudito de Gottingen johann obra de história, a descrição do período delineia-se em nosso
Christoph Gatterer fundou o primeiro seminário histórico da Ale- espírito, em um desenho nítido e expressivo." Ranke, que viu a
manha, no qual os estudantes aprendiam a pôr em prática as regras percepção que tinha Guicciardini de seu ambiente como crucial
da crítica elementar e avançada. E seu colega August Ludwig von tanto para suas realizações quanto para suas falhas, certamente
Schlôzer, que realizou um estudo exemplar sobre os primeiros teria concordado - e podia ter encontrado em Wachler o núcleo de
historiadores russos, também criou um notável programa geral para parte de sua própria crítica e avaliação de Guicciardini, assim como
coleta e análise de fontes históricas." Ludwig Wachler, professor algumas das idéias estabelecidas que ele atacava."
em Marburg, de erudição enciclopédica, produziu, próximo ao Ranke também conhecia outras obras de literatura histórica que
período do escrito de Ranke, uma história de cinco volumes da podem, de um modo mais geral, tê-lo estimulado a ver mais clara-
escrita' histórica, cheia de notas de rodapé, um livro que abarcava mente do que seus antecessores que os métodos e as metas de
cronologicamente desde a Renascença até sua própria época, e Guicciardini diferiam dos seus. Por exemplo, ele conhecia a Scienza
geograficamente desde a Finlândia até Portugal. Ranke o admirava. nuoua de Giambattista Vico, na tradução alemã que ele citou, de
Wachler não antecipou o ataque de Ranke à confiabilidade e à passagem, em sua discussão sobre um outro historiador italiano,
erudição de Guicciardini como escritor: "Guicciardini narra de um Paolo Giovio." Além disso, Ranke, como já vimos, estava longe de
modo adequadamente sério e franco, muitas vezes como testemu- ser o único jovem historiador alemão a perceber que a história das
nha ocular e participante ativo, sempre com um conhecimento terras germânicas, assim como a da Idade Média e a do início dos
exato das pessoas e das condições sociais. Por conseguinte, ele tempos modernos de um modo mais geral, devia ser remodelada e
pode lleivindicar um alto grau de credibilidade." Porém percebeu reconstruída sobre uma base documental. Todos eles haviam apren-
que Guicciardini impusera sua própria visão das situações e dos dido pelo menos parte de seu ofício lendo o primeiro clássico da
motivos a seus atores, mais do que lhes permitira expressar suas "literatura histórica em língua alemã, a história da Suíça de johannes
próprias visões e percepções. E elogiou Guicciardini, sobretudo, von Müller. Ela se apoiava em bases solidamente documentais, como
pelo fato de que seu livro exprimia de modo extremamente vívido cabia à obra de um autor que, segundo acreditava Ranke, julgava
serem os próprios céus um arquivo infinito e intocado."
1975; e H.W. Blanke, "Aufklãrungshtstoríe, Hístorlsmus, und historische Kritik. Eine
Skízze", em H.W. Blanke e J. Ri.isen (orgi), Von der Aufklârung zum Historismus. 26. L. Wachler, Gescbicbte der bistoriscben Forscbung und Kunst seu der WiederherstellulIg
Paderborn, 1984, pp. 167-186, com o comentário de W. Weber, pp. 188-189,e a resposta der litterâriscbenKultur iII Europa. I, 1. Gõttíngen, 1812, pp. 174-175: "Da er oft ais
de Blanke, pp. 189-190. Augenzeuge und thâtíger Theilnehrner, stets mit genauer Kennrniss d~r Personen und
25. "Schlôzer i.iber die Geschichtsverfassung (Schreiben über Mably an seinen deutschen Verhâltnisse, würdig ernst und freymi.ithig erzãhlt, so kann er auf emen sehr hohen
Herausgeber", em J,G. Heínzrnann, Litterariscbc Chronik. Berna, 1785, I, pp. 268-289, Grad von Glaubwürdígkeit Anspruch machen ... Das Bi!d des Zeítalters trttt in reinen
traduzido pam o inglês com um comentário instrutivo de H.D. Schmidt como "Schlozer Umrissen, scharf und ausdrucksvoll gezeichnet, vor unser Gemi.ith, wenn wir dieses
on hístorlography", History and 7beory 18, 1979, pp. 37-51 Ver t:l!nbém Reill. N. Geschichtsbuch aus der Hand legen." Para uma descrição apreciativa de Wachler, que
H::unmerstein, "Der Antei! des 18. Jahrhunderts an der Ausbildung der historischen enfatiza seu esforço em situar historiadores passados em seus contextos históricos
Schulen des 19. Jahrhunderts", Historische Forschung im lS.jahrhlmd('I'I, organizado próprios, ver H.W. Blanke, Hisforiographiegeshichteals Historik, Fundamenta Historica,
por K. H:unmer e J, VossoBonn, 1976, pp. 432-450; G. Wirth, Die Entwicklung der Alten 3. Stuttgalt-Bad Cans!:Itt, 1991, pp. 193-204.
Geschichte an der Philipps-Universittit Marburg. l\larburg, 1977, pp. 114-116, 141, 27. Ranke, Zur Kritik neuen?r Geschichtschreiber, p. 76, n. 1.
146-155;e os ensaios em Aufklãrung und Geschichte, organizado por H.E. Bócleker, G. 28. Bemays, pp. 334-336; sobre a apropriação de Müller por Ranke, ver esp. L. Krieger,
Iggers e J, Knudsen. G6nlngen, 1986. Ranke. 7be meaning ofhistory. Chicago e Londres, 1977, pp. 81 e 366-367, n. 33.

74 75
i I

Sobretudo, devemos ter em mente um fato simples que Roscoe, historiador amador de Liverpool que continuou sua obra
muitos alunos de Ranke ignoraram. Ele tratava da história da Itália sobre os Médici, leu as fontes com o olhar crítico de Ranke. No
durante a Renascença. Esse campo atraíra muitos dos maiores entanto, sua obra lhe ofereceu um material muito mais vital e lhe
eruditos italianos do século XVIII, época de ouro da catalogação proporcionou o que se tornou seu modelo habitual de apresenta-
de manuscritos, da edição de fontes e de outras fontes de erudi- ção - o texto seguido de um longo apêndice documental."
ção.29 Exatamente no fim do século, o reitor da Universidade de Mais importante ainda, os historiadores alemães que aplica-
Pisa, Angelo Fabroni, publicou vidas eruditas de Cosimo, de vam um método crítico às fontes da história medieval e do início
Lorenzo de Médici e de Leão X. Cada um desses livros incluía uma da era moderna imitavam o que os eruditos clássicos alemães já
série enorme de notas documentais no final. Na sua vida de haviam feito em relação às fontes da história antiga literária e
Lorenzo, Fabroni até mesmo vislumbrou algumas das mais célebres política ..~3 De 1760 em diante, classicistas alemães como Christian
afirmações iniciais de Ranke sobre a história, insistindo em que a Gottlob Heyne e Friedrich August Wolf trabalharam incansavel-
característica de sua obra residia não em suas soluções para mente para demolir os ídolos do neoclassicismo. Eles não atacavam
problemas controversos de interpretação histórica, mas em sua rica a autoridade cultural dos antigos. Pelo contrário, insistiam em que
apresentação de documentos de arquivos.i" Ranke - até então o espírito grego, tal como manifestado na arquitetura e na escultu-
inexperiente em pesquisa de arquivo - estava mais inclinado a ra, na poesia e na religião, ainda era vigoroso e estimulante e
lamentar a enorme quantidade de outros documentos que, como
admitia Fabroni, ele tivera de omitir, do que a reconhecer seus
méritos." Nem Fabroni nem o erudito renascentista inglês William deren eine fast unzahlbare l\lenge sey: und wenn er sich in seinem Lorenzo beschrankt
hat, 50 hat ers ím Leben Leos X noch rnehr gethan. ln Hlnsicht auf den Zweck eines
Bíographen muss man diess billigen ... Doch wern an der genauern Kenntnlss diesel'
29. Ver, em geral, E. Cochrane, "The settecento medíevalists'', fournal of tbe Htstory of Ideas Dlnge gelegen íst, der wírd hiemit nicht befriedigt (p. 174)." Essas afirmações a meti
19, 1958, pp. 35-61. ver são injustas - e certamente refletem a Inexperiência de Ranke em relação aos
30. Ver A. Fabroní, Laurentü Medieis magnifici uita. Pisa, 1784, "Lectorí", 1, vii-vlíí. problemas práticos do fornecimento de documentação.
Descrevendo uma obra de M. Brutus a que não tivera acesso, F. escreve: "Nam quamvís 32. Ver \Y/. Roscoe, Tbe life and pontificate of Leo tbe Tenth. Liverpool, 1805, esp. seu
ille non admodum esset Medíceís arnícus, suspexit tamen semper in Laurentío nobili- prefácio, 1, pp. i- xxxvíl, em v!il, no qual antecipa Ranke ao argumentar que Giovio
tatem et magnitudinem anlmi, síngularemque prudentíam qua consulult gloriae Floren- "tivera todas as oportunidades de obter as informações mais exatas e autênticas sobre
tinae Reípublícae in ternporíbus, quíbus dissidentes cíves deditique luxui arque libidini o assunto de sua história"; pp. xi-xiii, sobre Fabronl, elogiando seu uso de "uma grande
eo pervenerunt, ut nec vitia nec remedia pati arnplius posse víderentur. Sed haec et his quantidade de informação original"; p. xv, sobre as questões literárias, nas quais Roscoe
similia dum nos explícabimus, utcumque judlcata erunt, non magnopere laborablmus, afirma ter citado apenas fontes originais "tanto quanto me permitiram as oportunidades";
ea gloria contentí, quod ín narrandls rebus inconupta rerum gestamm monumenta secuti pp. xv ss., sobre a utilização por parte de Roscoe de "documentos originais" dos arquivos
fuerlmus. Ex his secundum operis volumen conflabiRlr; quodque eorum pleraque florentinos, do Vaticano e de outros lugares. Roscoe tinha um grande apreço pelos
asservenRlr in Florentino tabulario, quod Med!ceum vel Segreteria Veeehia appellari emditos italianos que o haviam antecedido na exploração desse território. Agradeceu
solet, quae nominavimus volumina, seu Filze, ad illud spectare existimabis." Ver também a A.M. Bandini, autor do grande catálogo dos manuscritos dá Laurenziana, por fornecer
seu Leonis X Pontifieis maximi vita. Pisa, 1797. "diversos documentos difíceis de encontrar e valiosos, tanto impressos quanto manus-
31. No fim de seu Laurentii vita, II, p. 399, depois da nota 227, Fabroni acrescentou um critos" (pp. xviII-xix),a J. Morelli, por seu auxílio em Veneza (pp. xx-xx!), e a um amigo
aviso final: "Cave putes, lector humanissime, nos omnia monumenta, quae ad Lamen- inglês que tomou nota de "diversos extratos interessantes" do 11155parisiense de um dos
diaristas papais, Paris de Grassis (pp. xxv-xxv!).Os 218 extratos das fontes no fim dos seus
tium pertinent, quaeque nos studiose collegimus, in hoc volumen retulisse. lnnumera
enlm pene sunt, quae, dolenter sane, edere praetermisimus, ne nimium excresceret quatro volumes foram amplamente usados pelos histOliadores mais críticos da geração
magnltudo voluminis. Utlnam quae praestitlmus, aequis iudicibus minlme displiceant." seguinte. Ver também seu Tbe life q( Lorenzo de Mediei, ealled the magnificent. Liverpool,
Em Zur Krltik, pp. 173-174, Ranke insistiu em que até mesmo para os florentinos os 1795.
documentos de relações exteriores ainda não eram acessíveis em quantidades suficien- 33. Para um debate sobre o que se segue, ver U. Muhlack, "Von der philologischen zur
tes (a situação dos documentos internos era melhor). Sobre Fabroni, escreveu: "Fabroni historischen Methode", 7beorie der Gesehiehte, Beitrdge zur Historik, V: Historisehe
bekennt, es sey ihm nicht mogllch gewesen, alle seine Urkunden aufzunehmen, ais Methode, organizado por C. Meier e J. Rüsen. Munique, 1988, pp. 154-180.

77
76
possuía um valor moral e educativo único para os leitores moder- Niebuhr demoliu a história tradicional da fundação de Roma
nos - especialmente os alemães. Mas insistiam igualmente em que por dois jovens alimentados por uma loba, Rômulo e Remo, tão
os leitores modernos que tinham a expectativa de conhecer esse habilmente quanto Wolf fez com a idéia de que Homero havia
espírito tal como ele realmente existira, deviam adotar uma atitude escrito poemas épicos elaborados, classicamente coerentes.f Am-
iconoclasta para depois reverenciá-los da maneira adequada. Pois bos, finalmente, insistiram em que seu trabalho de demolição era
os eruditos e historiadores antigos haviam tentado não preservar, apenas o prefácio a uma verdadeira apreciação do mundo antigo.
mas adornar o que permanecera dos períodos anteriores na histó- fi repetidamente argumentaram que o leitor crítico tinha por dever
ria de suas civilizações. Do mesmo modo, o estudante moderno abandonar todos os preconceitos, ler as fontes na ordem e no
não poderia penetrar no verdadeiro caráter novo e estimulante dos contexto históricos e ouvir atentamente a voz da história antes de
poemas épicos de Homero ou dos ideais fundadores de Roma sem tentar escrever sobre o passado. A publicação do texto de Wolf fez
rasgar o véu que os escritores posteriores haviam tecido em volta com que tanto escritores quanto filólogos considerassem que a
dele. O estudante da épica grega, demonstrou Wolf, deve perceber erudição estava passando por uma revolução. As descobertas de
que a Ilíada e a Odis..séia haviam originalmente circulado de uma Wolf e Níebuhr fascinaram Goethe e Herder, os dois Schlegel e um
forma radicalmente diferente: em primeiro lugar, mais como can- Humboldt - sua excitação, na verdade, foi tanta que se esqueceram
ções do que como textos escritos fixos. Após terem sofrido múlti- de que Wolf e Niebuhr, por sua vez, estavam repetindo um trabalho
plas mudanças na transmissão oral, passaram por remodelação e feito muito tempo antes pelos humanistas e filósofos críticos desde
interpolação na Atenas dos séculos VI e V a.c. Os mesmos o século XVI até o início do século XVIII.~6
estadistas atenienses que ordenaram a fixação dos textos na forma Nesse contexto, a afirmação de Ranke de que não imitara Oll
escrita também lhes acrescentaram versos com objetivos políticos. empregara o método de Niebuhr e de Hermann, merece um exame
Mais tarde ainda, os poemas épicos foram remodelados de modo especial. A primeira afirmação é questionada por uma carta envia-
mais [radical pelos primeiros eruditos profissionais da história da por Ranke a Niebuhr em dezembro de 1824, acompanhando
ocidental, os freqüentadores do Museu na cidade grega helenizada cópias dos seus Gescbichten e Kritih. Nela, o historiador moderno
de Alexandria. Esses homens haviam tentado não estabelecer os descrevia a si mesmo como discípulo do antigo historiador. Não
textos originais escritos por Homero, mas adequar os poemas deixou dúvidas de que havia lido, estudado, copiado e dissecado
épicos herdados aos seus próprios padrões mais modernos no que a obra de Niebuhr com toda a atenção que poderia ter dispensado
diz respeito à estética e à ética. "O Homero que temos em nossas a uma fonte primária: "A Historia romana de Vossa Excelência foi
mãos agora não é o que floresceu nas vozes dos gregos de sua uma elas primeiras obras históricas alemãs que realmente estudei.
própria época, mas uma versão alterada, interpolada, corrigida e Já [como estudante] na universidade, fiz anotações sobre ela e
emendada desde os tempos ele Sólon até os alexandrinos.,,51 tentei tanto quanto pude absorvê-la." Ranke explicou que conti-
nuara a utilizar a obra de Niebuhr quando ensinava no Gvrnnasit tm
..,e manifestou a esperança de que "os presentes livros possam não
34. F.A. Wolf, Prolegomena ad Homeruni, I. Halle, 1795, cap. xlix: "Habernus nunc
Hornerum in manibus, non qui víguít in ore Graecorum suorum, sed inde a Solonís
35. Ver Walther.
temporibus usque ad haec Alexandrina mutatum varie, ínterpolatum, castigatum et
36. Ver A. Grafton, Defenders of tbe texto Cambridge, Massachusetts, e Londres, 1991, cap. 9.
ernendatum."

78 79
parecer de todo indignos de seu ensinamento, do qual me benefi- tolerância para com eruditos que não partilhavam de suas priori-
ciei sem que Vossa Excelência soubesse.v" Suas palavras não dades e pontos de vista. Na verdade, como mostram as notas de
deixam nenhuma dúvida quanto à dívida do autor de Zur Kritik Ranke sobre as aulas de Hermann, ele ensinou muito seus alunos
neurerer Geschtcbtscbreiber, no que diz respeito ao método, para acerca das dores e dos prazeres da crítica histórica.11
com o homem a quem chamou de "o fundador de uma nova forma Ranke aparentemente começou a freqüentar o curso de
de crítica"." Como se sabe, a leitura da carta deve levar em conta Hermann sobre Os persas de Ésquilo em 26 de maio de 1814,
as circunstâncias que a envolveram. Ranke queria subsídios de quando as aulas já haviam avançado três quartos da peça. Quase
viagem para seguir as indicações de Pertz entre os manuscritos da imediatamente, levantou-se uma questão. O espírito do rei persa
biblioteca da família Alfieri em Roma e esperava que Niebuhr, que Bario lamenta o fato de que a derrota de seu filho Xerxes
era um político e um erudito, pudesse ajudá-lo.i" Todavia, sua representa a pior calamidade que se abatera sobre os persas desde
dívida parece evidente o bastante para que tanto admiradores que Zeus fundara sua descendência real. "Pois Medos", diz ele, "foi
quanto detratores de Ranke a tenham levado em conta muitas o primeiro líder do exército persa" (p. 765); então, ele arrola os
vezes - ainda que, ao fazê-lo, tenham precisado moderar o outros. Ciro é o terceiro. Mas Heródoto forneceu uma lista diferente
testemunho do próprio Ranke.40 dos reis persas (1.98). Em quem se deveria confiar, no dramaturgo
Gottfried Hermann, o outro historiador mais velho cuja ou no historiador? "Aqui", disse Hermann a seus alunos, "vemos o
influência Ranke negou, exerceu um papel no mínimo tão grande erro daqueles que sustentam ser Ésquilo uma fonte histórica
quanto o de Niebuhr na sua formação. Quando Ranke entrou na precisa e confiável porque, segundo julgam, é mais velho do que
Universidade de Leipzig, no verão de 1814, imediatamente come- Heródoto. Como poeta, tinha a liberdade de adaptar tudo, aqui e
çou a assistir às preleções de Hermann sobre Ésquilo e Píndaro. acolá, a seus objetivos" ..12 Uma outra discussão mais longa eviden-
Hermann - um discípulo brilhante e austero de Kant - é atualmente ciou a dificuldade em decidir se a história persa poética de Ésquilo
lembrado por seus estudos extraordinariamente originais sobre coincidia com o relato em prosa de Heródoto ou com o divergente
métrica grega e crítica textual. Supostamente, porém, ele mostrou de Xenofonte; uma segunda descreveu como os historiadores da
pouco interesse em questões históricas mais amplas e pouca Pérsia haviam "se torturado", tentando dar algum sentido aos
nomes reais num poema escrito pouco tempo depois." As impli-
cações desses problemas de detalhe eram claras: as verdades
37. L. von Ranke, Das Briefuerk, organizado por W.P. Fuchs. Hamburgo, 1949, pp. 69-70:
"Ew. Exzellenz eígene Rõmísche Geschíchte íst eins der ersten deutschen historischen
Werke, díe Ich eigentlich studiert habe. Schon auf der Universitàt habe ich dieselbe
exzerplert und mir auf alie Weise zu eigen zu machen gesucht... dass gegenw.utíge 41. Para o modo como Ranke mais tarde recordou Hermann e seus outros professores em
Bücher des Unterrichts, den ich ohne Ihr Wissen von Ihnen genossen, nicht vollíg Leípzíg, ver seu Neue Briefe, organizado por B. Hoeft e H. Herzfeld. Hamburgo, 1949,
unwürdíg erscheinen mogen." pp. 476-477; ali ele fala de "ldlíe geístvollen Interpretationen der Klassiker, z. B. des
38. Ibid., p. 70: "der Urheber einer neuen Kritik." Pindar, welche der unsterblíche Hermann vortrug" (p. 476).
39. Ver E. Víscher, "Níebuhr und Ranke", Scbueizerische Zeitscbriftfúr Gescbicbte 39, 1989, 42. Ranke Nachlass, Staatsbibliothek zu Berlin, Preussischer Kulturbesítz (Haus 11), 38 II C:
pp. 243-265; no fim de tudo, os documentos Alfíerí acabaram sendo de pouca utilidade "Kollegnachschriften aus Leipzig", 1: "Observatíones Godofredi Hermanní ad Aeschylí
para Ranke, mas o contato é fascinante, como mostra Víscher, utilizando documentos Persas a v. 758 usque ad finem, a die XXVI mensis Mali ad díem XIV mensis lulli
recém-descobertos. MDCCXIV",fi. 2 verso: "Hic frustra ii sunt, qui hlstorlcam fidem et certitudinem in
40. Para um admirador, ver C. Varrentrapp, "Briefe an Ranke ...", Historische Zeitschrift 105, Aeschylo quaerunt, cum, ut putant, antíquior slt ipsi Herodoto: sed ut poetae ei licuit
1910, p. 108; para um detrator, W. Weber, Priester der Klio. Berna e Nova York, 1984, ut ln omnl re Ita hic res ad consilium suum adtemperare."
p.213. lbid., fi. 3 verso - 4 recto.

80 81
históricas podiam ser estabelecidas somente mediante um estudo fizeram, simplesmente não sabemos, uma vez que uma grande
crítico, comparativo das fontes que as atestavam, o que, por sua parte de seus comentários foram perdidos. Por conseguinte, não
vez, levava a resultados surpreendentes. devemos julgar que o texto desses poemas que agora temos diante
de nossos olhos é aquele escrito por Píndaro, mas, sim, aquele no
Ranke também freqüentou as preleções de Hermann sobre
qual as correções dos gramáticos foram introduzidas. Devemos,
as odes de Píndaro aos vencedores das olimpíadas gregas, dessa
portanto, reconstruir os textos genuínos e remover essas invenções
vez desde o início. Aqui, especialmente na introdução, Hermann
dos gramátícos.v" A obra subsistente foi apenas uma seleção dos
não apenas discute problemas históricos específicos, mas também
originais, feita não pelo poeta ou na época em que viveu, mas pelo
levanta questões gerais sobre o método histórico - e, de fato, sobre
erudito alexandrino Aristófanes de Bizâncio, séculos mais tarde. E
a qualidade e a amplitude do conhecimento que se pode esperar
nem mesmo esse estágio na transmissão do texto de Píndaro
obter sobre o passado. Ele iniciou contando a seus alunos, em tom
poderia ser reconstruído completamente, uma vez que os manus-
de lamento, que "os monumentos da poesia grega que chegaram
critos, embora se distribuam em duas classes distintas, mostram,
até nós constituem os fragmentos salvos depois do naufrágio
todos eles, erros métricos tão grosseiros que não poderiam provir
. Lem brou o que tnste
grego ,,44 . .
mas expressivamente descreveu
de Píndaro (ou, presumivelmente, de seus editores alexandrinos)."
como "a história da poesia grega que não possuímos" - isso em
Essas preleções certamente tiveram um impacto explosivo sobre
uma seção cujo título ele ou seu aluno mudou posteriormente, de
Ranke - o jovem estudante, recém-saído do Gymnasium, onde
modo ainda mais pungente, "Sobre as dificuldades com que se
aprendera a ler os antigos como se tivessem escrito diretamente
defronta quem se põe a escrever a história da poesia grega".4SNo
para ele e na crença de que suas obras sobreviveram praticamente
caso de Píndaro, esclareceu Hermann, as obras que sobreviveram
intactas. Ranke aprendeu de seu professor de grego, assim como
sofreram uma alteração tão radical no curso da transmissão que
de suas leituras de Walter Scott, a preferir fatos brutos e fontes
não se poderia de modo algum ter a expectativa de ler exatamente
históricas a narrativas secundárias posteriores, por mais bem escri-
o que Ésquilo escreveu. Os filólogos da Alexandria helenística
tas que fossem.
haviam perpetrado uma revisão editorial deliberada, forçando
Píndaro a se adequar a seus próprios padrões de gosto e refina- As considerações de Hermann não eram inteiramente origi-
mento. Apenas a erudição poderia remover a pátina falsa e revelar nais. Muito embora não apreciasse seu rival helenista, o erudito
o texto genuíno subjacente a ela: "Os escritos de Píndaro foram berlinense August Bockh, aprendera muito com o recém-publicado
editados na Antigüidade por Aristarco e outros gramáticos da primeiro volume da edição de Píndaro feita por Bockh (1811), que
escola alexandrina. Sua intenção foi tanto explicá-los quanto cor- fornecia novas informações, assim como muito estímulo e irrita-
rigi-los para que se adequassem aos padrões gramaticais e éticos
que esses senhores haviam estabelecido para si próprios. Como o 46. lbid., p. 13: "Pindarí scrípta in antíquitate et Aristarchus et alii scholae Alexandrínae
g_ra.~atici tractarunt, íta ut tum ea explícarent, tum ad grammatices et ethíces, quarn
síbí flnxerant, praecepta corrigerent. Quod quomodo fecerint, non cognítum habernus,
curn pleraque ex eorum commentariís interierint. Hinc quam nunc in rnanu habernus
44. Ibid., caderno 2, "Godofredi Herrnanni Prof. Lips. Praelectíones ln Píndarum." p. 3: horum carminum recensionem, ea non putanda est íta esse a Píndaro ínstítuta, sed
"Quae nobís restant graecae poeseos monumenta, rudera sunt ex magno naufragio Grammaticorum correctionibus ínterpolata. Genuína ergo emenda sunt, eíícíenda haec
servata." Grammaticorum flgrnenta."
45. Ibid.. "Historia graecae poeseos quam non habemus", mudada para "De dífftcultatíbus 47. Ibid., pp. 13, 16.
quae se historiam graecae poeseos scripturo obiiciunt".

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i ,
ção." De um modo mais geral, Hermann evidentemente, em sua
breve história do texto de Píndaro, seguiu a grande história do
texto de Homero que Wolf reconstruíra em Prolegomena duas
décadas antes. Assim como os discípulos de Ranke imitaram sua
crítica dos historíadores renascentistas, Hermann imitou o que Wolf
fizera com relação a Homero e a tradição homérica. O que importa,
no entanto, não são as fontes de Hermann, mas seu impacto. Ele
mostrou ao jovem Ranke como pensar como um crítico histórico:
fez com que desconfiasse das tradições e dos textos e raciocinasse
sobre a idade e o valor das fontes. Ranke já estava quase fadado a
fazer tais perguntas em sua obra posterior - embora o velho Ranke,
recordando romanticamente sua juventude bem empregada, se 4
recusasse a admiti-lo. Como Winckelmann e Wolf- e Niebuhr - ele NOTAS DE RODAPÉ E PHILOSOPHIE:
não podia resistir à reivindicação de originalidade a que todos UM INTERLÚDIO ILUMINISTA
almejavam- até mesmo à custa de censurar suas memórias no que
diz respeito à tradição em que se formara."
Se não em 1824, então quando? Se não Ranke, então quem?
Como tantas genealogias, a da nota de rodapé revela ter mais
ramos e tortuosidades do que se poderia esperar. A seguinte Evidentemente, Ranke não oficiou o casamento da história
afasta-se do historiador e retorna ao Iluminismo, para longe do eloqüente com a erudita. Já é então chegada a hora de uma nova
professor que suplica por livros e subsídios para via~e!11,int~odu- hipótese: a combinação de narrativa e reflexão provavelmente
zindo-se nas excelentes bibliotecas de alguns cavalheiros do seculo estabeleceu-se na historiografia muito antes da aurora do século
XVIII. XIX - ou de Ranke. É verdade que essa tese pode parecer
paradoxal à primeira vista. Um dos mais importantes e influentes
historiadores do século XVIII, Voltaire, repetidas vezes explicitou
sua aversão a detalhes. Ao preparar as seções de sua Era de Luis
XIV que tratariam da vida privada do rei, Voltairedisse ao abade
Dubos. "Possuo as memórias de M. Dangeau em 40 volumes, das
quais extraí 40 páginas". Ele estava escrevendo história de grandes
proporções, pintando "afrescos dos grandes acontecimentos da
época" e tentando delinear a evolução do espírito humano na
48. Ibid., pp. 15 ss. filosofia,na oratória, na poesia e na crítica; mostrar o progresso na
49. vd a' interessante análise de Niebuhr feita por Walthehr,P~,; •.319k-3120; por Bsua~;~U~eg
se baseia em W. Lepeníes, "Fast ein Poet. johann joac im w me e manns eg . pintura, na escultura e na música; na ourivesaria, na tapeçaria, na
der Kunstgeschiehte", em Atttoren und Wissenscbaftler im 18.;abrbundert. Munique e
vidraria,na tecelagem com fios de ouro e na relojoaria.Quando se
Viena, 1988, pp. 91-120.

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