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DESIGNAÇÕES PARA “TANGERINA” NO BRASIL CENTRAL:

REFLEXÕES COM BASE EM DADOS DO PROJETO ALiB

Daniela de Souza SILVA-COSTA (PG/UFMS)1

Resumo: O léxico de uma língua revela o pensar e o viver de um grupo social, uma vez que,
nomeando elementos da realidade, expressa sentimentos e ideias, pensares e tradições:
aspectos da cultura e da história dessa comunidade, enfim. Este trabalho discute a relação
entre motivadores extralinguísticos e um recorte do vocabulário de habitantes da região
Centro-Oeste, por meio da análise diatópica e semântica das respostas fornecidas por 104
informantes do Projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) para a pergunta 39 do QSL -
Questionário Semântico-Lexical do Projeto ALiB/2001 - “como se chamam as frutas menores
que a laranja, que se descascam com a mão, e, normalmente, deixam um cheiro?”. Tendo
como aporte teórico a Lexicologia, a Semântica, a Dialetologia e a Geolinguística e
comparando os dados com os de estudos linguísticos já realizados, este trabalho analisa as
variantes lexicais documentadas como designação de “tangerina”, observando em que
proporção revelaram traços de influência de diversos grupos étnicos que para essa região
migraram e que compõem sua identidade, desenhando de forma particular a norma linguística
das localidades pesquisadas. Além disso, ratifica-se a importância das pesquisas lexicais para
o conhecimento da realidade linguística de espaços e tempo determinados, fornecendo
subsídios para estudos futuros e para a perpetuação dos registros desse objeto dinâmico que é
a língua.

Palavras-chave: Norma lexical. Região Centro-Oeste. Tangerina. Projeto ALiB.

Introdução
O homem é um ser essencialmente social. Por suas relações com seus iguais, ele se
comunica, aprende sobre sua realidade, hábitos e tradições, assim como transmite a seus
descendentes seus conhecimentos, compartilhados com sua sociedade e com outros grupos
sociais a que venha a ter contato. Porém, essa inter-relação só é possível pela faculdade
humana da linguagem e, mais especificamente, pela língua.
Uma língua natural configura-se como um instrumento de comunicação, necessário
aos homens para a relação deste com os outros, mas também com o ambiente em que está
inserido, com sua realidade. Isso porque, para além da comunicação com o semelhante, a
língua possibilita aos homens a nomeação da realidade, a interpretação do mundo e a própria
organização de seus pensamentos. E o nível linguístico que atua na nomeação de realidades é
1
Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens, bolsista CAPES. Departamento de Letras,
Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus Campo Grande-
MS, Brasil. danielassilva@hotmail.com. Trabalho orientado pela Prof.ª Dr.ª Aparecida Negri Isquerdo.
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o léxico, repertório vocabular da língua. Dessa forma, se o uso do léxico permeia a vida do
homem, seus pensamentos, suas relações sociais e sua realidade, também pode evidenciar
aspectos do pensar desse homem, seus hábitos, crenças, conhecimento de mundo e tradições.
Em outras palavras,
[...] concebendo-se o léxico como o nível da língua que melhor
documenta o modo como um povo vê e representa a realidade em que
vive, podemos entender que o vocabulário de um grupo social atesta
seus valores, suas crenças e também a forma como nomeia os
referentes do mundo físico e do universo cultural em diferentes épocas
da sua história (ISQUERDO, 2003, p. 165).

Tendo em vista, pois, essa estreita relação entre léxico e realidade, considera-se neste
trabalho o repertório lexical como indissociável das questões sociais, geográficas e culturais
que circundam a vida de uma determinada comunidade linguística, remetendo-nos, nesse
sentido, à hipótese de Sapir-Whorf, teoria que, segundo Elia (1987, p. 52), defende a tese de
que “língua e cultura estão de tal modo inter-relacionadas, que os homens vêem o mundo
através do modelo configurativo que as línguas lhe proporcionam”.
E, assim, estudar o léxico é também estudar a história, a cultura e a tradição de um
povo, reveladas por meio das escolhas lexicais realizadas por seus falantes para se
comunicarem e nomearem os elementos físicos, humanos e experienciais que os circundam.
Frente ao exposto, este artigo discute em que proporção variáveis sociais interferem na
forma de nomeação de certos elementos por uma comunidade linguística, mais
especificamente, que tendências os habitantes da região Centro-Oeste, capitais e localidades
do interior, evidenciam ao nomearem “as frutas menores que a laranja, que se descascam com
a mão, e, normalmente, deixam um cheiro” (QSL 39/Atlas Linguístico do Brasil/2001),
utilizando-se, para tanto, de critérios geolinguísticos e semânticos para a análise dos dados.

Contexto da pesquisa e metodologia


Como já assinalado, este trabalho busca analisar as designações para a fruta
comumente conhecida como “tangerina”, utilizadas por habitantes de Mato Grosso, de Mato
Grosso do Sul e de Goiás (as três capitais – Cuiabá, Campo Grande e Goiânia,
respectivamente – e mais 20 localidades do interior desses Estados), coletadas pelo Projeto
Atlas Linguístico do Brasil que, por sua vez, tem como objetivo mais amplo descrever a
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realidade linguística do Brasil por meio da elaboração de um atlas linguístico, com base em
dados orais coletados, segundo os critérios da Geolinguística2 Pluridimensional.
O Projeto ALiB ainda está em fase de execução, finalizando a coleta de dados e
preparando o primeiro volume do atlas, relativo aos dados das capitais brasileiras. Os dados
do ALiB ainda são inéditos e de acesso restrito, sendo possível o seu uso para pesquisas
acadêmicas apenas com a prévia autorização do Comitê Nacional de Coordenação do ALiB e
com a condição de serem orientadas por algum de seus membros. Neste caso, a pesquisa é
orientada pela Profa. Dra. Aparecida Negri Isquerdo, Diretora Científica responsável pela
Regional Mato Grosso do Sul, no âmbito do Comitê Nacional.
O corpus deste trabalho é composto pelas respostas dos 104 informantes das
localidades que integram a rede de pontos do Projeto ALiB na região Centro-Oeste: 36
informantes oriundos de oito localidades mato-grossenses (Cuiabá (capital), Poxoréu, Alto
Araguaia, Aripuanã, Diamantino, Vila Bela da Santíssima Trindade, Barra do Garças e
Cáceres); 28 provenientes das seis localidades sul-mato-grossenses (Campo Grande (capital),
Coxim, Corumbá, Nioaque, Paranaíba, Ponta Porã) e 40 informantes das nove localidades
goianas (Goiânia (capital), São Domingos, Porangatu, Aruanã, Formosa, Goiás, Jataí, Catalão
e Quirinópolis).
Esses informantes foram selecionados de acordo com um perfil pré-estabelecido pelo
Comitê Nacional do Atlas Linguístico do Brasil, a saber: homens e mulheres de duas faixas
etárias (18-30 e 50-65 anos), nascidos e criados na localidade pesquisada, com pais oriundos
da mesma região linguística, com grau de escolaridade Ensino Fundamental (quatro
informantes em cada localidade do interior e quatro nas capitais) e Superior (quatro apenas
em cada capital).
A escolha da pergunta 39 do Questionário Semântico-lexical (Projeto ALiB/2001)
deveu-se à alta produtividade de respostas documentadas, o que revela a familiaridade da
população do Centro-Oeste com a fruta nomeada, por tratar-se de uma espécie comum nessa
região.
A análise foi orientada por princípios teórico-metodológicos da Lexicologia, da
Semântica, da Dialetologia e da Geolinguística. O exame das unidades lexicais documentadas

2
São requisitos fundamentais para a pesquisa geolinguística a rede de pontos, o perfil dos informantes e o
questionário linguístico, elementos que garantem a comparabilidade posterior dos dados coletados. No Projeto
ALiB, há uma rede de pontos de 250 localidades, entre capitais brasileiras e localidades do interior dos Estados.
O questionário linguístico, por sua vez, possui três partes: o QFF (Questionário Fonético-Fonológico), o QSL
(Questionário Semântico-Lexical) e o QMS (Questionário Morfossintático), além das questões de prosódia,
pragmática, temas para discursos semidirigidos, perguntas metalinguísticas e texto para leitura.
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buscou identificar a relação entre o uso das variantes e fatores extralinguísticos particulares do
Brasil Central, como história, cultura, aspectos geográficos e econômicos. Além disso, foram
consideradas as bases etimológicas dos designativos, bem como suas acepções, distribuição
diatópica e mapeamento dos registros.

Como se chamam “as frutas menores que a laranja, que se descascam com a mão,
e, normalmente, deixam um cheiro”?
A tangerina é uma fruta proveniente da Ásia, mas cultivada no Brasil e em outros
diversos países. Por se adaptar a climas quentes, a planta adequou-se facilmente ao clima
brasileiro, país que está entre os três maiores produtores e exportadores dessa fruta. Trata-se
de um fruto cítrico, cuja principal característica, além de sua bonita cor alaranjado-forte, é a
facilidade com que sua casca se destaca da polpa de gomos bem definidos. A tangerina
destaca-se ainda pela diversidade de seus tipos, decorrentes ou da hibridização natural ou de
experimentos realizados pelo homem.
Dessa forma, por tratar-se de fruta muito conhecida por todos os brasileiros, o conceito
normalmente nomeado pela unidade lexical tangerina é contemplado pelo Questionário
Semântico-lexical (QSL) do Projeto ALiB. Justamente em virtude da diversidade de tipos
dessa fruta, o questionário prevê a apuração de detalhes sobre a fruta nomeada, por meio da
seguinte recomendação ao inquiridor na pergunta 39 do QSL: “pedir para descrever [a fruta],
para apurar as diferenças entre as designações citadas pelo informante”.
Dos 104 informantes inquiridos pelos pesquisadores do ALiB, apenas um não
respondeu a pergunta 39. Das respostas, foram auferidas doze variantes que são listadas com
os seus respectivos percentuais de ocorrência e distribuição diatópica no Gráfico I, a seguir:

Gráfico I – Designativos para “as frutas menores que a laranja, que se descascam com a mão, e,
normalmente, deixam um cheiro” na região Centro-Oeste.
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Os dados visualizados no Gráfico I apontam a variante mexerica como a mais


produtiva na área investigada, tendo sido registrada na fala de 87,5% dos habitantes do Brasil
Central entrevistados pelo ALiB. Na sequência, a segunda unidade lexical mais produtiva foi
a poncã (77%), seguida por tangerina (49%). Esses dados já referendam a importância das
pesquisas geolinguísticas para o registro das particularidades lexicais de cunho regional e
ratificam a posição de Cardoso (2010, p. 198): “na sua ampla extensão territorial – país
continente –, o Brasil apresenta-se como uma terra de grandes contrastes, marcada pela
heterogeneidade cultural, social e econômica que se vai refletir, também, na língua
portuguesa, hoje majoritariamente falada”.
Ilustram essa afirmação os percentuais singulares das ocorrências dessas três variantes,
nos três Estados pesquisados: mexerica em Goiás (100%) e em Mato Grosso do Sul (89%) e
poncã em Mato Grosso (86%). Já o estudo de Romano (2009, p. 151) documentou a
predominância, na maioria das capitais brasileiras, da variante tangerina para designar a fruta
em questão, conforme o exposto no Mapa I, a seguir, resultado ratificado por este estudo à
medida que também não registrou a unidade lexical tangerina como a mais produtiva nos três
Estados do Centro-Oeste. Acresce-se ainda o fato de o resultado sofrer alterações quando
considerado o conjunto de dados das capitais e das localidades do interior do Centro-Oeste,
conforme os dados do Gráfico I já apresentado3.

Mapa I – Designações para “tangerina” nas capitais brasileiras (ROMANO, 2009).

3
Se consideradas as variantes mais produtivas no cômputo geral, a mais produtiva para designar o referente
pelos sul-mato-grossenses foi mexerica (89,3%), seguida de poncã (78,5%) e tangerina (53,5%), mesma
situação, guardadas as proporções percentuais, de Goiás. Todavia, esse quadro muda no Mato Grosso, que
registrou uma inversão em termos de produtividade, alçando poncã (86,1%) para o topo das mais produtivas,
seguida de mexerica (72,2%) e de tangerina (61,1%).
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Outra pesquisa de cunho geolinguístico realizada em Mato Grosso do Sul, por Reis
(2006), para o Atlas Lingüístico do Município de Ponta Porã - MS: um registro das línguas
em contato na fronteira do Brasil com o Paraguai (ALiPP), documentou, nesse município, a
variante lexical mandarina, de origem malaia (CUNHA, 1996), além das demais registradas
pelo Projeto ALiB. O ALiPP configura-se como um atlas de pequeno domínio, com uma rede
de pontos formada por oito localidades no município de Ponta Porã, o que favorece um
registro mais detalhado da norma em uso pelos ponta-poranenses.
Além das três variantes mais produtivas, o registro de enredeira/mexerica enredeira
destaca-se em termos diatópicos. Isso porque, apesar de ser documentada apenas em uma
localidade sul-mato-grossense, Paranaíba, destaca-se por ter sido informada por todos os
entrevistados paranaibanos, ou seja, pelos informantes idosos e jovens, sexos masculino e
feminino, como se pode ver no Gráfico II, a seguir:

Gráfico II – Designativos para “tangerina” documentados em Mato Grosso do Sul

Caso semelhante ocorreu em Jataí (GO), uma vez que fuxiqueira/mexerica fuxiqueira
foi documentada na fala de todos os habitantes entrevistados naquela cidade goiana (12,5%):

Gráfico III – Designativos para “tangerina” documentados em Mato Grosso

Gráfico III – Designativos para “tangerina” documentados em Goiás


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No que tange aos dados mato-grossenses, porém, os dados não revelaram


particularidades no léxico das cidades pesquisadas, como se pode verificar no Gráfico IV:

Gráfico IV – Designativos para “tangerina” documentados em Mato Grosso

Realizadas as considerações diatópicas, a Carta Linguística experimental ad hoc I


condensa os dados apresentados, demonstrando, além da distribuição diatópica, a ocorrência
das três variantes mais produtivas em análise em cada Estado do Brasil Central. Além disso, a
ilustração evidencia a área dialetal demarcada pela presença de muricota/variantes em Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul, assim como fuxiqueira/variante mantém-se em Goiás e a leste
de Mato Grosso, como enfatizado pela Carta Linguística experimental ad hoc II:
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A análise que se segue cotejará as variantes documentadas do ponto de vista


semântico. Como é relevante a produtividade das respostas para a documentação da norma em
uso, também esse critério será respeitado na análise das variantes.
Dessa forma, analisa-se primeiramente a unidade lexical mexerica que, nesta parte do
trabalho, associa-se à mexeriquinha, em cuja definição, nos dicionários Houaiss (2001) e
Ferreira (2004), encontra-se apenas a remissão à tangerina. Assim, nota-se que os
lexicógrafos não registram uma definição para a variante mexerica, à medida que apenas
utilizam o sistema de remissiva no verbete em questão. No que diz respeito à origem
linguística, observa-se que Cunha (1982) atribui a origem portuguesa à unidade léxica
mexerica, derivada de mexericar, uma forma derivada do verbo mexer: mexerica = “deverbal
de mexericar, devido ao fato de o odor forte e penetrante denunciar quem a comeu”. Já Caldas
Aulete (2006) explica que se trata da forma regressiva “de mexericar. Hom./Par.: mexerica
(sf.), mexerica (fl. de mexericar)”.
Mexerica-cravo, por sua vez, pode ser associada à variante mexerica, ambas
registradas na fala dos sul-mato-grossenses, mato-grossenses e goianos. Esse item léxico não
está dicionarizado nas obras consultadas. Entretanto, o seu uso pode ser associado à laranja-
cravo, sinônimo de tangerina, segundo Houaiss (2001), Ferreira (2004) e Caldas Aulete
(2006), associação essa que pode ter motivado a menção de mexerica-cravo pelos informantes
de Paranaíba (MS), Alto Araguaia (MT), Goiânia e Catalão (GO), que podem ter associado a
unidade mexerica ao traço semântico cravo, que particulariza a laranja como sinônimo de
tangerina. Houaiss (2001) registra tangerina-cravo como unidade sinônima da tangerina.
Ainda relacionada à variante mexerica, registram-se também enredeira e mexerica
enredeira. Segundo Cunha (1982), enredeira advém da base portuguesa rede. Dessa base
derivam enredar e enredo e, por extensão, enredeiro: “que ou aquele que é dado a enredos ou
intrigas; intrigante, mexeriqueiro” (FERREIRA, 2004). Nota-se que o sema “mexericar” se
mantém tanto na variante enredeira quanto em fuxiqueira/mexerica fuxiqueira e fofoqueira.
Logo, as noções de mexerico, fuxico ou fofoca relacionam-se, nesse caso, aos efeitos do odor
da fruta, haja vista que o forte cheiro deixado na mão de quem a come revela seu consumo a
todas as pessoas à volta, indistintamente e, metaforicamente, associando o fruto a pessoas
dadas a mexericos, fuxicos, fofocas. Confirma essa hipótese a fala da informante jovem de
Paranaíba (MS), que explica que a fruta tem esse nome “por causa do cheiro, porque ninguém
esconde que chupou aquela mixirica”. Sendo assim, a relação semântica entre enredeira,
fuxiqueira, fofoqueira e mexerica resulta da associação do nome com as características da
fruta.
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Cheirosinha, por seu turno, também não está dicionarizada na acepção documentada,
mas sua associação à tangerina pode ser facilmente depreendida também a partir da
característica mais marcante da fruta em questão: o forte odor.
Já a unidade lexical poncã, segundo Caldas Aulete (2006) e Houaiss (2001), deriva do
japonês Ponkan, na acepção de “variedade de tangerina, grande e de casca frouxa, originária
do Japão” (HOUAISS, 2001). Ferreira (2004) registra no verbete poncã: “Bras. Tipo de
tangerina originária do Japão, hoje cultivada no Brasil, sobretudo em São Paulo, por
japoneses, e que se caracteriza pelas dimensões avantajadas e casca muito frouxa”.
Tangerina, por sua vez, a terceira variante mais produtiva no conjunto dos dados, está
dicionarizada em todas as obras lexicográficas que serviram de base para este estudo. Caldas
Aulete (2006), por exemplo, define-a como “fruto da tangerineira; fruta cítrica, pouco ácida,
cuja casca se solta facilmente dos gomos; MANDARINA; MEXERICA; MIMOSA”. Houaiss
(2001) acrescenta-lhe diversos sinônimos, como “bergamota, laranja-cravo, laranja-mimosa,
mandarina, mexerica, mimosa, tangerina-cravo, tangerina-do-rio, vergamota”. Machado
(1987) registra como etimologia de tangerina as seguintes informações: “de tangerina
(laranja), isto é, (laranja) oriunda de Tânger, cidade marroquina”. A relação com o topônimo
africano Tânger, provável origem da palavra, diverge da origem asiática da fruta, divergência
que não será tratada por este trabalho, por merecer estudos etimológicos mais aprofundados.
Já as variantes muricota/maricota não estão dicionarizadas nas obras consultadas. Para
elucidar esse registro, recorreu-se à Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro (2011),
disponibilizada pelo governo do Paraná, na qual se encontra a seguinte definição para
morgote, que se pode associar às variantes documentadas:
morgote, tangerina-morgote ou laranja-morgote, é uma variedade obtida
através do cruzamento da laranja (Citrus auratium) com a tangerina (Citrus
reticulata) e que, segundo consta, apareceu no mercado norte-americano no
final da década de 50. As principais características da morgote são o fato
dela se constituir numa das menores tangerinas cultivadas comercialmente,
de ser adocicada e cheia de caldo, e de sua casca ser mais fina e presa nos
gomos do que a das outras.

O nome pode advir, assim, de Charles Murcott Smith, que recebeu de seu tio as
primeiras árvores híbridas e as cultivou largamente, originando essa variedade tão conhecida
no mercado norte-americano, fato que identifica a honey murcott (morgote doce) como
sinônimo de tangor (tangerina).
Na sequência, temos bergamota, “do it. Bergamotta, derivado do turco beg armúdi,
‘pêra do príncipe’” (CUNHA, 1982). Para Caldas Aulete (2006), trata-se também de
“variedade de pêra com muito sumo e aromática; Árvore (Citrus aurantium subsp. bergamia)
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da fam. das rutáceas, de flores aromáticas e fruto em forma de pera, com casca fina, lisa e
amarela; BERGAMOTEIRA”. Assim como Ferreira (2004), atribui-lhe a marca dialetal de
Bras. do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, na acepção de tangerina.
Por fim, mexerica-maracujá, a última unidade léxica em termos de produtividade
registrada na fala dos habitantes do Centro-Oeste brasileiro, também não está dicionarizada
nas obras lexicográficas que deram respaldo à análise semântica dos dados aqui examinados,
bem como nas outras fontes também consultadas para dirimir possíveis dúvidas. Trata-se de
uma variante que segue a tendência de outras já apontadas, em termos de estrutura formal:
mexerica-cravo; laranja-cravo e, por associação, mexerica-maracujá, provavelmente também
motivada pelo cheiro das frutas.
Concluindo-se a análise, entende-se como importante o cotejo entre as definições
lexicográficas e as descrições fornecidas pelos entrevistados no ato do inquérito. Isso porque,
como se já enunciado, a pergunta 39 do QSL orienta o pesquisador para apurar as diferenças
entre as frutas semelhantes, por meio do recurso da descrição do referente. Nesse sentido,
elaborou-se o Quadro I, a seguir, que apresenta as acepções registradas pelos lexicógrafos e as
descrições apontadas pelos informantes4 para as variantes apuradas:

Variante Acepções dicionarizadas Características fornecidas pelos informantes

Mexerica/mexeriquinha O mesmo que tangerina “[...] são as bem piquinininha” (Corumbá/MS)


(laranja-cravo): mesmo que tangerina “[...] mais lisa, a casca é mais grudada, [...] mais
Mexerica-cravo
(HOUAISS, 2001) garrada, sai os pedacim” (Paranaíba/MS)
Não dicionarizada na acepção “[é] azeda, [tem] a casca fininha [...], é uma
Enredeira
“tangerina” mixiriquinha bem piquinininha” (Paranaíba/MS)
Não dicionarizada na acepção “Ela é a mexerica, mas é mais pequeninha... ela solta o
Fuxiqueira
“tangerina” cheiro muito forte” (Jataí/GO).
Não dicionarizada na acepção “É porque ela dá o chero muito longe sabe, se você
Fofoqueira “tangerina” mexeu com ela, chupou uma fica cherando toda vida e
chera longe cê sente” (Barra do Garças/MT).
“[...] grande e de casca frouxa” “[...] maior e tem menos chero, a casca é grossa toda”
Poncã
(HOUAISS, 2001). (Paranaíba/MS).
“[...] pouco ácida, cuja casca se solta “[...] tangirina é mais doce” (Coxim/MS)
Tangerina
facilmente dos gomos” (AULETE, 2006)
“É quase igual [sua casca, em relação à mexerica], só
Muricota Não dicionarizada que é bem pregada nos gomo (sic)” (Coxim/MS) –
“aquelas pequenininha” (Paranaíba/MS)

4
O critério de seleção dos comentários transcritos no Quadro I foi a riqueza de detalhes na resposta fornecida
pelo informante.
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“[...] variedade de pêra com muito sumo “Cê discasca ela é forte, cherosa, fica na mão” (Ponta
Bergamota
e aromática” (AULETE, 2006) Porã/MS)

Quadro I – Comparativo entre as acepções dicionarizadas e as características da


“tangerina”, fornecidas pelos habitantes do Brasil Central.

Verifica-se, pelos dados do quadro, que as três variantes cujas definições


lexicográficas apresentaram maior riqueza de semas de caracterização da fruta coincidem com
as que tiveram maior detalhamento na descrição dos informantes, em geral similar à fornecida
pelos dicionários. Todavia, os dados evidenciaram o conhecimento dos entrevistados frente ao
conceito requisitado, para além, inclusive, da dicionarização desses itens lexicais, à medida
que a definição das variantes não dicionarizadas pode ser abstraída a partir da descrição do
referente fornecida pelos informantes.

Considerações finais
Entende-se que este estudo de cunho geolinguístico possibilitou o conhecimento de
características linguísticas dos Estados de Mato Grosso, de Mato Grosso do Sul e de Goiás,
frente ao cenário linguístico nacional, bem como evidenciou particularidades internas,
relevadas a partir do cotejo entre os dados de localidades do interior e os das capitais, sob o
ponto de vista diatópico.
A análise semântica revelou, por vezes, a origem linguística dos designativos para
“tangerina”, mas especialmente a relação entre os termos e suas motivações, muitas vezes
extralinguísticas, que revelaram a importância da interface entre os estudos de natureza lexical
e informações fornecidas por outras áreas do conhecimento.
Além disso, referendou-se a importância dos dados geolinguísticos como subsídios
para os lexicógrafos, à medida que podem fornecer informações sobre os referentes, no caso a
fruta tangerina, e, assim, podendo enriquecer a definição lexicográfica, tornando-a mais
próxima ao uso concreto do termo por diferentes comunidades linguísticas.
E, por fim, pode-se depreender que, como já registrara Sapir (1969, p. 49), “o estudo
cuidadoso de um dado léxico conduz a inferências sobre o ambiente físico e social daqueles
que o empregam”, neste caso, representadas pelas diversas camadas étnicas que contribuíram
para a nomeação da “tangerina” e, mais amplamente, reconhecendo-se e se divulgando um
pouco mais da identidade do Brasil Central, materializada pelas escolhas léxicas de seus
habitantes.
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