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Memória

Eu não me lembro mais de como era a voz dela, nem de como ela me
chamava cedo pela manhã. Eu não me lembro mais de como as mãos dela
escorregavam pelas minhas costas e também não lembro onde iam parar. Eu
já não me lembro do cheiro dela. Eu não me lembro de como minhas mãos
afundavam nos seus cabelos e nem da cara de assustada que ela fazia quando
eu falava da gente. Eu não me lembro das coisas velhas, nem das coisas que
ainda seriam recentes. Eu não lembro se tinha pés feios ou pequenos. Eu não
lembro se tinha a boca grande. Eu não lembro se falava manso. Eu não
lembro se gostava de bergamotas e nem se assistia televisão antes de dormir.
Eu não lembro se falava outra língua. Eu não lembro se gostava de cachorros
ou se já tivera um gato. Eu não me lembro mais de como era o cabelo dela
quando molhado. Eu não me lembro mais de como escrevia. Eu não me
lembro mais dos livros que ela queria ler, nem daqueles que já tinha lido. Eu
não sei se caminhava normalmente ou se pendia levemente para um lado. Eu
não lembro mais se lavava a louça direito. Eu não sei se gostava de pop art.
Eu não sei se ela viajou para a Europa, nem se foi ao Japão. Eu não lembro se
gostava de trens. Eu não sei se tocava violão ou piano, ou nenhum dos dois.
Eu não lembro mais se tinha a pele lisa. Eu não sei se brincava de bonecos ou
andava de pernas de pau. Eu não sei se comia areia e também não lembro se
algum dia ela reclamou da comida. Eu não lembro se gostava de branco ou
preto ou laranja, nem se já tinha visto Laranja mecânica. Eu não sei se tinha
as mãos quentes e as unhas bem feitas. Eu não sei se patinava ou andava a
cavalo. Eu não sei se tinha pai ou mãe ou irmão mais velho. Eu não lembro se
tinha parentes. Eu não lembro se tomava limonada suíça às sextas-feiras ou se
começava o fim de semana com mimosas de goiaba. Eu não lembro se teve
um caso, uma casa, se comprou uma bicicleta ou se pediu a minha mão em
casamento. Eu não lembro se reclamava por ter que separar o lixo ou se era
ativista e militava contra o uso de garrafas pet, talvez fizesse compostagem
no nosso apartamento, mas eu não lembro. Não lembro se decorou a casa
com quadros ou se não ligava para o marrom descascado das persianas. Eu
não lembro se tinha a voz fina e gostava de Carmen Miranda. Não lembro se
passava batom, se comprava maquiagem de revistinha ou na farmácia. Não
lembro se detestava calendários ou gostava de entregar as coisas fora do
prazo. Não me lembro dos ombros, nem dos pelos, nem do formato dos seios,
não me lembro do hálito, nem se babava no travesseiro. Não lembro se usava
chinelos. Não lembro que foi embora. Não lembro se esqueceu a chave. Não
lembro se levou os livros. Não lembro se lavou a louça, se quebrou os pratos,
se sujou a blusa, se algum dia deu com a cara numa porta. Não lembro o
tamanho, nem a altura, nem o peso ou se quando me abraçava eu me sentia
protegida. Não me lembro de nada, nem da textura dos lábios, se ficavam
machucados no inverno ou queimados no verão. De tudo, sobrou só uma foto.
Mas eu não lembro onde guardei.

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