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Não sei a idade dele. Tem o cabelo branco, o bigode branco, rugas em parênteses sucessivos dos lados da
boca, um dos olhos morto, sepultado no caixão das pálpebras, as mãos tremem um bocadinho à procura
das coisas e dá-me a impressão que as coisas o ajudam aproximando-se, misericordiosas
- Agora podes
da dificuldade dos dedos. Quando estão viradas para esse lado as coisas são simpáticas, quando não estão
escapam-se da gente, rolam, escorregam, caem no soalho, partem-se: é preciso tratá-las com bons modos
ou apanhá-las distraídas, de costas para a gente, saltar-lhes para cima
- Já cá cantas
e as coisas, que remédio, aceitam. Então convém segurá-las pelo pescoço, de preferência com os dentes, e
esmagar-lhes as vértebras num movimento rápido, como os leopardos fazem aos antílopes. Esmagar-lhes
as vértebras talvez não seja boa ideia porque as coisas amolecem e deixam de servir. O melhor é seduzi-
las devagarinho, sorrir-lhes, soprar piropos, adulá-las, pedir
e pegar-lhes numa firmeza doce, a murmurar ternuras. Ao poisá-las, logo que vier a pergunta aflita
- Deixas-me assim?
responder
- Eu já volto
ou
- Depois telefono
e se as coisas estranharem
fingir que se toma nota no nosso, visto que vamos precisar delas de novo e convém manter uma relação
de pré-namoro implícita. Quantas jarras não se quebram por falta de ternura, quantas tesouras
desaparecem das gavetas, desiludidas connosco, quantas lâmpadas não se fundem na sequência de falta de
carinho? E quando as casas deixam de gostar de nós e nos começam a enxotar para a rua? Quando as
camisas perdem um botão de punho de propósito, sentindo-se abandonadas? E as nódoas que arranjam
para se vingar da gente? A empregada lavou-as, engomou-as e elas
pumba
uma nódoa ressentida. Quem quiser ter paz não pode provocar as coisas, entristecê-las, tirar-lhes a
esperança de um futuro em comum, senão a vida torna-se impossível: um pneu em baixo, a chave que a
fechadura recusa, a caneta que perde a tinta a meio de uma frase, os iogurtes que levaram sumiço do
frigorífico e ainda ontem lá estavam. Aproveitaram o outono para emigrar, como os patos bravos e as
turistas suecas, e corre-se o risco de, ao entrar em casa, quase nem um móvel e um alicate, na poltrona, a
magoar-nos a nádega. Apanhamos o alicate, exigimos explicações
e explicação alguma, uma mudez feroz, ultrajada. Voltando ao início não sei a idade dele. Tem o cabelo
branco
o bigode branco
rugas em parênteses sucessivos dos lados da boca, um dos olhos morto, sepultado no caixão das
pálpebras, as mãos tremem um bocadinho, ao expirar o bigode horizontal, ao inspirar mete-se-lhe na
boca, a perna esquerda, mais complicada que a direita, de joelho acima ou abaixo do outro, arrasta-se num
ímpeto tracejado
diabético e cruel, cheirando a rosas podres, e eu com medo que a tinta da china do tira-linhas pingasse
o fato conheceu melhores dias, o nó da gravata desaparece num dos lados do colarinho
e, no entanto, não sei quê nele com dezoito anos, o sorriso, um meneio, uma aura de inocência, um apetite
de caramelos e comboios de lata que não sou capaz de definir e lhe flutua em torno. Espera comigo na
loja do cidadão a fitar tudo num espanto de primeira vez, encantado, deve apaixonar-se por lagartixas,
bolos de creme, anéis de feira, palhaços, ser uma desgraça no tracejado, como eu. Há muito tempo que
não via tanta infância em ninguém. Tira um relógio da algibeira
verifica as suas dez horas e dez horas perpétuas, volta a guardá-lo, satisfeito. Quantas vezes não desenhei
relógios no pulso, com um pincel? Enquanto ele guarda o relógio aproveito para espreitar o meu e, a
gouache encarnado, dez horas também, está certo. O único problema dos relógios desenhados é que se
desbotam num instante, é preciso reforçar as dez horas dia sim dia não. Disse-lhe a exibir os meu
ponteiros
por sinal escuro, por sinal grande, se tivesse à mão uma lagartixa dava-lha, um comboio de lata,
caramelos, encontram-se compinchas por todo o lado, quando o seu relógio de brinquedo e o meu relógio
feito a pincel marcarem dez e meia
fazemos uma corrida a ver quem chega mais depressa ao coreto do largo, perto do homem que vende
castanhas no inverno e gelados no verão, podemos fumar um cigarro às escondidas, podemos tentar
apanhar um pombo
podemos comparar a profissão dos nossos pais e perceber qual é o mais importante, podemos fazer braço
de ferro
podemos esquecer-nos um do outro que não faz mal porque arranjámos um amigo, vou-me à caixa do
algodão da minha mãe, tiro um bocado, enrolo-o, aplico-o contra o intervalo entre o nariz e a boca e fico
com um bigode muito maior que o dele.