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RESENHA book REVIEW 1 de 3

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00225

Precarização estrutural do trabalho docente: implicações trazidas pela Reforma do Ensino Médio
o fim do professor intelectual? (2017) e, ainda, ao fortalecimento de ideologias
de criminalização sinalizam duas preocupantes
Maria Inês Bomfim1 (https://orcid.org/0000-0003-0484-8255) tendências: o esvaziamento da prática docente e
o desemprego de professores.
1
Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Edu- Valéria Moreira é a autora do Capítulo 2, “A
cação, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. organização do trabalho do professor e a qualidade
<mariaines.uff@gmail.com> do ensino”. A autora busca apreender a “invia-
bilização da incorporação do trabalho ao objeto
do trabalho” (p. 28), processo vivido pelos pro-
MAGALHÃES, Jonas E. P.; AFFONSO, Claudia R. A.; fessores de Sociologia, em virtude da redução da
NEPOMUCENO, Vera Lucia da C.(org.). Trabalho docente carga horária da disciplina na proposta curricular
sob fogo cruzado. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. 268 p. do Ensino Médio do Estado do Rio de Janeiro.
Discutindo o processo de trabalho, em geral, o
Trabalho docente sob fogo cruzado é uma cole- processo de trabalho no século XX e o trabalho
tânea organizada por Jonas Magalhães, Cláudia docente na atualidade, toma como objeto de es-
Affonso e Vera Nepomuceno, reunindo 12 capí- tudo a emblemática materialidade fluminense, na
tulos que analisam, de forma crítica e sob per- qual os professores da rede estadual resistem às
spectivas diversas, a desvalorização do trabalho condições de trabalho severamente precarizadas.
docente, em tempos de precarização estrutural “Carrera profesional docente en Chile: la cons-
do trabalho (Antunes, 2018). trucción de un nuevo modo de ser profesor” é o
Com prefácio e apresentação de Gaudêncio terceiro capítulo da coletânea, escrito por Paulina
Frigotto e Marise Ramos, respectivamente, o livro Cavieres. O Chile, precursor do ciclo neoliberal
reúne estudos de pesquisadores membros do Grupo que atingiu boa parte do mundo, possui uma
de Estudos Trabalho, Práxis e Formação Docente legislação extremamente hierarquizada em rela-
vinculado ao Grupo de Pesquisa THESE-Projetos ção à carreira docente, na qual os professores são
Integrados de Pesquisas em História, Educação e permanentemente avaliados e certificados, o que
Saúde (UFF/UERJ/EPSJV/FIOCRUZ) e de outros estimula a promoção de certo tipo de subjetivi-
autores convidados, abordando ‘questões de natu- dade docente ‘assujeitada’. Diante desse quadro,
reza política, socioeconômica e ideológica’ sobre a autora defende a potencialidade das chamadas
o trabalho docente. Dentre elas, assegurando a ‘linhas de fuga’ (Miranda, 2000), que explicitam
especificidade que o tema requer, a mecanização a resistência dos professores chilenos às novas
do trabalho na escola e a expropriação da sub- formas de controle docente.
jetividade docente, em especial desde a década O quarto capítulo, “História da docência e
de 1990. autonomia profissional: notas sobre experiências
No Capítulo 1 da coletânea, “Trabalho de em Portugal, Quebec (de língua francesa) e Ca-
professor no fio da navalha: reengenharia das nadá”, de Danielle Ribeiro, destaca a atualidade
escolas e reestruturação produtiva em tempos do movimento pela profissionalização docente.
de Escola Sem Partido”, Cláudia Affonso articu- Recuperando, historicamente, avanços e retroces-
la três dimensões centrais que estarão, também, sos na constituição da profissionalização docente,
presentes em outros capítulos: “a reestruturação problematiza os limites impostos à conquista da
produtiva das escolas, a Reforma do Ensino Médio autonomia docente, aspecto central na luta pela
e o avanço do Movimento Escola Sem Partido” (p. ‘profissionalidade’. Na contemporaneidade, analisa
4). Retomando o rico debate sobre a natureza do os debates sobre autonomia docente em Portugal,
trabalho, analisa os sentidos conferidos à profissio- Quebec e no restante do Canadá, evidenciado suas
nalização docente nas últimas décadas por autores ambivalências, singularidades e conflitos.
de matrizes teóricas diversas, e problematiza os Vera Nepomuceno é a autora do Capítulo
limites da autonomia docente na atualidade. A 5, cujo título é “Reforma do Ensino Médio: uma
participação docente desqualificada, que restrin- estratégia do capital?”. O estudo sublinha os ne-
ge a condição de intelectual dos professores no xos históricos entre a dualidade estrutural na
processo de ensino aprendizagem, articulada às educação, os interesses da burguesia brasileira

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e a intensificação da escala e da profundidade docente?” A autora prioriza as políticas sancio-


da associação entre o público e o privado, com nadas no segundo mandato do presidente Lula
destaque para o protagonismo de fundações e da Silva (2003-2010), sendo o recorte empírico o
instituições empresariais nas decisões do Estado, estado do Ceará. A Política Nacional de Formação
ignorando as condições concretas das escolas e de Professores para o Magistério da Educação
dos jovens. Básica, com suas ambivalências e o Fundeb, com
“Da ‘desnecessidade’ da educação à ‘desne- suas contradições, são os alvos da análise apre-
cessidade’ do trabalho docente no Ensino Mé- sentada no capítulo.
dio” é o título do Capítulo 6, escrito por Cláudio O Capítulo 10, escrito por Maria da Concei-
Fernandes. O tema é, igualmente, a Reforma do ção Freitas, tem como título “Trabalho docente
Ensino Médio e suas implicações para o trabalho no ideário do materialismo histórico- dialético-
docente, mas sob outra perspectiva. Redecentro: 2010 a 2014”. A Redecentro é uma
Para o autor, a reforma de 2017 revelou-se rede de pesquisadores do Centro-Oeste brasileiro,
como a continuidade e o aprofundamento da re- com a participação de sete universidades, em
forma realizada nos anos 1990, ambas marcadas busca da qualidade nas produções acadêmicas,
pelas demandas da empresa flexível. Os efeitos considerando duas lógicas: a mercadológica e
dessa flexibilização configuram, na atualidade, a a que, com base na ética e na relevância so-
‘desnecessidade’ tanto da educação como do tra- cial, inclui a emancipação e a formação crítica
balho docente, ainda que de forma contraditória. e integral dos pesquisadores. A autora recupera
Buscando a materialidade que a reflexão requer, diferentes tendências presentes na literatura in-
o estudo analisa a proposta implementada no Rio ternacional sobre trabalho docente e profissiona-
de Janeiro, produzida pelo Instituto Ayrton Senna lismo, apresentando dados referentes à produção
(IAS), denominada de ‘Solução Educativa para o acadêmica do Programa de Pós-Graduação em
Ensino Médio’. Educação da Universidade de Brasília no período
Amanda da Silva é a autora do Capítulo 7, de 2010 a 2014.
intitulado “A presença de frações da classe bur- Fechando o conjunto de textos da coletânea,
guesa na educação pública brasileira e as inter- Jonas Emanuel Magalhães é o autor do Capítulo
ferências no trabalho docente”. A análise parte 11: “Saberes docentes e epistemologia da prá-
da teoria de Estado como uma relação permeada tica: apontamentos críticos e possibilidades de
de contradições. O conceito de ‘bloco no poder’ investigação a partir do materialismo histórico-
(Poulantzas, 1977), ganha centralidade na inves- dialético”. Trata-se de estudo sobre conceitos que
tigação sobre as ações empresariais no âmbito do ganharam expressiva importância nos processos
Estado, mediante parcerias público-privadas. O de formação inicial e continuada de professores
trabalhador docente, nesse projeto da burguesia, nas últimas décadas, com base nas produções de
tem sua autonomia severamente ameaçada. vários autores, particularmente Maurice Tardif,
O Capítulo 8 da coletânea é “Qual escola? principal referência sobre o tema no Brasil.
Para que sociedade? Desafios da formação docente Uma primeira vertente de análise questio-
em um contexto de contrarreforma e retrocessos na se a ‘epistemologia da prática’ proposta por
na gestão da educação pública brasileira”, de au- Tardif não estaria promovendo a secundarização
toria de Maria Aparecida Ribeiro. Com base em da base científica necessária à formação docen-
um estudo de caso que retrata o percurso forma- te, visto que “a produção de saberes da prática
tivo de um aluno de licenciatura em Filosofia, e pela experiência não implica necessariamente
suas conquistas, desafios e descobertas, a autora a compreensão efetiva dos fenômenos” (p. 204).
traz uma inquietante indagação: “como atuar na Tendo em mente as categorias saber, ‘ação, inte-
formação docente neste contexto de severa inter- ração, cultura e experiência’ propostas por Tardif
venção político-governamental nos processos de (2002), o autor propõe o conceito de ‘consciência
escolarização?” (p. 151). socioprofissional’, no qual o saber analítico so-
Francisca Oliveira, por sua vez, aborda po- bre o trabalho se destaca, na sua historicidade,
líticas regulatórias para o magistério no Capítulo diferenciando-se do conceito de ‘consciência pro-
9, cujo título é “O Fundeb e a Política Nacional fissional’, proposto por Tardif.
de Formação de Professores da Educação Básica: Por fim, o Capítulo 12 traz a entrevista re-
uma nova regulação para a valorização do trabalho alizada com o historiador Fernando Penna, da

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Faculdade de Educação da Universidade Federal Diante disso, em tempos de trabalho docente


Fluminense, intitulada “Projeto Escola sem Partido: sob fogo cruzado, a resistência precisará ser
a ofensiva ultraconservadora contra o professor”. ativa, articulada e permanente.
As origens do movimento e sua ascensão
nos últimos anos, particularmente quando Referências
se articulou a outros grupos reacionários, ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo
permitiram a Fernando Penna, destacar um proletariado de serviços na era digital. São Paulo:
aspecto de extrema relevância, isto é, o ódio Boitempo, 2018. 325p.
direcionado à figura do professor, com fortes
implicações para o esvaziamento da função MIRANDA, Luciana L. Subjetividade: a (des) con-
docente. No plano legal, modelos de projetos strução de um conceito. In: SOUZA, Solange J. (org.)
de lei foram replicados pelo movimento, sendo Subjetividade em questão: a infância como crítica da
aprovada a Lei Escola Livre, em Alagoas, alvo cultura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 29-45.
de ação de inconstitucionalidade no Supre-
mo Tribunal Federal. A disputa, porém, não POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais.
ocorre apenas no plano legal, mas, também, São Paulo: Martins Fontes, 1977.
no plano ideológico, marcado por uma de-
terminada concepção de ética profissional TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profis-
docente contrária à autonomia do professor. sional. Petrópolis: Vozes, 2002.

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