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Paulo Leminski
Domingos Pellegrini
REPRODUÇÃO PERMITIDA
d.pellegrini@sercomtel.com.br
(A CONTRADIÇÃO QUE O CONGRESSO NÃO RESOLVE: )
Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: (...)
Pinheiro do Pilarzinho
O Poliedro
O Mestiço
O Noviço
O Anfitruão
O Polivivente
O Polinguista
O Anarquista
O Estrategoista
O cerebrelétrico
O Estóico
O Mito
O POLIEDRO
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Múltiplo Leminski, exposição curada por Alice, Áurea e Estrela Leminski.
- Eu?! – batendo as mãos no peito, depois suspirando tão
fundo que os bigodes ruflam com o jorro de ar – Eu não minto,
cara, eu recrio!
Riem. Leminski diz que, para a sopa não ficar rala, também
é preciso criatividade.
- Vamos botar pinhão aí.
Descascam pinhões cozidos mas, frios, é difícil descascar.
Leminski diz que é assim mesmo:
- O difícil é sempre melhor.
Picam os pinhões descascados sobre uma tábua, despejam
no caldeirão fumegante, e Leminski saca do bolso um papelote,
Pé Vermelho reage:
- Guarda isso, a gente vai comer!
- Não é o que você pensa, cara! – Leminski sorri matreiro –
É páprica!
Despeja o pó vermelho na palma da mão e, com dois dedos,
vai polvilhando na sopa.
- Pra sopa pop, tempero fino!
Pé Vermelho acorda, suado na noite fria. Que diabo quis o
Polaco dizer com aquilo? Leminski salta da memória
proclamando:
- Pra Freud tudo é sexo, pra Jung tudo é símbolo, então
prefiro Jung pra analisar meus sonhos, porque sexo eu mesmo
faço!
Então Pé Vermelho tenta analisar simbolicamente o sonho.
A sopa é a história da vida de Leminski, que devem escrever
juntos, o escritor e seu fantasma, como juntos faziam a sopa no
sonho. Os legumes são o trivial, a vida do dia a dia de
Leminski, o menino a brincar de poeta, o poeta a brincar de
menino.
Costelinha defumada é ingrediente eslavo e negro ao mesmo
tempo, a parte do porco que os nobres rejeitavam por ter ossos,
assim ignorando o gosto delicioso por isso mesmo. (Mas porque
costelinhas defumadas? A simbolizar toxicidade? O a trucagem
de embutir na carne o gostinho e o cheirinho da madeira
ancestral? Trucagem, claro, há de ser uma história criativa, ou não
será de Leminski).
Os pinhões, claro também, são o Paraná, os pés na terra, no
aqui, no barro que pode tomar a forma que a gente quiser; como
os pinhões também são a língua do povo, as raízes na forma de
frutos, Deus em tudo, a plantação da nossa vida em nosso chão.
E aquele pozinho, a páprica, tempero tão pouco usual na
cozinha popular, seria o que? Pirlimpimpim! A dar gosto na sopa,
a injetar mágica no caldo! As pitadas de erudição, o charme na
carne, o Latim no latão do caldeirão!
Pé Vermelho abre o Catatau e relê o começo em Latim: Ego
sum...
Amanhecendo ainda, liga a um amigo e conta:
- Acorda e abre os ouvidos. Vou escrever um livro sobre o
Leminski. Mas não vai ser uma biografia, nem mesmo um livro
convencional. Sem isso de começo, meio e fim enfileiradinhos
certinhos feito soldadinhos de letras. Vai ser pra qualquer caboclo
entender, mas vai ter o tempero da invenção, da criação, da
trucagem e da brincadeira, como ele gostava, ou melhor, como ele
gosta. Que é que você acha.
Acho que vou continuar dormindo, diz o amigo desligando.
Alguns dias depois, pescando no lago urbano de
Sertanópolis, vem a Pé Vermelho um haicaipira:
Pensamentos vem
e vão – ventos
também, não?
Vê que esqueceu caneta, não há como anotar. Cata então
uma pedra e escreve o haicai na terra, para lembrar de memorizar
entre um gole e outro do vinho à espera dos peixes. Com a pedra
na mão, lembra de Leminski, que tantos poemas tem tratando de
pedras ou por pedras passando. Pedras. Todas foram lava um dia,
lava que se condensou, fragmentou, virou pedra, ou melhor até,
virou esmeralda, ametista, turmalina, água marinha, mas, para
resplandecer, teria um dia de ser lapidada e... Saltou da pedra o
título do primeiro capítulo a escrever sobre Leminski: Poliedro.
Vento espaventa as árvores na beira da lagoa. Pé Vermelho
entende:
- Nem precisava agradecer, cara, você fez por merecer.
O NOVIÇO
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Grassava a febre do estruturalismo, tornando moda chamar de sintagma e paradigma os parágrafos e o
enredo.
uma festa para os cinco sentidos, a audição, a visão, o olfato, o
paladar e o tato, sim, é só ler sem preconceito que você entra na
festa, se quiser entrar pra dançar e se divertir com as palavras,
mas, se quiser entrar pra sair casado com uma ideologia ou uma
visão do mundo, tiao! Leve meu livro para um sebo que será
achado por quem gostar de um passeio turbicanabinado por uma
floresta signífica! Quem quiser lógica e coerência e seqüência e
moral da história, vai achar tanta graça no Catatau como em
minhoca subindo num pau-de-sebo debaixo de um sol de derreter
o sebo do pau!
Pé Vermelho, três décadas depois, lembra apenas do sentido
geral e de algumas palavras inesquecíveis do discurso de
Leminski, mas dessa imagem lembra perfeitamente, a minhoca
tentando subir num pau-de-sebo a se derreter ao sol. Como não
esquece o último jorro de palavras do Polaco naquele fim de
tarde:
- História com começo-meio-fim, mesmo que não nessa
ordem exatamente, muitos já escreveram desde Lucas, Mateus e
Marcos, mas eu sou mais o João do Apocalipse!
Mas cofia os bigodões, suspira fundo e fala que respeita a
opinião:
- Tem quem gosta de biscoito fino e tem quem gosta de papa
grossa.
- Me parece mais angu de camarão – retruca Pé Vermelho -
Os ingredientes podem ser finos mas não deixa de ser angu.
Leminski ordena de dedo em riste:
- Então diga o que é para você um grande livro!
- Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Leminski volta a suspirar fundo.
- É, é um grande livro. Gosto muito da primeira parte, A
Terra.
Pé Vermelho nem acredita:
- Você gosta da primeira parte? Aquele palavrório
geológico? É a parte chata, aliás chatíssima!!
Para você, diz Leminski:
- Você leu só as informações, procurando ação, mas as
ações da Terra são pouco perceptíveis. O planeta gira e a gente
nem percebe. Eu li o ritmo das palavras, aquele intrincado verbal
quase mineral de tão áspero. É a prosa mais densa da literatura
brasileira e, por isso mesmo, rejeitada por tantos e apreciada por
poucos – conclui sorrindo para o copo, bebe e bate o copo na
mesa, encerrando assunto. E nunca mais falarão do Catatau.
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Outubro de 1982.
- Alice é meu eu mulher.
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Leminski viveu com Alice, acabou a vida com Berenice Mendes, com quem viveu dois anos, e durante
quase um ano viveu no apê da cantora Fortuna em São Paulo, evidenciando a necessidade de contar
sempre com uma mulher amante ou mãe, também uma “dupla fantasia”.
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Editora Brasiliense, 1987.
por uma causa ou, se forçados a isso, com altivez: Oficialmente,
consta como sendo o romance escrito por Caius Petronius,
cortesão e íntimo do imperador Nero, que este condenou ao
suicídio, acusado de conspirador.
Se não traduziu realmente do Latim, ou se usou alguma
tradução portuguesa como guia auxiliar, ninguém saberá, pois
Leminski não indica a fonte latina do texto. Mas faz
apontamentos que pressupõem familiaridade com a obra: Quem
nunca leu Petrônio não conhece as delícias do Latim, o sumo, o
suco, o tutano, o perfume desse Latim ágil, vivo, vulgar,
malandro, espertíssimo, único.
O Latim que aprendemos nas escolas (quando havia Latim)
era aquela coisa pesada, retórica, altamente artificial, dos
chamados “grandes clássicos”, Cícero, Virgílio, César, Ovídio,
Horádio, Tito Lívio. Nesse quadro, Petrônio discrepa. Nas falas
dos personagens do fabuloso banquete de Trimalcião, vemos
desfilar um Latim vivo, direto o raro do reles, enfim, diante de
nós. (O raro do reles: até aqui, traduzindo Latim, Leminski
transita entre o erudito e o popular.)
E dá uma dica reveladora de uma tradução competente
porque transcriadora: A concisão extrema do Latim obriga a
alongar certas frases para que não se tornem incompreensíveis
ao leitor atual. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair
os dois, único modo de não trair ninguém.
E chegamos a outro suicida, este cometendo um suicídio
ritual e público, Yukio Mishima, o escritor japonês que, em 1970,
praticou haraquiri no Quartel das Forças Armadas de Tóquio,
como protesto contra a ocidentalização e a decadência cultural do
Japão, principalmente o abandono dos códigos de honra. Sol e
Aço11 é o último livro de Mishima, misto de ensaio e memória,
manifesto e síntese de seu pensamento.
A tradução do Japonês teve assistência técnica de Darci
Yasuko Kusano e Elza Taeko Dói, evidência de que Leminski não
“dominava” o Japonês como dizia. Apontamentos no posfácio,
como sempre brilhante, parecem falar não só de Mishima mas do
próprio Leminski: Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima
quis se fazer todo, corpo, história e vida, uma obra de arte,
entidade além e acima da mudança, da corrupção e da perda de
sentido, condição natural de todos os seres deste mundo sub-
lunar.
Engana-se quem imaginar Mishima como pacato escriba,
todo dedicado a seus livros e seu trabalho literário, nos moldes
erasmianos do scholar ocidental, último descendente do monge
beneditino, a meio caminho entre o céu e o texto, Além e Signo.
Cultor das artes marciais, Mishima viveu entre o sol e o aço.
Praticava karatê e a esgrima Kendô (da qual era faixa preta
quinto grau). Na procura do máximo de seu limite físico, fazia
halteres. Narcisista, aparece em suas fotografias mais
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Editora Brasiliente, 1985. Pela seqüência das traduções, vê-se que Leminski, em três anos traduziu
cinco livros, num ativismo impressionante para quem já devia sentir os efeitos da cirrose.
conhecidas, quase nu, músculos à flor da pele, um super-homem
pronto para a batalha final consigo mesmo. Que ele perdeu-
ganhou.
Quando o intelectual ocidental parte para a ação, sua
sereia, vai normalmente para a política, esse simulacro da ação,
que substitui a verdadeira ação, que é a guerra, pelos vai-e-vens
das conversações e negociações, próprias da classe dos
comerciantes. Mishima era um “primitivo”. Um primitivo
sofisticadíssimo, herdeiro de uma verdadeira civilização, alguma
coisa pela qual vale a pena morrer.
Antes de condenar Mishima, vamos perguntar: e nós? Será
que nós temos alguma coisa pela qual valha a pena morrer?
A autoimolação, para ele, era uma obra de arte, algo a ser
preparado, saboreado por antecipação, a chave de ouro de uma
vida, um clímax. Ou, para falar em jargão freudiano, um
orgasmo de Tanatos.
E logo Leminski acrescenta/supera: Sol e Aço é uma
afirmação de vida. De uma vida tão tensa e tão forte que só o
Fim poderia ser o Significado. Guevaras, Michimas: mortos,
somos invencíveis. (Não escreve são, mas, sim, somos... Leminski
vivia e morria outras vidas nas traduções e biografias.)
O POLIVIVENTE
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Imago Editora, 1994.
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Mapas finais da Bíblia Vida Nova, S. R. Edições Vida Nova, Sociedade Bíblica do Brasil
E que cara faria você sabendo que em 2013 Jesus é visto
como um rebelde zelote, a facção judaica que pregava a luta
armada contra os romanos? Pois não foi ele quem falou eu não
vim trazer a paz, mas a espada? É o que afirma o iraniano Reza
Aslan, no best-seller Zelote: a vida e os tempos de Jesus de
Nazaré14.
Certo mesmo é que, além de livro mais lido de todos os
tempos, como apregoam os pastores, a Bíblia é o mais adulterado.
Como você disse naquele dia no gramado praguejado de tua casa
de madeira no Pilarzinho:
- Na parábola da adúltera, o final foi criado pela Igreja,
quando ele diz à mulher salva do apedrejamento: - Vai, e
arrepende-te!... Isso parece certinho demais, bom-moço demais
para ser Jesus...
Pois é, Polaco, você decerto estava certo.)
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Evidencia-se a fascinação de Leminski pelo suicídio, aqui de um tipo digamos indireto, em que o
sujeito age de modo a ser morto, como Jesus.
Na URSS de Stalin, até de fotografias históricas foi raspada
e apagada a imagem de Trotski! Não há exemplo no mundo
moderno de uma conspiração de memória semelhante. O paralelo
mais próximo seria a prática dos faraós do antigo Egito que
costumavam mandar apagar dos monumentos os nomes dos
faraós anteriores, para botar o seu no lugar...
O encerramento de tantas contradições e paradoxos
Leminski graciosamente concede ao próprio Trotski,
reproduzindo sua profissão de fé e profecia no futuro humano,
expressada no livro Literatura e Revolução:
“O homem se esforçará para dirigir seus próprios
sentimentos, para elevar seus instintos ao nível do consciente e
torná-los límpidos, para orientar sua vontade nas trevas do
inconsciente. E se levantará, assim, a um estágio mais elevado da
existência, e criará um tipo biológico e social superior, um super-
homem, se isso lhe agrada. Seu corpo se tornará mais harmonioso,
seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa. As
formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente
dramáticas. A espécie humana, na sua generalidade, atingirá o
talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E, sobre ela,
se levantarão novos cimos.”
- Você não faz o próprio prato pra não ter esse trabalho
ou pra dar trabalho a ela?