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Passeando por

Paulo Leminski

Domingos Pellegrini

REPRODUÇÃO PERMITIDA

d.pellegrini@sercomtel.com.br
(A CONTRADIÇÃO QUE O CONGRESSO NÃO RESOLVE: )

Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: (...)

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de


comunicação, independentemente de censura ou licença;

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,


assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação.

Artigo 20 do Código Civil:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à


manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a
publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser
proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins
comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas


para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
(CONTRACAPA: )

Pinheiro do Pilarzinho

Paulo Leminski, passei


pelo Pilarzinho
Tomei o velho caminho
fui até a tua casa
A vida tem suas leis
que nós chamamos destino
Madeira vira carvão
como o carvão vira brasa
agora vira memória
a vida vira história
mas não tem nada não
aquele pinheirinho
virou um pinheirão
(EPÍGRAFE: )

Toda jóia um dia


já foi lava, todavia
condensou-se
e lapidada
cada faceta irradia
sua luz poliedra:
pedra que se fez poesia
FACETAS:

O Poliedro
O Mestiço
O Noviço
O Anfitruão
O Polivivente
O Polinguista
O Anarquista
O Estrategoista
O cerebrelétrico
O Estóico
O Mito
O POLIEDRO

Em 1964, em Londrina, um rapazola lê com espanto e


encanto artigo de um tal Paulo Leminski na revista concretista
Invenção.
Alguns anos depois, o londrinense conhecerá o curitibano
Leminski e, depois de algumas rusgas e rugas, serão amigos,
tratando-se como Polaco e Pé Vermelho.
Pé Vermelho novamente se espantará com Leminski, ao
saber que ele é mistura de polonês com mulata, neto de negro e
índio e português. E também se encantará com sua poesia, mistura
de cult e pop, truques concretos e resquícios românticos,
artifícios formais e caprichados relaxos coloquiais, doce amargura
e cáustica alegria, erudição e simplicidade, maluquice e mágica.
Polaco e Pé Vermelho se encontrarão muitas vezes, em
Florianópolis, Curitiba, Londrina e São Paulo, amarrando uma
amizade de três décadas e dezenas de garrafas. Mas Pé Vermelho
deixará de procurar o Polaco quando passar por Curitiba, não
mais conseguindo ver como ele foi destiladamente se matando.
Então Pé Vermelho estará em Porto Velho, Rondônia, e verá
Leminski na tevê do restaurante. Que será que o Polaco está
inventando, pensará, aumentando o volume para ouvir que ele
consumou o que chamara de “minha última obra”.
Pé Vermelho fica com raiva do Lelé, como também
chamava o Polaco. Um ano depois, em mesa redonda no evento
Perhappiness, homenagem a Leminski em Curitiba, Pé Vermelho
não conseguirá falar e passará todo o tempo chorando, para
espanto de Haroldo de Campos a seu lado.
Duas décadas e meia depois, uma editora convida Pé
Vermelho para escrever biografia de Leminski, e imediatamente o
fantasma do Polaco aparece:
- Biografia é muito convencional, eu não mereço algo
melhor?
Pé Vermelho então lembra daquele primeiro artigo que leu
de Leminski, uma misturança de gêneros e gênesis, idiomas e
gírias, signos e sacadas. Como ele era mistura de raças. Como sua
literatura era mistura de erudição e sacação, Português e Inglês,
tensão e relaxo, carne e espírito.
Pé Vermelho dorme pensando nisso, e sonha que faz uma
sopa com Leminski. Acorda, liga ao editor:
- Biografia do Polaco já foi feita. Outro livro sobre ele tem
de ser mistura de informação e romance, erudição e conversa,
realidade e sonho, água e pedra, história e festa, uma lifestory!
O editor discorda, Pé Vermelho diz que assim mesmo fará o
livro desse jeito, desliga o telefone e pensa em voz alta:
- Espero estar certo, Polaco.
Ribomba um trovão, tremelicam os copos da cristaleira, Pé
Vermelho entende:
- Não gostou, é? Então me ajuda!
Daí olha sobre a mesa uma pedra catada em riacho há
décadas, concavamente cinzeiro rústico usado apenas por raras
visitas fumantes. Mas Leminski fumava, e gostava de pedras,
tratou delas em vários poemas. E toda pedra é, mesmo que
rusticamente, um poliedro, multifacetada como foi o poeta do
Pilarzinho. Pé Vermelho resolve que o livro será um passeio pelas
facetas poliédricas de Leminski. Então, como ele fazia, rabisca
num guardanapo: “toda jóia já foi pedra um dia”...
O Polaco, lá quando leu o primeiro livro de poesia de Pé
Vermelho ainda nos anos 70, um volume mimeografado na onda
da chamada “geração marginal” (Conversa Clara, 1974),
sentenciou:
- Não está ruim, mas você faz uma poesia aforismática.
- Pois é – Pé Vermelho retruca 40 anos depois – E o livro
que vou escrever sobre você, cara, começará com uma poesia
aforismática...
Começa a escrever enquanto cai a tempestade, lembrando do
amigo a olhar pela vidraça alisando os bigodões:
- Acho lindo tempestade, é o tempo em alta voltagem!
Como foi Paulo Leminski.
O MESTIÇO

Ego sum Paulo Leminski, nome de santo e de imigrante


polonês, mestiço até nisso, e acabo de fazer levantar da cama um
amigo que não vejo desde que viajei para virar mito, para me
fazer mais uma vez renascer, quando o danado já estava
pensando em abandonar o navio, jogar a toalha, pedir arrego,
dexistir, virar excrevedor de mim,
mas eu lhe apareci de novo em sonho e falei não, os galos
garganteando como se falando por mim, nãããããoooo, cara,
nããããããããoooooooo, você vai levantar, ligar aquela sua
maquininha que eu nunca tive o sortilego de usar, e ligar
principalmente esses seus velhos neurônios que estão precisando
brincalhar e, sem nem tomar café como eu fiz tantas vezes,
tocado só pelo fogo da criação, antenado nas estrelas para falar
de uma estrela,
você vai dizer, entredantes, que eu não tenho culpa de
ter/em me transformado em estrela, como ninguém de nada tem
culpa nem desculpa para não fazer o que manda o coração e a
alma comanda, obedecer a voz da vocação como quem segue um
mestre de milênios, sorteado pela loteria genética com todas as
delícias e os martírios do que chamam de dom, palavrinha que
também está em Dominus, Senhor, Deus, palavreta inventada
para expressar nossa estuperplexidade diante dos mistérios do
Infinito, da Eternidade e do seu momento mais gostorioso, que é
a existência de vida num planetinha coberto de água mas
chamado Terra, portanto mestiço também,
e os invejosos, os maldosos, os raivosos, estes sim
carreguem a culpa de seus suicidegos, pois quem inveja mata a
própria vida, quem amaldiçoa a si mesmo se peçonha, quem com
raiva fala é se mordendo, mas tristinsistem em falar que o povo-
pop me endeusa demais (como se pudesse ser de menos o que vem
de Deus), que não tenho realmente leitores mas fãs, no inútil e
deblátil afã de diferenciar trigo de pão,
como se pudesse também haver um povo-cult, um best-
povo a quem eu criticalizado me dirigisse reverente e
cordeirizado em sacrifício ao certo, ao útil, ao bem, ao correto e
ao moderado também, em vez de me dirigir ao grande público
que sempre me ouviu, que sempre me orientou e me aplaudiu, e
que é essa multidão em mim, os mil egos que sumus, como bem
disse Mário, eu sou mil, sou mil e quinhentantos, todos esses eus
em uníssumus que, desde eu menino poetando já aos oito, sempre
me garantiram que eu estaria certo de seguir seus concilhos,
como quem se encilha e investe tudo em si, de modo que investi
todas as fichas em ser único e, enfim, virei o que desde o começo
Deus quis fazer de mim, já a partir de meu mestinascimento.
Linhás (é um aliás noutra linha), só pra ilustralegrar, um
dia alguém me disse que, conforme a antropologia, os mestiços
são a raça do futuro, o que me fez proclamar em voz alta como
sempre:
- Então eu já nasci futurista!
Agora, se importa ou abre alguma porta o dia em que nasci,
24 de agosto de 44 (para viver também 44), aí está a data, como
carimbo astrológico para dizerem que sou Virgem ou Macaco, o
que me faz rir lembrando de você, Pé Vermelho palhaço que um
dia me disse não acreditar em signos porque isso é próprio de
Leão, então
vamos em frente para trás, lembrando que meu pai me deu
seu nome, Paulo Leminski (Filho, que eu graficivilmente degolei)
e também me deu sua mansa compreensão para minha
estrelação. Fique este ponto aí a significar o dia, a hora e o
minuto em que minha mãe Áurea (já mestiça de português com
negro e carijó, e com esse nome a reluzir como miçanga de
português para encantar índio) encontrou-se com aquele filho de
poloneses pobres (outro pleonasmo imbecil, pois que polonês rico
veio para o Brasil?),
encontraram-se na Rua XV, no centro de Curitiba, onde
tanto me encontrei rabiscando poemas em guardanapos e dando
de encontro comigo mesmo em divagações a esmo, encontraram-
se como se saídos de um labirinto genético, ela filha do português
Fernando Pereira Mendes, que teve três filhas com minha avó
Inocência, nome de romance do Visconde de Taunay, que
governou Curitiba seculantes e criou o Passeio Público, veja
como a vida é um novelo,
e, como eles se conheceram passeando pela Rua XV,
preassumo que, antes da afeição, foi pela feição que se atraíram,
como em química opostos se atraem, o europeu sentindo o
genético chamado negríndio para uma fusão forjando material
mais resistível, o polonês resistente e o índio flexível, entre eles o
negro entrando com a forçancestral da mais antiga das raças,
que porém não me legaria traço nenhum na pele branca e nos
cabelos lisos, mas no suor um cheiro inconfundível, a marcar
vidafora quem, como eu, herdou de algum macaco muito arbóreo
um desgosto por água e seu antropilógico derivado, o banho.
Acredito que o nascimento é cósmico, regido por todos os
acasos, circunstâncias, coincidências, imprevistos, desastres e
detalhes que se orquestraram em diferentes tempos, como numa
multifonia, num enredamento de acontecimentos confluentes para
que um dia, numa hora e num ponto do planeta, alguém nasça
filho de quem é e quaquaneto de quem foi, inegavelmente
portador de um ego mas herdeiro de uma multidão,
instintivamente tanto dependente de si como culturalmente
descendente de tantos, a quem deve servir com seu dom, senhor
de si mesmo e escravo da Humanidade, essa prisão de
semelhanças aberta às diferenças.
Esclareça-se, aclarando essa fusão de raças, que minha
mestiçagem não é só de sangue, mas também de mente, pois
desconfio que herdei do avô Fernando Pereira Mendes a chama
da poesia, que ele escrevinhava em redondilhas em contraponto à
reta profissão de capitão do Exército, enquanto meu pai também
era militar, sargento do mesmo Exército brasileiro que tanto
combateu o nazismo como massacrou Canudos, militariedade
que, de certa forma, renasceu em mim, tão apaixonado pela arte
marcial como pela chamada arte da guerra, a trama de táticas e
estratégias que tanto se parece com a arte da escrita, com sua
trama de alinhavar sintaxe em eixo narrativo,
embora essa mentalidade não me tenha impedido de manter
os pés no chão, olhar em volta mesmo diante do mais belo poente,
ouvir comumente a fala da gente comum, o batuque do samba e o
ritmo do rock, herança negríndia que nunca rejeitei nem escondi,
de modo que, escrevaí, sou etnicamente correto nesta incorreção
genética, talvez tenha direito a alguma bolsa-mestiça, não?
O humor, de quem a gente herda o humor? O meu talvez
venha não só herdado mas também adqui-rido, com perdão do
trocadilho, que Bernard Shaw dizia ser a forma mais indigente de
humor, mas ele era inglês e os ingleses, você sabe, conseguem
gostar de torta de rim e jogar cricket apaixonadamente.
Talvez afanei meu humor dos poemas-piada de Drummond
e Bandeira, e afinei com os de Osvald, que me revelaram ser a
poesia brincável, em vez de apenas solene como tantos poetofres
fazem, poesia de quem sofre para quem gosta de sofrer. Poeta
pra ser bom tem de sofrer, escreveu Vinicius, mas sofrimento na
vida a gente não precisa pedir nem esperar, vem e acontece como
chuva chove, enquanto alegria é roupa que se veste como se
despe por querer.
Tia Luiza lembra, na biografia que o Toninho fez de mim 1
(veja nota de rodapé), que o primeiro desenho que lhe mostrei era
de um fogão que chamei de Miséria, porque sem lenha e com
panelas vazias. Ainda bem que não me enfiei por essa trilha de
ver o pior do mundo como se isso pagasse alguma dívida, esse
sentimento de culpa que tantos intelectuais cultivam e que em
mim, dali por diante, passou como a chuva a resvalar pelas
penas dos pássaros, sem penetrar nem impregnar, três tocs no
pinho. Tanto que meu primeiro poeminha, lá pelos nove anos, diz
a tia que tinha o título de O Sapo, a lembrar o ironicoso poema
de Bandeira e, também, a prenunciar minha paixão pelo haicai, a
partir de Bashô e seu famoso sapo que na lagoa pula e o silêncio
ondula2..., considere uma onda cada pontinho da reticência.
Certo é que quando Pedro, meu irmãozinho, começou a
engatinhar pela casa, me refugiei no alto do guarda-roupa, meu
primeiro refúgio de tantos que fiz, erguendo-me em torres de
silêncio lendo, procurando cantos onde me enfurnar em mim, em
contraponto ao falador que também me fiz, famoso por filosofar
em voz alta até arfar, filosarfando portanto, o que me fazia
suspirar tão fundo que confundiam com ansiedade, não era, era
só e já saudade de tudo que eu quis ser e sabia que não ia
1
O Bandido Que Sabia Latim, Toninho Vaz.
2
Na tradução de Oldegar Vieira, em Oku, de Carlos Alberto Verçosa, Empresa Gráfica da Bahia, 1995:
Ploc! Um sapo pula / no silêncio da lagoa / e o silêncio ondula.
conseguir vivendo tão pouco, em medida de tempo, como vivi,
embora em medida de vida acredito que tenha excedido.
Mas eis que, junto com Pedro, bato continência a nosso pai
quando o sargento Leminski sai de casa fardado para o quartel,
sinal explícito de minha tendência para a disciplina, esteio da
minha construção.
E, para essa construção de mim, que é que somou o
sargento ser transferido e a gente ter morado em Itapetininga?
Talvez apenas o indício de meu futuro caminho, já nesse nome
tupi-guarani, “ita” significando “pedra”, que tantas vezes
aparece em minha poesia, e “petininga” sendo “caminho seco”,
trilha entre as pedras secas, como a que percorri, com minha
poesia enxuta e minha prosa compactadora de palavras.
Também que importa o sargento Leminski ser novamente
transferido e a gente morar em Santa Catarina, num posto militar
chamado Quilômetro 34? Mas eis que ali fui matriculado em
escola pública, aos cinco anos, indício de mais um ingrediente no
meu bolo mitobiográfico, a precocidade (tem fã que jura ter seu
avô me ouvido falar Latim já nessa época, o que obviamente não
é verdade, como não é crime crer...).
Certo novamente é que ali naquele posto militar eu
continuava a buscar refúgios, me punha no alto de árvores ou em
sótãos, porém atento ao chão do cotidiano, como depois
lembraria num de meus poemas mais pés-no-chão: “Minha mãe
dizia: / - ferve, água! / - frita, ovo! / pinga, pia! / E tudo
obedecia”.
Também anote-se que ali no Quilômetro 34, nome prosaico
e quilométrico como seria minha prosa no Catatau, vi que meu
pai fazia o que depois eu repetiria em alta dosagem, beber uma
água ardente tão apreciada pelos poloneses como pelos negros e
índios que em mim observavam aquilo esperando vez. E pronto,
já rabiscando poeminhas em papéis soltos como faria vidafora, lá
estava eu mestiçamente nascido e encaminhando para minhas
artes, ofícios e sacrifício, quando o pai foi novamente transferido,
de volta a Curitiba, em Tupi “terra de muitos pinhões”, das
pinhas que caem da árvore em forma de taça, como em taças e
copo e no gargalo eu tanto beberia ali.
E aqui e por enquanto, Pé Vermelho, te passo agora o
bastão neste cultorneio de revezamento para contar minha
história de vida, ou contar com vida minha história, alertalhando
que história de vida é pleonasno, pois história pressupõe vida
como vida pospõe-se em história, então que seja um pleorgasmo
duplo, dever e prazer de gozar juntos sem intenção nem plano, só
intuição, ação e pronto, pegue o bastão com as duas mãos e o
coração.

Em junho de 2013 em Curitiba, o editor Samuel Ramos


Lago convida Pé Vermelho para escrever biografia de Leminski,
no mesmo Mabu Hotel onde Pé Vermelho e Leminski um dia
beberam o frigobar olhando da janela a copa de um pinheiro com
pinhas. Pé Vermelho fica de pensar na proposta, o editor se vai e
ele fica lembrando daquele dia, quando falou que belo pinheiro –
e Leminski imediatamente corrigiu cortante:
- Não é um pinheiro! É uma pinheira! Se tem pinhas, é
pinheiro fêmea, pinheira. O machismo atinge até a botânica!

Pé Vermelho volta para Londrina com aquilo rodando na


cabeça, um livro sobre Leminski, quem diria. Em casa, sonha com
Leminski, falando e gesticulando enquanto caminha meio de lado
por causa do fígado inflamado pela cirrose, como no poema-
testamento Dor Ambulante: “um homem com uma dor / é muito
mais elegante / caminha assim de lado / como se chegando
atrasado / andasse mais adiante”.
Pô, diz Pé Vermelho no sonho:
- Você vai se matar até morrer, né?
- Mas conto com você, cara, pra escrever que eu não morri
de tanto me matar, morri de tanto viver, lembra?
Pé Vermelho acorda, tateia o criado-mudo, acha a caneta,
mas cadê papel. Levanta e vai à cozinha pegar papel e novamente
escreve em guardanapo, enquanto um galo canta na vizinhança,
como que alertando, e o olhar pousa no calendário na parede, que
então ele olha e... vê que é 7 de junho, o dia da morte de
Leminski!
Mas o que isso quererá dizer? Que deve aceitar a proposta
de reviver Leminski, escrevendo sobre sua vida, ou será sinal para
deixar o morto em paz? Pé Vermelho volta para a cama, não
consegue mais dormir pensando nisso, lembrando cenas de
Leminski que começa a anotar. Mas escrever o que sobre a vida
dele? Já teve uma biografia bem feita, já virou mito, já teve
exposição na mídia e até em museu 3, o Catatau foi reeditado,
Toda Poesia virou best-seller, VIDA, seu quadrivolume de
biografias será reeditado, o que mais escrever sobre Leminski?!
Na noite seguinte, Pé Vermelho volta a sonhar com o
Polaco. Na casa no Pilarzinho, cozinham no piso da sala, fazendo
sopa num caldeirão sustentado por três pedras sobre um fogareiro
a álcool (tudo simbólico, verá Pé Vermelho depois: pedras, que
aparecem tantas vezes na poesia de Leminski, daonde virá a idéia
de escrever sobre suas facetas feito poliedro; e um fogareiro a
álcool...).
Pé Vermelho mexe a sopa com colher de pau, vendo que é
sopa de legumes com cogumelos e costelinha de porco defumada,
coisa eslava. Leminski bica copo de vodka e brinca enxugando
com os dedos os bigodões:
- Álcool serve até pra cozinhar, hem... Na campanha da
Rússia, os alemães passaram fome porque as rações congelavam e
eles não tinham fogo.
- Onde você leu isso? Ou tá inventando agora?

3
Múltiplo Leminski, exposição curada por Alice, Áurea e Estrela Leminski.
- Eu?! – batendo as mãos no peito, depois suspirando tão
fundo que os bigodes ruflam com o jorro de ar – Eu não minto,
cara, eu recrio!
Riem. Leminski diz que, para a sopa não ficar rala, também
é preciso criatividade.
- Vamos botar pinhão aí.
Descascam pinhões cozidos mas, frios, é difícil descascar.
Leminski diz que é assim mesmo:
- O difícil é sempre melhor.
Picam os pinhões descascados sobre uma tábua, despejam
no caldeirão fumegante, e Leminski saca do bolso um papelote,
Pé Vermelho reage:
- Guarda isso, a gente vai comer!
- Não é o que você pensa, cara! – Leminski sorri matreiro –
É páprica!
Despeja o pó vermelho na palma da mão e, com dois dedos,
vai polvilhando na sopa.
- Pra sopa pop, tempero fino!
Pé Vermelho acorda, suado na noite fria. Que diabo quis o
Polaco dizer com aquilo? Leminski salta da memória
proclamando:
- Pra Freud tudo é sexo, pra Jung tudo é símbolo, então
prefiro Jung pra analisar meus sonhos, porque sexo eu mesmo
faço!
Então Pé Vermelho tenta analisar simbolicamente o sonho.
A sopa é a história da vida de Leminski, que devem escrever
juntos, o escritor e seu fantasma, como juntos faziam a sopa no
sonho. Os legumes são o trivial, a vida do dia a dia de
Leminski, o menino a brincar de poeta, o poeta a brincar de
menino.
Costelinha defumada é ingrediente eslavo e negro ao mesmo
tempo, a parte do porco que os nobres rejeitavam por ter ossos,
assim ignorando o gosto delicioso por isso mesmo. (Mas porque
costelinhas defumadas? A simbolizar toxicidade? O a trucagem
de embutir na carne o gostinho e o cheirinho da madeira
ancestral? Trucagem, claro, há de ser uma história criativa, ou não
será de Leminski).
Os pinhões, claro também, são o Paraná, os pés na terra, no
aqui, no barro que pode tomar a forma que a gente quiser; como
os pinhões também são a língua do povo, as raízes na forma de
frutos, Deus em tudo, a plantação da nossa vida em nosso chão.
E aquele pozinho, a páprica, tempero tão pouco usual na
cozinha popular, seria o que? Pirlimpimpim! A dar gosto na sopa,
a injetar mágica no caldo! As pitadas de erudição, o charme na
carne, o Latim no latão do caldeirão!
Pé Vermelho abre o Catatau e relê o começo em Latim: Ego
sum...
Amanhecendo ainda, liga a um amigo e conta:
- Acorda e abre os ouvidos. Vou escrever um livro sobre o
Leminski. Mas não vai ser uma biografia, nem mesmo um livro
convencional. Sem isso de começo, meio e fim enfileiradinhos
certinhos feito soldadinhos de letras. Vai ser pra qualquer caboclo
entender, mas vai ter o tempero da invenção, da criação, da
trucagem e da brincadeira, como ele gostava, ou melhor, como ele
gosta. Que é que você acha.
Acho que vou continuar dormindo, diz o amigo desligando.
Alguns dias depois, pescando no lago urbano de
Sertanópolis, vem a Pé Vermelho um haicaipira:
Pensamentos vem
e vão – ventos
também, não?
Vê que esqueceu caneta, não há como anotar. Cata então
uma pedra e escreve o haicai na terra, para lembrar de memorizar
entre um gole e outro do vinho à espera dos peixes. Com a pedra
na mão, lembra de Leminski, que tantos poemas tem tratando de
pedras ou por pedras passando. Pedras. Todas foram lava um dia,
lava que se condensou, fragmentou, virou pedra, ou melhor até,
virou esmeralda, ametista, turmalina, água marinha, mas, para
resplandecer, teria um dia de ser lapidada e... Saltou da pedra o
título do primeiro capítulo a escrever sobre Leminski: Poliedro.
Vento espaventa as árvores na beira da lagoa. Pé Vermelho
entende:
- Nem precisava agradecer, cara, você fez por merecer.
O NOVIÇO

Retomo o bastão, só eu mesmo posso contar porque resolvi


ser noviço de monge, o que agora, visto de longe, parece apenas
um teatro, noviceatro, para continuar a irritar os puristas que
detestam trocadilhos e neologismos e brincadagens, levando a
língua tão a sério que ela se chateia e eles depois não sabem
porque ninguém os ouve, falando sozinhos sua mesmilingua.
Sempre achei muito chique aquelas minibiografias de
famosos que foram, ou disseram que foram “lenhador, boxeador,
motorista de caminhão” (como Elvis), embora nunca tenha lido
que algum tenha sido “açougueiro, pedreiro, sitiante, dono de
bazar ou vendedor de porta em porta”, atividades sem a
rusticidade ou malaventurança precisas para conferir glamour
ou revestir de pop-glacê o bolo biográfico. Então, quando percebi
que se espantavam de eu ter sido judoca e professor de cursinho
(só professor, não, não tem o charmestilismo de professor de
cursinho), passei a cultivar esse facetismo acrescentando novas
faces: jornalista, poliglota, com a derivação tradutor, além de,
claro, poeta, um conjunto perfeito para embasbacar biografãs.
Ter sido noviço então, candidato a monge, seria ingrediente
perfeito.
Mas, quando quis me tornar monge, nem pensava em me
biografitar, acho que botei um pé no convento como quem pula
amarelinha, um pé aqui, outro já ali, até acabar ladiante com os
dois pés noutro quadrante. O primeiro pulo foi a família mudar
de volta para Curitiba. O segundo pulo foi estudar no Colégio
Paranaense, onde aos onze anos, na primeira série, na reclusão
diurna do semi-internato tão propício ao estudo para quem gosta
de estudar, conheci minhas primeiras paixões, em ordem
alfabética (e em maiúsculas, acho que idiomas merecem):
Francês, Latim e Inglês, além do já amado Português. Puro sexo
oral, mental e emocional, através de Camões, Homero, Antero de
Quental, e o Euclides de Os Sertões, que meu pai militar me
apresentou.
Também continuei a cultivar outra paixão paralela pelos
dicionários e enciclopédias. Tudo que eu poderia querer da vida
parecia estar ali, nos livros, embarcações para epopéias, ônibus
onde cabem todas as palavras, as eruditas sentadinhas em ordem
alfabética, ao lado das gírias e até dos palavrões, enquanto você
viaja passando por todas do ananás ao zênite. E passei a decorar
poemas, me espantando ao saber numa aula que decorar vem do
Latim “cor”, coração, decorar é portanto guardar na memória
depois de passar pelo coração. As palavras conseguem ser
ordinárias e, ao mesmo tempo, paranormais.

Ao saber de Leminski que decorava poemas na pré-


adolescência, quando nem os pelos nem o pênis ainda cresceram
o bastante para outras novidades, Pé Vermelho novamente se
espanta com a similaridade:
- Também decorei poemas aos onze anos, de tanto ler!
Os pais se separaram, o pai fechando a barbearia e passando
a tocar a Pensão Alto Paraná, em Londrina, que do outro lado da
Rua Maranhão era tocada pela mãe; e ela foi morar com os filhos
em Assis, SP. Lá, o menino começaria a ler intensamente, ao
descobrir, na casa que a mãe alugou, duas pilhas de revistas O
Cruzeiro e Manchete, deixadas pelo pintor que pintou a casa, para
proteger o piso contra respingos. O menino descobriu assim
Millor Fernandes, quando ainda assinava Vão Gogo, Rachel de
Queiroz, com sua crônica na última página, e a dupla David
Nasser e Jean Manzon, repórter e fotógrafo que, por exemplo,
chegaram a encher páginas acompanhando o dia a dia de um
cachorro de rua.
As revistas encantaram tanto o menino que passou a
esconder no guarda-roupa as ainda não lidas, para o caso do
pintor voltar para buscar. Leu todas, e continuou escondendo para
reler, mas o pintor nunca voltou. Então o menino já descobrira
outras fontes de leitura, os livros juvenis – As Viagens de
Gulliver, Robinson Crusoé, os contos dos Irmãos Grimm, como,
também, as fábulas contadas por um escritor analfabeto e escravo,
Esopo, que seus ouvintes decoraram e outros escreveram. A
poesia veio em seguida, e se tornou paixão com Castro Alves e
seus poemas abolicionistas, dando ao coração do rapazola a
beleza da arte e a comoção política.
Um dia, no Instituto de Educação Monsenhor Bicudo, a
professora Stela disse que daria um ponto a mais na média do mês
para quem decorasse um poema e declamasse na frente da turma.
Acaso, perguntou, alguém sabia de cor um poema? O rapazola
levantou o braço. A professora perguntou que poema ele sabia.
Vários, respondeu ele.
- Diga o título de um.
- Navio Negreiro.
Ela sorriu entre espantada e descrente: o longo poema de
Castro Alves? Sim, o rapazola assentiu. Ela foi até sua carteira:
verdade? Não estava brincando? Não, ele garantiu, sabia o poema
de cor. Ela suspirou fundo olhando o janelão que dava para a
avenida, até que decidiu esclarecer aquilo, e mandou outro buscar
o livro de Castro Alves na biblioteca, continuou a aula.
Chegou o livro, ela abriu no poema, dizendo ao rapazola que
podia começar então, ali na frente da turma. Ele levantou, foi ficar
de costas para o quadro-negro, mirando a parede do fundo da sala
para evitar os olhares dos colegas, e começou o poema. Lá pela
terceira ou quarta estrofe, a professora mandou parar, falou verso
do meio do poema, ele continuasse a partir dali, e ele continuou.
Ela mandou parar depois de mais umas estrofes, foi para as
estrofes finais, ele continuasse dali. Ele continuou e jamais
esqueceria aquelas estrofes finais:
Auriverde pendão da minha terra
que a brisa do Brasil beija e balança...
Leminski interrompe para dizer que esses versos,
precisamente, são interessantes pela aliteração, mas Castro Alves
é poeta muito romântico, e seu tão exaltado estilo condoreiro é
tedioso por isso mesmo, uma poesia feita em tom de discurso, tão
altissonante quanto solene, galeria de figuras históricas e deuses
citados em cascatas retóricas...
- Prefiro Sousândrade.
- Mas decoraria algum poema dele?
Leminski olha de soslaio, cofiando os bigodões, daí ri.
- Deixa pra lá. Importante, cara, é que você passou pela
mesma fase de decoração poética que eu!
Pé Vermelho, então, passa a declamar o começo da Eneida
de Vergílio:
Arma virunque cano, Troiae qui primus ab oris
Italian, fato profugus, Laviniaque venit
litora, multum ille et terris iactatus et alto
vi superum saevae memorem Iunonis ob iram...
Leminski arregala imensos olhos:
- Você sabe de cor a Eneida, cara?!
Pé Vermelho ri, conta que o professor de Latim no Curso
Clássico do Instituto Filadélfia em Londrina, professor Antonio
Rosinski, deu como tarefa para a turma decorar os 60 primeiros
versos da Eneida, para a próxima aula. Pé Vermelho e seu amigo
Carlos Barbosa não fizeram a tarefa mas, na hora, vendo que a
chamada para a tarefa não era por ordem alfabética mas salteada,
resolveram tentar decorar à espera de ser chamados. Carlos foi
chamado primeiro.
- Não decorei, professor.
Zerrro, anotou o polonês Rosinski, que fora prisioneiro em
campo de concentração nazista e se dizia neurrrrótico de guerra.
Em seguida, deixando de chamar por nomes salteados, chamou o
próximo da lista:
- Senhorrr Domingos!
Pé Vermelho tinha decorado apenas os quatro primeiros
versos, e pensou em fazer a graça de falar fluente e rapidamente
até suspirar ao fim do jorro latino e dizer “não sei mais,
professor”. Fez isso, e, quando suspirou para encerrar, o professor
mandou sentar:
- Parrrabéns! Nota dez!
Carlos Barbosa nunca se conformaria, e Leminski ri ouvindo
a história, daí sibila:
- Cara, só com isso, sabendo usar, você consegue fama de
poliglota, sabia?
Magister dixit, responde Pé Vermelho.

Mas quando entrei no Colégio São Bento dos monges


beneditinos em São Paulo, cara, não pensava em aprender Latim
nem sonhava que iria conhecer Grego, queria mesmo era ser
monge, num surto sazonal de adolessência. E então, ainda em
Curitiba, como quem pesquisa a origem de um boato ouvindo
boateiros, pesquisei vidas de santos, a Ordem dos Beneditinos, a
vida monasterial, que eu antevia cercada de livros antigos,
manuscritos deixados por escribas há séculos mortos, a ser
ressuscitados por traduções preciosas, parecia mais atraente que
a caverna dos ladrões para Ali Babá, naquilo eu queria me
enfurnar.
Mandei carta ao diretor da escola, tão pia e fervorosamente
convincente que me aceitaram para a terceira série do curso
ginasial em internato. Mas me alertaram que ainda não seria um
noviço mas um dos oblatos, aqueles ainda sem idade para o
noviciado. Bem, já estarei no caminho, pensei, e falei para a
família que iria fazer a mala, ou melhor, a maleta, um oblato não
precisaria de muita coisa num mosteiro e, além disso, o que
faltasse ficaria a cargo de Deus, não?
Não, meu pai nem quis acreditar mas, como militar, aceitou
o fato como a chuva que cai durante uma marcha, fazer o que?
Minha mãe tentou com palavras o que depois tentou com choro,
mas eu fiquei firme como Paulo partindo para pregar pelo
Mediterrâneo. E aos 13 anos, com os pelos aflorando na cara e o
coração inchado de convicção, fui para o mosteiro como quem
vai nu para uma festa a fantasia, totalmente aberto e pronto para
tudo.
Na biografia O Bandido Que Sabia Latim, Toninho Vaz
lança a certeira hipótese de que é ali, no monastério, que
Leminski adota uma parte de seu estilo de vida, simples,
desapegado, estudioso e frugal, que ele mantinha na rotina diária,
especialmente em casa. A outra parte seria o Leminski beberrão,
fumante, dispersivo entre anotações e rabiscos em guardanapos
pelos bares, em discussões ou monólogos altissonantes, comendo
qualquer coisa com o apetite ora afogado e ora assanhado pelo
álcool.
E é também ali no monastério que conhece Grego, o que lhe
permitirá depois, para a biografia Jesus, traduzir os textos
evangélicos diretamente dos originais gregos (ou pós-originais, já
que os originais mesmo, em aramaico, foram convenientemente
perdidos pela Igreja).
Ali também começa a aparecer outro traço de sua
personalidade, o sono a qualquer hora, obedecendo ao cansaço
mental, em qualquer lugar. O decano da turma, encarregado da
disciplina, estranhando sua ausência na cama na hora de dormir,
vai encontrar Leminski dormindo atrás do piano.
Também ali começa a adotar como norma evitar banho. E,
como em contraponto a esse desleixo, aplica-se mais nos estudos,
biografando santos e lendo sobre outras religiões, o budismo e o
zen-budismo, este lhe iniciando na visão zen que tanto marcaria
sua poesia.
Com os pelos e o pênis já crescidos, as usinas hormonais a
todo vapor, começa também a se interessar por aquilo que faria
com que abandonasse o mosteiro: o sexo ou, como ele diria um
dia, “a mulher”.

Em 1985, Pé-Vermelho muda de Londrina para São Paulo,


onde morará três anos, seis meses dividindo apartamento com a
também londrinense Neusa Pinheiro. Leminski liga, pedindo
hospedagem, Neusa concorda, curiosa de conhecer o poeta já tão
falado de Curitiba. Leminski chega de táxi da rodoviária às sete
da manhã, com Alice, Áurea mocinha, Estrela menininha e uma
garrafa de conhaque faltando um dedo para secar. Alice irritada
com “a outra”, a garrafa. Mas vai dormir um pouco com as
meninas, Leminski abre a primeira das quatro cervejas da
geladeira.
Pouco depois das oito horas, as quatro garrafas secaram e
ele convida Pé-Vermelho para buscarem mais no bar da esquina.
Lá, toma vodka dupla e volta mascando bala de hortelã, “por via
das dúvidkas”. Chega Itamar Assumpção, que no apê de Neusa
quase todo dia ensaia vocais da banda Isca de Polícia, amigo
desde Londrina e festivais. A conversa rola elétrica e Leminski
vai elevando a voltagem. Lá pelas dez horas, quando ele pega de
novo as quatro garrafas para buscar mais cerveja, Pé-Vermelho
mostra que tem outras oito garrafas vazias na área de serviço, pelo
rolar da corredeira será melhor levar logo ao bar a dúzia toda, mas
Leminski sai ligeiro com a sacola só com quatro garrafas.
No bar, emborca outra vodka dupla e pergunta se Pé-
Vermelho quer “jogar contra”, não vê que de quatro em quatro
loiras ele pode tomar uma branca dupla? No apê, Itamar canta,
chega Elizabel Jordão, a Bell, namorada de Pé-Vermelho, e ri
tanto com Leminski que logo lhe bota apelido de Lelé. Neusa faz
macarrão e, depois do almoço, sai com Alice e as meninas, Bell
também se vai, e Itamar conta uma piada, Leminski outra, e lá
pelas tantas uma piada é sobre “sexo oral, vaginal e anal”.
Leminski então, em alta voltagem, discursa em pé com voz
estridente e gestos teatrais:
- Sexo anal é sujo, mas o sexo por trás da mulher, vaginal
mas por trás, é o que elas mais gostam! Porque o sexo bifrontal
não é o ancestral, só surgiu depois que os hominídeos inventaram
a cama! Macaco só faz sexo por trás! Esse negócio de transar
olhando nos olhos é mais cultural que animal, e a mulher sente
prazer em voltar ao estágio animal penetrada por trás! Depois da
fase romântica, de olho-no-olho e “eu te amo” pra cá, “eu te amo”
pra lá, ela se sente livre das amarras culturais, ela pode gozar
como a macaca goza, e o sexo traseiral também dá ao homem
ilusão de poder, de domínio, porque ela fica de quatro diante dele,
como que subjugada, embora ela saiba que ele não está sobre ela,
ele também está ajoelhado atrás dela! O sexo frontal inventou a
família, mas o sexo traseiral recupera a animalidade ancestral e
mantém os casamentos!
Itamar olha boquiaberto e apenas balbucia:
- Nossa, eu nem imaginava que sexo pudesse ter tanta
teoria!
No meio da tarde, todos estão sonolentos, zonzos de tanta
bebida, mas Leminski continua elétrico. Alice volta com as
meninas, chama de lado, falam baixo e ele ergue os dedos como
escoteiro:
- Só bebi cerveja, amor!
À noite, quando eles saem para um show, Pé Vermelho cai
na cama e simplesmente dorme um sono vizinho do coma
alcoólico. Na manhã seguinte, Alice reclamará com Leminski que
ele traiu o trato, bebeu destilados no show e no jantar e no
encontro com os amigos depois, e ele repetirá que foi só para
compensar afinal:
- Só bebi cerveja o dia inteiro!
Caminhando reto entre porres que deixariam qualquer outro
torto, naqueles anos 70 ele parece se divertir com a morte que
ceva dia a dia - mas, às vezes, passa a mão na barriga crescente,
com certo ar de preocupação, que porém logo dissipa com mais
um trago e um papo, um poema ou um discurso sobre uma idéia
repentina. Como dirá Itamar um dia:
- O Leminski não é gente, é uma usina!
Ainda no mosteiro, porém, com 13 anos e corpo de homem,
Leminski consegue colecionar fotos de vedetes e atrizes em poses
sensuais, recortadas de revistas e jornais e, a bem do sigilo,
caprichosamente encartadas em álbum. Ambivalentemente como
sempre, continua também a estudar Grego e Latim, traduzindo,
pesquisando, com o gosto monástico do estudo que levaria pela
vida.
E, a indiciar que o mosteiro já era pequeno para ele, anda
pelos telhados à noite com um colega.

Qualquer aspirante a psicólogo verá logo que aquilo de


andar pelo telhado do mosteiro de madrugada, que zorra, só
podia ser sinal e símbolo de fuga. O animal perseguido procura
os espigões, o alto dos vales, por onde fugir com visão das rotas
possíveis, evitando o cerco enfurnado nos grotões dos baixios.
Não terá sido diferente com o escravo em fuga, Zumbi montou
seu palmares num morro com espinhal à frente e precipício ao
fundo.
Então lá estava eu no alto do mosteiro, entre as telhas e as
estrelas, transgressor transcendental, em prova cabal de
confiança em Deus. Depois de andar pelo telhado reprimindo o
riso, sentávamos ali a olhar o céu, onde nunca procurei Deus,
como jamais falei em Deus olhando para o alto, ora, basta uma
noção elementar de Geografia para saber que, sendo a Terra
redonda, o alto está em todas as direções, isso incluindo o chão
abaixo dos pés, onde vivemos entre o cosmos e as minhocas.
Quando lesse sobre física quântica e o Tao, anos depois, me
convenceria de que Deus é tudo, da bactéria às galáxias, e o
Infinito é tão imenso nas grandiosidades como minúsculo no
universo de cada átomo, sendo portanto incompreensível, tanto
quanto a Eternidade,
daí não haver atitude mais racional, diante desses absolutos
mistérios, do que subir em telhados, trepar em árvores, nadar em
riachos, pular amarelinha ou dançar mentalmente durante a
missa.
O certo, certo mesmo, é que tudo é incerto, e se de noviço
não caminhei para monge, achei caminho melhor nos livros do
mosteiro, no silêncio noturno, na procura da ponte entre o antigo
e o novo, o Latim e o gibi, o pergaminho e a pornografia, os
versículos e a poesia.

Na última vez em que conversam na casa do Pilarzinho, nos


anos 1980, depois de contar que os direitos autorais são uma
decepção e precisa dar um jeito de ganhar a vida sem se matar em
agência de propaganda, Leminski revela a Pé Vermelho:
- Na verdade, sabe o que eu gostaria mesmo de ser? Assim
profissionalmente, pra ganhar a vida fazendo uma coisa gostosa...
eu gostaria de ser redator de humor de Globo! Fazer rir é uma arte
difícil!
E ri arteiro, meio constrangido da revelação. Essa ficará para
Pé Vermelho a imagem mais reveladora de sua identidade: um
menino a brincar entre o mundo pop e o universo cult, a tudo
olhando com olhar encantado de criança.
O ANFITRUÃO

Na primeira vez que Pé Vermelho vê o bigodudo, ele agita


um cartaz numa cerimônia do saudoso Concurso de Contos do
Paraná nos anos 1970. O cartaz só tinha três palavras:
O CONTO
MORREU!
Anos depois, ele elogiará um conto de Pé Vermelho, que lhe
diz ué, mas você não pregava que o conto morreu?
- Naquele tempo, mas renasceu. Até eu ando fazendo
contos!
Essa naturalidade em cultivar a contradição, tão rejeitada
pelos intelectuais amantes da coerência, será o caminho para
Leminski moldar sua identidade artística. O Catatau é
continuação justamente de um conto seu inscrito no concurso do
Paraná, e que ele estende longamente, como palavrósico delírio
do protagonista Renato Cartesius depois de fumar maconha à
beiramar.
Leminski já se desentendeu publicamente com Pé
Vermelho, através de polêmica série de artigos no jornal O Estado
do Paraná, em 1974, em seguida ao lançamento da coletânea
Quatro Poetas. Hamilton Faria, Raimundo Caruso, Reinoldo
Atem e Pé Vermelho fundarão uma Cooperativa de Escritores,
misto de editora e entidade de resistência à ditadura, como outras
na época, inspiradas na Cooperativa de Jornalistas de Porto
Alegre. A cooperativa chega a associar vinte poetas de vários
Estados e publica mais alguns livros, cada um custeado pela
renda do anterior, mas o tom socio-político de muitos desses
poemas incomoda Leminski, já defensor da poesia como
inutensílio.
A polêmica, através de artigos de página inteira, estende-se
por semanas, divertidamente acompanhada por quantos acham
que o polaco metido a gênio deve mesmo levar umas guascas,
outros achando que os quatro poetas merecem levar umas
guascas já por serem quatro contra um.
Depois, Leminski integrará a comissão julgadora do
Concurso Nacional de Poesia, em 1976, promovido pela
prefeitura de Florianópolis, e Pé Vermelho será um dos
selecionados para a antologia resultante do concurso. Na 1ª
Semana Nacional de Poesia, num gelado julho, Leminski mostra
que guardou quente rancor pronto a ser lançado. É admirador dos
concretistas Augusto/Haroldo de Campos e Décio Pignatari, de
quem sempre fala entusiasmado, enquanto para os quatro poetas a
poesia concretista tem muito mais teoria que poesia, ilha de arte
humanamente vazia.
Num auditório com coordenação de Lindolf Bell, Décio
Pignatari fala, enquanto Leminski, sentado ao lado de Alice,
dorme abraçado com uma garrafa de conhaque, que mamou “por
causa do frio”. Quando acorda, Pé Vermelho está comentando a
palestra de Décio, elogiando, mas Leminski presume que só pode
estar refutando e criticando, e levanta de pulo e dedo em riste:
- A poesia concretista é arte refinada de vanguarda, vocês
são a retaguarda aguada e requentada que não leva a nada! A
revolução na arte se dá antes de tudo pela forma, como mostrou
Maiakovski, e não só pelo chamado conteúdo, que pode ser até
reacionário se fica no quadradismo das estrofes e da métrica
fazendo quadras como caixões funerários da poesia!
Enquanto isso, Alice lhe puxa a ponta da camisa,
sussurrando e enfim falando tão alto que todos ouvem:
- Paulo, ele não estava falando mal do Décio, estava falando
bem!
Quando percebe que se excedeu sem razão, Leminski senta,
seguindo-se um daqueles silêncios onde só os pigarros falam,
depois Pé Vermelho continua falando entre sussurros e risadas
abafadas. Nas férias de verão, encontrará Leminski e Alice numa
praia, na ilha de Florianópolis, e, num quintal de rala grama com
descuidada fogueira, discutirão azedamente até Pé Vermelho
revelar:
- Eu não sou contra os concretistas, cara, e pra mim também
poesia de protesto geralmente não presta. Gosto, por exemplo, de
O Operário em Construção, do Vinicius, justamente porque tem
uma construção poética, não só intenção política.
Leminski fica piscando atarantado, até que estende a mão.
Depois do aperto de mãos, Leminski fala tá, então aparece lá em
casa quando passar por Curitiba.

Pé Vermelho aparece na casa do Pilarzinho, a primeira, com


sótão. Sílvio Back está lá e, na sala apertada onde falta conforto
embora abundem almofadas, a conversa rola pela tarde entre
cervejas e vodkas. Para tira-gosto, apenas umas bolachas
muchibas. Sílvio se vai, Pé Vermelho fica, convidado para uma
janta parca, que depois de várias visitas descobrirá ser regra
monastérica da casa, ou, conforme Leminski num poema, “esta
sopa rala que mal dá para dois”. Depois da janta, o anfitrião
oferece pouso:
- Já dormiu em sótão?
Pé-Vermelho aceita a oferta por curiosidade, desde menino
tem fascínio por sótãos, tão presentes nos gibis do Pato Donald,
de Bolinha e Luluzinha, criações do hemisfério Norte onde as
casas tem sótãos. Anos depois, visitará a Europa e se desencantará
com sótãos, até escrevendo haicaipira: Sou tão infantil / sempre
quis morar em sótão / ainda bem que não tem sótão no Brasil.
Naquela noite, porém, mal consegue ver como é o sótão sem luz
onde dorme num colchonete, tão cansado quanto bêbado, só
conseguindo vislumbrar pilhas lacradas de livros em redor, como
Leminski anunciou:
- Você vai dormir cercado por uma obra-prima!
De manhã, Pé Vermelho vê que são as pilhas da primeira
edição de Catatau, que Leminski irá distribuindo ao longo de
anos. Dará um a Pé Vermelho, que lerá as primeiras páginas e
depois páginas salteadas, enfim desistindo, para comentar numa
próxima visita:
- O começo é interessante, o europeu deslumbrado com a
natureza tropical, daí fumando maconha e despirocando naquele
palavrório sem fim. Mas, narrativamente, é uma solução fácil,
além de tanto trocadilho acabar enchendo o saco, por mais cultos
que sejam. Seu Catatau é só sintagma4, cara, não tem paradigma,
feito construção sem esteio, não pára em pé! É um anarquétipo de
romance!
Leminski rebate de pronto:
- Mas não é construção, é caminho! Não pretende chegar a
lugar algum, só encantar, divertir, intrigar, como quem passeia
por uma estrada da palavras e sensações! Eu não quero ensinar
nada a ninguém, coisalguma propor, criar um ciclo de eventos se
encaixando para um fecho final, porque acho que nada fecha, tudo
se abre, tudo é flor o tempo todo morrendo e renascendo! O
Catatau não é para ser lido por quem quer chegar ao fim, mas por
quem entende e sente que não existe fim nem começo, a vida é
um acidente contínuo sujeito a virar o direito pelo avesso! Você
quer uma direção, um, como dizem, sentido? Bem, o Catatau é

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Grassava a febre do estruturalismo, tornando moda chamar de sintagma e paradigma os parágrafos e o
enredo.
uma festa para os cinco sentidos, a audição, a visão, o olfato, o
paladar e o tato, sim, é só ler sem preconceito que você entra na
festa, se quiser entrar pra dançar e se divertir com as palavras,
mas, se quiser entrar pra sair casado com uma ideologia ou uma
visão do mundo, tiao! Leve meu livro para um sebo que será
achado por quem gostar de um passeio turbicanabinado por uma
floresta signífica! Quem quiser lógica e coerência e seqüência e
moral da história, vai achar tanta graça no Catatau como em
minhoca subindo num pau-de-sebo debaixo de um sol de derreter
o sebo do pau!
Pé Vermelho, três décadas depois, lembra apenas do sentido
geral e de algumas palavras inesquecíveis do discurso de
Leminski, mas dessa imagem lembra perfeitamente, a minhoca
tentando subir num pau-de-sebo a se derreter ao sol. Como não
esquece o último jorro de palavras do Polaco naquele fim de
tarde:
- História com começo-meio-fim, mesmo que não nessa
ordem exatamente, muitos já escreveram desde Lucas, Mateus e
Marcos, mas eu sou mais o João do Apocalipse!
Mas cofia os bigodões, suspira fundo e fala que respeita a
opinião:
- Tem quem gosta de biscoito fino e tem quem gosta de papa
grossa.
- Me parece mais angu de camarão – retruca Pé Vermelho -
Os ingredientes podem ser finos mas não deixa de ser angu.
Leminski ordena de dedo em riste:
- Então diga o que é para você um grande livro!
- Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Leminski volta a suspirar fundo.
- É, é um grande livro. Gosto muito da primeira parte, A
Terra.
Pé Vermelho nem acredita:
- Você gosta da primeira parte? Aquele palavrório
geológico? É a parte chata, aliás chatíssima!!
Para você, diz Leminski:
- Você leu só as informações, procurando ação, mas as
ações da Terra são pouco perceptíveis. O planeta gira e a gente
nem percebe. Eu li o ritmo das palavras, aquele intrincado verbal
quase mineral de tão áspero. É a prosa mais densa da literatura
brasileira e, por isso mesmo, rejeitada por tantos e apreciada por
poucos – conclui sorrindo para o copo, bebe e bate o copo na
mesa, encerrando assunto. E nunca mais falarão do Catatau.

(Três décadas depois, escrevendo este livro, Pé Vermelho


resolve ler um pouco do Catatau para os netos Caetano, de seis
anos, e Pietro, de cinco anos, na cama antes de dormirem. Abajur
na cabeceira, eles ouvem a corrente de palavras, perguntando que
palavra é esta, e esta outra. Pé Vermelho diz que são palavras
diferentes, que ninguém usa, só o escritor do livro, palavras que
querem dizer o que a gente quiser que cada palavra diga. Eles
ouvem, rindo muito a cada nova “palavra esquisita”. Pé Vermelho
lê o final: bêbado, quem me entenderá? - e eles gargalham, pedem
mais, Pé Vermelho volta a ler trechos salteados, até que eles
dormem.
É, pensa Pé Vermelho, o Catatau funciona, ao menos como
sonífero... Mas, na noite seguinte, os netos, mal deitam na cama,
em vez de escolher um dos muitos livros infantis empilhados no
criado-mudo, pedem já olhando o teto onde a imaginação desfila
suas imagens:
- Lê o Catatau, vô...
- ...do bêbado engraçado.
Ficam em respeitoso silêncio enquanto o avô, feito uma
criançona, não consegue ler com os olhos molhados.)

Na segunda casa no Pilarzinho, voltam a se encontrar várias


vezes, e ali Pé Vermelho verá que o casal Alice-Paulo pratica uma
mágica e simples hospitalidade.
Pouco tem eles a oferecer. O conforto na sala continuará
dependendo de almofadas. A quem ligar avisando de visita,
Leminski pedirá para trazer bebida. Quem já conhecer o esquema
da casa, levará também comida. Mas sempre encontrará o casal
sorrindo, a porta da sala aberta para um deque de ripinhas
treliçadas onde, nos dias nublados, ele senta na posição de lótus
para ler poemas para os visitantes ou, simplesmente, fumar
falando sobre o que lhe vier à cabeça.
Relaxa / tempo não tem / taxa – Leminski ri muito quando
Pé Vermelho lhe fala este haicaipira, dizendo ser inspirado pela
sua pensação/falação em alta voltagem.
- Fico honrado - diz Leminski – e feliz por você começar a
fazer poesia de verdade em vez de discurso político rimado.
Alguns anos depois, Pé Vermelho contará que fez haicaipira
respondendo ao dístico de Leminski: Ameixas / ame-as ou deixe-
as (que funcionou como antídoto ao lema publicitário da ditadura,
Brasil – ame-o ou deixe-o).
- E você sabe seu haicai de cor? – Leminski ironiza, Pé
Vermelho finge que se esforça por lembrar: Ameixas são como
amêndoas: / tendo-as, deixa-as / não tendo, te queixas.
Leminski ergue o copo:
- Lindo! Brindo!

Nas visitas à casa do Pilarzinho, Pé Vermelho presenciará


cenas típicas da, para usar um inevitável lugar-comum,
“personalidade ímpar” de Leminski.
Quando não está trabalhando em agência de propaganda, ele
acorda tarde, passa o dia lendo, escrevendo, ouvindo música – e
também bebendo, claro - para, no começo da noite, quando
começa o telejornal na tevê, bocejar diante do mundo e, se
enrolando feito bicho ou criança nas almofadas sobre o tapete da
sala, dormir mesmo diante de visitas. Acordará lá pela meia-noite
e voltará a ler ou escrever. Alice se desculpará para o visitante:
- Ele é assim.

Passa carteiro, que Leminski vai atender curioso feito guri,


volta com envelope na mão, gritando para Alice:
- É da editora!
Pega faca lambuzada de manteiga, lambe a manteiga, abre o
envelope com a faca, dá uma olhada e grita para Alice que
continua no fundo da casa:
- É o contrato!
Mal passa os olhos pelo contrato de apenas uma folha
frente/verso, pega caneta para assinar sobre uma estreita bancada
que separa a sala do escritório. Suspira fundo antes de assinar, e
Pé Vermelho, vendo que é contrato para edição de livro, pega-lhe
a mão da caneta:
- Você não vai ler antes de assinar?
Leminski sorri:
- Seja o que Zeus quiser.
E assina.
A biografia de Trotsky torna Leminski simpático a um
partido trotskista, que o convida para animar uma convenção em
Curitiba, e lá vai ele com o violão e a verve. É aplaudido, abafa, é
paparicado. Ano seguinte, convidam de novo e ele vai
respondendo a pedidos insistentes, dizendo que não, não vai de
novo, não, não mesmo, até que estrila:
- Não vou e querem saber porque? Porque dessa brincadeira
já brinquei!
Conta isso a Pé Vermelho numa das visitas à casa do
Pilarzinho, divertindo-se feito menino arteiro. Também gosta de
contar o dia em que Caetano Veloso e Gal Costa chegaram à
primeira casa do Pilarzinho, para conhecer o poeta, e ele estava
caminhando sobre o muro, num exercício de equilíbrio. Saltou do
muro, Gal Costa assustou, e ele sempre concluiria seu relato
meninamente :
- Esperavam o que? Que eu estivesse sentado atrás duma
escrivaninha com caneta numa mão e dicionário na outra, retrato
de Machado ao fundo?!

Nas visitas, Pé Vermelho vai descobrindo que Leminski, ao


contrário dos que bebem e ficam agressivos, fica doce, meigo,
afetivo e emotivo. Um dia, depois de toda uma tarde falando
sobre arte militar, de Leônidas a von Klausewitz, Pé Vermelho
diz que é hora de voltar ao hotel, pega a mochila em que trouxe
vinhos e Leminski abraça, pegando pela nuca:
- Gosto de você, cara. Se fôssemos gregos, lutando nas
Termópilas, gostaria de lutar a teu lado.
Pé Vermelho pensa que é brincadeira mas, saindo do abraço,
vê que o polaco está com os olhos úmidos.

Quase sempre quando Pé Vermelho passa por Curitiba, é


caminho do litoral, em férias ou para fins de semana na Ilha do
Mehl, mas Leminski está trabalhando, fazendo tradução de livro
ou frilas para agências de propaganda, às vezes passando textos
de anúncios por telefone. Mas ao telefone diz venha, venha, eu
vou enganando e a gente vai conversando.
Pé Vermelho chega, abre o primeiro vinho e começam a
conversar, de vez em quando Leminski caça papel para anotar
alguma coisa. Meio da tarde, toca o telefone, é uma agência,
querendo texto para out-door, ele anota os dados. Fim da tarde,
toca o telefone, é a agência querendo o texto , ele fica procurando
o papel das anotações.
- Pois é, eu ia agorinha mesmo ligar pra vocês, passei a tarde
pensando nisso.
Dá uma olhada nas anotações, solta um suspiro fundo
ganhando tempo, aí fala o texto de poucas palavras para o out-
door. Explica porque, enquanto alguém anota do outro lado da
linha. Desliga.
- Tim-tim! Dinheiro na caixinha!
E voltam a conversar. Pé Vermelho pergunta porque ele não
atende de bate-pronto os pedidos das agências.
- Ah – ele passa a mão no bigode - Se não demorar, eles não
dão valor, pensam que é fácil – e pisca molecamente.

Às vezes se encontram noutros lugares. Pé Vermelho chega


a Curitiba, liga, Leminski marca encontro no Largo da Ordem.
“No bebedouro”, diz, e Pé Vermelho pergunta se é um bar com
esse nome, mas Leminski já desligou. No Largo, Pé Vermelho vê
um antigo bebedouro de cavalos, que se tornou patrimônio
histórico depois de carroças e cavaleiros deixarem de transitar por
ali. Leminski chega, acenando de longe, e vem sorrindo para o
abraço. Depois enfia a mão em concha no bebedouro e sorve um
gole. Pé Vermelho estranha:
- Essa água não faz mal?
- Não para quem tem saúde cavalar.
Várias vezes ouvirá Leminski proclamar orgulhoso:
- Nunca fui a um médico! – emendando sussurrante: -
Quando for, é pra morrer.
Confirmará isso num poema: “Fiz um trato com meu
corpo. / Nunca fique doente. / Quando você quiser morrer, / eu
deixo.”
E Pé Vermelho irá descobrindo que não é apenas poesia: é
uma estratégia.
O ESTRATEGOISTA

Para quem dele só conhece um poema ou outro, ou


identifica a figura sem conhecer a obra, os bigodões são marca
visual de identidade. Leminski explica os bigodões a Pé
Vermelho, num dia em que se dedica a matar rapidamente uma
garrafa de vodka enquanto Alice não chega da cidade onde foi
trabalhar; ele faz traduções em casa enquanto ela é redatora de
agência de propaganda.
- Estes bigodões são homenagem a Lech Walesa, cara. Não
só porque ele liderou o movimento Solidariedade, mas porque foi
o primeiro movimento realmente organizado contra o império
soviético. As revoltas anteriores, na Hungria e na
Tchecoslováquia, foram desorganizadas, os russos chegavam
com soldados e tanques e botavam ordem nas ruas. Mas como
sufocar um movimento entranhado na sociedade e no próprio
sistema de produção tão caro aos soviéticos?
Pé Vermelho então comenta que, adolescente, leu numa
velha Seleções reportagem sobre a revolta da Hungria em 1956.
Um maestro sai de ensaio no teatro, onde sua orquestra vai se
apresentar, e vê na rua a polícia atacando os estudantes
revoltados. De repente, num assomo, chuta na calçada um tabique
de propaganda da própria orquestra, e se junta aos estudantes. A
cena ficaria inesquecível para o adolescente que lia receituários de
guerrilha e sonhava derrubar a ditadura militar como Castro e
Guevara derrubaram a ditadura de Batista, e daí instalar no Brasil
a ditadura do proletariado... até começar a desconfiar que não
seria boa coisa trocar uma ditadura de direita por outra de
esquerda.
Em 1968, a Primavera de Praga, outra revolta contra o
império soviético, abriria de vez os olhos de Pé Vermelho.
Leminski, ouvindo isso, ri afagando os bigodões:
- Bem, cara, eu nunca me enganei com revoluções. São
bonitas, são empolgantes, mas, como são feitas por gente, logo
viram monstros. Trotsky foi morto no México pela mesma
revolução que queria instalar no mundo todo...
Mas logo ri, novamente afagando os bigodões para cobrir a
visão dos dentes estragados.
- Mas se eu tivesse de escolher uma revolução ou guerra
onde lutar, pela História afora, não seria nas Termópilas, não,
aquela chatice de 300 ficarem lutando contra milhares. Sabia que
os defensores das Termópilas, tão decantados como heróis pelo
machismo vigente, eram na maioria gays? É, o homossexualismo
era tolerado e até convencional na Grécia, como seria em Roma,
e muitos formavam casais para lutar juntos, um defendendo o
outro, já que o sistema da coorte grega era mesmo cada um
defender com seu escudo o companheiro ao lado! Cada um lutava
por dois!
Pé Vermelho lembra:
- Um dia, cara, você me disse que, se a gente fosse gregos e
lutasse nas Termópilas, você gostaria de lutar a meu lado... Então
a gente seria um casal...?
Leminski ri, depois fala sério:
- Não havia só gays nas Termópilas...
Novo suspiro, novo afago nos bigodões, novo jorro de
palavras:
- Eu queria ter sido, isto sim, um daqueles cavaleiros
polacos que investiram contra os tanques nazistas! Consta que
alguns, investindo de repente e de surpresa, chegavam a vergastar
o tanque com o sabre, antes de ser derrubados, claro, os tanques
tinham metralhadoras além de canhão... Mas que linda imagem,
um cavaleiro dando de sabre num tanque feito de aço! Não era
uma atitude militar inteligente, era um gesto de superioridade
moral!
Fica olhando longe com olhos faiscantes, depois pega o
copo e bebe de um gole a vodka com limão-rosa, mistura mestiça
de bebida eslava com fruta tropical. Lacrimeja, trocando um olhar
de você-me-entende. Pé Vermelho ergue o copo de vinho, não
tem coragem nem gosto de se matar com bebida destilada, mas
Leminski renova o próprio copo, espremendo o limão e lambendo
os dedos sumarados, depois recomeça:
- A Polônia tem toda uma história de apanhar dos dois lados.
De um lado, da Alemanha. Do outro lado, da Rússia. Na Segunda
Guerra, foi invadida pela Alemanha, depois libertada pela Rússia,
que transformou a libertação em ocupação. Pobre Polônia, disse
muita gente, inclusive Churchill, mas com o Solidariedade a
Polônia ergueu a cabeça. Com bigodes que ninguém pode
ignorar!

Noutras conversas sobre arte militar, porém, Pé Vermelho


irá percebendo a predileção ou fascinação de Leminski pelo
“recurso extremo”, o uso da própria vida como arma, a resistência
até a morte, o suicídio letal para o mártir e também para o
inimigo. Décadas depois, ainda ouvirá o Polaco a dissertar
estridente sobre as façanhas heróicas dos suicidas históricos.

Mas não foi mesmo admirável, cara, aqueles russos


pararem os alemães em Stalingrado com coquetéis Molotov?
Uma arma tão simples, uma garrafa cheia de gasolina, tampada
por um trapo que, umedecido pelo próprio líquido da garrafa,
veja que funcionalidade, torna-se também estopim de incêndio
quando a garrafa lançada se quebrar, praticamente então
explodindo pela combustão repentina, lançando chamas vários
metros em redor. E, claro, vertendo gasolina em chamas pelos
orifícios e frestas do tanque, pingando na tripulação, que, se
abria a portinhola para sair com as vestes em chamas, podia ser
alvejada, ou por ali também se podia jogar uma granada,
explodindo de vez o tanque.
É claro, sim, que a maioria daqueles russos, que surgiam
diante dos tanques de repente, brotando de buracos e túneis
cavados na neve, eram mortos pela metralha antes de conseguir
jogar seu coquetel Molotov - mas se um conseguia, era um tanque
a menos no arsenal nazista, por um preço barato, pois o que os
alemães tinham pouco os russos tinham de sobra, soldados pra
sacrificar!
Pelo foco contrário, os russos também causaram muitas
baixas nos alemães com os snypers, os atiradores de longa
distância, com fuzis de longo alcance e mira telescópica. Alguns
mataram dezenas de alemães, e um chegou a matar centenas! Um
fuzil com luneta, um bom atirador num ponto elevado e pronto, os
alemães tinham de se mover rastejando para não aumentar a lista
de baixas. Sim, sim, claro que a maioria dos snypers também
acabou do mesmo jeito, alvejados por tiros de snypers alemães
ou mesmo liquidados por projétil de tanque, depois de localizado
o ponto de onde atiravam, mas isso só acontecia depois de já
terem atingido vários alvos. Eram suicidas competentíssimos!
Pé Vermelho diz que o cerco de Stalingrado foi rompido não
só porque os russos usaram suas garrafas e suas lunetas, mas
principalmente porque, na retaguarda, as fábricas produziam
milhares de tanques e canhões e veículos e armas para
contratacar, enquanto a população da cidade era dizimada pela
fome. E também os alemães passaram fome, porque os russos,
como tinham feito com Napoleão, foram queimando tudo
conforme recuavam, não deixando um grão ou uma galinha. Os
alemães tinham de ter todos os suprimentos vindos da Alemanha,
através de uma linha de abastecimento cada vez mais longa, e
assim, a falta de centeio combaliu o exército alemão, que não
resistiu com a dureza de sempre diante do contrataque russo. Os
russos comeram ratos em Stalingrado, mas dali não recuaram
mais, e os alemães, quando lhes faltou centeio, começaram a
recuar...
Leminski ouve e concorda: pode ser, diz, pode ser. Mas o
cerco de Stalingrado lhe lembra outro cerco heróico e também
suicida, no Gheto de Varsóvia. Pé Vermelho dirá que também leu
Mila 18, de Leon Uris, que narra a resistência dos judeus no gheto
cercado, sem comida e sem água, civis lutando com armas leves
contra tanques e tropas profissionais.

E o pior é que só resolveram lutar quando restava um


décimo dos 200 mil judeus sitiados no gheto! O resto foi
aceitando o envio para os campos de concentração, querendo
crer que não seriam mortos, contra todas as evidências! Mas a
minoria que se organizou pra lutar, umas poucas centenas,
conseguiram causar 300 baixas nos alemães, e, melhor que isso,
desviar tropas das frentes de batalha para controlar o gheto!
Geralmente morriam nas emboscadas e ataques, mas foram
os suicidas mais produtivas da história das guerras, com
exceção, claro, dos kamikaze...

Como sempre, um assunto puxa outro para Leminski, que


lembra de outro cerco a judeus, pergunta se Pé Vermelho conhece
Massada.

Não conhece Massada? Era uma fortaleza judaica, ali


naquelas terras secas e rochosas perto do Mar Morto. Lá pelos
anos 70, tornou-se o último foco de resistência aos romanos, que
tinham todas aquelas armas de cercar e aniquilar fortalezas:
catapultas para lançar projéteis incendiários, aríetes para
romper muralhas, balistas para lançar chuvas de flechas, além
das tropas mais treinadas e aguerridas da Antiguidade! Mas
Massada era num platô inacessível, com muralhas inalcançáveis
lá no alto, e poderia resistir durante anos, com armazéns cheios
de cereais e azeite, além de água captada das rochas e
armazenada em cisternas.
Os romanos então construíram uma rampa, usando
escravos judeus para cavar e mover terra, assim evitando que a
construção fosse atingida por projéteis da fortaleza. Quando
puderam colocar suas máquinas de guerra lá no alto, usaram os
aríetes para derrubar a muralha, descobrindo que a fortaleza
tinha outra muralha interna, feita de pedras intercaladas com
madeira, justamente para absorver os impactos dos aríetes! Mas
madeira queima, e os romanos eram mestres em usar o fogo
como arma.
Quando os judeus viram que a segunda muralha seria
rompida, resolveram que não se tornariam escravos. Eram
poucos menos de mil, com mulheres e crianças. Então cada um
matou a própria mulher e os filhos, e, depois, tiraram a sorte
para escolher dez que matariam todos os outros. Por fim, os dez
tiraram de novo a sorte, para escolher qual mataria os nove.
Depois, o último se matou jogando o corpo contra a própria
espada, e, quando os romanos entraram na fortaleza, deram com
a derrota moral de nada conquistar. Aquilo abalou Roma mais
que uma derrota militar.

Das intensas conversas com Leminski sobre a chamada arte


da guerra, Pé Vermelho sempre lembrará de algumas de suas
tiradas.
Portugal, apesar de se manter neutro na Segunda Guerra,
teve importância fundamental para o Dia-D, mesmo contribuindo
com apenas um homem já morto quando entrou na guerra! Os
alemães, esperando a invasão, tinham transformado todo o litoral
da França numa barreira de terrenos minados, cercas de arame
farpado, obstáculos para lanchas de desembarque, fossos e
casamatas com metralhadoras pesadas e artilharia - mas mesmo
assim ainda procuravam prever onde seria o desembarque, para
posicionar ali as divisões de tanques Panzer que poderiam até
rechaçar o desembarque, liquidando a infantaria precursora.
Então os aliados arranjaram nalgum necrotério um cadáver
em bom estado, morto por afogamento, sem que a família
reclamasse o corpo, que vestiram bem, colocando nos bolsos
documentos reveladores de que a invasão seria noutro ponto, não
na Normandia suspeitada pelos alemães. Um submarino lançou o
cadáver numa praia francesa, os alemães recolheram,
examinaram e concluíram que devia ser de algum agente
britânico enviado para coordenar a Resistência Francesa. E
enviaram as divisões Panzer para o outro ponto, desguarnecendo
a Normandia, onde os aliados teriam muito mais baixas se não
fosse o português. Gostaria de ter contado isso a meu avô
português!
No começo da guerra, a máquina bélica nazista parecia
invencível, com aquelas blitzkrieg conquistando países um depois
do outro como se derrubasse dominós, até acuar os franceses e
ingleses na praia de Dunquerque, quando os aliados começaram
a reverter a guerra com uma retirada ordeira. Então a Inglaterra
ficou ali adiante feito ilha trincheira, última barreira antes da
América do Sul, que Hitler certamente invadiria depois de
conquistar aquela ilha, conquistando em seguida as outras ilhas
do Atlântico, Açores, Madeira etc, que funcionariam como
escalas para invasão do Sul do Brasil, onde imigrantes alemães
já estavam preparados para dar apoio, no Paraná, em Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. Ali seria formada a cunha para
invasão posterior do continente inteiro, cercando os Estados
Unidos pelo Sul, enquanto pelo leste era cercado pelo Atlântico
infestado de submarinos nazistas, e pelo oeste pelos japoneses
dominando o Pacífico.
Mas a ilha trincheira, a Inglaterra, resistiu graças a um
discurso, uma nova tecnologia e uma velha máquina. O discurso
foi de Churchill, dizendo a Hitler que os ingleses lutariam nas
praias, nos campos, nas ruas, “nunca nos renderemos”; então
Hitler, em vez de lançar um ataque pelo Canal da Mancha, como
os aliados fariam em direção inversa em 44 no Dia-D, Hitler
resolveu esperar para se fortalecer e enfraquecer a Inglaterra
com ataques aéreas. Mas só se enfraqueceu, porque os ingleses
estavam inaugurando o radar, a nova tecnologia que permitia
agrupar e direcionar seus poucos aviões para interceptar os
ataques da Luftwafe, naquela temporada que ficou conhecida
como A Batalha da Inglaterra, a primeira batalha aérea da
História. Nunca tantos deveram tanto a tão poucos, diria
Churchill sobre os pilotos dos caças que decolavam sempre
sabendo que alguns não voltariam, mas sabendo também que
derrubariam muitos aviões alemães, ceifando tanto a Luftwafe
que um dia Hitler acharia melhor parar com os ataques aéreos
para preservar os aviões que ainda tinha para defender a Europa
a ser invadida no Dia-D...
Mas, antes disso, no Atlântico a esquadra naval nazista
dizimava os comboios de suprimentos que vinham dos Estados
Unidos, de que a ilha trincheira precisava como um baionetado
precisa de transfusões de sangue. Os submarinos e navios
alemães se comunicavam pelo código Enigma, que a criptologia
inglesa tão competente não conseguia decifrar. Até o dia em que
os ingleses conseguiram entrar num submarino alemão
bombardeado e abandonado pela tripulação e, antes que
afundasse, capturaram uma máquina de escrever com teclas
embaralhadas, era o código. Dali por diante, os ingleses
passaram a saber de todos os movimentos da esquadra alemã,
usando a velha máquina para decodificar cada mensagem
capturada pelo rádio, e a guerra no mar foi revertida.
Um discurso, uma nova tecnologia e uma velha máquina
impediram que a Inglaterra caísse e os nazistas viessem ao Brasil
conhecer chimarrão, pinhão, pinga e coquetel molotov feito com
álcool de cana, porque você acha que os gaúchos não iam
resistir?

Tivemos umas 1.500 baixas na Segunda Guerra, dois terços


nos navios mercantes afundados no Nordeste, levando o povo a
exigir a entrada do Brasil na guerra, contra a vontade de Getúlio
Vargas, que simpatizava com o nazismo de Hitler e
principalmente com o fascismo de Mussolini! Das mais ou menos
500 baixas militares, uns 80 por cento foram na conquista de
Monte Castelo, onde os cadáveres de novo foram decisivos.
A FEB perdeu ali 400 pracinhas, metade das baixas na
Itália, num só dia, porque a tropa resolveu perder a cabeça e
tomar coragem, depois que os alemães, descendo do monte à
noite com macacões brancos para se camuflarem na neve,
colocaram minas nos brasileiros mortos nos ataques durante o
dia, para explodirem matando o pelotão que depois foi resgatar
os corpos. Aí, ah, aquilo tomou de assalto a alma dos nossos
rapazes, aqueles moços que até então viam a guerra como uma
aventura, acreditando que estavam todos abençoados por Nossa
Senhora da Aparecida, e então, mesmo contrariando ordens,
subiram aquele morro com garra e com gana de agarrar alemães
pelo pescoço e lhes enfiar tripas adentro baionetas de ódio,
desculpe o rompante, eu sou assim graças a Deus, mas
enfim, depois de conquistado o monte e contados os mortos, o
Alto (ironia) Comando somou um avanço de centenas de metros,
subtraiu centenas de baixas, dividiu culpas e multiplicou glórias,
e, no fim das contas, um tenentinho matreiro respondeu ao
pensamento em voz alta de um general: porque morreram tantos?
Porque, general, o inimigo estava no alto. Mas também é verdade
que os ataques foram tão cegos de ódio que foram também
suicida, mesmo que lá na fortaleza a guarnição alemã era de
jovens soldados e veteranos semi-inválidos, pernetas e manetas,
reconvocados para completar os regimentos alemães castigados
por uma retirada combatente, lutando por cada palmo de terra,
sabendo que depois do Vale do Pó só teriam a Áustria entre os
aliados e a Alemanha... Aqueles veteranos e aqueles novatos
estavam lá para permitir que as tropas duras montassem defesas
mais ao norte.
Nossos pracinhas, mesmo lutando contra uma fortaleza no
alto, subiram o morro com garra porque perderam o medo de
morrer. Os mortos comandaram o ataque!

Sua predileção pelas táticas suicidas era, no entanto, para os


kamikazes japoneses.
Os pilotos kamikaze decerto ajudaram os Estados Unidos a
decidir por liquidar a guerra lançando bombas atômicas no
Japão. O Alto Comando deve ter pensado poxa, se algumas
dezenas de pilotos conseguem fazer tanto estrago, destruindo
navios inteiros com apenas um aviãozinho e uma bomba, o que
não farão as tropas japonesas para defender o solo japonês?
Os americanos tiveram 100 mil baixas em toda a guerra,
uma micharia comparada com os 17 milhões de mortos russos,
mas podiam perder mais 100 mil para conquistar o Japão cidade
por cidade, aldeia por aldeia, casa por casa. Então preferiram
matar 170 mil civis em Hiroshima e Nagasaki, usando a lógica
que é sempre fria.
O mais interessante é que o kamikaze sintetizava toda a
cultura nipônica. Primeiro, na opção pelo suicídio digno, um
haraquiri glorioso, servindo à pátria de forma retumbante,
tirando muitas vidas com a própria vida, dando à vida um sentido
último, além e acima da carne e do tempo. Além disso, o
kamikaze optava pela niponicamente típica simplicidade com
eficiência, pilotando o menor avião da aviação japonesa, mas
direcionando sua queda para o convés do navio alvo, se possível
entrando pela chaminé, para causar impacto interno fatal para o
navio. E o kamikaze também simbolizava despojamento, já no
próprio nome do avião, um caça Zero, que era despojado de tudo
que não servisse para sua última e estrita missão. O próprio
piloto tirava as botas, raras e valiosas naquele final de guerra
miserável, para serem usadas por outro piloto. Amarrava
ritualmente um lenço na testa, como os antigos samurais. E orava
em silêncio antes de entrar no seu avião bomba, simbolizando a
sublimação almejada pelo budismo. Cada Zero era o Japão
encapsulado em espírito e ação, como é o golpe samurai!

Numa dessas conversas sobre a “arte” da guerra, discutirão


sobre Guevara, depois que Pé Vermelho revela:
- Eu tinha 17 quando ele morreu, estava entrando em partido
clandestino, sonhando ser guerrilheiro. Ele era meu ídolo. Nosso
grupinho no Instituto de Educação Monsenhor Bicudo, em
Marília, acompanhava todo dia o noticiário nos jornais sobre o
cerco a sua guerrilha na Bolívia. Torcíamos para ele continuar
despistando as tropas bolivianas que, diziam o jornais, eram
orientadas por rangers ianques, como a gente dizia. Quando ele
morreu, choramos na salinha do grêmio estudantil, uma
verdadeira roda de choro sem cavaquinhos...
Mas depois, conta Pé Vermelho, leu o Diário da Guerrilha
de Che, em jornal, e começou a desconfiar da competência militar
do guerrilheiro:
- Ele quis exportar a fórmula da guerrilha cubana para o
Congo, e não deu certo, porque era outra realidade, que ele
desconhecia. Então quis exportar para a Bolívia, e aconteceu a
mesma coisa. Não recebeu apoio do Partido Comunista Boliviano
porque o partido sabia, ora, que aquilo não podia dar certo. Não
recebeu apoio dos camponeses porque são gente pacífica, que não
acredita em transformações à força, simplesmente isso. Então
ficou lá, rodando pela selva, desenterrando latas de lei em pó,
fugindo em círculos até ser cercado, claro.
Leminski diz que o Che era um dos “santos” marxistas, que
dedicam a vida à revolução e à libertação da massas
trabalhadoras. Pé Vermelho rebate:
- E liderou pessoalmente os pelotões de fuzilamento em
Cubia, depois a criação de campos de concentração para
opositores sem julgamento e até para homossexuais!
Leminski diz que revoluções são sinônimos de excessos, é
quando a rotina e a realidade tida como normal e certa são viradas
pelo avesso. E dá no que dá, volta a rebater Pé Vermelho:
- Ditaduras, genocícios, censura, fracassos econômicos,
distribuição de miséria para muitos e privilégios para poucos!
Leminski cofia os bigodões, suspira fundo e diz que,
infelizmente, tem de concordar, mas ao menos numa coisa o Che
foi muito efetivo:
- Sabia criar slogans como ninguém. Era um mestre do agit-
prop! Um, dois, três, muitos Vietnãs! Endurecer, mas sem perder
a ternura. Os dólares da Aliança para o Progresso não bastam
para custear nem as latrinas de que precisa a América Latina. Por
mais rosas que os poderosos matem, não conseguirão impedir a
primavera. Ser jovem e não ser revolucionário é uma contradição
genética! De derrota em derrota, até a vitória final!
- No caso dele, tornar-se mito foi a vitória, né...
Leminski concorda e fica pensando...

O último encontro dos dois será num restaurante em


Curitiba, pouco antes de Leminski se mudar para São Paulo. Já
está bem barrigudo, o que não é surpresa; surpresa será bater a
mão em sua coxa, numa daquelas risadas explosivas de
reencontro, e sentir que entre a pele e o osso quase não há mais
carne.
Leminski quer pedir vodka, Alice fala você prometeu, e ele
solta um suspiro fundo, lança a ela um olhar amoroso e fala tá
bom, cerveja então. Mas, quando ele vai ao sanitário, Pé-
Vermelho, indo atrás, vê que ele faz sinal ao garçom, que
escolado pega garrafa de vodka e bota dose dupla num copo atrás
do balcão. Leminski, num ponto cego para Alice, vira o copo em
duas goladas, solta seu suspiro de funda satisfação e vai urinar.
Os dois urinando juntos a olhar os azulejos em frente, Pé-
Vermelho conta que, no colégio, alguém escreveu com esmalte
nos azulejos: O futuro do Brasil está em tuas mãos – e Leminski
solta sua risada meio embutida. Pé-Vermelho então fala que
aqueles azulejos ali são brancos, como de hospital, de necrotério...
- ...e, cara, você vai morrer se continuar se matando assim.
Leminski fica balançando a cabeça a olhar os azulejos, daí
dá neles três pancadinhas como quem bate em madeira e diz bem,
se eu não sofrer já será bom. Depois encara sorrindo com o olhar
doce de quando bem embebido em vodka, e fala a frase com que
Pé Vermelho várias vezes sonhará:
- Mas não vou morrer de tanto me matar, não, eu vou morrer
de tanto viver!
Volta para o salão, antes parando no balcão para pagar a
vodka e, “pra não perder a viagem”, toma mais uma dose dupla. O
melhor da vodka, diz entredentes caminhando para a mesa, “além
de ser eslava”, é que não deixa cheiro, e senta ao lado de Alice
dando-lhe um beijo no pescoço, ela ri feliz. Pé-Vermelho se
promete não procurar mais o amigo de passagem por Curitiba
“para não ver aquele suicídio em vida”, como dirá em São Paulo a
Itamar Assumpção, que retrucará:
- Você vai perder muitas risadas...

Depois, folheando livros de poesia de Leminski, Pé


Vermelho perceberá que a fascinação de Leminski pelas ações
guerreiras suicidas é evidência da sua estratégia de, com a própria
morte, criar uma lenda. Como Kerouac, como Rimbaud, como
Mallarmé, como... Jesus! Em vez de mártir dos pobres e
oprimidos, mártir da arte, ritualizando em cirrose, dose a dose, a
dedicação suicida à sina da criação.
A luz sobre essa estratégia bate em Pé Vermelho ao ver, na
página 137 de Caprichos e Relaxos, o foto-poema de Leminski
vestido com quimono, prancheta de escrita nas mãos, acima do
trocadilho KAMI QUASE. Na página 136, outro poema é
sintomático: apagar-me / diluir-me / desmanchar-me / até que
depois / de mim / de nós / de tudo / não reste mais / que o charme.
Os médicos bem sabem que o alcoolismo é uma doença que
se pega bebendo, que se cultiva bebendo e que só se abandona
quase morrendo, quando o corpo e a família já sofreram tanto que
o sujeito encara o sacrifício da abstinência. As recaídas são muito
mais numerosas que a total recuperação do alcoólatra (sim,
medicamente correto seria escrever “alcoólicos”, focando como
doença e não como vício, mas Leminski decerto não gostaria
disso, rejeitando a idéia da doença, que não deixa opção, enquanto
o vício tem a dupla face consciente e conseqüente da delícia e da
destruição). E a recuperação, também na maior parte dos casos,
não se dá por tratamento médico, mas pela psicoterapia de grupo,
quase sempre através das ARAs, as associações de recuperação
dos alcoólatras.

Já pensou eu numa daquelas reuniões de regadas a


arrependimentos e remorsos, cara? Imagine o Polaco esperando
vez para falar, sem poder debater, sem poder soltar o verbo como
Deus nos deu, ora doce e ora irado, ora lírico e ora hilário, ora
no gênesis e ora no apocalipse? Talvez eu ganhasse uma
sobrevida que seria uma antemorte. Castro Alves talvez
escrevesse poeminhas fúteis se chegasse à meia idade. Álvares de
Azevedo então, na velhice, talvez escrevesse “ah, eu morri ontem,
minha irmã / quando deixei pra viver amanhã”. E Noel Rosa, se
também não tivesse morrido aos 24 depois de fazer 300 sambas,
quantos mais faria, três ou treze mil? O que a gente faria com
tanto samba?

Pé Vermelho, quando deixa de procurar o amigo, já


desenvolveu a escalada da cerveja para o vinho, mas rejeitando os
destilados e sua dura cobrança através de descontrole hoje e
ressaca amanhã. No entanto, sempre viu que Leminski tem uma
extraordinária capacidade de absorção do álcool sem maior
descontrole que o volume da voz e os jorros retóricos. Entretanto,
hospedando Leminski em São Paulo, verá lençóis com manchas
de sangue, vertido pelas hemorróidas do amigo, e aquilo ficará
como indício aberrante do suicídio lento (e prenúncio dos jorros
de hemorragia esofágica que anos depois será a causa mortis
oficial).
Fazer o que? Pé Vermelho pergunta a amigo psiquiatra,
especializado em drogados, que confirma: só quem pode fazer
pelo alcoólatra é ele mesmo, com a ajuda duma ARA. Mas quem
conseguiria convencer disso aquele cérebro elétrico?
O CEREBRELÉTRICO

Leminski falava alto, aumentando o volume da voz


conforme a quantidade de doses bebidas. Algum amigo ou
conhecido passava diante de um dos bares do centro ou ali no
entorno do Largo da Ordem, ouvia a voz estridente do Polaco,
entrava para ver/ouvir sua falação altissonante e candente, mesmo
que fosse para defender seu sempre original ponto de vista sobre
um grafite, uma quizila política ou uma questão artística.
- O Barão Vermelho não é mais o mesmo sem Cazuza!
Sua antenagem com o mundo pop, de mistura com sua
erudição cult, tornava suas falações ao mesmo tempo atraentes e
enigmáticas para os ouvintes, na alta voltagem entre fundos
goles e profundos suspiros, um espetáculo ambulante, não só
porque andava de um bar para outro quando estava no centro da
cidade, como também porque falava andando, em círculos a
representar as idas e voltas do pensamento, às vezes cofiando os
bigodões em pausas que sucediam e antecediam novos rompantes,
iniciados geralmente com advérbios – mas, porém, contudo,
embora, todavia, entretanto – antes do jorro de palavras, sempre
acompanhadas de gestos.
Essa performance retórica e gestual era temperada pelo
sotaque curitibano, que ele não disfarçava nem quando em São
Paulo ou Rio.
- Meu sotaque é minha marca fonêmica registrada,
informando de onde vim, geográfica e geneticamente, minha
identidade lingüística, que não renego, não disfarço e da qual me
orgulho! O Brasil é uma colcha de retalhos fonética, que
infelizmente as redes nacionais de televisão vão padronizando
mas, no que depender de mim, o curitibês vai continuar sendo o
sotaque mais gaúcho-polonês do Brasil!
Se alguém reclamava que falava alto, pedia perdão mas
emendava que, sendo um defeito, não tinha jeito:
- Senão seria como pedir a Nelson Gonçalves para não ser
gago e a Nelson Ned para não ser anão, ou querer que Elis
Regina não fosse baixinha, como Garrincha era um boboca
praticamente aleijado, ao passo que o Aleijadinho, bem, o próprio
nome já diz... E Roberto Carlos é perneta, Tim Maia obeso como
Churchill, que jamais conseguiria ficar duas horas com o braço
levantado no palanque diante das paradas militares, como ficava
o abstêmio e vegetariano Hitler, mas quem ganhou a guerra foi o
obeso bêbado em parceria com o cadeirante Roosevelt!
Essa capacidade de performatizar voz, gestos e idéias em
alta voltagem seria, na realidade, sua identidade social: quem
conhecia Leminski, não esquecia, e sabia que não conheceria mais
ninguém semelhante. Certa vez – Deus sabe quando e em qual
hotel de Curitiba – ele e Pé Vermelho ficam horas conversando
em alta voltagem, sobre literatura, música popular, política e arte
militar, enquanto Leminski esvazia as garrafinhas do frigobar,
também bicando uma garrafa de vodka que trouxe embutida no
casaco.
Já é no tempo em que as entidades convidantes de escritores,
para palestras ou eventos, não custeiam mais frigobar, mas Pé
Vermelho faz questão de oferecer as poucas garrafinhas de uísque
e as cervejas em lata do frigobar, que Leminski metodicamente
vai matando, enquanto Pé Vermelho toma vinho comprado num
mercado próximo, certos detalhes não se esquece (sim, “não se
esquece”, em vez da norma gramatical burra “não se esquecem”).
O cartunista e designer César Marquesini, que trabalhou em
agência de propaganda em Londrina com Pé Vermelho, a tudo
ouve bicando seu copo, até que Pé Vermelho se toca:
- Pô, César, desculpe, a gente aqui falando tanto e você aí só
ouvindo, quer falar?
César apenas balança a cabeça e sussurra:
- Cara, vocês não param de pensar! Diante disso, vou falar o
que?!
Leminski dá um golaço, solta um daqueles suspirões e
arremata:
- E nem tudo que a gente pensa, consegue expressar!

(Só depois de Leminski fazer sua estrategóica viagem é que


Pé Vermelho, ao ser convidado por Toninho Vaz para dar
depoimento à biografia O Bandido Que Sabia Latim, ficará
matutando sobre essa cena. Porque, se teve tantas conversas
elétricas com Lelé, é essa que vem à cabeça com intensa nitidez,
porque? E porque não lembra de nada que falaram naquela noite,
só lembra da cara espantada de César?
Por causa das vodkas, claro, em vez do vinho usual, a
bebida destilada passando um apagador nos neurônios. E a cara
espantada de César é expressão daquilo de que só então Pé
Vermelho percebe nitidamente: que só com Paulo Leminski
manteve conversas tão entretentes e intensas, o único intelectual
com quem podia conversar de ikebana a tae-kon-do, de haicai e
heráldica, de política à poesia, de arte da guerra à guerra dos egos
nas artes, o Leminski egocêntrico que, porém, esquecia de si ao
falar de algum ídolo, tomado de paixão feito moinho de braços e
bigodões a se agitar ao vento do entusiasmo pela diversidade, pela
genialidade, pela excentricidade, como também pela simplicidade,
para ele a expressão mais fina da beleza, como disse um dia com
olhos úmidos.
Pé Vermelho também percebe a dádiva de ter convivido e
conversado com um cérebro tão coração, sem a prudência típica
dos bem pensantes, tanto que podia misturar sacadas sísmicas
com disparates brilhantes e continuar impávido, tudo parecendo
loucamente coerente.
Então Pé Vermelho escreve o depoimento para Toninho, e
depois pensa ufa, Lelé, acho que enfim me livrei de pensar que
devo algo a você. Leminskengano.)

Leminski não portava um cérebro impositivo como (vamos


nos ater a seus ídolos) Trotski, nem também um cérebro
iluminado como Jesus, nem o auto-apreciativo cérebro de Cruz e
Sousa, o singelético cérebro de Bashô. Seu desempenho cerebral
parecia é mistura disso tudo, e ele simplesmente parecia se
divertir com a própria mente e suas misturanças.
Era espetáculo usual e inesquecível a alta voltagem de seu
cérebro, sempre pronto a encadear seqüências de raciocínios
desconcertantes e, no entanto, sempre lógicos, sustentados por
argumentação sólida embora sempre no viés do pensamento
convencional. A neurologia já demonstrou que o cérebro funciona
eletricamente, as milhões de circuitagens neuroniais
gastam/geram energia, como a física quântica demonstra que a
matéria também é, em análise atomíntima, energia em
transformação permanente, portanto dizer que Leminski tinha
cérebrelétrico é pleonasmo. Mas, como ele diria, pleonasmo
também se expressa, e quem o conhecia acabava concluindo que
ele tinha mesmo um cerebrelétrico.

Exemplo. Roda na internet vídeo em que ele, falando a


pequeno auditório, conta que a revista Quem, editada por
Rosirene Gemael em Curitiba nos anos 70, pediu para ele indicar
sua preferência na “área de poesia” naquele ano.
Com o pullover que veste naquele inverno inteiro, e sempre
com cigarro na mão, mesmo sem tempo de fumar entre os jorros
de palavras, ele diz que o destaque poético do ano é um grafite,
sim, um grafite.
- Vejo o grafite como aquelas expressões que vem do fundo
das coisas, do fundo das pessoas, e de repente adquirem aquela
consistência de um grito. O grafite está para o texto como um
grito está para a voz! O grafite é um berro!
E passa a historiar:
- O grafite surge quando, no Brasil, toda uma geração foi
amordaçada, estrangulada, e o grafite, além de expressão,
continha uma marginalidade nos anos 70, o crime de conspurcar
uma parede, uma propriedade privada que alguém pintou
direitinho e, de repente, alguém escreve lá buceta!
A câmera mostra o auditório constrangido, mais mulheres
que homens. Ele “conserta”:
- Esqueci de esclarecer que buscesta - é a pronúncia certa - é
um tipo de ônibus cheio de pobres metidos a besta, como boceta,
com o, é bolsinha de couro para guardar fumo, embora com feição
de órgão sexual feminino, daí também este, em algumas regiões
mais pornográficas de nosso santo país, ser conhecido como
boceta, que na fala popular tornou-se buceta mesmo e pronto.
Dá uma tragada no cigarro e prossegue sacando já outro
atalho para seu passeio dos pensamentos antes da conclufusão:
- Podemos pensar na cidade moderna como prisão!
Foucault mostra como escolas e prisões e empresas e instituições
são a seu modo prisões, mas estamos presos pelas próprias
cidades! Então o grafite surge com seu berro de liberdade, e a
parede é como a página em branco das antigas literaturas, página
agora aberta a todos os passantes! O grafite ancestral foi o
coração trespassado pela flecha, riscado a canivete no tronco da
árvore, mas parede é muito melhor!
Rabisca a giz no quadro-negro o grafite “destaque poético
do ano”: PQNA VOLTE! E apaixonadamente conta que um gênio
desconhecido pintou isso em dezenas de paredes e muros de
avenidas a caminho da rodoviária – e, também, em paredes e
muros visíveis para quem retorne da rodoviária para a cidade.
- Esse gênio ( e espero que, se for um de vocês, não se
identifique para não quebrar a magia) usou a cidade como livro,
as paredes e muros página a página, para verter seu amor na pele
da cidade, seu apelo para que volte a sua pequena que partiu, e, se
voltar, não erre o rumo de casa... E, aqui entre nós, devia ser uma
pequena e tanto, hem?
O auditório ri, ele solta fumaça e conclui:
- Esse foi para mim o poema do ano em Curitiba!
Em seguida, revela que também já fez grafites na vida, dois.
Um, quando trabalhava em agência de propaganda e, elétrico,
andava para lá e para cá criando os textos, o chefe implicava,
queria que ele trabalhasse sentado. Então grafitou o muro diante
da agência:
Sentado
não tem sentido
- O segundo grafite foi quando começaram a falar muito de
deficientes físicos, campanhas promovendo a inclusão e tal, então
resolvi colaborar com o seguinte:
O torto
tem direito!

Essa impressão elétrica de Leminski é, certamente,


devida também à paixão com que fala, defendendo ou
atacando isto ou aquilo, mas sempre com envolvimento
emocional, jamais apenas professorando ou diletantemente
discorrendo. Miguel Sanches Neto lembra da impactante
impressão que Leminski lhe causa na primeira vez em que
esteve próximo dele:
- Foi numa mesa-redonda na Biblioteca Pública do
Paraná, o assunto era tradução e ele dividia a mesa com
dois professores. A apresentação dos professores era aquela
leitura monocórdia de textos bem pensados e bem pesados.
Mas, quando Leminski começou a falar, iluminou-se aquele
ambiente escuro. Ele se expressava de uma maneira
absolutamente eufórica. Não importava muito o que ele
estava dizendo, mas a intensidade daquilo que dizia. Havia
um domínio total de palco, e ele dissertava sem seguir um
texto ou anotações, numa espontaneidade assustadora.

Como sempre também, o cérebrelétrico despejou uma


de suas espanteorrias, teorias feitas para você ficar entre o
espanto e o riso:

- De uma coisa não me esqueci de sua palestra. Ele


disse que havia aprendido alemão geneticamente. O pai, na
juventude, namorara uma alemã, incomunicável fora desse
idioma, e se vira obrigado a estudá-lo. Leminski dizia que,
como o pai manejara esse código com intenções amorosas,
ele tinha uma propensão genética para aprender a língua de
Goethe. Não importa a veracidade dessa história e a eficácia
desse método, e sim o fato de que para o poeta uma língua e
uma cultura só se entregam num estado de paixão.
Em longa entrevista ao jornalista curitibano Aramis
Millarch5, Leminski – ao som de pedras de gelo tilintando no
copo – conta que em evento no Othon Hotel, em São Paulo, “já
nervoso por viajar de avião”, depara com mesa redonda formal,
“quatro horas de gravação, com estenógrafas!”:

- E pensaram que eu ia ficar sentadinho que nem professor


da USP ou da PUC, respondendo perguntas bestas para respostas
óbvias. A certa altura, não agüentei mais e fui para o bar tomar
mais uma birita, mas uma sujeita da promoção foi lá, e me pegou
tão forte no braço que deixou marca, para me dizer que aquilo não
era um hapenning e eu devia voltar para a mesa. Voltei, mas bati
na mesa e falei olha, qualquer bar de Curitiba às nove da noite
tem um nível mais alto que esta mesa redonda!

Perguntado sobre as rusgas com Pé Vermelho, diz que são


coisas do passado, declara amoroso afeto e, depois, respondendo a
rodadas de perguntas, exibe sua faceta frasista ao molho de seu
colossal egocentrismo entremeado por ternura:

- Por parte da família de minha mãe, tem mais violonistas


por metro quadrado do que qualquer outra, inclusive sou primo do
Valtel Branco.

- Sempre fui o primeiro aluno da turma, sempre tive esse


vício.

5
Outubro de 1982.
- Alice é meu eu mulher.

- Meu pai era uma figura excepcional. Com ele aprendi a


admirar a arte militar. Se me pedirem os planos de qualquer
grande batalha, reproduzo aqui agora nesta mesa.

- Fui um piá de passar o dia inteiro no mato, lá no


Quilômetro 34, até minha mãe chamar no fim da tarde.

- De 70 a 78, treinei violão umas quatro horas por dia! A


música é o destino natural do ser humano. Minha utopia particular
é que todos os seres humanos serão músicos um dia. Este planeta
vai ser o mais musical do sistema solar, o resto é silêncio em
Marte, na Lua, em Vênus. Comecei a gostar de música com o
canto gregoriano no mosteiro, não existe nada mais bonito que
canto gregoriano, que não tem ritmo mas nada pode ser mais
melódico. Deve ser por isso que sou um grande melodista. Valeu,
Mudança de Estação, Se Houver Céu, Verdura, é tudo não só
letras mas também músicas minhas.

- Sou profundamente religioso, inclusive em certas crenças


que compartilho com a esquerda.

- O primeiro poeta que me marcou? Fagundes Varela. Mas


depois tantos: Drummond, Cabral, Vinicius, Cassiano Ricardo...
E a mulher! Pra mim, a descoberta da mulher foi também a
descoberta da poesia.
- Com o Catatau eu quis fazer uma arte sofisticada,
requintada, exigente, para poucas pessoas. Mas também a Teoria
da Relatividade, quando foi concebida por Einstein, foi entendida
só por meia dúzia de cientistas, e hoje é ensinada no colegial!
Não vamos subestimar a coisa difícil!

Sim, eu tenho um cérebro e ele trabalha, não como os


cérebros que batem ponto e só trabalham a serviço de alguma
coisa, o salário, a empresa, a cantada, a política, não, o meu
cérebro trabalha o tempo todo porque é, ué, um tipo de cérebro
como são as usinas, que não podem ser desligadas. Dizem os
neurexperts que o cérebro nunca para de funcionar, processando
milhares de pensamentos por dia, mesmo dormindo, enquanto
sonha desdobrando outra realidade, que nem por não ter peso
pode ser chamada de irreal, basta ver como se movem os olhos
da pessoa sonhando, espírito e carne tão transados como ar e
água, pois não é vapor dos oceanos e rios e orvalhos que faz as
nuvens que faz as chuvas que faz os riachos que fazem os rios que
fazem o mar?
Sim, eu tenho um cérebro que é como o planeta, só que o
planeta no tempo em que o mar ainda não era salgado, e fervia
esquentado pelo mar interior de lava, e assim formavam-se
nuvens tão imensas que chuvas torrenciais lavavam as terras que
afloravam, cobertas de salinas, que enxurraram-se para o mar,
que se salgou, enquanto florestas de árvores também imensas
cresciam nessas terras, com árvores muito mais grossas do que
as que conhecemos hoje, florestas tão gordas e altas e densas
que, quando foram soterradas por espasmos do planeta
espreguiçando ou bocejando, formaram o que chamamos de
poços de petróleo. Era um planeta muito mais animado, ainda
sem placas tectônicas, que só vieram depois do resfriamento,
como armadura rochosa para conter o calorão interior e permitir
o ajardinamento posterior, isso que chamamos de florestas e são
apenas os musgos sobre a rocha Terra, como o musgo parece sob
a lupa parece floresta em miniatura. A Terra há três ou quatro
bilhões de anos, assim é meu cérebro, não esse planetinha calmo
de hoje, que tanto nos espanta apenas com alguns terremotos. No
princípio, não era o Verbo, era o vérbero, o planeta querendo se
expressar, se moldar através das águas e do ar e do fogo, para
enfim fazer essa camadinha fina de terra de onde tiramos o
sustento, como eu tiro meu sustento do cérebro, produzindo
camadas de textos, entenda como quiser, só essa comparação
com a Terra parece à altura do meu cérebrego, finalmente uma
palavra tetroxítona.
O POLINGUISTA

Naquela mesma longa entrevista a Aramis Millarch,


Leminski fala sobre sua propalada poliglotice, começando com
enganosa modéstia:
- O tempo de uma vida é muito curto para se dominar uma
única língua. Vou morrer sem conhecer direito o Português. Mas
eu domino, assim de saber ler, escrever e falar, o Inglês... (pausa
longa), o Italiano, o Espanhol, né, que é apenas uma variante do
Português... (pausa; ouve-se o gelo), o Alemão... o Hebraico, o
Japonês... o Russo... e o Polonês não posso dizer que domino mas
sei a estrutura gramatical. E o Latim, claro, além do Grego. E
saco Tupi pra caralho!
Provavelmente um fragmento dessa fala é verdadeiro: “sei a
estrutura gramatical”. Pode-se avaliar quanto de verdade existe
em sua poliglotagem ouvindo o depoimento de Jaime Lerner num
disco institucional, gravado depois da pós-viagem de Leminski (e
que Pé Vermelho teve e descartou quando surgiram os CDs...): o
prefeito de Curitiba conta ter ficado muito impressionado com o
poeta, em seu primeiro encontro com ele no Passeio Público, ao
ouvir o poeta falar em Hebraico. Alice ri e emenda:
- E decerto, Jaime, aquela era uma das poucas frases que ele
sabia em Hebraico!
Lançar frases noutro idioma, de repente, é recurso de
Leminski que, intencionalmente ou não, lhe firma a fama de
poliglota. O poliglota de oito línguas certamente tinha uma
extraordinária habilidade para captar a estrutura funcional de um
idioma, além de uma memória que já espantava seus colegas de
mosteiro e sempre deslumbraria seus interlocutores ou suas
platéias. Não só lia dicionários como memorizava as palavras,
conseguindo assim munição para suas tiradas poliglotas. Mas
decerto não “dominava” tantas línguas, embora pudesse
perfeitamente traduzir delas haicais, poemas, trechos ou mesmo
obras inteiras, como fez, competentemente.

O conto Giacomo Joyce6, de James Joyce, começa assim:


Who? A pale face surrounded by heavy odorous furs.
Her movements are shy and nervous. She uses
quizzing-glasses. Yes: a brief syllabe. A brief laugh.
A brief beat of the eyelids.
Leminski traduz assim:
Quem? Um rosto pálido circundado por pesadas
peles perfumadas. Os movimentos dela são tímidos e
nervosos. Ela usa um monóculo.
6
Editora Brasiliense, 1985.
Sim: uma sílaba breve. Um riso breve. Um breve bater
de pálpebras.
Sai-se bem, embora diagramando doutra forma as frases, até
porque o idioma Português não é sintético como o Inglês. Mas o
importante é que o ritmo é mantido e as aliterações não são
descartadas, como em breve bater de pálpebras, onde as
repetições de b, r, e, a e p reproduzem foneticamente a imagem.
O segundo parágrafo:
Cobweb handwriting, traced long and fine with quiet
disdain and resignation: a young person of quality.
Leminski traduz:
Teia de aranha sua caligrafia, traçado longo e fino com
tranqüilo desdém e resignação: uma garota de
categoria.
O tradutor matuto ou automático traduziria jovem pessoa de
qualidade.
Vamos para o final:
Unreadiness. A bare apartment. Torbid daylight. A
long black piano: coffin of music. Poised on its edge a
woman´s hat, red-floweredm and umbrella, furled. Her
arms: a casque, gules, and blunt spear on a field,
sable.
Envoy: Love me, love my umbrella.
A tradução de Leminski:
Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta luz do dia.
Um grande piano preto: túmulo da música.
Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher,
com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado. Seu
brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre
um fundo, preto.
Dedicatória: Me ame, ame meu guarda-chuva.
A ressaltar, túmulo de música, que o tradutor automático
traduziria por caixão de música, perdendo a preciosa ressonância
dos três u e a seqüência de duas palavras proparoxítonas. Mas é
na nota de rodapé que o tradutor expressa sua competência:
É em linguagem heráldica, com signos mortos, que Joyce
fecha, melancolicamente, sua história de um amor impossível. A
partir do trocadilho “her arms”, ao mesmo tempo “seus braços”
e “seu brasão, suas armas”, Giacomo desenha um cômico brasão
de armas, carregado de significados sexuais: o capacete
vermelho, uma metáfora da glande, a lança de ponta quebrada,
um símbolo fálico evidente, o hieroglifo de um tesão para sempre
frustrado. No Inglês medieval da linguagem heráldica, “gules” é
a cor vermelha no esmalte dos brasões (em Português, “goles”),
e “sable”, o preto (embora eu desconfie que, aqui, Joyce joga
também com o Francês “sable”, “areia”, expressando assim a
esterilidade de seu “affair”. Com o polilingue Joyce, nunca se
“sable”...
Há que ressaltar, ainda, que o conto de Joyce é sobre um
amor defunto, um idílio morto-vivo, a paixão platônica de um
professor maduro por uma jovem aluna. No Catatau, o
protagonista canabisticamente “mata” a razão, a consciência, em
favor do delírio. No conto de Joyce, quem se apresenta morta é a
possibilidade de um amor “normal”, pois o professor parece amar
mais à retórica em torno do amor do que o próprio amor ou o ser
amado. Parece mais um indício do fascínio de Leminski por
variantes de morte em vida ou lenta imolação.

Bem, por falar em morte, ele também traduz Malone Morre


(Malone Dies), de Samuel Beckett, que começa com o
protagonista narrador se apresentando doentiamente, lembrando
muito a situação aguda vivida por Leminski em seus últimos
anos:
I shall soon be quite dead at last in spite of all. Perhaps
next month. Then it will be the month of April or of May. For the
year is still young, a thousand little signs tell me so. Perhaps I am
wrong, perhaps I shall survive Saint John the Baptist's Day and
even the Fourteenth of July, festival of freedom. Indeed I would
not put it past me to pant on to the Transfiguration, not to speak
of the Assumption. But I do not think so, I do not think I am wrong
in saying that these rejoicings will take place in my absence, this
year. I have that feeling, I have had it now for some days, and I
credit it. But in what does it differ from those that have abused me
ever since I was born? No, that is the kind of bait I do not rise to
any more, my need for prettiness is gone. I could die to-day, if I
wished, merely by making a little effort, if I could wish, if I could
make an effort. But it is just as well to let myself die, quietly,
without rushing things. Something must have changed. I will not
weigh upon the balance any more, one way or the other.
Para a edição brasileira7, Leminski traduz assim:
Logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. Talvez mês
que vem. Vai ser abril ou maio. O ano ainda é uma criança, mil
sinaizinhos me dizem. Quem sabe esteja errado, quem sabe
consigo chegar até o dia da festa de São João Batista ou até
mesmo o quatorze de julho, festa da liberdade. Qual o que, sou
bem capaz de durar até a Transfiguração, me conheço bem, ou
até a Assunção. Mas não acredito, não acho que estou errado em
dizer que estas festas vão ter que passar sem mim, este ano. Tive
essa sensação, faz dias que venho tendo, e acredito nela. Mas em
que difere daquelas que fazem de mim gato e sapato desde que
me conheço por gente? Não, esse é o tipo de armadilha em que
não caio mais, meu desejo de pitoresco passou. Podia morrer
hoje, se quisesse, apenas fazendo um pequeno esforço, se eu
pudesse querer, se eu pudesse fazer um esforço. Mas não me
custa nada me deixar morrer, quietinho, sem precipitar as coisas.
Alguma coisa deve ter mudado. Não vou forçar nenhum dos
pratos da balança, nem pra cá, nem pra lá.
Uma tradução literal da primeira frase seria logo vou estar
bem morto finalmente apesar de tudo. A reconstrução de
Leminski é graciosa sintática e ritmicamente: logo enfim vou estar
7
Editora Brasiliente, 1986.
bem morto apesar de tudo. (e ele mantém essa fidelidade rítmica
ao longo do livro). Em seguida, em vez de traduzir the year is still
young como o ano ainda está jovem, introduz uma brasileirice: o
ano ainda é uma criança.
Essa ladinice tão necessária a uma tradução gostosa fica
ainda mais explícita quando as sensações que, no original,
“abusam” do narrador, na tradução “fazem gato e sapato” dele.
Assim também a última frase do trecho poderia ser
traduzido como não vou mais mexer na balança, de um jeito ou
de outro, mas ele recria como não vou forçar nenhum dos pratos
da balança, nem pra cá, nem pra lá.
Em posfácio, Leminski informa que Beckett escreveu essa
novela-monólogo em Francês, que o próprio autor depois traduziu
para o Inglês, portanto temos, do mesmo punho, dois textos, e não
um só, da mesma obra. Malone Meurt e Malone Dies são duas
obras? Ou uma só? Afinal, Malone morre na literatura francesa
ou na inglesa? Esta tradução para o Português é uma tentativa
de resolver essa questão bizantina. Foi feita, simultaneamente, do
Inglês e do Francês. Enquanto eu traduzia tinha, à minha
esquerda, o texto francês, à direita, o texto inglês, primeiro caso
de uma bitradução simultânea.
Logo à página 6, indica em rodapé que determinada frase só
existe no texto em Francês, comprovando a “bitradução”.
Se não falasse Francês fluentemente, no entanto tinha
competência bastante para fazer uma distinção preciosa: Apesar
de todo o virtuosismo lingüístico de Beckett em Francês, há
alguma coisa de duro e mecânico no Francês de Malone Meurt.
Na tradução para o Inglês, as frases deslizam com joyciana
elegância, e sabor inconfundível, com freqüentes aliterações.
Faz apontamentos que revelam o artista além do tradutor
mecânico, indicando, por exemplo, o emprego quase intoxicante
de “modificadores”, do tipo “talvez”, “quem sabe”, “de certa
maneira”, “visto de um certo ângulo”, “se bem me lembro”,
além do uso quase intensivo de adjetivos como “certo”,
“alguns”, “qualquer”, índices de indefinição,
“indeterminativos”. Isso confere ao texto de Malone uma espécie
de aura de irrealidade, de relatividade extrema, de coisa fora de
foco, pré-pós-seres”.

O romance Pergunte ao Pó8, de John Fante, é outra obra


dedicada a ironicamente exaltar o fracasso e o vazio, encerrando
com suicídio da amada do protagonista, É narrado na primeira
pessoa, foco narrativo também de Leminski no Catatau e em
Agora É Que São Elas. Começa assim:
One night I was sitting on the bed in my hotel room on
Bunker Hill, down in the very middle of Los Angeles. It was
an important night in my life, because I had to make a
decision about the hotel. Either I paid up or I got out. That
was what the note said, the note the landlady had put
8
Editora Brasileira, 1985.
under my door. A great problem, deserving acute
attention. I solved it by turning out the lights and going to
bed.
A escrita de Fante não tem nem procura intensa
inventividade, ao contrário, é de uma coloquialidade escorreita,
escrevendo como quem fala simplesmente, e Leminski cumpre
disciplinadamente a tarefa de manter essa espontaneidade:
Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de
hotel em Bunker Hill, bem lá no centro de Los Angeles. Era uma
noite importante na minha vida porque eu tinha que tomar uma
decisão sobre o hotel. Ou eu pagava ou caía fora: era isso que a
nota dizia, a nota que a proprietária tinha enfiado por baixo da
minha porta. Um grande problema, que merecia muita atenção.
Resolvi o problema apagando a luz e indo pra cama.
O tradutor estava, entretanto, preparado para o que desse e
viesse, como uma frase bimbalhosamente inventiva: The haven of
the booboisie, of boobs and bounders and all brummagem
mountebanks”, que Leminski explica em rodapé e traduz assim: A
igreja tem que acabar, é o refúgio da burroguesia, dos bobocas e
bitolads e todos os saltimbancos de quinquilharias.
Em seguida, buildings craked like crushed crackers vira
prédios se esborrachavam que nem bolachas se esboroando, ou
seja: não foi um tradutor literal de significados, mas um artífice
também atento aos significantes, consciente da encarnagem entre
forma e conteúdo.
Mais uma vez, a evidência de que Leminski entrava no
espírito das obras que traduzia, indo ao cerne, é sua introdução
Double “John” Fantasy, óbvia referência ao disco Double
Fantasy que John Lennon e Yoko9 lançaram em 1980. Ele
explica: Retrato do artista quando jovem e tolo o bastante para se
julgar o melhor escritor do mundo, Ask The Dust abre um
movimento complexo no interior do seu processo. Afinal, é a
história das desventuras de alguém querendo ser um grande
escritor: um relato sobre o próprio escrever, desvelando seu
fazimento. Ao escrever Ask The Dust, esse alguém o consegue: é
uma double fantasy, uma dúplice ficção.
Na introdução ainda, ao descrever o protagonista, Leminski
parece estar apontando para si mesmo: Um pilantra, em suma.
Um marginal, misto de cínico e estóico. O estoicismo foi escola
filosófica que pregava a serena indiferença à dor, aos desastres e
sofrimentos, como Leminski em vida e morte, como veremos
adiante. O estoicismo começou na Grécia, migrou para Roma e é
para o Latim que vamos.

Satyricon10, de Petrônio, traz na capa a indicação de


tradução de Paulo Leminski diretamente do Latim. E, no posfácio
Latim com gosto de vinho tinto, o tradutor informa que o autor é
mais um da sua galeria de nobres suicidas, aqueles que se matam

9
Leminski viveu com Alice, acabou a vida com Berenice Mendes, com quem viveu dois anos, e durante
quase um ano viveu no apê da cantora Fortuna em São Paulo, evidenciando a necessidade de contar
sempre com uma mulher amante ou mãe, também uma “dupla fantasia”.
10
Editora Brasiliense, 1987.
por uma causa ou, se forçados a isso, com altivez: Oficialmente,
consta como sendo o romance escrito por Caius Petronius,
cortesão e íntimo do imperador Nero, que este condenou ao
suicídio, acusado de conspirador.
Se não traduziu realmente do Latim, ou se usou alguma
tradução portuguesa como guia auxiliar, ninguém saberá, pois
Leminski não indica a fonte latina do texto. Mas faz
apontamentos que pressupõem familiaridade com a obra: Quem
nunca leu Petrônio não conhece as delícias do Latim, o sumo, o
suco, o tutano, o perfume desse Latim ágil, vivo, vulgar,
malandro, espertíssimo, único.
O Latim que aprendemos nas escolas (quando havia Latim)
era aquela coisa pesada, retórica, altamente artificial, dos
chamados “grandes clássicos”, Cícero, Virgílio, César, Ovídio,
Horádio, Tito Lívio. Nesse quadro, Petrônio discrepa. Nas falas
dos personagens do fabuloso banquete de Trimalcião, vemos
desfilar um Latim vivo, direto o raro do reles, enfim, diante de
nós. (O raro do reles: até aqui, traduzindo Latim, Leminski
transita entre o erudito e o popular.)
E dá uma dica reveladora de uma tradução competente
porque transcriadora: A concisão extrema do Latim obriga a
alongar certas frases para que não se tornem incompreensíveis
ao leitor atual. Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair
os dois, único modo de não trair ninguém.
E chegamos a outro suicida, este cometendo um suicídio
ritual e público, Yukio Mishima, o escritor japonês que, em 1970,
praticou haraquiri no Quartel das Forças Armadas de Tóquio,
como protesto contra a ocidentalização e a decadência cultural do
Japão, principalmente o abandono dos códigos de honra. Sol e
Aço11 é o último livro de Mishima, misto de ensaio e memória,
manifesto e síntese de seu pensamento.
A tradução do Japonês teve assistência técnica de Darci
Yasuko Kusano e Elza Taeko Dói, evidência de que Leminski não
“dominava” o Japonês como dizia. Apontamentos no posfácio,
como sempre brilhante, parecem falar não só de Mishima mas do
próprio Leminski: Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima
quis se fazer todo, corpo, história e vida, uma obra de arte,
entidade além e acima da mudança, da corrupção e da perda de
sentido, condição natural de todos os seres deste mundo sub-
lunar.
Engana-se quem imaginar Mishima como pacato escriba,
todo dedicado a seus livros e seu trabalho literário, nos moldes
erasmianos do scholar ocidental, último descendente do monge
beneditino, a meio caminho entre o céu e o texto, Além e Signo.
Cultor das artes marciais, Mishima viveu entre o sol e o aço.
Praticava karatê e a esgrima Kendô (da qual era faixa preta
quinto grau). Na procura do máximo de seu limite físico, fazia
halteres. Narcisista, aparece em suas fotografias mais

11
Editora Brasiliente, 1985. Pela seqüência das traduções, vê-se que Leminski, em três anos traduziu
cinco livros, num ativismo impressionante para quem já devia sentir os efeitos da cirrose.
conhecidas, quase nu, músculos à flor da pele, um super-homem
pronto para a batalha final consigo mesmo. Que ele perdeu-
ganhou.
Quando o intelectual ocidental parte para a ação, sua
sereia, vai normalmente para a política, esse simulacro da ação,
que substitui a verdadeira ação, que é a guerra, pelos vai-e-vens
das conversações e negociações, próprias da classe dos
comerciantes. Mishima era um “primitivo”. Um primitivo
sofisticadíssimo, herdeiro de uma verdadeira civilização, alguma
coisa pela qual vale a pena morrer.
Antes de condenar Mishima, vamos perguntar: e nós? Será
que nós temos alguma coisa pela qual valha a pena morrer?
A autoimolação, para ele, era uma obra de arte, algo a ser
preparado, saboreado por antecipação, a chave de ouro de uma
vida, um clímax. Ou, para falar em jargão freudiano, um
orgasmo de Tanatos.
E logo Leminski acrescenta/supera: Sol e Aço é uma
afirmação de vida. De uma vida tão tensa e tão forte que só o
Fim poderia ser o Significado. Guevaras, Michimas: mortos,
somos invencíveis. (Não escreve são, mas, sim, somos... Leminski
vivia e morria outras vidas nas traduções e biografias.)
O POLIVIVENTE

Depois de Toda Poesia, Alice, Áurea e Estrela cuidaram de


reeditar as quatro biografias escritas por Leminski, do jeito que
ele idealizou e não chegou a ver em vida, reunidas num só volume
com título VIDA, cada letra representando uma biografia - de
Bashô, de Cruz e Souza, de Jesus e de Trotsky. A editora pede a
Pé Vermelho autorização para republicar um pequeno conto seu
no final da biografia Jesus, e instrução de como indicar a autoria.
A resposta é óbvia:
- Indiquem a autoria do mesmo jeitinho que Leminski
colocou na primeira edição.
Desligando o telefone, Pé Vermelho pega Jesus, folheia e
revê que a bibliografia é mínima, Leminski se baseou
principalmente nos Evangelhos, que traduziu “diretamente do
original grego, tendo diante dos olhos a esplêndida versão latina
de Jerônimo, o maior dos tradutores da Antiguidade, que, na
Vulgata, passou toda a Bíblia do hebraico e do grego para o
Latim”.
Depois de indicar como fonte para a biografia apenas mais
Lês Manuscrits du Desert de Judá, por Geza Vermes, não deixa
de dar vazão à vertente pop: “Isto sem falar em quadros,
esculturas, vitrais, composições de música erudita, filmes, óperas-
rock”. Pé Vermelho procura VIDA, editado pela Sulina, e passa a
ler as outras três biografias além de Jesus, a única que leu antes
disso.

Anos 80. Sem saber que Leminski está escrevendo Jesus, Pé


Vermelho telefona do hotel, Leminski diz venha, e, na casa do
Pilarzinho, Alice está saindo com o fusca verde que só ela dirige,
ele não sabe dirigir.
- Temos de deixar algo para as mulheres fazerem – brinca
Leminski, abrindo a garrafa de vodka trazida na mochila por Pé
Vermelho, que abre um vinho.
A louça está lavada na pia e, sobre a mesa, repousa um pão
que Leminski belisca, diz que é ordem de Alice, não beber sem
comer – e entorna a primeira vodka, depois pergunta como
sempre que se encontram:
- E aí, cara, lendo o que?
- Ando lendo o segundo escritor que é lido em todo o mundo
e nunca escreveu livro algum.
Leminski até suspende o gargalo da garrafa que enche o
copo.
- Repete.
Pé Vermelho repete o que falou e acrescenta que o primeiro
escritor lido em todo o mundo, apesar de nunca ter escrito uma
linha, até porque era analfabeto, é Esopo. Leminski concorda,
Esopo foi escravo grego que nem sabia escrever, viveu contando
suas fábulas que, depois de morto, por outros foram escritas e
assim perpetuadas, mas...
- ... e o segundo escritor que nunca escreveu livro é...?
- Esse pão e esse vinho lembram muito ele. Jesus.
Leminski baixa à mesa ao copo que ia levando à boca.
- Je-sus?! O chamado Jesus Cristo?! Você também anda
lendo Jesus?
- Não propriamente ando lendo, leio sentado.
Leminski ri, entorna, volta a botar dois dedos de vodka no
copo, sua medida usual, cofiando os bigodões como se com isso
passasse os pensamentos a limpo.
- Mas porque você está lendo Jesus? Vai se converter e
começar a bater no peito e gritar aleluia?
Pé Vermelho conta que, na verdade, está relendo. Aos onze,
leu Monteiro Lobato e José de Alencar inteiros, em livros de capa
dura que a mãe comprara de um dos vendedores que então batiam
palmas de casa em casa, com mala cheia de livros amostras das
coleções. E então a tia-avó Mazica foi passar seus últimos meses
na casa da sobrinha, levando todos seus pertences, que eram uma
mala com roupas e uma Bíblia, aquele livro que muitas vezes já
passara pelos olhos do menino como coelho fugidio, sempre
voltando a se esconder no criado-mudo da mãe, como talismã
sagrado, negro tijolo de papel.
O rapazola passou a levar toda manhã, para a tia-avó, queijo
branco espetado em garfo e assado na chama do fogão até
amolecer e crestar nas beiradas. A velha mineira pegava o garfo,
quase cega, apalpava o pedaço ainda quente de queijo, suspirava
de gozo e comia feliz feito menina, com as mordidinhas possíveis
para sua boca quase sem dentes. Aí o rapazola, que estava na fase
de espremer espinhas para ver sangue, e cuspir na sopa para
respingar na família, embora capaz de chorar vendo filmes de
Mazzaropi, perguntou gritando no ouvido:
- Tia Mazica, a senhora já leu muito essa Bíblia?
Ela ouviu de boca cheia, mascou, engoliu balançando a
cabeça até falar:
- Não, menino, a tia não sabe ler. Não quer ler pra mim?
Pego assim no contrapé, o rapazola pegou o tijolo negro,
folheou para lá e para cá e resolveu que lógico seria começar pelo
começo. O Gênesis, o mais poético e ilógico dos livros da Bíblia,
nisso disputando apenas com o último, o Apocalipse. A leitura
tinha de ser ao pé do ouvido da tia-avó, de onde saíam grandes
pelos até então de insuspeitável existência. O rapazola puxou o
banquinho para junto da cadeirona de vime onde ela se ajeitava
em almofadas, e começou a ler. Depois de sabe Deus quantos
versículos, tia Mazica ressonava e ele continuava a ler encantado
pelo tom poético, pelo ritmo envolvente das frases, pela sucessão
cinematográfica de imagens e...
- ...até porque não tinha outro livro à mão, já tinha dado
cabo das coleções de José de Alencar e Monteiro Lobato, li a
Bíblia durante vários meses, cara, sem parar!
Lia em diagonal os livros mais burocráticos do Antigo
Testamento, repletos de genealogias e aconselhamentos e castigos
e temores, mas voltando para reler os livros mais encantadores,
principalmente o Novo Evangelho com suas parábolas. Até levava
ao colégio para ler no recreio.
- Deram de me chamar de padreco. O apelido não pegou
porque não liguei, como outro apelido que me deram,
muçulmano, porque parecia árabe.
Isso devia ser em parte verdadeiro, se o avô materno era
Nóbrega, espanhol amorenado como os tantos filhos que foram
feitos à força pelos árabes nas espanholas, no tempo em que
dominaram a Espanha...
- Mas o que importa agora é que, relendo as parábolas de
Jesus, não te parecem literatura árabe?
Leminski sorri, emborca o copo com expressão vitoriosa e
levanta para falar andando:
- Claro! Jesus era árabe! Semita! Israel é uma das sete tribos
do Oriente Médio, antes até do Antigo Testamento!
(Hoje, Polaco, gostaria de ver tua cara novamente triunfante
ao saber que os exames de DNA confirmam: os genomas de
judeus e árabes são irmãos. Brigam só porque, como na parábola
do filho pródigo, um tem inveja do outro...)
- Mas – Leminski se intriga – porque você está relendo os
Evangelhos?
Pé Vermelho conta que descasou, deixando dois filhos com
a ex-mulher, e foi morar num apartamento alugado. Ajeitou a
mudança, escrivaninha, máquina de escrever, alguns livros
(continuando o costume de doar a maioria dos livros para a
biblioteca pública em toda mudança), e as caixas com panelas e
utensílios. Como tinha enchido de temperos e talheres uma panela
de pressão, cuja tampa não achava na mudança apressada, tampou
a panela com o mais mole dos livros, o único que podia funcionar
como tampa improvisada, a Bíblia.
No apartamento, botou arroz integral para cozinhar e foi à
área de serviço arrumar umas coisas, deu com a Bíblia ali no piso,
pegou, abriu no Novo Testamento, pensando: bem, combina com
vida nova... E, novamente envolvido pelo velho livro, só parou de
ler quando sentiu cheiro de arroz queimado.
- As parábolas dele são... são...
- É o melhor contador de causos da literatura mundial! –
explode Leminski – Ele mistura a técnica sino-japonesa dos
coans, as historietas impactantes de iluminação espiritual, com a
tradição greco-romana das fábulas e dos epigramas! Pois isto é
um epigrama: o sábado foi feito para o homem e não o homem
para o sábado! E a parábola do semeador não é senão uma fábula
brilhante, com a original variante de usar como personagens não
animais, como Esopo fazia, mas três sementes!
Estão no deque anexo à sala, na frente da casa, e Leminski
só precisa pular para o gramado mal cuidado, onde agacha e fica
mexendo na grama como se rabiscando, enquanto murmura:
- E quando lhe pedem então que condene ou absolva a
adúltera que estava sendo apedrejada? Se condenar, ele estará
renegando sua própria crença no perdão. Se absolver, estará indo
contra os velhos profetas, as Escrituras, os bons costumes, estará
pregando a dissolução da família! Então ele agacha, rabiscando a
areia, ganhando tempo para pensar e, ao mesmo tempo, criando
suspense para outro de seus epigramas, depois de levantar com
uma pedra na mão: quem não tiver pecado, atire a primeira
pedra!
Repassam várias parábolas, inflamados de entusiasmo,
Leminski diz que “entusiasmo” vem do Grego, “estar cheio do
sopro de Deus”. E decide:
- Vou dedicar a biografia Jesus a você, cara!
O livro sairá com a dedicatória: Para Domingos Pellegrini,
que, de repente, apareceu falando de. No final, trará uma
historieta de Pé Vermelho sobre Jesus menino, com o título
Fragmento de um Apócrifo, o Evangelho da Infância conhecido
como Evangelho Segundo Domingos. Décadas depois, Pé
Vermelho desconfia que deve ter mostrado a Leminski algum
trecho do livro juvenil Andando com Jesus, pois não lembra de
como isso foi parar nas mãos do amigo. Mas lembra que, noutro
encontro, chegou com uma novidade:
- Li A Ressurreição de Jesus Cristo, do Og Mandino e...
(Leminski franziu a cara com nojo). Larga de ser preconceituoso!
O cara tem umas teses bem tesudas! Que Jesus deve ter sido
educado no Templo, pelos sacerdotes, depois de ter discutido com
eles quando menino. Pois, depois da lacuna de duas décadas,
aparece homem pronto para pregar seu credo inovador, tão
inovador que se revolta contra o comércio em redor do Templo.
Leminski começa a se interessar.
- As barracas ali eram autorizadas pelos sacerdotes,
mediante pagamento de taxas, claro, aluguel daqueles espaços
sagrados, que passavam a ser consagrados... ao lucro, assim
custeando as despesas do Templo! Ali vendiam aves, carneiros e
outros animais para sacrifício a Deus! Para uma freguesia que
vinha de toda a Judéia! Aquilo devia render uma nota, cara, e um
dia aparece um cara expulsando os vendilhões a relhadas e
pontapés! Porque a guarda do Templo, que era judaica, autorizada
pelos romanos conforme a Pax Romana, não prendeu aquele
sujeito?
Leminski mata a charada:
- Porque conheciam Jesus, respeitavam Jesus...
- ...que foi criado e educado no Templo pelos sacerdotes
para ser mais um deles, um rabi, mas preferiu pregar a céu aberto
com discípulos escolhidos entre trabalhadores braçais! O único
que não era braçal, era um fiscal, foi quem o traiu, Judas!
Leminski se irrita:
- Meu livro já está quase saindo, cara, senão eu colocava
isso!
(Pois é, cara, se você não tivesse ido passear de vez,
imagino a cara que faria sabendo das revelações em O Evangelho
Segundo Jesus, do lingüista Stephen Mitchell12, que li depois
ainda: baseando-se em análises estilísticas dos “originais” gregos
da Bíblia, ele indica a grande interferência da Igreja e seus
escribas nos Evangelhos. Como exemplos, a fuga para o Egito, a
estrela de Belém, os três reis magos... é tudo ficção para tornar
aceitável que tamanho prodígio espiritual, Jesus, nascesse de uma
mãe solteira naquele tempo moralista e naquela cultura machista
como todas então. Aliás, o anjo anunciador da gravidez virgem de
Maria também é ficção. E também José, o ancião cuja vara flore...
Jesus não fazia trocadilhos, mas diz a Pedro: Pedro, tu és
pedra (“petrus” é pedra e Pedro em Latim) e sobre ti erguerei
minha igreja. Ele, que pregava a céu aberto! Suas andanças, no
chamado “ano da popularidade”, formavam semicírculos
concêntricos a partir do Lago de Cafarnaum. Quando passou a ser
perseguido, suas andanças são em linhas retas ou em curvas
desconcêntricas13. E em nenhum ponto onde pousou ou por onde
passou ele quis erguer igreja, sempre pregando a céu aberto.
Aquele trocadilho Pedro/pedra decerto foi colocado em sua boca,
a mando do próprio Pedro ou outro interessado em criar uma
igreja e sua hierarquia...

12
Imago Editora, 1994.
13
Mapas finais da Bíblia Vida Nova, S. R. Edições Vida Nova, Sociedade Bíblica do Brasil
E que cara faria você sabendo que em 2013 Jesus é visto
como um rebelde zelote, a facção judaica que pregava a luta
armada contra os romanos? Pois não foi ele quem falou eu não
vim trazer a paz, mas a espada? É o que afirma o iraniano Reza
Aslan, no best-seller Zelote: a vida e os tempos de Jesus de
Nazaré14.
Certo mesmo é que, além de livro mais lido de todos os
tempos, como apregoam os pastores, a Bíblia é o mais adulterado.
Como você disse naquele dia no gramado praguejado de tua casa
de madeira no Pilarzinho:
- Na parábola da adúltera, o final foi criado pela Igreja,
quando ele diz à mulher salva do apedrejamento: - Vai, e
arrepende-te!... Isso parece certinho demais, bom-moço demais
para ser Jesus...
Pois é, Polaco, você decerto estava certo.)

Quando Leminski conta que escreverá mais três biografias


além da de Jesus, e que um dia as reunirá num só volume com o
título VIDA, Pé Vermelho pergunta porque deu de se interessar
por biografias. Leminski diz que, antes de tudo, é porque sempre
gostou de biografias, e também porque a editora paga
adiantamento e é um jeito de ir vivendo de literatura.
- Além disso, com isso posso viver outras vidas, não é?
Polivivente!
14
Revista Época, 19 de agosto de 2013, págs. 50-52; o livro será lançado no Brasil em 2014.
Lendo VIDA, porém, Pé Vermelho se decepciona com a
“biografia” de Cruz e Sousa, tão preciosamente brilhante em
algumas passagens quanto lacunante. O biógrafo corta ou omite
muito mais do que conta, inclusive apenas se referindo de
passagem às mortes do poeta e sua família por penúria e
tuberculose, num explícito desdém a esses “detalhes”, preferindo
focar sua poesia. Acaba sendo mais um ensaio que uma biografia,
mesmo para o padrão preciso/agudo de Leminski.
Parece tributo a seu sangue negro, mas também reúne
algumas sacadas brilhantes sobre a poesia do ferroviário e sobre o
simbolismo. Já a “biografia” de Bashô, mesmo também
merecendo as aspas, é bem mais densa, embora também muito
menos biografia que ensaio sobre o haicai e o pensamento zen. Os
momentos brilhantes deixam pensar quanto Leminski deve ter
lido para julgar e condensar contradições assim:
O samurai é o braço armado da classe dominante, a
nobreza feudal do Japão medieval (a Idade Média japonesa só
terminou em 1853, com a abertura “Madame Butterfly” dos
portos do Japão, depois de um eloqüente bombardeio da parte da
frota norte-americana do Comodoro Perry).
Grupo altamente especializado na sua função social, como
os escribas do antigo Egito, brâmanes da Índia, jesuítas,
bolcheviques da Revolução de Outubro, os samurais se pareciam
muito com as ordens combatentes da Idade Média européia
(Templários, Cavaleiros de Malta, Ordem dos Cavaleiros
Teutônicos).
Vai buscar na Grécia paralelo com o pensamento zen
oriental:
O livro zen mais conhecido no Ocidente, “This Is It”, de
Alan Watts, ex-pastor protestante convertido ao budismo, só pode
ser traduzido como “É Isso Aí”.
Em termos da semiótica de Pierce, a experiência zen seria,
eu acho, a tentativa de recuperar a Primeiridade, o ícone, a
experiência pura, antes das palavras, uma experiência artística, a
arte sendo, sempre, a tentativa de transformar uma Terceiridade,
símbolos, palavras, conceitos, em Primeiridade (percepção,
formas físicas, cores, materialidades).
A transverbalidade da experiência zen evidencia-se no
“satôri”, a iluminação, pessoal e intransferível, impossível de
programar, prever ou administrar (o desejo de atingir a
iluminação, inclusive, dizem, é o maior obstáculo para atingi-la).
Houve na Antiguidade, porém, um paralelo ocidental à
experiência zen: o “cinismo” grego. “A virtude está nos atos e
não necessita de discursos nem ciências numerosas”, este o
princípio de Antístenes, o pai dos cínicos.
Vagueando pela floresta de informações que vai plantando,
Leminski perde de vista a árvore a ser focada, Bashô. Mas seu
método, já no Catatau, como em muitos poemas e nos ensaios, é
mesmo o desvio, o viés para depois a surpresa, o anexo maior
que o principal, como usar Baschô para tratar do zen em
pinceladas sintéticas, às vezes preciosas. Acaba funcionando
como introdução ao pensamento oriental. E, na página de
indicações para leitura, vem com essa leminskice ingrediente de
seu bolo automítico:
Quem quiser entender de zen, matricule-se na mais
próxima academia de artes marciais.

Na também “biografia” de Trotski, o (anti)método é o


mesmo, usar o homem como pretexto para falar de algo maior, a
Revolução Russa ou mesmo as revoluções em geral, pois
Leminski extrai da experiência soviética lições perenes e
universais, “historiador que escreve com a pena embebida no
tinteiro da crítica”, como disse a Pé Vermelho num de seus
rompantes definitórios.
Começa indicando que a história da Rússia serve ao Brasil
como a luva serve à mão ou vice-versa. É só trocar os mongóis
fundadores da Rússia pelos portugueses, e trocar também Pedro,
O Grande, por D. Pedro I e II. E desfia frases que parecem feitas
também não só para a Rússia como para o Brasil:
A tecnoburocracia soviética de hoje (ele escreveu isso
quando a URSS ainda existia, não teve a graça de ver o
desmoronamento da Cortina de Ferro) teve por quem puxar.
Desde Pedro, a Rússia é o paraíso dos burocratas.
Expõe os rígidos esteios da ideologia marxista-leninista, que
apregoa flexibilidade dialética mas, na prática, é rígida e
centralizadora, a começar pela negação da religiosidade, tão cara
às massas proletárias que os revolucionários queriam salvar da
miséria (sem ver que, além da miséria física, há a miséria moral,
da corrupção que o regime soviético tanto praticou, e a miséria
espiritual):
Curiosamente, o ateísmo, essa postura cósmico-ideológica
da burguesia iluminista (Beyle, Holbach, d´Alembert, Diderot,
seus porta-vozes teóricos na Françadas “Luzes”), foi
incorporado ao programa marxista, que se pretendeu
representar, no plano dos conceitos, o universo das classes
trabalhadoras, exatamente a classe explorada pelo capital, essa
abstração, e pela burguesia, sua detentora: Marx, um burguês
branco do século XIX.
Se santos são aqueles que mantém comunicação
privilegiada com alguma transcendência, Deus ou deuses, com a
morte destes, não há mais santos. Só que tem um problema. É que
há santos. E sempre haverá. Santos artistas, santos poetas, santos
atletas, santos marxistas, inclusive.
Essa comparação entre religião e revolução não era inédita e
seria sacada por outros muitas vezes, mas Leminski a faz como
respeitosa constatação. Como também ao indicar a origem
burguesa dos líderes proletários, coisa tão inconveniente para o
simetrismo da ideologia:
O que importa guardar dos primórdios de Lev Davidovitch
(seu nome real) é que Trotski teve uma infância e adolescência
sem penúria, como, alias, Lênin, filho de um funcionário público,
de alguma graduação na máquina burocrática. Diverso é o caso
de Stalin, filho de um pobre sapateiro do Cáucaso, o único dos
chefes da Revolução de Outubro a ter origens realmente
populares.
Como em Lênin,outro bem-nascido (como Mao e Fidel), em
Trotski a revolução vai ser uma paixão intelectual, uma certeza
lógica, uma convicção feita de ferro em brasa. Uma das cruéis
ironias da vida: só os bem alimentados podem lutar pelos
famintos. Os muito miseráveis nem sequer se revoltam: deixam-se
morrer à míngua. É preciso muita proteína para fazer uma
revolução.

A independência intelectual ou desenquadramento


ideológico de Leminski se evidenciam ao, primeiro, elogiar a
Revolução Russa e, depois, criticar o regime soviético que dela
resultou:
Espontaneamente, de baixo para cima, de dentro para fora,
a democracia popular foi inventada pela massa obreira (no
período pré-revolucionário, quando, deposto o Czar, um regime
parlamentarista vigorou – ou se debateu, tumultuado pelos
bolcheviques – durante quase um ano, enquanto as massas se
organizavam). A fábrica de cinco mil operários elege seu soviet,
quarenta representantes seus, que falam em seu nome,
diretamente ligados à reivindicação de seus problemas, os mais
lúcidos, os mais corajosos, os mais bem falantes, os de maior
senso crítico.
O nascimento dos soviets russos é um dos mais belos
espetáculos da História humana, esse rosário de massacres e
baixezas, opressões e tiranias.
Os soviets, orientados pelo Partido Comunista, optariam por
renegar o regime parlamentar, com a burguesia no poder e
instituições derivadas das revoluções inglesa e francesa, para
optar por uma coisa nova, radicalmente nova, misto de
despotismo asiático com democracia de massas, rígido
centralismo estatal com socialização dos meios de produção, uma
coisa que nunca tinha existido, essa coisa que, valha o que valha
a expressão, hoje chamamos de comunismo. Alguma coisa entre a
velha aldeia e o Império Bizantino... mas com eletricidade, ensino
e medicina gratuitos, alfabetização geral e democratização das
oportunidades. Mas um mundo ideologicamente fechado, como a
Igreja Ortodoxa, onde só há lugar para uma verdade, um só
jornal, um só projeto nacional.
O regime soviético, resultante da revolução, seria uma
imensa traição aos próprios bolcheviques, que não estavam
lutando apenas por cargos num determinado regime. Todos
sabiam que estavam dando a vida por um novo mundo, pela
instauração de uma ordem de coisas como nunca tinha havido
antes no mundo.
Século depois, vemos que a utopia comunista, apesar de
fracassada economicamente, desmascarada socialmente e
miserável também culturalmente, retoricamente é tão bonita e
envolvente que ainda move jovens (como também sustenta
veteranos carreiristas), em todo o mundo. Isso só é possível
porque os doutrinados cegam-se para todo fato feio,
inconveniente, que desminta ou afronte a beleza da ideologia,
como a desumanidade cruel da repressão policial nos regimes
ditos comunistas. Leminski enfia o dedo na ferida:
Lênin chegou a exaltar a sublimidade da repressão policial
revolucionária, declarando que era uma honra para um
bolchevique colaborar com a Tcheka, a polícia política do regime
soviético. E o próprio Trotski não é poupado pelo biógrafo
admirador de seus méritos mas crítico de seus defeitos:
Kronstadt era uma fortaleza naval russa, no mar da
Finlândia, perto de Petrogrado. Seus marinheiros estiveram entre
os primeiros bolcheviques, combateram pela Revolução e
mantiveram sempre alto espírito de luta. Sobretudo, adoravam
Trostki, que chegou a ser levado em triunfo por eles. Quando
essa importante guarnição se desiludiu com o governo
bolchevique e pediu a devolução de seu poder aos soviets, Trotski
não teve dúvidas. Cercou a fortaleza, tomou-a a ferro e fogo e
seus líderes foram liquidados.
O comunismo na Rússia, sob a direção de Stalin, tomava
direção de um “despotismo asiático”, aquela modalidade socio-
político-econômica, com a qual Marx, pai da expressão, não
sabia se haver, em seu linearismo utópico, messiânico, de cunho
nitidamente inspirado por Darwin, a quem pretendia, aliás,
dedicar O Capital.
A independência de Leminski lhe permite ter visões tão
claras quanto incômodas para os esquerdóides:
Paradoxo: a esquerda, que sempre procura afirmar o
caráter coletivo da História, produziu, no século XX, as grandes
personalidades carismáticas, verdadeiros super-atores do
processo revolucionário, Lênin, Trotski, Mao-Tse-Tung, Fidel
Castro, Ho-Chi-Mihn...
Sua atração por paradoxos, em vez de se deslumbrar com
utopias ou ideologias, permite também que faça uma crítica mas
compreensiva apreciação de Stalin, coisa muito rara, senão
inédita, no mundo da cultura política:
Stalin é um divisor de águas na história do século XX.
Para atingir seus fins, que eram, para ele, os fins da
Revolução Russa, não se deteve diante de nada: hoje, sabemos
que só na primeira década do seu poder, determinou a execução
de mais de um milhão de pessoas e o aprisionamento em campos
de concentração de perto de nove milhões. Entre as vítimas,
trinta e cinco mil oficiais do Exército Vermelho. De 1936 a 1938,
em expurgos sucessivos, patrocinou a liquidação física de toda a
liderança bolchevique, que tinha tomado o poder junto com ele.
(...) Em sua fria determinação assassina, seu único paralelo, no
século XX, é Adolf Hitler.
Toda a máquina estatal russa e o movimento comunista
mundial foram instrumentos de sua vontade a um grau nunca
visto. Mas que queria essa vontade? Riquezas pessoais? Haréns?
Palácios? Delícias da mil e uma noites? Comparada com a vida
de qualquer ditador de direita, do que se sabe, Stalin, até o fim,
levou a vida ascética dos bolcheviques. Nunca sentou num trono,
nem usava coroa. Sempre se vestiu com sobriedade monacal,
militar. E, se teve prazeres, foram os prazeres do exercício do
poder quase ilimitado. Mas sempre exerceu esse poder em nome
de uma idéia, a construção de uma sociedade que seria,
intrinsecamente, melhor que o inferno da mais-valia do mundo
capitalista que cercava a Rússia, “fortaleza sitiada”, onde se
forjava o novo homem, a nova sociedade, hoje “a ditadura do
proletariado”. Que o diga a extraordinária coerência de
propósito de seus trinta anos de tirania. Suas medidas eram
rigorosamente pautadas por motivações ideológicas. Não
mandou matar Bukharin porque não gostava dele Bukharin
representava a direita do Partido. E perseguiu Trotski
implacavelmente, porque Trotski liderava a esquerda a
“oposição de esquerda”. Não era um homem, nem o coração de
uma idéia, mas o cérebro de uma máquina implacável, aquela
máquina que Lênin e o próprio Trotski tinham começado a
montar um dia.

Essa independência intelectual deixa Leminski ver até o


óbvio, que é o que os intelectuais mais tem dificuldade de ver.
Trotski comandava o Exército Vermelho, era Comissário
(ministro) da Guerra e do Exterior, orador extraordinário,
organizador e gerente eficientíssimo, um ídolo além de líder até
indicado por Lênin como seu sucessor, então...
...exatamente aqui se coloca uma das questões mais
intrigantes da vida de Trotski: porque é que ele perdeu no jogo
pelo poder?
A resposta será sempre a mesma: alguém soube jogar
melhor.
Trotski era um dispersivo, homem de mil interesses, que ia
do político ao militar, do literário ao cultural. E, como intelectual
que era, seu percurso era mais errático, mais sujeitos a caprichos
de alteração de rota.
Do alto de sua indiscutível superioridade intelectual, seu
erro foi subestimar o adversário. Quando Trotski despertou de
sua miragem narcisista, Stalin tinha efetivamente nas mãos todos
os suportes materiais do poder.
Com essa mesma independência, Leminski desvenda o
populismo, em dois parágrafos que também servem para Getúlio
Vargas, Perón, Fidel, até mesmo Lula:
Com suas limitações, Stalin é o responsável pelo
congelamento do vivo pensar de esquerda na escolástica
embalsamada, verdadeiro sistema metafísico, que se chama
“marxismo-leninismo”. Com efeito, em setenta anos de revolução
e regime socialista, a URS não produziu um só pensador original,
só repetidores de manual. Com Stalin, o pensamento passou a
ser, apenas, o caminho mais curto entre duas citações.
Mas exatamente por suas limitações, Stalin sempre teve
muito maior facilidade de comunicação com os quadros mais
amplos da base do Partido, gente mais simples, recém-convertida
ao comunismo. Donde vem o poder de um homem?Do apoio
explícito ou tácito de sublideranças, firmadas sobre camadas
amplas que lhes dão respaldo militar, policial, ideológico.
Essa independência também lhe conquista ver que Trotski,
se não tivesse sido exilado e depois assassinado a mando de
Stalin, talvez não tivesse alterado muito as coisas na URSS, pois
estava longe de ser um liberal. Quando esteve no poder, agiu de
maneira tão implacável quanto Stalin. (...) Nas questões de
disciplina partidária, chegava a ir mais longe que Stalin,
proclamando a infalibilidade do Partido. (Como a Igreja Católica
prega a infalibilidade do Papa...)
Defendeu o monopólio bolchevique da verdade e do poder.
E sempre lutou contra a liberdade dos sindicatos e o direito de
greve, com base no argumento capcioso de que a greve era um
instrumento de luta da classe trabalhadora contra seus
opressores burgueses; ora, na URSS, os operários estavam no
poder, logo não poderiam fazer greve, já que seria um absurdo
fazerem greve contra si mesmos... Muito rápido de raciocínio e
bom de formulação, era especialista nesse tipo de sofismas
trágicos. E suicidas15. Ninguém mais que ele defendeu, em 1921,
a proposta de Lênin de proibir a existência de facções no interior
do Partido, isto é, do governo da URSS. Foi com base nessa lei
que, depois da morte de Lênin, Stalin pôde silenciá-lo, neutralizá-
lo e isolá-lo e, com toda a tranqüilidade...
No plano econômico, foi o proponente da industrialização
forçada através da militarização do trabalho, a aplicação ao
mundo do trabalho das leis implacáveis que regem a vida militar.
Estava longe de ser aquele anjinho libertário com que
sonham os trotskistas ingênuos, que só guardam dele a imagem
do revolucionário bonzinho, perseguido pela crueldade asiática
de Stalin, o Caim que acabaria por assassinar o Abel da
Revolução, depois da morte de Lênin-Adão...
Esse paralelo entre ideologia e religião é muito recorrente
em Leminski, que as co-relacionando é como se debochasse das
duas.

15
Evidencia-se a fascinação de Leminski pelo suicídio, aqui de um tipo digamos indireto, em que o
sujeito age de modo a ser morto, como Jesus.
Na URSS de Stalin, até de fotografias históricas foi raspada
e apagada a imagem de Trotski! Não há exemplo no mundo
moderno de uma conspiração de memória semelhante. O paralelo
mais próximo seria a prática dos faraós do antigo Egito que
costumavam mandar apagar dos monumentos os nomes dos
faraós anteriores, para botar o seu no lugar...
O encerramento de tantas contradições e paradoxos
Leminski graciosamente concede ao próprio Trotski,
reproduzindo sua profissão de fé e profecia no futuro humano,
expressada no livro Literatura e Revolução:
“O homem se esforçará para dirigir seus próprios
sentimentos, para elevar seus instintos ao nível do consciente e
torná-los límpidos, para orientar sua vontade nas trevas do
inconsciente. E se levantará, assim, a um estágio mais elevado da
existência, e criará um tipo biológico e social superior, um super-
homem, se isso lhe agrada. Seu corpo se tornará mais harmonioso,
seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa. As
formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente
dramáticas. A espécie humana, na sua generalidade, atingirá o
talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E, sobre ela,
se levantarão novos cimos.”

Apesar de tão generoso final, a leitura de VIDAS deixa um


certo vazio onde brilham umas sacadas aqui, uns toques aqui,
alguma argúcia como sempre em Leminski (além da irritação que
se colhe página a página por incontáveis gralhas de revisão,
muitas decerto devidas ainda á datilografia do autor, e mantidas
por uma preparação de texto que, espera-se, seja melhorada no
nova edição). Depois, porém, olhando bem, fica mais de VIDA:
fica o jeito de Leminski de escrever, claro e conciso como só, em
corajosa contraposição às convenções intelectuais, aos longos
parágrafos com palavrório técnico dirigido a poucos, uma
criptografia elitista que ele rejeita com sua linguagem clara,
simples, pop e elétrica. Em parágrafos de poucas linhas, às vezes
de uma linha só, expressa sempre um raciocínio que não se
enrola, ao contrário, salta como o sapo salta, em avanços ágeis.
Escreve como quem fala entre respirações, ao contrário dos
escritores escriturários, que se derramam por parágrafos
intermináveis para pouco raciocínio ou rala ação. VIDA confirma
que o melhor de Leminski não é suas obras, mas o entrechoque
entre elas, seu facetamento e sua unicalidade, seu modo único de
ver o mundo e se expressar. Essa constatação desvela também
porque tornou-se best-seller duas décadas e meia depois de morto:
o grande público ama seres únicos, excêntricos, acima ou além da
média. Provavelmente muitos não compraram Toda Poesia para
ler, mas como talismã ou souvenir de uma vida que invejam e
idolatram, mas que sensatamente temem viver.
Por isso, como realce do que há de melhor em VIDA, e
como ressalva honesta ao leitor, Pé Vermelho escreve epígrafe
que a Companhia das Letras aceita para sua nova edição do
Leminski biógrafo:

Outros escrevam biografias


passo a passo e dia a dia
como se exumando o passado
renascessem os biografados
seguidos de extensa bibliografia

Estas, não: são vidas recuperadas


por golpes fundos e agudos
sem intenção de mostrar tudo,
só querendo, no fim das facetas,
revelar vidas lapidadas
pela visão de um poeta

Amigo é pra essas coisas, Polaco, ou melhor: amigo não é


quem quer te agradar ou te esconder coisas desagradáveis; amigo
é quem diz o que é preciso.
O ANARQUISTA

Tanto estranharam que eu nunca tive carteira de


identidade... mas havia em Curitiba alguém com mais identidade
e mais identificável do que eu? Eu entrava num táxi, o taxista
nem me esperava fechar a porta, já perguntava: - Pra casa ou
pra onde, poeta? E eu olhava aquele ser e perguntava – Me
conhece, é? – ao que ele ria, mais um que me dizia quem é que
não conhece o senhor, ao que eu respondia não me chame de
senhor, então chamo do que, vossa poetência, e rindo o táxi
partia para o Pilarzinho.
Quem será aquele ali passando de pasta na mão? E a
senhora que galinhamente leva a prole de olho no sinaleiro,
quem é? Como quem é aquele guri que deslisa de esqueite, aliás
cadê, sua identidade deve ser já-fui, não? Mas até o engraxate
que insiste em engraxar minhas sandálias franciscanas, apesar
de eu dizer que sandálias não são engraxáveis, nem eu sou do
tipo que engraxa mesmo que usasse botas, ele insiste porque
depois irá se vangloriar, engraxei o poeta do bigodão, embora eu
prefira o poetão de bigode, mas isso o tempo espero consertará, é
para isso que trabalho,
carvalho, pinheiro, plátanos, todos vocês companheiros de
planeta, sabem que eu não brinco em serviço, dão flores,
renovam folhas, afundam raízes e fazem frutos, para mostrar que
são o que são, então porque eu deveria ser diferente, ter minha
identidade em papel com foto em vez de ser reconhecido pelo meu
porte e pelos meus frutos como vocês, hem?
Mas se querem mesmo que eu apresente identidade, ou se
vão me julgar por não portar RG, Registro Geral, já nessa
expressão indicando a intenção de reduzir todas as
individualidades a uma generalização burocrática, invoco meu
advogado Maiakovski, OAB zero zero zero zero zero cinco, cinco
zeros enfileirados, pois cinco é um número lindo, o único com
linhas retas e curvas, síntese performatemática no meio da escala
decimal,
porém não nos percamos no passeio dos pensamentos,
dando a palavra a Maiskovski: “Os versos para mim / não
deram rublos / nem mobílias / de madeiras caras. / Uma camisa /
lavada e clara, e basta, / para mim é tudo. / Ao Comitê Central /
do futuro ofuscante, / sobre a malta/ dos vates velhacos e
falsários, / apresento em lugar / do registro partidário / todos os
cem tomos / dos meus livros militantes”, na tradução do mano
Augusto de Campos.
Meu pai foi militar, meu avô materno foi militar, talvez por
essa sanguerança me apaixonei pela chamada arte militar, a
única arte que destrói em vez de criar, embora também gere
tantas lições e técnicas e táticas aplicáveis à política, ao
marketing e até ao amor e às outras artes,
então (pausa para suspirar, minha relação gozoza com o
ar), se é preciso identidade nesta vida, que seja Zero, até em
homenagem ao Recruta Zero, o militar que mais fez pelo mundo,
só fazendo tanta gente rir. Identidade de Paulo Leminski: número
zero zero zero zero zero, pronto, quem quiser conte outro conto.
Ah, você dirá, burocroata de gravata (sem nem saber que a
gravata vem dos croatas, daí o trocadata, cara), você dirá,
alisando a gravata como corda de descarga para os
pensamentos, dirá que, sem RG, rejeitando a identidade civil,
condeno a família a praticamente abdicar de minha herança,
renegando Alice e as meninas a um limbo desburocratizado, sim,
mas também sem mais nada, posses herdáveis, direitos autorais,
um abandono cartorial da família!
Poizé, cara, com esse z aí só pra te irritazerar, te comunico
oficiosamente que, apesar de teus desejos contrários, tudo dará
certo, e minha identidade zero servirá até para Alice e as
meninas assumirem e cuidarem mais da minha herança autoral,
tendo de aprender a lidar e brigar com gente como você, e com
todos que tentarão me liquidar com deboches e escárnios cozidos
em inveja e despeito, desprezo pelo povo que me adotará cada
vez mais, sem ligar a mínima para vocês, como o povo adotou
Augusto dos Anjos, fazendo viver e reviver o Poeta da Morte, e
apesar de vocês continuarão a me adotar, ou até por pirraça
contra vocês me adotarão ainda mais, vocês são a pimenta do
meu vatapá.
Gente é bicho cultural: a cultura, da linguagem às artes, da
agricultura à arquitetura, é nosso complexo diferencial em relação
aos outros bichos companheiros de planeta. E a diversidade
cultural é nossa maior riqueza, embora haja quem se exploda com
bombas amarradas à cintura, matando outros, em nome de uma
crença a ser imposta a todos.
Quando, depois das rusgas egóicas, Pé Vermelho começa a
conhecer realmente Leminski – não alguém atrás de um nome,
mas o ser cultural vivo, pulsante de idéias e atitudes - vai
percebendo que nele convivem (completando-se de forma única
no chamado meio artístico) dois Leminski.
Um, o erudito que pode sacar um provérbio em Latim de
repente, ou discorrer longamente sobre a caretice rudimentar de
Saussure comparado com a multiplicidade de Pierce, como pode
se divertir discorrendo, entre dois conhaques, sobre a semelhança
visual entre a linguagem hieroglífica e a primordial escrita
cuneiforme.
Outro Leminski, descobre Pé Vermelho, é aquele que, entre
duas cervejas “para hidratar”, diz que Gilberto Gil é a antena
cósmica do sertão, um pé no rock e outro no baião; ou que os
Beatles se dissolveriam mesmo sem Yoko, porque nenhum
conjunto de quatro suporta três compositores; ou que a
grafitagem paulistana se alçou a uma destreza pictórica que
ameaça sua própria identidade marginal. Ou ainda:
- Paul McCartney reinventou o contrabaixo na música
popular!
O mesmo Leminski que brada isso, dali a minuto pode
sussurrar alto:
- Dizem que a poesia concreta tem mais teoria que poeta,
mas também tem poeta com muitos poemas e nenhuma poesia!
Ou:
- Haroldo (de Campos) ainda vai fazer o maior metapoema
da poestória!
Essa duplicidade cultural gera sua arte única, onde nenhuma
palavra é estranha a qualquer analfabeto, embora todas as
palavras estejam sempre a serviço de algum arranjo criativo. Essa
recusa a escrever de forma usual, essa ojeriza ao lugar comum,
esse pavor do chavão, essa procura rigorosa da expressão
inovadora, sem no entanto abrir mão da comunicação, torna sua
linguagem única.
Essa unicalidade é sua vera identidade. Ele disse ser Wilson
Martins “o primeiro a divulgar notícias velhas”. Mas,
ironicamente, parece feita para Leminski a definição de Wilson:
“Todo grande escritor é autor de um idioma próprio, como de
uma também própria visão do mundo”.
Leminski, no entanto, não se pôs a criar uma linguagem
pessoal incomunicável, como a de Ferreira Gullar em A Luta
Corporal: Au / sôflu / i / luz/ ta pompa / inova´/ orbita / FUROR /
to / ´scuro / Rra. Não. A linguagem de Leminski (a não ser no
Catatau, e mesmo ali compreensível) é clara e simples,
lembrando o ditado de Celso Garcia Cid: “Complicar é fácil.
Difícil é simplificar”, ou a revelação de Picasso: “Levei cinqüenta
anos para aprender a pintar como uma criança”. Muitos poemas
de Leminski tem uma linguagem que se pode chamar de infantil,
expressando um estado de graça no melhor sentido, um inocente
espanto de descobrir o mundo: o bicho alfabeto / tem vinte e três
patas / ou quase // por onde ele passa / nascem palavras / e
frases.
Sua visão mantém sempre essa sensação de descoberta e
espanto diante da vida. E Pé Vermelho vai vendo também que, a
cada poema que Leminski lhe bota nas mãos, datilografados e
xerocados, há um achado expressivo. Pode ser (folheando Toda
Poesia ao acaso, como ele gostaria) ao transformar substantivos
em verbos: pariso / novayorquiso / moscoviteio / sem sair do bar.
Pode ser transformando substantivos em advérbios: acordei
bemol / tudo estava sustenido.
Pode ser sintetizando em três versos com mono-rima uma
sacada bioética: confira / tudo que respira / conspira.
Pode ser dando expressão a um ecumorismo, revitalizando a
velha quadrinha: Então seremos todos gênios / quando as
privadas do mundo / vomitarem de volta / todos os papéis
higiênicos.
Pode ser raciocinando com lógica ingenuidade: Nome mais
nome igual a nome, / uns nomes menos, outros nomes mais. /
Menos é mais ou menos, / nem todos os nomes são iguais.
Pode ser revisitando novamente a quadra mas com rimas
surpreendentes como as idéias, embebidas numa visão zen: Ao
perder a lembrança / grande coisa não se perde. / Nuvens, são
sempre brancas. / O mar? Continua verde.
Pode ser com um minimalismo que, novamente, oscila entre
o infantil e o sutil: nu, / enfim, / como vim.
Pode ser criando, num neologismo, o trapézio para altas
divagações filosóficas: PERHAPPINESS – pois a fusão das
palavras PERHAPS e HAPPINESS, “talvez” e “felicidade” em
Inglês, assim fundidas nos levam a pensar se realmente é possível
a total felicidade, ou se talvez pouca felicidade não será também
felicidade, ou se não estamos vendo que somos felizes enquanto
pensamos em conquistar felicidade, e por aí afora...
Pode ser dando gostosa graça a trocadilhos: tudo / que / li /
me / irrita / quando / ouço / rita / lee – o Leminski pop
debochando do Leminsk erudito.
Pode ser revitalizando a velha quadrinha com non-sense
zen: Aqui faz um grande poeta. / Nada deixou escrito. / Este
silêncio, acredito, / são suas obras completas.
Ou pode ser simplesmente com um haicai tão singelo, que
parece caído do embornal de um monge zen: duas folhas na
sandália / o outono / também quer andar.
O trio concretista Augusto/Haroldo de Campos e Décio
Pignatari repetiram feito mantra a “fenomenologia
verbivocovisual” como receita poética, que muito conceituaram
mas pouco poetaram. Mas parece definição sintética perfeita para
a poesia de Leminski, que é verbi, palavra e idéia; é voco, voz,
sonoridades sempre exploradas; e é visual, sempre graficamente
atenta, usando várias tipologias e tamanhos de letras, explorando
grafismos e chegando ao fotopoema iconográfico que é KAMI
QUASE. Essa sua inquietude e procura por experimentações,
porém comunicativas, é o que cativa novos leitores,
compartilhadores do prazer de “descobrir” Leminski como
brinquedo cultural, caixa de surpresas, gostosura artística com
tempero erudito, ao mesmo tempo concedendo e exigindo.
Esse seu estilo é sua identidade, para gozo do público e
despeito dos críticos rançosos. E, para conseguir isso, ele teve
apenas de... ser ele mesmo: Eu hoje, acordei mais cedo / e, azul,
tive uma idéia clara. / Só existe um segredo. / Tudo está na cara.

Anarquistas da boca para fora há muitos. Mas todos tem ao


menos carteira de identidade. Leminski é o único que pode exibir
essa desmedalha: além dos impostos embutidos que só se pode
deixar de pagar vivendo numa caverna, ele nada mais concedeu
ao sistema. Como revela um dia, quase sorrindo, depois de Pé
Vermelho contar que está lendo os anarquistas Daniel Guerin e
Jorge Semprun:
- Legal, cara, mas quem é anarquista mesmo, nem fala que
é.

Pé Vermelho vai constatando que, vivendo em “estado


de paixão”, Leminski negligencia a vida prática até em
detalhes banais e, por isso mesmo, simbólicos de seu
desapego a formalidades, convenções, bons costumes e boas
normas. Quando Pé Vermelho vê, pela terceira vez, que ele
pede a Alice para fazer seu prato, espera Alice se afastar
para cutucar:

- Você não faz o próprio prato pra não ter esse trabalho
ou pra dar trabalho a ela?

Leminski se espanta com a pergunta e olha em volta


antes de responder sussurrando:

- Ora, cara, é porque ela gosta...

A minha inépcia para coisas práticas contém, antes


de tudo, um pleonasmo, pois as coisas só podem ser
práticas. Idéias e emoções é que podem se dar ao luxo, o
que é um chavão, ao luxo de pensar ou sentir além de
concretamente ser. Ser só pode ser matéria, carne, coisa,
minério ou mesmo ar, que apesar de invisível é a maior
presença, onipresente, se imiscuindo ou se infiltrando
molecularmente até na água ou na pedra.

Então eu tenho essa inépcia para ser, contraposta a


minha perícia para especular. Penso, logo existo, disse
Descartes, mas pode-se contrapor: existo, apesar de
pensar. Por isso me apaixonei pela poesia concreta, por
prescindir de emoções e adjetivos, essa praga superficial
da linguagem, como as ervas ditas daninhas que podem
sufocar as plantações. Mas também por isso meio me
coloquei entre a poesia concreta, que usa a linguagem
como pedras numa construção, e a poesia digamos
convencional, que usa as palavras como filigranas de uma
teia que, ao rigor de qualquer lógica, se desfaz como a da
aranha.

Repare que já estou me enredando na lógica para


defender a mágica: o fato de que não sei, mesmo por
defeito ou aspecto genético, não sei cruzar rua sem medo
dos carros, portanto corro quando podia passar tranqüilo
no sinal verde; como não sei fazer a barba e enxaguar a
pia suja de espuma, fazer o que, não sei fazer, eu sei
pensar e sentir, uma mistura que é meu jeito de existir,
oscilando entre a emoção e a lógica, pois ser humano não é
estar trotando e tateando entre o topus e o logus?
Qualquer outra coisa, além da coerência entre a
mágica e a ciência, é loucura, o que também é um modo de
ser, se você olhar com sapiência. (Estou brincando, claro,
embora acredite que também é uma brincadeira a
existência. Ou você vai levar a sério esses quintilhões de
estrelas gastando energia para que?)

Faz parte de sua lenda pessoal, além dos dentes


estragados e da aversão a banho, as roupas desleixadas e o
chinelão, ou então os tênis fedendo urina por urinar na rua
entre os pés - coisa que Pé Vermelho um dia critica, dizendo
que pode-se evitar isso simplesmente urinando nalgum
muro ou numa árvore, de modo a não borrifar urina nos
pés, e Leminski balança solenemente a cabeça de cima
enquanto chacoalha a de baixo:

- Muro merece é grafite. E árvore merece só chuva.

Enquanto Leminski vive, o sistema cultural faz sua parte no


reconhecimento de seu anarquismo: pouco é requisitado por
entidades e órgãos públicos, cujos cachês teria apreciado,
retribuindo com performances muito mais densas e marcantes que
o habitual tédio das palestras e mesas-redondas. Depois de morto,
é cult homenagear e citar Leminski. Por baixo dos bigodões, ele
sorri.
Em 2012, Pé Vermelho publica na Gazeta do Povo a crônica
Pico Lelé na Serra da Poesia:

“Nessa Serra, vemos os picos do condor Castro Alves, do


ciencial Augusto dos Anjos, do sábio Bandeira, do multiface
Drummond, do vital Vinicius, do cerebral Cabral e, sim, do zenial
Leminski - menos para quem olha do chão neblinoso da inveja e
da incompreensão, uma cevando a outra e obstando a visão de
Paulo (Lelé, como o chamava nossa amiga Elisabel Jordão) como
gênio da poesia brasileira.
“Há quem se confunda, na avaliação artística de Lelé, com a
lenda, que ele cultivou, de auto-imolação beat por álcool e drogas.
Mas olhando sua obra sem ramelas biográficas, vemos que não se
conformou com a poesia convencional esgotada, nem se rendeu à
esterilidade do concretismo, do vanguardismo ou do
compliquismo. Levado por espírito investigativo e prazeralidade
(necessidade e prazer de comunicar), procurou o sincretismo
sinérgico entre o velho zen oriental e a nova visão pop ocidental,
convergindo para a poesia informações semióticas, musicais,
visuais, plurais.
“Não foi, porém, um ruptor, foi um inovador, reciclando
com originalidade formas convencionais. Por exemplo na
emblemática quadra não discuto / com o destino / o que pintar /
eu assino, a graça (no melhor sentido) está no último verso
caligrafado. E, embora seja uma quadra, não é a velha quadra de
ritmo cadenciado (que, com os trovadoristas, chegou a tornar-se
fôrma repetitiva e previsível). A métrica dos versos em 3, 4, 4 e 3
sílabas confere um ritmo jazzístico, um balanço sutil, dando
suporte ágil à idéia zen de acolhimento do imprevisível.
“Outra quadra é exemplo dessa fusão entre forma
convencional com truque inovador e sacada instigante: CURVA
PSICODÉLICA / o trem salta fora dos trilhos / EDUCAÇÃO
ARISTOTÉLICA / não legarei a meus filhos. Os versos em
maiúsculas similam vagões, os versos em minúscula similam os
trilhos, enquanto o ritmo quebrado (quebrado conforme a métrica
convencional) simila o descarrilhamento, para apontar uma
revisão educacional que ainda se faz necessária para os pais e o
país.
“Mesmo num poema-piada como entro e saio / dentro / é só
ensaio pode-se ver, além da graça, a sacada reflexiva: a similitude
entre os versos simila também o espelhamento entre ensaio e
espetáculo, ilusão e realidade, sonhar e ser etc. A leitura de
Leminski convida e não prescinde da inteligência e imaginação
do leitor, e talvez também por isso alguns o desvalorizem...
“Mas Lelé tem, como todos, altos e baixos, estes mais na
prosa. Seu cultuado Catatau é um conto pretensioso
delirantemente expandido, aleijão que, porém, faz a delícia dos
cultuadores. O romance Agora É Que São Elas também começa
ótimo e também se perde (ou, para os cultuadores, se alça) no
delírio normo-linguístico. Mas vários de seus ensaios são
exemplos de singularidade e instigânsia (ânsia de instigar, eixo
motivador de toda sua obra).
“É na poesia que Lelé conquista corações em massa, indo
além do círculo de cultuadores semióticos. Traz, para as galerias
empoeiradas da poesia, frescor de idéias e inquietude de posturas
e formas, inclusive libertando o haicai da fôrma tradicional.
Eticamente, tem uma lisura e uma saudável visão de mundo que
não se encontram, por exemplo, no monstro (conforme Manuel
Bandeira) Machado de Assis, tão cultuado pelos mesmos que não
conseguem valorizar Lelé.
“A esses, ele como que respondeu antecipada e eternamente,
com o poema apagar-me / diluir-me / desmanchar-me / até que
depois / de mim / de nós / de tudo / não reste mais / que o charme.
Irônico é que mais e mais gente conhece seus “restos”, as
lembranças de sua obra que se incorporam ao nosso patrimônio
poético usual, como o verso eles passarão, eu passarinho de
Mário Quintana.
“Seus altos e baixos fazem rugir a necessidade de uma boa
antologia, talvez dificultada pela sua displizência. Então talvez os
que ainda menosprezam sua obra compreenderão sua despojada
riqueza e instigante beleza. Até porque pra que cara feia? / Na
vida / ninguém paga meia...”
Quando sai Toda Poesia, contendo num só volume toda a
poesia de Leminski, Pé Vermelho se surpreende com a vendagem
de massa que leva o livro a best-seller. Chega a discutir “com
pedras na boca” com intelectuares (intelectuais que vivem nas
nuvens, e que antigamente eram chamados de nefelibatas), que
tentam diminuir o feito do Polaco.
- Não é a poesia dele que está vendendo tanto – diz um - É
a vida, a lenda que ele criou.
- A poesia dele tem muito mais baixos que altos – diz outro.
Um dos discutintes é homem de marqueting, e Pé Vermelho
aponta a contradição:
- Ele foi também publicitário, conhecia marqueting, foi o
primeiro a me dizer que a arte da guerra é fonte de lições para o
marqueting. Ora, se ele usou táticas típicas dele, para essa
estratégia de criar uma lenda, você, homem de marqueting, devia
reconhecer isso como mérito! E você, que fica falando em altos e
baixos, já leu as poesias completas do tão decantado Machado de
Assis? Aí você vai ver quantos baixos tem um escritor tido como
gênio! O que faz Leminski vender é sua identidade artística única,
como Augusto dos Anjos ou Van Gogh, de quem ele gostava
tanto e não à toa, e que como ele tiveram vida curta mas deixaram
uma arte tão brilhante quando duradoura!
De outras mesas do bar olham espantados, e só então Pé
Vermelho percebe que está falando alto e estridente... como
Leminski, encarnando Leminski?! Lembra então de quando
mostra mais um haicai a Leminski, dizendo ser inspirado na sua
multifacetude: Karma eskisito / enkarno todas / máskaras ke
visto.
Leminski lê, devolve o papel, nada fala. Pé Vermelho
pergunta: não gostou? Demais, responde Leminski:
- Tanto que sinto ciúme, eu é que devia ter escrito isso. Mas
te perdôo, com a promessa de você dizer que é inspirado em mim.
Pé Vermelho ergue a mão escoteiro, promete, mas duas
décadas depois publicará o haicai no volume Haicaipiras, sem
cumprir a promessa, até agora. Anarquistas, dizia Leminski, não
chegam ao poder, mas tem honra. Desculpe, cara.
O ESTÓICO

Em Polonês, a palavra “vodka” originalmente significava


“água”, ou melhor, “aguinha”, fazendo lembrar a palavra
portuguesa “aguardente” usada para a cachaça. A vodka queima
menos a mucosa do esôfago, e seu processo de destilação, a altas
temperaturas, elimina o aroma do cereal de que se origina - trigo,
cevada, centeio etc – e, para o consumidor habitual, significa
eliminar o chamado “bafo de bêbado”.
Pé Vermelho, sempre que encontra Leminski, comprova
admirado que ele tem uma dessas constituições físicas que os
médicos chamam de super-resistentes ao álcool, suportando não
só grandes quantidades de bebida como, também, apresentando
menos sintomas externos da alcoolização (voz mole, raciocínio
truncado, alegria eufórica ou tristeza repentina, tontura,
desequilíbrio, vômito). Pelo contrário, em Curitiba ainda se pode
encontrar muitos companheiros de copo do Polaco que garantem:
- Quanto mais ele bebia, mais lúcido ficava!
Essa resistência, entretanto, é a ponte crescente usada pelo
álcool para conduzir rapidamente o bebedor da vida para a morte.
Quanto mais resistente for, mais beberá, chegando às duas
garrafas diárias que Leminski bebeu nos seus anos de pico (sem
contar as cervejas que, ele dizia, era preciso tomar entre as doses
de destilados, “para hidratar”. Essa brincadeira ou crença ingênua
teria, também, seu efeito danoso, pois a cerveja, por ser diurética,
desidrata em vez de hidratar, levando o bebedor a urinar muito.
Os rins são afetados, e o trabalho do fígado, já penalizado pelo
trabalho ingente de absorver as altas dosagens de álcool da bebida
destilada, ainda é obrigado a trabalhar “a seco”, lidando com duas
bebidas diferentes, uma fermentada e outra destilada). Conforme
os médicos, é como, além de espancar o fígado a socos, dar-lhe
também tapas, deixando o pobre órgão, responsável por tantas
tarefas, usina química prodigiosa, atarantado e confuso.
O fígado, como vingança ou expressão de incapacidade para
tanto esforço, endurecerá suas células, como também faz o ouvido
diante de barulho alto, endurecendo na cóclea os filamentos que
captam os sons e produzindo surdez progressiva e irreversível. O
fígado começa processo de inchaço enquanto endurece,
provocando insolvência de sua usina química, até chegar a pedir
concordata, como que dizendo bem, você me maltratou tanto, não
vou mais cuidar de você. É então a cirrose. É quando, também, o
órgão que normalmente não dói, passa a doer. “Um homem com
uma dor”...

Pé Vermelho é, no consumo de álcool, seguidor do


Imperador Adriano, que estipulava vinho só depois do anoitecer,
cumpridas as tarefas do dia. Então, nas visitas a Leminski no
Pilarzinho, espanta-se de ver que ele não só bebe muito como
bebe desde manhã. Muitas vezes verá o Polaco batizar café com
conhaque ou vodka, sua bebida preferida, talvez até pela afinidade
étnica. (Mas só depois de Leminski morto é que Pé Vermelho
saberá, pela biografia O Bandido Que Sabia Latim, que seu pai,
também Paulo (o nome completo do poeta é Paulo Leminski
Filho16) também foi “bebedor de litro” de destilado (conhaque,
talvez pelo preço menor, coisa a que também o filho recorrerá) e,
também, morreu vitimado pelo álcool. Várias vezes Leminski fala
de seu pai a Pé Vermelho, sempre para orgulhosamente se dizer
mestiço de polaco com negra (na verdade também mestiça de
português e negra), mas nunca fala desse detalhe revela-dor do
pai.
Certa vez, depois de pernoitar na casa do Pilarzinho, Pé
Vermelho vai com Leminski ao centro de Curitiba, no meio da
manhã, e, quando tomam o táxi, Alice pede do portão:
- Manera, Paulo, não bebe em serviço!
No meio do trajeto, Leminski manda o taxista parar num bar
e, ainda saindo do táxi, é visto pelo do-balcão, que já despeja uma
dose dupla num copo americano. Leminski entorna em dois
golaços, limpa o bigode, manda marcar na conta e já vai voltando
para o táxi enquanto quando Pé Vermelho ainda está chegando ao
balcão e Leminski ri:
- Atrasou na jogada, brother! Meia-volta!
Voltam para o táxi. Quase chegando à agência de
propaganda onde ele vai trabalhar, manda parar o táxi novamente,
noutro bar, onde o ritual será o mesmo: dose dupla sem gelo em
16
Como o nome completo de Pé Vermelho é Domingos Pellegrini Júnior.
copo americano, e agora uma bala de hortelã “por via das
dúvidas, na agência tem gente de olfato apurado”. É recebido com
festa pelos colegas mas, por chegar atrasado mais um dia, é
tratado com frieza pelo chefe. Pé Vermelho fica ali lendo um
jornal, ainda a tempo de ouvir que o rádio toca Valeu, a parceria
dele com Moraes Moreira, e Leminski, datilografando, saúda: -
Tlintlim! – imitando o som de caixa registradora, naquele tempo
ainda de rádios, máquinas de escrever e caixas registradoras.
Na hora do almoço, quando se encontram no bar-restaurante
da esquina conforme combinado, Leminski come coxinha e volta
a entornar vodkas, agora com cerveja. Pé Vermelho come um
prato-feito, sentado em tamborete no balcão, enquanto Leminski
usa salgados como aperitivos entre vodkas e cerveja, depois volta
para a agência. À noite, reencontram-se para voltar de táxi à casa
do Pilarzinho, antes de Pé Vermelho rumar para a rodoviária,
onde tem ônibus marcado para meia-noite. Ao chegarem à casa,
Leminski cospe bala de hortelã no jardim, antes de beijar Alice e
proclamar de dedos juntos como escoteiro:
- Não bebi no serviço, amor!

Na última vez em que se encontram, Leminski pergunta a Pé


Vermelho se continua fazendo haicais. Pé Vermelho diz que até
lembra um “de cor” (a expressão vem do Latim cor, coração:
significando que a gente não esquece aquilo que passa pelo
coração):
Coração
músculo acústico
em liquidação
Leminski pede para repetir, e ri muito quando Pé Vermelho
explica que o coração está sempre em liquidação porque sua ação
é bombear líquido, o sangue, e também porque está sempre se
liquidando, já que cada vez que bate será uma vez a menos. Mas,
depois de rir, Leminski sussurra sério:
- Do coração, cara, eu não vou morrer.
Decerto já sabia, então, da cirrose que o mataria.

Liquidorum fluens, os líquidos fluem e eu poderia


figuradamente dizer que fui liquidado pelos líquidos. Primeiro, os
que entraram pela boca e foram garganta abaixo, a amarela
cerveja batismal, pois é quase para todos a primeira bebida.
Depois, as águas ardentes, a pinga dos negros e a vodka dos
polacos, em meu sangue integradas, como também as águas
castanhas, conhaques e vermutes, inclusive martinis que durante
alguns anos bebi, para agradar Alice, mal sabendo que golpeiam
o fígado com sua química tanto quanto os destilados com seu
latro teor alcoólico.
E, finalmente, o golpe líquido final e fatal foi do sangue, na
forma de hemorragia esofágica. Pesquisei, como sempre sobre
tudo que me interesse. A primeira ironia é que essa liquidação
pelos líquidos se deu através de varizes, endurecimento de canais.
A cirrose é, no fundo e de fato, varizes que se formam no fígado,
uma forma de fibrose, acirramento das células hepáticas como
resposta à agressão tóxica.
O fígado mereceu de Neruda uma bela ode, com trechos que
guardo de cor ou figadalmente: “Modesto, / organizado /
amigo, / trabalhador / profundo (...) / filtras e repartes, / separas
e divides, / multiplicas e engraxas (...) se o vinho hereditário de
minha pátria pretender / perturbar minha saúde ou o equilíbrio
de minha poesia, / de ti, distribuidor de mel e de venenos, / de ti
espero justiça!”
Bem, meu organizado e trabalhador amigo, você decerto
não foi injusto comigo, me deu o que mereci. Afinal, você lutou
desde minha adolescência para eliminar do corpo entre 90 e 98%
do álcool que bebi, calculam os fisiologistas, o resto os pobres
rins, os velhos pulmões e a pele eliminaram; a pele, maior e mais
pesado órgão do corpo, e que por isso também vi envelhecer
precocemente. Mas você, amigo fígado, com sua falência me
poupou de presenciar cabelos brancos ou calvície...
Eu te fiz trabalhar mais que o Espártaco de Kubrick quando
escravo, hem, e te golpeei mais que Espártaco golpeou quando
gladiador: você agüenta metabolizar de 5 a 10 gramas de álcool
por hora, mas uma simples dose contém de 12 a 15 gramas, de
modo que, além de te fazer trabalhar tantas vezes o dia inteiro, te
dando mais trabalho numa hora do que você suportaria o dia
inteiro, assim ainda te deixava com trabalho acumulado para
fazer depois que eu dormia!
Aconteceu, meu amigo, que eu tinha o que os médicos
chamam de tolerância crônica, integrando o time dos que
conseguem beber muito sem apresentar sintomas como tontura,
perda de reflexos, voz mole, raciocínio embaralhado, não, você
me viu em ação mesmo depois de esvaziar garrafas de líquido
amarelo ou garrafa e meia de líquido branco. Mas você não falou
nada, você não fala, como o coração que dá seus recados com
taquicardia, ou como o estômago que fala pela dor ou pelo
vômito, não, você ficou quieto anarquitetando tua teia de fibras,
traiçoeira porque silente, mas justa porque apenas resposta ao
ataque constante. E também, deixe-me ser justo também, porque,
dizem os médicos nos seus catataus clínicos, quem fuma mais de
um maço por dia tem três vezes mais risco de cirrose. Também
dizem eles que quem consome mais de quatro xícaras de café, por
dia, tem cinco vezes menos chance de cirrosar, mas não sabem
explicar porque, por isso gosto de dizer que a Medicina não é
uma ciência, é apenas uma acumulação de experiências. Certo é
que eu devia ter bebido também mais café...
E, finalmente, o último golpe líquido que me liquidou foi a
hemorragia esofágica. Outra ironia. Os líquidos ardentes,
descendo pelo esôfago, provocam varizes, artérias e veias
endurecidas como forma de defesa diante de tais ataques,
endurecendo como se a formar escudos para os golpes. Até que,
um dia, de repente, tais varizes inchadas espetacularmente se
rompem, abrindo enormes bocas a verter sangue no esôfago.
É tanto sangue que sai da boca em jorro, parecendo
resposta afinal e final do corpo a todo aquele líquido que antes
entrou. Vi, sim, o jorro vermelho ir bater lá na parede, tanto
sangue que deixava claro não ter importância saber se era venal
ou arterial, claro era que era tanto que faria falta fatal. Mas no
hospital me deram transfusões de sangue, mais líquido na
história, enquanto eu quase morria também por excesso de
líquido, o sangue entupindo o esôfago, ameaçando entrar
pulmões adentro, impedindo respirar direito. Para fazer um
trocadilho cretino, que é a melhor coisa a fazer diante de coisa
tão séria, uma coisa era líquida e certa conforme os médicos: as
varizes do esôfago teriam de ser suturadas para estancar aquela
hemorragia, que não cessaria naturalmente porque, ironia das
ironias, a cirrose não deixa o fígado produzir a substância
coagulante do sangue... E, entre tantos líquidos, o coração é
quem decidiu a parada, parando de bater. Liquidou-se-me.

Há quem diga que, se eu não tivesse me bilistruído, ah,


talvez ainda escrevesse tanto, ganharia os prêmios que nunca
ganhei, receberia reconhecimento até da Academia (claro que
quando chegasse aos 90 no mínimo ou, com certeza, quando
passasse dos 100), e daria entrevistas para turmas de colegiais
no jardim de casa, respondendo sempre daonde vem a
inspiração,
e seria convidado para mesas-redondas com poetas
quadrados, a maturidade me refreando o ímpeto de mandar tudo
para o parnaso que os pariu; com vontade de, levantando num
pulo, embora talvez com bengala, dizer não sei daonde vem a
inspiração nem pra onde vai o tesão de leão de zoológico, quero
é saber cadê o meu cachê, e perguntar porque, em vez de mesa-
redonda, não me convidam para uma cama-redonda,
isto mesmo, eu deitado com Alice, como John e Yoko, e a
moçada em volta sentando no chão ou em almofadas (a
almofada é a maior invenção dos árabes), e o bilustre casal
responderia às perguntas em diferentes poses e posições no
colchão, Alice falando aos homens, eu às mulheres, depois vice-
versa, casal-câmbio, e, caso a gente não conseguisse responder
alguma questão, para disfarçar discutiríamos em público a
relação, por exemplo, entre a loucura da poesia e a caretice da
civilização, porque não?
Falando zério, olhando pelo único ângulo passível, o
destino e a delícia de cada um ser o que é, conforme mano
Caetano, que é que eu poderia ser além do que fui? Que mais
poderia viver além do que vivi se a vida é perfeita assim sem pé
nem cabeça do começo ao fim? Que graça teria chegar aos 100
perdendo o guri? Quem me reconheceria quando eu recebesse o
Nobel e que amigo lá em Estocolmo me abraçaria? (Como tantos
aqui me abraçaram em tantos botecos, abraços mais apertados
na exata proporção do rebaixamento líquido nas garrafas...) E eu
nem poderia, até por tanto apreciar a simplicidade, causar esse
incidente internacional para meu país, ganhar o Nobel e não
poder receber por falta total de identidade fiscal!
Aqui entre nós, em decorrência natural deste nó –
decorrência natural, não legal, natural! – da minha identidade
zero, nunca declarei renda, portanto jamais paguei imposto de
renda, detesto tudo que é imposto, só aceito ou faço por gosto,
que me prendessem como prenderam Rousseau, fico arrepiado só
de pensar que livros eu escreveria na cadeia, sóbrio quem me
compreenderia?
Ora, dirá você, socialdemoscroto, o imposto é o primeiro
dos democratas, custeando os serviços públicos, a ordem e a
segurança, a creche das crianças, o bombeiro que te acode, a
precária escola pública para os pobres, a corrupção impune para
os ricos, opa, ato falho, as parcas aposentadorias para o povo, as
mordomias para os altos cargos, opato falho, a péssima saúde
pública para todos, o nepotismo para poucos, optofalo, a Justiça
lerdomonga, otflo, a vergonhante infra-estrutura nacional, a
caradura licitatorial, of,
enfim, preferi me abster de contribuir para isso. Os
impostos que tiraram de mim, só tiraram porque são embutidos
para todos. E só dei despesa para os órgãos públicos no hospital
em que morri, muitíssíssimo menos do que me tiraram a vida
inteira em cada tragada que dei e em cada gole que bebi,
cigarros e bebidas são os produtos que mais pagam imposto, jeito
gentil do sistema educar ou castigar os viciados. Meus impostos,
embutidos na fumaça e nas garrafas, decerto dariam para custear
aquele hospital inteiro, portanto não devo nada.
E não poderia terminar este meu pós-jorro de palavras sem
lembrar de tantos colegas de copo, Poe, Hemingway, Pessoa,
Rimbaud, Maiakovski, Faulkner, Cervantes, que só não bebeu
tudo que podia porque passou preso boa parte da vida, então ao
menos estou em boa companhia.

Pé Vermelho só sabe dos detalhes da morte de Leminski ao


ler O Bandido Que Sabia Latim, onde fica claro que o Polaco, se
não seguiu o preceito do imperador Adriano, de só beber depois
do anoitecer, seguiu outro, o princípio estóico de jamais reclamar
das dores, jamais se queixar, jamais lamuriar. Ao contrário,
transformou a dor numa de suas mais belas poesias. E, na
ambulância, indo para a morte, a alguém que o consolava com a
lenga-lenga de que tudo vai dar certo, logo isso vai passar,
responde com o humor cortante de sempre:
- Coisa nenhuma! Pode dar boa-noite pro gaiteiro!
Ou: como Leônidas saudou a chuva de flechas persas
dizendo melhor assim, combateremos à sombra, as últimas
palavras de Paulo Leminski foram para saudar a desgraça com
graça.
Em 2013, antes da publicação de Toda Poesia, Pé Vermelho
publica na Gazeta do Povo a crônica Triste Beleza:
“Quando leio que mais algum artista morreu de drogas,
penso em Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Castro
Alves, que morreram tão moços porque se drogavam com a idéia
romântica de que sofrer é bom, matar-se é nobre, consumir-se é
gostoso, martirizar-se é elevar-se além dos comuns mortais.
Viveram de modo a contrair tuberculose, a chamada ´doença do
século` 19, encarando paixões como martírios, imolando-se em
boemia doentia, preferindo o manto da noite às janelas do sol.
“Vinicius de Morais, que escreveu ´é melhor ser alegre que
ser triste`, no mesmo Samba da Bênção comete os versos pra
fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza,
senão não se faz um samba não. Foi ele quem cunhou a
(anti)máxima poeta pra ser bom tem que sofrer? Certo é que,
mesmo em Garota de Ipanema insere os versos ah, como estou
tão sozinho, ah, por que tudo é tão triste?, atendendo ao vírus do
romantismo sofredor. Mas Vinicius, na quase totalidade de suas
letras e poemas, é um curtidor da vida, embora nem sempre da
alegria.
“Em A Felicidade, ele resume: tristeza não tem fim,
felicidade sim. Talvez por isso, em Minha Namorada, convida a
amada para ser aquela amada pelo amor predestinada / sem a
qual a vida é nada / sem a qual se quer morrer. / Você tem de vir
comigo / em meu caminho / e talvez o meu caminho / seja triste
pra você. Ou seja: amar é também sofrer. Realismo cru ou
romantismo cozido?
“Quando Mário Bortolotto foi baleado resistindo bêbado a
assalto, lembrei de suas peças, muito embebidas em romantismo
sofredor, mesmo que beatnicamente reciclado. A procura de
martirismo é própria dos românticos, e a geração beatnik foi-é um
suspiro pós-morte do romantismo.
“Também Leminski tinha muito disso de cultuar o
sofrimento e a dor, o que resume no verso sofrer vai ser minha
última obra, embora sempre com um antídoto humor.
“Esse pós-romantismo, infantil nos sentimentos e senil nos
pensamentos, mata realmente os ´filhotes de Bukovski`, que
cultivam o martírio pelas drogas ou pelo sofrimento, pela tristeza,
pela marginalidade cultuada.
“Ao mesmo tempo, porém, lembrando da diversidade, a
maior característica humana, que seria deles se não fossem assim?
É possível imaginar um Leminski certinho, um Castro Alves
setentão a compor poemas de paz e amor?
“Então a sua imolação acrescenta a suas obras a chama de
seu martírio, a nos lembrar que, se deixaram menos do que
poderiam se não fossem o que foram, o que deixaram tem a
intensidade dos que se jogam no abismo justamente porque é
fundo. xxx
“Daí não há como não lembrar do poeta russo Iessienin, que
se matou deixando um poema que se tornou cult dos que cultuam
o pós-romantismo, e que ele teria escrito, conforme a lenda, com
o próprio sangue dos pulsos cortados, com estes últimos versos:
Se morrer, nesta vida, não é novo / tampouco há novidade em
estar vivo.
“A isso respondeu seu amigo Maikovski (que, no entanto,
depois também se suicidaria): Nesta vida morrer não é difícil /
difícil é a vida e seu ofício.
“A vida consciente, como é a vida humana, não seria
consciente sem a opção suicida. A morte martírica dos pós-
românticos, ou neo-românticos, como queira, dá mais vida a suas
obras, assim apreciadas em admirada cultuação, por uns, ou em
piedosa compreensão por outros, de qualquer forma ressaltando a
diversidade humana e a complexidade artística.
“Outro dia tomei um porre e tive ressaca, coisa que não
tinha há década, embora beba quase todo dia. Aí lembrei de vários
amigos artistas mortos, que buscavam o cigarro antes do café da
manhã, tomavam a primeira dose depois, e em seguida passavam
a falar apenas de arte, como se a vida fosse apenas contínua
celebração artística.
“Deus, te agradeço por não ter me dado essa sina, mas não
posso deixar de admirar a beleza triste dessa procissão. Como diz
o caboclo, é tudo gente, né?”
Pé Vermelho levanta antes do sol, e, esperando a água ferver
para o café, ouve o galo cantar e lembra de Leminski misturando
no café da manhã o resto de conhaque da garrafa que bebeu em
viagem durante a noite. Pé Vermelho se arrepia, murmura “tudo
em você era exagerado”, e conta as sílabas, é um decassílabo.
Pega papel e escreve de costas para o fogão, com o fogo no
mínimo, de modo que a água estará fervendo quando terminar de
escrever:
Tudo em você era exagerado
os teus suspiros avassaladores
a voz alta, a discrição nas dores
rabiscos por tudo que era lado

Seixo a rolar sempre indo embora


desleixo ciosamente calculado
o charme arma sempre engatilhada
no entanto o olhar a perguntar: e agora?

Detestaria tornar-se soneto


porém riria: - O que eu mais tenho medo
é me tornar estátua, Deus me livre!

Virou Pedreira17 onde o sapo pula


numa poça e ali a lua ondula
magicamente como você vive
17
Pedreira Paulo Leminski, espaço público para grades shows e produção cultural, em Curitiba.
O MITO
Mito não morre. Como os advogados chicaneiros que
prolongam indefinidamente o processo com recursos e apelações,
o mito recorre da morte, renascendo.
“Oi, Paulo, me chamo Cecília e estou em busca de publicar
meu livro, estou enviando o link para que, se possível, você dê
uma lida e me diga o que acha. Obrigada."
O recado é publicado num link de homenagem a Leminski
na internet, em julho de 2013 – 24 anos depois de sua morte.
Na coluna Entrelinhas, na Gazeta do Povo, no dia 15 do
mesmo julho, a colunista Marcela Campos reproduz email
enviado ao mesmo link, por representante de um festival literário,
convidando Paulo para participar do evento, fornecendo email e
fone para contato. Dizendo-se “Paulo”, alguém até responde: “Eu
gostaria muito de ir, mas infelizmente já morri”.
São só duas evidências risíveis do mito Leminski, o poeta
meio maldito, meio esquisito, um tanto popular, um tanto erudito,
mistura única de ingredientes usualmente excludentes. Ele
cultivou esse mito conscientemente em vida, e sua família passou
a colher os frutos disso apenas mais de duas décadas depois de
sua morte. Graças a essa infinita biblioteca eletrônica que é a
internet, muro imenso para grafitagem sem fim, podemos ter dele,
rodando e jorrando por aí, poemas, fotos, textos, falas, recados,
rabiscos, performances que, por mais mal filmadas, são melhores
que nada. Seria tão interessante saber como Gregório de Matos
era recebido nas casas onde ganhava hospedagem soberba e
retribuía com seu humor corrosivo! Pois de Leminski muito
podemos saber, o mito cresce e se remexe na internet.

Em 2010, Pé Vermelho encontra Alice Ruiz em Brasília,


integrando comissão julgadora de concurso do Ministério da
Educação, e pergunta porque não é publicada antologia de
Leminski. Pensa em antologia por prejulgar que um volume de
poesias completas custaria muito caro, o preço contraditoriamente
restringindo público ao poeta pop. Tem como referência as
antologias poéticas da Editora do Autor, dos anos 1960,
entregando ao público o melhor de grandes poetas em livros
dignos e de preço razoável.
Será uma surpresa ver que Toda Poesia, graças ao
ajeitamento editorial da Companhia das Letras, consegue em 2013
chegar às livrarias com preço razoável e dignidade gráfica. E será
um alegria ver que o livro do Polaco chega a best-seller! Daí, em
toda foto dele que Pé Vermelho vê, ele parece dizer:
- Eu te disse, cara, que um dia as massas iam comer do
biscoito fino que fabrico18.
A exposição Múltiplo Leminski, no Museu Oscar Niemeyer,
em Curitiba, com curadoria de Alice, bate recorde de público do
museu, com quase 200 mil visitantes num semestre de 2013. Em
Foz do Iguaçu, apenas nas duas primeiras semanas, 30 mil
pessoas vêem a segunda instalação da exposição, que depois
viajaria para outras cidades.
18
Frase de Osvald de Andrade que Leminski insistentemente citava.
O mito foi criado pelo próprio Leminski, cultivando sua
lenda viva, e o claro indício disso são as fotos para as quais
posou, explorando-se como imagem pop, com olhares e posturas
de (como convém a um escritor) incipiente ídolo. Nessas fotos,
alternam-se ora a inquietude, ora a meninice, ora a serenidade, ora
a brejeirice ou a malícia de seu olhar, como poliédrica
composição visual, emoldurada pelos cabelos desalinhados de
roqueiro e os bigodões eslavos. Assim tornou-se, além de ídolo,
um ícone, que Elisa von Randow sintetizou estampando na capa
de Toda Poesia apenas os bigodões desenhados.
Seu martilirismo, mistura de mártir lírico com sacrifício
etílico, também alimentou seu mito. A polivalência de escrever
poesia, romance, biografias, fazer traduções e “prosa
experimental” (como até editorialmente se referem ao Catatau,
numa espécie de prevenção ao leitor comum), botou mais lenha
na fogueira mitológica, que de lógica tem pouco.
Entretanto, o surrado ditado de que a toda ação corresponde
uma reação foi também se renovando enquanto o mito crescia.
Enquanto aumentava o coro dos veneradores de Leminski,
garimpando seus livros esgotados em sebos e reproduzindo seus
poemas na internet, também crescia a turma dos detratores,
misturando inveja e despeito travestidos de postura crítica. O
fenômeno Leminski parece repetir o fenômeno Augusto dos
Anjos, detratado pela crítica durante décadas, como “poeta da
morte”, enquanto seu único livro, mesmo durante meio século
com edições mal cuidadas controladas por um único editor, tirava
dezenas de edições e seus poemas eram decorados por gerações.
Augusto, quando sua obra passou para domínio público,
passou a ter edições bem cuidadas, uma delas com ensaio
primoroso de Ferreira Gullar. A um crético, um cretino crítico
que, em nome de uma pseudo-ética tenta desmerecer Leminski
por ele ser “popularesco”, Pé Vermelho tem de responder duro:
- É? Então vá ler o Catatau, ou os Ensaios Crípticos! Só a
poesia dele é popular, aliás é mais propriamente pop, popular é
pagode, sertanejo e axé!
O jornal Rascunho, logo que Toda Poesia entra nas listas de
mais vendidos, condensa a ranhetice anti-leminski numa matéria
de capa, com o título Polaco Oco, e, em duas páginas internas,
artigo com o título Sobraram apenas os óculos e o bigode. O
artigo não é devastador como os títulos maldosamente
manipulados sugerem, é escrito com dignidade, embora com o
intuito claro de atender à encomenda de desconstruir o mito.
Pé Vermelho lê o artigo, depois fica olhando a foto de
Leminski na orelha de Toda Poesia, o Polaco sorrindo com uma
margarida na orelha, passando a mão nos cabelos com olhar de
quem desafia docemente:
- Como é, cara? Você vai deixar assim?
Pé Vermelho liga o rádio e Roberto Carlos está cantando
querem acabar comigo / nem eu mesmo sei porque. / Enquanto eu
tiver você aqui / ninguém poderá me destruir... Dalva, esposa de
Pé Vermelho, traz café e se espanta de ver que está com os olhos
úmidos falando sozinho:
- Pode deixar, cara, eu estou aqui.
- Com quem você está falando? – ela pergunta e fica sem
resposta, porque ele já está escrevendo e, depois de enviar para
centenas de emails, envia para o Rascunho o artigo:
A despeito de Leminski:
POLACO OCO OU RASCUNHO CASMURRO?
“Rascunho teve época nazista, com matérias que não se
limitavam a comentar autores, queriam sua eliminação, como
quando estampou em título garrafal: Sebastião Uchoa Leite insiste
em fazer poesia: PARA COM ISSO, SEBASTIÃO! Rejeitado
pela reação ética de muitos leitores, Rascunho passou a limpo
essa fase, mas agora tem recaída (embora precavida porque
rescaldado) com a matéria sobre Leminski.
“A tentativa de ´matar` Leminski tem a precaução de se
armar com uma análise argumentativa e digna de Marcos Pasche,
revestida porém por um tratamento editorial raivoso e despeitado.
Na capa do jornal, em vez de foto do autor (como é regra do
jornal), uma ilustração bisonha e um título trocadilhesco que, no
afã de depreciar Leminski, deprecia o jornal: POLACO OCO. Nas
páginas centrais, um título raivoso e grotesco como a ilustração
que estampa: Sobraram apenas os óculos e o bigode.
“Acrescente-se que sobraram também os milhares de
leitores que já sabiam de cor poemas de Leminski, aos quais
agora vão se somando outros milhares. O título original de Pasche
decerto foi transformado em subtítulo: Toda poesia de Paulo
Leminski revela uma obra datada, vazia e repetitiva. Rascunho
manipulou a edição do artigo de forma a ´matar` toda a obra de
Leminski, enquanto o próprio articulista ressalva que sua poesia
tem ´brilhantes lances de criatividade`.
“Com Toda Poesia, os leitores podem ter visão geral e suas
próprias preferências, apesar das muitas baixices e inocuidades do
poeta. Como, porém, seus leitores são afetivos e argutos como
Leminski foi, isso não o matará, ao contrário. Ele não se queria
Deus perfeito, embora, sim, se dedicasse espertamente a criar a
imagem de um ´pop star literário` (o que não é crime nem é
anti-ético).
“É engraçado (ou é desgraçante) que os mesmos que
reclamam da literatura não ter mais leitores, não suportam quando
algum autor faz sucesso, como aliás detestam os livros de auto-
ajuda que, porém, sustentam a indústria editorial, até para que
possa também publicar livros outros.
“Esperemos que, na onda (que bela onda, Paulo, nós que te
amamos estamos tão felizes por você) na onda do sucesso de
Toda Poesia venham também a antologia, e a reedição de VIDA,
contendo as biografias de Jesus, Bashô, Cruz e Sousa e Trotsky,
primorosas pela agudeza amorosa com que foram escritas. E que
o Catatau continue a encantar quem gosta de vanguardices, e que
os Ensaios Crípticos continuem a ser exemplos de visão criativa,
com menos ou mais leitores mas sempre a configurar um escritor
que não pode ser despeitosamente reduzido a óculos e bigode.
“Leminski trouxe à poesia um frescor jovem, uma feição
pop, uma aura cult, e, principalmente, uma atitude de vida, que
vão continuar encantando os leitores de mente clara e coração
aberto. Não será com dois títulos casmurros que matarão
Leminski, embora ele esteja morrendo de rir.”

Também depois da publicação de Toda Poesia, Pé


Vermelho folheia La Vie en Close, e tem uma surpresa que
motiva escrever mais uma crônica sobre o Polaco, O Último
Poema de Paulo Leminski:
“Um conhecido poeta, que vê o polaco como rival na
posição de ´maior poeta da geração` (como se o mundo da poesia
não fosse um continente, mas uma montanha com um pico para
apenas um), me falou que a poesia de Leminski é ´mistura pobre
de pop com cult`.
“Concordei que é uma definição certeira, apenas alterando
uma palavra: ´mistura nobre de pop com cult`.
“Por pop entenda-se não só a fala popular, coloquial, da
poesia de Leminski, mas também seu romantismo, sua irônica
egolatria, seu debochado martirismo. Pois o povo é romântico,
adora idolatrar, vendo-se nos ídolos, como gosta de sublimar o
sofrimento, drible emocional para superar as dores.
“Nos últimos tempos eu não agüentava mais encontrar o
polaco, para não ver como se matava, no entanto coerente com
sua visão romântica de mártir poético, aprisionado pelo álcool
mas visando uma ressurreição artística.
“Bem, polaco, funcionou. Aquele teu ´rival` está se torcendo
de inveja.
`”Agora me deixe contar uma historinha que vai te fazer
soltar aquela risada meio escondida.
“Peguei La Vie em Close para folhear saudosamente, e eis
que o livro está roído por traças, que cavaram veios fundos
páginas adentro.
“Esses veios, quando folheio, formam desenhos simétricos
nas páginas esquerda e direita. Aqui formam uma flor, que
páginas adiante se transforma num molusco, que depois vira uma
árvore...
“Passei em revista todas as centenas de livros aqui da
biblioteca, verificando que era o único atacado pelas traças, e ia
jogar no lixo, quando me dei conta de que elas fizeram nele um
poema mutante, que pode ser chamado de Transformação.
“Como você se transformou, você não se mata mais, você se
tornou permanente.
“Com direito até a poema póstumo. Ou, conforme você: tão
doce, tão cedo / tão já / tudo de novo vira começo.”
Ou: isso de querer / ser exatamente aquilo / que a gente é /
ainda vai / nos levar além
# # #

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