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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
NÍVEL DOUTORADO

O VENTO DOS AVOADOS E OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM SAÚDE


MENTAL: EM BUSCA DE UMA ATENÇÃO ESTÉTICA

LAÍS BARRETO BARBOSA

NATAL-RN
2021
2

LAÍS BARRETO BARBOSA

O VENTO DOS AVOADOS E OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM SAÚDE


MENTAL: EM BUSCA DE UMA ATENÇÃO ESTÉTICA

Tese de Doutorado elaborada sob a orientação


da Profa. Dra. Ana Karenina de Melo Arraes,
apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.

NATAL-RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA

Barbosa, Lais Barreto.


O Vento dos Avoados e os processos de criação em saúde
mental: em busca de uma atenção estética / Lais Barreto Barbosa.
- Natal, 2021.
152f.: il. color.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, 2021.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Karenina de Melo Arraes Amorim.

1. Saúde mental - Teatro - Tese. 2. Esquizoanálise - Tese. 3.


Cuidado em Saúde Mental - Tese. 4. Atenção Estética - Tese. I.
Amorim, Ana Karenina de Melo Arraes. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9:792

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710


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AGRADECIMENTOS

Agradecer é como reconhecer. É momento de reconhecer que esta Tese só foi possível
porque foi sonhada e escrita coletivamente. Força coletiva que ganhou corpo inicial com meus
três amigos capazes de sonhar junto: agradeço imensamente a João Maria Ferreira, Eugenio
Sávio e Breno Lincoln Pereira de Souza Diniz, os três que se multiplicaram em milhares de
forças ao longo desses anos.
Reconheço que este trabalho só foi possível por estar vinculado ao Programa de Pós-
graduação de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Agradeço muito a
Professora Izabel Hazin e a toda equipe que compõe o Programa de Pós-graduação por todo
apoio que puderam oferecer ao longo desses anos. A minha orientadora, Professora Ana
Karenina de Melo Arraes Amorim, por sua condução delicada, amorosa e libertária, por
respeitar nossos tempos, limites e andar junto construindo um ritmo cheio de gentileza.
Agradeço às Professoras Maria Teresa Lisboa Nobre, pelas leituras cuidadosas e
grandes contribuições, e Flavia Helena Freire, por sua leitura delicada e por andar junto neste
campo do sensível e da amizade. Agradeço à Professora Maria Inês Badaró, por me acolher em
Santos e permitir que eu fizesse parte de sua trajetória.
A todo coletivo Gentileza, pelas trocas acadêmicas afetivas e sensíveis: é uma honra
estar junto de um grupo tão bonito.
A meu filho Guilherme Barreto Okano que me ensina que o amor é uma força a se
inventar todos os dias. Obrigada por tanto.
A minha família, irmãos e minha mãe. Nada seria possível sem tê-los.
A meu pai que, em sua falta, me obrigada a sonhar o impossível. Saudades eternas.
À Associação Potiguar Plural que dá vida a Luta Antimanicomial de Natal. Obrigada
por serem minha família, por permitirem a experiência de viver a palavra militância. Ao
Movimento Nacional de População de Rua do RN, a Vanilson Torres, a Halisson Foguete, à
Marcela “Mãe”, pela beleza e força que emprestaram à experiência do Vento dos Avoados. A
Katiane Galvão, pelo pássaro Coração Valente que voa em mim todos os dias. A Antônio Edson
que me abençoa todas as manhãs. Obrigada por tanto.
Obrigada Marcos Doc, pelo talento, cuidado e dedicação! A Gabriela Trindade, minha
filha de peixes, por sua presença amorosa, sua entrega, confiança e suavidade que deram ao
trabalho a estabilidade e delicadeza necessária a se realizar. A Breno Lincoln Pereira de Souza
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Diniz, amor de vida, alegria e potência que insiste na liberdade e nos ensina isso a todo
momento. Gracias!
Agradeço a minhas amigas oráculos Elisa Band, Janaína Leite, Tatiane Fico e a Paulo
Duek pelas inspirações, por serem solo gramífero de amor e companheirismo ao longo de todos
os tempos.
Aos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial de Natal: obrigada pela confiança e
parceria. A Fátima Couto e Gorete Ferreira que lutam verdadeiramente contra os manicômios
na cidade de Natal.
A Matheus Rocha e Thaíza Salgado que emprestaram seu olhar ao Vento e
transformaram experiência e aprendizagem em arte. A todas e todos os alunos que estiveram
conosco ao longo dos tempos do Vento. Obrigada a todos e todas que compuseram o coletivo
Vento dos Avoados que se fez, se desfez e ainda é em potência.
Ao vento da cidade de Natal por sua força movente de luta por liberdade.
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RESUMO

Esta pesquisa buscou analisar um processo de experimentação no campo da saúde mental em


composição com as artes cênicas em sua dimensão clínica, estética e política que se singularizou
com a criação do coletivo cenopoético Vento dos Avoados. A interface dos campos das artes,
da clínica e da loucura destacou-se no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira,
reconhecendo a tendência da autonomia do campo artístico-cultural com relação ao campo
psiquiátrico. A partir deste contexto, procuramos dar visibilidade a uma linguagem artística e a
sua relação com a clínica psicossocial. Trata-se de uma pesquisa-intervenção de inspiração
cartográfica, fundamentada na Filosofia da Diferença, nos autores da desinstitucionalização em
saúde mental e nos aportes teórico-metodológicos das artes cênicas com ênfase em Teatro
Documentário e performance. O campo da pesquisa consistiu em oficinas de experimentos
cênicos que tiveram como participantes pessoas do Movimento Nacional de População de Rua
do Rio Grande do Norte; usuários da Rede de Atenção Psicossocial; integrantes da Associação
Potiguar Plural; estudantes estagiários do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte; e dois profissionais das artes cênicas – sendo um deles a própria pesquisadora.
Como registros do campo, apresentamos as narrativas das performances cênicas
autobiográficas criadas pelo coletivo, os diários de campo cartográficos e dezesseis narrativas
transcritas a partir de um exercício cênico gravado em vídeo. As análises nos mostram que, ao
encenarem e performatizarem suas autobiografias, os participantes puderam encontrar histórias
alegres esquecidas que se sobrepunham as narrativas trágicas de suas vidas marcadas por
processos de exclusão social, institucionalização e violações de direitos. Essas memórias,
relembradas em seus corpos, produziram deslocamentos subjetivos capazes de gerar novas
formas de estar na cidade, nos serviços públicos e nos coletivos dos quais faziam parte. Deste
modo, eles descobriram um outro lugar na cidade e na relação dos seus corpos nela. Os
resultados mostram que a conexão dos campos da saúde mental, das performances cênicas
criadas a partir de pesquisas autobiográficas e da produção de uma clínica psicossocial
embasada no paradigma ético-estético-político fomentou a criação do conceito-ferramenta
“atenção estética”. Desta forma, esta pesquisa anuncia uma contribuição significativa do campo
da linguagem artística e cênica aos modos de fazer e pensar o campo da saúde mental no
contexto das intervenções psicossociais reconhecendo sua importância como campo político,
ético, estético.
6

Palavras-chave: Saúde mental; Cuidado em saúde mental; Esquizoanálise; Teatro; Atenção


estética.
ABSTRACT

This research aimed to analyze an experimentation process in the field of mental health in
composition with the performing arts in its clinical, aesthetic and political dimensions, which
became singular with the creation of the cenopoetic collective Vento dos Avoados. The
interface of the fields of the arts, the clinical and the madness stands out in the Brazilian
Psychiatric Reform process, highlighting the tendency to recognize the autonomy of the artistic-
cultural field in relation to the psychiatric field. Thus, we seek to give visibility to an artistic
language and its relationship with the psychosocial clinic. It is a research-intervention of
cartographic inspiration, based on the Philosophy of Difference, on the authors of
deinstitutionalization in mental health and on the theoretical-methodological contributions of
the scenic arts, with an emphasis on Documentary Theater and performance. The research field
consisted of scenic experiment workshops that had people from the Movimento Nacional de
População de Rua do Rio Grande do Norte; users of the Rede de Atenção Psicossocial; members
of the Associação Potiguar Plural; trainee students of the Psychology course at the Universidade
Federal do Rio Grande do Norte; and two performing arts professionals – one of them being
the researcher – as participants. As field records, we present the narratives of the
autobiographical scenic performances created by the collective, the cartographic field diaries
and sixteen narratives transcribed from a scenic exercise recorded on video, in addition to
photographic records made by the researcher and some participants. The analyzes show us that,
when performing their autobiographies, the participants were able to find joyful forgotten
stories that overlapped the tragic narratives of their lives marked by processes of social
exclusion, institutionalization and rights violations. These stories, remembered in their bodies,
produced subjective displacements capable of generating new ways of being in the city, in
public services and in the collectives of which they are part. In this way, they discovered another
place in the city and in the relationship of their bodies in it. The results reveal that the connection
between the fields of mental health, self-fictioned performances and the production of a
psychosocial clinic based on the ethical-aesthetic-political paradigm fostered the creation of the
“aesthetic care” tool-concept. Thus, this research announces a significant contribution from the
field of artistic and scenic language to ways of doing and thinking about the field of mental
7

health in the context of psychosocial interventions, recognizing its importance as a political,


ethical, and aesthetic field.

Keywords: Mental health; Mental health care; Schizoanalysis; Theater; Aesthetic attention.
8

LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Cartaz das oficinas realizadas pelo projeto “(In)Visíveis e loucos pela
cidade: oficinas e encontros libertários entre a saúde mental e a população em situação
de rua” ........................................................................................................................... 64
Figura 2. Cartaz produzido pelos alunos e pelas professoras envolvidos no projeto
“(In) Visíveis e loucos pela cidade: oficinas e encontros libertários entre a saúde
mental e a população em situação de rua” .................................................................... 76

LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1. Experimentações do exercício do abraço


Fonte: Arquivo de pesquisa .................................................................................... 76

Fotografia 2. Aquecimento experimentos nos diferentes planos


Fonte: Arquivo de pesquisa .................................................................................... 78
Fotografia 3. Registro do momento final da Mostra Cênica
Fonte: Arquivo de pesquisa .................................................................................... 97
Fotografia 4. Exercício de contorno dos corpos (massagem) em duplas
Fonte: Arquivo de pesquisa ................................................................................... 118
Fotografia 5. Semana da Luta Antimanicomial na Pinacoteca
Fonte: Arquivo de pesquisa ................................................................................... 121

SUMÁRIO
9

1 Introdução .............................................................................................................................. 10
2. Antes do Vento ...................................................................................................................... 14
2.1 A descoberta do Teatro e dos espaços da loucura ...................................................... 16
2.2 Arte, clínica e loucura .....................................................................................................21
2.3 Os teatros em nós ............................................................................................................29
2.4 Teatro Documentário, Teatro biográfico e Teatros do Real .......................................35

3. Composição de uma Pesquisa-intervenção Cartográfica ....................................................41


3.1 Tempo de pouso e de experimentação.............................................................................44
3.2 Exercício cênico disparador de narrativas.....................................................................46
3.3 Os diários de campo cartográficos.................................................................................49
3.4 Produção da análise.........................................................................................................51

4. Experimentos cênicos autoficcionados .................................................................................52

5. O Vento dos Avoados ............................................................................................................ 63


5.1 Oficina de Teatro na Pinacoteca.....................................................................................66
5.2 Temas disparadores como dispositivos de produção de si...........................................67
5.3 Performances autoficcionadas – Mostra Cênica da Semana da Luta
Antimanicomial.....................................................................................................................82
5.3.1 A música que ele fez para mim............................................................................83
5.3.2 O dançarino..........................................................................................................84
5.3.3 O nascimento........................................................................................................85
5.3.4 “Mãe”...................................................................................................................88
5.3.5 O bufão.................................................................................................................89

6. O Vento e a Cidade ................................................................................................................ 98


6.1 O aquário e as janelas ..................................................................................................100
6.2 O Vento e a liberdade .................................................................................................. 111

7 Atenção estética ......................................................................................................................117

8 Considerações finais: ainda venta ....................................................................................... 132

Referências ............................................................................................................................... 135

Apêndice – Instrumentos de pesquisa ....................................................................................139


10

Introdução

Esta pesquisa buscou acompanhar e analisar um processo de experimentação no campo


da saúde mental em composição com as artes cênicas em sua dimensão clínica, estética e
política que se singularizou com a criação do coletivo cenopoético Vento dos Avoados. Uma
vez que os campos das artes, da clínica e da loucura têm interfaces e que, no processo da
Reforma Psiquiátrica brasileira destaca-se, atualmente, a tendência ao reconhecimento da
autonomia do campo artístico-cultural com relação ao campo psiquiátrico, nós enfatizamos a
importância da produção de visibilidade de uma linguagem artística e sua relação com o campo
de uma clínica que seja composta de diferentes saberes e fazeres. Ao longo da narrativa da
trajetória desta pesquisa, buscamos acompanhar as paisagens, os acontecimentos e as mutações
de uma experimentação artística que ocorreu na interface dos campos da saúde mental, da
performance autobiográfica e da produção de uma possibilidade de clínica psicossocial que
tenha como singularidade uma “atenção estética”.
As perguntas que moveram esta investigação foram: de que forma as práticas artísticas
experimentadas puderam produzir experiências que potencializem a vida de pessoas que
necessitavam de atenção em saúde mental? Quais foram os caminhos percorridos ao longo dos
experimentos cênicos que cartografamos para pensar sobre as interfaces entre o relato de si, os
limiares entre a arte e a vida, a performance autobiográfica como manifestação cênica produtora
de novas subjetivações e uma clínica que tenha como paradigma a tríade ética, estética e
política? Qual a importância do conceito-ferramenta “atenção estética” para repensar modos de
se produzir saúde mental que enfatizem a dimensão estética como fundamental para se produzir
tal atenção?
Seguindo as linhas do paradigma ético-estético-político, a trajetória deste estudo
justificou-se, sobretudo, na necessidade da invenção de modos menores de se cuidar, buscando
uma potência estética e uma mudança ética no contexto da “clínica do fora” em saúde mental.
A clínica do fora ou clínica menor é aqui compreendida e advinda de uma experiência
transdisciplinar que se dá num espaço intervalar no devir entre a clínica e a arte, a clínica e a
filosofia, a clínica e a política onde pode-se proliferar encontros e composições (Passos &
Benevides, 2006). Esses autores observam no fazer clínico um acompanhamento dos
movimentos afetivos da existência que se dão “na construção de cartas de intensidade ou
cartografias que registram menos os estados do que os fluxos, menos as formas do que as forças,
menos as propriedades de si do que os devires para fora de si” (Passos & Benevides, 2006, p.
11

3). Assim, esta pesquisa procurou investigar e analisar o processo de experimentação cênica e
de criação coletiva no campo do sensível que culminou na composição do coletivo cenopoético
Vento dos Avoados. Como objetivos específicos, buscamos: a) identificar e analisar as
interfaces entre as performances autobiográficas (autoficcionadas) e a produção de outros
modos de subjetivação; b) analisar as práticas realizadas coletivamente em sua dimensão ética,
estética e política; c) cartografar os experimentos sensíveis produzidos ao longo das oficinas
em seus processos criativos endereçados à produção de outras possibilidades de intervenções
psicossociais.
Como percurso metodológico foi realizada uma pesquisa-intervenção com inspiração
cartográfica, que intentou acompanhar, descrever e analisar os processos interventivos e as
experimentações no campo híbrido das intervenções clínicas e das artes cênicas, mais
especificamente das performances autobiográficas que aconteceram ao longo de três anos e que
culminaram na criação do coletivo cenopoético Vento dos Avoados. Essas experimentações
tiveram como território inicial a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a
Associação Potiguar de usuários e familiares da Saúde Mental Plural do Rio Grande do Norte.
Em seguida, participaram alunos do curso de Psicologia no contexto de um projeto de pesquisa
e extensão “(In)Visíveis e loucos pela cidade: oficinas e encontros libertários entre a saúde
mental e a população em situação de rua”, o Movimento Nacional de População de Rua do Rio
Grande do Norte (MNPR/RN) e um diretor artístico do campo das artes cênicas potiguar,
Apolo. As oficinas de Teatro, parte do projeto de extensão supracitado, foram realizadas por
todo ano de 2016 na Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte. A performance
autobiográfica inspirada na estética do Teatro Documentário, somada às invenções no campo
do sensível, foram superfície de acontecimentos para a criação de um dispositivo clínico,
estético e político que será cartografado e analisado neste estudo. A partir da hibridez desses
campos, esboçaremos algumas linhas de análise possíveis para pensarmos as práticas cênicas
realizadas e a criação do conceito-ferramenta “atenção estética”, concebido experimentalmente
a partir dos procedimentos que realizamos ao longo das oficinas.
Lançamos mão de diferentes “políticas de narratividade”1, ou seja, de diversas formas
de mostrar e dizer a produção desse percurso. No segundo capítulo, “Antes do Vento”, narro
autobiograficamente meu encontro com o Teatro, com o campo do saber psicológico e da
instituição psiquiátrica. Em seguida, abordo uma composição com discussões que pensam os

1
Esse termo foi cunhado por Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros no capítulo “Diário de bordo de uma
viagem-intervenção” do livro Pistas do método da cartografia (2010).
12

lugares da arte, da clínica e da loucura e as devidas mutações desses campos. Ainda nesse
capítulo, reflito sobre o Teatro e sua potência em minha vida, uma vez que é compreendido
como uma ampliação do campo sensível existente em todos nós. Desse modo, exponho as
transformações do Teatro de representação como linguagem cênica tradicional para outras
maneiras de expressão estética, assim como a linguagem do relato de si transformado nas
performances autobiográficas. Apresento, então, seus desvios em minha vida e no meu fazer
como psicóloga no encontro com a potência do Teatro Documentário, autobiográfico e os
chamados Teatros do Real.
No terceiro capítulo, explano o delineamento metodológico da pesquisa como uma
intervenção cartográfica que tem como primeiro território a Associação Potiguar Plural e, em
um segundo momento, ganha outro espaço: um projeto de extensão e de estágio do curso de
Psicologia da UFRN com diversas composições – pessoas do MNPR/RN, algumas pessoas que
frequentavam os serviços da Rede de Atenção Psicossocial de Natal e pessoas internadas e
trabalhadoras do Hospital Psiquiátrico João Machado. O campo da pesquisa é um processo
cartografado ao longo da temporalidade e suas linhas chegam até criação do coletivo
cenopoético Vento dos Avoados. A experiência do coletivo foi cartografada e analisada para
tornar-se dispositivo clínico ético, político e estético em saúde mental na dimensão do que
vamos chamar de “atenção estética”.
No quarto capítulo, apresento e analiso as primeiras experimentações cênicas feitas com
algumas pessoas da Associação Potiguar Plural. Batizei os primeiros experimentos cênicos de
autoficcionados. Eles nos serviram de laboratório de experimentação e inspiração para a
continuidade das pesquisas naquela estética teatral que partia do relato de si.
No quinto capítulo, intitulado “O Vento dos Avoados”, apresento o início das oficinas
de Teatro na Pinacoteca Potiguar que tiveram como território um campo de extensão e estágio
para alunos da UFRN. Nesse capítulo, investigo a metodologia de trabalho para a realização de
nossas pesquisas cênicas, tais como os temas disparadores que criamos como dispositivos para
o relato de si – que subsidiaram a criação das performances autoficcionadas.
No sexto capítulo, analiso as minhas narrativas produzidas a partir dos depoimentos das
rodas de conversa cênica, realizadas no final das oficinas quando tínhamos um grupo bastante
diverso, com a presença massiva de pessoas internadas no Hospital Psiquiátrico João Machado,
profissionais dessa instituição, alunos e outros novos participantes.
13

No sétimo capítulo, recupero nossos procedimentos estéticos elaborados ao longo dos


três anos de pesquisa (que iniciaram antes do período do Doutorado) para forjar o conceito de
“atenção estética”, a partir da exploração das conceituações de atenção e de estética.
E, no último capítulo, teço as considerações finais sobre a cartografia realizada e realço
as interfaces entre os campos da clínica do fora, as performances autoficcionadas e os caminhos
para uma atenção estética em sua potência como uma dimensão importante a ser considerada
como tecnologia no cuidado em saúde mental.
14

2 Antes do Vento

Como plano de composição teórico, nos inspiramos na Esquizoanálise criada a partir da


Filosofia da Diferença. Nesse campo, filosofar seria criar e recriar conceitos, não havendo uma
ideia ou imagem preconcebida a ser alcançada ou reapresentada. Em outros termos: não há
cópias a serem reproduzidas, mas sim invenções, criações de pensamentos e conceitos na
dimensão da temporalidade finita. Assim, na Filosofia da Diferença, trata-se de inventar outras
imagens para o pensamento por meio de encontros entre a filosofia, a ciência, as artes e tantos
outros campos de conhecimento. Tal modo de filosofar recusa a alternativa geral da
representação infinita: critica a imagem da ideia do pensar como verdade, critica o
indeterminado, o indiferente, o indiferenciado, ou então uma diferença já determinada como
negação, implicando e envolvendo o negativo. “Em sua essência, a diferença é objeto de
afirmação, ela própria é afirmação. Em sua essência, a afirmação é ela própria diferença”
(Deleuze, 1997, p. 59).
Em Deleuze (1997), a questão fundamental do pensamento é a criação: pensar é inventar
o caminho da vida, pensar é fazer o novo, é tornar novamente o pensamento possível. Tornar o
pensamento possível é o contrário de entendê-lo como uma contemplação em direção à uma
ideia pronta, ou como uma comunicação inserida num jogo de intersubjetividade, ou mesmo
como uma reflexão sobre um objeto determinado (Vasconcellos, 2005). A Filosofia da
Diferença nos convida ao movimento do pensamento que sempre muda, ao devir como zona de
indeterminação e ao estímulo da nossa capacidade de encontrar a diferença naquilo que se
repete eternamente. A diferença nessa acepção é afirmativa. O que difere não é o mesmo ou o
idêntico que retorna, mas sim a diferença em sua singularidade, sua afirmação de desejo em
ato.
Conta-nos Hur (2012) que a Esquizoanálise foi criada pelo filósofo Gilles Deleuze
(1925-1995) e pelo psicanalista e militante Félix Guattari (1930-1992) após os acontecimentos
de 1968 em Paris, produzindo “uma expressão teórica da crítica e criatividade daquele
acontecimento social” (Hur, 2012, p. 264). Tal “expressão teórica” influenciou criticamente as
práticas instituídas da Psicologia brasileira a partir da década de 1970 nos campos da saúde
mental e da Psicologia clínica, refazendo a leitura de algumas práticas e teorias. Nesse modo
de viver a clínica, o conceito de desejo e o de inconsciente são lançados para fora da dimensão
familiar para uma leitura crítica de seu imbricamento produtivo das relações políticas, sociais
e econômicas. Assim, para a Esquizoanálise, as relações entre psiquismo e sociedade são
15

extrapoladas das instâncias da família nuclear burguesa do século XIX – da neurose e de um


desejo inconsciente intrapsíquico criado pela construção familiar – para uma leitura do desejo
e do inconsciente como produzidos e produtores por meio do sistema capitalista e pelo
funcionamento esquizofrênico, no qual os códigos semióticos criados pelo regime capitalístico
não têm mais territórios fixos de enunciação – como na neurose. A esquizofrenia é entendida
não como conceito psicopatológico, mas sim como um modo e uma possibilidade de estar no
mundo, um estar no mundo fora dos códigos semióticos hegemônicos, fora da linguagem
simbólica preestabelecida, uma saída e, acima de tudo, uma multiplicidade. “Para a
Esquizoanálise é necessário saltar do complexo de Édipo e de todas as suas significações para
fazer fluir os fluxos desejantes, para se descobrir como funciona o investimento inconsciente
no campo social e o que bloqueia esse movimento” (Hur, 2012, p. 266). A Esquizoanálise seria,
então, a análise do desejo no corpo social, uma análise da micropolítica do desejo.
Desse modo, o desejo circula e extrapola o campo simbólico: o desejo é produtivo, o
campo do real é atualização da virtualidade num eterno movimento e circuito que se dá entre o
cosmos e o caos, entre as instâncias humanas e não humanas. A noção do eu e do sujeito, nessa
perspectiva, devém da necessidade vital de descentralização destas instâncias nucleares para a
noção de uma composição feita entre as zonas fronteiriças e de indiferenciação com outros
modos de ser. Isso é chamado por Deleuze de “devir”, que não se confunde com tornar-se outro,
mas sim chegar tão perto do outro (humano ou não humano) a ponto de se indiferenciar, roubar
do outro aquilo que pode ajudar a criar sua própria língua e gramática. Essa língua que luta por
se livrar, despossuir, deixar de seguir os códigos da língua instituída de uma suposta língua
materna. A Filosofia da Diferença e a Esquizoanálise tratam, sobretudo, da luta – por meio de
um movimento incessante – pela liberdade de uma existência como um acontecimento que se
dá numa superfície desejante, capaz de criar outras realidades nessa capacidade de devir, de se
compor e recompor de maneira também incessante. O caminho dessa luta exige coletivização:
“a Esquizoanálise teria como ponto de aplicação ideal os grupos, e grupos militantes: pois é aí
que se dispõem mais imediatamente de um material extrafamiliar [....] A Esquizoanálise é uma
análise militante, libidinal econômica, libidinal política” (Deleuze, 2010, p. 30).
Será, então, a partir do Paradigma Estético (Guattari, 1992) proposto na Esquizoanálise
que nos guiaremos para pensar sobre nossas descobertas e criações de nossos protocolos de
experimentações ao longo da pesquisa. Guattari, em seu livro Caosmose – um novo paradigma
estético (1992), coloca-nos a perspectiva esquizoanalítica como a possibilidade de ruptura com
os paradigmas científicos para tornar possível outras produções de subjetividade sob a égide de
16

paradigmas ético-pragmáticos ou ético-estéticos. Diz que o lugar da estética na vida ocidental


apartou-se de um território pertencente às vidas e nos convida ao pensamento que terá muita
importância em nossa pesquisa: “a potência estética de sentir, embora igual em direito as outras
potências de pensar filosoficamente, de conhecer cientificamente, de agir politicamente, talvez
esteja em vias de ocupar uma posição privilegiada no seio dos agenciamentos coletivos de
enunciação de nossa época” (Guattari, 1992, p. 13). Para tentar exemplificar um pensamento
mais pragmático sobre tal paradigma, o trecho baixo fala sobre uma produção sui generis, que
trata de uma recomposição da corporeidade existencial a ponto de uma ressingularização:

Não se trata simplesmente, portanto, de uma remodelagem da subjetividade dos


pacientes, tal como preexistia a crise psicótica, mas de uma produção sui generis. Não
é unicamente o confronto com uma nova matéria de expressão, é a constituição de
complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas, que oferecem a
pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair
de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, de se ressingularizar (Guattari, 1992
p. 17).

Pensar com a Esquizoanálise e o entendimento que ela faz do inconsciente e do desejo


faz todo sentido na narrativa que conto a partir daqui. Foi o desejo que fabricou todo nosso agir
coletivo, foi o desejo de que a vida vibrasse com mais sentidos que me levou ao Teatro há anos
e foi o desejo que transformou meu fazer em Psicologia um campo que buscava aquele encontro
novamente. O meu desejo ventava em busca dos “avoados”. Daqui para frente, é do desejo que
tratamos. Uma ressalva somente: para que o desejo caminhe, ele precisa de ventos de liberdade
e isso eu encontrei na UFRN, na Associação Potiguar Plural de usuários e usuárias de saúde
mental, e em todos e todas que desejaram esse encontro: do vento e da liberdade de ser avoado.

2.1 A descoberta do Teatro e dos espaços da loucura

A história que inicio a contar aqui é parte da minha vida – parte fundamental, eu diria.
Meu encontro com o Teatro deu-se antes de minha formação em Psicologia e muito antes do
exercício da pesquisa acadêmica e do exercício profissional. Em minha existência, essa forma
de arte me foi bússola, balsa de travessia, superfície sempre lisa e guia intuitivo dos meus
processos de autocriação, compreensão e produção de mundo. Hoje posso dizer que me foi
também curativo para momentos de sofrimento e, portanto, me acompanhou durante meus
deslocamentos e transformações subjetivas, fazendo-me ver que há sempre a possibilidade de
17

criar outros modos de existir em qualquer contexto. E, mesmo quando essa prática estética e
artística estava longe de minha vida, sempre houve um espaço em que a guardava como um
trunfo, cristal precioso a ser usado a qualquer momento, que me traria novamente uma potência
para as dores e as necessidades de invenção da vida.
Para mim, Teatro é um estado de alargamento existencial, portanto político, que se faz
na luta pela presença da afirmação de um corpo ou superfície de contato com tudo o que ele
guarda/carrega do mundo e tudo o que ele ainda pode mostrar, se esvaziar e se tornar, assim
sucessivamente. Em seu fazer, o Teatro leva aquilo que é singular de cada experiência para o
outro (outro como pessoa, natureza, corpo social, tecnológico etc.) e deste para um outro lugar,
promovendo um campo expandido contagioso entre o singular e o coletivo, lugar sempre novo
e irrepetível. Daí sua característica maior: a capacidade de transmutação das letras e palavras
em gesto, da voz ao grito e à escuta, do corpo à dança, do sentir ao ato, da solidão à presença
múltipla, da secura de sentir-se só ao suor molhado do encontro coletivo. Faz-se no devir do
encontro com o múltiplo em nós e agencia a passagem dos afetos singulares à afecção coletiva
e sua potência de forjar uma outra realidade interna e externa. É um “lugar” como uma
superfície invisível passível de inscrição com signos ou sem significação, entretanto, que se faz
marca, se faz gesto e este nos ultrapassa e nos modifica. Teatro é um exercício mundano que
acontece no plano comunal em que a transformação de quem faz e de quem o recebe é evidente,
empírica e extremamente científica porque se dá num campo sensível ético, estético e, em
especial, político.
Iniciei-me no Teatro aos dezesseis anos, no Teatro Escola Macunaíma na cidade de São
Paulo. Nessa época, cursava o Ensino Médio e percebia minha inclinação quase indiscutível
para as Ciências Humanas. Filosofia, História e Literatura me fascinavam e, juntamente com o
Teatro, não me deixavam dúvida que eu adorava tudo o que construía o “humano” e que podia
transformá-lo. No Teatro, os efeitos de criação cênica são precedidos pela aprendizagem de
improvisar, pela liberdade de errar e nos repetir exaustivamente, da expressão corporal e vocal
livre, da ampliação sobre o conhecimento de nosso corpo e de seus planos, limites e infinitas
possibilidades de transformações, da comunicação verbal e não verbal. É no corpo – que chamo
de superfície de contato externada pela nossa pele – que o Teatro habita. Dessa aprendizagem
exaustiva que o fazer Teatro nos convoca – porque é repetitiva ao infinito no campo do sensível
–, acessamos uma outra pele afirmativamente cansada (o bom cansaço) e desdobrada em outra.
Em sua profundidade e superfície absoluta, dá-se passagem a outros universos. Assim, foi na
intensidade da montagem e da pesquisa de laboratório para a montagem da peça Os sete
18

gatinhos que me chegou às mãos uma citação de uma obra de Freud. Ela dizia que Nélson
Rodrigues (1912-1980) trabalhava seus personagens com instância inconsciente do “id” do
aparelho psíquico. Aquela informação levou-me a pesquisar sobre a estrutura do aparelho
psíquico em Freud e o interesse pela área “psi” se revelou pela primeira vez em minha vida, em
uma das interfaces possíveis entre um escritor dramaturgo e uma corrente de pensamento
chamada Psicanálise. Fez-se a primeira ponte e um pequeno atalho me levaria à teoria
psicanalítica, em busca da compreensão daqueles personagens imorais e amorais que o autor
descrevia em suas obras, numa postura crítica aos códigos morais presentes nas famílias
brasileiras burguesas da época2. Para explicar a construção das personagens, a Psicanálise era
convocada numa interpretação libidinal das amoralidades. O responsável por aqueles atos
daqueles personagens humanos demais era uma parte do inconsciente, o id, que naqueles corria
solto sem a censura das instâncias que regiam o princípio da realidade, como o ego e o superego.
Mas, na verdade, Nélson Rodrigues nos falava muito mais de uma sociedade e do que acontecia
nas famílias da nossa nação nos anos de 1930 do que de pulsões não interditas. Assim, com
essa primeira pista, caminhei em direção à Psicologia sonhando haver um diálogo entre as artes
cênicas e aquilo que eu imaginava ser esse estudo da mente.
Meu encontro/desencontro, encanto/desencanto com a formação em Psicologia se deu
em uma universidade particular de São Paulo. No momento inicial, encantei-me com os
primeiros momentos do curso. Porém, depois deparei-me com os principais campos de atuação
daquele campo de conhecimento. Naquela época, como instituição normativa de ensino, ela
oferecia: a psicologia escolar, a psicometria, a psicologia organizacional e a clínica stricto
sensu. A própria psicologia social era herdeira das teorias de grupo filiada das correntes norte-
americanas. Eram traduções enlatadas, hoje diríamos importações coloniais de uma ciência
ainda por se fazer no nosso país e que não me faziam o menor sentido. Em termos teóricos e
clínicos, glorificava-se a teoria psicanalítica e a análise de comportamento; pouco se falava nas
outras abordagens teóricas. Era complicado encontrar algum sentido nas vertentes e nas teorias
hegemônicas existentes, afinal, eu estava em uma universidade particular, em 2003, na cidade
de São Paulo, e não se dialogava na época sobre instituições, movimentos sociais, psicologia
comunitária, saúde coletiva, entre tantos outros saberes (em sua maioria, críticos) que a
Psicologia pode e deve se ocupar como um instrumento político.

2
Em suas obras, Nélson Rodrigues abordava questões como incestos, traições, liberdade sexual, machismo,
patriarcado, violências, infâncias roubadas. Dizia-se um reacionário e chegou a apoiar a ditadura brasileira, no
entanto, reviu sua posição ético e política ao ter um filho torturado na época do regime ditatorial brasileiro.
19

No decorrer da minha formação em Psicologia, foi na disciplina de psicopatologia que


minha inquietação, horror, fascínio, espanto e escárnio pelo campo da saúde mental se disparou.
Encontrei-me naquelas aulas feitas em auditórios dos hospitais psiquiátricos, cujo método era
expor os pacientes, que narravam suas histórias delirantes, no meio de uma sala cheia de alunos.
Logo, fazia-se uma discussão dos “casos clínicos” para que os estudantes se aproximassem do
fenômeno dos quadros psicopatológicos. Aquilo era uma encenação de representação do horror
e de uma ideia de doença. Constatávamos que o “paciente” representava a personagem/doença
que o professor tinha que nos ensinar. A ida ao Hospital Psiquiátrico da Água Funda em São
Paulo me inquietava negativamente, mas, naquele período, não discutíamos a instituição
psiquiátrica criticamente, tínhamos que aprender a psicopatologia e a semiologia dos
transtornos mentais acriticamente. E a maneira de aprendermos era assistindo as cenas que
tinham como personagem, cenário, figurino e palco o Hospital Psiquiátrico: éramos
espectadores de uma cena com roteiro e dramaturgia prontos, que nos faziam ver a simulação
de uma doença concebida ali, onde o protagonista reapresentava uma cena pronta. Dali nasceu
um desejo de não mais aceitar as verdades que se contavam naquele palco. Eu me perguntava:
quem eram aquelas pessoas? Por que não se perguntavam sobre suas vidas e sim sobre as ideias
de delírio ou alucinações que ali elas reproduziam? O que as levava a atuar segundo aquele
texto/dramaturgia? Quem eram os autores daquele texto? Eles representavam uma doença
preestabelecida? E se performassem suas vidas, se não houvesse texto nem roteiro? O que
aquele roteiro e dramaturgia preexistentes e fechados produziam em todos nós?
Continuei bastante inquieta com o campo da saúde mental e iniciei, a partir daí, um
percurso pessoal de pesquisas sobre o que acontecia dentro dos Hospitais Psiquiátricos. Assisti
filmes, li textos e fui me aproximando dos conteúdos das Reformas Psiquiátricas, conhecimento
que me emprestou um olhar crítico àquilo que eu tinha desaprendido na faculdade. Na época,
fui me aproximando aos poucos de um dos movimentos sociais pertencentes ao da Luta
Antimanicomial de São Paulo no ano de 2007: conheci o Fórum Social por uma Sociedade sem
Manicômios, movimento precursor da Associação Brasileira de Saúde de Mental (ABRASME).
Nesses tempos, o Fórum e o movimento que ele representava tiveram um lugar
importante em minha formação. Todavia, sentia, inicialmente, que eles eram somente
representativos de uma causa, soando panfletários por vezes. Eu não conseguia me sentir
integrada e compreender a real importância de minha participação naquele espaço, tampouco
sua dimensão política: não conseguia experienciar a militância. As reuniões funcionavam para
discutir agendas políticas, reuniam poucos usuários e familiares e eu me sentia com muitas
20

dificuldades de uma real participação, pois não era usuária nem familiar. Era um lugar estranho
até aquele momento.
Em minhas pesquisas sobre o tema dos hospitais psiquiátricos e suas repercussões na
vida das pessoas, em determinado momento deparei-me com as expressões artísticas de forma
geral e a sua produção nos espaços psiquiátricos. Lembro-me da minha primeira experiência
fílmica sobre o tema: a trilogia produzida por Leon Hirszman (1937-1987) chamada de Imagens
do inconsciente. Nesse documentário, filmado no Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde Nise da
Silveira trabalhava na década de 1940, é retratado o tratamento de alguns pacientes via
produções plásticas produzidas nos ateliês de pintura que ela conduzia no Setor de Terapia
Ocupacional. As pinturas eram relacionadas às suas histórias de vida. A cada expressão plástica,
o narrador do documentário traçava interpretações mitológicas e pessoais sobre a vida daquelas
pessoas. Era bonito, trágico e havia uma aura mítica nas interpretações das obras que nos
remetiam aos pensamentos junguianos sobre inconsciente coletivo, imagens arquetípicas e suas
interfaces com a vida daquelas pessoas. O que me fascinava nesses documentários eram as
histórias daquelas vidas antes de estarem ali: as perdas amorosas, as infâncias e as tantas
histórias que se aproximavam da vida de todos. Eu percebia que o ato de pintar e a condução
da narrativa para algumas memórias de outros tempos e lugares os trazia àquela vida que fora
deixada ao lado de fora dos portões do Hospital.
Segui no campo de trabalho da saúde mental em escolas e instituições/depósitos de
pessoas, até me formar como psicóloga. Inquieta, desejante em unir as duas pontas de minha
vida: a liberdade que o fazer teatral tinha me dado e as experiências, muitas vezes sem sentido
e aprisionantes, que o mundo “psi” (Psicologia, Psicanálise e Psiquiatria) tinham me causado
até então. Havia algo ali para ser curado. Não gosto dessa palavra, mas, olhando para atrás,
acho que foi isso: a formação em Psicologia me aprisionava com seus testes, suas teorias sobre
o inconsciente, a personalidade e sua psicopatologia sem alma, sem corpo, sem histórias, sem
pessoa e sem sentido. O fazer teatral me libertava, permitia a invenção de mundos, o calor dos
corpos e os encontros múltiplos. Dessa encruzilhada, eu buscava intercessores: eis Deleuze
(1997) que nos apresenta a necessidade de os fabricarmos:

Os intercessores são quaisquer encontros que fazem com que o pensamento saia de sua
imobilidade natural, de seu estupor. A criação são os intercessores. Podem ser pessoas
– para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas
também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados
ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores (Deleuze, 1997, p. 156).
21

Sim, eu tinha que fabricar os meus intercessores. Assim os buscava, mas ainda não
concebia aquele conceito como o concebo hoje: uma fuga daquele antagonismo binário no qual
eu mesma me prendia (aniquilamento existencial versus criação de mundo). O pensamento
psicológico e a criação artística eram saberes e fazeres dissociados e impossíveis de conciliação
até aquele momento. Uma ação era observar que a genialidade da criação era muito presente
nos “estados” da loucura; mas outra era manufaturar esse encontro fora dessa genialidade já
tida como “natural” na loucura. Foram muitos os que passaram pela encruzilhada das artes e da
loucura como seres geniais e que dissolveram esses campos (alguns no lado “psi”, outros
artistas, mas todos intercessores): Antonin Artaud, Nise da Silveira, Augusto Boal, Lygia Clark,
Arthur Bispo do Rosário, Estamira, Stela do Patrocínio, Maura Lopes Cançado, Profeta
Gentileza (José Datrin), Austregésilo Carrano Bueno e muitos poetas artistas e profissionais
“psis” contaminados com essa produção de vida intensa que gera arte a partir da precariedade
material e afetiva que viviam e dos inúmeros atentados contra suas existências.
Sabemos que a ligação entre arte, loucura e clínica é antiga. Esses fazeres e o campo de
saber relativo a ele nas áreas “psi” sempre estiveram ligados, mas como num cabo de guerra:
ora as forças pendiam para um lado, ora para outro. Isso me inquietava também! Ora a clínica
usando a arte como fazer terapêutico, ora a arte reconhecida como expressão artística e estética
presa num museu ou no Teatro fechado. Se algo era terapêutico era porque não era arte e se era
arte não poderia ser terapêutico. Eu ainda não havia descoberto que é no lugar das passagens
que a experiência artística e a clínica podem se encontrar, numa breve passagem de uma ação
à outra e que pode se tornar outra nesse vão. Não obstante, o vão estava cheio de premissas
sobre o que era arte e o que era “saúde mental”. Foi preciso esvaziá-lo.

2.2 Arte, clínica e loucura

Aos poucos, a vizinhança entre arte, clínica e loucura se fez clara. Isso nos confirma
Elizabeth Araújo Lima (2009), pesquisadora e professora do campo da Terapia Ocupacional,
que se debruça sobre a composição desses temas há muitos anos:

Entre a busca de ruptura da linguagem artística e o esforço para inserir nessa linguagem
expressões singulares, solitárias e sem sentido até então, o fazer artístico e o fazer
terapêutico se encontram. E se a arte passa a poder comportar esse tipo de experiência
limite, isso terá também profundas consequências para a clínica (Lima, 2009, p. 215).
22

A autora fala sobre uma zona de indiscernibilidade entre a arte, a clínica e a loucura,
batizando os campos como “territórios em mutação”. Em sua compreensão, não buscou reduzir
ou submeter um campo ao outro: ela concebeu, em sua pesquisa, as zonas fronteiriças e uma
vizinhança amiga entre as práticas clínicas, a arte e as experiências de “loucura”. Há uma
invenção nesse imbricamento dos três campos que se misturam, há mutação dessas paisagens,
diz ela. A loucura pode se deslocar do campo psicológico e psicopatológico pertencente a uma
“interioridade subjetiva”. A arte extrapola o campo do estético entendido como belo e como
produtora de uma obra finalizada dissociada do contexto histórico e político em que foi
produzida. E a clínica pode se expandir do campo “psi” para sua relação de avizinhamento com
as artes. Essa é uma longa história que já conta com uma produção teórica muito rica. A partir
do deslocamento dessas três figuras (arte, clínica e loucura), que se desmontam e remontam ao
longo da história, a autora nos convoca a pensar um novo lugar para as artes na clínica. Em sua
pesquisa, questões importantes são levantadas ao pensar na interface desses campos: “o que a
conexão com a arte potencializa na clínica; como a arte pode, em espaços clínicos, facilitar
trajetos quando estamos lidando com processos de subjetivação marcados pela precariedade e
o inacabamento, muitas vezes acompanhados pelo desvalor e pela exclusão” (Lima, 2009, p.
224).
Seguindo uma perspectiva de uma pesquisa genealógica nesse campo, Ferigato et al.
(2011) nos mostram que o uso das terapias expressivas se estruturou inicialmente sob a
orientação da Psicanálise e, num primeiro momento, tais terapias eram usadas como
instrumentos diagnósticos, com o objetivo de complementar o conhecimento acerca das
doenças mentais. Segundo os autores, foi o psiquiatra Paul Max Simom, em 1876, que primeiro
se referiu ao uso da arte no contexto clínico com fins de diagnóstico. Nessa mesma época,
Cesare Lombroso, também psiquiatra e criminologista, estudando obras de artes plásticas de
seus pacientes, refere-se a elas como obras que encerram conteúdos primitivos, representações
atávicas de emoções regredidas. Em 1920, o psiquiatra e historiador de arte alemão Hans
Prinzhorn (1886-1933) analisou uma coleção de obras de artes plásticas e outros objetos feitos
por pacientes de hospitais de toda a Europa (reunidos entre os anos de 1890 a 1920), a chamada
de coleção de Heidelberg. Segundo sua análise, as obras revelavam a necessidade de colocar
ordem no caos vivenciado pelos internos. As expressões plásticas se direcionavam, dessa forma,
de uma pulsão interna para a possibilidade de expressão artística, sempre no sentido de
organizar o caos interno. Ainda nesse estudo, os autores apontam que, posteriormente, o campo
teórico da Psicanálise se ocupou da interpretação das produções artísticas dos psicóticos e,
23

algum tempo mais tarde, se coadunou com as perspectivas humanistas e gestálticas muito
relacionadas às tentativas de humanização dos hospitais psiquiátricos. Na Europa, depois da
Segunda Guerra Mundial, os hospitais psiquiátricos foram alvo de muitas críticas, sendo
comparados aos campos de concentração e extermínio, questão que inspirou e impulsionou na
Europa os três diferentes movimentos de Reforma Psiquiátrica: o inglês, o francês e a
Psiquiatria democrática italiana, as quais inspiraram o movimento reformista brasileiro muitos
anos depois. Ficamos até aqui com a “ideia/ideal de arte” como instrumento de expressão de
uma “desorganização” da pulsão interna daqueles pacientes. Em um nível institucional, sua
prática servia para tornar os manicômios mais “humanos” com a oferta de atividades
ocupacionais e artísticas, principalmente na linguagem das artes plásticas.
No Brasil, com a instauração da Psiquiatria como ciência e prática médica, no século
XIX, os grandes hospitais colônia receberam as influências europeias no tocante aos espaços
de produção das artes plásticas como possibilidade terapêutica, sendo possibilitados, dessa
forma, os estudos produzidos no campo psiquiátrico sobre as expressões artísticas dos internos.
As atividades de artes plásticas foram empregadas como intervenção no campo da saúde mental
pela primeira vez no Brasil na década de 1920 por Osório Cesar, no Hospital Juquery, em São
Paulo. Em 1948, foi implantada a Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, ano em que a
atividade passou a ter um espaço apropriado como um ateliê e se pôde consolidar a troca entre
os internos e vários artistas modernistas que passaram a frequentá-lo. Porém, encontramos uma
forte tendência à psicopatologização das obras produzidas pelos internos, bem como o
entendimento dessas produções como “artes inferiores”, comparadas com a arte primitiva, arte
bruta ou como produções artísticas “infantis”, não chegando ao reconhecimento delas sem esses
prejuízos de valor estético. Os pacientes não podiam ser reconhecidos como criadores ou
artistas, pois continuavam assinando as obras com seu diagnóstico ao lado, sua produção
artística tinha relação com sua expressão de um quadro psicopatológico. Além de Osório Cesár,
foi também com a médica psiquiatra Nise da Silveira, em 1946, na criação da Seção de
Terapêutica Ocupacional do Hospital de engenho de dentro, no Rio de Janeiro, que o trabalho
nos asilos se ligou a uma forma de cultura terapêutica e a produção artística ganhou um novo
sentido, ativando a conexão dos campos da clínica, das artes e da saúde mental. Para Nise da
Silveira, muito além das representações dos conteúdos pessoais reprimidos, a expressão
artística plástica não poderia ser compreendida como reflexos de sintomas. O paciente, além de
expressar-se, compartilharia, por meio de símbolos, a criação de algo novo, transformando a
realidade psíquica e também a realidade compartilhada (Milhomens & Lima, 2014). No ano de
24

1961, o nome dessa seção muda para Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR),
demarcando a importância da reabilitação nesse trabalho. Mas, ainda estávamos muito longe
da Reforma Psiquiátrica e do contexto de reabilitação psicossocial que essas ações guardavam
em sua intenção.
Nessa época, a teoria da Psicanálise chega ao Brasil. A ciência psiquiátrica logo
empresta seu saber para interpretar e assim desvelar os motivos inconscientes que levavam os
artistas a produzirem suas obras, sendo elas entendidas como processos de sublimação de
sintomas. No mesmo período, as expressões do movimento surrealista europeu são importadas
pelos artistas plásticos do nosso país, inaugurando e influenciando o movimento cultural
chamado de Modernismo brasileiro. O estabelecimento da relação entre a produção artística e
os processos inconscientes marcou-se pela instauração do diálogo entre a produção dos artistas
modernos e aquela encontrada nos manicômios (Lima & Pelbart, 2007).

Assim, as relações entre arte, clínica e loucura passaram a se esboçar a partir da


confluência entre dois deslocamentos: de um lado, buscando conquistar uma linguagem,
alguns habitantes do mundo da loucura faziam um movimento quase imperceptível – já
que oriundo de um espaço de exclusão e silêncio – em direção à criação artística; de
outro, alguns artistas, ao se debruçarem sobre a alma humana e suas vicissitudes e
buscando ampliar os limites de sua linguagem, voltavam seu olhar para o mundo da
loucura (Lima & Pelbart, 2007, p. 713).

Um nome importante nessa história foi Suely Rolnik: em sua Tese de Doutoramento,
ela faz uma interlocução importante com Lygia Clark (1920-1988). Lygia foi uma artista
plástica da arte contemporânea brasileira que realizou experimentações no campo das artes
plásticas e no campo da clínica. Sem desejar articular tampouco nomear esses campos, ela
conseguiu desmanchar os códigos vigentes que nominavam a arte e a clínica e os rearranjar
num novo sentido para seu trabalho. Em seu último trabalho, “Estruturação do self”, Lygia
colocava sobre o corpo seminu de um crítico de arte (poderia ser qualquer indivíduo) alguns
“objetos sensoriais” e relacionais (sacos com areia, com água, conchas, pedras, mel, sacos
plásticos cheios de ar, entre outros) e buscava com isso acompanhar de perto as sensações do
corpo que produziam um estranhamento relatado pela pessoa num momento posterior. A ideia
era que, ao não encontrar um lugar para essa sensação no mapa de sentidos que a pessoa
dispunha, poderia se produzir um outro conjunto de signos e, então, criar uma sensação que não
se conhecia. Tratava-se de inventar um sentido que se forjasse visível e que integrasse o mapa
de existência vigente, operando uma transmutação de sentidos e existência (Rolnik, 2001). A
25

autora evoca a importância da prática estética em detrimento de uma prática psicológica


tradicional, convocando-nos a despsicologizar a experiência. No entanto, não retira a questão
terapêutica de seu lugar e poder, sublinhando um efeito importante da prática estética que é a
discussão sobre a potência crítica e clínica de uma obra de arte:

Com sua “Estruturação do self”, Lygia Clark desloca as fronteiras historicamente


traçadas entre arte e clínica. Entre artista e receptor, seja este o expectador ou o crítico,
se cria uma zona de indeterminação – algo em comum, e, não obstante indiscernível –
que não remete a nenhuma relação formal ou de ordem identitária, já que o primeiro
polo do par não se localiza nem na categoria de artista nem da de terapeuta, e o segundo
não se localiza nem da categoria de espectador ou de crítico nem de paciente. É todo um
cenário que se move e assim se esboça um território inteiramente novo. Este condensado
de signos é o que vislumbramos através da obra de Lygia Clark (Rolnik, 2001, p. 12).

Rolnik (1999), em outro texto que repensa a sua tese inicial, recria sua perspectiva e nos
aponta que a proposta de Lygia Clark pretendia restabelecer a ligação entre arte e vida na
subjetividade do espectador e na sua própria (entendida como artista propositora). Assim, ela
entende que é superada definitivamente a separação entre os domínios artístico e
psicoterapêutico e não pensa mais em fronteiras, mas sim em um novo território. No trecho
abaixo, acredito que conseguimos acompanhar o pensamento dela:

Ela [Lygia Clark] cria um território que não está nem na esfera da arte, departamento da
vida social especializado nas atividades de semiotização e onde se confina o acesso à
potência criadora da vida; nem na esfera da clínica psicológica, especializada no
tratamento de uma subjetividade dissociada dessa potência; nem na fronteira entre
ambas. Trata-se de um território totalmente novo. Como lembrei no início, esses dois
fenômenos são datados historicamente, estando sua origem vinculada ao declínio de
uma certa cartografia no final do século XIX, momento em que se torna operante a
clivagem do plano estético na subjetividade do cidadão comum, que se originara junto
com a instituição da arte como esfera separada. Nesse mesmo processo nasce a clínica,
para tratar os efeitos patológicos dessa dissociação e, concomitantemente, a arte começa
a sonhar sua religação com a vida, utopia que atravessa toda a arte moderna (Rolnik,
1999, p. 24).

Trata-se de pensarmos criticamente sobre a história da clivagem entre o plano estético


e o plano da subjetividade do “cidadão comum”. Interessante ponderar que, quando a estética
se aparta da vida do homem, quando a arte é instituída como “arte” e se afasta da vida do sujeito,
a clínica psicológica ganha mais importância: justamente para tratar os efeitos psicopatológicos
dessa cisão. Concordo inteiramente com esta tese, e afirmo a necessidade vital de estetizarmos
novamente a vida. Uma outra contribuição importante no campo da psicoterapia institucional
26

vem de Jean Oury que pensou a criação artística a partir das experiências dos ateliês na Clínica
de La Borde.
Em seu livro Création et schizophénie (1989), o médico psiquiatra, criador da
psicoterapia institucional e da clínica de La Borde na França apresenta sua tese sobre a criação
nos estados psicóticos. Sua abordagem se dá a partir teoria da Gestalt e da Psicanálise, mas,
sobretudo, ela acontece a partir de um campo de experimentação no qual acompanhou como
médico os pacientes da Clínica de La Borde. Para o autor, a criação artística é um processo de
reconstrução de si mesmo: “trata-se para um esquizofrênico de lutar contra o que é específico
da psicose: uma estrutura fechada” (Oury, 1989, p. 93, tradução nossa). A criação da obra e o
processo criativo são a tentativa dessa reconstrução de si, são possibilidade de autocriação “pós-
catastrófica” (o sofrimento psíquico entendido como ruptura catastrófica). Dar forma ao vazio,
para Oury, é um processo arcaico que acontece num lugar de pré-representação que está no
centro de todo processo de criação. Só na medida justa entre o aberto e o fechado de nossas
existências é que podemos existir com o Outro. A criação permite, segundo o autor, a abertura
aos estados mais fechados como a esquizofrenia:

O que está em questão na emergência da criação de uma obra, mesmo se esta obra nunca
é terminada é a manifestação de uma presença, nas estruturas psicopatológicas da vida
cotidiana e não só nos asilos, nas comunidades, nos lugares de sedimentação e de
isolamento onde as pessoas morrem sem verem umas as outras, quando não há ocasião,
a possibilidade de presença se fecha (Oury, 1989, p. 95, tradução nossa).

Para ele, a criação artística opera na própria criação de si, de certa presença e abertura
ao Outro. Fundamental, então, é o lugar da criação.
No final dos anos 1970 e início dos anos 80, com a reabertura política do Brasil, o
Movimento da Reforma Sanitária e, em seguida, a Reforma Psiquiátrica, a saúde passa a ser
instituída como direito de todos. Dessa maneira, as relações entre arte e saúde instauram um
campo de práticas inovadoras, fortalecendo ações interprofissionais e intersetoriais, e
envolvendo a vida cotidiana das comunidades (Lima & Pelbart, 2007).
No início dos anos 2000, foi na área das políticas públicas culturais que houve a inclusão
da pauta da diversidade e da participação ativa na vida cultural como direito, favorecendo a
criação de novos debates e o desenvolvimento de ações em parceria com o campo social e o da
saúde. O papel do Estado foi, com isso, recolocado como potencializador da força criativa
presente nas comunidades, especialmente nas áreas de maior vulnerabilidade e risco social
(Lima & Pelbart, 2007). Essa diversidade foi instituída como política pública por ações da
27

Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID), criada em 2003 e ligada ao Ministério


da Cultura (MinC). Logo após, os Ministérios da Cultura e da Saúde, em um acordo conjunto
com a Caixa Econômica Federal, ofereceram, no ano de 2009, um prêmio de incentivo
financeiro a projetos culturais realizados por pessoas e grupos em sofrimento psíquico, o prêmio
“Loucos pela Diversidade”. O programa objetivou construir políticas públicas culturais aos
sujeitos em sofrimento psíquico por meio dos programas que atuam na interface saúde mental
e cultura (Amarante & Nocam, 2012).
Nesse sentido, Amarante e Lima (2008) observam que a cultura tem sido recolocada
nos tempos atuais como estratégia para a transformação social, e que o seu papel se exerce na
luta política, nas relações de poder e no diálogo, num trânsito considerado complexo na
dimensão sociocultural que constitui o movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira. Esse
processo “se constitui enquanto entrelaçamento de dimensões simultâneas, que ora se
alimentam, ora são conflitantes; que produzem pulsações, paradoxos, contradições, consensos,
tensões” (Amarante & Lima, 2008, p. 63). As dimensões teórico-conceitual, técnico-
assistencial, jurídico-política e sociocultural abarcam uma esfera da vida social dos sujeitos que
estão implicados nesse processo reformista – ou seja, de transformações – e são dimensões que
estão interligadas de tal forma que se complementam. Especificamente, a dimensão
sociocultural diz respeito a “[...] todo o conjunto de transformações e inovações anteriores
contribuem para a construção de um novo imaginário social em relação à loucura e aos sujeitos
em sofrimento, que não seja de rejeição ou tolerância, mas de reciprocidade e solidariedade”
(Amarante & Lima, 2008, p. 73). Trata-se, portanto, de uma dimensão estratégica, uma das
mais criativas e reconhecidas. Ela se embasa em um dos princípios fundamentais que vem sendo
fortalecido nesses encontros em que os atores têm construído historicamente (por meio de
associações e atividades culturais, tais como rádios, televisões comunitárias, blocos de
Carnaval, grupos de Teatro, bandas de músicas, entre muitas outras linguagens possíveis)
formas de envolver a comunidade para discutir e dar visibilidade à loucura em nossa sociedade.
Destarte, identifica-se estratégias de aproximação e de promoção das expressões culturais que
integram a pluralidade cultural, promovendo a inclusão dos portadores de sofrimento psíquico
no âmbito da cultura, onde a arte transcende, ou melhor, ignora a diferença entre as frágeis
fronteiras da sanidade e da loucura (Amarante, 2008). A dimensão sociocultural do processo da
Reforma teria o papel de desconstruir uma comunicação comum (geralmente negativa, pois a
loucura é associada à incapacidade e à periculosidade) para criar outras e novas formas de
comunicação sobre a ela e sobre o sofrimento psíquico. As possibilidades de inserção social, as
28

mudanças de valores e de regimes de visibilidade que essa dimensão potencializou são


extremamente caras ao processo de Reforma Psiquiátrica, porém ainda não ganharam a devida
importância até os dias atuais.
Nessa seara, mais recentemente, Amarante e Freitas (2018) reafirmam que o campo
artístico cultural tem a potência de aprofundar e radicalizar o processo da Reforma Psiquiátrica
brasileira:

A bem da verdade, é a dimensão “cultural” o catalizador das outras três dimensões, não
apenas porque assimila as conquistas das demais, mas sobretudo porque são as
mudanças no modo como os sujeitos se posicionam no mundo, como o veem e como o
entendem, que garantem e sustentam como o “sofrimento psíquico” será abordado em
suas manifestações (Amarante & Freitas, 2018, p. 504).

Amarante e Torre (2017) apontam para a autonomização do campo constituído por


experiências artístico culturais em relação aos equipamentos de saúde. Logo acima falamos
sobre a construção, por meio de diversas outras linguagens, de um outro imaginário social sobre
a loucura e os sujeitos em sofrimento, de uma mudança de comunicação a respeito da loucura
que gere solidariedade e reciprocidade, saindo de uma concepção de doença ou transtorno
mental, de erro ou de incapacidade para a diversidade psíquica com experiências validadas
socialmente, como produtores culturais, militantes de movimentos sociais ou simplesmente
trabalhadores de um projeto (Amarante & Torre, 2017).
Atualmente, as experiências artístico culturais, muito embora tenham nascido no
interior dos serviços técnicos sanitários, os extrapolaram ganhando outros espaços nas cidades:

No processo de Reforma Psiquiátrica brasileira, vem se destacando a tendência ao


reconhecimento da autonomia do campo ‘artístico-cultural’ com relação ao campo
“psiquiátrico”. Trata-se de uma demanda que cada vez mais ganha expressão no cenário
público, formulada de distintas maneiras por “usuários-artistas”, “famílias”,
“profissionais de saúde mental” e movimentos sociais organizados, em busca de
reconhecimento de suas produções artístico-culturais, o que desafia esquemas
conceituais e operacionais tradicionais (Amarante & Freitas, 2018, p. 504).

Ainda em fortalecimento às teses supracitadas, Torre (2018) nos anuncia que a


dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica brasileira se ampliou e se deslocou para um
viés “não normativo, não técnico e não institucional”, em que muitas das intervenções e
experiências artístico culturais, que eram vinculadas aos serviços técnico sanitários da rede de
atenção à saúde mental, se moveram destes e ganharam outros espaços pelas cidades. Sendo
29

assim, considera-se a Reforma Psiquiátrica brasileira como um movimento social de


transformação cultural, que começou na desconstrução manicomial e prosseguiu para a reforma
da cultura, rompendo com processos de discriminação, segregação e desqualificação dos
sujeitos em sofrimento mental. A politização do discurso contemporâneo sobre a loucura
também se desloca de um regime de visibilidade manicomial para a produção de outros bens
culturais e simbólicos, mantendo diálogo fecundo com a cultura ligada aos Direitos Humanos
e à defesa do direito à diversidade cultural (Torre, 2018).
A concepção de arte também é apontada como um rompimento com o tecnicismo e sua
aplicação com um fazer terapêutico. Arte e cultura se comporiam para além de um eixo cultural,
para o fazer artístico como produtor de sentidos de vida.
A concepção de cultura passa a ser entendida como expressões de coletividades, como
uma usina de produção de novas subjetividades. A cultura produzida pelos sujeitos que viveram
ou vivem a experiência do sofrimento, da medicalização, da discriminação e do estigma traz
novos sentidos que podem deslocar os regimes de sensibilidade vigentes. Os projetos de arte e
cultura ganham a cidade, ampliando o viés terapêutico e sua utilização para finalidades
terapêuticas nas oficinas (Torre, 2018).
Os parágrafos acima deixam claro que as práticas artísticas saíram dos manicômios para
compor as oficinas da rede de atenção psicossocial como um instrumento terapêutico e de
expressão. Ao longo do tempo, elas ganharam outros espaços no campo da cultura (como forma
de reconhecimento artístico institucionalizado), ampliando-se para as cidades onde se
encontraram com o campo do direito à cidadania e à diversidade. Porém, resta-nos as perguntas:
o caminho do cuidado, ou melhor, a clínica psicossocial em saúde mental em sua dimensão
política, realizou também seus deslocamentos nesse sentido, conseguiu ter uma autonomização
em relação aos saberes “psi” (Psicologias, Psiquiatria, Psicanálises)? Conseguiu o campo
artístico ser um espaço de saber importante e válido para a produção de saúde mental? Como a
dimensão cultural (compreendendo cultura como produção de vida) pode se implicar e de fato
assumir um campo de saber e fazer em saúde mental que se valide afirmativamente como um
campo de intervenção psicossocial entendido como uma “clínica do fora”?

2.3 Os teatros em nós

Para iniciarmos um diálogo sobre o Teatro numa perspectiva mais ampla, compartilho
aqui uma das possíveis definições que encontrei desse fazer da qual eu gosto muito. Trata-se
30

de uma lenda chinesa que Augusto Boal (1931-2009) usa para pensar e ilustrar a “descoberta”
do Teatro. Segundo ele, a fábula chinesa “Xuá-Xuá", com idade de mais de dez mil anos antes
do nascimento de Cristo, narra o nascimento do Teatro que fora descoberto por uma fêmea pré-
humana. Sim, segundo ele, foram as mulheres que descobriram o Teatro; aos homens coube o
confinamento deste em linguagens e estéticas interessadas aos exercícios de poder. Ao Teatro,
na sociedade Ocidental, deram um lugar para ser realizado e visto (palco/plateia) e uma
linguagem possível (a dramaturgia), assim como as necessidades de artifícios (cenário,
figurinos, iluminação e sonoplastia). E deram, principalmente, a função dele: ora
entretenimento como representação de um mundo dado; ora catarse que tinha como função
escamotear a realidade por meio de um derramamento emocional que aliviava e paralisava os
sentidos do expectador. Boal nos conta que essas formas de se operar o Teatro foram uma
invenção do Homem que visava a dominação dessa possibilidade de a humanidade descobrir
uma prática libertadora e acessível a todos.

Lenda de Xuá-Xuá:
Há milhares de anos, quando homens e mulheres eram nômades, viviam em hordas e
vagavam pelos vales, montanhas e margens dos rios, caçando animais e colhendo frutos
para se alimentar, morando em cavernas para se proteger, nasceu Xuá-Xuá, a mais bela
fêmea de sua horda. Quando cresceu, o mais forte dos machos, Li-Peng, sentiu-se
atraído por ela e foi correspondido. Gostavam de ficar juntos, de sentir os odores
mútuos, de se lamber, se tocar. Era bom estar um com o outro e isso os deixava felizes.
Certo dia, Xuá-Xuá percebeu transformações em seu corpo: seu ventre crescia e seus
seios se avolumavam. Envergonhada, começou a evitar Li-Peng, que não compreendia
os motivos da fêmea. Com o passar do tempo, ele descobriu que Xuá-Xuá não era mais
aquela que ele amava, nem no físico, tampouco no comportamento. Os dois se
distanciaram e Xuá-Xuá preferiu ficar só, vendo seu ventre inchar, enquanto Li-Peng,
abandonado, procurou outras fêmeas, sem, contudo, encontrar em nenhuma o amor de
sua primeira fêmea.
Xuá-Xuá sentia seu ventre mexer, sem obedecer à sua vontade, involuntariamente. Li-
Peng, de longe, assistia à agonia de sua amada com tristeza e curiosidade, imobilizado
como um espectador daqueles acontecimentos incompreensíveis. O menino Lig-Lig
crescia e se desenvolvia no ventre da mãe, sem distinguir os limites de seu corpo. Ele e
a mãe eram um só: não respirava senão através de seu corpo, era alimentado pelo cordão
umbilical e não por sua própria boca. Suas primeiras sensações foram acústicas e ele
era capaz de organizar os sons interiores e exteriores e orquestrá-los. Numa manhã de
sol, deitada à margem de um rio, Lig-Lig veio à luz! Era pura magia! Xuá-Xuá olhava
o seu bebê, sem compreender como aquele pequeno ser tinha saído de dentro dela. Sabia
apenas que aquele corpo minúsculo era sem dúvida uma parte sua, que antes estava
dentro dela e agora estava fora. Eram um só: a prova disso é que incessantemente queria
retornar a ela, juntar seu pequeno corpo ao grande corpo, sugar seu seio para recriar o
cordão umbilical. Isso acalmava Xuá-Xuá. Os dois eram ela mesma e ela era os dois.
De longe, Li-Peng, bom espectador, observava. Rapidamente Lig-Lig tornou-se
31

independente, aprendendo a comer outros alimentos inclusive. Algumas vezes o


pequeno corpo não obedecia mais ao grande corpo, como se ordenasse às suas pernas
que se cruzassem e elas, involuntariamente, se pusessem a andar. Xuá-Xuá ficou
aterrorizada por não ter mais domínio sobre aquele pequeno corpo, tão querido e amado.
Li-Peng, que até então era mero observador, resolveu criar uma relação com o menino.
E, enquanto Xuá-Xuá dormia, Li-Peng se aproximou e os dois partiram, como seres
individuais, duas pessoas diferentes. Li-Peng era Li-Peng e Lig-Lig era Lig-Lig. O pai
ensinou o menino a caçar e a pescar. Os dois estavam felizes. Xuá-Xuá, ao contrário,
estava desesperada com o desaparecimento de seu pequeno corpo e chorou muito.
Gritava em vão entre vales e montanhas. Alguns dias mais tarde, Xuá-Xuá os encontrou,
já que pertenciam à mesma horda. Tentou recuperar seu filho, mas Lig-Lig disse não.
Xuá-Xuá, diante da recusa do menino, foi obrigada a compreender que eles não eram
um, mas seres distintos com vontades e desejos próprios, mesmo que Lig-Lig tivesse
saído de seu ventre e fosse obra sua.
Esse reconhecimento obrigou Xuá-Xuá a olhar para si própria, identificando-se como
uma mulher, uma mãe, uma dos dois. Quem era ela? Quem era o filho e quem era Li-
Peng? Quais os seus desejos? Onde estavam e para onde iriam? E quando? Qual a sua
história?
Ao separar-se do filho, Xuá-Xuá encontrou-se a si mesma e descobriu a essência da arte
do Teatro. Xuá-Xuá se viu separando-se de uma parte de si mesma: ela agia e observava.
Era duas pessoas em uma só! Descobrindo o teatro, o ser se descobre humano. E, em
síntese, o Teatro é a arte de nos vermos a nós mesmos, a arte de nos vermos vendo, pois
somos todos especta-atores (Boal, 1998, p. 13).

Para Augusto Boal, o Teatro é a capacidade das pessoas se observarem em ação,


podendo se ver e se imaginar adiante. É algo que existe em cada um de nós, sendo atores
profissionais ou não. Todos podemos nos separar de nós mesmos e daquilo que nos aprisiona e
todos podemos nos questionar, distanciar e nos transformar em outro.
Uma outra leitura possível, a partir dessa lenda, seria sobre a nossa capacidade de
reconhecer o que há de comum ou o que deveria haver entre nós: o que acontece quando
perdemos essa possibilidade de compreender que deve haver um espaço comum (mas não igual)
entre nós? Que devemos reconhecer e tornar esse espaço estética e eticamente perceptível ao
mundo e a nós mesmos? Para isso, eu não preciso me ver no outro (especularmente ou
mimeticamente), mas sim guardar e reconhecer o “Teatro”, o “comum em nós” que também há
nesse outro. Pois, a partir do reconhecimento da possibilidade de me separar de mim, há uma
suposta liberação da ideia de que eu sou igual a mim mesmo. Quando penso e sinto a imagem
de me “ver vendo”, percebo o tamanho do potencial da criação que existe em nós, sou outro e
múltiplo em mim, sou e posso diferir daquilo que fui até agora. O que isso pode ter relação com
a produção de saber e fazer em saúde mental? O que acontece quando não reconhecemos esse
espaço do “Teatro” em nós e sua potencialidade no outro? De que Teatro estamos falando aqui,
então?
32

A relação entre as artes cênicas e o campo da saúde mental é antiga e conta com muitas
experiências: grupos amadores e profissionais que encontraram em diferentes linguagens das
artes cênicas sentido para seus fazeres. Esses grupos estão em ação nos espaços de arte,
ocupando a cidade, e nos serviços de saúde mental num contexto de transformação de saberes,
valores, cultura e maneiras de se produzir saúde/saúde mental via processos artísticos nas
chamadas artes cênicas. Podemos exemplificar os mais conhecidos: Cia. Teatral Ueinzz, em
São Paulo; Pirei na Cenna, Coral Cênico – Cidadãos Cantantes; as experiências com o Teatro
do Oprimido, como a Cia. Zaum, de São Paulo, e a Cia. Sapos e Afogados, em Belo Horizonte;
a criação pelo médico e pesquisador Victor Pordeus, no Rio de Janeiro, da Universidade
Popular de Artes e Cultura (UPAC) no Instituto Nise da Silveira e a sua pesquisa cênica
chamada Cia. Teatro DyoNises, e a Cia. de Teatro Incênicos na Bahia, entre muitas outras das
quais não temos tanto conhecimento, infelizmente.
No contexto das artes cênicas e sua vizinhança com o campo da saúde mental, o Teatro
surge como uma das possibilidades de conexão entre a loucura e a sociedade na produção de
outras formas de existência. Segundo Caldeira (2009), a partir das artes cênicas, os participantes
experimentam outras possibilidades de vida e de existência por meio dos diferentes papéis
desempenhados como atores e como membros de um coletivo. O Teatro, incluindo-se atores e
espectadores como compositores dele, é um espaço de criação e reprodução de modos de ser.
Possibilita novas formas de existir e outras formas de se encontrar e produzir linguagens
(Milhomens & Lima, 2014).
Retomando a paisagem psicossocial em que a prática teatral se encontrou com o fazer
em saúde mental em minha vida, eu prossigo com a minha narrativa para que possamos
acompanhar as transformações de ambos. Naquela altura de minha existência, já psicóloga, o
fazer teatral tinha dado espaço a uma nova paixão: a reinvenção do campo da saúde mental, em
que a psicopatologia não seria privatizada no registro dos transtornos mentais. Eu já conhecia
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e seus fazeres e mais alguns grupos de Teatro já
consolidados, como o Ueinzz de São Paulo e as militâncias da Luta Antimanicomial que traziam
as oficinas de Teatro do Oprimido como recursos de ativação sensível para as reflexões políticas
nos grupos. Mas lá estavam ainda as duas pontas de minha existência lutando e quase
conseguindo uma fusão para que fossem reativadas e quem sabe ligadas numa outra conexão e
linguagem. Contudo, o tempo ainda demoraria para trazer o Vento.
No campo do fazer teatral, existia um grupo em São Paulo que, embora tivesse nascido
numa clínica psiquiátrica, percorria o mundo com suas peças e produzia uma linguagem
33

diferenciada em relação às oficinas de artes cênicas que eu vinha acompanhando – as quais, em


sua maioria, usavam a técnica e a estética do Teatro do Oprimido, criadas por Augusto Boal.
Naquela época, o Grupo Ueinzz já tinha um percurso de dez anos no fazer teatral. No
trecho abaixo, Pelbart (2000), ator e filósofo que trabalha na Cia. Ueinzz, expressa as
reinvenções das linguagens teatrais que esse tipo de manifestação artística pode fomentar:

Este Teatro carrega consigo vidas que experimentam limites e tangenciam estados
alterados. Essas vidas, sacudidas por tremores causados por rupturas devastadoras e
intensidades que transbordam toda forma ou representação, pedem novas formas de
linguagem. A criação dessas linguagens questiona a possibilidade expressiva da
linguagem hegemônica, gera acontecimentos inverbalizáveis e reinventa o ver e o ouvir
(Pelbart, 2000, p. 101).

Logo, comecei a me sentir muito atraída por uma ideia de Teatro não representacional.
Nascia um desejo de um Teatro não teatral, como se eu desejasse depurar da experiência que
tive em relação ao fazer teatral algumas “vivências” que, como diz o trecho acima, eram-me
não verbalizáveis e que pela linguagem hegemônica não conseguia expressar. Era um desejo, o
Vento não havia soprado... Ou começava uma brisa?
Assim, eu desejava uma clínica “não clínica” em saúde mental. Para mim, a questão era
apurar algumas partículas que compunham, mas que extrapolavam a linguagem da arte milenar
do Teatro que conhecia até então. Procurava uma estética que descontruísse as linguagens
dominantes que haviam colonizado a cultura de cuidado presente nas oficinas que aconteciam
nas instituições em que havia trabalhado.
A experiência estética vivenciada durante um espetáculo do Ueinzz (Gothan SP, 2001),
suas repercussões em meu modo de sentir a potência criadora daquela linguagem artística –
ainda sem nome – me encantou de uma forma tão dilacerante ao ponto de eu perceber que era
possível sim fazer Teatro e não cair nas ciladas da tutela terapêutica, produzindo uma outra
estética de criação e cuidado que transversalizasse aqueles campos.
Em 2007, o diálogo entre o Teatro e a saúde mental retomava fortemente sua expressão
e ganhava consistência em minha vida profissional. Por meio da indicação de alguns amigos,
conheci o trabalho do grupo Zaum, os quais foram meus parceiros e professores por três anos.
Ele era constituído por usuários do Hospital Dia da Água Funda (o mesmo das aulas de
Psicopatologia, porém em sua unidade de acolhimento por tratamento em regime aberto,
chamado na época de Hospital Dia). Muitos deles eram pessoas em processo de
desinstitucionalização, com longas internações naquele manicômio. Sob os cuidados de dois
34

atores e diretores de Teatro de São Paulo, Elisa Band e Cássio Santiago, o grupo se encontrava
na biblioteca municipal Mário de Andrade, no centro da cidade de São Paulo. Em seus
encontros semanais, produziam cenas na linguagem da performance com esses atores/usuários.
Era muito impressionante a diferença daquelas pessoas quando vistos no Hospital Dia e quando
vistos nos ensaios. Pareciam outras pessoas: as falas ganhavam firmeza e dicção, os músculos
retraídos de medicação ficavam mais tonificados (vivos) e mais relaxados, os pensamentos iam
se mostrando mais aguçados e organizados, sendo percebidos nos gestos e nos modos de fala.
O contato com a cidade também mudava e os transformava: andavam de metrô, ônibus,
circulavam para além dos serviços e suas casas, visitavam exposições, sessões de cinema e
trabalhávamos muito juntos na pesquisa e construção das cenas. Ocorriam dias em que só
conversávamos, pois existia um clima de liberdade. Alguns se revelavam exímios escritores,
escrevendo toda a dramaturgia das cenas. Ali eu já não era nem psicóloga nem atriz: compreendi
que era possível uma outra linguagem em Teatro num outro tipo de fazer em saúde mental.
Sentia que chegava em um território possível. O Vento estava chegando.
Apresentamos um relato da experiência daquele coletivo no II Colóquio de Psicologia
da Arte – A correspondência das artes e a unidade dos sentidos, na Universidade de São Paulo,
em 2007. “Todo mundo é um artista” era o título de nosso trabalho em paráfrase a Joseph Beuys
(1921-1986), artista plástico muito importante no campo da performance. O trabalho contava
experiência do grupo e tecia relações entre a linguagem cênica performática com a produção
de saúde mental dos participantes do grupo:

A performance propõe ao artista uma atuação in loco onde o espaço e o tempo se fundem
na presença de um acontecimento artístico. O artista transforma-se em atuante sendo
sujeito e objeto de sua arte. Na cena Zaum despontam-se personagens públicos, que
fazem referências ao momento histórico e político mesclado a experiências
absolutamente pessoais transformando as improvisações em associações-livres naquele
momento. Reunindo as seguintes multiplicidades o grupo criou uma linguagem cênica
própria: Teatro, performance, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Filosofia, inclusão,
artes plásticas, mídias eletrônicas, música, dança e poesia. O grupo Zaum que nasce em
2001 é composto de atores e não atores, (no sentido de uma formação não acadêmica),
desenvolve seu trabalho inspirado em procedimentos e práticas relacionados à
performance e ao happening (Band & Barreto, 2007, p. 3).

A estética da performance foi me acompanhando desde então e o Teatro ganhou outra


linguagem. Logo, o fazer teatral em saúde mental também. Importava olhar a vida desse outro
lugar agora, a performance como manifestação de uma linguagem polifônica, que prescindia
de palco, texto, plateia. Podia misturar e colar outras linguagens artísticas que pudesse fazer
35

sentido na vida daquelas pessoas. Eles eram os autores das cenas. Na performance, o ser, o fazer
e o aparecer estavam fusionados em ato manifesto. Tratava-se de não representar algo, mas sim
de sua manifestação, pessoa e persona (não existe personagem) seriam únicos. Em algum
momento, aquele fazer se mostrava a um “público”, porém, na linguagem da performance, o
que se mostrava era um lampejo inacabado, interrompido de um processo interminável de troca
entre a pessoa, e a realidade que ela compartilha e que, sobretudo, deseja transformar. Nesse
sentido, a função de catarse que o Teatro carregou durante as tragédias gregas deixa de existir
na linguagem da performance, visto que já não pensávamos em nos identificar com o que é
contado/mostrado em cena: buscava-se desestabilizar os terrenos e as verdades produzidas nas
subjetividades codificadas por certos regimes de verdades instaurados em nosso corpo social.
Daí uma grande e importante diferença entre a estética do Teatro de representação e a estética
da performance.
O trabalho com a Cia. Zaum terminou em 2009 por conta de dificuldades encontradas
para local de ensaio e falta de subsídios ao trabalho. A experiência na linguagem da
performance me parecia como um campo mais libertário e que conseguiu produzir sentidos e
deslocamentos importante nos lugares que chamei de pontas de minha existência. As pontas
perderam seu sentido quando encontrei um campo que as expandiu de tal maneira que elas se
desconfiguraram. Não havia mais necessidade de me deslocar de um lugar de psicóloga para
um lugar anterior de atriz ou vice-versa, nem as pessoas que participavam de nosso processo
de criação tinham que despir de si mesmas para representar algo ou alguém. A criação podia se
manifestar em ato. A experiência me deixou desejosa de continuar as pesquisas com não atores
em outras estéticas e com grupos heterogêneos. O fazer em saúde mental me acompanharia
nessa empreitada vital.

2.4 Teatro Documentário, Teatro biográfico e Teatros do Real

Anos depois, em 2014, deparei-me com uma experiência estética que me deslocou
profundamente ao assistir alguns espetáculos na linguagem do Teatro Documentário. Segundo
Silva (2012), trata-se de uma estética das artes cênicas que chegou ao Brasil em 1960. Nesse
período, existiam motivações político-sociais configurando-se como um tipo de Teatro político
denunciador do cenário sociopolítico daquela época. No Teatro Documentário, o processo de
pesquisa e criação é feito a partir de dados extraídos da realidade, apresentados assumidamente
dessa maneira. As pesquisas documentais biográficas – a estética documental pode ou não ser
36

biográfica – proporcionam uma experiência autoral para cada integrante, colocando-os na


composição dramatúrgica, na perspectiva de intervenção e na postura ativa em sua
aprendizagem e troca/encontro com os demais. Geralmente, explora a dimensão confessional
via produção de depoimentos em seu processo, visando transformar o espectador em
testemunha (Silva, 2012).
A partir da exploração da biografia das pessoas que estão em cena, o performer se torna
a figura central nos discursos desse tipo de Teatro. Por meio da percepção do público de que a
história dita em cena é real, de fato vivida por aquele que a relata, há uma implicação e uma
necessidade da presença física e imediata do sujeito dos acontecimentos. É essa presença que
possui a propriedade de conferir uma denotação de realidade ao evento teatral e é por meio
disso que se reivindica que se expresse também algo verdadeiro, uma verdade não só interna,
mas também objetiva (Silva, 2012).
Segundo a autora acima citada, o Teatro Documentário leva os atores e não atores a
expor aberta e publicamente desejos, sonhos, medos e histórias pessoais. Eles constroem,
durante o processo, um tipo de “museu” a céu aberto com seus relatos, objetos escolhidos,
interlocutores, textos e mais inúmeros intercessores desse processo de remontagem de si. Leite
(2014) argumenta que o Teatro Documentário usa de biografias ou autobiografias como
material de base tanto para a geração de conteúdos e dramaturgia quanto para as encenações.
Ressalta que é preciso esclarecer que, muito mais do que um desejo e um projeto de
autorrepresentação, as biografias, no chamado Teatro Documentário, são realizadas por meio
de um projeto temático do encenador figurando como “casos” as “narrativas” que contribuem
para a construção do sentido total de uma construção cênica. O autobiográfico é associado ao
campo da performance e se manifesta, na maioria, das vezes no eu afirmado do performer, que
se coloca na experiência por meio de uma ação ou situação real (Leite, 2014).
Assisti a espetáculos que apresentavam histórias reais dos atores e mostravam nas cenas
todos os tipos de documentos que afirmavam que aquela história que se contava era
“verdadeira”: dois exemplos são “Festa de Separação” (2010) e “Conversas com meu pai”
(2014), produções de Janaína Leite e Alexandre Dal Farra. Fiquei absolutamente inquieta e
desejosa por passar por aquela experiência e me questionei: como seria fazer isso com as
pessoas que passaram por rupturas em suas vidas com a presença de sofrimento psíquico? Nas
peças, os “não atores” ou performers mostravam em cena filmes caseiros, fotos pessoais,
bilhetes recolhidos ao longo da vida e todo tipo de documento biográfico que davam à cena um
tom de trabalho na perspectiva de um Teatro do “Real”.
37

Em “Conversas com meu pai”, Janaína contava ao público, numa narrativa


autobiográfica não linear, a história da sua relação com seu pai. Transitava em uma narrativa
de digressão ao passado que foi cenicamente disparada pela presença de sua velha caixa de
sapatos (apresentada ao público no início da peça), onde guardava os bilhetes que ambos
trocavam na impossibilidade da fala do pai. Ele havia sido acometido por uma traqueostomia
depois da retirada de um câncer na laringe, e a filha (Janaína) vivia o avanço de uma doença
degenerativa que a condenava a uma surdez gradativa. Comunicavam-se, por muitos anos, pelos
bilhetes que aquela caixa guardava. A peça seguia cheia de relatos gravados em áudios de
entrevistas feitas com os familiares sobre a vida do pai e da família, filmes caseiros, músicas
preferidas do pai. E assim ela vai nos mostrando um encontro em que um pai perde a fala e a
filha a audição. A dramaturgia nos levava a muitas dúvidas que eram da própria atriz, as quais
não sabemos o que era ficção e o que era real. De algum modo, sabemos que nunca
alcançaríamos o real ali – ele sempre nos escapa. Mas, de fato, colocar as provas daquela
história na mesa nos evocava, como receptores, a um testemunho de uma beleza dolorida e de
uma contundência que me é difícil encontrar em palavras uma tradução. Ali, eu vivi uma
experiência estética, abri um território potente de sentir e produzi um desejo. Também me
“despossui” da minha história com o meu pai porque vi a possibilidade de estetizar e politizar
minha perda – assim como a performer fez. É abrir minhas caixas, tornar público o particular,
dar passagem a outro território. De algum jeito, todos ali testemunharam algo, aquela memória
ficção não será esquecida porque estará presente em uma memória coletiva. Imagino que todos
puderam encontrar seus pais e puderam desejar abrir suas caixas com seus bilhetes. Foi
produzido o desejo de se “despossuir” de algumas histórias. Acredito que ainda vou poder voltar
a esses conceitos em outro momento.
Na peça “Festa de Separação”, a mesma atriz, Janaína Leite, e Alexandre Dal Farra, seu
ex-marido, entram em cena para contar o processo de final de seu relacionamento amoroso que
culminava em festas de separação. Para isso, convidaram familiares e amigos próximos para
realizar essas festividades juntos. Em cena, eles reproduziam os vídeos que gravaram durante
as festas de separação que ofereceram aos familiares e amigos para celebrar a outra etapa da
vida, tornando-os testemunhas e produtores de uma outra realidade. Tornaram-se separados a
partir das festas. Nelas, eles ganhavam presentes de solteiros e recebiam depoimentos de amigos
sobre aquele momento. Tudo foi gravado, tudo virou documento. A partir dos vídeos das
“festas”, eles mostraram numa linguagem muito poética e documental o processo de separação
que cada um viveu. O palco era divido em dois, cada um ficava de um lado e narrava a sua
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história que ia do encontro amoroso numa exposição documental das memórias até a vivência
de uma crise que culminava na decisão da separação. Chegava-se à produção das festas de
separação, convites, visitas, num ritual dolorido, mas festivo, que era o final do casamento
testemunhado e criado pelos convidados. A cada apresentação era o público que assistia aos
vídeos das festas e testemunhava a presença real daquelas pessoas e daquela história.
Tais peças me levaram a pesquisar a estética documental e biográfica e me plantaram
uma semente desejosa de começar um processo nessa linguagem. Que efeitos falar de si
cenicamente produziria nas pessoas em sofrimento psíquico? Documentar e expor
performaticamente uma vida (ou fragmentos dela) tornaria aquela vivência mais inteligível,
mais digna de ser contada e percebida/vivida? O que poderia acontecer? Como não se confundir
com uma vertente terapêutica ou com a técnica do psicodrama, uma vez que falar de si é o
princípio de todas essas abordagens clínicas tradicionais? Como produzir uma invenção, um
novo território no qual assumiríamos a possibilidade de remontar as próprias histórias, mas fora
de um contexto terapêutico? Qual o efeito em termos de cuidado/clínica em saúde mental? Seria
arriscado propor exercícios que trouxessem à memória histórias muitas vezes doloridas? Qual
potencial dessa prática artística com aquele público? Seria o mesmo efeito que qualquer estética
teatral? Qual seria a sua potência? Penso ter chegado o momento de não representar ou
reapresentar a loucura ou o sofrimento que levou ao diagnóstico psiquiátrico. Era o momento
de apresentar ou manifestar a realidade daquelas vidas: não teríamos personagens nem distância
entre o público e o performer.
Em seu livro Autoescrituras performativas: do diário à cena (2014), Janaína Fontes
Leite nos conduz às transformações das artes cênicas na contemporaneidade: “a característica
primordial do Teatro sendo um tempo e espaço reais, partilhado por pessoas presentes, sempre
colocará a problemática da tensão incontornável entre representação e apresentação” (Fontes,
2014, p. 23).
A autora nos apresenta o conceito de “Teatros do Real”, em que há uma tentativa de
colocar o real em cena não somente como um tema, mas sim como experiência, como afirmação
da diferença.

Dessa forma, com a apresentação do real – em vez da usual representação – busca-se


criar margem para eclosões de novos sentidos. Sentidos que não se apresentam somente
no campo da leitura da obra, mas na sua vivência, já que muitas vezes se trata de
trabalhos que pressupõem um encontro de materialidades envolvendo espaços e corpos
desprotegidos do aparato teatral clássico oferecido pelo palco – com cena e plateia bem
divididos – e pelas personagens [...]. A cena, assim, incorpora elementos com o acaso,
39

o erro e o perigo. Incorpora também sentimentos diversos daqueles experimentados na


ficção já que nos encontramos diante de pessoas reais – o que pode despertar compaixão,
cumplicidade, mas também rejeição, repúdio como quando uma certa postura judiciosa
da parte do público se deflagra em relação a posições que não são de uma personagem,
mas de alguém que em seu próprio nome ocupa a cena para fazer, contar, mostrar em
vez do esperado atuar (Leite, 2014, p. 51).

A partir dos trechos acima, quais interfaces eu poderia traçar para criar pesquisas em
performance como práticas de produção clínica na busca de atenção estética em saúde mental?
Por que eu desejei sair do campo da representação teatral para pensar um projeto inspirado na
estética dos Teatros do Real? O que poderia surgir de diferença em um trabalho que priorizasse
a manifestação das histórias e memórias das pessoas numa presença daquele corpo real e não
representar as escritas de outros autores ou mesmo reapresentar a própria história? O que eu
desejava mostrar e fazer em cena com aqueles corpos “reais”? Por que não desejar a proteção
do aparato teatral? Que novos sentidos eu imaginava que poderiam ser manifestados e
produzidos? Aquele lugar do Teatro em cada um de Augusto Boal seria possível de ser
resguardado nessa estética? O que quero dizer quando falo em corpos reais? Seria a necessidade
de criar para todos nós um Corpo sem Órgãos (CsO), sem narrativas prévias? Seria essa estética
teatral capaz dessa criação? Dizem-nos Deleuze e Guattari (1996) em Mil platôs 3 – capitalismo
e esquizofrenia, que o CsO é o plano de consistência ou imanência do desejo e é por ele que o
desejo caminha e faz as suas passagens. Seria nessa constante luta que criamos um ou vários
corpos sem órgãos plenos de desejos: “cada CsO é ele mesmo um platô, que comunica com os
outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de passagem (Deleuze &
Guattari, 1996, p. 18).

[...] “O corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos [...] O organismo
já é isto, o juízo de Deus, do qual os médicos se aproveitam e tiram seu poder. O
organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno
de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações,
organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um
trabalho útil [...]. Mas o que é este nós, que não sou eu, posto que o sujeito não menos do
que o organismo pertence a um estrato e dele depende? Respondemos agora: é o CsO, é
ele a realidade glacial sobre o qual vão se formar estas aluviões, sedimentações,
coagulação, dobramentos e assentamentos que compõem um organismo — e uma
significação e um sujeito. É sobre ele que pesa e se exerce o juízo de Deus, é ele quem o
sofre. Assim, ele oscila entre dois polos: de um lado, as superfícies de estratificação sobre
as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano de consistência
no qual ele se desenrola e se abre à experimentação. E se o CsO é um limite, se não se
termina nunca de chegar a ele, é porque há sempre um estrato atrás de um outro estrato,
um estrato engastado em outro estrato. Porque são necessários muitos estratos e não
40

somente o organismo para fazer o juízo de Deus. Combate perpétuo e violento entre o
plano de consistência, que libera o CsO, atravessa e desfaz todos os estratos, e as
superfícies de estratificação que o bloqueiam ou rebaixam (Deleuze & Guattari, 1996, p.
20).

Esse foi o nosso desejo: criar para todos nós um corpo sem organismo, sem função,
pleno de desejo de performar outros de nós. Essa foi nossa luta: fugir, escapar do “juízo de
Deus” de nossas condenações e prisões que nos roubavam o desejo. Fez-se necessário ter uma
composição que liberasse aqueles corpos daquelas histórias. No entanto, os autores não se
referem a ficar sem o organismo, mas a criar para si um CsO como plano de consistência para
que a diferença se coloque. Não se vive sem os estratos, eles explicam: criamos um CsO sobre
os estratos e para além deles. Dessa forma, em nossa pesquisa, buscávamos criar esse plano de
consistência da diferença sobre as histórias e as memórias manicomiais que estavam compondo
os corpos-organismos das pessoas.
41

3. Composição de uma Pesquisa-intervenção Cartográfica

Este estudo se caracterizou como uma pesquisa-intervenção, de natureza qualitativa e


de inspiração cartográfica. Conversando sobre as diferentes características das pesquisas
qualitativas, Ferigato e Carvalho (2011) observam que, de maneira geral, a pesquisa qualitativa
afirma-se a partir da localização e da implicação do observador em relação ao objeto e seu
entorno. Por isso, deve considerar a complexidade histórica do campo, o contexto do objeto
pesquisado e a experiência vivida.
Na tentativa de esclarecer o campo epistemológico que define os diferentes discursos
construídos no universo das pesquisas qualitativas, os autores acima citados apresentam três
diferentes discursos desta construção epistemológica: as pesquisas qualitativas positivistas, as
pós-positivistas e as pós-estruturalistas. Nas pesquisas enquadradas no discurso positivista, a
realidade é passível de ser apreendida em relatos objetivos, em que a verdade dos sujeitos e do
contexto do objeto estudado pode ser representada. As pesquisas qualitativas pós-positivistas
assumem a parcialidade e a imperfeição em relação à objetividade e à verdade sobre os relatos
dos objetos de pesquisa. Já para a corrente pós-estruturalista não seria possível encontrar o
significado de uma ação, de um texto ou de um objeto, dado que a linguagem é entendida como
um sistema instável de referentes. Nossa pesquisa encontra-se exatamente no discurso
epistemológico da corrente dita pós-estruturalista. Não buscamos significados preestabelecidos
nem verdades existentes, entendemos a pesquisa como uma máquina de produção de realidade
e conhecimento e, para tanto, nosso ato de pesquisar foi cartográfico, fez-se na ação de
acompanhar as paisagens psicossociais que encontramos nos trajetos móveis que o campo e a
pesquisadora mutuamente seguiram ao longo das experimentações. Rolnik (2011, p. 23) nos
ajuda a pensar outra imagem para a cartografia e seu significado de desenho de mapas:
“diferentemente do mapa, cartografia é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo
que os movimentos de transformação da paisagem”. Para Rolnik, o cartógrafo é como um
antropófago que deve estar atento e mergulhado nas intensidades de seu caminho e de seu
tempo. Que ele possa devorar, digerir e decompor as diferentes linguagens e os diversos
operadores que encontra, para assim produzir a composição de cartografias que se fazem
necessárias para dar passagem às novas línguas, aos afetos e às mutações subjetivas nas
paisagens que cruza. A cartografia, assim como a Esquizoanálise, seria a análise do desejo e
suas formações no campo social. Ao mesmo tempo, configura-se como um espaço de exercício
ativo de estratégias, um espaço de incubação de novas sensibilidades, à escolha de novos
42

mundos, sociedades novas – é assim uma prática política. O cartógrafo busca e perscruta, com
seu sensível “corpo vibrátil” (Rolnik, 2011), a invenção e o acabamento contínuo desses novos
mundos.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, na introdução de Mil platôs – capitalismo e
esquizofrenia (1997), nos remetem ao conceito de rizoma para nos fazer pensar a cartografia.
Inspirada na morfologia botânica de uma raiz acentrada, o rizoma é apresentado como um tipo
de “olhar estratégico, modelo de funcionamento e ação, também de enfrentamento e resistência,
que opera a partir de princípios diferentes daquele unitário, vertical, estrutural e disciplinar que
orienta o modelo de análise e funcionamento característico da formação “árvore-raiz” (Prado
& Teti, 2013). Deleuze e Guattari (1997) delineiam alguns princípios do funcionamento
rizomático: os princípios de conexão e de heterogeneidade, em que o rizoma forma uma rede
heterogênea acêntrica e aberta, conectável com qualquer outro ponto que esteja em qualquer
lugar; o princípio de multiplicidade que se opõe às unificações, às totalizações, às
massificações, aos mecanismos miméticos, às tomadas de poder significantes, às atribuições
subjetivas e ao pensamento centrado no Uno e no Mesmo; o princípio da ruptura assignificante,
em que, depois de ser interrompido, o rizoma pode retomar seu movimento e operações, sendo
composto por linhas de segmentaridade que o territorializam, organizam e lhe atribuem
significado, e num eterno movimento operativo é composto também das linhas de
desterritorialização e de fuga que deslocam e assignificam os territórios e os significados
operados pelas linhas de segmentariedades; e o princípio de cartografia e de decalcomania, em
que um rizoma não pode ser entendido como algo que remete à cópia de estruturas estanques
ou à ideia de que foi gerado por algo. Ele é composto de movimento para todas as direções e
planos e velocidades, é uma realização de alianças e conexões com outras partes de rizomas.
Assim, a cartografia é amplamente inspirada no funcionamento rizomático:

Fazer o mapa, e não o decalque dele, por estar inteiramente voltado para uma
experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre
ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio
dos corpos sem órgãos, para sua abertura próxima sobre um plano de consistência. Ele
faz parte do rizoma. O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões,
desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode
ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por
um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede,
concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma
meditação.
43

Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre “ao
mesmo”. Um mapa é uma questão de performance, enquanto o decalque remete sempre
a uma presumida “competência” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 20).

Assim, conversando sobre pesquisa cartográfica no âmbito das ciências sociais, Prado
Filho e Teti (2013, p. 53) consideram a cartografia como um método estratégico-rizomático “a
cartografia opera de modo rizomático, percorrendo os pontos, as linhas e a rede do rizoma,
aplicando estratégias rizomáticas de análise e ação, percorrendo e desenhando trajetórias
geopolíticas”. Nesse sentido, para os autores, o rizoma serve como orientação metodológica
para um olhar cartográfico a ser aplicado sobre um campo, sendo que este pode ser uma rede,
uma teia de relações ou de dispositivos de produção dos modos de subjetivações.
A cartografia é amplamente conhecida como método de pesquisa ou perspectiva teórica
(há duas ou mais possibilidades de compreensão da cartografia) que pressupõe que o criador
(pesquisador) acompanhe e produza seu processo em relação ao seu campo, que será sempre
instável, contingente e assumidamente implicado com a realidade do pesquisador e com a
realidade pesquisada.
Ao realizar a escrita desta Tese, observo que ela também foi um ato de criação e
estetização de minha vida e do campo que me implico ao longo desses muitos anos,
acompanhando os caminhos que ligam os fazeres e os saberes em artes cênicas e suas
possibilidades interventivas nos saberes e fazeres em saúde mental. Há nessa empreitada um
ato de criação, experimentação e intervenção que se produziu nesse longo tempo e que me
transformou enquanto psicóloga, atriz e pesquisadora. Ou seja, houve mutação subjetiva e
criação de outros territórios em nossas vidas:

A transformação da realidade também ocorre a partir do próprio observador e das


interferências da pesquisa no universo real, o que implica o pesquisador com o campo
problemático na transformação de si, do objeto e de seu contexto, conferindo ao trabalho
da pesquisa seu caráter intrínseco de intervenção (Ferigato & Carvalho, 2011, p. 662).

Passos, Kastrup e Escossia (2009) contribuem nessa discussão ao recolocar e reinventar


um sentido para a palavra “metodologia”. Oficialmente, essa palavra leva o prefixo “meta”
(direção) e o sufixo “hogos” (caminho). Os autores propõem uma inversão da palavra, em que
o prefixo “meta” seja efeito do sufixo “hodos”. Dessa forma, teríamos uma configuração da
cartografia como um processo ou caminhar da pesquisa em que a meta ou direção se constitui
44

ao longo ao trajeto que se cria. Inaugurou-se, assim, um modo e uma nova palavra para se fazer
pesquisa: “hodosmetá” – um caminho que constrói sua direção.
Nesse aspecto, quando iniciei meu caminho, a direção não era chegar na discussão e na
prática da performance autobiográfica para discutir uma outra forma de produzir outra clínica
em saúde mental. Não imaginava e nem tinha a direção para seguir na construção do Vento dos
Avoados. Não imaginava, ao iniciar os experimentos em 2014, que aquela experiência me traria
condições para produção de um saber acadêmico. Assim como este processo de escrita é
nascente a cada segundo e vai interferindo na construção desse novo campo, que é composição
de campo, intervenção e análise. Pensando a questão da pesquisa como intervenção, sabemos
que todo conhecer já é em si um fazer, e o conhecimento é um ato que transforma a realidade,
“construindo no mesmo movimento a si mesmo e ao mundo. Intervir refere-se a uma aposta
ético-política que afirma a radicalidade da intervenção em seu sentido etimológico, isto é
intervir, é vir-entre. Pretende romper uma concepção ‘aplicacionista’ em que a teoria precede a
prática e a contemplação, o fazer” (Heckert & Passos, 2009, p. 380). Quando pensamos em
“campo de pesquisa” numa perspectiva cartográfica, compreendemos que se trata de uma
produção que se dá na realidade que está embrincada com a teoria que nos sustenta e a ética
que nos guia. Fizemos as intervenções ao mesmo tempo que produzimos nosso campo e nossa
ética. Esta escrita, portanto, é também um campo que se manifesta e se transforma ao longo do
processo de escrita. Dessa forma, eu criei uma narrativa que pudesse conter as paisagens
subjetivas e psicossociais que acompanhei, que se fizeram e desfizeram antes, durante e após a
experiência do Vento dos Avoados.

3.1 Tempo de pouso e de experimentação

O campo desta pesquisa pode ser divido em dois tempos. No primeiro tempo, intitulado
“Antes do Vento”, eu relato dois processos de pesquisa e laboratório cênico inspirados em
Teatro Documentário que foram realizados com participantes da Associação Potiguar Plural e
alunos da UFRN. Resultaram desse primeiro processo a escrita narrativa de uma performance
que será analisada conforme for apresentada. No segundo tempo de campo de pesquisa,
intitulado “No Vento dos Avoados”, relato a formação e a realização das oficinas no projeto de
extensão universitária e campo estágio oferecido pelo curso de Psicologia da UFRN. Apresento
e descrevo as oficinas de Teatro com os experimentos propostos realizados, bem como as
narrativas autobiográficas produzidas nas performances cênicas. Cartografo o percurso dos dois
45

tempos do Vento a partir de nosso diário cartográfico registrado em um blog fechado e em


grupo secreto do Facebook ao longo de todo o processo de pesquisa. Analiso também as
narrativas de uma roda de conversa cênica, que foi filmada no último dia das oficinas, com o
intuído de produzir uma reflexão sobre as vivências dos participantes durante o período do
segundo semestre das oficinas.
Participaram das oficinas algumas pessoas que frequentavam os seguintes serviços da
rede de saúde mental da cidade de Natal/RN: Centro de Atenção Psicossocial III, Residência
Terapêutica do Distrito Oeste, Centro de Atenção Psicossocial Infantil, Centro de Atenção
Psicossocial II Leste, Ambulatório de Saúde Mental da Ribeira e Hospital Psiquiátrico João
Machado. As oficinas funcionavam com o apoio da UFRN e os estagiários tiveram a
incumbência de levar os usuários até a Pinacoteca, saindo todos do Caps III Leste todas às
quartas-feiras às 13h30, data e horário que aconteciam os encontros. Lá, reiteravam os convites
e semanalmente levavam novos usuários à oficina. Eles também atuaram como acompanhantes
terapêuticos e participavam como atores e experimentadores das práticas em todos os encontros,
num movimento autogestivo. Para além, participaram do planejamento, da execução e da
avaliação de cada encontro.
As oficinas aconteceram semanalmente com a duração de quatro horas. Iniciávamos os
encontros com atividades direcionadas à realização de aquecimentos corporais, para a
preparação do grupo para o trabalho de pesquisa e proposição das performances. Trabalhamos
semanalmente com a proposição de tarefas para que eles trouxessem às oficinas seus materiais
e documentos conforme surgissem as temáticas de interesse. A cada encontro, trabalhamos
cênica e poeticamente textos, cheiros, imagens, memórias, objetos pessoais, fotos, vídeos
“caseiros”, conversas de redes sociais, trechos de matérias de jornal, de revistas, entre outros.
Em seguida, com o levantamento desses materiais documentais, fizemos alguns exercícios e
jogos para a transformação dos documentos em performances biográficas, inseridos num
contexto pessoal ou temática maior. Todas as performances foram gravadas (de forma
audiovisual) e acompanhadas de registros no diário de campo. As performances foram
transcritas para fins de produção dos dados. Combinávamos também, ao final da roda, qual
pesquisa seria realizada para o próximo encontro, conforme o material cênico e a temática
criada no encontro atual.
No segundo semestre, tivemos uma mudança importante no coletivo. Alguns
participantes dos CAPS saíram de seus regimes de internação, outros não compareceram mais
e, principalmente, tivemos uma participação muito importante de um grupo de pessoas vindas,
46

na maioria mulheres, de um regime de internação de longa data do Hospital Psiquiátrico João


Machado. Essas presenças reconfiguraram a metodologia inicial e, por isso, nos propusemos a
recriar a abordagem que se afastou da temática das memórias e se conduziu pelos exercícios
cênicos e corporais. Ao todo, participaram aproximadamente vinte pessoas por dia, entre
participantes do MNPR/RN, pessoas que estavam sendo atendidas na Rede de Atenção
Psicossocial, participantes da Associação Plural, estudantes estagiários, colaboradores e um
professor das Artes Cênicas, Apolo3, além de mim, no meu lugar de propositora, psicóloga,
apoiadora de movimentos sociais (a Plural e o MNPR), pesquisadora e atriz. Foram 210 horas
de oficinas realizadas.

3.2 Exercício cênico disparador de narrativas

Tenho usado muito o conceito de narrativa e, neste momento, vou elucidar esse
conceito. Segundo Benjamin (1994), narrar é a faculdade de intercambiar experiências. A
experiência que passa de pessoa a pessoa é própria da narração. “O narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a experiência dos outros. Ele incorpora
as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (Benjamin, 1994, p. 198).
Para Benjamin (1892-1940), em seu texto “O narrador” (1994), o homem moderno
estaria se distanciando de sua capacidade de narrar, pois estaria perdendo sua capacidade
intercambiar experiências. Em uma leitura crítica às formas de literatura (como o romance
psicológico, a imprensa, a notícia e os conteúdos informacionais que fazem parte dessa forma
de comunicação escrita), Benjamin (1994, p. 198) fala da possível morte da arte de narrar: “uma
das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que
continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. Ademais, esse autor dá exemplos das
pessoas que voltavam de ambientes em guerras e que, ao retornarem, voltavam mudos e muito
empobrecidos de experiências comunicáveis: “basta olharmos um jornal para percebermos que
seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem no mundo
exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos
possíveis” (Benjamin, 1994, p. 198). Interessante esse trecho porque é extremamente
contemporâneo e diz que nossa capacidade de trocar experiências e produzirmos narrativas tem
muita relação com os modos de vida que levamos, com a ética discutível que rege nossas parcas

3
Apolo é ator e esteve como professor e diretor das oficinas de Teatro durante nove meses, tempo de duração do
projeto de extensão universitária da UFRN.
47

experiências. O que temos vivido nos fornece a capacidade de intercambiar experiências? Ou


seja, de sermos narradores, segundo a concepção de Benjamin?
De maneira poética e ilustrativa, o autor nos apresenta duas figuras de narradores
arcaicos (que existiam antes do sistema capitalístico se tornar hegemônico): a figura do
camponês sedentário e a do marinheiro comerciante, que conseguiam passar suas experiências
de pessoa a pessoa – ou melhor, eram narradores. O marinheiro narrava o que lhe passava nos
mares distantes, como uma figura do viajante que volta e tem muita história a contar; e o
camponês sedentário partilhava de seu saber sobre a natureza seu território: “se os camponeses
e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar foram os artífices que a
aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para
casa pelos migrantes com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário”
(Benjamin, 1994, p. 199). Seria no campo do fazer artesanal que o autor nos exemplifica seus
tipos de narradores arcaicos. Seria no fazimento do artesanato que iam se contando as
experiências partilháveis. Narrar seria então como falar ao outro de maneira artesanal e
espontânea.
Teço relações com a estética da performance e com o conceito de performance no
campo linguístico que nos acompanhou ao longo de nossos fazeres: se performar é fazer-se,
mostrar-se e demonstrar-se fazendo, acredito que estamos muito próximos dessa ideia de
narrativa como experiência. Sempre que performamos, trocamos coletivamente algo,
partilhamos do mesmo espaço nessa troca. A linguagem que a passagem da experiência se dá
na recepção da ação mostrada é múltipla, ultrapassa a linguagem escrita ou oral, é gesto
artesanal partilhável.
Nesse sentido, estávamos, no contexto do exercício cênico, no momento de produzir
narrativas que passassem pela linguagem da performance, mas não por meio de apenas um
relato de si ou presos à narrativa autobiográfica, como nos experimentos anteriores. Pensamos
em um exercício cênico disparador de narrativas para que pudéssemos trocar nossas
experiências naquele momento final das oficinas. A cena disparadora, então, foi realizada no
nosso último encontro, antes da realização da mostra final das oficinas. Tínhamos como
objetivo fazer um compartilhamento das experiências vivenciadas durante o semestre pelos
participantes presentes. Encontramos uma maneira cênica de conduzi-la: cada participante ia
para frente (como se fosse um palco) e fazia um minuto de silêncio antes de se apresentar aos
outros. Depois do minuto (contado no relógio do celular pelos estudantes), ele se apresentava
ao grupo e respondia às seguintes perguntas disparadoras: como é estar nesse espaço? O que
48

você faz aqui muda o seu dia? E, se muda, muda o que, como? As cenas foram registradas em
vídeo, e posteriormente, transcritas. O minuto de silêncio era interessante como dispositivo que
induzia à presença, contração e contemplação, trazia-os para o confronto com a plateia e fazia-
nos criar um pensamento naquele minuto silenciado. O silêncio de um minuto (um minuto pode
ser muito tempo!), em face a uma plateia, pode produzir diferentes afecções nas pessoas. Foi
dessa maneira que se produziram as narrativas das experiências vividas ali no coletivo.
Entendemos que esse exercício cênico, mais do que um instrumento de trabalho,
funcionou como um dispositivo. Vamos entender por dispositivo a partir do que Deleuze (1996)
comenta sobre o pensamento de Michel Foucault. O autor observa que Foucault estudava alguns
períodos da história não como um arquivo, mas sim como linhas de um “dispositivo” que
instaurava regimes de força, saber e poder. Derivaram deles os regimes e a subjetivação de cada
momento histórico que sempre se atualizam, criando outros modos de se viver num movimento
incessante. A época grega, a cristã, a Revolução Francesa produziram então certas formações
históricas, com regimes de visibilidade e dizibilidade, que podem ser consideradas como
dispositivos que produziram determinadas subjetivações ou modos de existência. Segundo
Deleuze:

E cada dispositivo é uma multiplicidade na qual esses processos operam em devir,


distintos dos que operam em outro dispositivo. É antes de mais uma meada, um
conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente. [...] E, no
dispositivo, as linhas não delimitam ou envolvem sistemas homogêneos por sua
própria conta, como o objeto, o sujeito, a linguagem etc., mas seguem direções,
traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se
afastam uma das outras. Desenredar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é
construir um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que ele chama de
“trabalho de terreno”. É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas; estas não se
detêm apenas na composição de um dispositivo, mas atravessam-no, conduzem-no,
do norte ao sul, de este a oeste, em diagonal (Deleuze, 1990, p. 155).

Nesse sentido, todos os nossos experimentos cênicos podem ser considerados como
experimentos-dispositivos. A filosofia dos dispositivos opera um pensamento de criação do
novo, pensa a partir da criatividade que acontece na imanência da vida inserida na
temporalidade. Portanto, pensaremos o que de novo foi produzido a partir da experiência
artística aqui analisada, seguindo as linhas cartografadas dos terrenos e mapas que criávamos e
recriávamos.
49

Percebíamos a mudança depois do exercício cênico disparador: aquela pausa assistida,


além de cênica, era um dispositivo inventado que nos dava a oportunidade de viver o
pensamento como criação de uma nova experiência.

3.3 Os diários de campo cartográficos

Os diários de campo cartográficos foram escritos durante os dois tempos do Vento.


Registrei nossas programações para oficinas, dúvidas, narrativas, vídeos, textos acadêmicos,
registros das oficinas e das cenas (performances) realizadas. As narrativas que criei a partir
desses registros foram escritas em um blog4 privado durante o período “Antes do Vento” e em
um grupo secreto do Facebook5 no período do Vento dos Avoados. Os conteúdos6 encontrados
nos endereços virtuais estão de alguma forma poetizados – isto é, não são literais, muito embora
sejam totalmente inspirados na realidade, pois são as minhas narrativas que surgiram a partir
dos registros. As performances autoficcionadas foram transcritas do filme O Fazedor de
amanheceres (2016), de Thaíza Salgado (aluna e estagiária de Psicologia na época que produziu
o filme sobre a primeira Mostra da Luta Antimanicomial de Natal). As narrativas criadas a
partir dos depoimentos do exercício cênico disparador foram transcritas de uma gravação
filmada do exercício.
Em pesquisas de inspiração cartográfica, o registro do trabalho de investigação ganha
uma função de dispositivo como disparador de desdobramentos da pesquisa (Benevides &
Passos, 2010). Falamos em outro momento da política de narratividade que uma pesquisa-
intervenção requer e produz: essa política seria o modo que dizemos e registramos nossa
experiência, que pode se expressar geralmente naquilo que chamamos de diário de campo ou
de pesquisa. Aqui, chamarei de diário de campo cartográfico. Achei importante na época usar
as ferramentas coletivas que tínhamos na Internet (tomando o cuidado com o sigilo das
informações): registrar nossa experiência, assim como inserir outras linguagens, como vídeos
e fotos, nos ajudaria a produzir uma outra política de narratividade, mas acessível e mais
coletiva.

4
Disponível em: http://ciadeteatroosheterotopos.blogspot.com.br.
5
Disponível em: https://www.facebook.com/groups/108922719523538/.
6
A transcrição dos dois diários virtuais está no Apêndice desta Tese.
50

3.4 Produção da análise

Cartografar esse campo de experiências foi um processo de produção e mutação


subjetiva que acompanhou as paisagens que se formaram e se dissolveram ao longo de três anos
de experimentações – de 2014 a 2016, período anterior ao Doutorado. Estive durante a pesquisa
em vários territórios: como atriz experimentadora, como pesquisadora, como coordenadora das
oficinas juntamente com os estagiários, como psicóloga, como participante da Associação
Potiguar Plural, como aluna participante das supervisões. Em todos esses territórios coletivos,
tive que ir me deslocando e me descartando de certos saberes para poder compor mais
heterogeneamente novos territórios. Fez-se necessário ocupar múltiplos lugares e inventar
outros a cada encontro, para sempre escapar das ciladas que os lugares fixos nos convocam.
Trabalhar com linguagem artística naquele contexto foi um grande aprendizado, no
sentido de compreender que é preciso estar em movimento de criação – mesmo quando parecia
que a criação estancava. Assim, a análise não se deu num momento específico da pesquisa, mas
desde o seu início, da inquietação inicial nos deslocamentos singulares e coletivos que fomos
percorrendo ao longo da intervenção. Cartografamos e registramos todos os tempos da
pesquisa-intervenção, passeando por diferentes espaços coletivos que iam explicitando temas
analisadores das experiências vividas.
A análise envolveu um trabalho de pensamento sobre os arquivos construídos ao longo
do processo e dos quais se desenharam os mapas analíticos que são apresentados nos próximos
capítulos nos diferentes “tempos” de pesquisa e nas diferentes experiências produzidas. Foram
analisadas, por meio do referencial teórico da Filosofia da Diferença, os textos das
performances autoficcionadas encenadas e as narrativas construídas pela pesquisadora e pelo
coletivo a partir dos registros obtidos no exercício cênico disparador, assim como os registros
que descrevem o compilado de práticas e procedimentos sensíveis realizados ao longo do
processo de pesquisa-intervenção.
51

4 Experimentos cênicos autoficcionados

Aqui começa a narrativa sobre os primeiros experimentos que realizamos juntos: eu


com meu desejo de experimentar um Teatro que se propõe a falar de si e o encontro com a
Associação Potiguar de usuários e familiares da Saúde Mental Plural.
Em 2010, mudei-me para Natal e encontrei o campo da saúde mental de outra forma. A
Associação Potiguar Plural, naquela época, se reunia no núcleo de Saúde Coletiva da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (NESC/UFRN), onde iniciei, em 2014, a
pesquisa e as intervenções sobre a linguagem artística cênica pela performance. A Plural é uma
associação existente em Natal/RN há mais de dez anos e reúne pessoas da rede de saúde mental
local, bem como familiares, profissionais, estudantes e demais colaboradores. É também um
movimento social organizado, com atividades políticas de militância e ativismo pautados na
Luta Antimanicomial na cidade e no Estado do Rio Grande do Norte. Fundamentalmente, ela
comporta uma rede de amizade importante para todos que a frequentam, se propõe e funciona
como rede de apoio e suporte aos participantes.
Tive a imensa sorte de conhecer esse coletivo que me ofereceu tanto afeto, alegrias e
acolhida numa cidade tão desconhecida e nova para mim naquele momento. A Plural foi minha
casa, minha família em meio a tanta aridez afetiva que vivi naqueles tempos. Quando pondero
hoje que a Plural é uma associação de usuários e familiares que usam serviços de saúde mental,
eu me remeto a potência daquele coletivo. Ele tem alguma composição que o faz funcionar de
maneira a produzir o que não encontramos em qualquer lugar: os bons e diferentes encontros.
Assim, penso atualmente que a Plural pode ser considerada um coletivo, como nos diz Jean
Oury em seu livro O Coletivo, enquanto um conjunto de funções complexas que deve ter por
princípio a produção da heterogeneidade, sendo que:

Uma das funções de um coletivo seria a de velar para que não haja uma grande
homogeneização dos espaços, que haja a diferença, que haja uma função diacrítica que
possa distinguir os registros, os patamares etc. E que cada um possa articular algo de
sua singularidade mesmo em meio a um coletivo (Oury, 2009, p. 140).

Ao longo do tempo, a Plural foi ampliando lentamente sua composição de integrantes,


convocando estudantes de diferentes instituições de ensino de Natal e alguns trabalhadores. A
homogeneização do espaço (entendendo espaço também como ocupação subjetiva dos
integrantes) foi dando lugar à dimensão da heterogeneidade. Nesse sentido, observo que a
52

produção de um coletivo se dá em ato e no movimento ininterrupto. Se eu pudesse definir a


Plural, eu diria que sua maior beleza é a liberdade de circulação da palavra, do riso e dos afetos
que atravessam os encontros, somada a um baixo grau de institucionalização de poderes e
normas e um compromisso que se faz no encontro das vidas dos que ali estão. A Luta
Antimanicomial e sua agenda política ganhou outro sentido para mim a partir daquele encontro.
Aquela luta tem nome, endereço, tem sorriso, suor, choro, abraço, histórias de vida diversas. É
difícil seguir uma pauta num encontro da Plural, porque a palavra e os afetos circulam em ato,
e isso é gratificante. Sim, a Plural foi ganhando produção de heterogeneidade. Como nos conta
Oury ao pensar sobre a importância desse conceito na dimensão de sua experiência da Clínica
de La Borde, os dispositivos como o clube, a cozinha, o jardim, os ateliês, jornal, o galinheiro,
o bar e toda essa constelação de mediações permitem a emergência da circulação dos
“pacientes” em La Borde:

[...] o que importa não é estabelecer relações diretas com um ou outro paciente, mas
relações indiretas, levando em conta a estrutura coletiva e sistemas de “mediação”. O
clube é uma estrutura de mediação na vida cotidiana. [...] Não há clube “em si”, não há
coisas em si, senão é uma impostura coletiva (Oury, 2009, p. 74).

Para Oury, na psicoterapia institucional é sempre preciso que esses conjuntos, como o
clube (reunião de pessoas para criação de atividades diversas em La Borde) ou outros
dispositivos, sejam retomados num sistema de constelação que permita que os “pacientes” (no
texto, Jean Oury usa essa palavra) circulem suas relações e afetos, que possam se exprimir e
que a palavra possa circular fora dos saberes “psis” (já mencionados: Psicologia, Psicanálise e
Psiquiatria) instituídos:

Logo “constelação” implica num mínimo de “liberdade de circulação”. Sabe-se muito


bem que o esquizofrênico não faz uma escolha administrativa das pessoas que lhe
agradam, ou que não lhe agradam. Ele não escolhe entre os diplomados. Ele escolhe seu
companheiro, a faxineira, ele escolhe as pessoas que ele vê todo dia e que têm uma cara
que lhe agrada [...]. A constelação tem mais eficácia quanto mais ela é heterogênea; ela
é heterogênea se as pessoas não se parecem [...] se convocarmos numa constelação de
dez psicólogos diplomados, é menos eficaz do que um psicólogo mais uma faxineira,
mais um cozinheiro, mais um jardineiro, mais um esquizofrênico, mais um médico
chefe, mais um guaxinim... Há muito mais possibilidades de surpresas, de trocas, de
manifestações, de expressão (Oury, 1999, p. 76).

Assim, com o tempo, a associação Plural foi se aproximando das universidades e da


cidade, foi ganhando heterogeneidade e ampliando sua constelação. Fez parte de alguns
53

projetos de extensão e estágio para alunos do curso de Psicologia da UFRN, constituindo-se


como campo de formação dos estudantes de Psicologia. A necessidade de aumento de
heterogeneidade foi ganhando corpo na Plural e, assim, esse coletivo foi se modificando até
ocupar um tipo de lugar de mediação entre a cidade, os serviços de saúde mental e as
universidades. Foi-se expandindo num movimento, por vezes de retorno às linhas de
composição mais duras e instituídas e também em movimentos mais abertos e porosos a
depender de quem constituía os encontros. Observo que não há garantias quanto a esse
movimento não ser paralisado, mas percebi que quanto mais o grupo foi ampliando sua
constelação, mais a paralisia tornava-se menos intensa. Foi nessa circunstância mais aberta na
Plural que eu também me senti à vontade para convidá-los a experimentar uma proposta de
Teatro.
Foi na Plural que encontrei meus mestres: José e Eugênio, meus primeiros parceiros
nesse reencontro comigo e com as experimentações em performance na linguagem
autobiográfica. Ali, encontrei-me com os movimentos sociais verdadeiramente e não somente
segurando cartazes num ativismo panfletário. Ali, reconheci os Direitos Humanos em ato.
Naquele solo, longe de um território conhecido, num processo de desterritorialização, encontrei
o Vento e, com ele, os Avoados.
O vento de Natal era fresco, incansável, ininterrupto, em alguns momentos do ano
tornava-se mais forte, mas, geralmente, era um vento amigo, confortante, belo e guerreiro.
Nunca se permitia parar ou calar, a tristeza do abafamento ou a fúria não tinham lugar ali. A
sua política ou a maneira que ele se mostrava e agia no mundo era da amizade. Foi junto ao
vento de Natal, com a Plural e alunos de Psicologia da UFRN, que iniciei um campo de
experimentação nas performances autobiográficas na perspectiva do Teatro Documentário.
Aqui transcrevo a primeira escrita do blog que criei para se tornar uma espécie de diário
de campo. Naquele momento, eu desejei ter um marco, uma escrita que pontuasse o nascimento
de um trabalho ou de um desejo de realizar uma pesquisa, muito embora não estivesse vinculada
ainda ao programa de Pós-graduação da UFRN.

Somos um princípio desejante. Sem forma, sem interioridade. A nossa história começa
no final do ano de 2014, dentro de uma sala disciplinar numa Universidade em solo
Potiguar. Nessa sala, começamos a afastar as cadeiras e a experimentar alguma coisa
que se aproxima de uma necessidade de autocriação coletiva num grupo de pessoas que
busca se “desidentificar” de suas histórias. Contando seus relatos dessas vidas
perpassadas pelos famosos processos mortificadores, sejam eles a Psiquiatria, a pobreza
material, a universidade que desensina, as ruas que não andamos, amores que perdemos
54

na infância dos doces que ficam na mesa. O desejo de desenformar nos continua (Diário
cartográfico).

Acima, na descrição do início do trabalho com o início de um grupo, falo


espontaneamente – e até de maneira inocente – a palavra “desidentificar” das próprias histórias.
Ali, entendo que havia a intenção de que os exercícios que levavam aos relatos poderiam
produzir outros sentidos em relação à memória do que se anunciava e enunciava. Ao escrever
hoje (quatro anos depois) sobre isso, tive vontade de buscar o significado da palavra: “deixar
de possuir identidade; fazer com que a identidade seja perdida; deixar de possuir
particularidades distintivas. Deixar de demonstrar identificação com; não ser mais idêntico a;
divergir: o prefeito desidentificou o município de seu povo; o casal se desidentificou” (DICIO,
2019)7.
Qual identidade nós gostaríamos de “deixar” ao contar e documentar as nossas
histórias? Tratei no texto citado sobre processos mortificadores que acompanhavam as vidas de
algumas pessoas do grupo, falava da universidade, da pobreza, da Psiquiatria, das ruas e de
amores não vividos. Gostaríamos, naquele momento, de divergir para deixar as particularidades
das marcas que carregávamos? Quais eram essas marcas? Sofrimentos que impediam nossos
fluxos, nossas passagens a outros estados. O fazer cênico performático inspirado no Teatro
Documentário seria um território ou dispositivo para isso? Desejávamos não ser mais idênticos
àquelas marcas da Psiquiatria, da universidade, dos sofrimentos que capturavam nossas
existências?
A formação do grupo naquele momento era muito inconstante. Tínhamos alguns
estudantes do curso de Psicologia e algumas pessoas que usavam a rede de saúde mental e
faziam parte da Plural. As presenças eram flutuantes e o trabalho seguia com o fluxo dos
presentes. Fazer e manter um grupo aberto naquele formato e local não era fácil. Seguindo com
a exposição dos experimentos que compuseram parte do nosso campo e como início do
exercício analítico por meio do blog/diário, trago o primeiro exercício que propus ao grupo.
O primeiro exercício proposto foi que cada um levasse um objeto que dissesse sobre
uma inquietação para que, a partir da presença do objeto concreto, pudéssemos produzir uma
narrativa autobiográfica do que ele contava sobre nós.
Elencamos o exercício acima como um primeiro disparador/ativador, que poderia
convocar ao exercício de pesquisa de si mesmo e à ação (cena) posteriormente. Ao narrar aquela

7
Disponível em: https://www.dicio.com.br/pesquisa.php?q=desindentificar.
55

experiência que o objeto remetia, a pessoa poderia incitar algumas memórias e, a partir disso,
como uma primeira sondagem, começaríamos a levantar as narrativas que importariam ser
manifestadas e reinventadas na história daquela pessoa.
Aquele exercício era apenas um início de levantamento das narrativas a serem
transformadas em cena. Para isso, era preciso que o grupo continuasse a frequentar os
encontros, a construir uma coesão grupal que traria confiança a para se abrirem a si mesmos e
aos outros. Alguns continuaram, outros não voltaram.
Depois da descrição dos objetos, eu fiz a seguinte observação no diário (blog): “Alguns
objetos, poucos relatos. É difícil nos contar”. Por que nós nunca conseguimos nos contar de
fato? Alguns conseguiam se colocar na escolha do objeto, outros falavam indiretamente, usando
poemas ou músicas que os representavam. Outros não levaram nenhum objeto.

A gente se deparou com um esvaziamento do grupo. A gente se deparou com histórias


que nos levam às prisões.
José pede que as portas fiquem abertas. As portas, abram as portas!!
Xs alunXs desaparecem... O manicômio universitário os toma. Muitos trabalhos,
semestre fechando... O grupo se torna os Dois homens! (Diário cartográfico).

Na nota do diário, eu contava sobre o encontro de José (membro da Plural naquele


momento) e Bernardo (estudante de Psicologia da UFRN). Existiam, nitidamente, efeitos
diferentes para aqueles “dois homens” ao contarem sobre si por meio de um objeto escolhido e
presente naquele momento.
A partir desse campo de experimentações, seguimos com o relato das performances
cênicas que surgiram na perspectiva da pesquisa autobiográfica na estética documental8.
Contaremos o encontro de dois homens, tão diferentes e com tanto de “Teatro” em comum. O
encontro de Bernardo (vinte e três anos, estudante de Psicologia na UFRN) e de José (cinquenta
e quatro anos, participante da Associação Potiguar Plural, usuário de serviços de saúde mental)
foi marcante e definidor dos caminhos da pesquisa na linguagem cênica que buscávamos.
Bernardo e José traziam inquietações parecidas, muito embora ocupassem, no corpo social,
lugares absolutamente diferentes. Naquele momento, traziam em seus corpos as feridas dos
aprisionamentos que viviam e que foram produzidas em suas histórias, mas também o desejo
muito forte de se contar e dar passagem para outras histórias. Durante os ensaios, eles

8
Mais adiante neste texto, vamos nos deter no que vou chamar de pesquisa autobiográfica ou autoficcionada na
estética documental.
56

trabalharam como dupla a maior parte do tempo, num encontro que buscava a liberdade.
Abaixo, descrevo os objetos que traziam nessas inquietações:

José: chapéu e um óculos de sol, uma foto de um passeio na Bahia quando jovem. De
óculos e chapéu, fala de seu pai, traz um livro embaixo do braço, narra sua história: as
internações, a maconha, o álcool e o desejo de estudar em uma universidade para ser
psicólogo, para ajudar os outros. Fala do navio “Hope” que aportou em Natal nos anos
oitenta que forneceu tratamento de fisioterapia para ele, conta sobre a vontade de ter ido
embora com aquele navio e ajudar as pessoas que precisavam.
Bernardo: fala da Universidade e da cidade que o aprisiona. Queria se achar em Natal,
sentia-se desencontrado nessa cidade e na Universidade que para ele é uma prisão.
Sozinho. O desencontro, ele tem que se achar aqui desencontro/encontro. Traz o livro
de Manuel de Barros (Diário cartográfico).

José, naqueles encontros, insistia em contar e representar (reapresentar) sua história. Ele
representava suas crises fazendo gestos que mostravam sua cabeça ardendo, as mãos presas
para trás e um “texto” criado e improvisado por ele que falava de suas internações involuntárias
nos hospitais psiquiátricos da cidade de Natal. As cenas remetiam a um labirinto de dores. Não
havia saída, eram internações e reinternações. A cada dia de nossos ensaios, José repetia – sem
nenhuma diferença – as cenas da “cabeça pegando fogo”, dos “braços contidos” e uma em que
ele mostrava uma catação de piolhos que ele e um amigo de quarto faziam um no outro nos
momentos de solidão no hospital.
Na continuidade dos encontros, eu percebia que José insistia em reapresentar a violência
que havia vivido com gestos sempre iguais (mãos na cabeça, mãos atadas para trás, gestos de
flagelamento) e falas muito repetidas sobre suas internações. Aquele era o repertório gestual e
narrativo que se manifestava ao solicitarmos que ele nos contasse alguma coisa (inquietação)
sobre sua vida. Ali, eu me lembrei do Hospital Psiquiátrico da Água Funda em São Paulo. Não
estaria eu fomentando o mesmo tipo de cena? Como fugir daquelas cenas? Como construir
linhas de fuga e outras formas de enunciação para aquele sofrimento? Era-me angustiante vê-
lo reapresentar tudo aquilo repetidamente durante todos os ensaios, e eu não sabia mais como
dizer a ele para produzir uma mudança – afinal, aquelas cenas eram espontâneas para ele.
Aquele não era nosso objetivo, representar aquelas dores e reapresentá-las só as traria de volta
num corpo já muito violentado. Nosso desejo era fugir do labirinto manicomial. Era buscar a
possibilidade de narrar outra história, ou ao menos olhar e tentar fazer José se ver, e se vendo,
conseguir mostrar outra parte da sua história, aquela esquecida, que fora corrompida,
57

sequestrada pela institucionalização produtora de uma subjetivação assujeitada: a do “doente


mental”.
Em determinado ensaio, eu me deparo novamente com a minha angústia em reviver o
manicômio cenicamente e peço a José para contar de sua vida antes da primeira internação,
peço que ele resgate sua infância ou outros momentos de sua história antes do labirinto da
violência manicomial se iniciar em sua vida. Então, ele, pela primeira vez conosco (porque José
adorava contar suas histórias), consegue narrar e realizar uma cena que não era sobre sua
história de internação, mas sim tudo aquilo que continha uma beleza e um sofrimento da ordem
da experiência do cotidiano comum que se transformou em injustiça e aprisionamento ao longo
da sua trajetória. A música de Bernardo apareceu e se manifestou na cena como uma poesia
cantada, uma pista para a saída do labirinto manicomial representado até então. Aos poucos, os
dois homens vão se encontrando, aos poucos tecem e entrelaçam suas biografias. Do
blog/diário:

José, esse homem que quer escapar do manicômio conta sua vida antes dele.
Sua infância, negro, pobre, deficiente.
A sua vida de quedas, até que perde os dentes, a cabeça fica oval de tanta queda.
Mas José se equilibra, se apaixona. Mas José é pobre, ela é rica. Seu pai, suas surras,
sua vergonha desse pai.
Seu amor incompleto. Seu choro retido. Seu amor retido.
As rotas de fuga, as novas surras desse pai.
A morte do pai.
Quando veio o choro da morte desse pai, veio a internação. Prende-se a dor. Ah... José,
quando foi chorar, já não o podia. Encontra a cachaça, a maconha. E ainda o amor
partido. O quase. José que se confunde com ladrão. Mas seu nome é José Maria, e
integridade igual nunca havia visto. Com ele, os remédios, as violências, a perda de si.
Mais internações...
Depois de muitos anos, os NAPS chegam, nunca será tarde.
Com ele, a aproximação com a Psicologia e com a psicóloga que ele ama e deseja. E
José sempre nos anuncia: o NAPS (o Núcleo de Atenção Psicossocial) havia mudado
sua vida! Lembremos sempre disso.
Com a vida, sempre o sonho de estudar.
A leitura, a poesia.
A Psicologia...
A cena não chega. Mas chegam as lágrimas nos olhos da Dona Isaura9, sua mãe.
Esse homem que tem sonhos, esse homem reto, esse homem honesto.
Esse homem corajoso que não tem mais medo.
Esse homem chamado José (Diário cartográfico).

9
Dona Isaura, a doce e forte mulher, é mãe de José. Ela sempre esteve presente em todos os nossos encontros,
sempre facilitou a vinda do filho, sempre contribuiu com o que podia durante nossos encontros. Nesse dia, ela,
que geralmente mais sorria, chorou. Ouviu seu filho se contar.
58

Esses dois atores/poetas transformam suas biografias numa performance:

Cena: Dois homens – o encontro (2015)


O público se senta em forma de meia lua e José está no centro desse espaço.
José Maria caminha pelo espaço, senta-se e caminha novamente. Ele é uma pessoa
qualquer naquele lugar. Ele caminha, cumprimenta, conversa um pouco. Muito
naturalmente.
Bernardo entra e o olha face a face. Se afasta e começa a cantar a primeira música da
cena: “Comentários a respeito de John”, de Belchior10
José se apresenta. Coloca seus óculos e seu chapéu.
José vai contando sua história... Sua infância, a trombose que o deixou paralisado de um
lado do corpo, o pai, o temor ao pai, a paralisia, as quedas, a diferença que vivia... A
deficiência, a escola, a professora, o navio Hope que trouxe fisioterapia para ele, sua
vontade e arrependimento em não ter ido embora com eles. Conta para as pessoas uma
a uma, olhos nos olhos. Nada é cênico... Tudo é uma conversa, fazemos contato com os
olhos, tocamos as pessoas, conversamos, trocamos.
Bernardo entra e canta a música: “Deixa eu dizer”, de Cláudia
(https://www.youtube.com/watch?v=2r-Rn9MJRz4&ab_channel=MofoNovo).
José conta ao público sobre a sua juventude, a mudança de escola, o uso da maconha e
o preconceito que viveu por isso, a cachaça, a morte do pai e as surras que levava dele.
Em sua narrativa, José chega em seu amor por Margareth, o amor de José e Margareth,
o pai e o impedimento da realização do amor.
Você é pobre, José, ela é rica (dizia seu pai).
José fala do pai e da morte dele, o choro não chorado. A primeira internação.
Bernardo canta: “As rosas não falam”, de Cartola
(https://www.youtube.com/watch?v=5j3QjEk-6c0&ab_channel=lucianohortencio).
José conta das muitas internações, fala de seu medo, das violências nas internações.
Ele conta da época que encontrou o NAPS (Núcleo de Atenção Psicossocial) e as
psicólogas que tanto o ajudaram. O NAPS muda sua vida.
José chega ao presente e fala do sonho de estudar, do sonho de ser psicólogo.
Bernardo canta: “Esse mundo é meu”, de Elis Regina
(https://www.youtube.com/watch?v=rfiEVWiA8QI&ab_channel=tama-yo).
José hoje sonhava.
José puxa uma roda e canta com Breno e o público: “Abri a porta”, de Dominguinhos
(https://www.youtube.com/watch?v=UGwRsmJYZCs&ab_channel=MofoNovo)
(Diário cartográfico).

Na performance, José torna-se manifestação de desejo de despossessão de si. Persona e


personagem se misturam, o texto e o gesto, antes exclusivos da experiência do manicômio, se
alongam, se expandem, fazendo conexão com algumas memórias ficcionadas. A cena torna-se
performance, o Teatro que há em nós e nele nos salva por uns instantes, ao menos. Ele nos
contava sobre sua vida desde a infância – sendo negro, pobre e deficiente –, traçando e

10
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f6JOMFnzlTw.
59

compartilhando sua trajetória que, naquele momento, desenhava-se de maneira linear. Nessa
trajetória biográfica, José se encontra com Bernardo, um estudante de Psicologia vindo do
interior do Rio Grande do Norte (da cidade de Parelhas). Uma pessoa desencontrada em Natal,
um poeta, cantor e ator que se diz aprisionado numa cidade grande e duvidoso de sua futura
profissão como psicólogo. Como ser psicólogo e poeta? Esses dois homens encontram-se na
cena, transformando e recriando esses relatos sensíveis num momento epifânico. Bernardo
canta a vida de José que, por meio da música, fura o labirinto manicomial de sua existência
quando relembra de um grande amor que ficara longe em sua história. Assim, sua existência,
naquele momento, se enchia de uma boa memória esquecida e ele cria uma autoficção, o seu
presente se cria. Os relatos que sempre mencionavam as violências das internações psiquiátricas
ao longo da vida deram lugar para outras narrativas/experiências: foi possível rememorar um
amor, e tornou-se possível sonhar com a entrada na Universidade. Sua história tornou-se uma
performance e pôde ser sonhada com o público ao ser compartilhada. O passado forjou-se como
uma criação ficcional misturada com o tempo presente e os sonhos de futuro. Bernardo se viu
como alguém que pôde ser poeta e estudante de Psicologia na cidade. O sutil limite entre arte e
vida foi desafiado e desconstruído naquela cena performatizada, assim como o limite de quem
cuida e de quem é cuidado. Bernardo desocupou o lugar de psicólogo e José deixou o lugar de
“usuário da rede”, uma vez que ali buscamos não explorar depoimentos que trouxessem o
conteúdo das vivências sobre o sofrimento mental, mas sim procuramos incitar recordações que
os aproximem de suas histórias como pessoas comuns que vivem, encontram, amam, perdem.
Enfim, buscamos conteúdos comunais que nos aproximam uns dos outros e que façam-nos
diferir da grande narrativa manicomial. Queríamos as pequenas narrativas, aquelas que muitas
vezes são esquecidas porque essas pessoas geralmente são lembradas somente como “usuários
de serviços de saúde mental” e eles mesmos não se reconhecem de outra maneira. Judith Butler
em seu livro Relatar-se a si mesmo – Crítica da violência ética (2015), discorre em uma análise
filosófica e psicanalítica sobre a histórica dificuldade de relatarmos a nós mesmos perante o
outro. Porque nós não sabemos como nos tornamos um eu. Ela nos conta que não há como nos
relatar a não ser pela interpelação do outro, e essa interpelação geralmente vem pelas
instituições de nossa sociedade, gerando uma violência ética que se configura quando
escutamos a pergunta: quem és? As pessoas se tornam si mesmas fazendo (performando) um
relato e esse é feito – a partir de um julgamento – que temos como régua de medida das
normativas sociais.
60

Quando relatamos a nós mesmos não estamos apenas transmitindo informações por um
meio diferente. O relato que fazemos é um ato – situado numa prática mais ampla de
atos – que executamos, por, para, até mesmo sobre um outro, e diante do outro, muitas
vezes em virtude da linguagem fornecida pelo outro. Tal relato não tem como objetivo
o estabelecimento de uma narrativa definitiva, mas constitui uma ocasião linguística e
social para a autotransformação. Em termos pedagógicos, constitui parte do que
Sócrates exemplificou sobre parresia como uma fala corajosa no espírito crítico da
“Apologia”. Em termos foucautianos, o alvo dessa parresia não é persuadir a
assembleia, mas convencer de que se deve cuidar de si e dos outros; isso significa que
se deve mudar de vida (Butler, 2015, p. 165).

Essa perspectiva teórica considera o relato de si como ato performático linguístico e


como uma ocasião social para mudanças. Encontramos, naquele momento, um pensamento que
nos orientou a continuidade do caminho da produção dos experimentos cênicos: buscávamos o
caminho da tentativa de autotransformação, do cuidado de si e da mudança de vida. Voltaremos
a tal discussão conforme o campo de experimentação sopra até o Vento dos Avoados.
Queríamos instaurar o relato de si pela e para instauração de uma linguagem criada e fornecida
por nossa inquietação àquela pergunta sem respostas: “quem és?”
E assim, foi em João Pessoa, em um evento da Associação Brasileira de Saúde Mental
(ABRASME) no II Fórum de Saúde Mental de Direitos Humanos, em 2015, na tenda Paulo
Freire, que aqueles dois homens mostraram seu encontro ao público. Para mim foi um ponto de
certeza de que havia um fazer muito poderoso ali, que unia experiências de criação artística e,
ao mesmo tempo, proporcionava experiências de autonomia, comunicação, realização e
conexão consigo por meio de um compartilhamento do comum e com a plateia, tornando-se um
fazer poético, estético e político.

Lá estávamos em João Pessoa no II Fórum de Saúde Mental de Direitos Humanos da


ABRASME, na tenda Paulo Freire para mostrar pela primeira vez a cena “Dois homens
– o encontro”. Lá estava um homem que conta que sua história de vida. Lá estava um
homem desencontrado que canta as histórias da vida do outro homem e refaz sua vida.
Um homem que fura o manicômio falando de seu amor não vivido e de um choro
contido.
E a música que fura todas as pedras que construíram os manicômios (Diário
cartográfico).

Pura epifania e invenção pensar que as músicas furavam as pedras do manicômio. Mas,
de algum jeito (ainda não sei explicá-lo), as músicas tinham um pequeno poder de destinar um
outro destino àquela história de vida. E, naqueles instantes, o manicômio e suas prisões se
61

tornavam menores, longínquos. Era como se a criação cênica, logo a recriação de si, tivesse
aquele poder.
Buscávamos, naquele momento, denominadores comuns naqueles relatos de vidas e
biografias com outros operadores estéticos, tais como a poesia, a música e os textos
dramatúrgicos propriamente ditos, os quais eram recriados e misturados com os dados não
ficcionais na produção da cena. Com a “reinvenção” dos relatos, acreditávamos na
possibilidade de uma aproximação estética, ética e política da vida, que poderia criar um outro
modo de estar nela. Ao recriar essas histórias dentro de uma linguagem cênica, os integrantes
se encontravam com a possibilidade de transformação delas.
Desse modo, pode-se dizer que a experiência de produzir novas maneiras de se verem,
se sentirem, se perceberem e serem vistos aos olhos de outros, ao recriarem/inventarem suas
biografias, foi também uma forma de produzir a saúde/saúde mental dos integrantes? Foi um
ano de desejantes descobertas, enganos, esvaziamento de grupo, mudança de espaço de ensaio,
mas sempre ligado e usando os espaços da UFRN. Não era um espaço ideal, mas, no
Departamento de Artes da UFRN (DEART), conseguíamos salas de ensaio para nossas
pesquisas e éramos muito felizes.
A cena “Dois homens” foi também exibida também no Encontro Regional Nordeste da
Rede Unida em 2015, no CAPS III de Natal, visto que, naquele momento, eu tinha a intenção
de convidar a Rede de Atenção Psicossocial, seus usuários e a comunidade acadêmica
interessada em compartilhar e incentivar esse tipo de fazer artístico.
Essas pesquisas e experimentos cênicos foram nos fortalecendo para a busca de um
espaço em que fosse possível vivenciá-los. Queríamos um lugar em que as pessoas interessadas
(poderiam ser os usuários da Rede de Atenção Psicossocial local, os integrantes da Plural e
quem mais desejasse) pudessem ter acesso por meio de transporte público – ou seja, que fosse
geograficamente mais acessível – e que não estivéssemos dentro de um espaço institucional da
saúde mental, tampouco da educação formal. Queríamos um lugar na cidade. Tal trabalho nos
deu a possibilidade de continuar – na perspectiva de uma pesquisa biográfica documental – e
nos impulsionou a continuar de uma forma instituída, como campo de um projeto de extensão
universitária na UFRN e campo de estágio do curso de Psicologia para alunos do quinto ano. O
tempo estava gestando o Vento e ele chegaria para soprar num espaço da cidade.
62

5 O Vento dos Avoados

Em 2016, com o nítido desejo de dar continuidade a nossas pesquisas, invenções e


intervenções cênicas, ganhamos um lugar institucional como projeto de extensão e campo de
estágio dos estudantes do último ano do curso de Psicologia, na ênfase de Práticas em Saúde na
UFRN. O projeto foi intitulado como “(In)Visíveis e loucos pela cidade: oficinas e encontros
libertários entre a saúde mental e a população em situação de rua”. Naquele momento, existia
um interesse por parte da professora Ana Karenina de Melo Arraes Amorim, do Departamento
do curso de Psicologia, que propunha o campo de estágio, em realizar pesquisas e intervenções
com as populações em situação rua e as que usavam os serviços de saúde mental naquilo que
as unia: a perda de seus direitos civis e humanos e a necessidade de cuidado e intervenções
naquele sentido. Ali, firmávamos uma aliança feita de respeito e acolhimento, que seria selada
na chegada e afirmação do trabalho junto ao Vento dos Avoados.
Juntas, tínhamos o nítido desejo de realizar práticas artísticas, tais como oficinas de
Teatro e de Comunicação que fossem emancipatórias, afetivas e produtoras de cuidado e que
pudessem receber os tantos “públicos”: as pessoas em situação de rua, as pessoas que estavam
acessando a rede de saúde mental da cidade, os estudantes e quem quisesse estar ali.
Como espaço para realizar as oficinas, escolhemos uma casa de cultura localizada no
centro histórico da cidade de Natal, que fora palácio de governo e é a atual Pinacoteca Potiguar.
A Pinacoteca ficava em frente da conhecida Praça dos Três Poderes: local de andança, trabalho
e moradia de muitas pessoas que viviam nas ruas da cidade.
Com alinhamento ético e político, convergíamos em olhares críticos a certas
Psicologias. Concordávamos que a Psicologia deveria se amparar em bases éticas, estéticas e
políticas, como uma “ciência” a ser recriada sempre para produção de liberdade e produção de
microevoluções que deveriam buscar, no fazer diário, a criação e o aumento de nossas forças
de vida, no sentido de resistir e lutar por vidas mais justas e dignas de ser gozadas e vividas.
Assim, o grupo de pesquisa sonhava por alguma coisa que ainda não tinha nome, mas tinha
algumas ancoragens metodológicas e teóricas: pensávamos em composições heterogêneas para
o coletivo e pensávamos em produzir saúde na dimensão da arte, da cultura e da ocupação da
cidade, mas não queríamos uma abordagem clínico-terapêutica em sentido estrito. O fazer
artístico e político seria nosso meio, nosso fim e nosso pouso, mesmo que impermanente. Assim
era nosso desejo.
63

Dessa forma, como espaço público a ser ocupado, tínhamos uma casa de cultura no
centro velho de uma cidade, a Pinacoteca Potiguar. Como pessoas participantes, tínhamos as
pessoas que usavam os serviços de saúde menta da cidade, caminhando num trajeto quase nunca
permitido a eles – porque eles geralmente tinham seus itinerários contidos nas idas aos serviços
de saúde mental e retorno às suas casas, com pouquíssima circulação pela cidade – e as pessoas
que estavam morando na rua – que, mesmo estando na frente daquela casa de cultura pública,
não tinham acesso a ela. Como objeto, tínhamos o desejo de um fazer artístico comunitário
inspirado na performance cênica que seria norteada pelo que se materializava por meio das
memórias de cada um e de todos juntos. Com isso, desejávamos sair das universidades (de suas
salas), dos serviços da saúde mental e da assistência social para ocupar um certo lugar no fora
dessas instituições, para assim produzir mais liberdade.
Destarte, o projeto fora escrito por muitas mãos: alunos, professores e pessoas dos
movimentos sociais envolvidos. Nas escrituras para a composição do projeto, Bernardo – aluno
e mestre – imprimiu nossa primeira imagem poética no preambulo do projeto com a música de
Chico Buarque (1973), “Mambembe”11:

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim,


Correndo no escuro, pichado no muro
Você vai saber de mim
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando
Na boca do povo
Cantando
Mendigo, malandro, moleque, molambo bem ou mal
Cantando
Escravo fugido, um louco varrido
Vou fazer meu festival
Mambembe, cigano
Debaixo da ponte
Cantando
Por baixo da terra
Cantando (HOLLANDA, 1989)

Com essa canção, batizávamos a experiência de extensão e estágio pautada no desejo e


no desafio de fazer oficinas artísticas “fora” da Rede de Atenção Psicossocial e Assistencial.

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3k9AcE-kP9A&ab_channel=paulosergiomariani.
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Quando assinalo fazer oficinas em saúde mental “fora” da rede de atenção psicossocial,
significa levar os princípios da Luta Antimanicomial para a cidade, ampliando o convívio
dessas pessoas no exercício e na afirmação de suas existências e de seus direitos. Seguíamos na
pista para concretizar uma “clínica menor e do fora”, com os atravessamentos e avizinhamentos
junto a outros campos de saber que compusessem com a Psicologia que acreditávamos. Realizar
oficinas, nessa perspectiva, tinha para mim um gosto de desafio e uma certeza de que
poderíamos ter mais autonomia e mais liberdade para a criação artística do que se estivéssemos
dentro dos serviços.
Entendo que saúde mental tem total relação com a liberdade, com ampliação ou
instauração das vozes, do exercício do diálogo, com vivências afetivas e estáveis, direito à
circulação e ao pertencimento à cidade e a seus territórios, sejam eles afetivos, existenciais ou
simplesmente territórios geográficos. É, com isso e para isso, ter a possibilidade de estabelecer
e ou restabelecer contratos sociais. Mas, percebíamos também como a produção de saúde
mental encontrava limites na própria rede de saúde, em suas capturas institucionais e
disciplinares. Então, tentávamos “fazer algum respiro”, nas bordas dessa rede, também
procurando potencializá-la de algum modo por meio das experiências dos usuários. Na Figura
1, mostro nosso primeiro cartaz feito para convidar as pessoas para fazer as oficinas. Era uma
aposta, um desejo. Por isso, temos nele uma praça, bancos, cortinas – que indicavam um palco
–, bem como os logos de quem nos compunha e apoiava: o Centro de Referência de Direitos
Humanos da UFRN, o MNPR/RN e a Associação Potiguar Plural. Era só um desejo que
ventava.
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Figura 1. Cartaz das oficinas realizadas no projeto “(In)Visíveis e Loucos pela Cidade:
encontros libertários entre arte e saúde mental”.

5.1 Oficina de Teatro na Pinacoteca

Os desafios foram muitos desde o primeiro dia. Entre os principais, estão a adesão e a
continuidade dos participantes, o que nos deixava em dúvida quanto ao alcance do trabalho. Eu
já não regia as oficinas sozinha: trabalhava com Apolo, Bernardo e Gilda (atores e estudantes
estagiários de Psicologia na época). Não fechamos o grupo: as atividades eram abertas a toda a
rede de saúde mental da cidade. Mas, eu tinha receios de como seria a continuidade das
pesquisas cênicas, uma vez que poderíamos ter uma alta rotatividade de participantes.
Como de costume, iniciávamos todas as atividades com exercícios corporais e depois
partíamos para os temas disparadores. Meu diário de campo registrou o momento da passagem
de um projeto sem compromisso de institucionalidade para um projeto que tinha a
responsabilidade com a formação de alunos e com a rede de saúde mental.

O ano começa com novos espaços de sonhos para o grupo. Começamos um trabalho,
com um novo olhar, uma nova coordenação e direção. Agora somos mais... Iniciamos
com algumas pessoas que estavam no CAPS III Leste.
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Estamos agora no centro antigo de Natal, na Pinacoteca do Estado. Lá, vamos começar
a formação de grupo para depois trabalharmos com as histórias daquelas vidas. Ficou
para mim os olhares da Luiza, aqueles que fixam e conseguiram desfixar por um tempo.
Ficou para mim o cuidado de Bernardo com as meninas. Ficou para mim a pergunta:
eles voltam?
Como voltam? Quem são? Quem podem ser? Quem foram?
Fica para mim a mesma pergunta: quem volta? (Diário cartográfico).

5.2 Temas disparadores como dispositivos de produção de si

A partir do início das oficinas, julguei importante ter outro espaço virtual e coletivo para
que os colaboradores, os estudantes e eu escrevêssemos nossas impressões, nossos registros e
também documentássemos como fotos, vídeos, poemas, além de elaborarmos nossos
planejamentos coletivos. Assim, criei um grupo secreto no Facebook para tais fins:
https://www.facebook.com/groups/108922719523538/.
“Quem foram? Quem podem ser? Como voltam?” Essas questões me atravessaram
durante o início das oficinas. Minha maior dificuldade era como fazer aquelas pessoas falarem
de si sem caírem no labirinto de suas dores institucionais. Sem ser violenta – no sentido de
trazer à tona memórias tristes –, interpelá-los e revitimizá-los a performatizar um relato a partir
da minha pergunta: quem é você? Ou: do que você se lembra? Como produziria liberdade? Em
outros termos, como não reproduzir as mesmas perguntas de sempre? O que perguntar para
produzir variação e diferença? Suscitando a discussão de Butler sobre a violência ética (que
pode se realizar ao interpelar o outro), José, Bernardo e eu já havíamos experimentado essa
possibilidade (explicitada anteriormente). Logo, lembrava-me do quanto aquele processo havia
sido libertador e saudável para nós.
Outra questão era: por estar em um grupo maior, como resolver a problemática de
propor o relatar-se, revistar as biografias sem cair em momentos tortuosos, exageradamente
longos e labirínticos, aspecto que percebia que acontecia quando eu tinha que manejar uma
oficina ou trabalho coletivo com pessoas em sofrimento psíquico? Naqueles contextos, falar de
si era um labirinto que se fechava e recaia nos mesmos lugares. Geralmente, não abordavam
boas lembranças e, se elas eram recordadas, a ruptura e a desesperança – ou mesmo as narrativas
de superação – se faziam presentes. Existiam sempre histórias muito tristes que eram evocadas
(internações, violências, perdas, misérias sociais e afetivas) e dali nos enredávamos todos sem
uma saída possível, a não ser pela presença de orações ou cultos à transcendência. Entretanto,
como evitar ou encontrar outras narrativas de vida, agora em contexto maior, com menos
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controle das expressões cênicas e sem a centralidade no “eu” triste, fortalecendo a dimensão
coletiva da experiência? Seria preciso encontrar dispositivos e procedimentos clínicos, éticos e
estéticos para produzir tais narrativas. Butler (2015) nos ajuda a pensar novamente sobre a
dimensão e poder da possibilidade da despossessão de si como reinvindicação ética:

Dizer a verdade sobre nós é algo que nos envolve em querelas sobre a formação do si
mesmo e a condição social da verdade. Nossas narrativas enfrentam um impasse quando
as condições de possibilidade para dizer a verdade não podem ser tematizadas, quando
o que falamos se baseia numa história formativa, uma sociabilidade e uma corporeidade
que não podem facilmente ser reconstruídas na narrativa, se é que podem.
Paradoxalmente, torno-me desapossada no ato de dizer e nesta despossessão consolida-
se uma reinvindicação ética, visto que nenhum “eu” pertence a si mesmo. Desde o início
ele passa a existir por uma interpelação que não posso recordar nem recuperar, e quando
ajo, ajo em um mundo cuja estrutura, em grande parte, não é criação minha – o que não
equivale a dizer que não exista criação ou ação minha no mundo. Certamente existe.
Significa que apenas o “eu’, seu sofrer e seu agir, dizer e conhecer, acontece em um
crisol de relações sociais, variavelmente estabelecidas e reiteradas, sendo algumas
irrecuperáveis e outras responsáveis por invadir, condicionar e limitar nossa
inteligibilidade no presente. Quando agimos e falamos, não só nos revelamos, mas
também agimos sobre os esquemas de inteligibilidade que determinam quem será o ser
que fala, sujeitando-os à ruptura ou à revisão, consolidando suas normas ou contestando
sua hegemonia (Butler, 2015, p. 167).

Quando eu solicitava para que eles agissem (performarem) ao falarem de si, eu desejava
a ruptura ou a revisão do lugar da narrativa da doença mental, pretendendo contestar e performar
uma reinvindicação ética para nós todos. Queria tematizar qual a condição para que eles
dissessem as suas “verdades”. Por isso, essa narrativa quase que impossível de ser feita nos
interessava: a narrativa de si, capaz de despossuir os lugares de loucos, andarilhos, ladrões,
insanos, não amáveis, não existentes. Trata-se de performar ou agir sobre os esquemas que os
tornavam ininteligíveis, rompê-los em sua hegemonia. Fazer um arranhão na história
normatizada e normalizada, esburacar a hegemonia da razão sobre a loucura, construída
geralmente pelos médicos, psicólogos, assistentes sociais e acadêmicos – quase nunca pelas
pessoas que desviavam da razão. Queríamos a “contestação dos esquemas de inteligibilidade”,
com a enunciação das memórias alegres que não puderam ser lembradas, tampouco narradas.
Olhando as primeiras cenas de autoficção no capítulo anterior, eu usei a palavra
despossessão, vinda do livro de Butler (2015), como uma forma de se livrar de memórias ruins.
Ampliaremos esse conceito para uma leitura ética e política ao refletir que aquelas pessoas
poderiam desafiar a lógica de uma história formativa acopladas a uma sociabilidade e uma
corporeidade que não puderam ser reconstruídas na narrativa: desapossá-los da história que
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foram obrigados a viver e a narrarem-se a si mesmos para se apossarem de um devir outro a


partir da autoficção das alegrias esquecidas. Seria essa a nossa aposta naquele momento.
Pensando na dimensão ética que Butler aponta em seu texto, lembrei-me das aulas que
eu havia feito em uma oficina de Teatro Documentário. Nela, o professor pedia-nos que
trouxéssemos em forma escrita algumas memórias alegres de infância. Parecia tão bobo, tão
ingênuo e tão cotidiano – até infantil. Mas, aquela pesquisa direcionada surtia um efeito
interessante em nossa pesquisa de nós mesmos. Não que não aparecessem relatos de tristeza
nas nossas pesquisas, mas parece que nosso olhar mudava ao filtrar aquilo que chamamos de
“alegres” afinal o que seria essa adjetivação? Nosso objetivo nas oficinas era evocar memórias
alegres e por causa disso usamos propositadamente este enunciado: “memórias alegres de
infância”. Como que, na criação de um protocolo de experimentação, criamos esse primeiro
dispositivo com o grupo para a produção das narrativas e construção das performances.
Uma questão importante a ser lembrada é que quando nos encontrávamos com as
pessoas que iriam participar das oficinas, fosse nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) ou em outros locais, nós nunca perguntávamos sobre a relação das pessoas com os
serviços, tampouco falávamos sobre diagnósticos, tempo de internações ou qualquer coisa que
nos levasse às informações sobre o estatuto institucional e/ou psiquiátrico daquelas pessoas.
Era proposital. Não os impedíamos de falar, mas não os interpelávamos sobre aqueles temas. É
sempre violento perguntar: de qual serviço você vem? O que você tem? Qual seu diagnóstico?
Quanto tempo você ficou internado? Pensávamos que o que nos interessava ali eram as suas
vidas não narráveis – até então – e o que faríamos no Teatro para produzir uma outra forma de
perguntar: quem pode ser você? Quem você já amou? De que alegria você se lembra? Qual
cheiro te remete à alegria de algum momento? Esse era nosso maior interesse.
Além das memórias “alegres”, pensávamos também naquilo que poderíamos ter em
comum com aquelas narrativas. Esse pensamento foi-me inspirado a partir da estética teatral
chamada “Biodrama”, criada pela diretora argentina Vivi Tellas. Segundo Brownell (2013), a
estética ou gênero do Biodrama se propõe basicamente a experimentar formas cênicas para as
biografias, buscando a teatralidade que há nos acontecimentos cotidianos. A particularidade
desse trabalho é que ele convida à cena pessoas reais, cujo ofício não é a atuação. Propõe, a
partir de uma dramaturgia muito pessoal, um esquema de quadros que permite ao espectador
aproximar-se de certos aspectos daqueles mundos.
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Considero que a proposta de Vivi Tellas se insere em uma das discussões mais vitais da
arte contemporânea e que constitui em si mesmo um manifesto sobre o lugar desejável
para a arte em nossa sociedade e sobre as possibilidades específicas do Teatro e seus
corpos em cena para retramarmos os laços dissolvidos na comunidade (Brownell, 2013,
p. 771).

O projeto “Arquivo”, de Vivi Tellas12, é considerado quanto à sua relevância estética e


política, pensando nos efeitos que ele pode gerar nos espectadores a partir da convocação a um
encontro entre corpos para que prestem seu testemunho, num resgate humano, convocando à
atenção para aquilo que há de comum na vida de umas pessoas que poderiam ser vistas com
vivências em comum às outras pessoas. “Creio que as obras do Arquivo se convertem em uma
maquete da uma sociedade menor, em um modelo de escala, numa intenção utópica, em uma
proposta de encontro entre humanos que se reconhecem em sua humanidade” (Brownell, 2013,
p. 773). Poderíamos pensar que, ao encontrar um denominador comum e politizar essas
memórias, estaríamos criando um campo do comum ou do Teatro que há em nós?
Afinal, antes das rupturas que os diversos sofrimentos nos produzem, todos temos
alguma história de infância, uma brincadeira, um jogo, uma descoberta, um cheiro marcante,
uma árvore preferida, um abraço de alguém ou mesmo uma história não tão narrável, mas que
pode ser inventada novamente. Todos nós, alegres ou não, temos algo que nos atravessa, mesmo
sabendo dos abismos materiais que nos dividem no corpo social. Aquelas pessoas antes de
serem diagnosticadas psiquiatricamente por seu sofrimento, pelo desvio das normas da
heteronormatividade, pelos excessos, pelas escassezes e pelas misérias, experenciaram
acontecimentos em suas vidas que se aproximavam de nossas vivencias ordinárias, menores e
prosaicas. O que poderia acontecer se tornássemos ficção a nossa memória?
Entre a vida e a arte, sabemos que há uma porosidade absoluta, assim como a realidade
e a ficção que se confundem nessa estética documentária e do Biodrama. Sendo assim, o
objetivo é investigar a vizinhança entre a realidade e a ficção e ressaltar como o dia a dia é
repleto de teatralidade. No cotidiano, nós temos e armazenamos um arsenal de histórias,
imagens e potencias criativas que Vivi Tellas define como “Umbral Mínimo de Ficções”, que
serve para diferenciar o que, em uma obra biodramática, é ficcional ou não, trazendo uma tensão

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Sugiro que o leitor assista a um TED (TEDx Talks, 2013) que tem como convidada a diretora teatral Vivi Tellas.
Nesse vídeo, ela mostra sua pesquisa que busca a ruptura das barreiras que separam a vida e o Teatro. Ela enfatiza
e trabalha cenicamente com o que existe de teatralidade em nossas vidas cotidianas. É muito interessante conhecer
seu trabalho que leva o nome de “Biodrama”.
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entre a vida e a arte, manifestada na repetição e nas escolhas (edição), bem como na ativação
da teatralidade da vida cotidiana (Simas, 2015).
O Biodrama pode ser considerado por alguns teóricos como um subgênero do Teatro
Documentário, no bojo daquilo que se entende por “Teatros do Real”: o Teatro Documentário,
docudrama, Teatro baseado em fatos reais, Teatro sem ficção e autoescrituras performativas
(Leite, 2014). Nessas estéticas, o palco se transforma na produção de memória social. Ao
“encenar” a vida de anônimos e pessoas comuns, se produz um discurso político com a
problematização dos cotidianos revisitados.

Porém, os Biodramas não pretendem uma forma universalizante de discurso político, e


sim um desvio, um argumento cênico menor, ou seja, trazer do cotidiano e das histórias
de pessoas anônimas, travando assim uma aproximação e embate entre realidade e
ficção, uma poética da bios (Simas, 2015, p. 39).

A diferença entre a estética do Teatro Documentário e o Biodrama seria que aquele


procura na memória as bases para a criação de uma cena que sirva de crítica ou de denúncia da
realidade, podendo ela ser biográfica ou autobiográfica. Já o Biodrama busca na memória algo
relativo a relacionar-se com o cotidiano, a se posicionar no Teatro de forma que a vida cotidiana
invada o palco e vice-versa, travando nas histórias anônimas e corriqueiras a sua poética. Os
conceitos de autoficção e bioficção que surgiram na literatura contemporânea extrapolam o
liminar pessoal/histórico e nos fazem vislumbrar melhor uma poética do eu, um Teatro da bios
(vida) e da poética (linguagem, expressão), ou melhor, um Teatro biopoético (Simas, 2015), ou
ainda um Teatro “biopoéticopolítico”, segundo o autor.
Na continuidade dessa seara de pensamentos, somos remetidos para a linguagem – agora
da literatura –, para a ideia das narrativas de testemunho – conceito que nos atravessou mesmo
que indiretamente e inversamente durante as propostas de pesquisa cênica. Seligmann-Silva,
em seu livro História, memória e literatura – O testemunho na Era das catástrofes (2003), trata
desse tema referindo-se ao holocausto vivido pelos povos Judeus. A pesquisa do autor considera
o testemunho como um tipo de relato que carrega algo de excepcional, que exige um registro
eminentemente marcado pelo elemento singular do “real” – entendido aqui, na linhagem de
pensamento psicanalítico, como um elemento traumático, que escapa à nossa capacidade
simbólica.

Aquele que testemunha vive o drama da irrepresentabilidade do vivido, este vive a culpa
devido à cisão entre a imagem (da cena traumática) e a sua ação entre a percepção e o
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conhecimento, à disjunção entre significante e significado. A testemunha sobreviveu à


morte, “ele como que a penetrou”. Se o indizível está na base da língua, o sobrevivente
é aquele que reencena a criação da língua. O simbólico e o real são recriados na sua
relação de mútua fertilização e exclusão (Seligmann-Silva, 2003, p. 51).

Da linguagem como possibilidade e impossibilidade de representar o evento do trauma,


o autor reflete sobre a memória e como ela só existe ao lado do esquecimento – um alimentando
e complementando o outro. Para o autor, esses conceitos não são antagônicos, uma vez que no
esquecimento há uma modalidade de memória existindo, uma dialética intima entre o lembrar
e o esquecer: “se pensarmos na etimologia latina que deriva o “esquecer” de cadere, cair, o
desmoronamento apaga a vida, as construções, mas também está na origem das ruínas – e das
cicatrizes” (Seligmann-Silva, 2003, p. 56). A arte da memória ou “mnemotécnica”, assim como
a literatura de testemunho, é uma arte da leitura de cicatrizes, pois temos que nos lembrar para
esquecer e esquecer para “reencarnarmos num novo corpo”:

O geógrafo Pausânias narra que na Beócia, o rio do esquecimento, o Lete, corria ao lado
da fonte da memória, Mnemósina. Segundo os antigos, as almas bebiam do rio Lete
para se livrar da sua existência anterior e posteriormente reencarnar em um novo corpo
– como se lê em Virgílio, Eneida, VI, 713-16 (Seligmann-Silva, 2003, p. 53).

Essa arte da memória, no entanto, é a arte do presente (interessante porque o Teatro é a


arte da presença, segundo o senso comum e segundo minha experiência). Porém, aquele
presente evocado na arte da memória e na literatura de testemunho, quando narrado em um
registro de testemunho documental, ficava como que passível da incredulidade, tamanha a
brutalidade das imagens. A saída dessa incredulidade foi a conciliação entre a estética e a ética,
criando uma linguagem que inclui a ficção nessa produção de memória:

Os primeiros documentários realizados no imediato pós-guerra, extremamente realistas,


geravam um efeito perverso: as imagens eram “reais demais” para serem verdadeiras,
elas criavam sensação de descrédito nos espectadores [...]. A leitura estética do passado
é necessária, pois opõe-se à “musealização” do ocorrido: ela está vinculada a uma
modalidade da memória que quer manter o passado ativo no presente. Ao invés da
tradicional representação, o seu registro é o de índice: ela quer apresentar expor o
passado, seus fragmentos, ruínas e cicatrizes, percebe-se esse percurso em direção ao
testemunho, ao trabalho com a memória das catástrofes. As fronteiras entre a estética e
a ética tornam-se mais fluídas: testemunha-se o despertar para a realidade da morte,
despertamos antes e mais nada para nossa culpa, pois nosso compromisso ético estende-
se à morte do outro, à consciência do fato de que nossa visão da morte chegou “tarde
demais” (Seligmann-Silva, 2003, pp. 57-58).
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Nesse sentido, naquele tempo vivíamos o desejo de rastrear as memórias de nossos


“atores”, mas nosso testemunho seria na lógica inversa: desejávamos não esquecer das nossas
vidas nos momentos em que foram alegres, antes da morte simbólica que os manicômios nos
impõem. Queríamos as ruínas das alegrias, das coisas pequenas: era isso que queríamos
testemunhar. Queríamos nos embebedar das águas do rio do esquecimento para reencarnarmos
num corpo vivo naquele presente. Porque os loucos testemunham com seus corpos a violência
da instituição psiquiátrica e do Estado a todo momento, então, precisávamos narrar, lembrar e
atualizar as outras histórias, aquelas esquecidas, porém ricas em cotidiano que precisavam de
uma atenção. Precisávamos conceber um outro tempo em que o passado que estava encapsulado
pela ruptura das violências emanasse em forma de vida e de Teatro para que não “chegássemos
tarde demais” de novo.
Para Bergson (2006, p. 47), o tempo significa duração indivisível e que se sucede.
Portanto, a divisão cronológica passado, presente e futuro seria somente uma organização
espacial do tempo: “nossa duração não é um instante que substitui outro instante, nesse caso
haveria sempre presente, não haveria prolongamento do passado no atual, não haveria evolução,
não haveria duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e
incha à medida que avança”. Uma vez que o passado cresce incessantemente, também se
conserva indefinidamente. Assim, a memória para ele significa a duração que segue
sucessivamente, ou seja, ele retira a memória do passado:

A memória não é uma faculdade de classificar recordações numa gaveta ou inscrevê-las


num registro. Não há registro, não há gaveta, não há aqui propriamente falando, sequer
uma faculdade, pois uma faculdade se move de forma intermitente, quando quer ou
quando pode, ao passo que a acumulação do passado sobre o passado prossegue sem
trégua. Na verdade, o passado, se conserva por si mesmo, automaticamente. Inteiro sem
dúvida ele nos segue a todo instante: o que sentimos, pensamos, quisemos desde nossa
primeira infância está aí, debruçado sobre o presente que a ele irá se juntar, forçando a
porta da consciência que gostaria de deixá-lo de fora (Bergson, 2006, p. 47).

O passado é o que não passa: ele dura. E o presente é o que nos passa se esvai. Assim,
uma vez que a memória é viva e não passa, nossa aposta era encontrar o que era virtual e poderia
ganhar intensidade e se atualizar para voltar a passar na vida daquelas pessoas. Gostaríamos
que o que se conservasse e se manifestasse fossem as memórias alegres. Pois, desejávamos que
o presente aprisionante passasse logo.
Voltando ao diário cartográfico, eu resgato aqui uma preocupação que nos rondava no
começo dos encontros. No diário, observo a necessidade de enfatizar ao grupo a importância
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de resgatarmos as memórias dos participantes, mas que fossem alegres, além da necessidade de
que retomássemos um método e que ele fosse um dispositivo de cuidado.

Gente, tendo em vista que somos seres de e para cuidado, seguem alguns princípios que
acho que devemos atentar nos nossos encontros:
1. Não propor temas que envolvam afetos tristes (eles sempre aparecem, por isso não
devemos suscitá-los.
2. Ao contrário: sempre trabalharemos com memórias de afetos alegres.
3. Os temas das memórias que se tornam cenas devem ser trabalhados com cuidado,
sempre colocando a pessoa na condição de escolher como e se quer fazer a cena. A
maneira como isso se dá depende da nossa sensibilidade e do método. É sempre bom
buscar intercessores para contar a história, tipo: imagens, matérias de jornal (Internet),
elementos históricos etc. ESTAMOS TRABALHANDO COM TEATRO
DOCUMENTÁRIO, NÃO É PSICODRAMA OU TEATRO DO OPRIMIDO.
4. Esse blog da Cia. Teatro Documentário é bem inspirador:
http://teatrodocumentario.blogspot.com.br/.

A solicitação explícita para que acessássemos as memórias alegres, para fugirmos dos
labirintos manicomiais, era imperiosa para o grupo. Ao olhar para essa escrita atualmente,
preciso me amparar teoricamente sobre aquela necessidade intuitiva e pragmática: o que seria
alegria? Como promovê-la sem cair no caminho fácil da recreação ou da infantilização? Ou
mesmo da abordagem do psicodrama, ou tratá-la como um tema a ser abordado como em um
Fórum de Teatro do Oprimido?
Para tentarmos aprofundar e fazer conexões que, na época, ainda eram intuitivas, eu
recorro a um filósofo que foi inspiração para o pensamento da Esquizoanálise: quem nos guiará
nesse momento será Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo racionalista do século XVII que,
em sua obra Ética (2009/1995), tratou da sua filosofia e a sua contribuição sobre a natureza e a
virtude dos afetos. Assim, ele nos fala quando inicia o prefácio da terceira parte da Ética;
“Origem e natureza dos afetos”:

Quero, agora, voltar àqueles que, em vez de compreender, preferem abominar ou


ridicularizar os afetos e as ações dos homens. A esses parecerá, sem dúvida,
surpreendente que eu me disponha a tratar dos defeitos e das tolices dos homens segundo
o método geométrico, e que queira demonstrar, por um procedimento exato, aquilo que
eles não param de proclamar como algo que, além de vão, absurdo e horrendo, opõe-se
à razão. Mas eis aqui o meu raciocínio. Nada se produz na natureza que se possa atribuir
a um defeito próprio dela, pois a natureza é sempre a mesma, e uma só e a mesma, em
toda parte, sua virtude e potência de agir. Tratarei, assim, da natureza e da virtude dos
afetos, bem como da potência da mente sobre eles, por meio do mesmo método pelo
qual tratei, nas partes anteriores, de Deus e da mente. E considerarei as ações e os
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apetites humanos exatamente como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou


de corpos (Espinoza, 2009, p. 49).

Para esse filósofo, a Natureza ou Deus são perfeitos e o homem, como modo finito de
Deus ou de Natureza, também o é. A natureza em sua perfeição afirma-se sendo causa e efeito
de tudo, e assim deve ser o homem livre: ser causa e efeito de si mesmo. Os afetos, dessa forma,
não se opõem ou são diminutos comparáveis à razão do homem: os afetos compõem-no em sua
perfeição. Corpo é mente e mente é corpo: são unívocos e, para o filósofo, são atributos da
extensão ou do pensamento do modo finito que é o homem em relação ao modo infinito que o
tem (Deus, a Natureza). A filósofa Marilena Chauí, ao ler Espinoza, compreende os afetos
como:

[...] as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
estimulada ou refreada, entendendo que a alma é a ideia do corpo e um afeto é a ideia,
na alma, da afecção corporal. Um afeto é um acontecimento corporal e psíquico ao
mesmo tempo (Chauí, 2011, p. 150).

A autor supracitada, em seu livro Desejo, paixão e ação na ética de Espinoza (2011),
escreve que a filosofia espinozana refere-se ao questionamento sobre a infelicidade e,
consequentemente, a servidão do homem: não podemos condenar os homens, não se trata de
culpabilizá-los por sua condição servil e infeliz nem procurar em sua natureza a causa de seus
vícios. Sua filosofia interroga as causas naturais e necessárias dessa condição e “procura o
caminho pelo qual os homens, por si mesmos, exercerão a liberdade e serão felizes” (Chauí,
2011, p. 149). No trecho abaixo, a filósofa aborda o tema da ética, da liberdade e a importância
da questão dos afetos para Espinoza:

A questão ética, portanto, volta-se para a gênese dos afetos, suas diferenças intrínsecas
e seus efeitos diferenciados. De onde nascem os afetos? Quais nos tornam passivos e
quais nos tornam servos? Quais são ativos e exercício da liberdade? Não sendo vícios
nem virtudes, são afecções de nosso corpo e afetos de nossa mente, forças de existir e
de agir que podem ser freadas ou impulsionadas por forças externas, como podem
desenvolver-se por si mesmas graças à casualidade interna ou adequada. Porque são
forças demonstra Espinoza, os afetos jamais serão vencidos por ideias ou por vontades,
mas apenas por outros afetos mais fortes e contrários. A razão, enquanto tal, é impotente
para domá-los e dirigi-los, a menos que a atividade racional seja, ela também,
vivenciada como afeto. Compreender os afetos é, pois, alcançar sua origem (Chauí,
2011, pp. 149-150).
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Assim, a ética espinozana busca compreender a liberdade dos homens ao considerar


que, para isso, seu caminho é a compreensão de que os afetos são forças que nos fazem agir ou
tornar-nos passivos. O desejo, para o filósofo, é a própria essência do homem concebida como
potência determinada à ação. Quando a causa do desejo é imaginária, o desejo (essência do
homem) é paixão; quando a causa é real (o próprio desejante), o desejo é ação. Como o desejo,
a alegria pode ser paixão ou ação, desde que sua gênese seja imaginária ou real, ignorada ou
conhecida, externa ou interna (Chauí, 2011). Aquilo que imaginamos e que possui uma causa
externa nos torna passivos e tristes; são as paixões (que podem ser alegres ou tristes). Segundo
a autora, nós somos naturalmente passivos porque somos parte finita da Natureza/Deus que
depende e é cercada por outras partes finitas mais numerosas e mais fortes que nós.

A ação e a produção de realidade e liberdade seria a capacidade desta parte finita da


Natureza (nós) responder inteiramente por seus afetos, ideias e comportamentos, ainda
que todos eles signifiquem sempre relações com os outros e com as outras coisas.
Agimos quando nossos desejos são definidos inteiramente por nossa potência (Chauí,
2011, p. 151).

Para se conhecer, o homem deve conhecer as afecções de seu corpo e as ideias dessas
afecções em sua mente. “Quando a mente considera a si própria e sua potência de agir, ela se
alegra, alegrando-se tanto mais quanto mais distintamente imagina a si própria e a sua potência
de agir” (Espinoza, 2009, p. 67). Assim, a alegria como afecção do encontro dos nossos corpos
em relação a outros corpos e a ideia que temos de nosso corpo afetada de alegria aumentam a
potência de agir do homem.

Além disso, uma vez que a alegria aumenta ou estimula a potência de agir do homem,
facilmente se demonstra, pelo mesmo procedimento, que o homem afetado de alegria
nada mais deseja do que conservá-la, com um desejo tanto maior, quanto maior for a
alegria (Espinoza, 2009, p. 62).

Podemos pensar a partir da leitura acima que a alegria é a passagem do homem de uma
perfeição ou realidade menor para uma maior, numa variação contínua da força de existir num
corpo.
Marilena Chauí reflete que a liberdade é essa luta pela ampliação da perfeição ou da
realidade a partir da teoria da paixão e da ação, segundo graus de força ou intensidade. Uma
paixão é mais forte do que outra quando aumenta a capacidade de existir de nosso corpo e de
nossa mente. “A liberdade nasce desse e nesse movimento de passagem das paixões tristes às
76

alegres e das paixões de alegria às ações suscitadas pelo desejo e pela alegria enquanto causas
adequadas ou internas” (Chauí, 2011, p. 150).

Fotografia 1. Experimentações do exercício do abraço


Fonte: Arquivo de pesquisa

Olhando para trás, escrevendo hoje sobre nossas experimentações, vejo o quanto de
liberdade desejávamos e, que de certo modo, compreendo que estávamos no caminho certo ao
pensar nas diretrizes dos exercícios das memórias alegres direcionadas ao grupo. Pois a alegria,
mesmo que imaginada ou lembrada (uma paixão alegre), ganhava vida naqueles corpos, era
uma memória de uma afecção vivida e reexistente através dos exercícios das memórias. Era
uma memória da luta pela liberdade que aquelas pessoas, aquelas partes da Natureza em modo
finito, guardaram para si em seus corpos e na ideia de seus corpos juntamente. As memórias,
ao serem suscitadas, eram causa em si, perfeição ou realidade – isto é, produziriam ações e
realidades. As cenas que iriam criar e depois performar forjariam uma paixão alegre,
aumentariam suas forças ao encontrar com outros corpos. Seria, então, uma experiência de
produção de liberdade, tendo em vista que era o aumento de realidade e de ação que
desejávamos.
77

Resgatando em minhas notas do diário, escolhemos quatro temas disparadores para


pesquisarmos ao longo do primeiro semestre das oficinas, os quais geraram algumas cenas que
fizeram parte de nossa Mostra Cênica, a qual foi intitulada pelo grupo de estagiários como: “o
amor é uma arma quente” em referência à música “Comentários a respeito de John”, de Belchior
(1979)13. Segue, na Figura 2, o cartaz:

Figura 2. Cartaz produzido pelos alunos e pelas professoras envolvidos no projeto “(In)
Visíveis e loucos pela cidade: oficinas e encontros libertários entre a saúde mental e a
população em situação de rua”.

Os critérios para ativação das memórias e dos sentidos para a produção das narrativas
dos participantes foram muito discutidos pelo grupo envolvido e pela coordenação do projeto.
Nem todos os exercícios disparadores geraram performances cênicas: alguns geraram
momentos impactantes nos encontros e outros geraram material para produzir as “cenas”.
Assim, propusemos os seguintes exercícios:
1. Escrita de uma memória de infância alegre;
2. Cheiro de alguma coisa que me trouxesse boas memórias;
3. Foto ou objeto de alguma história de amor;

13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f6JOMFnzlTw&ab_channel=MarcelFukuwara.
78

4. No dia que descobri que eu era eu.


No primeiro exercício – Escrita de uma memória de infância alegre –, colocávamos um
banco no meio da sala e formávamos duplas. A dupla ia para o “palco” e, enquanto um
participante lia a narrativa que fora escrita no banco, o outro, ao seu lado, a performatizava só
com gestos. Em seguida, trocávamos as ações.
Como preparação para o exercício, pedimos para que eles escrevessem em casa ou ali
mesmo uma memória de infância que os trouxesse alegria. Para todos os exercícios nós
pedíamos que eles trouxessem objetos concretos e que a partir deles as memórias e as narrativas
fossem ativadas – com exceção desse primeiro disparador em que pedíamos uma escrita e não
um objeto. Nem sempre era possível ter acesso aos objetos, visto que muitos não levavam. Nós
também fazíamos o exercício, tanto para exemplificá-lo como para realizarmos o processo em
nós. Experimentávamos juntos. Naquele dia, tivemos muitas histórias alegres que eram da
ordem do cotidiano: tivemos narrativas da primeira aula de natação; da primeira vez que alguém
dançou na escola e que se descobriu dançarino; da música que alguém imaginou que o amor de
sua vida fez para ela (mesmo sem conhecê-lo); das brincadeiras e dos esconderijos de infância,
dos tombos dos umbuzeiros nos quintais.

Fotografia 2. Aquecimento experimentos nos diferentes planos


Fonte: Arquivo de pesquisa
79

Quando propusemos no segundo exercício disparador a presença física de um cheiro


que evocasse boas memórias, tivemos momentos muito ligados à estética ritualística.
Propusemos que o grupo fizesse uma roda e que segurássemos os recipientes que continham o
cheiro conosco de olhos fechados. Apolo se incumbia de falar bem baixinho no ouvido de cada
um para ir ao centro abrir o recipiente que continha o objeto do cheiro e contar o que aquele
cheiro lhe causava, mais a história que lembrava ao senti-lo. Nós vivenciamos, por meio do
cheiro do sabonete de bebês, a presença do cheiro dos filhos e a saudade evocada pela
impossibilidade daqueles que estavam ali exercerem o direito à paternidade, dada sua condição
de usuário de saúde mental ou de pessoa em situação de rua. Foi um momento revelador, poético
e epifânico, dado o soterramento existencial e civil que aqueles homens vivam: aqueles homens
podiam então mostrar saudade, amor e dor a partir daquele cheiro de bebê invadindo a sala da
Pinacoteca. Foi bonito e revelador: uma voz masculina – quase nunca escutada nesse contexto
– falando sobre paternidade.
Também sentimos e nos afetamos com a presença do cheiro da cachoeira e do mato
trazido em uma planta que emanou a presença dos guias que os protegiam. Entoamos pontos e
rezas, nos abraçamos e pedimos proteção juntos. Para além, sentimos o cheiro da tinta que trazia
o alívio e a cura para uma pessoa, aquele cheiro a deixava mais viva: ao pintar, ela tirava um
pássaro preso de sua imaginação e o colocava nas telas. Ele tornava-se valente: o Coração
Valente. Eu levei um repelente de citronela que me trazia muito a memória de minha avó, aquele
cheiro que ficava nas suas roupas, que ficava espalhado por tudo quando ela abria algum
armário e que me remetia imediatamente a ela.
Naquele momento, o cheiro da citronela misturado com o cheiro da tinta com o cheiro
do shampoo de bebê com o cheiro do mato e com as nossas narrativas em nossos ouvidos
deixavam nossos corpos dilatados e nossos segredos agora partilhados. Por isso, aquele
momento tornou-se um rito, tornou-se uma alquimia, uma reza e uma comunhão de memórias,
pedidos de proteção e nos gerou muita saúde. Saímos daquele encontro como testemunhas de
que não estávamos sós. Eu gostaria muito de conseguir traduzir em palavras o que houve ali,
mas eu não as tenho. Nossas falas foram perdendo lugar quando se misturavam com as outras
e com os outros cheiros, tornávamos menos nossos cheiros e menos nossas narrativas: nos
misturávamos concretamente num rito, no caminho da despossessão de si. Era um
acontecimento e esse foi no campo da assignificação. Em razão disso, é impossível representar
ou repetir o que nos aconteceu: era algo do campo da singularidade, do devir, de nossa
80

capacidade de chegarmos muito perto de outro estado, de nos avizinhar, roubar estados e, por
instantes, nos transformar. Foi uma sensação de alargamento da existência, de ganho, de banho,
de acréscimo do outro estando ainda em nós. Era do campo da alegria, da paixão alegre que se
torna ação, da liberdade. Da pequena liberdade ou da liberdade menor, era aquela que nos cabia
criar ali. Perfeita porque era real ou real porque era perfeita. Era aumento de potência, aumento
de vida.
Quando solicitamos que as pessoas trouxessem fotos ou quaisquer documentos
concretos de uma história de amor, já no terceiro exercício, tivemos poucas fotos, poucos
registros, raras narrativas. Fizemos uma roda e pedíamos, mesmo sem os documentos, que cada
um escolhesse alguém da roda para contar essas histórias. Tínhamos poucas pessoas na oficina
e, de fato, a lembrança daquilo que chamamos de amor (para nós que pensamos a oficina) não
era um direito garantido para os que a frequentavam. Os amores eram perdidos ou sequestrados
na jornada das violências do Estado e nas outras tantas violências vividas que gritavam ali.
Lembrar sobre o amor, seja lá em qual contexto, naquele dia, não foi uma tarefa possível.
Da provocação “No dia que descobri que eu era eu”, o quarto e último exercício,
vivemos narrativas sobre revelações daquelas vidas, muitas histórias que envolviam as famílias,
histórias trágicas desses pais que eram ditos como dragões em algumas cenas, em outras eram
pássaros, outros pais eram gigantes, monstruosos:

Ele era protetor, amoroso, carinhoso, gentil, alegre, trabalhador, dedicado à família. Não
era carne nem peixe, era uma pessoa boa.
Ele tinha cabelos de fogo e seu olhar era como o oceano: hora cheio de lágrimas, hora
seco de alegria.
Ele não tinha memória, era um gigante. Vivia sempre no presente. Era um construtor e
construía sua cidade. Enquanto a construía, ele tomava conta da cidade dos dragões.
Nos dias difíceis, quando os dragões soltavam suas labaredas de fogo, seus olhos
enchiam de água; era a maré cheia. Quando os dragões dormiam, seus olhos secavam e
ele ria... Era a maré seca. Um dia, construindo sua cidade, dormiu e se esqueceu do fogo
dos dragões. Sem perceber, o fogo o envenenou. Hoje, o gigante sem memória dorme e
o mar seca.
Quando anoitece, a lua aparece. No nascer do sol, ele renasce (Diário cartográfico).

Interessante é que a sentença “No dia que descobri que eu era eu” não pedia respostas,
era somente um operador, porém, ela fez nascer uma narrativa coletiva – o texto acima foi
escrito por muitos. Surgiram seres meio humanos, meio animais, fabulações que misturam
acontecimentos do cotidiano com familiares – principalmente, com os pais – com seres
mitológicos e assustadores. A atmosfera foi nebulosa, pesada, mas, ao mesmo tempo, algo se
81

movimentava ali, algo ganhava densidade na passagem para outro estado. Entramos, naquele
momento, em uma fabulação criadora que, segundo Deleuze e Guattari (2010), não corresponde
a uma lembrança ou fantasma:

Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados perceptivos e as


passagens afetivas do vivido. É um vidente, alguém que se torna. Como contaria ele o
que lhe aconteceu, ou o que imagina, já que é uma sombra? Ele viu na vida algo muito
grande, demasiado intolerável também, e a luta da vida com o que a ameaça, de modo
que o pedaço de natureza que ele percebe, ou os bairros da cidade, e seus personagens,
acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento,
fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de
luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não têm mais outro objeto nem
sujeito senão eles mesmos (Deleuze & Guattari, 2010, p. 220).

Senti exatamente isso naquele momento: uma extrapolação do vivido. Era pura
sensação, blocos de afectos e perceptos juntos naquela atmosfera de luz crua, de nos tornarmos
videntes juntos naquela cena que estourava as percepções vividas. Fabulamos gigantes, luas
cheias e marés: com isso, nos despossuídos de uma narrativa e de um corpo cheio de linhas
mortíferas. Éramos devir por alguns momentos.
Foi uma oficina intensa: colocávamos um banco no centro da sala e respondíamos a
essa provocação, de maneira a todos se sentarem e contarem sobre o dia que descobriram que
eram eles eram eles. Impossível saber, impossível contar, mas possível fabular. Dávamos lugar
ao não narrável daquela forma.

5.3 Performances autoficcionadas – Mostra Cênica da Semana da Luta Antimanicomial

Os escritos registrados abaixo na forma de narrativas são sobre as performances


disparadas a partir dos exercícios de produção de memória que mencionamos na seção anterior.
Uma análise foi feita a partir das cenas e das notas no diário cartográfico. Essas performances
foram transcritas a partir do documentário realizado por Thaíza Salgado, estagiária do curso de
Psicologia que nos acompanhou na experiência. Ela produziu um filme sobre os eventos que
aconteceram na I Semana da Luta Antimanicomial de Natal, em 2016. Dentre eles, estava a
Mostra Cênica, produzida como resultado das oficinas de Teatro. O documentário chama-se O
fazedor de amanheceres, como homenagem ao poema de Manoel de Barros. As cenas
performatizadas foram transcritas e narradas para fins de análise.
82

5.3.1 A música que ele fez para mim

Do exercício “Escrita de uma memória de infância alegre”, surgiu uma cena a partir da
narrativa de Loa e de outras pessoas que vou apresentar aqui.
Loa era uma mulher de cinquenta anos que frequentava o CAPS III há uns três anos.
Vinha às oficinas de maneira tímida e, inicialmente, muito assídua. Quando foi ler sua história
para que Gilda – estagiária de Psicologia –, pedimos que o fizesse em gestos. Loa se iluminou
e começou a cantar uma música que falava de amor, de um amor não vivido. Depois, ela nos
contou como havia “inventado” aquela música: aquela era uma canção que um enamorado teria
feito para ela. Naquele período, Loa ajudava a filha a fazer a faxina na casa dela. Enquanto
limpava a residência, ela imaginava que aquele homem (que não conhecia, mas o via, pois ele
era vizinho de sua filha) um dia iria se declarar por meio de uma música que ele faria para ela.
Loa cantava aquela música para nós como quem compartilha um bom segredo guardado há
anos. Loa seguiu com sua música até a Mostra Cênica, criou uma performance belíssima sobre
a memória de um grande amor que nunca se realizou. Aliás, ela o realizou, pois o cantou ali em
ato e em público!
No dia da Mostra, trabalhamos com instalações cênicas. Nosso cenário era o próprio
casarão da Pinacoteca, suas escadarias e um salão no primeiro andar. Cada cena a ser
performatizada tinha um lugar no salão para acontecer. Não tínhamos objetos cênicos, nem
iluminação, era um cenário sem cenografia, precário – e assim nos assumimos, em uma beleza
precária. Usamos a arquitetura do casarão como tal. As performances seguiam um itinerário,
havia um mapa a ser desenhado que poderia se modificar, pois o erro – que não seria errôneo –
era previsto e o improviso também. O mapa do itinerário cênico foi criado coletivamente
durante o primeiro ensaio realizado no mesmo dia da Mostra. Participantes que nunca mais
tinham ido às oficinas apareceram por lá e quiseram realizar suas cenas – e isso era possível,
pois o itinerário foi criado naquele momento. Não havia nada muito ensaiado. De fato, tudo foi
muito performatizado, não havia texto a ser decorado: havia os disparadores de memória antes
trabalhados e que, na Mostra, aconteceram conforme o desejo de cada um de se fazer ver.
O casarão era nosso mote arquitetônico, então resolvemos que Loa era a anfitriã de
nossa casa. Ela guiaria os convidados até o primeiro andar, onde as performances iriam
acontecer. Daí inventamos que Loa enxergava em algum convidado aquele seu amor e então
contaria para ele a sua história enquanto levava todos à sala do primeiro andar. Um dos atores
levou no dia da Mostra uma flauta e disse-nos que sabia tocar uma música: a música tema do
83

filme Titanic. Assim foi improvisado: Elízio tocava a flauta enquanto Loa, em seu vestido de
noite, recebia seus convidados na base da escadaria e subia, levando-os à sala: entre eles estava
aquele homem.

A música que ele fez para mim


Loa está vestida para uma festa. Espera e recebe o público descendo as escadas do
casarão da Pinacoteca como se fosse sua casa. Diz a todos:
– Eu vim aqui para dizer que eu me chamo Loa e vou contar para vocês uma história
muito emocionante e também cantar e talvez encantar. Criei uma música a partir de um
reencontro com alguém que eu amei muito lá no passado, só que nem eu nem ele
tínhamos coragem de dizer: será que é ele? Será que é ela? Não tínhamos coragem de
dizer: É você? É você? Eu ficava atrás da cortina da casa da minha filha e eu o via
passando, procurando o meu olhar, cantando uma música que fala de amor e
desencontro. Então, acho mesmo que é ele, mas nunca tive coragem de chamá-lo para
saber se era. Aí eu criei uma música no banheiro da casa da minha filha. Olha que
imaginação... E gostaria muito que vocês curtissem minha música.
Então ela canta a música feita por ela mesma:
“Você se esqueceu de mim, eu te olho, te busco lá dentro, bem fundo, mas seu coração
não me quer. Te procurei por esse mundo, queria que fosses minha mulher”.
Ela diz: eu o imagino cantando para mim. Eu anseio seu beijo, mas já passou tanto tempo
desde aquele último encontro. E você se esqueceu de mim. Eu chorei a sua falta,
desejava te fazer feliz, mas você olha-me com essa calma, procurando por mim.

Em meu diário, registro minhas impressões sobre a performance do Loa:

Sobre nossa I Mostra... Tivemos Loa (Dora) e sua canção que ele havia feito para ela.
A plateia fica um tempo esperando e ouvindo a música do filme Titanic, aquilo me gera
uma espera ansiosa, uma beleza, uma ânsia boa... A música acaba e nós a esperamos.
Loa aparece e desce a escadaria do casarão, conta-nos sobre a história daquela música,
é forte, é inteira ali... É ela... LOA. Dora? Onde estaria? Convida-nos a subir, canta pra
alguém, olha em seus olhos, encontra e leva seu amor a sala cantando uma música feita
só pra ela. Subimos enfeitiçados por essa mulher que nos leva e nos envolve (Diário
cartográfico).

5.3.2 O dançarino

A partir do disparador da memória de infância alegre, o dançarino contou-nos do


primeiro dia em que ele dançou pela escola. Contou da felicidade quando descobriu sua vocação
para a dança e quando pôde mostrar que já dançava. Ele era um rapaz de dezoito anos, morador
da Zona Norte da cidade de Natal e estava em regime de internação no CAPS III. Nos
conhecemos em fevereiro e ele frequentou as oficinas até junho de 2016. Sabíamos que era
muito tempo para um regime de internação em uma modalidade de CAPS III, por isso,
84

entendemos que seria importante uma conversa com a equipe ou profissional de referência para
pensar o porquê daquele rapaz ser mantido internado por tanto tempo. Tentamos contato com
a equipe, mas não tivemos sucesso – aliás, não era novidade não conseguir conversar com os
profissionais daquele serviço. Percebíamos o uso de muita medicação por parte dele. Muitas
vezes, ele não conseguia fazer as aulas, estava muito cansado, com sono. Aos poucos,
percebemos que ele foi se sentindo à vontade para conversar sobre suas medicações, mas não
sei relatar se houve diminuição ou não da medicação. Todavia, sei dizer que a cada oficina nós
usávamos mais nossos corpos, suávamos cada vez mais e ele ia participando cada vez mais.
Constatávamos que o fato suarmos muito nos ajudava a limpar os corpos ultra medicados. A
partir daquele momento, ele dançava cada vez mais Hip Hop em suas cenas, em nossos
momentos de pausa e de aquecimento. Ele era um dançarino e como tal precisava dançar! Esse
era o Teatro nele. Abaixo, transcrevo sua performance:

– Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu? – Gritando.
– Um louco??
– Um louco?? – Dança, faz giros de Hip Hop.
– Quem sou eu? – Pergunta ao público. Dançando e ficando de ponta cabeça em uma
mão só com maestria, pergunta:
– Quem sou eu? Quem sou eu???
Sai perguntando:
– Um louco? Um louco?

Em meu diário, anotei minhas impressões sobre a performance:

O dançarino e o acrobata da loucura


Aquele rapaz lindo. Típico menino de algum conto do Caio Fernando Abreu. Aquele
cara que dança, que é meigo, sensível e que um dia tão jovem perde sua mãe, seu porto-
seguro nessa terra confusa. O cara vai parar num lugar de tratamento para pessoas com
transtornos mentais graves. Por quê? Por quê? Ele, dançarino, sempre me pergunta se
sou louca. Não sei responder... Pergunta de novo para todo mundo... Quem era louco
ali... Para sacanear... Faz coisas com seu corpo que nós, normopathas, nunca faríamos.
Porque somos duros, pobres de corpo, tendões e de alma. Ele não... Aquele cara era
mole, composição de corpo fluída, riso fácil. De ponta-cabeça, o cara me pergunta quem
era louco ali (Diário cartográfico).

Sua fala na performance foi uma criação instantânea sua: o dançarino queria realmente
saber quem era louco ali e por que a tanto tempo internado? Testemunhávamos alegremente
seus giros, seu suor e sua beleza. Ria e nos questionava. Será que ele poderia questionar sobre
o que lhe aconteceu? O que a loucura tem a ver com a prisão de nossa sexualidade, de nosso
85

corpo, de nosso choro, de nosso ódio em meio a uma necrópole? O que sabemos é que ele era
somente um jovem, pobre, morador da Zona Norte que perdera a mãe e que nunca havia podido
dançar.
Ao longo do primeiro semestre das oficinas, ele participou do primeiro seminário LGBT
da população em situação de rua, organizado pela UFRN e pelo Centro de Referência de
Direitos Humanos da UFRN. Foi muito interessante observar que seu encontro com aquele
público (entre muitas outras coisas que não sabemos) o libertou para viver sua orientação
sexual. Era visível que o dançarino havia se lembrado de algo importante e, ao mesmo tempo,
tinha se esquecido e se despossuído de tantas outras coisas naqueles meses. Para se contar, ele
teve que nos contar muitas coisas e teve que nos perguntar: quem éramos? Sentimos na pele a
violência que essa questão impõe. Quem somos? Profissionais, estudantes, acadêmicos,
militantes, ativistas que lutam pela causa antimanicomial? O que significa isso? Até hoje me
sondo e busco a resposta. Quem era louco ali? Quem não era? Quem era livre? Quem não era?
Nunca mais o vi. Que esteja dançando!

5.3.3 O nascimento

José era aquele que esteve conosco desde o começo – já mencionado. Aquele homem
que encontrou outro homem, que inventou sua biografia, que lembrou de um amor. Ah! O José
nos acompanhou e nos guiou durante o tempo todo. Ele e sua mãe Ivone, sua companheira nas
reuniões da Plural e em todos os momentos. Eles formavam uma dupla: estavam sempre juntos
e tínhamos a certeza de que havia uma composição extremamente afetiva e alegre naquela
maneira de ser mãe e filho. José, ao longo das oficinas, sentiu a necessidade de aprofundar sua
biografia a partir da provocação “O dia que descobri que eu era eu”.
José performatizou seu nascimento em posição fetal e, depois de muito esforço, ao
conseguir ficar em pé, ele se tornava outro. Olhava-se no espelho que fez com as mãos e nos
falava que iria ser psicólogo para atender a todos:

José começa a cena em posição fetal, no chão. Aos poucos, vai se levantando, mas,
quando tenta se levantar, mostra como se tivesse caindo novamente. Faz esse gesto
corporal de um bebê que tenta crescer, sair do chão e que tem muita dificuldade para se
levantar e se manter por conta das quedas. Consegue ficar de quatro apoios e faz um
som de dor. Levanta-se, estica a mão para cima e olha para a palma de sua mão dizendo
para ela (como se fosse um espelho): – O que é que está me olhando? – Gritando. – O
que é que está me olhando?! – Ele olha ao redor.
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– Meu nome é José, meu nome…


Olha para a plateia e grita:
– O que é que vocês estão olhando?
Olha para sua mão estendida como um espelho a sua frente e faz como se estivesse se
vendo na palma de sua mão.
– O que é que vocês estão me olhando? Eu ainda vou ser psicólogo!! E vou atender
você, você, você. – Aponta para alguém na plateia.
Depois, começa a cantar a música “Comentários a respeito de John” de Belchior, e
chama o público para cantar junto.

Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho


Deixem que eu decido a minha vida
Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol
Porque bate lá o meu coração
Sonho e escrevo em letras grandes de novo pelos muros do país
João, o tempo, andou mexendo com a gente sim
John, eu não esqueço, a felicidade é uma arma quente
Quente, quente
Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decido a minha vida
Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol
Porque bate lá o meu coração
Sob a luz do teu cigarro na cama
Teu rosto rouge, teu batom me diz
João, o tempo andou mexendo com a gente sim
John, eu não esqueço a felicidade é uma arma quente
Quente, quente (BELCHIOR, 1979).

Anotei em meu diário impressões sobre a cena:

O feto, a luta para nascer. Os gritos, o rastejo. Quem nasce ali? Um rei, um papa, um
ser de poder ímpar que ao se olhar quebra seu espelho. Nasce a psicopatologia, nasce a
norma da normalidade. Ali é alguém muito poderoso que nasce. E o rei da Psicologia
conta-me sua história amarga e ainda me ameaça e ri alto dizendo que um dia ia me
tratar. Falou alto, rindo alto e apontando pra todos ali.
Um dia serei seu psicólogo e seu também, e seu.... e seu também.
Nasce João, nosso rei invertido (Diário cartográfico).

José era um homem doce, de boa conversa. No entanto, em sua performance manifesta-
se uma outra persona. Vemos um homem vingativo, rancoroso e muito desejoso de poder. José
se olha no espelho de suas mãos e nos pergunta agressivamente: o que estão me olhando?
Mostra-nos o reverso de si, espelha talvez sua dor de ser visto como deficiente a vida toda.
Vinga-se por um momento em sua cena, desejando ser os olhos de quem mais julga e cria as
deficiências: em muitos casos, a própria Psicologia – quando se afasta de sua potência
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libertadora – é a própria régua societal que, com suas margens, inclui ou exclui os corpos de
sua existência. Ali, na plateia, senti a inversão dos papéis. Ali, inquieta e medrosa, percebi estar
sentada do outro lado.

5.3.4 “Mãe”

Mãe era a mãe. Uma mulher que pouco frequentava as oficinas. Naquela época, tinha
conseguido sair da situação de rua e estava morando com seu companheiro e com seus filhos
que haviam estado sob a custódia do Estado em um abrigo por algum tempo. Mãe fazia parte
do MNPR/RN. Nos conhecemos por conta do movimento social e algumas poucas vezes ela
conseguia passar as tardes conosco.
No dia da Mostra, ela fez questão de se apresentar com seus filhos, criou rapidamente
uma cena para manifestar o seu amor maternal. Naquele dia, trouxe as ruínas de sua vida nas
ruas, sua vida no beco sem saída. Fomos testemunha daquela cena ali no casarão e já éramos
testemunhas quando a conhecemos no MNPR/RN. Quem era? Quem eram aquelas crianças?
Aquela narrativa conhecíamos bem. Sempre a mesma. Como poetizar tanta dureza? Como fazer
mostrar aquilo que nós, todos os dias, queremos lembrar para não esquecer, ao ver as mães
perdendo seus filhos para o Estado brasileiro? No momento da criação da cena, desejamos que
um lampejo de sonho – ainda e sempre possível no Teatro em nós – transforme seus filhos em
pássaros – talvez um dia pudessem ser vistos e voar.
Movimentamos Mãe na cena para que ela saísse do gesto repetitivo de quem acende um
cachimbo de crack para o gesto de abrir a janela, olhar a luz do fim de tarde, virar-se para os
filhos e fazer o gesto de vê-los. Quando ela se virava para tentar enxergá-los, nós percebíamos
que a cena era a vida. Eles se emocionavam quando os olhares se encontravam, os abraços que
dali surgiam eram orgânicos.
A cena terminava quando a filha a vestia com a camiseta do MNPR/RN. Sabíamos que
aquelas três vidas estavam ali, naquele lugar, porque existia aquele movimento social.
Tínhamos aquele apoio importantíssimo que aglutinava politicamente algumas pessoas em
situação de rua. É válido salientar que os movimentos sociais foram fundamentais para a
manutenção do trabalho das oficinas. Agrupavam as pessoas, transformavam aquilo que era um
sofrimento (que poderia estar individualizado nas mãos de um Estado violento) em grupalidade
e em movimento político. Aquilo, geralmente, fortalecia os participantes. Por isso, aquela
88

menina vestir a mãe com a camiseta foi para nós um reconhecimento do Movimento e de sua
importância naquelas vidas. A vida novamente invadia a cena:

Mãe está de costas para o público, olhando a janela fechada. Seus dois filhos estão atrás
dela, chamando-a, puxando sua saia, imitando pássaros inquietos que bicam o corpo da
mãe, mas ela não os vê. Mãe se vira para o público, continua sem notar seus filhos à sua
volta e encena sua realidade quando morava nas ruas: faz gestos de quem tem que atacar
e se defender com uma faca; faz o gesto de quem está fumando crack no cachimbo e de
quem está tentando se defender de algum perigo. Ela está na rua, num beco, tem que
usar faca para se defender.
Seus movimentos bruscos ganham uma pausa e ela vai até a janela, abrindo-a. Nesse
momento, vira-se para o público. Quando ela se vira, ela vê seus filhos que estavam ali
o tempo todo. Eles dizem:
– Mãe!
Ela os abraça e diz:
– Meu nome é Mãe. Eu escolhi e eu sou mãe.
Ela diz:
– Sou Mãe, sou mãe.
Sua filha a veste com a camiseta do MNPR/RN. Ela os abraça.
As crianças dizem:
– Te amo, mãe.

Em meu diário, muito comovida com a beleza daquela manifestação, eu escrevi na


época:

Eu vi os pássaros meninos atrás da janela.


Mãe em seu beco costumeiro, mãe má, mãe bicho, guerreira com uma faca em punho e
cachimbo na boca. Mãe do ódio, da miséria e do desespero. Mãe que não podia ser mãe.
A mulher. Lilith.
Mas os pássaros insistem em cantar, em tripudiar, puxar sua saia, seus cabelos. O vento
os traz... Esses pássaros bebês que caíram do ninho... Há um tempo ali chamando a mãe
do desamparo... A mãe num dia resolve abrir a janela do beco... E quando vira, abre os
olhos e sente os pássaros que ainda não voam, vê os filhos do amor a chamarem para
morar em suas asas. As lágrimas lavam o ódio, mas não a miséria. As lágrimas, as
lágrimas. O abraço, os risos antes do abraço, a roupa, a MÃE. O nosso peito molhado,
o nosso coração que se borra em ventania e dor naquele fim de tarde (Diário
cartográfico).

5.3.5 O bufão

Essa performance foi mostrada por Bernardo, aluno estagiário de Psicologia. Bernardo
era ator e responsável conosco pela vigência do Vento dos Avoados. Nosso companheiro desde
89

o início de nossas pesquisas, desde 2015, trabalhamos juntos, sonhamos, cuidamos e


continuamos a sonhar juntos – mesmo que em outras superfícies, atualmente.
Ele é um daqueles homens que, juntamente com José, se propôs a fazer a nossa primeira
experimentação. A partir dali ele fez, e acredito que desde sempre, da sua vida um fazer
artístico. Ele portava poesia em seu corpo, em suas roupas, em seu sorriso e em seus abraços.
Lutou por ser um “psicólogopoetaator”, entre muitos outros devires. Muito, jovem conseguiu
unir as pontas de sua existência bravamente e, o mais importante, afirmativamente.
Em cena, voltado para a parede, vai se afastando dela. Se olha, olha para o próprio corpo
e mostra se estranhar. Mostra estar perdido, caminha, olha os outros, olha público. Caminha
para o centro da sala com mais rapidez, se estranha mais, se cheira. Mostra não se reconhecer.
Inicia o canto da música “Mistério do Planeta”14, dos Novos Baianos (1972):

E vou sendo como posso


Jogando meu corpo no mundo
Andando por todos os cantos
E pela lei natural dos encontros
Eu deixo e recebo um tanto
E passo aos olhos nus
Ou vestidos de lunetas
Passado, presente
Participo sendo o mistério do planeta
O tríplice mistério do stop
Que eu passo por e sendo ele
No que fica em cada um
No que sigo o meu caminho
E no ar que fez e assistiu
Abra um parêntese, não esqueça
Que independente disso
Eu não passo de um malandro
De um moleque do Brasil
Que peço e dou esmolas
Mas ando e penso sempre com mais de um
Por isso ninguém vê minha sacola (Galvão & Moreira, 1972).

Canta, olhando nos olhos do público, canta mais alto, mais rápido, inicia um giro e gira
mais rápido mostrando alegria. Até que cai no chão em êxtase e lá fica.

Em meu diário escrevi:

Bufão bicho

14
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WWfseMcAUZY.
90

De longe, vemos suas narinas ofegando, cheirando. De longe, sinto que aquele cheiro
fede, incomoda. Vemos alguém que busca, num jeito de desejo de busca. Ele vai, vai,
vai, vai como alguém que busca o êxtase, vai até se achar. Quando acha, cai como
alguém cansado de amar (Diário cartográfico).

Assim o era: bufão devir bicho. Psicólogo se formando poeta sendo. Essa primeira fase
do Vento dos Avoados teve como característica a pesquisa de si. E assim terminou a nossa
Mostra. Seguimos com nossas pesquisas e as oficinas foram se modificando à medida que as
pessoas que frequentavam também foram mudando.
Podemos produzir uma reflexão sobre muitas questões que emergiram dessa
experiência. O que foi mostrado? Fez sentido continuar a pesquisar as narrativas de si e
performá-las? Um primeiro ponto a ser ponderado: observamos que uso dos relatos
autobiográficos e dos depoimentos narrados/performados criou não somente uma forma de
expressão artística, mas sim uma nova possibilidade de conhecer a vida daquelas pessoas por
um ângulo pouco investido nas clínicas em suas diversas roupagens no campo da saúde mental.
Conseguimos produzir acontecimentos, rupturas e devires a partir da narrativa de uma memória
com um movimento de afirmação de um presente – mesmo que momentâneo –, afirmando,
assim, outras possibilidades de encontro com as respectivas biografias.
Muito embora não estejamos no campo de estudos das identidades, o trecho abaixo,
retirado do texto “Cidadania como forma de tolerância”, de Saraceno (2011), aborda a questão
de sua reconstrução histórica, dos sentidos individuais dos usuários de serviços de saúde mental.
Para ele, o primeiro passo em relação a reabilitação psicossocial seria a libertação por parte
dessas pessoas de uma falsa identidade coletiva: a do doente mental crônico.

Outra vez uma identidade a serviço da negação do sujeito. Uma primeira etapa da utopia
deve ser o reconhecimento, sem indecisões nem exceções, do fato que cada homem e
mulher é produtor de sentido. Etapa mais ambiciosa será a de reconhecer, e
consequentemente agir, que os milhões de homens e mulheres cuja produção de sentido
está limitada, bloqueada, aniquilada, negada, não estão nesta condição por serem
enfermos mentais ou por estarem em terríveis situações de sofrimento psicossocial, mas
sim essencialmente por falta de resposta adequada às suas enfermidades e aos seus
sofrimentos psicossociais (Saraceno, 2011, p. 97).

O autor nos convida a desinstitucionalizarmos as identidades fictícias para reconstruir a


história das pessoas, dos espaços e dos tempos para a expressão dos sentidos, para a
reconstrução de um sentido humano e cultural. Como não pensar na linguagem da performance
como uma das muitas possibilidades para se dar uma segunda chance – mesmo que fictícia –
91

para aqueles que tiveram suas histórias narradas e aprisionadas ao código hegemônico do
“doente mental”? E isso, dependendo dos territórios, ainda se desdobra em outras semióticas,
tais como: perigoso/infantil/inútil/louco.
A respeito da conceitualização teórica da performance e da performatividade, Bojana
(2017, p. 34) nos conta que há três “linhas de significação a partir da etimologia da palavra
performance: primeiro: que a performance é uma ação; segundo: que o seu valor instrumental
consiste na formação de algo através do fazer; e terceiro: que a formação implica perfeição”.
Em seu texto, a autora traz uma construção crítica sobre a sociedade neoliberal em que a ideia
da performance nos subjetiva, tornando-nos sujeitos de performance e não mais sujeitos do
espetáculo15. Mas, no final de seu texto, ela retoma o conceito de performance e nos propõe:

Se conservarmos a ideia de transformação inerente à etimologia do termo, então outro


sentido de mudança pode ser percebido: condições nas quais o performar é uma questão
de invenção sem provas ou garantias de sucesso, uma instituição de um futuro projetado,
um experimento fora das fronteiras do efeito calculável (Bojana, 2017, p. 81).

Então, não seria isso que eu buscava quando estava trabalhando com os Avoados? Uma
invenção sem garantias para aquelas identidades mortificadas? A possibilidade de futuro
projetado, mesmo sem garantias?
Lembrei-me de uma disciplina que cursei na Universidade chamada “Corpo,
performance, arte e política”16. No primeiro dia de aula, a professora, depois de pedir que cada
aluno se apresentasse, nos fez a seguinte pergunta: e se você tivesse uma segunda chance?
Como você se apresentaria? A pergunta era simples e tinha relação com a arte da performance
que, no meu entendimento naquele momento, era uma maneira de reiterar e refazer uma ação
até seu esgotamento, produzindo assim deslocamentos e diferenças a cada vez que nos
apresentávamos. Na aula, respondemos à pergunta algumas vezes de diferentes maneiras e, ao
poder responder à pergunta com os colegas, eu fiquei por uns instantes com a sensação de ter
podido ampliar minhas chances e meus pensamentos, uma impressão de que todos deveriam ter
uma segunda, terceira, quarta chance ao contar e viver suas vidas.

15
Referindo-se à subjetivação espetacular presente na sociedade do espetáculo, em referência a Guy Debord
(1931-1994).
16
Esta disciplina foi ministrada pela professora Marina Guzzo no curso de pós-graduação em ciências da saúde
na Unifesp campus da Baixada Santista.
92

Logo, as performances realizadas sob os temas/dispositivos das autobiografias


produziram outros modos de subjetivações, como movimento de fuga das identidades
condenadas? Acreditamos que por instantes sim.
Avizinhar-se a outras intensidades, estar em heterogeneidade em um coletivo, ampliar
o repertório de gestos a partir do contato com outros corpos, estar em outro território que não o
dos serviços ou em casa, circular pela cidade, produzir autonomia, exercer poder de
contratualidade, ou seja, negociar a trocas, reaprender a poder se expressar usando todos seus
sentidos acriticamente, inventar outra narrativa para si, pesquisar a si mesmo, conectar-se com
o mundo e com outras narrativas, “confessá-las” e despossuí-las, instaurá-las novamente e
poder manifestá-las sem estar num consultório ou em uma igreja ou numa anamnese “psi”.
Torná-las criação, fazimento artístico, composição estética de mundo compartilhado, sentir-se
artista, criador de si e do mundo. Todas essas possibilidades estiveram presentes nas oficinas e,
naquele momento da Mostra em diante, batizamos aquilo que fazíamos de coletivo cenopoético
Vento dos Avoados. Quem batizou foi Augusto, depois de muitos nomes sugeridos: “Vento”
porque ventava sempre muito em Natal; e “Avoados” porque éramos todos muito avoados,
desejávamos voar e instaurar realidade naqueles voos.
A partir daquele momento, o Vento dos Avoados foi instaurado como um coletivo
momentâneo, sobretudo como um desejo de estar no mundo de outro modo. Lembrei-me de
trazer a imensa contribuição a respeito da instauração de outras maneiras de ser – a partir de
sua análise dos virtuais – de David Lapoujade em seu livro As existências mínimas (2017).
Lapoujade investiga, a partir da obra do filósofo Étienne Souriau, modos que uma existência
pode se tornar mais real e ganhar consistência, e como a legitimação desses diferentes modos
de existência é um gesto estético, mas também político, visto que nenhuma existência é menos
autêntica do que outra. A “arte do ser” para Souriau seria a variedade infinita das suas maneiras
de ser ou dos modos de existência.

[...] cada existência é tão perfeita quanto pode ser. Um pôr do sol, uma fachada de um
edifício, uma ilusão de ótica, uma dança de elétrons, um triangulo isósceles, uma ideia
abstrata. Nesse plano não há nenhuma avaliação possível. A existência não admite grau;
cada existência possui seu modo de ser, extrínseco, incomparável.
[...] também não podemos dizer, por enquanto, que uma existência é mais real, mais
autêntica, mais essencial do que outra (por oposição a uma existência que vive na
inautenticidade, submetida ao reino das aparências, da opinião...). Toda a existência tem
o mesmo grau de realidade, existência e autenticidade.
93

Também não podemos avaliar os modos de existência segundo sua potência de existir.
Não há potência de existir maior ou menor. Nesse plano, um ser não é mais realizado
que o outro, mesmo comparado a si mesmo (Lapoujade, 2017, pp. 27-28).

Lapoujade, a partir de Souriau, descreve a classificação dos diferentes tipos de


existência: fenômenos, coisas imaginários e virtuais. Os virtuais para ele seriam os mais
importantes, pois são os que querem ser instaurados: “no cosmos das coisas, há aberturas,
inúmeras aberturas desenhadas pelos virtuais. Raros são aqueles que as percebem e lhes dão
importância; mais raros ainda são aqueles que exploram essa abertura em uma experimentação
criadora” (Lapoujade, 2017, p. 44).
Se os virtuais têm tanta importância para ele, é porque nos fazem entrar em uma nova
dimensão: não mais a dos modos de existência (o modal), mas a da sua transformação uns nos
outros (transmodal). Entretanto, antes de se colocar a questão do ato criador que permite
instaurá-las (as existências virtuais), é preciso se perguntar o que é que permite percebê-las.
Para realizarmos uma experimentação criadora, Lapoujade nos convoca para uma operação de
limpeza de nossa percepção, no sentido de purificar o campo da experiência de tudo aquilo que
impede de ver.

Mas como fazer? Como fazer ver essas perspectivas? [...] um desses procedimentos é a
redução. Para mostrar a variedade dos modos de existência, Souriau invoca, de fato,
uma “redução existencial” [...]Trata-se de fazer ver, de tornar perceptíveis novas classes
de seres, até os que são invisíveis. Temos, então, um primeiro momento que consiste
em empurrar para fora do plano todos os pressupostos, os preconceitos, as ilusões que
bloqueiam essa renovação da percepção. A redução é, primeiramente, uma operação de
limpeza. É preciso purificar o campo da experiência de tudo aquilo que impede de ver
as novas maneiras de ser as tantas dimensões de si mesmo (Lapoujade, 2017, pp. 47-
48).

O autor nos conta que a instauração das existências virtuais designa a operação pela
qual uma existência ganha em formalidade ou em solidez. Instaurar consistiria em “fixar a
existência de um ser, assim como estabelecemos uma instituição, uma cerimônia ou um ritual”
(Lapoujade, 2017, p. 81). Isso porque, como norte ético:

Cada existência deve ser conduzida ao seu melhor estado, instaurando assim o plano
que exclusivamente lhe pertence. Por fim, uma perspectiva se define menos pela sua
maneira de ser do que por seus modos de apropriação, menos pelo seu ser do que pelo
seu ter. É um novo signo da passagem do modal para o transmodal; não mais se trata de
ser isto ou aquilo, mas sim de conquistar tantas novas maneiras de ser como se fossem
tantas dimensões de si mesmo (Lapoujade, 2017, p. 59).
94

Podemos perguntar como criar dispositivos que deem passagem para o surgimento dos
mundos virtuais? Ou são os mundos que pedem passagem? Instaurar pode ser compreendido
também como legitimar uma maneira de ocupar um espaço-tempo. A legitimidade não mais
repousa sobre um fundamento exterior ou superior: cada existência a conquista por um
acréscimo da sua realidade, em virtude da amplitude dos gestos instauradores da existência:
“ela é conquistada à medida que uma existência afirma e desvela sua arquitetura, se enriquece
de determinações e ganha lucidez” (Lapoujade, 2017, pp. 89-90).
A partir de então, instaurar, para o autor, seria como se tornar o “advogado de defesa”
que legitima essas existências ainda inacabadas. Compartilhamos com essas existências a
mesma causa, contanto que possamos ouvir a natureza das suas reinvindicações, como se
exigissem ser amplificadas, aumentadas, tornadas mais reais. Ouvir essas reivindicações, ver
nessas existências aquilo que elas têm de inacabado, é forçosamente tomar o partido delas. O
autor pergunta: como pode um ser, no limite da inexistência, conquistar uma existência mais
“real”, mais consistente? Com que gesto? Instaurar as existências mínimas, em última instância,
seria entrar no ponto de vista de uma maneira de existir, não apenas para ver por onde ela vê,
mas para fazê-la existir mais, aumentar suas dimensões ou fazê-la existir de outra maneira,
torná-la real, dar realidade aos virtuais, advogar com eles a legitimação desta maneira de existir.
Nessa seara, ele ressalta a função da arte e da filosofia:

A arte e a filosofia têm isso em comum: uma e outra visam colocar seres cuja existência
se legitima por si mesma, através de uma espécie de demonstração luminosa de um
direito à existência que se afirma e se confirma pelo brilho objetivo, pela extrema
realidade do ser instaurado (Lapoujade, 2017, p. 67).

Para Souriau, uma alma nunca existe sozinha: ela existe porque faz existirem outras e
essas outras fazem existir correlativamente a primeira. Existir é, dessa forma, fazer existir.
Existimos pelas coisas que nos sustentam, assim como sustentamos as coisas que existem
através de nós, numa edificação ou numa instauração mútua. Só existimos fazendo existir. Ou
melhor, só nos tornamos reais de tornarmos mais real aquilo que existe.
Lapoujade (2017), seguindo com sua investigação, nos questiona:

Mas o que acontece quando estamos totalmente despossuídos do direito de existir


segundo determinado modo? Quando não há mais nenhuma saída? Você tem o direito
95

de existir, é claro, mas não dessa maneira, nem dessa outra maneira, nem de nenhuma
maneira... A questão é tanto política quanto estética (Lapoujade, 2017, p. 103).

Existir com a permanência de uma coisa, existir de uma “existência coisificada”,


segundo os termos de Souriau, não basta para “colocar” a existência concebida segundo outro
modo. Seria negligenciar toda distinção entre o direito e o fato.

Não somos reais pelo simples fato de existirmos; somos reais apenas se tivermos
conquistado o direito de existir. Podemos descrever os existentes como jogados no
mundo, invocar seu ser-no-mundo. Mas como fazem aqueles que não encontram a
entrada que os faz “serem-no-mundo?” Eles não se sentem jogados no mundo, e sim
rejeitados, expulsos pela própria realidade (Lapoujade, 2017, p. 105).

A questão da obra de David Lapoujade se resume a tornar as existências reais. A questão


de Espinosa também. Em Judith Butler, vimos a despossessão como a possibilidade de construir
outras narrativas para fora da interpelação que nos gera uma violência ética e de desafiar as
normativas vigentes ao tentar se despossuir das que nos são dadas socialmente.
Tornar-se real é tornar-se legítimo. É ver sua existência corroborada e consolidada na
própria criação de si. Sabemos que a melhor maneira de solapar uma existência é fazer de conta
que ela não tem nenhuma realidade. Nesse sentido, fazer existir é sempre fazer existir contra
uma ignorância ou um desprezo. Temos sempre que defender o sutil contra o grosseiro, os
planos de fundo contra o ruído do primeiro plano, o raro contra o banal. Como diria o autor:
“estamos entrando em um mundo no qual a solidez dos corpos, a clareza dos contornos e a
fixidez das imagens se dissipam, dando lugar a verbos que afetam todos os modos de existência:
aparecer, desaparecer, reaparecer” (Lapoujade, 2017, p. 117).
Olhando para nossa experiência na instauração coletivo Vento dos Avoados, acredito
que nos tornamos mais reais com aumento de ação – no sentido espinozano. Acredito que, ao
trazer para o primeiro plano as boas memórias suspendidas no decurso do sofrimento psíquico
e institucional, todos puderam se deslocar subjetivamente num plano molecular. Houve um
processo de instauração de existências, que são mínimas e que tem que se fazer ver e sentir e
como na produção de um contraste, induzindo à amplificação de sua visibilidade. Pudemos
olhar para raridades daquelas vidas e advogar por sua legitimidade, mesmo que por alguns
momentos. Acredito que o Vento dos Avoados pôde, naquele primeiro semestre, instaurar as
“existências mínimas” com gestos instauradores, com verbos instauradores. O Teatro em nós e
todo o processo ético, estético e político que nos acompanhou nos produziu como porta-vozes,
96

ou melhor, porta-existências, que legitimam aquelas existências ainda inacabadas (Lapoujade,


2017). Aquelas pessoas puderam aparecer, manifestar e tornar seus corpos mais reais por meio
da performance autoficcionada.

Fotografia 3. Registro do momento final da Mostra Cênica. Fonte: Arquivo de pesquisa.


97

6 O Vento e a Cidade

Neste capítulo, apresento e analiso as narrativas construídas a partir dos depoimentos


dos participantes sobre as oficinas. Os depoimentos foram obtidos por meio de um exercício
cênico disparador realizado durante uma tarde já no final das oficinas. Foram filmados e
transcritos para a construção das narrativas. No exercício cênico disparador, dividimos a sala
entre palco e plateia, pedíamos que cada pessoa fosse ao palco e, após um minuto de silêncio,
olhando para a plateia, solicitávamos que ela respondesse às perguntas: como é estar nesse
espaço? O que você faz aqui muda o seu dia? E, se muda, muda o que, como?
A pausa antes das perguntas era uma maneira de silenciar e refletir antes de responder,
produzindo um certo estado de presença cênica naquele momento. Os depoimentos ganharam
a forma de cenas e estas se tornaram as narrativas que dizem do coletivo e da experiência vivida
ao longo de todo o processo. Ao todo, foram gravados e transcritos dezesseis depoimentos: três
foram de profissionais do Hospital Psiquiátrico João Machado; cinco de pacientes internados
no mesmo hospital; três de pessoas que participavam dos movimentos sociais (como a
Associação Potiguar Plural e o MNPR/RN); três de pessoas que frequentavam os Centros de
Atenção Psicossocial da cidade; e dois estudantes de Psicologia da UFRN.
Os depoimentos referem-se sobre a experiência das oficinas que aconteceram no
segundo semestre de 2016. Naquele momento, as oficinas mudaram seu público e nós,
consequentemente, mudamos nossa metodologia e modo de estarmos juntos. O grupo teve uma
ruptura, um acontecimento importante: continuamos com algumas pessoas que já conheciam a
metodologia usada no primeiro tempo das oficinas, contudo, a cada semana, tínhamos mais
participantes diferentes.
Recebíamos muitas mulheres internadas na ala feminina do Hospital Psiquiátrico João
Machado, alguns jovens do CAPS infantil, profissionais do mesmo Hospital e pessoas que
passavam na Pinacoteca e acabavam participando das oficinas. Lembramos de Rede de atenção
à saúde mental de Natal (RN) é constituída por cinco Centros de atenção psicossocial (CAPS)
um Centro de Convivência e Cultura (CECCO), duas Residências Terapêuticas (SRT) e o
Hospital Psiquiátrico estadual João Machado que possui leitos do SUS. Assim, os encontros
ganharam outra estética, buscamos outras linguagens. Inventamos uma maneira de estar juntos
sem desejar os relatos de si. É preciso dizer honestamente que não havia mais univocidade na
metodologia que usávamos nas oficinas, que nem todos participavam sempre e que, sobretudo,
aquele se tornou um espaço livre para o possível.
98

Às vezes, alguns aproveitavam o espaço para descansar pelo cansaço da noite não
dormida nas ruas. Às vezes, fumavam na janela e lá ficavam olhando o centro da cidade por
horas. Às vezes, sob efeito de altas doses de medicamentos, dormiam no chão da sala. Às vezes,
presos demais no manicômio, desejavam falar, falar, falar... E não paravam de falar. Outros
rezavam muito, pediam proteção e nós rezávamos juntos. E quando todas as linguagens
expressivas que conhecíamos pareciam estar longe de nosso alcance, nós dançávamos juntos.
Quando tudo que planejávamos “dava errado” e o caos se instaurava, nós dançávamos juntos.
Pensando nisso hoje, não havia erro, ali aprendíamos a lição básica das artes cênicas: o
improviso e a beleza de estetizar o que de mínimo há nos acontecimentos cotidianos, nos nossos
corpos. Assim criávamos, naquelas tardes, a todo segundo, um “corpo sem órgãos” para cada
um e para aquele coletivo. Recortávamos o caos, dávamos composição ao que surgia. E do caos
criávamos os instantes que ficariam conservados em cada dobra dos nossos corpos vivos.
Naqueles momentos, encontrávamos o filho separado da mãe (remetendo à lenda chinesa já
citada), as duas pessoas que separadas podiam dançar juntas. O Teatro ou a vida que havia em
nós e que sempre havia no outro residia na nossa capacidade de criação e de instauração do
vivo – bastava atentar para isso.
Não obstante, naquele momento, em meio aos nossos encontros estava o manicômio,
impregnado naqueles corpos. O caos manicomial com seu tempo eterno, feito vidro, nos cortava
e sangrava a pele ao encontrar aquelas pessoas que, no século XXI, ainda residiam e eram
internados em hospitais psiquiátricos. Traziam dele o desespero pela liberdade, pela não
contenção, pela não violência, pela fala que tem voz, pelas rezas e pedidos de proteção que não
tinham fim. Cabia-nos compor juntos o possível.
Naquele período, não foi possível solicitar memórias alegres, porque percebíamos que
a instituição psiquiátrica era muito atual na vida de algumas pessoas. Tínhamos a presença
massiva do manicômio em sua forma mais concreta: mulheres abandonadas no Hospital
Psiquiátrico que vinham para as oficinas para respirar, olhar as ruas, fumar, dançar e gritar em
liberdade provisória. Tínhamos também jovens dos CAPS que buscavam atividades para
enriquecer suas tardes monótonas nos serviços que frequentavam. E tínhamos algumas pessoas
que estavam conosco desde o início do ano, mais outras desde o início dos experimentos, em
2014. Era um grupo grande, muito diversificado e inconstante. Ali misturavam-se a experiência
das pessoas que já participavam das oficinas e que já circulavam minimamente pela cidade com
a daqueles que eram prisioneiros do sistema asilar psiquiátrico. Seguimos com esse grupo até
o final das oficinas. As narrativas abaixo se referem ao período em que estivemos juntos.
99

Início as narrativas construídas a partir dos depoimentos das mulheres internadas no


Hospital Psiquiátrico João Machado que frequentaram o segundo semestre das oficinas:

6.1 O aquário e as janelas

“Como seria estar naquele espaço para Laura? As tardes na Pinacoteca mudavam seus
dias, tendo em vista que passara seus últimos meses no hospital? O que mudava?” Nós nos
perguntávamos. Em uma resposta cênica, Laura, que era uma jovem mulher, com seu vestido
azul que lembrava uma vontade de liberdade, se levanta e caminha dançando levemente em
direção à janela do primeiro andar da Pinacoteca. Olha através da janela e, mudando de
expressão, mostra o dedo médio com uma máscara de raiva, como quem xinga alguém. Muda
novamente de rosto, volta-se a nós, nos olha e faz um gesto como quem saúda o público se
abaixando, dando giros como quem estivesse voando livre. O vestido de tecido azul acompanha
seus rodopios. Ficamos com a imagem de um ser que ensaiava voar, caso isso nos fosse
possível.
Como que capturada novamente por um desejo de janela, ela se volta para ela mostrando
o dedo novamente para o que vê lá embaixo. Volta-se para o palco pulando, nos olha passando
a mão no rosto e se abaixa como quem agradece. De frente ao público, põe a mão no coração,
se abraça e começa a chorar. Chorando, nos diz que estar ali era estar em sua casa. Lembrando
emocionada de outro tempo, nos conta que passou a infância e adolescência inteira estudando
na escola que ficava na rua perto de onde estávamos. Como quem afirma um conhecimento da
própria história, nos diz que conhecia tudo aquilo na palma de sua mão e que sempre participou
de todas as caminhadas históricas pelo centro antigo da cidade. Muito feliz, nos contava que
tinha muito orgulho de sua cidade gritando: “– eu amo Natal!”.
Conta-nos, emocionada, que participar das oficinas era como um presente de Gisela
(terapeuta ocupacional do Hospital Psiquiátrico João Machado) no meio do inferno que ela
expressa viver:

Ela [Gisela] não tem noção da emoção que ela me proporcionou de me tirar daquele
inferno! Daquele aquário cheio de mulheres com distúrbios muito piores do que o meu!
Eu só tenho depressão! [...] Só porque falo alto e porque eu me altero... Aí vem a injeção
em cada lado da minha nádega. Tomei injeção no meu braço e ainda continua inchado!
Isso não é tratamento! [Laura grita e chora] Contenção não é tratamento! Luta
Antimanicomial, por favor, minha gente!! Parem de fazer isso com as pessoas, eu
imploro!
100

Laura enxuga as lágrimas, dança demoradamente entre as pessoas, usa o espaço da sala
todo, volta a janela e se volta a nós “– Estar aqui, isso trouxe uma felicidade imensa para o meu
coração. Vocês não têm noção da felicidade que trouxe para o meu coração, para o meu ser.
Vocês viram como eu estou feliz, pulando? Eu preciso falar!”
Essa narrativa ainda nos fala sobre o manicômio como “aquele inferno”, “aquário cheio
de mulheres”, contenção, dores e injeções. Traz-nos a morte civil das mulheres abandonadas
no hospital psiquiátrico. Na Pinacoteca, elas fumavam olhando a janela, reconheciam suas
histórias, seus antigos trajetos pela cidade, viam o movimento das ruas, rezavam juntas,
dançavam e falavam muito. O espaço do Teatro ia dando uma brecha àquelas vozes que
deixavam de ser ruídos e gritos. Ocorriam denúncias17 em suas falas, existia a necessidade de
falar muito e de dançar livremente naquele espaço. Era o espanto da mínima liberdade, de
escutar-se, mesmo que por quatro horas na semana. Espantávamo-nos juntos porque, para nós,
também era um novo território estar com aquelas mulheres: jovens ou senhoras, estavam em
sua maioria em regime de sucessivas internações na ala feminina daquele “aquário”. Chamavam
a Luta Antimanicomial pelo nome, como quem pede socorro a alguém de dentro de um
“aquário”, mas, antes, era preciso vomitar a água engolida naquele afogamento silencioso.
Franco Baságlia (2005) nos fala das vozes da loucura e sobre o seu silenciamento:

A loucura jamais é escutada por aquilo que diz ou queria dizer: voz confundida com a
miséria, a indigência e a delinquência, palavra emudecida pela linguagem racional da
doença, mensagem truncada pela internação e tornada indecifrável pela definição de
periculosidade e pela necessidade social da invalidação (Baságlia, 2005, p. 282).

O que elas nos diziam? O que aquelas mulheres, cujas falas eram invalidadas por uma
necessidade da sociedade, como nos diz Baságlia, podiam naquele espaço? Cuidávamos para
não interpretar aqueles gestos e falas no momento. Mas hoje, ao rever aquelas falas, as
mensagens são tão claras que dispensam desvelamento ou interpretação. Tratavam-se de
testemunhos. Elas falavam da violação que essas pessoas vivem – em pleno século XXI – nos
manicômios ainda vigentes e da sensação mínima de estar em outro espaço e nele poder ter uma
voz momentânea. As vozes femininas diziam de um abandono, das violências que viviam

17
Denúncias que foram ouvidas e tornaram-se pauta das reinvindicações da Associação Potiguar Plural junto ao
Centro de Referência em Direitos Humanos Marcos Dionísio (CRDHMD/UFRN) e à Comissão Estadual de
Combate à Tortura, na qual seus membros conquistaram assento em 2019.
101

dentro do hospital, das memórias que se avivavam ao saírem da prisão hospitalar. E sonhavam
por liberdade!
Baságlia (2005) fala-nos das multidões mudas: quando tentam tomar a palavra,
deparam-se com a lógica da razão que separa, fragmenta e cancela as necessidades das pessoas
ditas sem razão em nome de uma lógica da piedade e da punição, bem como do suposto
tratamento que a “doença mental” encerra:

A separação da loucura desse amálgama confuso de desrazão e culpa, incrustadas de


miséria, e o reconhecimento de sua dignidade de enfermidade implicam, ao contrário,
um juízo por parte da “razão”, que começa a separar aquilo que se lhe assemelha daquilo
que ela não reconhece, ou que só aceita reconhecer como próprio no momento em que
o circunscreve e o domina, pondo entre parênteses a miséria de que o vê impregnado.
O que antes era aceito como uma das possibilidades do humano, é cruamente punido
como se fosse ameaçador para a coletividade, torna-se agora objeto de uma piedade e
de uma compreensão em que a responsabilidade pelo ato é imputada à desrazão, e não
mais ao indivíduo, do qual, porém, a razão se apropria no momento mesmo em que o
desresponsabiliza. Assumindo sobre si a responsabilidade pela desrazão, a razão – nesse
ato humanitário e científico tem em seu poder o homem “desarrazoado”, visto que, não
podendo punir o ato reprovável, acaba punindo o indivíduo inteiro, mediante a punição
de todo o seu comportamento, pelo acionamento dos processos de controle e de
modificação da conduta sobre os quais irão centrar-se o “tratamento” e a “terapia”
(Baságlia, 2005, p. 263).

Era isso que nos gritava aquela multidão que existia na voz daquela mulher saída do
aquário: a miséria psicossocial que vivia fora dele, as punições que eram submetidas dentro
dele – por aquilo que se compreendia como o desvio de normas comportamentais, a separação
do que poderia antes ser aceito como humano, isto é, o direito à desrazão. Não sentíamos
piedade, nem buscávamos soluções terapêuticas. Víamos uma mulher que, pela janela, olhava
e recontava sua história, como quem respira por uns segundos da asfixia de quem vive submersa
nas águas paradas de um hospital psiquiátrico e de uma sociedade que a oprime e condena.
Tratava-se de uma apropriação, com diz Baságlia, de tirar os parênteses postos
intencionalmente para isolar a miséria de sua real importância na produção dos diagnósticos
psiquiátricos. Os parênteses são postos para elipsar e englobar nos múltiplos diagnósticos e suas
consequentes violências as condições psicossociais dos vulnerados pelas desigualdades de
classes, gêneros e raças. Os parênteses se tornaram os aquários. Podiam ser as ruas da cidade,
as casas e suas famílias violentas, os hospitais psiquiátricos e até mesmo os serviços da rede de
atenção psicossocial. Nosso cenário, naquele momento, se tornava uma janela! Janela aberta
102

que fazia ventar, que testemunhava os vividos e que, sempre aberta, trazia com seu vento um
desejo de liberdade.
Carmona, por sua vez, também vinha de uma longa internação e nos contava sentia
muito feliz desde a primeira vez que lá esteve para conhecer pessoas diferentes, meigas, que,
segundo ela, a acolhiam: “– é muito bom a pessoa sair de lá de dentro daquele inferno horroroso!
Realmente, é uma sensação de liberdade!”
Ela agradece a Gisela e Fernanda – ambas profissionais do Hospital Psiquiátrico João
Machado – que eram responsáveis pela ida à Pinacoteca. Dizia que eram pessoas muito
especiais em sua vida:

Elas trazem uma energia para a gente nesse momento tirando a gente daquele lugar,
trazendo para um lugar desse, um lugar cheio de pessoas, de carinho, de pessoas meigas
que são incríveis para mim. [...] Eu lá me sinto muito trancada, muito fechada. Não é
brincadeira você passar dois anos e seis meses dentro de um inferno daquele! Não é para
qualquer um estar lá dentro. Pretendo sair, não sei quando, mas vai chegar a minha vez
de eu sair e eu vou sentir saudade de vocês!

Para Carmona e Laura, participar das oficinas tinha uma importância muito significativa
no cotidiano hospitalar, sobretudo pelas histórias de longas internações psiquiátricas que as
marcavam. Usavam aquele espaço de fala como um testemunho e como um grito de esperança
por dias de liberdade, o que também parecia ser um “atestado” de que elas podiam circular na
cidade, encontrar pessoas e que a internação longa, por si, não se justificava.
A narrativa de Jairo também diz de um cotidiano – muitas vezes empobrecido entre o
trajeto casa e hospital – que ganhava novos contornos e riqueza com as oficinas. Ao falar, ele
nos mostra a sua autonomia crescer com o desejo de estar em outro ambiente que não o
doméstico ou o hospitalar, ou seja, que “ampliavam a vida cotidiana”: “– quando eu vim para
cá hoje, saí de casa sozinho, sem falar que eu viria aqui para o pai. Fiz um monte de coisa: eu
tirei mato, limpei a louça e vim para cá. Fiz um bocado de coisa e estou aqui, pronto. Eu gosto
daqui. Quando chega o dia, fico ansioso para vir, fico contando o tempo para poder vir, eu gosto
daqui. Pronto”.
Ele dizia-nos que suas tardes ficavam mais alegres porque conhecia mais pessoas. Para
além, também sentia que se tratava um pouco ao ver os trabalhos e os quadros nas paredes da
Pinacoteca: “– a gente fica alegre, gosta de assistir e aprender o que é isso, o que seria esse
isso?” O mundo dos quadros e exposições que vivíamos na Pinacoteca poderia ser também o
103

Teatro, as nossas danças e brincadeiras ou simplesmente estar e olhar as ruas pela janela. Eram
as condições do encontro que faziam diferença.
Em todas as narrativas acima, observamos o lugar da exclusão manicomial que
atravessava a vida daquelas pessoas. Isso, de certa forma, me fez perceber como foi importante
forjar um espaço na cidade e um fazer artístico naquele momento. Penso comigo: como num
embate entre a vida e a morte, a arte consegue vencer, mesmo que por instantes. Volto ao
clássico História da loucura na Idade Clássica, escrito por Michel Foucault (2008), para pensar
sobre a exclusão da loucura e a dimensão trágica do homem na Idade Moderna e que nos
acomete até os dias de hoje. É fundamental – ainda hoje – lembrarmos que a loucura vem ocupar
o imaginário social na necessidade de purificação e exclusão, pois carrega a simbologia viva da
morte, ocupada historicamente pela lepra, pelas pestes, pelas doenças venéreas e pelos
“improdutivos”. Ao longo da História, esse imaginário foi se transmutando em outros símbolos,
discursos, signos e imaginários que ainda guardavam e revelavam o temor da morte e a
imperiosa necessidade de seu afastamento e exclusão. Mas, o medo da morte – seja ele explícito
em sua forma real, seja ele interiorizado – nos assombra e tem efeitos vivos e cívicos, dos quais
desde o século passado lutamos para superar:

A substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura, mas sim uma
virada no interior da mesma inquietude. Trata-se ainda do vazio da existência, mas esse
vazio não é mais reconhecido como termo exterior e final [...]; ele é sentido do interior,
como forma contínua e constante da existência. E enquanto outrora a loucura dos
homens consistia em ver apenas que o termo da morte se aproximava, enquanto era
necessário trazê-los de volta à consciência através do espetáculo da morte, agora a
sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em ensinar que aos homens
que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em que a
loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte
(Foucault, 2008, p. 16).

Por que me remeto a esse texto tão lido e já tão explanado? Observamos, nesses
processos de sofrimento psíquico e de possíveis institucionalizações, a morte civil, simbólica e
real dos corpos dos usuários de serviços de saúde mental. Vemos a repetição do temor da morte
e a necessidade de expurgá-la acontecendo com diferentes roupagens sociais e regimes de
subjetivação. A experiência trágica da loucura foi sendo substituída por sua consciência crítica
e pelo fundamento da desrazão – assim como vimos com Baságlia – como normativa social na
Idade Moderna, prendendo-a e isolando-a (Foucault, 2008). Assim, ela foi cooptada pela
104

ciência psiquiátrica que, comprometida com o regime capitalista em suas diversas lógicas
(atualmente, a lógica neoliberal), nos governa até hoje.
Mas, ainda sim, é da morte fictícia, do vazio, de sua inquietude e de seus efeitos em
nossas existências que fugimos. Para isso, precisamos distanciá-la, reformá-la e escondê-la.
Como a lepra e as doenças venéreas, a loucura carrega em nosso imaginário o perigo, a feiura,
o disfuncional, o não racional, o defeito e o perigo de contágio. Nesse sentido, a ciência
psiquiátrica se encarregou de cumprir seu papel e mandato social quanto a este controle a céu
aberto e a “céu fechado” ao longo da história. “Os loucos” ainda representam – como numa
peça de Teatro convencional – dois papéis: o papel da morte (seja ela real, simbólica e/ou civil)
e o papel de sobreviventes (atuando como mortos-vivos depois das múltiplas violências
sofridas). Como antídoto igualmente perigoso, nos dias atuais, reproduzimos esse papel pelo
excesso de controle sobre a vida, fabricamos os corpos hiper controlados e conectados, nos
tornamos zumbis ativos, mas, ainda sim, é do terror do papel ideal da morte que fugimos.
Penso que há a necessidade de rasgar esse papel, de descumprir esse roteiro, de
manifestar a vida, de profaná-la, de performatizar outras cenas. Como argumenta Roberto
Machado em seu livro Nietzsche e a verdade (1999): precisamos resgatar a experiência trágica
da loucura. A arte ou o fazer artístico – que nada mais é do que uma real e radical aproximação
da vida – pode ser fundamental nesse resgate. Machado (1999) nos apresenta a sua leitura sobre
a arte no período grego em que a estética era apresentada sob a forma de dois instintos
antagonistas: Apolíneo e Dionisíaco. Apolo representava a beleza, a consciência e a verdade
representada por Homero e seus escritos; e Dionísio representava a desmesura de si, o
sofrimento, o esquecimento, por meio dos êxtases orgiásticos, dos preceitos e das verdades
apolíneas: “a contradição e a volúpia nascida da dor se expressavam do mais profundo da
natureza” (Machado, 1999, p. 20). Machado nos lembra que somente quando essas duas forças
da natureza artística se integram é que a arte grega ganha outra dimensão, um novo tipo de arte:
“a característica da nova estratégia artística é integrar, e não mais reprimir, o elemento
dionisíaco transformando o próprio sentimento de desgosto causado pelo horror e pelo absurdo
da existência em representação capaz de tornar a vida possível” (Machado, 1999, p. 22).
Nietzsche (2005, p. 13) nos conta que o poder do instinto dionisíaco rompe o princípio
de individuação e o que seria considerado subjetivo se esvai diante do poder irruptivo do
“humano-geral, do natural universal”.
105

As festas de Dionísio não firmam apenas a ligação entre os homens, elas também
reconciliam homem e natureza. Voluntariamente a terra traz os seus dons, as bestas mais
selvagens aproximam-se pacificamente: coroado de flores, o carro de Dionísio é puxado
por panteras e tigres. Todas as delimitações e separações de casta, que a necessidade e
o arbítrio estabeleceram entre os homens, desaparecem: o escravo é homem livre, o
nobre e o de baixa extração unem-se no mesmo coro báquico. Em multidões sempre
crescentes o evangelho da harmonia dos mundos dança em rodopios de lugar para lugar:
cantando e dançando expressa-se o homem como membro de uma comunidade ideal
mais elevada: ele desaprendeu a andar e a falar. Mais ainda: sente-se encantado e tornou-
se realmente algo o diverso. Assim como as bestas falam e a terra dá leite e mel, também
soa a partir dele algo sobrenatural. Ele se sente como deus: o que outrora vivia somente
em sua força imaginativa, agora ele sente em si mesmo. O que são para ele agora
imagens e estátuas? O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, caminha tão
extasiado e elevado como vira em sonho os deuses caminharem. O poder artístico da
natureza, não mais o de um homem, revela-se aqui: uma argila mais nobre é aqui
modelada, um mármore mais precioso é aqui talhado: o homem. Este homem,
conformado pelo artista Dionísio, está para a natureza assim como a estátua está para o
artista apolíneo (Nietzsche, 2005, p. 13).

Os homens e as mulheres que se tornam obra de arte, homens Deuses, mulheres Deusas
em suas naturezas, animais humanos, sonho e delírio juntos, vida e morte presentes no mesmo
solo. Era essa comunidade que desejávamos criar ante a morte em vida que aqueles
depoimentos testemunhavam.
A reconciliação entre Apolo e Dionísio constitui para Nietzsche o que ele exprime como
um “verdadeiro efeito terapêutico, é um eficaz ato de cura: a arte dionisíaca transforma um
veneno – a poção mágica, o filtro das feiticeiras – em remédio, retirando de Dionísio suas
‘armas destruidoras’” (Machado, 1999, p. 22). Esse trecho mostra que é preciso encarar e
resgatar as forças que nos destroem pelo excesso de razão e de racionalidade hegemônica que
o projeto moderno nos impõe. Lutávamos contra as forças apolíneas em nós, mas, muitas vezes,
integrar os dois instintos foi-nos tarefa árdua. Encontrar sua medida ainda é uma tarefa a ser
realizada.
Assim, dançávamos, suávamos e gritávamos, clamando pela lembrança boa e pelo
esquecimento necessário de certas marcas de sofrimento. Alegrávamos quando, numa medida
instável, nos aproximávamos de nossa capacidade de criação em um tempo igualmente criado.
Em nossos experimentos no Vento dos Avoados, essa integração se instaurava por instantes
quando podíamos dançar juntos, arritimados, e contar sobre a experiência de poder estar
naquele espaço. Era como encarar a morte e a vida contando sobre elas, narrando a partir do
olhar debruçado naquela janela o que acontecia no aquário eterno que era a vida passada numa
internação psiquiátrica. A janela, o vento que dela vinha, a rua que dela se via e o que se podia
106

lembrar explodia por alguns segundos o aquário violento. Transbordávamos, queríamos o mar!
Xingávamos, rezávamos, berrávamos. No chão dançávamos e suávamos juntos.
Encarar o trágico nos dava força para seguir dançando. A história contada abaixo é de
Fernanda, assistente social de longa data do Hospital Psiquiátrico João Machado que,
contradizendo seu local de trabalho, tinha por vocação e ofício a luta contra os manicômios e a
defesa das pessoas que ali eram internadas.
Fernanda usa seu minuto de silêncio para pausar e nos encarar. Com o rosto sorrindo,
nos falava que estar na Pinacoteca era uma oportunidade de comprovar a importância e a
potência da arte como instrumento de cuidado. Com certo encantamento veloz que lhe era
característico, dizia-nos que, para pessoas que trabalhavam em um hospital psiquiátrico, era
muito gratificante ver que existiam outras formas de se apaziguar uma crise para além da
medicação, pois o que viam no hospital eram elas serem medicadas e contidas fisicamente. Ela
nos diz: “– a gente vê como um espaço de fala e de expressão corporal tem uma potência muito
maior do que esses instrumentos usados nas instituições tradicionais. [...] Como eu me sinto
aqui? Eu acho que eu só tenho a dizer que eu sou uma eterna aprendiz!”
Gilda também trabalhava como terapeuta ocupacional há muitos anos no mesmo
hospital. Olha-nos rindo e com jeito de criança sonhadora, nos fala que estar ali era onde ela
sempre quis estar em seus sonhos: “– nos meus sonhos, não sei de criança, mas de adulto, é
aqui que eu sempre quis estar!” Para ela, a Pinacoteca também era um lugar de difícil acesso,
pois não sabia que podiam ocupá-la com tanta liberdade: “– é por isso que eu amo esse espaço
onde nós estamos construindo porque aqui se chama liberdade!” Sobre o que mudava em seu
dia, ela nos conta que tudo mudava:

Para quem há 28 anos trabalha naquele inferno, onde, infelizmente, muitas vezes, lá
[essas pessoas] estão porque não tem outro espaço para acolhê-las... E ainda, apesar de
28 anos trabalhando lá dentro, não me deixei corromper por aquelas grades, por aqueles
maus-tratos que, muitas vezes, acontecem. Eu me sinto transformada quando estou aqui
e muito feliz por saber que não me deixei contaminar pela maldade, pela prisão, pelas
grades pela prisão da falsa Psiquiatria. Sei que sempre serei uma pessoa revolucionária.
No começo dos tempos, levava os pacientes para o jardim do Hospital Psiquiátrico João
Machado e diziam que eles iam jogar pedras nos carros. Eu dizia: “pois joguem porque
o jardim é dos pacientes”. Então, aqui eu me renovo com essas pessoas que se tornam
iguais. Porque, infelizmente, lá, por mais que a gente não queira, existe uma hierarquia,
mesmo que a gente não queira. E, nesse espaço, nós somos iguais, nós rolamos no chão,
nós sonhamos juntos, nós choramos juntos e nós construímos juntos. É aqui que eu
quero ficar!
107

Essas histórias nos contam de uma sensação de liberdade que as oficinas


proporcionavam tanto para os profissionais como para os demais participantes. Tínhamos a
intenção de produzir um momento comum possível para todos, em que as hierarquias se
desfizessem. Criávamos uma experiência estética que, no intervalo da prisão manicomial,
pudesse nos levar a um lugar comum que permitisse de maneira radical a expressão dos
participantes. Era o possível, naquele momento.
Na seara dos ensaios que emergem do que pode a vida, o filósofo Peter Pál Pelbart
(2007) nos apresenta a dupla conceitual “biopoder” e “biopotência”. Ele argumenta que o
biopoder é poder sobre a vida, visa encarregar-se da vida, produzi-la e otimizá-la. Nesse regime
biopolítico, o poder se exerce por dentro de nossa vitalidade social é um poder imanente e
produtivo: “nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria
vida, como nessa modalidade contemporânea do biopoder” (Pelbart, 2007, p. 57). O biopoder
investe na sobrevida biológica, não humana e não mais sobre a morte – como anteriormente no
regime de subjetivação do poder soberano. Mas, contrariamente e pensando sobre a resistência
viva, o filósofo encontra o conceito de biopotência – ou melhor, das potências da vida – como
resposta ao poder sobre a vida contemporânea. Essa resposta acontece por nossas vidasse
passam em nossos corpos vivos. Mas, de que vida e de que corpos falamos aqui? Daqueles que
podem ser, que se necessitam criar. Os corpos limiares em devir. Nem Apolo nem Dionísio,
pura criação de vida:

O biopoder como a biopotência passam necessariamente pelo corpo, esse limiar entre a
vida e a morte, entre o homem e o animal, entre a loucura e a sanidade, onde nascer e
perecer se repercutem mutuamente, é essa uma vida que põe em xeque todas as divisões
legadas pela tradição, e indica o que Deleuze pode chamar de uma vida (Pelbart, 2007,
p. 64).

O filósofo pensa no conceito de biopotência como um antídoto ao regime de


subjetivação do biopoder, no qual todos nós somos subjetivamos na contemporaneidade. A
biopotência, segundo ele, poderia ser criada nessas vidas que escapam à totalidade do controle
do biopoder. Em seu texto “Imanência uma vida” (1997), Deleuze, ao falar do campo
transcendental como pura imanência, nos inspira a pensar a vida como “uma vida” com
pronome indefinido. Essa “uma vida” não se refere a um sujeito nem objeto, mas sim às
virtualidades, ou seja, ainda às vidas que podem emergir: “pode-se dizer da pura imanência que
ela é UMA VIDA, e nada diferente disso. Ela não é imanência à vida, mas o imanente que não
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existe em nada também é uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência
absoluta: ela é potência completa, beatitude completa” (Deleuze, 1997 p. 12).
Acredito que, naqueles tempos de oficina, quando nosso método de trabalho desviou de
seu curso, nós conseguimos viver momentos imanentes que geravam, talvez, aquilo que
Deleuze chamou de “beatitude”. Tal palavra me lembrou o depoimento gestual de uma pessoa
que nos acompanhou durante todas as oficinas: Mário, como quem fazia um rito, benzia-nos e
com a reverência de seus gestos e danças, nos guiava e cuidava durante todos nossos encontros.
Ao perguntarmos a ele como era estar ali, Mário nos interroga: “– é o gesto né? Pode ser o
gesto, né?” Assim, em sua resposta, Mário começa pedindo benção com as mãos, beijando o
chão, ficando de quatro apoios – como se pedisse autorização, como se pedisse uma benção.
Depois, fazia o sinal da cruz e ficava de joelhos. Colocava a mão direita no coração, a esquerda
aberta a sua frente e olha seriamente para o público. Permanecia de joelhos olhando para frente
como quem olhava para o horizonte e como quem rezava. Levantava-se, encolhendo e
apertando a barriga, olhava para cima, depois se ajoelhava. Voltava para trás e reverenciava-
nos de novo. Caminhava até o público, mostrando o ouvido como quem nos escutava e abaixava
a cabeça numa menção de quem acolhia o que havia escutado. Como em uma coreografia,
Mário saltava cada vez mais rápido, assoviando, correndo de um lado a outro. Aos poucos,
aumentava a rapidez dos giros e assovios. Parado olhando-nos, reverenciava a plateia.
Naquele momento, eu me sentia benzida por ele ao vê-lo beijar as guias que carregava
em seu pescoço. A partitura de sua gestualidade nos emanava sensações de agradecimento, de
devoção. Uma ligação de pertencimento com o sagrado daquele homem, que falava diretamente
com o que havia de sagrado em nós. Era seu corpo trágico, sagrado e encarnado em sua
singularidade que nos benzia. Como espectadores, aquela partitura gestual dava-nos a sensação
de entrar em uma outra língua que se manifestava ali naqueles instantes. Sentíamos a imanência
pura, uma vida, um sentimento de estarmos juntos sob o mesmo pedido de proteção. A sensação
de comunhão esteve presente nas manifestações singulares, na produção de um espaço de
criação comum e imanente:

[...] vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, uma vez que apenas o
sujeito que a encarnava no meio das coisas a fazia boa ou má. A vida de tal
individualidade se apaga em favor da vida singular imanente a um homem que não tem
mais nome, embora ele não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida
(Deleuze, 2002, p. 14).
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Vida inconfundível com qualquer outra, Ana e seu pássaro estiveram conosco desde o
início das oficinas. Tinha como modo de existência ser artista e seus desenhos geralmente
traziam um pássaro que ela chamava de Coração Valente. Contava-nos que seu pássaro esteve
preso em sua imaginação por anos e, quando o desenhou pela primeira vez, ele ganhou vida e
pôde se liberar. A partir de então, ela o desenhava sempre: ela e ele saíam do quarto e ganhavam
vida nos lugares que passavam. Coração Valente, o pássaro medroso que saiu do quarto, esteve
presente em todas as oficinas e o nome Vento dos Avoados levava consigo seu desejo de voar.
Quando foi responder à nossa pergunta, Ana fez seu silêncio em meio a um corpo agitado que
caminhava de um lado ao outro. Encarando-nos, disse como se voasse num rompante:

Eu descobri vindo para cá que o Teatro é também outra forma de arte. Que é a arte da
expressão do corpo, que a gente pode olhar no olho de cada um de nós, de vocês, e ver
que tem uma vida e que existe uma vida muito intensa. Tem muitas coisas que a gente
tem dentro da gente que, às vezes, não sabemos que existe. Tanta coisa linda que está
dentro que nunca tivemos a oportunidade de expressar e viver aquilo que está dentro de
você. Então, para mim, o Teatro é muito importante porque eu consegui conversar, falar.
Assim com vocês, antes eu não conseguiria.

Como Ana nos presenteava com sua presença viva, com seu desejo de voo, com seu
devir-pássaro! Ana era obra de liberdade, era pássaro em tudo que fazia. Quantos pássaros ela
nos ajudou a fazer voar com sua coragem ao afirmar que os espaços de arte lhe eram muito
importantes ao longo de todo seu percurso de rede de atenção psicossocial de Natal, ao defender
a Luta Antimanicomial em seu corpo-pássaro!
Em outro depoimento, vemos a manifestação de mais uma vida. Renato nos dizia que
depois das oficinas tinha começado a ser gente, pois se considerava um bicho, um animal bruto
preso dentro de casa. Quantas vidas podemos desperdiçar? As casas e as famílias também
poderiam ser prisões. Renato, a cada dia, se colocava mais à vontade naquele espaço, que para
ele não era exatamente um lugar para se fazer Teatro. Aquele lugar era um lugar em que ele
poderia ensaiar uma outra existência. Não aquele Renato, não era um bicho: era uma vida.
Já a próxima narrativa nos faz perguntar: uma experiência imanente de uma “uma vida”
pode ser contada assim? Apolo em Dionísio, em devires de borboletas, árvores e guerra
mundial. Rose, sentada em seu silêncio, olha as paredes da Pinacoteca e em gesto de reverência
com a cabeça nos diz: “– ouro, prata, sol, mar, praia, estrelas, arco-íris, quadros, tesouro. Vocês
são um tesouro. Liberdade, Monalisa, árvores, flores, rosas desabrochando, borboletas voando,
vindo e voltando, voando no céu coloridas como a primavera. Verão, praia, água, mar,
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peixinhos nadando, marinheiros remando. Guerra mundial, preto e branco, telas em preto e
branco a luz do sol que esquenta nossa alma”. Levanta-se, nos olha com um olhar de quem vê
borboletas e volta a se sentar na plateia. Atônitos, nós tentávamos em vão juntar as palavras,
construir um sentido naquilo que era imanência e não pedia sentido. Transbordantes, ficamos
com a sensação da liberdade das borboletas, voando no céu da cor de primavera. Sentíamos a
dor de alguém que, depois da guerra mundial, se esquentava sob luz do sol daquela tarde que
clamava pela quebra de todos os aquários, para que os peixinhos nadassem no verão de uma
praia e – quem sabe? – pudessem encontrar marinheiros remando. Sonhávamos com o tesouro
de um mundo sem aquários.

6.2 O Vento e a liberdade

Eduardo levanta os braços como quem se espreguiça. Venta na sala. Sorri, mexe com
os pés para os lados: “– o que é estar aqui? Estar aqui é viver, é ver a arte, ver um prédio antigo,
ver móveis antigos históricos e ver uma construção de cultura de fotografias de arte demonstrar
a arte da população em si”. Dizia-nos alegremente que ali era um lugar de união, de encontros,
de trocas: “– eu faço aqui trocas, eu faço trocas, muitas trocas. Trocas de mim para com as
pessoas, onde eu troco a minha relação, meu andar, meu estar aí, o meu entender. Eu troco
aquilo que me faz bem e me faz mal”. Para ele, aquele espaço o fazia entender o seu vizinho,
os outros que ali estavam. Se mudava alguma coisa em seu dia? Saia de lá refeito, a alma
liberada e com a semana completa, com a sensação de que a sua missão estava cumprida. Se
dava e se entregava.
Jogando capoeira, Heitor nos diz que, para ele, aquele espaço era surreal, era um sonho
porque nunca sabia onde poderia entrar e como sairia dos lugares – onde ele era “permitido”.
Como membro do MNPR/RN, na hora de adentrar um espaço, ele nunca via o anúncio: seja
bem-vindo! Sabia que nunca era bem-vindo porque a senha da sua cor e do seu jeito de ser
como “gente da rua”, muitas vezes, o impedia entrar. Às vezes, não ia às oficinas e acreditava
que outros também não frequentavam porque não queriam responder à pergunta que vinha
acompanhada de um olhar inquisitório: “– vai para onde? Vai no pessoal do Teatro?” E, ao
responder que sim, ter de escutar a seguinte resposta: “– ah, tá bom. Pode subir”. Ele revela
essa tensão numa discussão que teve ao tentar entrar na Pinacoteca, quando um funcionário lhe
disse que ali era um espaço público privado. Então, argumentou que, para ele, os espaços eram
ou públicos ou privados: “– aí eu discuti com ele. Então tá bom, eu disse. Você está certo, eu
111

estou errado, vou sair então”. E se perguntava: “– será que eu tenho direito ou não tenho direito?
[...] Outro dia eu cheguei aqui, me sentei lá embaixo no chão e disseram: – você não pode ficar
sentado aí. Perguntei se teria que ficar em pé naquele espaço por 24 horas. Então pedi uma
cadeira, e aí a pessoa falou: – pode ficar!” Logo, lá ele ficou – no chão.
Mesmo com esses entraves, aquele espaço das oficinas – dentro daquele outro espaço
que era público – foi se tornando bom demais porque era uma fuga da realidade que se vivia lá
fora. Todavia, existiam muitas barreiras (também presentes na realidade cotidiana) que ele
enunciava e denunciava a todo tempo e era escutado pelo grupo. Afinal, tratava-se da partilha
e do pertencimento daquele espaço em que não se precisava, ao menos por algumas horas,
habitar o território da exclusão e da violência. Ali, as pessoas paravam para ouvir, falavam e
conversavam. O diálogo era a melhor parte das oficinas! Aquilo de poder ouvir e ao mesmo
tempo poder falar sem estar certo ou errado era bom demais!
Os trechos acima demarcam que, muito embora ambos fossem participantes de
movimentos sociais e circulassem com autonomia na cidade, o participante do MNPR/RN
encontrava muitas barreiras para entrar na Pinacoteca. Fica claro em sua fala que frequentar
uma casa de cultura era-lhe impossível antes das oficinas. Fazer parte das oficinas era como um
passaporte para estar em um local visto como um local de “cultura”. Ou seja, seu direito de ir e
vir era-lhe violado cotidianamente. Ambas são narrativas que evocam o lugar de cada um na
cidade. A quem o espaço cultural da Pinacoteca era destinado? A quem aquela arte da
Pinacoteca e as oficinas que se davam ali eram permitidas?
Uma pessoa em situação de rua que frequentava as oficinas em um espaço público
distorcia os regimes sensíveis que eram colocados politicamente. Fazer Teatro o colocava em
outra experiência política naqueles momentos, não somente em relação à questão de ocupar um
espaço que lhe era negado, mas recortava e criava outra forma de ser visto, ouvido e sentido
naquele lugar. Ali ele não era militante somente, nem “pessoa em situação de rua”: ele estava
criando um modo de estar naquele lugar e fazendo coisas naquele espaço. Não era um ator que
iria representar papéis e encenar sua situação de rua como um militante artista, nem papéis
sobre outras narrativas de personagens. Era um novo regime de sensibilidade que nascia, nada
estava escrito a priori. E sonhar outros modos de ser e estar na cidade era possível.
Eu me lembro muito que, no início, Heitor usava aquele espaço como um descanso para
as noites mal dormida – talvez nas ruas. E, aos poucos, foi se apropriando e usando-o para jogar
sua capoeira, fazer suas trocas, incitando diálogos e construindo seu modo de estar e se vincular
com o grupo num jogo que construiu a confiança de estar ali todas as quartas-feiras fazendo o
112

que podia fazer. Às vezes dormia, às vezes jogava capoeira, muitas vezes emprestava seu
pensamento crítico na construção das cenas e criava sempre espaço estético para sua existência.
Seu viver era uma obra de arte que redesenhava os espaços que frequentava e o que fazia neles,
isso era perceptível! Nesse sentido, emprestamos novamente o pensamento de Rancière (2009)
que tece aproximações entre a política e a arte. Para o autor, a política, como forma de
experiência, rompe a lógica da polícia inventado modos de enunciação coletiva. A política, a
arte e os saberes são ficções que conformam “rearranjos materiais dos signos e das imagens,
das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (Rancière,
2009, p. 59).
Tais narrativas nos mostram que as oficinas lhes ofereceram uma chance de tomar parte
de um lugar da cidade local que não lhes é destinado a ocupar. Estar, ocupar e fazer Teatro em
um lugar de “cultura”, no centro de uma cidade, não lhes era permitido. Assim, rearranjar as
partilhas dos espaços comuns, ocupar aquele espaço destinado à cultura da cidade foi
importante para experienciar uma pequena mudança de regime estético e político, isto é,
deslocamos a maneira como o “comum se presta à participação e como uns e outros tomam
parte dessa partilha” (Rancière, 2009, p. 15). Daí a compreensão que o coletivo cenopoético
Vento dos Avoados foi uma experiência política que rearranjou, por um momento, as partilhas
sensíveis do comum, abrindo um campo de experimentação de outras sensibilidades e uma
potência de vida para aqueles que seguem no enfrentamento cotidiano na cena política da
cidade.
Ademais, os participantes não só tomaram parte do espaço comum, mas revertiam a
lógica de quem podia falar naquele comum, o que se podia falar, de que maneira, em qual
horário, quais critérios para participar? Tomar parte do comum, realizar trocas nele, permitir a
entrada e a estada sem critérios excludentes, era inverter e devolver a pergunta “quem é você”
a nós mesmos e aos agentes do Estado. É perguntarmos: o que é um espaço público e privado
ao mesmo tempo? É interpelar-nos quem éramos nós, o tempo todo, para não nos esquecermos
que perguntas deveríamos nos fazer antes de fazê-las aos outros. Era sobre produzir uma relação
ética.
Para os participantes, o fazer artístico ou aquilo que cada um reconheceu e criou como
arte tem muita relação com a chamada “liberdade”. Liberdade de estar em outro espaço, de
ocupá-lo. Liberdade mínima como olhar uma janela, liberdade de escolher onde se quer estar,
liberdade ao usar o corpo de outra maneira. Afinal, liberdade para criar um corpo naqueles
momentos, uma vida provisória. Liberdade: substantivo e qualidade que não existe, mas se
113

sente. Por causa disso, buscávamos uma ética e estética da liberdade. Podemos pensar nessa
liberdade como uma equação: liberdade para estar naquele espaço e inventar “nossa arte”
equivaleria a “clínica do fora”, o cuidado que buscávamos nas oficinas.
Nossa arte inventada tinha um efeito leve e invisível como o vento que sentíamos
daquela janela. Mudava de ritmo; por vezes parecia parar, mas não parava, embaralha-nos os
sentidos e os cabelos e depois nos abraçava, retomando o ritmo de brisa. Fazia-nos suar, pois
ele era quente. Quente como nossos abraços e úmido como nosso suor que nos molhava. Era
sonoro como nossos gritos e risos, leve e pesado como nossas danças e cenas. Ah, e finalmente:
isso era tão constante que o sinto aqui ainda durando em mim. Pois, a arte tem a função de
conservar a si mesma ao longo da história como aquilo que não acaba, sendo o acontecimento
que resiste à morte e às prisões dos aquários (que ainda existem em nós e em nossas cidades-
aquário). Assim, brindam-nos novamente Deleuze e Guattari (1997) com seu pensamento:

O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher,
e o vento agita um ramo, um grupo de homens se apressa em partir. Num romance ou
num filme, o jovem deixa de sorrir, mas começará outra vez, se voltarmos a tal página
ou a tal momento. A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva.
Conserva e se conserva em si, embora, de fato, não dure mais que seu suporte e seus
materiais, pedra, tela, cor química, etc. [...] A obra de arte é um ser de sensação, e nada
mais: ela existe em si (Deleuze & Guattari, 1997, p. 213).

A arte conserva em si suas qualidades, independe do seu criador e do público que a


experimenta, pois, segundo os filósofos: “o que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um
bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos” (Deleuze & Guattari, 1997, p.
213). Quais sensações ficaram em nós? Argumentam que tal bloco de sensações é formado
pelos perceptos – que independem de uma experiência pessoal ou psicológica – pois não são as
nossas percepções. Assim como os afectos, que não devem ser confundidos com emoções ou
afecções subjetivas, esses blocos de sensações são seres que valem por si mesmos e excedem
qualquer vivido: “existem e resistem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem,
tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto
de perceptos e de afectos” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 213).
Segundo Deleuze e Guattari (1997, p. 216), o artista cria tais blocos de sensações, que
tem a única função de se manterem em pé sozinhos, tornando-se um monumento durável:
“extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações”. Tornar sensações persistentes e em
abertura para produção de passagens ou devires de um estado não humano a outro: assim
114

“arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar
o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro é o objetivo da arte” (Deleuze
& Guattari, 1997, p. 216). A arte se conserva em uma fabulação criadora porque conserva as
sensações para que nós, através delas, entremos em devir de outros de nós, de outras paisagens,
de personas humanas e de não humanos. A sensação, segundo os autores, nada mais era do que
a vibração contraída, a contemplação tornada qualidade que se forma num plano de
composição. Ela é o monumento que transmite para o futuro as sensações persistentes que
encarnam o acontecimento.

Um monumento não comemora, não celebra algo que se passou, mas: o sofrimento
sempre renovado dos homens, seu protesto recriado, sua luta sempre retomada. Tudo
seria vão porque o sofrimento é eterno, e as revoluções não sobrevivem à sua vitória?
Mas o sucesso de uma revolução só reside nela mesma, precisamente nas vibrações, nos
enlaces, nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia, e que compõem
em si um monumento sempre em devir, como esses túmulos aos quais cada novo
viajante acrescenta uma pedra. A vitória de uma revolução é imanente, e consiste nos
novos liames que instaura entre os homens, mesmo se estes não duram mais que sua
matéria em fusão e dão lugar rapidamente à divisão, à traição (Deleuze & Guattari 1997,
p. 271).

O que o Vento dos Avoados conservou como “monumento” em devir? Quais devires
pudemos atravessar juntos? O que conservamos? O que criamos? O que vibramos e contraímos
a ponto de conservar? Para tais reflexões, revela-se interessante a próxima narrativa: um
estudante de Psicologia que nos fala de resistência e novamente de liberdade.
Bernardo nos olha e, mostrando que queria nos ver, nos diz com a sua voz forte que
estar ali, para ele, significa resistência. Sentia aquele lugar como um espaço libertário para
resistir a toda aquela prisão que existia. Dizia-nos que precisávamos daquele espaço de
liberdade para nos expressar. Colocar tudo para fora era resistir. Será que nossa criação, nosso
monumento foi a sensação da liberdade e de uma vida que resistia sendo possível por instantes?
Seria essa a nossa biopotência? A narrativa abaixo nos mostra que a criação de “uma vida” deve
fazer parte daquilo desejamos: uma revolução no que chamamos de cuidado em saúde mental.

Bernardo, estudante de Psicologia, era como um arauto cirandeiro que cantava e


dançava durante todas as oficinas. Encarava-nos, como sempre num tom de coragem e
amor, silenciava e revelava que não estava ali de paraquedas. Para ele, o Vento havia
chegado e existia uma ética que o sustentava porque acreditava que poderíamos cuidar
de outra forma. O Teatro era para ele um recurso de cuidado ético que deveria ser
investido. Aquele cuidado existia para além das instituições, pois ali nós estávamos nos
115

cuidando, e, para ele, a rua também era um espaço de cuidado. A cultura também era
um espaço que podíamos apostar como potência para transitar e para existir naquilo que
poderíamos ser: “– a gente não é só depressivo, não é só maníaco. A gente é muito mais,
não é usuário! Somos muito mais que isso”. Ele bradava. Dizia que o Teatro era uma
ferramenta que permitia a expressão e o trânsito por outros mundos e afirmava de modo
cuidadoso a vida política. Para ele, a vida se movimentava e se criava a cada instante,
pois as cenas das histórias não eram só histórias simplesmente relatadas: “– a gente
recolhe, a gente recolhe memórias e passa olhar o outro, a gente degusta o corpo de
outra maneira”.

Degustando as sensações que duraram e se conservaram em mim, finalizo este capítulo


com a sensação de que aquela experiência tocou a instauração de um outro modo de atentar
para o chamado “cuidado em saúde mental” em sua dimensão ética, estética e política. Estética
do vento, de uma vida que se lembrava do desejo de liberdade, que pedia uma política desejosa
de mar e que lutava pelo fim dos aquários.
116

7 Atenção estética

Chegávamos ao fim das oficinas. Naquele momento, resgato minha escrita que revela a
alegria de ter vivido essa experiência. Ela demonstra também as frustrações entre o que
havíamos feito, o que eu desejava e a necessidade de refletir a partir do que havíamos criado.

Rumo ao fim. Vamos viver nossas oficinas com essa tensão do tempo que passa, do fim
que se sabe, que se deseja. Que eu possa tecer as possíveis relações, consonâncias e
distâncias entre o que desejo e o que de fato acontece. Entre um trabalho de caráter
inserido na dimensão da atenção psicossocial e algo que tenho chamado de teatralidade
no bojo das autobiografias, na estática de Teatro Documentário. Como eu gostaria de
acabar com esse trabalho? Cansada? Titubeante? Reclamante? Não sinto assim... Sinto
sim necessidade de parar para repensar muitas coisas, mas sinto um movimento cada
vez maior na busca daquilo que subsidie e dê minimamente uma forma ao meu
pensamento e desejo. Quero o rito, quero essas memórias organizadas vivas desfilando,
quero a infância do grupo, quero a nossa constituição, quero Antônio Edson nos
benzendo e dando início aos nossos trabalhos, quero Dora cantando, Halisson depondo
na polícia das ruas, quero o palhaço de Weskley, quero o canto de Breno, o número de
mágica de José, a força de ser de Gabriela, a voz de Marília e tantas cenas... Quero o
ritual das nossas próprias oficinas sendo oferecido para nosso público. Quero nossa
oficina sendo feita e encenada por eles para o nosso público. Algo que tenha uma
estrutura mínima, mas que opere num nível de improviso e que chame o público a viver
e contar suas memórias também, receber massagem contorno, sentar no banco, mostrar
a vida na sua linha desforme... Vamos sonhando (Diário cartográfico).

No final daquele ano de 2016, ao pensarmos em como encerrar as oficinas, nós não
tínhamos as cenas para performatizar. Nosso processo de pesquisa havia se modificado e, nos
últimos tempos, como já contado aqui, nós nos dedicamos a estarmos juntos e usar mais a
linguagem da dança livre, dos exercícios corporais e jogos cênicos – vamos chamar aqui de
“procedimentos sensíveis”. Dessa forma, com a conclusão das atividades, decidimos juntos que
nosso encerramento seria uma oficina oferecida a público aberto, mas os facilitadores seriam
os participantes do projeto. Caberia a eles escolherem as práticas que mais gostaram,
organizarem as ações e realizar a condução. Para isso, recolhemos e escolhemos juntos os
exercícios que cada um mais gostava de praticar. Apresento-os a seguir para que tais
procedimentos subsidiem a proposição do conceito-ferramenta “atenção estética”.
1. Encontro guiado – Nesse exercício, nós nos colocávamos em duas fileiras: uma na frente da
outra. O facilitador falava baixinho no ouvido de um dos pares que aquela pessoa que estava na
sua frente era alguém que há muito tempo estava distante e que aquele era um momento de
reencontro. O outro par que estava na frente era incitado a improvisar o encontro. Quem eles
117

poderiam ser? Como encontrar alguém e como se despedir? Qual era aquele tempo? Era um
encontro alegre? Nesse caso, eram dois improvisos: quem encontrava e quem era encontrado e
vice-versa. Era bonito observar o que aquele encontro ou despedida suscita em cada um. Nunca
saberemos de quem estavam falando: para nós, o importante eram os gestos, os olhares, os
corpos que se tocavam, distanciavam e se reencontravam.
2. Massagem em roda – Nos dividíamos em pequenos grupos de três ou quatro pessoas.
Formávamos um minicírculo e pedíamos que alguém fosse ao centro de cada pequeno grupo.
Estando muito próximos uns dos outros, colocávamos todas as mãos em cima (mas, sem tocar)
da cabeça de quem estava no centro, e levemente iniciávamos as massagens com muitas mãos
juntas. Começávamos pela cabeça e massageávamos cada parte do corpo separadamente. Até
finalizarmos, com um toque (rápido feito com as pontas dos dedos) que ia da cabeça em direção
aos pés ininterruptamente. Em seguida, trocávamos quem estava no centro até que todos
pudessem receber a massagem. Nós fazíamos esse exercício em quase em todos os encontros.
Geralmente, ele era realizado no início das oficinas, ou seja, era um de nossos aquecimentos
favoritos. Surtia-nos um efeito apaziguador e uma sensação de extrema presença e conexão
grupal. Era um momento muito forte, em que permitir ser tocado por diferentes mãos
concomitantemente promovia uma espécie de confiança importante para as pesquisas que
fazíamos.

Fotografia 4. Exercício de contorno dos corpos (massagem) em duplas


118

Fonte: Arquivo de pesquisa


3. Oficina do abraço – O abraço foi um gesto que praticávamos muito até o ponto de ter se
tornado um exercício. Funcionava assim: apagávamos as luzes, colocávamos uma música
baixinha e pedíamos para que grupo caminhasse livremente pela sala. Nesse caminhar,
pedíamos que as pessoas se olhassem e, caso sentissem vontade, elas poderiam parar em frente
ao outro para pedir ou oferecer um abraço. Caso a outra pessoa topasse, o abraço acontecia.
Víamos muitos abraços: longos, apressados, leves, pesados, chorosos, alegres, medrosos, duros,
entregues. Em um segundo momento, incluímos a possibilidade de falar algo (baixinho e
livremente) no ouvido da pessoa que abraçávamos. Em seguida, nos despedíamos daquele
abraço e caminhávamos para mais abraços. A ideia era procurar o abraço, se encontrado,
oferecê-lo e recebê-lo. Eram múltiplos os modos de abraçar e de se sentir abraçado.

4. Memória do cheiro – Esse exercício fez parte da ativação e da produção de nossas memórias.
Para a memória olfativa-afetiva ser acionada, nós pedíamos que cada um trouxesse, em forma
física, um cheiro que lhe remetesse a boas memórias. Fazíamos uma roda grande, fechávamos
os olhos, e cada um ia ao centro sentir e apresentar seu cheiro, narrando oralmente aquela
memória. Depois disso, quem estava no centro passava com o objeto próximo ao nariz de cada
um na roda, para que, além de escutar a narrativa do outro, também sentisse o cheiro que ativava
aquela memória.
5. Memória da infância – Pedíamos que cada um pensasse e escrevesse uma lembrança de
infância boa. Depois disso, colocávamos um banco no centro da sala e, em duplas, enquanto
um narrava a história, o outro traduzia em gestos o que estava sendo contado. E vice-versa.
Eram momentos muito ricos que produziam uma intimidade, uma alegria e uma aproximação
com aquilo de mais cotidiano que existiu nas nossas vidas. As histórias mais comuns e mais
incríveis vinham à tona: a primeira aula de natação, a aula de dança, o banhar dos pés da vó, o
esconde-esconde numa árvore, o tombo do pé de umbuzeiro... Ah... Como existiam
acontecimentos tão minúsculos e tão gigantes em nossas vidas.
6. Um minuto de silêncio – Esse exercício foi usado em nossa roda de conversa cênica.
Funcionou como um dispositivo que operou um acontecimento/ruptura no tempo e que colocou
os corpos expostos e, ao mesmo tempo, protegidos perante o olhar do outro. Dividíamos o
espaço entre palco e plateia e pedíamos que cada um fosse ao palco se apresentar, mas somente
depois de um minuto cronometrado. Os efeitos da pausa eram muitos interessantes: alguns se
sentiam muito desconfortáveis, outros riam, outros se inquietavam, mas aquele silêncio
119

permitia a sustentação de um olhar e presença perante a plateia. Daquele encontro emanava a


sensação de um corpo/olhar/silêncio exposto à presença, acolhido e protegido pelo grupo.
7. Memória do pai – Colocávamos um banco no meio da sala enquanto dançávamos livremente
ao redor dele, utilizando gestos não habituais ao nosso corpo (pedíamos para fazer um corpo o
mais diferente do possível) e usando os diferentes planos do espaço (baixo, médio e alto).
Quando alguém queria, sentava-se no banco e falava sobre a figura do “pai”, criando narrativas
a partir dessa palavra e daquele corpo recém-criado. Quem estava em volta continuava na
experimentação de outro corpo (o mais diferente possível do nosso). Daí apareciam dragões,
seres mitológicos, pássaros e muitas personas que aquelas narrativas sobre pais nos permitiam
criar. Em seguida, escrevíamos juntos sobre essas histórias.
8. Linha da vida – Colocávamos uma corda estirada no chão e pedíamos que a pessoa fizesse
uma partitura gestual pelos diferentes tempos de sua vida. Não pedíamos cronologia na hora de
contar as histórias, mas dividíamos a corda em tempos diferentes. Imaginávamos passado
presente e futuro e pedíamos que a pessoas passeasse pelos tempos de maneira livre. Queríamos
o gesto e as narrativas que surgiam desse passeio. Esse exercício era difícil de se realizar, muitas
vezes o passeio pela corda do tempo da vida era solapado por questões tristes, e os gestos e as
histórias acabavam se tornando repetitivos. A saída era quebrar a cronologia passado, presente
e futuro, mas, muitas vezes, acabávamos presos nas partituras gestuais e narrativas do passado
dolorido daquelas pessoas. Hoje, eu pensaria outra forma de brincar com a linha da vida. Acho
que iria pedir para inventarmos uma vida.
9. Narrativa do objeto – Dividíamos o grupo em pequenos grupos de três pessoas. Em seguida,
pedíamos que cada um escolhesse um objeto pessoal (qualquer um) para contar (inventar) uma
história sobre ele. Depois, cada grupo fazia uma cena que reunia as três narrativas do objeto.
10. Memória do grupo máquina – Esse exercício foi inspirado na máquina de Augusto Boal.
Cada um grupo fazia um gesto repetitivo e o congelava. O restante do grupo complementava o
gesto até formarem uma escultura de máquina (com os gestos em movimento) que funcionava
conjuntamente.
11. Terapia o riso – Treinávamos juntos um riso mecânico sem motivo, até que o riso achasse
graça de si mesmo e se tornasse orgânico.
12. Memória da benção – Esse exercício foi criado a partir dos gestos de um participante que,
em todas as oficinas, nos benzia com um ritual próprio. Esses gestos foram ficando como uma
partitura gestual memorizada por todos do grupo. O grupo já reconhecia a necessidade daquela
benção antes de começarmos a trabalhar.
120

13. Memória do rosto – Formávamos uma fileira de duplas que ficavam frente a frente e todos
fechavam os olhos. Uma pessoa da dupla passava com as mãos no rosto do outro em sua frente,
sentia os detalhes do rosto pelo tato. Depois, as duplas se desfaziam e caminhavam pela sala
em busca do reconhecimento do rosto que havia tocado. Era tão bonito ver os encontros, mesmo
quando o rosto procurado não era encontrado.
14. Memória da foto (história de amor) – Pedíamos para cada um levar uma foto que lembrasse
um amor (podia ser de qualquer amor). Fazíamos uma roda e o perguntávamos baixinho no
ouvido de cada um coisas aleatórias sobre a foto: onde estava, o que fazia naquele momento,
de quem aquela pessoa gostava, que roupa vestia, entre outras. A ideia era criar uma narrativa
sobre aquela foto naquele momento. Depois, trocávamos as fotos com as pessoas e cada um
criava uma narrativa com a foto do outro.

Fotografia 5. Semana da Luta Antimanicomial na Pinacoteca


Fonte: Arquivo de pesquisa
Assim, encerramos as oficinas com algumas dessas práticas que foram oferecidas pelo
grupo ao público, depois das experiências que se compuseram a partir dos relatos de si e das
autoficções performatizadas sobre as alegrias que tínhamos esquecido. Chegávamos ao fim,
após o caos e a dança em sua potência de recortá-lo.
E aqui continuamos para a improvisação do conceito-ferramenta “atenção estética”, que
tem como plano de composição os conceitos de atenção e de estética. Por hora, vamos pensar
121

esses conceitos separadamente para, em seguida, improvisar sua composição e experienciar em


pensamento sua criação. Por que pensar e experimentar sobre o conceito-ferramenta atenção
estética? Mas, o que geralmente se entende por atenção?
Remeto-me ao dicionário e, em um plano de significação, a atenção é um substantivo
feminino que pode ganhar os seguintes sentidos:

1. Concentração mental sobre algo específico: via a obra com atenção; tinha atenção ao
assunto; estudava com atenção. Expressão de cuidado; dedicação: o pai tratava-a com
atenção. Tendência natural para ouvir alguém: tinha a atenção do chefe. Interjeição 2.
Advertência ou recomendação: atenção! Faixa de pedestres. 3. Palavra usada para fazer
com que alguém se volte para quem fala. 4. [Militar] Voz de comando que alerta o
soldado para a ordem a ser cumprida: atenção! Sentido! Substantivo feminino plural:
Atenções: Expressão de delicadeza, de zelo: queria as atenções dos pais (DICIO,
2019)18.

Talvez esse último significado seja uma pista para nós: atenção pode ser uma expressão
de delicadeza. Longe de estarmos preocupados com a atenção como uma função cognitiva,
nossa intenção é desdobrar essa palavra, reconfigurar estética e politicamente seus sentidos.
Sabemos que a palavra “atenção”, no contexto da saúde mental e saúde coletiva, é entendida
como cuidado. Atenção psicossocial seria sinônimo de um cuidado psicossocial que preconiza
o cuidado à saúde em território inserido na gama de serviços que compõem a Rede de Atenção
Psicossocial. Mas, ainda não é dessa atenção de que falamos. A atenção estética seria um modo
anterior à ação de cuidado, seria uma condição ética que envolve certa delicadeza que teríamos
que criar em nossos corpos como condição prévia para cuidado. Seria como criar um Corpo
sem Órgãos (como explicitado anteriormente) que permitisse encontrar os processos e os
movimentos das delicadezas quando cada gesto está por se fazer. A atenção estética também
requer pausas e movimentos de desvio sobre o que percebemos.
Virgínia Kastrup (2019), uma das pensadoras sobre as políticas da cognição na
contemporaneidade, dispensa à atenção um interesse que nos ajuda a chegar perto da
formulação do nosso conceito-ferramenta “atenção estética”. Ela se interroga sobre a
possibilidade da aprendizagem da atenção no contexto de ensino da pesquisa cartográfica para
a criação de uma “política cognitiva da invenção”. Busca, assim, desviar a palavra “atenção”
da função exclusivamente cognitiva requerida nos processos de aprendizagem formais. Dessa
forma, a autora reflete sobre a aprendizagem da atenção em uma dimensão da cognição

18
Disponível em: https://www.dicio.com.br/atencao/2021.
122

inventiva, usando o conceito da prática do devir-consciente. Como exemplos desse devir,


seguem “às práticas budistas (Shamata), à sessão de Psicanálise, à oração do coração, à
entrevista de explicitação, à visão estereoscópica, à sessão de escrita e, inclusive, ao estudo”
(Kastrup, 2013 p. 194). Segundo a autora, é necessária certa atitude de aprendizagem para que
essas práticas levem ao devir-consciente:

[...] é necessária uma aprendizagem da atenção, que descrevem a partir de três gestos.
Esses se desenvolvem como num círculo que continuamente se entrelaça e se reativa.
Apesar da circularidade, para fins explicativos, propomos uma ordem. O primeiro gesto
envolve a suspensão da atenção que deve ser sustentada ao longo da prática e que
implica uma ruptura em relação à atitude natural. O segundo diz respeito a uma
redireção da atenção do exterior para o interior, realizada sob suspensão e, por fim, o
deixar vir (letting go) ou acolhimento, que pressupõe uma atenção concentrada, porém
sem foco (Kastrup, 2013, p. 194).

Para a autora, o ato de devir consciente se aprende através de práticas cotidianas citadas
acima, os quais produziriam certos efeitos da aprendizagem da atenção e isso a ajuda a refletir
sobre uma política cognitiva criadora.
A atenção pode ser também compreendida como um gesto atencional, ocorrendo uma
suspensão de nosso julgamento comum e uma intencionalidade no sentido fenomenológico para
que ela aconteça. O gesto atencional, geralmente pré-condição para a postura cartográfica, é
descentrado, aberto e interrogativo. Rastreia o campo de pesquisa sem alvo pré-definido, como
a atenção flutuante de Freud, que flutua sem ponto de ancoragem. Tal gesto se abre e deixa que
as forças da matéria cheguem. Tal gesto é, nesse sentido, uma atividade reflexiva: “não no
sentido de reflexão intelectual, mas de espaço e tempo de reverberação e ressonâncias que
denominam de plano coletivo de forças moventes” (Kastrup, 2019, p. 105). Por isso, seria
preciso estar atento às forças moventes que nos chegavam por meio da matéria.
Quais forças da matéria estavam em jogo na experiência que nos passou? As forças da
matéria que ainda não existiam, que estavam no vão entre aquilo que se mostrava à atenção e
aquilo que ainda estava por vir. Nosso gesto de atenção pausava antes de chegar ao manicômio
em nós e no outro, pausava e desviava para atentar para outras forças que reverberavam e
ressoavam a partir do que nos chegava das forças ainda invisíveis.
Nesse sentido, ao longo das oficinas e mesmo antes delas, eu observava que era preciso
fugir de certos olhares, certas narrativas, certos modos de estar com os participantes. Era
necessário desviar de certas perguntas. Entretanto, não se trata de fugir: era urgente atentar para
outro regime estético. Era preciso mudar a política de atenção. Era preciso um desvio naquilo
123

que se dava a ver, perceber e sentir. Desviávamos das narrativas da doença, das medicações,
das internações e das violências narradas, da loucura como erro e não como dimensão humana
trágica. Não se tratava de negar aquelas histórias, mas sim desviar para que outros fluxos de
memórias surgissem.
Todavia, antes de desviar, era preciso parar e atentar para o manicômio em mim e a
atenção que eu dava para a minha necessidade de escutá-lo e percebê-lo antes de tudo. Porque,
mesmo carregando um discurso antimanicomial, minha atenção se voltava a essa instituição
nas pequenas coisas. Eu via o manicômio nos corpos, nas narrativas, nos olhares. Queria saber
sobre ele, queria me libertar dele. Mas, ao querer me libertar, eu me prendia a ele, atentava mais
a ele e a seus efeitos do que àquelas pessoas em minha frente. Sedutora é a morte; imperceptível,
às vezes, é a vida e suas delicadezas. Isso não se passava necessariamente por pensar na
necessidade de atentar para a beleza ou só pensar em coisas bonitas, boas ou vitais. Eu gostaria
de inventar um regime estético-político de atenção que, além de colocar o manicômio entre
parênteses, buscava uma atenção criadora, um gesto que poderia ser criado. Essa atenção que
flutuava e desviava partia em busca do gesto que propositadamente seria visto como inédito no
desejo de instaurar outros de nós. O Teatro foi o território para isso: uma atenção que se
desfocava das narrativas dos corpos e do manicômio presente nas pessoas que buscavam os
serviços de saúde mental, que desfocava e se cegava para atentar a um campo do gesto pequeno,
do olhar que vê e encontra o que não se tinha visto, do olhar que busca propositadamente atentar
para o que pode haver de “estético” em cada um. O que seria o estético?
Lembro-me que um dia, há bastante tempo, chegou-me às mãos um livro chamado A
face estética do Self, de Gilberto Safra (2005). Como um verdadeiro dispositivo, fez-me
agenciar um primeiro contato com a palavra “estética”. Tal palavra estava ligada a uma maneira
de cuidado no contexto da clínica psicanalítica winnicotiana. No livro, o autor ressaltava a
importância da “dimensão estética” no manejo clínico com pacientes em sofrimento psíquico
grave ou, como o autor se referia, pessoas que ainda estavam por se constituir subjetivamente.
O autor trazia a conceitualização da palavra “estética”: “o termo estética foi utilizado pela
primeira vez por Baumengarten (1714-1762). Tradicionalmente é um nome usado para referir-
se a arte e ao belo. No entanto, a palavra estética designa a ciência do sentido, da sensação.
Deriva do grego aisthanesthai que significa “perceber” (Safra, 2005 p. 20).
A disciplina estética, formulada no século XIII, “baseava-se na ideia de que a beleza e
seu reflexo nas artes representavam um tipo de conhecimento sensível, confuso e inferior ao
racional, claro e distinto ao conhecimento voltado para a verdade” (Frayse-Pereira, 2006, p.
124

31). No entanto, a dimensão estética para Safra é constitutiva do self, que poderia ser
compreendida pela a capacidade do ser humano de criar uma realidade nem subjetiva nem
objetiva, mas sim, um espaço de criação intermediário no qual ele se sinta capaz de se iludir
que é criador da realidade partilhada. Essa capacidade, muitas vezes, é interrompida pela
ausência ou pelo déficit de contato em momentos primórdios com o outro (na teoria
winnicottiana, esse outro seria o corpo materno ou seu equivalente). Assim, para o autor, os
objetos sensoriais e as experiências estéticas estabelecem uma zona intermediária de
experiência que possibilita uma verdadeira comunicação (não discursiva). Esta é primordial na
busca da criação de si e do mundo, que é, de certa forma, uma necessidade inerente a todos nós.
Essa leitura foi-me importante durante muito tempo e ainda me faz certo sentido, pois acredito
que a ideia de criar a realidade por meio da ilusão criadora e da experiência da criação continua
sendo base de composição para a ampliação do pensamento que esta Tese quer criar. Pensando
no conceito de estética, vamos também apreendê-lo como uma possibilidade de experiência, ou
seja, aquilo que nos passa, que nos transforma, uma passagem a um acontecimento exterior a
nós, que se passa num campo de subjetivação e nos transforma pela via do sensível, da
aisthanesthai.
Portanto, numa dimensão pré-discursiva, assignificante e singular, encontramos um
sentido para a “experiência estética” que acontece nos territórios de passagem de uma superfície
sensível aos múltiplos modos de tornar o que ainda é virtual para a realização do atual. Seria
nesse espaço que reside a nossa capacidade criadora, nossa capacidade de criação de mundo,
num movimento incessante de nos deixar atravessar, romper, criar e restaurar novos e antigos
territórios existenciais. Roubamos aqui a estética do campo das artes: todos podemos e devemos
ter essa dimensão preservada, cuidada com atenção. Isso significa cuidar daquilo que nos chega
pelo aparato sensível, daquilo que nos faz experiência e daquilo que nos produz como pessoas.
Principalmente, cabe pensar o que maquinamos, enunciamos e como agenciamos nessa
dimensão estética. O que nos acontece afetivamente (o que contraímos de nossas vibrações)
para atentar o que, no campo das nossas superfícies sensíveis, possibilita outras possibilidades
de existir.
Rancière (2010) novamente nos traz uma enorme contribuição para o campo da
compreensão do conceito da estética e sua relação com o campo da arte e da política. Sabemos
que o autor compreende a arte em sua dimensão política e, para fins didáticos, divide-a, numa
perspectiva histórica por três regimes (ou eficácias pedagógicas): o regime representativo, o
regime estético presente na arte contemporânea e a eficácia ética.
125

A tradição mimética ou o regime representativo das artes foi dominante por mais de um
século e, como exemplo desse regime, o autor apresenta o Teatro clássico cuja eficácia se
verificava como sendo “um espelho em que os espectadores eram convidados a ver, nas formas
da ficção, os comportamentos, as virtudes e os vícios humanos” (Rancière, 2010 p. 53). Sobre
essa dimensão, ele diz ainda:

O Teatro propunha lógicas de situações que deveriam ser reconhecidas para a orientação
no mundo e modelos de pensamento e ação por imitar ou evitar. Reconhecer esses signos
é empenhar-se em certa leitura de nosso mundo. E essa leitura engendra um sentimento
de proximidade ou de distância que nos impele a intervir na situação assim significada,
da maneira desejada pelo autor (Rancière, 2010 p. 53).

No regime representativo, existia a pressuposição de uma equivalência sensível entre as


produções artísticas e a percepção de uma situação que produzia pensamentos, sentimentos e
ações por parte de quem assistia ou experienciava as produções artísticas da época. Presente
em outro momento histórico, o autor apresenta o modelo ético de eficácia da arte que se opõe
às lições de moral da representação, com produções artísticas sem representação, não havendo
separação da cena da performance artística em relação à vida coletiva. Nessa política da arte,
acontece a substituição da representação que tentava corrigir os costumes e os pensamentos por
um modelo “arquiético”, que acionava ações éticas reparadoras do público (Rancière, 2010).

Este modelo não deixou de acompanhar o que chamamos de modernidade no primeiro


quartil do século XX e teve como pensamento de uma arte que se tornou forma de vida.
Ao público dos teatros ela opõe o povo em ato, a festa cívica em que a cidade se
apresenta a si mesma, como faziam os efebos espartanos celebrados por Plutarco.
Rousseau retomava assim a polêmica inaugural de Platão, opondo à mentira da mimese
teatral a boa mimese: a coreografia da cidade em ato, movida por seu princípio espiritual
interno, cantando e dançando sua própria unidade (Rancière, 2010, p. 55).

Segundo o autor, outro paradigma seria o regime estético das artes que observamos na
contemporaneidade. Este revelou a interrupção de qualquer relação direta entre a produção das
formas da arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado. Chamada
de “ruptura estética, esse regime instaurou uma desconexão, uma ruptura da relação entre as
produções artísticas e dos fins sociais definidos, entre formas sensíveis, significações que
podem nelas ser lidas e efeitos que elas podem produzir opondo-se à adaptação mimética ou
ética das produções artísticas com fins sociais” (Rancière, 2010, p. 59). A eficácia estética leva
à produção de um dissenso que pode ser entendido como um conflito de vários regimes de
126

sensorialidade e, assim, faz a ligação entre a ruptura estética e a política, pois política para ele
é dissenso:

Deste modo, as produções artísticas no regime estético perdem funcionalidade, saem da


rede de conexões que lhes dava uma destinação antevendo seus efeitos; são propostas
num espaço-tempo neutralizado, oferecidas igualmente a um olhar que está separado de
qualquer prolongamento sensório-motor definido. O resultado não é a incorporação de
um saber, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das
competências – e incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no
espaço invisível do trabalho, que não deixa tempo para fazer outra coisa, tomam o tempo
que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que
não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas
como ruído dos corpos. Se a experiência estética toca a política, é porque também se
define como experiência de dissenso (Rancière, 2010, p. 60).

Para ilustrar tal regime, o autor traz o conceito de revolução estética presente em seu
livro O inconsciente estético (2009). Nele, Rancière considera que o inconsciente da Psicanálise
freudiana é um inconsciente estético, pois Freud, em sua época, para criar a teoria
psicoanalítica, lança mão de grandes nomes de figuras literárias e artísticas para se contrapor à
autoridade da ciência médica. Ou melhor, são os artistas e suas obras que constroem o
pensamento sobre o inconsciente psicanalítico. Segundo ele, naquela nova medicina (a
Psicanálise) e em suas respectivas formas de cura, o espaço vazio entre a “ciência” e o
conhecimento popular é ocupado pelas coisas da arte como modos específicos da união entre o
pensamento que “pensa e o pensamento que não pensa”. O autor apresenta o conceito de
revolução estética que se dá a partir da mudança do regime mimético, em que as formas ou
expressões artísticas encontram equivalências com realidade (lógica da representação). É no
regime estético em que a arte a expõe, com toda liberdade, a presença de contraditórios, a
coexistência de pathos e logos. “A revolução estética é testemunha da existência da relação do
pensamento com o não pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível,
do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante” (Rancière, 2009, p.
76).
Para Rancière (2009, p. 58), existem dois tempos ou dois modelos do inconsciente
estético em Freud: o modelo de rastro, no qual as obras podem ser lidas pela interpretação dos
seus rastros ou sinais; e o modelo de inconsciente que: “no detalhe do insignificante da obra
não busca um sinal ou rastro que reconstruiria um processo, mas encontra a marca direta de
uma verdade inarticulável que se imprime na superfície e desarma toda lógica da história de
127

composição racional dos elementos”. Sobre essa diferença, ele comenta a presença desses
tempos do inconsciente estético na teoria e prática da Psicanálise contemporânea:

Atualmente, ao abordar a literatura e a arte, parte dos analistas continua buscando


sentidos reprimidos e inaparentes, seguindo a lógica própria do desejo, tal como
ilustrada na interpretação dos sonhos, sintomas, etc. Outra parte se aproxima mais da
dimensão radical do inconsciente estético, “afirmando ao mesmo tempo a autonomia
antirrepresentativa da arte e sua natureza profundamente heteronômica, seu valor de
testemunho da ação das forças que ultrapassam o sujeito e o arrancam de si mesmo”
(Rancière, 2009, p. 77).

Em nossa experiência, nós buscávamos justamente essa ruptura estética. Tentávamos


desconstruir a equivalência entre o que geralmente é percebido e o que se espera ver a respeito
dos usuários de serviços de saúde mental, bem como o que as performances mostraram para o
público. Arrancávamo-nos de nós mesmos. Despossessão. Houve uma disjunção naquilo que
se ouvia como ruídos nas experiências de sofrimento psíquico e o que se dava a ver, escutar e
sentir daqueles corpos ocupando um lugar de cultura, encenando suas memórias
autoficcionadas. Nas cenas, não havia um direcionamento que pretendia uma aprendizagem ou
uma sensibilização sobre a “loucura” ou o sofrimento psíquico, tampouco havia pretensão de
uma lógica de continuidade sobre o que as cenas apresentavam ao público e o que ele receberia
sensorialmente. Essa não era uma preocupação. Nem pretendíamos sensibilizar e provocar
ações “éticas” por parte do público – muito embora zelássemos por ela o tempo todo. Tratava-
se de ocupar um território existencial que não lhes era autorizado, ao falar sobre os sonhos, as
lembranças, sonhar ativamente, poder exercer a maternidade numa ficção em vida, dançar,
jogar capoeira. Perguntando-nos “quem era louco ali?”, com todas essas criações que os
colocavam em outra posição perante o público e a própria história. A ruptura estética se dava
quando desejávamos arrancar a eternidade daqueles corpos presos no presente manicomial dos
aquários, na tentativa de atualizar ou ficcionar o esquecido (ou aquilo que poderia nos tornar
comuns – as memórias alegres) que o manicômio, as ruas e as violências sofridas tinham lhes
subtraído. Isso mostrava-se quando nós subtraíamos o manicômio de nossos corpos todos ali
presentes, autorizando-nos a viver a experiência do comum, do prosaico e do alegre, mesmo
que por instantes ficcionados.
Esse processo dava-se também por meio de uma cena, de uma dança “inútil”, de estar
junto, das rezas coletivas, das massagem de muitas mãos, dos toques nos rostos, ao fechar os
olhos, dos jogos de abraços, de falar baixinho nos ouvidos, escutar o mesmo som baixinho, dos
128

cheiros de coisa boa, de uma foto de algum amor, um amor utópico, ao tentar cantar
desafinando, fazer um minuto de silêncio, tocar uma flauta, das nossas pausas propositais, das
respirações, dos gritos gritados juntos, dos muitos pulos, do nosso suor que exalava a medicação
que a expurgava de nossas peles, ao escutarmos os barulhos que aquele piso antigo de madeira
fazia. Nossos desvios das histórias manicomiais, nossas fugas, nossos caminhos pela praça,
nossas andanças pela Ribeira (bairro que beira o Rio Potengi, onde fica o cais de Natal), nossos
sonhos. Todas essas experiências estéticas nos proporcionaram certas rupturas, recortes e
redistribuição dos nossos corpos e dos espaços, tanto subjetivamente como politicamente,
arrancando-nos de nós mesmos. Logo, eram experiências políticas, pois rearranjavam o nosso
aparato sensível e as consequentes novas racionalidades, as novas formas de pensar.
Conta Rancière que, durante a Revolução Francesa de 1848, um jornal revolucionário
operário, chamado Le Tocsin des travailleurs, publicou um texto aparentemente “apolítico” que
falava sobre a jornada de trabalho de um operário marceneiro enquanto colocava o piso (taco)
em um aposento de seu patrão:

Acreditando-se em casa, enquanto não termina o aposento que está taqueando,


ele gosta de sua disposição; se a janela se abre para um jardim ou domina um
horizonte pitoresco, por um instante seus braços param e em pensamento ele
plana para a espaçosa perspectiva, a fim fruí-la melhor que os donos das
habitações vizinhas. Esse olhar que se separa dos braços e fende o espaço da
atividade submissa destes para nela inserir o espaço de uma inatividade livre
define bem um dissenso, o choque de dois regimes de sensorialidade. Esse
choque marca uma subversão da economia “policial” das competências.
Apoderar-se da perspectiva é já definir sua presença num espaço que não é o do
“trabalho que não espera”. É romper a divisão entre os que estão submetidos à
necessidade do trabalho dos braços e os que dispõem da liberdade do olhar. É,
por fim, apropriar-se desse olhar perspectivo tradicionalmente associado ao
poder daqueles para os quais convergem as linhas dos jardins à francesa e as do
edifício social (Rancière, 2010, p. 61).

Rancière (2010) nos explica que a criação de uma voz política dos operários tinha
relação com a ruptura estética e a dissociação sensorial das maneiras operárias de ser. Muito
mais do que ter conhecimento sobre a situação de opressão, era preciso subverter a disposição
dos corpos que eram inapropriadas naquela situação. Arte e política são formas de dissenso que
realizam operações de reconfiguração da experiência comum do sensível, são ficções: “pois,
para os dominados a questão nunca foi tomar consciência dos mecanismos de dominação, mas
criar um corpo votado a outra coisa, que não a dominação” (Rancière, 2010, p. 61). Assim, o
autor localiza o que há de estética na política, entendendo que os atos de subjetivação política
129

interferem e redefinem o que é visível, o que se pode dizer dele e quem pode fazê-lo. E há uma
política da estética em que outras “formas de circulação da palavra, de exposição do visível e
de produção dos afetos determinam capacidades novas, em ruptura com a antiga configuração
do possível” (Rancière, 2010, p. 63).
Nessa perspectiva, acreditamos que politicamente construímos uma experiência de
cuidado em saúde mental que questionava os modos hegemônicos de cuidar, repensava as
competências de quem podia cuidar, onde se cuidava, o que se interpelava às pessoas – quando
geralmente a pergunta que mais recebem é sobre o seu adoecimento, seus sintomas e seus
problemas. Nossa atenção era estética e não se passava em um serviço de saúde mental (muito
embora se relacionasse com eles), não se ocupava exclusivamente do sofrimento mental, nem
das histórias de sofrimento, não trabalhava exclusivamente com as palavras, as representações
e as identidades, e nem estas se prestavam unicamente a nos colocar a escutar o sofrimento. A
experiência do coletivo cenopoético Vento dos Avoados era estética e política porque operava
um dissenso: a possibilidade daquelas pessoas estarem em um lugar definido para “ações de
cultura” enquanto olhavam pelas janelas, fumavam seu cigarro e se lembravam de situações
cotidianas que tinham vivido antes da ruptura que vivenciaram. Naqueles momentos, como
analisa Rancière (2010), se mostrava o choque de dois regimes de sensibilidade: olhar pela
janela em uma cidade e rememorar um cotidiano vivido rompiam com o olhar e as memórias
repetidas que vinham das paredes e grades do manicômio. Era estético e político uma vez que
aqueles relatos de si, autoficcionados, testemunhavam um vão, uma janela em nossa atenção,
uma pequena brecha numa redistribuição de onde se podia estar, do que se podia lembrar e
falar, mostrar, afetar e ser afetado. Era atentar para aqueles corpos que recortavam e
redistribuíram o espaço e os regimes de sensibilidade ao ensinarem outros modos de ver e dizer,
outros exercícios ao público, oferecendo-os como cuidado estético em um espaço não ocupado
por esse público socialmente marginalizado e excluído dos espaços da vida social e da
“cultura”. Essa foi nossa ruptura e revolução molecular estética: descobrir que a atenção estética
deve acontecer como condição prévia ao cuidado, antes e combativamente de qualquer cultura
de cuidado ser instituída. Seria como operar separações, recortes e subtrações em nossa atenção
para que o espaço estético e a criação aconteçam e sustentem seu potencial
desinstitucionalizante.
Assim, definimos a atenção estética como um conceito-ferramenta que tem como
condição operar uma posição ética em estado processual que procura romper com os regimes
de sensibilidade hegemônicos. Busca, nessa ruptura, os gestos e as sensibilidades que ainda não
130

se fizeram, mas que necessitam dessa atenção para emergir. É um recurso que pode ser utilizado
em diferentes espaços de produção de saúde, mas não deve ser compreendido como um
instrumento protocolar ou técnica artística, pois trata-se de um estado aberto e processual que
se ocupa da produção de cuidado e de vida. Diz respeito à nossa postura ética, estética e política
ao nos atentarmos para a criação de espaços estéticos singulares e coletivos na existência das
pessoas que acompanhamos, nos diversos contextos em que prática clínica e as intervenções
psicossociais se fazem necessárias.
Nesse sentido, foi-nos preciso aprender a atentar para aquelas delicadezas que se faziam
viver naqueles momentos. Aprender uma cegueira necessária e um fazer funcionar outros olhos
que nasciam na busca por atentar para o que poderia haver de “estético” em cada um que fizera
parte daquela experiência coletiva.
131

8 Considerações finais: ainda venta

Maio de 2021, mais precisamente 18 de maio. Dia da Luta Antimanicomial. Finalizo


esta escrita, começada há quatro anos e meio. Tanto se passou e ainda venta. Atualmente,
vivemos em um regime de sensibilidade totalmente diferente do que vivíamos há um ano e
meio. Vivemos em meio a uma pandemia do Coronavírus, em meio a uma crise ética, estética
e política que se instaurou no governo brasileiro. Nesses três anos de gestão, o atual governo
tem operado a destruição das políticas públicas e, consequentemente, o desmonte da Rede de
Atenção Psicossocial, conquistada no processo da Reforma Psiquiátrica brasileira. Vivemos em
um regime de empobrecimento sensorial, usamos máscaras, nos vemos e nos relacionamos por
telas, usamos a visão que teve que ser hiper investida e nela conquistamos arduamente algum
tipo de presença que nos ajuda a seguir caminhando sem pés, mas caminhando. Sim, nossos
corpos se modificaram. Mutação necessária à sobrevida.
Termino esta escrita sem olfato, sem paladar e com receio imenso de perder a vida, pois
muitas se foram. Incontáveis as perdas, inimagináveis as dores, luto impossível. A todo tempo,
desde que o atual governo se instituiu em nossa República, circulam-nos e nos subjetivam
palavras como necropolítica, estado suicidário, fascismo e cerceamento da liberdade de
expressão. Assim, nossas vidas se tornaram um campo de batalha com um claro objetivo: a
defesa e a reconquista em sua máxima potência do cuidado com a Terra, dos direitos de todos,
das raças, dos povos, das crianças, das mulheres, dos LGBTQIA+... A reconquista de tudo
aquilo que a lógica capitalística tenta nos furtar.
Interessante pensar que, apesar e no pesar de todos os acontecimentos e discursos
operantes, a escrita desta Tese me obrigou a desejar e a reafirmar a necessidade de estar em
grupo inventando linguagens e encontros. Re-sonhar a vida com seu corpo todo, em sua
dimensão estética e política me faz desejar experimentar novamente os cruzamentos entre a arte
e a vida, passar as fronteiras da clínica do fora (sair do fora para fora, e poder voltar, sempre de
maneira diversa) e descobrir novamente a dimensão estética das experiências que ainda busco
viver.
Esta escrita caminha comigo há muitos anos e este doutoramento me deu a oportunidade
de narrar uma integração importante em minha trajetória. As duas pontas da minha existência
que eram muito distantes. Essa distância pôde ser reduzida pela escrita e assim transformada,
costurando uma junção importante. A Psicologia e o Teatro. As forças de Apolo e de Dionísio,
o cuidado e a dimensão estética, a clínica e a política, a teoria e a ação. Ao longo desta escrita,
132

essas forças foram se agrupando, se hibridizando e puderam ganhar uma outra dimensão.
Inventar o conceito atenção estética é esse ensaio de junção, juntar os tempos do Vento, juntar
o Vento e os Avoados, a realidade e a ficção, o possuir e o despossuir as narrativas, o cuidado
e a atenção estética.
Ao término desta Tese, acredito muito que posso afirmar o campo da saúde mental e
sua interface com a dimensão estética não somente como uma experiência possível e
importante, mas sim como promotora de saúde, como uma “tecnologia leve” (Merhy, 1997)
que pode ser amplificada. A atenção estética habita um corpo prévio ao cuidado, que todos
podem experimentar. Seria um estado que busca atentar para nossa possibilidade de suspender
o olhar habitual e buscar frestas, como um desencontro com os corpos e as histórias que nos
seduzem pelas narrativas manicomiais. É rompê-las para reconfigurar nossa política sensorial,
reorientando-as para as brechas alegres.
Foi uma experiência possível e é um exemplo do conceito-ferramenta atenção estética.
E, para além, essa maneira de atentar pode estar presente mesmo quando não trabalhamos com
linguagens artísticas, pois a dimensão estética é um modo de estar, recortar e rearranjar nosso
regime sensorial em relação a nós mesmos e ao outro – outro coletivo, outro grupo, outro social.
Atenção às rupturas e às reconfigurações que podemos realizar, atenção ao inédito que pode se
instaurar depois dos desvios de rota usuais necessários.
Busquei um intercessor para me ajudar nesse momento de tentativa de conclusão sempre
inconclusa e encontrei um profeta que apaziguou os meus sentidos que andam tão calejados
depois de um ano e alguns meses de pandemia e caos estético e político que vivemos. É em
companhia de Felix Guattari (2001), em sua obra profética As três ecologias, que ventamos em
sentido a concluir esta narrativa. Em sua obra oráculo, ele se perguntava como seriam as
maneiras de se viver neste planeta com a aceleração das mutações técnico-científicas e do
crescimento demográfico, e uma quantidade cada vez maior de tempo da atividade humana sem
trabalho dada a reconfiguração dos modos de trabalho dentro capitalismo mundial integrado.
Para tal indagação, ele nos apresenta o conceito ético-estético “ecosofia”, que se compõe a
partir da noção das três ecologias (mental, social e da natureza) na perspectiva de uma disciplina
ética e estética.
Segundo Guattari (2001), as relações da humanidade com o corpo social, com a psique
e com a natureza sofreriam necessariamente recomposições de suas práticas sociais e
individuais. Otimistamente, ele prevê que essas mudanças tornariam as pessoas cada vez mais
133

solidárias e diferentes num processo contínuo de heterogênese – em outras palavras, de


singularização. Torcemos muito por isso!
Pensando sobre a ecosofia mental, ele nos convoca a reinventar nossa relação com o
nosso corpo, com o tempo que passa, com os mistérios da vida e da morte: a ecosofia mental
irá buscar antídotos para a uniformização midiática e telemática, o conformismo das modas, as
manipulações da opinião pela publicidade, pelas sondagens etc. Sua maneira de operar
aproximar-se-á mais daquela do artista do que da dos profissionais “psi, sempre assombrados
por um ideal caduco de cientificidade. Reitera que seriam intimados a se desfazer de seus
aventais brancos que carregam em sua cabeça, em sua linguagem repetitiva e mortal, para
convergir com a perspectiva estética com o mundo da arte” (Guattari, 2001, p. 16). Convoca-
nos a criar, em bases ecosóficas, novas práticas sociais, estéticas, “novas práticas de si na
relação com o outro estranho estrangeiro” (Guattari, 2001, p. 16). Para promover o solo dessas
novas práticas, ele nos pede um outro modo de engajamento: “a articulação da subjetividade
em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio ambiente no ponto em que pode ser
reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época” (Guattari, 2001, p.
54).
Oráculos à parte, esse livro me chegou intuitivamente para pausar esta escrita. Em meio
à maior crise ética estética e política que já vivenciei na história do mundo e particularmente
do nosso Brasil, aqui ainda venta. Venta um desejo de buscar outros ventos, outros modos de
ventar, aglomerar os corpos, os desejos. Reconfigurar as políticas do cuidar em saúde mental e
liberar as forças necessárias para essa continuidade.
Lembro-me nesse instante daquele vento da cidade de Natal: constante, firme,
incansável, brisa marinha que nos agraciava dia e noite – guardo-o em minhas memórias
alegres. Aliás, não só o vento da cidade Natal fez nascer em mim esta que agora escreve, mas
todos os Avoados que, durante esses anos, me fizeram transformar o estrangeiro em lugar de
experiência comum, a ventania em brisa, a Psicologia em arte, a escrita em experiência, o Teatro
em vida, o cuidado em atenção estética e o vento no Vento dos Avoados.
134

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138

Apêndice – Instrumentos de pesquisa

Diário de Campo – Grupo fechado do Facebook – Vento dos Avoados. Maio a dezembro
de 2016

Memórias felizes
Essa foi a cena/sessão sobre as memórias felizes da nossa infância. Essa era a história do dia
mais feliz da vida de M.: quando ele dançou pela primeira vez!
Essa era L. contando sua memória de infância quando lavava os pés de sua avó.

Cena dos pássaros


Essa é uma arte sobre o trabalho das oficinas... Loucos e invisíveis pela cidade... Chegando a
transformarem-se em pássaros voando com o vento.
Lembrando aqui dos nossos disparadores de depoimentos:
1. Escrita de uma memória de infância alegre;
2. Cheiro de alguma coisa que me trouxesse boas memórias;
3. Foto ou objeto de alguma história de amor;
4. No dia que descobri que eu era eu.

A música que ele fez para mim


Sobre nossa I Mostra... Tivemos Loa e sua canção que ele havia feito para ela. A plateia fica
um tempo esperando e ouvindo a música do filme Titanic, aquilo me gera uma espera ansiosa,
uma beleza, uma ânsia boa... A música acaba e nós a esperamos. Loa aparece e desce a escadaria
do casarão, conta-nos sobre a história daquela música, é forte, é inteira ali... É ela... LOA. D.?
Onde estaria? Convida-nos a subir, canta pra alguém, olha em seus olhos, encontra e leva seu
amor a sala cantando uma música feita só pra ela. Subimos enfeitiçados por essa mulher que
nos leva e nos envolve.

Eu vi os pássaros meninos atrás da janela


Mãe em seu beco costumeiro, mãe má, mãe bicho, guerreira com uma faca em punho e
cachimbo na boca. Mãe do ódio, da miséria e do desespero. Mãe que não podia ser mãe. A
mulher. Lilith.
139

Mas os pássaros insistem em cantar, em tripudiar, puxar sua saia, seus cabelos. O vento os traz...
Esses pássaros bebês que caíram do ninho... Há um tempo ali chamando a mãe do desamparo...
A mãe num dia resolve abrir a janela do beco... E quando vira, abre os olhos e sente os pássaros
que ainda não voam, vê os filhos do amor a chamarem para morar em suas asas. As lágrimas
lavam o ódio, mas não a miséria. As lágrimas, as lágrimas. O abraço, os risos antes do abraço,
a roupa, a MÃE. O nosso peito molhado, o nosso coração que se borra em ventania e dor
naquele fim de tarde.

O dançarino e o acrobata da loucura


Aquele rapaz lindo. Típico menino de algum conto do Caio Fernando Abreu. Aquele cara que
dança, que é meigo, sensível e que um dia tão jovem perde sua mãe, seu porto-seguro nessa
terra confusa. O cara vai parar num lugar de tratamento para pessoas com transtornos mentais
graves. Por quê? Por quê? Ele, dançarino, sempre me pergunta se sou louca. Não sei responder...
Pergunta de novo para todo mundo... Quem era louco ali... Para sacanear... Faz coisas com seu
corpo que nós, normopathas, nunca faríamos. Porque somos duros, pobres de corpo, tendões e
de alma. Ele não... Aquele cara era mole, composição de corpo fluída, riso fácil. De ponta-
cabeça, o cara me pergunta quem era louco ali...

Nasce um rei
O feto, a luta pra nascer. Os gritos, o rastejo. Quem nasce ali? Um rei, um papa, um ser de poder
ímpar que, ao se olhar, quebra seu espelho. Nasce a PSICOPATOLOGIA, nasce a norma da
normalidade. E o rei Psicologia conta-me sua história amarga e ainda me ameaça. Ri alto,
dizendo que um dia ia me tratar. Falou alto, rindo alto e apontando pra todos ali... Um dia serei
seu psicólogo e seu também, e seu... E seu também.
Nasce J., nosso rei.

Não seja ou seja?


A pessoa estilhaçada, repartida no ditame não seja. São as vozes que o delírio traz sempre. O
outro na pessoa. As vozes. Mas a generosidade nos junta, nos cola e me faz sonhar e não delirar.
Eu quebro, como vidro quebrado. Eu me colo com Durepox e ouço sempre “não seja”. Mas me
colo de novo e sonho que sou.

Se essa praça fosse minha


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Na Praça Sete de Setembro, ou Praça Vermelha, alguém me pergunta: vocês sabem por que ela
é vermelha? Outro nos diz: é porque o chão era todo vermelho... Agora tá desgastado, mas era
bonito, era vermelho. Alguém disse: façam uma roda e fechem os olhos, ouçam os barulhos,
aqueles mais distantes... Era uma tarde de chuva, às três horas o sino soou, a chuva pingou, o
vento me abraçou. Eu queria encontrar alguém ali. Mas meus olhos estavam fechados.
Chamamos Manoel de Barros que nos trouxe as árvores e os pássaros. Logo chegaram os erês,
as crianças que reclamavam a praça. Brincamos de tica, de estrela e vimos rio, formamos
estátuas e declamamos poemas. Se essa praça, se essa praça fosse minha....

Escritas após o exercício dos pássaros e do pai no banco


Ele era protetor, amoroso, carinhoso, gentil, alegre, trabalhador, dedicado à família. Não era
carne nem peixe, era uma pessoa boa.
Ele tinha cabelos de fogo e seu olhar era como o oceano: hora cheio de lágrimas, hora seco de
alegria.
Ele não tinha memória, era um gigante. Vivia sempre no presente. Era um construtor e construía
sua cidade. Enquanto a construía, ele tomava conta da cidade dos dragões. Nos dias difíceis,
quando os dragões soltavam suas labaredas de fogo, seus olhos enchiam de água; era a maré
cheia. Quando os dragões dormiam, seus olhos secavam e ele ria... Era a maré seca. Um dia,
construindo sua cidade, dormiu e se esqueceu do fogo dos dragões. Sem perceber, o fogo o
envenenou. Hoje, o gigante sem memória dorme e o mar seca.
Quando anoitece, a lua aparece. No nascer do sol, ele renasce.

Bufão bicho
De longe, vemos suas narinas ofegando, cheirando. De longe, sinto que aquele cheiro fede,
incomoda. Vemos alguém que busca, num jeito de desejo de busca. Ele vai, vai, vai, vai como
alguém que busca o êxtase, vai até se achar. Quando acha, cai como alguém cansado de amar.
Hoje, somos acolhidos pelo sorriso de F., que vem até o portão do CAPS com movimentos de
abertura, seja do portão, seja da sua vida, seja do seu sorriso. Desde a semana da Luta
Antimanicomial, venho notando diferenças sinceras em F.: colocando-se em público, pegando
um microfone que nunca fora permitido durante a sua trajetória de vida. Sem aspectos de
dopação, F. chegou até o fim da nossa oficina. Vamos seguindo o fluxo da cidade, um caminhar
de apresentação de algumas estagiárias. Paro com ela para comprar grude. Na ausência de troco,
pega um pacotinho de raivas. Semana passada, combinamos de descer o nosso encontro para o
141

começo da cidade: a Ribeira! Colocar nossos corpos em experimentações com outras


espacialidades, sair da sala e adentrar no mundo, na rua, na cidade, nos becos. Lugares que
desbotam no concreto, mas encantam na poesia, na arquitetura, nas histórias, nas vidas que ali
atravessaram e atravessam. Sim, é um território vivo, tanto a noite quanto de dia. Reviver as
ruas da Ribeira é romper com meus passos tímidos do passado e dar passos firmes de afirmação
para o futuro. O presente é viver o presente! Coloco meu corpo diante da fotografia, da
expressão cênica, do canto, do entardecer do Potengi. O mote dessa semana era transitar pelas
ruas daquela região utilizando registros cartográficos. A temática fora a saudade. Coração
alargado de lembranças, materializamos em cenas. O silêncio da rua foi invadido por cantorias.
De cena em cena, cortejamos! Ao término das ações, sentamos sobre o porto e fomos agraciados
pela belezura da paisagem. Nossa roda de conversações abria fluxo, e nunca sabemos onde vai
parar, mesmo o Norte sendo nosso relato da atividade do dia. J. manifesta mais um sonho novo,
diante da memória revivida entre ele e o pai, “ser pai”. F. nos impressiona com sua narrativa,
entre memórias e desprezo, relembra a perda dos filhos, a situação do seu primeiro surto (diante
do que era para ser apenas um churrasco de família), histórias marcadas em um corpo que vê
no esquecimento um aliado para não mais sofrer. As lágrimas correm, sendo pintadas pelo
alaranjado do pôr do sol. Fico sempre muito atenta às composições dos discursos: a cada
encontro, o elo que nos une mostra a força do coletivo e do esperançar! Somos referenciados
como família diante da fragilização dos vínculos, apostamos na construção desses para melhor
agirmos no/com o mundo! E deixo como inconclusão uma frase que muito ficou atenta no meu
coração: “a amizade é um amor que nunca morre”.

Natal-RN, 01 de junho de 2016


Das memórias: Francisca e o churrasco. K.: a casa dos espíritos presos nas paredes. E.: Meu
pai.

Hoje, 7 de junho: algumas percepções sobre nosso trabalho:


1. Guardei a necessidade de planejarmos todas as oficinas antes de estarmos nelas, de modo a
respeitar a linha de continuidade das pesquisas de memórias afetivas. Ou seja: sempre puxarmos
o que já foi trazido de algumas pessoas, seja na rua, seja na pinacoteca. Entendo que muitas
vezes acabamos por não aprofundar as pesquisas já trazidas. O que acham?
142

2. Acredito que aquele formato de aquecimento e, posteriormente, de trabalho de pesquisa é


importante de ser mantido. Quando o aquecimento não acontece (nas ruas, por exemplo), fica
muito difícil de acessar alguns estados de criação.
3. Essa página do Face é para organizarmos os materiais brutos que já temos, as ideias e os
planejamentos, relatos, sonhos, filmes, pesquisas, poesias etc... Enfim, as pesquisas e os diários
cartográficos. Vamos dar vida a ela. O que acham? Semanalmente, podemos colocar ideias de
planejamento aqui a partir da continuidade do que houve na semana anterior.
4. Alguns temas que vêm sendo recorrentes nas pesquisas das memórias afetivas: o amor não
vivido, os elementos da natureza, a espiritualidade, as religiões como suporte para as vidas, os
sonhos, a política, a dança, as perdas de amor, a violência, a injustiça social e, às vezes, a
esperança. Coloquem por favor as percepções de vocês sobre as temáticas percebidas (essas são
as minhas).
5. É importante pensarmos juntxs sobre o que vem acontecendo nos encontros e fora deles.
6. Vocês querem fazer uma leitura de Esperando Godot?

Então gente, tivemos uma mudança do tema a ser trabalhado. De início, pensamos em trabalhar
a projeção da raiva. Contudo, não tínhamos material suficiente para todos (almofadas) e
pensamos que seria mais cuidadoso fazermos quando estivéssemos todos juntos porque é um
exercício muito mobiliza(dor). Daí, trabalhamos nesse encontro o tema “Reencontro/ Partidas”.
Serei bem descritiva para vocês ficarem a par, OK?
1° momento – Aquecimento: fizemos o exercício de crescer e diminuir. Em seguida, tínhamos
que proteger nossas costas para que o outro não conseguisse tocar, visto que o nosso objetivo
era tocar nas costas do outro.
2° momento – Reencontros: foram feitos dois grupos e reencontramos alguém importante para
nós que não encontramos faz tempo. Cada um tinha seu encontro.
3° momento – Partidas: nas mesmas duplas do reencontro, um tinha o objetivo de partir e o
outro de convencer a não partir.
4° momento – Compartilhamos as nossas histórias de reencontro e partida em grupos e fizemos
uma pequena cena.
Deu para compreender?

Para hoje, 15 de junho, propomos a seguinte intervenção:


1. Começaremos aterrando os pés e trabalhando a presença via respiração e olhar.
143

2. Faremos um exercício de liberação de couraças causadas pela raiva aprisionada (usaremos


almofadas) e tenderemos chegar à exaustão.
3. Na exaustão, chegaremos ao chão, onde direcionaremos os corpos para a consciência desse
estado.
4. No estado de consciência, direcionaremos o olhar e os corpos ao outro. Vamos ao encontro
dos corpos. Vamos ficar cada vez mais perto um dos outros, tentando sentir a respiração e a
presença de cada um sendo todo.
5. Direcionaremos cada um a encontrar um parceiro. Esse outro será seu parceiro/a, para cuidar
e depois ser cuidado por ele.
5. Como é sentir no corpo a possibilidade de estar com alguém para acolher, para cuidar? Como
eu cuido de você? Com as mãos, os pés? O ouvido? Como? Como é o cheiro do cuidado? Como
é o olho do cuidado? Ele vê? Ele te vê? Etc. Criação livre, observando os atos que se fazem no
exercício... Aproveitando o que eles me trazem.
6. Depois, pedimos para que essas duplas leiam os textos trazidos e façam uma cena.
7. Roda final.
OBS.: TEMOS QUE TRABALHAR A CENA DE M.
OBS.: FLEXIBILIDADE PARA AS MUDANÇAS.

Gente, tendo em vista que somos seres de e para cuidado, seguem alguns princípios que acho
que devemos atentar nos nossos encontros:
1. Não propor temas que envolvam afetos tristes (eles sempre aparecem, por isso não devemos
suscitá-los.
2. Ao contrário: sempre trabalharemos com memórias de afetos alegres.
3. Os temas das memórias que se tornam cenas devem ser trabalhados com cuidado, sempre
colocando a pessoa na condição de escolher como e se quer fazer a cena. A maneira como isso
se dá depende da nossa sensibilidade e do método. É sempre bom buscar intercessores para
contar a história, tipo: imagens, matérias de jornal (Internet), elementos históricos etc.
ESTAMOS TRABALHANDO COM TEATRO DOCUMENTÁRIO, NÃO É PSICODRAMA
OU TEATRO DO OPRIMIDO.
4. Esse blog da Cia. Teatro Documentário é bem inspirador:
http://teatrodocumentario.blogspot.com.br/.
144

Na penúltima quarta, fizemos um trabalho experimentando o cuidar e ser cuidado em duplas.


O exercício rendeu imagens poéticas. M. e P. fizeram um exercício belíssimo. Gabriela e Loa
também. Queremos esses registros escritos... Lembrar...

Quarta, dia 22/06, fomos ao encontro LGBT. Nós e M., somente M., do CAPS. Muito se revela,
muita vida se faz ali. Geni e a destruição do mundo. Geni e o nascimento de Eros.

Julho – O coletivo tem se composto pelos seguintes integrantes (mais fixos). São essas pessoas
e cenas que temos que dar continuidade nas pesquisas documentais. É hora de trabalhar com
imagens, com textos de notícias escolhidos por eles, é hora de fazer o enlaçamento do
social/político. Trabalhamos conteúdos subjetivos até então. É preciso ouvir, buscar, incitar o
que essas pessoas querem, sentem pro mundo. O que as liga para o mundo? Como, quando e o
quanto essa pólis aparece na vida dessas pessoas? Que imagens disso nos vai chegar? Como
fazer isso?

Fizemos exercícios de conexão com o grupo – acho que M. D. pode explicar melhor! Tínhamos
um objetivo a cumprir juntos: dar sete passos juntos, contando juntos, até que D. ampliava o
exercício e sua dificuldade. Depois, fizemos pequenas cenas onde tínhamos que incluir temas
já trabalhados nas oficinas: o cheiro, a história de amor, o pássaro, o pai... Aí eu e Doc ficamos
mais na posição de diretores mesmo. Ao final, fizemos uma roda para saber como eles estavam.
A imagem do grupo andando todos juntos, ficou como um exército. Lembrei-me do clip de
Pink Floyd, quando as crianças estão na escola todas iguais. Sei que lá tem uma conotação de
denúncia, mas foi aquela imagem que me veio. Se atenham a ela. Até teve um momento em
que me sentia muitas, as vozes dos meus companheiros ecoando junto com a minha, dava a
ideia de que éramos um só! Exigiu bastante do corpo, pois D. ia colocando paradas com uma
ação nos passos, por exemplo: no quarto passo, vocês fazem uma pose; no segundo, pulem...
Tem alguns corpos que não se sentiam dispostos, se sentiam cansados.

Julho – Revisão dos temas que apareceram nas oficinas


O pássaro, o vento, o mar, o gigante, a cantora, o J. nascendo, o churrasco da F., o médico
psicanalista, a canibal, o bufão desencontrado, a capoeira, os meninos dançando no chão, as
histórias de H., B. e o lixo, a mãe e os filhos, a pintora de pássaros, os outros, os avoados
ventando.
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Os abraços, as confissões nos ouvidos, os que querem cuidar, os depoimentos, os pais, os


amores, as memórias no cais, as três casas da Ribeira, o rito de cura nas águas, os olhos
fechados. A Praça Vermelha, as infâncias, tica, esconde, o jogo da poesia.

Julho, B. – Hoje amanheci dança!! Provoquei a realidade, a fantasia, e entramos em jogo. O


compasso do balanço me lança na provocação de conexões com músicas, desejos, sonhos,
histórias, poesias, e afetos que me constroem!! Estava lá, me carregando de nós: puxei o
prólogo, aprumei a música. Era como se estivesse sentado diante da minha solidão habitada!!!
Agi. Provoquei. Dancei. Dilatei meu corpo extracotidiano. Alarguei meus possíveis. Fui
despontando em mim preparação, autocuidado. Cruzo com o serviço e me lanço na aposta com
a alegria. Conecta o olhar, o abraço, o sensível, o toque, a escuta, a entrega para uma conexão
humana. R. me abraçou deitada, contando com satisfação a sua história com os remédios. Ela
me lembrou em um dos nossos primeiros encontros, que não lembrava da vida! Isso surgiu em
mim porque me encontrei com Ana, na entrada do CAPS III, de saída para uma internação no
João Machado. Estamos no CAPS III, faço questão de enfatizar. Uma das funcionárias fala
satisfeita que o carro tá chegando! Pouco depois, me cumprimenta com “boa tarde” e sorri para
nós, estagiárixs. Ana fez questão de afirmar seu desejo para ir à oficina, mesmo sem escutar
atenta sobre nossa proposta. Ficou em mim se foi o medo da descoberta sobre sua internação
ou a busca de sair daquele local, que supostamente estava ali para cuidar. A. e R. são vizinhas,
negras, mulheres, pobres, em busca de gerir a si e às vozes que as perseguem. R. me conta com
tristeza sobre uma relação de opressão que ela vive com a vizinha: “eles me chamam de doida,
só querem me ver pra baixo”. J., uma das usuárias que está na sala, olha para mim e diz “que
são as vozes”. Ouvi na reunião de equipe a mesma frase. Fiquei sabendo também de uma outra
internação no hospital psiquiátrico da cidade, na segunda-feira. Outra mulher. Faço sempre um
giro pelo CAPS anunciando e chamando para oficina, noto que já virou um conhecimento para
muitxs. Enfatizamos sempre os convites insistentes e a insistência na possibilidade de escolha.
O CAPS III encontra-se vazio na maioria dos dias, assim como sua despensa. É preciso fazer
rodízio entre as pessoas que ali habitam. O cotidiano parece sempre nos provocar com os seus
absurdos, por isso aposto na alegria. Ela provoca rupturas e possibilidades de caminhos outros.
Percorremos até a Pinacoteca. C., uma adolescente que nos tem acompanhado desde a semana
passada, trouxe o suco prometido da semana passada. Fiquei feliz com a delicadeza da sua
lembrança. Ela foi uma das que ficou feliz quando soube que no encontro de hoje iria rolar
música, que iríamos deslocar nossos corpos. Pensamos em E. conduzir a primeira parte do nosso
146

encontro da quarta-feira. Ele inicia falando da importância da horizontalidade nos


agenciamentos da vida e respira. Puxa todxs nós para o deslocamento e reconhecimento do
nosso corpo. K., sorrindo, vem me falar sobre um amigo que trouxe para conhecer o coletivo.
Que tivéssemos o cuidado de acolhê-lo. Ali, ela me dizia da importância do acolhimento, de
conectar o humano ao outro humano. Guiadxs, e na condução de umx pelx outrx, vamos
deslizando. Hoje, a música nos arrebentou: despertamos nossas crianças interiores! Não é à toa,
S. e A. foram duas mulheres que chegaram depois na oficina: uma por ter ouvido o barulho lá
de baixo; e a outra por ver lá de fora umas pessoas dançando no alto da Pinacoteca. Hoje,
também experimentamos a emoção de iniciar nosso roteiro. K. se emocionou ao ouvir sua
história; J. parecia ouvir satisfeito, mesmo seu corpo despontando tristeza; B. se perguntava
onde iria “se encaixar”. Aos poucos, fomos inventando nossas criações, experimentando nossos
corpos nômades, deslocando pelo devir. Durante boa parte do encontro, bailamos também junto
às vozes de trabalhadorxs que se reuniam na frente do palácio municipal para lutar pelo que é
justo! Pensei na saída para o vazio da despensa.

Novo formato dos encontros: começaremos todos juntos o acolhimento, a saudação aos novos
participantes e pediremos para algum avoado antigo que conte aos novatos o que é o coletivo,
quando se encontra, o que fazemos e para que fazemos.
Faremos um aquecimento todxs juntxs.
Depois, o grupo se separa: os novatos ficam com dois estagiários que farão um trabalho de
corpo, de grupo e uma iniciação ao Teatro Documentário (narrativas de si).
Um estagiário fica na borda (o tempo todo). D. e eu (variando isso) vamos construir o espetáculo
com os antigos, seguindo um roteiro já estabelecido.
No final, terminamos todxs juntxs numa roda de avaliação e conversa. Vamos variar esses
lugares para todxs participarem dos processos.
As atividades serão planejadas com antecipação.

B. – O vento de aço cruzou o cansaço e chegou em brisa breve! Sustentado na alegria cantante
do caminho até chegar à Pinacoteca, mais uma vez nos mudamos para outra sala. As
organizações de cultura e educação fechavam em si a afirmação de mais um novo acordo.
Acordo diante de mais um dia de surpresa, um convite da realidade à poesia, me coma.
Existências de muitos ventos aproximavam! Os ventos sopram em múltiplas direções
delirantes. A ventania confirmava a afirmação dessa diferença. Afinal, G. me confirma ao
147

chegar, ainda com um olhar atravessado: “eu aqui posso contar minha história, é?”. Sorri,
afirmando que aqui seria um lugar de experimentação e que poderemos viver nossas histórias.
Sorrisos largos, a liberdade desejada na voz de pássaro, quando R. nos conta na cena de um dos
nossos exercícios de hoje, a linha da vida: “eu quero poder voar como esse pássaro, ser livre”.
Ali, eu aprendia bem sobre liberdade e o quanto me vejo a perguntar: o que te puxa para o chão?
O que não te coloca no céu das cidades? O que de vida não conhece a liberdade? Eu sou
composto de dor, travessias, lembranças. Pingo memórias. Embaraço o tempo. Afirmo mais
uma vez o sustento da alegria cantante. A voz sai, a interação compreende, afirma, então segue.
Compartilho minhas histórias diante de tantas outras. O vento balançou memórias,
provocações, pensamentos, agir, cantar. R. chegou de “cabelos e dentes novos”, expressões da
assistente social do hospital psiquiátrico da cidade, João Machado. Ainda ontem, gritávamos
nas ruas “por uma sociedade sem manicômios”, afirmando nossa liberdade. Afinal, “FORA
TEMER”. Ops, isso foi o desfecho do encontro da quarta. Ecoou junto aos “FORA TEMER”
grafitados nas paredes da nova sala. Katiane chega atrasada, mas afirma seu pássaro Coração
Valente nas construções de hoje. R. e J. me provocam curiosidade. As constatações do serviço
no início do ano pareciam crescer cada vez mais: “muitos jovens estão surtando”. Por trás disso,
mais uma vez me pergunto: a loucura habita os lugares habitados? Os leitos masculinos dos
CAPS 3 reabrem. Será que teremos novas internações de seis meses, iguais às de M.? Em três
meses, estaremos nos aperreios finais da delicadeza da incerteza! Durante o intervalo de hoje,
corri para algumas conversas sobre o agora. Percorrer o caminho da conexão, o chegar junto
para conhecer melhor, porque “de repente, intrometem-se uns sacos de sonhos; uma
remembrança de mil novecentos e onze; um rosto de moça cuspido no capim de borco; um
cheiro de magnólias secas. O poeta procura compor esse inconsútil jorro; arrumá-lo num
poema; e o faz”. E é um pouco dessa minha tentativa, em tentar compor o devir-escrita de hoje.
Nas passagens da linha do tempo da vida, o passado se confundia com o presente, afirmava o
desejo de um futuro em exercício da liberdade, chorava uns passados rindo em composição das
cenas (e da vida!) no presente. O palco sucumbiu de intensidades! R. e R. encenam o desejo da
volta da família; I. nos contava sobre sua gravidez e a ânsia da “alta” do hospital colônia; E.
escracha sua vida, no brilho do sol lá fora; C. inaugurou nossa “borda” hoje! Respiramos para
nos aterrar no chão de madeira e continuar a produzir vidas que possam cantar nos céus da
cidade, igual a desenvoltura de G. na concretização do seu desejo: “eu sempre quis fazer
Teatro”. R., em algumas de nossas conversas, me responde quando pergunto sobre suas
habilidades na vida (pegar anotação da frase na fichinha que preenchemos com alguns hoje). E.
148

me contando sobre sua chegada ao espaço através do convite de O. ; A. sem saber explicar seu
amor nascente e construtivo com O.; O., na sua timidez, interagindo conosco; E. nos rizomas
de sua existência; A. E. imperando sua produção de subjetividade no amor, no falar, no encenar;
objetos sobre o chão da sala, coletivizava histórias, sonhos, tempo, escuta, atenção, entrega; T.
brincando lindamente com sua timidez, a parede e uma plateia de umas vinte pessoas, perdidas
na compreensão da sua própria história. É isso: pulsa, pulsa, memórias. Afinal, arma
quente!!!!!! Na minha cantoria na reconstrução de mim, Milton Nascimento nasce em mim:
“Coisas que a gente se esquece de dizer/ Frases que o vento vem às vezes me lembrar/ Coisas
que ficaram muito tempo por dizer/ Na canção do vento não se cansam de voar”. E desejo
também a minha liberdade, como R., R., D., E., G., F., E., L. e tod@s que ali pisavam a madeira,
com certeza! Por isso, me implica tanto afirmar “por uma sociedade sem manicômios”, porque
ainda tem pessoas a procura de liberdade! Por que vou querer a prisão d@ outr@ se o que mais
quero é sair da minha?

B.– O corpo do ator/atriz é um corpo de enamoramentos! Escancarado para o encontro! Aberto


para inter.ação! Aberto para confronto! Aberto para descoberta de si! Afirmativo para degustar
o cuidado! Provocativo! O corpo do ator/atriz desvela em seu uni.verso criativo, a união do que
lhe compõe. O corpo do ator/atriz é uma arma de guerra! Também de amor. Dos sorrisos que
despontam apenas pelo encontro! Dos sorrisos encarados no devir-criança. Dos ventos que
chegam e levam alegria como instrumento de batalha! O corpo do ator/atriz encontrou minha
coragem. Eita, transita na ponte do obscuro e da luminosidade. Degusta uma existência,
afirmada e sustentada nos bons encontros. Aí, o corpo do ator/atriz.

Outubro, L. – Rumo ao fim. Vamos viver nossas oficinas com essa tensão do tempo que passa,
do fim que se sabe, que se deseja. Que eu possa tecer as possíveis relações, consonâncias e
distâncias entre o que desejo e o que de fato acontece. Entre um trabalho de caráter inserido na
dimensão da atenção psicossocial e algo que tenho chamado de teatralidade no bojo das
autobiografias, na estática de Teatro Documentário. Como eu gostaria de acabar com esse
trabalho? Cansada? Titubeante? Reclamante? Não sinto assim... Sinto sim necessidade de parar
para repensar muitas coisas, mas sinto um movimento cada vez maior na busca daquilo que
subsidie e dê minimamente uma forma ao meu pensamento e desejo. Quero o rito, quero essas
memórias organizadas vivas desfilando, quero a infância do grupo, quero a nossa constituição,
quero A. E. nos benzendo e dando início aos nossos trabalhos, quero D. cantando, H. depondo
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na polícia das ruas, quero o palhaço de W., quero o canto de B., o número de mágica de J., a
força de ser de G., a voz de M. e tantas cenas... Quero o ritual das nossas próprias oficinas sendo
oferecido para nosso público. Quero nossa oficina sendo feita e encenada por eles para o nosso
público. Algo que tenha uma estrutura mínima, mas que opere num nível de improviso e que
chame o público a viver e contar suas memórias também, receber massagem contorno, sentar
no banco, mostrar a vida na sua linha desforme... Vamos sonhando.

Outubro, L. – Sobre a oficina de J. L. em 28/09


Tivemos o grupo cheio: João Machado e suas mulheres, W. do População de Rua, T. e o grupo
que já nos frequenta. Começamos por um trabalho de contorno de corpo em duplas. Trabalho
sempre importante que algumas vezes vamos chamar de “massagem”, mas dessa vez ganhou
um sentido de contorno... Interessante se pensarmos na ausência de pele psíquica presente em
colapsos psicóticos. J. trouxe encantamento ao grupo, não sua presença nem sua atitude, mas
seu olhar encantado pelo que via e sua capacidade infinita de ver teatralidade, arte onde muitas
vezes nos esquecemos de ver. Em nossas conversas, ela trouxe muito isso... Encanto... Dizendo
que tinha sido uma de suas melhores oficinas, dizendo que aquilo era puro Teatro e que era
nossa percepção que deveria mudar e ver Teatro em tudo aquilo... Fico extremamente feliz em
ter alguém de Teatro ali me fazendo ver e crer de novo que sim, esse é o caminho. Sobre a
produção de subjetividades e produção de vidas/saúde/mental/direitos/pólis, tenho certeza que
estamos criando um espaço de deslocamento muito forte nessas vidas que merecem viver e
criar.
Continuando a oficina, ela traz um aparelho de celular como mediador de tempo... Limitador,
na real. Como não pensei nisso antes? Tão simples... E o silêncio? O exercício tão básico de
um minuto de silêncio e a posterior apresentação de si traz um contorno novamente para essas
pessoas, situa no tempo, no coletivo, na realidade. Afinal, o Teatro faz isso, me faz ver vendo,
me faz me contar contando, me mostra mostrando o mundo. Assim, me reposiciono comigo e
com o outro. Imaginário, realidade. Fantasia verdade. Expresso, encaro o outro, silencio e
compartilho comigo e com o outro, para mim e para o outro. Quando vejo, já mudei... Como
num laboratório de vida em sociedade. O que a Psicologia tem a ver com isso?
Continuando a narrativa da oficina, escolhemos nos reunir em grupos e nos demos quatro
minutos de relógio para escolher cada um objeto que trazia consigo no corpo ou na bolsa ou no
bolso. Cada um contava a história desse objeto e depois a gente escolhia uma história e
improvisava e narrava para os outros.
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Coisas interessantes e lindas surgiram... Uma cena de cortejo e canto com T. levando um
escudo, uma narrativa de um relógio ganho depois de se levantar uma casa, o clown de W. e
sua vida nas artes antes da rua, uma narrativa oral da história de um acidente de moto na vida
de uma mulher grávida – interna hoje do João Machado. Já temos muuuita narrativa nesse
grupo... Muita história se contou... Memórias se abriram e explodiram, confissões foram feitas
e os segredos dessacralizados. E nós, aqui, testemunhas disso que se chamou de oficina de
Teatro, alguns campos de estágio, outros sonhos e outros nada. Assim, seguimos para o rito
final. Sabendo da despedida, da morte disso que se vive uma vez só na vida, como um amor de
verdade. T. com sua sabedoria nos pergunta: “mas não vai mudar de aluno de estágio, não né?”
Ela sabe que estamos no fim, sua porosidade aberta absorve mais do que palavras. Com encanto,
devemos seguir e nunca permitir que nos tirem isso que nos guia! O encanto pelo que somos,
fazemos e cremos. Evoé!

Gente, semana que vem vou fazer uma roda pra avaliar o processo com os participantes. Estou
pensando em alguns dispositivos para facilitar. A ideia é pensar todos juntos em roda como foi
esse processo e pegar algumas narrativas individuais também. Vou precisar da ajuda de vocês:
vou gravar as narrativas, por isso pensei nesse roteiro semiestruturado como disparador. Se
puderem me ajudem a construir questões e dispositivos...
1. O que é para você esse espaço?
2. Como é estar nesse espaço (sentido de lugar e esperar fazer algo)?
3. O que fazemos aqui?
4. O que fazemos aqui muda seu dia? Se sim, como?

B. – Na provocação da cidade, como diria Certeau, “inquietante familiaridade da cidade”, vou


perambulando para sentir minha existência. As caronas de hoje foram pactuadas com algumas
ruas e andanças. Os carros, as pessoas, os animais, as motos, as bicicletas, os pássaros
(inclusive, os cantantes), o fluxo dos caminhos ganha intensidade! A impotência gera a potência
dos passos, a firmeza de sim, o gritar na rua, nos passos, o mostrar ao óbvio, a conformação
que circula, o cortejo das vidas andantes! Vive as histórias nos corpos construídos na cidade,
seja no atravessamento dos olhares cortantes, seja no acolhimento de um sorriso desconhecido.
Ou seja, caso não afirme a liberdade agenciada com o meu caminho, o ressentimento será uma
captura desejável para tempos de cólera. Respiro. Sim, respiro, por vezes me vejo preso ao meu
cansaço. Como me lembra Artaud sabiamente em “O Teatro e seu duplo”: “Cabe ainda a
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ressalva de que aqui o movimento é inverso e, com respeito à respiração, por exemplo, enquanto
no ator o corpo é apoiado pela respiração, no lutador, no atleta físico é a respiração que se apoia
no corpo”. A sustentação da liberdade como norte no cuidado é o que afirmo em mim hoje, ao
passar as recomendações da importância do registro do nosso trabalho. A implicação insiste no
construir, na necessidade cotidiana de estarmos “inquietantes pela cidade”, de sentir os ventos,
as brisas que correm pelas ruas, pelas árvores. A necessidade do sentir me coloca na condição
constante da autoanálise. Por isso, não existe esse distanciamento do B. profissional, do
militante, se não, esqueço a liberdade cotidiana e só tiro ela do armário em tempos de “festa”,
como na semana da Luta Antimanicomial. Proclamo “por uma sociedade sem manicômios” e
esqueço os meus próprios. Logo, sou devorado pelo conformismo e não aplico minha ética
enquanto existente e cuidador. Hoje, o Vento dos Avoados registrou esse cotidiano. A roda do
grupo atravessou histórias, reconheceu narrativas e nos fez refletir sobre nosso próprio
processo. Por quais caminhos temos percorridos? Como estão os passos dados? Como chega o
vento das outras vidas, vozes? A liberdade foi norte nas expressões dos atores, atrizes,
cuidadores, estudantes, capoeiristas, pesquisadores. Insistir nesta aposta insiste justamente na
provocação dos deslocamentos. Por exemplo, ao assistirmos atentos aos corpos na provocação
desses questionamentos como norte, nos perguntamos: “como é estar nesse espaço? O que
fazemos aqui muda nosso dia? Se sim, como?”. Histórias de vida institucionalizadas foram
escancaradas para o estagiário da Pinacoteca. Na comunicação com uma amiga que
acompanhava, demonstrava aceitar com afetação as histórias que chegavam aos seus ouvidos.
Afinal, quem não gosta de transitar pela sua liberdade? Alguém aqui não gosta de ser livre? R.
nos mostrou com maestria a sua inquietação contida nas paredes do Hospital Psiquiátrico da
cidade. R. insistia em percorrer a sala pulando, cantando, dançando e nos perguntando: “vocês
estão vendo como estou me sentindo feliz? [...] Eu fiz dança contemporânea”. R. já provoca em
mim algumas pistas de possibilidades, alguns trajetos da existência que foram bloqueados. E,
naquele espaço da Pinacoteca, ela podia correr, dançar, acenar da janela. Na avaliação final,
chegamos à conclusão que “a liberdade voou por ali hoje”, as captações fotográficas denunciam
espaços de cuidados sustentados pela violência. R. grita pela Luta Antimanicomial, chamando-
a. Ela pede para adentrarmos na sua contenção das paredes do hospital. As cuidadoras do
hospital afirmam sua resistência e apostam na liberdade. As estagiárias de Psicologia
materializam em seu discurso a aposta, também, na liberdade no cuidado, falam “inspiradas”
das cuidadoras e ressaltam a liberdade enquanto ética na construção do saber-fazer! Chego à
Universidade, o pátio do Setor 2 repleto de docentes, acatam o indicativo de greve para o dia
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11 de novembro. No celular, J. me liga atônito com seus episódios deprimidos e “sem lugar”
nos espaços que supostamente seria de cuidado – os CAPS. Inclusive, é o lugar que não quer
ser habitado quando chega a crise! Na sala de aula, os futuros psicólogos são cada vez mais
achatados pela necessidade compulsória do “se formar e ser feliz para sempre”, capturados pela
flexibilidade do mercado, da crise, da economia, do nosso contexto político. Todas essas
histórias estão na afirmação da liberdade, afinal, acho que nunca é demais repetir: alguém aqui
não gosta de ser livre? Cultive a liberdade do outro, não morra na sua. Salve o mestre Paulo
Freire no “pacientemente impaciente”.

Oi, minha gente! Bom dia!


No último encontro fizemos um levantamento das nossas práticas. Aqui vão os exercícios que
lembramos.
1. Encontro guiado por D.
2. Massagem-roda
3. Oficina do abraço-aquecimento
4. Memória do cheiro
5. Memória da infância
6. 1 minuto de silêncio
7. Memória do pai
8. Linha da vida
9. Narrativa do objeto
10. Memória do grupo máquina
11. Terapia o riso
12. Narrativa do som e criação da história
13. Memória da benção
14. Memória do rosto – Reconhecer com as mãos
15. Memória da foto – História de amor
16. Cenas de vida

Se vocês lembrarem de mais algum, coloquem em comentários aqui!!


Avoados!! Vamos aterrizar para voar mais alto! Eu, B., A. e G. estamos com gana de escrever
sobre a experiência do estágio. Essa escrita é para a produção de artigos. Temos no mínimo
dois temas a trabalhar.
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1. O coletivo Vento e sua relação com a produção de saúde no contexto da cidade. Será um
artigo de relato do estágio de maneira global.
2. A formação do psicólogo e o campo do sensível.
Teremos mais temas! Vejam o que o estágio despertou em vocês para criar mais temas. Vamos
escrevendo e colocando aqui.

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