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NATAL-RN
2021
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NATAL-RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
AGRADECIMENTOS
Agradecer é como reconhecer. É momento de reconhecer que esta Tese só foi possível
porque foi sonhada e escrita coletivamente. Força coletiva que ganhou corpo inicial com meus
três amigos capazes de sonhar junto: agradeço imensamente a João Maria Ferreira, Eugenio
Sávio e Breno Lincoln Pereira de Souza Diniz, os três que se multiplicaram em milhares de
forças ao longo desses anos.
Reconheço que este trabalho só foi possível por estar vinculado ao Programa de Pós-
graduação de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Agradeço muito a
Professora Izabel Hazin e a toda equipe que compõe o Programa de Pós-graduação por todo
apoio que puderam oferecer ao longo desses anos. A minha orientadora, Professora Ana
Karenina de Melo Arraes Amorim, por sua condução delicada, amorosa e libertária, por
respeitar nossos tempos, limites e andar junto construindo um ritmo cheio de gentileza.
Agradeço às Professoras Maria Teresa Lisboa Nobre, pelas leituras cuidadosas e
grandes contribuições, e Flavia Helena Freire, por sua leitura delicada e por andar junto neste
campo do sensível e da amizade. Agradeço à Professora Maria Inês Badaró, por me acolher em
Santos e permitir que eu fizesse parte de sua trajetória.
A todo coletivo Gentileza, pelas trocas acadêmicas afetivas e sensíveis: é uma honra
estar junto de um grupo tão bonito.
A meu filho Guilherme Barreto Okano que me ensina que o amor é uma força a se
inventar todos os dias. Obrigada por tanto.
A minha família, irmãos e minha mãe. Nada seria possível sem tê-los.
A meu pai que, em sua falta, me obrigada a sonhar o impossível. Saudades eternas.
À Associação Potiguar Plural que dá vida a Luta Antimanicomial de Natal. Obrigada
por serem minha família, por permitirem a experiência de viver a palavra militância. Ao
Movimento Nacional de População de Rua do RN, a Vanilson Torres, a Halisson Foguete, à
Marcela “Mãe”, pela beleza e força que emprestaram à experiência do Vento dos Avoados. A
Katiane Galvão, pelo pássaro Coração Valente que voa em mim todos os dias. A Antônio Edson
que me abençoa todas as manhãs. Obrigada por tanto.
Obrigada Marcos Doc, pelo talento, cuidado e dedicação! A Gabriela Trindade, minha
filha de peixes, por sua presença amorosa, sua entrega, confiança e suavidade que deram ao
trabalho a estabilidade e delicadeza necessária a se realizar. A Breno Lincoln Pereira de Souza
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Diniz, amor de vida, alegria e potência que insiste na liberdade e nos ensina isso a todo
momento. Gracias!
Agradeço a minhas amigas oráculos Elisa Band, Janaína Leite, Tatiane Fico e a Paulo
Duek pelas inspirações, por serem solo gramífero de amor e companheirismo ao longo de todos
os tempos.
Aos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial de Natal: obrigada pela confiança e
parceria. A Fátima Couto e Gorete Ferreira que lutam verdadeiramente contra os manicômios
na cidade de Natal.
A Matheus Rocha e Thaíza Salgado que emprestaram seu olhar ao Vento e
transformaram experiência e aprendizagem em arte. A todas e todos os alunos que estiveram
conosco ao longo dos tempos do Vento. Obrigada a todos e todas que compuseram o coletivo
Vento dos Avoados que se fez, se desfez e ainda é em potência.
Ao vento da cidade de Natal por sua força movente de luta por liberdade.
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RESUMO
This research aimed to analyze an experimentation process in the field of mental health in
composition with the performing arts in its clinical, aesthetic and political dimensions, which
became singular with the creation of the cenopoetic collective Vento dos Avoados. The
interface of the fields of the arts, the clinical and the madness stands out in the Brazilian
Psychiatric Reform process, highlighting the tendency to recognize the autonomy of the artistic-
cultural field in relation to the psychiatric field. Thus, we seek to give visibility to an artistic
language and its relationship with the psychosocial clinic. It is a research-intervention of
cartographic inspiration, based on the Philosophy of Difference, on the authors of
deinstitutionalization in mental health and on the theoretical-methodological contributions of
the scenic arts, with an emphasis on Documentary Theater and performance. The research field
consisted of scenic experiment workshops that had people from the Movimento Nacional de
População de Rua do Rio Grande do Norte; users of the Rede de Atenção Psicossocial; members
of the Associação Potiguar Plural; trainee students of the Psychology course at the Universidade
Federal do Rio Grande do Norte; and two performing arts professionals – one of them being
the researcher – as participants. As field records, we present the narratives of the
autobiographical scenic performances created by the collective, the cartographic field diaries
and sixteen narratives transcribed from a scenic exercise recorded on video, in addition to
photographic records made by the researcher and some participants. The analyzes show us that,
when performing their autobiographies, the participants were able to find joyful forgotten
stories that overlapped the tragic narratives of their lives marked by processes of social
exclusion, institutionalization and rights violations. These stories, remembered in their bodies,
produced subjective displacements capable of generating new ways of being in the city, in
public services and in the collectives of which they are part. In this way, they discovered another
place in the city and in the relationship of their bodies in it. The results reveal that the connection
between the fields of mental health, self-fictioned performances and the production of a
psychosocial clinic based on the ethical-aesthetic-political paradigm fostered the creation of the
“aesthetic care” tool-concept. Thus, this research announces a significant contribution from the
field of artistic and scenic language to ways of doing and thinking about the field of mental
7
Keywords: Mental health; Mental health care; Schizoanalysis; Theater; Aesthetic attention.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Cartaz das oficinas realizadas pelo projeto “(In)Visíveis e loucos pela
cidade: oficinas e encontros libertários entre a saúde mental e a população em situação
de rua” ........................................................................................................................... 64
Figura 2. Cartaz produzido pelos alunos e pelas professoras envolvidos no projeto
“(In) Visíveis e loucos pela cidade: oficinas e encontros libertários entre a saúde
mental e a população em situação de rua” .................................................................... 76
LISTA DE FOTOGRAFIAS
SUMÁRIO
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1 Introdução .............................................................................................................................. 10
2. Antes do Vento ...................................................................................................................... 14
2.1 A descoberta do Teatro e dos espaços da loucura ...................................................... 16
2.2 Arte, clínica e loucura .....................................................................................................21
2.3 Os teatros em nós ............................................................................................................29
2.4 Teatro Documentário, Teatro biográfico e Teatros do Real .......................................35
Introdução
3). Assim, esta pesquisa procurou investigar e analisar o processo de experimentação cênica e
de criação coletiva no campo do sensível que culminou na composição do coletivo cenopoético
Vento dos Avoados. Como objetivos específicos, buscamos: a) identificar e analisar as
interfaces entre as performances autobiográficas (autoficcionadas) e a produção de outros
modos de subjetivação; b) analisar as práticas realizadas coletivamente em sua dimensão ética,
estética e política; c) cartografar os experimentos sensíveis produzidos ao longo das oficinas
em seus processos criativos endereçados à produção de outras possibilidades de intervenções
psicossociais.
Como percurso metodológico foi realizada uma pesquisa-intervenção com inspiração
cartográfica, que intentou acompanhar, descrever e analisar os processos interventivos e as
experimentações no campo híbrido das intervenções clínicas e das artes cênicas, mais
especificamente das performances autobiográficas que aconteceram ao longo de três anos e que
culminaram na criação do coletivo cenopoético Vento dos Avoados. Essas experimentações
tiveram como território inicial a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a
Associação Potiguar de usuários e familiares da Saúde Mental Plural do Rio Grande do Norte.
Em seguida, participaram alunos do curso de Psicologia no contexto de um projeto de pesquisa
e extensão “(In)Visíveis e loucos pela cidade: oficinas e encontros libertários entre a saúde
mental e a população em situação de rua”, o Movimento Nacional de População de Rua do Rio
Grande do Norte (MNPR/RN) e um diretor artístico do campo das artes cênicas potiguar,
Apolo. As oficinas de Teatro, parte do projeto de extensão supracitado, foram realizadas por
todo ano de 2016 na Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte. A performance
autobiográfica inspirada na estética do Teatro Documentário, somada às invenções no campo
do sensível, foram superfície de acontecimentos para a criação de um dispositivo clínico,
estético e político que será cartografado e analisado neste estudo. A partir da hibridez desses
campos, esboçaremos algumas linhas de análise possíveis para pensarmos as práticas cênicas
realizadas e a criação do conceito-ferramenta “atenção estética”, concebido experimentalmente
a partir dos procedimentos que realizamos ao longo das oficinas.
Lançamos mão de diferentes “políticas de narratividade”1, ou seja, de diversas formas
de mostrar e dizer a produção desse percurso. No segundo capítulo, “Antes do Vento”, narro
autobiograficamente meu encontro com o Teatro, com o campo do saber psicológico e da
instituição psiquiátrica. Em seguida, abordo uma composição com discussões que pensam os
1
Esse termo foi cunhado por Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros no capítulo “Diário de bordo de uma
viagem-intervenção” do livro Pistas do método da cartografia (2010).
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lugares da arte, da clínica e da loucura e as devidas mutações desses campos. Ainda nesse
capítulo, reflito sobre o Teatro e sua potência em minha vida, uma vez que é compreendido
como uma ampliação do campo sensível existente em todos nós. Desse modo, exponho as
transformações do Teatro de representação como linguagem cênica tradicional para outras
maneiras de expressão estética, assim como a linguagem do relato de si transformado nas
performances autobiográficas. Apresento, então, seus desvios em minha vida e no meu fazer
como psicóloga no encontro com a potência do Teatro Documentário, autobiográfico e os
chamados Teatros do Real.
No terceiro capítulo, explano o delineamento metodológico da pesquisa como uma
intervenção cartográfica que tem como primeiro território a Associação Potiguar Plural e, em
um segundo momento, ganha outro espaço: um projeto de extensão e de estágio do curso de
Psicologia da UFRN com diversas composições – pessoas do MNPR/RN, algumas pessoas que
frequentavam os serviços da Rede de Atenção Psicossocial de Natal e pessoas internadas e
trabalhadoras do Hospital Psiquiátrico João Machado. O campo da pesquisa é um processo
cartografado ao longo da temporalidade e suas linhas chegam até criação do coletivo
cenopoético Vento dos Avoados. A experiência do coletivo foi cartografada e analisada para
tornar-se dispositivo clínico ético, político e estético em saúde mental na dimensão do que
vamos chamar de “atenção estética”.
No quarto capítulo, apresento e analiso as primeiras experimentações cênicas feitas com
algumas pessoas da Associação Potiguar Plural. Batizei os primeiros experimentos cênicos de
autoficcionados. Eles nos serviram de laboratório de experimentação e inspiração para a
continuidade das pesquisas naquela estética teatral que partia do relato de si.
No quinto capítulo, intitulado “O Vento dos Avoados”, apresento o início das oficinas
de Teatro na Pinacoteca Potiguar que tiveram como território um campo de extensão e estágio
para alunos da UFRN. Nesse capítulo, investigo a metodologia de trabalho para a realização de
nossas pesquisas cênicas, tais como os temas disparadores que criamos como dispositivos para
o relato de si – que subsidiaram a criação das performances autoficcionadas.
No sexto capítulo, analiso as minhas narrativas produzidas a partir dos depoimentos das
rodas de conversa cênica, realizadas no final das oficinas quando tínhamos um grupo bastante
diverso, com a presença massiva de pessoas internadas no Hospital Psiquiátrico João Machado,
profissionais dessa instituição, alunos e outros novos participantes.
13
2 Antes do Vento
A história que inicio a contar aqui é parte da minha vida – parte fundamental, eu diria.
Meu encontro com o Teatro deu-se antes de minha formação em Psicologia e muito antes do
exercício da pesquisa acadêmica e do exercício profissional. Em minha existência, essa forma
de arte me foi bússola, balsa de travessia, superfície sempre lisa e guia intuitivo dos meus
processos de autocriação, compreensão e produção de mundo. Hoje posso dizer que me foi
também curativo para momentos de sofrimento e, portanto, me acompanhou durante meus
deslocamentos e transformações subjetivas, fazendo-me ver que há sempre a possibilidade de
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criar outros modos de existir em qualquer contexto. E, mesmo quando essa prática estética e
artística estava longe de minha vida, sempre houve um espaço em que a guardava como um
trunfo, cristal precioso a ser usado a qualquer momento, que me traria novamente uma potência
para as dores e as necessidades de invenção da vida.
Para mim, Teatro é um estado de alargamento existencial, portanto político, que se faz
na luta pela presença da afirmação de um corpo ou superfície de contato com tudo o que ele
guarda/carrega do mundo e tudo o que ele ainda pode mostrar, se esvaziar e se tornar, assim
sucessivamente. Em seu fazer, o Teatro leva aquilo que é singular de cada experiência para o
outro (outro como pessoa, natureza, corpo social, tecnológico etc.) e deste para um outro lugar,
promovendo um campo expandido contagioso entre o singular e o coletivo, lugar sempre novo
e irrepetível. Daí sua característica maior: a capacidade de transmutação das letras e palavras
em gesto, da voz ao grito e à escuta, do corpo à dança, do sentir ao ato, da solidão à presença
múltipla, da secura de sentir-se só ao suor molhado do encontro coletivo. Faz-se no devir do
encontro com o múltiplo em nós e agencia a passagem dos afetos singulares à afecção coletiva
e sua potência de forjar uma outra realidade interna e externa. É um “lugar” como uma
superfície invisível passível de inscrição com signos ou sem significação, entretanto, que se faz
marca, se faz gesto e este nos ultrapassa e nos modifica. Teatro é um exercício mundano que
acontece no plano comunal em que a transformação de quem faz e de quem o recebe é evidente,
empírica e extremamente científica porque se dá num campo sensível ético, estético e, em
especial, político.
Iniciei-me no Teatro aos dezesseis anos, no Teatro Escola Macunaíma na cidade de São
Paulo. Nessa época, cursava o Ensino Médio e percebia minha inclinação quase indiscutível
para as Ciências Humanas. Filosofia, História e Literatura me fascinavam e, juntamente com o
Teatro, não me deixavam dúvida que eu adorava tudo o que construía o “humano” e que podia
transformá-lo. No Teatro, os efeitos de criação cênica são precedidos pela aprendizagem de
improvisar, pela liberdade de errar e nos repetir exaustivamente, da expressão corporal e vocal
livre, da ampliação sobre o conhecimento de nosso corpo e de seus planos, limites e infinitas
possibilidades de transformações, da comunicação verbal e não verbal. É no corpo – que chamo
de superfície de contato externada pela nossa pele – que o Teatro habita. Dessa aprendizagem
exaustiva que o fazer Teatro nos convoca – porque é repetitiva ao infinito no campo do sensível
–, acessamos uma outra pele afirmativamente cansada (o bom cansaço) e desdobrada em outra.
Em sua profundidade e superfície absoluta, dá-se passagem a outros universos. Assim, foi na
intensidade da montagem e da pesquisa de laboratório para a montagem da peça Os sete
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gatinhos que me chegou às mãos uma citação de uma obra de Freud. Ela dizia que Nélson
Rodrigues (1912-1980) trabalhava seus personagens com instância inconsciente do “id” do
aparelho psíquico. Aquela informação levou-me a pesquisar sobre a estrutura do aparelho
psíquico em Freud e o interesse pela área “psi” se revelou pela primeira vez em minha vida, em
uma das interfaces possíveis entre um escritor dramaturgo e uma corrente de pensamento
chamada Psicanálise. Fez-se a primeira ponte e um pequeno atalho me levaria à teoria
psicanalítica, em busca da compreensão daqueles personagens imorais e amorais que o autor
descrevia em suas obras, numa postura crítica aos códigos morais presentes nas famílias
brasileiras burguesas da época2. Para explicar a construção das personagens, a Psicanálise era
convocada numa interpretação libidinal das amoralidades. O responsável por aqueles atos
daqueles personagens humanos demais era uma parte do inconsciente, o id, que naqueles corria
solto sem a censura das instâncias que regiam o princípio da realidade, como o ego e o superego.
Mas, na verdade, Nélson Rodrigues nos falava muito mais de uma sociedade e do que acontecia
nas famílias da nossa nação nos anos de 1930 do que de pulsões não interditas. Assim, com
essa primeira pista, caminhei em direção à Psicologia sonhando haver um diálogo entre as artes
cênicas e aquilo que eu imaginava ser esse estudo da mente.
Meu encontro/desencontro, encanto/desencanto com a formação em Psicologia se deu
em uma universidade particular de São Paulo. No momento inicial, encantei-me com os
primeiros momentos do curso. Porém, depois deparei-me com os principais campos de atuação
daquele campo de conhecimento. Naquela época, como instituição normativa de ensino, ela
oferecia: a psicologia escolar, a psicometria, a psicologia organizacional e a clínica stricto
sensu. A própria psicologia social era herdeira das teorias de grupo filiada das correntes norte-
americanas. Eram traduções enlatadas, hoje diríamos importações coloniais de uma ciência
ainda por se fazer no nosso país e que não me faziam o menor sentido. Em termos teóricos e
clínicos, glorificava-se a teoria psicanalítica e a análise de comportamento; pouco se falava nas
outras abordagens teóricas. Era complicado encontrar algum sentido nas vertentes e nas teorias
hegemônicas existentes, afinal, eu estava em uma universidade particular, em 2003, na cidade
de São Paulo, e não se dialogava na época sobre instituições, movimentos sociais, psicologia
comunitária, saúde coletiva, entre tantos outros saberes (em sua maioria, críticos) que a
Psicologia pode e deve se ocupar como um instrumento político.
2
Em suas obras, Nélson Rodrigues abordava questões como incestos, traições, liberdade sexual, machismo,
patriarcado, violências, infâncias roubadas. Dizia-se um reacionário e chegou a apoiar a ditadura brasileira, no
entanto, reviu sua posição ético e política ao ter um filho torturado na época do regime ditatorial brasileiro.
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dificuldades de uma real participação, pois não era usuária nem familiar. Era um lugar estranho
até aquele momento.
Em minhas pesquisas sobre o tema dos hospitais psiquiátricos e suas repercussões na
vida das pessoas, em determinado momento deparei-me com as expressões artísticas de forma
geral e a sua produção nos espaços psiquiátricos. Lembro-me da minha primeira experiência
fílmica sobre o tema: a trilogia produzida por Leon Hirszman (1937-1987) chamada de Imagens
do inconsciente. Nesse documentário, filmado no Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde Nise da
Silveira trabalhava na década de 1940, é retratado o tratamento de alguns pacientes via
produções plásticas produzidas nos ateliês de pintura que ela conduzia no Setor de Terapia
Ocupacional. As pinturas eram relacionadas às suas histórias de vida. A cada expressão plástica,
o narrador do documentário traçava interpretações mitológicas e pessoais sobre a vida daquelas
pessoas. Era bonito, trágico e havia uma aura mítica nas interpretações das obras que nos
remetiam aos pensamentos junguianos sobre inconsciente coletivo, imagens arquetípicas e suas
interfaces com a vida daquelas pessoas. O que me fascinava nesses documentários eram as
histórias daquelas vidas antes de estarem ali: as perdas amorosas, as infâncias e as tantas
histórias que se aproximavam da vida de todos. Eu percebia que o ato de pintar e a condução
da narrativa para algumas memórias de outros tempos e lugares os trazia àquela vida que fora
deixada ao lado de fora dos portões do Hospital.
Segui no campo de trabalho da saúde mental em escolas e instituições/depósitos de
pessoas, até me formar como psicóloga. Inquieta, desejante em unir as duas pontas de minha
vida: a liberdade que o fazer teatral tinha me dado e as experiências, muitas vezes sem sentido
e aprisionantes, que o mundo “psi” (Psicologia, Psicanálise e Psiquiatria) tinham me causado
até então. Havia algo ali para ser curado. Não gosto dessa palavra, mas, olhando para atrás,
acho que foi isso: a formação em Psicologia me aprisionava com seus testes, suas teorias sobre
o inconsciente, a personalidade e sua psicopatologia sem alma, sem corpo, sem histórias, sem
pessoa e sem sentido. O fazer teatral me libertava, permitia a invenção de mundos, o calor dos
corpos e os encontros múltiplos. Dessa encruzilhada, eu buscava intercessores: eis Deleuze
(1997) que nos apresenta a necessidade de os fabricarmos:
Os intercessores são quaisquer encontros que fazem com que o pensamento saia de sua
imobilidade natural, de seu estupor. A criação são os intercessores. Podem ser pessoas
– para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas
também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados
ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores (Deleuze, 1997, p. 156).
21
Sim, eu tinha que fabricar os meus intercessores. Assim os buscava, mas ainda não
concebia aquele conceito como o concebo hoje: uma fuga daquele antagonismo binário no qual
eu mesma me prendia (aniquilamento existencial versus criação de mundo). O pensamento
psicológico e a criação artística eram saberes e fazeres dissociados e impossíveis de conciliação
até aquele momento. Uma ação era observar que a genialidade da criação era muito presente
nos “estados” da loucura; mas outra era manufaturar esse encontro fora dessa genialidade já
tida como “natural” na loucura. Foram muitos os que passaram pela encruzilhada das artes e da
loucura como seres geniais e que dissolveram esses campos (alguns no lado “psi”, outros
artistas, mas todos intercessores): Antonin Artaud, Nise da Silveira, Augusto Boal, Lygia Clark,
Arthur Bispo do Rosário, Estamira, Stela do Patrocínio, Maura Lopes Cançado, Profeta
Gentileza (José Datrin), Austregésilo Carrano Bueno e muitos poetas artistas e profissionais
“psis” contaminados com essa produção de vida intensa que gera arte a partir da precariedade
material e afetiva que viviam e dos inúmeros atentados contra suas existências.
Sabemos que a ligação entre arte, loucura e clínica é antiga. Esses fazeres e o campo de
saber relativo a ele nas áreas “psi” sempre estiveram ligados, mas como num cabo de guerra:
ora as forças pendiam para um lado, ora para outro. Isso me inquietava também! Ora a clínica
usando a arte como fazer terapêutico, ora a arte reconhecida como expressão artística e estética
presa num museu ou no Teatro fechado. Se algo era terapêutico era porque não era arte e se era
arte não poderia ser terapêutico. Eu ainda não havia descoberto que é no lugar das passagens
que a experiência artística e a clínica podem se encontrar, numa breve passagem de uma ação
à outra e que pode se tornar outra nesse vão. Não obstante, o vão estava cheio de premissas
sobre o que era arte e o que era “saúde mental”. Foi preciso esvaziá-lo.
Aos poucos, a vizinhança entre arte, clínica e loucura se fez clara. Isso nos confirma
Elizabeth Araújo Lima (2009), pesquisadora e professora do campo da Terapia Ocupacional,
que se debruça sobre a composição desses temas há muitos anos:
Entre a busca de ruptura da linguagem artística e o esforço para inserir nessa linguagem
expressões singulares, solitárias e sem sentido até então, o fazer artístico e o fazer
terapêutico se encontram. E se a arte passa a poder comportar esse tipo de experiência
limite, isso terá também profundas consequências para a clínica (Lima, 2009, p. 215).
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A autora fala sobre uma zona de indiscernibilidade entre a arte, a clínica e a loucura,
batizando os campos como “territórios em mutação”. Em sua compreensão, não buscou reduzir
ou submeter um campo ao outro: ela concebeu, em sua pesquisa, as zonas fronteiriças e uma
vizinhança amiga entre as práticas clínicas, a arte e as experiências de “loucura”. Há uma
invenção nesse imbricamento dos três campos que se misturam, há mutação dessas paisagens,
diz ela. A loucura pode se deslocar do campo psicológico e psicopatológico pertencente a uma
“interioridade subjetiva”. A arte extrapola o campo do estético entendido como belo e como
produtora de uma obra finalizada dissociada do contexto histórico e político em que foi
produzida. E a clínica pode se expandir do campo “psi” para sua relação de avizinhamento com
as artes. Essa é uma longa história que já conta com uma produção teórica muito rica. A partir
do deslocamento dessas três figuras (arte, clínica e loucura), que se desmontam e remontam ao
longo da história, a autora nos convoca a pensar um novo lugar para as artes na clínica. Em sua
pesquisa, questões importantes são levantadas ao pensar na interface desses campos: “o que a
conexão com a arte potencializa na clínica; como a arte pode, em espaços clínicos, facilitar
trajetos quando estamos lidando com processos de subjetivação marcados pela precariedade e
o inacabamento, muitas vezes acompanhados pelo desvalor e pela exclusão” (Lima, 2009, p.
224).
Seguindo uma perspectiva de uma pesquisa genealógica nesse campo, Ferigato et al.
(2011) nos mostram que o uso das terapias expressivas se estruturou inicialmente sob a
orientação da Psicanálise e, num primeiro momento, tais terapias eram usadas como
instrumentos diagnósticos, com o objetivo de complementar o conhecimento acerca das
doenças mentais. Segundo os autores, foi o psiquiatra Paul Max Simom, em 1876, que primeiro
se referiu ao uso da arte no contexto clínico com fins de diagnóstico. Nessa mesma época,
Cesare Lombroso, também psiquiatra e criminologista, estudando obras de artes plásticas de
seus pacientes, refere-se a elas como obras que encerram conteúdos primitivos, representações
atávicas de emoções regredidas. Em 1920, o psiquiatra e historiador de arte alemão Hans
Prinzhorn (1886-1933) analisou uma coleção de obras de artes plásticas e outros objetos feitos
por pacientes de hospitais de toda a Europa (reunidos entre os anos de 1890 a 1920), a chamada
de coleção de Heidelberg. Segundo sua análise, as obras revelavam a necessidade de colocar
ordem no caos vivenciado pelos internos. As expressões plásticas se direcionavam, dessa forma,
de uma pulsão interna para a possibilidade de expressão artística, sempre no sentido de
organizar o caos interno. Ainda nesse estudo, os autores apontam que, posteriormente, o campo
teórico da Psicanálise se ocupou da interpretação das produções artísticas dos psicóticos e,
23
algum tempo mais tarde, se coadunou com as perspectivas humanistas e gestálticas muito
relacionadas às tentativas de humanização dos hospitais psiquiátricos. Na Europa, depois da
Segunda Guerra Mundial, os hospitais psiquiátricos foram alvo de muitas críticas, sendo
comparados aos campos de concentração e extermínio, questão que inspirou e impulsionou na
Europa os três diferentes movimentos de Reforma Psiquiátrica: o inglês, o francês e a
Psiquiatria democrática italiana, as quais inspiraram o movimento reformista brasileiro muitos
anos depois. Ficamos até aqui com a “ideia/ideal de arte” como instrumento de expressão de
uma “desorganização” da pulsão interna daqueles pacientes. Em um nível institucional, sua
prática servia para tornar os manicômios mais “humanos” com a oferta de atividades
ocupacionais e artísticas, principalmente na linguagem das artes plásticas.
No Brasil, com a instauração da Psiquiatria como ciência e prática médica, no século
XIX, os grandes hospitais colônia receberam as influências europeias no tocante aos espaços
de produção das artes plásticas como possibilidade terapêutica, sendo possibilitados, dessa
forma, os estudos produzidos no campo psiquiátrico sobre as expressões artísticas dos internos.
As atividades de artes plásticas foram empregadas como intervenção no campo da saúde mental
pela primeira vez no Brasil na década de 1920 por Osório Cesar, no Hospital Juquery, em São
Paulo. Em 1948, foi implantada a Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, ano em que a
atividade passou a ter um espaço apropriado como um ateliê e se pôde consolidar a troca entre
os internos e vários artistas modernistas que passaram a frequentá-lo. Porém, encontramos uma
forte tendência à psicopatologização das obras produzidas pelos internos, bem como o
entendimento dessas produções como “artes inferiores”, comparadas com a arte primitiva, arte
bruta ou como produções artísticas “infantis”, não chegando ao reconhecimento delas sem esses
prejuízos de valor estético. Os pacientes não podiam ser reconhecidos como criadores ou
artistas, pois continuavam assinando as obras com seu diagnóstico ao lado, sua produção
artística tinha relação com sua expressão de um quadro psicopatológico. Além de Osório Cesár,
foi também com a médica psiquiatra Nise da Silveira, em 1946, na criação da Seção de
Terapêutica Ocupacional do Hospital de engenho de dentro, no Rio de Janeiro, que o trabalho
nos asilos se ligou a uma forma de cultura terapêutica e a produção artística ganhou um novo
sentido, ativando a conexão dos campos da clínica, das artes e da saúde mental. Para Nise da
Silveira, muito além das representações dos conteúdos pessoais reprimidos, a expressão
artística plástica não poderia ser compreendida como reflexos de sintomas. O paciente, além de
expressar-se, compartilharia, por meio de símbolos, a criação de algo novo, transformando a
realidade psíquica e também a realidade compartilhada (Milhomens & Lima, 2014). No ano de
24
1961, o nome dessa seção muda para Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR),
demarcando a importância da reabilitação nesse trabalho. Mas, ainda estávamos muito longe
da Reforma Psiquiátrica e do contexto de reabilitação psicossocial que essas ações guardavam
em sua intenção.
Nessa época, a teoria da Psicanálise chega ao Brasil. A ciência psiquiátrica logo
empresta seu saber para interpretar e assim desvelar os motivos inconscientes que levavam os
artistas a produzirem suas obras, sendo elas entendidas como processos de sublimação de
sintomas. No mesmo período, as expressões do movimento surrealista europeu são importadas
pelos artistas plásticos do nosso país, inaugurando e influenciando o movimento cultural
chamado de Modernismo brasileiro. O estabelecimento da relação entre a produção artística e
os processos inconscientes marcou-se pela instauração do diálogo entre a produção dos artistas
modernos e aquela encontrada nos manicômios (Lima & Pelbart, 2007).
Um nome importante nessa história foi Suely Rolnik: em sua Tese de Doutoramento,
ela faz uma interlocução importante com Lygia Clark (1920-1988). Lygia foi uma artista
plástica da arte contemporânea brasileira que realizou experimentações no campo das artes
plásticas e no campo da clínica. Sem desejar articular tampouco nomear esses campos, ela
conseguiu desmanchar os códigos vigentes que nominavam a arte e a clínica e os rearranjar
num novo sentido para seu trabalho. Em seu último trabalho, “Estruturação do self”, Lygia
colocava sobre o corpo seminu de um crítico de arte (poderia ser qualquer indivíduo) alguns
“objetos sensoriais” e relacionais (sacos com areia, com água, conchas, pedras, mel, sacos
plásticos cheios de ar, entre outros) e buscava com isso acompanhar de perto as sensações do
corpo que produziam um estranhamento relatado pela pessoa num momento posterior. A ideia
era que, ao não encontrar um lugar para essa sensação no mapa de sentidos que a pessoa
dispunha, poderia se produzir um outro conjunto de signos e, então, criar uma sensação que não
se conhecia. Tratava-se de inventar um sentido que se forjasse visível e que integrasse o mapa
de existência vigente, operando uma transmutação de sentidos e existência (Rolnik, 2001). A
25
Rolnik (1999), em outro texto que repensa a sua tese inicial, recria sua perspectiva e nos
aponta que a proposta de Lygia Clark pretendia restabelecer a ligação entre arte e vida na
subjetividade do espectador e na sua própria (entendida como artista propositora). Assim, ela
entende que é superada definitivamente a separação entre os domínios artístico e
psicoterapêutico e não pensa mais em fronteiras, mas sim em um novo território. No trecho
abaixo, acredito que conseguimos acompanhar o pensamento dela:
Ela [Lygia Clark] cria um território que não está nem na esfera da arte, departamento da
vida social especializado nas atividades de semiotização e onde se confina o acesso à
potência criadora da vida; nem na esfera da clínica psicológica, especializada no
tratamento de uma subjetividade dissociada dessa potência; nem na fronteira entre
ambas. Trata-se de um território totalmente novo. Como lembrei no início, esses dois
fenômenos são datados historicamente, estando sua origem vinculada ao declínio de
uma certa cartografia no final do século XIX, momento em que se torna operante a
clivagem do plano estético na subjetividade do cidadão comum, que se originara junto
com a instituição da arte como esfera separada. Nesse mesmo processo nasce a clínica,
para tratar os efeitos patológicos dessa dissociação e, concomitantemente, a arte começa
a sonhar sua religação com a vida, utopia que atravessa toda a arte moderna (Rolnik,
1999, p. 24).
vem de Jean Oury que pensou a criação artística a partir das experiências dos ateliês na Clínica
de La Borde.
Em seu livro Création et schizophénie (1989), o médico psiquiatra, criador da
psicoterapia institucional e da clínica de La Borde na França apresenta sua tese sobre a criação
nos estados psicóticos. Sua abordagem se dá a partir teoria da Gestalt e da Psicanálise, mas,
sobretudo, ela acontece a partir de um campo de experimentação no qual acompanhou como
médico os pacientes da Clínica de La Borde. Para o autor, a criação artística é um processo de
reconstrução de si mesmo: “trata-se para um esquizofrênico de lutar contra o que é específico
da psicose: uma estrutura fechada” (Oury, 1989, p. 93, tradução nossa). A criação da obra e o
processo criativo são a tentativa dessa reconstrução de si, são possibilidade de autocriação “pós-
catastrófica” (o sofrimento psíquico entendido como ruptura catastrófica). Dar forma ao vazio,
para Oury, é um processo arcaico que acontece num lugar de pré-representação que está no
centro de todo processo de criação. Só na medida justa entre o aberto e o fechado de nossas
existências é que podemos existir com o Outro. A criação permite, segundo o autor, a abertura
aos estados mais fechados como a esquizofrenia:
O que está em questão na emergência da criação de uma obra, mesmo se esta obra nunca
é terminada é a manifestação de uma presença, nas estruturas psicopatológicas da vida
cotidiana e não só nos asilos, nas comunidades, nos lugares de sedimentação e de
isolamento onde as pessoas morrem sem verem umas as outras, quando não há ocasião,
a possibilidade de presença se fecha (Oury, 1989, p. 95, tradução nossa).
Para ele, a criação artística opera na própria criação de si, de certa presença e abertura
ao Outro. Fundamental, então, é o lugar da criação.
No final dos anos 1970 e início dos anos 80, com a reabertura política do Brasil, o
Movimento da Reforma Sanitária e, em seguida, a Reforma Psiquiátrica, a saúde passa a ser
instituída como direito de todos. Dessa maneira, as relações entre arte e saúde instauram um
campo de práticas inovadoras, fortalecendo ações interprofissionais e intersetoriais, e
envolvendo a vida cotidiana das comunidades (Lima & Pelbart, 2007).
No início dos anos 2000, foi na área das políticas públicas culturais que houve a inclusão
da pauta da diversidade e da participação ativa na vida cultural como direito, favorecendo a
criação de novos debates e o desenvolvimento de ações em parceria com o campo social e o da
saúde. O papel do Estado foi, com isso, recolocado como potencializador da força criativa
presente nas comunidades, especialmente nas áreas de maior vulnerabilidade e risco social
(Lima & Pelbart, 2007). Essa diversidade foi instituída como política pública por ações da
27
A bem da verdade, é a dimensão “cultural” o catalizador das outras três dimensões, não
apenas porque assimila as conquistas das demais, mas sobretudo porque são as
mudanças no modo como os sujeitos se posicionam no mundo, como o veem e como o
entendem, que garantem e sustentam como o “sofrimento psíquico” será abordado em
suas manifestações (Amarante & Freitas, 2018, p. 504).
Para iniciarmos um diálogo sobre o Teatro numa perspectiva mais ampla, compartilho
aqui uma das possíveis definições que encontrei desse fazer da qual eu gosto muito. Trata-se
30
de uma lenda chinesa que Augusto Boal (1931-2009) usa para pensar e ilustrar a “descoberta”
do Teatro. Segundo ele, a fábula chinesa “Xuá-Xuá", com idade de mais de dez mil anos antes
do nascimento de Cristo, narra o nascimento do Teatro que fora descoberto por uma fêmea pré-
humana. Sim, segundo ele, foram as mulheres que descobriram o Teatro; aos homens coube o
confinamento deste em linguagens e estéticas interessadas aos exercícios de poder. Ao Teatro,
na sociedade Ocidental, deram um lugar para ser realizado e visto (palco/plateia) e uma
linguagem possível (a dramaturgia), assim como as necessidades de artifícios (cenário,
figurinos, iluminação e sonoplastia). E deram, principalmente, a função dele: ora
entretenimento como representação de um mundo dado; ora catarse que tinha como função
escamotear a realidade por meio de um derramamento emocional que aliviava e paralisava os
sentidos do expectador. Boal nos conta que essas formas de se operar o Teatro foram uma
invenção do Homem que visava a dominação dessa possibilidade de a humanidade descobrir
uma prática libertadora e acessível a todos.
Lenda de Xuá-Xuá:
Há milhares de anos, quando homens e mulheres eram nômades, viviam em hordas e
vagavam pelos vales, montanhas e margens dos rios, caçando animais e colhendo frutos
para se alimentar, morando em cavernas para se proteger, nasceu Xuá-Xuá, a mais bela
fêmea de sua horda. Quando cresceu, o mais forte dos machos, Li-Peng, sentiu-se
atraído por ela e foi correspondido. Gostavam de ficar juntos, de sentir os odores
mútuos, de se lamber, se tocar. Era bom estar um com o outro e isso os deixava felizes.
Certo dia, Xuá-Xuá percebeu transformações em seu corpo: seu ventre crescia e seus
seios se avolumavam. Envergonhada, começou a evitar Li-Peng, que não compreendia
os motivos da fêmea. Com o passar do tempo, ele descobriu que Xuá-Xuá não era mais
aquela que ele amava, nem no físico, tampouco no comportamento. Os dois se
distanciaram e Xuá-Xuá preferiu ficar só, vendo seu ventre inchar, enquanto Li-Peng,
abandonado, procurou outras fêmeas, sem, contudo, encontrar em nenhuma o amor de
sua primeira fêmea.
Xuá-Xuá sentia seu ventre mexer, sem obedecer à sua vontade, involuntariamente. Li-
Peng, de longe, assistia à agonia de sua amada com tristeza e curiosidade, imobilizado
como um espectador daqueles acontecimentos incompreensíveis. O menino Lig-Lig
crescia e se desenvolvia no ventre da mãe, sem distinguir os limites de seu corpo. Ele e
a mãe eram um só: não respirava senão através de seu corpo, era alimentado pelo cordão
umbilical e não por sua própria boca. Suas primeiras sensações foram acústicas e ele
era capaz de organizar os sons interiores e exteriores e orquestrá-los. Numa manhã de
sol, deitada à margem de um rio, Lig-Lig veio à luz! Era pura magia! Xuá-Xuá olhava
o seu bebê, sem compreender como aquele pequeno ser tinha saído de dentro dela. Sabia
apenas que aquele corpo minúsculo era sem dúvida uma parte sua, que antes estava
dentro dela e agora estava fora. Eram um só: a prova disso é que incessantemente queria
retornar a ela, juntar seu pequeno corpo ao grande corpo, sugar seu seio para recriar o
cordão umbilical. Isso acalmava Xuá-Xuá. Os dois eram ela mesma e ela era os dois.
De longe, Li-Peng, bom espectador, observava. Rapidamente Lig-Lig tornou-se
31
A relação entre as artes cênicas e o campo da saúde mental é antiga e conta com muitas
experiências: grupos amadores e profissionais que encontraram em diferentes linguagens das
artes cênicas sentido para seus fazeres. Esses grupos estão em ação nos espaços de arte,
ocupando a cidade, e nos serviços de saúde mental num contexto de transformação de saberes,
valores, cultura e maneiras de se produzir saúde/saúde mental via processos artísticos nas
chamadas artes cênicas. Podemos exemplificar os mais conhecidos: Cia. Teatral Ueinzz, em
São Paulo; Pirei na Cenna, Coral Cênico – Cidadãos Cantantes; as experiências com o Teatro
do Oprimido, como a Cia. Zaum, de São Paulo, e a Cia. Sapos e Afogados, em Belo Horizonte;
a criação pelo médico e pesquisador Victor Pordeus, no Rio de Janeiro, da Universidade
Popular de Artes e Cultura (UPAC) no Instituto Nise da Silveira e a sua pesquisa cênica
chamada Cia. Teatro DyoNises, e a Cia. de Teatro Incênicos na Bahia, entre muitas outras das
quais não temos tanto conhecimento, infelizmente.
No contexto das artes cênicas e sua vizinhança com o campo da saúde mental, o Teatro
surge como uma das possibilidades de conexão entre a loucura e a sociedade na produção de
outras formas de existência. Segundo Caldeira (2009), a partir das artes cênicas, os participantes
experimentam outras possibilidades de vida e de existência por meio dos diferentes papéis
desempenhados como atores e como membros de um coletivo. O Teatro, incluindo-se atores e
espectadores como compositores dele, é um espaço de criação e reprodução de modos de ser.
Possibilita novas formas de existir e outras formas de se encontrar e produzir linguagens
(Milhomens & Lima, 2014).
Retomando a paisagem psicossocial em que a prática teatral se encontrou com o fazer
em saúde mental em minha vida, eu prossigo com a minha narrativa para que possamos
acompanhar as transformações de ambos. Naquela altura de minha existência, já psicóloga, o
fazer teatral tinha dado espaço a uma nova paixão: a reinvenção do campo da saúde mental, em
que a psicopatologia não seria privatizada no registro dos transtornos mentais. Eu já conhecia
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e seus fazeres e mais alguns grupos de Teatro já
consolidados, como o Ueinzz de São Paulo e as militâncias da Luta Antimanicomial que traziam
as oficinas de Teatro do Oprimido como recursos de ativação sensível para as reflexões políticas
nos grupos. Mas lá estavam ainda as duas pontas de minha existência lutando e quase
conseguindo uma fusão para que fossem reativadas e quem sabe ligadas numa outra conexão e
linguagem. Contudo, o tempo ainda demoraria para trazer o Vento.
No campo do fazer teatral, existia um grupo em São Paulo que, embora tivesse nascido
numa clínica psiquiátrica, percorria o mundo com suas peças e produzia uma linguagem
33
Este Teatro carrega consigo vidas que experimentam limites e tangenciam estados
alterados. Essas vidas, sacudidas por tremores causados por rupturas devastadoras e
intensidades que transbordam toda forma ou representação, pedem novas formas de
linguagem. A criação dessas linguagens questiona a possibilidade expressiva da
linguagem hegemônica, gera acontecimentos inverbalizáveis e reinventa o ver e o ouvir
(Pelbart, 2000, p. 101).
Logo, comecei a me sentir muito atraída por uma ideia de Teatro não representacional.
Nascia um desejo de um Teatro não teatral, como se eu desejasse depurar da experiência que
tive em relação ao fazer teatral algumas “vivências” que, como diz o trecho acima, eram-me
não verbalizáveis e que pela linguagem hegemônica não conseguia expressar. Era um desejo, o
Vento não havia soprado... Ou começava uma brisa?
Assim, eu desejava uma clínica “não clínica” em saúde mental. Para mim, a questão era
apurar algumas partículas que compunham, mas que extrapolavam a linguagem da arte milenar
do Teatro que conhecia até então. Procurava uma estética que descontruísse as linguagens
dominantes que haviam colonizado a cultura de cuidado presente nas oficinas que aconteciam
nas instituições em que havia trabalhado.
A experiência estética vivenciada durante um espetáculo do Ueinzz (Gothan SP, 2001),
suas repercussões em meu modo de sentir a potência criadora daquela linguagem artística –
ainda sem nome – me encantou de uma forma tão dilacerante ao ponto de eu perceber que era
possível sim fazer Teatro e não cair nas ciladas da tutela terapêutica, produzindo uma outra
estética de criação e cuidado que transversalizasse aqueles campos.
Em 2007, o diálogo entre o Teatro e a saúde mental retomava fortemente sua expressão
e ganhava consistência em minha vida profissional. Por meio da indicação de alguns amigos,
conheci o trabalho do grupo Zaum, os quais foram meus parceiros e professores por três anos.
Ele era constituído por usuários do Hospital Dia da Água Funda (o mesmo das aulas de
Psicopatologia, porém em sua unidade de acolhimento por tratamento em regime aberto,
chamado na época de Hospital Dia). Muitos deles eram pessoas em processo de
desinstitucionalização, com longas internações naquele manicômio. Sob os cuidados de dois
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atores e diretores de Teatro de São Paulo, Elisa Band e Cássio Santiago, o grupo se encontrava
na biblioteca municipal Mário de Andrade, no centro da cidade de São Paulo. Em seus
encontros semanais, produziam cenas na linguagem da performance com esses atores/usuários.
Era muito impressionante a diferença daquelas pessoas quando vistos no Hospital Dia e quando
vistos nos ensaios. Pareciam outras pessoas: as falas ganhavam firmeza e dicção, os músculos
retraídos de medicação ficavam mais tonificados (vivos) e mais relaxados, os pensamentos iam
se mostrando mais aguçados e organizados, sendo percebidos nos gestos e nos modos de fala.
O contato com a cidade também mudava e os transformava: andavam de metrô, ônibus,
circulavam para além dos serviços e suas casas, visitavam exposições, sessões de cinema e
trabalhávamos muito juntos na pesquisa e construção das cenas. Ocorriam dias em que só
conversávamos, pois existia um clima de liberdade. Alguns se revelavam exímios escritores,
escrevendo toda a dramaturgia das cenas. Ali eu já não era nem psicóloga nem atriz: compreendi
que era possível uma outra linguagem em Teatro num outro tipo de fazer em saúde mental.
Sentia que chegava em um território possível. O Vento estava chegando.
Apresentamos um relato da experiência daquele coletivo no II Colóquio de Psicologia
da Arte – A correspondência das artes e a unidade dos sentidos, na Universidade de São Paulo,
em 2007. “Todo mundo é um artista” era o título de nosso trabalho em paráfrase a Joseph Beuys
(1921-1986), artista plástico muito importante no campo da performance. O trabalho contava
experiência do grupo e tecia relações entre a linguagem cênica performática com a produção
de saúde mental dos participantes do grupo:
A performance propõe ao artista uma atuação in loco onde o espaço e o tempo se fundem
na presença de um acontecimento artístico. O artista transforma-se em atuante sendo
sujeito e objeto de sua arte. Na cena Zaum despontam-se personagens públicos, que
fazem referências ao momento histórico e político mesclado a experiências
absolutamente pessoais transformando as improvisações em associações-livres naquele
momento. Reunindo as seguintes multiplicidades o grupo criou uma linguagem cênica
própria: Teatro, performance, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Filosofia, inclusão,
artes plásticas, mídias eletrônicas, música, dança e poesia. O grupo Zaum que nasce em
2001 é composto de atores e não atores, (no sentido de uma formação não acadêmica),
desenvolve seu trabalho inspirado em procedimentos e práticas relacionados à
performance e ao happening (Band & Barreto, 2007, p. 3).
sentido na vida daquelas pessoas. Eles eram os autores das cenas. Na performance, o ser, o fazer
e o aparecer estavam fusionados em ato manifesto. Tratava-se de não representar algo, mas sim
de sua manifestação, pessoa e persona (não existe personagem) seriam únicos. Em algum
momento, aquele fazer se mostrava a um “público”, porém, na linguagem da performance, o
que se mostrava era um lampejo inacabado, interrompido de um processo interminável de troca
entre a pessoa, e a realidade que ela compartilha e que, sobretudo, deseja transformar. Nesse
sentido, a função de catarse que o Teatro carregou durante as tragédias gregas deixa de existir
na linguagem da performance, visto que já não pensávamos em nos identificar com o que é
contado/mostrado em cena: buscava-se desestabilizar os terrenos e as verdades produzidas nas
subjetividades codificadas por certos regimes de verdades instaurados em nosso corpo social.
Daí uma grande e importante diferença entre a estética do Teatro de representação e a estética
da performance.
O trabalho com a Cia. Zaum terminou em 2009 por conta de dificuldades encontradas
para local de ensaio e falta de subsídios ao trabalho. A experiência na linguagem da
performance me parecia como um campo mais libertário e que conseguiu produzir sentidos e
deslocamentos importante nos lugares que chamei de pontas de minha existência. As pontas
perderam seu sentido quando encontrei um campo que as expandiu de tal maneira que elas se
desconfiguraram. Não havia mais necessidade de me deslocar de um lugar de psicóloga para
um lugar anterior de atriz ou vice-versa, nem as pessoas que participavam de nosso processo
de criação tinham que despir de si mesmas para representar algo ou alguém. A criação podia se
manifestar em ato. A experiência me deixou desejosa de continuar as pesquisas com não atores
em outras estéticas e com grupos heterogêneos. O fazer em saúde mental me acompanharia
nessa empreitada vital.
Anos depois, em 2014, deparei-me com uma experiência estética que me deslocou
profundamente ao assistir alguns espetáculos na linguagem do Teatro Documentário. Segundo
Silva (2012), trata-se de uma estética das artes cênicas que chegou ao Brasil em 1960. Nesse
período, existiam motivações político-sociais configurando-se como um tipo de Teatro político
denunciador do cenário sociopolítico daquela época. No Teatro Documentário, o processo de
pesquisa e criação é feito a partir de dados extraídos da realidade, apresentados assumidamente
dessa maneira. As pesquisas documentais biográficas – a estética documental pode ou não ser
36
história que ia do encontro amoroso numa exposição documental das memórias até a vivência
de uma crise que culminava na decisão da separação. Chegava-se à produção das festas de
separação, convites, visitas, num ritual dolorido, mas festivo, que era o final do casamento
testemunhado e criado pelos convidados. A cada apresentação era o público que assistia aos
vídeos das festas e testemunhava a presença real daquelas pessoas e daquela história.
Tais peças me levaram a pesquisar a estética documental e biográfica e me plantaram
uma semente desejosa de começar um processo nessa linguagem. Que efeitos falar de si
cenicamente produziria nas pessoas em sofrimento psíquico? Documentar e expor
performaticamente uma vida (ou fragmentos dela) tornaria aquela vivência mais inteligível,
mais digna de ser contada e percebida/vivida? O que poderia acontecer? Como não se confundir
com uma vertente terapêutica ou com a técnica do psicodrama, uma vez que falar de si é o
princípio de todas essas abordagens clínicas tradicionais? Como produzir uma invenção, um
novo território no qual assumiríamos a possibilidade de remontar as próprias histórias, mas fora
de um contexto terapêutico? Qual o efeito em termos de cuidado/clínica em saúde mental? Seria
arriscado propor exercícios que trouxessem à memória histórias muitas vezes doloridas? Qual
potencial dessa prática artística com aquele público? Seria o mesmo efeito que qualquer estética
teatral? Qual seria a sua potência? Penso ter chegado o momento de não representar ou
reapresentar a loucura ou o sofrimento que levou ao diagnóstico psiquiátrico. Era o momento
de apresentar ou manifestar a realidade daquelas vidas: não teríamos personagens nem distância
entre o público e o performer.
Em seu livro Autoescrituras performativas: do diário à cena (2014), Janaína Fontes
Leite nos conduz às transformações das artes cênicas na contemporaneidade: “a característica
primordial do Teatro sendo um tempo e espaço reais, partilhado por pessoas presentes, sempre
colocará a problemática da tensão incontornável entre representação e apresentação” (Fontes,
2014, p. 23).
A autora nos apresenta o conceito de “Teatros do Real”, em que há uma tentativa de
colocar o real em cena não somente como um tema, mas sim como experiência, como afirmação
da diferença.
A partir dos trechos acima, quais interfaces eu poderia traçar para criar pesquisas em
performance como práticas de produção clínica na busca de atenção estética em saúde mental?
Por que eu desejei sair do campo da representação teatral para pensar um projeto inspirado na
estética dos Teatros do Real? O que poderia surgir de diferença em um trabalho que priorizasse
a manifestação das histórias e memórias das pessoas numa presença daquele corpo real e não
representar as escritas de outros autores ou mesmo reapresentar a própria história? O que eu
desejava mostrar e fazer em cena com aqueles corpos “reais”? Por que não desejar a proteção
do aparato teatral? Que novos sentidos eu imaginava que poderiam ser manifestados e
produzidos? Aquele lugar do Teatro em cada um de Augusto Boal seria possível de ser
resguardado nessa estética? O que quero dizer quando falo em corpos reais? Seria a necessidade
de criar para todos nós um Corpo sem Órgãos (CsO), sem narrativas prévias? Seria essa estética
teatral capaz dessa criação? Dizem-nos Deleuze e Guattari (1996) em Mil platôs 3 – capitalismo
e esquizofrenia, que o CsO é o plano de consistência ou imanência do desejo e é por ele que o
desejo caminha e faz as suas passagens. Seria nessa constante luta que criamos um ou vários
corpos sem órgãos plenos de desejos: “cada CsO é ele mesmo um platô, que comunica com os
outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de passagem (Deleuze &
Guattari, 1996, p. 18).
[...] “O corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos [...] O organismo
já é isto, o juízo de Deus, do qual os médicos se aproveitam e tiram seu poder. O
organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno
de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações,
organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um
trabalho útil [...]. Mas o que é este nós, que não sou eu, posto que o sujeito não menos do
que o organismo pertence a um estrato e dele depende? Respondemos agora: é o CsO, é
ele a realidade glacial sobre o qual vão se formar estas aluviões, sedimentações,
coagulação, dobramentos e assentamentos que compõem um organismo — e uma
significação e um sujeito. É sobre ele que pesa e se exerce o juízo de Deus, é ele quem o
sofre. Assim, ele oscila entre dois polos: de um lado, as superfícies de estratificação sobre
as quais ele é rebaixado e submetido ao juízo, e, por outro lado, o plano de consistência
no qual ele se desenrola e se abre à experimentação. E se o CsO é um limite, se não se
termina nunca de chegar a ele, é porque há sempre um estrato atrás de um outro estrato,
um estrato engastado em outro estrato. Porque são necessários muitos estratos e não
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somente o organismo para fazer o juízo de Deus. Combate perpétuo e violento entre o
plano de consistência, que libera o CsO, atravessa e desfaz todos os estratos, e as
superfícies de estratificação que o bloqueiam ou rebaixam (Deleuze & Guattari, 1996, p.
20).
Esse foi o nosso desejo: criar para todos nós um corpo sem organismo, sem função,
pleno de desejo de performar outros de nós. Essa foi nossa luta: fugir, escapar do “juízo de
Deus” de nossas condenações e prisões que nos roubavam o desejo. Fez-se necessário ter uma
composição que liberasse aqueles corpos daquelas histórias. No entanto, os autores não se
referem a ficar sem o organismo, mas a criar para si um CsO como plano de consistência para
que a diferença se coloque. Não se vive sem os estratos, eles explicam: criamos um CsO sobre
os estratos e para além deles. Dessa forma, em nossa pesquisa, buscávamos criar esse plano de
consistência da diferença sobre as histórias e as memórias manicomiais que estavam compondo
os corpos-organismos das pessoas.
41
mundos, sociedades novas – é assim uma prática política. O cartógrafo busca e perscruta, com
seu sensível “corpo vibrátil” (Rolnik, 2011), a invenção e o acabamento contínuo desses novos
mundos.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, na introdução de Mil platôs – capitalismo e
esquizofrenia (1997), nos remetem ao conceito de rizoma para nos fazer pensar a cartografia.
Inspirada na morfologia botânica de uma raiz acentrada, o rizoma é apresentado como um tipo
de “olhar estratégico, modelo de funcionamento e ação, também de enfrentamento e resistência,
que opera a partir de princípios diferentes daquele unitário, vertical, estrutural e disciplinar que
orienta o modelo de análise e funcionamento característico da formação “árvore-raiz” (Prado
& Teti, 2013). Deleuze e Guattari (1997) delineiam alguns princípios do funcionamento
rizomático: os princípios de conexão e de heterogeneidade, em que o rizoma forma uma rede
heterogênea acêntrica e aberta, conectável com qualquer outro ponto que esteja em qualquer
lugar; o princípio de multiplicidade que se opõe às unificações, às totalizações, às
massificações, aos mecanismos miméticos, às tomadas de poder significantes, às atribuições
subjetivas e ao pensamento centrado no Uno e no Mesmo; o princípio da ruptura assignificante,
em que, depois de ser interrompido, o rizoma pode retomar seu movimento e operações, sendo
composto por linhas de segmentaridade que o territorializam, organizam e lhe atribuem
significado, e num eterno movimento operativo é composto também das linhas de
desterritorialização e de fuga que deslocam e assignificam os territórios e os significados
operados pelas linhas de segmentariedades; e o princípio de cartografia e de decalcomania, em
que um rizoma não pode ser entendido como algo que remete à cópia de estruturas estanques
ou à ideia de que foi gerado por algo. Ele é composto de movimento para todas as direções e
planos e velocidades, é uma realização de alianças e conexões com outras partes de rizomas.
Assim, a cartografia é amplamente inspirada no funcionamento rizomático:
Fazer o mapa, e não o decalque dele, por estar inteiramente voltado para uma
experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre
ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio
dos corpos sem órgãos, para sua abertura próxima sobre um plano de consistência. Ele
faz parte do rizoma. O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões,
desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode
ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por
um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede,
concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma
meditação.
43
Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre “ao
mesmo”. Um mapa é uma questão de performance, enquanto o decalque remete sempre
a uma presumida “competência” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 20).
Assim, conversando sobre pesquisa cartográfica no âmbito das ciências sociais, Prado
Filho e Teti (2013, p. 53) consideram a cartografia como um método estratégico-rizomático “a
cartografia opera de modo rizomático, percorrendo os pontos, as linhas e a rede do rizoma,
aplicando estratégias rizomáticas de análise e ação, percorrendo e desenhando trajetórias
geopolíticas”. Nesse sentido, para os autores, o rizoma serve como orientação metodológica
para um olhar cartográfico a ser aplicado sobre um campo, sendo que este pode ser uma rede,
uma teia de relações ou de dispositivos de produção dos modos de subjetivações.
A cartografia é amplamente conhecida como método de pesquisa ou perspectiva teórica
(há duas ou mais possibilidades de compreensão da cartografia) que pressupõe que o criador
(pesquisador) acompanhe e produza seu processo em relação ao seu campo, que será sempre
instável, contingente e assumidamente implicado com a realidade do pesquisador e com a
realidade pesquisada.
Ao realizar a escrita desta Tese, observo que ela também foi um ato de criação e
estetização de minha vida e do campo que me implico ao longo desses muitos anos,
acompanhando os caminhos que ligam os fazeres e os saberes em artes cênicas e suas
possibilidades interventivas nos saberes e fazeres em saúde mental. Há nessa empreitada um
ato de criação, experimentação e intervenção que se produziu nesse longo tempo e que me
transformou enquanto psicóloga, atriz e pesquisadora. Ou seja, houve mutação subjetiva e
criação de outros territórios em nossas vidas:
ao longo ao trajeto que se cria. Inaugurou-se, assim, um modo e uma nova palavra para se fazer
pesquisa: “hodosmetá” – um caminho que constrói sua direção.
Nesse aspecto, quando iniciei meu caminho, a direção não era chegar na discussão e na
prática da performance autobiográfica para discutir uma outra forma de produzir outra clínica
em saúde mental. Não imaginava e nem tinha a direção para seguir na construção do Vento dos
Avoados. Não imaginava, ao iniciar os experimentos em 2014, que aquela experiência me traria
condições para produção de um saber acadêmico. Assim como este processo de escrita é
nascente a cada segundo e vai interferindo na construção desse novo campo, que é composição
de campo, intervenção e análise. Pensando a questão da pesquisa como intervenção, sabemos
que todo conhecer já é em si um fazer, e o conhecimento é um ato que transforma a realidade,
“construindo no mesmo movimento a si mesmo e ao mundo. Intervir refere-se a uma aposta
ético-política que afirma a radicalidade da intervenção em seu sentido etimológico, isto é
intervir, é vir-entre. Pretende romper uma concepção ‘aplicacionista’ em que a teoria precede a
prática e a contemplação, o fazer” (Heckert & Passos, 2009, p. 380). Quando pensamos em
“campo de pesquisa” numa perspectiva cartográfica, compreendemos que se trata de uma
produção que se dá na realidade que está embrincada com a teoria que nos sustenta e a ética
que nos guia. Fizemos as intervenções ao mesmo tempo que produzimos nosso campo e nossa
ética. Esta escrita, portanto, é também um campo que se manifesta e se transforma ao longo do
processo de escrita. Dessa forma, eu criei uma narrativa que pudesse conter as paisagens
subjetivas e psicossociais que acompanhei, que se fizeram e desfizeram antes, durante e após a
experiência do Vento dos Avoados.
O campo desta pesquisa pode ser divido em dois tempos. No primeiro tempo, intitulado
“Antes do Vento”, eu relato dois processos de pesquisa e laboratório cênico inspirados em
Teatro Documentário que foram realizados com participantes da Associação Potiguar Plural e
alunos da UFRN. Resultaram desse primeiro processo a escrita narrativa de uma performance
que será analisada conforme for apresentada. No segundo tempo de campo de pesquisa,
intitulado “No Vento dos Avoados”, relato a formação e a realização das oficinas no projeto de
extensão universitária e campo estágio oferecido pelo curso de Psicologia da UFRN. Apresento
e descrevo as oficinas de Teatro com os experimentos propostos realizados, bem como as
narrativas autobiográficas produzidas nas performances cênicas. Cartografo o percurso dos dois
45
Tenho usado muito o conceito de narrativa e, neste momento, vou elucidar esse
conceito. Segundo Benjamin (1994), narrar é a faculdade de intercambiar experiências. A
experiência que passa de pessoa a pessoa é própria da narração. “O narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a experiência dos outros. Ele incorpora
as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (Benjamin, 1994, p. 198).
Para Benjamin (1892-1940), em seu texto “O narrador” (1994), o homem moderno
estaria se distanciando de sua capacidade de narrar, pois estaria perdendo sua capacidade
intercambiar experiências. Em uma leitura crítica às formas de literatura (como o romance
psicológico, a imprensa, a notícia e os conteúdos informacionais que fazem parte dessa forma
de comunicação escrita), Benjamin (1994, p. 198) fala da possível morte da arte de narrar: “uma
das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que
continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. Ademais, esse autor dá exemplos das
pessoas que voltavam de ambientes em guerras e que, ao retornarem, voltavam mudos e muito
empobrecidos de experiências comunicáveis: “basta olharmos um jornal para percebermos que
seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem no mundo
exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos
possíveis” (Benjamin, 1994, p. 198). Interessante esse trecho porque é extremamente
contemporâneo e diz que nossa capacidade de trocar experiências e produzirmos narrativas tem
muita relação com os modos de vida que levamos, com a ética discutível que rege nossas parcas
3
Apolo é ator e esteve como professor e diretor das oficinas de Teatro durante nove meses, tempo de duração do
projeto de extensão universitária da UFRN.
47
você faz aqui muda o seu dia? E, se muda, muda o que, como? As cenas foram registradas em
vídeo, e posteriormente, transcritas. O minuto de silêncio era interessante como dispositivo que
induzia à presença, contração e contemplação, trazia-os para o confronto com a plateia e fazia-
nos criar um pensamento naquele minuto silenciado. O silêncio de um minuto (um minuto pode
ser muito tempo!), em face a uma plateia, pode produzir diferentes afecções nas pessoas. Foi
dessa maneira que se produziram as narrativas das experiências vividas ali no coletivo.
Entendemos que esse exercício cênico, mais do que um instrumento de trabalho,
funcionou como um dispositivo. Vamos entender por dispositivo a partir do que Deleuze (1996)
comenta sobre o pensamento de Michel Foucault. O autor observa que Foucault estudava alguns
períodos da história não como um arquivo, mas sim como linhas de um “dispositivo” que
instaurava regimes de força, saber e poder. Derivaram deles os regimes e a subjetivação de cada
momento histórico que sempre se atualizam, criando outros modos de se viver num movimento
incessante. A época grega, a cristã, a Revolução Francesa produziram então certas formações
históricas, com regimes de visibilidade e dizibilidade, que podem ser consideradas como
dispositivos que produziram determinadas subjetivações ou modos de existência. Segundo
Deleuze:
Nesse sentido, todos os nossos experimentos cênicos podem ser considerados como
experimentos-dispositivos. A filosofia dos dispositivos opera um pensamento de criação do
novo, pensa a partir da criatividade que acontece na imanência da vida inserida na
temporalidade. Portanto, pensaremos o que de novo foi produzido a partir da experiência
artística aqui analisada, seguindo as linhas cartografadas dos terrenos e mapas que criávamos e
recriávamos.
49
4
Disponível em: http://ciadeteatroosheterotopos.blogspot.com.br.
5
Disponível em: https://www.facebook.com/groups/108922719523538/.
6
A transcrição dos dois diários virtuais está no Apêndice desta Tese.
50
Uma das funções de um coletivo seria a de velar para que não haja uma grande
homogeneização dos espaços, que haja a diferença, que haja uma função diacrítica que
possa distinguir os registros, os patamares etc. E que cada um possa articular algo de
sua singularidade mesmo em meio a um coletivo (Oury, 2009, p. 140).
[...] o que importa não é estabelecer relações diretas com um ou outro paciente, mas
relações indiretas, levando em conta a estrutura coletiva e sistemas de “mediação”. O
clube é uma estrutura de mediação na vida cotidiana. [...] Não há clube “em si”, não há
coisas em si, senão é uma impostura coletiva (Oury, 2009, p. 74).
Para Oury, na psicoterapia institucional é sempre preciso que esses conjuntos, como o
clube (reunião de pessoas para criação de atividades diversas em La Borde) ou outros
dispositivos, sejam retomados num sistema de constelação que permita que os “pacientes” (no
texto, Jean Oury usa essa palavra) circulem suas relações e afetos, que possam se exprimir e
que a palavra possa circular fora dos saberes “psis” (já mencionados: Psicologia, Psicanálise e
Psiquiatria) instituídos:
Somos um princípio desejante. Sem forma, sem interioridade. A nossa história começa
no final do ano de 2014, dentro de uma sala disciplinar numa Universidade em solo
Potiguar. Nessa sala, começamos a afastar as cadeiras e a experimentar alguma coisa
que se aproxima de uma necessidade de autocriação coletiva num grupo de pessoas que
busca se “desidentificar” de suas histórias. Contando seus relatos dessas vidas
perpassadas pelos famosos processos mortificadores, sejam eles a Psiquiatria, a pobreza
material, a universidade que desensina, as ruas que não andamos, amores que perdemos
54
na infância dos doces que ficam na mesa. O desejo de desenformar nos continua (Diário
cartográfico).
7
Disponível em: https://www.dicio.com.br/pesquisa.php?q=desindentificar.
55
experiência que o objeto remetia, a pessoa poderia incitar algumas memórias e, a partir disso,
como uma primeira sondagem, começaríamos a levantar as narrativas que importariam ser
manifestadas e reinventadas na história daquela pessoa.
Aquele exercício era apenas um início de levantamento das narrativas a serem
transformadas em cena. Para isso, era preciso que o grupo continuasse a frequentar os
encontros, a construir uma coesão grupal que traria confiança a para se abrirem a si mesmos e
aos outros. Alguns continuaram, outros não voltaram.
Depois da descrição dos objetos, eu fiz a seguinte observação no diário (blog): “Alguns
objetos, poucos relatos. É difícil nos contar”. Por que nós nunca conseguimos nos contar de
fato? Alguns conseguiam se colocar na escolha do objeto, outros falavam indiretamente, usando
poemas ou músicas que os representavam. Outros não levaram nenhum objeto.
8
Mais adiante neste texto, vamos nos deter no que vou chamar de pesquisa autobiográfica ou autoficcionada na
estética documental.
56
trabalharam como dupla a maior parte do tempo, num encontro que buscava a liberdade.
Abaixo, descrevo os objetos que traziam nessas inquietações:
José: chapéu e um óculos de sol, uma foto de um passeio na Bahia quando jovem. De
óculos e chapéu, fala de seu pai, traz um livro embaixo do braço, narra sua história: as
internações, a maconha, o álcool e o desejo de estudar em uma universidade para ser
psicólogo, para ajudar os outros. Fala do navio “Hope” que aportou em Natal nos anos
oitenta que forneceu tratamento de fisioterapia para ele, conta sobre a vontade de ter ido
embora com aquele navio e ajudar as pessoas que precisavam.
Bernardo: fala da Universidade e da cidade que o aprisiona. Queria se achar em Natal,
sentia-se desencontrado nessa cidade e na Universidade que para ele é uma prisão.
Sozinho. O desencontro, ele tem que se achar aqui desencontro/encontro. Traz o livro
de Manuel de Barros (Diário cartográfico).
José, naqueles encontros, insistia em contar e representar (reapresentar) sua história. Ele
representava suas crises fazendo gestos que mostravam sua cabeça ardendo, as mãos presas
para trás e um “texto” criado e improvisado por ele que falava de suas internações involuntárias
nos hospitais psiquiátricos da cidade de Natal. As cenas remetiam a um labirinto de dores. Não
havia saída, eram internações e reinternações. A cada dia de nossos ensaios, José repetia – sem
nenhuma diferença – as cenas da “cabeça pegando fogo”, dos “braços contidos” e uma em que
ele mostrava uma catação de piolhos que ele e um amigo de quarto faziam um no outro nos
momentos de solidão no hospital.
Na continuidade dos encontros, eu percebia que José insistia em reapresentar a violência
que havia vivido com gestos sempre iguais (mãos na cabeça, mãos atadas para trás, gestos de
flagelamento) e falas muito repetidas sobre suas internações. Aquele era o repertório gestual e
narrativo que se manifestava ao solicitarmos que ele nos contasse alguma coisa (inquietação)
sobre sua vida. Ali, eu me lembrei do Hospital Psiquiátrico da Água Funda em São Paulo. Não
estaria eu fomentando o mesmo tipo de cena? Como fugir daquelas cenas? Como construir
linhas de fuga e outras formas de enunciação para aquele sofrimento? Era-me angustiante vê-
lo reapresentar tudo aquilo repetidamente durante todos os ensaios, e eu não sabia mais como
dizer a ele para produzir uma mudança – afinal, aquelas cenas eram espontâneas para ele.
Aquele não era nosso objetivo, representar aquelas dores e reapresentá-las só as traria de volta
num corpo já muito violentado. Nosso desejo era fugir do labirinto manicomial. Era buscar a
possibilidade de narrar outra história, ou ao menos olhar e tentar fazer José se ver, e se vendo,
conseguir mostrar outra parte da sua história, aquela esquecida, que fora corrompida,
57
José, esse homem que quer escapar do manicômio conta sua vida antes dele.
Sua infância, negro, pobre, deficiente.
A sua vida de quedas, até que perde os dentes, a cabeça fica oval de tanta queda.
Mas José se equilibra, se apaixona. Mas José é pobre, ela é rica. Seu pai, suas surras,
sua vergonha desse pai.
Seu amor incompleto. Seu choro retido. Seu amor retido.
As rotas de fuga, as novas surras desse pai.
A morte do pai.
Quando veio o choro da morte desse pai, veio a internação. Prende-se a dor. Ah... José,
quando foi chorar, já não o podia. Encontra a cachaça, a maconha. E ainda o amor
partido. O quase. José que se confunde com ladrão. Mas seu nome é José Maria, e
integridade igual nunca havia visto. Com ele, os remédios, as violências, a perda de si.
Mais internações...
Depois de muitos anos, os NAPS chegam, nunca será tarde.
Com ele, a aproximação com a Psicologia e com a psicóloga que ele ama e deseja. E
José sempre nos anuncia: o NAPS (o Núcleo de Atenção Psicossocial) havia mudado
sua vida! Lembremos sempre disso.
Com a vida, sempre o sonho de estudar.
A leitura, a poesia.
A Psicologia...
A cena não chega. Mas chegam as lágrimas nos olhos da Dona Isaura9, sua mãe.
Esse homem que tem sonhos, esse homem reto, esse homem honesto.
Esse homem corajoso que não tem mais medo.
Esse homem chamado José (Diário cartográfico).
9
Dona Isaura, a doce e forte mulher, é mãe de José. Ela sempre esteve presente em todos os nossos encontros,
sempre facilitou a vinda do filho, sempre contribuiu com o que podia durante nossos encontros. Nesse dia, ela,
que geralmente mais sorria, chorou. Ouviu seu filho se contar.
58
10
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f6JOMFnzlTw.
59
compartilhando sua trajetória que, naquele momento, desenhava-se de maneira linear. Nessa
trajetória biográfica, José se encontra com Bernardo, um estudante de Psicologia vindo do
interior do Rio Grande do Norte (da cidade de Parelhas). Uma pessoa desencontrada em Natal,
um poeta, cantor e ator que se diz aprisionado numa cidade grande e duvidoso de sua futura
profissão como psicólogo. Como ser psicólogo e poeta? Esses dois homens encontram-se na
cena, transformando e recriando esses relatos sensíveis num momento epifânico. Bernardo
canta a vida de José que, por meio da música, fura o labirinto manicomial de sua existência
quando relembra de um grande amor que ficara longe em sua história. Assim, sua existência,
naquele momento, se enchia de uma boa memória esquecida e ele cria uma autoficção, o seu
presente se cria. Os relatos que sempre mencionavam as violências das internações psiquiátricas
ao longo da vida deram lugar para outras narrativas/experiências: foi possível rememorar um
amor, e tornou-se possível sonhar com a entrada na Universidade. Sua história tornou-se uma
performance e pôde ser sonhada com o público ao ser compartilhada. O passado forjou-se como
uma criação ficcional misturada com o tempo presente e os sonhos de futuro. Bernardo se viu
como alguém que pôde ser poeta e estudante de Psicologia na cidade. O sutil limite entre arte e
vida foi desafiado e desconstruído naquela cena performatizada, assim como o limite de quem
cuida e de quem é cuidado. Bernardo desocupou o lugar de psicólogo e José deixou o lugar de
“usuário da rede”, uma vez que ali buscamos não explorar depoimentos que trouxessem o
conteúdo das vivências sobre o sofrimento mental, mas sim procuramos incitar recordações que
os aproximem de suas histórias como pessoas comuns que vivem, encontram, amam, perdem.
Enfim, buscamos conteúdos comunais que nos aproximam uns dos outros e que façam-nos
diferir da grande narrativa manicomial. Queríamos as pequenas narrativas, aquelas que muitas
vezes são esquecidas porque essas pessoas geralmente são lembradas somente como “usuários
de serviços de saúde mental” e eles mesmos não se reconhecem de outra maneira. Judith Butler
em seu livro Relatar-se a si mesmo – Crítica da violência ética (2015), discorre em uma análise
filosófica e psicanalítica sobre a histórica dificuldade de relatarmos a nós mesmos perante o
outro. Porque nós não sabemos como nos tornamos um eu. Ela nos conta que não há como nos
relatar a não ser pela interpelação do outro, e essa interpelação geralmente vem pelas
instituições de nossa sociedade, gerando uma violência ética que se configura quando
escutamos a pergunta: quem és? As pessoas se tornam si mesmas fazendo (performando) um
relato e esse é feito – a partir de um julgamento – que temos como régua de medida das
normativas sociais.
60
Quando relatamos a nós mesmos não estamos apenas transmitindo informações por um
meio diferente. O relato que fazemos é um ato – situado numa prática mais ampla de
atos – que executamos, por, para, até mesmo sobre um outro, e diante do outro, muitas
vezes em virtude da linguagem fornecida pelo outro. Tal relato não tem como objetivo
o estabelecimento de uma narrativa definitiva, mas constitui uma ocasião linguística e
social para a autotransformação. Em termos pedagógicos, constitui parte do que
Sócrates exemplificou sobre parresia como uma fala corajosa no espírito crítico da
“Apologia”. Em termos foucautianos, o alvo dessa parresia não é persuadir a
assembleia, mas convencer de que se deve cuidar de si e dos outros; isso significa que
se deve mudar de vida (Butler, 2015, p. 165).
Pura epifania e invenção pensar que as músicas furavam as pedras do manicômio. Mas,
de algum jeito (ainda não sei explicá-lo), as músicas tinham um pequeno poder de destinar um
outro destino àquela história de vida. E, naqueles instantes, o manicômio e suas prisões se
61
tornavam menores, longínquos. Era como se a criação cênica, logo a recriação de si, tivesse
aquele poder.
Buscávamos, naquele momento, denominadores comuns naqueles relatos de vidas e
biografias com outros operadores estéticos, tais como a poesia, a música e os textos
dramatúrgicos propriamente ditos, os quais eram recriados e misturados com os dados não
ficcionais na produção da cena. Com a “reinvenção” dos relatos, acreditávamos na
possibilidade de uma aproximação estética, ética e política da vida, que poderia criar um outro
modo de estar nela. Ao recriar essas histórias dentro de uma linguagem cênica, os integrantes
se encontravam com a possibilidade de transformação delas.
Desse modo, pode-se dizer que a experiência de produzir novas maneiras de se verem,
se sentirem, se perceberem e serem vistos aos olhos de outros, ao recriarem/inventarem suas
biografias, foi também uma forma de produzir a saúde/saúde mental dos integrantes? Foi um
ano de desejantes descobertas, enganos, esvaziamento de grupo, mudança de espaço de ensaio,
mas sempre ligado e usando os espaços da UFRN. Não era um espaço ideal, mas, no
Departamento de Artes da UFRN (DEART), conseguíamos salas de ensaio para nossas
pesquisas e éramos muito felizes.
A cena “Dois homens” foi também exibida também no Encontro Regional Nordeste da
Rede Unida em 2015, no CAPS III de Natal, visto que, naquele momento, eu tinha a intenção
de convidar a Rede de Atenção Psicossocial, seus usuários e a comunidade acadêmica
interessada em compartilhar e incentivar esse tipo de fazer artístico.
Essas pesquisas e experimentos cênicos foram nos fortalecendo para a busca de um
espaço em que fosse possível vivenciá-los. Queríamos um lugar em que as pessoas interessadas
(poderiam ser os usuários da Rede de Atenção Psicossocial local, os integrantes da Plural e
quem mais desejasse) pudessem ter acesso por meio de transporte público – ou seja, que fosse
geograficamente mais acessível – e que não estivéssemos dentro de um espaço institucional da
saúde mental, tampouco da educação formal. Queríamos um lugar na cidade. Tal trabalho nos
deu a possibilidade de continuar – na perspectiva de uma pesquisa biográfica documental – e
nos impulsionou a continuar de uma forma instituída, como campo de um projeto de extensão
universitária na UFRN e campo de estágio do curso de Psicologia para alunos do quinto ano. O
tempo estava gestando o Vento e ele chegaria para soprar num espaço da cidade.
62
Dessa forma, como espaço público a ser ocupado, tínhamos uma casa de cultura no
centro velho de uma cidade, a Pinacoteca Potiguar. Como pessoas participantes, tínhamos as
pessoas que usavam os serviços de saúde menta da cidade, caminhando num trajeto quase nunca
permitido a eles – porque eles geralmente tinham seus itinerários contidos nas idas aos serviços
de saúde mental e retorno às suas casas, com pouquíssima circulação pela cidade – e as pessoas
que estavam morando na rua – que, mesmo estando na frente daquela casa de cultura pública,
não tinham acesso a ela. Como objeto, tínhamos o desejo de um fazer artístico comunitário
inspirado na performance cênica que seria norteada pelo que se materializava por meio das
memórias de cada um e de todos juntos. Com isso, desejávamos sair das universidades (de suas
salas), dos serviços da saúde mental e da assistência social para ocupar um certo lugar no fora
dessas instituições, para assim produzir mais liberdade.
Destarte, o projeto fora escrito por muitas mãos: alunos, professores e pessoas dos
movimentos sociais envolvidos. Nas escrituras para a composição do projeto, Bernardo – aluno
e mestre – imprimiu nossa primeira imagem poética no preambulo do projeto com a música de
Chico Buarque (1973), “Mambembe”11:
11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3k9AcE-kP9A&ab_channel=paulosergiomariani.
64
Quando assinalo fazer oficinas em saúde mental “fora” da rede de atenção psicossocial,
significa levar os princípios da Luta Antimanicomial para a cidade, ampliando o convívio
dessas pessoas no exercício e na afirmação de suas existências e de seus direitos. Seguíamos na
pista para concretizar uma “clínica menor e do fora”, com os atravessamentos e avizinhamentos
junto a outros campos de saber que compusessem com a Psicologia que acreditávamos. Realizar
oficinas, nessa perspectiva, tinha para mim um gosto de desafio e uma certeza de que
poderíamos ter mais autonomia e mais liberdade para a criação artística do que se estivéssemos
dentro dos serviços.
Entendo que saúde mental tem total relação com a liberdade, com ampliação ou
instauração das vozes, do exercício do diálogo, com vivências afetivas e estáveis, direito à
circulação e ao pertencimento à cidade e a seus territórios, sejam eles afetivos, existenciais ou
simplesmente territórios geográficos. É, com isso e para isso, ter a possibilidade de estabelecer
e ou restabelecer contratos sociais. Mas, percebíamos também como a produção de saúde
mental encontrava limites na própria rede de saúde, em suas capturas institucionais e
disciplinares. Então, tentávamos “fazer algum respiro”, nas bordas dessa rede, também
procurando potencializá-la de algum modo por meio das experiências dos usuários. Na Figura
1, mostro nosso primeiro cartaz feito para convidar as pessoas para fazer as oficinas. Era uma
aposta, um desejo. Por isso, temos nele uma praça, bancos, cortinas – que indicavam um palco
–, bem como os logos de quem nos compunha e apoiava: o Centro de Referência de Direitos
Humanos da UFRN, o MNPR/RN e a Associação Potiguar Plural. Era só um desejo que
ventava.
65
Figura 1. Cartaz das oficinas realizadas no projeto “(In)Visíveis e Loucos pela Cidade:
encontros libertários entre arte e saúde mental”.
Os desafios foram muitos desde o primeiro dia. Entre os principais, estão a adesão e a
continuidade dos participantes, o que nos deixava em dúvida quanto ao alcance do trabalho. Eu
já não regia as oficinas sozinha: trabalhava com Apolo, Bernardo e Gilda (atores e estudantes
estagiários de Psicologia na época). Não fechamos o grupo: as atividades eram abertas a toda a
rede de saúde mental da cidade. Mas, eu tinha receios de como seria a continuidade das
pesquisas cênicas, uma vez que poderíamos ter uma alta rotatividade de participantes.
Como de costume, iniciávamos todas as atividades com exercícios corporais e depois
partíamos para os temas disparadores. Meu diário de campo registrou o momento da passagem
de um projeto sem compromisso de institucionalidade para um projeto que tinha a
responsabilidade com a formação de alunos e com a rede de saúde mental.
O ano começa com novos espaços de sonhos para o grupo. Começamos um trabalho,
com um novo olhar, uma nova coordenação e direção. Agora somos mais... Iniciamos
com algumas pessoas que estavam no CAPS III Leste.
66
Estamos agora no centro antigo de Natal, na Pinacoteca do Estado. Lá, vamos começar
a formação de grupo para depois trabalharmos com as histórias daquelas vidas. Ficou
para mim os olhares da Luiza, aqueles que fixam e conseguiram desfixar por um tempo.
Ficou para mim o cuidado de Bernardo com as meninas. Ficou para mim a pergunta:
eles voltam?
Como voltam? Quem são? Quem podem ser? Quem foram?
Fica para mim a mesma pergunta: quem volta? (Diário cartográfico).
A partir do início das oficinas, julguei importante ter outro espaço virtual e coletivo para
que os colaboradores, os estudantes e eu escrevêssemos nossas impressões, nossos registros e
também documentássemos como fotos, vídeos, poemas, além de elaborarmos nossos
planejamentos coletivos. Assim, criei um grupo secreto no Facebook para tais fins:
https://www.facebook.com/groups/108922719523538/.
“Quem foram? Quem podem ser? Como voltam?” Essas questões me atravessaram
durante o início das oficinas. Minha maior dificuldade era como fazer aquelas pessoas falarem
de si sem caírem no labirinto de suas dores institucionais. Sem ser violenta – no sentido de
trazer à tona memórias tristes –, interpelá-los e revitimizá-los a performatizar um relato a partir
da minha pergunta: quem é você? Ou: do que você se lembra? Como produziria liberdade? Em
outros termos, como não reproduzir as mesmas perguntas de sempre? O que perguntar para
produzir variação e diferença? Suscitando a discussão de Butler sobre a violência ética (que
pode se realizar ao interpelar o outro), José, Bernardo e eu já havíamos experimentado essa
possibilidade (explicitada anteriormente). Logo, lembrava-me do quanto aquele processo havia
sido libertador e saudável para nós.
Outra questão era: por estar em um grupo maior, como resolver a problemática de
propor o relatar-se, revistar as biografias sem cair em momentos tortuosos, exageradamente
longos e labirínticos, aspecto que percebia que acontecia quando eu tinha que manejar uma
oficina ou trabalho coletivo com pessoas em sofrimento psíquico? Naqueles contextos, falar de
si era um labirinto que se fechava e recaia nos mesmos lugares. Geralmente, não abordavam
boas lembranças e, se elas eram recordadas, a ruptura e a desesperança – ou mesmo as narrativas
de superação – se faziam presentes. Existiam sempre histórias muito tristes que eram evocadas
(internações, violências, perdas, misérias sociais e afetivas) e dali nos enredávamos todos sem
uma saída possível, a não ser pela presença de orações ou cultos à transcendência. Entretanto,
como evitar ou encontrar outras narrativas de vida, agora em contexto maior, com menos
67
controle das expressões cênicas e sem a centralidade no “eu” triste, fortalecendo a dimensão
coletiva da experiência? Seria preciso encontrar dispositivos e procedimentos clínicos, éticos e
estéticos para produzir tais narrativas. Butler (2015) nos ajuda a pensar novamente sobre a
dimensão e poder da possibilidade da despossessão de si como reinvindicação ética:
Dizer a verdade sobre nós é algo que nos envolve em querelas sobre a formação do si
mesmo e a condição social da verdade. Nossas narrativas enfrentam um impasse quando
as condições de possibilidade para dizer a verdade não podem ser tematizadas, quando
o que falamos se baseia numa história formativa, uma sociabilidade e uma corporeidade
que não podem facilmente ser reconstruídas na narrativa, se é que podem.
Paradoxalmente, torno-me desapossada no ato de dizer e nesta despossessão consolida-
se uma reinvindicação ética, visto que nenhum “eu” pertence a si mesmo. Desde o início
ele passa a existir por uma interpelação que não posso recordar nem recuperar, e quando
ajo, ajo em um mundo cuja estrutura, em grande parte, não é criação minha – o que não
equivale a dizer que não exista criação ou ação minha no mundo. Certamente existe.
Significa que apenas o “eu’, seu sofrer e seu agir, dizer e conhecer, acontece em um
crisol de relações sociais, variavelmente estabelecidas e reiteradas, sendo algumas
irrecuperáveis e outras responsáveis por invadir, condicionar e limitar nossa
inteligibilidade no presente. Quando agimos e falamos, não só nos revelamos, mas
também agimos sobre os esquemas de inteligibilidade que determinam quem será o ser
que fala, sujeitando-os à ruptura ou à revisão, consolidando suas normas ou contestando
sua hegemonia (Butler, 2015, p. 167).
Quando eu solicitava para que eles agissem (performarem) ao falarem de si, eu desejava
a ruptura ou a revisão do lugar da narrativa da doença mental, pretendendo contestar e performar
uma reinvindicação ética para nós todos. Queria tematizar qual a condição para que eles
dissessem as suas “verdades”. Por isso, essa narrativa quase que impossível de ser feita nos
interessava: a narrativa de si, capaz de despossuir os lugares de loucos, andarilhos, ladrões,
insanos, não amáveis, não existentes. Trata-se de performar ou agir sobre os esquemas que os
tornavam ininteligíveis, rompê-los em sua hegemonia. Fazer um arranhão na história
normatizada e normalizada, esburacar a hegemonia da razão sobre a loucura, construída
geralmente pelos médicos, psicólogos, assistentes sociais e acadêmicos – quase nunca pelas
pessoas que desviavam da razão. Queríamos a “contestação dos esquemas de inteligibilidade”,
com a enunciação das memórias alegres que não puderam ser lembradas, tampouco narradas.
Olhando as primeiras cenas de autoficção no capítulo anterior, eu usei a palavra
despossessão, vinda do livro de Butler (2015), como uma forma de se livrar de memórias ruins.
Ampliaremos esse conceito para uma leitura ética e política ao refletir que aquelas pessoas
poderiam desafiar a lógica de uma história formativa acopladas a uma sociabilidade e uma
corporeidade que não puderam ser reconstruídas na narrativa: desapossá-los da história que
68
Considero que a proposta de Vivi Tellas se insere em uma das discussões mais vitais da
arte contemporânea e que constitui em si mesmo um manifesto sobre o lugar desejável
para a arte em nossa sociedade e sobre as possibilidades específicas do Teatro e seus
corpos em cena para retramarmos os laços dissolvidos na comunidade (Brownell, 2013,
p. 771).
12
Sugiro que o leitor assista a um TED (TEDx Talks, 2013) que tem como convidada a diretora teatral Vivi Tellas.
Nesse vídeo, ela mostra sua pesquisa que busca a ruptura das barreiras que separam a vida e o Teatro. Ela enfatiza
e trabalha cenicamente com o que existe de teatralidade em nossas vidas cotidianas. É muito interessante conhecer
seu trabalho que leva o nome de “Biodrama”.
70
entre a vida e a arte, manifestada na repetição e nas escolhas (edição), bem como na ativação
da teatralidade da vida cotidiana (Simas, 2015).
O Biodrama pode ser considerado por alguns teóricos como um subgênero do Teatro
Documentário, no bojo daquilo que se entende por “Teatros do Real”: o Teatro Documentário,
docudrama, Teatro baseado em fatos reais, Teatro sem ficção e autoescrituras performativas
(Leite, 2014). Nessas estéticas, o palco se transforma na produção de memória social. Ao
“encenar” a vida de anônimos e pessoas comuns, se produz um discurso político com a
problematização dos cotidianos revisitados.
Aquele que testemunha vive o drama da irrepresentabilidade do vivido, este vive a culpa
devido à cisão entre a imagem (da cena traumática) e a sua ação entre a percepção e o
71
O geógrafo Pausânias narra que na Beócia, o rio do esquecimento, o Lete, corria ao lado
da fonte da memória, Mnemósina. Segundo os antigos, as almas bebiam do rio Lete
para se livrar da sua existência anterior e posteriormente reencarnar em um novo corpo
– como se lê em Virgílio, Eneida, VI, 713-16 (Seligmann-Silva, 2003, p. 53).
O passado é o que não passa: ele dura. E o presente é o que nos passa se esvai. Assim,
uma vez que a memória é viva e não passa, nossa aposta era encontrar o que era virtual e poderia
ganhar intensidade e se atualizar para voltar a passar na vida daquelas pessoas. Gostaríamos
que o que se conservasse e se manifestasse fossem as memórias alegres. Pois, desejávamos que
o presente aprisionante passasse logo.
Voltando ao diário cartográfico, eu resgato aqui uma preocupação que nos rondava no
começo dos encontros. No diário, observo a necessidade de enfatizar ao grupo a importância
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de resgatarmos as memórias dos participantes, mas que fossem alegres, além da necessidade de
que retomássemos um método e que ele fosse um dispositivo de cuidado.
Gente, tendo em vista que somos seres de e para cuidado, seguem alguns princípios que
acho que devemos atentar nos nossos encontros:
1. Não propor temas que envolvam afetos tristes (eles sempre aparecem, por isso não
devemos suscitá-los.
2. Ao contrário: sempre trabalharemos com memórias de afetos alegres.
3. Os temas das memórias que se tornam cenas devem ser trabalhados com cuidado,
sempre colocando a pessoa na condição de escolher como e se quer fazer a cena. A
maneira como isso se dá depende da nossa sensibilidade e do método. É sempre bom
buscar intercessores para contar a história, tipo: imagens, matérias de jornal (Internet),
elementos históricos etc. ESTAMOS TRABALHANDO COM TEATRO
DOCUMENTÁRIO, NÃO É PSICODRAMA OU TEATRO DO OPRIMIDO.
4. Esse blog da Cia. Teatro Documentário é bem inspirador:
http://teatrodocumentario.blogspot.com.br/.
A solicitação explícita para que acessássemos as memórias alegres, para fugirmos dos
labirintos manicomiais, era imperiosa para o grupo. Ao olhar para essa escrita atualmente,
preciso me amparar teoricamente sobre aquela necessidade intuitiva e pragmática: o que seria
alegria? Como promovê-la sem cair no caminho fácil da recreação ou da infantilização? Ou
mesmo da abordagem do psicodrama, ou tratá-la como um tema a ser abordado como em um
Fórum de Teatro do Oprimido?
Para tentarmos aprofundar e fazer conexões que, na época, ainda eram intuitivas, eu
recorro a um filósofo que foi inspiração para o pensamento da Esquizoanálise: quem nos guiará
nesse momento será Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo racionalista do século XVII que,
em sua obra Ética (2009/1995), tratou da sua filosofia e a sua contribuição sobre a natureza e a
virtude dos afetos. Assim, ele nos fala quando inicia o prefácio da terceira parte da Ética;
“Origem e natureza dos afetos”:
Para esse filósofo, a Natureza ou Deus são perfeitos e o homem, como modo finito de
Deus ou de Natureza, também o é. A natureza em sua perfeição afirma-se sendo causa e efeito
de tudo, e assim deve ser o homem livre: ser causa e efeito de si mesmo. Os afetos, dessa forma,
não se opõem ou são diminutos comparáveis à razão do homem: os afetos compõem-no em sua
perfeição. Corpo é mente e mente é corpo: são unívocos e, para o filósofo, são atributos da
extensão ou do pensamento do modo finito que é o homem em relação ao modo infinito que o
tem (Deus, a Natureza). A filósofa Marilena Chauí, ao ler Espinoza, compreende os afetos
como:
[...] as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
estimulada ou refreada, entendendo que a alma é a ideia do corpo e um afeto é a ideia,
na alma, da afecção corporal. Um afeto é um acontecimento corporal e psíquico ao
mesmo tempo (Chauí, 2011, p. 150).
A autor supracitada, em seu livro Desejo, paixão e ação na ética de Espinoza (2011),
escreve que a filosofia espinozana refere-se ao questionamento sobre a infelicidade e,
consequentemente, a servidão do homem: não podemos condenar os homens, não se trata de
culpabilizá-los por sua condição servil e infeliz nem procurar em sua natureza a causa de seus
vícios. Sua filosofia interroga as causas naturais e necessárias dessa condição e “procura o
caminho pelo qual os homens, por si mesmos, exercerão a liberdade e serão felizes” (Chauí,
2011, p. 149). No trecho abaixo, a filósofa aborda o tema da ética, da liberdade e a importância
da questão dos afetos para Espinoza:
A questão ética, portanto, volta-se para a gênese dos afetos, suas diferenças intrínsecas
e seus efeitos diferenciados. De onde nascem os afetos? Quais nos tornam passivos e
quais nos tornam servos? Quais são ativos e exercício da liberdade? Não sendo vícios
nem virtudes, são afecções de nosso corpo e afetos de nossa mente, forças de existir e
de agir que podem ser freadas ou impulsionadas por forças externas, como podem
desenvolver-se por si mesmas graças à casualidade interna ou adequada. Porque são
forças demonstra Espinoza, os afetos jamais serão vencidos por ideias ou por vontades,
mas apenas por outros afetos mais fortes e contrários. A razão, enquanto tal, é impotente
para domá-los e dirigi-los, a menos que a atividade racional seja, ela também,
vivenciada como afeto. Compreender os afetos é, pois, alcançar sua origem (Chauí,
2011, pp. 149-150).
75
Para se conhecer, o homem deve conhecer as afecções de seu corpo e as ideias dessas
afecções em sua mente. “Quando a mente considera a si própria e sua potência de agir, ela se
alegra, alegrando-se tanto mais quanto mais distintamente imagina a si própria e a sua potência
de agir” (Espinoza, 2009, p. 67). Assim, a alegria como afecção do encontro dos nossos corpos
em relação a outros corpos e a ideia que temos de nosso corpo afetada de alegria aumentam a
potência de agir do homem.
Além disso, uma vez que a alegria aumenta ou estimula a potência de agir do homem,
facilmente se demonstra, pelo mesmo procedimento, que o homem afetado de alegria
nada mais deseja do que conservá-la, com um desejo tanto maior, quanto maior for a
alegria (Espinoza, 2009, p. 62).
Podemos pensar a partir da leitura acima que a alegria é a passagem do homem de uma
perfeição ou realidade menor para uma maior, numa variação contínua da força de existir num
corpo.
Marilena Chauí reflete que a liberdade é essa luta pela ampliação da perfeição ou da
realidade a partir da teoria da paixão e da ação, segundo graus de força ou intensidade. Uma
paixão é mais forte do que outra quando aumenta a capacidade de existir de nosso corpo e de
nossa mente. “A liberdade nasce desse e nesse movimento de passagem das paixões tristes às
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alegres e das paixões de alegria às ações suscitadas pelo desejo e pela alegria enquanto causas
adequadas ou internas” (Chauí, 2011, p. 150).
Olhando para trás, escrevendo hoje sobre nossas experimentações, vejo o quanto de
liberdade desejávamos e, que de certo modo, compreendo que estávamos no caminho certo ao
pensar nas diretrizes dos exercícios das memórias alegres direcionadas ao grupo. Pois a alegria,
mesmo que imaginada ou lembrada (uma paixão alegre), ganhava vida naqueles corpos, era
uma memória de uma afecção vivida e reexistente através dos exercícios das memórias. Era
uma memória da luta pela liberdade que aquelas pessoas, aquelas partes da Natureza em modo
finito, guardaram para si em seus corpos e na ideia de seus corpos juntamente. As memórias,
ao serem suscitadas, eram causa em si, perfeição ou realidade – isto é, produziriam ações e
realidades. As cenas que iriam criar e depois performar forjariam uma paixão alegre,
aumentariam suas forças ao encontrar com outros corpos. Seria, então, uma experiência de
produção de liberdade, tendo em vista que era o aumento de realidade e de ação que
desejávamos.
77
Figura 2. Cartaz produzido pelos alunos e pelas professoras envolvidos no projeto “(In)
Visíveis e loucos pela cidade: oficinas e encontros libertários entre a saúde mental e a
população em situação de rua”.
Os critérios para ativação das memórias e dos sentidos para a produção das narrativas
dos participantes foram muito discutidos pelo grupo envolvido e pela coordenação do projeto.
Nem todos os exercícios disparadores geraram performances cênicas: alguns geraram
momentos impactantes nos encontros e outros geraram material para produzir as “cenas”.
Assim, propusemos os seguintes exercícios:
1. Escrita de uma memória de infância alegre;
2. Cheiro de alguma coisa que me trouxesse boas memórias;
3. Foto ou objeto de alguma história de amor;
13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f6JOMFnzlTw&ab_channel=MarcelFukuwara.
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capacidade de chegarmos muito perto de outro estado, de nos avizinhar, roubar estados e, por
instantes, nos transformar. Foi uma sensação de alargamento da existência, de ganho, de banho,
de acréscimo do outro estando ainda em nós. Era do campo da alegria, da paixão alegre que se
torna ação, da liberdade. Da pequena liberdade ou da liberdade menor, era aquela que nos cabia
criar ali. Perfeita porque era real ou real porque era perfeita. Era aumento de potência, aumento
de vida.
Quando solicitamos que as pessoas trouxessem fotos ou quaisquer documentos
concretos de uma história de amor, já no terceiro exercício, tivemos poucas fotos, poucos
registros, raras narrativas. Fizemos uma roda e pedíamos, mesmo sem os documentos, que cada
um escolhesse alguém da roda para contar essas histórias. Tínhamos poucas pessoas na oficina
e, de fato, a lembrança daquilo que chamamos de amor (para nós que pensamos a oficina) não
era um direito garantido para os que a frequentavam. Os amores eram perdidos ou sequestrados
na jornada das violências do Estado e nas outras tantas violências vividas que gritavam ali.
Lembrar sobre o amor, seja lá em qual contexto, naquele dia, não foi uma tarefa possível.
Da provocação “No dia que descobri que eu era eu”, o quarto e último exercício,
vivemos narrativas sobre revelações daquelas vidas, muitas histórias que envolviam as famílias,
histórias trágicas desses pais que eram ditos como dragões em algumas cenas, em outras eram
pássaros, outros pais eram gigantes, monstruosos:
Ele era protetor, amoroso, carinhoso, gentil, alegre, trabalhador, dedicado à família. Não
era carne nem peixe, era uma pessoa boa.
Ele tinha cabelos de fogo e seu olhar era como o oceano: hora cheio de lágrimas, hora
seco de alegria.
Ele não tinha memória, era um gigante. Vivia sempre no presente. Era um construtor e
construía sua cidade. Enquanto a construía, ele tomava conta da cidade dos dragões.
Nos dias difíceis, quando os dragões soltavam suas labaredas de fogo, seus olhos
enchiam de água; era a maré cheia. Quando os dragões dormiam, seus olhos secavam e
ele ria... Era a maré seca. Um dia, construindo sua cidade, dormiu e se esqueceu do fogo
dos dragões. Sem perceber, o fogo o envenenou. Hoje, o gigante sem memória dorme e
o mar seca.
Quando anoitece, a lua aparece. No nascer do sol, ele renasce (Diário cartográfico).
Interessante é que a sentença “No dia que descobri que eu era eu” não pedia respostas,
era somente um operador, porém, ela fez nascer uma narrativa coletiva – o texto acima foi
escrito por muitos. Surgiram seres meio humanos, meio animais, fabulações que misturam
acontecimentos do cotidiano com familiares – principalmente, com os pais – com seres
mitológicos e assustadores. A atmosfera foi nebulosa, pesada, mas, ao mesmo tempo, algo se
81
movimentava ali, algo ganhava densidade na passagem para outro estado. Entramos, naquele
momento, em uma fabulação criadora que, segundo Deleuze e Guattari (2010), não corresponde
a uma lembrança ou fantasma:
Senti exatamente isso naquele momento: uma extrapolação do vivido. Era pura
sensação, blocos de afectos e perceptos juntos naquela atmosfera de luz crua, de nos tornarmos
videntes juntos naquela cena que estourava as percepções vividas. Fabulamos gigantes, luas
cheias e marés: com isso, nos despossuídos de uma narrativa e de um corpo cheio de linhas
mortíferas. Éramos devir por alguns momentos.
Foi uma oficina intensa: colocávamos um banco no centro da sala e respondíamos a
essa provocação, de maneira a todos se sentarem e contarem sobre o dia que descobriram que
eram eles eram eles. Impossível saber, impossível contar, mas possível fabular. Dávamos lugar
ao não narrável daquela forma.
Do exercício “Escrita de uma memória de infância alegre”, surgiu uma cena a partir da
narrativa de Loa e de outras pessoas que vou apresentar aqui.
Loa era uma mulher de cinquenta anos que frequentava o CAPS III há uns três anos.
Vinha às oficinas de maneira tímida e, inicialmente, muito assídua. Quando foi ler sua história
para que Gilda – estagiária de Psicologia –, pedimos que o fizesse em gestos. Loa se iluminou
e começou a cantar uma música que falava de amor, de um amor não vivido. Depois, ela nos
contou como havia “inventado” aquela música: aquela era uma canção que um enamorado teria
feito para ela. Naquele período, Loa ajudava a filha a fazer a faxina na casa dela. Enquanto
limpava a residência, ela imaginava que aquele homem (que não conhecia, mas o via, pois ele
era vizinho de sua filha) um dia iria se declarar por meio de uma música que ele faria para ela.
Loa cantava aquela música para nós como quem compartilha um bom segredo guardado há
anos. Loa seguiu com sua música até a Mostra Cênica, criou uma performance belíssima sobre
a memória de um grande amor que nunca se realizou. Aliás, ela o realizou, pois o cantou ali em
ato e em público!
No dia da Mostra, trabalhamos com instalações cênicas. Nosso cenário era o próprio
casarão da Pinacoteca, suas escadarias e um salão no primeiro andar. Cada cena a ser
performatizada tinha um lugar no salão para acontecer. Não tínhamos objetos cênicos, nem
iluminação, era um cenário sem cenografia, precário – e assim nos assumimos, em uma beleza
precária. Usamos a arquitetura do casarão como tal. As performances seguiam um itinerário,
havia um mapa a ser desenhado que poderia se modificar, pois o erro – que não seria errôneo –
era previsto e o improviso também. O mapa do itinerário cênico foi criado coletivamente
durante o primeiro ensaio realizado no mesmo dia da Mostra. Participantes que nunca mais
tinham ido às oficinas apareceram por lá e quiseram realizar suas cenas – e isso era possível,
pois o itinerário foi criado naquele momento. Não havia nada muito ensaiado. De fato, tudo foi
muito performatizado, não havia texto a ser decorado: havia os disparadores de memória antes
trabalhados e que, na Mostra, aconteceram conforme o desejo de cada um de se fazer ver.
O casarão era nosso mote arquitetônico, então resolvemos que Loa era a anfitriã de
nossa casa. Ela guiaria os convidados até o primeiro andar, onde as performances iriam
acontecer. Daí inventamos que Loa enxergava em algum convidado aquele seu amor e então
contaria para ele a sua história enquanto levava todos à sala do primeiro andar. Um dos atores
levou no dia da Mostra uma flauta e disse-nos que sabia tocar uma música: a música tema do
83
filme Titanic. Assim foi improvisado: Elízio tocava a flauta enquanto Loa, em seu vestido de
noite, recebia seus convidados na base da escadaria e subia, levando-os à sala: entre eles estava
aquele homem.
Sobre nossa I Mostra... Tivemos Loa (Dora) e sua canção que ele havia feito para ela.
A plateia fica um tempo esperando e ouvindo a música do filme Titanic, aquilo me gera
uma espera ansiosa, uma beleza, uma ânsia boa... A música acaba e nós a esperamos.
Loa aparece e desce a escadaria do casarão, conta-nos sobre a história daquela música,
é forte, é inteira ali... É ela... LOA. Dora? Onde estaria? Convida-nos a subir, canta pra
alguém, olha em seus olhos, encontra e leva seu amor a sala cantando uma música feita
só pra ela. Subimos enfeitiçados por essa mulher que nos leva e nos envolve (Diário
cartográfico).
5.3.2 O dançarino
entendemos que seria importante uma conversa com a equipe ou profissional de referência para
pensar o porquê daquele rapaz ser mantido internado por tanto tempo. Tentamos contato com
a equipe, mas não tivemos sucesso – aliás, não era novidade não conseguir conversar com os
profissionais daquele serviço. Percebíamos o uso de muita medicação por parte dele. Muitas
vezes, ele não conseguia fazer as aulas, estava muito cansado, com sono. Aos poucos,
percebemos que ele foi se sentindo à vontade para conversar sobre suas medicações, mas não
sei relatar se houve diminuição ou não da medicação. Todavia, sei dizer que a cada oficina nós
usávamos mais nossos corpos, suávamos cada vez mais e ele ia participando cada vez mais.
Constatávamos que o fato suarmos muito nos ajudava a limpar os corpos ultra medicados. A
partir daquele momento, ele dançava cada vez mais Hip Hop em suas cenas, em nossos
momentos de pausa e de aquecimento. Ele era um dançarino e como tal precisava dançar! Esse
era o Teatro nele. Abaixo, transcrevo sua performance:
– Quem sou eu? Quem sou eu? Quem sou eu? – Gritando.
– Um louco??
– Um louco?? – Dança, faz giros de Hip Hop.
– Quem sou eu? – Pergunta ao público. Dançando e ficando de ponta cabeça em uma
mão só com maestria, pergunta:
– Quem sou eu? Quem sou eu???
Sai perguntando:
– Um louco? Um louco?
Sua fala na performance foi uma criação instantânea sua: o dançarino queria realmente
saber quem era louco ali e por que a tanto tempo internado? Testemunhávamos alegremente
seus giros, seu suor e sua beleza. Ria e nos questionava. Será que ele poderia questionar sobre
o que lhe aconteceu? O que a loucura tem a ver com a prisão de nossa sexualidade, de nosso
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corpo, de nosso choro, de nosso ódio em meio a uma necrópole? O que sabemos é que ele era
somente um jovem, pobre, morador da Zona Norte que perdera a mãe e que nunca havia podido
dançar.
Ao longo do primeiro semestre das oficinas, ele participou do primeiro seminário LGBT
da população em situação de rua, organizado pela UFRN e pelo Centro de Referência de
Direitos Humanos da UFRN. Foi muito interessante observar que seu encontro com aquele
público (entre muitas outras coisas que não sabemos) o libertou para viver sua orientação
sexual. Era visível que o dançarino havia se lembrado de algo importante e, ao mesmo tempo,
tinha se esquecido e se despossuído de tantas outras coisas naqueles meses. Para se contar, ele
teve que nos contar muitas coisas e teve que nos perguntar: quem éramos? Sentimos na pele a
violência que essa questão impõe. Quem somos? Profissionais, estudantes, acadêmicos,
militantes, ativistas que lutam pela causa antimanicomial? O que significa isso? Até hoje me
sondo e busco a resposta. Quem era louco ali? Quem não era? Quem era livre? Quem não era?
Nunca mais o vi. Que esteja dançando!
5.3.3 O nascimento
José era aquele que esteve conosco desde o começo – já mencionado. Aquele homem
que encontrou outro homem, que inventou sua biografia, que lembrou de um amor. Ah! O José
nos acompanhou e nos guiou durante o tempo todo. Ele e sua mãe Ivone, sua companheira nas
reuniões da Plural e em todos os momentos. Eles formavam uma dupla: estavam sempre juntos
e tínhamos a certeza de que havia uma composição extremamente afetiva e alegre naquela
maneira de ser mãe e filho. José, ao longo das oficinas, sentiu a necessidade de aprofundar sua
biografia a partir da provocação “O dia que descobri que eu era eu”.
José performatizou seu nascimento em posição fetal e, depois de muito esforço, ao
conseguir ficar em pé, ele se tornava outro. Olhava-se no espelho que fez com as mãos e nos
falava que iria ser psicólogo para atender a todos:
José começa a cena em posição fetal, no chão. Aos poucos, vai se levantando, mas,
quando tenta se levantar, mostra como se tivesse caindo novamente. Faz esse gesto
corporal de um bebê que tenta crescer, sair do chão e que tem muita dificuldade para se
levantar e se manter por conta das quedas. Consegue ficar de quatro apoios e faz um
som de dor. Levanta-se, estica a mão para cima e olha para a palma de sua mão dizendo
para ela (como se fosse um espelho): – O que é que está me olhando? – Gritando. – O
que é que está me olhando?! – Ele olha ao redor.
86
O feto, a luta para nascer. Os gritos, o rastejo. Quem nasce ali? Um rei, um papa, um
ser de poder ímpar que ao se olhar quebra seu espelho. Nasce a psicopatologia, nasce a
norma da normalidade. Ali é alguém muito poderoso que nasce. E o rei da Psicologia
conta-me sua história amarga e ainda me ameaça e ri alto dizendo que um dia ia me
tratar. Falou alto, rindo alto e apontando pra todos ali.
Um dia serei seu psicólogo e seu também, e seu.... e seu também.
Nasce João, nosso rei invertido (Diário cartográfico).
José era um homem doce, de boa conversa. No entanto, em sua performance manifesta-
se uma outra persona. Vemos um homem vingativo, rancoroso e muito desejoso de poder. José
se olha no espelho de suas mãos e nos pergunta agressivamente: o que estão me olhando?
Mostra-nos o reverso de si, espelha talvez sua dor de ser visto como deficiente a vida toda.
Vinga-se por um momento em sua cena, desejando ser os olhos de quem mais julga e cria as
deficiências: em muitos casos, a própria Psicologia – quando se afasta de sua potência
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libertadora – é a própria régua societal que, com suas margens, inclui ou exclui os corpos de
sua existência. Ali, na plateia, senti a inversão dos papéis. Ali, inquieta e medrosa, percebi estar
sentada do outro lado.
5.3.4 “Mãe”
Mãe era a mãe. Uma mulher que pouco frequentava as oficinas. Naquela época, tinha
conseguido sair da situação de rua e estava morando com seu companheiro e com seus filhos
que haviam estado sob a custódia do Estado em um abrigo por algum tempo. Mãe fazia parte
do MNPR/RN. Nos conhecemos por conta do movimento social e algumas poucas vezes ela
conseguia passar as tardes conosco.
No dia da Mostra, ela fez questão de se apresentar com seus filhos, criou rapidamente
uma cena para manifestar o seu amor maternal. Naquele dia, trouxe as ruínas de sua vida nas
ruas, sua vida no beco sem saída. Fomos testemunha daquela cena ali no casarão e já éramos
testemunhas quando a conhecemos no MNPR/RN. Quem era? Quem eram aquelas crianças?
Aquela narrativa conhecíamos bem. Sempre a mesma. Como poetizar tanta dureza? Como fazer
mostrar aquilo que nós, todos os dias, queremos lembrar para não esquecer, ao ver as mães
perdendo seus filhos para o Estado brasileiro? No momento da criação da cena, desejamos que
um lampejo de sonho – ainda e sempre possível no Teatro em nós – transforme seus filhos em
pássaros – talvez um dia pudessem ser vistos e voar.
Movimentamos Mãe na cena para que ela saísse do gesto repetitivo de quem acende um
cachimbo de crack para o gesto de abrir a janela, olhar a luz do fim de tarde, virar-se para os
filhos e fazer o gesto de vê-los. Quando ela se virava para tentar enxergá-los, nós percebíamos
que a cena era a vida. Eles se emocionavam quando os olhares se encontravam, os abraços que
dali surgiam eram orgânicos.
A cena terminava quando a filha a vestia com a camiseta do MNPR/RN. Sabíamos que
aquelas três vidas estavam ali, naquele lugar, porque existia aquele movimento social.
Tínhamos aquele apoio importantíssimo que aglutinava politicamente algumas pessoas em
situação de rua. É válido salientar que os movimentos sociais foram fundamentais para a
manutenção do trabalho das oficinas. Agrupavam as pessoas, transformavam aquilo que era um
sofrimento (que poderia estar individualizado nas mãos de um Estado violento) em grupalidade
e em movimento político. Aquilo, geralmente, fortalecia os participantes. Por isso, aquela
88
menina vestir a mãe com a camiseta foi para nós um reconhecimento do Movimento e de sua
importância naquelas vidas. A vida novamente invadia a cena:
Mãe está de costas para o público, olhando a janela fechada. Seus dois filhos estão atrás
dela, chamando-a, puxando sua saia, imitando pássaros inquietos que bicam o corpo da
mãe, mas ela não os vê. Mãe se vira para o público, continua sem notar seus filhos à sua
volta e encena sua realidade quando morava nas ruas: faz gestos de quem tem que atacar
e se defender com uma faca; faz o gesto de quem está fumando crack no cachimbo e de
quem está tentando se defender de algum perigo. Ela está na rua, num beco, tem que
usar faca para se defender.
Seus movimentos bruscos ganham uma pausa e ela vai até a janela, abrindo-a. Nesse
momento, vira-se para o público. Quando ela se vira, ela vê seus filhos que estavam ali
o tempo todo. Eles dizem:
– Mãe!
Ela os abraça e diz:
– Meu nome é Mãe. Eu escolhi e eu sou mãe.
Ela diz:
– Sou Mãe, sou mãe.
Sua filha a veste com a camiseta do MNPR/RN. Ela os abraça.
As crianças dizem:
– Te amo, mãe.
5.3.5 O bufão
Essa performance foi mostrada por Bernardo, aluno estagiário de Psicologia. Bernardo
era ator e responsável conosco pela vigência do Vento dos Avoados. Nosso companheiro desde
89
Canta, olhando nos olhos do público, canta mais alto, mais rápido, inicia um giro e gira
mais rápido mostrando alegria. Até que cai no chão em êxtase e lá fica.
Bufão bicho
14
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WWfseMcAUZY.
90
De longe, vemos suas narinas ofegando, cheirando. De longe, sinto que aquele cheiro
fede, incomoda. Vemos alguém que busca, num jeito de desejo de busca. Ele vai, vai,
vai, vai como alguém que busca o êxtase, vai até se achar. Quando acha, cai como
alguém cansado de amar (Diário cartográfico).
Assim o era: bufão devir bicho. Psicólogo se formando poeta sendo. Essa primeira fase
do Vento dos Avoados teve como característica a pesquisa de si. E assim terminou a nossa
Mostra. Seguimos com nossas pesquisas e as oficinas foram se modificando à medida que as
pessoas que frequentavam também foram mudando.
Podemos produzir uma reflexão sobre muitas questões que emergiram dessa
experiência. O que foi mostrado? Fez sentido continuar a pesquisar as narrativas de si e
performá-las? Um primeiro ponto a ser ponderado: observamos que uso dos relatos
autobiográficos e dos depoimentos narrados/performados criou não somente uma forma de
expressão artística, mas sim uma nova possibilidade de conhecer a vida daquelas pessoas por
um ângulo pouco investido nas clínicas em suas diversas roupagens no campo da saúde mental.
Conseguimos produzir acontecimentos, rupturas e devires a partir da narrativa de uma memória
com um movimento de afirmação de um presente – mesmo que momentâneo –, afirmando,
assim, outras possibilidades de encontro com as respectivas biografias.
Muito embora não estejamos no campo de estudos das identidades, o trecho abaixo,
retirado do texto “Cidadania como forma de tolerância”, de Saraceno (2011), aborda a questão
de sua reconstrução histórica, dos sentidos individuais dos usuários de serviços de saúde mental.
Para ele, o primeiro passo em relação a reabilitação psicossocial seria a libertação por parte
dessas pessoas de uma falsa identidade coletiva: a do doente mental crônico.
Outra vez uma identidade a serviço da negação do sujeito. Uma primeira etapa da utopia
deve ser o reconhecimento, sem indecisões nem exceções, do fato que cada homem e
mulher é produtor de sentido. Etapa mais ambiciosa será a de reconhecer, e
consequentemente agir, que os milhões de homens e mulheres cuja produção de sentido
está limitada, bloqueada, aniquilada, negada, não estão nesta condição por serem
enfermos mentais ou por estarem em terríveis situações de sofrimento psicossocial, mas
sim essencialmente por falta de resposta adequada às suas enfermidades e aos seus
sofrimentos psicossociais (Saraceno, 2011, p. 97).
para aqueles que tiveram suas histórias narradas e aprisionadas ao código hegemônico do
“doente mental”? E isso, dependendo dos territórios, ainda se desdobra em outras semióticas,
tais como: perigoso/infantil/inútil/louco.
A respeito da conceitualização teórica da performance e da performatividade, Bojana
(2017, p. 34) nos conta que há três “linhas de significação a partir da etimologia da palavra
performance: primeiro: que a performance é uma ação; segundo: que o seu valor instrumental
consiste na formação de algo através do fazer; e terceiro: que a formação implica perfeição”.
Em seu texto, a autora traz uma construção crítica sobre a sociedade neoliberal em que a ideia
da performance nos subjetiva, tornando-nos sujeitos de performance e não mais sujeitos do
espetáculo15. Mas, no final de seu texto, ela retoma o conceito de performance e nos propõe:
Então, não seria isso que eu buscava quando estava trabalhando com os Avoados? Uma
invenção sem garantias para aquelas identidades mortificadas? A possibilidade de futuro
projetado, mesmo sem garantias?
Lembrei-me de uma disciplina que cursei na Universidade chamada “Corpo,
performance, arte e política”16. No primeiro dia de aula, a professora, depois de pedir que cada
aluno se apresentasse, nos fez a seguinte pergunta: e se você tivesse uma segunda chance?
Como você se apresentaria? A pergunta era simples e tinha relação com a arte da performance
que, no meu entendimento naquele momento, era uma maneira de reiterar e refazer uma ação
até seu esgotamento, produzindo assim deslocamentos e diferenças a cada vez que nos
apresentávamos. Na aula, respondemos à pergunta algumas vezes de diferentes maneiras e, ao
poder responder à pergunta com os colegas, eu fiquei por uns instantes com a sensação de ter
podido ampliar minhas chances e meus pensamentos, uma impressão de que todos deveriam ter
uma segunda, terceira, quarta chance ao contar e viver suas vidas.
15
Referindo-se à subjetivação espetacular presente na sociedade do espetáculo, em referência a Guy Debord
(1931-1994).
16
Esta disciplina foi ministrada pela professora Marina Guzzo no curso de pós-graduação em ciências da saúde
na Unifesp campus da Baixada Santista.
92
[...] cada existência é tão perfeita quanto pode ser. Um pôr do sol, uma fachada de um
edifício, uma ilusão de ótica, uma dança de elétrons, um triangulo isósceles, uma ideia
abstrata. Nesse plano não há nenhuma avaliação possível. A existência não admite grau;
cada existência possui seu modo de ser, extrínseco, incomparável.
[...] também não podemos dizer, por enquanto, que uma existência é mais real, mais
autêntica, mais essencial do que outra (por oposição a uma existência que vive na
inautenticidade, submetida ao reino das aparências, da opinião...). Toda a existência tem
o mesmo grau de realidade, existência e autenticidade.
93
Também não podemos avaliar os modos de existência segundo sua potência de existir.
Não há potência de existir maior ou menor. Nesse plano, um ser não é mais realizado
que o outro, mesmo comparado a si mesmo (Lapoujade, 2017, pp. 27-28).
Mas como fazer? Como fazer ver essas perspectivas? [...] um desses procedimentos é a
redução. Para mostrar a variedade dos modos de existência, Souriau invoca, de fato,
uma “redução existencial” [...]Trata-se de fazer ver, de tornar perceptíveis novas classes
de seres, até os que são invisíveis. Temos, então, um primeiro momento que consiste
em empurrar para fora do plano todos os pressupostos, os preconceitos, as ilusões que
bloqueiam essa renovação da percepção. A redução é, primeiramente, uma operação de
limpeza. É preciso purificar o campo da experiência de tudo aquilo que impede de ver
as novas maneiras de ser as tantas dimensões de si mesmo (Lapoujade, 2017, pp. 47-
48).
O autor nos conta que a instauração das existências virtuais designa a operação pela
qual uma existência ganha em formalidade ou em solidez. Instaurar consistiria em “fixar a
existência de um ser, assim como estabelecemos uma instituição, uma cerimônia ou um ritual”
(Lapoujade, 2017, p. 81). Isso porque, como norte ético:
Cada existência deve ser conduzida ao seu melhor estado, instaurando assim o plano
que exclusivamente lhe pertence. Por fim, uma perspectiva se define menos pela sua
maneira de ser do que por seus modos de apropriação, menos pelo seu ser do que pelo
seu ter. É um novo signo da passagem do modal para o transmodal; não mais se trata de
ser isto ou aquilo, mas sim de conquistar tantas novas maneiras de ser como se fossem
tantas dimensões de si mesmo (Lapoujade, 2017, p. 59).
94
Podemos perguntar como criar dispositivos que deem passagem para o surgimento dos
mundos virtuais? Ou são os mundos que pedem passagem? Instaurar pode ser compreendido
também como legitimar uma maneira de ocupar um espaço-tempo. A legitimidade não mais
repousa sobre um fundamento exterior ou superior: cada existência a conquista por um
acréscimo da sua realidade, em virtude da amplitude dos gestos instauradores da existência:
“ela é conquistada à medida que uma existência afirma e desvela sua arquitetura, se enriquece
de determinações e ganha lucidez” (Lapoujade, 2017, pp. 89-90).
A partir de então, instaurar, para o autor, seria como se tornar o “advogado de defesa”
que legitima essas existências ainda inacabadas. Compartilhamos com essas existências a
mesma causa, contanto que possamos ouvir a natureza das suas reinvindicações, como se
exigissem ser amplificadas, aumentadas, tornadas mais reais. Ouvir essas reivindicações, ver
nessas existências aquilo que elas têm de inacabado, é forçosamente tomar o partido delas. O
autor pergunta: como pode um ser, no limite da inexistência, conquistar uma existência mais
“real”, mais consistente? Com que gesto? Instaurar as existências mínimas, em última instância,
seria entrar no ponto de vista de uma maneira de existir, não apenas para ver por onde ela vê,
mas para fazê-la existir mais, aumentar suas dimensões ou fazê-la existir de outra maneira,
torná-la real, dar realidade aos virtuais, advogar com eles a legitimação desta maneira de existir.
Nessa seara, ele ressalta a função da arte e da filosofia:
A arte e a filosofia têm isso em comum: uma e outra visam colocar seres cuja existência
se legitima por si mesma, através de uma espécie de demonstração luminosa de um
direito à existência que se afirma e se confirma pelo brilho objetivo, pela extrema
realidade do ser instaurado (Lapoujade, 2017, p. 67).
Para Souriau, uma alma nunca existe sozinha: ela existe porque faz existirem outras e
essas outras fazem existir correlativamente a primeira. Existir é, dessa forma, fazer existir.
Existimos pelas coisas que nos sustentam, assim como sustentamos as coisas que existem
através de nós, numa edificação ou numa instauração mútua. Só existimos fazendo existir. Ou
melhor, só nos tornamos reais de tornarmos mais real aquilo que existe.
Lapoujade (2017), seguindo com sua investigação, nos questiona:
de existir, é claro, mas não dessa maneira, nem dessa outra maneira, nem de nenhuma
maneira... A questão é tanto política quanto estética (Lapoujade, 2017, p. 103).
Não somos reais pelo simples fato de existirmos; somos reais apenas se tivermos
conquistado o direito de existir. Podemos descrever os existentes como jogados no
mundo, invocar seu ser-no-mundo. Mas como fazem aqueles que não encontram a
entrada que os faz “serem-no-mundo?” Eles não se sentem jogados no mundo, e sim
rejeitados, expulsos pela própria realidade (Lapoujade, 2017, p. 105).
6 O Vento e a Cidade
Às vezes, alguns aproveitavam o espaço para descansar pelo cansaço da noite não
dormida nas ruas. Às vezes, fumavam na janela e lá ficavam olhando o centro da cidade por
horas. Às vezes, sob efeito de altas doses de medicamentos, dormiam no chão da sala. Às vezes,
presos demais no manicômio, desejavam falar, falar, falar... E não paravam de falar. Outros
rezavam muito, pediam proteção e nós rezávamos juntos. E quando todas as linguagens
expressivas que conhecíamos pareciam estar longe de nosso alcance, nós dançávamos juntos.
Quando tudo que planejávamos “dava errado” e o caos se instaurava, nós dançávamos juntos.
Pensando nisso hoje, não havia erro, ali aprendíamos a lição básica das artes cênicas: o
improviso e a beleza de estetizar o que de mínimo há nos acontecimentos cotidianos, nos nossos
corpos. Assim criávamos, naquelas tardes, a todo segundo, um “corpo sem órgãos” para cada
um e para aquele coletivo. Recortávamos o caos, dávamos composição ao que surgia. E do caos
criávamos os instantes que ficariam conservados em cada dobra dos nossos corpos vivos.
Naqueles momentos, encontrávamos o filho separado da mãe (remetendo à lenda chinesa já
citada), as duas pessoas que separadas podiam dançar juntas. O Teatro ou a vida que havia em
nós e que sempre havia no outro residia na nossa capacidade de criação e de instauração do
vivo – bastava atentar para isso.
Não obstante, naquele momento, em meio aos nossos encontros estava o manicômio,
impregnado naqueles corpos. O caos manicomial com seu tempo eterno, feito vidro, nos cortava
e sangrava a pele ao encontrar aquelas pessoas que, no século XXI, ainda residiam e eram
internados em hospitais psiquiátricos. Traziam dele o desespero pela liberdade, pela não
contenção, pela não violência, pela fala que tem voz, pelas rezas e pedidos de proteção que não
tinham fim. Cabia-nos compor juntos o possível.
Naquele período, não foi possível solicitar memórias alegres, porque percebíamos que
a instituição psiquiátrica era muito atual na vida de algumas pessoas. Tínhamos a presença
massiva do manicômio em sua forma mais concreta: mulheres abandonadas no Hospital
Psiquiátrico que vinham para as oficinas para respirar, olhar as ruas, fumar, dançar e gritar em
liberdade provisória. Tínhamos também jovens dos CAPS que buscavam atividades para
enriquecer suas tardes monótonas nos serviços que frequentavam. E tínhamos algumas pessoas
que estavam conosco desde o início do ano, mais outras desde o início dos experimentos, em
2014. Era um grupo grande, muito diversificado e inconstante. Ali misturavam-se a experiência
das pessoas que já participavam das oficinas e que já circulavam minimamente pela cidade com
a daqueles que eram prisioneiros do sistema asilar psiquiátrico. Seguimos com esse grupo até
o final das oficinas. As narrativas abaixo se referem ao período em que estivemos juntos.
99
“Como seria estar naquele espaço para Laura? As tardes na Pinacoteca mudavam seus
dias, tendo em vista que passara seus últimos meses no hospital? O que mudava?” Nós nos
perguntávamos. Em uma resposta cênica, Laura, que era uma jovem mulher, com seu vestido
azul que lembrava uma vontade de liberdade, se levanta e caminha dançando levemente em
direção à janela do primeiro andar da Pinacoteca. Olha através da janela e, mudando de
expressão, mostra o dedo médio com uma máscara de raiva, como quem xinga alguém. Muda
novamente de rosto, volta-se a nós, nos olha e faz um gesto como quem saúda o público se
abaixando, dando giros como quem estivesse voando livre. O vestido de tecido azul acompanha
seus rodopios. Ficamos com a imagem de um ser que ensaiava voar, caso isso nos fosse
possível.
Como que capturada novamente por um desejo de janela, ela se volta para ela mostrando
o dedo novamente para o que vê lá embaixo. Volta-se para o palco pulando, nos olha passando
a mão no rosto e se abaixa como quem agradece. De frente ao público, põe a mão no coração,
se abraça e começa a chorar. Chorando, nos diz que estar ali era estar em sua casa. Lembrando
emocionada de outro tempo, nos conta que passou a infância e adolescência inteira estudando
na escola que ficava na rua perto de onde estávamos. Como quem afirma um conhecimento da
própria história, nos diz que conhecia tudo aquilo na palma de sua mão e que sempre participou
de todas as caminhadas históricas pelo centro antigo da cidade. Muito feliz, nos contava que
tinha muito orgulho de sua cidade gritando: “– eu amo Natal!”.
Conta-nos, emocionada, que participar das oficinas era como um presente de Gisela
(terapeuta ocupacional do Hospital Psiquiátrico João Machado) no meio do inferno que ela
expressa viver:
Ela [Gisela] não tem noção da emoção que ela me proporcionou de me tirar daquele
inferno! Daquele aquário cheio de mulheres com distúrbios muito piores do que o meu!
Eu só tenho depressão! [...] Só porque falo alto e porque eu me altero... Aí vem a injeção
em cada lado da minha nádega. Tomei injeção no meu braço e ainda continua inchado!
Isso não é tratamento! [Laura grita e chora] Contenção não é tratamento! Luta
Antimanicomial, por favor, minha gente!! Parem de fazer isso com as pessoas, eu
imploro!
100
Laura enxuga as lágrimas, dança demoradamente entre as pessoas, usa o espaço da sala
todo, volta a janela e se volta a nós “– Estar aqui, isso trouxe uma felicidade imensa para o meu
coração. Vocês não têm noção da felicidade que trouxe para o meu coração, para o meu ser.
Vocês viram como eu estou feliz, pulando? Eu preciso falar!”
Essa narrativa ainda nos fala sobre o manicômio como “aquele inferno”, “aquário cheio
de mulheres”, contenção, dores e injeções. Traz-nos a morte civil das mulheres abandonadas
no hospital psiquiátrico. Na Pinacoteca, elas fumavam olhando a janela, reconheciam suas
histórias, seus antigos trajetos pela cidade, viam o movimento das ruas, rezavam juntas,
dançavam e falavam muito. O espaço do Teatro ia dando uma brecha àquelas vozes que
deixavam de ser ruídos e gritos. Ocorriam denúncias17 em suas falas, existia a necessidade de
falar muito e de dançar livremente naquele espaço. Era o espanto da mínima liberdade, de
escutar-se, mesmo que por quatro horas na semana. Espantávamo-nos juntos porque, para nós,
também era um novo território estar com aquelas mulheres: jovens ou senhoras, estavam em
sua maioria em regime de sucessivas internações na ala feminina daquele “aquário”. Chamavam
a Luta Antimanicomial pelo nome, como quem pede socorro a alguém de dentro de um
“aquário”, mas, antes, era preciso vomitar a água engolida naquele afogamento silencioso.
Franco Baságlia (2005) nos fala das vozes da loucura e sobre o seu silenciamento:
A loucura jamais é escutada por aquilo que diz ou queria dizer: voz confundida com a
miséria, a indigência e a delinquência, palavra emudecida pela linguagem racional da
doença, mensagem truncada pela internação e tornada indecifrável pela definição de
periculosidade e pela necessidade social da invalidação (Baságlia, 2005, p. 282).
O que elas nos diziam? O que aquelas mulheres, cujas falas eram invalidadas por uma
necessidade da sociedade, como nos diz Baságlia, podiam naquele espaço? Cuidávamos para
não interpretar aqueles gestos e falas no momento. Mas hoje, ao rever aquelas falas, as
mensagens são tão claras que dispensam desvelamento ou interpretação. Tratavam-se de
testemunhos. Elas falavam da violação que essas pessoas vivem – em pleno século XXI – nos
manicômios ainda vigentes e da sensação mínima de estar em outro espaço e nele poder ter uma
voz momentânea. As vozes femininas diziam de um abandono, das violências que viviam
17
Denúncias que foram ouvidas e tornaram-se pauta das reinvindicações da Associação Potiguar Plural junto ao
Centro de Referência em Direitos Humanos Marcos Dionísio (CRDHMD/UFRN) e à Comissão Estadual de
Combate à Tortura, na qual seus membros conquistaram assento em 2019.
101
dentro do hospital, das memórias que se avivavam ao saírem da prisão hospitalar. E sonhavam
por liberdade!
Baságlia (2005) fala-nos das multidões mudas: quando tentam tomar a palavra,
deparam-se com a lógica da razão que separa, fragmenta e cancela as necessidades das pessoas
ditas sem razão em nome de uma lógica da piedade e da punição, bem como do suposto
tratamento que a “doença mental” encerra:
Era isso que nos gritava aquela multidão que existia na voz daquela mulher saída do
aquário: a miséria psicossocial que vivia fora dele, as punições que eram submetidas dentro
dele – por aquilo que se compreendia como o desvio de normas comportamentais, a separação
do que poderia antes ser aceito como humano, isto é, o direito à desrazão. Não sentíamos
piedade, nem buscávamos soluções terapêuticas. Víamos uma mulher que, pela janela, olhava
e recontava sua história, como quem respira por uns segundos da asfixia de quem vive submersa
nas águas paradas de um hospital psiquiátrico e de uma sociedade que a oprime e condena.
Tratava-se de uma apropriação, com diz Baságlia, de tirar os parênteses postos
intencionalmente para isolar a miséria de sua real importância na produção dos diagnósticos
psiquiátricos. Os parênteses são postos para elipsar e englobar nos múltiplos diagnósticos e suas
consequentes violências as condições psicossociais dos vulnerados pelas desigualdades de
classes, gêneros e raças. Os parênteses se tornaram os aquários. Podiam ser as ruas da cidade,
as casas e suas famílias violentas, os hospitais psiquiátricos e até mesmo os serviços da rede de
atenção psicossocial. Nosso cenário, naquele momento, se tornava uma janela! Janela aberta
102
que fazia ventar, que testemunhava os vividos e que, sempre aberta, trazia com seu vento um
desejo de liberdade.
Carmona, por sua vez, também vinha de uma longa internação e nos contava sentia
muito feliz desde a primeira vez que lá esteve para conhecer pessoas diferentes, meigas, que,
segundo ela, a acolhiam: “– é muito bom a pessoa sair de lá de dentro daquele inferno horroroso!
Realmente, é uma sensação de liberdade!”
Ela agradece a Gisela e Fernanda – ambas profissionais do Hospital Psiquiátrico João
Machado – que eram responsáveis pela ida à Pinacoteca. Dizia que eram pessoas muito
especiais em sua vida:
Elas trazem uma energia para a gente nesse momento tirando a gente daquele lugar,
trazendo para um lugar desse, um lugar cheio de pessoas, de carinho, de pessoas meigas
que são incríveis para mim. [...] Eu lá me sinto muito trancada, muito fechada. Não é
brincadeira você passar dois anos e seis meses dentro de um inferno daquele! Não é para
qualquer um estar lá dentro. Pretendo sair, não sei quando, mas vai chegar a minha vez
de eu sair e eu vou sentir saudade de vocês!
Para Carmona e Laura, participar das oficinas tinha uma importância muito significativa
no cotidiano hospitalar, sobretudo pelas histórias de longas internações psiquiátricas que as
marcavam. Usavam aquele espaço de fala como um testemunho e como um grito de esperança
por dias de liberdade, o que também parecia ser um “atestado” de que elas podiam circular na
cidade, encontrar pessoas e que a internação longa, por si, não se justificava.
A narrativa de Jairo também diz de um cotidiano – muitas vezes empobrecido entre o
trajeto casa e hospital – que ganhava novos contornos e riqueza com as oficinas. Ao falar, ele
nos mostra a sua autonomia crescer com o desejo de estar em outro ambiente que não o
doméstico ou o hospitalar, ou seja, que “ampliavam a vida cotidiana”: “– quando eu vim para
cá hoje, saí de casa sozinho, sem falar que eu viria aqui para o pai. Fiz um monte de coisa: eu
tirei mato, limpei a louça e vim para cá. Fiz um bocado de coisa e estou aqui, pronto. Eu gosto
daqui. Quando chega o dia, fico ansioso para vir, fico contando o tempo para poder vir, eu gosto
daqui. Pronto”.
Ele dizia-nos que suas tardes ficavam mais alegres porque conhecia mais pessoas. Para
além, também sentia que se tratava um pouco ao ver os trabalhos e os quadros nas paredes da
Pinacoteca: “– a gente fica alegre, gosta de assistir e aprender o que é isso, o que seria esse
isso?” O mundo dos quadros e exposições que vivíamos na Pinacoteca poderia ser também o
103
Teatro, as nossas danças e brincadeiras ou simplesmente estar e olhar as ruas pela janela. Eram
as condições do encontro que faziam diferença.
Em todas as narrativas acima, observamos o lugar da exclusão manicomial que
atravessava a vida daquelas pessoas. Isso, de certa forma, me fez perceber como foi importante
forjar um espaço na cidade e um fazer artístico naquele momento. Penso comigo: como num
embate entre a vida e a morte, a arte consegue vencer, mesmo que por instantes. Volto ao
clássico História da loucura na Idade Clássica, escrito por Michel Foucault (2008), para pensar
sobre a exclusão da loucura e a dimensão trágica do homem na Idade Moderna e que nos
acomete até os dias de hoje. É fundamental – ainda hoje – lembrarmos que a loucura vem ocupar
o imaginário social na necessidade de purificação e exclusão, pois carrega a simbologia viva da
morte, ocupada historicamente pela lepra, pelas pestes, pelas doenças venéreas e pelos
“improdutivos”. Ao longo da História, esse imaginário foi se transmutando em outros símbolos,
discursos, signos e imaginários que ainda guardavam e revelavam o temor da morte e a
imperiosa necessidade de seu afastamento e exclusão. Mas, o medo da morte – seja ele explícito
em sua forma real, seja ele interiorizado – nos assombra e tem efeitos vivos e cívicos, dos quais
desde o século passado lutamos para superar:
A substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura, mas sim uma
virada no interior da mesma inquietude. Trata-se ainda do vazio da existência, mas esse
vazio não é mais reconhecido como termo exterior e final [...]; ele é sentido do interior,
como forma contínua e constante da existência. E enquanto outrora a loucura dos
homens consistia em ver apenas que o termo da morte se aproximava, enquanto era
necessário trazê-los de volta à consciência através do espetáculo da morte, agora a
sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em ensinar que aos homens
que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em que a
loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte
(Foucault, 2008, p. 16).
Por que me remeto a esse texto tão lido e já tão explanado? Observamos, nesses
processos de sofrimento psíquico e de possíveis institucionalizações, a morte civil, simbólica e
real dos corpos dos usuários de serviços de saúde mental. Vemos a repetição do temor da morte
e a necessidade de expurgá-la acontecendo com diferentes roupagens sociais e regimes de
subjetivação. A experiência trágica da loucura foi sendo substituída por sua consciência crítica
e pelo fundamento da desrazão – assim como vimos com Baságlia – como normativa social na
Idade Moderna, prendendo-a e isolando-a (Foucault, 2008). Assim, ela foi cooptada pela
104
ciência psiquiátrica que, comprometida com o regime capitalista em suas diversas lógicas
(atualmente, a lógica neoliberal), nos governa até hoje.
Mas, ainda sim, é da morte fictícia, do vazio, de sua inquietude e de seus efeitos em
nossas existências que fugimos. Para isso, precisamos distanciá-la, reformá-la e escondê-la.
Como a lepra e as doenças venéreas, a loucura carrega em nosso imaginário o perigo, a feiura,
o disfuncional, o não racional, o defeito e o perigo de contágio. Nesse sentido, a ciência
psiquiátrica se encarregou de cumprir seu papel e mandato social quanto a este controle a céu
aberto e a “céu fechado” ao longo da história. “Os loucos” ainda representam – como numa
peça de Teatro convencional – dois papéis: o papel da morte (seja ela real, simbólica e/ou civil)
e o papel de sobreviventes (atuando como mortos-vivos depois das múltiplas violências
sofridas). Como antídoto igualmente perigoso, nos dias atuais, reproduzimos esse papel pelo
excesso de controle sobre a vida, fabricamos os corpos hiper controlados e conectados, nos
tornamos zumbis ativos, mas, ainda sim, é do terror do papel ideal da morte que fugimos.
Penso que há a necessidade de rasgar esse papel, de descumprir esse roteiro, de
manifestar a vida, de profaná-la, de performatizar outras cenas. Como argumenta Roberto
Machado em seu livro Nietzsche e a verdade (1999): precisamos resgatar a experiência trágica
da loucura. A arte ou o fazer artístico – que nada mais é do que uma real e radical aproximação
da vida – pode ser fundamental nesse resgate. Machado (1999) nos apresenta a sua leitura sobre
a arte no período grego em que a estética era apresentada sob a forma de dois instintos
antagonistas: Apolíneo e Dionisíaco. Apolo representava a beleza, a consciência e a verdade
representada por Homero e seus escritos; e Dionísio representava a desmesura de si, o
sofrimento, o esquecimento, por meio dos êxtases orgiásticos, dos preceitos e das verdades
apolíneas: “a contradição e a volúpia nascida da dor se expressavam do mais profundo da
natureza” (Machado, 1999, p. 20). Machado nos lembra que somente quando essas duas forças
da natureza artística se integram é que a arte grega ganha outra dimensão, um novo tipo de arte:
“a característica da nova estratégia artística é integrar, e não mais reprimir, o elemento
dionisíaco transformando o próprio sentimento de desgosto causado pelo horror e pelo absurdo
da existência em representação capaz de tornar a vida possível” (Machado, 1999, p. 22).
Nietzsche (2005, p. 13) nos conta que o poder do instinto dionisíaco rompe o princípio
de individuação e o que seria considerado subjetivo se esvai diante do poder irruptivo do
“humano-geral, do natural universal”.
105
As festas de Dionísio não firmam apenas a ligação entre os homens, elas também
reconciliam homem e natureza. Voluntariamente a terra traz os seus dons, as bestas mais
selvagens aproximam-se pacificamente: coroado de flores, o carro de Dionísio é puxado
por panteras e tigres. Todas as delimitações e separações de casta, que a necessidade e
o arbítrio estabeleceram entre os homens, desaparecem: o escravo é homem livre, o
nobre e o de baixa extração unem-se no mesmo coro báquico. Em multidões sempre
crescentes o evangelho da harmonia dos mundos dança em rodopios de lugar para lugar:
cantando e dançando expressa-se o homem como membro de uma comunidade ideal
mais elevada: ele desaprendeu a andar e a falar. Mais ainda: sente-se encantado e tornou-
se realmente algo o diverso. Assim como as bestas falam e a terra dá leite e mel, também
soa a partir dele algo sobrenatural. Ele se sente como deus: o que outrora vivia somente
em sua força imaginativa, agora ele sente em si mesmo. O que são para ele agora
imagens e estátuas? O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte, caminha tão
extasiado e elevado como vira em sonho os deuses caminharem. O poder artístico da
natureza, não mais o de um homem, revela-se aqui: uma argila mais nobre é aqui
modelada, um mármore mais precioso é aqui talhado: o homem. Este homem,
conformado pelo artista Dionísio, está para a natureza assim como a estátua está para o
artista apolíneo (Nietzsche, 2005, p. 13).
Os homens e as mulheres que se tornam obra de arte, homens Deuses, mulheres Deusas
em suas naturezas, animais humanos, sonho e delírio juntos, vida e morte presentes no mesmo
solo. Era essa comunidade que desejávamos criar ante a morte em vida que aqueles
depoimentos testemunhavam.
A reconciliação entre Apolo e Dionísio constitui para Nietzsche o que ele exprime como
um “verdadeiro efeito terapêutico, é um eficaz ato de cura: a arte dionisíaca transforma um
veneno – a poção mágica, o filtro das feiticeiras – em remédio, retirando de Dionísio suas
‘armas destruidoras’” (Machado, 1999, p. 22). Esse trecho mostra que é preciso encarar e
resgatar as forças que nos destroem pelo excesso de razão e de racionalidade hegemônica que
o projeto moderno nos impõe. Lutávamos contra as forças apolíneas em nós, mas, muitas vezes,
integrar os dois instintos foi-nos tarefa árdua. Encontrar sua medida ainda é uma tarefa a ser
realizada.
Assim, dançávamos, suávamos e gritávamos, clamando pela lembrança boa e pelo
esquecimento necessário de certas marcas de sofrimento. Alegrávamos quando, numa medida
instável, nos aproximávamos de nossa capacidade de criação em um tempo igualmente criado.
Em nossos experimentos no Vento dos Avoados, essa integração se instaurava por instantes
quando podíamos dançar juntos, arritimados, e contar sobre a experiência de poder estar
naquele espaço. Era como encarar a morte e a vida contando sobre elas, narrando a partir do
olhar debruçado naquela janela o que acontecia no aquário eterno que era a vida passada numa
internação psiquiátrica. A janela, o vento que dela vinha, a rua que dela se via e o que se podia
106
lembrar explodia por alguns segundos o aquário violento. Transbordávamos, queríamos o mar!
Xingávamos, rezávamos, berrávamos. No chão dançávamos e suávamos juntos.
Encarar o trágico nos dava força para seguir dançando. A história contada abaixo é de
Fernanda, assistente social de longa data do Hospital Psiquiátrico João Machado que,
contradizendo seu local de trabalho, tinha por vocação e ofício a luta contra os manicômios e a
defesa das pessoas que ali eram internadas.
Fernanda usa seu minuto de silêncio para pausar e nos encarar. Com o rosto sorrindo,
nos falava que estar na Pinacoteca era uma oportunidade de comprovar a importância e a
potência da arte como instrumento de cuidado. Com certo encantamento veloz que lhe era
característico, dizia-nos que, para pessoas que trabalhavam em um hospital psiquiátrico, era
muito gratificante ver que existiam outras formas de se apaziguar uma crise para além da
medicação, pois o que viam no hospital eram elas serem medicadas e contidas fisicamente. Ela
nos diz: “– a gente vê como um espaço de fala e de expressão corporal tem uma potência muito
maior do que esses instrumentos usados nas instituições tradicionais. [...] Como eu me sinto
aqui? Eu acho que eu só tenho a dizer que eu sou uma eterna aprendiz!”
Gilda também trabalhava como terapeuta ocupacional há muitos anos no mesmo
hospital. Olha-nos rindo e com jeito de criança sonhadora, nos fala que estar ali era onde ela
sempre quis estar em seus sonhos: “– nos meus sonhos, não sei de criança, mas de adulto, é
aqui que eu sempre quis estar!” Para ela, a Pinacoteca também era um lugar de difícil acesso,
pois não sabia que podiam ocupá-la com tanta liberdade: “– é por isso que eu amo esse espaço
onde nós estamos construindo porque aqui se chama liberdade!” Sobre o que mudava em seu
dia, ela nos conta que tudo mudava:
Para quem há 28 anos trabalha naquele inferno, onde, infelizmente, muitas vezes, lá
[essas pessoas] estão porque não tem outro espaço para acolhê-las... E ainda, apesar de
28 anos trabalhando lá dentro, não me deixei corromper por aquelas grades, por aqueles
maus-tratos que, muitas vezes, acontecem. Eu me sinto transformada quando estou aqui
e muito feliz por saber que não me deixei contaminar pela maldade, pela prisão, pelas
grades pela prisão da falsa Psiquiatria. Sei que sempre serei uma pessoa revolucionária.
No começo dos tempos, levava os pacientes para o jardim do Hospital Psiquiátrico João
Machado e diziam que eles iam jogar pedras nos carros. Eu dizia: “pois joguem porque
o jardim é dos pacientes”. Então, aqui eu me renovo com essas pessoas que se tornam
iguais. Porque, infelizmente, lá, por mais que a gente não queira, existe uma hierarquia,
mesmo que a gente não queira. E, nesse espaço, nós somos iguais, nós rolamos no chão,
nós sonhamos juntos, nós choramos juntos e nós construímos juntos. É aqui que eu
quero ficar!
107
O biopoder como a biopotência passam necessariamente pelo corpo, esse limiar entre a
vida e a morte, entre o homem e o animal, entre a loucura e a sanidade, onde nascer e
perecer se repercutem mutuamente, é essa uma vida que põe em xeque todas as divisões
legadas pela tradição, e indica o que Deleuze pode chamar de uma vida (Pelbart, 2007,
p. 64).
existe em nada também é uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência
absoluta: ela é potência completa, beatitude completa” (Deleuze, 1997 p. 12).
Acredito que, naqueles tempos de oficina, quando nosso método de trabalho desviou de
seu curso, nós conseguimos viver momentos imanentes que geravam, talvez, aquilo que
Deleuze chamou de “beatitude”. Tal palavra me lembrou o depoimento gestual de uma pessoa
que nos acompanhou durante todas as oficinas: Mário, como quem fazia um rito, benzia-nos e
com a reverência de seus gestos e danças, nos guiava e cuidava durante todos nossos encontros.
Ao perguntarmos a ele como era estar ali, Mário nos interroga: “– é o gesto né? Pode ser o
gesto, né?” Assim, em sua resposta, Mário começa pedindo benção com as mãos, beijando o
chão, ficando de quatro apoios – como se pedisse autorização, como se pedisse uma benção.
Depois, fazia o sinal da cruz e ficava de joelhos. Colocava a mão direita no coração, a esquerda
aberta a sua frente e olha seriamente para o público. Permanecia de joelhos olhando para frente
como quem olhava para o horizonte e como quem rezava. Levantava-se, encolhendo e
apertando a barriga, olhava para cima, depois se ajoelhava. Voltava para trás e reverenciava-
nos de novo. Caminhava até o público, mostrando o ouvido como quem nos escutava e abaixava
a cabeça numa menção de quem acolhia o que havia escutado. Como em uma coreografia,
Mário saltava cada vez mais rápido, assoviando, correndo de um lado a outro. Aos poucos,
aumentava a rapidez dos giros e assovios. Parado olhando-nos, reverenciava a plateia.
Naquele momento, eu me sentia benzida por ele ao vê-lo beijar as guias que carregava
em seu pescoço. A partitura de sua gestualidade nos emanava sensações de agradecimento, de
devoção. Uma ligação de pertencimento com o sagrado daquele homem, que falava diretamente
com o que havia de sagrado em nós. Era seu corpo trágico, sagrado e encarnado em sua
singularidade que nos benzia. Como espectadores, aquela partitura gestual dava-nos a sensação
de entrar em uma outra língua que se manifestava ali naqueles instantes. Sentíamos a imanência
pura, uma vida, um sentimento de estarmos juntos sob o mesmo pedido de proteção. A sensação
de comunhão esteve presente nas manifestações singulares, na produção de um espaço de
criação comum e imanente:
[...] vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, uma vez que apenas o
sujeito que a encarnava no meio das coisas a fazia boa ou má. A vida de tal
individualidade se apaga em favor da vida singular imanente a um homem que não tem
mais nome, embora ele não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida
(Deleuze, 2002, p. 14).
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Vida inconfundível com qualquer outra, Ana e seu pássaro estiveram conosco desde o
início das oficinas. Tinha como modo de existência ser artista e seus desenhos geralmente
traziam um pássaro que ela chamava de Coração Valente. Contava-nos que seu pássaro esteve
preso em sua imaginação por anos e, quando o desenhou pela primeira vez, ele ganhou vida e
pôde se liberar. A partir de então, ela o desenhava sempre: ela e ele saíam do quarto e ganhavam
vida nos lugares que passavam. Coração Valente, o pássaro medroso que saiu do quarto, esteve
presente em todas as oficinas e o nome Vento dos Avoados levava consigo seu desejo de voar.
Quando foi responder à nossa pergunta, Ana fez seu silêncio em meio a um corpo agitado que
caminhava de um lado ao outro. Encarando-nos, disse como se voasse num rompante:
Eu descobri vindo para cá que o Teatro é também outra forma de arte. Que é a arte da
expressão do corpo, que a gente pode olhar no olho de cada um de nós, de vocês, e ver
que tem uma vida e que existe uma vida muito intensa. Tem muitas coisas que a gente
tem dentro da gente que, às vezes, não sabemos que existe. Tanta coisa linda que está
dentro que nunca tivemos a oportunidade de expressar e viver aquilo que está dentro de
você. Então, para mim, o Teatro é muito importante porque eu consegui conversar, falar.
Assim com vocês, antes eu não conseguiria.
Como Ana nos presenteava com sua presença viva, com seu desejo de voo, com seu
devir-pássaro! Ana era obra de liberdade, era pássaro em tudo que fazia. Quantos pássaros ela
nos ajudou a fazer voar com sua coragem ao afirmar que os espaços de arte lhe eram muito
importantes ao longo de todo seu percurso de rede de atenção psicossocial de Natal, ao defender
a Luta Antimanicomial em seu corpo-pássaro!
Em outro depoimento, vemos a manifestação de mais uma vida. Renato nos dizia que
depois das oficinas tinha começado a ser gente, pois se considerava um bicho, um animal bruto
preso dentro de casa. Quantas vidas podemos desperdiçar? As casas e as famílias também
poderiam ser prisões. Renato, a cada dia, se colocava mais à vontade naquele espaço, que para
ele não era exatamente um lugar para se fazer Teatro. Aquele lugar era um lugar em que ele
poderia ensaiar uma outra existência. Não aquele Renato, não era um bicho: era uma vida.
Já a próxima narrativa nos faz perguntar: uma experiência imanente de uma “uma vida”
pode ser contada assim? Apolo em Dionísio, em devires de borboletas, árvores e guerra
mundial. Rose, sentada em seu silêncio, olha as paredes da Pinacoteca e em gesto de reverência
com a cabeça nos diz: “– ouro, prata, sol, mar, praia, estrelas, arco-íris, quadros, tesouro. Vocês
são um tesouro. Liberdade, Monalisa, árvores, flores, rosas desabrochando, borboletas voando,
vindo e voltando, voando no céu coloridas como a primavera. Verão, praia, água, mar,
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peixinhos nadando, marinheiros remando. Guerra mundial, preto e branco, telas em preto e
branco a luz do sol que esquenta nossa alma”. Levanta-se, nos olha com um olhar de quem vê
borboletas e volta a se sentar na plateia. Atônitos, nós tentávamos em vão juntar as palavras,
construir um sentido naquilo que era imanência e não pedia sentido. Transbordantes, ficamos
com a sensação da liberdade das borboletas, voando no céu da cor de primavera. Sentíamos a
dor de alguém que, depois da guerra mundial, se esquentava sob luz do sol daquela tarde que
clamava pela quebra de todos os aquários, para que os peixinhos nadassem no verão de uma
praia e – quem sabe? – pudessem encontrar marinheiros remando. Sonhávamos com o tesouro
de um mundo sem aquários.
Eduardo levanta os braços como quem se espreguiça. Venta na sala. Sorri, mexe com
os pés para os lados: “– o que é estar aqui? Estar aqui é viver, é ver a arte, ver um prédio antigo,
ver móveis antigos históricos e ver uma construção de cultura de fotografias de arte demonstrar
a arte da população em si”. Dizia-nos alegremente que ali era um lugar de união, de encontros,
de trocas: “– eu faço aqui trocas, eu faço trocas, muitas trocas. Trocas de mim para com as
pessoas, onde eu troco a minha relação, meu andar, meu estar aí, o meu entender. Eu troco
aquilo que me faz bem e me faz mal”. Para ele, aquele espaço o fazia entender o seu vizinho,
os outros que ali estavam. Se mudava alguma coisa em seu dia? Saia de lá refeito, a alma
liberada e com a semana completa, com a sensação de que a sua missão estava cumprida. Se
dava e se entregava.
Jogando capoeira, Heitor nos diz que, para ele, aquele espaço era surreal, era um sonho
porque nunca sabia onde poderia entrar e como sairia dos lugares – onde ele era “permitido”.
Como membro do MNPR/RN, na hora de adentrar um espaço, ele nunca via o anúncio: seja
bem-vindo! Sabia que nunca era bem-vindo porque a senha da sua cor e do seu jeito de ser
como “gente da rua”, muitas vezes, o impedia entrar. Às vezes, não ia às oficinas e acreditava
que outros também não frequentavam porque não queriam responder à pergunta que vinha
acompanhada de um olhar inquisitório: “– vai para onde? Vai no pessoal do Teatro?” E, ao
responder que sim, ter de escutar a seguinte resposta: “– ah, tá bom. Pode subir”. Ele revela
essa tensão numa discussão que teve ao tentar entrar na Pinacoteca, quando um funcionário lhe
disse que ali era um espaço público privado. Então, argumentou que, para ele, os espaços eram
ou públicos ou privados: “– aí eu discuti com ele. Então tá bom, eu disse. Você está certo, eu
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estou errado, vou sair então”. E se perguntava: “– será que eu tenho direito ou não tenho direito?
[...] Outro dia eu cheguei aqui, me sentei lá embaixo no chão e disseram: – você não pode ficar
sentado aí. Perguntei se teria que ficar em pé naquele espaço por 24 horas. Então pedi uma
cadeira, e aí a pessoa falou: – pode ficar!” Logo, lá ele ficou – no chão.
Mesmo com esses entraves, aquele espaço das oficinas – dentro daquele outro espaço
que era público – foi se tornando bom demais porque era uma fuga da realidade que se vivia lá
fora. Todavia, existiam muitas barreiras (também presentes na realidade cotidiana) que ele
enunciava e denunciava a todo tempo e era escutado pelo grupo. Afinal, tratava-se da partilha
e do pertencimento daquele espaço em que não se precisava, ao menos por algumas horas,
habitar o território da exclusão e da violência. Ali, as pessoas paravam para ouvir, falavam e
conversavam. O diálogo era a melhor parte das oficinas! Aquilo de poder ouvir e ao mesmo
tempo poder falar sem estar certo ou errado era bom demais!
Os trechos acima demarcam que, muito embora ambos fossem participantes de
movimentos sociais e circulassem com autonomia na cidade, o participante do MNPR/RN
encontrava muitas barreiras para entrar na Pinacoteca. Fica claro em sua fala que frequentar
uma casa de cultura era-lhe impossível antes das oficinas. Fazer parte das oficinas era como um
passaporte para estar em um local visto como um local de “cultura”. Ou seja, seu direito de ir e
vir era-lhe violado cotidianamente. Ambas são narrativas que evocam o lugar de cada um na
cidade. A quem o espaço cultural da Pinacoteca era destinado? A quem aquela arte da
Pinacoteca e as oficinas que se davam ali eram permitidas?
Uma pessoa em situação de rua que frequentava as oficinas em um espaço público
distorcia os regimes sensíveis que eram colocados politicamente. Fazer Teatro o colocava em
outra experiência política naqueles momentos, não somente em relação à questão de ocupar um
espaço que lhe era negado, mas recortava e criava outra forma de ser visto, ouvido e sentido
naquele lugar. Ali ele não era militante somente, nem “pessoa em situação de rua”: ele estava
criando um modo de estar naquele lugar e fazendo coisas naquele espaço. Não era um ator que
iria representar papéis e encenar sua situação de rua como um militante artista, nem papéis
sobre outras narrativas de personagens. Era um novo regime de sensibilidade que nascia, nada
estava escrito a priori. E sonhar outros modos de ser e estar na cidade era possível.
Eu me lembro muito que, no início, Heitor usava aquele espaço como um descanso para
as noites mal dormida – talvez nas ruas. E, aos poucos, foi se apropriando e usando-o para jogar
sua capoeira, fazer suas trocas, incitando diálogos e construindo seu modo de estar e se vincular
com o grupo num jogo que construiu a confiança de estar ali todas as quartas-feiras fazendo o
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que podia fazer. Às vezes dormia, às vezes jogava capoeira, muitas vezes emprestava seu
pensamento crítico na construção das cenas e criava sempre espaço estético para sua existência.
Seu viver era uma obra de arte que redesenhava os espaços que frequentava e o que fazia neles,
isso era perceptível! Nesse sentido, emprestamos novamente o pensamento de Rancière (2009)
que tece aproximações entre a política e a arte. Para o autor, a política, como forma de
experiência, rompe a lógica da polícia inventado modos de enunciação coletiva. A política, a
arte e os saberes são ficções que conformam “rearranjos materiais dos signos e das imagens,
das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (Rancière,
2009, p. 59).
Tais narrativas nos mostram que as oficinas lhes ofereceram uma chance de tomar parte
de um lugar da cidade local que não lhes é destinado a ocupar. Estar, ocupar e fazer Teatro em
um lugar de “cultura”, no centro de uma cidade, não lhes era permitido. Assim, rearranjar as
partilhas dos espaços comuns, ocupar aquele espaço destinado à cultura da cidade foi
importante para experienciar uma pequena mudança de regime estético e político, isto é,
deslocamos a maneira como o “comum se presta à participação e como uns e outros tomam
parte dessa partilha” (Rancière, 2009, p. 15). Daí a compreensão que o coletivo cenopoético
Vento dos Avoados foi uma experiência política que rearranjou, por um momento, as partilhas
sensíveis do comum, abrindo um campo de experimentação de outras sensibilidades e uma
potência de vida para aqueles que seguem no enfrentamento cotidiano na cena política da
cidade.
Ademais, os participantes não só tomaram parte do espaço comum, mas revertiam a
lógica de quem podia falar naquele comum, o que se podia falar, de que maneira, em qual
horário, quais critérios para participar? Tomar parte do comum, realizar trocas nele, permitir a
entrada e a estada sem critérios excludentes, era inverter e devolver a pergunta “quem é você”
a nós mesmos e aos agentes do Estado. É perguntarmos: o que é um espaço público e privado
ao mesmo tempo? É interpelar-nos quem éramos nós, o tempo todo, para não nos esquecermos
que perguntas deveríamos nos fazer antes de fazê-las aos outros. Era sobre produzir uma relação
ética.
Para os participantes, o fazer artístico ou aquilo que cada um reconheceu e criou como
arte tem muita relação com a chamada “liberdade”. Liberdade de estar em outro espaço, de
ocupá-lo. Liberdade mínima como olhar uma janela, liberdade de escolher onde se quer estar,
liberdade ao usar o corpo de outra maneira. Afinal, liberdade para criar um corpo naqueles
momentos, uma vida provisória. Liberdade: substantivo e qualidade que não existe, mas se
113
sente. Por causa disso, buscávamos uma ética e estética da liberdade. Podemos pensar nessa
liberdade como uma equação: liberdade para estar naquele espaço e inventar “nossa arte”
equivaleria a “clínica do fora”, o cuidado que buscávamos nas oficinas.
Nossa arte inventada tinha um efeito leve e invisível como o vento que sentíamos
daquela janela. Mudava de ritmo; por vezes parecia parar, mas não parava, embaralha-nos os
sentidos e os cabelos e depois nos abraçava, retomando o ritmo de brisa. Fazia-nos suar, pois
ele era quente. Quente como nossos abraços e úmido como nosso suor que nos molhava. Era
sonoro como nossos gritos e risos, leve e pesado como nossas danças e cenas. Ah, e finalmente:
isso era tão constante que o sinto aqui ainda durando em mim. Pois, a arte tem a função de
conservar a si mesma ao longo da história como aquilo que não acaba, sendo o acontecimento
que resiste à morte e às prisões dos aquários (que ainda existem em nós e em nossas cidades-
aquário). Assim, brindam-nos novamente Deleuze e Guattari (1997) com seu pensamento:
O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher,
e o vento agita um ramo, um grupo de homens se apressa em partir. Num romance ou
num filme, o jovem deixa de sorrir, mas começará outra vez, se voltarmos a tal página
ou a tal momento. A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva.
Conserva e se conserva em si, embora, de fato, não dure mais que seu suporte e seus
materiais, pedra, tela, cor química, etc. [...] A obra de arte é um ser de sensação, e nada
mais: ela existe em si (Deleuze & Guattari, 1997, p. 213).
“arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar
o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro é o objetivo da arte” (Deleuze
& Guattari, 1997, p. 216). A arte se conserva em uma fabulação criadora porque conserva as
sensações para que nós, através delas, entremos em devir de outros de nós, de outras paisagens,
de personas humanas e de não humanos. A sensação, segundo os autores, nada mais era do que
a vibração contraída, a contemplação tornada qualidade que se forma num plano de
composição. Ela é o monumento que transmite para o futuro as sensações persistentes que
encarnam o acontecimento.
Um monumento não comemora, não celebra algo que se passou, mas: o sofrimento
sempre renovado dos homens, seu protesto recriado, sua luta sempre retomada. Tudo
seria vão porque o sofrimento é eterno, e as revoluções não sobrevivem à sua vitória?
Mas o sucesso de uma revolução só reside nela mesma, precisamente nas vibrações, nos
enlaces, nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia, e que compõem
em si um monumento sempre em devir, como esses túmulos aos quais cada novo
viajante acrescenta uma pedra. A vitória de uma revolução é imanente, e consiste nos
novos liames que instaura entre os homens, mesmo se estes não duram mais que sua
matéria em fusão e dão lugar rapidamente à divisão, à traição (Deleuze & Guattari 1997,
p. 271).
O que o Vento dos Avoados conservou como “monumento” em devir? Quais devires
pudemos atravessar juntos? O que conservamos? O que criamos? O que vibramos e contraímos
a ponto de conservar? Para tais reflexões, revela-se interessante a próxima narrativa: um
estudante de Psicologia que nos fala de resistência e novamente de liberdade.
Bernardo nos olha e, mostrando que queria nos ver, nos diz com a sua voz forte que
estar ali, para ele, significa resistência. Sentia aquele lugar como um espaço libertário para
resistir a toda aquela prisão que existia. Dizia-nos que precisávamos daquele espaço de
liberdade para nos expressar. Colocar tudo para fora era resistir. Será que nossa criação, nosso
monumento foi a sensação da liberdade e de uma vida que resistia sendo possível por instantes?
Seria essa a nossa biopotência? A narrativa abaixo nos mostra que a criação de “uma vida” deve
fazer parte daquilo desejamos: uma revolução no que chamamos de cuidado em saúde mental.
cuidando, e, para ele, a rua também era um espaço de cuidado. A cultura também era
um espaço que podíamos apostar como potência para transitar e para existir naquilo que
poderíamos ser: “– a gente não é só depressivo, não é só maníaco. A gente é muito mais,
não é usuário! Somos muito mais que isso”. Ele bradava. Dizia que o Teatro era uma
ferramenta que permitia a expressão e o trânsito por outros mundos e afirmava de modo
cuidadoso a vida política. Para ele, a vida se movimentava e se criava a cada instante,
pois as cenas das histórias não eram só histórias simplesmente relatadas: “– a gente
recolhe, a gente recolhe memórias e passa olhar o outro, a gente degusta o corpo de
outra maneira”.
7 Atenção estética
Chegávamos ao fim das oficinas. Naquele momento, resgato minha escrita que revela a
alegria de ter vivido essa experiência. Ela demonstra também as frustrações entre o que
havíamos feito, o que eu desejava e a necessidade de refletir a partir do que havíamos criado.
Rumo ao fim. Vamos viver nossas oficinas com essa tensão do tempo que passa, do fim
que se sabe, que se deseja. Que eu possa tecer as possíveis relações, consonâncias e
distâncias entre o que desejo e o que de fato acontece. Entre um trabalho de caráter
inserido na dimensão da atenção psicossocial e algo que tenho chamado de teatralidade
no bojo das autobiografias, na estática de Teatro Documentário. Como eu gostaria de
acabar com esse trabalho? Cansada? Titubeante? Reclamante? Não sinto assim... Sinto
sim necessidade de parar para repensar muitas coisas, mas sinto um movimento cada
vez maior na busca daquilo que subsidie e dê minimamente uma forma ao meu
pensamento e desejo. Quero o rito, quero essas memórias organizadas vivas desfilando,
quero a infância do grupo, quero a nossa constituição, quero Antônio Edson nos
benzendo e dando início aos nossos trabalhos, quero Dora cantando, Halisson depondo
na polícia das ruas, quero o palhaço de Weskley, quero o canto de Breno, o número de
mágica de José, a força de ser de Gabriela, a voz de Marília e tantas cenas... Quero o
ritual das nossas próprias oficinas sendo oferecido para nosso público. Quero nossa
oficina sendo feita e encenada por eles para o nosso público. Algo que tenha uma
estrutura mínima, mas que opere num nível de improviso e que chame o público a viver
e contar suas memórias também, receber massagem contorno, sentar no banco, mostrar
a vida na sua linha desforme... Vamos sonhando (Diário cartográfico).
No final daquele ano de 2016, ao pensarmos em como encerrar as oficinas, nós não
tínhamos as cenas para performatizar. Nosso processo de pesquisa havia se modificado e, nos
últimos tempos, como já contado aqui, nós nos dedicamos a estarmos juntos e usar mais a
linguagem da dança livre, dos exercícios corporais e jogos cênicos – vamos chamar aqui de
“procedimentos sensíveis”. Dessa forma, com a conclusão das atividades, decidimos juntos que
nosso encerramento seria uma oficina oferecida a público aberto, mas os facilitadores seriam
os participantes do projeto. Caberia a eles escolherem as práticas que mais gostaram,
organizarem as ações e realizar a condução. Para isso, recolhemos e escolhemos juntos os
exercícios que cada um mais gostava de praticar. Apresento-os a seguir para que tais
procedimentos subsidiem a proposição do conceito-ferramenta “atenção estética”.
1. Encontro guiado – Nesse exercício, nós nos colocávamos em duas fileiras: uma na frente da
outra. O facilitador falava baixinho no ouvido de um dos pares que aquela pessoa que estava na
sua frente era alguém que há muito tempo estava distante e que aquele era um momento de
reencontro. O outro par que estava na frente era incitado a improvisar o encontro. Quem eles
117
poderiam ser? Como encontrar alguém e como se despedir? Qual era aquele tempo? Era um
encontro alegre? Nesse caso, eram dois improvisos: quem encontrava e quem era encontrado e
vice-versa. Era bonito observar o que aquele encontro ou despedida suscita em cada um. Nunca
saberemos de quem estavam falando: para nós, o importante eram os gestos, os olhares, os
corpos que se tocavam, distanciavam e se reencontravam.
2. Massagem em roda – Nos dividíamos em pequenos grupos de três ou quatro pessoas.
Formávamos um minicírculo e pedíamos que alguém fosse ao centro de cada pequeno grupo.
Estando muito próximos uns dos outros, colocávamos todas as mãos em cima (mas, sem tocar)
da cabeça de quem estava no centro, e levemente iniciávamos as massagens com muitas mãos
juntas. Começávamos pela cabeça e massageávamos cada parte do corpo separadamente. Até
finalizarmos, com um toque (rápido feito com as pontas dos dedos) que ia da cabeça em direção
aos pés ininterruptamente. Em seguida, trocávamos quem estava no centro até que todos
pudessem receber a massagem. Nós fazíamos esse exercício em quase em todos os encontros.
Geralmente, ele era realizado no início das oficinas, ou seja, era um de nossos aquecimentos
favoritos. Surtia-nos um efeito apaziguador e uma sensação de extrema presença e conexão
grupal. Era um momento muito forte, em que permitir ser tocado por diferentes mãos
concomitantemente promovia uma espécie de confiança importante para as pesquisas que
fazíamos.
4. Memória do cheiro – Esse exercício fez parte da ativação e da produção de nossas memórias.
Para a memória olfativa-afetiva ser acionada, nós pedíamos que cada um trouxesse, em forma
física, um cheiro que lhe remetesse a boas memórias. Fazíamos uma roda grande, fechávamos
os olhos, e cada um ia ao centro sentir e apresentar seu cheiro, narrando oralmente aquela
memória. Depois disso, quem estava no centro passava com o objeto próximo ao nariz de cada
um na roda, para que, além de escutar a narrativa do outro, também sentisse o cheiro que ativava
aquela memória.
5. Memória da infância – Pedíamos que cada um pensasse e escrevesse uma lembrança de
infância boa. Depois disso, colocávamos um banco no centro da sala e, em duplas, enquanto
um narrava a história, o outro traduzia em gestos o que estava sendo contado. E vice-versa.
Eram momentos muito ricos que produziam uma intimidade, uma alegria e uma aproximação
com aquilo de mais cotidiano que existiu nas nossas vidas. As histórias mais comuns e mais
incríveis vinham à tona: a primeira aula de natação, a aula de dança, o banhar dos pés da vó, o
esconde-esconde numa árvore, o tombo do pé de umbuzeiro... Ah... Como existiam
acontecimentos tão minúsculos e tão gigantes em nossas vidas.
6. Um minuto de silêncio – Esse exercício foi usado em nossa roda de conversa cênica.
Funcionou como um dispositivo que operou um acontecimento/ruptura no tempo e que colocou
os corpos expostos e, ao mesmo tempo, protegidos perante o olhar do outro. Dividíamos o
espaço entre palco e plateia e pedíamos que cada um fosse ao palco se apresentar, mas somente
depois de um minuto cronometrado. Os efeitos da pausa eram muitos interessantes: alguns se
sentiam muito desconfortáveis, outros riam, outros se inquietavam, mas aquele silêncio
119
13. Memória do rosto – Formávamos uma fileira de duplas que ficavam frente a frente e todos
fechavam os olhos. Uma pessoa da dupla passava com as mãos no rosto do outro em sua frente,
sentia os detalhes do rosto pelo tato. Depois, as duplas se desfaziam e caminhavam pela sala
em busca do reconhecimento do rosto que havia tocado. Era tão bonito ver os encontros, mesmo
quando o rosto procurado não era encontrado.
14. Memória da foto (história de amor) – Pedíamos para cada um levar uma foto que lembrasse
um amor (podia ser de qualquer amor). Fazíamos uma roda e o perguntávamos baixinho no
ouvido de cada um coisas aleatórias sobre a foto: onde estava, o que fazia naquele momento,
de quem aquela pessoa gostava, que roupa vestia, entre outras. A ideia era criar uma narrativa
sobre aquela foto naquele momento. Depois, trocávamos as fotos com as pessoas e cada um
criava uma narrativa com a foto do outro.
1. Concentração mental sobre algo específico: via a obra com atenção; tinha atenção ao
assunto; estudava com atenção. Expressão de cuidado; dedicação: o pai tratava-a com
atenção. Tendência natural para ouvir alguém: tinha a atenção do chefe. Interjeição 2.
Advertência ou recomendação: atenção! Faixa de pedestres. 3. Palavra usada para fazer
com que alguém se volte para quem fala. 4. [Militar] Voz de comando que alerta o
soldado para a ordem a ser cumprida: atenção! Sentido! Substantivo feminino plural:
Atenções: Expressão de delicadeza, de zelo: queria as atenções dos pais (DICIO,
2019)18.
Talvez esse último significado seja uma pista para nós: atenção pode ser uma expressão
de delicadeza. Longe de estarmos preocupados com a atenção como uma função cognitiva,
nossa intenção é desdobrar essa palavra, reconfigurar estética e politicamente seus sentidos.
Sabemos que a palavra “atenção”, no contexto da saúde mental e saúde coletiva, é entendida
como cuidado. Atenção psicossocial seria sinônimo de um cuidado psicossocial que preconiza
o cuidado à saúde em território inserido na gama de serviços que compõem a Rede de Atenção
Psicossocial. Mas, ainda não é dessa atenção de que falamos. A atenção estética seria um modo
anterior à ação de cuidado, seria uma condição ética que envolve certa delicadeza que teríamos
que criar em nossos corpos como condição prévia para cuidado. Seria como criar um Corpo
sem Órgãos (como explicitado anteriormente) que permitisse encontrar os processos e os
movimentos das delicadezas quando cada gesto está por se fazer. A atenção estética também
requer pausas e movimentos de desvio sobre o que percebemos.
Virgínia Kastrup (2019), uma das pensadoras sobre as políticas da cognição na
contemporaneidade, dispensa à atenção um interesse que nos ajuda a chegar perto da
formulação do nosso conceito-ferramenta “atenção estética”. Ela se interroga sobre a
possibilidade da aprendizagem da atenção no contexto de ensino da pesquisa cartográfica para
a criação de uma “política cognitiva da invenção”. Busca, assim, desviar a palavra “atenção”
da função exclusivamente cognitiva requerida nos processos de aprendizagem formais. Dessa
forma, a autora reflete sobre a aprendizagem da atenção em uma dimensão da cognição
18
Disponível em: https://www.dicio.com.br/atencao/2021.
122
[...] é necessária uma aprendizagem da atenção, que descrevem a partir de três gestos.
Esses se desenvolvem como num círculo que continuamente se entrelaça e se reativa.
Apesar da circularidade, para fins explicativos, propomos uma ordem. O primeiro gesto
envolve a suspensão da atenção que deve ser sustentada ao longo da prática e que
implica uma ruptura em relação à atitude natural. O segundo diz respeito a uma
redireção da atenção do exterior para o interior, realizada sob suspensão e, por fim, o
deixar vir (letting go) ou acolhimento, que pressupõe uma atenção concentrada, porém
sem foco (Kastrup, 2013, p. 194).
Para a autora, o ato de devir consciente se aprende através de práticas cotidianas citadas
acima, os quais produziriam certos efeitos da aprendizagem da atenção e isso a ajuda a refletir
sobre uma política cognitiva criadora.
A atenção pode ser também compreendida como um gesto atencional, ocorrendo uma
suspensão de nosso julgamento comum e uma intencionalidade no sentido fenomenológico para
que ela aconteça. O gesto atencional, geralmente pré-condição para a postura cartográfica, é
descentrado, aberto e interrogativo. Rastreia o campo de pesquisa sem alvo pré-definido, como
a atenção flutuante de Freud, que flutua sem ponto de ancoragem. Tal gesto se abre e deixa que
as forças da matéria cheguem. Tal gesto é, nesse sentido, uma atividade reflexiva: “não no
sentido de reflexão intelectual, mas de espaço e tempo de reverberação e ressonâncias que
denominam de plano coletivo de forças moventes” (Kastrup, 2019, p. 105). Por isso, seria
preciso estar atento às forças moventes que nos chegavam por meio da matéria.
Quais forças da matéria estavam em jogo na experiência que nos passou? As forças da
matéria que ainda não existiam, que estavam no vão entre aquilo que se mostrava à atenção e
aquilo que ainda estava por vir. Nosso gesto de atenção pausava antes de chegar ao manicômio
em nós e no outro, pausava e desviava para atentar para outras forças que reverberavam e
ressoavam a partir do que nos chegava das forças ainda invisíveis.
Nesse sentido, ao longo das oficinas e mesmo antes delas, eu observava que era preciso
fugir de certos olhares, certas narrativas, certos modos de estar com os participantes. Era
necessário desviar de certas perguntas. Entretanto, não se trata de fugir: era urgente atentar para
outro regime estético. Era preciso mudar a política de atenção. Era preciso um desvio naquilo
123
que se dava a ver, perceber e sentir. Desviávamos das narrativas da doença, das medicações,
das internações e das violências narradas, da loucura como erro e não como dimensão humana
trágica. Não se tratava de negar aquelas histórias, mas sim desviar para que outros fluxos de
memórias surgissem.
Todavia, antes de desviar, era preciso parar e atentar para o manicômio em mim e a
atenção que eu dava para a minha necessidade de escutá-lo e percebê-lo antes de tudo. Porque,
mesmo carregando um discurso antimanicomial, minha atenção se voltava a essa instituição
nas pequenas coisas. Eu via o manicômio nos corpos, nas narrativas, nos olhares. Queria saber
sobre ele, queria me libertar dele. Mas, ao querer me libertar, eu me prendia a ele, atentava mais
a ele e a seus efeitos do que àquelas pessoas em minha frente. Sedutora é a morte; imperceptível,
às vezes, é a vida e suas delicadezas. Isso não se passava necessariamente por pensar na
necessidade de atentar para a beleza ou só pensar em coisas bonitas, boas ou vitais. Eu gostaria
de inventar um regime estético-político de atenção que, além de colocar o manicômio entre
parênteses, buscava uma atenção criadora, um gesto que poderia ser criado. Essa atenção que
flutuava e desviava partia em busca do gesto que propositadamente seria visto como inédito no
desejo de instaurar outros de nós. O Teatro foi o território para isso: uma atenção que se
desfocava das narrativas dos corpos e do manicômio presente nas pessoas que buscavam os
serviços de saúde mental, que desfocava e se cegava para atentar a um campo do gesto pequeno,
do olhar que vê e encontra o que não se tinha visto, do olhar que busca propositadamente atentar
para o que pode haver de “estético” em cada um. O que seria o estético?
Lembro-me que um dia, há bastante tempo, chegou-me às mãos um livro chamado A
face estética do Self, de Gilberto Safra (2005). Como um verdadeiro dispositivo, fez-me
agenciar um primeiro contato com a palavra “estética”. Tal palavra estava ligada a uma maneira
de cuidado no contexto da clínica psicanalítica winnicotiana. No livro, o autor ressaltava a
importância da “dimensão estética” no manejo clínico com pacientes em sofrimento psíquico
grave ou, como o autor se referia, pessoas que ainda estavam por se constituir subjetivamente.
O autor trazia a conceitualização da palavra “estética”: “o termo estética foi utilizado pela
primeira vez por Baumengarten (1714-1762). Tradicionalmente é um nome usado para referir-
se a arte e ao belo. No entanto, a palavra estética designa a ciência do sentido, da sensação.
Deriva do grego aisthanesthai que significa “perceber” (Safra, 2005 p. 20).
A disciplina estética, formulada no século XIII, “baseava-se na ideia de que a beleza e
seu reflexo nas artes representavam um tipo de conhecimento sensível, confuso e inferior ao
racional, claro e distinto ao conhecimento voltado para a verdade” (Frayse-Pereira, 2006, p.
124
31). No entanto, a dimensão estética para Safra é constitutiva do self, que poderia ser
compreendida pela a capacidade do ser humano de criar uma realidade nem subjetiva nem
objetiva, mas sim, um espaço de criação intermediário no qual ele se sinta capaz de se iludir
que é criador da realidade partilhada. Essa capacidade, muitas vezes, é interrompida pela
ausência ou pelo déficit de contato em momentos primórdios com o outro (na teoria
winnicottiana, esse outro seria o corpo materno ou seu equivalente). Assim, para o autor, os
objetos sensoriais e as experiências estéticas estabelecem uma zona intermediária de
experiência que possibilita uma verdadeira comunicação (não discursiva). Esta é primordial na
busca da criação de si e do mundo, que é, de certa forma, uma necessidade inerente a todos nós.
Essa leitura foi-me importante durante muito tempo e ainda me faz certo sentido, pois acredito
que a ideia de criar a realidade por meio da ilusão criadora e da experiência da criação continua
sendo base de composição para a ampliação do pensamento que esta Tese quer criar. Pensando
no conceito de estética, vamos também apreendê-lo como uma possibilidade de experiência, ou
seja, aquilo que nos passa, que nos transforma, uma passagem a um acontecimento exterior a
nós, que se passa num campo de subjetivação e nos transforma pela via do sensível, da
aisthanesthai.
Portanto, numa dimensão pré-discursiva, assignificante e singular, encontramos um
sentido para a “experiência estética” que acontece nos territórios de passagem de uma superfície
sensível aos múltiplos modos de tornar o que ainda é virtual para a realização do atual. Seria
nesse espaço que reside a nossa capacidade criadora, nossa capacidade de criação de mundo,
num movimento incessante de nos deixar atravessar, romper, criar e restaurar novos e antigos
territórios existenciais. Roubamos aqui a estética do campo das artes: todos podemos e devemos
ter essa dimensão preservada, cuidada com atenção. Isso significa cuidar daquilo que nos chega
pelo aparato sensível, daquilo que nos faz experiência e daquilo que nos produz como pessoas.
Principalmente, cabe pensar o que maquinamos, enunciamos e como agenciamos nessa
dimensão estética. O que nos acontece afetivamente (o que contraímos de nossas vibrações)
para atentar o que, no campo das nossas superfícies sensíveis, possibilita outras possibilidades
de existir.
Rancière (2010) novamente nos traz uma enorme contribuição para o campo da
compreensão do conceito da estética e sua relação com o campo da arte e da política. Sabemos
que o autor compreende a arte em sua dimensão política e, para fins didáticos, divide-a, numa
perspectiva histórica por três regimes (ou eficácias pedagógicas): o regime representativo, o
regime estético presente na arte contemporânea e a eficácia ética.
125
A tradição mimética ou o regime representativo das artes foi dominante por mais de um
século e, como exemplo desse regime, o autor apresenta o Teatro clássico cuja eficácia se
verificava como sendo “um espelho em que os espectadores eram convidados a ver, nas formas
da ficção, os comportamentos, as virtudes e os vícios humanos” (Rancière, 2010 p. 53). Sobre
essa dimensão, ele diz ainda:
O Teatro propunha lógicas de situações que deveriam ser reconhecidas para a orientação
no mundo e modelos de pensamento e ação por imitar ou evitar. Reconhecer esses signos
é empenhar-se em certa leitura de nosso mundo. E essa leitura engendra um sentimento
de proximidade ou de distância que nos impele a intervir na situação assim significada,
da maneira desejada pelo autor (Rancière, 2010 p. 53).
Segundo o autor, outro paradigma seria o regime estético das artes que observamos na
contemporaneidade. Este revelou a interrupção de qualquer relação direta entre a produção das
formas da arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado. Chamada
de “ruptura estética, esse regime instaurou uma desconexão, uma ruptura da relação entre as
produções artísticas e dos fins sociais definidos, entre formas sensíveis, significações que
podem nelas ser lidas e efeitos que elas podem produzir opondo-se à adaptação mimética ou
ética das produções artísticas com fins sociais” (Rancière, 2010, p. 59). A eficácia estética leva
à produção de um dissenso que pode ser entendido como um conflito de vários regimes de
126
sensorialidade e, assim, faz a ligação entre a ruptura estética e a política, pois política para ele
é dissenso:
Para ilustrar tal regime, o autor traz o conceito de revolução estética presente em seu
livro O inconsciente estético (2009). Nele, Rancière considera que o inconsciente da Psicanálise
freudiana é um inconsciente estético, pois Freud, em sua época, para criar a teoria
psicoanalítica, lança mão de grandes nomes de figuras literárias e artísticas para se contrapor à
autoridade da ciência médica. Ou melhor, são os artistas e suas obras que constroem o
pensamento sobre o inconsciente psicanalítico. Segundo ele, naquela nova medicina (a
Psicanálise) e em suas respectivas formas de cura, o espaço vazio entre a “ciência” e o
conhecimento popular é ocupado pelas coisas da arte como modos específicos da união entre o
pensamento que “pensa e o pensamento que não pensa”. O autor apresenta o conceito de
revolução estética que se dá a partir da mudança do regime mimético, em que as formas ou
expressões artísticas encontram equivalências com realidade (lógica da representação). É no
regime estético em que a arte a expõe, com toda liberdade, a presença de contraditórios, a
coexistência de pathos e logos. “A revolução estética é testemunha da existência da relação do
pensamento com o não pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade sensível,
do involuntário no pensamento consciente e do sentido no insignificante” (Rancière, 2009, p.
76).
Para Rancière (2009, p. 58), existem dois tempos ou dois modelos do inconsciente
estético em Freud: o modelo de rastro, no qual as obras podem ser lidas pela interpretação dos
seus rastros ou sinais; e o modelo de inconsciente que: “no detalhe do insignificante da obra
não busca um sinal ou rastro que reconstruiria um processo, mas encontra a marca direta de
uma verdade inarticulável que se imprime na superfície e desarma toda lógica da história de
127
composição racional dos elementos”. Sobre essa diferença, ele comenta a presença desses
tempos do inconsciente estético na teoria e prática da Psicanálise contemporânea:
cheiros de coisa boa, de uma foto de algum amor, um amor utópico, ao tentar cantar
desafinando, fazer um minuto de silêncio, tocar uma flauta, das nossas pausas propositais, das
respirações, dos gritos gritados juntos, dos muitos pulos, do nosso suor que exalava a medicação
que a expurgava de nossas peles, ao escutarmos os barulhos que aquele piso antigo de madeira
fazia. Nossos desvios das histórias manicomiais, nossas fugas, nossos caminhos pela praça,
nossas andanças pela Ribeira (bairro que beira o Rio Potengi, onde fica o cais de Natal), nossos
sonhos. Todas essas experiências estéticas nos proporcionaram certas rupturas, recortes e
redistribuição dos nossos corpos e dos espaços, tanto subjetivamente como politicamente,
arrancando-nos de nós mesmos. Logo, eram experiências políticas, pois rearranjavam o nosso
aparato sensível e as consequentes novas racionalidades, as novas formas de pensar.
Conta Rancière que, durante a Revolução Francesa de 1848, um jornal revolucionário
operário, chamado Le Tocsin des travailleurs, publicou um texto aparentemente “apolítico” que
falava sobre a jornada de trabalho de um operário marceneiro enquanto colocava o piso (taco)
em um aposento de seu patrão:
Rancière (2010) nos explica que a criação de uma voz política dos operários tinha
relação com a ruptura estética e a dissociação sensorial das maneiras operárias de ser. Muito
mais do que ter conhecimento sobre a situação de opressão, era preciso subverter a disposição
dos corpos que eram inapropriadas naquela situação. Arte e política são formas de dissenso que
realizam operações de reconfiguração da experiência comum do sensível, são ficções: “pois,
para os dominados a questão nunca foi tomar consciência dos mecanismos de dominação, mas
criar um corpo votado a outra coisa, que não a dominação” (Rancière, 2010, p. 61). Assim, o
autor localiza o que há de estética na política, entendendo que os atos de subjetivação política
129
interferem e redefinem o que é visível, o que se pode dizer dele e quem pode fazê-lo. E há uma
política da estética em que outras “formas de circulação da palavra, de exposição do visível e
de produção dos afetos determinam capacidades novas, em ruptura com a antiga configuração
do possível” (Rancière, 2010, p. 63).
Nessa perspectiva, acreditamos que politicamente construímos uma experiência de
cuidado em saúde mental que questionava os modos hegemônicos de cuidar, repensava as
competências de quem podia cuidar, onde se cuidava, o que se interpelava às pessoas – quando
geralmente a pergunta que mais recebem é sobre o seu adoecimento, seus sintomas e seus
problemas. Nossa atenção era estética e não se passava em um serviço de saúde mental (muito
embora se relacionasse com eles), não se ocupava exclusivamente do sofrimento mental, nem
das histórias de sofrimento, não trabalhava exclusivamente com as palavras, as representações
e as identidades, e nem estas se prestavam unicamente a nos colocar a escutar o sofrimento. A
experiência do coletivo cenopoético Vento dos Avoados era estética e política porque operava
um dissenso: a possibilidade daquelas pessoas estarem em um lugar definido para “ações de
cultura” enquanto olhavam pelas janelas, fumavam seu cigarro e se lembravam de situações
cotidianas que tinham vivido antes da ruptura que vivenciaram. Naqueles momentos, como
analisa Rancière (2010), se mostrava o choque de dois regimes de sensibilidade: olhar pela
janela em uma cidade e rememorar um cotidiano vivido rompiam com o olhar e as memórias
repetidas que vinham das paredes e grades do manicômio. Era estético e político uma vez que
aqueles relatos de si, autoficcionados, testemunhavam um vão, uma janela em nossa atenção,
uma pequena brecha numa redistribuição de onde se podia estar, do que se podia lembrar e
falar, mostrar, afetar e ser afetado. Era atentar para aqueles corpos que recortavam e
redistribuíram o espaço e os regimes de sensibilidade ao ensinarem outros modos de ver e dizer,
outros exercícios ao público, oferecendo-os como cuidado estético em um espaço não ocupado
por esse público socialmente marginalizado e excluído dos espaços da vida social e da
“cultura”. Essa foi nossa ruptura e revolução molecular estética: descobrir que a atenção estética
deve acontecer como condição prévia ao cuidado, antes e combativamente de qualquer cultura
de cuidado ser instituída. Seria como operar separações, recortes e subtrações em nossa atenção
para que o espaço estético e a criação aconteçam e sustentem seu potencial
desinstitucionalizante.
Assim, definimos a atenção estética como um conceito-ferramenta que tem como
condição operar uma posição ética em estado processual que procura romper com os regimes
de sensibilidade hegemônicos. Busca, nessa ruptura, os gestos e as sensibilidades que ainda não
130
se fizeram, mas que necessitam dessa atenção para emergir. É um recurso que pode ser utilizado
em diferentes espaços de produção de saúde, mas não deve ser compreendido como um
instrumento protocolar ou técnica artística, pois trata-se de um estado aberto e processual que
se ocupa da produção de cuidado e de vida. Diz respeito à nossa postura ética, estética e política
ao nos atentarmos para a criação de espaços estéticos singulares e coletivos na existência das
pessoas que acompanhamos, nos diversos contextos em que prática clínica e as intervenções
psicossociais se fazem necessárias.
Nesse sentido, foi-nos preciso aprender a atentar para aquelas delicadezas que se faziam
viver naqueles momentos. Aprender uma cegueira necessária e um fazer funcionar outros olhos
que nasciam na busca por atentar para o que poderia haver de “estético” em cada um que fizera
parte daquela experiência coletiva.
131
essas forças foram se agrupando, se hibridizando e puderam ganhar uma outra dimensão.
Inventar o conceito atenção estética é esse ensaio de junção, juntar os tempos do Vento, juntar
o Vento e os Avoados, a realidade e a ficção, o possuir e o despossuir as narrativas, o cuidado
e a atenção estética.
Ao término desta Tese, acredito muito que posso afirmar o campo da saúde mental e
sua interface com a dimensão estética não somente como uma experiência possível e
importante, mas sim como promotora de saúde, como uma “tecnologia leve” (Merhy, 1997)
que pode ser amplificada. A atenção estética habita um corpo prévio ao cuidado, que todos
podem experimentar. Seria um estado que busca atentar para nossa possibilidade de suspender
o olhar habitual e buscar frestas, como um desencontro com os corpos e as histórias que nos
seduzem pelas narrativas manicomiais. É rompê-las para reconfigurar nossa política sensorial,
reorientando-as para as brechas alegres.
Foi uma experiência possível e é um exemplo do conceito-ferramenta atenção estética.
E, para além, essa maneira de atentar pode estar presente mesmo quando não trabalhamos com
linguagens artísticas, pois a dimensão estética é um modo de estar, recortar e rearranjar nosso
regime sensorial em relação a nós mesmos e ao outro – outro coletivo, outro grupo, outro social.
Atenção às rupturas e às reconfigurações que podemos realizar, atenção ao inédito que pode se
instaurar depois dos desvios de rota usuais necessários.
Busquei um intercessor para me ajudar nesse momento de tentativa de conclusão sempre
inconclusa e encontrei um profeta que apaziguou os meus sentidos que andam tão calejados
depois de um ano e alguns meses de pandemia e caos estético e político que vivemos. É em
companhia de Felix Guattari (2001), em sua obra profética As três ecologias, que ventamos em
sentido a concluir esta narrativa. Em sua obra oráculo, ele se perguntava como seriam as
maneiras de se viver neste planeta com a aceleração das mutações técnico-científicas e do
crescimento demográfico, e uma quantidade cada vez maior de tempo da atividade humana sem
trabalho dada a reconfiguração dos modos de trabalho dentro capitalismo mundial integrado.
Para tal indagação, ele nos apresenta o conceito ético-estético “ecosofia”, que se compõe a
partir da noção das três ecologias (mental, social e da natureza) na perspectiva de uma disciplina
ética e estética.
Segundo Guattari (2001), as relações da humanidade com o corpo social, com a psique
e com a natureza sofreriam necessariamente recomposições de suas práticas sociais e
individuais. Otimistamente, ele prevê que essas mudanças tornariam as pessoas cada vez mais
133
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Diário de Campo – Grupo fechado do Facebook – Vento dos Avoados. Maio a dezembro
de 2016
Memórias felizes
Essa foi a cena/sessão sobre as memórias felizes da nossa infância. Essa era a história do dia
mais feliz da vida de M.: quando ele dançou pela primeira vez!
Essa era L. contando sua memória de infância quando lavava os pés de sua avó.
Mas os pássaros insistem em cantar, em tripudiar, puxar sua saia, seus cabelos. O vento os traz...
Esses pássaros bebês que caíram do ninho... Há um tempo ali chamando a mãe do desamparo...
A mãe num dia resolve abrir a janela do beco... E quando vira, abre os olhos e sente os pássaros
que ainda não voam, vê os filhos do amor a chamarem para morar em suas asas. As lágrimas
lavam o ódio, mas não a miséria. As lágrimas, as lágrimas. O abraço, os risos antes do abraço,
a roupa, a MÃE. O nosso peito molhado, o nosso coração que se borra em ventania e dor
naquele fim de tarde.
Nasce um rei
O feto, a luta pra nascer. Os gritos, o rastejo. Quem nasce ali? Um rei, um papa, um ser de poder
ímpar que, ao se olhar, quebra seu espelho. Nasce a PSICOPATOLOGIA, nasce a norma da
normalidade. E o rei Psicologia conta-me sua história amarga e ainda me ameaça. Ri alto,
dizendo que um dia ia me tratar. Falou alto, rindo alto e apontando pra todos ali... Um dia serei
seu psicólogo e seu também, e seu... E seu também.
Nasce J., nosso rei.
Na Praça Sete de Setembro, ou Praça Vermelha, alguém me pergunta: vocês sabem por que ela
é vermelha? Outro nos diz: é porque o chão era todo vermelho... Agora tá desgastado, mas era
bonito, era vermelho. Alguém disse: façam uma roda e fechem os olhos, ouçam os barulhos,
aqueles mais distantes... Era uma tarde de chuva, às três horas o sino soou, a chuva pingou, o
vento me abraçou. Eu queria encontrar alguém ali. Mas meus olhos estavam fechados.
Chamamos Manoel de Barros que nos trouxe as árvores e os pássaros. Logo chegaram os erês,
as crianças que reclamavam a praça. Brincamos de tica, de estrela e vimos rio, formamos
estátuas e declamamos poemas. Se essa praça, se essa praça fosse minha....
Bufão bicho
De longe, vemos suas narinas ofegando, cheirando. De longe, sinto que aquele cheiro fede,
incomoda. Vemos alguém que busca, num jeito de desejo de busca. Ele vai, vai, vai, vai como
alguém que busca o êxtase, vai até se achar. Quando acha, cai como alguém cansado de amar.
Hoje, somos acolhidos pelo sorriso de F., que vem até o portão do CAPS com movimentos de
abertura, seja do portão, seja da sua vida, seja do seu sorriso. Desde a semana da Luta
Antimanicomial, venho notando diferenças sinceras em F.: colocando-se em público, pegando
um microfone que nunca fora permitido durante a sua trajetória de vida. Sem aspectos de
dopação, F. chegou até o fim da nossa oficina. Vamos seguindo o fluxo da cidade, um caminhar
de apresentação de algumas estagiárias. Paro com ela para comprar grude. Na ausência de troco,
pega um pacotinho de raivas. Semana passada, combinamos de descer o nosso encontro para o
141
Então gente, tivemos uma mudança do tema a ser trabalhado. De início, pensamos em trabalhar
a projeção da raiva. Contudo, não tínhamos material suficiente para todos (almofadas) e
pensamos que seria mais cuidadoso fazermos quando estivéssemos todos juntos porque é um
exercício muito mobiliza(dor). Daí, trabalhamos nesse encontro o tema “Reencontro/ Partidas”.
Serei bem descritiva para vocês ficarem a par, OK?
1° momento – Aquecimento: fizemos o exercício de crescer e diminuir. Em seguida, tínhamos
que proteger nossas costas para que o outro não conseguisse tocar, visto que o nosso objetivo
era tocar nas costas do outro.
2° momento – Reencontros: foram feitos dois grupos e reencontramos alguém importante para
nós que não encontramos faz tempo. Cada um tinha seu encontro.
3° momento – Partidas: nas mesmas duplas do reencontro, um tinha o objetivo de partir e o
outro de convencer a não partir.
4° momento – Compartilhamos as nossas histórias de reencontro e partida em grupos e fizemos
uma pequena cena.
Deu para compreender?
Gente, tendo em vista que somos seres de e para cuidado, seguem alguns princípios que acho
que devemos atentar nos nossos encontros:
1. Não propor temas que envolvam afetos tristes (eles sempre aparecem, por isso não devemos
suscitá-los.
2. Ao contrário: sempre trabalharemos com memórias de afetos alegres.
3. Os temas das memórias que se tornam cenas devem ser trabalhados com cuidado, sempre
colocando a pessoa na condição de escolher como e se quer fazer a cena. A maneira como isso
se dá depende da nossa sensibilidade e do método. É sempre bom buscar intercessores para
contar a história, tipo: imagens, matérias de jornal (Internet), elementos históricos etc.
ESTAMOS TRABALHANDO COM TEATRO DOCUMENTÁRIO, NÃO É PSICODRAMA
OU TEATRO DO OPRIMIDO.
4. Esse blog da Cia. Teatro Documentário é bem inspirador:
http://teatrodocumentario.blogspot.com.br/.
144
Quarta, dia 22/06, fomos ao encontro LGBT. Nós e M., somente M., do CAPS. Muito se revela,
muita vida se faz ali. Geni e a destruição do mundo. Geni e o nascimento de Eros.
Julho – O coletivo tem se composto pelos seguintes integrantes (mais fixos). São essas pessoas
e cenas que temos que dar continuidade nas pesquisas documentais. É hora de trabalhar com
imagens, com textos de notícias escolhidos por eles, é hora de fazer o enlaçamento do
social/político. Trabalhamos conteúdos subjetivos até então. É preciso ouvir, buscar, incitar o
que essas pessoas querem, sentem pro mundo. O que as liga para o mundo? Como, quando e o
quanto essa pólis aparece na vida dessas pessoas? Que imagens disso nos vai chegar? Como
fazer isso?
Fizemos exercícios de conexão com o grupo – acho que M. D. pode explicar melhor! Tínhamos
um objetivo a cumprir juntos: dar sete passos juntos, contando juntos, até que D. ampliava o
exercício e sua dificuldade. Depois, fizemos pequenas cenas onde tínhamos que incluir temas
já trabalhados nas oficinas: o cheiro, a história de amor, o pássaro, o pai... Aí eu e Doc ficamos
mais na posição de diretores mesmo. Ao final, fizemos uma roda para saber como eles estavam.
A imagem do grupo andando todos juntos, ficou como um exército. Lembrei-me do clip de
Pink Floyd, quando as crianças estão na escola todas iguais. Sei que lá tem uma conotação de
denúncia, mas foi aquela imagem que me veio. Se atenham a ela. Até teve um momento em
que me sentia muitas, as vozes dos meus companheiros ecoando junto com a minha, dava a
ideia de que éramos um só! Exigiu bastante do corpo, pois D. ia colocando paradas com uma
ação nos passos, por exemplo: no quarto passo, vocês fazem uma pose; no segundo, pulem...
Tem alguns corpos que não se sentiam dispostos, se sentiam cansados.
Novo formato dos encontros: começaremos todos juntos o acolhimento, a saudação aos novos
participantes e pediremos para algum avoado antigo que conte aos novatos o que é o coletivo,
quando se encontra, o que fazemos e para que fazemos.
Faremos um aquecimento todxs juntxs.
Depois, o grupo se separa: os novatos ficam com dois estagiários que farão um trabalho de
corpo, de grupo e uma iniciação ao Teatro Documentário (narrativas de si).
Um estagiário fica na borda (o tempo todo). D. e eu (variando isso) vamos construir o espetáculo
com os antigos, seguindo um roteiro já estabelecido.
No final, terminamos todxs juntxs numa roda de avaliação e conversa. Vamos variar esses
lugares para todxs participarem dos processos.
As atividades serão planejadas com antecipação.
B. – O vento de aço cruzou o cansaço e chegou em brisa breve! Sustentado na alegria cantante
do caminho até chegar à Pinacoteca, mais uma vez nos mudamos para outra sala. As
organizações de cultura e educação fechavam em si a afirmação de mais um novo acordo.
Acordo diante de mais um dia de surpresa, um convite da realidade à poesia, me coma.
Existências de muitos ventos aproximavam! Os ventos sopram em múltiplas direções
delirantes. A ventania confirmava a afirmação dessa diferença. Afinal, G. me confirma ao
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chegar, ainda com um olhar atravessado: “eu aqui posso contar minha história, é?”. Sorri,
afirmando que aqui seria um lugar de experimentação e que poderemos viver nossas histórias.
Sorrisos largos, a liberdade desejada na voz de pássaro, quando R. nos conta na cena de um dos
nossos exercícios de hoje, a linha da vida: “eu quero poder voar como esse pássaro, ser livre”.
Ali, eu aprendia bem sobre liberdade e o quanto me vejo a perguntar: o que te puxa para o chão?
O que não te coloca no céu das cidades? O que de vida não conhece a liberdade? Eu sou
composto de dor, travessias, lembranças. Pingo memórias. Embaraço o tempo. Afirmo mais
uma vez o sustento da alegria cantante. A voz sai, a interação compreende, afirma, então segue.
Compartilho minhas histórias diante de tantas outras. O vento balançou memórias,
provocações, pensamentos, agir, cantar. R. chegou de “cabelos e dentes novos”, expressões da
assistente social do hospital psiquiátrico da cidade, João Machado. Ainda ontem, gritávamos
nas ruas “por uma sociedade sem manicômios”, afirmando nossa liberdade. Afinal, “FORA
TEMER”. Ops, isso foi o desfecho do encontro da quarta. Ecoou junto aos “FORA TEMER”
grafitados nas paredes da nova sala. Katiane chega atrasada, mas afirma seu pássaro Coração
Valente nas construções de hoje. R. e J. me provocam curiosidade. As constatações do serviço
no início do ano pareciam crescer cada vez mais: “muitos jovens estão surtando”. Por trás disso,
mais uma vez me pergunto: a loucura habita os lugares habitados? Os leitos masculinos dos
CAPS 3 reabrem. Será que teremos novas internações de seis meses, iguais às de M.? Em três
meses, estaremos nos aperreios finais da delicadeza da incerteza! Durante o intervalo de hoje,
corri para algumas conversas sobre o agora. Percorrer o caminho da conexão, o chegar junto
para conhecer melhor, porque “de repente, intrometem-se uns sacos de sonhos; uma
remembrança de mil novecentos e onze; um rosto de moça cuspido no capim de borco; um
cheiro de magnólias secas. O poeta procura compor esse inconsútil jorro; arrumá-lo num
poema; e o faz”. E é um pouco dessa minha tentativa, em tentar compor o devir-escrita de hoje.
Nas passagens da linha do tempo da vida, o passado se confundia com o presente, afirmava o
desejo de um futuro em exercício da liberdade, chorava uns passados rindo em composição das
cenas (e da vida!) no presente. O palco sucumbiu de intensidades! R. e R. encenam o desejo da
volta da família; I. nos contava sobre sua gravidez e a ânsia da “alta” do hospital colônia; E.
escracha sua vida, no brilho do sol lá fora; C. inaugurou nossa “borda” hoje! Respiramos para
nos aterrar no chão de madeira e continuar a produzir vidas que possam cantar nos céus da
cidade, igual a desenvoltura de G. na concretização do seu desejo: “eu sempre quis fazer
Teatro”. R., em algumas de nossas conversas, me responde quando pergunto sobre suas
habilidades na vida (pegar anotação da frase na fichinha que preenchemos com alguns hoje). E.
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me contando sobre sua chegada ao espaço através do convite de O. ; A. sem saber explicar seu
amor nascente e construtivo com O.; O., na sua timidez, interagindo conosco; E. nos rizomas
de sua existência; A. E. imperando sua produção de subjetividade no amor, no falar, no encenar;
objetos sobre o chão da sala, coletivizava histórias, sonhos, tempo, escuta, atenção, entrega; T.
brincando lindamente com sua timidez, a parede e uma plateia de umas vinte pessoas, perdidas
na compreensão da sua própria história. É isso: pulsa, pulsa, memórias. Afinal, arma
quente!!!!!! Na minha cantoria na reconstrução de mim, Milton Nascimento nasce em mim:
“Coisas que a gente se esquece de dizer/ Frases que o vento vem às vezes me lembrar/ Coisas
que ficaram muito tempo por dizer/ Na canção do vento não se cansam de voar”. E desejo
também a minha liberdade, como R., R., D., E., G., F., E., L. e tod@s que ali pisavam a madeira,
com certeza! Por isso, me implica tanto afirmar “por uma sociedade sem manicômios”, porque
ainda tem pessoas a procura de liberdade! Por que vou querer a prisão d@ outr@ se o que mais
quero é sair da minha?
Outubro, L. – Rumo ao fim. Vamos viver nossas oficinas com essa tensão do tempo que passa,
do fim que se sabe, que se deseja. Que eu possa tecer as possíveis relações, consonâncias e
distâncias entre o que desejo e o que de fato acontece. Entre um trabalho de caráter inserido na
dimensão da atenção psicossocial e algo que tenho chamado de teatralidade no bojo das
autobiografias, na estática de Teatro Documentário. Como eu gostaria de acabar com esse
trabalho? Cansada? Titubeante? Reclamante? Não sinto assim... Sinto sim necessidade de parar
para repensar muitas coisas, mas sinto um movimento cada vez maior na busca daquilo que
subsidie e dê minimamente uma forma ao meu pensamento e desejo. Quero o rito, quero essas
memórias organizadas vivas desfilando, quero a infância do grupo, quero a nossa constituição,
quero A. E. nos benzendo e dando início aos nossos trabalhos, quero D. cantando, H. depondo
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na polícia das ruas, quero o palhaço de W., quero o canto de B., o número de mágica de J., a
força de ser de G., a voz de M. e tantas cenas... Quero o ritual das nossas próprias oficinas sendo
oferecido para nosso público. Quero nossa oficina sendo feita e encenada por eles para o nosso
público. Algo que tenha uma estrutura mínima, mas que opere num nível de improviso e que
chame o público a viver e contar suas memórias também, receber massagem contorno, sentar
no banco, mostrar a vida na sua linha desforme... Vamos sonhando.
Coisas interessantes e lindas surgiram... Uma cena de cortejo e canto com T. levando um
escudo, uma narrativa de um relógio ganho depois de se levantar uma casa, o clown de W. e
sua vida nas artes antes da rua, uma narrativa oral da história de um acidente de moto na vida
de uma mulher grávida – interna hoje do João Machado. Já temos muuuita narrativa nesse
grupo... Muita história se contou... Memórias se abriram e explodiram, confissões foram feitas
e os segredos dessacralizados. E nós, aqui, testemunhas disso que se chamou de oficina de
Teatro, alguns campos de estágio, outros sonhos e outros nada. Assim, seguimos para o rito
final. Sabendo da despedida, da morte disso que se vive uma vez só na vida, como um amor de
verdade. T. com sua sabedoria nos pergunta: “mas não vai mudar de aluno de estágio, não né?”
Ela sabe que estamos no fim, sua porosidade aberta absorve mais do que palavras. Com encanto,
devemos seguir e nunca permitir que nos tirem isso que nos guia! O encanto pelo que somos,
fazemos e cremos. Evoé!
Gente, semana que vem vou fazer uma roda pra avaliar o processo com os participantes. Estou
pensando em alguns dispositivos para facilitar. A ideia é pensar todos juntos em roda como foi
esse processo e pegar algumas narrativas individuais também. Vou precisar da ajuda de vocês:
vou gravar as narrativas, por isso pensei nesse roteiro semiestruturado como disparador. Se
puderem me ajudem a construir questões e dispositivos...
1. O que é para você esse espaço?
2. Como é estar nesse espaço (sentido de lugar e esperar fazer algo)?
3. O que fazemos aqui?
4. O que fazemos aqui muda seu dia? Se sim, como?
ressalva de que aqui o movimento é inverso e, com respeito à respiração, por exemplo, enquanto
no ator o corpo é apoiado pela respiração, no lutador, no atleta físico é a respiração que se apoia
no corpo”. A sustentação da liberdade como norte no cuidado é o que afirmo em mim hoje, ao
passar as recomendações da importância do registro do nosso trabalho. A implicação insiste no
construir, na necessidade cotidiana de estarmos “inquietantes pela cidade”, de sentir os ventos,
as brisas que correm pelas ruas, pelas árvores. A necessidade do sentir me coloca na condição
constante da autoanálise. Por isso, não existe esse distanciamento do B. profissional, do
militante, se não, esqueço a liberdade cotidiana e só tiro ela do armário em tempos de “festa”,
como na semana da Luta Antimanicomial. Proclamo “por uma sociedade sem manicômios” e
esqueço os meus próprios. Logo, sou devorado pelo conformismo e não aplico minha ética
enquanto existente e cuidador. Hoje, o Vento dos Avoados registrou esse cotidiano. A roda do
grupo atravessou histórias, reconheceu narrativas e nos fez refletir sobre nosso próprio
processo. Por quais caminhos temos percorridos? Como estão os passos dados? Como chega o
vento das outras vidas, vozes? A liberdade foi norte nas expressões dos atores, atrizes,
cuidadores, estudantes, capoeiristas, pesquisadores. Insistir nesta aposta insiste justamente na
provocação dos deslocamentos. Por exemplo, ao assistirmos atentos aos corpos na provocação
desses questionamentos como norte, nos perguntamos: “como é estar nesse espaço? O que
fazemos aqui muda nosso dia? Se sim, como?”. Histórias de vida institucionalizadas foram
escancaradas para o estagiário da Pinacoteca. Na comunicação com uma amiga que
acompanhava, demonstrava aceitar com afetação as histórias que chegavam aos seus ouvidos.
Afinal, quem não gosta de transitar pela sua liberdade? Alguém aqui não gosta de ser livre? R.
nos mostrou com maestria a sua inquietação contida nas paredes do Hospital Psiquiátrico da
cidade. R. insistia em percorrer a sala pulando, cantando, dançando e nos perguntando: “vocês
estão vendo como estou me sentindo feliz? [...] Eu fiz dança contemporânea”. R. já provoca em
mim algumas pistas de possibilidades, alguns trajetos da existência que foram bloqueados. E,
naquele espaço da Pinacoteca, ela podia correr, dançar, acenar da janela. Na avaliação final,
chegamos à conclusão que “a liberdade voou por ali hoje”, as captações fotográficas denunciam
espaços de cuidados sustentados pela violência. R. grita pela Luta Antimanicomial, chamando-
a. Ela pede para adentrarmos na sua contenção das paredes do hospital. As cuidadoras do
hospital afirmam sua resistência e apostam na liberdade. As estagiárias de Psicologia
materializam em seu discurso a aposta, também, na liberdade no cuidado, falam “inspiradas”
das cuidadoras e ressaltam a liberdade enquanto ética na construção do saber-fazer! Chego à
Universidade, o pátio do Setor 2 repleto de docentes, acatam o indicativo de greve para o dia
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11 de novembro. No celular, J. me liga atônito com seus episódios deprimidos e “sem lugar”
nos espaços que supostamente seria de cuidado – os CAPS. Inclusive, é o lugar que não quer
ser habitado quando chega a crise! Na sala de aula, os futuros psicólogos são cada vez mais
achatados pela necessidade compulsória do “se formar e ser feliz para sempre”, capturados pela
flexibilidade do mercado, da crise, da economia, do nosso contexto político. Todas essas
histórias estão na afirmação da liberdade, afinal, acho que nunca é demais repetir: alguém aqui
não gosta de ser livre? Cultive a liberdade do outro, não morra na sua. Salve o mestre Paulo
Freire no “pacientemente impaciente”.
1. O coletivo Vento e sua relação com a produção de saúde no contexto da cidade. Será um
artigo de relato do estágio de maneira global.
2. A formação do psicólogo e o campo do sensível.
Teremos mais temas! Vejam o que o estágio despertou em vocês para criar mais temas. Vamos
escrevendo e colocando aqui.