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Sgt Pepper chega aos 50: como a obra-prima dos Beatles pode unir o país da era Brexit.

Diferentemente de outros clássicos psicodélicos, Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band não soa
como idealismo hippie. Ao contrário, o comportamento de inclusão e a abertura para a diversidade
da identidade britânica que o álbum defendeu era, para a época, essencial.

John Higgs, para o The Guardian


31/05/2017
Traduzido por Gabriel L. Trizoglio

Filósofos do pop de tempos incertos. Os Beatles no lançamento


de Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band em 1967.
Crédito da foto: Gravadora Apple

Há cinquenta anos, Sgt Pepper deu o tiro inicial para o Verão do Amor (1). O ano agora é 2017 e, a
julgar pelas mídias sociais, estamos entrando em um Verão Político de Ódio. Nestas circunstâncias,
relembrar o disco parece um gesto nostálgico, reflexo das nossas dores atuais. Mesmo assim, o re-
trato envelhecido do sol a nascer pode iluminar a situação de nosso presente. De acordo com Pep-
per, há uma rota desconhecida junto das nossas costumeiras.

A maior parte da música psicodélica da década de 60 focou na viagem interna; quando espi-
ou para fora do corpo e irradiadou-se pelo mundo, se mostrou tipicamente seletiva. De The Times
They Are A-Changin, do Bob Dylan a Monkey Island, do 13th Floor Elevators, a geração mais velha
e sua cultura foram satirizadas, temidas ou veementemente rejeitadas. Um slogan famoso dos anos
60 é “Nunca confie em alguém com mais de 30 anos”. A psicodelia se posicionou como um movi-
mento separado da sociedade. Sgt Pepper é uma parte essencialmente integral da cultura psicodélica
e é fácil verificar como ele é diferente: o álbum é para e sobre todo mundo.
O “sargento Pimenta” (Sgt Pepper) não fala sobre rejeição ao pré e pós-guerra britânico, mas
sim sobre o pré e pós-guerra vistos sob a perspectiva duma iluminação pirofágica. Desde os primei-
ros segundos, com o ruído inicial típico de uma multidão, o álbum é inteiramente inclusivo. O lan-
çamento original, aliás, vinha com pecinhas de jogo para crianças. Pode oferecer um olhar bastante
particular em certos pontos, mas acerta ao acreditar o quanto necessitamos de With a Little Help
from My Friends. Expõe a distância entre jovens e velhos nos anos 60 como em She’s Leaving
Home, mas a geração mais velha, incompreendida, é também retratada com compaixão e compreen-
são. Enquanto outras bandas da época zombavam do slogan, os Beatles entenderam a lição da psi-
codelia: nós todos somos apenas um.

No álbum, a beleza da psicodelia não é a de se separar do mundano, do dia a dia, mas a de


ser desenvolvida a partir destes. Para cada Lucy in the Sky With Diamonds há um questionamento
polido, assim como se pergunta se a guarda de estacionamento Lovely Rita aceitaria tomar um chá.
No início do lado B, a indiana Within You Without You se funde à melodia de When I’m Sixty-Four,
com apenas um som de risada a separá-las. Na faixa que, desnorteadamente, fecha o trabalho, A
Day in the Life, o mundano e o visionário caminham juntos do início ao fim no intuito de ser revela-
da a total cumplicidade entre as músicas.

Ringo Starr, John Lennon, George Harrison e


Paul McCartney no estúdio.
Crédito da foto: Gravadora Apple.

As músicas do álbum são principalmente vinhetas sobre pessoas ordinárias, executadas em


estilos musicais bastante variados. Neste detalhe, Sgt Pepper’s tem mais proximidade com o primei-
ro grande trabalho da cultura britânica, as histórias de Chaucer’s Canterbury do que com a psicode-
lia norte-americana. As narrativas de Canterbury são de diferentes estilos, desde um romance na
corte a um acontecido banal. As pessoas nas histórias vão do cavaleiro e a princesa ao cozinheiro e
o moleiro. A inclusão de todos os aspectos da sociedade britânica medieval transformaram o livro
de uma miscelânea em um retrato da Inglaterra. Como disse o poeta John Dryden, “a obra contém
tudo criado por Deus”.

Como as canções no Sgt Pepper, as histórias da coleção de Canterbury causam mais impacto
juntas do que separadas. É como o sentido de comunidade: a verdadeira natureza dos seus amigos e
família é revelada com mais clareza quando eles interagem. As histórias de Chaucer, de modo simi-
lar às canções deste álbum dos Beatles, são mais do que apenas a soma de suas partes.

O resultado é um álbum assumidamente britânico. Quando os Beatles tomaram ácido e olha-


ram para si próprios, perceberam que faziam parte das comunidades, música, cultura, cenário e pia-
das que os alimentavam. Sgt Pepper nos leva dos grandes aos pequenos palcos e ao circo e nos diz:
“A cada verão podemos alugar um sítio na Ilha de Wight (2), mesmo que não gostemos tanto”. Ele
se tornou tão importante para a cultura do Reino Unido que quando você visita o pavilhão deste país
no Epcot Center (Flórida, EUA), encontra uma vila tipicamente inglesa, com um pub, restaurante
que serve peixe com fritas e uma loja vendendo produtos personalizados do Sgt Pepper.

Os habitantes do Reino Unido que rejeitam a ideia de serem “cidadãos de lugar nenhum”,
procuram exatamente expressões culturais profundamente enraizadas na consciência da convivência
coletiva. Sgt Pepper nos mostra que conseguimos este feito somente acolhendo e incluindo todos. O
álbum traz personalidades alemãs e norte-americanas na capa porque estas foram culturalmente im-
portantes para os rapazes. E inclui músicos indianos porque estes inspiraram a banda, devido em
parte à ligação história entre os dois países.

Visto desta forma, o fracasso dos nacionalistas em produzir uma expressão inglesa que fun-
cionasse culturalmente e que valha a pena ser citado da mesma forma que as histórias de Canterbury
ou o Sgt Pepper é compreensível. A história do Reino Unido é a soma de cada pessoa que viveu nas
ilhas. Excluir sessões da cultura é diminuir ou distorcer seu caráter autêntico. Quem almeja a igual-
dade mas está preso no viés isolacionista não irá alcançá-la. Não se alcança o modo de ser inglês
quem tenta afastar qualquer coisa que não pareça britânica, mas sim quem simplesmente vive neste
país interagindo com toda a diversidade que a região tem a oferecer.

Os Beatles prestes a fazer um ensaio em


Londres para uma transmissão do Our World.
Crédito da foto: Associated Press

A única forma de resolver uma cultura dividida é encontrar uma perspectiva que valorize to-
dos os lados, que não os desequilibre, não enalteça um ponto mais que outro e que os aponte como
sendo partes essenciais de algo maior. Pode ser feito por meio de tratados políticos, como o Acordo
de Belfast (3) ou a Rosa de Tudor, que ajudou a unir os lados de York e de Lancaster após a Guerra
das Rosas. Historicamente, esta foi possivelmente a única vez em que tais divisões foram elimina-
das. Apenas quando há uma complexidade maior, como por exemplo o conflito entre palestinos e is-
raelenses, fica mais difícil de ser encontrada uma solução.

Nós, na Inglaterra da era do Brexit, temos sorte a esse respeito, por termos disponível uma
perspectiva maior que poderia resolver nossas divisões se a quiséssemos usar. Sgt Pepper nos revela
que expressar a identidade inglesa, abraçar um mundo mais amplo e não rejeitar pessoas são ações
compatíveis. A propósito, o êxito de uma destas ações depende do êxito das demais.

As canções do álbum nos fazem recordar de coisas sobre a identidade inglesa que às vezes
podemos esquecer. Fixing A Hole (Tapando um buraco) nos conta que nós temos capacidade para
arregaçar as mangas e consertar coisas que estão quebradas. Getting Better (Melhorando) nos expli-
ca que podemos ser otimistas, mesmo quando o futuro parece desanimador. Within You Without You
(Dentro de Você Sem Você) nos aconselha a olhar para dentro e entender quem somos. Mas isto so-
mente pode ser realizado, o álbum nos lembra, com uma pequena ajuda dos amigos (With a little
help from my friends).

Link para texto original:


https://www.theguardian.com/music/musicblog/2017/may/31/sgt-pepper-at-50-could-the-beatles-
masterpiece-unite-brexit-britain

Notas de tradução:

1) O Verão do amor foi uma série de manifestações pela paz em várias partes do mundo em meados
de 1967 durante o verão do hemisfério norte.

2) A Ilha de Wight, situada ao sul de Southampton, na costa sul da Inglaterra, é a maior ilha do Ca-
nal da Mancha.

3) O Acordo de Belfast foi assinado naquela cidade em 1998 pelos governos britânico e irlandês,
com a finalidade de acabar com os conflitos entre nacionalistas e unionistas sobre a questão da uni-
ão da Irlanda do Norte com a República da Irlanda)

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