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NATAL/RN
2024
EMILLY BEZERRA FERNANDES DO NASCIMENTO
NATAL/RN
2024
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof.ª Dra. JANAYNNA DE MOURA FERRAZ
Orientadora (PPGSS/UFRN)
_________________________________________________
Prof.ª. Dr.ª. MARIA DALVA HORÁCIO DA COSTA
Examinadora interna (PPGSS/UFRN)
_____________________________________________________
Prof.ª. Dr.ª. DEISE LUIZA DA SILVA FERRAZ
Examinadora externa (PPGA/UFMG)
As pessoas comerão três vezes ao dia
E passearão de mãos dadas ao entardecer
A vida será livre e não a concorrência
Quando os trabalhadores perderem a paciência
Figura 1 - Carga de Transtornos Mentais Específicos: níveis por país a cada 100.000
habitantes (Transtorno de Ansiedade de acordo com os Anos de Vida Saudável) ................... 31
Figura 2 - Carga de Transtornos Mentais Específicos: níveis por país a cada 100.000
habitantes (Transtorno de Ansiedade de acordo com os Anos de Vida Ajustados por
Incapacidade - DALYs) ................................................................................................................ 32
Figura 3 - Carga de Transtornos Mentais Específicos: níveis por país a cada 100.000
habitantes (Transtornos Depressivos de acordo com os Anos de Vida Saudável perdidos por
Incapacidade - YLDs e Transtornos Depressivos de acordo com os Anos de Vida Ajustados
por Incapacidade – DALYs) ......................................................................................................... 33
Figura 4 - Evolução das taxas de mortalidade por suicídio, ajustadas por idade, segundo
região. Brasil, 2010 a 2019 ........................................................................................................... 34
Figura 5 - Exemplos de fatores protetivos e de risco que determinam a Saúde Mental ........... 38
Figura 6 - Modelo Dahlgren e Whitehead ................................................................................... 42
LISTA DE GRÁFICOS E TABELAS
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 6
1.3 Determinantes Sociais de Saúde Mental: avanço, mas também obstáculo. .................... 37
The health-disease process of male and female workers is engendered by the work process
under capitalism. In this sense, this dissertation shows how the risks that cause wear and tear
on workers' workforces, whether physical and/or mental, manifest themselves throughout the
working day. This procedure takes place in the context of the class struggle and the
transformations in the world of work in its dialectical relationship with the health-disease
production process, based on the texts of Marx and the studies of Latin American Social
Medicine, but not limited to them, and considering as a context the way in which psychological
suffering has been approached in Social Work. The general aim of this study is therefore to
contribute to a deeper theoretical understanding of the mental health of male and female
workers in the Brazilian Social Service. More specifically, the aim is to: a) Investigate the field
of workers' health as a space of theoretical and political dispute in Brazilian capitalism; b)
Expose psychological suffering as an expression of the social question based on the
developments caused by transformations in the world of work; and c) Analyze the State of the
Art of Social Work in relation to the themes of workers' mental health. The research
methodology is based on the critical-dialectical method, with a quantitative-qualitative
approach, and the use of bibliometric survey techniques of material data on the production of
knowledge of Social Work in relation to Workers' Health, plus documentary analysis of reports
from development and government agencies. As a result of the analysis, it is clear that
pauperism, suffering, madness and suicide are produced dialectically in society, as an
expression of a broader and more generalized process of psychological and physical suffering
resulting from the increased exploitation of work, which has been intensified by the growing
precariousness of the working class.
INTRODUÇÃO
mulheres têm produzido a vida de modo geral, e sua saúde, mais detidamente. Por isso,
buscamos apreender quais as mediações que perpassam a disputa política das classes sociais
no projeto de uma nova ordem societária, onde o trabalho não seja apenas um produtor de
mais-valor (e, portanto, meio pelo qual a classe capitalista expropria a classe trabalhadora),
isto é, nosso horizonte é a emancipação política e humana.
Observamos a necessidade de reforçar que as transformações no mundo do trabalho e
a luta de classes são questões indispensáveis na análise sobre o adensamento da questão social,
principalmente, nas condições atuais. Ao realizar esse estudo aprofundado, foi possível
perceber que o trabalho em um cenário de avanço do capital, irá sugar cada vez mais dos/das
trabalhadores. A apropriação de sua jornada de trabalho in loco (ou em qualquer outro espaço
sócio-ocupacional) não tem sido o suficiente, o capital tem avançado para que os/as
trabalhadores/as tenham sua subjetividade adaptada à tal “flexibilidade” destes tempos, a partir
de técnicas de gestão e controle desenvolvidas pela Administração, levando suas atividades
para casa, pensando nelas ou até mesmo buscando atingir elevados patamares de produção
para realizar-se enquanto ser produtivo.
As transformações no mundo do trabalho, as técnicas de gestão e controle da força de
trabalho e outras questões sócio-históricas resultaram em modificações também no perfil da
classe trabalhadora. O que anteriormente era composto por uma massa de trabalhadores fabris,
hoje está expressa de outra forma. Assim, identifica-se, na contemporaneidade, uma expansão
do trabalho assalariado que tem como forte característica uma heterogeneização desse
processo. Observa-se também o crescimento de trabalhos precarizados, com vínculos de
terceirização, pejotização e trabalho intermitente. Outra expressão dessas modificações do
mundo do trabalho é uma questão subjacentes nesta pesquisa: o desemprego estrutural.
Destacamos que os questionamentos acerca da relação entre a degradação do trabalho
e o adoecimento da classe trabalhadora (físico e mental) iniciou em uma enfermaria de saúde
mental do Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL) durante o primeiro ano de inserção
no Programa de Atenção Psicossocial, pertencente ao Programa de Residência
Multiprofissional Integrada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ao
realizar os rodízios no Centro de Atenção Psicossocial especializado em Álcool e Drogas
(CAPS-AD), localizado na Região Leste do município do Natal, os questionamentos foram
acentuados. Esse de serviço de saúde pertence à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e é
destinado ao acompanhamento de pessoas que fazem o uso abusivo de substâncias psicoativas
(SPA).
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Segurança e Saúde no Trabalho. Considere-se que em 10 anos (2012 a 2022), 2.233.721 (dois
milhões e duzentos e trinta e três mil e setecentos e vinte e uma) pessoas foram afastadas do
trabalho de forma não acidentária em decorrência de transtornos mentais e comportamentais.
Já os de forma acidentária, configuraram 110.079 (cento e dez mil e setenta e nove)
trabalhadores e trabalhadoras que precisaram estar ausentes de seus empregos devido ao
adoecimento mental. Vale salientar que esses dados consideram apenas os trabalhadores
contribuintes ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), deixando à parte de seu
cálculo trabalhadores e trabalhadoras desempregados ou informais não-contribuintes.
Dessa forma, a partir do real imediato abstraído do campo e com subsídios da pesquisa
bibliográfica e documental, este trabalho visa contribuir com as reflexões sobre o trabalho no
atual contexto de adensamento da precarização e relacioná-la ao processo de adoecimento dos
trabalhadores, destacando o adoecimento mental.
É a partir desse cenário que o interesse ocorre, de forma mais enfática, pois há o desejo
de contribuir para o debate da categoria frente a saúde mental dos trabalhadores,
especialmente, daqueles que não se enxergam como classe trabalhadora por estarem excluídos
do modo de inserção no trabalho formal e que sofrem profundamente com o adensamento da
questão social.
Avaliamos que a discussão dessa temática em espaços de visibilidade, como a
universidade, além de demonstrar as inúmeras possibilidades de contribuições do Serviço
Social pode interessar outros/as pesquisadores/as a desenvolver estudos e pesquisas sobre essa
temática, relacionando-a à questão social, principal objeto de intervenção da categoria
profissional.
Assim, foi realizado um levantamento bibliométrico no período de 2012 a 2022 em
periódicos de alto impacto (Qualis A pela classificação Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – CAPES). Foram identificados 293 artigos a partir da primeira
busca. Após estabelecidos os critérios de inclusão e exclusão 1, obteve-se o quantitativo de 166
artigos que traziam nos seus títulos, palavras-chaves ou resumos os seguintes descritores:
saúde mental, saúde do trabalhador e saúde mental do trabalhador. Destes 166 artigos, foi feita
1 Foram utilizados como critérios de inclusão: artigos de língua portuguesa e que correspondem à análise do cenário
brasileiro, publicados no período entre 2012 a 2022 em revistas de Qualis pertencentes a categoria A (A1 a A4)
conforme a avaliação da CAPES correspondente ao Quadriênio 2017-2020 (2023). Além disso, todos os periódicos
tinham como área de conhecimento e avaliação o Serviço Social. Como critérios de exclusão, estabeleceu-se:
artigos em língua estrangeira, publicados anteriormente ou posteriormente ao período de 2012 a 2022 em revistas
de Qualis B ou C mediante a classificação na Avaliação do Quadriênio 2017-2020 (2023) e que não possuíssem o
título, as palavras-chave e os resumos ligados à temática e aos descritores utilizados. Ademais, foram excluídos
periódicos que não pertenciam a área de conhecimento e tampouco tinham área de avaliação em Serviço Social.
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uma análise de temas que resultaram na seguinte classificação: Saúde do/a Trabalhador/a (59
artigos; 35,5%); Contrarreforma Psiquiátrica (42 artigos; 25,3%); Reforma Psiquiátrica (RP)
(34 artigos; 20,5%); Atuação e Formação Profissional (21 artigos; 12,7%); e Precarização do
Trabalho (10 artigos; 6%). Essas categorias primárias desdobraram em categorias secundárias,
as quais são apresentadas e debatidas no desenvolver da pesquisa.
Diante desse contexto, nesta pesquisa definimos como objetivo geral: Contribuir com
o aprofundamento teórico acerca da saúde mental do trabalhador e da trabalhadora no
Serviço Social brasileiro.
Mais especificamente, objetiva-se:
a) Investigar o campo da saúde do/a trabalhador/a enquanto espaço de disputa teórica e
política no capitalismo brasileiro.
b) Expor o sofrimento psíquico enquanto expressão da questão social a partir dos
desdobramentos provocados pelas transformações no mundo do trabalho.
c) Analisar o Estado da Arte do Serviço Social frente às temáticas de saúde mental do
trabalhador e da trabalhadora.
Sendo assim, este estudo trata, em parte, de uma pesquisa bibliográfica e documental,
tendo como técnica o levantamento bibliométrico do material acerca da produção de
conhecimento do Serviço Social frente à Saúde do/a Trabalhador/a. Buscamos compreender
quais as concepções do Serviço Social sobre a saúde dos/as trabalhadores/as, em especial, a
saúde mental contexto do capitalismo hodierno, bem como os impactos da degradação do
trabalho – através das cargas de trabalho - na classe trabalhadora e a sua relação com o
sofrimento psíquico enquanto expressão da questão social.
Foram analisadas também produções de instituições e organizações (por exemplo:
Organização Mundial da Saúde; Ministério da Saúde, entre outros). Contudo, diante do pouco
volume de material produzido que relacionasse (sofrimento) adoecimento mental e trabalho
em si, tivemos que cruzar esses dados e submete-lo ao exame crítico para expor suas
contradições e movimentos.
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Trabalhador
Trabalhador brasileiro [...]
Saúde (OMS), “um estado de bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias
habilidades, recuperar-se do estresse rotineiro, ser produtivo e contribuir com a sua
comunidade. A saúde mental implica muito mais que a ausência de doenças mentais”.
Observemos que a noção de saúde mental está profundamente relacionada com o ser produtivo
e ser produtivo na nossa sociedade perpassa pela capacidade de produzir (mais) valor.
Buscamos fundamentar nossa análise, à luz do materialismo histórico-dialético, o qual
exige que o ponto de partida para a investigação do pesquisador seja o real e o concreto, ainda
que partamos do concreto imediato, neste caso, os indicadores. A partir desse movimento, de
acordo com Netto (2011, p. 42), “pela análise, um e outro elementos são abstraídos e,
progressivamente, com o avanço da análise, chega-se a conceitos, a abstrações que remetem a
determinações mais simples”.
Assim, o estudo feito durante a discussão presente nos tópicos a seguir visa demonstrar,
a partir do nível mais próximo do real, a construção do campo da saúde do trabalhador enquanto
espaço de luta de classes e conquistas da classe trabalhadora. Além disso, apresenta
considerações sobre a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT),
sugerindo uma reformulação teórica com base na crítica elaborada pela Medicina Social Latino-
Americana (MSLA). Por fim, realiza críticas à perspectiva de análise das instituições
responsáveis pelo debate da saúde do trabalhador e da trabalhadora e da saúde mental, as quais
têm seu pensamento alinhado às ideologias difundidas pelo capital.
Para iniciar a discussão acerca das lutas políticas, trazemos a notória a contribuição de
Marx em “Miséria da Filosofia” (2017), onde o autor reforça que as condições econômicas
serão as responsáveis pela produção em massa dos trabalhadores frente às transformações e
desenvolvimento do capital. Esse processo, por si só, já forma uma classe de massas perante o
capital.
Contudo, é no contexto de construção das lutas, onde a classe trabalhadora irá se perceber
enquanto classe para si, em que seus interesses e dos demais trabalhadores se encontram, sendo
defendidos através de uma luta política, buscando primeiramente a emancipação política (a luta
por direitos e melhores condições de trabalho, por exemplo). Ou seja, a recém formada classe
trabalhadora, se entende enquanto tal.
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Após esse momento, o movimento deve ser organizado para chegar à “libertação da classe
oprimida” (Marx, 2017, posição 3660), em busca da emancipação humana 2. Nesse cenário,
haverá a “abolição de toda classe, assim como a condição da libertação do terceiro Estado, da
ordem burguesa, foi a abolição de todos os Estados e de todas as ordens” (idem, posição 3667).
Quando as lutas encampadas por essa classe trabalhadora superam os limites da reprodução da
vida e anseiam por uma transformação radical no modo de produção.
Trazendo essa reflexão para o caso da classe trabalhadora brasileira, devemos lembrar
que o desenvolvimento histórico do capitalismo brasileiro foi tardio em relação ao evolver
capitalista no mundo, e está relacionado ao colonialismo (se quisermos mencionar o período
que antecede o surgimento das classes capitalistas e trabalhadora no Brasil, sob domínio
português, entre os séculos XVI ao XIX) e imperialista (no século XX, após a independência
política e com o acúmulo de capital local). Não poderemos nos deter nesta questão, apenas
apontar para o contexto que ensejou a formação da classe trabalhadora brasileira e as
manifestações da luta classes nas disputas sobre a questão da saúde, objeto desta pesquisa.
No início do século XX, o modo de gestão do trabalho importado dos Estados Unidos, o
Taylorismo a primeira forma de gerenciamento da força de trabalho, chega ao país para
substituir o trabalho escravo recém abolido, mas ainda marcante no modo como se (re)produzia
a vida. Mesmo chegando no Brasil com atraso, foi necessária uma série de adaptações para a
construção industrial brasileira. O modelo taylorista foi fortemente propagado pelos
empresários paulistas, os quais garantiram sua difusão no meio empresarial, acadêmico e
intelectual, mas também chegaram ao Estado em suas ações (Vargas, 1985).
De acordo com Vargas, o taylorismo “à brasileira” teve como premissa:
2
A indispensabilidade de realizar uma distinção entre a Emancipação Política e a Emancipação Humana faz-se
necessária nesse momento. Ao tratar da Emancipação Política, Marx compreende as transformações realizadas
ainda na sociabilidade organizada pelo capital. Significa, portanto, a luta por determinada igualdade jurídica
através dos movimentos da classe trabalhadora. Já a Emancipação Humana, não pode ocorrer dentro do Modo de
Produção Capitalista, posto que ela nega o trabalho como mercadoria, a propriedade privada e a exploração dos/as
trabalhadores em benefício do capital. Assim, a Emancipação Política pode ser um caminho para a Emancipação
Humana, como afirma o próprio Marx (2005, p. 23) ao dizer: “Não há dúvida que a emancipação política representa
um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como
a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual”.
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3
Vale ressaltar que a classe trabalhadora no Brasil não se resume aos/às trabalhadores/as fabris. Desde o
surgimento das primeiras manufaturas, passando pelo crescimento da produção industrial na primeira metade do
século XX, há um enorme contingente de homens e mulheres vivendo de atividades autônomas, bicos e sem acesso
à Direitos Trabalhistas.
4 As Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs) eram financiadas pela União, juntamente com a classe trabalhadora
e os empregadores. No entanto, só grandes estabelecimentos eram capazes de mantê-las, visto que a maior
participação na administração era das empresas. Os benefícios provenientes dessa organização estavam
diretamente relacionados às contribuições individuais dos trabalhadores. Dentre tais benefícios, encontrava-se:
assistência à saúde médico-curativa, bem como acesso ao fornecimento de medicamentos, aposentadoria (seja por
tempo de serviço, invalidez ou velhice), pensão para os dependentes e auxílio funeral (Bravo, 2013).
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5Segundo Bravo (2013, p. 133) “os primeiros Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) criados foram:
Marítimos (1933), Bancários (1934), Industriários (1936), Servidores do Estado (1938), Empregados em
Transportes e Cargas (1938) e Comerciários (1940)”.
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Esse público-alvo tido como "em situação de maior vulnerabilidade" nos interessa
particularmente, pois são os mais afetados pela agudização das expressões da questão social,
consequentemente, são os principais grupos que podem apresentar o desenvolvimento/agravo
de transtornos mentais (World Health Organization, 2012 apud Arango et al., 2021). Nesse
sentido, trata-se de uma questão importante no âmbito desta pesquisa, tanto compreender as
cargas do processo de trabalho, bem como os fatores de risco que envolvem o adoecimento da
classe trabalhadora, ainda que se apresente de modo distinto no interior da classe.
Observe-se que do ponto de vista das lutas por saúde, considerando a contradição trabalho
e capital, é possível tanto apontar conquistas da classe trabalhadora em sentido amplo, quanto
demonstrar os limites dessas conquistas, seja pelo fato das conquistas em certa medida
viabilizarem o acúmulo de capital, ao manter a força de trabalho produtiva, seja pelo fato de a
crescente precarização do trabalho restringir o acesso deste padrão de saúde a um contingente
cada vez menor da população. Ainda que não tratemos da questão da mercantilização da saúde,
precisamos mencionar a capacidade que o capital tem de avançar sobre as esferas da vida, assim,
se o sofrimento psíquico tem sido engendrado em concomitância com a produção destes
tempos, o diagnóstico, o tratamento e os medicamentos viram mercadorias rentáveis para que
trabalhadores/as se mantenham produtivos/as.
Nesse sentido, é fundamental estabelecer uma crítica aos “riscos” no processo no
trabalho. Para isso, recorremos a Laurell e Noriega (1989), apontam os limites de tomar a noção
de risco na análise do processo de adoecimento, sendo este utilizado pela Medicina do Trabalho
para caracterizar elementos do processo produtivo “que podem provocar causar danos ao corpo
do trabalhador. Define, dessa maneira, os riscos como agentes nocivos isolados que podem
causar doença” (idem, p. 105).
Superando a abordagem da Medicina do Trabalho, Laurell e Noriega (1989) irão buscar
compreender o processo saúde-doença está muito além de uma análise monocausal, a qual
considera elementos isolados para apreender o adoecimento dos/as trabalhadores/as. Nesse
sentido, os autores sugerem que a categoria “carga de trabalho”, é razoável e busca:
[...] alcançar uma conceituação mais precisa do que temos consignado até o
momento com a pré-noção de "condições ambientais" no que diz respeito ao
processo de trabalho. Dessa forma busca-se ressaltar na análise do processo
de trabalho os elementos deste que interatuam dinamicamente entre si e com
o corpo do trabalhador, gerando aqueles processos de adaptação que se
traduzem em desgaste, entendido como perda da capacidade potencial
e/ou efetiva corporal e psíquica. (Laurell e Noriega, 1989, p. 106. Grifos
nossos).
22
É necessário dividir as cargas de trabalho em áreas específicas para realizar uma análise
em profundidade. Sendo assim, as cargas de trabalho podem ser externas ao corpo, mas que ao
atuar nos indivíduos irão gerar nova materialidade interna (físicas, químicas, biológicas e
mecânicas); e também “podem ser somente adquirem materialidade no corpo humano ao
expressarem-se em transformações em seus processos internos, questão que se tornará mais
compreensível ao se analisar cada uma delas” (fisiológicas e psíquicas) (Laurell e Noriega,
1989, p. 106). Mais recentemente, Ferraz e Bechara-Maxta (2022), em adição, sinalizam a
origem de uma nova carga frente às transformações do mundo do trabalho, principalmente,
relacionadas à informatização dos processos de trabalho, são as cargas digitais.
Tal sistematização acerca das cargas e desgaste poderia contribuir para o avanço nas
disputas por melhores condições de trabalho e de saúde. Por isso, para além da inclusão do
entendimento sobre as cargas decorrentes dos processos de trabalho, consideramos fundamental
a compreensão e adoção da Política Nacional de Saúde dos Trabalhadores e Trabalhadoras
dessa categoria. Essa indispensabilidade está vinculada ao fato de que as cargas de trabalho
provocam um desgaste da força de trabalho, a qual pode ser compreendida como:
Nesse sentido, o desgaste da força de trabalho é decorrente da:
Assim, o desgaste da força de trabalho “se define como a perda de capacidade efetiva
e/ou potencial, biopsíquica” dos/as trabalhadores/as (Laurell e Noriega, 1989, p. 109). Nesse
caso, o desgaste pode ser expresso como patologia ou não.
A análise de como as cargas de trabalho são consequências dos processos de trabalho
desgastantes no Modo de Produção Capitalista explica de forma direta como o desgaste da força
de trabalho pode ser apresentado através do adoecimento. Seguindo essa lógica, será possível
identificar que o processo de adoecimento da classe trabalhadora está intrínseco ao processo
produtivo em que ela está inserida, portanto, consegue estabelecer um elo entre a saúde e o par
capital-trabalho, bem como suas contradições.
Propõe-se, portanto, uma atualização na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e
da Trabalhadora com base na teoria de Determinação Social da Saúde, criada pela Medicina
Social Latino-Americana. Ainda que se saiba que não se trata apenas de “mudar a norma”, ou
de supor que as mazelas do capitalismo podem ser remediadas por meio do seu Estado; mas
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como foi mencionado no início do capítulo, apenas no contexto das lutas organizadas da classe
trabalhadora é que se pode avançar rumo a uma transformação radical.
Essa revisão teórica se apresenta necessária, pois a PNSTT está estruturada sobre debates
teóricos que são um avanço, se considerarmos a Medicina Tradicional, mas que ainda
responsabilizam a classe trabalhadora por seu processo de produção de saúde-doença - como é
o caso dos enfoques nos Determinantes Sociais da Saúde (DSS) 6. Por outro lado, ao adotar a
teoria da Determinação Social do processo de produção da saúde-doença, ainda que como ponto
de partida, tem-se que a noção do adoecimento deve ser observada enquanto processo produtivo
social, o qual envolve múltiplos aspectos do funcionamento da sociedade.
Assim, para compreender a produção do processo saúde-doença em uma perspectiva
crítica, alinhada com a teoria marxista, é preciso realizar uma análise que considere as
dimensões políticas, econômicas e ideológicas de forma particular, pois são esses elementos
que irão caracterizar o processo histórico das coletividades.
Os conflitos de interesses e as contradições entre capital e trabalho incidem diretamente
nas políticas públicas de saúde. Observa-se que a PNSTT constrói serviços responsáveis por
corresponder às necessidades dos/as trabalhadores/as conforme o que é proposto, na lógica da
funcionalidade, da qual é necessário tratar os/as trabalhadores/as com o objetivo de retornar ao
processo produtivo.
Esse é o aspecto que interessa aos empregadores, enquanto para os trabalhadores interessa
que, com muita luta, foi criada a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador
(RENAST), sendo composta por rede de serviços que prestam assistência e realizam vigilância
em saúde do trabalhador no Sistema Único de Saúde.
Os principais componentes da RENAST são os Centros de Referência em Saúde do
Trabalhador (CEREST), os quais se configuram como:
A luta política do MRSB pela junção entre os campos previstos pela Lei nº 8.080/1990 -
vigilância epidemiológica e saúde do trabalhador - resultou na Vigilância Epidemiológica em
Saúde do Trabalhador (VESAT), também componente da Renast. O Ministério da Saúde a
define como um:
6
O debate sobre os enfoques será realizado mais adiante neste capítulo.
24
Destacamos o fato de que pessoas adoecidas mentalmente (em níveis leve e moderado)
têm chances dobradas de perderem seus empregos. Nesses casos, os trabalhadores, por
inúmeras vezes, optam por não se posicionar, haja vista que correm o risco de perder seus
empregos, já que os índices de desemprego de indivíduos com transtornos mentais,
especialmente os graves, são cinco vezes maiores quando comparados às pessoas sem
transtorno. Esse processo acaba resultando em mais um elemento para subnotificação dos
adoecimentos mentais (Pieh et al., 2020).
Aos indícios de que há subnotificação relacionada aos transtornos mentais e
comportamentais devido à atribuição do adoecimento às condições subjetivas e aos fatores
genéticos, acrescenta-se a subnotificação relacionada aos trabalhadores que não se encontram
inseridos no mercado de trabalho formal ou que não realizam acompanhamento regular em
serviços de saúde. O que incide na maior dificuldade para de fato dimensionar adequadamente
o real grau de adoecimento mental ao considerarmos que esse enorme contingente do Exército
Industrial de Reserva se submete ao anunciado adoecimento para conseguir vender e reproduzir
sua força de trabalho.
Assim, o modo de funcionamento do capitalismo segue gerando determinações para o
adoecimento, inclusive para àqueles e àquelas que não conseguem realizar a venda formal de
sua força de trabalho. Esses/as trabalhadores/as estão invisibilizados/as por não se inserirem em
atividades econômicas formais, resultando em um campo negligenciado pelas análises de
órgãos e instituições. Um exemplo é não aparecer nenhum dado referente a essas populações
na sistematização realizada pelo Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, fonte dos
dados apresentados nas tabelas 1 e 2.
Portanto, diante da complexidade para compreender o cenário da Saúde do/a
Trabalhador/a e da Saúde Mental do/a Trabalhador/a, julga-se necessário acrescentar alguns
dados que sinalizam a importância deste debate no cenário atual. Para isso, são apresentadas
informações de instituições referências no campo da saúde e do trabalho.
Diante do crescimento dos casos e dos efeitos do adoecimento mental sobre a produção e
do movimento da luta dos/as trabalhadores/as, a Organização Mundial de Saúde, em 2016,
apresenta a carta: “Fora das sombras: a saúde mental como prioridade global para o
desenvolvimento”7. O posicionamento da OMS nesse documento é da indispensabilidade da
7
“Out of the shadows: making mental health a global priority” no documento original.
30
8 De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM - V), elaborado pela
Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association), os Transtornos de Ansiedade são
aqueles que “incluem transtornos que compartilham características de medo e ansiedade excessivos e perturbações
comportamentais relacionados. [...] Os transtornos de ansiedade se diferenciam do medo ou da ansiedade
adaptativos por serem excessivos ou persistirem além de períodos apropriados ao nível de desenvolvimento”
(2014, p. 189). É importante ressaltar que o DMS-V é utilizado por ter um consenso democrático entre os
estudiosos da área (Fendrik, 2011); e que, segundo Sauvagnat e Nogueira Santos (2012), ao observar a organização
do DSM, percebe-se “[...] que seus editores pretendem fazê-lo como uma espécie de bíblia”. Contudo, autores
como Pinto (2012), Sauvagnat e Nogueira Santos (2012) e Caponi (2014) estabelecem críticas ao documento, pois
compreendem que a lógica de um manual pode direcionar o cuidado ao adoecimento mental apenas ao tratamento
medicamentoso, desconsiderando elementos como os sofrimentos individuais e universalizando o processo de
produção saúde-doença mental para outros países que não possuem as mesmas questões que os Estados Unidos da
América.
9 A Organização Mundial de Saúde apresenta que a definição de DALY (disability-adjusted life years) “representa
a perda do equivalente a um ano de plena saúde. DALYs para uma doença ou condição de saúde são a soma dos
anos de vida perdidos devido à mortalidade prematura (YLLs) e os anos vividos com uma incapacidade (YLDs)
devido a casos prevalentes da doença ou condição de saúde em uma população” (World Health Organization, s/a.
Tradução da autora).
10 De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde apresenta que “um YLD representa o equivalente a um
ano inteiro de vida saudável perdido devido a incapacidade ou problemas de saúde” (World Health Organization,
s/a. Tradução da autora). Encontra-se também a definição que este indicador “é uma medida que reflete o impacto
que uma doença tem na qualidade de vida antes de se resolver ou levar à morte. Os YLD são responsáveis pela
gravidade de uma deficiência e são tipicamente ponderados de modo a que a idade adulta jovem seja mais
valorizada do que a dos bebés ou dos muito idosos” (PETERSON KFF - HEALTH SYSTEM TRACKER, s/a.
Tradução da autora).
31
Figura 1 - Carga de Transtornos Mentais Específicos: níveis por país a cada 100.000
habitantes (Transtorno de Ansiedade de acordo com os Anos de Vida Saudável)
Fonte: Pan-American Health Organization. Burden of Specific Mental Disorders: level by country. II. E. 6:
Anxiety disorder. Disponível em: https://www.paho.org/en/enlace/burden-mental-disorders#specmh. Acesso em:
06 mar. 2023.
Figura 2 - Carga de Transtornos Mentais Específicos: níveis por país a cada 100.000
habitantes (Transtorno de Ansiedade de acordo com os Anos de Vida Ajustados por
Incapacidade - DALYs)
Fonte: Pan-American Health Organization. Burden of Specific Mental Disorders: level by country. II. E. 6:
Anxiety disorder. Disponível em: https://www.paho.org/en/enlace/burden-mental-disorders#specmh. Acesso em:
06 mar. 2023.
Além disso, o Brasil está em 7º lugar entre os países onde transtornos depressivos 11 se
configuram como adoecimentos incapacitantes e que os anos vividos com o transtorno refletem
em múltiplos aspectos da vida. Esses dados alarmantes também são revelados pela Pan-
American Health Organization (2021), a qual elabora um ranking entre os países localizados
nas Américas, como pode ser visto na figura 3.
11
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM - 5) (2014, p. 156), há uma
subdivisão entre os tipos de transtornos depressivos. No entanto, o documento aponta que “a característica comum
desses transtornos é a presença de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e
cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo. O que difere entre eles são
os aspectos de duração, momento ou etiologia presumida”.
33
Figura 3 - Carga de Transtornos Mentais Específicos: níveis por país a cada 100.000
habitantes (Transtornos Depressivos de acordo com os Anos de Vida Saudável perdidos
por Incapacidade - YLDs e Transtornos Depressivos de acordo com os Anos de Vida
Ajustados por Incapacidade – DALYs)
Fonte: Pan-American Health Organization. Burden of Specific Mental Disorders: level by country. II. E. 1:
Depressive disorders. Disponível em: https://www.paho.org/en/enlace/burden-mental-disorders#specmh. Acesso
em: 23 mar. 2023.
Além do gênero, há outros elementos que devem ser considerados na análise dos suicídios
em território brasileiro, como a idade e a região. Os dados estão expressos no gráfico elaborado
pelo Ministério da Saúde, conforme aponta a Figura 4.
Figura 4 - Evolução das taxas de mortalidade por suicídio, ajustadas por idade, segundo
região. Brasil, 2010 a 2019
capitalismo, o qual não tem misericórdia pela vida daqueles que geram sua riqueza. Assim, ao
observar um panorama geral dos indicadores de saúde, especialmente os de saúde mental,
convém recuperar Marx (2013, p. 337, grifos nossos), o qual afirma:
A proposição realizada por Marx n’O Capital (2013) é demonstrada ao nos debruçarmos
sobre uma análise mais atenta dos documentos sobre a saúde mental dos trabalhadores. Tanto
no “Fora das sombras: a saúde mental como prioridade global para o desenvolvimento” (World
Health Organization, 2016), quanto no “Saúde Mental no Trabalho: resumo da política” 12
(2022) elaborado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em parceria com a
Organização Mundial de Saúde, é possível identificar que a principal preocupação das referidas
instituições é, primeiramente, o prejuízo econômico.
Sobre os desdobramentos do adoecimento mental, os documentos consideram que “ao
redor do mundo, trabalhadores, seus familiares, empresas e economias inteiras sentem o
impacto das condições de saúde mental, independentemente se elas foram ocasionadas pelo
trabalho” (Organização Internacional do Trabalho, Organização Mundial da Saúde, 2022, p. 2.
12
“Mental health at work: Policy brief” no documento original.
36
Traduzido pela autora.) 13. Além disso, a Organização Mundial da Saúde afirma que os
adoecimentos mentais “[...] são onerosos, tanto para as economias, bem como para os
indivíduos e suas famílias. Agora temos boas evidências de que os transtornos depressivos e de
ansiedade sozinhos custam para a economia global mais de 1 trilhão de dólares por ano” (2016,
14
s.p. Traduzido pela autora).
O documento “Saúde Mental no Trabalho: resumo da política” (Organização
Internacional do Trabalho, Organização Mundial da Saúde, 2022) ressalta que um bom
ambiente de trabalho, oferece suporte em saúde mental e proporciona aos seus trabalhadores,
será um ambiente mais produtivo. Do contrário, as habilidades dos indivíduos no processo de
trabalho serão prejudicadas - afetando a força motriz do capital: a produção de mais-valor para
acumulação.
Assim, o objetivo das organizações de trazer para foco os problemas de saúde mental
(World Health Organization, 2022) reflete os interesses do capital, posto que a preocupação
não é e nunca foi com a classe trabalhadora, mas com o que ela é capaz de produzir a partir da
realização de sua potência de trabalho, ou seja, eis uma das contradições do capital, mesmo
exaurindo as forças físicas e mentais dos indivíduos, ele ainda precisa que eles sobrevivam para
continuar (re)produzindo o mais-valor.
Frente ao que foi apresentado, faz-se necessário o resgate da contradição existente entre
o capital e o trabalho. Ao mesmo tempo que ele produz os adoecimentos através das
modificações no mundo do trabalho e da intensificação no grau de exploração da classe
trabalhadora, a partir do aumento das jornadas de trabalho ou de outros mecanismos, ele
necessita dos/as trabalhadores/as para seu processo de acumulação e concentração.
Diante do exposto, o cenário predatório do capital sobre a classe trabalhadora e sua saúde
é nítido. Contudo, os ataques defronte aos interesses e à sobrevivência dos trabalhadores estão
mais incisivos e frequentes, agudizando as expressões da questão social e refletindo a barbárie
em múltiplas áreas da vida. Nesse sentido, o tópico a seguir visa apresentar indicadores sociais
que caracterizam o cenário de investida do Modo de Produção Capitalista à sobrevivência da
classe trabalhadora.
13 No documento original: “Across the world, workers, families, enterprises and whole economies feel the impact
of mental health conditions irrespective of whether they were caused by work” (International Labour
Organization; World Health Organization, 2022, p. 2)
14 No documento original: “These disorders are costly, for economies as well as individuals and their families.
We now have good evidence that depression and anxiety disorders alone cost the global economy more than one
trillion dollars each year” (World Health Organization, 2016, s.p).
37
15
"World mental health report: Transforming mental health for all" no documento original.
38
Fonte: World Health Organization. Figure 2.4: Examples of risks and protective factors that determine mental
health (21). World mental health report: Transforming mental health for all, 2022. (World Health
Organization, 2012, p. 35 apud Arango et al., 2021 p. 36). Traduzido pela autora (2023).
16
De acordo com a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), a população em vulnerabilidade social
geralmente é aquela “decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços
públicos, dentre outros) e, ou, fragilização de vínculos afetivos – relacionais e de pertencimento social
(discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras)” (Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, 2004, p. 33).
40
e por agravar as questões socioeconômicas, como o aumento nas taxas de desemprego. Durante
esse período, a PAHO identificou um aumento na prevalência da ansiedade e da depressão em
25% a nível mundial, relacionando-as ao isolamento social e um pico nas taxas de desemprego,
as quais no Brasil, chegaram a 14,9% no primeiro trimestre de 2021, conforme a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mensal (PNAD Contínua).
Importante salientar ainda que em 2021, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) revelou um aumento recorde na pobreza, atingindo 62,5 milhões de pessoas; ou seja,
em média 29,4% da população brasileira se encontrava nessa situação. Entre elas, 17,9 milhões
(em média 8,4% da população) eram consideradas extremamente pobres. Se seguirmos a lógica
dos Determinantes Sociais da Saúde, são imensos os riscos à saúde de se viver no Brasil, mas
nada é falado sobre como tais condições econômicas e políticas se desenvolveram.
Em outro ponto, o Fator de Risco "as desigualdades econômicas" confronta o Fator
Protetivo “Equidade Social”, principalmente no cenário brasileiro, onde há crescimento da
pobreza. O IBGE (2021) apresentou que a proporção de pessoas pretas e pardas abaixo da linha
da pobreza era de 37,7%, sendo mais que o dobro da proporção de pessoas brancas (18,6%).
Levando em consideração também o recorte regional, a instituição aponta que: “Nordeste
(48,7%) e Norte (44,9%) tinham as maiores proporções de pessoas pobres na sua população.
No Sudeste e também no Centro-Oeste, 20,6% (ou um em cada cinco habitantes) estavam
abaixo da linha de pobreza 17. O menor percentual foi registrado no Sul: 14,2%” (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022).
Em 2022, o Brasil retornou ao Mapa da Fome. De acordo com relatório oriundo do II
VIGISAN (2022), 125,2 milhões de pessoas estão em condição de Insegurança Alimentar (IA)
e mais de 33 milhões em situação de fome, expressa pela Insegurança Alimentar grave (quando
há privação no consumo de alimentos - fome).
Esse dado pode ser complementado com a informação de que 36,8% das famílias
contavam com uma renda per capita média de até 1/2 salário-mínimo. Além disso, dentro desse
percentual, cerca da metade vivia com, no máximo, 1/4 de um salário-mínimo per capita, o
qual deveria ser o suficiente para atender todas as suas despesas (como habitação, saúde,
higiene, alimentação, transporte e lazer). Tais condições são agravadas diante do cenário atroz
do mercado de trabalho, onde em média 14,3% dos lares brasileiros contavam com ao menos 1
17 Vale salientar que o Banco Mundial caracteriza como linha de pobreza os rendimentos per capita de US$5,50
PPC, o que seria equivalente a, em média, R$486,00 mensais per capita. Já a linha de extrema pobreza é de
US$1,90 PPC, ou seja, em média R$168,00 mensais per capita (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
2022).
41
morador/a procurando emprego, e em 8,2% dos casos, a pessoa responsável pela família estava
desempregada.
Então, como é possível não adoecer mentalmente frente a um cenário no qual a fome é
uma certeza para quase 30% da população e onde são raras as opções para o desenvolvimento
da sua reprodução da força de trabalho, da única maneira de conseguir sobreviver em um
cenário de barbárie? Aqui, julgamos impossível encontrar um indivíduo são defronte a
conjuntura apresentada e, portanto, apontar a Determinação Social da Saúde é insuficiente para
que se supere o que produz tanto os fatores protetivos ou quanto os “fatores de risco”.
O debate apresentado acima evoca uma fala do filme “Bicho de Sete Cabeças”, produção
nacional, que aborda questões relacionadas à saúde mental. Este expõe:
que o campo epidemiológico, medicamentoso, não pode ser tratado de maneira desconexa à
realidade social da população. Nesse sentido, os enfoques nos Determinantes Sociais da Saúde
foram pensados no intuito de contribuir com as pesquisas sobre o adoecimento da população,
além de objetivar uma forma facilitada de visualizar os principais percalços nas condições de
saúde, particularmente considerar quais as causas sociais mais significativas frente às
desigualdades e iniquidades em saúde. Por isso apontamos que seja, em certa medida, um
avanço, mas insuficiente, como estamos buscando demonstrar.
Para proporcionar um maior entendimento das questões vinculadas aos enfoques nos
Determinantes Sociais e sobre as iniquidades da saúde, Dahlgren e Whitehead (1991)
construíram um diagrama estratificado, que se tornou referência no debate através de sua
incorporação nos documentos da Comissão Nacional dos Determinantes Sociais da Saúde, a
qual explicou sua adoção, devido à simplicidade de compreensão de aspectos considerados tão
complexos, conforme a figura 6.
Fonte: Buss, P. M. e Pellegrini Filho, A. A saúde e os Determinantes Sociais. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, 17(1):77-93, 2007. Modelo Dahlgren e Whitehead.
A disposição inicial do diagrama, ou seja, na sua base, têm-se fatores como idade, sexo e
fatores hereditários, apontando que, a princípio, as noções de saúde estão no plano individual.
A seguir, são considerados os comportamentos e os estilos de vida particulares dos sujeitos, o
que pode dar margem à interpretação que a prevenção de adoecimentos é de responsabilidade
puramente dos indivíduos.
43
A terceira camada traz destaque para a importância das redes comunitárias e de apoio,
locais imprescindíveis para mensurar o nível de coesão da sociedade. O próximo nível irá
colocar as condições de vida e trabalho da população, o que incluirá aspectos como moradia,
acesso a serviços socioassistenciais, educação, entre outros. Por fim, estão dispostos os fatores
macrodeterminantes, é apenas nesta camada que se faz referência às condições econômicas,
sociais, ambientais e culturais de determinado povo (Buss e Pellegrini Filho, 2007).
A organização desses níveis revela uma culpabilização velada dos indivíduos, posto que
ele está na camada mais interna do diagrama. Ou seja, de acordo com essa distribuição, os
fatores genéticos, o gênero e até mesmo a raça/etnia são fatores que, nesse modelo, predominam
frente ao processo saúde-doença, estando a frente das “condições macroestruturantes da
sociedade”.
Ao contrário do proposto pelos Determinantes Sociais da Saúde, a teoria da Determinação
Social compreende que os processos sociais originados a partir do modo de produção são os
responsáveis pela produção do processo saúde-doença. Nesse sentido, as condições
macroestruturais, isto é, condições materiais de produção da vida, deveriam ser centrais nas
análises sobre os adoecimentos. Posto isso, pode-se afirmar que a Medicina Social Latino-
Americana, em suas formulações, enxerga esse diagrama de modo invertido, entendendo a
capacidade de questões externas serem determinantes no processo saúde-doença. Nascimento
(2019, p. 19) exemplifica ambas as compreensões:
Assim, retomamos o debate realizado por Laurell (1982) que compreende que a análise
do processo saúde-doença deve ser pautada sob uma referência teórica que considere a
causalidade, dando ênfase a como o processo biológico ocorre no âmbito social. Essa linha de
observação permite que o entendimento sobre saúde e doença seja uma unidade, ao contrário
do que é proposto pela Medicina Tradicional. Isto significa reconhecer a especificidade de cada
um e, ao mesmo tempo, analisar a relação que conservam entre si, o que implica em conseguir
as formulações teóricas e as categorias que nos permitam abordar seu estudo cientificamente.
Por fim, vale resgatar uma passagem dos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844,
quando Marx (2010, p. 110) explana que:
Para o homem faminto não existe a forma humana da comida, mas somente a
sua existência abstrata como alimento; poderia ela justamente existir muito
46
bem na forma mais rudimentar, e não há como dizer em que esta atividade de
se alimentar se distingue da atividade animal de alimentar-se. O homem
carente, cheio de preocupações, não tem nenhum sentido para o mais belo
espetáculo [...] (Grifos do autor).
Assim, um indivíduo esfomeado, ao escutar Mozart, Chopin, até mesmo ler Dostoiévski
ou Shakespeare, não perceberá a magnitude destas obras. Isso porque antes de produzir e
contemplar a ciência, a arte, a poesia ou a música é fundamental ter no mínimo condições de
alimentar-se com dignidade, vestir-se, ter acesso pleno à produção material (seja para o
estomago ou a imaginação) realizada pelo ser social. Os sentidos humanos, ainda que dotados
de sua potência biológica (escutar, tatear, olhar, cheirar) só se tornam humanos no seu processo
histórico e social, por isso, escutar é diferente de ouvir. Ou dito de outro modo, corpo e mente
se desenvolvem reciprocamente.
Por isso, a pauperização não está expressa só na vida material da classe trabalhadora, mas
encontra-se também no campo subjetivo do ser social. Nesse sentido, é completamente
compreensível o desenvolvimento de um adoecimento/transtorno mental e/ou comportamental
diante de uma conjuntura onde o desenvolvimento e acumulação do capital é prioridade,
provocando o adensamento cada vez maior das expressões da Questão Social.
Assim, o debate da saúde dos trabalhadores, com base na literatura fundamentada
teoricamente no marxismo, não pode ter sua análise fragmentada (como uma separação entre
processos de trabalho e a reprodução social, por exemplo) ou desconexa da realidade. A
discussão com essa temática deve considerar a totalidade, sendo a produção de saúde um campo
que possui historicidade, que é mediado pelo par dialético capital-trabalho (Souza e Lira, 2022).
Em vista disso, faz-se necessário aprofundar o debate frente às transformações no mundo
do trabalho e nas mudanças provocadas historicamente na categoria em si. Esse movimento nos
auxiliará na compreensão sobre a relação entre o par capital-trabalho e o processo produção de
saúde-doença da classe trabalhadora, o qual será desenvolvido no capítulo seguinte.
47
Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
Neste capítulo discutimos a categoria trabalho, baseado no que foi proposto por Marx
e, além disso, realizamos uma investigação de como a degradação e precarização do trabalho
assalariado, isto é, uma forma particular do trabalho na sociedade capitalista, e como este trouxe
e traz prejuízos ao desenvolvimento pleno do ser social, afetando as formas de reprodução da
força de trabalho e se tornando um obstáculo para a emancipação humana.
18 A expressão capacidade teleológica se refere ao fato do ser humano ser o único indivíduo da natureza a
pensar no resultado do seu trabalho, de elaborá-lo no plano ideal antes de vir a reproduzi-lo no plano real.
Assim, como aponta Souza (2020), o fruto do processo do trabalho é derivado do que foi pensado idealmente,
sendo a objetivação do pensamento e da consciência, elementos exclusivos dos humanos. Souza (2020) destaca
ainda que o momento da ideação, da subjetivação do trabalho, parte da necessidade do ser humano suprir suas
necessidades. Dessa forma, é necessário que as respostas para a efetivação de seus ideais partam da realidade
concreta para que tenham uma execução viável.
48
Em complemento, Netto e Braz (2006, p. 44) afirmam que o trabalho “só se dá quando
essa prefiguração ideal se objetiva, isto é, quando a matéria natural, pela ação material do
sujeito, é transformada”. Assim, a modificação da natureza por parte do indivíduo se dá para a
satisfação das necessidades cotidianas. Neste processo há tanto o gasto de energia física e
mental, quanto ocorre também a transformação do ser social através da complexificação e
socialização das necessidades humanas (Lukács, 2013). Nesse sentido, Ferraz e Fernandes
(2019) consideram o trabalho como “protoforma da atividade humana, é a base para o
desenvolvimento das práticas humanas em geral” (Ferraz e Fernandes, 2019, p. 170).
Ressalte-se que a historicidade da categoria trabalho não deve ser tomada como um
conceito universal ou geral, mas particular. De acordo com Lessa (2005), o trabalho e as
relações mediadas por ele irão assumir novas configurações conforme o momento histórico. No
entanto, essa configuração é construída com base em elementos desenvolvidos anteriormente,
tais como a organização produtiva e a estrutura societária, mas que não se encerra neles. Tal
afirmação parte dos estudos de Marx e Engels (2007, p. 87), onde estes consideram que:
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de
tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm
de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente
sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é,
muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada
de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal
como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são
coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também
com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das
condições materiais de sua produção.
Portanto, a análise sobre a categoria trabalho será elaborada a partir do Modo de Produção
Capitalista, sistema socioeconômico vigente. Para isso, faz-se indispensável a retomada em
algumas categorias para a compreensão da relação do par dialético capital-trabalho e, mais
adiante, com o processo saúde-doença.
Primeiramente, é fundamental entender e contextualizar o debate sobre força de trabalho
para apontar como essa categoria se modificou na trajetória marxiana e sua importância na
diferenciação entre trabalho e força de trabalho.
Durante o período inicial de seus estudos, Marx dedicou-se com mais vigor ao campo
filosófico, especialmente realizando análise imanente da obra de Hegel. Nesse momento, a
aproximação com a economia política era restrita, pois ele compreendia essa ciência como uma
maneira de naturalização do MPC. Como reflexo dessa etapa no processo de amadurecimento
teórico estão textos como “Os Manuscritos econômicos-filosóficos” e “Glosas críticas
marginais ao artigo: ‘O rei da Prússia e a reforma’” (Wellen, 2020).
Wellen (2020) aponta a primeira compreensão sobre a força de trabalho elaborada por
Marx, apresentando que:
[...] a categoria da força de trabalho carrega, nessa obra, uma conexão com
esse sentido de crítica à abstração. A redução do ser humano a uma capacidade
de produção econômica aparecia, para o Marx de 1844, como uma
deterioração da capacidade do ser humano em realizar a sua essência
produtiva, ofuscando sua qualidade de demiurgo da história. Analogamente, a
própria economia política receberia uma direção crítica equivalente. Na obra
em tela, essa ciência operária, no fundo, como uma tentativa de naturalização
das determinações de um circuito econômico lastreado pelo mercado, pela
propriedade privada e pela divisão do trabalho. [...] Marx distanciava-se da
concepção de que a fonte do valor das mercadorias provinha do trabalho e
concordava com as afirmações de Proudhon de “que o aluguel e o lucro são
“superadicionados” e, portanto, são fatores que terminavam gerando um
aumento no preço” das mercadorias (Wellen, 2020, p. 5).
Interessante notar que apenas três anos após a publicação de “Os manuscritos
econômicos-filosóficos”, a partir de uma aproximação com as organizações sociais e políticas
dos trabalhadores da Inglaterra, Marx observa na economia política elementos úteis para o
processo de crítica ao modo de produção. O resultado está expresso em “A Miséria da
Filosofia”, onde Marx apresenta a categoria “força de trabalho” mais voltada à capacidade
produtiva, de fato, abandonando aos poucos o sentido de “denúncia filosófica do trabalho
abstrato” (Wellen, 2020, p. 6). Nesta obra, inclusive, Marx faz uma crítica demolidora à obra
“Filosofia da Miséria” de Proudhon, demonstrando os problemas nos fundamentos da
elaboração do filósofo francês.
50
Esse percurso teórico foi fundamental para as análises de Marx, principalmente, quando
ele realiza a distinção entre as categorias trabalho e força de trabalho, em meados do final de
1850 e início de 1860. A descoberta da diferença entre as categorias possibilitou a resolução da
“tautologia em que o valor do trabalho, ao passo que determinava o valor das mercadorias, era
determinado pelo valor das mercadorias” (idem, p. 3).
De acordo com McLellan (1995, p. 281), essa separação entre as categorias só foi
possível, pois:
e crítica como aspectos intrínsecos da vida humana (doença, sofrimento, dor, ausência do
convívio com amigos e familiares) precisam ser apresentados e cultivados como "naturais" ou
até mesmo "necessários" para que o indivíduo atinja seu objetivo final - que, na sociedade
capitalista, consiste reproduzir sua força de trabalho, para classe trabalhadora, e em acumular
valor, para a classe capitalista.
Tal relação de exploração se desenvolve ampliando a desigualdade das condições
materiais para reprodução da vida. Desse modo, o produto/mercadoria não é feito para ser
consumido por quem o produz, mas para ser vendido para quem pode pagar por ele. A classe
trabalhadora, responsável pela produção, têm acesso ao consumo apenas ao que for necessário
para a manutenção de sua força de trabalho, isto é, para seguir vivo em condições de vender sua
força trabalho cotidianamente; esforçando-se para garantir a própria sobrevivência e da sua
família (a atual e a futura classe trabalhadora).
Interessante notar que esse movimento de reprodução da força de trabalho só pode ocorrer
quando o/a trabalhador/a tiver meios (na sociedade capitalista pode ser sintetizado como ter
dinheiro) para consumir as mercadorias que foram produzidas por ele/a ou seus pares, não sem
explorá-los/as no processo. A obtenção dos meios necessários para o consumo se dá através da
venda da sua própria força de trabalho. Assim, a força de trabalho, nesse cenário, é uma
mercadoria e o salário é a expressão do consumo de tal mercadoria (Marx, 2013, Ferraz e
Fernandes, 2019).
Diante desse contexto produtivo, o trabalho alienado e assalariado19 torna impossível uma
escolha (livre) por parte dos indivíduos sobre o próprio ato de trabalhar, posto que a única
liberdade oferecida a tais indivíduos, na melhor das hipóteses, é a de escolher a quem e como
desejam vender a sua força de trabalho, o que se manifesta por meio do fetiche da mercadoria 20
(Marx, 2013). Posto esse movimento, Marx e Engels (2001) afirmam que o trabalho assalariado
é condição de exploração e que é necessário para o processo de ampliação do valor.
Uma das formas apresentadas é a ampliação do mais-valor a partir da extensão das horas
trabalhadas na jornada de trabalho e sem alteração salarial. Dessa maneira, haverá a
conservação do tempo de trabalho socialmente necessário e é acrescido o tempo de trabalho
excedente. Esse artifício é denominado de produção de mais-valor absoluto. No entanto, a
ampliação da taxa de mais-valor através do aumento da jornada de trabalho encontra limites
19 O trabalho assalariado corresponde à venda da força de trabalho como condição necessária para subsistência,
considerando que tal indivíduo não dispõe dos meios de produção necessários para sua reprodução vital. O salário,
nestes termos, não se relaciona com formal ou informal, ou com pobreza ou riqueza, mas com a forma como uma
classe re(reproduz) sua existência.
20 Sobre o "fetiche da mercadoria" ver especialmente o capítulo 4 d'O Capital, livro 1, de Karl Marx.
53
fisiológicos e políticos, por exemplo, o dia tem 24 horas, além da exaustão física e, em alguns
momentos da luta de classes, a incidência da regulamentação da jornada através do Estado
(Netto e Braz 2006).
Nesse sentido, o capital se vê forçado a buscar outros mecanismos de extração do mais-
valor e encontra solução na intensificação do ritmo de trabalho sem alteração na duração da
jornada. Essa possibilidade é decorrente das inovações tecnológicas e conquistas científicas,
sendo estas inovações uma necessidade posta pela competição intracapitalistas e um meio eficaz
para o processo de acumulação pela possibilidade de realização do lucro extraordinário (Ferraz,
2021). Portanto, nesse momento, ocorre a redução da parte relativa ao trabalho necessário e o
tempo economizado é destinado ao tempo de trabalho excedente. Tal mecanismo é chamado de
produção de mais-valor relativo.
A partir da compreensão sobre as possibilidades da produção de mais-valor (absoluto ou
relativo), é possível adentrar no debate sobre a reprodução do capital - simples ou ampliada. A
reprodução simples consiste no consumo de todo o mais-valor apropriado, não existindo
acumulação, pois a produção estaria pautada nas mesmas bases do circuito inicial. Esse
movimento não é interessante para o desenvolvimento do capital, pois seu objetivo é acumular
mais-valor. Desse modo, atendendo aos interesses do capital, a reprodução ampliada surge
como alternativa. “Nela, apenas uma parte da mais-valia apropriada pelo capitalista é
empregada para cobrir seus gastos pessoais; outra parte é reconvertida em capital, isto é,
utilizada para ampliar a escala da sua produção de mercadorias” (Netto e Braz, 2006, p. 138).
Sobre a produção na Sociedade Capitalista, Ferraz e Fernandes (2019) e Ferraz (2020)
observam que há uma subordinação dos produtos à sua capacidade de se tornar uma mercadoria.
Pois se em outros modos de produção o trabalho deveria ter como resultado a produção de
valores de uso (algo útil para o estômago ou para a imaginação), hodiernamente esse processo
é subvertido, pois o que é de interesse dos proprietários dos meios de produção é o momento
da realização do valor, diante da possibilidade de trocar o que foi produzido. Dessa forma, para
tais proprietários, o valor útil da mercadoria pouco importa; sua atenção é voltada apenas para
o valor de troca, embora para que ocorra a troca seja necessário que o produto seja útil.
**
tenha uma conotação positiva, seus efeitos sobre a classe trabalhadora não têm sido nada
maleáveis.
No final das contas, a reestruturação produtiva iniciada com o Toyotismo intensifica o
trabalho tornando-o cada vez mais precário e reconfigura os modos de venda da força de
trabalho, bem como da sua reprodução. Posto isso, Alves (2007) considera que o processo de
precarização do trabalho e a consolidação do mundo do trabalho como precário são
características intrínsecas ao novo sociometabolismo do capital.
Nesse sentido, o autor (idem, p. 113) sintetiza a precarização do trabalho como:
[...] as alterações na base tecnológica não liberaram o homem para o ócio, para
o lazer, para a autorealização, mas sim para a pauperização dos que vivem sem
emprego ou para a intensificação da jornada laboral pela liberdade espaço-
temporal adquirida via tecnologias de comunicação.
Esse elemento pode ser observado diante do crescimento dos trabalhos intermediados por
plataformas (Franco, Ferraz, e Ferraz, 2023), da uberização (Franco e Ferraz, 2019), do
empreendedorismo (Ferraz e Ferraz, 2022) e outras falácias divulgadas como sendo a "saída"
para a crise, deixando de lado sua verdadeira face de aprofundamento da precarização do
trabalho e das condições de reprodução da força de trabalho, longe da conceituação (capitalista,
diga-se de passagem) de Trabalho Decente 22 trazida por organizações internacionais.
Frente a essa conjuntura, Ferraz (2010, p. 98) estabelece sua crítica e analisa que:
Diante do cenário acima apresentado, concordamos com Antunes e Praun (2015) no que
se refere à influência das transformações no mundo do trabalho na produção dos indicadores
sobre acidentes e adoecimentos profissionais, os quais possuem índices cada vez maiores, ainda
que muitos sejam subnotificados. Os autores atribuem esses elementos à reorganização do
mundo do trabalho e da produção frente às necessidades do capital, bem como à nova divisão
internacional do trabalho.
A análise estabelecida por Antunes e Praun (2015, p. 411) é de que:
23 Vale destacar que a noção de desemprego que aludimos aqui se refere à possibilidade de vender a força de
trabalho por uma quantia suficiente para a (sobre)viver, neste momento, não iremos discutir os índices e
parâmetros estatais ou formas legais de contratos. No próximo capítulo retornaremos com a discussão.
60
Percebe-se, então, que a proposta de análise sob a Determinação Social da Saúde acontece
por meio da observação de como os movimentos que se dão no âmbito macroestrutural possuem
influência na produção do adoecimento/ saúde, tais como o próprio modo de produção da
sociedade, vinculado ao modelo econômico e civilizatório vigente e as (re)configurações do
mundo do trabalho. Além disso, “identifica as particularidades de reprodução social onde estão
localizadas e podem ser explicadas as singularidades” (Moreira, 2013, p. 75).
Reforçando essa concepção, Viapiana, Gomes e Albuquerque (2018) afirmam que a
análise dos processos estruturais do modo de produção que forma uma sociedade específica
deve ser levada em consideração ao estudar determinada condição de saúde (ou de doença).
Dessa maneira, encontra-se a necessidade de uma compreensão do capitalismo hodierno, de
suas características e os seus reflexos nos modos de reprodução da força de trabalho. A partir
desse cenário “é possível apreender em profundidade o perfil epidemiológico da sociedade
contemporânea, marcado pelas altas taxas de sofrimento e de adoecimento psíquico” (Viapiana,
Gomes e Albuquerque, 2018, p. 179) e compreender como a própria classe trabalhadora se
entende nessa conjuntura.
Entretanto, a concepção hegemônica sobre o processo saúde-doença é a fomentada pelo
sistema capitalista. Seguindo tal dinâmica, o processo de adoecimento estaria completamente
associado às particularidades da biologia individual. Esse movimento, portanto, retira a
responsabilidade do MPC e atribui a produção de saúde-doença a um processo único e particular
dos indivíduos, excluindo da análise a realidade social (Laurell, 1982).
Propomos, então, realizar um debate que possibilite compreender, partindo da teoria da
Determinação Social da Saúde, como as transformações nos processos de trabalho e o modo
como eles estão organizados reverberam na saúde da classe trabalhadora na sociedade
capitalista. Contudo, vale ressaltar que não existe aqui uma tentativa de responsabilizar apenas
o processo social nos adoecimentos. Ao contrário, recuperamos as ideias de Laurell (1982), a
qual compreende que deve ser realizado um esforço para tentar reestabelecer uma unidade entre
o biológico e o social.
A autora elabora a relação entre o biológico e o social da seguinte maneira:
estariam relacionadas aos perfis de adoecimento, não seria diferente com a condição da saúde
mental.
Bechara-Maxta (2022, p. 49) compreende que as expressões do desgaste e “os limites da
reprodução da força de trabalho estão diretamente relacionados ao desenvolvimento das forças
produtivas do capital seja em maior ou menor expressividade a depender das lutas operárias”.
Além disso, em outro trabalho, o autor em conjunto com Ferraz, considera que a dimensão do
desgaste ocorre:
Nota-se, então, que a vida do trabalhador não significa nada para o capital. Não a vida
em si. O capital despreza o trabalhador. Seu único interesse em garantir a existência da classe
trabalhadora é pela necessidade de produção do mais-valor, isto é, se há alguma necessidade é
a de que classe trabalhadora, enquanto classe, seja reproduzida, as condições que tal reprodução
ocorre é corolário da luta de classes. Assim, tanto faz para a classe capitalista se a classe
trabalhadora tem tempo para desenvolvimento intelectual ou para fortalecer seus vínculos
sociais.
Assim, na sua busca voraz por mais-valor e sua ampliação, o capital:
exaustão. Esses elementos são intensificados no nosso tempo pela reestruturação produtiva e
pela acumulação flexível; e acabam se tornando um terreno fértil para o desenvolvimento de
enfermidades físicas e mentais.
Conforme há alteração nas circunstâncias de venda da força de trabalho, há mudanças no
processo de sobrevivência e organização da classe trabalhadora. Quando tais condições estão
ausentes, elas afetam o processo de reprodução da classe trabalhadora - objetivamente e
subjetivamente, é necessário enfatizar.
Em um contexto social marcado pelo medo, informalidade e desemprego, é ainda mais
difícil realizar um estudo fidedigno sobre as condições de saúde mental da classe trabalhadora
em sua totalidade. Nesse sentido, Ludermir (2000, p. 648), a partir de um aprofundamento nas
pesquisas de diversos autores, apresenta a relação entre a produção do processo saúde-doença
e o trabalho a partir da vivência de trabalhadores e trabalhadoras que estão fora do mercado de
trabalho formal. Ele compreende que:
Além disso, Estramiana et al. (2012) abordam o debate entre desemprego e saúde mental,
afirmando que a experiência do desemprego não é homogênea e possui óticas de análise
diferentes. É necessário que sejam considerados elementos como o sexo, a faixa etária, entre
outros para avaliar as condições de adoecimento mental dos/as trabalhadores/as. Todavia, é
comum encontrar em pesquisas, tais como a de Barros e Oliveira (2009, p. 98) que expressam
que “os trabalhadores em situação de desemprego padecem, com maior frequência e
intensidade, de sofrimentos relacionados à baixa autoestima, estado de ânimo e humor
reduzidos, estresse, ansiedade, sentimentos de vergonha, humilhação e distúrbios no sono”.
Costa (2023), ao retomar a “questão de subsistência” apontada por Marx no artigo
“Aumento do preço do milho". Cólera. Greves. Movimento dos Marinheiros.” 24 publicado em
1853, considera que as preocupações diárias sobre a sobrevivência - inclusive sobre a incerteza
24
“Rise in the Price of Corn. Cholera. Strikes. Sailor’s Moviment” no texto original.
67
25
“Contextual factors associated with country-level suicide mortality in the Americas, 2000–2019” no texto
original.
68
da mortalidade por suicídio em homens e mulheres, sendo um dos únicos fatores determinantes
que abrange ambos os sexos.
Além disso, o Centro de Valorização da Vida (CVV) disserta sobre a relação entre o
desemprego e transtornos mentais, como ansiedade de depressão, ao resgatar uma pesquisa
realizada pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, a qual aponta que 80% das
pessoas que têm débitos adquirem essas enfermidades.
Não que quem esteja empregado não esteja adoecendo também, mas são produções de
sofrimentos mentais distintos, afinal, os relatórios sobre o assunto consideram apenas a força
de trabalho formalizada de alguma maneira, pouco sendo discutido sobre as frações da classe
trabalhadora que não conseguem vender adequadamente sua força de trabalho. Assim, como
nos ensina a tradição marxista acerca do processo de trabalho e saúde-doença, faz-se necessário
considerar os padrões de desgaste dessas particularidades no interior da classe para que se possa
apreender como o capital tem se apropriado objetivamente e subjetivamente de todos nós.
Diante do que foi exposto até, resgatamos a expressiva frase de Marx na obra
supramencionada: “É que o sangue não corre do mesmo modo nas veias de gente desesperada
[...]" (Marx, 2006, p. 26). Nesse contexto, onde a preocupação e a angústia são dominantes na
subjetividade dos trabalhadores e trabalhadoras, a maior expressão do sofrimento mental - o
suicídio - seria a única alternativa às condições brutais de sobrevivência na sociedade onde o
capital se realiza.
O desespero mencionado por Marx é direcionado aqui à observação entre a relação entre
trabalho, o sofrimento psíquico e as expressões da questão social. Costa (2023, p. 42)
compreende esse sofrimento psíquico também como uma forma de protesto contra o próprio
ser que está sofrendo. Para o autor, essa condição está associada às condições concretas de
existência dos indivíduos - uma sociedade que se desenvolve sobre um modo de produção
predatório, “exploratório, alienado, estranhador, coisificador [...]”.
Embora reconheça que o suicídio e os adoecimentos psíquicos estão presentes em todas
as classes, Marx (2006) reconhece que a miséria é o que se configura como sua maior causa, o
que permanece atual e que foi ratificado na crítica aos fatores de risco e aos fatores protetivos
realizada no capítulo anterior. A afirmação de Marx pode ser observada junto à sua
compreensão sobre a condição de sofrimento da classe trabalhadora, a qual se encontra em um
cenário de intensa exploração e crescente precarização, em que o domínio do capital se expande
para além dos espaços laborais. Marx (2013, p. 342) expõe:
69
O capital não tem, por isso, a mínima consideração pela saúde e pela duração
da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa
consideração. Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte
prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos
martirizar, ele que aumenta nosso gozo (o lucro)?.
em Serviço Social sobre a saúde mental voltada especificamente para o contexto da classe
trabalhadora.
72
O Serviço Social é uma profissão que reconhece as relações sociais como parte de “uma
realidade concreta em movimento, em processo de estruturação permanente” (Iamamoto e
Carvalho, 2014, p. 79). Nesse sentido, ao passo que há o desenvolvimento das forças produtivas
e complexificação das relações sociais, se adensa, portanto, a indispensabilidade de
profissionais especializados para lidar com as demandas originadas das novas necessidades
sociais, bem como dos impasses oriundos do desenvolvimento capitalista industrial e da
expansão urbana.
Diante desse cenário, a burguesia busca estratégias para lidar com a pressão da classe
trabalhadora e não vê uma alternativa a não ser repensar os padrões de proteção social,
requerendo ao Estado articular novas formas de enfrentamento às expressões da questão social
- as quais têm base nas relações de exploração do capital sobre o trabalho. O Estado passa a
intervir como um agente regulador e fiador dessas relações, ao passo que colabora com o
processo de acumulação capitalista e age na mediação, proporcionando o atendimento das
necessidades sociais da classe trabalhadora e estimulando “a profissionalização do/a assistente
social ampliando seu campo de trabalho em função das novas formas de enfrentamento da
questão social” (Yazbek, 2009, p. 10); (Behring e Boschetti, 2006, p. 10 apud Yazbek, 2009).
Yazbek (2009, p. 6) compreende que a questão social se configura como “‘matéria-prima’
e a justificativa da constituição do espaço do Serviço Social na divisão sociotécnica do trabalho
e na construção/atribuição da identidade da profissão”, ainda que nesse período o alinhamento
73
teórico da profissão estivesse de acordo com as bases da Igreja Católica, assumindo um caráter
“conservador, individualista, psicologizante e moralizador da questão, que necessita para seu
enfrentamento de uma pedagogia psicossocial” (idem, p. 8).
Considerando a complexificação do cenário da época e sendo requisitado a atender as
questões previdenciárias e assistenciais, o Serviço Social iniciou sua atuação prestando
assistência aos grupos “marginalizados” do mercado de trabalho. Segundo Bravo (2013, p. 156)
“as principais áreas de ação dos profissionais, no seu início, foram asilos, albergues, orfanatos
e dispensários (e, em São Paulo, a Secretaria da Promoção Social). A área da saúde abriu-se em
seguida, mas de forma embrionária”.
A inserção da profissão nos serviços de saúde surge devido à necessidade de uma
categoria profissional, dentre inúmeras, que fosse capaz de auxiliar o trabalho do médico. Dessa
forma, o desenvolvimento das técnicas e intervenções das assistentes sociais da época estavam
pautadas no modelo médico clínico, sendo sua participação no processo de cuidado era
complementar ao que a figura principal determinava (o médico) (Matos, 2013). Nos hospitais,
a maior demanda para essas profissionais era construir um vínculo entre as instituições, a
família e os próprios usuários (Pinheiro, 1985 apud Matos, 2013).
A atuação diante especificamente da política de Saúde Mental não ocorreu imediatamente
na gênese da profissão no Brasil, principalmente devido ao baixo quantitativo de profissionais
qualificadas em meados da década de 1940 até a década de 1970 (Sabóia, 1976, p. 51 apud
Bisneto, 2007). A literatura aponta que após o início da Ditadura Militar, em 1964, houve um
aumento significativo de clínicas psiquiátricas privadas e de hospícios devido às reformas
realizadas na saúde. Nesse momento, o atendimento psiquiátrico apenas era oferecido aos/as
trabalhadores/as e seus dependentes de forma privada ou em articulação com o Estado,
favorecendo a ampliação dos serviços de saúde mental diante da perspectiva de ascensão do
lucro em razão dos repasses realizados pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e
resultando na criação de mais espaços para atuação das assistentes sociais (Bisneto, 2007).
A incorporação dos estabelecimentos psiquiátricos como partícipe do modelo de
organização da saúde centralizado exigiu o estabelecimento de normas, inclusive, necessárias
para a fiscalização dos serviços. Dentre elas, a inclusão de assistentes sociais na equipe de
saúde, pois caso não houvesse, o serviço de saúde mental não poderia cobrar do INPS o valor
do atendimento aos usuários. No entanto, o cenário era de baixos salários e vínculos de trabalho
precarizados (Bisneto, 2007).
Souza (1986, p. 118) aponta que “é a partir de 1973 - quando o MPAS enfatizava a
importância da equipe interprofissional para a prestação de assistência ao doente mental, numa
74
de suas tentativas de melhorá-la - que se abriu um maior espaço para o Serviço Social nas
Instituições Psiquiátricas”.
Entende-se, portanto, que o posicionamento do Serviço Social frente às demandas de
saúde mental apresentadas pelos trabalhadores nesse período histórico era ser funcional às
necessidades do governo ditatorial. A loucura não era seu principal foco de atuação, mas sim o
manejo das baixas condições de reprodução da força de trabalho - pobreza, abandono, miséria
- e as assistentes sociais, nesse contexto, correspondiam a meras executoras de políticas sociais
na área (Bisneto, 2007).
Frente à elevada busca por serviços de saúde mental, era necessário ainda que as
profissionais trabalhassem para a racionalização do sistema previdenciário, este com inúmeras
contradições, pois as condições societárias da classe trabalhadora apresentavam:
Nota-se, portanto, que desde a gênese da profissão os/as assistentes sociais lidam com as
expressões da questão social vinculadas ao trabalho, sendo a exploração e controle da classe
trabalhadora e o fomento do exército industrial de reserva pilares fundamentais para o
crescimento da acumulação de capital no Brasil. De fato, inicialmente a atuação profissional
era embasada em teorias positivistas o que implicava na condução de ações psicologizantes e
abordagens de caso, grupo e comunidade com foco na moralidade e em uma perspectiva
policialesca da própria questão social.
Na transição da década de 1970 para 1980, o Serviço Social já vivenciava o “Movimento
de Reconceituação”, responsável pela aproximação da categoria de assistentes sociais com os
estudos e teorias críticas marxistas. Contudo, as profissionais que atuavam no campo da saúde
mental enfrentaram obstáculos para estabelecer um elo entre as novas bases de conhecimento
com o seu espaço sócio-ocupacional, haja vista que o próprio marxismo, recém-chegado às
terras brasileiras, tinha dificuldade em abordar questões voltadas à subjetividade dos sujeitos,
algo que está sendo superado nos estudos atuais do campo marxista, mas que, no Serviço Social,
possui uma abordagem tímida devido ao percurso histórico da profissão.
Bisneto (2007), ao realizar uma análise da pesquisa proposta pelo professor Eduardo
Mourão Vasconcelos, “Saúde Mental, desinstitucionalização e abordagens psicossociais”,
75
aponta que devido às críticas que passaram a ser realizadas pela ampla categoria profissional às
intervenções e correntes teóricas que embasaram às práticas de assistentes sociais na saúde
mental, percebe-se uma queda brusca nas pesquisas nesse campo.
Esse afastamento do Serviço Social resultou em lacunas na produção do conhecimento
frente ao debate da saúde mental durante o Movimento de Reconceituação, o qual trazia
discussões mais aprofundadas sobre movimentos sociais, estatutos profissionais ou até mesmo
políticas sociais. Ainda de acordo com Rosa (2016, p. 26), “persistem várias lacunas sobre a
complexidade do trabalho do assistente social na saúde mental, em diferentes equipamentos,
territórios e eixos”.
A necessidade de articulação do Serviço Social com o debate do caráter social da loucura
parte da compreensão que esse movimento pode ser configurado como uma das expressões da
questão social, o que é materialmente o objeto de trabalho do/a assistente social, o/a qual se
comprometeu eticamente com a luta pelos direitos da classe trabalhadora e se colocando contra
todas as formas de exploração e opressão e superação dessa forma de sociabilidade (Barroco e
Terra, 2012). Além disso, é fundamental reforçar que o campo da saúde mental não está atrelado
apenas à psiquiatria, conforme afirma Amarante (2007).
Esse compromisso está atrelado ao que Marx (2006, p. 28) afirma: “Descobri que sem
uma reforma total da ordem social de nosso tempo, todas as alternativas de mudança seriam
inúteis”. Assim, o comprometimento da categoria profissional se reafirma enquanto espaço de
novas discussões como a realizada até o momento e parte para o enfrentamento das expressões
da questão social, munida de conhecimento e aproximação com a classe trabalhadora,
principalmente no cenário contemporâneo marcado pela precarização do trabalho e desmonte
dos direitos sociais conquistados através de muito suor, sangue e lágrimas.
Para analisar o Estado da Arte do Serviço Social referente às temáticas de saúde mental
e saúde mental do/a trabalhador/a foi realizado um breve levantamento bibliométrico26 em
Revistas Nacionais classificadas e especificadas na Associação de Ensino e Pesquisa em Serviço
26 De acordo com Araújo (2006), a técnica conhecida como Bibliometria consiste em quantificar e elaborar
estatísticas, descrevendo desse modo, elementos característicos da literatura e de outros veículos de comunicação.
Essa técnica tem como objetivo mensurar a produção e a divulgação do conhecimento científico.
76
concentração das produções de acordo com o recorte temporal adotado durante o levantamento
bibliométrico.
- Suicídio
modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, adotando a saúde coletiva como linha
prioritária, ao passo que buscava o protagonismo dos/as usuários/as e um atendimento integral,
universal e equitativo no cuidado em saúde.
Contudo, é necessário deixar explícito que a Reforma Psiquiátrica brasileira possui
características particulares e distintas do movimento de Reforma Sanitária. De acordo com o
Ministério da Saúde (2005, p. 6):
Após esse marco legal, outros dispositivos e serviços são estruturados para ofertar
atendimento às demandas de saúde mental. Amarante e Nunes (2018, p. 2072) destacam, por
exemplo, a:
Portanto, diante do que foi apresentado até o momento, é compreensível apontar que as
categorias secundárias relacionadas à Reforma Psiquiátrica sejam: a 1) Construção da Rede de
Atenção Psicossocial e/ou Intersetorial (21 artigos); a 2) Luta Antimanicomial (10 artigos); e
por fim, a 3) Desinstitucionalização (3 artigos), conforme revela o gráfico 4.
84
28
Data que é definida e comemorada o dia da Luta Antimanicomial.
86
Nesse sentido, de acordo com Chiabotto, Nunes e Aguiar (2022, p. 850) a Contrarreforma
Psiquiátrica pode ser definida como:
da Saúde, a qual inclui na Rede de Atenção Psicossocial serviços que adotam uma perspectiva
e um cuidado moralizante, conservadora, estigmatizante e manicomial, especificamente, os
Hospitais Psiquiátricos e as Comunidades Terapêuticas (CTs). Para além disso, o documento
reforça que não há motivos para utilizar a nomenclatura de “dispositivos substitutivos”, pois
“todos os serviços, que compõem a RAPS, são igualmente importantes e devem ser
incentivados, ampliados e fortalecidos” (Ministério da Saúde, 2019, p. 3) e libera o uso da
Eletroconvulsoterapia (ECT) no SUS.
Portanto, ao fazer uma análise das produções científicas relacionadas à Contrarreforma
Psiquiátrica, nota-se uma inquietação da profissão frente aos:
1) Desmontes da política de saúde mental; 2) Questão das Drogas; 3) Medicalização dos
corpos. O gráfico 5, a seguir, revela a predominância dos estudos sobre os desmontes das
políticas.
Nesse sentido, ao estabelecer uma análise mais detida sobre as pesquisas, observa-se que
o desmonte das políticas sociais é pautado, de fato, sobre o conservadorismo e o fundamentalismo
religioso, além do projeto neoliberal e do discurso privatista, na responsabilização de indivíduos
do seio familiar ao invés do Estado e na precarização dos serviços de saúde mental através dos
repasses orçamentários.
88
Dessa forma, uma análise mais aprofundada sobre a Contrarreforma Psiquiátrica revela que
ela traz em seu bojo um modelo que esteve sempre a serviço do controle dos corpos, alinhado
com o Modo de Produção Capitalista e comprometida com um lado da luta de classes - o do
capital. A cena manicomial – onde se encontra o saber psiquiátrico no centro –, apontada por
Basaglia (2013) como um instrumento historicamente opressivo do Estado, captura a classe
trabalhadora e opera através de um encarceramento massivo do corpo e da experiência humana.
A contrarreforma em curso configura-se como um desafio ao Serviço Social e aos atores
comprometidos com a Reforma Psiquiátrica e o Movimento da Luta Antimanicomial. Assim,
têm-se como competências profissionais trilhar caminhos de resistência frente à lógica
manicomial, os quais reafirmem o cuidado em liberdade, a autonomia dos sujeitos e a potência
do território, da multiprofissionalidade e de um usuário compreendido em sua complexidade e
integralidade.
Reflexos desses debates norteados pela Contrarreforma Psiquiátrica são os estudos: “A
Política de Saúde Mental na atualidade e o avanço do conservadorismo” redigido por Costa
(2019) e encontrado na Revista Argumentum; “A política de saúde sob o governo Temer: aspectos
ideológicos do acirramento do discurso privatista” escrito por Barros e Brito (2019) e presente
no periódico O Social em Questão; “Retrocessos na política nacional de saúde mental:
consequências para o paradigma psicossocial” de autoria de Passarinho (2022) e publicado na
Revista Em Pauta.
90
a relevância do trabalho para esta pesquisa, se ele consta na referida plataforma e o recorte por
período (anterior a 2012 e posterior a 2022) e produções em duplicidade.
Referente ao resultado, obteve-se: inicialmente foram encontradas 206 pesquisas. Dentre
elas, 170 dissertações e 36 teses. Após a aplicação dos filtros apresentados acima, observou -se
que há 128 dissertações e 28 teses. As categorias encontradas estão apresentadas no gráfico 6.
(Conselho Federal de Serviço Social, 2019, p. 2) e não considera as demais expressões dessa falta
de inserção em aspectos como a saúde física e mental desse grupo.
No momento em que os documentos abordam a temática da saúde do trabalhador e da
trabalhadora, fazem referência aos acidentes de trabalho em esferas como a construção civil, bem
como aos desmontes frente aos benefícios previdenciários destinados àqueles que sofrem
acidentes (aposentadoria por incapacidade laboral, seguro-desemprego, entre outros) (Conselho
Federal de Serviço Social, 2019).
Após o debate decorrido até o momento, ainda paira a pergunta: estaria a produção do
conhecimento do Serviço Social na Saúde Mental estagnada? Será que a categoria está apenas
realizando a análise de objetos como a Saúde do/a Trabalhador/a em uma perspectiva progressista
e não assumindo a radicalidade necessária para emancipação humana? Ou seria Reforma
Psiquiátrica, a Contrarreforma e a Atuação e formação profissional pautas mais significativas
para a profissão?
É importante salientar que reconhecemos o esforço realizado pelo Serviço Social na
aproximação e na produção do conhecimento frente à área da saúde mental, a qual tem como
predominante em seu campo teórico as ciências psi - psicologia, psicanálise e psiquiatria. A
inserção da categoria nesses debates reforça que existe o aspecto social no adoecimento mental
e fortalece os movimentos sociais em busca dos direitos conquistados. Além disso, sustenta seu
posicionamento a favor da classe trabalhadora e se coloca contra o sistema de opressão,
expropriação e exploração que provocam o cenário de barbárie instaurado na sociedade
contemporânea, buscando sempre alcançar uma sociabilidade onde haja equidade e justiça social.
No entanto, cabe ao Serviço Social se atentar à análise do adoecimento mental como um
aspecto social mais profundo. Evidentemente, questões biológicas e psicológicas devem ser
consideradas na análise do processo saúde-doença, mas não devem ser compreendidas como mais
relevantes do que as nuances da vida cotidiana dos indivíduos. Assim, é dever da nossa categoria
profissional avançar no debate frente aos fatores sociais do adoecimento mental, considerando
de fato as expressões da questão social como objetos para pensar vias alternativas de intervenção.
Ora, na conjuntura onde o Modo de Produção Capitalista orienta a maneira como se
constroem as relações sociais, e o trabalho se torna uma mercadoria, é imprescindível que a
profissão entenda as implicações para a classe trabalhadora e se debruce sobre as necessidades
desta. Vejamos: a força de trabalho enquanto mercadoria, no contexto em que o capitalismo dita
a vida social e produtiva, precisa ser vendida. Ao passo que não há o consumo dessa mercadoria,
ou seja, quando a parcela de pessoas que se encontram no processo de venda de sua força de
trabalho não consegue realizá-la, também não consegue reproduzir este bem tão valioso. Isso
98
porque é a partir da venda da força de trabalho que a classe trabalhadora terá as mínimas
condições de buscar sua sobrevivência com recursos indispensáveis aos indivíduos - como
alimentação, vestimenta, saúde, habitação, lazer, descanso, entre outros elementos -, as quais
possibilitam a (re)produção da inestimável mercadoria do capital: a força de trabalho. Mas não
apenas, pois não basta “sobreviver”, é preciso viver.
Dessa forma, consideramos que ambos os movimentos estão ocorrendo na profissão: há a
preocupação com o aprofundamento teórico com pautas como a Saúde do/a Trabalhador/a, além
da Reforma e a Contrarreforma Psiquiátrica, posto que, como dito anteriormente, a categoria
profissional reforça seu posicionamento em defesa de uma sociedade livre e sem opressão,
buscando sempre fortalecer os movimentos sociais e as lutas travadas a favor da classe
trabalhadora, principalmente. No entanto, observa-se que há uma estagnação por não observar
de forma mais rigorosa as teorias que norteiam os estudos e as nuances que o adensamento da
questão social está produzindo, como as iniquidades de saúde. Assim, acreditamos que o
adoecimento mental da classe trabalhadora - especialmente àquela que não está inserida no
mercado de trabalho ou que está inserida, mas que não tem suas necessidades de reprodução da
força de trabalho atendidas em sua totalidade - está sendo tratado de maneira secundária.
Caberia, então, às entidades profissionais e aos estudiosos da área o aprofundamento sobre
a temática e buscar respostas para o enfrentamento da situação, dando visibilidade e realizando
uma reflexão mais densa sobre o objeto de intervenção o qual se dedica o Serviço Social - a
questão social - e sua relação com o adoecimento mental. Desse modo, apresentar um
posicionamento que considere os múltiplos aspectos do adoecimento e coloque o trabalho como
um elemento indispensável nas análises sobre a saúde mental, mesmo quando envolver
trabalhadores desempregados ou em condições de subemprego; não colocando-os como sujeitos
passivos que necessitam da seguridade social apenas para ter acesso a benefícios sociais, mas
também considerando-os como indivíduos que necessitam e devem ter acesso aos direitos sociais
básicos para garantir a reprodução do seu único bem e sua única mercadoria; além do próprio
fortalecimento enquanto classe.
Assim, a discussão acerca da saúde mental no Serviço Social, a qual considera elementos
da Saúde Coletiva e os complemente diante de sua necessidade, responsabiliza o sistema
socioeconômico que vivemos e levanta a bandeira da construção de uma nova sociabilidade que
seja capaz de garantir boas condições de reprodução da força de trabalho, dando ao trabalhador
a oportunidade de viver e desfrutar de seu trabalho, não apenas sobreviver a partir dele. Contudo,
é insuficiente no aprofundamento de pesquisas que estabeleça uma relação direta entre a fome e
a loucura, por exemplo, bem como o objeto de estudo deste trabalho: as mediações entre a
99
CONSIDERAÇÕES FINAIS
e Terra, 2012, p. 129). Ratificando a compreensão dos intelectuais do MRSB de que o capital
é patogênico, conclui-se que somente a superação da sociedade de classes pode abrir caminhos
concretos para a produção social da saúde do ponto de vista da classe trabalhadora.
Assim, o compromisso da profissão com a classe trabalhadora envolve apreender o real
concreto e seus desdobramentos na produção e na reprodução social. Esse movimento implica
considerar que “O marxismo dará saúde aos doentes”, assim como apresentado por Frida Kahlo
em uma de suas obras, pois tê-lo como fundamento teórico e político é ter como objetivo a
emancipação humana, uma mudança radical nas atuais estruturas societárias.
Consequentemente, embasar a produção do processo saúde-doença dos/as trabalhadores/as não
voltado às demandas do capital, mas satisfazer suas próprias necessidades que os/as humaniza.
106
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