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Júlio Verne

©2021 por Felipe Abreu, Felipe Nogueira, Gabriel Garcia,


Lucas Castelo e Thiago Dias Monteiro.

Todos os direitos reservados ao estúdio GGAC

Ilustrações:
Gino Baiense

Agradecimentos:
Kátia Vasconcelos
Pedro Sobreiro
Rodrigo da Silva Lima
Victor Arthur
Waldir Stefano

Traduzido e adaptado do original em francês


Viagem ao Centro da Terra - Voyage au Centre de la Terre
Texto original: Júlio Verne
A literatura de ficção científica é uma antes de Júlio Verne, e outra
após sua vasta produção. O centro mundial de invenções, apesar da
riqueza inglesa, era Paris e, por isso, esse escritor francês acaba se
tornando um grande agente educador de sua época ao despertar nos
jovens o interesse pela ciência, pela invenção, pela criação de objetos
que podem mudar a vida das pessoas, e o fundamental: despertar a
curiosidade e o prazer de pesquisar e imaginar.

Santos-Dumont dizia, inspirado por Verne, que tudo o que um


homem pode imaginar, outros homens poderão fazer. Esse brasileiro
que dedicou a vida à conquista do ar inspirou-se, desde a adolescência,
nas histórias científicas e, com muita dedicação, desprendimento
e idealismo, Dumont tornou seu sonho de adolescente, o ato de
voar, em realidade e, assim, transformou para sempre a história da
humanidade.

Ao buscarmos o impacto da obra de Verne para o século XXI,


em um primeiro momento, pode parecer até meio infantil falar
em “idealismo”, “sonho” e “persistência”. No entanto, Verne era um
inventor, um criador. Hoje, se vivo, olharia movimentos como a
Cultura Maker, como algo necessário e fundamental para sairmos da
passividade que a nossa sociedade nos oferece ao propor passar tempo
demais na frente da TV e do celular.

O que o Estúdio GGAC propõe ao relançar essa obra não é


simplesmente trazer à tona mais uma das inúmeras edições do clássico
francês. A edição que você tem em mãos é fruto de muita pesquisa e
muita criatividade, pois o grande diferencial dela, além das ilustrações
autorais, design e notas imersivas, é a tradução feita a partir do original
em francês, para um português moderno, adequado ao público fã de
ficção científica, que vai encontrar nesta edição a viagem que Verne
proporcionou aos jovens franceses de sua época, o que os inspirava
a serem grandes cientistas e inventores, e o mais importante para o
século XXI: fazer os jovens acreditarem em seus sonhos.

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Particularmente, conheci como professor alguns integrantes
do GGAC. Desde os primeiros trabalhos, ainda na adolescência,
esses jovens já eram empreendedores, de jogos de tabuleiros para
apresentação de trabalhos a vídeos institucionais, em tudo que
colocavam as mãos, como Midas, virava um grande tesouro, que
reverbera até hoje nos corredores da Etec Carlos de Campos.

Desta forma, ainda na escola, quando eles eram estudantes, eu


tentava ser o Professor Otto Lidenbrock, ou seja, desejava despertar
neles o lado pesquisador, corajoso, curioso, bravo e impaciente para
que pudessem criar. E hoje, poucos anos após formados, vejam o
resultado... sou eu quem vai embarcar nessa releitura como o jovem
Axel, sobrinho de Otto Lidenbrock, pois o que o Estúdio GGAC nos
oferece, caro leitor, é a oportunidade de se tornar o nosso Hans Bjelke:
um guia que leva os heróis ao caminho de sua jornada, mas sem o lado
“gelado” desse personagem!

Mal vejo a hora dessa nova edição estar finalizada e em minhas


mãos: quero ver como esses Lidenbrocks do GGAC traduziram os
manuscritos para que nós possamos ler Júlio Verne com o mesmo
entusiasmo que Santos-Dumont e, quem sabe, despertar em cada
leitor o seu lado inventor, criativo, empreendedor e, claro, aventureiro
e sonhador, que todos temos quando nos encantamos com novas
descobertas que encontramos.

Quais serão as próximas aventuras


que o Estúdio GGAC nos oferecerá?

Rodrigo da Silva Lima


Professor e aficionado pela arte da palavra

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Preparados para a aventura?

Júlio Verne é um dos precursores da ficção científica quando


cria conceitos de submarino e foguete, por exemplo, antes mesmo
de suas invenções. Isso fez dele uma fonte de inspiração para
Santos-Dumont, Arthur C. Clarke, Arthur Conan Doyle, J. R. R.
Tolkien, e tantos outros nomes que extrapolam o universo literário.

Suas obras alcançam o topo dos rankings das mais traduzidas do


mundo, à frente de nomes como Shakespeare, Stephen King e Edgar Allan
Poe. Parafraseando Michel Serres, importante filósofo francês, “se Júlio
Verne ainda é legível, isso deve-se à força mítica das suas obras”. O livro
“Viagem ao Centro da Terra” é um ótimo exemplo disso, teve sua primeira
publicação em 1864, continua sendo uma leitura instigante, e acreditamos
que nunca perderá sua magnitude como clássico da literatura mundial.

Para perpetuar a originalidade e autenticidade de Júlio nesta


obra, aceitamos o desafio de trabalhar diversos idiomas, como alemão e
islandês, e nos dedicamos na ciência de áreas como mineralogia, zoologia
e botânica, que estão constantemente presentes no texto original, tudo
para reproduzir os nomes científicos e técnicos com propriedade e
assertividade. Priorizamos uma tradução coesa, com poucas intervenções
nos diálogos e descrições feitas por Verne, e seguimos o máximo possível
dos nomes próprios de locais e personagens em seus idiomas originais.

Tomamos, porém, a liberdade de acrescentar algumas notas


extras ao texto, para proporcionar uma experiência ainda mais imersiva
para você, caro leitor, mas não se preocupe, as incluímos como se
fossem escritas do ponto de vista de Axel, um dos personagens e
narrador da aventura, para que acrescentem valor sem atrapalhar
sua imersão. Estas, servem para transmitir informações relevantes
e explicações pontuais que nós, da GGAC, julgamos necessárias.
As notas de Júlio Verne estão sinalizadas como "nota do autor",
para que não as confunda com aquelas que nós produzimos.
Para os apoiadores deste projeto, desenvolvemos, também,
conteúdos adicionais que seguem a mesma linha das notas. Eles
têm como objetivo acrescentar mais informação e permitir que
o leitor se aprofunde ainda mais na história. Por isso, fica ao seu
critério o quão fundo mergulhará nesta viagem ao centro da Terra.

Reconhecendo a importância dessa obra, e sua relevância


dentro do gênero da ficção, optamos por inaugurar o selo “Essencial
GGAC” com esta aventura atemporal. Este é o primeiro passo de
um projeto não só gráfico e literário, mas também social e científico.
Queremos apresentar aos leitores obras clássicas que são, como
o nome diz, essenciais, seja por terem marcado uma geração, por
terem levantado debates que foram e ainda são relevantes, por
terem sido símbolos de conquistas ao longo dos anos, ou por terem
inspirado pessoas. O essencial pode ser invisível aos olhos, mas se
lermos com alma e coração abertos, vemos que há muito a aprender.

Para finalizar, agradecemos pela confiança em nosso


trabalho e potencial, por nos permitir apresentar a nossa versão
de um clássico tão importante para a literatura e também especial
para nós. Esperamos que sua experiência com este livro em
mãos seja tão extraordinária quanto foi a nossa em produzi-lo.

Que se inicie a aventura!


Capítulo 1
O PROFESSOR
1. O PROFESSOR

No domingo, dia 24 de Maio de 1863, meu tio, Professor Lidenbro-


ck, correu de volta para a sua pequena casa situada no número 19 da
Königstrasse, uma das ruas mais antigas na velha cidade de Hamburgo.
Martha, a empregada, pensou estar muito atrasada, pois tinha co-
meçado a preparar o jantar no fogão da cozinha.
“Bem,” disse para mim mesmo, “se meu tio, o mais impaciente dos
homens, estiver com fome, ele irá gritar desolado”.
— Senhor Lidenbrock, tão cedo!? — a bondosa Martha exclamou
surpresa, entreabrindo a porta da sala de jantar.
— Sim, Martha, mas o jantar tem o direito de não estar nem cozido,
ainda não são duas horas. O relógio da Igreja de São Miguel acabou de
soar uma e meia.
— Então, por que o senhor Lidenbrock está em casa tão cedo?
— Ele provavelmente irá nos dizer.
— Aí está! Vou me retirar, senhor Axel, enquanto você coloca razão
nesse homem.
E a bondosa Martha recuou para seu laboratório culinário.
Fui deixado sozinho. Mas colocar razão no mais irritável dos pro-
fessores estava fora de questão para alguém com uma personalidade um
tanto indecisa como a minha. Assim que eu me retirava cuidadosamen-
te para o meu elegante quarto no andar de cima, as dobradiças da porta
da rua rangeram. Pés largos fizeram a escadaria de madeira chiar, e o
mestre da casa atravessou apressadamente a sala de jantar em direção
ao seu escritório.

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Mas durante sua veloz passagem, ele atirou sua bengala de castão
de quebra-nozes em um canto, seu áspero chapéu de aba larga sobre a
mesa e, para mim, essas retumbantes palavras:
— Axel, me siga!
Mal tive tempo de me mexer quando o professor gritou com um
tom de total impaciência:
— Oras! Você ainda não está aqui?
Me apressei ao escritório do meu temível mestre.
Não havia maldade em Otto Lidenbrock, prontamente admito. Po-
rém, a não ser que ele mude de maneira improvável, ele morrerá terri-
velmente excêntrico.
Ele era professor no Johannaeum1, ministrava um curso de mine-
ralogia, e durante as aulas regularmente explodia de raiva uma ou duas
vezes. Não que ele se importasse de ter alunos dedicados em sua classe,
pelo nível de atenção que eles o davam ou com o sucesso que conquista-
riam eventualmente. Tais detalhes nunca o incomodaram. Seu método
era “subjetivo,” como um filósofo alemão chamaria. Era feito para si, não
para os outros. Era um estudioso egoísta, um poço de ciência no qual as
polias rangiam quando você queria puxar algo de dentro dele: em uma
palavra, um sovina.
Existem alguns professores desse tipo na Alemanha.
Infelizmente, meu tio não tinha o dom de discursar com outras
pessoas além dele mesmo, e isso é um déficit lamentável em um orador.
De fato, em suas palestras na universidade de Johanneum, o professor
frequentemente caía em paralisia, ele lutava com uma relutante palavra
que não queria passar pelos seus lábios, uma dessas palavras que resis-
tem, expandem e finalmente escapam sob uma postura pouco científica
de um palavrão. Por isso, sua fúria intensa.
Bem, na mineralogia há muitos termos meio gregos e meio lati-
nos que são difíceis de se pronunciar2, palavras rudes que machucariam
os lábios de um poeta. Não quero falar mal desta ciência. Longe disso.
Mas quando se enfrentam cristais romboédricos, resinas retinasfálticas,
gehlenitas, fassaites, molibdenitas, tungstatos de manganês e titanitas de
zircônio, até mesmo a língua mais habilidosa pode escorregar.
Logo, o perdoável ponto fraco do meu tio era bem conhecido na
cidade e as pessoas se aproveitavam disso, esperando pelos momentos

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mais perigosos onde ele entrava em fúria e eles riam, o que não é de bom
gosto, nem mesmo para os alemães. E se houvesse uma audiência cheia
nas palestras do Lidenbrock, vários estavam ali regularmente para se
entreterem com os magníficos acessos de fúria do professor!
De qualquer modo, simpatizo com o meu tio, um verdadeiro es-
tudioso. Apesar de que, às vezes, ele danificava seus espécimes por ma-
nejá-los bruscamente, ele unia o gênio de um geólogo com o olhar agu-
çado de um mineralogista. Com o seu martelo, sua broca de aço, suas
agulhas imantadas, seu maçarico e seu frasco de ácido nítrico, ele era
um homem muito poderoso. Avaliando as fraturas, a aparência, a dure-
za, a fusibilidade, a sonoridade, o odor e o gosto de qualquer mineral,
ele era capaz de classificá-los sem hesitação, dentro das seiscentas subs-
tâncias conhecidas pela ciência de hoje.
Sendo assim, o nome Lidenbrock era mencionado com honra em
colégios e nas sociedades eruditas. Humphry Davy, Humboldt e os capi-
tães Franklin e Sabine nunca se esqueciam de visitá-lo quando passavam
por Hamburgo. Becquerel, Edelman, Brewster, Dumas, Milne-Edwards
e Saint-Claire Deville o consultavam sobre os mais difíceis problemas na
química. Essa disciplina estava em dívida com ele por suas descobertas
marcantes e, em 1853, Um Tratado de Cristalografia Transcendental,
pelo Professor Otto Lidenbrock, havia aparecido em Leipzig, um gran-
de impresso com ilustrações que, contudo, não cobriu as suas próprias
despesas.
Adicione a tudo isso que o meu tio era o curador do museu de mi-
neralogia estabelecido pelo senhor Struve, o embaixador da Rússia, uma
preciosa coleção cuja reputação é conhecida por toda a Europa.
Logo, este era o personagem que me chamava com tanta impaciên-
cia. Imagine um homem alto, esguio, de uma constituição de ferro, com
cabelos loiros que o faziam parecer dez anos mais novo que os seus cin-
quenta. Seus grandes olhos se moviam incessantemente por trás de seus
óculos de tamanho considerável, seu nariz longo e fino parecia como
a lâmina de uma faca, as más línguas diziam que ele era magnético e
atraía limalhas de ferro. Pura calúnia, não atraía nada além de tabaco,
mas esse, sendo sincero, em grandes quantidades.
Quando acrescentar que meu tio andava em passos largos de quase
um metro e se eu apontar que, ao caminhar, ele deixava seus punhos

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cerrados firmemente, um sinal claro de um temperamento impetuoso,
ficará claro o quanto sua companhia não era desejável.
Ele vivia em sua pequena casa na Königstrasse3, uma construção
feita metade de tijolo e metade de madeira, com um frontão serrilhado.
Ela dava vista para um daqueles canais sinuosos que cruzavam no meio
do bairro velho de Hamburgo, que o grande incêndio de 1842 havia
felizmente poupado.
A velha casa era um pouco inclinada, admito, e exibia seu ventre
aos pedestres. Seu teto pendia um pouco para um lado, como o chapéu
sobre a orelha de um aluno da Tugendbund4. Sua verticalidade deixava
a desejar, mas apesar de tudo, ela era bem firme, graças a um velho olmo
que se apoiava em sua fachada e que, durante a primavera, empurrava
seus ramos floridos pelos vidros da janela.
Para um professor alemão, até que meu tio era rico. A casa era toda
sua, recipiente e conteúdo. O conteúdo incluía sua afilhada Graüben,
uma virlandesa5 de dezessete anos, Martha e eu mesmo. Na minha du-
pla qualidade de sobrinho e órfão, me tornei assistente em suas experi-
ências.
Admito que eu mergulhei avidamente nas ciências geológicas.
Tinha o sangue de um mineralogista em minhas veias e nunca me
entediei estando na companhia das minhas preciosas rochas.
Em poucas palavras, se podia viver feliz na pequena casa na rua
Königstrasse, apesar da impaciência de seu proprietário. Mesmo que
ele demonstrasse de maneira brusca, ainda assim ele tinha carinho por
mim.
Mas aquele homem era incapaz de esperar, a própria natureza era
lenta demais para ele. Em Abril, depois de ter plantado mudas de resedá
e ipomoea nos vasos de argila em sua sala de estar, ele ia todas as ma-
nhãs puxar as folhas para acelerar seu crescimento.
Diante de tal personagem, só se podia obedecer.
Portanto, me apressei atrás dele para dentro de seu escritório.

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1- Fundada em 1529, é a escola mais antiga de Hamburgo. Tanto meu tio quanto a Universidade
tinham a honra de ter um ao outro. Sua matéria, a mineralogia, estuda a química e física dos
minerais, além de sua estrutura cristalina.

2- Não tenha medo de tais nomes, eu mesmo demorei anos para memorizar tudo isso! Quando
importantes para a história irei aparecer para ajudar! Mas, como bom cientista, te incentivo
a realizar suas próprias pesquisas sempre que achar necessário!

3- Por sorte, nossa residência não foi atingida pelas chamas. Parece que a Königstrasse,
conjunto de palavras alemãs que significam “estrada de reis”, pôde assegurar sua nobreza,
sendo um dos poucos lugares intactos.

4- Uma sociedade já não tão secreta da Prússia. Foi encerrada há algumas décadas atrás.

5- Para quem não conhece, os virlandeses são um povo da região de Vierlande,


ao sul de Hamburgo.

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Capítulo 2
O PERGAMINHO MISTERIOSO
2. O PERGAMINHO MISTERIOSO

Este escritório era um autêntico museu. Amostras de tudo que se


é conhecido em mineralogia estavam lá perfeitamente etiquetadas, de
acordo com as três grandes divisões da mineralogia: inflamáveis, metá-
licos e litóides.
E como conhecia bem todos esses fragmentos de ciência minera-
lógica! Quantas vezes, ao invés de aproveitar a companhia de garotos
da minha idade, eu preferia tirar o pó de grafites, antracites, hulhas, li-
nhitas e turfas! E os betumes, resinas, sais orgânicos que precisavam ser
protegidos do menor átomo de poeira! E estes metais, de ferro a ouro,
cujo valor relativo desaparecia na absoluta igualdade das amostras cien-
tíficas! E todas estas pedras, o bastante para reconstruir a casa na Köni-
gstrasse, até com um belo quarto adicional que me serviria muito bem!
Mas ao entrar neste escritório, nem cheguei a sonhar com todas es-
sas maravilhas. Apenas o meu tio preenchia a minha mente. Ele havia se
lançado em uma poltrona coberta por um veludo de Utrecht1 e segurava
em suas mãos um livro que ele contemplava com profunda admiração.
— Que livro! Que livro! — ele exclamava.
Esta exclamação me lembrou que meu tio era também um bibliófi-
lo em seu tempo livre, mas um livro velho não tinha valor para ele a não
ser que fosse muito difícil de se encontrar ou, ao menos, ilegível.
— Oras! — ele me disse — Não vê? Este é um precioso tesouro que
encontrei esta manhã bisbilhotando a loja do judeu Hevelius.
— Magnífico! — respondi, com um entusiasmo forçado.
Mas, na verdade, qual era o ponto de todo esse rebuliço sobre um
velho impresso, aparentemente encadernado de modo grosseiro em
couro de bezerro, um volume amarelado do qual pendia um fitilho des-
botado?
Apesar disso, não havia fim para as exclamações de admiração do
professor.
— Veja — ele prosseguiu, fazendo as perguntas e as respondendo
— não é uma beleza? Sim, admirável! Você já viu uma encadernação

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igual? Este livro não abre facilmente? Sim, pois permanece aberto em
qualquer lugar. Mas se fecha igualmente bem? Sim, já que a encaderna-
ção e as folhas estão niveladas, tudo em uma linha reta, sem lacunas ou
separações em lugar algum. E olhe esta lombada, ela não mostra nem
uma rachadura mesmo após setecentos anos! Ah, Bozerian, Closs ou
Purgold estariam orgulhosos de tal encadernação!
Enquanto falava, meu tio continuava abrindo e fechando o velho li-
vro. Não podia fazer nada além de perguntar sobre seu conteúdo, apesar
de não ter o mínimo interesse.
— E qual é o título desta maravilhosa obra? — perguntei com uma
avidez tão pronunciada, que era claramente falsa.
— Esta obra — respondeu meu tio com entusiasmo renovado — é
o Heimskringla2, de Snorre Turleson, famoso autor islandês do século
XII! É a crônica dos príncipes noruegueses que reinavam na Islândia.
— De fato! — exclamei, dando o meu melhor — E sem dúvida é
uma tradução para o alemão, certo?
— Mas o quê?! — respondeu o professor bruscamente — Uma tra-
dução?! E o que eu faria com uma tradução? Quem se importa com uma
tradução? Esta é a obra original em islandês, esse idioma magnífico, rico
e simples ao mesmo tempo, permite uma variedade infinita de combi-
nações gramaticais e múltiplas modificações de palavras!
— Como o alemão — insinuei alegremente.
— Sim — respondeu meu tio, dando de ombros — mas, além disso,
o islandês tem três gêneros, como o grego e declinação de substantivos
como o latim.
— Ah! — falei, com minha indiferença um pouco abalada — e os
caracteres são bonitos?
— Caracteres! O que você quer dizer com caracteres, Axel, seu infe-
liz? Caracteres! Como se o tipo de caractere importasse! Ah! Você acha
que este é um livro impresso? Seu tolo ignorante, este é um manuscrito,
um manuscrito rúnico!
— Rúnico?
— Sim! Agora irá me pedir para explicar essa palavra para você?
— Claro que não — respondi em um tom de um homem cujo res-
peito próprio havia sido ferido.

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Mas, de qualquer forma, meu tio persistiu e me contou, contra a
minha vontade, sobre coisas que eu não me importava em saber.
— Runas — ele explicou — eram glifos da escrita antiga usados na
Islândia, de acordo com a tradição, e que foram inventados pelo próprio
Odin3. Então, olhe isso, jovem cético, e admire esses tipos saídos da ima-
ginação de um deus!
Bem, não sabendo o que dizer, comecei a me curvar, uma resposta
que agradaria igualmente deuses e reis, pois isto dá a vantagem de nun-
ca desagradá-los, quando ocorreu um pequeno incidente que virou a
conversa para outra direção.
Foi o surgimento de um pedaço sujo de pergaminho que deslizou
do livro e caiu no chão.
Meu tio pulou sobre este retalho com uma avidez compreensível.
Um velho documento, perdido por um tempo imemorial em um velho
livro, obviamente teria um valor imensurável aos seus olhos.
— O que diabos é isso? — ele exclamou.
E, ao mesmo tempo, ele desdobrou sobre a mesa um pedaço de
pergaminho, com treze centímetros de altura por oito de largura, cober-
to por linhas horizontais de glifos ilegíveis.

Aqui está uma cópia perfeita, um exato fac-símile. Para mim, é im-
portante tornar estes símbolos bizarros publicamente conhecidos, pois
eles incitaram o Professor Lidenbrock e seu sobrinho a fazerem parte da
expedição mais estranha do século XIX.

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O professor meditou por alguns momentos sobre esta série de
glifos e então disse, levantando seus óculos:
— Estas são escritas rúnicas, elas são idênticas àquelas no manus-
crito de Snorre Turleson. Mas o que elas poderiam significar?
Já que, para mim, as runas parecem uma invenção dos estudiosos
para mistificar este pobre mundo, não senti pena de ver que meu tio não
as entendia. Pelo menos era o que me parecia, julgando pelos movimen-
tos de seus dedos, que começaram a tremer violentamente.
— Mas certamente é islandês antigo! — ele murmurou por entre
os dentes.
E o Professor Lidenbrock deveria saber, pois ele era considerado
um poliglota genuíno. Não que ele fosse capaz de falar todas as duas mil
línguas e os quatro mil dialetos que são falados na Terra, mas ele sabia
uma boa parte deles.
E então, diante de tal dificuldade, ele ia abrir caminho para toda a
impetuosidade do seu caráter e eu já previa um surto violento quando o
relógio sobre a lareira bateu duas horas.
Imediatamente, a governanta Martha abriu a porta do escritório e
disse:
— O jantar está pronto!
— Pro inferno com o jantar! — gritou o meu tio — E essa que o
preparou e a todos que o vão comer!
Martha fugiu, eu a segui, e mal sabendo como cheguei lá, encon-
trei-me sentando no meu assento de costume na sala de jantar.
Esperei alguns instantes. O professor não veio. Isto era, pelo meu
entendimento, a primeira vez que ele tinha perdido o ritual da janta. E
que jantar era esse! Sopa de salsinha, omelete de presunto temperado
com azedinha e noz moscada, filé de vitela com compota de ameixa e,
para a sobremesa, camarão açucarado, tudo regado com um belo vinho
da Mosela.
Meu tio estava sacrificando tudo isso por conta de um velho peda-
ço de papel. Bem, como um sobrinho devotado, considerei como meu
dever comer tanto por ele, quanto por mim mesmo. Isso eu fiz conscien-
temente.
— Eu nunca vi uma coisa dessas — disse Martha, a governanta. —
O senhor Lidenbrock não está à mesa!

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— Quem iria acreditar?
— Isto significa que algo sério está para acontecer — disse a velha
empregada, assentindo com a cabeça.
Na minha opinião, não significava nada mais sério do que uma
terrível cena quando meu tio descobrisse que o seu jantar havia sido
devorado.
Tinha chegado no meu último camarão quando uma retumbante
voz me arrancou dos prazeres da sobremesa. Com um pulo, saltei para
fora da sala de jantar em direção ao escritório.

1- Um tipo de tecido estampado, rico em detalhes floridos, produzido entre os séculos XVII
e XVIII, nos Países Baixos.

2- Esta “bíblia” dos contos nórdicos reúne sagas dos antigos reis.

3- O "pai de todos", como era conhecido, era também deus da sabedoria e da morte, duas
características envoltas nas aventuras de meu tio.

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Capítulo 3
O CRIPTOGRAMA
3. O CRIPTOGRAMA

— Evidentemente, é rúnico — disse o professor, franzindo o cenho.


— Mas há um segredo aqui, e eu vou descobri-lo, senão… um gesto
violento encerrou seu pensamento.
— Sente-se ali — ele disse, apontando para a mesa — e escreva. Em
um instante, eu estava pronto.
— Agora vou lhe ditar cada letra do nosso alfabeto que correspon-
de com os caracteres islandeses. Veremos o que isso nos dará. Mas, por
São Miguel! Cuidado para não cometer erros!
Ele começou a ditar. Fiz o meu melhor. Cada letra era chamada
uma após a outra e resultaram na sequência incompreensível das se-
guintes palavras:

Quando o trabalho acabou, meu tio rapidamente tomou o papel


no qual eu estava escrevendo e examinou atenciosamente por um longo
tempo.
— O que significa isto? — ele continuava repetindo mecanicamen-
te.
Juro pela minha honra que não seria capaz de esclarecer. De qual-
quer forma, ele não me questionou, e continuou falando consigo mes-
mo.
— Isto é o que chamamos de criptograma — ele disse — onde o sig-
nificado está escondido sob letras embaralhadas, que na ordem correta
resultaria em uma frase legível. Penso que aqui talvez haja a explicação
ou pista de uma grande descoberta!

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Particularmente, achava que ali não havia absolutamente nada,
mas é claro, tomei cuidado para não revelar minha opinião.
O professor tomou o livro e o pergaminho, e então comparou um
com o outro.
— Estes dois manuscritos não foram feitos pela mesma mão — ele
disse — o criptograma é mais recente que o livro e vejo uma prova ir-
refutável disso. A primeira letra é na verdade um “M” duplo, uma letra
que não se encontra no livro de Turleson porque ela só foi adicionada
ao alfabeto islandês no século XIV. Então, há, no mínimo, duzentos anos
entre o manuscrito e o documento.
Isto, admito, me parecia bem lógico.
— Portanto, sou levado a crer — continuou o meu tio — que um
dos donos deste livro escreveu estas letras misteriosas. Mas quem dia-
bos era esse dono? Será que ele não deixou o seu nome em algum lugar
do manuscrito?
Meu tio levantou os seus óculos, pegou uma lupa potente e exami-
nou minuciosamente as primeiras páginas do livro. No verso da folha
de rosto, ele descobriu um tipo de mancha que parecia uma espécie de
borrão de tinta. Mas olhando ela bem de perto, podia distinguir uns
tipos de letras meio apagadas. Meu tio percebeu que isto era um detalhe
interessante, então focou na mancha e, com a ajuda de sua lupa, identi-
ficou runas que ele leu sem hesitar.

[RUNAS ARNE SAKNUSSEMM]


— Arne Saknussemm! — exclamou em um tom de triunfo — Isso
é um nome! E ainda por cima um nome islandês! O nome de um sábio
do século XVI, um célebre alquimista1!
Olhei para o meu tio com certa admiração.
— Estes alquimistas — ele prosseguiu — Avicena, Bacon, Lúlio,
Paracelso, foram os verdadeiros e únicos sábios de seu tempo. Eles fize-
ram descobertas que nos deixam admirados. Por que este Saknussemm
não teria escondido alguma invenção surpreendente neste criptograma
incompreensível? Deve ser isto. É isto.
A imaginação do professor estava em chamas graças a essa hipó-
tese.

Viagem ao Centro da Terra 31


— Sem dúvida — ousei dizer — mas qual seria o interesse deste
sábio em esconder uma descoberta admirável desse jeito?
— Qual o interesse?! Qual o interesse?! Como eu iria saber? Ga-
lileu não fez o mesmo sobre Saturno? E além do mais, veremos. Irei
desvendar o segredo desse documento e não irei comer ou dormir até
descobrir.
“Então tá...”, pensei.
— Nem você, Axel! — ele adicionou.
— Diabos! — falei baixinho. “Ainda bem que jantei por dois!”
— Primeiramente — disse meu tio — devemos descobrir a língua
desse criptograma. Isso não deve ser tão difícil.
Ao ouvir isso, rapidamente levantei minha cabeça. Meu tio conti-
nuou seu solilóquio:
— Nada é mais fácil. Há cento e trinta e três letras neste documen-
to, oitenta e uma consoantes e cinquenta e duas vogais. Bem, as palavras
das línguas meridionais são formadas mais ou menos com essas propor-
ções, enquanto que as línguas do norte são infinitamente mais ricas em
consoantes. Portanto, esta deve ser uma língua meridional.
Essas conclusões eram bem justas.
— Mas que língua é essa?
Eu esperei para ver como o sábio se sairia, e fui surpreendido por
uma profunda análise.
— Este Saknussemm — prosseguiu — era um homem instruído.
Bem, sendo que ele não estava escrevendo em sua língua materna, ele
iria naturalmente escolher a língua que era usada pelas mentes culti-
vadas do século XVI, ou seja, o latim. Se estou enganado, posso tentar
espanhol, francês, italiano, grego ou hebreu. Mas os estudiosos do sé-
culo XVI geralmente escreviam em latim. Tenho portanto o direito de
declarar a priori: isto é latim.
Pulei de minha cadeira. Minhas memórias de latim se revoltaram
contra a suposição que esta sequência de letras barrocas poderia perten-
cer a doce língua de Virgílio2.
— Sim, é latim — prosseguiu meu tio — mas embaralhado.
“Boa sorte”, pensei. “Se você conseguir desembaralhar isto, meu tio,
você é um homem sagaz”.
— Vamos examinar com cuidado — ele disse, pegando o papel no
qual eu havia escrito. — Aqui está uma série de cento e trinta e três letras

Viagem ao Centro da Terra 32


em aparente desordem. Há palavras que consistem de apenas conso-
antes, como a primeira, “mm.rnlls”, e outras onde as vogais predomi-
nam, por exemplo a quinta, “unteief ”, ou a penúltima, “oseibo”. Bem,
este arranjo obviamente não foi planejado: surgiu matematicamente
como consequência de uma regra desconhecida que determina a ordem
destas letras. Me parece certo que as frases originais foram escritas nor-
malmente, e então embaralhadas de acordo com a regra que temos que
descobrir. Aquele que possuir a chave deste criptograma, poderá ler
fluentemente. Mas que chave é essa? Axel, você tem esta chave?!
Não disse uma palavra em resposta a esta pergunta, por uma boa
razão. Meu olhar havia caído sobre o charmoso retrato na parede, um
retrato de Graüben. A pupila de meu tio estava neste momento em Al-
tona, junto de uma parente, e sua ausência me fazia muito triste por-
que, devo confessar agora, a bela virlandesa e o sobrinho do professor
se amavam com total paciência e tranquilidade alemã. Nos tornamos
noivos sem o conhecimento de meu tio, que era geólogo demais para
entender tais sentimentos. Graüben era uma charmosa loira de olhos
azuis, de personalidade um tanto forte e de um espírito sério, mas isso
não fazia ela me amar menos. Por minha vez, eu a adorava, se é que
havia tal verbo para isso na língua alemã! Então, o retrato da minha
linda virlandesa imediatamente me tirou da realidade e me levou para o
mundo das quimeras e lembranças.
Eu vi a fiel companheira de meus trabalhos e meus prazeres no-
vamente. Ela me ajudava a pôr as preciosas rochas de meu tio em or-
dem, etiquetando-as comigo. Uma talentosa mineralogista, a senhorita
Graüben! Poderia ensinar algumas coisas para mais de um estudioso.
Ela gostava de investigar questões complexas da ciência. Que horas do-
ces passamos estudando juntos! E como eu invejava a sorte daquelas
insensíveis pedras que ela manejava em suas encantadoras mãos!
E então, quando vinham nossas horas de lazer, saíamos juntos, ca-
minhávamos pelas frondosas avenidas ao lado do Rio Alster, e íamos até
o velho moinho coberto por alcatrão que parecia tão belo na beira do
lago. Pelo caminho, conversávamos de mãos dadas. Eu contava coisas
que a faziam rir da sua melhor maneira. Ao chegar às margens do Elbe
e depois de nos despedir dos cisnes que flutuavam pelos grandes nenú-
fares brancos, retornávamos ao cais pelo barco a vapor.

Viagem ao Centro da Terra 33


Viagem ao Centro da Terra 34
Bem, havia chegado até esse ponto em meus sonhos quando meu
tio me trouxe violentamente de volta à realidade ao bater suas mãos na
mesa.
— Vejamos — ele disse — a primeira ideia que me vem à mente
para embaralhar as letras de uma frase, me parece, é escrever as palavras
verticalmente em vez de horizontalmente.
“De fato!”, pensei.
— Agora vejamos qual seria o resultado. Axel, escreva uma frase
qualquer nesse pedaço de papel, mas em vez de dispor as letras uma
atrás da outra, as posicione sucessivamente em colunas verticais, de
modo a formar grupos de cinco ou seis.
Entendi o que ele queria e, imediatamente, escrevi de cima a baixo:

Viagem ao Centro da Terra 35


— Bom — disse o professor, sem ler. — Agora escreva essas pala-
vras em uma linha horizontal.
Obedeci, e obtive a seguinte frase:

— Perfeito! — disse meu tio, arrancando o papel de minhas mãos.


— Isto já se assemelha ao velho documento: vogais e consoantes na mes-
ma desordem. Há até mesmo letras maiúsculas no meio das palavras, e
vírgulas também, assim como no pergaminho de Saknussemm!
Não pude deixar de achar essas observações muito engenhosas.
— Agora — disse meu tio, me olhando diretamente — para ler a
frase que você escreveu, que eu não conheço, tudo que devo fazer é pe-
gar a primeira letra de cada palavra, então a segunda, a terceira e assim
por diante.
E o meu tio, para seu grande espanto, e acima de tudo, o meu, leu:

Amo você, minha pequena Graüben!

— Mas o quê? — disse o professor.


Sim, sem me dar conta, como um amante desastrado, eu havia es-
crito essa frase comprometedora!
— Ah! Você ama a Graüben? — ele disse em um tom fraternal.
— Sim… Não… - balbuciei.
— Ah! Você ama a Graüben! — ele repetiu mecanicamente — Bem,
vamos aplicar o procedimento ao documento em questão!
Meu tio, voltando para a sua absorvente contemplação, já havia es-
quecido de minhas palavras descuidadas. Eu digo “descuidadas,” pois a
mente do sábio não conseguia compreender estes dilemas do coração.
Mas, felizmente, o assunto do documento venceu.
No momento de seu principal experimento, os olhos do Profes-
sor Lidenbrock brilharam através de seus óculos. Seus dedos tremiam
enquanto ele segurava novamente o velho pergaminho. Ele estava ver-
dadeiramente mexido. Por fim, ele tossiu fortemente, e com uma grave
voz, disse a primeira, e então a segunda letra de cada palavra, uma após
a outra, me ditou a seguinte sequência:

Viagem ao Centro da Terra 36


Quando cheguei ao fim, devo admitir estar animado. Estas letras,
pronunciadas uma por uma, não haviam formado nenhum sentido em
minha mente. Esperava, portanto, que o professor deixasse escapar uma
magnífica frase em latim de seus lábios.
Mas quem teria previsto! Uma violenta pancada sacudiu a mesa.
A tinta foi derramada e a caneta caiu de meus dedos.
— Não é isso! — meu tio berrava — Isso não faz sentido!
E então, atravessando o escritório como uma bala de canhão, des-
cendo a escadaria como uma avalanche, ele se apressou para a Königs-
trasse e correu a toda velocidade.

1- Os cientistas da antiguidade tinham objetivos fantasiosos como a criação de uma Pedra


Filosofal ou um Elixir da Vida. Mas, suas obsessões por respostas impossíveis se comparavam
à busca do professor.

2-Este poeta romano é um pilar da literatura latina, nasceu 70 anos antes de Cristo
e é responsável pela Eneida, uma das maiores clássicos do latim.

Viagem ao Centro da Terra 37


Capítulo 4
SENHOR DOS SEGREDOS
4. SENHOR DOS SEGREDOS

— Ele já saiu? — exclamou Martha, se apressando ao som da porta,


fechada tão violentamente que sacudiu toda a casa.
— Sim. — respondi — Ele já se foi!
— Está bem, mas e o jantar? — perguntou a velha empregada.
— Ele não irá jantar.
— E a ceia?
— Não vai comer!
— Como? — disse Martha, juntando as mãos.
— Não, cara Martha, ele não vai mais comer, e nenhuma outra
pessoa nesta casa irá! Meu tio Lidenbrock nos colocou em jejum até
o momento em que ele decifrar um velho livro, que é absolutamente
indecifrável!
— Jesus! Vamos todos morrer de fome então!
Eu não ousei admitir que com alguém tão estrito quanto meu tio,
esse seria um destino inevitável.
A velha empregada, seriamente preocupada, retornou à cozinha
murmurando lamentos.
Quando estava sozinho, me veio a ideia de ir contar tudo a Graüben.
Mas como sairia de casa? O professor poderia retornar a qualquer ins-
tante. E se me chamasse? E se quisesse retornar ao trabalho logogrífico,
que mesmo que proposto ao velho Édipo não seria resolvido! E se eu
não respondesse ao seu chamado, o que seria de mim?
O mais sábio era esperar. Justamente, um mineralogista de Besan-
çon havia acabado de nos enviar uma coleção de geodos siliciosos que
precisavam de classificação. Me meti ao trabalho. Fiz a triagem, etique-
tei e organizei nas vitrines todas as pedras ocas, dentro das quais se fes-
tejavam pequenos cristais.
Mas essa ocupação não me absorveu por completo. O caso do ve-
lho documento, estranhamente, não deixava de me preocupar. Minha
mente fervia e eu me sentia tomado por um vazio inquietante. Eu tinha
o pressentimento de que uma catástrofe se aproximava.

Viagem ao Centro da Terra 40


Depois de uma longa hora, meus geodos já estavam empilhados
e ordenados. Deixei-me, então, repousar sobre a grande poltrona de
Utrecht, com os braços caídos e cabeça recostada. Acendi meu longo
cachimbo de haste curva, o fornilho esculpido apresentava uma náia-
de1 casualmente deitada. Me entreti com o avanço da carbonização,
que pouco a pouco transformou minha náiade em uma negra resoluta.
De tempos em tempos me concentrava para o som de qualquer passo
na escada. Mas não. Onde poderia estar meu tio nesse momento? Eu o
imaginei correndo sob as belas árvores da estrada de Altona, gesticulan-
do, acertando os muros com sua bengala, atacando as plantas violenta-
mente, decapitando os cardos, e importunando o repouso das solitárias
cegonhas.
Entraria em casa triunfante ou desencorajado? Quem venceria, o
enigma ou ele? Eu me questionei e, sem mesmo notar, peguei em meus
dedos a folha de papel na qual se estendia a incompreensível série de
letras traçadas por mim. E repeti para mim mesmo:
— O que será que isso significa?
Eu tentei agrupar essas letras de uma maneira que formassem pala-
vras. Impossível! Mesmo quando as reunia em grupos de duas, três, ou
cinco, ou seis, elas não me diziam absolutamente nada inteligível. Havia,
de fato, as décima quarta, décima quinta e décima sexta letras que for-
mavam a palavra inglesa Ice. A octogésima quarta, octogésima quinta e
octogésima sexta também formavam a palavra Sir. Enfim, no corpo do
documento, e na terceira linha, eu percebi também as palavras latinas
rota, mutabile, ira, nec, atra.
— Diabos! — pensei — Essas últimas palavras parecem dar razão
ao meu tio quanto ao idioma do documento! E, também, na quarta li-
nha vejo a ainda a palavra luco que pode ser traduzida como “bosque
sagrado”. É verdade que, também na terceira linha, pode-se ler a palavra
tabiled, que soa perfeitamente como hebraico, e, já na última, os vocá-
bulos mer, arc, mère, puramente franceses.
Era o suficiente para se perder! Quatro idiomas diferentes dentro
da mesma frase absurda! Que relação poderia existir entre as palavras
gelo, senhor, cólera, cruel, bosque sagrado, mutável, mãe, arco e mar? A
primeira e a última se relacionam facilmente: nada surpreendente que,
um documento escrito na Islândia, faria menção a um “mar de gelo”.

Viagem ao Centro da Terra 41


Mas até aí, entender o resto do criptograma é uma coisa completamente
diferente.
Eu batia a cabeça contra um problema insolucionável. Meu cérebro
esquentava e meus olhos secavam encarando a folha de papel. As cento
e trinta e três letras pareciam rodopiar ao meu redor, como gotículas
prateadas que deslizam ao redor de nossas cabeças quando o sangue
corre rápido demais.
Eu estava preso em uma alucinação sufocante, me faltava ar. Come-
cei a me abanar com a folha de papel, fazendo com que a frente e o verso
se sobrepusessem constantemente na minha visão.
Tamanha foi a minha surpresa quando, numa dessas rápidas re-
viravoltas, no momento em que o verso se voltava para mim, acreditei
ter visto palavras perfeitamente legíveis surgirem, palavras latinas, entre
outras, craterem e terrestre!
De repente, como um lampejo, meu espírito se iluminou, essas pis-
tas foram suficientes para que eu tivesse um vislumbre da verdade. Eu
descobri o segredo da cifra. Para compreender o documento não era
sequer necessário lê-lo através do verso da folha! Não. Tal como estava,
tal como me fora ditado, poderia ser corretamente soletrado. Todas as
combinações engenhosas do professor estavam certas. Ele estava certo
sobre o arranjo das letras, sobre o idioma do documento! Faltou um
“nada” para que ele pudesse ler a frase latina de ponta a ponta. E o acaso
acabava de me entregar esse “nada”.
É compreensível que eu tenha me emocionado! Meus olhos ficaram
turvos, e isso não me servia de nada. Deixei a folha de papel estirada
sobre a mesa e me bastava um olhar claro sobre ela para que eu me tor-
nasse senhor de seus segredos.
Quando finalmente me senti livre da agitação ainda me forcei a dar
duas voltas ao redor da sala para acalmar os nervos, e novamente mer-
gulhei na vasta poltrona.
— Leiamos — disse a mim mesmo, depois de respirar profunda-
mente.
Debrucei-me sobre a mesa e me pus a acompanhar as letras com o
dedo, uma a uma, sem hesitar um momento, e pronunciei toda a frase
em voz alta.

Viagem ao Centro da Terra 42


Mas que espanto e que terror me invadiram! Me senti como se ti-
vesse sido atingido por um golpe repentino. O quê?! O que eu acabei de
ler havia sido feito?! Um homem teve a audácia de entrar?!
— Sem chance! — gritei — De forma alguma! Não! Meu tio não
pode saber disso! Era só o que faltava ele descobrir sobre uma viagem
dessas, e pior, ele vai querer prová-la! Nada poderia deter esse geólogo
determinado! Ele iria de qualquer jeito, apesar dos pesares e indepen-
dente de qualquer coisa! E ele me levaria com ele! Ai meu Deus, e nós
não voltaríamos nunca, jamais!
Eu estava em um frenesi difícil de reproduzir.
— Não, não! Isso não vai acontecer! — eu disse energeticamente —
E se eu puder evitar que tal ideia sequer passe pela mente de meu tirano
eu irei. De tanto revirar o documento ele pode acabar descobrindo o
segredo. Tenho que destruí-lo!
Havia um resquício de fogo na lareira. Peguei não apenas a folha de
papel, mas também o pergaminho de Saknussemm. Com a mão febril
eu estava prestes a jogar tudo na brasa e destruir esse segredo perigoso.
Mas a porta do escritório se abriu. Meu tio apareceu.

1- São as famosas ninfas de água doce na mitologia grega, com seu dom de cura e uma voz
doce, dei como um bom ornamento para meus momentos de relaxamento.

Viagem ao Centro da Terra 43


Capítulo 5
A CHAVE
5. A CHAVE

Quase não tive tempo de substituir o infeliz documento sobre a


mesa.
O Professor Lidenbrock parecia estar profundamente absorto. Seu
pensamento dominante não lhe dava trégua. Evidentemente, ele havia
adentrado profundamente no problema, analiticamente e com profun-
da inspeção. Ele havia levado todos os recursos de sua mente para pon-
derar durante sua caminhada e havia retornado para testar alguma nova
combinação.
De fato, ele se sentou em sua poltrona e, com a pena em mão, co-
meçou a montar fórmulas que pareciam um cálculo algébrico.
Segui com o olhar suas mãos trêmulas, sem perder nenhum de
seus movimentos. Sairia dali um resultado inesperado? Tremi também,
e sem razão, já que a verdadeira e única combinação estava em minhas
mãos, e qualquer outra tentativa seria em vão.
Durante três longas horas meu tio trabalhou em silêncio, sem le-
vantar a cabeça, apagando, recomeçando e apagando de novo e de novo
milhares de vezes.
Eu sabia bem que, caso ele conseguisse dispor essas letras em to-
das as possíveis posições relativas, a frase se revelaria. Mas sabia tam-
bém que apenas vinte letras seriam capazes de formar dois quintilhões,
quatrocentos e trinta e dois quatrilhões, novecentos e dois trilhões, oito
bilhões, cento e setenta e seis milhões, seiscentos e quarenta mil combi-
nações. Ora, havia cento e trinta e duas letras nesta frase, e estas centro
e trinta e duas letras formariam um número de tantas outras frases for-
mado por pelo menos cento e trinta e três cifras, um número pratica-
mente impossível de enumerar e que escapa qualquer apreciação.
Estava tranquilo quanto a este heroico método de resolver o pro-
blema.
Contudo, o tempo passava. A noite caiu. Os barulhos da rua se apa-
ziguaram. Meu tio, curvado sobre sua tarefa, não percebeu nada, nem
mesmo Martha entreabrindo a porta. Ele não escutava um pio, nem
mesmo a voz de sua digna governanta dizendo:

Viagem ao Centro da Terra 46


— O senhor jantará essa noite?
A pobre Martha teve que sair sem resposta. Quanto a mim, após
uma longa resistência, fui tomado pelo sono, e adormeci num canto do
sofá, enquanto meu tio Lidenbrock continuava com seus cálculos e ra-
suras.
Quando acordei na manhã seguinte, o incansável trabalhador se-
guia firme em sua tarefa. Seus olhos vermelhos, sua pele pálida, sua mão
febril entrelaçada por seus cabelos e suas bochechas coradas indicavam
sua terrível luta contra o impossível, e com o espírito cansado e a mente
exausta as horas se passaram para ele.
Sentia pena dele, de verdade. Apesar das represálias que me achava
no direito de fazer a ele, uma certa emoção me ganhou. O pobre homem
estava tão tomado por sua ideia que até mesmo esqueceu de ficar bravo.
Todas suas forças vitais estavam concentradas em um único ponto, e
como sua válvula costumeira estava fechada, era pra se temer que sua
tensão o levasse a explodir a qualquer momento.
Eu poderia soltar os grilhões de ferro que apertavam seu cérebro
com um gesto, com apenas uma palavra! Mas eu não fiz nada.
Ainda assim, eu possuía um bom coração. Por que permaneci
mudo diante de tal crise? Pelo bem de meu tio.
“Não, não” — eu repetia — “não, não vou falar! Ele insistiria em
ir, conheço bem ele. Nada na Terra seria capaz de impedi-lo. Ele tem
uma imaginação vulcânica, e arriscaria sua própria vida para fazer o
que outros geólogos jamais fizeram. Manterei em silêncio. Manterei o
segredo que o acaso havia revelado a mim. Revelar isso seria a morte
do Professor Lidenbrock! Deixe-o descobrir se for capaz. Não quero me
arrepender um dia de o ter levado à sua destruição”.
Tendo tomado esta decisão, cruzei os braços e esperei. Mas eu não
antecipava um pequeno incidente que ocorreu algumas horas depois.
Quando a governanta Martha quis sair de casa para ir ao mercado,
encontrou a porta trancada. A grossa chave não se encontrava na fe-
chadura. Quem poderia ter tirado? Certamente foi meu tio, quando ele
voltou na noite anterior de sua apressada caminhada.
Isso foi feito de propósito? Ou foi sem querer? Ele queria nos expor
a fome? Isto parecia ir longe demais! O quê? Martha e eu merecíamos
ser vítimas de uma situação que não nos era respeito? Era fato que, al-

Viagem ao Centro da Terra 47


guns anos atrás, enquanto meu tio trabalhava em sua grande classifica-
ção de minerais, ele ficou quarenta e oito horas sem comer, e todos seus
hóspedes foram obrigados a participar desse jejum científico. Quanto a
mim, lembro que fiquei com severas cólicas, que dificilmente se adequa-
ram à constituição de um faminto rapaz em fase de crescimento.
Pelo visto não haveria desjejum, assim como não houve jantar na
noite anterior. Ainda assim, resolvi ser um herói, e não ser conquistado
pelas pontadas de fome. Martha levou isso muito a sério e a pobre mu-
lher estava muito angustiada. Já eu, a impossibilidade de sair de casa me
preocupava ainda mais, e por uma boa razão. Você me entende.
Meu tio seguiu trabalhando, sua imaginação se perdia no mundo
ideal das combinações. Ele vivia bem longe da Terra, e genuinamente
além das necessidades mundanas.
Por volta do meio-dia, a fome começou a me espetar severamente.
Martha havia, sem más intenções, devorado a dispensa na noite ante-
rior, então agora não havia mais nada na casa. Mesmo assim, resisti. Fiz
disso uma questão de honra.
Soaram as duas horas. Isto estava ficando ridículo. Pior que isso, in-
suportável. Abri amplamente meus olhos. Comecei a dizer a mim mes-
mo que eu estava exagerando a importância do documento. Que meu
tio certamente não acreditaria nele, que ele iria deixá-lo de lado como
um mero quebra-cabeças. E na pior das hipóteses, nós o deteríamos
contra sua vontade caso ele quisesse se arriscar nessa aventura. Isso se,
depois de tudo, ele descobrisse a chave da cifra por si só, e que eu teria
sofrido de abstinência por nada.
Essas razões me pareciam excelentes, mesmo que na noite anterior
eu as teria rejeitado com indignação. Até achei um completo absurdo ter
que esperar tanto tempo e tomei a decisão de contar tudo.
Estava pensando em uma maneira de trazer o assunto à tona que
não fosse tão abrupto quando o professor pulou, colocou seu chapéu e
se preparou para sair.
O quê?! Saindo e nos trancando de novo? Nunca.
— Tio! — disse.
Ele parecia não ter me ouvido.
— Tio Lidenbrock? — repeti, falando mais alto.
— O quê? — ele disse, como alguém acordando de repente.

Viagem ao Centro da Terra 48


— Bem! A chave?
— Que chave? A chave da porta?
— Não! — exclamei — A chave do documento!
O professor me encarou sobre seus óculos, sem dúvida ele viu algo
incomum em minha fisionomia, pois ele tomou meu braço e me ques-
tionou com seus olhos sem ser capaz de falar. De qualquer forma, nunca
havia sido uma pergunta tão clara.
Acenei com a cabeça pra cima e pra baixo.
Ele balançou a sua com piedade, como se estivesse lidando com um
lunático.
Fiz um gesto mais afirmativo.
Seus olhos brilharam com um vívido clarão, suas mãos me amea-
çando.
Esta conversa muda iria, nas atuais circunstâncias, ter interessado
até mesmo o mais indiferente dos espectadores. E a verdade é que eu
não me atrevia a falar nada mais, de tanto que eu temia que meu tio me
sufocaria em seu abraço de felicidade. Mas ele ficou tão insistente que
fui obrigado a responder.
— Sim, essa chave, o acaso…
— O que você está dizendo? — ele gritou com emoção indescritível.
— Aqui, leia isto! — disse, dando a ele o pedaço de papel no qual
eu havia escrito.
— Mas isto não significa nada! — ele respondeu, amassando o pa-
pel.
— Nada, se você começa a ler pelo começo, mas, pelo fim...
Eu mal havia terminado minha frase quando o professor soltou um
grito, mais que um grito, um verdadeiro rugido! Uma revelação tomara
espaço em sua mente. Ele estava transfigurado.
— Aha! Engenhoso Saknussemm! — exclamou — Então primeiro
você escreveu sua frase ao contrário?
Precipitando-se sobre o papel, com o olhar conturbado e a voz me-
xida, leu o documento por inteiro, da última letra até a primeira.

Viagem ao Centro da Terra 49


Estava escrito da seguinte maneira:

Deste mal latim, pode se traduzir:

Desça na cratera do Sneffels Yocul cuja sombra do Scartaris toca


antes das calendas de Julho, audaz aventureiro, e irá alcançar o centro da
Terra. Foi o que fiz. Arne Saknussemm.

Ao ler isso, meu tio saltou como se tivesse tocado sem querer em
uma garrafa de Leyden1. Sua audácia, sua alegria e sua convicção eram
incríveis de se ver. Ele veio e foi. Ele segurava sua cabeça com ambas
as mãos. Ele empurrava as cadeiras de seus lugares e empilhava livros.
Incrivelmente, ele fazia malabarismo com seus preciosos geodos. Chu-
tava aqui, esbarrava ali. Por fim, seus nervos se acalmaram e, como um
homem exausto pelo grande gasto de poder vital, afundou em sua pol-
trona.
— Que horas são? — perguntou após uns momentos de silêncio.
— Três da tarde — respondi.
— É mesmo? Meu jantar passou rapidamente. Estou faminto! Va-
mos comer. E então...
— Então?
— Você fará minha mala.
— O quê? — exclamei.
— E a sua! — respondeu o impiedoso professor e entrou na sala de
jantar.

1-Um dispositivo inventado acidentalmente por um professor de Leiden, nos Países Baixos, que
é capaz de armazenar energia elétrica.

Viagem ao Centro da Terra 50


Capítulo 6
HIPÓTESES E TEORIAS
6. HIPÓTESES E TEORIAS

A essas palavras, um arrepio percorreu meu corpo. Contudo, me


contive. Até decidi manter as boas aparências. Apenas argumentos cien-
tíficos funcionaram com o Professor Lidenbrock. Ora, havia uns bons
contra a possibilidade de tal viagem. Ir ao centro da Terra! Que loucura!
Mas guardei minha dialética para um momento oportuno e me ocupei
de minha refeição.
É inútil reportar as imprecações de meu tio diante da mesa vazia.
Tudo foi explicado. A liberdade foi devolvida a boa Martha. Ela correu
para o mercado, e o fez tão bem que, uma hora mais tarde, minha fome
foi acalmada e retornei ao sentimento da situação.
Durante a refeição, meu tio estava praticamente alegre. Escapavam
dele essas piadas de sábios que não faziam mal a ninguém. Após a sobre-
mesa, me fez um sinal para segui-lo ao seu escritório.
Obedeci. Ele se sentou em uma das pontas da mesa de trabalho e
eu, na outra.
— Axel — ele disse em uma voz bem suave — você é um rapaz
engenhoso e me fez um serviço honrado quando eu, vencido pela bata-
lha, já abandonaria as combinações. Onde eu me perderia? Impossível
saber! Nunca, meu rapaz, irei esquecer. E você terá a sua parte na glória
que a sua descoberta irá alcançar.
“Oras” — pensei — “ele está de bom humor. Este é o momento para
discutir essa glória”.
— Antes de mais nada — meu tio prosseguiu — recomendo que
mantenha segredo absoluto, me entende? Não são poucos os invejosos
no mundo dos sábios. Muitos estariam dispostos a empreender essa via-
gem e é melhor que só saibam dela ao retornarmos.
— Você acredita que existem tantas pessoas ousadas o bastante?
— Certamente! Quem hesitaria em obter tal fama? Se esse docu-
mento fosse divulgado, um exército inteiro de geólogos iria correr sobre
as pegadas de Arne Saknussemm!
— Isso é algo que não me convence, meu tio, porque nada prova a
autenticidade deste documento.

Viagem ao Centro da Terra 53


— Como?! E o livro no qual o descobrimos?
— Bem, concordo que Saknussemm pode ter escrito estas linhas.
Mas será que ele realmente prosseguiu com tal viagem? E este velho
pergaminho não poderia ser uma mistificação?
Quase me arrependi de proferir esta última, um tanto arriscada,
palavra. O professor franziu suas grossas sobrancelhas e eu temi ter
comprometido o restante dessa conversa. Felizmente, não saiu como
esperava. Meu severo interlocutor esboçava uma espécie de sorriso em
seus lábios e respondeu:
— É o que veremos.
— Ah. — disse um pouco incomodado — Permita-me esgotar to-
das as possíveis objeções a respeito do documento.
— Fale, meu garoto, não se contenha. Eu lhe dou total liberdade
para expressar a sua opinião. Você não é mais meu sobrinho, e sim meu
colega. Então, prossiga.
— Bem, primeiramente irei lhe perguntar o que são Yocul, Sneffels
e Scartaris, cujo nunca ouvi falar.
— Nada mais fácil. Por um acaso, eu recebi um mapa a um tempo
atrás do meu amigo Augus-
tus Peterman1 de Leipzig.
Não poderia ter chegado em
melhor hora. Pegue o tercei-
ro atlas na segunda seção da
grande estante, série Z, pra-
teleira 4.
Me levantei e, graças às
instruções precisas, rapida-
mente encontrei o atlas soli-
citado. Meu tio o abriu:
— Este é um dos me-
lhores mapas da Islândia, o
de Henderson2, e creio que
ele irá nos fornecer a solução
de todos os seus questiona-
mentos.
Me inclinei sobre o
mapa.

Viagem ao Centro da Terra 54


— Veja esta ilha composta de vulcões — disse o professor — e perceba
que todos carregam o nome Yokul. Isto significa “geleira” em islandês e, na
latitude elevada da Islândia, a maioria das erupções emergem através de
camadas de gelo. Daí o nome Yokul, aplicado a todos os montes ignívomos
da ilha.
— Certo — respondi — mas o que é Sneffels?
Eu esperava que não haveria resposta a essa pergunta. Estava engana-
do. Meu tio continuou:
— Siga-me pela costa ocidental da Islândia. Está vendo Reykjavik, a
capital? Sim. Bom. Suba junto dos incontáveis fiordes dessa costa roída
pelo mar e pare um pouco antes dos sessenta e cinco graus de latitude. O
que você vê?
— Uma espécie de península parecida com um osso exposto, que ter-
mina em uma enorme rótula.
— A comparação é justa, meu rapaz. Agora, você vê algo nesta rótula?
— Sim, um monte que parece ter brotado do mar.
— Bom! Este é o Sneffels.
— O Sneffels?
— O próprio, uma montanha de mil e quinhentos metros de altura,
uma das mais notáveis da ilha e definitivamente será a mais famosa do
mundo, se a sua cratera leva ao centro do globo.
— Mas é impossível! — disse erguendo meus ombros em protesto
contra tal suposição.
— Impossível? — disse o Professor Lidenbrock severamente. — Por
que seria?
— Porque esta cratera obviamente está bloqueada por lava, rochas
escaldantes e...
— E se for uma cratera inativa?
— Inativa?
— Sim. O número de vulcões ativos atualmente não é maior que tre-
zentos, mas o número de inativos é muito maior. Ora, o Sneffels cai na
última categoria, e nos tempos históricos, teve apenas uma erupção, a de
1219. Desde então, seus estrondos vêm se apaziguando pouco a pouco, e
não é mais considerado um vulcão ativo.
Eu não tinha resposta para todas essas afirmações positivas, então caí
sobre as outras obscuridades acerca do documento.

Viagem ao Centro da Terra 55


— Mas o que significa essa palavra “Scartaris” e o que as calendas
de Julho têm a ver com isso?
Meu tio refletiu por alguns segundos. A minha esperança retornou
por um momento, mas apenas por um momento, pois logo ele me res-
pondeu o seguinte:
— O que você chama de obscuridade para mim é bem claro. Prova
o cuidado e a engenhosidade que Saknussemm quis indicar sua des-
coberta. O Sneffels é composto por várias crateras, portanto foi neces-
sário indicar qual delas que leva ao centro do globo. O que fez o sábio
islandês? Ele observou que com as calendas de Julho chegando, ou seja,
próximo do final de Junho, um dos picos da montanha, o Scartaris, pro-
jetava sua sombra até a abertura da cratera que falamos e ele anotou este
fato em seu documento. Poderia ele ter imaginado uma forma mais pre-
cisa de indicação e, assim que estivermos no pico do Sneffels, nos será
possível hesitar quanto a qual caminho tomar?
Decididamente meu tio tinha respostas para tudo. Vi bem que ele
estava indiscutível quanto às palavras do velho pergaminho. Então, pa-
rei de pressioná-lo quanto a esse assunto e, já que a coisa mais impor-
tante era convencê-lo, me voltei para as objeções científicas, bem mais
sérias ao meu ponto de vista.
— Vamos lá, sou forçado a aceitar que a mensagem de Saknussemm
é clara e não pode deixar dúvidas. Até mesmo admito que o documento
aparenta ser perfeitamente autêntico. Então, este sábio foi ao fundo do
Sneffels, ele viu a sombra do Scartaris se prolongando sobre a margem
da cratera pouco antes das calendas de Julho, provavelmente ele até ou-
viu contarem as histórias lendárias de seu tempo dizendo que a cratera
levava ao centro da Terra. Mas quanto a se ele mesmo desceu lá, se ele
prosseguiu a jornada e retornou, se ele ao menos tentou, não, centenas
de vezes, não!
— E qual é a razão? — perguntou meu tio em um tom singular-
mente zombeteiro.
— Porque todas as teorias científicas demonstram que tal emprei-
tada é impossível!
— Todas as teorias dizem isso? — respondeu o professor, assu-
mindo uma aparência bem intencionada. — Ah essas teorias danadas.
Como elas vão nos atrapalhar, essas pobres teorias!

Viagem ao Centro da Terra 56


Percebi que ele estava zombando de mim, mas prossegui mesmo
assim.
— Sim, é perfeitamente reconhecido que a temperatura aumenta
aproximadamente um grau centígrado para cada vinte e um metros de
profundidade que você desce da superfície do globo. Agora, assumin-
do que esta proporção permanece constante, e considerando que o raio
da Terra é de aproximadamente seis mil quilômetros, a temperatura no
centro será maior que duzentos mil graus. As substâncias no núcleo da
Terra existem, portanto, em um estado de gases incandescentes, pois até
mesmo metais como ouro ou platina e as mais duras rochas não podem
resistir a tal temperatura. Minha pergunta de que se é possível penetrar
em tal ambiente é consequentemente válida.
— Então, Axel, é o calor que te incomoda?
— Sem dúvidas. Se fôssemos atingir uma profundidade de apenas
quarenta quilômetros, atingiríamos o limite da crosta terrestre e a tem-
peratura já seria superior a mil e quatrocentos graus.
— E você tem medo de entrar em fusão?
— Vou deixar a questão para você decidir — respondi mal humo-
rado.
— Irei dizer o que decido — disse o Professor Lidenbrock, assumin-
do um ar importante — que nem você e nem ninguém sabe exatamente
o que acontece no interior da Terra, dado que conhecemos apenas doze
milésimos de seu raio. Que a ciência é eminentemente aperfeiçoável e
que cada teoria existente é constantemente substituída por uma nova.
Não se acreditava, antes de Fourier3, que a temperatura do espaço inter-
planetário decrescia indefinidamente e não se sabe agora que a menor
temperatura nas regiões etéreas não ultrapassa os quarenta ou cinquen-
ta graus negativos? Por que o mesmo não se aplica ao calor interno? Por
que não se encontra um limite em determinada profundidade que não
pode ser ultrapassado, ao invés de atingir o ponto em que o mais refra-
tário dos minerais se liquefaz?
Visto que meu tio colocou a questão no terreno das hipóteses, eu
não tinha resposta para dar.
— Bem, Axel, posso lhe dizer que verdadeiros cientistas, entre eles,
Poisson4, provaram que se a temperatura de duzentos mil graus real-
mente existisse dentro do globo, os gases incandescentes produzidos
pela fusão de sólidos iriam adquirir tal força que a crosta terrestre não

Viagem ao Centro da Terra 57


poderia resistir e explodiria como as paredes de uma caldeira sobre a
pressão do vapor.
— É a opinião de Poisson, meu tio, nada mais.
— De acordo, mas também é a opinião de outros distintos geólogos
que o interior do globo não é formado de gases, nem de água, nem das
mais pesadas rochas que conhecemos. A razão para isto é que, se fosse,
a Terra só pesaria metade do que realmente pesa.
— Ah, com os números se prova tudo!
— E com os fatos, meu garoto, se dá o mesmo? Não é verdade que
o número de vulcões tem diminuído consideravelmente desde os pri-
meiros dias do mundo? E se realmente há calor no centro, não se pode
assumir que este também tende a se extinguir?
— Meu tio, se o senhor entrar no campo das suposições não há
mais nada que eu possa dizer.
— E eu devo dizer que minha opinião é compartilhada por figuras
muito competentes. Você se lembra da visita que o famoso químico bri-
tânico Sir Humphry Davy5 me fez em 1825?
— De jeito nenhum, visto que só vim ao mundo dezenove anos
mais tarde.
— Bem, Sir Humphry veio me ver enquanto passava por Hambur-
go. Entre outras coisas, tivemos uma longa discussão sobre a hipótese
de que o núcleo interno da Terra era líquido. Nós dois concordamos
que esse estado líquido não poderia existir, por uma razão que a ciência
jamais achou a resposta.
— E que razão é esta? — disse um tanto atônito.
— Porque a massa líquida estaria sujeita, assim como o oceano, a
atração da Lua, produzindo assim marés internas duas vezes por dia, o
que empurraria a crosta terrestre causando terremotos periódicos.
— Mas é evidente, portanto, que a superfície do globo já foi exposta
a combustão, e se pode supor que a crosta exterior esfriou rapidamente
enquanto o calor recuava para o centro.
— Está enganado. A Terra foi aquecida pela combustão em sua
superfície, não o contrário. A superfície era composta de uma grande
quantidade de metais tais como potássio e sódio, que têm a propriedade
de pegar fogo assim que entram em contato com o ar e com a água. E

Viagem ao Centro da Terra 58


estes metais começaram a queimar quando o vapor de água na atmos-
fera caiu no solo como chuva. Pouco a pouco, enquanto a água abria
caminho pelas rachaduras da crosta terrestre, ela produzia mais fogo,
explosões e erupções. Daí o grande número de vulcões durante os pri-
meiros dias do mundo.
— Mas que hipótese engenhosa! — exclamei um pouco a contra-
gosto.
— E Sir Humphry me fez entendê-la, aqui mesmo, através de um
experimento bem simples. Ele montou uma bola feita majoritariamente
dos metais que eu havia mencionado, e que representava perfeitamente
o nosso globo. Quando uma pequena gota foi pingada sobre sua super-
fície, ela se inchou, oxidou e produziu uma pequena montanha. Uma
cratera se abriu no cume, uma erupção se iniciou e ela transmitia tanto
calor para a bola inteira que ela ficou tão quente que era impossível se-
gurá-la com as mãos.
Realmente eu estava começando a ficar abalado pelos argumentos
do professor. O que também não ajudava era que ele os apresentava com
a sua usual energia e entusiasmo.
— Você vê, Axel, o estado do núcleo central tem produzido várias
hipóteses entre os geólogos. Nada é menos provado que a ideia de um
calor interno. Do meu ponto de vista, ele não existe, não poderia exis-
tir. De qualquer forma, veremos por nós mesmos e, assim como Arne
Saknussemm, descobriremos o nosso posicionamento diante de tal im-
portante questão.
— Sim, nós iremos! — gritei, vencido por seu entusiasmo. — Ve-
remos por nós mesmos, se é que se pode ver algo lá embaixo, contudo.
— E por que não? Não podemos contar com um fenômeno elétrico
para iluminar o caminho, e até mesmo na atmosfera, cuja pressão pode
deixar mais e mais luminosa ao se aproximar do centro?
— Sim. Sim! É possível, apesar de tudo.
— Isto é certeza. — respondeu meu tio triunfante — Mas deve ser
mantido em silêncio, me ouviu? Tudo isso deve permanecer em total
segredo, de modo que mais ninguém tenha a ideia de descobrir o centro
da Terra antes de nós.

Viagem ao Centro da Terra 59


1- Esse amigo, que era na verdade de Bleicherode, era um grande cartógrafo alemão e produziu
diversos mapas em suas explorações e foi responsável por diversas inovações técnicas na área.

2- Henderson foi um teólogo e missionário escocês que durante os anos de 1814-15 viajou para
a Islândia em nome da Sociedade Bíblica Britânica. Mais tarde, ele escreveu um livro sobre suas
experiências. É acompanhado por um mapa da Islândia, gravado por Daniel e William Home
Lizars sob a direção de Henderson. A base é o tipo Knoff, provavelmente um dos mapas de
Jón Eiríksson. Mas a escala é tão pequena que poucas das observações do autor são refletidas
no mapa. A principal inovação é que os Fiordes Ocidentais foram movidos para o sul do círculo
polar.

3- Jean-Baptiste Joseph Fourier foi um brilhante físico e matemático francês que ajudou
a entendermos melhor a condução do calor em corpos sólidos.

4- Outro célebre francês, também físico e matemático, é conhecido pela famosa “distribuição
de Poisson”, usada na teoria da probabilidade e na estatística.

5- Desde jovem meu tio já andava por entre grandes nomes da ciência, Sir Humphry,
um cavaleiro da rainha, responsável por grandes invenções, como a lâmpada de Davy,
usada como uma alternativa segura para mineradores em minas de carvão, e descobertas,
como dos elementos potássio e sódio!

Viagem ao Centro da Terra 60


Capítulo 7
AS MARGENS DO ELBA
7. AS MARGENS DO ELBA

Assim terminou a nossa memorável reunião. A discussão havia me


deixado febril. Deixei o escritório de meu tio como se estivesse em um
transe, não havia ar o bastante em todas as ruas de Hamburgo para me
acalmar. Fui então para as margens do Elba, próximo da balsa a vapor
que conecta a cidade com a linha férrea de Hamburgo.
Eu estava convencido pelo o que eu acabei de aprender? Não teria
sofrido a influência do Professor Lidenbrock? Poderia levar a sério sua
decisão de ir até o núcleo do maciço terrestre? Teria ouvido apenas as
especulações sem sentido de um lunático ou as análises científicas de
um grande gênio? De tudo isso, até onde vai a verdade e começa a ilu-
são?
Eu flutuava entre milhares de hipóteses contraditórias, sem ser ca-
paz de me segurar em nenhuma delas.
Ainda assim, eu me lembro de estar convencido, apesar de que
agora meu entusiasmo começava a minguar, eu preferia ter embarcado
imediatamente de modo a não ter tempo para refletir. Sim, eu poderia
facilmente ter feito minhas malas naquele exato momento.
Porém, tenho que confessar que uma hora mais tarde meu entu-
siasmo se esgotou, meus nervos relaxaram e dos profundos abismos da
Terra, eu retornei à superfície.
— É um absurdo! — exclamei — Isso foge do bom senso. Não é o
tipo de proposta que se faz a um rapaz sensato. Nada disso existe. Eu
não dormi direito. Devo ter tido um pesadelo.
Durante esse tempo, eu havia seguido pelas margens do Elba e che-
guei ao outro lado da cidade. Fiz meu caminho ao redor do porto e che-
guei na estrada de Altona. Um pressentimento me guiou, um pressen-
timento justificado, pois logo em seguida vi minha pequena Graüben
caminhando agilmente de volta a Hamburgo.
— Graüben! — gritei-lhe de longe.
A jovem garota parou, um pouco confusa, imagino, ao ouvir seu
nome sendo chamado no meio de uma grande estrada. Em dez passadas
eu estava perto dela.

Viagem ao Centro da Terra 63


— Axel! — ela disse surpresa — Ah! Você veio me encontrar!
Que bom, meu senhor!
Mas ao me olhar, Graüben não deixou de notar meu ar inquieto
e preocupado.
— O que você tem? — ela disse, me estendendo a mão.
— O que tenho, Graüben! — exclamei.
Em dois segundos e três frases a minha linda virlandesa estava a
par de tudo. Ela permaneceu em silêncio por alguns segundos. Será que
seu coração palpitava tanto quanto o meu? Não sei, mas sua mão que
segurava a minha não tremia. Nós demos uma centena de passos sem
falar nada.
— Axel! — ela disse, enfim.
— Minha querida Graüben!
— Será uma bela viagem.
Ao ouvir essas palavras, dei um pulo.
— Sim, Axel. Uma jornada digna do sobrinho de um sábio. É bom
que um homem se destaque através de um grande empreendimento.
— O quê! Graüben, você não irá tentar me impedir de ir em tal
expedição?
— Não, caro Axel, e eu iria de bom grado com você e seu tio se uma
pobre garota não fosse um incômodo.
— Você está falando sério?
— Estou falando sério.
Ah! Mulheres, garotas, corações femininos sempre incompreensí-
veis! Quando não são os mais tímidos dos seres, são os mais corajosos.
A razão não possui influência sobre vocês. O quê! Essa criança me en-
coraja a tomar parte em tal expedição! Ela não teria medo de tentar a
aventura! Ela estava me incentivando, apesar de me amar!
Eu estava desconcertado e, por que não dizê-lo, envergonhado.
— Graüben — retomei — veremos se amanhã você falará dessa
maneira.
— Amanhã, caro Axel, falarei como hoje.
Seguimos pelo nosso caminho, de mãos dadas, mas sem falar nada.
Eu estava exausto pelos eventos do dia.
“Afinal” — pensei — as calendas de Julho ainda estão longe e antes
disso várias coisas podem acontecer para curar meu tio de sua mania de
viajar por debaixo da Terra.

Viagem ao Centro da Terra 64


A noite caiu assim que chegamos em casa na Königstrasse. Espera-
va encontrar a casa em silêncio, com meu tio em sua cama como de cos-
tume e Martha tirando o pó com uma última espanada na sala de jantar.
Mas eu havia esquecido da impaciência do professor. O encontrei
gritando e correndo por entre uma tropa de carregadores que descar-
regavam certas mercadorias na rua. A velha governanta não sabia para
onde ir.
— Venha, Axel, se apresse, seu infeliz! — berrou meu tio de longe
ao me ver — Sua mala não está feita, meus documentos não estão em
ordem, perdi a chave de minha bolsa de viagem e minhas polainas ainda
não chegaram!
Estava atordoado. Me faltou a voz. Tudo que consegui produzir
com meus lábios foi:
— Nós estamos partindo?
— Sim, garoto infeliz, você deveria estar se movendo em vez de
ficar parado!
— Realmente partindo? — respondi com a voz enfraquecida.
— Sim, depois de amanhã, ao amanhecer.

Viagem ao Centro da Terra 65


Não aguentei ouvir mais e corri para o meu pequeno quarto.
Não restavam dúvidas. Durante a tarde, meu tio havia estado com-
prando os objetos e utensílios necessários para sua viagem. A rua estava
cheia de escadas de corda, cordas com nós, tochas, cantis, ganchos de
ferro, picaretas, varas de caminhada e enxadas o suficiente para dez ho-
mens carregarem.
Passei uma noite terrível. De manhã, ouvi me chamarem bem cedo.
Decidi não abrir a porta, mas como resistir uma doce voz pronunciando
essas palavras: “Meu querido, Axel”?
Saí do meu quarto. Pensei que meu ar derrotado, meu rosto pálido
e meus olhos vermelhos pela falta de sono afetariam Graüben e a fariam
mudar de ideia.
— Ah, meu caro Axel, vejo que está melhor e se acalmou durante
a noite.
— Acalmei! — exclamei.
Corri para o espelho. Para minha surpresa, aparentava melhor do
que pensava. Era inacreditável.
— Axel — disse-me Graüben — tive uma longa conversa com meu
tutor. Ele é um sábio audaz, um homem de grande coragem e você sem-
pre deve lembrar que possui o sangue dele em suas veias. Ele me falou
de seus planos, de suas esperanças, porque ele quer alcançar seu obje-
tivo e como ele planeja o fazer. Ele vai chegar lá, tenho certeza. Caro
Axel, é algo tão belo se dedicar à ciência! Que glória aguarda o senhor
Lidenbrock e que também recairá a seu companheiro. Quando retornar,
Axel, você será um homem, seu igual, livre para falar, livre para agir,
livre enfim para…
A jovem moça, corando, não foi capaz de terminar. Suas palavras
me reviveram. Mas ainda não acreditava que já estávamos para partir.
Conduzi Graüben até o escritório do professor.
— Meu tio — disse — está mesmo determinado a partir?
— Como? Não está convencido?
— Claro que estou — disse para acalmá-lo — apenas quero enten-
der o porquê da pressa.
— O tempo! O tempo passa com uma velocidade irreparável!
— Mas é apenas 26 de Maio e até o final de Junho…
— Então você, ignorante, pensa que é tão fácil apenas chegar na

Viagem ao Centro da Terra 66


Islândia? Se você não tivesse fugido como um louco, eu o teria levado
comigo para o escritório da Liffender & Cia. de Copenhague. Lá você
teria visto que há apenas um serviço de e até Reykjavik, no dia 22 de
cada mês.
— E então?
— E então! Se esperássemos até o dia 22 de Junho, iríamos che-
gar tarde demais para ver a sombra do Scartaris se sobrepondo sobre
a cratera do Sneffels! Temos que chegar em Copenhague o mais rápido
possível e tentar encontrar algum meio de transporte até lá. Vá fazer sua
mala!
Não havia mais nada a dizer. Subi para meu quarto. Graüben veio
comigo. Ela imediatamente assumiu o comando, cuidadosamente guar-
dando em uma pequena mala as coisas necessárias para minha viagem.
Ela estava tão animada quanto se fosse para um passeio para Lubeck
ou Heligoland1. Suas pequenas mãos iam e vinham sem hesitação. Ela
falava calmamente e me deu as mais sensatas razões para realizar essa
nossa expedição. Ela me enfeitiçou, me fazendo ter raiva dela. Às vezes,
queria me impor, mas ela nem se importava e seguia seu calmo e metó-
dico trabalho.
Finalmente, a última alça da mala foi presa. Fui para o andar de
baixo novamente.
Ao longo do dia, mais e mais suprimentos de instrumentos cientí-
ficos, armas de fogo e aparatos elétricos chegavam. A bondosa Martha
estava perdendo a cabeça.
— O senhor está louco? — me disse.
Eu dei um sinal afirmativo.
— E ele está te levando consigo?
Mesma afirmação.
— Para onde? — ela perguntou.
Apontei com o dedo para o centro da Terra.
— Para o porão? — exclamou a velha governanta.
— Não — disse, enfim. — Para mais baixo.
A tarde veio. Eu já não estava ciente do passar do tempo.
— Até de manhã — disse meu tio — nós partimos às seis horas em
ponto.
Às dez horas, cai na minha cama como uma massa inerte.

Viagem ao Centro da Terra 67


Durante a noite, meus temores haviam retornado.
A passei sonhando com abismos. Estava delirante. Me senti esma-
gado pelas vigorosas mãos do professor, arrastado, despencando, preso.
Eu estava caindo por insondáveis precipícios com a rápida velocidade
de corpos abandonados no espaço. Minha vida era apenas uma queda
interminável.
Acordei às cinco, quebrado pela fadiga e pelas emoções. Desci para
a sala de jantar. Meu tio estava à mesa. Ele estava devorando a comida.
Olhei para ele com horror. Mas Graüben estava lá, então não disse nada.
Mas eu não conseguia comer.
Às cinco e meia, o barulho de rodas foi ouvido vindo da rua. Uma
grande carruagem estava chegando para nos levar à estação de Altona.
Ela estava encoberta pelos pacotes de meu tio.
— E a sua mala? — me disse.
— Está pronta — respondi desfalecendo.
— Apresse-se para a descer ou você irá nos fazer perder o trem!
Lutar contra meu destino parecia impossível neste momento. Subi
para o meu quarto e deixei a mala escorregar escada para baixo, descen-
do logo atrás dela.
Enquanto isso, meu tio estava solenemente colocando as rédeas de
casa nas mãos de Graüben. Minha linda virlandesa estava calma como
sempre. Ela deu um abraço em seu tutor, mas não foi capaz de segurar
uma lágrima ao tocar minha bochecha com seus doces lábios.
— Graüben! — exclamei.
— Vá, meu caro Axel, vá. — me disse — Você está deixando a sua
noiva, mas irá retornar para a sua mulher.
Segurei Graüben brevemente em meus braços e entrei na carrua-
gem. Ela e Martha acenaram um último adeus da porta da frente. Então,
os dois cavalos, compelidos pelo assobio do condutor, galoparam em
direção a Altona.

1- Esses destinos turísticos ficam próximos de Hamburgo, Lubeck à nordeste, uma cidade com
construções medievais clássicas de alto valor histórico, e Heligoland é um pequeno arquipélago
no Mar do Norte, onde a classe alta europeia podia desfrutar de um spa e da atmosfera liberal
da ilha.

Viagem ao Centro da Terra 68


Viagem ao Centro da Terra 69
Capítulo 8
AULAS DE ABISMO
8. AULAS DE ABISMO

Altona, um verdadeiro subúrbio de Hamburgo, é o terminal de


partida da linha férrea de Kiel, que irá nos conduzir pela costa de Belt.
Em menos de vinte minutos, entramos no território de Holstein.
Às seis e meia, a carruagem parou na frente da estação. Os nume-
rosos pacotes de meu tio e seus volumosos artigos de viagem foram des-
carregados, levados, pesados, etiquetados e carregados no vagão baga-
geiro. Às sete, sentávamos de frente pro outro em nosso compartimento.
O vapor assobiou e a locomotiva se colocou em movimento. Havíamos
partido.
Estava eu resignado? Ainda não. Mas o ar fresco da manhã e os
detalhes da rota, em constante mudança com a velocidade do trem me
distraíram da minha grande preocupação.
Quanto aos pensamentos do professor, estavam evidentemente à
frente do trem, lento demais para a sua impaciência. Estávamos a sós
no vagão, mas não conversamos. Meu tio revisitava seus bolsos e sua
mala de viagem com o maior cuidado. Pude ver que nenhum dos itens
necessários para executar seus projetos estavam faltando.
Entre eles estava uma folha de papel, cuidadosamente dobrada,
portando o carimbo da chancelaria dinamarquesa, com a assinatura do
senhor Christiensen, cônsul em Hamburgo e um amigo do professor.
Ela deve nos garantir obter com facilidade em Copenhague as recomen-
dações do governador geral da Islândia.
Tive um relance também do famoso documento, cuidadosamente
escondido no mais secreto compartimento da carteira do meu tio. Ain-
da o amaldiçoando do fundo do meu coração, comecei a examinar o
interior. Era uma vasta sucessão de planícies, pouco interessantes, mo-
nótonas e cheias de terra, mas relativamente férteis, um campo muito
favorável para construir uma ferrovia, dado seu potencial para linhas
retas, tão populares para as companhias de trem.
Mas essa monotonia não teve tempo de me cansar, pois apenas três
horas após de partir, o trem parou em Kiel, a dois passos do mar.

Viagem ao Centro da Terra 72


Já que nossas bagagens estavam registradas para Copenhague, não
precisávamos nos preocupar com elas. De qualquer modo, o professor
as observava com uma expressão inquieta enquanto elas eram carrega-
das para o barco a vapor. Lá, elas desapareceram para dentro do porão.
Meu tio, em sua pressa, havia tão cuidadosamente calculado as co-
nexões entre o trem e o barco que tínhamos praticamente um dia inteiro
para perder. O barco, Ellernora, não sairia até a noite. Por conta disso,
uma febre de nove horas, durante a qual o colérico viajante jorrava pra-
gas nas companhias férreas e dos barcos e aos governantes que permi-
tiam tais abusos acontecerem. Fui obrigado a lhe dar apoio enquanto
discutia com o capitão do Ellenora sobre este mesmo assunto. Ele queria
obrigá-lo a aquecer as caldeiras sem perder um instante. O capitão reco-
mendou ele ir dar uma volta.
Em Kiel, assim como todo lugar, o dia teria que passar. De tan-
to andar pelas margens verdejantes da baía que levava a pequena vila,
adentramos os bosques densos que a fazem parecer um ninho entre um
feixe de galhos, admiramos as vilas, cada uma com suas pequenas casas
de banho, corremos e resmungamos até alcançar às dez da noite.
Os turbilhões de fumaça subiam do Ellenora e se desfaziam no céu.
A ponte tremia com os arrepios da caldeira. Já havíamos embarcado,
e éramos os proprietários da beliche da única cabine de passageiros a
bordo.
Às dez e quinze as amarras foram soltas, e o barco se moveu rapi-
damente sobre as águas escuras do cinturão.
A noite estava escura. Havia uma bela brisa e o mar estava agitado.
Algumas luzes da costa perfuravam a escuridão. Mais tarde, o brilho de
um farol iluminou brevemente as águas de um ponto misterioso e isso é
tudo que me lembro da nossa primeira travessia.
Às sete horas da manhã desembarcamos em Korsor, uma pequena
cidade situada na costa ocidental da Zelândia. Lá, rapidamente embar-
camos em outro trem, que nos levou através do interior, tão plano quan-
to os campos de Holstein.
Ainda faltavam três horas de viagem para alcançarmos a capital da
Dinamarca. Meu tio não havia fechado os olhos a noite toda. Em sua
impaciência, creio que ele até estava empurrando o vagão com seus pés.
Enfim, ele avistou o mar.

Viagem ao Centro da Terra 73


— O Sund! — exclamou.
À nossa esquerda, havia uma enorme construção que se assemelha-
va a um hospital.
— É uma casa de loucos — disse um dos nossos companheiros de
viagem.
“Bem” — pensei — “está aí um estabelecimento onde deveríamos
terminar os nossos dias! E não importa quão grande seja o hospital, não
seria grande o bastante para conter a loucura do Professor Lidenbrock”.
Finalmente, às dez horas da manhã desembarcamos em Copenha-
gue. As bagagens foram colocadas em uma carruagem e levadas conos-
co até o Hotel Fênix, em Bredgade. Isso levou meia hora, pois a estação
fica fora da cidade. E então, após um rápido banho, meu tio me arrastou
de meu quarto. O porteiro do hotel falava alemão e inglês, mas o profes-
sor, em sua qualidade de poliglota, o questionou em bom dinamarquês
e foi em bom dinamarquês que este personagem nos disse onde ficava o
Museu das Antiguidades do Norte.
O diretor deste curioso estabelecimento, onde estão empilhados
maravilhas que permitiriam reconstituir a história do país, com suas
velhas armas de pedra, seus utensílios e joias, era um sábio, um amigo
do cônsul de Hamburgo, o senhor professor Thomson.
Meu tio tinha uma calorosa carta de recomendação para entregar a
ele. Geralmente, um sábio recebe mal o outro. Mas aqui as coisas eram
diferentes. O senhor Thomson, um homem prestativo, recebeu cordial-
mente o Professor Lidenbrock e até mesmo o seu sobrinho. Nem preciso
dizer que nosso segredo foi mantido do excelente diretor. Gostaríamos
apenas de visitar a Islândia como amadores desinteressados.
O senhor Thomson se colocou inteiramente à nossa disposição e,
juntos, percorremos as docas à procura de um navio partindo.
Eu esperava que não houvesse nenhum meio de transporte, mas
não foi o que aconteceu. Uma pequena escuna dinamarquesa, a Val-
quíria1, estava para zarpar em direção a Reykjavik no dia 2 de Junho.
O capitão, senhor Bjarne, se encontrava a bordo. Seu futuro passageiro,
em sua alegria, apertou sua mão forte o bastante para quebrá-la. Este
corajoso homem se surpreendeu com tal aperto. Ele achava simples ir
até a Islândia, afinal este era seu trabalho. Meu tio achava isto sublime. O
digno capitão tomou proveito disso e nos fez pagar o dobro pela viagem.
Mas nem percebemos isso.

Viagem ao Centro da Terra 74


— Estejam a bordo na terça, às sete horas da manhã — disse o
senhor Bjarne, após ter embolsado uma quantia respeitável de dólares.
Agradecemos ao senhor Thomson pela gentileza e voltamos para o
Hotel Fênix.
— Tudo vai bem! Tudo vai muito bem! — repetia meu tio — Que
sorte a nossa de ter encontrado este barco prestes a partir! Agora vamos
almoçar para então visitar a cidade.
Fomos até a Kongens Nytorv2, uma praça irregular com um pe-
destal contendo dois inocentes canhões apontados que não assustavam
ninguém. Logo ao lado, no número cinco, havia um restaurante francês,
mantido por um cozinheiro chamado Vincent. Nós almoçamos sufi-
cientemente pelo preço modesto de quatro marcos3 cada.
Então, tomei um prazer infantil ao explorar a cidade, meu tio se
deixava levar. De qualquer modo, ele não via nada, nem o insignifican-
te palácio real, nem a bela ponte do século XVII cruzando o canal em
frente ao museu, nem o grande memorial a Thorvaldsen4, ornamentado
por horríveis murais contendo em seu interior as obras deste escultor,
nem a caixa de doces que era o Castelo Rosenborg, nem o admirável
prédio renascentista da Bolsa, nem seu campanário feito das caudas en-
trelaçadas de quatro dragões de bronze e nem os grandes moinhos nas
muralhas, onde imensas asas se inchavam como as velas de um navio
em um mar agitado.
Que deliciosas caminhadas poderíamos ter, minha amada virlan-
desa e eu, pelos portos onde dois conveses e as fragatas dormiam cal-
mamente sob seus telhados vermelhos, pelas margens verdejantes do
estreito, através das sombras espessas que se esconde a fortaleza, cujo
canhões alongam suas bocas por entre os ramos dos sabugueiros e sal-
gueiros!
Mas, infelizmente, minha pobre Graüben estava longe. Poderia eu
ter qualquer esperança de vê-la novamente?
Contudo, se meu tio não notou nenhum desses lugares encantado-
res, ele foi golpeado pela visão de um certo campanário na ilha Amager,
que forma distrito sudeste de Copenhague.
Recebi a ordem de ir naquela direção. Embarcamos em um peque-
no barco a vapor que servia os canais e, em alguns instantes, ele atracou
no cais de Dockyard.

Viagem ao Centro da Terra 75


Depois de ter atravessado algumas
ruas estreitas, por onde os condenados,
vestindo calças de listras cinzas e amare-
las, trabalhavam sob os bastões dos guar-
das, chegamos diante da Vor Frelsers Kirke.
Não havia nada demais na Igreja. Mas seu
campanário bem alto havia tomado a aten-
ção do professor: a partir da plataforma,
uma escada externa subia ao redor da tor-
re e suas espirais se desenrolaram no céu
aberto.
— Vamos subir — disse meu tio.
— Mas e a vertigem?
— Mais uma razão, é necessário se
acostumar.
— Mesmo assim…
— Venha, te digo, não vamos perder
tempo.
Restava apenas obedecer. Um vigia,
que ficava do outro lado da rua, nos deu
uma chave e nossa subida começou.
Meu tio me precedia com um passo
alerta. Eu o seguia não sem medo, enquan-
to minha cabeça girava com deplorável fa-
cilidade. Eu não possuía nem a calma das
águias nem a insensibilidade dos nervos.
Enquanto estávamos aprisionados na
escadaria no interior da torre, tudo ia bem.
Mas após cento e cinquenta degraus o ar
atingiu meu rosto, nós havíamos chegado
na plataforma do campanário. Era aqui que
a escada a céu aberto começava, protegida
por um fino corrimão com os degraus, cada
vez mais estreitos, aparentando subir até o
infinito.

Viagem ao Centro da Terra 76


— Eu nunca vou conseguir! — exclamei.
— Você é um covarde, por acaso? Suba! — respondeu o professor im-
piedosamente.
Tive de segui-lo, me segurando. O ar aberto me deixou atordoado. Sen-
tia o campanário oscilar com as rajadas de vento, minhas pernas cederam,
comecei a subir de joelhos e então de barriga. Fechei os olhos. Sentia ver-
tigem.
Finalmente, com meu tio me puxando pelo colarinho, cheguei próxi-
mo da esfera.
— Olhe — ele me disse — e olhe bem! É necessário ter aulas de abismo!
Abri meus olhos. Eu via as casas achatadas, como se esmagadas por
uma queda, por entre uma névoa esfumaçada. Acima de minha cabeça,
passavam nuvens desgrenhadas que por uma ilusão de óptica pareciam ser
imóveis, enquanto o campanário, a esfera e eu éramos carregados com uma
velocidade incrível. Ao longe, os campos verdes se alongavam de um lado,
enquanto no outro o mar brilhava sob o feixe de raios. O Sund se desdobra-
va até a ponta de Helsingor, onde havia algumas velas brancas que pareciam
as asas de gaivotas e, na névoa do leste, ondulava a costa desbotada da Sué-
cia. Toda essa imensidão turbilhava enquanto eu olhava.
Contudo, eu tinha que levantar, ficar de pé e olhar. Minha primeira
lição de vertigem durou uma hora. Quando enfim pude descer e pôr os pés
no pavimento firme das ruas, eu estava dolorido.
— Recomeçaremos amanhã — disse meu professor.
E de fato, durante cinco dias, repeti esse exercício vertiginoso, queren-
do ou não, fiz progresso perceptível na arte das altas contemplações.

1- Esta embarcação retirou o nome da mitologia nórdica. As valquírias eram mulheres que serviam
ao deus Odin e eram enviadas por ele aos campos de batalha para levar as almas de guerreiros
dignos aos salões de Valhalla. A nossa Valquíria nos levaria apenas para a Islândia, onde não espero
encontrar festas pela nossa chegada.
2- "A nova praça do Rei", traduzido do dinamarquês.
3- Nota do autor: Cerca de 2 francos e 75 centavos.
4- Bertel Thorvaldsen foi um escultor dinamarquês, a inspiração para suas obras vinham muitas
vezes da mitologia grega, esculpindo de deuses a heróis.

Viagem ao Centro da Terra 77


Capítulo 9
VALQUÍRIA
9. VALQUÍRIA

O dia da partida chegou. Na véspera, o gentil senhor Thomson ha-


via nos dado pressurosas cartas de recomendação para o conde Trampe,
o governador da Islândia, o senhor Petursson, bispo-coadjutor, e para o
senhor Finsen, prefeito de Reykjavik. Em retorno, meu tio lhe concedeu
os mais calorosos apertos de mão.
No dia 2, às seis horas da manhã, nossa preciosa bagagem já estava
guardada a bordo da Valquíria. O capitão nos conduziu para baixo para
nossas cabines que eram um tanto estreitas situadas em uma espécie de
convés.
— Temos bom vento? — perguntou meu tio.
— Excelente — respondeu o capitão Bjarne. — Um vento do sudes-
te. Vamos nos distanciar do Sund com as velas içadas.
Alguns instantes mais tarde, a escuna, com o seu mastro de proa,
seu bergantim, sua gávea e a vela superior, navegou de velas plenas pelo
estreito. Uma hora mais tarde, a capital da Dinamarca parecia afundar
nas ondas distantes enquanto a Valquíria raspava pela costa do Helsin-
gor. Pela disposição dos nervos que me encontrava, esperava ver a som-
bra errante de Hamlet em seu lendário terraço.
— Ah, sublime insensato! — eu dizia — Você sem dúvida nos apro-
varia! Talvez até nos seguisse ao centro do globo à procura de uma solu-
ção para sua dúvida eterna!

Viagem ao Centro da Terra 80


Mas nada apareceu nas antigas muralhas. O castelo, além do mais, é
muito mais novo que o heroico príncipe da Dinamarca. Ele serve agora
de um luxuoso alojamento para o vigia deste estreito do Sund, por onde
passam a cada ano quinze mil navios de todas as nações.
O castelo de Kronborg logo desapareceu no nevoeiro, assim como
a torre de Helsingborg, elevada na costa sueca, e a escuna se inclinava
ligeiramente sobre a brisa do Kattegat.
A Valquíria era um bom veleiro, mas com um navio a vela não se
sabe muito com o que se pode contar. Ela transportava para Reykjavik
carvão, utensílios de cozinha, peças de cerâmica, vestimentas de lã e um
carregamento de trigo. Cinco membros da tribulação, todos dinamar-
queses, eram o bastante para manobrá-la.
— Qual será a duração da travessia? — perguntou meu tio.
— Cerca de dez dias — respondeu um deles — se não encontrar-
mos muitos ventos do noroeste perto de Faroé.
— Mas enfim, vocês não estão sujeitos a encontrar atrasos consi-
deráveis?
— Não, senhor Lidenbrock. Fique tranquilo, chegaremos lá.
Perto do anoitecer, a escuna dobrou o cabo de Skagen na ponta
norte da Dinamarca, durante a noite cruzou o Skagerrak, ficou de lado
com a costa da Noruega, próximo ao cabo Lindesnes, e se alcançou o
Mar do Norte.
Dois dias depois, havíamos reconhecido a costa da Escócia na al-
tura de Peterhead, e a Valquíria se dirigia para as ilhas Faroé passando
entre Orcades e Shetland.

Viagem ao Centro da Terra 81


Logo nossa escuna foi agredida pelas ondas do Atlântico. Ela teve
de se forçar contra o vento do norte e alcançou, não sem esforço, as ilhas
Faroé. No dia 8, o capitão reconheceu Mykines, a mais oriental das ilhas,
e, a partir desse momento, foi direto para o cabo de Portland, situado na
costa meridional da Islândia.
A travessia não ofereceu nenhum incidente notável. Eu suportei
bem as provações do mar. Meu tio, para seu desgosto, e mais ainda, para
sua vergonha, não deixou de ficar doente.
Então, ele não pôde discutir com o capitão Bjarne sobre a questão
do Sneffels, sobre os meios de comunicação ou sobre os meios de trans-
portes. Ele teve que adiar essas explicações para a sua chegada, e pas-
sou todo tempo estendido em sua cabine, cujas partições rangiam pelas
grandes investidas. Devo admitir que ele merecia um pouco seu destino.
No dia 11, avistamos o cabo Portland. O tempo, tão limpo, nos per-
mitiu ver o Myrdals Yocul, que o domina. O cabo é composto por um
grande morro, de encostas íngremes, plantado sozinho na praia.
A Valquíria se manteve a uma distância razoável da costa, se pro-
longando em direção ao oeste, em meio a uma tropa de baleias e tuba-
rões. Logo, apareceu um enorme rochedo perfurado, através do qual
o mar espumoso avança furiosamente. As ilhotas Westman pareciam
surgir do Oceano, como se houvessem semeado rochas em uma planície
líquida. A partir deste momento, a escuna abriu espaço para contornar o
cabo Reykjanes, que forma o ângulo ocidental da Islândia.

Viagem ao Centro da Terra 82


O mar, muito agitado, impedia meu tio de subir ao convés para ad-
mirar essas costas trincadas e maltratadas pelo vento do sudoeste.
Quarenta e oito horas depois, ao deixar uma tempestade que forçou
a escuna a fugir com as velas recolhidas, avistamos ao leste a balista do
ponto de Skagen, cujas perigosas rochas se prolongam a uma grande
distância sob as ondas. Um piloto islandês veio a bordo e, três horas
mais tarde, a Valquíria ancorava em frente a Reykjavik, na baía de Faxa.
O professor finalmente saiu de sua cabine, um pouco pálido, um
pouco desfeito, mas ainda entusiasmado e com uma expressão de satis-
fação em seus olhos.
A população da cidade, particularmente interessada na chegada de
um navio, que sempre tem algo para cada um, se agrupou nas docas.
Meu tio estava com pressa de abandonar a sua prisão flutuante,
para não dizer seu hospital. Mas antes de sair do convés da escuna, ele
me levou para a frente do navio, e lá, me apontou, na parte norte da baía,
uma alta montanha com dois picos, um duplo cone coberto por neves
eternas.
— O Sneffels! — ele exclamou — O Sneffels!
E então, depois de ter me recomendado com um gesto de silêncio
absoluto, desceu até o bote que o esperava. Eu o segui, e logo colocamos
os pés no solo da Islândia.
Primeiramente, apareceu um homem de boa aparência vestindo
um uniforme de general. Ele não era, no entanto, um simples magis-
trado, mas o governador da ilha, o senhor barão Trampe em pessoa. O
professor percebeu com quem ele estava lidando. Ele entregou ao go-
vernador as cartas de Copenhague e estabeleceu, em dinamarquês, uma
curta conversa na qual fiquei completamente estrangeiro, por um bom
motivo. Mas esta primeira entrevista resultou no barão Trampe se colo-
cando inteiramente à disposição do Professor Lidenbrock.
Meu tio também recebeu uma calorosa recepção do prefeito, o se-
nhor Finsen, vestido não menos militar que o governador, mas também
pacífico em temperamento e em sua função.
Quanto ao coadjutor, o senhor Petursson, ele estava atualmente em
uma excursão episcopal na jurisdição do norte. Deveríamos provisoria-
mente abdicar de sermos apresentados a ele. Mas um homem encanta-
dor, cuja ajuda se tornou muito preciosa para nós, foi o senhor Fridriks-
son, professor de ciências naturais na escola de Reykjavik. Este modesto

Viagem ao Centro da Terra 83


sábio só falava islandês e latim. Ele veio me oferecer seus serviços na
língua de Horácio e eu senti que fomos feitos para nos compreender.
Ele foi, na verdade, o único personagem com o qual eu pude conversar
durante minha estadia na Islândia.
Dos três quartos que compunham sua casa, este excelente homem
colocou dois à nossa disposição, e logo lá estávamos instalados junto de
nossas bagagens, cuja quantidade espantou os habitantes de Reykjavik.
— Bem, Axel — me disse meu tio — estamos indo bem e o mais
difícil já passou.
— Como assim, o mais difícil? — exclamei.
— Sem dúvida, resta apenas descer!
— Vendo por esse lado, você tem razão. Mas enfim, após termos
descido, restará subir, certo?
— Ora, isso dificilmente me preocupa! Veremos! Não há tempo
a perder. Vou para a biblioteca. Talvez eu ache algum manuscrito de
Saknussemm, e eu ficaria muito satisfeito por consultá-lo.
— Então, durante esse tempo, irei visitar a cidade. Você não fará o
mesmo?
— Ah, isso pouco me interessa. O que estou curioso sobre estas
terras islandesas não está em cima, mas embaixo.
Saí e vaguei ao acaso.
Se perder nas duas ruas de Reykjavik não é uma coisa fácil. Portan-
to, não era obrigado a perguntar meu caminho, que, na linguagem de
sinais, pode causar mal entendidos.
A cidade se alonga sobre um terreno baixo e pantanoso entre duas
colinas. Um imenso fluxo de lava a cobre de um lado e desce suave-
mente em rampas para o mar. Do outro, se estende a vasta baía de Faxa,
limitada ao norte pela enorme geleira do Sneffels e na qual a Valquíria
se encontra sozinha ancorada neste momento. Normalmente, os navios
da guarda costeira inglesa e francesa atracavam por ali, mas eles estavam
em serviço na costa ocidental da ilha.
A mais longa das duas ruas de Reykjavik é paralela à costa. Lá fi-
cam os mercadores e negociantes, em cabanas de madeira feitas de vigas
vermelhas dispostas horizontalmente. A outra rua, situada mais a oeste,
segue para um pequeno lago, entre as casas do bispo e de outros perso-
nagens não pertencentes ao comércio.

Viagem ao Centro da Terra 84


Logo explorei essas vias tediosas e tristes. Às vezes entrevia um pe-
daço de grama descolorida, como um velho tapete de lã, gasto pelo uso
ou então algo com aparência de uma horta, cujos raros legumes, batatas,
repolhos e alfaces, teriam ficado à vontade em uma mesa liliputiana1.
Alguns goivos doentes também tentavam tomar um pouco de Sol.
Na metade da rua não comercial, encontrei o cemitério público,
cercado por um muro de terra e que tinha espaço de sobra. Depois, com
alguns passos, cheguei à casa do governador, um casebre comparado à
prefeitura de Hamburgo, mas um palácio entre as cabanas da população
islandesa.
Entre o pequeno lago e a cidade, se eleva a igreja, feito no estilo
protestante e construída de pedras calcinadas cujos próprios vulcões
cobrem os custos de extração. Durante os fortes ventos do oeste, seu
telhado de telhas vermelhas evidentemente saía pelos ares, pondo os
fiéis em grande perigo.
Em uma elevação próxima, avistei a Escola Nacional, onde, como
aprendi mais tarde de nosso anfitrião, era ensinado hebreu, inglês, fran-
cês e dinamarquês, quatro línguas quais, para minha vergonha, não
conheço uma só palavra. Eu teria ficado em último entre os quarenta
alunos que compõem esse pequeno colégio e seria indigno de dormir
com eles nos armários de dois compartimentos onde os mais delicados
teriam sufocado da primeira noite.
Em três horas, eu havia visitado não apenas a cidade, mas também
seus arredores. O aspecto geral era singularmente triste. Sem árvores
e sem vegetação por assim dizer. Por todo lugar, as arestas afiadas das
rochas vulcânicas. As cabanas islandesas são feitas de terra e turfa, e suas
paredes são inclinadas para o lado de dentro. Elas pareciam telhados
posados no chão. Só que esses telhados são prados relativamente férteis.
Graças ao calor da habitação, a grama cresce ali com bastante perfeição
e é cortada cuidadosamente na época da ceifa, pois caso contrário, os
animais domésticos viriam pastar sobre essas cabanas verdejantes.
Durante minha excursão, encontrei uns poucos habitantes. Voltan-
do à rua comercial, vi a grande parte da população se ocupando em
secar, salgar e carregar bacalhau, seu principal artigo de exportação. Os
homens pareciam robustos, mas pesados, como uma espécie de alemães
loiros com olhar pensativo e que sentem um pouco de fora da humani-
dade, pobres exilados relegados a essa terra de gelo, cuja natureza po-

Viagem ao Centro da Terra 85


deria muito bem ter os feito esquimós, já que ela os condenou a viver
no limite do círculo polar! Eu tentei, em vão, flagrar um sorriso em seus
rostos. Eles às vezes riam, em uma espécie de contração involuntária
dos músculos, mas não sorriam jamais.
O traje deles consistia de uma jaqueta grosseira de lã preta, conhe-
cida nos países escandinavos pelo nome de vadmel, um chapéu de abas
largas, uma calça de barras vermelhas e um pedaço de couro dobrado
no formato de um sapato.
As mulheres, de faces tristes e resignadas, e de um tipo bem agra-
dável, mas sem expressão, estavam vestindo um corpete e uma saia de
vadmel escura: as moças portavam em seus cabelos, trançados em guir-
landas, um pequeno chapéu de tricô marrom; as casadas envolviam suas
cabeças com um lenço colorido com um brasão de tela branco.
Depois de uma boa caminhada, quando retornei à casa do senhor
Fridriksson meu tio já estava lá na companhia de seu anfitrião.

1- Os liliputianos eram os habitantes da ilha de Lilliput, uma das ilhas fictícias do clássico
“As viagens de Gulliver” de Jonathan Swift. Esses habitantes mediam cerca de 15 centímetros.

Viagem ao Centro da Terra 86


Capítulo 10
O SR. FRIDRIKSSON
10. O SR. FRIDRIKSSON

O jantar estava pronto. Ele foi devorado com voracidade pelo Pro-
fessor Lidenbrock, cuja dieta forçada a bordo havia transformado seu
estômago em um abismo profundo. Esta refeição, mais dinamarquesa
que islandesa, não possuía nada de notável nela mesma, mas nosso an-
fitrião, mais islandês que dinamarquês, me lembrou os heróis da antiga
hospitalidade. Pareceu-me evidente que éramos mais parte da casa dele
que ele mesmo.
A conversa se deu na língua nativa, que meu tio entrelaçava com o
alemão e o senhor Fridriksson com o latim de modo que eu a pudesse
compreendê-la. Ela abrangeu questões científicas, como convém aos sá-
bios. Mas o Professor Lidenbrock se manteve na mais excessiva reserva,
e, a cada frase, seus olhos me recomendavam um silêncio absoluto em
relação aos nossos próximos projetos.
Em primeiro lugar, o senhor Fridriksson questionou meu tio sobre
o resultado de suas pesquisas na biblioteca.
— Sua biblioteca! — exclamou o último — Ela consiste apenas de
livros incompletos em prateleiras quase desertas.
— O quê!? — respondeu o senhor Fridriksson — Nós possuímos
oito mil volumes, muitos dos quais são preciosos e raros, de obras na
velha língua escandinava e todas as novidades cujo Copenhague nos
abastece a cada ano.
— De onde você tirou esses oito mil volumes? Pelas minhas con-
tas...
— Ora, Professor Lidenbrock, eles percorrem o país. Nós temos
gosto pelo estudo em nossa velha ilha de gelo. Não há um fazendeiro
ou pescador que não saiba ler e que não leia. Nós acreditamos que os
livros, ao invés de mofar atrás de uma grade de ferro, longe dos olhares
curiosos, são destinados a se desgastar sob os olhos dos leitores. Assim,
esses volumes são passados de mão em mão, lidos e relidos, e muitas
vezes não retornam às suas prateleiras até um ou dois anos de ausência.
— E enquanto isso — respondeu meu tio com um certo despeito
— os estrangeiros…

Viagem ao Centro da Terra 89


— O que querem?! Os estrangeiros têm suas próprias bibliotecas
em casa, e, acima de tudo, é necessário que os nossos camponeses se
instruam. Lhe repito, o amor pelo estudo está no sangue islandês. Sendo
assim, em 1816, fundamos uma Sociedade Literária que vai bem. Os
sábios estrangeiros se sentem honrados de fazer parte. Ela publica livros
destinados à educação de nossos compatriotas e presta um verdadeiro
serviço ao país. Se você quer fazer parte dos nossos membros corres-
pondentes, senhor Lidenbrock, será um grande prazer.
Meu tio, que já pertencia a uma centena de sociedades científicas,
aceitou de bom grado, o que comoveu o senhor Fridriksson.
— Agora — ele retomou — por favor, me indique os livros que você
esperava encontrar em nossa biblioteca e talvez eu possa investigar o
paradeiro deles.
Olhei para o meu tio. Ele hesitou em responder. Isso estava direta-
mente relacionado com os seus projetos. Contudo, após ter pensado, ele
decidiu falar.
— Senhor Fridriksson — ele disse — gostaria de saber se, entre as
obras antigas, vocês possuem aquelas de Arne Saknussemm?
— Arne Saknusemm! — respondeu o professor de Reykjavik. —
Você se refere ao sábio do século XVI, que foi um grande naturalista,
um grande alquimista e um grande viajante?
— Precisamente.
— Uma das glórias da literatura e ciência islandesa?
— Como você disse.
— Um homem ilustre em meio a todos?
— Eu concordo.
— E cuja coragem se igualava ao gênio?
— Vejo que o conhece bem.
Meu tio estava entusiasmado ouvindo isso sobre seu herói. Ele de-
vorava o senhor Fridriksson com seus olhos.
— E então — questionou — suas obras?
— Ah, as suas obras. Não as temos.
— Como?! Na Islândia?
— Elas não existem na Islândia e nem em nenhum outro lugar.
— E por que isso?
— Porque Arne Saknussemm foi perseguido por heresia e, em 1573,
suas obras foram queimadas em Copenhague pelas mãos do carrasco.

Viagem ao Centro da Terra 90


— Ótimo! Perfeito! — exclamou meu tio, para o grande espanto do
professor de ciências naturais.
— Hã? — disse este último.
— Sim! Tudo se explica, tudo se encaixa, tudo está claro e entendo
o porquê Saknussemm, sendo colocado no Index1 e forçado a ocultar
as descobertas de seu gênio, tendo que esconder em um criptograma
incompreensível o segredo…
— Que segredo? — perguntou vivamente o senhor Fridriksson.
— Um segredo que… cujo… — respondeu meu tio balbuciando.
— Você teria algum documento em particular? — respondeu nosso
anfitrião.
— Não... Estava fazendo uma pura suposição.
— Pois bem. — respondeu o senhor Fridriksson, que teve a bonda-
de de não insistir vendo a dificuldade de seu interlocutor — Eu espero
— ele acrescentou — que não deixe a nossa ilha antes de ter escavado as
suas riquezas mineralógicas.
— Certamente — respondeu meu tio. — Mas cheguei um pouco
tarde. Os sábios já estiveram por aqui.
— Sim, senhor Lidenbrock. Os trabalhos dos senhores Ólafsson
e Povelsen, realizados por ordem do rei, os estudos de Troïl, a missão
científica dos senhores Gaimard e Robert, a bordo da corveta francesa
La Recherche2 e, recentemente, as observações dos sábios embarcados na
fragata La Reine Hortense haviam contribuído consideravelmente para
o mapeamento da Islândia. Mas, acredite em mim, há muito a ser feito.
— Você acha? — perguntou meu tio em um tom bondoso, tentan-
do controlar o brilho dos seus olhos.
— Sim. Quantas montanhas, geleiras e vulcões a estudar que são
pouco conhecidos! Olhe, sem ir muito longe, veja esta montanha que se
ergue no horizonte. Este é o Sneffels.
— Ah! — disse meu tio. — O Sneffels.
— Sim, um dos vulcões mais curiosos e cuja cratera é raramente
visitada.
— Extinto?
— Sim, extinto há quinhentos anos.
— Bom! — respondeu meu tio, que cruzou freneticamente as per-
nas para não saltarem no ar — Gostaria de começar meus estudos geo-
lógicos desse Seffel… Fessel… Como você disse?

Viagem ao Centro da Terra 91


— Sneffels — respondeu o excelente senhor Fridriksson.
Esta parte da conversa se deu em latim. Eu havia entendido tudo,
mal conseguia manter minha seriedade ao ver meu tio contendo sua
satisfação que estava transbordando por todos os lados. Ele tentava apa-
rentar um ar inocente que mais parecia com uma careta de um velho
diabo.
— Sim — ele disse — suas palavras me convenceram. Nós tentare-
mos escalar o Sneffels, e talvez até estudar a sua cratera.
— Lamento — respondeu o senhor Fridriksson — minhas obriga-
ções não me permitem me ausentar. Eu os acompanharia com prazer e
proveito.
— Oh, não! Oh, não! — respondeu vivamente meu tio — Não que-
remos incomodar ninguém, senhor Fridriksson. Lhe agradeço de todo
meu coração. A presença de um sábio como você seria muito útil, mas
os deveres de sua profissão…
Gosto de pensar que nosso anfitrião, cuja inocência de sua alma
islandesa, não suspeitava da grande malícia de meu tio.
— Eu aprovo fortemente, senhor Lidenbrock — disse ele — de
começar com esse vulcão. Você fará uma grande coleta de observações
curiosas. Mas, diga-me, como planeja chegar na península do Sneffels?
— Pelo mar, cruzando a baía. É a rota mais rápida.
— Sem dúvidas. Mas é impossível tomá-la.
— Por quê?
— Pois não temos uma única canoa em Reykjavik.
— Diabos!
— Terá que ir por terra, seguindo pela costa. Será mais demorada,
mas será mais interessante.
— Bom. Verei de procurar um guia.
— Tenho justamente um a lhe oferecer.
— Um homem seguro, inteligente?
— Sim, um habitante da península. É um caçador de êider, muito
hábil, com o qual ficará satisfeito. Ele fala perfeitamente dinamarquês.
— E quando poderei vê-lo?
— Amanhã, se você desejar.
— Por que não hoje?
— É que ele não chega até amanhã.

Viagem ao Centro da Terra 92


— Amanhã, então — respondeu meu tio com um suspiro.
Essa importante conversa terminou alguns instantes mais tarde
com calorosos agradecimentos do professor alemão para o professor is-
landês. Durante o jantar, meu tio havia aprendido coisas importantes,
entre elas, a história de Saknussemm, a razão de seu documento miste-
rioso, que seu anfitrião não o acompanharia em sua expedição e que, no
dia seguinte, um guia estaria a suas ordens.

1- O Index Librorum Prohibitorum é a lista de livros banidos pela Igreja Católica por serem
considerados heréticos ou contrários à moral.

2- Nota do autor: La Recherce foi enviada em 1835 pelo almirante Duperré para encontrar
os vestígios da expedição perdida de Jules de Blosseville e sua embarcação La Lilloise,
da qual nunca tivemos notícias.

Viagem ao Centro da Terra 93


Capítulo 11
O CAÇADOR DE ÊIDER
11. O CAÇADOR DE ÊIDER

À noite saí para uma curta caminhada


pela orla de Reykjavik, e voltei cedo para
me deitar em minha cama de tábuas, onde
dormi um profundo sono.
Quando acordei ouvi meu tio falando
profusamente na sala ao lado. Levantei-me
de imediato e me apressei para me juntar a
ele. O professor estava conversando em di-
namarquês com um homem alto e de vigor
descomunal. Esse sujeito alto devia ter uma
força incomum. Seus olhos, encravados em
uma cabeça muito grande e um tanto in-
gênua, pareciam inteligentes. Tinham um
tom de azul sonhador. Seu cabelo comprido
caía sobre seus ombros atléticos e passaria
facilmente por ruivo mesmo na Inglaterra.
O nativo tinha movimentos suaves e
dificilmente movia seus braços, como quem
ignora ou desdenha a língua dos gestos.
Tudo nele revelava um temperamento de
perfeita calma, não indolente, apenas tran-
quilo. Sentíamos que ele não pedia favores,
que trabalhava da forma que lhe convém e
que, nesse mundo, nada podia questionar
ou perturbar a sua filosofia.
Percebi as nuances de sua personalida-
de pela forma como o islandês escutava a
verborragia apaixonada de seu interlocutor.
Ele permaneceu de braços cruzados, imó-
vel em meio aos vários gestos de meu tio.
Para negar, movia sua cabeça da esquerda
à direita, e para afirmar, de cima a baixo,
sempre de forma tão controlada que seus

Viagem ao Centro da Terra 96


cabelos mal se moviam. Era a economia de movimentos levada ao cú-
mulo da avareza.
Certamente, vendo esse homem, eu jamais adivinharia que sua
profissão era a caça. Este certamente não espantava a caça, mas como
era capaz de capturá-la?
Tudo se explicou quando o senhor Fridriksson me disse que calmo
personagem em questão era “caçador de êider”, um pássaro cuja penu-
gem constitui a maior riqueza da ilha. Na verdade, essa penugem é cha-
mada de edredom e não é preciso muito movimento para coletá-la.
Nos primeiros dias de verão, a fêmea de êider, uma bela ave que se
parece com um pato, constrói o seu ninho nos rochedos dos fiordes1que
recortam toda a costa. Construído o ninho, ela então o forra com a plu-
magem que arranca de seu próprio ventre. Nesse momento, o caçador,
ou melhor, o comerciante, se aproxima e rouba o ninho. Dessa forma,
a fêmea é obrigada a refazer seu trabalho até que não lhe reste nenhu-
ma plumagem. Quando ela está completamente depenada é a vez do
macho. Mas como suas penas são mais duras e grosseiras, elas não têm
nenhum valor comercial, e o caçador não se dá ao trabalho de roubar o
leito de sua ninhada, e o ninho pode ser finalizado. A fêmea põe os ovos,
de onde os pequenos filhotes eclodem e, no ano seguinte, recomeça a
colheita do edredom.
Como o êider não escolhe os rochedos escarpados para construir
seus ninhos, mas sim as rochas horizontais e de fácil acesso que se per-
dem mar adentro, o caçador islandês exerce sua profissão sem muita
agitação. Ele era um fazendeiro que não tinha que semear nem ceifar
sua produção, apenas colher.
Esse personagem sério, fleumático e silencioso chamava-se Hans
Bjelke e veio por recomendação do senhor Fridriksson para ser nosso
guia. Seus maneirismos contrastavam singularmente com os de meu tio.
No entanto, eles se entenderam facilmente. Nem um nem o outro
dava muita atenção aos valores, um pronto para aceitar o que lhe ofe-
recessem, e o outro pronto a pagar o que lhe cobrassem. Nunca foi tão
fácil concluir uma negociação.
Ao fim do acordo, Hans se comprometeu a nos conduzir à aldeia
de Stapi, localizada na costa meridional da península de Sneffels, no
sopé do vulcão. Por terra seriam aproximadamente vinte e duas milhas,
ou trinta e cinco quilômetros, uma jornada a ser feita em dois dias, de

Viagem ao Centro da Terra 97


acordo com a opinião de meu tio.
Mas quando descobriu que eram milhas dinamarquesas de vinte e
quatro mil pés, ou seja, aproximadamente cento e sessenta quilômetros,
precisou refazer seus cálculos e contar, considerando a precariedade das
estradas, com sete ou oito dias de marcha.
Quatro cavalos deveriam ser colocados à sua disposição: dois para
carregar eu e meu tio, e outros dois destinados à nossa bagagem. Hans,
como era seu costume, iria a pé. Ele conhecia esta parte da costa perfei-
tamente bem e prometeu tomar os caminhos mais curtos.
Seu compromisso com meu tio não terminaria ao chegarmos em
Stapi. Ele permaneceria a seu serviço durante todas as etapas necessá-
rias para suas excursões científicas, ao custo de três rixdales2 por se-
mana. Ficou expressamente acordado que essa soma seria contabilizada
para o guia todos os sábados à noite, e essa era a condição sine qua non
de seu contrato.
A partida foi agendada para 16 de Junho. Meu tio queria dar um
adiantamento ao caçador, mas este recusou com uma palavra.
— Efter — disse ele.
— Depois — traduziu meu tio para minha edificação.
Concluído o trato, Hans se retirou bruscamente.
— Um homem notável! — elogiou meu tio — Mal sabe o maravi-
lhoso papel que o futuro lhe reserva.
— Então ele vai nos acompanhar até…
— Sim, Axel, até o centro da Terra.
Faltavam ainda quarenta e oito horas até a partida, e para meu
grande pesar, tive de usá-las em nossos preparativos. Toda a nossa inte-
ligência foi empregada para organizar cada objeto da maneira mais van-
tajosa, os instrumentos de um lado, as armas de outro, as ferramentas
aqui, as provisões pra lá. Eram quatro fardos ao todo.
Os instrumentos incluíram:
1. Um termômetro centígrado da Eigel, graduado até cento e cin-
quenta graus, o que me pareceu demais ou insuficiente. Demais, se o
calor ambiente subisse nesse ponto, teríamos cozinhado. Não bastava,
se se tratasse de medir a temperatura de fontes ou de qualquer outro
material fundido.
2. Um manômetro de ar comprimido, disposto de forma a indicar
pressões superiores às da atmosfera ao nível do oceano. Na verdade, o

Viagem ao Centro da Terra 98


barômetro comum não teria sido suficiente, a pressão atmosférica tendo
que aumentar na proporção de nossa descida abaixo da superfície da
Terra.
3. Um cronômetro Boissonnas novo de Genebra, perfeitamente
ajustado ao meridiano de Hamburgo.
4. Duas bússolas de inclinação e declinação.
5. Uma lente noturna.
6. Dois aparelhos Ruhmkorff3, que, por meio de uma corrente elé-
trica, forneciam uma luz muito portátil, segura e compacta.
As armas consistiam em dois rifles da Purdley More e Co. e dois
revólveres Colt. Por que armas? Não tínhamos selvagens ou feras ferozes
a temer, eu acho. Mas meu tio parecia se ater a seu arsenal, assim como
a seus instrumentos, especialmente uma quantidade notável de nitroce-
lulose resistente à umidade, e cuja força expansiva é muito maior do que
a da pólvora comum.
As ferramentas incluíam duas picaretas, duas enxadas, uma escada
de seda, três varas de ferro, um machado, um martelo, uma dúzia de
cunhas e pitons de ferro, e longas cordas com nós. Isso não deixava de
fazer um pacote grande, pois a escada tinha noventa metros de compri-
mento.
Finalmente, havia as provisões. O pacote não era grande, mas re-
confortante, pois eu sabia que em carne concentrada e biscoitos secos
tínhamos comida para seis meses. O destilado, chamado genebra4, for-
mava toda a parte líquida, e nos faltava água, mas tínhamos cantis, e
meu tio contava com as fontes para enchê-los. As objeções que fiz à sua
qualidade, temperatura e até mesmo sua ausência não tiveram sucesso
em convencê-lo.
Para completar a nomenclatura exata de nossos itens de viagem,
notei uma farmácia portátil contendo tesouras com lâminas cegas, talas
para fraturas, um pedaço de fita adesiva, bandas e compressas, espara-
drapo, uma vasilha para sangria: todas coisas apavorantes. Além disso,
uma série de frascos contendo dextrina, álcool vulnerário, acetato de
chumbo líquido, éter, vinagre e amoníaco, todos medicamentos que não
são muito reconfortantes de se usar. E, finalmente, os materiais necessá-
rios para os aparelhos de Ruhmkorff
Meu tio tomou o cuidado de não esquecer o suprimento de fumo,
pólvora para a caça e isca, nem um cinto de couro que usava na cintura

Viagem ao Centro da Terra 99


e no qual havia uma quantidade suficiente de troco em moedas de ouro,
prata e papel. Sapatos bons, impermeabilizados por uma camada de pi-
che e borracha plástica, eram seis pares no grupo de ferramentas.
— Tão bem vestidos, calçados e equipados, não tem um motivo
sequer para não chegarmos longe — disse meu tio.
O dia 14 foi inteiramente dedicado a organizar esses vários objetos.
À noite, jantamos com o Barão Trampe, acompanhados do prefeito de
Reykjavik e do Doutor Hyaltalin, o grande médico do país. O senhor
Fridriksson não estava entre os convidados. Mais tarde, soube que ele e
o governador estavam em desacordo por causa de uma questão admi-
nistrativa e não se viam. Portanto, não tive a oportunidade de entender
uma palavra do que estava sendo dito durante esse jantar semioficial. Eu
só percebi que meu tio falava o tempo todo.
No dia seguinte, 15, os preparativos foram concluídos. Nosso an-
fitrião agradou muito ao professor entregando-lhe um mapa da Islân-
dia, incomparavelmente mais perfeito que o de Henderson, o mapa do
senhor Olaf Nikolas Olsen, reduzido para 1/180.000 e publicado pela
Sociedade Literária Islandesa, baseado no trabalho geodésico do senhor
Scheel Frisac e levantamento topográfico pelo senhor Bjorn Gumlaug-
sonn. Um documento precioso para um mineralogista.
A última noite foi passada em uma conversa íntima com o senhor
Fridriksson, por quem senti uma profunda simpatia. Depois a conversa
foi seguida de um sono bastante agitado, pelo menos da minha parte.
Às cinco da manhã, o relinchar de quatro cavalos impacientes sob
minha janela me acordou. Vesti-me às pressas e saí para a rua. Lá, Hans
terminou de carregar nossa bagagem sem se mover, por assim dizer.
No entanto, ele operou com habilidade incomum. Meu tio fazia mais
barulho do que trabalhava, e o guia parecia pouco se importar com suas
recomendações.
Tudo acabou às seis horas. O senhor Fridriksson apertou nossas
mãos. Meu tio agradeceu em islandês por sua gentil hospitalidade, e
com muito coração. Quanto a mim, esbocei no meu melhor latim uma
saudação cordial. Nos pusemos sobre as selas, e o senhor Fridriksson
me lançou em sua última despedida este verso que Virgílio parecia ter
escrito para nós, viajantes incertos quanto ao caminho:
Et quacumque viam dederit fortuna sequamur.

Viagem ao Centro da Terra 100


1- Nota do autor: Nome dado aos golfos estreitos nos países escandinavos.

2- Nota do autor: 16 francos e 98 centavos

3- Nota do autor: O aparelho de M. Ruhmkorff consiste em uma pilha Bunzen, ativada no centro
de bicromato de potássio, que não exala odor; uma bobina de indução coloca a eletricidade
produzida pela bateria em comunicação com uma lanterna de um arranjo particular; nesta
lanterna há uma serpentina de vidro onde o vácuo foi criado e na qual apenas um resíduo
de dióxido de carbono ou nitrogênio permanece. Quando o aparelho está em funcionamento,
esse gás torna-se luminoso produzindo uma luz esbranquiçada e contínua. A bateria
e o carretel são colocados em uma bolsa de couro que o viajante carrega ao ombro.
A lanterna, colocada externamente, ilumina muito suficientemente nas obscuridades
profundas; permite aventurar-se, sem medo de qualquer explosão, no meio dos gases mais
inflamáveis, e não sai nem nos rios mais profundos. O Sr. Ruhmkorff é um físico culto
e habilidoso. Sua grande descoberta é a bobina de indução que possibilita a produção
de eletricidade em alta tensão. Acabava de obter, em 1864, o preço quinquenal de 50.000
Francos que a França reservava para a mais engenhosa aplicação da eletricidade.

4- Um tipo de bebida forte de países como Holanda, Bélgica, Alemanha e França, feita com
zimbro.

Viagem ao Centro da Terra 101


Capítulo 12
UM BELO PASSEIO
12. UM BELO PASSEIO

Tínhamos saído com tempo nublado, mas firme. Nenhum calor


cansativo para temer, nem chuvas desastrosas. Um clima ideal para tu-
ristas.
O prazer de correr a cavalo por um país desconhecido tornou mais
fácil para mim começar essa aventura Me entreguei inteiramente à fe-
licidade do excursionista, feito de desejos e liberdade. Eu estava come-
çando a gostar da minha participação nisso tudo.
“Além disso”, disse a mim mesmo, “o que estou arriscando? Viajar
por um dos mais curiosos países! Escalar uma montanha notável! No
pior dos casos, descer ao fundo de uma cratera extinta! É bastante óbvio
que esse Saknussemm não fez mais nada. Quanto à existência de uma
galeria que termina no centro do globo, pura imaginação! Pura impos-
sibilidade! Então, vamos aproveitar tudo que essa expedição oferecer de
bom, e sem pechinchar.”
Mal havia me convencido desse raciocínio e já tínhamos saído de
Reykjavik.
Hans caminhava na frente, com um passo rápido, uniforme e contí-
nuo. Os dois cavalos carregados com a nossa bagagem o seguiram, sem
que fosse necessário conduzi-los. Meu tio e eu viemos em seguida, e
realmente sem passarmos muita vergonha sobre nossos pequenos, mas
vigorosos animais.
A Islândia é uma das grandes ilhas da Europa. Ela mede cento e
três mil quilômetros quadrados de superfície e tem apenas sessenta mil
habitantes. Os geógrafos o dividiram em quatro distritos, e tivemos que
cruzar quase obliquamente o quadrante sudoeste, Sudvestr Fjordùngr.
Hans, saindo de Reykjavik, seguiu imediatamente às margens do
mar. Estávamos atravessando pastos magros que custavam muito para
serem verdes, o amarelo era mais bem sucedido. As brumas do leste, às
vezes, algumas manchas de neve, concentrando a luz difusa, brilhavam
nas encostas dos cumes distantes. Certos picos, erguidos com mais co-
ragem, perfuravam as nuvens cinzentas e reapareciam acima dos vapo-
res em movimento, como recifes emergindo no céu.

Viagem ao Centro da Terra 104


Frequentemente, essas cadeias de rochas áridas apontavam para o
mar e mordiam o pasto, mas ainda deixavam um espaço suficiente para
nossa passagem. Além disso, nossos cavalos escolheram instintivamente
os lugares certos, sem nunca diminuir o passo. Meu tio nem mesmo teve
o consolo de excitar sua montaria com uma voz ou um chicote, ele não
tinha permissão para ficar impaciente. Eu não pude deixar de sorrir ao
vê-lo tão alto em seu pequeno cavalo, e enquanto suas longas pernas
deslizavam pelo chão ele parecia um centauro de um metro e oitenta.
— Mas que belo animal! Bom animal! — ele disse — Você verá,
Axel, que nenhum animal supera o cavalo islandês em inteligência.
Neve, tempestades, caminhos intransponíveis, rochas, geleiras, nada
pode impedi-lo. Ele é corajoso, sóbrio e seguro. Nunca um passo em
falso, nunca uma reação. Que haja algum rio, algum fiorde para atraves-
sar, e haverá algum, você o verá sem hesitar lançar-se na água como um
anfíbio e chegar à margem oposta! Mas não o apresse, deixe-o agir, e nós
faremos, bem montados, nossos quarenta quilômetros diários.
— Nós, sem dúvida — respondi — mas e o guia?
— Oh! Ele não me preocupa. Pessoas como ele caminham sem ao
menos perceber. Ele se move tão pouco que não deve se cansar. Além
disso, se necessário, darei a ele minha montaria. Seria bom que me mo-
vesse para impedir que as câimbras tomem conta de mim logo. Os bra-
ços estão bem, mas é preciso pensar nas pernas.
No entanto, estávamos avançando em um ritmo rápido. O país já
estava quase deserto. Aqui e ali, uma fazenda isolada, algum boër1 soli-
tário, construído com madeira, terra, pedaços de lava, apareciam como
mendigos à beira de uma estrada. Essas cabanas dilapidadas pareciam
implorar a caridade dos transeuntes e, por pouco, não lhes deixamos
esmolas. Neste país, faltavam estradas, e até mesmo trilhas, a vegetação,
por mais lento que fosse seu crescimento, havia apagado rapidamente os
passos dos raros viajantes.
E mesmo assim, esta parte da província, localizada a poucos passos
de sua capital, era uma das porções habitadas e cultivadas da Islândia.
Quais eram então as terras mais desertas do que este deserto? Quase um
quilômetro cruzado, ainda tínhamos que encontrar um fazendeiro na
porta de sua cabana de palha, ou um pastor selvagem pastoreando um
rebanho menos selvagem do que ele, apenas algumas vacas e ovelhas

Viagem ao Centro da Terra 105


sobraram para se defenderem por si mesmas. Como seriam as regiões
convulsionadas, perturbadas por fenômenos eruptivos, nascidos de ex-
plosões vulcânicas e comoções subterrâneas?
Estávamos destinados a conhecê-los mais tarde, mas, olhando para
o mapa de Olsen, vi que eles foram evitados indo ao longo da borda
sinuosa da costa. Na verdade, o grande movimento plutônico concen-
trou-se principalmente no interior da ilha. Lá, as camadas horizontais
de rochas sobrepostas, chamadas trapps, armadilhas na língua escandi-
nava, as faixas traquíticas, as erupções de basalto, de tufos, de todos os
conglomerados vulcânicos, os fluxos de lava e pórfiro em fusão, fizeram
da ilha um horror sobrenatural. Não poderia sequer suspeitar, então,
quais espetáculos nos esperavam na península de Sneffels, onde estes
acidentes de natureza ígnea formaram um caos formidável.
Duas horas depois de deixar Reykjavik, chegamos ao burgo de Gu-
funes, chamado de Aoalkikja ou “Igreja Matriz”. Não ofereceu nada de
notável. Algumas casas apenas. Dificilmente o suficiente para fazer uma
aldeia na Alemanha.
Hans parou ali por meia hora, ele compartilhou nosso almoço fru-
gal, respondeu sim e não às perguntas do meu tio sobre a natureza da
estrada e quando perguntado onde ele planejava passar a noite disse
apenas:
— Gardär.
Olhei para o mapa para descobrir o que era Gardär. Eu vi um vila-
rejo com esse nome nas margens do Hvalfjörd, a trinta quilômetros de
Reykjavik. Mostrei ao meu tio.
— Apenas trinta quilômetros! — ele disse. — Trinta quilômetros
em cento e sessenta! Que belo passeio.
Ele queria ainda fazer uma observação ao guia, que, sem lhe dar
atenção, tomou seu lugar à frente dos cavalos e recomeçou a marcha.
Três horas depois, ainda pisando na grama descolorida dos pastos,
foi necessário contornar o Kollafjörd, um desvio mais fácil e mais cur-
to do que cruzar este golfo. Logo entramos em um pingstaoer, local de
jurisdição comunal, chamado Ejulberg, e cuja torre do sino teria soado
meio-dia, se as igrejas islandesas fossem ricas o suficiente para ter um
relógio, mas elas se parecem muito com seus paroquianos, que não têm
relógios e que vivem muito bem sem eles.

Viagem ao Centro da Terra 106


Lá, os cavalos fizeram uma pausa para se hidratar pela última vez,
depois, tomando por um litoral estreito entre uma cadeia de colinas e
o mar, transportaram-nos de uma só vez até ao aoalkirkja de Brantär, e
sete quilômetro mais até saurböer annexia, igreja anexa, situada na costa
sul de Hvalfjörd.
Eram então quatro da tarde, tínhamos cruzado quase trinta quilô-
metros2.
O fiorde tinha pelo menos três quilômetros e meio de largura no
ponto onde estávamos, as ondas batiam ruidosamente nas rochas pon-
tiagudas. Esse abismo se alargava entre paredes de rochas, uma espécie
de escarpa íngreme de novecentos metros de altura e notável por suas
camadas marrons separadas por camadas de tufo de tonalidade averme-
lhada. Qualquer que fosse a inteligência de nossos cavalos, não achava
nada de bom a travessia de um verdadeiro braço de mar montado nas
costas de um quadrúpede.
— Se eles forem espertos — eu disse — não tentarão atravessar. De
qualquer forma, cuidarei de ser inteligente por eles.
Mas meu tio não quis esperar. Ele mergulhou ambos em direção
à costa. Sua montaria farejou a última ondulação das ondas e parou.
Meu tio, que tinha seus próprios instintos, pressionou-a com mais força.
Outra recusa do animal, que balançou a cabeça. Então, nós xingamos e
açoitamos, e o cavalo dava coices na tentativa de derrubar seu cavaleiro.
Por fim, o cavalinho, dobrando as patas, escapou das pernas do pro-
fessor e deixou-o de pé sobre duas pedras na praia, como o Colosso de
Rodes.
— Ah! Maldito animal! — gritou o cavaleiro, repentinamente
transformado em pedestre, envergonhado como um oficial de cavalaria
que é rebaixado a um soldado de infantaria.
— Färja — disse o guia, tocando seu ombro.
— O que! uma balsa?
— Der — Hans respondeu, apontando para um barco.
— Claro! — exclamei — Uma balsa.
— Então deveria ter dito! Pois então vamos!
— Tidvatten - continuou o guia.
— O que ela está dizendo?
— Ele diz “maré” — respondeu meu tio, traduzindo a palavra dina-
marquesa para mim.

Viagem ao Centro da Terra 107


— Sem dúvida, devemos esperar a maré?
— Förbida? — Meu tio perguntou.
— Ja — Hans respondeu.
Meu tio batia o pé enquanto os cavalos se dirigiam para a balsa.
Compreendi perfeitamente a necessidade de esperar um determi-
nado momento da maré para empreender a travessia do fiorde, aquele
em que o mar atingia a sua maior altura, é quando se acalma. Assim, o
fluxo e a refluxo não têm ação significativa, e a balsa não corre o risco de
ser transportada, seja para o fundo do golfo, seja para o oceano aberto.

Viagem ao Centro da Terra 108


O momento favorável só chegou às seis da tarde. Meu tio, eu, o
guia, dois barqueiros e os quatro cavalos, havíamos tomado nossos lu-
gares em uma espécie de barco chato um tanto frágil. Como eu estava
acostumado com as balsas a vapor no Elba, achei os remos dos barquei-
ros um triste dispositivo mecânico. Demorou mais de uma hora para
cruzar o fiorde, mas no final a passagem foi feita sem acidentes.
Meia hora depois, chegamos ao aoalkirkja de Gardär.

1- Nota do autor: Casa do camponês islandês.

2- Nota do autor: Oito léguas.

Viagem ao Centro da Terra 109


Capítulo 13
SAELLVERTU
13. SAELLVERTU

Deveria estar escuro, mas no sexagésimo quinto paralelo, a clareza


noturna das regiões polares não deveria me surpreender. Na Islândia,
durante os meses de Junho e Julho, o sol não se põe.
No entanto, a temperatura havia caído. Eu estava com frio e, prin-
cipalmente, com fome. Bem-vindo foi o böer que se abriu hospitaleiro
para nos receber.
Era uma casa de camponês, mas em termos de hospitalidade pare-
cia a de um rei. Quando chegamos, o dono veio nos estender a mão e,
sem mais delongas, fez sinal para que o seguíssemos.
Na verdade, não segui-lo teria sido impossível. Uma passagem lon-
ga, estreita e escura dava acesso a esta casa construída com vigas mal
trabalhadas e permitia o acesso a cada um dos quartos. Eram quatro: a
cozinha, a tecelagem, a badstofa, ou dormitório da família e, o melhor
de todos, o quarto dos hóspedes. Meu tio, cujo tamanho não havia sido
sequer sonhado ao construir a casa, não deixou de acertar a cabeça três
ou quatro vezes contra as saliências do teto.
Fomos apresentados ao nosso quarto, uma espécie de grande sala
com chão de terra batida e iluminada por uma janela cujas vidraças
eram feitas de membranas de ovelha não muito transparentes. A cama
consistia em forragem seca jogada em duas armações de madeira pinta-
das com vermelho e adornadas com frases islandesas. Eu não esperava
tanto conforto, mas reinava nesta casa um cheiro forte de peixe seco,
carne macerada e leite azedo, que não agradava nem um pouco o meu
olfato.
Depois de nos despirmos das tralhas de viajantes, ouviu-se a voz do
anfitrião, que nos convidava a entrar na cozinha, único cômodo onde se
acendia o fogo, mesmo no inverno mais frio.
Meu tio se apressou em obedecer a essa injunção amigável, e eu o
segui.
A lareira da cozinha era de um modelo antigo, no meio da sala,
uma pedra para o braseiro, e no telhado, um buraco pelo qual a fumaça
escapava. Esta cozinha também servia como sala de jantar.

Viagem ao Centro da Terra 112


Quando entramos, o anfitrião, como se ainda não nos tivesse visto,
saudou-nos com a palavra saellvertu, que significa “seja feliz”, e beijou
nossas bochechas.
Sua esposa, depois dele, pronunciou as mesmas palavras, acompa-
nhada do mesmo cerimonial. Então, os dois cônjuges, colocando a mão
direita sobre o coração, curvaram-se profundamente.
Apresso-me em dizer que a islandesa era mãe de dezenove filhos,
todos eles, grandes e pequenos, fervilhando desordenadamente em
meio às nuvens de fumaça com que a lareira enchia a sala. A cada mo-
mento eu via uma cabecinha loira e um pouco melancólica emergindo
dessa névoa. Parecia uma guirlanda de anjinhos encardidos.
Meu tio e eu recebemos calorosamente essa “ninhada”, logo havia
três ou quatro dessas crianças em nossos ombros, tantos em nossos joe-
lhos e o resto entre nossas pernas. Aqueles que falavam repetiam o saell-
vertu em todos os tons imagináveis. Aqueles que não falavam gritavam
ainda mais alto.
Este concerto foi interrompido pelo anúncio da refeição. Nesse mo-
mento voltou o caçador, que acabara de providenciar comida para os
cavalos, ou seja, de forma econômica, os havia libertado pelos campos,
os pobres animais tinham que se contentar em pastar no raro musgo das
rochas e algumas algas não muito nutritivas, e no dia seguinte não dei-
xariam de vir por conta própria para retomar o trabalho do dia anterior.
— Saellvertu — disse Hans.
Então, silenciosamente, de forma costumeira, sem um beijo ser
mais acentuado do que o outro, ele beijou o anfitrião, a anfitriã e seus
dezenove filhos.
Terminada a cerimônia, sentamo-nos à mesa, vinte e quatro pesso-
as e, portanto, uma em cima da outra, no verdadeiro sentido do termo.
Os mais afortunados se viram com apenas dois pirralhos sobre o colo.
No entanto, o silêncio caiu neste pequeno mundo com a chegada
da sopa, e a taciturnidade natural, mesmo para os miúdos islandeses,
retomou o seu império. O anfitrião nos serviu uma sopa líquen bas-
tante desagradável, depois uma grande porção de peixe seco nadando
em manteiga, uma rançosa há vinte anos e, portanto, muito preferível
à manteiga fresca, de acordo com as ideias gastronômicas da Islândia.
Com isso veio o Skyr, uma espécie de leite coalhado, acompanhado de

Viagem ao Centro da Terra 113


biscoito e temperado com suco de zimbro. Enfim, para bebida, soro de
leite misturado com água, chamado de blanda no país. Se esta comida
singular era boa ou não, isso eu não podia julgar. Eu estava com fome
e, como sobremesa, engoli um grosso mingau de trigo sarraceno até o
último gole.
Quando as refeições acabaram, as crianças desapareceram. Os
adultos cercaram a lareira, onde turfa, urze, esterco de vaca e ossos de
peixe secos queimavam. Então, após esta “captura de calor”, os vários
grupos voltaram para suas respectivas salas. A anfitriã se ofereceu para
tirar nossas meias e calças, de acordo com o costume, mas, com a mais
cortês recusa de nossa parte, ela não insistiu, e finalmente fui capaz de
me aconchegar em minha camada de forragem.
No dia seguinte, às cinco horas, despedimo-nos do camponês is-
landês. Meu tio teve grande dificuldade em fazer com que ele aceitasse
uma remuneração adequada, e Hans deu o sinal para ir embora.
A cem passos de Gardär, o terreno começou a mudar, o solo tor-
nou-se pantanoso e menos favorável para caminhadas. À direita, a série
de montanhas continuava indefinidamente como um imenso sistema de
fortificações naturais, das quais seguíamos a contra-escarpa. Frequente-
mente, havia riachos a cruzar, os quais era necessário vadear para não
molhar muito a bagagem.
O deserto ficou cada vez mais profundo. Às vezes, porém, uma
sombra humana parecia fugir à distância. Se os desvios da estrada nos
aproximasse inesperadamente de um desses espectros, sentia uma re-
pulsa repentina ao ver uma cabeça inchada e brilhante, desprovida de
cabelo e feridas repulsivas que apareciam sob os rasgos dos trapos mi-
seráveis.
A infeliz criatura não veio e estendeu a mão machucada. Pelo con-
trário, ela estava fugindo, mas não tão rapidamente que Hans não a ti-
vesse saudado com o usual Saellvertu.
— Spetelsk — ele explicou.
— Um leproso! — repetiu meu tio.
E esta palavra sozinha produziu seu efeito repelente. Essa horrível
doença é bastante comum na Islândia, não de forma contagiosa, mas
hereditária. Inclusive, por isso, o casamento é proibido para esses pobres
miseráveis.

Viagem ao Centro da Terra 114


Viagem ao Centro da Terra 115
Essas aparições não alegravam a paisagem que cada vez mais se en-
tristecia profundamente, os últimos tufos de grama estavam morrendo
sob nossos pés. Nenhuma árvore, exceto alguns aglomerados de bétulas
tão sofridas que não passavam de arbustos. Nem um animal, senão al-
guns cavalos, daqueles que seu mestre não podia alimentar e que vaga-
vam nas planícies sombrias. Às vezes, um falcão pairava sob as nuvens
cinzentas e rapidamente se ia voando para as regiões do sul. Eu me dei-
xei levar na melancolia desta natureza selvagem e minhas memórias me
trouxeram de volta ao meu país natal.
Logo foi necessário cruzar vários pequenos fiordes sem importân-
cia e, finalmente, um verdadeiro golfo. A maré então abrandou, permi-
tiu-nos passar sem demora e chegar à aldeia de Alftanes, situada uma
milha mais à frente.
Ao entardecer, depois de atravessarmos dois rios ricos em trutas
e lúcios, o Alfa e o Heta, fomos obrigados a pernoitar em uma cabana
abandonada, digna de ser assombrada por todos os goblins da mitologia
escandinava. Sem dúvida, os espíritos do frio fixaram residência lá, e
fizeram suas próprias vontades ao longo da noite.
O dia seguinte não apresentou nenhum incidente particular. Ainda
o mesmo solo pantanoso, a mesma uniformidade, o mesmo rosto triste.
À noite, havíamos percorrido metade da distância a ser percorrida e
dormimos na annexia em Krösolbt.
Em 19 de Junho, por cerca de um quilômetro, um campo de lava
se estendeu sob nossos pés. Este arranjo de terras é chamado de hraun
no país. A lava enrugada na superfície acrescentava formas de cabos, às
vezes alongados, às vezes enrolados em si mesmos. Um imenso fluxo
desceu das montanhas vizinhas, vulcões atualmente extintos, mas cujos
destroços atestavam a violência do passado. Por vezes, um pouco de
fumaça de fontes termais rastejava e escapava aqui e ali.
Não tivemos tempo suficiente para observar esses fenômenos, pre-
cisávamos continuar a caminhada. Logo o solo pantanoso reapareceu
sob os pés de nossas montarias, pequenos lagos cruzaram com ele. Nos-
sa direção era então oeste. De fato, havíamos virado a grande baía de
Faxa, e o pico duplo branco de Sneffels erguia-se nas nuvens a pouco
menos de quarenta quilômetros.

Viagem ao Centro da Terra 116


Os cavalos andavam bem. As dificuldades do solo não os detive-
ram, mas da minha parte, estava começando a ficar muito cansado. Meu
tio permaneceu firme e ereto como no primeiro dia. Não pude deixar
de admirá-lo tanto quanto ao caçador, que tratava esta expedição como
um simples passeio.
No sábado, 20 de Junho, às seis horas da tarde, chegamos a Büdir,
uma vila à beira-mar, e o guia exigiu o pagamento combinado. Meu
tio concordou com ele. Foi a própria família de Hans, ou seja, seus tios
e primos de primeiro grau, que nos ofereceram hospitalidade. Fomos
bem recebidos e, sem abusar da gentileza dessas pessoas boas, eu teria
com prazer me recuperado do cansaço da viagem em sua casa. Mas meu
tio, que não tinha mais nada para fazer, não entendeu assim, e no dia
seguinte tivemos que montar de novo em nossos bons animais.
O solo era ressentido nas proximidades da montanha, cujas raízes
de granito saíam da terra como as de um velho carvalho. Contornamos
a enorme base do vulcão. O professor não tirou os olhos dele, ele gesti-
culava, parecia desafiá-lo e dizer: “Então aqui está o gigante que vou do-
mar!”. Finalmente, após quatro horas de caminhada, os cavalos pararam
sozinhos na porta do presbitério de Stapi.

Viagem ao Centro da Terra 117


Capítulo 14
A ÚLTIMA PARADA
14. A ÚLTIMA PARADA

Stapi é uma vila composta por cerca de trinta cabanas e construída


sobre lava e sob os raios do sol refletidos pelo vulcão. Estende-se no
fundo de um pequeno fiorde encerrado por uma parede de basalto do
mais estranho efeito.
Sabemos que o basalto é uma rocha marrom de origem ígnea que
adquire formas regulares que surpreendem pelo seu arranjo. Aqui a na-
tureza procede geometricamente e funciona da maneira humana, como
se tivesse sustentado o esquadro, a bússola e o prumo. Se em todos os
outros lugares ela faz arte com suas grandes massas atiradas sem ordem,
seus cones mal esboçados, suas pirâmides imperfeitas, com a sucessão
bizarra de suas linhas, aqui, querendo dar o exemplo de regularidade,
e precedendo os arquitetos desde os primeiros tempos, ela criou uma
ordem severa, que nem os esplendores da Babilônia nem as maravilhas
da Grécia jamais superaram.
Eu tinha ouvido falar da Calçada do Gigante na Irlanda e da Caver-
na de Fingal em uma das Hébridas1, é claro, mas nunca havia presencia-
do o espetáculo da substrução basáltica.

Viagem ao Centro da Terra 120


A parede do fiorde, como toda a costa da península, consistia em
uma série de colunas verticais de nove metros de altura. Estes barris re-
tos e de proporções puras sustentavam uma arquivolta, feita de colunas
horizontais cuja saliência formava uma meia-abóbada sobre o mar. A
certos intervalos, e sob este implúvio natural, o olhar avistava aberturas
ogivais de desenho admirável, através das quais as ondas do mar come-
çaram a espumar. Alguns trechos de basalto, arrancados pela fúria do
oceano, estavam estendidos no solo como os destroços de um antigo
templo, ruínas eternamente jovens, sobre as quais os séculos se passa-
ram sem quebrá-los.
Esta foi a última parada em nossa jornada terrena. Hans havia nos
conduzido até lá com inteligência, e eu me tranquilizei um pouco pen-
sando que ele teria de nos acompanhar novamente.
Chegando à porta da casa do pároco, uma cabana simples e baixa,
nem mais bonita nem mais confortável que as vizinhas, vi um homem
ferrando um cavalo, martelo na mão e avental de couro nas costas.
— Saellvertu — o caçador disse a ele.
— God dag — respondeu o ferreiro em dinamarquês perfeito.
— Kyrkoherde — Hans disse, voltando-se para meu tio.
— O pároco! — o último repetiu — Parece, Axel, que este bom
homem é o pároco.
O guia informou o kyrkoherde da situação, que suspendendo o tra-
balho, soltou uma espécie de grito indubitavelmente usado entre cavalos
e negociantes de cavalos, e imediatamente uma bruxa alta saiu da caba-
na. Se ela não tinha mais de um metro e oitenta, não estava longe disso.
Tive medo de que ela viesse oferecer aos viajantes o beijo islandês,
mas isso não aconteceu, e não teve a menor delicadeza ao nos introduzir
sua casa.
O quarto de visitas me parecia o pior do presbitério, estreito, sujo
e asqueroso. Era preciso ficar satisfeito com isso. O pároco não parecia
praticar a hospitalidade ancestral. Longe disso. Antes do final do dia, vi
que estávamos lidando com um ferreiro, um pescador, um caçador, um
carpinteiro e de algum modo um ministro do Senhor. Estávamos nos
dias de semana, é verdade. Talvez ele compensasse aos domingos.

Viagem ao Centro da Terra 121


Não pretendo falar mal desses pobres padres que, afinal, são mui-
to miseráveis, eles têm tratamento ridículo do governo dinamarquês e
recebem um quarto do dízimo paroquial, que não é a soma de sessenta
marcos atuais2. Daí a necessidade de trabalhar para viver, mas de tanto
pescar, caçar e ferrar cavalos, acaba-se adotando as maneiras, o tom e os
costumes de caçadores, pescadores e outras pessoas um tanto rudes. Na
mesma noite, percebi que nosso anfitrião não contava com a sobriedade
entre suas virtudes.
Meu tio entendeu rapidamente com que tipo de homem ele estava
lidando, em vez de um erudito digno e valente, ele encontrou um cam-
ponês pesado e grosseiro. Ele, portanto, resolveu começar sua grande
expedição o mais rápido possível e abandonar essa paróquia inóspita.
Ele não se importou com o cansaço e decidiu ir passar alguns dias nas
montanhas.
Os preparativos para a partida foram, portanto, feitos no dia se-
guinte à nossa chegada a Stapi. Hans contratou os serviços de três islan-
deses para substituir os cavalos no transporte de bagagem, mas, uma vez
que chegássemos ao fundo da cratera, esses nativos teriam que voltar e
nos abandonar a nós mesmos. Esse ponto estava perfeitamente resolvi-
do.
Nessa ocasião, meu tio teve que informar ao caçador que sua inten-
ção era continuar o reconhecimento do vulcão até seus últimos limites.
Hans apenas acenou com a cabeça. Para ir para lá ou para outro
lugar, adentrar nas entranhas de sua ilha ou viajar por ela, não tinha a
menor diferença para ele. Quanto a mim, até então distraído pelos inci-
dentes da viagem, havia me esquecido um pouco do futuro, mas agora
sentia a expectativa voltando a tomar conta de mim. O que fazer sobre
isso? Se eu pudesse ter tentado resistir ao Professor Lidenbrock, seria
em Hamburgo e não no sopé de Sneffels.
Uma ideia, entre todas, me incomodava muito, uma ideia assusta-
dora feita para abalar os nervos até de sujeitos menos sensíveis que os
meus.
“Ora”, disse a mim mesmo, “Vamos escalar o Sneffels. Será ótimo.
Visitaremos sua cratera, outros o fizeram que não morreram. Mas isso
não é tudo. Se houver como descer às entranhas do solo, se este infeliz

Viagem ao Centro da Terra 122


Saknussemm tiver dito a verdade, nos perderemos no meio das galerias
subterrâneas do vulcão. No entanto, nada confirma que o Sneffels es-
teja mesmo extinto! Quem prova que uma erupção não se prepara? Só
porque o monstro está dormindo desde 1229, não significa que ele não
pode acordar? E se ele acordar, o que será de nós?”.
Valeu a pena pensar nisso, e eu estava pensando nisso. Não conse-
guia dormir sem sonhar com uma erupção na pele. No entanto, o papel
da escória parecia bastante brutal para mim.
Finalmente, não aguentei mais. Resolvi submeter o caso ao meu tio
com a maior habilidade possível e na forma de uma hipótese perfeita-
mente impraticável.
Eu fui procurá-lo. Contei-lhe sobre meus medos e recuei para dei-
xá-lo explodir à vontade.
— Eu estava pensando sobre isso — respondeu ele simplesmente.
O que essas palavras significam? Ele iria ouvir a voz da razão? Ele
estava pensando em suspender seus planos? Era bom demais para ser
verdade.
Após alguns momentos de silêncio, durante os quais não ousei
questioná-lo, ele continuou, dizendo:
— Eu estava pensando nisso desde a nossa chegada a Stapi, estou
preocupado com a grave questão que acaba de me apresentar, porque
não devemos agir de forma imprudente.
— Não mesmo — concordei impetuosamente.
— Sneffels está em silêncio há seiscentos anos, mas pode falar. No
entanto, as erupções são sempre precedidas de fenômenos bem conhe-
cidos. Por isso, questionei os habitantes do país, estudei o solo e posso
lhe dizer, Axel, que não haverá erupção.
Fiquei chocado com essa afirmação e não pude responder.
— Você duvida de minhas palavras? — disse meu tio — Bem! Me
siga.
Obedeci mecanicamente. Ao sair do presbitério, o professor per-
correu um caminho reto que, por uma abertura na parede basáltica,
afastava-se do mar. Logo estávamos em campo aberto, se podemos dar
esse nome a um imenso monte de excrementos vulcânicos. O país pare-
cia esmagado por uma chuva de pedras enormes, trapp, basalto, granito
e todas as rochas piroxênicas.

Viagem ao Centro da Terra 123


Aqui e ali notei fumarolas subindo no ar, esses vapores brancos,
chamados de reykir na língua islandesa, vinham das fontes termais e
indicavam, por sua violência, a atividade vulcânica do solo. Pareceu-me
justificar meus temores. Então, eu caí do cavalo quando meu tio me
disse:
— Você vê toda essa fumaça, Axel? Bem, elas provam que não te-
mos nada a temer com a fúria do vulcão!
— Como assim?! — exclamei.
— Lembre-se disso — continuou o professor — quando uma erup-
ção se aproxima essas fumarolas redobram sua atividade para desapa-
recer completamente durante a duração do fenômeno, pois os fluidos
elásticos, não tendo mais a tensão necessária, tomam o caminho das
crateras para escapar pelas fendas do globo. Se, portanto, esses vapores
são mantidos em seu estado normal, se sua energia não aumenta, se
você adicionar a esta observação que o vento e a chuva não são subs-
tituídos por ar pesado e calmo, pode-se afirmar que não ocorrerá uma
erupção tão cedo.
— Mas…
— Basta. Quando a ciência fala, não resta nada a fazer além de ficar
em silêncio.
Voltei à aldeia com o rabo entre as pernas. Meu tio havia me batido
com argumentos científicos. No entanto, eu ainda tinha esperança, que
uma vez que chegássemos ao fundo da cratera, seria impossível, por
falta de uma galeria, descer mais fundo, e quanto a isso nem todos os
Saknussemm no mundo poderiam fazer algo.
Passei a noite seguinte em um pesadelo no meio de um vulcão e,
das profundezas da Terra, me senti lançado em espaços planetários na
forma de rocha eruptiva.
No dia seguinte, 23 de Junho, Hans estava nos esperando com seus
companheiros carregados de provisões, ferramentas e instrumentos.
Duas varas calçadas, dois rifles, dois cintos de cartuchos foram reserva-
dos para meu tio e para mim. Hans, um homem cauteloso, havia acres-
centado à nossa bagagem uma garrafa cheia que, junto com nossas ca-
baças, nos servia de água por uma semana.
Eram nove da manhã. O reitor e sua megera estavam esperando
do lado de fora da porta. Sem dúvida queriam enviar-nos a despedida

Viagem ao Centro da Terra 124


suprema do anfitrião ao viajante. Mas esta despedida assumiu a forma
inesperada de uma nota formidável, em que se podia contar até o ar da
casa pastoral, um ar fedorento, atrevo-me a dizê-lo. Este casal digno nos
cobrou como um estalajadeiro suíço e levou sua hospitalidade superes-
timada a um ponto excelente.
Meu tio pagou sem pechinchar. Um homem que partia para o cen-
tro da Terra não olhava para alguns rixdales.
Resolvido esse ponto, Hans deu o sinal de partida e, alguns instan-
tes depois, deixamos Stapi.

1- Esses lugares parecem ter saído de um conto de fadas, a Calçada do Gigante é palco
de lendas irlandesas sobre uma batalha de gigantes, e a Caverna de Fingal recebeu
até uma poesia composta por Felix Mendelssohn em 1830.

2- Nota do autor: Moeda de Hamburgo, cerca de 90 francos.

Viagem ao Centro da Terra 125


Capítulo 15
O SNEFFELS
15. O SNEFFELS

O Sneffels tem mil quatrocentos e quarenta e seis metros de altura.


Termina, com o seu duplo cone, uma banda traquítica que se destaca no
sistema orográfico da ilha. Do nosso ponto de partida, não podíamos
ver seus dois picos destacando-se contra o fundo acinzentado do céu.
Eu só vi uma enorme camada de neve cair sobre a testa do gigante.
Caminhamos em fila, precedidos pelo caçador. Subia por caminhos
estreitos onde duas pessoas não poderiam estar lado a lado. Toda con-
versa, portanto, tornou-se quase impossível.
Além da parede basáltica do fiorde de Stapi, apareceu pela primeira
vez um solo de turfa herbácea e fibrosa, resíduo da antiga vegetação dos
pântanos da península. A massa desse combustível ainda inexplorado
seria suficiente para aquecer toda a população da Islândia por um sécu-
lo. Esse vasto pântano, medido a partir do fundo de certas ravinas, tinha
muitas vezes vinte metros de altura e apresentava camadas sucessivas de
detritos carbonizados, separados por camadas de tufo de pedra-pomes.

Viagem ao Centro da Terra 128


Como verdadeiro sobrinho do Professor Lidenbrock e apesar das
minhas preocupações, observei com interesse as curiosidades minera-
lógicas apresentadas neste vasto gabinete de história natural. Ao mesmo
tempo, eu estava refazendo em minha mente toda a história geológica
da Islândia.
Esta ilha, tão curiosa, obviamente emergiu do fundo do mar em
tempos relativamente modernos. Talvez até volte a subir por um movi-
mento insensível. Se assim for, sua origem só pode ser atribuída à ação
de incêndios subterrâneos. Portanto, neste caso, a teoria de Humphry
Davy, o documento de Saknussemm, as alegações do meu tio, tudo esta-
va se dissipando. Essa hipótese me levou a examinar atentamente a na-
tureza do solo, e logo percebi a sucessão de fenômenos que presidiram
à sua formação.
A Islândia, que teve origem absolutamente em terrenos sedimen-
tares, é constituída inteiramente por tufo vulcânico, ou seja, um aglo-
merado de pedras e rochas de textura porosa. Antes da existência dos
vulcões, era constituída por um maciço trapeano, lentamente erguido
acima das ondas pelo impulso das forças centrais. Os incêndios internos
ainda não haviam explodido.
Mais tarde, porém, uma grande fenda alargou-se diagonalmente de
sudoeste a nordeste da ilha, através da qual gradualmente vazou toda a
pasta traquítica. O fenômeno foi então realizado sem violência, a saída
era enorme, e a matéria derretida, expelida das entranhas do globo, es-
palhou-se silenciosamente em vastos lençóis ou em massas acidentadas.
Na época surgiram os feldspatos, os sienitos e os pórfiros.
Mas, graças a esse derramamento, a espessura da ilha aumentou
consideravelmente e, consequentemente, sua resistência. Podemos ima-
ginar a quantidade de fluidos elásticos que ficava armazenada em seu
seio, quando ela não oferecia mais saída, após o resfriamento da crosta
traquítica. Então, chegou um momento em que a potência mecânica
desses gases era tal que eles levantaram a pesada casca e cavaram altas
chaminés. A partir daí, o vulcão sobe na crosta, e então a cratera de re-
pente perfurou o topo do vulcão.
Em seguida, os fenômenos eruptivos sucederam aos fenômenos
vulcânicos. Pelas aberturas recém-formadas, escaparam primeiro os
excrementos basálticos, dos quais a planície que atravessávamos neste

Viagem ao Centro da Terra 129


momento oferecia ao nosso olhar os mais belos exemplares. Estávamos
caminhando sobre essas pesadas rochas cinzas e escuras que o resfria-
mento moldou em prismas hexagonais. À distância, podia-se ver um
grande número de cones achatados, que já foram tantas aberturas resis-
tentes ao fogo.
Depois, esgotada a erupção basáltica, o vulcão, cuja força aumen-
tava com a das crateras extintas, dava passagem às lavas e a esses tufos
de cinza e escória cujos longos fluxos pude ver espalhados pelos lados
como cabelos.
Tal foi a sucessão dos fenômenos que constituíram a Islândia. Tudo
veio da ação de fogos internos, e supor que a massa interna não perma-
necesse em um estado permanente de liquidez incandescente era uma
loucura. Loucura acima de tudo fingir chegar ao centro do globo!
Então, eu me tranquilizei sobre o resultado de nosso empreendi-
mento, enquanto marchava para o ataque de Sneffels.
A estrada tornou-se cada vez mais difícil, o terreno estava subindo,
os cacos de rocha tremiam, e a atenção mais escrupulosa era necessária
para evitar quedas perigosas.
Hans avançava silenciosamente como em terreno plano, às vezes
ele desaparecia atrás dos grandes blocos e nós o perdemos de vista mo-
mentaneamente. Então, um assobio estridente escapou de seus lábios
indicando a direção a seguir. Frequentemente também parava, pegava
alguns destroços de rocha, arrumava-os de uma maneira reconhecível
e, assim, formava marcos com a intenção de indicar o caminho de volta.
Uma precaução boa em si mesma, mas que eventos futuros tornariam
inútil.
Três cansativas horas de caminhada apenas nos levaram à base da
montanha. Hans fez um gesto para parar e um breve almoço foi compar-
tilhado entre todos. Meu tio comeu pedaços duplos para ir mais rápido.
Só que esta reparação deixou de ser também uma paragem de descanso,
teve que esperar o bom gosto do guia, que deu o sinal para a partida
uma hora depois. Os três islandeses, tão taciturnos quanto o camarada
caçador, não disseram uma única palavra e comeram sobriamente.
Estávamos agora começando a subir as encostas de Sneffels. Seu
cume nevado, por uma ilusão de ótica frequente nas montanhas, pare-
cia-me muito próximo, e ainda, quantas horas antes de alcançá-lo! Que

Viagem ao Centro da Terra 130


cansaço acima de tudo! As pedras
que nenhuma terra e nenhuma
relva segurariam desmoronavam
sob nossos pés e iam se perder
na planície com a rapidez de uma
avalanche.
Devo dizer que meu tio se
manteve perto de mim tanto
quanto possível. Ele não me per-
deu de vista e, em muitas ocasi-
ões, seu braço me dá um apoio
sólido. De sua parte, ele prova-
velmente tinha um senso inato de
equilíbrio, porque não vacilou. Os
islandeses, embora carregados,
escalaram com agilidade de mon-
tanheses.
Ao ver a altura do cume do
Sneffels, parecia-me impossível
que pudesse ser alcançado deste
lado, se o ângulo de inclinação das
encostas não fechasse. Felizmente,
após uma hora de cansaço e feitos
de força, no meio do vasto tapete
de neve que se formou na garu-
pa do vulcão, apareceu inespera-
damente uma espécie de escada
que simplificou nossa subida. Foi
formada por uma daquelas tor-
rentes de pedras rejeitadas pelas
erupções e cujo nome islandês é
“stina”. Se essa torrente não tivesse
sido interrompida em sua queda
pela disposição das encostas da
montanha, ela teria precipitado
no mar e formado novas ilhas.

Viagem ao Centro da Terra 131


Como ela era, nos serviu bem. O declive das encos-
tas aumentava, mas estes degraus de pedra permitiam es-
calá-los com facilidade, e mesmo com tanta rapidez, que
tendo ficado um momento para trás enquanto meus com-
panheiros continuavam a subida, os vi já reduzidos, pela
distância, há uma aparência microscópica.
Às sete horas da noite, havíamos subido os dois mil
degraus da escada e avistamos um afloramento da mon-
tanha, uma espécie de alicerce sobre a qual repousava o
verdadeiro cone da cratera.
O mar se estendia a uma profundidade de novecen-
tos e sessenta metros. Havíamos ultrapassado o limite da
nevasca perpétua, que era relativamente baixa na Islândia
devido à umidade constante do clima. Ele pegou um forte
resfriado. O vento soprava com força. Eu estava exausto.
O professor viu que minhas pernas me negavam favores
e, apesar da impaciência, resolveu parar. Então ele fez um
sinal para o caçador, que balançou a cabeça, dizendo:
— Ofvanför.
— Parece que temos que subir mais — disse meu tio.
Então ele perguntou a Hans o motivo de sua resposta.
— Mistour — respondeu o guia.
— Ja, mistour — repetiu um dos islandeses em um
tom bastante assustado.
— O que significa essa palavra? — eu perguntei com
preocupação.
—Veja — disse meu tio.
Eu olhei para a planície. Uma imensa coluna de pe-
dra-pomes em pó, areia e poeira ergueu-se, girando como
uma tromba d’água. O vento soprava do lado do Sneffels,
ao qual estávamos agarrados. Esta cortina opaca, esten-
dida na frente do sol, lançava uma grande sombra sobre
a montanha. Se essa tromba d’água se curvar, inevitavel-
mente nos enredará em seus redemoinhos. Esse fenôme-
no, bastante frequente quando o vento sopra das geleiras,
leva o nome de mistour na língua islandesa.
— Hastigt, hastigt — gritou nosso guia.

Viagem ao Centro da Terra 132


Sem saber dinamarquês, entendi que devíamos seguir Hans o mais
rápido possível. Este começou a girar o cone da cratera, mas inclinando-se
para facilitar a caminhada. Logo a tromba d’água caiu na montanha, que
estremeceu com o choque. As pedras apreendidas nos redemoinhos do
vento voaram na chuva como em uma erupção. Felizmente, estávamos na
encosta oposta e protegidos de todos os perigos. Sem a precaução do guia,
nossos corpos dilacerados, reduzidos a pó, teriam caído para trás na dis-
tância como o produto de algum meteoro desconhecido.
Porém, Hans não considerou prudente pernoitar nos flancos do cone.
Continuamos nossa ascensão em ziguezague; os mil e quinhentos pés que
faltavam percorrer levaram quase cinco horas. os desvios, as inclinações e
os contra-passos mediam pelo menos três léguas. Eu não aguentava mais,
sucumbi ao frio e à fome. O ar, um pouco mais rarefeito, não bastava para
que meus pulmões funcionassem.
Finalmente, às onze horas da noite, em completa escuridão, o cume
do Sneffels foi alcançado, e, antes de ir me abrigar dentro da cratera, tive
tempo de ver "o sol da meia-noite" pela manhã. carreira, projetando seus
raios pálidos na ilha adormecida aos meus pés

Viagem ao Centro da Terra 133


Capítulo 16
A SOMBRA DO SCARTARIS
16. A SOMBRA DO SCARTARIS

O jantar foi devorado rapidamente e o pequeno grupo se abrigou


do melhor jeito que era possível. A cama era dura, o abrigo frágil, e
a nossa situação desconfortável, a aproximadamente mil e quinhentos
metros acima do nível do mar. Ainda assim, eu dormi particularmente
bem, foi uma das melhores noites que eu já tive. Nem ao menos sonhei.
Na manhã seguinte, acordamos quase congelando por conta do
vento forte sob a luz de um belo Sol. Me levantei da minha cama de
granito para desfrutar do magnífico espetáculo que se estendia diante
de meus olhos.
Estava de pé no cume do pico mais ao sul do Sneffels. De lá, minha
vista se estendia sobre grande parte da ilha. Por conta de uma ilusão
óptica, comum às grandes alturas, as costas pareciam se erguer e o cen-
tro diminuir. Parecia que tinha aos meus pés um dos mapas de relevo
de Helbesmer. Eu conseguia ver vales profundos cruzando uns aos ou-
tros em todas as direções, precipícios como poços, lagos reduzidos a
poças e rios diminuídos em riachos. À minha direita, inúmeras geleiras
e numerosos picos se sucediam uns aos outros, alguns pareciam até se
acomodar confortavelmente acima das nuvens. A ondulação destas in-
finitas montanhas, cujas camadas de neve pareciam feitas de espuma,
me lembraram da superfície de um mar agitado. Quando me virei para
o oeste, o oceano se espalhava majestosamente, como a continuação dos
cumes de enevoados. A vista mal podia dizer onde a terra acabava e as
ondas começavam.
Me afundei no êxtase que cumes altos criam na mente e desta vez,
sem vertigem, pois finalmente estava me acostumando a estas contem-
plações elevadas1. O meu olhar deslumbrado foi banhado pela irradia-
ção dos raios solares. Eu estava esquecendo de quem eu era, onde estava,
ao invés disso, vivi a vida dos elfos e das sílfides2, habitantes da mitologia
escandinava. Me senti intoxicado pelo prazer das alturas sem pensar no
abismo em que o destino iria em breve me afundar. Mas eu fui trazido
de volta à realidade pela chegada de Hans e do professor, que se junta-
ram a mim no cume.

Viagem ao Centro da Terra 136


Meu tio, se virando para o oeste, apontou para uma leve fumaça,
um borrão, um semblante de terra que dominava a linha do horizonte.
— Groenlândia — ele disse.
— Groenlândia?! — exclamei.
— Sim, estamos a menos de cento e setenta quilômetros de distân-
cia, e durante os degelos os ursos polares vêm até a Islândia, carregados
pelo gelo. Mas isso não importa. Estamos no topo do Sneffels, e há dois
picos, um ao norte e um ao sul. Hans vai nos dizer o nome pelo qual os
islandeses chamam esse que estamos agora.
Ao ouvir, Hans respondeu:
— Scartaris.
Meu tio me olhou triunfante.
— Para a cratera! — exclamou.
A cratera do Sneffels se assemelhava a um cone invertido, cuja
abertura poderia ter dois quilômetros de diâmetro. Sua profundidade
parecia ser de mais ou menos seiscentos metros. Imagine a aparência de
tal recipiente quando ele é preenchido por trovões e chamas. O fundo
do funil tinha aproximadamente setenta e seis metros em circunferên-
cia, de modo que as encostas suaves permitiam que se alcançasse a bor-
da inferior sem dificuldade. Involuntariamente, comparei toda a cratera
com um enorme e oco bacamarte3 e a comparação me assustou.
“Que loucura,” pensei, “ir para dentro de um bacamarte quando ele
talvez esteja carregado e pronto para disparar por um mísero impacto”.
Mas não havia saída. Hans continuou a nos conduzir com um ar de
indiferença. Eu o segui calado.
No intuito de facilitar a descida, Hans descia o cone em um cami-
nho em espiral. Tínhamos que andar por entre rochas eruptivas, algu-
mas das quais, abaladas em seus suportes, caiam quicando para dentro
do abismo. Suas quedas reverberavam com estranhos ecos.
Em certas partes do cone se formavam glaciares internos. Sobre es-
ses, Hans avançava com extrema precaução, sondando o caminho com
seu bastão de caminhada com ponta de ferro, para descobrir quaisquer
fissuras. Em passagens particularmente duvidosas, se fazia necessário
amarrar-nos uns aos outros com uma longa corda, de modo que qual-
quer um que perdesse o equilíbrio pudesse ser segurado pelos seus com-
panheiros. Essa solidariedade era prudente, mas não eliminava todo o
perigo.

Viagem ao Centro da Terra 137


No entanto, apesar da dificuldade da descida nas encostas des-
conhecidas pelo guia, a jornada foi concluída sem acidentes, exceto pela
perda de um rolo de corda, que escapou das mãos de um islandês e to-
mou o caminho mais curto para o fundo do abismo.
Ao meio-dia, nós chegamos. Eu ergui minha cabeça e vi diretamen-
te acima de mim a abertura superior do cone, enquadrando um pedaço
do céu em uma diminuta circunferência, mas quase perfeitamente re-
donda. Em um ponto somente se destacava o pico do Scartaris, perden-
do-se na imensidão.
No fundo da cratera se abriam três chaminés, pelas quais o Sneffels,
durante suas erupções, evacuava lava e vapor de sua fornalha central.
Cada uma dessas chaminés tinha por volta de trinta metros de diâme-
tro. Elas se abriram diante do nosso caminho. Eu não tinha a coragem de
olhar para dentro delas. Mas o Professor Lidenbrock tinha rapidamente
examinado todas as três, ele estava ofegante, correndo de uma para a
outra, gesticulando e proferindo palavras incompreensíveis. Hans e seus
camaradas, sentados em pedaços de lava, o olhavam. Eles claramente o
achavam louco.
De repente, meu tio soltou um grito. Pensei que ele havia escorre-
gado e caído em um dos buracos. Mas não, eu o vi de braços estendidos,
pernas distantes, e de pé em frente a uma rocha de granito que estava
colocada no centro da cratera como um pedestal pronto para receber
uma estátua de Plutão4. Ele estava com a postura de um homem es-
tupefato, mas cujo espanto rapidamente dava espaço para uma alegria
insensata.
— Axel! Axel! — chamou — Venha! Venha!
Eu corri. Hans e os islandeses nem se mexeram.
— Veja! — disse o professor.
E, compartilhando de seu espanto, embora sem a sua alegria, eu li
na face oeste do bloco de pedra, em caracteres rúnicos, meio apagados
pelo tempo, este nome mil vezes maldito:
— Arne Saknussemm! — exclamou meu tio — Ainda duvida?

Viagem ao Centro da Terra 138


Viagem ao Centro da Terra 139
Não dei nenhuma resposta e retornei consternado para meu banco
de lava em pavor. A evidência me esmagou.
Não posso dizer por quanto tempo permaneci mergulhado em mi-
nhas reflexões. Tudo que sei é que quando ergui minha cabeça nova-
mente, vi meu tio e Hans no fundo da cratera. Os islandeses tinham sido
liberados e agora estavam descendo as encostas exteriores do Sneffels
para retornar a Stapi.
Hans dormia tranquilamente escorado em uma rocha, em uma ca-
vidade de lava, onde ele havia improvisado uma cama. Meu tio estava
perambulando pelo meio da cratera como uma besta selvagem na jaula
de um caçador. Eu não tinha o desejo e nem a força para me erguer.
Seguindo o exemplo do guia, me retirei para cochilar dolorosamente,
pensando que ouvia barulhos ou sentia tremores vindos das margens
da montanha.
Assim se passou a primeira noite no fundo da cratera.
Na manhã seguinte, um céu cinza, nebuloso e pesado. Nuvens car-
regadas sobrevoavam o vulcão. Eu percebi isso mais pela fúria que to-
mava conta do meu tio do que pela escuridão do abismo.
Entendi o motivo e uma vaga esperança retornou ao meu coração.
Eis o porquê.
Das três rotas abertas para nós, apenas uma havia sido tomada por
Saknussemm. De acordo com o sábio islandês, era necessário identificá-
-la pelo detalhe mencionado no criptograma, ele dizia que a sombra do
Scartaris tocaria suas bordas durante os últimos dias do mês de Junho.
Esse agudo pico poderia, portanto, ser considerado o ponteiro de
um imenso relógio de Sol, cuja sombra em um dia específico indicaria o
caminho para o centro da Terra.
Mas sem Sol, sem sombra. Consequentemente, sem indicador. Era
25 de Junho. Se o céu permanecer nublado por seis dias, teríamos que
adiar a expedição para o próximo ano.
Me recuso a descrever a fúria impotente do Professor Lidenbrock.
O dia passou e nenhuma sombra veio se alongar pelo fundo da cratera.
Hans não se moveu de seu canto, ainda assim, devia estar se perguntan-
do o que estávamos esperando, se é que ele se perguntava algo. Meu tio
não direcionou uma palavra a mim. Seu olhar, invariavelmente virado
para o céu, se perdia na cinzenta e nebulosa matiz.
No dia 26, nada ainda. A chuva, misturada com neve, caía o dia

Viagem ao Centro da Terra 140


todo. Hans construiu uma cabana com pedaços de lava. Tive certo pra-
zer em assistir as milhares de cachoeiras improvisadas nas beiradas do
cone, onde cada pedra aumentava o murmúrio ensurdecedor.
Meu tio não podia mais se controlar. Era, de fato, o suficiente para
irritar um homem mais paciente do que ele, porque isto era realmente
encalhar antes de sair do porto.
Mas o Paraíso sempre mistura grandes aflições com grandes ale-
grias, e, para o Professor Lidenbrock, havia tanto satisfação quanto pro-
blemas desesperadores guardados.
No dia seguinte, o céu continuava nublado, mas no dia 29 de Junho,
o penúltimo dia do mês, uma mudança no tempo veio com a mudança
da Lua. O Sol encharcou de luz a cratera. Cada colina, cada pedra, cada
rugosidade teve sua quota da enchente iluminada e lançou sua sombra
no chão. Dentre todas elas, a sombra do Scartaris se desenhava em uma
aresta viva, que começou a se mover lentamente na direção oposta da
estrela radiante.
Meu tio se virou com ela.
Ao meio-dia, quando era mais curta, ela pincelava suavemente a
borda da chaminé central.
— Ali está! Ali está! — gritou o professor — Para o centro da Terra!
— ele disse em dinamarquês.
Eu olhei para o Hans.
— Forüt! — ele disse baixinho.
— Em frente! — respondeu meu tio.
Era uma e treze da tarde.

Viagem ao Centro da Terra 141


1- Nesse momento, a árdua subida ao campanário em Copenhague se provou útil.

2- Os elfos, seres belos e luminosos, eram muito ligados à natureza, e eram abençoados com
a longevidade e magia de dar inveja aos alquimistas. Já as sílfides, também conhecidas como
elementais do ar, manipulam o vento, as nuvens e flocos de neve ao seu bel prazer.

3- Esta arma de fogo possui um cano com abertura similar a um funil, era usada para espalhar
uma carga de chumbo grosso. Não queria servir de munição para esse vulcão.

4- Hades para os gregos, Plutão era o deus dos mortos e responsável por tudo aquilo que
se encontrava no submundo abaixo da Terra. Infelizmente, isso estava prestes a nos incluir.

Viagem ao Centro da Terra 142


Capítulo 17
O POÇO
17. O POÇO

A verdadeira viagem começou. Até então, o cansaço havia superado


as dificuldades. Mas agora estes surgiriam literalmente sob nossos pés.
Eu ainda não havia mergulhado meu olhar naquele poço inson-
dável no qual iria me entranhar. O momento havia chegado. Eu ainda
podia tomar parte nesta empreitada ou me recusar a tentá-la. Mas tive
vergonha de recuar diante do caçador. Hans aceitou tão tranquilamen-
te a aventura, com tanta indiferença, uma inconsequência tão perfeita
diante de todo o perigo que corei com a ideia de ser menos corajoso do
que ele. Sozinho, eu teria começado uma série de grandes argumentos.
Mas, na presença do guia, fiquei em silêncio. Uma de minhas memórias
voou em direção a minha linda virlandesa, e me aproximei da chaminé
central.
Como eu havia dito, ela media trinta metros de diâmetro, ou no-
venta metros de circunferência. Me inclinei sobre uma saliência de ro-
chas e olhei. Meus cabelos se eriçaram. O sentimento de vazio tomou
conta de meu ser. Senti meu centro de gravidade se deslocar de mim e a
vertigem subir a minha cabeça como embriaguez. Nada mais inebriante
que essa atração pelo abismo. Eu ia cair. Uma mão me segurou. A de
Hans. Decididamente, eu não havia tido aulas de abismo o suficiente na
Frelsers Kirke em Copenhague.
No entanto, pelo pouco que me arrisquei a olhar neste poço, me dei
conta de seu formato. Suas paredes, praticamente íngremes, apresenta-
vam no entanto numerosas saliências que deveriam facilitar a descida.
Mas se não faltava a escada, faltava o corrimão. Uma corda amarrada à
abertura teria sido o suficiente para nos sustentar, mas como desamar-
rá-la quando tivermos atingido a sua extremidade inferior?
Meu tio empregou um método muito simples para contornar essa
dificuldade. Ele desenrolou uma corda da grossura de um polegar e com
cento e vinte metros de comprimento. Primeiro ele deixou metade dela
cair, depois enrolou em um bloco de lava proeminente e jogou a outra
metade na chaminé. Cada um de nós poderia então descer juntando nas

Viagem ao Centro da Terra 145


mãos as duas metades da corda, que assim não poderiam escapar. Uma
vez que descermos sessenta metros, nada será mais fácil que recuperar
a corda soltando uma ponta e puxando a outra. Então, recomeçaríamos
esse exercício ad infinitum.
— Agora — disse meu tio ao ter completado esses preparativos —
vamos tratar das bagagens. Elas serão divididas em três pacotes e cada
um de nós irá amarrar um nas costas. Me refiro apenas aos objetos frá-
geis.
O audacioso professor evidentemente não nos incluía nesta última
categoria.
— Hans — ele continuou — se encarregará das ferramentas e de
uma parte dos suprimentos. Você, Axel, da segunda parte dos supri-
mentos e das armas. Eu, do resto dos suprimentos e instrumentos deli-
cados.
— Mas — falei — e as roupas e esse monte de cordas e escadas?
Quem se encarregará de descê-los?
— Eles descerão sozinhos.
— Como assim? — perguntei.
— Você vai ver.
Meu tio empregava voluntariamente meios grandiosos e sem hesi-
tar.
Ao seu comando, Hans reuniu em um único pacote os objetos não
frágeis, e esse pacote, solidamente amarrado, foi simplesmente jogado
no abismo.
Eu ouvi o sonoro rugido produzido pelo deslocamento das cama-
das de ar. Meu tio, inclinado sobre o abismo, seguia com um olhar sa-
tisfeito a descida de suas bagagens e só se levantou após tê-las perdido
de vista.
— Bem — ele disse — agora é a nossa vez.
Pergunto a todos os homens de boa fé se é possível ouvir tais pala-
vras sem estremecer.
O professor amarrou em suas costas o pacote de instrumentos.
Hans pegou o das ferramentas e eu, o das armas. A descida começou na
seguinte ordem: Hans, meu tio e eu. Ela se deu em profundo silêncio,
perturbado apenas pela queda de detritos das rochas que se precipita-
vam pelo abismo.

Viagem ao Centro da Terra 146


Eu me deixava afundar, por assim dizer, segurando freneticamente
a dupla corda com uma mão e, com a outra, me apoiando em meu bas-
tão de ferro. Uma única ideia me dominava: tinha medo de ficar sem
ponto de apoio. Essa corda me parecia muito frágil para suportar o peso
de três pessoas. Eu a utilizava o menos possível, realizando milagres de
equilíbrio nas saliências de lava que meu pé tentava se segurar como se
fosse uma mão.
Quando um desses degraus escorregadios balançavam sob os pés
de Hans, ele dizia com sua voz tranquila:
— Gif akt!
— Atenção! — repetia meu tio.
Após meia hora, chegamos à superfície de uma rocha fortemente
presa na parede da chaminé.
Hans puxou a corda por uma de suas extremidades. A outra se er-
gueu no ar. Depois de ter passado pela rocha superior, ela caiu arras-
tando consigo pedaços de pedra e lava como uma espécie de chuva, ou
melhor, granizo muito perigoso.
Ao me inclinar sobre nosso estreito platô, percebi que o fundo do
buraco permanecia invisível.
A manobra com a corda recomeçou e, meia hora depois, alcança-
mos novos sessenta metros de profundidade.
Não sei se o mais fervoroso dos geólogos teria tentado estudar,
durante esta descida, a natureza dos terrenos que o envolvessem. De
minha parte, não me importei muito. Fossem eles plioceno, mioceno,
eoceno, cretáceo, jurássico, triássico, permiano, carbonífero, devonia-
no, siluriano ou primitivo, pouco me preocupava. Mas o professor, sem
dúvidas, fez suas observações ou anotações, pois, em uma das paradas,
ele me disse:
— Quanto mais vou, mais confio. A disposição desses terrenos
vulcânicos dá absoluta razão à teoria de Davy. Estamos em pleno solo
primordial, solo no qual ocorreu a operação química dos metais infla-
mados em contato com o ar e a água. Eu rejeito absolutamente o sistema
de um calor central. Aliás, veremos isso.
Sempre a mesma conclusão. É compreensível que não me diverti-
ria ao discutir. Meu silêncio foi tomado como concordância e a descida
recomeçou.

Viagem ao Centro da Terra 147


Três horas depois eu ainda não conseguia ver o fundo da chaminé.
Quando olhei para cima, vi que seu orifício diminuiu consideravelmen-
te. Suas paredes, por conta da ligeira inclinação, tendiam a se aproximar.
A escuridão se fazia pouco a pouco.
Contudo, seguimos descendo. Me parecia que as pedras destacadas
da parede eram engolidas com uma repercussão muito maçante e que
deveriam encontrar prontamente o fundo do abismo.
Como eu tomei o cuidado de anotar as nossas manobras com a
corda, fui capaz de calcular exatamente a profundidade e o tempo de-
corrido.
Havíamos repetido catorze vezes aquela manobra que durava meia
hora. Portanto foram sete horas com mais catorze intervalos de quinze
minutos, ou três horas e meia. Ao todo, dez horas e meia. Havíamos
partido à uma hora, deviam ser onze horas naquele momento.
Quanto à profundidade que havíamos alcançado, essas catorze ma-
nobras de uma corda de sessenta metros deram em oitocentos e cin-
quenta metros.
Neste momento, a voz de Hans foi ouvida.
— Halt! — disse ele.
Parei bem no momento em que meus pés estavam para bater na
cabeça de meu tio.
— Chegamos. — ele disse.
— Onde? — perguntei, escorregando para baixo perto dele.
— Ao fundo da chaminé perpendicular.
— Então, não há outra saída?
— Sim, uma espécie de corredor que vejo e que se curva para a
direita. Veremos isso amanhã. Primeiro vamos jantar e depois dormi-
remos.
A escuridão ainda não era completa. Abrimos a bolsa de provisões,
comemos e deitamos o melhor que podíamos em uma cama de pedras
e detritos de lava.
E quando, deitado de costas, abri os olhos e vi um ponto brilhante
na extremidade deste tubo de novecentos metros de comprimento, que
se transformou em uma gigantesca luneta.

Viagem ao Centro da Terra 148


Era uma estrela, sem brilho nenhum e que, de acordo com meus
cálculos, devia ser a Beta da Ursa Menor.
Em seguida, caí em um sono profundo.

Viagem ao Centro da Terra 149


Capítulo 18
FACILIS DESCENSUS AVERNI
18. FACILIS DESCENSUS AVERNI

Às oito horas da manhã, um raio de Sol veio nos acordar. As mil


facetas da lava nas paredes o recolheram durante sua passagem e o es-
palharam como uma chuva de faíscas.
Esse brilho era forte o suficiente para distinguirmos os objetos ao
nosso redor.
— Bom! Axel, o que me diz? — exclamou meu tio, esfregando as
mãos — Já passou uma noite mais tranquila do que esta em nossa casa
da Königstrasse? Sem os barulhos de charretes, sem a gritaria dos mer-
cadores, sem os berros dos barqueiros.
— Sem dúvidas estamos muito tranquilos no fundo deste poço,
mas essa mesma calmaria tem algo de assustador.
— Deixe disto! — exclamou meu tio — Se você já está assustado
agora, como será mais tarde? Nós ainda não entramos nem um palmo
nas entranhas da Terra.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer que alcançamos apenas o solo da ilha!
— Este longo tubo vertical, que leva à cratera do Sneffels, termina
aproximadamente no nível do mar.
— Tem certeza?
— Muita certeza. Consulte o barômetro.
De fato, o mercúrio, depois de ter subido pouco a pouco no ins-
trumento conforme realizamos nossa descida, havia parado em vinte e
nove polegadas.
— Você vê? — retomou o professor — Ainda estamos sob a pressão
de uma atmosfera e mal posso esperar para que o manômetro substitua
este barômetro.
Este instrumento, de fato, se tornaria inútil no momento em que o
peso do ar ultrapassasse sua pressão calculada no nível do mar.
— Mas — disse — não devemos temer que essa pressão, cada vez
maior, se torne muito penosa?

Viagem ao Centro da Terra 152


— Não. Nós desceremos lentamente e nossos pulmões vão se
acostumar a respirar uma atmosfera mais comprimida. Os aeronautas
acabam ficando sem ar ao se elevarem nas camadas superiores, já nós,
talvez tenhamos demais. Mas eu prefiro assim. Não vamos perder um
instante. Onde está o pacote que nos precedeu no interior da montanha?
Então lembrei-me que o havíamos procurado em vão na noite an-
terior. Meu tio perguntou ao Hans, que, após olhar atentamente com
seus olhos de caçador, respondeu:
— Der huppe!
— Lá em cima.
De fato, esse pacote estava preso em uma saliência de rocha, a uns
trinta metros acima de nossas cabeças. Imediatamente, o ágil islandês
escalou como um gato e, em alguns minutos, o pacote se juntou a nós.
— Agora — disse meu tio — vamos tomar o desjejum, mas um
desjejum como de pessoas que têm um longo caminho a percorrer.
O biscoito e a carne seca foram regados com alguns goles de água
misturados com genebra.
Com o término do desjejum, meu tio tirou de seu bolso um cader-
no destinado a observações. Ele pegou sucessivamente seus instrumen-
tos e anotou os seguintes dados:

Segunda-feira, 1º de Julho.
Cronômetro: 8h 17m da manhã.
Barômetro: 29 p. 7l.
Termômetro: 6º.
Direção: E. -S. -E.

Essa última observação se referia à galeria obscura e foi fornecida


pela bússola.
— Agora, Axel — exclamou o professor com uma voz entusiasma-
da — vamos verdadeiramente adentrar nas entranhas do globo. Este é o
exato momento em que nossa viagem começa.
Dito isso, meu tio pegou o aparelho de Ruhmkorff pendurado em
seu pescoço com uma mão e, com a outra, pôs em comunicação a cor-
rente elétrica com a bobina da lanterna e uma luz bem vívida dissipou
as trevas da galeria.

Viagem ao Centro da Terra 153


Hans carregava o segundo aparelho, que também foi posto em fun-
cionamento. Essa engenhosa aplicação da eletricidade nos permitia se-
guir por um longo tempo ao criar um dia artificial, mesmo em meio aos
gases mais inflamáveis.
— Em frente! — disse meu tio.
Cada um pegou sua carga de volta. Hans se encarregou de empur-
rar diante de si o pacote das cordas e das roupas e, com eu em terceiro,
entramos na galeria.
No momento de me adentrar naquele corredor obscuro, levantei a
cabeça e vi pela última vez, através do imenso tubo, esse céu da Islândia
“que eu deveria ver novamente”.
A lava, na última erupção em 1229, forçou seu caminho através
desse túnel. Ela forrou seu interior com uma camada espessa e brilhan-
te. A luz elétrica, ali refletida, centuplicava sua intensidade.
Toda dificuldade do caminho se dava em não escorregar muito ra-
pidamente em um declive com cerca de quarenta e cinco graus de in-
clinação. Felizmente, certas erosões e algumas bolhas tomavam o lugar
de degraus e só tínhamos de descer, deixando nossa bagagem deslizar,
presa por uma longa corda.
Mas o que eram degraus sob nossos pés se tornavam estalactites
nas paredes. A lava, porosa em certos lugares, apresentavam pequenas
ampolas arredondadas. Cristais de quartzo opaco, adornados com lím-
pidas gotas de vidro e suspensos na abóbada como lustres, pareciam se
iluminar à nossa passagem. Era como se os espíritos do abismo ilumi-
nassem seu palácio para receber os hóspedes da terra.
— É magnífico! — exclamei involuntariamente — Que espetáculo,
meu tio! Você está vendo os tons da lava que vão do marrom averme-
lhado ao amarelo brilhante em gradiente imperceptíveis? E esses cristais
que parecem globos luminosos?
— Ah! Você está chegando lá, Axel! — respondeu meu tio — Ah!
Você acha isso esplêndido, meu rapaz? Você verá muito mais, eu espero.
Andando! Andando!
Seria mais apropriado dizer “vamos escorregando”, pois nos deixá-
vamos ir sem esforço pelas encostas inclinadas. Era o facilis descensus
Averni1 de Virgílio. A bússola, que eu consultava com frequência, apon-
tava para a direção sudeste exatidão imperturbável. Aquele fluxo de lava

Viagem ao Centro da Terra 154


não se curvava nem para um lado nem para o outro. Tinha a inflexibi-
lidade da linha reta.
Enquanto isso, o calor não estava aumentando de maneira percep-
tível. Isso dava razão às teorias de Davy e, mais de uma vez, consultava o
termômetro com espanto. Duas horas depois de nossa partida, ele ainda
marcava 10º, ou seja, um aumento de 4º. Isso me permitia pensar que
nossa descida era mais horizontal do que vertical. Quanto a saber exata-
mente a profundidade alcançada, nada era mais fácil. O professor mediu
com precisão os ângulos de derivação e inclinação da rota, mas guardou
para si os resultados dessas observações.
À noite, por volta das oito horas, ele deu um sinal para pararmos.
Hans imediatamente se sentou. As lâmpadas foram penduradas em uma
saliência de lava. Estávamos em uma espécie de caverna onde não faltava
ar. Pelo contrário. Algumas brisas chegavam até nós. O que as causava?
À que agitação atmosférica se atribui sua origem? Esta é uma questão
que eu não tentava responder nesse momento. A fome e o cansaço me
deixavam incapaz de raciocinar. Uma descida de sete horas consecutivas
não se dá sem um grande dispêndio de forças. Eu estava exausto. Me
agradou ouvir a palavra “pare”. Hans espalhou algumas provisões sobre
um bloco de lava e cada um comeu com apetite. No entanto, uma coisa
me inquietava. Nossa reserva de água havia sido consumida pela meta-
de. Meu tio esperava enchê-las nas nascentes subterrâneas, mas até en-
tão, elas eram absolutamente inexistentes. Não pude deixar de chamar
sua atenção quanto a este tópico.
— Essa ausência de nascentes te surpreende? — disse ele.
— Sem dúvidas, e também me preocupa. Só temos água para cinco
dias.
— Fique tranquilo, Axel, te garanto que vamos encontrar água e
mais do que queremos.
— Quando será isso?
— Quando tivermos deixado este revestimento de lava. Como você
quer que as nascentes jorrem por essas paredes?
— Mas talvez este fluxo se estenda a grandes profundidades. E me
parece que ainda não fizemos um caminho muito vertical.
— O que te faz supor isso?
— Se tivéssemos avançado muito no interior da crosta terrestre, o
calor seria muito maior.

Viagem ao Centro da Terra 155


— De acordo com seu sistema — respondeu meu tio. — O que o
termômetro indica?
— Quase quinze graus, o que é um aumento de apenas nove graus
desde a nossa partida.
— Muito bem, conclua.
— Esta é minha conclusão. De acordo com as observações mais
exatas, o aumento da temperatura no interior do globo é de um grau
para cada trinta metros. Mas certas condições locais podem modificar
esse número. Assim, em Yakutsk, na Sibéria, foi observado que o aumen-
to de um grau se deu a cada dez metros. Essa diferença evidentemente
depende da condutibilidade das rochas. Acrescento também que nas
proximidades de um vulcão extinto e através da gnaisse, foi observado
que a elevação da temperatura era de um grau a cada trinta e oito me-
tros. Tomemos esta última hipótese, que é mais favorável, e calculemos.
— Calcule, meu rapaz.
— Nada mais fácil — disse, dispondo os números em meu caderno.
— Nove vezes trinta e oito metros dá trezentos e quarenta e dois metros
de profundidade.
— Nada mais exato.
— E então?
— Então, de acordo com minhas observações, chegamos a três mil
e quarenta e oito metros abaixo do nível do mar.
— Isso é possível?
— Sim, ou os números não são mais números.
Os cálculos do professor estavam corretos. Já havíamos ultrapas-
sado em mil e oitocentos metros as maiores profundidades alcançadas
pelo homem como as minas de Kitz Bahl, no Tirol e os de Wurttemberg,
na Boêmia2.
A temperatura que deveria ser de oitenta e um graus naquele lugar,
era de apenas quinze. Era algo que restava apenas refletir.

1- "É fácil descer ao inferno", e era o que estávamos fazendo.

2- Tirol é uma região da Europa Oriental e a Boêmia da Europa Central.

Viagem ao Centro da Terra 156


Capítulo 19
TÚNEL LESTE
19. TÚNEL LESTE

No dia seguinte, terça-feira, 30 de Junho, às seis horas, retomamos


a descida.
Continuávamos seguindo a galeria de lava, uma verdadeira rampa
natural, suave como os planos inclinados que ainda substituem a escada
de casas antigas. Foi assim até o meio-dia e dezessete minutos, momen-
to exato em que alcançamos Hans, que acabara de parar.
— Ah! — exclamou meu tio — Chegamos ao final da chaminé.
Olhei ao meu redor. Estávamos no centro de uma encruzilhada,
onde dois caminhos terminavam, ambos sombrios e estreitos. Qual de-
víamos tomar? Havia aí um problema.
No entanto, meu tio não parecia querer hesitar, nem diante de
mim, nem do guia. Ele apontou para o túnel do leste, e logo nós três
entramos nele.
Além do mais, qualquer hesitação diante desse caminho duplo te-
ria se prolongado indefinidamente, pois nenhum indício poderia deter-
minar a escolha de um ou de outro. Tivemos que deixar absolutamente
ao acaso.
A inclinação dessa nova galeria era pouco perceptível e sua seção
muito desigual. Às vezes, uma sucessão de arcos se desenrolava diante
de nós, como as naves1 laterais de uma catedral gótica. Os artistas da
Idade Média poderiam ter estudado ali todas as formas dessa arquitetu-
ra religiosa que a ogiva gerou.
Um quilômetro e seiscentos metros adiante, nossas cabeças se cur-
varam sob os arcos rebaixados no estilo romano, e grandes pilares en-
caixados no maciço dobravam-se sob a base das abóbadas. Em certos
lugares, essa disposição dava lugar a baixas subestruturas que se asse-
melhavam às obras dos castores, e nós tivemos de deslizar e rastejar por
entranhas estreitas.
O calor se manteve em um grau suportável. Involuntariamente,
pensei em sua intensidade, quando as lavas vomitadas pelo Sneffels se
precipitavam por esse caminho tão tranquilo hoje. Eu imaginava as tor-

Viagem ao Centro da Terra 159


rentes de fogo quebrando sob os cantos da galeria e o acúmulo de vapo-
res superaquecidos nesse meio estreito.
“Espero — pensei — que o velho vulcão não venha se despertar
para uma fantasia tardia”.
Eu não comuniquei essas reflexões para o tio Lidenbrock. Ele não
as teria compreendido. Seu único pensamento era de seguir em frente.
Ele andava, deslizava e até tombava com uma convicção, que por fim,
era melhor admirar.
Às seis horas da tarde, depois de uma caminhada um pouco cansa-
tiva, havíamos atingido oito quilômetros em direção ao sul, mas apenas
quatrocentos metros em profundidade.
Meu tio deu o sinal para descansarmos. Comemos sem conversar
muito e adormecemos sem pensar muito mais.
Nossos preparativos para a noite eram muito simples: um cobertor
de viagem no qual nos enrolávamos compunha toda a roupa de capa.
Não precisávamos temer o frio ou uma visita inoportuna. Os viajan-
tes que adentram os desertos da África, ou o seio das florestas do novo
mundo são forçados a vigiar uns aos outros durante as horas de sono.
Mas aqui a solidão era absoluta e a segurança completa. Selvagens ou
bestas ferozes, nenhuma dessas raças malignas era para ser temida.
Acordamos no dia seguinte revigorados e dispostos. Retomamos
o caminho. Seguíamos um caminho de lava como no dia anterior. Era
impossível reconhecer a natureza do terreno que ele atravessava. O tú-
nel, em vez de adentrar nas entranhas do globo, tendia a se tornar abso-
lutamente horizontal. Até pensei ter visto ele subindo para a superfície
da Terra. Essa disposição se tornou tão evidente por volta das dez horas
da manhã, e por consequência tão exaustiva, que fui forçado a moderar
nossa marcha.
— E então, Axel? — disse impacientemente o professor.
— E então eu não aguento mais. — respondi.
— O quê?! Depois de três horas de caminhada em uma estrada tão
fácil.
— Fácil, não posso negar, mas é com certeza cansativa.
— Como? Só temos que descer!
— Subir, sinto dizer.
— Subir! — disse meu tio, encolhendo os ombros.

Viagem ao Centro da Terra 160


— Sem dúvidas. Por meia hora, os declives se modificaram e, se
continuar assim, certamente retornaremos às terras islandesas.
O professor sacudiu a cabeça como um homem que não quer ser
convencido. Tentei retomar a conversa. Ele não me respondeu e deu
sinal para partirmos. Eu percebi que seu silêncio não era nada além de
mau humor concentrado.
De qualquer modo, eu havia pego meu fardo com coragem e segui
o Hans rapidamente, que precedia meu tio. Eu não queria ser deixado
para trás, minha grande preocupação era perder meus companheiros
de vista. Estremeci com a ideia de me perder nas profundezas desse la-
birinto.
Além do mais, se o caminho ascendente se tornasse mais penoso,
me consolava pensar que ele me reaproximava da superfície da Terra.
Era uma esperança. Cada passo confirmava isso, e eu me deleitava com
a ideia de rever minha pequena Graüben.
Ao meio-dia ocorreu uma mudança na aparência nas paredes da
galeria. Percebi isso pelo enfraquecimento da luz elétrica refletida pelas
paredes. O revestimento de lava foi sucedido por rocha viva. O maciço
consistia de camadas inclinadas e muitas vezes dispostas verticalmente.
Estávamos em plena época de transição, em pleno período siluriano2.
— É evidente — exclamei — os sedimentos da água formaram, na
segunda época da Terra, esses xistos, calcários e arenitos. Demos as cos-
tas ao maciço granítico. Parecíamos pessoas de Hamburgo, que toma-
riam o caminho de Hanover para ir a Lubeck.
Deveria ter mantido minhas observações para mim mesmo. Mas
meu temperamento de geólogo superou minha prudência e o tio Li-
denbrock escutou minhas exclamações.
— O que há com você? — disse ele.
— Veja! — respondi mostrando a ele sucessão variada de arenitos,
calcários e os primeiros indícios dos terrenos de ardósia.
— E daí?
— Chegamos ao período no qual surgiram as primeiras plantas e
os primeiros animais!
— Ah! Você acha?
— Mas olhe, examine, observe!

Viagem ao Centro da Terra 161


Forcei o professor a passar a sua lâmpada pelas paredes da galeria.
Eu esperava uma exclamação de sua parte. Mas, longe disso, ele não
disse uma palavra e continuou seu caminho.
Ele havia me entendido ou não? Ele não queria admitir, por orgu-
lho próprio de tio e de sábio, que estava errado ao escolher o túnel do
leste ou queria explorar a passagem até o fim?
Era evidente que havíamos deixado a rota das lavas e que esse ca-
minho não poderia levar ao coração do Sneffels.
Contudo, perguntei-me se não atribui muita importância a essa
modificação dos terrenos. Será que estava me enganando? Estávamos
realmente atravessando essas camadas de rochas sobrepostas ao maciço
granítico?
“Se eu tiver razão — pensava — devo encontrar algum resquício de
plantas primitivas e teremos de nos render às evidências. Vou procurar”.
Eu mal havia dado cem passos quando algumas provas incontes-
táveis foram apresentadas diante de meus olhos. Isso se dava pois, na
época siluriana, os mares continham mais de mil e quinhentas espécies
vegetais e animais. Meus pés, acostumados ao duro solo de lava, pisaram
de repente em uma poeira feita de resquícios de plantas e conchas. Nas
paredes, se via claramente vestígios de fucos e licopódios3. O Professor
Lidenbrock não poderia estar enganado, mas ele fechou os olhos, ima-
gino, e continuou seu caminho em um passo invariável.
Era a teimosia ultrapassando limites. Eu não aguentava mais. Pe-
guei uma concha perfeitamente conservada que pertencera a um animal
mais ou menos semelhante ao atual tatuzinho de jardim. E então, alcan-
cei o meu tio, e lhe disse:
— Veja!
— Bem — ele respondeu tranquilamente — é a concha de um crus-
táceo da antiga ordem dos trilobitas. Nada além disso.
— Mas você não conclui…
— E o que você conclui? Sim. Perfeitamente. Deixamos a camada
de granito e o caminho das lavas. É possível que eu tenha me engana-
do. Mas eu não terei certeza do meu erro até que alcance o final desta
galeria.
— O senhor tem razão de agir assim, meu tio, e eu o aprovaria
fortemente se não tivéssemos de temer um perigo cada vez mais amea-
çador.

Viagem ao Centro da Terra 162


— E qual é?
— A falta d’água.
— Pois bem! Vamos racionar, Axel.

1- Para os não familiarizados com a arquitetura gótica, nave é o termo usado para definir
as alas de uma catedral.

2- Nota do autor: Assim chamado porque as terras deste período são muito extensas
na Inglaterra, nas regiões outrora habitadas pela tribo céltica dos Silures.

3- Esses vestígios vegetais fósseis eram um belo de um achado, os fucos pertencem


a um gênero de algas castanhas e os licopódios a um gênero de plantas rasteiras
que se assemelham a folhas de um pinheiro.

Viagem ao Centro da Terra 163


Capítulo 20
UMA MINA DE CARVÃO
20. UMA MINA DE CARVÃO

De fato, tivemos que racionar. Nossas provisões não durariam mais


de três dias. Foi o que percebi à noite, na hora do jantar. E, com uma
expectativa exasperante, havia pouca esperança de encontrar uma nas-
cente viva nesses terrenos da época de transição.
Durante todo o dia seguinte, a galeria desenrolava, perante nossos
passos, seus arcos intermináveis. Caminhamos praticamente sem abrir
a boca. O silêncio de Hans nos conquistava.
O caminho não subia, pelo menos não de um modo perceptível. Às
vezes até parecia descer. Mas essa tendência, pouco marcante, aliás, não
deve ter tranquilizado o professor, pois a natureza das camadas não se
modificou e o período de transição era cada vez mais evidenciado.
A luz elétrica fazia brilharem esplendidamente os xistos, o calcário
e os velhos arenitos vermelhos das paredes. Podíamos acreditar estar
em uma trincheira aberta no meio de Devonshire, que deu seu nome
a esse tipo de terreno. Espécimes de mármore magníficos revestiam as
paredes, alguns de um cinza-ágata com veios brancos caprichosamente
acentuados, outros de cor encarnada ou de um amarelo com manchas
vermelhas, mais adiante, amostras de um mármore cereja de cor escura,
nas quais o calcário se destacava em tons brilhantes.
A maioria desses mármores oferecia vestígios de animais primiti-
vos, mas desde o dia anterior a criação havia feito um progresso eviden-
te. Ao invés dos rudimentares trilobitas, via resquícios de uma ordem
mais perfeita, entre eles, os peixes ganóides e os sauropteris cujo olho de
paleontólogo soube descobrir as primeiras formas do réptil. Os mares
devonianos eram habitados por um grande número de animais dessa
espécie, que foram depositados por milhares de anos nas rochas recém-
-formadas.
Se tornava evidente que estávamos subindo na escala da vida ani-
mal, onde o homem ocupa o topo. Mas o Professor Lidenbrock não pa-
recia prestar atenção.

Viagem ao Centro da Terra 166


Ele esperava por duas coisas: ou que um poço vertical se abrisse ao
seus pés, e o permitisse retomar a descida, ou que um obstáculo o im-
pedisse de continuar neste caminho. Mas a noite chegou sem que essa
esperança se realizasse.
Na sexta-feira, após uma noite na qual eu comecei a sentir os tor-
mentos da sede, nossa pequena tropa voltou a se aprofundar nas curvas
da galeria.
Após dez horas de caminhada, percebi que a reverberação de nossas
lâmpadas sob as paredes diminuía singularmente. O mármore, o xisto, o
calcário e o arenito das paredes deram lugar a um revestimento escuro
e sem brilho. Em um momento em que o túnel ficou muito estreito, me
apoiei na parede esquerda.
Quando retirei minha mão, ela estava completamente preta. Olhei
mais de perto. Estávamos em plena mina de hulha.
— Uma mina de carvão! — exclamei.
— Uma mina sem mineiros — respondeu meu tio.
— É! Quem sabe?
— Eu sei — respondeu o professor secamente — e tenho certeza
que esta galeria que atravessa as camadas de hulha não foi feita por mãos
humanas. Mas se é ou não obra da natureza, pouco me importa. Chegou
a hora do jantar. Jantemos.
Hans preparou algumas comidas. Eu mal comi e bebi as últimas
gotas de água que compunham minha porção. O cantil meio cheio do
guia era tudo que restava para saciar três homens.
Após a refeição, meus dois companheiros se estenderam sobre seus
cobertores e encontraram no sono um remédio para seu cansaço. Quan-
to a mim, não consegui dormir e contei as horas até de manhã.
No sábado, às seis horas, partimos novamente. Vinte minutos mais
tarde, chegamos a uma grande cavidade. Eu então reconheci que a mão
humana não poderia ter escavado esta mina de hulha, pois as abóbadas
teriam sido sustentadas e, na verdade, elas só estavam seguras por um
milagre de equilíbrio.
Essa espécie de caverna tinha trinta metros de largura por quarenta
e cinco de altura. O solo foi violentamente aberto por uma comoção
subterrânea. O maciço terrestre, cedendo por algum impulso poderoso,
havia se deslocado, deixando este amplo vazio onde os habitantes da
terra penetravam pela primeira vez.

Viagem ao Centro da Terra 167


Toda a história do Período Carbonífero foi escrita nessas paredes
sombrias e um geólogo poderia facilmente acompanhar suas diversas
fases. Os leitos de carvão foram separados por estratos de arenito ou
de argila compactados, como que esmagados pelas camadas superiores.
Nessa era do mundo que precedeu a época secundária, a terra foi
recoberta por imensas vegetações devido à dupla ação do calor tropical
e da umidade persistente. Uma atmosfera de vapores envolvia o globo
por todos os lados, roubando dele os raios de Sol.
Daí vem a conclusão que as altas temperaturas vêm dessa nova fon-
te de calor. Talvez até mesmo o astro do dia não estivesse pronto para
desempenhar seu brilhante papel. Os “climas” ainda não existiam e um
calor escaldante se espalhou por toda a superfície do globo, tanto pelo
Equador, quanto pelos polos. De onde ele veio? Do interior do globo.
Apesar das teorias do Professor Lidenbrock, um violento fogo ardia
nas entranhas do esferoide. Sua ação era sentida até as últimas camadas
da crosta terrestre. As plantas, privadas das emanações benéficas do Sol,
não davam flores, nem perfume, mas suas raízes ganharam uma forte
vida nas terras escaldantes dos primeiros dias.
Havia poucas árvores, apenas plantas herbáceas, relvas imensas,
samambaias, licopódios, sigilárias e asterofilitas, famílias raras cujas es-
pécies então chegavam aos milhares.
Ora, é precisamente à essa exuberante vegetação que a hulha deve
sua origem. A crosta elástica do globo obedecia aos movimentos da mas-
sa líquida que ela recobria. Daí as numerosas fissuras e desabamentos.
As plantas, arrastadas para debaixo d’água, pouco a pouco formaram
aglomerados consideráveis. Então, a ação da química natural interveio.
No fundo dos mares, as massas vegetais se tornaram turfas. Depois, gra-
ças à influência dos gases e sob o calor da fermentação, eles sofreram
uma mineralização completa.
Assim se formaram essas imensas camadas de carvão que um con-
sumo excessivo deve, no entanto, esgotar em menos de três séculos se os
povos industriais não tomarem cuidado.
Esses pensamentos vinham à minha mente enquanto eu considera-
va as riquezas da hulha acumulada nesta parte do maciço terrestre. Es-
tas, sem dúvida, nunca seriam descobertas. A exploração dessas minas
demandaria sacrifícios muito consideráveis. Qual seria o ponto, afinal,

Viagem ao Centro da Terra 168


sendo que a hulha está espalhada, por assim dizer, pela superfície da
Terra em um grande número de países? Assim, tal como vi essas cama-
das intactas, elas ainda permaneceriam quando soasse a última hora do
mundo.
Enquanto isso, caminhávamos e, desacompanhado de meus com-
panheiros, esqueci a extensão do caminho por me perder em meio a
considerações geológicas. A temperatura manteve-se aparentemente
a mesma durante a nossa passagem pelas lavas e xistos. Somente meu
olfato era afetado por um forte odor pronunciado de protocarboneto
de hidrogênio. Reconheci imediatamente nesta galeria uma quantidade
notável desse perigoso fluido, que os mineiros deram o nome de grisu1,
e cuja explosão frequentemente causava catástrofes terríveis.
Felizmente, nós éramos iluminados pelos engenhosos aparelhos de
Ruhmkorff. Se, por um infortúnio, tivéssemos imprudentemente explo-
rado essa galeria com uma tocha em mãos, uma explosão teria dado fim
à viagem removendo os viajantes.
Essa excursão na mina de hulha durou até a noite. Meu tio mal
conteve a impaciência que lhe causava a horizontalidade do caminho.
As trevas, profundas além de vinte passos, impediam de estimar o com-
primento da galeria e comecei a pensar que era interminável quando,
de repente, às seis horas, um muro se apresentou inesperadamente para
nós. À direita, à esquerda, em cima ou embaixo, não havia nenhuma
passagem. Havíamos chegado ao fundo de um impasse.
— Pois bem! Muito melhor! — exclamou meu tio — Pelo menos
sei com o que lidar. Não estamos no caminho de Saknussemm e só nos
resta voltar para trás. Vamos repousar esta noite e antes de três dias te-
remos chegado ao ponto em que as duas galerias se bifurcam.
— Sim — disse — se ainda tivermos forças!
— E por que não teríamos?
— Porque amanhã a água irá acabar completamente.
— E a coragem também irá acabar? — disse o professor me enca-
rando com um olhar severo.
Não ousei respondê-lo.

Viagem ao Centro da Terra 169


1- Esse gás é uma mistura de metano com oxigênio, a invenção da lâmpada de segurança
do Sir Humphry Davy que citei previamente ajudou a prevenir acidentes com esse temível gás.

Viagem ao Centro da Terra 170


Capítulo 21
SEDE
21. SEDE

No dia seguinte, a partida ocorreu no início da manhã. Tínhamos


que nos apressar. Estávamos a cinco dias de caminhada da encruzilhada.
Não vou me alongar sobre o sofrimento de nosso retorno. Meu tio
os suportou com a raiva de um homem que não se sente mais como
superior a tudo, Hans com a resignação de sua natureza pacífica, e eu,
admito, reclamando e me desesperando, não tinha forças para lutar con-
tra esta má sorte.
Como eu esperava, acabou toda a água ao final do primeiro dia de
caminhada. Nosso suprimento de líquido foi então reduzido a genebra,
mas este licor infernal queimava a garganta, e eu não podia nem mesmo
suportar a visão dele. A temperatura era sufocante, e a fadiga paralisava.
Mais de uma vez quase caí imóvel. Dávamos então uma curta parada.
Meu tio ou o islandês tentavam me animar da melhor maneira que po-
diam, mas eu vi que meu tio reagia dolorosamente contra o cansaço
extremo e as torturas nascidas da privação de água.
Finalmente, na terça-feira, 8 de Julho, arrastando-nos, chegamos
meio mortos ao cruzamento das duas galerias. Lá permaneci como uma
massa inerte, estendida no solo de lava. Eram dez horas da manhã.
Hans e meu tio, encostados na parede, tentaram mordiscar alguns
pedaços de biscoito. Longos gemidos escaparam dos meus lábios secos
e caí em uma profunda letargia.
Depois de algum tempo, meu tio se aproximou de mim e me er-
gueu nos braços:
— Pobre criança! — ele sussurrou com um genuíno tom de pena.
Fiquei comovido com essas palavras, não me acostumando com a
ternura do professor feroz. Eu agarrei suas mãos trêmulas nas minhas,
ele deixou passar, olhando para mim. Seus olhos estavam úmidos.
Eu então o vi buscar o cantil pendurado na lateral do corpo. Para
minha surpresa, ele o trouxe aos meus lábios:
— Beba — ele disse.
Eu ouvi corretamente? Meu tio estava louco? Eu olhei para ele ator-
doado. Eu não queria entender isso.

Viagem ao Centro da Terra 173


— Beba — ele repetiu.
E erguendo seu cantil, ele a esvaziou inteiramente entre meus lá-
bios.
Oh! Prazer infinito! Um gole de água umedeceu minha boca arden-
te, apenas um, mas foi o suficiente para me lembrar da vida que escapa-
va. Agradeci ao meu tio, juntando minhas mãos.
— Sim — disse ele — um gole de água! O último! Você ouviu bem?
O último! Eu o guardei cuidadosamente no fundo do meu cantil. Vinte,
cem vezes, tive que resistir ao meu terrível desejo de bebê-lo! Mas não,
Axel, guardei para você.
— Meu tio! — sussurrei enquanto grandes lágrimas molhavam
meus olhos.
— Sim, pobre criança, eu sabia que quando você chegasse a esta
encruzilhada, você cairia meio morto, e guardei minhas últimas gotas
de água para reanimá-lo.
—Obrigado! Obrigado! — chorei.
Por menos que minha sede tivesse sido saciada, eu havia recupera-
do alguma força. Os músculos da minha garganta, contraídos até então,
relaxaram e a inflamação dos meus lábios diminuiu. Eu poderia falar.
— Vejamos — disse eu — agora temos apenas um curso a seguir,
nos falta água, devemos refazer nossos passos.
Enquanto falava assim, meu tio evitou olhar para mim. De cabeça
baixa, seus olhos se afastaram dos meus.
— Precisamos voltar! — gritei — E pegar a rota para Sneffels. Que
Deus nos dê forças para subir até o topo da cratera!
— Voltar?! — disse meu tio, como se estivesse respondendo a ele e
não a mim mesmo.
— Sim, voltar, e sem perder mais um minuto sequer.
Houve um longo momento de silêncio aqui.
— Então, Axel — retomou o estranho professor — aquelas poucas
gotas de água não lhe devolveram a coragem e a energia?
— Coragem!?
— Eu vejo você abatido como antes, e ainda emitindo vozes de de-
sespero!
— Com que homem eu estava lidando e quais planos sua mente
ousada ainda estava fazendo?

Viagem ao Centro da Terra 174


— O quê?! Você não quer?...
— Desistir desta expedição? Quando tudo anuncia que pode ser
um sucesso? Nunca!
— Então, devemos nos restringir a perecer?
— Não, Axel, não! Saia, eu não quero sua morte! Que Hans te
acompanhe. Me deixe em paz!
— E abandonar você?!
— Me deixe, eu te digo! Comecei esta jornada e vou seguir até o
fim, ou nunca vou superar. Vá embora, Axel, vá embora!
Meu tio falou com extrema excitação. Sua voz, terna por um mo-
mento, tornou-se áspera, ameaçadora novamente. Ele lutou com ener-
gia negra contra o impossível! Não queria abandoná-lo no fundo deste
abismo e, por outro lado, o instinto de autopreservação impeliu-me a
fugir dele.
O guia acompanhou esta cena com sua indiferença de costume. Ele
entendeu, no entanto, o que estava acontecendo entre seus dois compa-
nheiros. Nossos gestos indicaram suficientemente o caminho diferente
em que cada um de nós tentou conduzir o outro, mas Hans parecia ter
pouco interesse na questão em que sua existência estava em jogo, pronto
para ir se o sinal para partir fosse dado, pronto para ficar à vontade de
seu mestre.
Quem me dera, neste momento, eu pudesse fazê-lo me entender!
Minhas palavras, meus gemidos, meu sotaque teriam levado a melhor
sobre esta natureza fria. Esses perigos que o guia parecia sequer des-
confiar, eu o faria entender e ver de perto. Nós dois talvez tivéssemos
convencido o professor teimoso. Se necessário, o teríamos levado à força
de volta ao topo do Sneffels!
Eu me aproximei de Hans, coloquei minha mão na dele. Ele não se
mexeu. Mostrei a ele o caminho para a cratera. Ele permaneceu imóvel.
Meu rosto ofegante falava de todos os meus sofrimentos. O islandês ba-
lançou a cabeça gentilmente, apontando calmamente para meu tio:
— Master — ele disse.
— Mestre? — eu exclamei — Tolice! Não, ele não é o dono da sua
vida! Devemos fugir! E carregá-lo conosco! Você compreende? Enten-
de?
Eu tinha agarrado Hans pelo braço. Eu queria fazê-lo se levantar.
Eu estava lutando com ele. Meu tio interveio.

Viagem ao Centro da Terra 175


— Calma, Axel. — ele disse — Você não receberá nada deste islan-
dês impassível. Então ouça o que tenho a oferecer a você.
Cruzei os braços, olhando para o rosto do meu tio.
— A falta de água — diz ele — é o único obstáculo para a reali-
zação de meus projetos. Na galeria a leste, feita de lava, xisto e carvão,
não encontramos uma única molécula líquida. Podemos ter mais sorte
seguindo o túnel do oeste.
Eu balancei minha cabeça com um olhar de profunda descrença.
— Ouça-me até o fim — retomou o professor, forçando a voz — en-
quanto você estava cinza aqui, sem movimento, fui reconhecer a confor-
mação desta galeria. Está embutido diretamente nas entranhas do globo
e, em poucas horas, nos levará ao maciço granítico. Lá devemos encon-
trar fontes abundantes. A natureza da rocha assim o deseja, e o instinto
concorda com a lógica para apoiar minha convicção. Agora, aqui está o
que tenho para lhe oferecer: quando Colombo pediu a suas tripulações
por três dias para encontrar as novas terras, suas tripulações, doentes e
assustadas, atenderam a seu pedido e ele descobriu o novo mundo. Eu,
o Colombo destas regiões subterrâneas, só lhe peço mais um dia. Se,
transcorrido esse tempo, não encontrarmos a água de que nos falta, juro
que voltaremos à superfície da Terra.
Apesar da minha irritação, fiquei comovido com essas palavras e
com o esforço de meu tio para usar tal linguagem.
— Então vamos! — chiei — Que seja feito como você deseja, e que
Deus recompense sua energia sobre-humana. Você só tem algumas ho-
ras para experimentar. A caminho!

Viagem ao Centro da Terra 176


Capítulo 22
TERRENOS PRIMITIVOS
22. TERRENOS PRIMITIVOS

A descida recomeçou, desta vez, pela nova galeria. Hans estava ca-
minhando para frente, como era seu hábito. Não tínhamos dado cem
passos, quando o professor, movendo sua lâmpada ao longo das pare-
des, exclamou:
— Aqui estão os terrenos primitivos! Estamos no caminho certo,
vamos lá! Vamos andar!
Quando a Terra resfriou gradativamente nos primeiros dias do
mundo, a diminuição de seu volume produziu na casca deslocamentos,
rupturas, recuos, rachaduras. O corredor atual era uma fenda desse tipo,
através da qual o granito eruptivo uma vez se derramava. Seus mil des-
vios formavam um labirinto inextricável no solo primordial.
À medida que descíamos, a sucessão de camadas que formavam o
terreno primitivo apareceu com mais clareza. A ciência geológica con-
sidera este solo primitivo como a base da crosta mineral, e reconheceu
que é constituído por três camadas diferentes, os xistos, os gnaisses e os
micaxistos, repousando sobre esta rocha inabalável chamada granito.
Mas nunca os mineralogistas se encontraram em circunstâncias
tão maravilhosas para estudar a natureza na hora. O que a sonda, má-
quina pouco inteligente e brutal, não conseguiu trazer à superfície do
globo desde sua textura interna, íamos estudar com os olhos, o toque
com as mãos.
Do outro lado do andar superior dos xistos, coloridos com belos
tons de verde, serpenteavam veios metálicos de cobre, manganês com
alguns vestígios de platina e ouro. Eu estava pensando nessas riquezas
enterradas nas entranhas do globo e das quais a humanidade ganancio-
sa nunca terá prazer! Esses tesouros, as convulsões dos primeiros dias
enterraram-nos em tal profundidade que nem a picareta nem o pico
poderão arrancá-los de seu túmulo.
Os xistos foram seguidos pelos gnaisses, de estrutura estratiforme,
notável pela regularidade e paralelismo das suas camadas, seguidos pe-
los micaxistos dispostos em grandes faixas realçadas à vista pelas cinti-
lações da mica branca.

Viagem ao Centro da Terra 179


A luz dos aparelhos, refletida nas pequenas facetas do maciço ro-
choso, cruzava seus jatos luminosos em todos os ângulos, e me imagi-
nei viajando por um diamante oco, no qual os raios irrompiam em mil
brilhos.
Por volta das seis horas, esse festival de luz começou a diminuir
consideravelmente, quase a cessar, as paredes adquiriram uma tonalida-
de cristalizada, mas escura. A mica misturou-se mais intimamente com
o feldspato e o quartzo, para formar a rocha por excelência, a pedra dura
entre torres, que sustenta, sem ser esmagada, os quatro pisos de terra.
Estávamos encerrados na imensa prisão de granito.
Eram oito da noite. Ainda faltava água. Eu estava com uma dor ter-
rível. Meu tio estava caminhando para frente. Ele não queria parar. Ele
apurou os ouvidos para ouvir os murmúrios de alguma fonte. Mas nada!
No entanto, minhas pernas se recusaram a me carregar. Resisti às
minhas torturas para não obrigar o meu tio a parar. Foi para ele o golpe
do desespero, pois o dia estava terminando, o último que lhe pertencia.
Finalmente minha força me abandonou. Eu gritei e caí.
— Me ajudem! Estou morrendo!
Meu tio refez seus passos. Ele olhou para mim, cruzando os braços,
então essas palavras abafadas saíram de seus lábios:
— Está tudo acabado!
Um gesto assustador de raiva atingiu meus olhos uma última vez e
eu os fechei.
Quando os abri novamente, vi meus dois companheiros imobiliza-
dos e enrolados em seus cobertores. Eles estavam dormindo? De minha
parte, não consegui dormir um minuto. Eu estava com muita dor, prin-
cipalmente pensando que minha doença devia ser irremediável.

As últimas palavras de meu tio ecoaram em meu ouvido. “Estava


tudo acabado!” pois, em tal estado de fraqueza, não era mais nem mes-
mo necessário pensar em recuperar a superfície do globo.
Havia seis quilômetros de crosta terrestre! Pareceu-me que essa
massa pesava todo o seu peso sobre os meus ombros. Senti-me esmaga-
do e exausto em esforços violentos para virar na minha cama de granito.

Viagem ao Centro da Terra 180


Algumas horas se passaram. Um silêncio profundo reinou em torno
de nós, um silêncio grave. Nada aconteceu através dessas paredes, as mais
finas delas tinham oito quilômetros de espessura.
No entanto, no meio do meu cochilo, pensei ter ouvido um barulho.
A escuridão estava no túnel. Olhei mais de perto e pensei ter visto o islan-
dês desaparecendo com a lâmpada na mão.
Por que essa partida? Hans estava nos abandonando? Meu tio estava
dormindo. Eu queria gritar. Minha voz não conseguia encontrar passagem
entre meus lábios ressecados. A escuridão havia se tornado mais profunda
e os últimos ruídos acabaram por desaparecer.
— Hans está nos abandonando! — chorei — Hans! Hans!
Essas palavras, gritei para mim mesmo. Elas não iriam mais longe
do que isso. Porém, após o primeiro momento de terror, tive vergonha de
minhas suspeitas contra um homem cuja conduta até então não havia sido
nada suspeita. Sua partida não poderia ser uma fuga. Em vez de subir a ga-
leria, ele estava descendo. Pensamentos ruins o teriam atraído para cima,
não para baixo. Esse raciocínio me acalmou um pouco, só um motivo sé-
rio poderia tê-lo arrancado de seu repouso. Ele estava então indo para a
descoberta? Ele tinha ouvido durante a noite silenciosa algum murmúrio
que eu não pude perceber?

Viagem ao Centro da Terra 182


Capítulo 23
VATTEN
23. VATTEN

Por uma hora, imaginei em meu cérebro delirante todos os motivos


que poderiam ter feito o silencioso caçador agir. As ideias mais absurdas
se enrolaram na minha cabeça. Achei que ia enlouquecer!
Mas, por fim, ouviu-se o som de passos nas profundezas do abismo.
Hans estava voltando. A luz incerta começou a deslizar nas paredes, en-
tão emergiu pela abertura no corredor. Hans apareceu.
Ele se aproximou de meu tio, pôs a mão em seu ombro e o acordou
com delicadeza. Meu tio se levantou.
— O que é? — ele disse.
— Vatten — respondeu o caçador.
É preciso acreditar que, sob a inspiração das violentas dores, qual-
quer um se torna poliglota. Eu não sabia uma única palavra em dina-
marquês, mas instintivamente entendia a palavra de nosso guia.
— Água! Água! — eu chorei, batendo palmas e gesticulando como
uma idiota.
— Água?! — repetiu meu tio — Hvar? — ele perguntou ao islandês.
— Nedat — respondeu Hans.
Onde? Para baixo! Eu entendi tudo. Eu tinha agarrado as mãos do
caçador e apertei-as, enquanto ele me olhava com calma.
Os preparativos para a partida não foram longos, e logo estávamos
caminhando por um corredor cuja inclinação chegava a sessenta centí-
metros por dois metros.
Naquele momento, ouvi claramente um som incomum subindo pe-
las laterais da parede de granito, uma espécie de rugido baixo, como um
trovão distante. Durante esta primeira meia hora de caminhada, sem
encontrar a fonte anunciada, senti a angústia tomar conta de mim, mas
então meu tio me informou da origem dos ruídos que eram produzidos.
— Hans não se enganou — disse ele — o que se ouve aí é o rugido
de uma torrente.
— Um torrente? — exclamei.
— Não há dúvidas sobre isso. Um rio subterrâneo circula ao nosso
redor.

Viagem ao Centro da Terra 185


Apressamos nosso passo, animados pela esperança. Não sentia
mais meu cansaço. O murmúrio da água já me refrescava. Estava clara-
mente cada vez mais alto. A torrente, depois de ter ficado muito tempo
acima de nossas cabeças, agora corria na parede esquerda, rugindo e
ruidosamente. Passei a mão frequentemente sobre a rocha, na esperança
de encontrar vestígios de infiltração ou umidade. Mas em vão.
Outra meia hora se passou. Outra meia liga foi cruzada.
Tornou-se então evidente que o caçador, durante sua ausência, não
foi capaz de estender sua pesquisa além. Guiado por um instinto pró-
prio dos montanheses, dos hidróscopos, ele “sentiu” essa torrente pela
rocha, mas certamente não tinha visto o precioso líquido. Ele não tinha
saciado sua sede lá.
Logo ficou estabelecido que, se nossa caça continuasse, nos afasta-
ríamos da corrente, cujo murmúrio tendia a diminuir.
Nós voltamos. Hans parou no local exato onde a torrente parecia
estar mais próxima.
Sentei-me perto da parede, enquanto as águas corriam a meio me-
tro de mim com extrema violência. Mas uma parede de granito ainda
nos separava dela.
Sem pensar nisso, sem me perguntar se não existiam meios para
obter essa água, me deixei levar por um primeiro momento de deses-
pero.
Hans olhou para mim e pensei ter visto um sorriso aparecer em
seus lábios.
Ele se levantou e pegou a lamparina. Eu o segui. Ele caminhou em
direção à parede. Eu o observei fazer isso. Ele encostou o ouvido na pe-
dra seca e caminhou lentamente, ouvindo com muito cuidado. Percebi
que ele estava procurando o ponto preciso onde a torrente fosse ouvida
mais alto. Este ponto ele encontrou na parede lateral esquerda, um me-
tro acima do solo.
Como fiquei comovido! Não ousei adivinhar o que o caçador que-
ria fazer! Mas eu tive que entendê-lo e aplaudi-lo, e pressioná-lo com
minhas carícias, quando o vi agarrar sua picareta para atacar a própria
rocha.
— Estamos salvos! — comemorei.
— Sim. — meu tio repetia com veemência — Hans tem razão! Ah,
é um verdadeiro caçador! Nós não teríamos pensado nisso!

Viagem ao Centro da Terra 186


Eu acredito que sim! Tal meio, por mais simples que fosse, não nos
teria ocorrido. Nada é mais perigoso do que acertar uma picareta nesta
estrutura do globo. E se a torrente, emergindo da rocha, nos invadisse!
Não havia nada de quimérico nesses perigos, mas então o medo de um
deslizamento de terra ou inundação não poderia nos deter, e nossa sede
era tão intensa que, para apaziguá-la, teríamos escavado o leito do pró-
prio oceano.
Hans pôs-se a trabalhar, o que nem meu tio nem eu havíamos rea-
lizado. A impaciência tirando nossa mão, a rocha teria se despedaçado
sob seus golpes precipitados. O guia, ao contrário, calmo e moderado,
gradualmente usou a rocha por uma série de pequenos golpes repetidos,
cavando uma abertura de quinze centímetros de largura. Ouvi o som da
torrente aumentando e pensei que já podia sentir a água benéfica espir-
rando de volta em meus lábios.
Logo a picareta afundou sessenta centímetros na parede de grani-
to. O trabalho já durava mais de uma hora. Eu estava me contorcendo
de impaciência! Meu tio queria usar grandes meios. Tive dificuldade
em detê-lo, e ele já estava pegando sua picareta, quando de repente um
apito foi ouvido. Um jato de água correu da parede e quebrou na parede
oposta.
Hans, meio dominado pelo choque, não conseguiu conter um grito
de dor. Compreendi quando, mergulhando as mãos no jato líquido, sol-
tei uma exclamação violenta. A fonte estava fervendo.
— Água a cem graus! — chorei.
— Bem, ela vai esfriar — respondeu meu tio.
O corredor se encheu de vapores, enquanto um riacho se formava
e ia se perder nas sinuosidades subterrâneas, logo demos ali nosso pri-
meiro gole.
Ah! Que delícia! Que prazer incomparável! O que foi essa água? De
onde ela veio? Não importa. Era água e, embora ainda quente, trouxe
à tona a vida que estava prestes a nos deixar. Bebi sem parar, sem nem
saborear.
Só depois de um minuto de alegria exclamei:
— É água ferruginosa!
— Excelente para o estômago — respondeu meu tio — e muito mi-
neralizada! É como se viajássemos até um Spa em Toeplitz!
— Ah, como é boa!

Viagem ao Centro da Terra 187


— Sem dúvida, água que brota oito quilômetros abaixo do solo!
Lembra o gosto de tinta, mas não é desagradável. Um recurso formi-
dável esse que Hans nos deu! Portanto, proponho dar seu nome a esta
corrente benéfica.
— Apoiado! — manifestei-me prontamente.
E o nome “Hans-bach” foi imediatamente adotado.
Hans não estava mais orgulhoso disso. Depois de se acalmar mode-
radamente, ele se inclinou em um canto com sua calma habitual.
— Agora — eu digo — não devemos desperdiçar essa água.
Ao que respondeu meu tio:
— Suspeito que a fonte seja inesgotável.
— O que isso importa?! Vamos encher a garrafa de água e os cantis,
depois tentaremos tampar a abertura.
Meu conselho foi seguido. Hans tentou bloquear o corte na parede
com cacos de granito e reboque. Não foi fácil. Queimamos nossas ca-
beças sem sucesso, a pressão era muito grande e nossos esforços foram
malsucedidos.
— É óbvio — eu disse — que as camadas superiores desse riacho
estão localizadas a uma grande altura, a julgar pela força do jato.
— Não há dúvidas. — respondeu meu tio — Há mil atmosferas de
pressão ali se aquela coluna de água tiver trinta e dois mil pés de altura,
mas eu tenho uma ideia.
— Que ideia?
— Por que insistimos em bloquear essa abertura?
— Ora, porque...
Eu tive dificuldade de encontrar um motivo.
— Quando nossos cantis estiverem vazios, temos certeza de que
podemos enchê-los?
— Não, obviamente.
— Bem, então deixe essa água fluir! Ela descerá naturalmente e
guiará aqueles que se refrescarem no caminho!
— Bem pensado! — exclamei — E com essa corrente como compa-
nhia, não há mais razão para não ter sucesso em nossos projetos.
— Ah! Você já está entrando no clima, garoto — disse o professor,
rindo.
— Melhor que isso, já estou dentro!
— Um momento! Seria bom descansar algumas horas.

Viagem ao Centro da Terra 188


Eu realmente esqueci que estava escuro. O cronômetro se encarre-
gou de me mostrar. Logo, cada um de nós, suficientemente restaurado e
revigorado, adormeceu profundamente.

Viagem ao Centro da Terra 189


Capítulo 24
HANS-BACH
24. HANS-BACH

No dia seguinte, já havíamos esquecido nossa dor do passado. A


princípio fiquei surpreso por não estar mais com sede e perguntei por
quê. O riacho que corria a meus pés, murmurando, comprometeu-se a
responder-me.
Almoçamos e bebemos esta excelente água ferruginosa. Me senti
revigorado e decidi ir longe. Por que um homem convencido como meu
tio não teria sucesso, com um guia trabalhador como Hans e um sobri-
nho “determinado” como eu? Estas são as belas ideias que se infiltraram
em meu cérebro! Eu teria sido convidado a subir ao cume de Sneffels, o
que eu teria recusado com indignação.
Felizmente, porém, era apenas uma questão de descer.
Vamos lá! Chorei, despertando com meu sotaque entusiástico os
antigos ecos do globo.
A marcha foi retomada na quinta-feira, às oito horas da manhã. O
corredor de granito, sinuoso em torno de si mesmo, apresentava curvas
inesperadas como o interior de um labirinto, mas, em suma, sua dire-
ção principal sempre foi o sudeste. Meu tio nunca deixou de consultar
sua bússola com o maior cuidado, para perceber o quão longe ele havia
chegado.
A galeria afundou quase horizontalmente, com no máximo cinco
centímetros de declive por cabeça de plano. O riacho fluiu sem precipi-
tação, murmurando sob nossos pés. Eu o comparei a algum gênio co-
nhecido que nos guiou pela terra e com minha mão acariciei a cálida
náiade cujas canções acompanhavam nossos passos. Meu bom humor
prontamente deu uma guinada mitológica.
Quanto ao meu tio, ele protestou contra a horizontalidade da es-
trada, ele, “o homem das verticais”. Seu caminho se alongou indefinida-
mente e, em vez de deslizar ao longo do raio da Terra, como ele expres-
sou, ele passou pela hipotenusa. Mas não tínhamos escolha e, enquanto
íamos ganhando em direção ao centro, por pouco que fosse, não deve-
ríamos reclamar.

Viagem ao Centro da Terra 193


Além disso, de vez em quando, as encostas baixavam, a náiade co-
meçou a rolar e uivar, e descemos mais fundo com ela.
Em suma, naquele dia e no dia seguinte, fizemos muitas viagens
verticais.
Estima-se que na noite de sexta-feira, 10 de Julho, devíamos estar
trinta léguas a sudeste de Reykjavik e a uma profundidade de duas lé-
guas e meia.
Sob nossos pés então abriu um poço bastante assustador. Meu tio
não pôde deixar de bater palmas enquanto calculava a inclinação de
suas encostas.
— Isso nos levará longe — gritou ele — e com facilidade! As proje-
ções da pedra fazem uma verdadeira escada!
As cordas foram arranjadas por Hans de forma a prevenir qualquer
acidente, e começamos a descida. Não me atrevo a chamar de perigosa,
porque já conhecia este tipo de exercício.
Este poço era uma fenda estreita feita no maciço, do tipo denomi-
nado “falha”. A contração da estrutura da Terra, no momento de seu
resfriamento, evidentemente o havia produzido. Se isso já serviu de
passagem para os materiais eruptivos vomitados pelos Sneffels, eu não
conseguia entender como eles não deixaram vestígios. Descemos uma
espécie de parafuso giratório que se poderia acreditar feito por mãos
humanas.
De um quarto a um quarto de hora, tínhamos que parar para des-
cansar o necessário e restaurar a elasticidade dos jarretes. Então, sentá-
vamos em alguma saliência com as pernas penduradas, conversávamos
enquanto comíamos e matávamos a sede no riacho.
Nem é preciso dizer que, nessa falha, o Hans-bach havia caído em
cascata em detrimento de seu volume, mas foi o suficiente e mais para
matar nossa sede. Além disso, com as encostas menos marcadas, não
podia deixar de retomar o seu curso pacífico. Naquele momento ele me
lembrou de meu digno tio, sua impaciência e sua raiva, enquanto, nas
encostas suaves, era a calma do caçador islandês.
Nos dias 6 e 7 de Julho seguimos as espirais desta falha, penetrando
mais duas léguas na crosta terrestre, que estava quase cinco léguas abai-
xo do nível do mar. Mas, no dia 8, por volta do meio-dia, a falha tomou
um declive muito mais suave em uma direção sudeste, cerca de quarenta
e cinco graus.

Viagem ao Centro da Terra 194


O caminho então se tornou fácil e perfeitamente monótono. Era di-
fícil ser diferente. A viagem não poderia ser alterada pelos incidentes da
paisagem.
Finalmente, na quarta-feira, 15, estávamos sete léguas subterrâneas
e cerca de cinquenta léguas de Sneffels. Embora estivéssemos um pouco
cansados, nossa saúde era mantida em um estado reconfortante e a far-
mácia de viagem ainda estava intacta.
Meu tio anotava hora a hora as indicações da bússola, do cronôme-
tro, do manômetro e do termômetro, os mesmos que publicou no relato
científico de sua viagem. Ele podia, portanto, ver facilmente sua situa-
ção. Quando ele me disse que estávamos a uma distância horizontal de
cinquenta léguas, não pude reprimir uma exclamação.
— O que houve? — ele perguntou.
— Nada, só estava pensando.
— Sobre o que, meu garoto?
— Se seus cálculos estiverem corretos, não estamos mais no subso-
lo da Islândia.
— Você acha?
— É fácil verificar isso.
Tirei as medidas da minha bússola no mapa.
— Não estou errado. — disse — Passamos pelo cabo Portland e
esses duzentos quilômetros a sudeste nos colocam sob mar aberto.
— Em alto mar? — respondeu meu tio, esfregando as mãos.
— Isso significa — apontei — que o oceano está se estendendo so-
bre nossas cabeças!
— Ora, Axel, nada mais natural! Não há minas de carvão em New-
castle que se projetam a distâncias sob as ondas?
O professor poderia achar essa situação muito simples, mas a ideia
de andar sob a massa de água não deixava de me preocupar. E ainda, se
as planícies e montanhas da Islândia estavam suspensas sobre nossas
cabeças, ou as ondas do Atlântico, diferia pouco, em suma, desde que a
estrutura de granito fosse sólida. Além disso, acostumei-me rapidamen-
te com essa ideia, pois o corredor, ora reto, ora sinuoso, era caprichoso
tanto nas encostas quanto nos desvios, e sempre corria para sudeste, e
afundando mais, nos conduzia rapidamente a grandes profundidades.
Quatro dias depois, no sábado, 18 de Julho, à noite, chegamos a
uma espécie de caverna bastante grande. Meu tio deu a Hans seus três
rixdales semanais e foi decidido que o dia seguinte seria um dia de des-
canso.

Viagem ao Centro da Terra 196


Capítulo 25
UM DIA DE DESCANSO
25. UM DIA DE DESCANSO

Assim, acordei na manhã de domingo sem a preocupação habitual


de partir imediatamente. E, embora estivesse nas profundezas do abis-
mo, não deixava de ser agradável. Além disso, fomos feitos para essa
existência de troglóbios. Quase não pensei no sol, nas estrelas, na lua,
nas árvores, nas casas, nas cidades, em todas aquelas superfluidades ter-
renas das quais, ao ser sublunar, se tornou uma necessidade. Como fós-
seis, ignoramos essas maravilhas desnecessárias.
A caverna formava um grande salão. Os fiéis fluíram suavemente
em seu solo de granito. A tal distância de sua fonte, sua água estava ape-
nas em temperatura ambiente e podia ser bebida sem dificuldade.
Depois do almoço, o professor queria passar algumas horas organi-
zando suas anotações diárias.
— Primeiro — disse ele — vou fazer alguns cálculos, a fim de verifi-
car exatamente a nossa situação. Quero poder, na volta, traçar um mapa
da nossa viagem, uma espécie de trecho vertical do globo, que dará o
perfil da expedição.
— Vai ser muito interessante, tio. Mas suas observações terão um
grau de precisão suficiente?
— Sim. Observei cuidadosamente os ângulos e inclinações. Tenho
certeza de que não estou enganado. Vamos ver onde estamos primeiro.
Pegue a bússola e observe a direção que ela indica.
Olhei para o instrumento e, após exame cuidadoso, respondi:
— Quarto leste-sudeste.
— Ótimo! — disse o professor, anotando a observação e fazendo al-
guns cálculos rápidos — Concluo que percorremos trezentos e quarenta
quilômetros desde o nosso ponto de partida.
— Então, estamos viajando sob o Atlântico?
— Perfeitamente.
— E neste momento pode estar explodindo uma tempestade lá, e
os navios estão sendo sacudidos em nossas cabeças pelas ondas e pelo
furacão?
— É possível.

Viagem ao Centro da Terra 199


— E as baleias podem estar batendo nas paredes da nossa prisão
com a cauda?
— Não se preocupe, Axel, elas não vão conseguir abalá-las. Mas
voltando aos nossos cálculos, estamos no sudeste, a trezentos e quarenta
quilômetros da base do Sneffels e, pelas minhas notas anteriores, estimo
que a profundidade seja de sessenta e quatro quilômetros.
— Sessenta e quatro quilômetros? — me surpreendi.
— Sem dúvida.
— Mas esse é o limite extremo atribuído pela ciência à espessura da
crosta terrestre!
— Não nego.
— E aqui, de acordo com a lei do aumento da temperatura, deve
existir um calor de 1.500°.
— Deveria, meu garoto.
— E todo esse granito não poderia ser mantido no estado sólido e
estaria em plena fusão.
— Você vê que não é o que acontece. De acordo com seu hábito,
fatos tendem a contradizer as teorias.
— Sou forçado a admitir, mas de qualquer maneira isso me surpre-
ende.
— O que o termômetro indica?
— 27,6°.
— Portanto, estão faltando 1.474,4° para que os cientistas estejam
certos. Portanto, o aumento proporcional da temperatura é um erro. E
Humphry Davy não estava errado e nem eu em ouvi-lo. O que você tem
a dizer?
— Nada.
Na verdade, eu teria muito a dizer. Não aceitei a teoria de Davy de
forma alguma, ainda me apeguei ao calor central, embora não sentisse
os efeitos. Preferi admitir, na verdade, que esta chaminé de um vulcão
extinto, coberta por lava com um revestimento refratário, não permitia
que a temperatura se propagasse por suas paredes.
Mas, sem parar para buscar novos argumentos, me limitei a levar a
situação como estava.
— Tio — continuei — considero que todos os seus cálculos estão
corretos, mas permita-me tirar uma conclusão rigorosa.
— Vá, meu menino, à vontade.

Viagem ao Centro da Terra 200


— No ponto em que estamos, sob a latitude da Islândia, o raio ter-
restre é de cerca de seis mil e trezentos quilômetros, correto?
— Seis mil trezentos e trinta e dois.
— Vamos colocar seis mil e quatrocentos quilômetros em números
redondos. Em uma jornada de seis mil e quatrocentos, fizemos quarenta
e oito?
— Como você diz.
— E isso ao custo de trezentos e quarenta quilômetros na diagonal?
— Perfeitamente.
— Em cerca de vinte dias?
— Em vinte dias.
— Agora, sessenta e quatro quilômetros são um centésimo do raio
da Terra. Se continuarmos nesse ritmo, levará dois mil dias, ou quase
cinco anos e meio, para descer!
O professor não respondeu.
— Sem levar em conta que, se uma vertical de dezesseis léguas é
comprada por uma horizontal de oitenta, serão oito mil léguas no su-
deste e fará muito tempo que teremos saído por um ponto da circunfe-
rência antes de chegar ao centro!
— Para o inferno com seus cálculos! — respondeu meu tio com
um movimento de raiva — Para o inferno com suas suposições! Em que
se baseiam? Quem lhe disse que esse corredor não vai direto ao nosso
objetivo? Além disso, tenho um precedente a meu favor. O que estou fa-
zendo, outro já fez. E se ele foi bem-sucedido, também o serei na minha
vez.
— Espero que sim, mas tenho o direito de…
— Você tem o direito de ficar em silêncio, Axel, se for para dizer
mais alguma irracionalidade.
Vi que o terrível professor ameaçava reaparecer sob a pele do tio, e
me tomei por avisado.
— Agora — ele continuou — consulte o manômetro. O que ele
indica?
— Uma pressão considerável.
— Certo. Você vê que, descendo lentamente, nos acostumando aos
poucos à densidade dessa atmosfera, e não sofremos de forma alguma.
— Nem um pouco, apenas alguma dorzinha de ouvido.
— Não é nada, e você fará esse desconforto desaparecer colocando

Viagem ao Centro da Terra 201


o ar externo em rápida comunicação com o ar contido em seus pulmões.
— Perfeitamente — respondi, determinado a não incomodar mais
meu tio.
— Existe até um verdadeiro prazer em sentir-se imerso nesta at-
mosfera mais densa. Você notou o quão alto o som viaja por ele?
— Sem dúvida. Um surdo acabaria ouvindo maravilhosamente
bem.
— Mas essa densidade sem dúvida aumentará?
— Sim, de acordo com uma lei bastante incerta. É verdade que a
intensidade da gravidade diminuirá à medida que descemos. Você sabe
que é na própria superfície da Terra que sua ação é mais agudamente
sentida, e que no centro do globo os objetos não pesam mais.
— Disso eu sei, mas diga-me, esse ar não vai acabar adquirindo a
densidade da água?
— Sem dúvida, sob uma pressão de setecentas e dez atmosferas.
— E mais embaixo?
— Mais embaixo, essa densidade aumentará ainda mais.
— Como vamos descer então?
— Bem, vamos colocar pedras em nossos bolsos.
— Por Deus, tio, você tem resposta para tudo.
Não me atrevi a ir mais longe no campo das hipóteses, pois ainda
teria me deparado com alguma impossibilidade que teria feito o profes-
sor dar saltos.
Era evidente, no entanto, que o ar, sob uma pressão que poderia
atingir milhares de atmosferas, acabaria por entrar no estado sólido, e
então, supondo que nossos corpos tivessem resistido, teríamos que pa-
rar, apesar de todo o raciocínio do mundo.
Mas eu não apresentei esse argumento. Meu tio teria retaliado con-
tra mim novamente com seu eterno Saknussemm, um precedente inú-
til, porque, tomando a jornada do estudioso islandês como comprova-
da, havia uma coisa muito simples de responder: no século XVI, nem
o barômetro nem o manômetro haviam sido inventados, como, então,
Saknussemm foi capaz de determinar sua chegada ao centro do globo?
Mas guardei essa objeção para mim mesmo e esperei pelos aconte-
cimentos.

Viagem ao Centro da Terra 202


O resto do dia foi gasto em cálculos e conversas. Sempre fui da opi-
nião do Professor Lidenbrock e invejei a perfeita indiferença de Hans,
que, sem tanto buscar os efeitos e as causas, foi às cegas onde o destino
o levava.

Viagem ao Centro da Terra 203


Capítulo 26
ISOLAMENTO
26. ISOLAMENTO

Devo admitir que até aqui as coisas estavam indo bem, e eu teria
sido ingrato por reclamar. Se a média das dificuldades não aumentasse,
não poderíamos deixar de alcançar nosso objetivo. E que glória, então!
Cheguei até a raciocinar como um Lidenbrock. Realmente. Foi devido
ao meio estranho no qual estava vivendo? Talvez.
Durante alguns dias, encostas mais acentuadas, algumas até de
uma verticalidade assustadora, nos levavam e nos arrastavam profun-
damente no maciço interno. Em alguns dias, ganhávamos de seis a oito
quilômetros em direção ao centro. Perigosas descidas, durante as quais a
destreza de Hans e seu maravilhoso sangue-frio nos foram muito úteis.
Esse impassível islandês se dedicou com uma irreverência incompreen-
sível e, graças a ele, sobrevivemos a mais de um passo em falso, do qual
não sairíamos sozinhos.
Por exemplo, seu silêncio aumentava dia a dia. Eu até acho que ele
nos dominava. Os objetos externos têm um efeito real sobre o cérebro.
Quem se fecha em quatro paredes perdendo a capacidade de associar
ideias com palavras. Quantos prisioneiros em suas celas se tornaram
imbecis, se não loucos, por não exercerem suas capacidades pensantes?
Durante as duas semanas que seguiram nossa última conversa, não
houve nenhum incidente digno de ser relatado. Só consigo encontrar
em minha memória, e por um bom motivo, apenas um evento de extre-
ma gravidade. Teria sido difícil de esquecer dos mínimos detalhes.
No dia 7 de Agosto, nossas sucessivas descidas nos levaram a uma
profundidade de cento e vinte quilômetros. Ou seja, havia sobre nossas
cabeças cento e vinte quilômetros de rochas, oceano, continentes e cida-
des. Devíamos estar então a oitocentos quilômetros da Islândia.
Naquele dia, o túnel estava seguindo um plano pouco inclinado.
Eu andava à frente. Meu tio levava um dos aparelhos de Ruhmkorff
e eu o outro. Eu estava examinando as camadas de granito.
De repente, quando me virei, percebi que estava sozinho.

Viagem ao Centro da Terra 206


“Bom” — pensei — “andei rápido demais ou então Hans e meu tio
pararam no meio do caminho. Vamos, devo me juntar a eles. Felizmente
o caminho não sobe muito”.
Refiz meus passos. Caminhei por um quarto de hora. Olhei. Nin-
guém. Chamei. Sem resposta. Minha voz se perdeu em meio aos ecos
cavernosos que ela despertou de repente.
Comecei a ficar inquieto. Um arrepio percorreu todo meu corpo.
— Um pouco de calma. — disse em voz alta — Tenho certeza que
reencontrarei meus companheiros. Não existem dois caminhos! Agora,
eu estava à frente, resta voltar.
Subi durante meia hora. Tentei ouvir se algum chamado era dirigi-
do a mim e, nessa atmosfera densa, poderia chegar de longe. Um silên-
cio extraordinário reinava na imensa galeria.
Parei. Não podia acreditar no meu isolamento. Eu bem queria estar
desaparecido e não perdido. O desaparecido pode ser encontrado.
— Vejamos — repeti — sendo que só há um caminho, desde que
eles o sigam, devo reencontrá-los. Basta continuar subindo. A não ser
que, não me vendo e esquecendo que eu estava à frente, terem pensado
em voltar para trás. Pois bem! Mesmo nesse caso, me apressando, irei
reencontrá-los. É óbvio.
Eu repetia essas últimas palavras como um homem que não está
convencido. Afinal, para combinar essas ideias tão simples e reuni-las
na forma de um raciocínio, tive de empregar um tempo muito longo.
Então, uma dúvida se apoderou de mim. Eu estava mesmo à frente?
Certamente. Hans me seguia, precedendo meu tio. Ele até mesmo parou
durante alguns instantes para amarrar as bagagens no meu ombro. Esse
detalhe me veio à mente. Foi nesse exato momento em que devo ter
continuado meu caminho.
“Além disso” — pensei — “tenho um meio preciso de não me per-
der, um fio que me guiará nesse labirinto, e que não pode se romper,
meu fiel riacho. Só tenho que subir o curso e inevitavelmente reencon-
trarei os rastros de meus companheiros”.
Esse raciocínio me reanimou e decidi retomar minha marcha sem
perder um instante.
Como abençoo a clarividência do meu tio, quando impediu o ca-
çador de tampar o talho feito na parede de granito. Assim, essa benéfica

Viagem ao Centro da Terra 207


fonte, após nos ter saciado durante o caminho, me guiaria através das
sinuosidades da crosta terrestre.
Antes de subir, pensei que uma ablução1 me faria bem.
Então, me abaixei para mergulhar minha testa nas águas do Hans-
bach!
Pode imaginar o tamanho do meu espanto!
Eu pisava em um granito seco e áspero! O riacho não corria mais
aos meus pés.

1- Esse rito religioso de purificação é presente em religiões como o cristianismo, judaísmo


e o islã.

Viagem ao Centro da Terra 208


Capítulo 27
ENTERRADO VIVO
27. ENTERRADO VIVO

Não consigo descrever meu desespero. Nenhuma palavra da língua


humana seria capaz de transmitir meus sentimentos. Fui enterrado vivo
com a perspectiva de morrer torturado pela fome e pela sede.
Maquinalmente, coloquei minhas mãos ardentes sobre o chão.
Como essa rocha me parecia seca!
Mas como eu havia abandonado o curso do riacho? Porque afinal,
ele não estava mais lá! Compreendi então a razão deste estranho silên-
cio, quando tentei escutar pela última vez se algum chamado de meus
companheiros chegava aos meus ouvidos. Assim, no momento em que
dei o primeiro passo nessa rota imprudente, não notei a ausência do
riacho. Era evidente que, neste momento, uma bifurcação na galeria se
abriu diante de mim, enquanto o Hans-bach, obedecendo aos caprichos
de outro declive, foi com meus companheiros para profundidades des-
conhecidas.
Como voltar? Os rastros não existiam. Meus pés não deixavam pe-
gadas sobre este granito. Eu quebrava a cabeça tentando encontrar a
solução para esse problema insolúvel. Minha situação se resumia em
uma só palavra: perdido!
Sim! Perdido em uma profundidade que me parecia incomensu-
rável. Esses cento e vinte quilômetros de crosta terrestre pesavam sobre
meus ombros com um peso apavorante! Me sentia esmagado.
Tentei trazer meus pensamentos de volta para as coisas da Terra.
Foi por pouco que consegui isso. Hamburgo, a casa na Königstrasse,
minha pobre Graüben, todo esse mundo sob o qual me perdia passaram
rapidamente pela minha mente conturbada. Revivia em uma vívida alu-
cinação os incidentes da viagem, a travessia, a Islândia, o senhor Fridri-
ksson, o Sneffels. Disse para mim mesmo que, na minha posição, se eu
mantivesse a sombra de uma esperança, este seria um sinal de loucura e
que seria melhor me desesperar.

Viagem ao Centro da Terra 211


De fato, que poder humano poderia me trazer de volta à superfície
do globo e abrir essas enormes abóbadas que se erguiam sobre a minha
cabeça? Quem poderia me colocar de volta na estrada de volta para me
reunir com meus companheiros?
— Oh! Meu tio! — exclamei em um tom de desespero.
Foi a única palavra de reprovação que veio aos meus lábios, pois
entendi que o infeliz homem devia, por sua vez, estar sofrendo em mi-
nha procura.
Assim, quando me vi longe de qualquer socorro humano, incapaz
de tentar algo para minha salvação, pensei no socorro do Paraíso. As
lembranças da minha infância, as de minha mãe, que só conheci nas ho-
ras dos beijos, retornaram a minha memória. Recorri à oração, embora
tivesse pouco direito de ser ouvido por um Deus no qual me dirigia tão
tarde, e implorei-lhe fervorosamente.
Esse retorno à Providência me rendeu um pouco de calma e pude
concentrar todas as forças da minha inteligência sobre minha situação.
Eu tinha comida para três dias e o meu cantil estava cheio. No en-
tanto, eu não poderia ficar mais muito tempo sozinho. Mas eu devia
subir ou descer?
Subir evidentemente, continuar subindo.
Desse modo eu chegaria ao ponto onde havia abandonado a fonte,
a funesta bifurcação. Lá, uma vez que o riacho estivesse aos meus pés,
poderia ainda retornar ao pico do Sneffels.
Como não pensei nisso antes?! Evidentemente havia uma chance
de salvação. O mais urgente era, portanto, encontrar o curso do Hans-
-bach.
Levantei-me e, apoiado em meu bastão de caminhada, subi a ga-
leria. O declive era bastante íngreme. Andei com esperança e sem difi-
culdade, como um homem que não tem escolha de que caminho seguir.
Durante meia hora, nenhum obstáculo deteve meus passos. Tentei
reconhecer o meu caminho pela forma do túnel, a saliência de certas
rochas, a disposição das cavidades. Mas nenhum sinal em particular me
veio à mente, e logo percebi que esta galeria não poderia me levar de
volta à bifurcação. Ela não tinha saída. Eu colidi com uma parede impe-
netrável e caí sobre a rocha.

Viagem ao Centro da Terra 212


Por qual pavor? Por qual desespero eu fui tomado? Não posso di-
zer. Fiquei arrasado. Minha última esperança acabara de se quebrar con-
tra esta muralha de granito.
Perdido nesse labirinto cujas sinuosidades se cruzavam em todas
as direções, eu não tinha mais como tentar uma fuga impossível. Me
restava morrer a mais terrível das mortes! E então, algo estranho me
veio à mente, se meu corpo fossilizado fosse encontrado um dia, seu
achado a cento e vinte quilômetros nas entranhas da Terra levantaria
sérias questões científicas.
Queria falar em voz alta, mas apenas roucos ruídos passaram entre
meus lábios ressecados. Eu estava ofegante.
Em meio a essas angústias, um novo terror veio tomar conta de mi-
nha mente. Minha lâmpada ficou amassada ao cair. Eu não tinha como
consertá-la. Sua luz estava desaparecendo e ia me faltar!
Observei a corrente luminosa diminuir na bobina do aparelho.
Uma procissão de sombras em movimento se deslocavam pelas paredes
sombrias. Eu não ousava abaixar minhas pálpebras, temendo perder o
menor átomo dessa claridade em fuga! A cada momento, me parecia
que ela ia se esvair e que a escuridão iria me tomar.
Por fim, um último brilho tremeluziu na lâmpada. Eu o segui, aspi-
rei-o com o olhar, concentrei nele todo o poder dos meus olhos, como
se fosse a última sensação de luz que eles experimentariam e permaneci
mergulhado na imensa escuridão.
Que grito terrível me escapou! Sobre a terra, em meio às mais pro-
fundas noites, a luz nunca abandona totalmente seus direitos. Ela é di-
fusa, sutil, mas o pouco que resta, a retina do olho acaba percebendo.
Aqui, nada. A sombra absoluta me fazia um cego em toda a aceitação
da palavra.
E então, perdi a cabeça. Me levantei, com os braços à frente, ten-
tando tatear da maneira mais dolorosa possível. Me peguei em fuga,
precipitando meus passos ao acaso nesse inextricável labirinto, sempre
descendo, correndo através da crosta terrestre, como um habitante das
fendas subterrâneas, chamando, gritando, urrando, logo ferido pelas sa-
liências das rochas, caindo e me levantando ensanguentado, tentando
beber esse sangue que me inundou o rosto e sempre esperando uma
parede imprevista vir e oferecer a minha cabeça um obstáculo para ela
se quebrar.

Viagem ao Centro da Terra 213


Onde me levou esse caminho insensato? Sempre serei ignorante a
isso. Depois de várias horas, sem dúvidas, esgotado de minhas forças,
caí como uma massa inerte ao longo da parede e perdi todo o sentido
de existência.

Viagem ao Centro da Terra 214


Capítulo 28
MURMÚRIOS
28. MURMÚRIOS

Quando voltei à vida, meu rosto estava molhado, mas molhado de


lágrimas. Quanto durou este estado de inconsciência, não sei dizer. Eu
não tinha nenhum meio de determinar o tempo. Nunca uma solidão foi
igual à minha, nunca um abandono foi tão completo.
Depois de minha queda, eu havia perdido muito sangue. Eu me
sentia inundado. Ah! Como lamentei não ter morrido, “e que isso ainda
tivesse de acontecer”! Eu não queria pensar mais. Afastei todos os pen-
samentos e, vencido pela dor, rolei em direção à parede oposta.
Já sentia o desmaio tomar conta de mim e, com ele, a aniquilação
suprema, quando um barulho violento veio atingir meu ouvido. Parecia
o estrondo prolongado de um trovão, e eu ouvi as ondas sonoras se per-
derem pouco a pouco nas profundezas distantes do abismo.
De onde vinha esse barulho? De algum fenômeno, sem dúvida, que
ocorria dentro do maciço terrestre. A explosão de um gás ou a queda de
alguma poderosa estrutura do globo.
Escutei novamente. Queria saber se esse barulho se repetiria. Um
quarto de hora se passou. O silêncio reinava na galeria. Eu não ouvia
mais nem os batimentos de meu coração.
De repente, a minha orelha, encostada por acaso na parede, pensou
apanhar palavras vagas, inacessíveis, distantes. Estremeci.
“É uma alucinação!” — pensei.
Mas não. Ouvindo com atenção eu realmente ouvi um murmúrio
de vozes. Mas para entender o que estava sendo dito, é algo que minha
fraqueza não permitia. No entanto, estavam falando. Eu tinha certeza
disso.
Por um instante, tive medo de que essas palavras fossem as minhas,
trazidas de volta por um eco. Será que eu gritava sem saber? Fechei for-
temente meus lábios e encostei de novo minha orelha na parede.
“Sim! Certeza, estão falando! Estão falando!”.
Me movendo alguns centímetros mais adiante ao longo da mura-
lha, ouvi mais claramente. Consegui captar palavras incertas, estranhas,

Viagem ao Centro da Terra 217


incompreensíveis. Elas chegaram até mim como palavras pronunciadas
em voz baixa, murmúrios, por assim dizer. A palavra förlorad era repe-
tida várias vezes e com um tom de dor.
O que ela significava? Quem a pronunciava? Meu tio ou o Hans,
evidentemente. Mas se eu os ouvia, eles poderiam me ouvir.
— Aqui! — gritei com todas minhas forças — Aqui!
Escutei, espiei nas sombras por uma resposta, um grito, um suspi-
ro. Nada foi ouvido. Alguns minutos se passaram. Todo um mundo de
ideias eclodia em minha mente. Pensei que a minha voz enfraquecida
não pudesse alcançar meus companheiros.
“Porque são eles” — pensei — “Que outros homens estariam enter-
rados a cento e vinte quilômetros abaixo da terra?”.
Tornei a escutar. Movendo minha orelha pela parede, encontrei um
ponto matemático onde as vozes pareciam atingir sua máxima intensi-
dade. A palavra förlorad veio de novo ao meu ouvido, e depois aquele
estrondo que me tirou do torpor.
“Não, não” — eu disse — “não é através do maciço que essas vozes
são ouvidas. A parede é feita de granito, e não permitiria que a mais
forte explosão a atravessasse! Esse barulho vem da própria galeria! Deve
haver um efeito de acústica bem particular!”.
Escutei de novo, e desta vez, sim! Desta vez! Eu ouvi meu nome
distintamente sendo lançado ao espaço!
Era meu tio que o pronunciava! Ele conversava com o guia e a pa-
lavra förlorad era uma palavra dinamarquesa.
Então compreendi tudo. Para ser escutado, eu precisava falar preci-
samente ao longo dessa muralha que serviria para conduzir minha voz
como o fio de ferro conduz eletricidade.
Mas não tinha tempo a perder. Se meus companheiros se afastas-
sem por alguns passos, o fenômeno acústico seria destruído. Assim, me
aproximei da muralha e pronunciei essas palavras o mais claramente
possível:
— Meu tio Lidenbrock!
Esperei na mais intensa ansiedade. O som não tem uma velocida-
de extremamente rápida. A densidade das camadas de ar não aumenta
sua velocidade, ela aumenta apenas sua intensidade. Alguns segundos,
séculos, se passaram, e finalmente estas palavras chegaram aos meus
ouvidos.

Viagem ao Centro da Terra 218


— Axel, Axel! É você?
………………………………………………………………………
— Sim! Sim! — respondi.
………………………………………………………………………
— Meu filho, onde você está?
………………………………………………………………………
— Perdido na mais profunda escuridão!
………………………………………………………………………
— Mas e a sua lâmpada?
………………………………………………………………………
— Apagou.
………………………………………………………………………
— E o riacho?
………………………………………………………………………
— Desapareceu.
………………………………………………………………………
— Axel, meu pobre Axel, retome a coragem!
………………………………………………………………………
— Espere um pouco, estou exausto! Não tenho mais forças para
responder. Mas fale comigo!
………………………………………………………………………
— Coragem. — prosseguiu meu tio — Não fale, escute-me. Pro-
curamos por você subindo e descendo a galeria. Impossível de te achar.
Ah! Chorei por você, meu filho. Finalmente, supondo que você conti-
nuava no caminho do Hans-bach, descemos novamente dando tiros de
fuzil. Agora, nossas vozes puderam se reunir por puro efeito acústico!
Nossas mãos não podem se tocar! Mas não se desespere, Axel! Já é uma
coisa nos ouvirmos!
………………………………………………………………………
Durante esse tempo estive refletindo. Uma certa esperança, ainda
que vaga, voltou ao meu coração. Em primeiro lugar, era importante eu
saber uma coisa. Então, aproximei meus lábios na muralha e disse:
— Meu tio?
………………………………………………………………………
— Meu filho? — me foi respondido depois de alguns instantes.
………………………………………………………………………

Viagem ao Centro da Terra 219


— Primeiro precisamos saber qual distância nos separa.
………………………………………………………………………
— Isso é fácil.
………………………………………………………………………
— Você está com seu cronômetro?
………………………………………………………………………
— Sim.
………………………………………………………………………
— Pois bem, pegue-o. Pronuncie meu nome anotando o exato se-
gundo que o disser. Eu o irei repetir e você observará o momento preci-
so em que chegará minha resposta.
………………………………………………………………………
— Bem, e a metade do tempo decorrido entre meu chamado e a sua
resposta indicará quanto tempo minha voz leva para chegar até você.
………………………………………………………………………
— Isso mesmo, meu tio.
………………………………………………………………………
— Está pronto?
………………………………………………………………………
— Sim.
………………………………………………………………………
— Bem, preste atenção, irei pronunciar o seu nome.
………………………………………………………………………
Encostei minha orelha na parede, e assim que a palavra “Axel” me
alcançou, respondi imediatamente “Axel” e esperei.
………………………………………………………………………
— Quarenta segundos. — disse então meu tio — Se passaram qua-
renta segundos entre as duas palavras. O som leva, portanto, vinte se-
gundos para subir. Ora, a trezentos e dez metros por segundo são seis
mil e duzentos metros, ou seis quilômetros e duzentos.
………………………………………………………………………
— Seis quilômetros e duzentos! — murmurei.
………………………………………………………………………
— Bom, podem ser atravessados, Axel!
………………………………………………………………………
— Mas devo subir ou descer?
………………………………………………………………………

Viagem ao Centro da Terra 220


— Descer, e esse é o porquê. Nós chegamos em um vasto espaço,
onde culminam um grande número de galerias. Essa que você seguiu
não pode deixá-lo de te conduzir, pois parece que todas essas fendas e
fissuras do globo irradiam em torno da imensa caverna que ocupamos.
Levante-se e então retome seu caminho. Ande, se arraste e se for preciso,
deslize pelas encostas íngremes e você encontrará nossos braços para te
receber no final do caminho. Adiante, meu filho, adiante!
………………………………………………………………………
Essas palavras me reanimaram.
— Adeus, meu tio — exclamei — estou partindo. Nossas vozes não
poderão mais se comunicar no momento em que eu deixar este lugar!
Então, adeus!
………………………………………………………………………
— Adeus, Axel! Adeus!
………………………………………………………………………
Tais foram as últimas palavras que ouvi.
Essa surpreendente conversa feita através da massa terrestre, troca-
da a mais de seis quilômetros de distância, terminou com essas palavras
de esperança. Fiz uma prece em agradecimento a Deus, pois ele me con-
duziu entre essas imensidades sombrias até o único ponto onde, talvez,
a voz dos meus companheiros pudesse me alcançar.
Esse efeito acústico, muito impressionante, se explica facilmente
pelas leis da física. Era causado pela forma do corredor e pela conduti-
bilidade da rocha. Existem muitos exemplos dessa propagação de sons
que não são perceptíveis em espaços intermediários. Lembro que em
muitos lugares esse fenômeno foi observado, entre eles, a galeria inte-
rior da catedral de São Paulo em Londres, e especialmente no meio das
curiosas cavernas da Sicília, aquelas latomias1 situadas perto de Sira-
cusa, das quais a mais maravilhosa deste gênero é conhecida como a
Orelha de Dionísio2.
Essas memórias me voltaram a mente e vi claramente que, já que a
voz de meu tio chegava até a mim, nenhum obstáculo existia entre nós.
Seguindo o caminho do som, eu deveria logicamente chegar até ele, se
minhas forças não me traíssem no percurso.
Então me levantei. Me arrastava mais do que andava. A encosta
era bastante íngreme. Me deixava deslizar.

Viagem ao Centro da Terra 221


Logo, a velocidade de minha descida aumentou em proporções
assustadoras e ameaçou parecer uma queda. Não tinha mais a força para
parar.
De repente, o chão sumiu dos meus pés. Me senti rolando, qui-
cando na aspereza de uma galeria vertical, um verdadeiro poço. Minha
cabeça atingiu uma pedra afiada e perdi a consciência.

1- Na antiguidade greco-romana, as latomias eram prisões esculpidas em antigas pedreiras.

2- Também conhecido como Baco pelos romanos, é o deus grego do vinho e das festividades,
dada a minha experiência até o momento diria se tratar de um deus que não olha muito para
debaixo da Terra.

Viagem ao Centro da Terra 222


Capítulo 29
DE VOLTA À SUPERFÍCIE?
29. DE VOLTA À SUPERFÍCIE?

Quando voltei a mim, estava em uma penumbra, estendido sobre


grossos cobertores. Meu tio velava, buscando em meu rosto um resquí-
cio de existência. Ao meu primeiro suspiro, ele tomou minha mão. Ao
meu primeiro olhar, ele soltou um grito de alegria.
— Ele vive! Ele vive! — exclamou.
— Sim — respondi com a voz fraca.
— Meu filho — disse meu tio me apertando contra seu peito —
você está salvo!
Fiquei bastante comovido com o tom que foram pronunciadas es-
sas palavras e ainda mais com os cuidados que as acompanharam. Mas
foram necessárias tantas provações para provocar no professor tais de-
monstrações.
Hans chegou nesse momento. Ele viu minha mão na de meu tio.
Ouso afirmar que seus olhos expressaram uma vívida satisfação.
— God dag — ele disse.
— Bom dia, Hans, bom dia. — murmurei — E agora, meu tio, me
conte onde estamos neste momento.
— Amanhã, Axel, amanhã. Hoje você ainda está muito fraco. En-
rolei sua cabeça em compressas que não devem ser perturbadas. Então
durma, meu rapaz, e amanhã você saberá de tudo.
— Mas ao menos — continuei — que horas são e que dia é?
— Onze horas da noite. Hoje é domingo, 9 de Agosto, e não permi-
tirei que me pergunte mais nada até o dia 10 deste mês.
Na verdade, eu estava bem fraco e meus olhos se fecharam invo-
luntariamente. Eu precisava de uma noite de repouso. Então, me deixei
adormecer pensando que meu isolamento havia durado quatro longos
dias.
No dia seguinte, quando acordei, olhei à minha volta. O meu leito,
feito com todos os cobertores da viagem, estava instalado em uma char-
mosa gruta, ornadas de magníficos estalagmites, onde o chão era co-
berto por uma areia fina. Uma penumbra reinava ali. Nenhuma tocha,
nenhuma lâmpada foi acesa e, no entanto, uma certa claridade inex-

Viagem ao Centro da Terra 225


plicável vinha de fora, penetrando por uma abertura estreita da gruta.
Ouvi também um murmúrio vago e indefinido, semelhante ao das on-
das se quebrando na praia e às vezes os assobios da brisa.
Me perguntava se estava devidamente acordado, se não estava so-
nhando, se meu cérebro, quebrado pela minha queda, não percebia ru-
ídos puramente imaginários. No entanto, nem meus olhos nem meus
ouvidos poderiam estar enganados neste ponto.
“É um raio de Sol — pensei — que entra por essas fendas nas ro-
chas! Ouço claramente o murmúrio das ondas! Ouço o assobio da brisa!
Estou enganado ou estamos de volta à superfície da Terra? Meu tio en-
tão desistiu de sua expedição ou ela havia felizmente acabado?”.
Eu estava ponderando essas questões insolúveis quando o professor
entrou.
— Bom dia, Axel! — ele disse alegremente — Eu apostaria de bom
grado que você está se sentindo bem!
— Estou, sim — disse me endireitando sobre os cobertores.
— Era o esperado, pois você dormiu tranquilamente. Hans e eu nos
revezamos para velá-lo e vimos sua recuperação progredindo significa-
tivamente.
— De fato, me sinto revigorado e a prova disso é que irei honrar o
desjejum que você de bom grado me servirá!
— Você comerá, meu rapaz! A febre te deixou. Hans esfregou suas
feridas com não sei qual unguento que os islandeses têm em segredo
e suas feridas cicatrizaram maravilhosamente. É um homem honrado
esse nosso caçador.
Enquanto falava, meu tio preparava alguns alimentos que eu devo-
rei, apesar de suas recomendações. Enquanto isso, eu o enchi de pergun-
tas das quais ele se apressou em responder.
Soube então que minha queda providencial me levara precisamen-
te ao final de uma galeria quase perpendicular. Como eu chegara no
meio de uma torrente de pedras, cuja menor delas seria suficiente para
me esmagar, restava concluir que o maciço tinha escorregado comigo.
Esse assustador veículo me transportou assim até os braços de meu tio,
onde caí ensanguentado, inanimado.
— Realmente — ele me disse — é surpreendente que você não te-
nha se matado mil vezes. Mas, por Deus! Não nos separemos mais, pois
arriscaríamos nunca mais nos vermos!

Viagem ao Centro da Terra 226


“Não nos separemos mais”! Então a viagem não acabou? Arregalei
meus olhos com espanto, o que provou imediatamente esta pergunta:
— O que você tem, Axel?
— Uma pergunta a lhe fazer. Você diz que estou são e salvo?
— Sem dúvidas.
— Estou com todos meus membros intactos?
— Certamente.
— E a minha cabeça?
— A sua cabeça, exceto por alguns machucados, está perfeitamente
em seu lugar, sobre seus ombros.
— Bem, temo que meu cérebro tenha sido danificado.
— Danificado?
— Sim. Nós não estamos de volta à superfície do globo?
— Claro que não.
— Então devo estar louco, pois vejo a luz do dia, ouço o som do
vento que sopra e do mar se quebrando.
— Ah! É só isso?
— Você vai me explicar?
— Não vou te explicar nada, pois é inexplicável. Mas você verá e
compreenderá que a ciência geológica ainda não disse a sua última pa-
lavra.
— Vamos sair então! — exclamei, me levantando bruscamente.
— Não, Axel, não! O ar fresco pode lhe fazer mal.
— O ar fresco?
— Sim, o vento está bastante forte. Não quero que você se exponha
assim.
— Mas garanto que estou me sentindo muito bem.
— Um pouco de paciência, meu rapaz. Uma recaída nos colocaria
em uma enrascada e não temos tempo a perder, pois a travessia pode
ser longa.
— A travessia?
— Sim, descanse por hoje ainda e amanhã embarcaremos.
— Embarcaremos!
Essa última palavra me fez pular.
Como! Embarcaremos! Havia então um rio, um lago, um mar à
nossa disposição? Uma embarcação estaria ancorada em algum porto
interior?

Viagem ao Centro da Terra 227


Minha curiosidade foi elevada ao ponto mais alto. Meu tio tentou
em vão me conter. Quando viu que minha impaciência me faria mais
mal do que a satisfação de minhas vontades, ele cedeu.
Me vesti rapidamente. Como precaução complementar, me enrolei
em um dos cobertores e saí da gruta.

Viagem ao Centro da Terra 228


Capítulo 30
O MAR LIDENBROCK
30. O MAR LIDENBROCK

A princípio, não vi nada. Meus olhos, desacostumados com a luz,


se fecharam rapidamente. Quando pude reabri-los, fiquei mais atordo-
ado do que maravilhado.
— O mar! — exclamei.
— Sim — respondeu meu tio — o Mar Lidenbrock, e gosto de acre-
ditar que nenhum outro navegador irá disputar comigo a honra da des-
coberta e o direito de batizá-lo com o meu nome.
Uma vasta superfície de água, o começo de um lago ou de um oce-
ano, se estendia para além do horizonte. A costa, profundamente re-
cuada, se encontrava com o sobrepor das ondas com uma areia fina e
dourada por onde se espalhavam aquelas pequenas conchas que um dia
foram habitadas pelos primeiros seres da criação. As ondas quebravam
nesta costa com o típico murmúrio de vastos espaços fechados. Uma
leve espuma foi soprada por um vento moderado, e um pouco caiu so-
bre meu rosto. Nesta costa suavemente inclinada, a aproximadamente
duzentos metros da orla, repousavam os pés de enormes penhascos que
se erguiam ampliando a uma altura imensurável. Alguns deles, dividin-
do a praia com suas arestas pontiagudas, formavam cabos e promontó-
rios1 roídos pela força erosiva da ressaca. Mais adiante, o olhar discernia
o contorno de suas massas afiadas contra o fundo do horizonte.
Era um oceano de verdade, com o contorno caprichado das costas
terrestres, mas deserto e assustadoramente selvagem.

Viagem ao Centro da Terra 231


Se meus olhos podiam percorrer amplamente sobre este grande
mar, era graças a uma “luz” especial que iluminava os menores detalhes.
Não era a luz do Sol, com seus feixes de brilho e a esplêndida radiação
de seus raios, nem era o pálido e difuso cintilar da Lua, que é apenas um
reflexo sem calor. Não. O poder iluminativo dessa luz, sua difusão trê-
mula, sua claridade, sua brancura seca, sua baixa temperatura e sua cla-
ridade, que superava o astro noturno, mostravam que era obviamente
de origem elétrica. Era como uma aurora boreal, um fenômeno cósmico
constante que preenchia uma caverna grande o bastante para conter um
oceano.
A abóbada suspensa sobre minha cabeça, o céu, por assim dizer, pa-
recia feita de grandes nuvens, se deslocando e movimentando vapores,
nos quais, através de condensação, se tornariam chuvas torrenciais em
algum dia. Eu teria pensado que, sob tão alta pressão atmosférica, a água
não evaporaria e, ainda assim, por uma razão da física que me escapou,
haviam grandes nuvens carregadas no ar. Mas naquela hora “o tempo
estava bom”. As camadas elétricas produziam efeitos surpreendentes de
luz sobre as mais altas nuvens. Intensas sombras desenhavam sobre suas
volutas2 inferiores e, frequentemente, através de duas camadas separa-
das, um raio rompia até nós com marcante intensidade. Mas, de modo
geral, não era o Sol porque sua luz não tinha calor. Seu efeito era triste,
extremamente melancólico. Ao invés de um céu cintilante de estrelas, eu
sentia uma abóbada de granito sobre as nuvens que me esmagava com
todo seu peso, e com todo esse tamanho, enorme como era, não haveria
espaço para o movimento do menos ambicioso dos satélites.
Então, eu lembrei da teoria de um capitão britânico, que compa-
rava a Terra com uma grande esfera oca, dentro da qual o ar permane-
cia luminoso por causa da imensa pressão, enquanto suas duas estrelas,
Plutão e Proserpina3, seguiam ali suas misteriosas órbitas. Teria ele dito
a verdade?!
Nós estávamos, na realidade, aprisionados dentro de uma imensa
cavidade. Era impossível determinar sua largura, já que a costa continu-
ava tão longe quanto a vista alcançava, assim como seu comprimento,
pois o olho logo alcançava uma parada em algum lugar do indistinto
horizonte. Quanto à sua altura, deveria superar vários quilômetros.
Onde a abóbada repousava sobre sua base de granito, nenhum olhar

Viagem ao Centro da Terra 232


poderia dizer, mas havia uma nuvem suspensa na atmosfera cuja altura
nós estimamos em quatro mil metros, uma altura maior que qualquer
vapor terrestre, sem dúvida, graças à densidade considerável do ar.
A palavra “caverna” evidentemente não é capaz de descrever esse
imenso espaço, mas as palavras da língua humana são insuficientes para
aqueles que se aventuram no abismo da Terra.
Eu não sabia, de qualquer maneira, que fato geológico explicaria a
existência de tal cavidade. O resfriamento do globo teria sido capaz de
produzi-la? Eu sabia sobre algumas cavernas famosas pela descrição de
viajantes, mas nunca ouvi falar de alguma com tais dimensões.
Mesmo se a gruta de Guacharos na Colômbia, visitada por Hum-
boldt4, não tivesse cedido o segredo de sua profundidade para o sábio
que explorou setecentos e setenta metros, ela provavelmente não se es-
tendia muito além. A imensa Caverna do Mamute no Kentucky é de
proporções gigantescas, já que seu teto abobado se ergue a cento e cin-
quenta metros acima de um lago de proporções gigantescas e viajantes
haviam explorado mais de cinquenta quilômetros sem encontrar fim.
Mas o que eram essas cavidades comparadas com a que eu estava admi-
rando, com seu céu de vapor, sua radiação elétrica e o seu vasto ocea-
no enclausurado?! Minha imaginação se sentia impotente diante de tal
imensidade.
Eu olhei fixamente todas essas maravilhas em silêncio. Faltavam
palavras para expressar meus sentimentos. Eu senti como se testemu-
nhasse um fenômeno de um outro planeta, Urano ou Netuno, cuja
minha natureza “terrestre” não tinha conhecimento. Pois tais curiosas
sensações, novas palavras eram necessárias e minha imaginação falhou
em fornecê-las. Eu encarei, pensei e contemplei com uma admiração
misturada com certo medo.
A natureza imprevista deste espetáculo trouxe uma coloração sau-
dável de volta para minhas bochechas. Surpreendentemente, estava me
curando com esta nova terapia, além disso, a vivacidade do ar denso me
revigorou, fornecendo mais oxigênio para meus pulmões.
Será fácil de entender que após um aprisionamento de quarenta
e sete dias em um estreito túnel, era um prazer infinito respirar este ar
cheio de umidade e sal.

Viagem ao Centro da Terra 233


Então, não tinha
razão para me arrepen-
der de ter deixado a mi-
nha escura gruta. Meu
tio, já acostumado com
tais encantos, não esta-
va impressionado.
— Se sente forte o
bastante para caminhar
um pouco? — me per-
guntou.
— Sim, certamen-
te — respondi — e nada
seria mais agradável.
— Bem, segure
meu braço, Axel, e va-
mos seguir as curvas da
costa.
Eu aceitei avida-
mente e começamos a
caminhar pelas mar-
gens deste novo oceano.
Nos rochedos íngremes
à esquerda, empilhados
uns sobre os outros,
se formava um amon-
toado titânico de apa-
rência extraordinária.
Descendo seus flancos,
inumeráveis cachoeiras
fluíam, desaguando em
límpidos e retumbantes
córregos. Um pouco de
vapor, saltando de ro-
cha em rocha, marcava
o local de fontes termais
e riachos fluíam suave-

Viagem ao Centro da Terra 234


mente em direção à baía, tomando as encostas como uma oportunida-
de de murmurar ainda mais agradavelmente.
Dentre estes córregos, reconheci nosso fiel companheiro de via-
gem, o Hans-bach, que veio sucumbir discretamente no oceano, como
se não tivesse feito mais nada desde o começo do mundo.
— Sentiremos saudade — disse, com um suspiro.
— Oras! — replicou o professor — Este ou aquele, o que isso im-
porta?
Achei este comentário um tanto ingrato.
Mas neste momento, minha atenção foi atraída para um espetá-
culo inesperado. A uma distância de quinhentos passos, na virada de
um promontório, uma alta, avolumada e densa floresta apareceu dian-
te de nossos olhos. Ela consistia de árvores moderadamente altas com
um formato de um típico guarda-sol, com contornos precisamente ge-
ométricos. As correntes de vento pareciam ter nenhum impacto em
suas folhas e, no meio das brisas, elas se erguiam inabaláveis como um
arvoredo de cedros petrificados.
Me apressei adiante. Eu não era capaz de nomear estes espécimes
peculiares. Elas não faziam parte das duzentas mil espécies de plantas
já conhecidas, seria necessário dar a elas um lugar próprio entre a flora
das vegetações lacustres? Não. Quando chegamos em suas sombras,
minha surpresa se transformou em admiração.
Na verdade, eu encarava produtos da Terra, mas desenvolvidos
a estatura gigantesca. Meu tio, imediatamente, os chamou pelo seu
nome.
— É apenas uma floresta de cogumelos — ele disse.
E ele estava certo. Imagine o desenvolvimento dessas plantas, que
preferiam lugares de clima úmido e quente. Eu sabia que de acordo
com Bulliard5, o Lycoperdon giganteum alcança uma circunferência de
dois metros e meio a três metros, mas estes eram cogumelos brancos
de dez a doze metros de altura, com um chapéu de mesmo diâmetro.
Lá, eles se erguiam aos milhares. Nenhuma luz penetrava suas som-
bras e uma completa escuridão reinava sob estes domos justapostos
que se assemelhavam aos telhados redondos de uma cidade africana.
Contudo, eu queria ir adiante. Um frio mortal descia daquelas
abóbadas carnudas. Por meia hora vagamos pela escuridão úmida e
foi com sentimento genuíno de bem-estar que retornei para o litoral.

Viagem ao Centro da Terra 235


Mas a vegetação desta região subterrânea não se limitava a cogume-
los. Mais à frente, havia aglomerados de diversas árvores com folhagem
desbotada. Elas eram fáceis de identificar, estes eram modestos arbustos
da Terra de tamanhos extraordinários, licopódios de trinta metros de
altura, sigilárias6 gigantes, samambaias tão altas quanto os pinheiros das
latitudes ao norte, lepidodendrales com troncos cilíndricos bifurcados
terminando em compridas folhas e eriçados de espinhos ásperos como
monstruosas suculentas.
— Incrível, magnífico, esplêndido! — exclamou meu tio — Aqui
está toda a flora do segundo período do mundo, o de Transição. Olhe
estas humildes plantas de jardins que eram árvores nas primeiras eras
do globo. Olhe, Axel, e as admire! Nunca um botânico esteve em uma
celebração como esta!
— Você está certo, tio. Nessa imensa estufa, a Providência parece
querer preservar as plantas antediluvianas7 cuja sabedoria dos estudio-
sos havia reconstruído com sucesso.
— Bem colocado, meu garoto, é uma estufa, mas você teria feito
ainda melhor se tivesse complementando que é, talvez, um zoológico.
— Um zoológico?
— Sim, sem dúvidas. Olhe para esta poeira sob nossos pés, estes
ossos espalhados pelo chão.
— Osso! — exclamei — Sim, ossos de animais antediluvianos!
Me apressei em direção a estes restos centenários, feitos de uma
substância mineral indestrutível8. Sem hesitação, era capaz de nomear
estes ossos gigantescos que se assemelhavam a troncos de árvores res-
secados.
— Aqui está a mandíbula inferior de um mastodonte. — disse
— Estes são os molares de um dinotério, este fêmur deve ter pertencido
a maior das criaturas, o megatério9. É, certamente, um zoológico, pois
estes restos não foram trazidos até aqui por um cataclisma. Os animais
aos quais eles pertenciam viveram nas costas deste mar subterrâneo, sob
a sombra dessas plantas de tamanho de árvores. Olhe, vejo esqueletos
completos. Ainda assim…
— Ainda assim? — disse meu tio.
— Eu não entendo a presença de tais quadrúpedes nesta caverna
de granito.

Viagem ao Centro da Terra 236


— Por quê?
— Porque a vida animal existiu na Terra apenas no período se-
cundário, quando um solo sedimentar tinha sido criado através de de-
pósitos aluviais10 e haviam tomado o lugar das rochas incandescentes do
período primitivo.
— Bem, Axel, há uma simples explicação para a sua objeção, é
que este solo é aluvial.
— O quê? Em tal profundidade sob a superfície da Terra?
— Sem dúvida há uma explicação geológica para este fato. Em
um certo período, a Terra consistia apenas de uma crosta flexível, sujeita
aos movimentos alternados de cima ou de baixo, por virtude das leis
da gravidade. Provavelmente, houve deslizamentos e um tanto de solo
aluvial se precipitou para o fundo destes abismos que repentinamente se
abriram.
— Deve ser isso. Mas se animais antediluvianos viveram nestas re-
giões abaixo da terra, quem garante que um destes monstros não con-
tinua vagando por estas sombrias florestas ou atrás desses íngremes ro-
chedos?
Com este pensamento, eu sondei, com medo, diversos pontos no
horizonte, mas nenhuma criatura viva apareceu na árida costa.
Me senti um tanto cansado e fui me sentar no final de um pro-
montório, no qual as barulhentas ondas quebravam sob seu pé. Daqui,
minha vista incluía esta baía inteira formada por um recuo da costa.
Ao fundo, um pequeno porto disposto entre penhascos piramidais. Sua
água calma repousava intocada pelo vento. Um brigue e duas ou três
escunas poderiam facilmente ancorar nele. Eu quase esperei ver um na-
vio partindo com velas içadas e zarpando para o mar aberto sob a brisa
vinda do sul.
Mas esta ilusão se desfez rapidamente. Nós éramos as únicas cria-
turas vivas neste mundo subterrâneo. Quando havia uma calmaria no
vento, um silêncio mais profundo que o do deserto caía sobre as rochas
áridas e pesava sobre a superfície do oceano. Eu então tentei perfurar a
distante neblina e rasgar a cortina que se pendurava através do misterio-
so horizonte. Quais questões estavam na ponta da minha língua? Onde
esse oceano terminava?! Até onde ele levava?! Poderíamos algum dia
explorar suas margens opostas?!

Viagem ao Centro da Terra 237


Meu tio não tinha dúvidas disso. Eu desejava isso, ao mesmo tempo
em que temia.
Após passar uma hora contemplando este maravilhoso espetáculo,
caminhamos sobre os seixos de volta para a gruta e caí em um sono
profundo no meio de pensamentos estranhos.

1- Lembro-me das aulas de geografia que meu tio fazia das nossas idas ao litoral. Simplificando
suas longas palestras, um cabo consiste de uma massa de terra que se estende, formando uma
ponta, na direção do mar ou oceano. Um promontório é basicamente um cabo composto por
rochas elevadas e penhascos.

2- Ornamentos espiralados, facilmente reconhecidos em conchas e nos pilares gregos.

3- Proserpina é uma deusa da mitologia romana, equivalente à Perséfone (grega). Nas lendas,
foi raptada por Plutão, que a fez sua esposa e a levou para junto de si no submundo. As duas
estrelas fazem alusão ao casal que governa nas profundezas da Terra.

4- Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander von Humboldt, nascido em Berlim, foi um grande
geógrafo, naturalista e explorador que desempenhou um grande papel em suas viagens pela
América, estudando tanto a geografia quanto a biologia local.

5- Esse importante médico e botânico fez grandes contribuições para a área de micologia,
descrevendo inúmeros cogumelos.

6- Lepidodendrais e Sigillaria são grupos de plantas extintas. As Lepidodendrales são


conhecidas como “musgos gigantes” e podiam atingir mais de trinta metros de altura.
As sigilárias pareciam árvores, porém com o tronco sem madeira e coberto por folhas.

7- O período antediluviano se refere ao espaço de tempo antes do dilúvio bíblico.


Apesar de não ser tão científico quanto outras definições de tempo utilizadas
na geologia, é uma boa expressão para definir um período antigo e não bem definido.

8- Nota do autor: Fosfato de cálcio.

9- Esses grandes mamíferos, já extintos, são parentes de espécies que conhecemos hoje
em dia. Os mastodontes, mais conhecidos como mamutes, e os dinotérios eram semelhantes
aos elefantes, já os megatérios eram preguiças gigantes.

10- São depósitos de sedimentos compostos por areia, cascalho ou lama, que se acumulam
no leito dos rios.

Viagem ao Centro da Terra 238


Capítulo 31
A HORA DA MARÉ
31. A HORA DA MARÉ

No dia seguinte acordei completamente curado. Achei que um ba-


nho seria muito benéfico para mim, e fui mergulhar por alguns minu-
tos nas águas desse Mediterrâneo. Esse nome, com certeza, ela merecia
acima de tudo.
Voltei para o almoço com bom apetite. Hans sabia preparar nos-
so pequeno cardápio, ele tinha fogo e água à sua disposição, para que
pudesse variar um pouco o nosso cotidiano. De sobremesa, ele nos ser-
viu algumas xícaras de café, e essa bebida deliciosa nunca pareceu mais
agradável de saborear.
— Agora — disse meu tio — esta é a hora da maré. Não devemos
perder a oportunidade de estudar este fenômeno.
— Como assim, maré? — questionei.
— Sem dúvida.
— A influência da Lua e do Sol pode ser sentida até aqui?
— Por que não? Os corpos como um todo não estão sujeitos à atra-
ção universal? Este corpo de água não pode, portanto, escapar dessa lei
geral. Além disso, apesar da pressão atmosférica exercida em sua super-
fície, você a verá subir como o próprio Atlântico.
Nesse momento estávamos pisando na areia da praia, e as ondas
aos poucos iam chegando à praia.
— Realmente, a maré está subindo — me surpreendi.
— Sim, Axel, e a partir desses relés de espuma, você pode ver que o
mar está subindo cerca de três metros.
— Isso é maravilhoso!
— Não, é natural.
— Não importa o que você diga, tio, tudo me parece extraordinário
e mal posso acreditar no que vejo. Quem teria imaginado nesta crosta
terrestre um verdadeiro oceano, com seus fluxos e refluxos, com suas
brisas, com suas tempestades!
— Por que não? Existe uma razão física contra isso?
— Não vejo nenhuma, desde que você tenha que abandonar o sis-
tema de aquecimento central.

Viagem ao Centro da Terra 241


— Então, até agora a teoria de Davy foi considerada justificada?
— Obviamente, e portanto nada contradiz a existência de mares ou
regiões dentro do globo.
— Sem dúvida, mas desabitado.
— Oras, e por que essas águas não deveriam dar refúgio a alguns
peixes de uma espécie desconhecida?
— Em qualquer caso, não vimos nenhum até agora.
— Podemos fazer linhas e ver se o anzol terá tanto sucesso aqui na
terra quanto nos oceanos sublunares.
— Vamos tentar, Axel, porque devemos penetrar em todos os se-
gredos dessas novas regiões.
— Mas onde estamos, tio? Ainda não lhe fiz aquela pergunta para a
qual os seus instrumentos devem ter a resposta.
— Horizontalmente, a mil e quatrocentos quilômetros da Islândia.
— Tanto assim?
— Tenho certeza de que não estou enganado por mil metros.
— E a bússola ainda aponta para o sudeste?
— Sim, com uma declinação ocidental de 19° 42’, absolutamente
como na superfície. Quanto à sua inclinação, ocorre um fato curioso
que observei com o maior cuidado.
— E qual é?
— A agulha, em vez de se inclinar em direção ao polo, como faz no
hemisfério boreal, é levantada ao contrário.
— Devemos, portanto, concluir que o ponto de atração magnética
está entre a superfície do globo e o local onde chegamos?
— Precisamente, e é provável que se chegássemos às regiões po-
lares, àquele septuagésimo grau em que James Ross descobriu o polo
magnético, veríamos a agulha erguer-se verticalmente. Portanto, este
misterioso centro de atração não está localizado em uma grande pro-
fundidade.
— Na verdade, e aqui está um fato que a ciência não percebeu.
— A ciência, meu rapaz, é feita de erros, mas de erros que é bom
cometer, pois aos poucos eles conduzem à verdade.
— E quão profundos estamos?
— A uma profundidade de cento e quarenta quilômetros.

Viagem ao Centro da Terra 242


— Então — eu disse, olhando para o mapa — a parte montanhosa
da Escócia está acima de nós, e lá as montanhas Grampian elevam seus
picos cobertos de neve a uma altura estupenda.
— Sim — o professor respondeu, rindo. — É um pouco pesado
para carregar, mas o arco é sólido, o grande arquiteto do Universo o
construiu com bons materiais, e o homem jamais poderia ter construído
um vão semelhante! O que são os arcos das pontes e catedrais ao lado
desta nave com um raio de doze quilômetros, sob os quais um oceano e
suas tempestades podem se desenvolver à vontade?
— Ah, não tenho medo do céu caindo na minha cabeça. Mas, tio,
quais são seus planos agora? Você não pretende voltar à superfície do
globo?
— Retornar! Era só o que me faltava! Pelo contrário, já que tudo
correu tão bem até agora, vamos continuar nossa jornada.
— No entanto, não vejo como atravessar esta planície líquida.
— Bom, não pretendo entrar de cabeça na água. Mas se os oceanos
são, a rigor, apenas lagos, uma vez que estão rodeados de terra, este mar
interior está obrigatoriamente circunscrito pelo maciço granítico.
— Isso sim, sem dúvidas.
— Nós vamos, então, com certeza, encontrar novas saídas nas mar-
gens opostas.
— E que comprimento você acha que este oceano tem?
— Entre cento e vinte e cento e quarenta quilômetros.
— Ah!... — eu disse, imaginando que essa estimativa pudesse ser
imprecisa, mas preferi não discutir.
— Assim, não temos tempo a perder e a partir de amanhã iremos
para o mar.
Involuntariamente, procurei o navio que nos transportaria.
— Entendo. — disse — Vamos embarcar, então! E em qual navio
temos passagens?
— Não será em um navio, meu garoto, mas em uma boa e robusta
jangada.
— Uma jangada? — me assustei — Uma jangada é tão impossível
de construir quanto um navio, e eu não consigo ver …
— Você não vê, Axel, mas se você prestar atenção, poderá ouvir!
— Ouvir?

Viagem ao Centro da Terra 243


— Sim, algumas marteladas que diriam que Hans já está trabalhan-
do.
— Ele está construindo uma jangada?
— Certamente!
— Como? Ele já derrubou árvores com seu machado?
— Oh! As árvores já estavam todas derrubadas. Venha e você verá.
Depois de quinze minutos de caminhada, do outro lado do pro-
montório que formava o pequeno porto natural, vi Hans trabalhando.
Mais alguns passos e eu estava perto dele. Para minha surpresa, uma
jangada semiacabada se estendia pela areia, era feita de vigas de uma
determinada madeira e um grande número de pranchas, curvas, pares,
de todos os tipos, literalmente cobriam o solo. Havia o suficiente para
construir uma marinha inteira lá.
— Tio — questionei — o que é essa madeira?
— São pinheiros, abetos, bétulas, todas as espécies de coníferas se-
tentrionais, mineralizadas pela ação da água do mar, é possível?
— Isso é chamado de surtarbrandur ou madeira fóssil.
— Mas então, como os linhitos, ele deve ter a dureza de uma pedra
e não pode flutuar?
— Às vezes isso acontece, algumas dessas madeiras se tornaram
verdadeiros antracitos. Mas outras, como essas, ainda sofreram apenas
o início da transformação fóssil. Basta olhar. — acrescentou meu tio,
jogando uma daquelas preciosas amostras no mar.
O pedaço de madeira, após ter desaparecido, voltou à superfície das
ondas e oscilou conforme suas ondulações.
— Você está convencido? — disse meu tio.
— Convencido, acima de tudo, de que isso é inacreditável!
Na noite seguinte, graças à habilidade do guia, a jangada foi ter-
minada. Tinha três metros de comprimento por um metro e meio de
largura. As vigas de surtarbrandur, amarradas por cordas fortes, forne-
ciam uma superfície sólida e, uma vez impulsionada, esta embarcação
improvisada flutuou silenciosamente nas águas do Mar de Lidenbrock.

Viagem ao Centro da Terra 244


Capítulo 32
PORTO GRAÜBEN
32. PORTO GRAÜBEN

No dia 13 de Agosto, acordamos bem cedo. Tratava-se de inaugurar


um novo tipo de locomoção rápida e pouco cansativa.
Um mastro feito de duas varas gêmeas, uma jarda formada por
uma terceira, uma vela emprestada de nossas cobertas, compunham o
cordame da jangada. As cordas não faltaram. Tudo estava sólido.
Às seis horas o professor deu o sinal para embarcar. Alimentos,
bagagens, instrumentos, armas e uma quantidade significativa de água
doce coletada nas rochas estavam no local.
Hans instalou um leme que lhe permitiu dirigir seu aparato flutu-
ante. Ele assumiu a posição. Desamarrei o cabo de amarração que nos
prendia de volta à costa. A vela estava orientada e transbordamos rapi-
damente.
Ao sair do pequeno porto, o meu tio, apaixonado pela sua nomen-
clatura geográfica, quis dar-lhe um nome, o meu, entre tantos outros.
— Bem — eu disse — tenho outro para você.
— E qual é?
— O nome de Graüben. Porto Graüben vai se encaixar muito bem
no mapa.
— Então Porto Graüben será.
E foi assim que a memória de minha querida virlandesa ficou mar-
cada em nossa aventura.
A brisa soprava do nordeste. Estávamos indo contra o vento muito
rapidamente. As camadas muito densas da atmosfera tinham um impul-
so considerável e agiam sobre a vela como um poderoso leque.
Ao fim de uma hora, meu tio conseguiu estimar nossa velocidade
com bastante precisão.
— Se continuarmos a andar assim — disse ele — faremos pelo me-
nos trinta léguas em vinte e quatro horas e logo reconheceremos as mar-
gens opostas.
Não respondi e fui sentar-me à frente da jangada. A costa norte já
estava baixando no horizonte. Os dois braços da praia se abriram como
que para facilitar nossa partida.

Viagem ao Centro da Terra 247


Diante de meus olhos estendia-se um mar imenso. Grandes nuvens
se moviam rapidamente sobre sua superfície, sua sombra acinzentada,
que parecia pesar sobre a água sombria. Os raios prateados do cano elé-
trico, refletidos aqui e ali por alguma gota, faziam eclodir pontas lumi-
nosas nos redemoinhos do barco. Logo, toda a terra foi perdida de vista,
todos os marcos desapareceram e, sem o rastro de espuma da jangada,
eu poderia ter acreditado que ela permaneceu em perfeita quietude.
Por volta do meio-dia, imensas algas surgiram ondulando na su-
perfície das ondas. Eu conhecia o poder vegetativo dessas plantas, que
rastejam a uma profundidade de mais de doze mil pés no fundo do mar,
se reproduzem sob pressões de quatrocentas atmosferas e frequente-
mente formam bancos grandes o suficiente para impedir o avanço dos
navios, mas nunca, creio eu, as algas foram mais gigantescas do que as
do Mar de Lidenbrock.
Nossa jangada contornava árvores de destroços de noventa e qua-
tro mil metros de comprimento, cobras enormes que cresciam fora de
vista. Divertia-me acompanhando com o olhar suas fitas infinitas, sem-
pre acreditando que havia chegado ao fim delas, e por horas inteiras
minha paciência se esvaiu, senão meu espanto.
Que força natural essas plantas poderiam produzir, e qual deve ter
sido a aparência da Terra nos primeiros séculos de sua formação, quan-
do, sob a ação do calor e da umidade, o reino vegetal se desenvolveu
sozinho em sua superfície?!
A noite chegou e, como eu havia notado na véspera, o estado lu-
minoso do ar não diminuiu. Era um fenômeno constante com o qual se
podia contar.
Depois do jantar, deitei-me ao pé do mastro e não demorou muito
para adormecer em meio a devaneios indolentes.
Hans, imóvel no leme, deixou correr a jangada que, aliás, empurrou
a favor do vento, nem mesmo pediu para ser manobrada.
Desde nossa partida de Porto Graüben, o Professor Lidenbrock me
instruiu a manter o “diário de bordo”, para anotar as menores observa-
ções, para registrar os fenômenos interessantes, a direção do vento, a
velocidade adquirida, a distância percorrida, em uma palavra, todos os
incidentes desta estranha navegação.

Viagem ao Centro da Terra 248


Gostaria, portanto, de reproduzir aqui essas notas diárias, escritas,
por assim dizer, sob o ditado dos acontecimentos, para dar um relato
mais preciso da nossa travessia.

Sexta-feira, 14 de Agosto. - Brisa constante de noroeste, a jangada


anda rapidamente e em linha reta. A costa permanece trinta léguas a fa-
vor do vento. Nada no horizonte. A intensidade da luz não varia. Tempo
bom, ou seja, as nuvens são muito altas, pouco espessas e banhadas por
uma atmosfera branca, como prata em fusão.
Termômetro: + 32°C.
Ao meio-dia, Hans preparou um anzol na ponta de uma corda. Co-
locou um pequeno pedaço de carne como isca e o atirou ao mar. Por
duas horas, ele não teve resultado. Essas águas são desabitadas? Não, a
linha tremeu. Hans puxou o anzol de volta e trouxe de volta um peixe
que lutava vigorosamente.
— Um peixe! — gritou meu tio.
— É um esturjão! — exclamei — Um pequeno esturjão!
O professor olhou o animal com atenção e não compartilhou da
minha opinião. O peixe tinha a cabeça achatada e arredondada e a parte
anterior do corpo coberta por placas ósseas, sua boca sem dentes e bar-
batanas peitorais bastante desenvolvidas encaixadas em seu corpo sem
cauda. Esse animal realmente pertence a uma ordem na qual os natu-
ralistas classificaram o esturjão, mas diferem dela em aspectos bastante
essenciais.
Meu tio não se enganou, pois, após um breve exame, ele disse:
— Este peixe pertence a uma família extinta há séculos e da qual
apenas vestígios fósseis podem ser encontrados em solo devoniano.
— Como? — indaguei — Quero dizer, como podemos ter pego
vivo um desses habitantes dos mares primitivos?
— Mas pegamos — responde o professor continuando suas obser-
vações — e você vê que esses peixes fósseis não têm identidade com a
espécie atual. No entanto, segurar um desses seres vivos é uma verdadei-
ra felicidade para um naturalista.
— Mas a qual família ele pertence?
— À ordem dos ganoides, família dos cefalaspídeos, gênero…
— Gênero…?

Viagem ao Centro da Terra 249


— Dos Pterychtis, eu juro! Mas este oferece uma peculiaridade que,
dizem, é encontrada nos peixes subterrâneos.
— Qual?
— Ele é cego!
— Cego?
— Não apenas cego, mas não possui o órgão da visão.
Observei e nada era mais verdadeiro. Mas poderia ser um caso es-
pecial. Assim, a linha foi iscada e atirada de volta ao mar. Este oceano,
sem dúvida, está muito cheio de peixes, pois, em duas horas, capturamos
uma grande quantidade de Pterychtis, bem como peixes pertencentes a
uma outra família também extinta, os dipterides, mas cujo gênero meu
tio não conseguiu reconhecer. Todos desprovidos do órgão da visão.
Esta pesca inesperada renovou com sobras as nossas provisões.
Portanto, parece constante, esse mar contém apenas espécies fós-
seis, nas quais peixes e répteis são tanto mais perfeitos quanto mais an-
tiga sua criação.
Talvez encontremos alguns desses sáurios que a ciência foi capaz de
refazer com um pedaço de osso ou cartilagem?
Pego o telescópio e examino o mar. Está deserto. Sem dúvida, ainda
estamos muito perto da costa.
Eu olho para o ar. Por que alguns desses pássaros reconstruídos
pelo imortal Cuvier não deveriam bater com suas asas nessas pesadas
camadas atmosféricas? O peixe forneceria comida suficiente. Observo o
espaço, mas o ar é desabitado como as margens.
No entanto, minha imaginação me leva às hipóteses maravilhosas
da paleontologia. Eu sonho bem acordado. Acho que vejo na superfície
da água esses enormes Chersites, essas tartarugas antediluvianas, como
ilhotas flutuantes. Nas praias escurecidas passam os grandes mamíferos
dos primeiros dias, o Leptotherium, encontrado nas cavernas do Brasil,
o Mericotherium, oriundo das regiões geladas da Sibéria. Mais adian-
te, o paquiderme Lophiodon, esta gigantesca anta, se esconde atrás das
pedras, pronto para competir por sua presa com o Anoplotherium, um
animal estranho, sustentado pelo rinoceronte, o cavalo, o hipopótamo
e o camelo, como se o Criador, com bastante pressa nas primeiras ho-
ras do mundo, tivesse unido vários animais em um só. O mastodonte
gigante gira seu tronco e esmaga as rochas da costa sob suas defesas, en-

Viagem ao Centro da Terra 250


quanto o Megatério, apoiado em suas enormes pernas, vasculha a terra,
despertando com seus rugidos o eco de granitos sonoros. Mais acima,
o Protopithecus, o primeiro macaco a aparecer na superfície do globo,
escala os picos de arfu. Mais alto ainda, o Pterodáctilo, com sua mão
alada, desliza como um grande morcego no ar comprimido. Finalmente,
nas últimas camadas, pássaros imensos, mais poderosos que o casuar,
maiores que o avestruz, abrem suas vastas asas e se chocam contra a
parede da abóbada de granito.
Todo esse mundo fóssil renasce em minha imaginação. Refiro-me
aos tempos bíblicos da criação, muito antes do nascimento do homem,
quando a Terra incompleta ainda não podia ser suficiente para ele. Meu
sonho então precede o aparecimento de seres vivos. Desaparecem os
mamíferos, depois os pássaros, depois os répteis do período secundário,
e por último os peixes, os crustáceos, os moluscos, os articulados. Os

Viagem ao Centro da Terra 251


zoófitos do período de transição retornam ao nada, por sua vez. Toda a
vida da Terra se resume em mim, e meu coração é o único que bate neste
mundo despovoado. Não há mais estações, não há mais climas, o calor
da própria Terra aumenta constantemente e neutraliza o da estrela ra-
diante. A vegetação é exagerada. Passo como uma sombra no meio dos
fetos arbóreos, pisando com meu passo incerto as margas iridescentes
e os arenitos variegados do solo. Encosto-me ao tronco das imensas co-
níferas. Eu me deito à sombra de esfenofilas, asterófilas e licópodes com
trinta metros de altura.

Viagem ao Centro da Terra 252


Séculos passam como dias! Volto a série de transformações terrestres.
As plantas estão desaparecendo, as rochas de granito perdem sua dureza,
o estado líquido substituirá o estado sólido sob a ação de um calor mais
intenso, as águas correm sobre a superfície do globo. Eles fervem, eles de-
saparecem, os vapores envolvem a Terra, que aos poucos forma apenas
uma massa gasosa, levada a um vermelho branco, grande como o Sol e
brilhante como ele!
No centro desta nebulosa, quatrocentas mil vezes maior do que este
globo que vai se formar um dia, sou atraído para os espaços planetários!
Meu corpo é sutil, por sua vez se sublima e se mistura como um átomo im-
ponderável com esses imensos vapores que traçam sua órbita flamejante
no infinito!
Que sonho! Para onde ele está me levando? Minha mão febril joga os
detalhes estranhos no papel! Esqueci tudo, o professor, o guia e a jangada!
Uma alucinação tomou conta da minha mente…
— O que você tem? — disse meu tio.
Meus olhos, bem abertos, fixam-se nele sem vê-lo.
— Cuidado, Axel, você vai cair no mar!
Ao mesmo tempo, me sinto sendo agarrado vigorosamente pela mão
de Hans. Sem ele, sob a influência do meu sonho, corri para as ondas.
— Está ficando louco? — exclamou o professor.
— O quê? — eu disse finalmente, voltando a mim mesmo.
— Você está doente?
— Não, tive um momento de alucinação, mas passou. A propósito,
está tudo bem?
— Sim! Boa brisa, lindo mar! Estamos navegando rapidamente e, se
minha estima não me enganou, não demoraremos muito a acostar
Com essas palavras, eu me levantei e consultei o horizonte, mas a
linha da água ainda se fundia com a linha das nuvens.

Viagem ao Centro da Terra 253


Capítulo 33
MONSTROS JURÁSSICOS
33. MONSTROS JURÁSSICOS

Sábado, 15 de Agosto. - O mar mantém sua uniformidade monó-


tona. Nenhuma terra está à vista. O horizonte parece excessivamente
remoto. Minha cabeça ainda está pesada pela violência do meu sonho.
Meu tio não sonhou, mas está de mau humor. Ele viaja todos os
pontos do espaço com seu telescópio e cruza os braços com ar irritado.
Percebo que o Professor Lidenbrock tende a se tornar novamente o
homem impaciente do passado e registro o fato em meu diário. Foram
necessários os perigos e sofrimentos para extrair dele alguma centelha
de humanidade, mas, desde minha recuperação, a natureza assumiu o
controle. E ainda, por que se deixar levar? A jornada não é realizada
nas circunstâncias mais favoráveis? A jangada não está indo com uma
velocidade maravilhosa?
— Você parece preocupado, tio. — eu disse, vendo-o muitas vezes
trazer os óculos aos olhos.
— Preocupado? Não.
— Impaciente, então?
— Tenho motivos pra isso!
— Mas estamos avançando a boa velocidade …
— O que isso importa para mim? Não é a velocidade que está mui-
to baixa, é o mar que é muito grande!
Lembro-me então que o professor, antes de nossa partida, estimou
em cerca de trinta léguas o comprimento desse oceano subterrâneo. No
entanto, já percorremos um caminho três vezes mais longo e as margens
sul ainda não aparecem.
— Não vamos cair! — retoma o professor — Tudo isso é uma perda
de tempo e, enfim, não vim tão longe para fazer um passeio de barco em
um lago!
Ele chama essa travessia de parte de um barco e esse mar de lagoa!
— Mas, eu disse, já que seguimos o caminho indicado por Saknus-
semm...
— Essa é a questão. Seguimos esta estrada? Saknussemm encon-

Viagem ao Centro da Terra 256


trou este corpo de água? Ele não o extraviou completamente?
— Em qualquer caso, não podemos nos arrepender de ter vindo
tão longe. Este show é magnífico, e...
— Não se trata de ver. Eu me propus uma meta e quero alcançá-la!
Portanto, não me fale sobre admiração!
Eu considero isso certo e deixo o professor morder os lábios com
impaciência. Às seis da tarde, Hans reclama seu pagamento, e seus três
rixdales são contados para ele.

Domingo, 16 de Agosto. - Nada de novo. Mesmo tempo. O vento


tem uma ligeira tendência para esfriar. Ao acordar, meu primeiro cui-
dado é perceber a intensidade da luz. Sempre temo que o fenômeno
elétrico venha a escurecer e depois se extinguir. Não é assim. A sombra
da jangada é claramente desenhada na superfície das ondas.
Verdadeiramente este mar não tem fim! Deve ter a largura do Me-
diterrâneo, ou mesmo do Atlântico. Por que não?
Meu tio tenta várias vezes. Ele amarra uma das picaretas mais pe-
sadas na ponta de uma corda que deixa em linhas de duzentas braças.
Sem fundo. Temos grande dificuldade em trazer nossa sonda de volta.
Quando o pica-pau está de volta a bordo, Hans aponta para mim
marcas fortemente marcadas em sua superfície. Parece que este pedaço
de ferro foi preso vigorosamente entre dois corpos rígidos.
Eu olho para o caçador.
— Tänder! — ele disse.
Eu não entendi, e virei para meu tio, que estava completamente
pasmo com seus pensamentos. Decidi não importuná-lo, e voltei para
o islandês. Este último, abrindo e fechando a boca várias vezes, me faz
entender seus pensamentos.
— Dentes! — eu disse pasmo, observando a barra de ferro mais de
perto.
Não havia dúvidas, eram, de fato, dentes cuja impressão estava in-
crustada no metal! As mandíbulas que enfeitam devem ter uma força
prodigiosa! É um monstro de espécies perdidas que se move sob as pro-
fundezas da água, mais resistente que o tubarão, mais formidável que a
baleia? Não consigo tirar os olhos desta barra meio comida! Meu sonho
da noite passada se tornará realidade?

Viagem ao Centro da Terra 257


Esses pensamentos me agitam o dia todo, e minha imaginação mal
se acalma em um sono de algumas horas.

Segunda-feira, 17 de Agosto. - Tento me lembrar dos instintos pe-


culiares a esses animais antediluvianos da era secundária, que, suceden-
do moluscos, crustáceos e peixes, precederam o aparecimento dos ma-
míferos no globo. O mundo então pertencia aos répteis. Esses monstros
reinaram supremos nos mares jurássicos1. A natureza concedeu-lhes a
organização mais completa. Que estrutura gigantesca! Que força pro-
digiosa! Os atuais sáurios, crocodilos ou aligatores, os maiores e mais
formidáveis, nada mais são do que reduções enfraquecidas de seus pais
das primeiras idades!

Viagem ao Centro da Terra 258


Estremeço com a menção que faço a esses monstros. Nenhum olho
humano os viu vivos. Eles surgiram na Terra mil séculos antes do ho-
mem, mas seus ossos fósseis, encontrados neste calcário argiloso que os
ingleses chamam de lias, permitiram reconstruí-los anatomicamente e
conhecer sua conformação colossal.
Eu vi no Museu de Hamburgo o esqueleto de um desses sáurios que
media dez metros de comprimento. Estarei então destinado, eu, um ha-
bitante da Terra, a me encontrar cara a cara com esses representantes de
uma família antediluviana? Não! É impossível. No entanto, a marca dos
dentes poderosos está gravada na barra de ferro e, pela sua impressão,
reconheço que são cónicos como os do crocodilo.
Meus olhos fixam-se de pavor no mar. Tenho medo de ver um des-
ses habitantes das cavernas subaquáticas voar alto.
Acho que o Professor Lidenbrock compartilha minhas ideias, senão
meus temores, pois, depois de examinar o pico, ele contempla o oceano.
“Para o inferno com essa ideia de fazer sondagens! Ele perturbou
algum animal em seu retiro, e teremos sorte se não formos atacados no
caminho!”, pensei comigo mesmo.
Dei uma olhada nas armas e verifiquei se elas estavam em boas
condições. Meu tio me viu fazendo isso e aprovou o gesto.
Já grandes agitações produzidas na superfície das ondas indicavam
a perturbação das camadas remotas. O perigo se aproximava. Devemos
estar vigilantes.

Terça-feira, 18 de Agosto. - A noite está chegando, ou melhor, o


momento em que o sono pesa sobre nossas pálpebras, pois falta a noite
neste oceano, e a luz implacável cansa obstinadamente nossos olhos,
como se estivéssemos navegando sob o Sol dos mares árticos. Hans está
no comando. Durante seu turno, adormeço.
Duas horas depois, um choque terrível me acorda. A jangada foi
erguida das ondas com uma força indescritível e jogada a dez metros de
distância.
— O que é? — gritou meu tio — Nós batemos em algo?
Hans aponta para uma massa enegrecida a uma distância de qua-
trocentos metros que sobe e desce sucessivamente. Eu olho e grito:
— É um marsuíno colossal!

Viagem ao Centro da Terra 259


— Sim — meu tio respondeu — e agora há um lagarto do mar de
um tamanho incomum.
— E mais adiante, um crocodilo monstruoso! Veja seu queixo gran-
de e as fileiras de dentes com que ela está armada. Ah! Ele desapareceu!
— Uma baleia! Uma baleia! — exclamou o professor — Veja suas
barbatanas enormes! Veja o ar e a água que ela expele pelas aberturas!
Na verdade, duas colunas de líquido elevam-se a uma altura con-
siderável acima do mar. Nós ficamos surpresos, maravilhados, aterro-
rizados, na presença desta manada de monstros marinhos. Eles têm
dimensões sobrenaturais, e o menor deles quebraria a balsa com uma
simples mordida. Hans quer elevar a barra contra o vento, a fim de esca-
par dessa vizinhança perigosa, mas ele vê do outro lado outros inimigos
não menos formidáveis: uma tartaruga de doze metros de largura e uma
cobra de trinta de comprimento, que lança sua enorme cabeça acima
das ondas.
Impossível escapar. Esses répteis estão se aproximando. Eles cir-
cundam a jangada com uma rapidez que os comboios lançados em alta
velocidade não podem igualar, eles traçam círculos concêntricos ao seu
redor. Peguei meu rifle. Mas que efeito uma bala pode produzir nas es-
camas que cobrem os corpos desses animais?
Estamos mudos de medo. Aqui estão eles se aproximando! De um
lado o crocodilo, do outro a cobra. O resto do rebanho marinho se foi.
Eu vou atirar. Hans me interrompe com um sinal. Os dois monstros
passam a cinquenta braças da jangada, avançam um sobre o outro e sua
fúria os impede de nos ver.
A luta começa a cem braças da jangada. Podemos ver claramente os
dois monstros lutando.
Mas me parece que agora estão vindo os outros animais para par-
ticipar da luta, o marsuíno, a baleia, o lagarto, a tartaruga. A cada mo-
mento eu pego um vislumbre deles e os aponto ao islandês. Este balança
a cabeça negativamente.
— Tva. — ele disse.
— O quê? Dois?? Está dizendo que são apenas dois animais…
— Ele tem razão — concordou meu meu tio, cuja luneta não saiu
dos olhos.
— Mas como?!

Viagem ao Centro da Terra 260


— Sim! O primeiro desses monstros tem focinho de marsuíno, ca-
beça de lagarto, dentes de crocodilo, e foi isso que nos enganou. É o mais
formidável dos répteis antediluvianos, o ictiossauro!
— E o outro?
— O outro é uma cobra escondida na carapaça de uma tartaruga, o
terrível inimigo da primeira, o plesiossauro!
Hans estava certo. Apenas dois monstros perturbam assim a su-
perfície do mar, e tenho diante de meus olhos dois répteis dos oceanos
primitivos. Vejo o olho sangrento do ictiossauro, do tamanho da cabeça
de um homem. A natureza o dotou de um dispositivo óptico extrema-
mente poderoso, capaz de suportar a pressão das camadas de água nas
profundezas que ele habita. Foi apropriadamente chamado de baleia dos
sáurios, porque tem sua velocidade e tamanho. Este não tem menos de
trinta metros, e posso avaliar seu tamanho quando ergue as barbatanas
verticais de sua cauda acima das ondas. Sua mandíbula é enorme e, de
acordo com os naturalistas, não tem menos que cento e oitenta e dois
dentes.
O plesiossauro, cobra de tronco cilíndrico e cauda curta, tem as pa-
tas dispostas em forma de remo. Seu corpo é inteiramente coberto por
uma concha e seu pescoço, flexível como o do cisne, se eleva dez metros
acima das ondas.
Esses animais se atacam com uma fúria indescritível. Eles erguem
montanhas líquidas que fluem de volta para a jangada. Vinte vezes es-
tamos prestes a virar. Ouvem-se assobios de intensidade prodigiosa. Os
dois animais estão entrelaçados. Não consigo distingui-los um do outro.
Devemos esperar, e temer a fúria do vencedor.
Uma hora, duas horas se passam. A luta continua com a mesma
ferocidade. Os lutadores se aproximam da jangada e se afastam dela por
sua vez. Ficamos parados, prontos para atirar.
De repente, o ictiossauro e o plesiossauro desaparecem, cavando
um verdadeiro redemoinho nas ondas. Vários minutos se passam. A
luta vai acabar nas profundezas do mar?
De repente, uma enorme cabeça apareceu, a cabeça do plesiossau-
ro. O monstro está ferido de morte. Não vejo mais sua imensa concha.
Apenas seu pescoço comprido sobe, desce, sobe, se curva, açoita as on-

Viagem ao Centro da Terra 261


das como um chicote gigantesco e se torce como um verme cortado.
A água jorra a uma distância considerável. Ela nos cega. Mas logo a
agonia do réptil chega ao fim, seus movimentos diminuem, suas con-
torções diminuem, e esta longa seção de serpente se estende como uma
massa inerte sobre as ondas calmas.
Quanto ao ictiossauro, ele retornou à sua caverna subaquática ou
reaparecerá na superfície do mar?

1- Nota do autor: Mares do período secundário que formaram as terras que compõem a serra
do Jura.

Viagem ao Centro da Terra 262


Capítulo 34
GEYSER
34. GEYSER

Quarta-feira, 19 de Agosto. - Felizmente o vento, que sopra com


força, nos permitiu fugir rapidamente do teatro da luta. Hans ainda está
no comando. Meu tio, atraído de suas ideias absorventes pelos inciden-
tes desse combate, cai de volta em sua contemplação impaciente do mar.
A viagem retoma a sua uniformidade monótona, que não quero
romper às custas dos perigos de ontem.

Quinta-feira, 20 de Agosto. - Brisa norte-nordeste e bastante desi-


gual. Temperatura quente. Caminhamos a uma velocidade de quatorze
quilômetros por hora.
Por volta do meio-dia, ouve-se um ruído muito distante. Registro o
fato aqui sem poder dar uma explicação. É um berro contínuo.
— Ao longe — diz o professor — há alguma pedra, ou alguma ilho-
ta onde o mar quebra.
Hans subiu até o topo do mastro, mas não nos alertou nem sequer
de um recife. O oceano está unido à linha do horizonte.
Três horas se passam. Os rugidos parecem vir de uma cachoeira
distante.
Eu sugiro isso para meu tio, que balança a cabeça. No entanto, estou
convencido de que não estou enganado. Estamos correndo para alguma
catarata que nos jogará no abismo? É possível que essa forma de descer
agrade ao professor, porque é mais próxima da vertical, mas a mim...
Em todo caso, deve haver um fenômeno barulhento algumas léguas
acima do vento, pois agora os berros estão sendo ouvidos com franca
violência. Eles vêm do céu ou do oceano?
Eu olho para os vapores suspensos na atmosfera e tento sondar sua
profundidade. O céu está calmo. As nuvens, transportadas para o topo
da abóbada, parecem imóveis e perdem-se na intensa irradiação da luz.
Devemos, portanto, procurar em outro lugar a causa desse fenômeno.
Eu vasculhei o horizonte, puro e livre de qualquer névoa. Sua apa-
rência não mudou. Mas se esse barulho vem de uma queda, de uma ca-

Viagem ao Centro da Terra 265


tarata, se todo esse oceano se precipita para uma bacia inferior, se esses
rugidos são produzidos por uma massa de água caindo, a corrente deve
ser ativada, e seu aumento de velocidade pode me dar a medida do pe-
rigo com o qual somos ameaçados. Eu consulto a corrente: é nula. Uma
garrafa vazia que joguei no mar ficou a favor do vento.
Por volta das quatro horas, Hans se levanta, se agarra ao mastro e
sobe até sua ponta. A partir daí, seu olhar percorre o arco de um círculo
que o oceano descreve em frente à jangada e para em um ponto. Seu
rosto não expressa surpresa, mas seus olhos estão fixos.
— Ele viu alguma coisa — disse meu tio.
— Creio que sim.
Hans volta para baixo, então ele estende o braço para o sul, dizendo:
— Der nere!
— Lá? — confirmou meu tio.
E agarrando seu telescópio, observou atentamente por um minuto,
que pareceu um século para mim.
— Sim, estou vendo! — disse ele
— O que você vê?
— Um jato imenso que se eleva acima das ondas.
— É algum animal marinho?
— Poderia ser.
— Então, vamos mais para o oeste, porque sabemos sobre o perigo
de encontrar esses monstros antediluvianos!
— Deixe disso, vamos prosseguir — responde meu tio.
Eu me viro para Hans, que mantém o rumo com rigor inflexível.
Porém, se à distância que nos separa deste animal, que deve ser es-
timada em quarenta e oito quilômetros, podemos ver a coluna de água
expelida por suas aberturas, ele deve ser de tamanho sobrenatural. Fu-
gir seria conformar-se às leis da mais óbvia prudência. Mas não viemos
aqui para ter cuidado.
Então, vamos em frente. Quanto mais perto chegamos, mais o spray
cresce. Qual monstro pode se encher com tamanha quantidade de água
e, assim, expulsá-la sem interrupção?
Às oito horas da noite, estamos a menos de oito quilômetros dele.
Seu corpo enegrecido, enorme e montanhoso se estende sobre o mar
como uma ilha. É ilusão, é pavor? Seu comprimento parece ultrapassar

Viagem ao Centro da Terra 266


dois mil metros! Que cetáceo é esse que nem Cuviers nem Blumembach
previram?
Ele está imóvel e adormecido, o mar parece incapaz de levantá-lo,
e são as ondas que ondulam em seus lados. A coluna de água, projetada
a uma altura de quinhentos pés, cai novamente em forma de chuva com
um barulho ensurdecedor. Corremos loucamente em direção a essa
massa tão poderosa que nem cem baleias alimentariam por um dia.
O terror se apoderou de mim. Eu não quero ir mais longe! Vou
cortar a adriça da vela, se necessário! Eu me revolto contra o professor,
que não me responde.
De repente, Hans se levanta e aponta para o ponto ameaçador:

Viagem ao Centro da Terra 267


— Holme! - ele disse.
— Uma ilha! — gritou meu tio.
— Uma ilha! — repeti, encolhendo os ombros.
— Obviamente! — o professor respondeu com uma grande explo-
são de risos.
— Mas essa coluna de água?
— Geyser — explicou Hans.
— Sim, sem dúvida, um gêiser! — retrucou meu tio — Um gêiser
como os da Islândia1!
Em primeiro lugar, não quero estar tão enganado, ter cometido um
erro tão grotesco. Ter tomado uma ilha por um monstro marinho! Mas
a evidência é clara e devemos finalmente admitir meu erro. Este é ape-
nas um fenômeno natural.
À medida que nos aproximamos, as dimensões do spray líquido
tornam-se grandiosas. A ilhota representa, para se enganar, um imenso
cetáceo cuja cabeça domina as ondas a uma altura de vinte metros. O
gêiser, palavra que os islandeses pronunciam como “Geysir” e que sig-
nifica “fúria”, ergue-se majestosamente em sua extremidade. De vez em
quando irrompem detonações abafadas, e o enorme jato, tomado de rai-
va mais violenta, sacode sua nuvem de vapores, saltando para a primeira
camada de nuvens. Ele está sozinho. Nem fumarolas nem fontes termais
a cercam, e toda a força vulcânica se resume nela. Os raios da tela elétri-
ca vêm se misturar com esse spray deslumbrante, cada gota tingida com
todas as cores do prisma.
— Vamos atracar — disse o professor.
Mas devemos evitar com cuidado esse aguaceiro que afundaria a
jangada em um instante. Hans, manobrando habilmente, nos leva ao
fim da ilhota.
Eu pulo na pedra. Meu tio me segue agilmente, enquanto o caçador
permanece em seu posto, como um homem acima desses espasmos.
Caminhamos sobre um granito misturado com tufo silicioso, o
solo estremece sob nossos pés como as laterais de uma caldeira em que
o vapor superaquecido se contorce. Está quente. Chegamos à vista de
uma pequena bacia central da qual surge o gêiser. Eu mergulho na água
corrente borbulhante com um termômetro de derramamento, e marca
um calor de 163°.

Viagem ao Centro da Terra 268


Portanto, essa água sai de uma lareira de fogo. Isso contradiz sin-
gularmente as teorias do Professor Lidenbrock. Eu não posso deixar de
apontar isso.
— Bem — ele respondeu — o que isso prova contra minha doutri-
na?
— Nada — concluo secamente, visto que continuo esbarrando em
sua teimosia absoluta.
Não obstante, sou forçado a admitir que até agora somos valori-
zados de maneira singular e que, por alguma razão que me escapa, esta
viagem se realiza em condições particulares de temperatura, mas me
parece óbvio, certo, que um dia ou outro chegaremos àquelas regiões
onde o calor central atinge os limites máximos e ultrapassa todas as gra-
duações dos termômetros.
Vamos ver. É a palavra do professor, que, depois de ter batizado esta
ilha vulcânica com o nome de seu sobrinho, dá o sinal do embarque.
Eu fico por mais alguns minutos para contemplar o gêiser. Percebo
que seu jato é irregular em seus acessos, que às vezes diminui de inten-
sidade, depois recomeça com novo vigor, que atribuo às variações de
pressão dos vapores acumulados em seu tanque.
Finalmente partimos, contornando as rochas muito íngremes ao
sul. Hans aproveitou essa parada para consertar a jangada.
Mas antes de transbordar, faço algumas observações para calcular
a distância percorrida e as anoto em meu diário. Atravessamos mil e
oitenta quilômetros de mar desde Porto Graüben e estamos a dois mil
quatrocentos e oitenta quilômetros da Islândia, sob a Inglaterra.

1- Nota do autor: Fonte muito célebre que jorrava ao sopé do Hecla.

Viagem ao Centro da Terra 269


Capítulo 35
A TEMPESTADE
35. A TEMPESTADE

Sexta-feira, 21 de Agosto. - No dia seguinte, o magnífico gêiser de-


sapareceu. O vento ficou mais forte e rapidamente nos puxou para longe
da ilhota Axel. Aos poucos, o rugido foi diminuindo.
O tempo, se for permitido se expressar dessa maneira, mudará em
breve. A atmosfera fica carregada de vapores que carregam consigo a
eletricidade formada pela evaporação da água salina. As nuvens dimi-
nuem visivelmente e adquirem uma tonalidade verde-oliva uniforme.
Os raios elétricos mal conseguem perfurar esta cortina opaca baixada
sobre o teatro onde se desenrola o drama das tormentas.
Estou particularmente impressionado, pois todas as criaturas da
Terra estão se aproximando de um cataclismo. As “cumulus1” amonto-
adas no sul apresentam um aspecto sinistro, elas têm aquela aparência
“implacável” que muitas vezes observei no início das tempestades. O ar
está pesado, o mar está calmo.
À distância, as nuvens parecem grandes fardos de algodão empi-
lhados em uma desordem pitoresca, pouco a pouco incham e perdem
em número o que ganham em tamanho. Sua gravidade é tal que eles não
podem se destacar do horizonte, mas, soprando altas correntes, eles gra-
dualmente derretem, escurecem e logo apresentam uma única camada
de aspecto formidável. Às vezes uma bola de vapores, ainda acesa, rico-
cheteia neste tapete acinzentado e logo se perde na massa opaca.
Obviamente, a atmosfera está saturada de fluido. Estou completa-
mente imbuído disso, meu cabelo está em pé como na ponta de uma
máquina elétrica. Parece-me que se meus companheiros me tocassem
neste momento, receberiam uma violenta concussão.
Às dez horas da manhã, os sintomas da tempestade são mais decisi-
vos, parece que o vento está facilitando para recuperar o fôlego, a nuvem
se assemelha a uma pele imensa na qual os furacões se acumulam.
Não quero acreditar nas ameaças do céu, mas não posso deixar de
dizer:

Viagem ao Centro da Terra 272


— Está armando um mau tempo.
O professor não responde. Ele está com um humor massacrante,
vendo o oceano se estendendo infinitamente diante de seus olhos. Ele
encolhe os ombros com minhas palavras.
— Teremos uma tempestade — disse estendendo minha mão em
direção ao horizonte. — Essas nuvens descem sobre o mar como se fos-
sem esmagá-lo!
Silêncio geral. O vento está silencioso. A natureza parece uma mu-
lher morta e não respira mais. No mastro, onde já vejo um ligeiro al-
vorecer de fogo de santelmo, a vela relaxada cai em pesadas dobras. A
jangada está imóvel no meio de um mar espesso, sem ondulações. Mas,
se não estamos mais caminhando, de que adianta preservar essa tela,
que pode nos levar à perdição ao primeiro choque da tempestade?
— Vamos recolher a vela — sugeri — e baixar também o mastro! É
mais seguro!
— Mas que diabos?! Não! — gritou meu tio — Cem vezes não! Que
o vento nos apanhe! Que a tempestade nos leve embora! Mas que eu
possa finalmente ver as rochas de uma praia, quando nossa jangada se
espatifar em mil pedaços!
Mal terminava esta frase quando o horizonte sul mudou repenti-
namente de aparência. Os vapores acumulados se dissolveram em água,
e o ar, violentamente convocado para preencher os vazios produzidos
pela condensação, tornou-se um tufão vindo das extremidades da ca-
verna. A escuridão voltou e eu mal consegui fazer algumas anotações
incompletas.
A jangada é jogada pra cima e salta. Meu tio é jogado de cima. Eu
me arrasto para ele. Ele se agarrou com força a um pedaço de cabo e
parecia ver com prazer o espetáculo dos elementos desencadeados.
Hans não se moveu. Seus longos cabelos, agitados para trás pelo
furacão e puxados para o rosto impassível, lhe conferem uma fisionomia
estranha, pois suas madeixas eriçadas cintilam em pequenas fagulhas
luminosas. Seu semblante assustador é o mesmo de um homem antedi-
luviano, contemporâneo de ictiossauros e megatérios.
No entanto, o mastro resiste. A vela está esticada como uma bolha
prestes a estourar. A jangada gira com uma paixão que não posso esti-
mar, mas ainda menos rapidamente do que essas gotas de água desloca-
das sob ela, cuja rapidez cria linhas retas e claras.

Viagem ao Centro da Terra 273


Viagem ao Centro da Terra 274
— A vela! A vela! — grito, fazendo sinal para baixá-la.
— Não! — responde meu tio.
— Nej — concorda Hans, balançando suavemente a cabeça.
Porém, a chuva forma uma catarata ruidosa diante desse horizonte
para o qual corremos loucamente. Mas antes que chegue até nós, o véu
de nuvem é rasgado, o mar ferve e a eletricidade, produzida por uma
vasta ação química que ocorre nas camadas superiores, é acionada. Com
as rajadas de trovões se misturam os jatos cintilantes de relâmpagos.
A massa de vapores torna-se incandescente. As pedras de granizo que
atingem o metal de nossas ferramentas ou armas tornam-se luminosas.
As ondas elevadas parecem ser tantos mamilos retardadores de chamas
sob os quais um fogo interior se aninha, e cada crista deles é coberta por
uma chama.
Meus olhos estão deslumbrados com a intensidade da luz, meus
ouvidos quebrados pelo estrondo de um raio! Tenho de me agarrar ao
mastro, que se dobra como uma cana sob a violência do tufão!!!

……………………….
[Aqui minhas notas de viagem ficaram muito incompletas. Encon-
trei apenas algumas observações fugazes, feitas mecanicamente, por
assim dizer. Mas em sua brevidade, em sua própria obscuridade, elas
estão imbuídas da emoção que me dominou e, melhor do que minha
memória, elas transmitem o sentimento da situação.]
……………………….

Domingo, 23 de Agosto. - Onde estamos? Levados com rapidez in-


comensurável.
A noite foi terrível. A tempestade não acalma. Vivemos em um am-
biente de ruído, uma explosão sem fim. Nossos ouvidos estão sangran-
do. Não podemos trocar uma palavra.
O raio não para. Vejo ziguezagues retrógrados que, depois de um
jato rápido, sobem e descem, e atingem a abóbada de granito. Se ela
fosse entrar em colapso! Outros relâmpagos se bifurcam ou assumem
a forma de globos de fogo que explodem como bombas. O ruído geral
não parece aumentar, já ultrapassou o limite de intensidade que o ouvi-
do humano pode perceber e, mesmo que todos os barris de pólvora do
mundo explodissem juntos, não poderíamos ouvir mais.

Viagem ao Centro da Terra 275


Há uma emissão contínua de luz da superfície das nuvens, matéria
elétrica está constantemente emergindo de suas moléculas. Evidente-
mente, os princípios gasosos do ar são alterados, inúmeras colunas de
água elevam-se na atmosfera e caem, espumando.
Para onde estamos indo? Meu tio está deitado ao comprido na jan-
gada.
O calor redobra. Eu olho para o termômetro, indica... [O número
está apagado.]

Segunda-feira, 24 de Agosto. - Isso não vai acabar! Por que o estado


dessa densa atmosfera, uma vez modificado, não deveria ser definitivo?
Estamos destruídos pelo cansaço. Hans, como de costume. A jan-
gada invariavelmente corre para sudeste. Percorremos mais de oitocen-
tos quilômetros desde a ilhota Axel.
Ao meio-dia, a violência do furacão redobrou. Todos os itens que
compõem a carga devem ser agarrados com segurança. Cada um de nós
também está apegado. As ondas passam sobre nossas cabeças.
Incapaz de falar uma única palavra por três dias. Abrimos nossas
bocas, movemos nossos lábios, nenhum som apreciável é produzido.
Mesmo se falamos nos ouvidos um do outro, não podemos ouvir um
ao outro.
Meu tio se aproximou de mim. Ele disse algumas palavras. Acredi-
to que ele me disse “Estamos perdidos”. Não tenho certeza.
Decido escrever-lhe estas palavras: “Vamos levantar nosso véu”. Ele
sinaliza para mim que consente.
Sua cabeça não teve tempo de subir de baixo para cima quando um
disco de fogo aparece na borda da jangada. O mastro e a vela voaram
ao mesmo tempo, e os vi subir a uma altura prodigiosa semelhante ao
pterodáctilo, aquele pássaro fantástico dos primeiros séculos.
Estamos congelados de pavor. A bola meio branca, meio azul, do
tamanho de uma bomba de dez polegadas, move-se lentamente, giran-
do com velocidade surpreendente sob o efeito do furacão. Ela vem aqui,
ali, sobe em uma das armações da jangada, pula na sacola de compras,
desce um pouco, pula escovando a caixa de pó. Horror! Nós vamos pu-
lar! Não. O disco deslumbrante se afasta. Ele se aproxima de Hans, que
está olhando para ele. De meu tio, que se ajoelha para evitá-lo. De mim,

Viagem ao Centro da Terra 276


pálido e tremendo sob o brilho da luz e do calor. Ele gira perto do meu
pé, que tento puxar para trás. Eu não consigo fazer isso.
O cheiro de gás nitroso preenche a atmosfera, penetra na garganta,
nos pulmões. Estamos sufocando.
Por que não consigo tirar meu pé? Ele está, portanto, preso à janga-
da! Ah! A queda deste globo elétrico magnetizou todo o ferro da placa.
Instrumentos, ferramentas e armas se movem, colidindo com um clique
agudo. Os pregos do meu sapato grudam violentamente em uma placa
de ferro incrustada na madeira. Não consigo tirar o pé!
Finalmente, com um violento esforço, arranco-o no momento em
que a bola estava prestes a agarrá-lo em seu movimento giratório e me
arrastar para longe, se...
Ah! Que luz intensa! O globo está explodindo! Estamos cobertos
por jatos de chamas!
Então tudo sai. Tive tempo de ver meu tio estendido na jangada,
Hans ainda ao leme e “cuspindo fogo” sob a influência da eletricidade
que o penetrou!
Para onde estamos indo? Para onde?

Terça-feira, 25 de Agosto. - Estou saindo de um desmaio prolonga-


do. A tempestade continua, o relâmpago é liberado como uma ninhada
de cobras lançada na atmosfera.
Ainda estamos no mar? Sim, levados com velocidade incalculável.
Passamos sob a Inglaterra, sob o Canal da Mancha, sob a França, sob
toda a Europa, talvez!
Ouve-se um novo ruído! Obviamente, o mar está quebrando nas
pedras! Isto quer dizer que...

1- Nota do autor: Nuvens de formas arredondadas.

Viagem ao Centro da Terra 277


Capítulo 36
SALVO DO NAUFRÁGIO
36. SALVO DO NAUFRÁGIO

Aqui termina o que chamei de “diário de bordo”, felizmente salvo


do naufrágio. Retomo minha história como antes.
O que se passou durante o choque da jangada contra os escolhos1
da costa, não sei dizer. Senti-me jogado nas ondas, e, se escapei da mor-
te, se meu corpo não foi despedaçado pelas rochas pontiagudas, foi por-
que o braço forte de Hans me retirou do abismo.
O corajoso islandês me carregou para fora do alcance das ondas,
para uma areia muito quente onde fiquei lado a lado com meu tio.
Em seguida, ele voltou aos rochedos onde quebravam as ondas fu-
riosas a fim de salvar alguns destroços do naufrágio. Eu não conseguia
falar, estava esgotado pelas emoções e cansaço. Precisei de uma longa
hora para me recompor.
Enquanto isso, uma chuva torrencial continuou a cair, mas com o
redobramento que anuncia o fim das tempestades. Algumas rochas so-
brepostas nos ofereceram abrigo contra as torrentes do céu. Hans prepa-
rou uma comida que eu nem consegui tocar, e cada um de nós, exaustos
da vigília de três noites, caiu em um sono doloroso.
No dia seguinte o tempo estava magnífico. O céu e o mar se apazi-
guaram por um acordo em comum. Todos os vestígios da tempestade
haviam sumido. Foram as palavras alegres do professor que me sauda-
ram ao despertar. Ele exibia uma alegria terrível.
— Bem, meu rapaz — exclamou ele — dormiu bem?
Não foi dito que estávamos na casa da Königstrasse, que eu des-
ceria tranquilamente para almoçar e que meu casamento com a pobre
Graüben seria realizado nesse mesmo dia?
Ai de mim! Se a tempestade tivesse jogado a jangada para leste
teríamos passado sob a Alemanha, sob minha querida cidade de Ham-
burgo, sob aquela rua onde vivia tudo que eu amava no mundo. Então,
praticamente cento e sessenta quilômetros nos separavam! Mas cento e
sessenta quilômetros verticais de uma parede de granito e, na realidade,
mais de quatro mil quilômetros para cruzar.
Todos esses dolorosos pensamentos cruzaram rapidamente a mi-
nha mente antes de responder à pergunta de meu tio.

Viagem ao Centro da Terra 280


— Mas o quê? — repetiu — Você não vai me dizer se dormiu bem?
— Muito bem. — respondi — Estou um pouco dolorido, mas não
é nada demais.
— Absolutamente nada, um pouco cansado e isso é tudo!
— Mas você me parece muito alegre essa manhã, meu tio.
— Encantado, meu rapaz! Estou encantado! Nós chegamos.
— Ao final de nossa expedição?
— Não, mas ao final desse mar que não acabava nunca. Vamos ago-
ra retomar a rota terrestre e adentrar verdadeiramente nas entranhas do
globo.
— Meu tio, me permita uma pergunta.
— Eu a permito, Axel.
— E a volta?
— A volta! Ah! Você está pensando em voltar quando nem ainda
chegamos?
— Não, só quero saber como isso vai acontecer.
— Da maneira mais simples do mundo. Assim que chegarmos ao
centro do esferoide, ou encontraremos uma nova rota para subir à sua
superfície ou retornaremos bem burguesamente pelo caminho já per-
corrido. Gosto de pensar que ele não vai se fechar atrás de nós.
— Então vamos ter de deixar a jangada em boas condições.
— Com certeza.
— Mas e as provisões, ainda resta o bastante para realizar esses
grandes feitos?
— Sim, claro. Hans é um rapaz hábil e sei que ele salvou grande
parte da carga. Vamos conferir, a propósito.
Saímos daquela gruta aberta a todos os ventos. Tive uma esperança
que era ao mesmo tempo um medo. Parecia-me impossível que a terrí-
vel atracagem da jangada não tenha destruído tudo que ela carregava.
Me enganei. Quando cheguei à margem, vi Hans no meio de um monte
de objetos dispostos de forma ordenada. Meu tio apertou sua mão com
um vívido sentimento de gratidão. Esse homem, de uma dedicação so-
bre-humana, do qual talvez não se encontre outro exemplar, havia tra-
balhado enquanto dormíamos e salvou os objetos mais preciosos arris-
cando sua vida.

Viagem ao Centro da Terra 281


Não é que não tenhamos sofrido perdas significativas, como nos-
sas armas, por exemplo, mas ainda assim poderíamos ficar sem elas.
O suprimento de pólvora ficou intacto, depois de quase ter explodido
durante a tempestade.
— Bem — exclamou o professor — como nos faltam os fuzis, não
vamos mais caçar.
— Certo, mas e os instrumentos?
— Aqui está o manômetro, o mais útil de todos e pelo qual eu teria
dado todos os outros! Com ele posso calcular a profundidade e saber
quando teremos chegado ao centro. Sem ele correríamos o risco de ir
além e sair pelos antípodas2!
Essa alegria era feroz.
— Mas e a bússola?
— Aqui está, sobre essa rocha, em perfeitas condições, assim como
o cronômetro e os termômetros. Ah! O caçador é um homem precioso!
Era preciso reconhecer que, em questão de instrumentos, não fal-
tava nada. Quanto a outras ferramentas e equipamentos, vi, espalhados
na areia, escadas, cordas, picaretas, enxadas etc.
No entanto, ainda havia a questão dos víveres para resolver.
— E as provisões? — disse.
— Vamos ver as provisões. — respondeu meu tio.
As caixas que as continham foram alinhadas na praia em perfeito
estado de conservação. O mar havia respeitado a maior parte, e ao todo,
em biscoitos, carne seca, genebra, e peixes secos, poderíamos contar
com quatro meses de víveres.
— Quatro meses! — exclamou o professor — Temos tempo para ir
e voltar e com o que restar irei fazer um grande jantar para todos meus
colegas do Johannaeum!
Eu deveria estar acostumado há tanto tempo com o temperamento
de meu tio e ainda assim esse homem me surpreendia sempre.
— Agora — disse ele — vamos reabastecer nosso suprimento de
água com a chuva que a tempestade despejou em todas aquelas bacias
de granito. Portanto, não precisamos nos preocupar com a sede. Quanto
a jangada, vou pedir ao Hans para consertá-la o melhor possível, embo-
ra ela não irá mais nos servir, imagino.

Viagem ao Centro da Terra 282


— Como assim? — exclamei.
— Uma ideia minha, meu rapaz! Acredito que não sairemos por
onde entramos.
Eu olhei para o professor com certa desconfiança. Me perguntei se
ele tinha ficado louco. E no entanto, “mal ele sabia”.
— Vamos tomar o desjejum — ele falou.
Eu o segui até um promontório, depois que ele deu instruções ao
caçador. Lá, a carne seca, o biscoito e o chá constituíram uma excelente
refeição e, devo admitir, uma das melhores de minha vida. A fome, o ar
fresco, a calma após a agitação, tudo contribuiu ao meu apetite.
Durante o desjejum, perguntei ao meu tio onde estávamos agora.
— Isso — eu disse — me parece difícil de calcular.
— Um cálculo exato, sim — respondeu ele — é até mesmo impossí-
vel, pois durante esses três dias de tempestade, não consegui tomar nota
da velocidade e da direção da jangada. Mesmo assim, podemos estimar
aproximadamente nossa posição.
— De fato, a última observação foi feita na ilhota do gêiser.
— Na ilhota Axel, meu rapaz. Não recuse a honra de ter batizado
com seu nome a primeira ilha descoberta no centro do maciço terrestre.
— Certo! Na ilhota Axel havíamos cruzado cerca de mil e oitenta
quilômetros por mar e estávamos a mais de dois mil e quatrocentos qui-
lômetros da Islândia.
— Pois bem! Partiremos desse ponto e contaremos quatro dias de
tempestade nos quais nossa velocidade não deve ter sido inferior a tre-
zentos e vinte quilômetros em vinte e quatro horas.
— Concordo. Daria portanto trezentos mil e duzentos quilômetros
a mais.
— Sim, e o Mar Lidenbrock teria cerca de dois mil e quatrocentos
quilômetros de uma margem a outra! Você sabia, Axel, que ele pode
competir com o tamanho do Mediterrâneo?
— Sim, principalmente se tivermos atravessado apenas sua largura.
— O que é bem possível.
— E, curiosamente — acrescentei — se nossos cálculos estiverem
corretos, temos agora esse Mediterrâneo acima de nossas cabeças.
— Verdade?
— Verdade, pois estamos a três mil e seiscentos quilômetros de

Viagem ao Centro da Terra 283


Reykjavik!
— É um belo de um caminho, meu rapaz, mas quer estejamos mais
sob o Mediterrâneo do que a Turquia ou sob o Atlântico, só pode ser
afirmado se a nossa direção não tiver sido desviada.
— Não, o vento parece constante. Penso então que essa margem
deve estar situada a sudeste do Porto Graüben.
— Bem, isso é fácil de assegurarmos consultando a bússola. Vamos
consultá-la!
O professor se dirigiu até ao rochedo onde Hans havia depositado
os instrumentos. Ele estava feliz, alegre, esfregava as mãos, fazia poses!
Um verdadeiro jovem! Eu o segui, curioso para saber se não estava en-
ganado de minhas estimativas.
Chegando ao rochedo, meu tio pegou a bússola, pousou-a horizon-
talmente e observou a agulha que, depois de ter oscilado, parou em uma
posição fixa sob a influência magnética.
Meu tio olhou, depois esfregou os olhos e olhou novamente. Por
fim, virou-se para mim, espantado.
— O que foi? — perguntei.
Ele fez sinal para que eu examinasse o instrumento. Uma exclama-
ção de surpresa me escapou. A ponta da agulha marcava o norte, onde
supúnhamos ser o sul. Ela se virará para a praia em vez do alto mar.
Sacudi a bússola, a examinei. Estava em perfeitas condições. Qual-
quer posição que colocássemos a agulha, ela voltava obstinadamente
para esta posição inesperada.
Sendo assim, não restavam dúvidas, durante a tempestade havia
ocorrido uma rajada de vento que não percebemos e trouxe a jangada
de volta para as margens que meu tio acreditava ter deixado para trás.

1- Escolho é um topo de rochedo ou arrecife que desponta à flor da água. Geralmente não
possuem vegetação e são pequenas demais para serem habitadas.

2- Antípodas são regiões diametralmente opostas de uma esfera, ou no caso do planeta.

Viagem ao Centro da Terra 284


Capítulo 37
UMA INESTIMÁVEL COLEÇÃO
37. UMA INESTIMÁVEL COLEÇÃO

Seria impossível para mim ilustrar a sucessão de sentimentos que


abalaram o Professor Lidenbrock, espanto, incredulidade e por fim, rai-
va. Nunca vi um homem tão desconcertado de início e tão zangado em
seguida. O cansaço da travessia, os perigos corridos, tudo teria que ser
recomeçado! Nós havíamos recuado ao invés de seguir para frente!
Mas meu tio retornou rapidamente ao auge.
— Ah! O destino está me pregando peças! — exclamou — Os ele-
mentos conspiram contra mim! O ar, o fogo e a água combinam seus
esforços para se opor à minha passagem! Pois bem! Eles saberão do que
minha vontade é capaz. Não vou desistir, não vou recuar nem uma li-
nha, e veremos quem vencerá, o homem ou a natureza!
Em pé sobre o rochedo, irritado, ameaçador, Otto Lidenbrock,
como o feroz Ájax1, parecia desafiar os deuses. Mas julguei apropriado
intervir e pôr um fim nesse fervor insensato.
— Escute-me. — eu o disse em um tom firme — Há um limite
para qualquer ambição aqui em baixo. Não devemos lutar contra o im-
possível. Estamos mal equipados para uma viagem marítima. Dois mil
quilômetros não são atravessados em um conjunto fajuto de vigas com
um cobertor como vela e um bastão como mastro contra ventos desgo-
vernados. Não podemos conduzir, somos o joguete das tempestades e
seria agir como loucos tentar pela segunda vez essa travessia impossível!
Com essas razões irrefutáveis, consegui dar sequência por dez mi-
nutos sem ser interrompido, mas recebi unicamente a desatenção do
professor, que não ouviu uma palavra da minha argumentação.
— Para a jangada! — ele exclamou.
Essa foi a sua resposta. Não importa o que eu faça, suplicar ou me
exceder, eu me debatia contra uma vontade mais dura que granito.
Hans acabava nesse momento de consertar a jangada. Era possível
dizer que este bizarro ser adivinhou os planos do meu tio. Com alguns
pedaços de surtarbrandur ele havia fortalecido a embarcação. Uma vela
já se elevava e o vento já batia em suas dobras flutuantes.

Viagem ao Centro da Terra 287


O professor disse algumas palavras ao guia que imediatamente car-
regou as bagagens e preparou tudo para a partida. A atmosfera estava
bastante limpa e o vento noroeste manteve-se firme.
O que eu poderia fazer? Resistir sozinho contra dois? Impossível.
Se pelo menos o Hans tivesse se juntado a mim. Mas não. Parecia que o
islandês havia colocado de lado toda a vontade pessoal e feito um voto
de abnegação. Eu não poderia obter nada de um servo tão submisso ao
seu mestre. Era preciso seguir em frente.
Eu já ia ocupar sobre a jangada o meu lugar de costume quando
meu tio me deteve com a mão.
— Não partiremos até amanhã — disse ele.
Fiz um gesto de homem resignado a tudo.
— Não devo negligenciar nada — prosseguiu — e como o destino
me empurrou a essa parte da costa, não a deixarei sem um reconheci-
mento.
Esta observação será melhor compreendida ao saber que havíamos
retornado à margem norte, mas não ao mesmo ponto de nossa primeira
partida. O Porto Graüben devia estar situado mais ao oeste. Nada mais
razoável do que examinar com cuidado os arredores da nossa nova ater-
rissagem.
— Vamos explorar! — eu disse.
E, deixando Hans com suas ocupações, nós partimos. O espaço
compreendido entre a marca do mar na areia e os pés do contraforte
era bastante largo. Poderíamos caminhar por meia hora antes de chegar
à parede dos rochedos. Nossos pés esmagavam inúmeras conchas de
todas as formas e todos os tamanhos onde viviam os animais das pri-
meiras épocas. Também vi carapaças enormes, onde o diâmetro muitas
vezes ultrapassava quatro pés e meio. Elas haviam pertencido àqueles
gigantescos Gliptodontes2 da época do Plioceno, dos quais a tartaruga
moderna teve apenas uma pequena redução. Além disso, o solo estava
coberto por uma grande quantidade de detritos pedregosos, espécies de
seixos arredondados pelas ondas e dispostos em linhas sucessivas. Fui
então levado a fazer a observação de que o mar deve ter antigamente
ocupado este espaço. Sobre as rochas esparsas e agora fora de seu alcan-
ce, as ondas deixaram rastros evidentes de sua passagem.

Viagem ao Centro da Terra 288


Isso poderia, até certo ponto, explicar a existência desse oceano
a cento e sessenta quilômetros abaixo da superfície do globo. Mas, ao
meu ver, essa massa de água foi se perdendo pouco a pouco nas entra-
nhas da Terra e ela provém evidentemente das águas do oceano que vie-
ram através de alguma fissura. No entanto, era preciso admitir que essa
fissura está atualmente bloqueada, pois toda essa caverna, ou melhor,
esse imenso reservatório teria sido enchido em pouco tempo. Talvez até
mesmo esta água, tendo que lutar contra os fogos subterrâneos, tenha
sido parcialmente vaporizada. Daí a explicação para as nuvens, pairan-
do sobre nossas cabeças e a liberação dessa eletricidade que criava tem-
pestades no interior do maciço terrestre.
Essa teoria dos fenômenos que havíamos testemunhado me parecia
satisfatória, pois, por maior que sejam as maravilhas da natureza, elas
são sempre explicáveis por razões físicas.
Assim, caminhávamos sobre uma espécie de terreno sedimentar
formado pelas águas, como todos os terrenos deste período, tão am-
plamente distribuídos na superfície do globo. O professor examinava
atentamente cada fenda de rocha. Qualquer abertura que existia era im-
portante para ele sondar sua profundidade.
Ao longo de um quilômetro e meio havíamos percorrido as mar-
gens do Mar Lidenbrock quando o solo mudou subitamente de aspec-
to. Ele parecia perturbado, convulsionado por uma violenta elevação
das camadas inferiores. Em muitos lugares, afundamentos ou elevações
atestavam um poderoso deslocamento do maciço terrestre.
Caminhávamos com dificuldade sobre essas fendas de granito, mis-
turadas com sílex, quartzo e depósitos aluviais, quando um campo, mais
que um campo, uma planície de ossos apareceu diante de nossos olhos.
Parecia um imenso cemitério, onde vinte séculos de gerações confun-
diam sua poeira eterna. Altas extumescências de detritos acumulavam-
-se à distância. Eles ondulavam até os limites do horizonte e se perdiam
em uma névoa fosca. Lá, quase oito quilômetros quadrados, para mais
ou para menos, acumulava-se toda a vida da história animal, que mal
havia sido escrita nos terrenos mais recentes do mundo habitado.
No entanto, uma curiosidade impaciente nos movia. Nossos pés
esmagavam com um ruído seco os restos desses animais pré-históricos
e os fósseis dos quais os museus de grandes cidades competem por es-

Viagem ao Centro da Terra 289


ses raros e interessantes detritos. A existência de mil Cuviers3 não seria
suficiente para reconstruir os esqueletos dos seres orgânicos que jaziam
neste magnífico ossuário.
Eu estava estupefato. Meu tio havia erguido seus grandes braços em
direção à espessa abóbada que servia como nosso céu. Sua boca aberta
desmesuradamente, seus olhos brilhando sob a lente dos óculos, sua ca-
beça movendo de cima a baixo, da esquerda para direita, toda sua postu-
ra finalmente demonstravam um espanto sem limites. Ele estava diante
de uma inestimável coleção4 de Leptotérios, Mericotérios, Lofodontes,
Anoplotérios, Megatérios, Mastodontes, Protopithecus, Pterodáctilos e
todos os monstros antediluvianos amontoados ali para sua satisfação
pessoal. Imagine um bibliomaníaco apaixonado de repente ser trans-
portado para a famosa biblioteca de Alexandria, queimada por Omar, e
se por um milagre ela fosse ressuscitada das cinzas! Assim estava o meu
tio, o Professor Lidenbrock.

Viagem ao Centro da Terra 290


Mas foi uma surpresa bem diferente que, quando correndo através
dessa poeira vulcânica, ele agarrou um crânio desnudo e exclamou com
um voz trêmula:
— Axel! Axel! Uma cabeça humana!
— Uma cabeça humana, meu tio? — respondi, não menos estupe-
fato.
— Sim, sobrinho! Ah, Milne-Edwards! Ah, Quatrefages5! Por que
não estão aqui onde eu, Otto Lidenbrock, estou?

1- Descrito por Homero na Ilíada como uma “muralha”, Ájax foi um herói da mitologia grega,
forte e imponente.

2- Esses parentes distantes do tatu, eram gigantes herbívoros que viveram nas Américas até
sua extinção ao término da última Era Glacial.

3- Georges Cuvier foi um naturalista francês conhecido como “O pai da paleontologia”


e responsável pelos primeiros estudos da Anatomia Comparada.

4- Gostaria de poder explicar para você todos esses grupos maravilhosos, mas temo não ter
tanto papel à minha disposição!

5- O biólogo francês Jean Louis Armand de Quatrefages de Bréau realizou diversos estudos
no campo da zoologia e foi membro de diversas sociedades científicas da época.

Viagem ao Centro da Terra 291


Capítulo 38
O OSSUÁRIO
38. O OSSUÁRIO

Para compreender essa evocação feita por meu tio a esses ilustres
sábios franceses, é necessário saber que um fato de grande importância
na paleontologia havia ocorrido há algum tempo antes de nossa partida.
Em 28 de Março de 1863, trabalhadores cavando sob a direção do
senhor Boucher de Perthes as pedreiras de Moulin-Quignon, perto de
Abbeville, no departamento de Somme na França, encontraram uma
mandíbula humana quatro metros abaixo da superfície do solo. Foi o
primeiro fóssil dessa espécie trazido à luz do dia. Perto dali encontraram
machados de pedra e sílex talhados, coloridos e revestidos pelo tempo
com uma pátina1 uniforme.
O barulho dessa descoberta era grande, não apenas na França, mas
na Inglaterra e na Alemanha também. Vários sábios do Instituto Francês,
entre eles os senhores Milne-Edwards e Quatrefages, se empenharam de
coração, demonstraram a autenticidade incontestável das ossadas em
questão e tornaram-se os mais fervorosos defensores do “julgamento da
mandíbula”, usando a expressão inglesa.
Aos geólogos do Reino Unido que tomaram o fato como certo, os
senhores Falconer, Busk, Carpenter etc., juntaram-se sábios da Alema-
nha e, entre eles, em primeiro na fila, o mais fervoroso, o mais entusias-
ta, meu tio Lidenbrock.
A autenticidade de um fóssil humano da época quaternária parecia,
portanto, indiscutivelmente demonstrada e admitida.
Esse sistema, na verdade, teve um adversário ferrenho, o senhor
Élie de Beaumont. Esse sábio de tão alta autoridade que a terra de Mou-
lin-Quignon não pertencia ao diluvium2, mas a uma camada menos
antiga e, concordando com Cuvier, não admitia que a espécie humana
fosse contemporânea dos animais da época quaternária. Meu tio Li-
denbrock, em conjunto com a maioria dos geólogos, manteve-se firme,
argumentando, discutindo, e o senhor Élie de Beaumont acabou ficando
praticamente sozinho em seu partido.
Conhecíamos todos esses detalhes do caso, mas estávamos igno-
rantes de que, desde a nossa partida, a questão havia progredido. Outras

Viagem ao Centro da Terra 294


mandíbulas idênticas, embora pertencentes a indivíduos de tipos diver-
sos e nações diferentes, foram encontradas nos terrenos movediços e
cinzentos de certas cavernas, na França, Suíça e Bélgica, bem como ar-
mas, utensílios, ferramentas, ossadas de crianças, adolescentes, adultos
e velhos. A existência do homem quaternário foi, portanto, afirmada
cada dia mais.
E isso não era tudo. Novos detritos exumados do terreno terciário
plioceno permitiram que sábios ainda mais audaciosos atribuíssem uma
antiguidade maior ainda à raça humana. Esses detritos, na verdade, não
eram ossadas humanas, mas apenas objetos de sua produção, tíbias e fê-
mures de animais fósseis, regularmente estriados, esculpidos por assim
dizer, e que traziam a marca do trabalho humano.
Assim, com um salto, o homem subiu a escala do tempo um grande
número de séculos. Ele precedia o mastodonte, e se tornava contempo-
râneo do Elephas meridionalis. Ele tinha cem mil anos de existência,
pois essa é a data dada
pelos geólogos mais re-
nomados à formação do
terreno plioceno.
Tal era então o esta-
do da ciência paleonto-
lógica, e o que sabíamos
era o bastante para expli-
car nossa atitude diante
desse ossuário do Mar
Lidenbrock. Compreen-
de-se, assim, a estupe-
fação e a alegria de meu
tio, sobretudo quando,
vinte passos mais adian-
te, ele se encontrou na
presença, pode-se dizer
que face a face, de um
desses espécimes do ho-
mem quaternário.

Viagem ao Centro da Terra 295


Era um corpo humano absolutamente reconhecível. Um solo de
natureza particular, como aquele do cemitério Saint Michel, em Bor-
deaux, teria sido capaz de conservá-lo durante séculos? Eu não saberia
dizer. Mas este cadáver, a pele esticada e apergaminhada, os membros
ainda macios, aparentemente, os dentes intactos, o cabelo abundante e
as unhas dos dedos das mãos e dos pés de um comprimento assustador
mostravam aos nossos olhos como ele havia vivido.
Fiquei mudo diante dessa aparição de outra época. Meu tio, tão
eloquente e habitualmente tão impetuosamente falante, também estava
calado. Levantamos o corpo. Até mesmo o endireitamos. Ele nos olhava
com suas órbitas ocas. Apalpamos seu torso sonoro.
Após alguns instantes de silêncio, o tio foi vencido pelo professor.
Otto Lidenbrock, tomado pelo seu temperamento, esqueceu as circuns-
tâncias de nossa viagem, o ambiente em que estávamos e a imensa ca-
verna que nos continha. Sem dúvidas ele se imaginava no Johannaeum,
professando diante de seus alunos, pois assumiu um tom doutoral e se
dirigiu a um auditório imaginário:
— Senhores — disse ele — tenho a honra de apresentá-los a um
homem da época quaternária. Grandes sábios negaram sua existência,
outros não menos importantes a afirmaram. Os Sãos Tomés da paleon-
tologia, se estivessem aqui, o tocariam com o dedo e seriam forçados
a admitir seu erro. Sei bem que a ciência deve ficar em guarda contra
descobertas desse tipo! Não ignoro que a exploração dos homens fósseis
foi feita pelos Barnum e outros charlatões de mesma farinha. Conheço
a história da rótula de Ájax, do pretenso corpo de Orestes recuperado
pelos espartanos e do corpo de Astério, de dez côvados de comprimen-
to, do qual fala Pausânias. Li os relatórios sobre o esqueleto de Trapani,
descoberto no século XIV, no qual quiseram reconhecer Polifemo e a
história do gigante desenterrado durante o século XVI nos arredores de
Palermo. Vocês, senhores, tanto quanto eu, não são ignorantes de que
a análise feita perto de Lucerna, em 1577, dessas grandes ossadas que o
célebre médico Félix Plater declarou pertencer a um gigante de quase
seis metros! Devorei os tratos de Cassanion e todos esses memorandos,
brochuras, discursos e contradiscursos publicados sobre o esqueleto do
rei dos cimbros, Teutobochus, o invasor da Gália, exumado de um poço
de areia em Delfinado em 1613! No século XVIII, eu teria combatido

Viagem ao Centro da Terra 296


junto de Pierre Campet a existência dos pré-adamitas de Scheuchzer! Eu
tinha em mãos o artigo chamado Gigans…
Aqui reapareceu a enfermidade natural de meu tio, que em público
não conseguia pronunciar as palavras mais difíceis.
— O artigo chamado Gigans… — retomou.
Ele não conseguia ir adiante.
— Giganteo…
Impossível! A palavra infeliz não queria sair! Teriam rido muito no
Johannaeum.
— Gigantosteologia — concluiu o Professor Lidenbrock, entre dois
palavrões.
Em seguida, continuou melhorado e se animando.
— Sim, senhores, eu sei de todas essas coisas! Também sei que
Cuvier e Blumenbach reconheceram, em meio a essas ossadas, ossos
simples de mamutes e de outros animais da época quaternária. Mas
aqui, apenas duvidar já seria um insulto à ciência! O cadáver está aqui!
Vocês podem vê-lo, tocá-lo! Não é um esqueleto, é um corpo intacto,
conservado por um fim unicamente antropológico!
Eu estava disposto a não contradizer essa afirmação.
— Se eu pudesse lavá-lo em uma solução de ácido sulfúrico — dis-
se ainda meu tio — eu limparia todas as partículas terrestres e essas
conchas resplandecentes que estão incrustadas nele. Mas me falta o pre-
cioso solvente. No entanto, tal como está, esse corpo nos contará sua
própria história.
Aqui, o professor pegou o cadáver fóssil e o manejou com toda des-
treza de quem apresenta uma amostra de curiosidades.
— Vocês veem — ele prosseguiu — ele não tem mais de um metro
e oitenta e estamos muito longe dos chamados gigantes. Quanto a raça
que pertence é incontestavelmente caucasiana. É a raça branca, a nossa.
O crânio desse fóssil é regularmente ovoide, sem desenvolvimento das
maçãs do rosto e sem projeção da mandíbula. Não apresenta nenhu-
ma característica do prognatismo que modifica o ângulo facial3. Meçam
este ângulo, ele é de quase noventa graus. Mas irei ainda mais longe
nos caminhos das deduções e ousarei dizer que este exemplar humano
pertence a família jafética, espalhada das Índias até os limites da Europa
Ocidental. Não riam, senhores!

Viagem ao Centro da Terra 297


Ninguém ria, mas o professor era habituado a ver sorrisos desabro-
chando durante suas sábias dissertações.
— Sim — retomou com nova animação — este é um homem fóssil
e contemporâneo dos mastodontes cujas ossadas preenchem este anfi-
teatro. Mas lhes dizer por qual caminho ele chegou aqui, como aquelas
camadas onde ele foi enterrado deslizaram para esta enorme cavidade
do globo, não me permitirei. Sem dúvidas, durante o período quaterná-
rio, consideráveis distúrbios ainda se manifestavam na crosta terrestre.
O resfriamento contínuo do globo produzia rompimentos, fendas e fa-
lhas por onde o terreno superior provavelmente caía. Não garanto nada,
mas enfim o homem está aqui, rodeado pelas obras de suas mãos, esses
machados e esses sílex talhados que constituíam a Idade da Pedra, e,
ao menos que ele não tenha vindo como um turista ou um pioneiro da
ciência, não posso duvidar da autenticidade de sua antiga origem.
O professor ficou em silêncio e eu irrompi em aplausos unânimes.
Afinal, meu tio tinha razão, e homens mais sábios que seu sobrinho fi-
cariam fortemente impedidos de discutir com ele.
Outro indício. Este corpo fossilizado não era o único do imenso
ossuário. Outros corpos foram encontrados a cada passo que dávamos
nessa poeira e meu tio poderia escolher o mais maravilhoso exemplar
para convencer os incrédulos.
Na verdade, era um surpreendente espetáculo ver essas gerações de
homens e animais confundidos neste cemitério. Mas uma grave questão
se apresentou que não ousávamos responder. Teriam esses seres ani-
mais escorregado por uma convulsão do solo até as margens do Mar
Lidenbrock, quando já estavam reduzidas à pó? Ou melhor, eles viviam
aqui neste mundo subterrâneo, sob este céu artificial, nascendo e mor-
rendo como os habitantes da Terra? Até agora, monstros marinhos e
peixes apareceram vivos para nós! Algum homem do abismo ainda va-
gava por essas praias desertas?

Viagem ao Centro da Terra 298


1- É uma fina camada facilmente reconhecida em peças antigas de metais como cobre, latão
ou bronze. Possui geralmente uma coloração esverdeada.

2- Antigo termo geológico para depósitos superficiais formados por inundações. O nome vem
do dilúvio bíblico, cunhado por cientistas da época que buscavam conexões entre a geologia
e os eventos descritos no Gênesis.

3- Nota do autor: O ângulo facial é formado por dois planos, um mais ou menos vertical que
é tangente à testa e aos incisivos, e outro horizontal, que passa pela abertura dos canais auditivos
e pela espinha nasal inferior. Chamamos de prognatismo, em linguagem antropológica, essa
projeção da mandíbula que modifica o ângulo facial.

Viagem ao Centro da Terra 299


Capítulo 39
IMMANIOR IPSE
39. IMMANIOR IPSE

Por mais meia hora, nossos pés pisaram nessas camadas de ossos.
Seguimos em frente, movidos por uma curiosidade ardente. Que outras
maravilhas essa caverna ainda continha, quais tesouros para ciência?
Meus olhos esperavam todas as surpresas, minha imaginação, todos os
espantos.
As margens do mar haviam há muito tempo desaparecido atrás das
colinas do ossuário. O imprudente professor, pouco preocupado em se
perder, me arrastava para longe. Avançávamos silenciosamente, banha-
dos por ondas elétricas. Por um fenômeno que não posso explicar, e gra-
ças à sua difusão, que então era completa, a luz brilhava uniformemente
sob as diversas faces dos objetos. Seu foco não existia mais em um ponto
determinado do espaço e ela não produzia nenhum efeito de sombra.
Podíamos pensar que estávamos em pleno verão, no meio-dia, no meio
das regiões equatoriais sob os raios verticais do Sol. Todo vapor desapa-
receu. As rochas, as montanhas distantes e algumas massas confusas de
florestas longínquas, assumiram um aspecto estranho sob a distribuição
igual do fluido luminoso. Parecíamos aquele personagem fantástico de
Hoffmann1 que perdeu sua sombra.
Depois de uma caminhada de um quilômetro e meio, surgiu a bor-
da de uma floresta, mas não mais um daqueles bosques de cogumelos
vizinhos ao Porto Graüben.
Era a vegetação da época terciária em toda sua magnificência.
Grandes palmeiras, de espécies hoje extintas, magníficas palmáceas, pi-
nheiros, teixos, ciprestes, tuias, representavam a família das coníferas
e estavam ligados por uma rede de cipós inextricáveis. Um tapete de
musgos e hepáticas revestia suavemente o solo. Alguns riachos murmu-
ravam sob o sombreado das árvores, pouco digno desse nome, pois elas
não produziam sombra. Em suas bordas cresciam samambaias arbóre-
as, semelhantes às das estufas do globo habitado. Somente a cor faltava
a essas árvores, arbustos e plantas, privados do vivificante calor do Sol.
Tudo se fundia em um tom uniforme, acastanhado e como se estivesse
desbotado. As folhas eram desprovidas de seu verdor e as próprias flo-

Viagem ao Centro da Terra 302


res, tão numerosas naquela época terciária em que nasceram, estavam
sem cor e sem perfume, pareciam feitas de um papel descolorido pela
ação da atmosfera.
Meu tio Lidenbrock se aventurou sob esses gigantescos arbustos.
Eu o segui, não sem uma certa apreensão. Já que a natureza arcava com
os custos de uma alimentação vegetal, por que os formidáveis mamífe-
ros não se encontrariam ali? Eu percebi por entre essas grandes clarei-
ras deixadas pelas árvores derrubadas e roídas pelo tempo leguminosas,
acerinas, rubiáceas e mil arbustos comestíveis, caros aos ruminantes de
todas os períodos. Então, apareceram, confusas e misturadas, árvores de
tão diferentes países da superfície do globo, o carvalho crescendo perto
da palmeira, o eucalipto australiano encostado no abeto da Noruega, a
bétula do norte confundindo seus galhos com os do kauri neozelandês.
Era de confundir o raciocínio dos classificadores mais engenhosos da
botânica terrestre.
De repente, me detive. Com minha mão, segurei meu tio.
A luz difusa permitia ver os menores objetos na profundeza dos
matagais. Pensei ter visto… Não! Realmente, com meus olhos vi imen-
sas formas se agitando sob as árvores! De fato, eram animais gigantes-
cos, uma manada inteira de mastodontes, não mais fósseis, mas vivos, e
semelhantes àqueles cujos restos foram descobertos em 1081 nos pânta-
nos de Ohio! Eu vi esses grandes elefantes cujas trombas se moviam pe-
las árvores como uma legião de serpentes. Eu ouvi o som de suas longas
presas, cujo marfim batia nos velhos troncos. Os galhos estalavam e as
folhas arrancadas em massas consideráveis eram engolfadas nas imen-
sas bocas desses monstros.
O sonho no qual eu havia visto voltar a vida todo esse mundo dos
tempos pré-históricos, das épocas terciárias e quaternárias, estava final-
mente se realizando! E nós estávamos lá, sozinhos, nas entranhas do
globo, à mercê de seus ferozes habitantes.
Meu tio observava.
— Vamos! — ele disse de repente me agarrando pelo braço. — Em
frente, em frente!
— Não! — exclamei. — Não! Estamos desarmados! O que faría-
mos no meio desta manada de quadrúpedes gigantes? Venha, meu tio,
venha! Nenhuma criatura humana pode desafiar impunemente a cólera
desses monstros.

Viagem ao Centro da Terra 303


— Nenhuma criatura humana! — respondeu meu tio, baixando a
voz. — Você está enganado, Axel! Olhe, olhe ali! Acho que vejo um ser
vivo! Um ser parecido conosco! Um homem!
Eu olhei, dando de ombros e determinado a levar a descrença até
os seus últimos limites. Mas, de qualquer modo, eu tinha que me render
às evidências.
De fato, menos de quatrocentos metros, encostado no tronco de
um enorme kauri, um ser humano, um Proteu2 desses países subter-
râneos, um novo filho de Netuno, vigiava essa inumerável manada de
mastodontes!

Immanis pecoris custos, immanior ipse3!

Sim! Immanior ipse! Não era mais o ser fóssil cujo cadáver havía-
mos encontrado no ossuário, era um gigante capaz de comandar esses
monstros. Sua altura ultrapassava três metros e meio. Sua cabeça tão
grande quanto a de um búfalo, desaparecia em meio a uma cabeleira
selvagem. Parecia uma verdadeira crina, semelhante a dos elefantes das
primeiras eras. Ele brandia com a mão um enorme galho, digno cajado
de um pasto antediluviano.
Tínhamos permanecido imóveis, estupefatos. Mas podíamos ser
vistos. Era necessário fugir.
— Venha, venha! — exclamei arrastando meu tio, que pela primei-
ra vez se deixou levar.
Quinze minutos mais tarde, estávamos fora da vista deste formidá-
vel inimigo.
E agora, quando penso nisso tranquilamente, agora que a calma se
refez em minha mente, que meses se passaram desde aquele estranho
e sobrenatural encontro, o que pensar, o que acreditar? Não! É impos-
sível! Nossos sentidos foram enganados, nossos olhos não viram o que
estavam vendo! Nenhuma criatura humana existe neste mundo subter-
râneo! Nenhuma geração de homens habita essas cavernas inferiores do
globo, sem se preocupar com os habitantes da superfície, sem comuni-
cação com eles! Isso é insano, profundamente insano!
Prefiro admitir a existência de algum animal cuja estrutura se asse-
melha à estrutura humana, algum macaco das primeiras épocas geoló-

Viagem ao Centro da Terra 304


Viagem ao Centro da Terra 305
gicas, algum protopiteco, algum mesopiteco semelhante ao que o senhor
Lartet descobriu no ossífero de Sansan4. Mas este excedeu em tamanho
todas as medidas dadas pela paleontologia! Não importa! Um macaco,
sim, um macaco por mais inverossímil que seja! Mas um homem, um
homem vivo, e com ele toda uma geração enterrada nas entranhas da
Terra! Jamais!
Nesse meio tempo, havíamos deixado a clara e luminosa floresta,
mudos pelo espanto, oprimidos por uma estupefação que beirava a per-
plexidade. Nós corríamos sem ao mesmo perceber. Foi uma verdadeira
fuga, semelhante àqueles momentos assustadores que sofremos em cer-
tos pesadelos. Instintivamente, retornamos ao Mar Lidenbrock e não sei
para quais divagações minha mente teria sido levada sem uma preocu-
pação que me trouxesse de volta às observações mais práticas.
Embora eu tivesse certeza de estar pisando em um solo intocado pe-
los nossos passos, notei com frequência agregados de rochas cuja forma
me lembrava aos do Porto Graüben. Aliás, isso confirmava a indicação
da bússola e o nosso retorno involuntário ao norte do Mar Lidenbrock.
Às vezes dava para se enganar. Centenas de riachos e cachoeiras caíam
das saliências das rochas, creio ter revisto a camada de surtabrandur,
nosso fiel Hans-bach e a gruta onde eu havia voltado à vida. E então,
alguns passos adiante, a disposição dos contrafortes, a aparição de um
riacho e o perfil surpreendente de um rochedo estavam me deixando
novamente em dúvida.
Coloquei meu tio a par de minha indecisão. Ele hesitava como eu.
Ele não conseguia se reconhecer no meio daquela paisagem uniforme.
— Evidentemente — disse a ele — não estamos perto do nosso
ponto de partida, mas a tempestade nos trouxe de volta um pouco abai-
xo e seguindo a margem encontraremos o Porto Graüben.
— Nesse caso — respondeu meu tio — é inútil continuar essa ex-
ploração e é melhor voltarmos para a jangada. Mas você não está enga-
nado, Axel?
— É difícil dizer, pois todas essas pedras são parecidas. No entanto,
penso que reconheço o promontório ao pé do qual Hans construiu sua
embarcação. Devemos estar perto do pequeno porto, se é que ele não
está aqui mesmo — acrescentei, examinando uma enseada que creio ter
reconhecido.

Viagem ao Centro da Terra 306


— Não, Axel, nós encontraríamos nossos próprios traços e não vejo
nada…
— Mas eu vejo! — exclamei me lançando em direção a um objeto
que brilhava na areia.
— O que é?
— Isso — respondi.
E mostrei ao meu tio um punhal coberto de ferrugem que eu tinha
acabado de pegar.
— Olha só! — disse ele. — Então você trouxe esta arma com você?
— Eu? De jeito nenhum! Mas você…
— Não que eu saiba — respondeu o professor. — Eu nunca tive esse
objeto em minha posse.
— Isso é peculiar!
— Não, é muito simples, Axel. Os islandeses costumam ter armas
desse tipo, e Hans é a quem ela pertence, deve tê-la perdido.
Balancei a cabeça. Hans nunca havia tido esse punhal em sua posse.
— Esta é então a arma de algum guerreiro antediluviano — excla-
mei — de um homem vivo, contemporâneo daquele pastor gigantesco?
Mas não! Esta não é uma ferramenta da Idade da Pedra! Nem mesmo da
Idade do Bronze! Esta lâmina é feita de aço…
Meu tio me deteve no meio deste caminho que estava me levando
a uma nova divagação, e em seu tom frio ele me disse:
— Acalme-se, Axel, volte à razão. Este punhal é uma arma do sécu-
lo XVI, uma verdadeira adaga, daquelas que os cavalheiros levavam na
cintura para aplicar o golpe de misericórdia. Ela é de origem espanhola.
Não pertence a você, nem a mim, nem ao caçador e nem ao menos aos
seres humanos que talvez viviam nas entranhas do globo.
— Você ousa dizer...?
— Veja, ela não está gasta assim por ter sido enfiada na garganta
das pessoas. Sua lâmina está coberta por uma camada de ferrugem que
não é de um dia, nem de um ano e nem de um século.
O professor se animou, como de costume, deixando-se levar por
sua imaginação.
— Axel — prosseguiu — estamos a caminho da grande descoberta!
Esta lâmina foi abandonada na areia por cem, duzentos ou trezentos
anos e se desgastou nas rochas desse mar subterrâneo!

Viagem ao Centro da Terra 307


— Mas ela não veio sozinha! — exclamei. — Ela não se entortou
por si só. Alguém nos precedeu!
— Sim, um homem.
— E esse homem…?
— Esse homem gravou seu nome com este punhal! Esse homem
queria mais uma vez marcar com sua mão o caminho para o centro!
Procuremos, procuremos!
E, estritamente interessados, buscamos ao longo da alta muralha e
interrogamos as menores fissuras que poderiam se tornar uma galeria.
Chegamos assim em um lugar onde a costa se estreitava. O mar
quase banhava os pés dos contrafortes, deixando uma passagem de no
máximo um metro. Entre duas projeções rochosas pudemos ver a entra-
da de um túnel escuro.
Ali, em uma placa de granito, apareceram duas letras misteriosas
meio corroídas, as iniciais do audaz e fantástico viajante:

— A.S.! — exclamou meu tio. — Arne Saknussemm! Sempre Arne


Saknussemm!

1- Esse personagem vem da peça Les Contes d’Hoffmann de Jules Barbier and Michel Carré,
um grande sucesso de 1851.

2- Essa deidade grega era um deus do mar, responsável pelos rebanhos marítimos. O nome
é relativo também à palavra “primeiro”.

3- Essa citação vem do grande Victor Hugo, em seu livro "O corcunda de Notre Dame" e pode ser
traduzida como "Guardião de um rebanho monstruoso, ele próprio mais monstruoso ainda".
Victor emprestou a frase de Virgílio " formosi pecoris custos formosior ipse" ou "guardião
de um belo rebanho, ele próprio mais belo ainda".

4- Uma região da França.

Viagem ao Centro da Terra 308


Capítulo 40
CABO SAKNUSSEMM
40. CABO SAKNUSSEMM

Desde o início da viagem eu havia passado por muitos espantos. Eu


tinha que acreditar estar salvo de surpresas e farto de todas as maravi-
lhas. No entanto, ao ver essas duas letras gravadas ali depois de trezen-
tos anos, fiquei em um nível de assombro que beirava a estupidez. Não
apenas a assinatura do sábio alquimista podia ser lida na rocha, mas
também a caneta que a traçara estava entre as minhas mãos. A menos
que eu estivesse de uma completa má fé, não poderia mais duvidar da
existência do viajante e da autenticidade de sua viagem.
Enquanto essas reflexões turbilhonavam em minha cabeça, o Pro-
fessor Lidenbrock se lançou em um acesso um tanto ditirâmbico1 no
local de Arne Saknussemm.
— Maravilhoso gênio! — ele exclamava. — Você não esqueceu de
nada que pudesse abrir a outros mortais os caminhos da crosta terrestre,
seus semelhantes podem encontrar as pegadas que seus pés deixaram,
três séculos atrás, no fundo desses subterrâneos escuros. Para outros
olhos que não os seus, você reservou a contemplação dessas maravilhas!
Seu nome, gravado etapa por etapa, conduz o viajante audaz o suficiente
para segui-lo e, até mesmo no centro do nosso planeta, ele ainda estará
inscrito com sua própria mão. Pois bem! Eu também irei assinar esta
última página de granito! Mas que, a partir de agora, este cabo, visto por
você perto desse mar por você descoberto, seja para sempre chamado
de Cabo Saknussemm!
Foi isso que escutei, ou algo parecido, e me senti conquistado pelo
entusiasmo que essas palavras inspiravam. Um fogo interno se reacen-
deu em meu peito! Esqueci de tudo, os perigos da viagem e os perigos
do retorno. O que outra pessoa havia feito, eu também queria fazer e
nada do que era humano parecia impossível para mim.
— Em frente, em frente! — exclamei.
Já me lançava em direção à sombria galeria quando o professor me
deteve e ele, o homem impulsivo, aconselhava-me paciência e sangue-
-frio.
— Vamos voltar primeiro ao Hans — disse ele — e trazer a jangada
a este lugar.

Viagem ao Centro da Terra 311


Obedeci a esta ordem, não sem um desânimo, e me arrastei rapida-
mente para o meio das rochas da costa.
— Sabe, meu tio — disse enquanto caminhávamos — que até aqui
fomos tratados singularmente pelas circunstâncias?
— Ah! Você acha, Axel?
— Sem dúvidas, até mesmo a tempestade nos colocou de volta no
caminho certo. Bendita seja a tempestade! Ela nos trouxe de volta a esta
costa cujo bom tempo nos teria afastado! Suponha por um instante que
nós tivéssemos tocado com a nossa proa (a proa de uma jangada!) a cos-
ta sul do Mar Lidenbrock, o que seria de nós? O nome de Saknussemm
não apareceria diante de nossos olhos e agora estaríamos abandonados
em uma praia sem saída.
— Sim, Axel, há algo de providencial no fato que, navegando para
o sul, voltamos precisamente para o norte e para o Cabo Saknussemm.
Devo dizer que isso é mais que surpreendente e que há um fato cuja
explicação me escapa totalmente.
— Ora! O que importa? Não se trata de explicar os fatos, mas de
aproveitá-los!
— Sem dúvidas, meu rapaz, mas…
— Mas vamos retomar a rota do norte, passar sob os países seten-
trionais da Europa, a Suécia, a Rússia, a Sibéria, sei lá! Se não cairmos
nos desertos da África ou nas ondas do oceano, não quero nem saber!
— Sim, Axel, você tem razão, e tudo pelo melhor, já que abandona-
mos esse mar horizontal que não podia nos levar a lugar nenhum. Agora
vamos descer, descer de novo e continuar descendo! Você sabe que, para
chegar no centro do globo, restam pouco mais de seis mil quilômetros?
— Bah! — exclamei. — Realmente não se preocupe em falar disso!
Em frente! Em frente!
Essa conversa insensata durou até nos encontrarmos com o caça-
dor. Tudo estava preparado para uma partida imediata. Não havia um
pacote que não foi embarcado. Tomamos nossos lugares na jangada e,
de vela içada, Hans se dirigiu ao Cabo Saknussemm ao longo da costa.
O vento não estava favorável a um tipo de embarcação que era inca-
paz de aguentá-lo. Assim, em muitos lugares, era necessário remarmos
usando os bastões de ferro. Frequentemente, as rochas, prolongadas so-
bre a superfície da água, nos obrigavam a fazer desvios bastante longos.

Viagem ao Centro da Terra 312


Finalmente, após três horas de navegação, ou seja, por volta das seis da
tarde, chegamos a um local propício para o desembarque.
Saltei para o chão, seguido por meu tio e o islandês. Essa travessia
não havia me acalmado. Pelo contrário, propusemos até “queimar nos-
sos navios”, a fim de impedir qualquer tipo de retirada. Mas meu tio se
opôs. Eu o achei singularmente desanimado.
— Ao menos — disse — vamos partir sem perder um único ins-
tante.
— Sim, meu rapaz, mas primeiro, vamos examinar essa nova gale-
ria, para ver se precisaremos preparar nossas escadas.
Meu tio ativou seu aparelho de Ruhmkorff. A jangada, amarrada à
costa, foi deixada sozinha, afinal, a abertura da galeria não estava a nem
vinte passos de distância e a nossa tropa, comigo na frente, chegou lá
sem demora.
O orifício, mais ou menos circular, apresentava um diâmetro de
cerca de um metro e meio. O sombrio túnel foi talhado na rocha viva e
cuidadosamente perfurado pelo material eruptivo ao qual uma vez deu
passagem. Sua parte inferior era nivelada com o solo, de modo que era
possível entrar sem nenhuma dificuldade.
Estávamos seguindo um plano quase horizontal, quando, após seis
passos, nossa marcha foi interrompida pela interposição de um enorme
bloco.
— Maldita rocha! — exclamei com raiva, me vendo subitamente
detido por um obstáculo intransponível.
Embora procurássemos à direita e à esquerda, para baixo e para
cima, não havia passagem e nem bifurcação. Senti um vívido desapon-
tamento e não queria admitir a realidade do obstáculo. Eu me abaixei.
Olhei por baixo do bloco. Nenhuma lacuna. Acima. Mesma barreira de
granito. Hans passou a luz da lâmpada sobre todos os pontos da parede,
mas isso não ofereceu nenhuma solução de continuidade. Era preciso
renunciar a toda esperança de passagem.
Sentei-me no chão. Meu tio circulava pelo corredor em grandes
passadas.
— Mas e o Saknussemm? — exclamei.
— Sim — disse meu tio — ele foi impedido por essa porta de pedra?

Viagem ao Centro da Terra 313


— Não! Não! — prossegui vividamente. — Esse pedaço de rocha,
como resultado de algum tremor ou de um desses fenômenos magné-
ticos que agitam a crosta terrestre, fechou bruscamente essa passagem.
Muitos anos se passaram entre o retorno de Saknussemm e a queda des-
te bloco. Não é evidente que esta galeria foi uma vez o caminho das
lavas e que os materiais eruptivos aqui circulavam livremente? Veja, há
fissuras recentes que cruzam este teto de granito. Ele é feito de pedaços
reunidos, de pedras enormes, como se a mão de algum gigante tivesse
trabalhado nessa substrução. Mas um dia, o golpe foi mais forte, e este
bloco, semelhante a pedra angular que cai, deslizou para o chão, obs-
truindo a passagem. Este é um obstáculo acidental que Saknussemm
não encontrou, e se não o derrubarmos, nós seremos indignos de chegar
ao centro do mundo!
Foi assim que eu falei! A alma do professor havia passado inteira-
mente por mim. O gênio das descobertas me inspirava. Eu esquecia do
passado, eu desdenhava o futuro. Nada existia para mim na superfície
deste esferoide que me engolfava, nem a cidade, nem os campos, nem
Hamburgo, nem Köningstrasse, nem minha pobre Graüben, que devia
crer que eu estava para sempre perdido nas entranhas da Terra!
— Pois bem — retomou meu tio — com golpes de enxada e com
golpes de picareta faremos nosso caminho e derrubaremos estas mura-
lhas!
— É muito dura para a picareta! — exclamei.
— Então com a enxada!
— É muito espessa para a enxada!
— Mas…
— Pois bem! A pólvora! A mina! Vamos escavar e explodir o obs-
táculo!
— A pólvora!
— Sim! Temos apenas que quebrar um pedaço da rocha!
— Hans, mãos à obra! — exclamou meu tio.
O islandês retornou a jangada e logo voltou com uma picareta que
usou para cavar um fornilho. Não foi uma tarefa fácil. Tratava-se de fa-
zer um buraco consideravelmente grande para conter vinte e dois quilos
de algodão-pólvora, cuja potência explosiva é quatro vezes maior que a
da pólvora de canhão.

Viagem ao Centro da Terra 314


Eu estava com a mente extremamente empolgada. Enquanto Hans
trabalhava, ajudei ativamente meu tio a preparar um longo pavio feito
de pólvora molhada e envolta em uma mangueira de pano.
— Nós passaremos! — disse.
— Nós passaremos! — repetiu meu tio.
À meia-noite, nosso trabalho como mineiros estava completamen-
te terminado. A carga de algodão-pólvora se encontrava enfiada no for-
nilho e o pavio se desenrolava através da galeria, chegando até o lado de
fora.
Bastava agora uma faísca para colocar esse formidável engenho em
atividade.
— Amanhã — disse o professor.
Tive que me resignar e esperar por mais seis longas horas!

1- Os versos ditrâmbicos se referem a versos de cantos ou poesias que exprimem sentimentos


como entusiasmo ou delírio, praticamente uma segunda língua para o professor.

Viagem ao Centro da Terra 315


Capítulo 41
FOGO, MEU RAPAZ!
41. FOGO, MEU RAPAZ!

O dia seguinte, quinta-feira, 27 de Agosto, foi uma data célebre des-


sa viagem subterrânea. Ela não me vem à mente sem que o medo faça
meu coração bater. A partir desse momento, nossa razão, nosso bom
senso e nossa engenhosidade não tiveram voz, e nos tornamos os brin-
quedos dos fenômenos da Terra.
Às seis horas estávamos de pé. Aproximava-se o momento de abrir
com pólvora uma passagem através da crosta de granito.
Pedi a honra de pôr fogo na mina. Feito isso, deveria me juntar a
meus companheiros na jangada que não havia sido descarregada. De-
pois, zarparíamos a fim de evitar os perigos da explosão, cujos efeitos
poderiam não se concentrar apenas no interior do maciço.
O pavio deveria queimar por dez minutos, de acordo com nossos
cálculos, antes de pôr fogo à câmara de pólvora. Assim, eu tinha tempo
o suficiente para retornar à jangada.
Preparei-me para cumprir meu papel, não sem certa emoção.
Depois de uma rápida refeição, meu tio e o caçador embarcaram,
enquanto eu permaneci na costa. Estava munido de uma lanterna acesa
que deveria servir para pôr fogo no pavio.
— Vá, meu rapaz — disse meu tio — e volte imediatamente para se
juntar a nós.
— Fique tranquilo, meu tio, não vou brincar no meio do caminho.
Imediatamente, me dirigi à abertura da galeria, abri minha lanter-
na e segurei a ponta do pavio.
O professor tinha o cronômetro em mãos.
— Está pronto? — exclamou para mim.
— Estou pronto.
— Pois bem! Fogo, meu rapaz!
Coloquei rapidamente o pavio na chama, que cintilou ao contato e,
enquanto corria, retornei para a costa.
— Embarque — disse meu tio — e vamos nos afastar.
Hans, com um vigoroso empurrão, nos lançou ao mar. A jangada
moveu-se uns trinta e seis metros de distância.
Foi um momento emocionante. O professor seguia com os olhos o
ponteiro do cronômetro.

Viagem ao Centro da Terra 318


— Mais cinco minutos — disse ele. — Mais quatro! Mais três!
Meu pulso batia a cada meio segundo.
— Mais dois! Um! Desmoronem, montanhas de granito!
O que aconteceu então? O som da detonação, creio não ter escuta-
do. Mas a forma das rochas se modificou subitamente diante de meus
olhos. Eles abriram-se como uma cortina. Vi um abismo insondável se
aprofundando em meio a costa. O mar, tomado pela vertigem, não pas-
sava de uma imensa onda, onde no dorso, a jangada se elevava perpen-
dicularmente.
Nós três fomos derrubados. Em menos de um segundo, a luz deu
lugar à mais profunda escuridão. Então, senti o apoio sólido faltar, não
aos meus pés, mas à jangada. Pensei que estava afundando. Mas não.
Quis falar com meu tio, mas o rugido das águas o impediria de me es-
cutar.
Apesar da escuridão, do barulho, da surpresa e da emoção, entendi
o que acabara de acontecer.
Atrás da rocha que acabara de explodir, havia um abismo. A ex-
plosão havia causado uma espécie de terremoto nesse solo recortado
por fissuras, o abismo se abriu e o mar, transformado em torrente, nos
arrastava para lá com ele.
Sentia-me perdido.
Uma hora, duas horas, sei lá, se passaram dessa forma. Entrela-
çamos os braços, seguramos as mãos um do outro para não cair da
jangada. Choques de extrema violência ocorriam quando ela atingia a
muralha. No entanto, esses embates foram raros, pelo o que concluí, a
galeria se alargou consideravelmente. Era, sem dúvidas, o caminho de
Saknussemm. Mas, em vez de o descermos sozinhos, havíamos, pela
nossa imprudência, arrastado conosco um mar inteiro.
É compreensível que essas ideias se apresentaram à minha mente
de forma vaga e obscura. Eu as associei com dificuldade durante esse
curso vertiginoso que parecia uma queda. Ao julgar pelo ar que chico-
teava meu rosto, ela devia ultrapassar os trens mais rápidos. Acender
uma tocha nessas condições era, portanto, impossível, e nosso último
dispositivo elétrico havia sido quebrado no momento da explosão.
Fiquei, então, muito surpreso ao ver uma luz brilhar de repente
perto de mim. O rosto calmo de Hans se iluminou. O astuto caçador

Viagem ao Centro da Terra 319


havia conseguido acender a lanterna e, embora sua chama vacilasse à se
extinguir, lançava alguns lampejos na apavorante escuridão.
A galeria era ampla. Estava certo em julgá-la como tal. Nossa luz
insuficiente não nos permitia ver as duas muralhas ao mesmo tempo.
A inclinação das águas que nos arrastavam excedia a das corredeiras
mais intransponíveis da América. Sua superfície parecia ser um feixe
de flechas líquidas disparadas com extrema força. Não posso dar minha
impressão de maneira mais justa. A jangada, levada por certos rede-
moinhos, girava rodopiante. Quando ela se aproximou das muralhas da
galeria, projetei a luz da lanterna e pude avaliar sua velocidade ao ver a
saliência da rocha se transformar em linhas contínuas, de modo que fi-
camos presos em uma rede de linhas em movimento. Estimei que nossa
velocidade devia alcançar cento e vinte quilômetros por hora.
Meu tio e eu observávamos com olhos cansados, encostados em
uma parte do mastro que, na hora da catástrofe, havia se rompido. Vira-
mos as costas para o ar, para não sermos sufocados pela velocidade de
um movimento que nenhuma força humana poderia deter.
Contudo, as horas passaram. A situação não mudou, mas um inci-
dente veio a complicá-la.
Enquanto tentava arrumar a carga, vi que a maioria dos objetos a
bordo haviam desaparecido no momento da explosão, quando o mar
nos atacou tão violentamente. Queria saber exatamente o que esperar
de nossos recursos e, com a lanterna em mãos, comecei minhas buscas.
Dos nossos instrumentos restavam apenas a bússola e o cronômetro.
As escadas e cordas foram reduzidas a um pedaço de cabo enrolado ao
redor do pedaço de mastro. Nem uma picareta, nem uma enxada, nem
um martelo e, um infortúnio irreparável, só havia víveres para mais um
dia.
Procurei nos interstícios da jangada, nos menores cantos formados
pelas vigas e pelas juntas das tábuas! Nada! Nossas provisões consistiam
unicamente de um pedaço de carne seca e alguns biscoitos.
Eu olhava com um ar estúpido! Eu não conseguia compreender! E
ainda assim, com qual perigo eu me preocupava? Mesmo que os víve-
res fossem suficientes para meses, anos, como sair dos abismos para os
quais esta torrente imparável nos levava? Do que adianta temer as tortu-
ras da fome, quando a morte já se apresentava de tantas outras formas?
Teríamos tempo de morrer de inanição?

Viagem ao Centro da Terra 320


Contudo, por uma inexplicável bizarrice da imaginação, esqueci do
perigo imediato, pois as ameaças futuras se apresentaram em todo o seu
horror. Além do mais, talvez pudéssemos escapar da fúria da torrente
e voltar à superfície do globo. Como? Não sei. Por onde? Não importa.
Uma chance em mil é sempre uma chance, enquanto que a morte por
fome não nos deixa nenhuma esperança em qualquer proporção, por
menor que ela fosse.
Pensei em contar tudo ao meu tio, mostrar-lhe o que fomos redu-
zidos e fazer o cálculo exato de quanto tempo que nos restava de vida.
Mas tive a coragem de me calar. Queria preservar todo seu sangue-frio.
Nesse momento, a luz da lanterna diminuiu pouco a pouco e se
apagou totalmente. O pavio havia queimado até o fim. A escuridão vol-
tou a ser absoluta. Não era mais necessário pensar em dissipar essa es-
curidão impenetrável. Ainda havia uma tocha, mas ela não poderia se
manter acesa. Então, como uma criança, fechei os olhos para não ver
toda essa escuridão.
Depois de um longo lapso de tempo, a velocidade do nosso curso
redobrou. Percebi pela reverberação do ar em meu rosto. A inclinação
das águas tornou-se excessiva. Eu realmente acredito que não estávamos
mais escorregando. Estávamos caindo. Eu tinha a impressão de ser uma
queda quase vertical. As mãos de meu tio e as de Hans, agarradas aos
meus braços, seguravam-me com força.
De repente, após um tempo inestimável, senti uma espécie de cho-
que. A jangada não havia atingido um corpo sólido, mas parou de re-
pente em sua queda. Uma tromba d’água, uma imensa coluna de líquido
abateu-se em sua superfície. Estava sufocado. Estava me afogando.
No entanto, essa inundação repentina não durou muito. Em alguns
segundos eu estava ao ar livre, que aspirei em plenos pulmões. Meu tio
e Hans apertaram meu braço até machucar, e a jangada ainda carregava
nós três.

Viagem ao Centro da Terra 321


Capítulo 42
SUBINDO
42. SUBINDO

Suponho que deviam ser dez da noite. O primeiro dos meus senti-
dos que funcionou após este último impacto foi a audição. Ouvi quase
imediatamente, pois foi um ato de audição verdadeiro, ouvi o silêncio
pesar sobre a galeria, sucedendo os ruídos que, por longas horas, preen-
chiam meus ouvidos. Por fim, estas palavras do meu tio chegaram em
mim como um murmúrio:
— Estamos subindo!
— O que você quer dizer? — exclamei.
— Sim, estamos subindo! Estamos subindo!
Estendi o braço, toquei a muralha. Minha mão ficou ensanguenta-
da. Estávamos subindo com extrema rapidez.
— A tocha! A tocha! — exclamou o professor.
Hans, não sem dificuldades, conseguiu acendê-la, e a chama, man-
tendo-se de baixo para cima, apesar do movimento ascendente, lançava
uma claridade suficiente para iluminar toda a cena.
— Foi bem o que eu pensei — disse meu tio. — Estamos em um
poço estreito, que não tem oito metros de diâmetro. A água, tendo che-
gado ao fundo do abismo, volta ao seu nível e nos leva consigo.
— Para onde?
— Não sei, mas temos que estar prontos para tudo. Estamos subin-
do a uma velocidade que estimo em quatro metros por segundo, ou du-
zentos e quarenta metros por minuto, ou mais de quatorze quilômetros
por hora. Nesse passo, percorreremos um bom caminho.
— Sim, se nada nos impedir, se este poço tiver uma saída! Mas se
estiver bloqueado, se o ar se comprime pouco a pouco sob a pressão da
coluna d’água, vamos ser esmagados!
— Axel — respondeu o professor com muita calma — a situação
é quase desesperadora, mas existem algumas chances de salvação e são
essas que estou examinando. Se a qualquer instante podemos morrer, a
qualquer instante também podemos ser salvos. Então, sejamos capazes
de tirar proveito das menores circunstâncias.
— Mas o que fazer?

Viagem ao Centro da Terra 324


— Repor nossas forças comendo.
A essas palavras, olhei para meu tio com os olhos arregalados. O
que eu não queria confessar, enfim tive que lhe dizer.
— Comendo? — repeti.
— Sim, sem demora.
O professor acrescentou algumas palavras em dinamarquês. Hans
balançou a cabeça.
— O quê?! — exclamou meu tio — Nossas provisões estão perdi-
das?
— Sim, isto é o que resta dos víveres: um pedaço de carne para nós
três!
Meu tio olhou para mim sem compreender minhas palavras.
— Pois bem — disse — você ainda acredita que podemos ser sal-
vos?
Minha pergunta não teve nenhuma resposta.
Uma hora se passou. Eu começava a sentir uma fome violenta.
Meus companheiros também estavam sofrendo, e nenhum de nós ou-
sou tocar nos míseros restos de comida.
No entanto, ainda subíamos com extrema rapidez. Às vezes o ar
nos cortava a respiração, como os aeronautas1 cuja ascensão é rápida
demais. Mas se eles experimentam um frio proporcional à medida que
sobem nas camadas atmosféricas, sofríamos de um efeito absolutamen-
te oposto. O calor aumentava de forma inquietante e certamente chega-
ria aos quarenta graus.
O que significava tal mudança? Até então os fatos haviam dado ra-
zão às teorias de Davy e Lidenbrock. Até então as condições particulares
de rochas refratárias, eletricidade e magnetismo haviam modificado as
leis gerais da natureza, nos proporcionando uma temperatura modera-
da, pois a teoria do fogo central permanecia, ao meu ver, a única expli-
cável. Iríamos então regressar para um ambiente onde esses fenômenos
ocorriam com todo o seu rigor e em que o calor reduzia as rochas a um
estado de completa fusão? Temia isso e falei para o professor:
— Se não formos afogados ou esmagados, se não morrermos de
fome, ainda nos resta a chance de sermos queimados vivos.
Ele se contentou em dar de ombros e voltou às suas reflexões.

Viagem ao Centro da Terra 325


Uma hora se passou e, exceto por um ligeiro aumento da tempera-
tura, nenhum incidente modificou nossa situação. Finalmente meu tio
rompeu o silêncio.
— Vejamos — disse ele — temos que tomar uma decisão.
— Tomar uma decisão? — repliquei.
— Sim. Devemos repor nossas forças. Se nós tentarmos poupar es-
sas sobras de comida para prolongar nossa existência por algumas ho-
ras, seremos fracos até o fim.
— Sim, até o fim, que não demora a chegar.
— Oras! Caso se apresente uma chance de salvação, que necessita
de um momento de ação, onde encontraremos forças para agir, se nos
deixarmos enfraquecer pela inanição?
— Ah! Meu tio, com este pedaço de carne devorado, o que nos
resta?
— Nada, Axel, nada. Mas por acaso ele irá te alimentar mais se
comê-lo com os olhos? Você está raciocinando como um homem sem
vontade, como um ser sem energia!
— Você não está desesperado então? — exclamei irritado.
— Não! — respondeu firmemente o professor.
— O quê?! Você ainda acredita em alguma chance de salvação?
— Sim! Certamente sim! E enquanto o coração bater, enquanto sua
carne palpitar, não admito que um ser dotado de vontade dê lugar ao
desespero.
— Que palavras! O homem que as pronunciava em tais circunstân-
cias certamente era de um caráter pouco comum.
— Enfim — disse — o que pretende fazer?
— Comer o que sobrou de comida até a última migalha e recuperar
as nossas forças perdidas. Esta refeição também será a nossa última! Mas
pelo menos, ao invés de ficarmos exaustos, seremos homens novamente.
— Pois bem! Devoremos! — exclamei.
Meu tio pegou o pedaço de carne e os poucos biscoitos que es-
caparam do naufrágio. Ele fez três porções iguais e as distribuiu. Isso
rendeu cerca de meio quilo de alimento para cada. O professor comia
avidamente, com uma espécie de exaltação febril. Eu, sem prazer, ape-
sar da fome, e quase com desgosto. Hans, tranquila e moderadamente,
mastigando sem barulho os pedacinhos e saboreando-os com a calma

Viagem ao Centro da Terra 326


de um homem que não se aflige com as preocupações do futuro. Ele ha-
via, fuçando bem, encontrado um cantil meio cheio de genebra. Ele nos
ofereceu e esse licor benéfico teve a força para me reanimar um pouco.
— Förträfflig! — disse Hans, bebendo sua parte.
— Excelente! — repetiu meu tio.
Eu havia recuperado alguma esperança. Mas a nossa última refei-
ção acabara de terminar. Eram, então, cinco da manhã.
O homem é feito de tal forma que sua saúde é um efeito puramente
negativo. Uma vez que a necessidade de comer é satisfeita, é difícil ima-
ginar os horrores da fome. É necessário vivenciá-los para compreendê-
-los. Assim, ao sair de um longo jejum, algumas mordidas de biscoito e
carne triunfaram sobre nossas dores do passado.
Contudo, após essa refeição, todos foram levados por suas refle-
xões. O que Hans estava pensando, esse homem do extremo Ociden-
te, dominado pela resignação fatalista dos Orientais? De minha parte,
meus pensamentos eram feitos de memórias, e elas me levaram de volta
para a superfície deste globo que eu nunca deveria ter deixado. A casa
da Königstrasse, minha pobre Graüben e a bondosa Martha passaram
como visões diante de meus olhos e, nos estrondos lúgubres que percor-
riam o maciço, pensei ter ouvido o barulho das cidades da Terra.
Quanto ao meu tio, sempre em serviço, com a tocha em mãos, ele
examinava com atenção a natureza dos terrenos. Ele buscava reconhe-
cer sua situação pela observação das camadas sobrepostas. Esse cálculo,
ou melhor, essa estimativa, só poderia ser muito aproximativa. Mas um
sábio é sempre um sábio, quando consegue manter sua compostura, e
certamente o Professor Lidenbrock possuía essa qualidade em um grau
pouco ordinário.
Eu o ouvi sussurrar palavras da ciência geológica. Eu as compreen-
dia, e, sem querer, me interessava neste estudo supremo.
— Granito eruptivo — disse ele — ainda estamos no período pri-
mitivo. Mas vamos subir! Estamos subindo! Quem sabe?
Quem sabe? Ele ainda tinha esperanças. Com as mãos, tateou a
parede vertical e, alguns instantes depois, prosseguiu assim:
— Aqui estão os gnaisses! Aqui os micaxistos! Bom! Em breve vi-
rão os terrenos de transição, e então…

Viagem ao Centro da Terra 327


O que o professor queria dizer? Poderia ele medir a espessura da
crosta terrestre suspensa sobre nossas cabeças? Poderia ele de alguma
maneira fazer esse cálculo? Não. Faltava-lhe o manômetro, e nenhuma
estimativa poderia substituí-lo.
Enquanto isso, a temperatura aumentou em uma grande proporção
e me senti banhado em meio a uma atmosfera escaldante. Só conseguia
compará-la com o calor emitido pelas fornalhas de uma fundição na
hora do derretimento dos metais. Pouco a pouco, Hans, meu tio e eu
tivemos que tirar nossos paletós e nossos coletes. A menor vestimenta
tornava-se uma causa de desconforto, para não dizer sofrimento.
— Estamos subindo para uma fornalha incandescente? — exclamei
no momento que o calor redobrava.
— Não — respondeu meu tio — é impossível! É impossível!
— No entanto — disse tateando a parede — essa muralha está quei-
mando!
No momento que pronunciei essas palavras, minha mão tocou na
água e tive de retirá-la o mais rápido possível.
— A água está fervendo! — exclamei.
O professor, dessa vez, respondeu apenas com um gesto de cólera.
E, então, um invencível pavor se apoderou de meu cérebro e nunca
mais o deixou. Tive a sensação de que uma catástrofe se aproximava, tal
que a imaginação mais ousada não poderia tê-la concebido. Uma ideia,
a princípio vaga, transformou-se em certeza em minha mente. Eu a re-
pelia, mas ela voltava com obstinação. Não ousei formulá-la. No entan-
to, algumas observações involuntárias definiram minha convicção. Na
luz duvidosa da tocha, notei movimentos desordenados nas camadas
graníticas. Evidentemente, um fenômeno, no qual a eletricidade tinha
um papel a desempenhar, seria produzido. Além desse calor excessivo e
dessa água borbulhante… Decidi observar a bússola.
Ela estava enlouquecida!

1- São pilotos de aeronaves como balões e dirigíveis.

Viagem ao Centro da Terra 328


Capítulo 43
UMA ERUPÇÃO
43. UMA ERUPÇÃO

Sim, enlouquecida! A agulha saltava de um polo a outro com brus-


cos solavancos, percorrendo todos os pontos do mostrador e girando,
como se tivesse sido acometida pela vertigem.
Eu sabia bem que, de acordo com as teorias mais aceitas, a crosta
mineral do globo, nunca está em estado de repouso absoluto. As modifi-
cações provocadas pela decomposição das matérias internas, a agitação
proveniente das grandes correntes líquidas, a ação do magnetismo, ten-
dem a abalá-la incessantemente, ainda que os seres espalhados por sua
superfície não suspeitam da sua agitação. Portanto, esse fenômeno não
teria me assustado em outra situação, ou pelo menos não teria gerado
uma ideia terrível em minha mente.
Mas outros fatos, certos detalhes sui generis1, não puderam me
enganar por muito tempo. As detonações se multiplicavam com uma
intensidade assustadora. Só conseguia compará-las ao barulho de um
grande número de carroças sendo arrastadas rapidamente sobre a rua.
Era um trovão contínuo.
Além disso, a bússola enlouquecida, abalada por fenômenos elé-
tricos, confirmava minha opinião. A crosta mineral ameaçava se rom-
per, os maciços graníticos se juntarem, a fissura se tampar, o vazio se
preencher e nós, pobres átomos, seríamos esmagados nesse formidável
abraço.
— Meu tio, meu tio! — exclamei — Estamos perdidos!
— Qual é este novo terror? — respondeu com uma calma surpre-
endente — O que você tem?
— O que eu tenho?! Observe essas muralhas se agitando, esse ma-
ciço se deslocando, esse calor tórrido, essa água que borbulha, esse va-
por que se expeça, essa agulha louca, todos os indícios de um terremoto!
Meu tio balançou suavemente a cabeça.
— Um terremoto? — disse ele.
— Sim!
— Meu rapaz, acho que você está enganado!
— Como?! Você não reconhece esses sintomas?

Viagem ao Centro da Terra 331


— De um terremoto? Não! Espero mais do que isso!
— O que você quer dizer?
— Uma erupção, Axel.
— Uma erupção! — disse — Estamos na chaminé de um vulcão
ativo?!
— É o que penso — disse o professor sorrindo. — E essa é a melhor
coisa que poderia nos acontecer!
A melhor coisa! Então meu tio ficou louco? O que significam essas
palavras? Por que essa calma e esse sorriso?
— Como? — exclamei — Nós então fomos pegos por uma erupção!
O destino nos jogou no caminho da lava incandescente, das rochas em
chamas, das águas borbulhantes, de todas as matérias eruptivas. Vamos
ser empurrados, expulsos, atirados, vomitados, lançados ao ar com os
quartos de rochas, as chuvas de cinzas e de escórias, em um turbilhão de
chamas e isso é a melhor coisa que poderia nos acontecer?
— Sim — respondeu o professor me olhando por cima de seus ócu-
los — pois é a única chance que temos de voltar para a superfície da
Terra!
Serei rápido sobre as mil ideias que passaram pelo meu cérebro.
Meu tio tinha razão, absoluta razão, e nunca me pareceu mais audacioso
e convencido do que nesse momento, onde esperava e calculava com
calma as chances de uma erupção.
Enquanto isso, continuávamos subindo. A noite passou nesse mo-
vimento ascendente. Os estrondos ao redor redobraram. Eu estava qua-
se sufocado, pensei que estava chegando a minha hora final, mas a ima-
ginação é tão bizarra que me entreguei a uma pesquisa verdadeiramente
infantil. Mas eu me submeti aos meus pensamentos, não os dominava.
Era evidente que estávamos sendo arremessados por uma força
eruptiva. Sob a jangada havia água borbulhando e, sob essas águas, toda
uma massa de lava, um agregado de rochas que, no cume da cratera,
se dispersará para todos os lados. Então estávamos na chaminé de um
vulcão. Não há dúvidas quanto a isso.
Mas desta vez, ao invés do Sneffels, um vulcão inativo, se tratava de
um vulcão em plena atividade. Então, me perguntava qual poderia ser
essa montanha e em que parte do mundo seríamos expelidos.

Viagem ao Centro da Terra 332


Nas regiões setentrionais, não restavam dúvidas. Antes de enlou-
quecer, a bússola nunca havia variado quanto a esse respeito. Do Cabo
Saknussemm, fomos arrastados diretamente para o norte por centenas
de quilômetros. Ora, teríamos voltado para a Islândia? Seríamos expeli-
dos pela cratera do Hekla2 ou por algum dos outros sete montes ignívo-
mos da ilha? Em um raio de dois mil quilômetros a oeste, só pude ver,
nesse paralelo, os vulcões pouco conhecidos da costa noroeste da Amé-
rica. No leste, só havia um, sob o grau de latitude oitenta, o Esk, na ilha
de Jan Mayen, não muito longe de Spitsbergen. É certo que não faltavam
crateras e que elas eram espaçosas o suficiente para vomitar um exército
inteiro! Mas qual seria nossa saída era o que eu tentava adivinhar.
Perto da manhã, o movimento ascendente se acelerou. Se o calor
aumentava, em vez de diminuir, ao nos aproximarmos da superfície do
globo, era porque estava bastante localizado e devido à influência vul-
cânica. Nosso tipo de locomoção não deixava mais dúvidas em minha
mente. Uma força enorme, uma força de várias centenas de atmosferas,
produzidas pelos vários vapores acumulados no seio da Terra, nos im-
pelia irreprimivelmente, mas nos expunha a perigos inumeráveis.
Logo, alguns reflexos amarelados penetraram a galeria vertical que
se alargava. Vi à direita e à esquerda corredores profundos semelhantes
a imensos túneis dos quais escapavam espessos vapores. Línguas de fogo
lambiam as paredes radiantes.
— Veja! Veja, meu tio! — exclamei.
— Bem, são chamas sulfurosas3. Nada mais natural em uma erup-
ção.
— Mas e se elas nos envolverem?
— Elas não vão nos envolver.
— Mas e se nós sufocarmos?
— Não vamos sufocar. A galeria está se alargando e, se necessário,
nós abandonaremos a jangada para nos abrigarmos em alguma fenda.
— E a água?! A água subindo?!
— Não há mais água, Axel, mas uma espécie de pasta de lava que
nos ergue com ela até o orifício da cratera.
A coluna líquida havia efetivamente desaparecido para dar lugar a
um material eruptivo bastante denso, embora borbulhante. A tempera-
tura se tornava insustentável, e um termômetro exposto a essa atmos-

Viagem ao Centro da Terra 333


fera teria marcado mais de setenta graus! O suor me inundava. Sem a
rapidez da subida, certamente teríamos sido sufocados.
No entanto, o professor não deu seguimento à sua proposta de
abandonar a jangada, e fez bem. Essas poucas vigas mal unidas ofere-
ciam uma superfície sólida, um ponto de apoio que nos faltaria em qual-
quer outro lugar.
Por volta das oito da manhã, um novo incidente foi produzido pela
primeira vez. O movimento ascendente cessou repentinamente. A jan-
gada permaneceu absolutamente imóvel.
— O que foi isso? — perguntei, abalado por essa parada súbita
como um choque.
— Uma parada — respondeu meu tio.
— A erupção está se acalmando?
— Espero muito que não.
Me levantei. Tentei ver ao meu redor. Talvez a jangada, presa por
uma saliência de rocha, tenha oferecido resistência momentânea à mas-
sa eruptiva. Nesse caso, era necessário apressar-se para soltá-la o mais
rápido possível.
Mas não havia nada. A própria coluna de cinzas, escórias e detritos
pedregosos havia parado de subir.
— A erupção está parando? — exclamei.
— Ah! — disse o meu tio com os dentes cerrados — Você teme
isso, meu rapaz, mas fique tranquilo, esse momento de calma não deve
se prolongar. Já se passaram cinco minutos e em pouco tempo retoma-
remos a nossa subida em direção ao orifício da cratera.
O professor, ao falar isso, não parava de consultar seu cronômetro,
e ele ainda teria razão de seu prognóstico. Logo, a jangada retomou seu
movimento rápido e desordenado que durou cerca de dois minutos e
então, foi parando novamente.
— Bem — disse meu tio, observando a hora — em dez minutos ela
retomará seu curso.
— Dez minutos?
— Sim. Estamos lidando com um vulcão cuja erupção é intermi-
tente, ele nos deixa respirar com ele.
Nada era mais verdadeiro. No minuto designado fomos lançados
novamente com extrema rapidez. Era necessário agarrar as vigas para
não ser jogado para fora da jangada. E então, o impulso parou.

Viagem ao Centro da Terra 334


Desde então, tenho refletido sobre esse fenômeno singular sem en-
contrar uma explicação satisfatória. Todavia, me parece evidente que
não ocupávamos a chaminé principal do vulcão, mas sim um conduto
acessório, onde se fazia sentir um efeito de reação.
Quantas vezes se repetiu essa manobra, eu não poderia dizer. Tudo
que poderia dizer é que a cada retomada de movimento, erámos lan-
çados com força crescente e como se carregados por um projétil de
verdade. Durante os instantes de parada, sufocávamos. Durante os mo-
mentos de projeção, o ar quente me cortava a respiração. Pensei por
um momento no prazer de me encontrar repentinamente nas regiões
hiperbóreas4 com um frio de trinta graus abaixo de zero. Minha imagi-
nação superexcitada vagou pelas planícies de neve das regiões árticas e
eu aspirava pelo momento em que rolaria pelos tapetes de gelo do Polo!
Além disso, pouco a pouco, minha cabeça, quebrada pelas repentinas
sacudidas, se perdeu. Sem os braços de Hans, mais de uma vez eu teria
esmagado o meu crânio contra a parede de granito.
Portanto, não guardei nenhuma memória precisa do que se passou
nas horas seguintes. Tenho a sensação confusa de detonações contínuas,
da agitação do maciço, de um movimento giratório que se apoderou da
jangada. Ela ondulou em ondas de lava, ao meio de uma chuva de cin-
zas. As chamas rugiam a envolvendo. Um furacão, que parecia ter vindo
de um imenso ventilador, ativou os incêndios subterrâneos. Pela últi-
ma vez, o rosto de Hans apareceu-me no reflexo do incêndio e não tive
outro sentimento além do pavor sinistro dos condenados amarrados à
boca de um canhão, no momento em que o tiro é disparado e dispersa
seus membros pelos ares.

1- A expressão em latim, muito frequente em textos científicos, é usada para definir algo único
ou não enquadrado em classificações conhecidas. Pensando bem, grande parte de nossa
jornada merece o termo.

2- Um dos vulcões mais ativos da Islândia.

Viagem ao Centro da Terra 335


3- O sulfor, ou enxofre, é um elemento químico de coloração amarela geralmente encontrado
em estado sólido. É muito citado em sermões religiosos ao condenar pecadores ao "fogo e
enxofre".

4- Uma região da mitologia grega ao norte do mundo.

Viagem ao Centro da Terra 336


Capítulo 44
DE VOLTA SOBRE A TERRA
44. DE VOLTA SOBRE A TERRA

Quando reabri os olhos, senti a mão forte do guia me segurando


pela cintura. Com a outra mão ele sustentava meu tio. Eu não estava
gravemente ferido, mas um pouco abatido por uma dor generalizada.
Me vi deitado sobre a encosta de uma montanha, a dois passos de um
abismo no qual o menor movimento teria me derrubado. Hans havia
me salvado da morte no momento em que rolei pelos flancos da cratera.
— Onde estamos? — perguntou meu tio, que me pareceu muito
irritado por estar de volta sobre a terra.
O caçador deu de ombros em sinal de ignorância.
— Na Islândia? — falei.
— Nej — respondeu Hans.
— Como? Não? — exclamou o professor.
— Hans está enganado — falei me levantando.
Depois das inúmeras surpresas dessa viagem, uma estupefação ain-
da nos era reservada. Eu esperava ver um cone coberto de neves eternas,
em meio aos áridos desertos das regiões setentrionais, sob os pálidos
raios de um céu polar, para além das latitudes mais elevadas e, ao con-
trário de todas as previsões, meu tio, o islandês e eu estávamos estendi-
dos em meio ao flanco de uma montanha calcinada pelos ardores do Sol
que nos devorava com o seu fogo.
Não queria acreditar no que via, mas o cozimento do qual meu cor-
po era objeto não deixava nenhuma dúvida. Havíamos saído seminus
da cratera, e o astro radiante, do qual nada pedíamos há dois meses, se
mostrava abundante em luz e calor, e derramava sobre nós uma esplên-
dida irradiação.
Quando meus olhos se acostumaram com essa claridade que ha-
viam perdido o hábito, usei-os para retificar os erros de minha imagi-
nação. Queria, pelo menos, estar em Spitsbergen e não estava disposto a
admitir o contrário tão facilmente.
O professor, tomando a primeira palavra, disse:
— De fato, isso não parece a Islândia.
— Talvez a ilha de Jan Mayen? — respondi.

Viagem ao Centro da Terra 339


— Longe disso, meu rapaz. Este não é um vulcão do norte com suas
colinas de granito e calota de neve.
— Mas…
— Olhe, Axel, olhe!
Acima de nossas cabeças, a cento e cinquenta metros no máximo,
abria-se a cratera de um vulcão, por onde escapava, a cada quarto de
hora, com uma detonação muito forte, uma alta coluna de chamas, mes-
clada com pedras-pomes, cinzas e lava. Senti as convulsões da monta-
nha, que respirava como uma baleia e que, de tempos em tempos, ex-
pelia fogo e ar de seus enormes respiradouros. Abaixo, ao longo de uma
encosta bastante íngreme, os lençóis de material eruptivo se estendiam
a uma profundidade de duzentos a duzentos e cinquenta metros, o que
mal dava ao vulcão uma altura de quinhentos metros. Sua base desapa-
recia num verdadeiro cesto de árvores verdes, entre as quais pude dis-
tinguir oliveiras, figueiras e vinhas carregadas de cachos vermelhos.

Viagem ao Centro da Terra 340


Não era o aspecto das regiões árticas, era preciso admitir.
Quando o olhar cruzava esse recinto verdejante, rapidamente vinha
a se perder nas águas de um admirável mar ou lago, o que fazia desta
terra encantada uma ilha de poucos quilômetros de largura. Na direção
do levante1, se via um pequeno porto precedido por algumas casas, e
no qual os navios balançavam de uma forma particular nas ondulações
de ondas azuis. Mais além, grupos de ilhotas se projetavam na planície
líquida e eram tão numerosas que pareciam um vasto formigueiro. Na
direção do poente, costas distantes se arredondavam no horizonte, em
algumas havia montanhas azuis de uma conformação harmoniosa, nas
outras, mais distantes, apareciam cones prodigiosamente elevados, que
sob os cumes se agitava uma nuvem de fumaça. Ao norte, uma imensa
extensão de água cintilava sobre os raios solares, mostrando aqui e ali
a extremidade de um mastro ou a convexidade de uma vela inflada ao
vento.
De tão imprevisto, esse espetáculo centuplicou ainda mais as ma-
ravilhosas belezas.
— Onde estamos? Onde estamos? — repetia a meia voz.
Hans fechava os olhos com indiferença e meu tio encarava sem
compreender.
— Qualquer que seja essa montanha — disse ele por fim — faz um
tanto de calor aqui. As explosões ainda não terminaram e realmente
não valeria a pena sair de uma erupção para levar um pedaço de rocha
na cabeça. Vamos descer e então saberemos com o que temos de lidar.
Além do mais, estou morrendo de fome e de sede.
Decididamente, o professor não tinha um espírito contemplativo.
Quanto a mim, esquecendo das necessidades e o cansaço, poderia ter
ficado horas neste lugar, mas tive de seguir meus companheiros.
O talude do vulcão oferecia declives muito íngremes. Deslizávamos
em verdadeiros poços de cinzas, evitando os riachos de lava que se es-
tendiam como serpentes de fogo. Ao descer, eu falava com volubilidade,
pois minha imaginação estava cheia demais para não deixar as palavras
escaparem.
— Estamos na Ásia — exclamei — nas costas da Índia, nas Ilhas
Malaias, em plena Oceania! Atravessamos metade do globo para chegar
às antípodas da Europa.

Viagem ao Centro da Terra 341


— Mas e a bússola? — respondeu meu tio.
— Sim! A bússola! — disse com um ar envergonhado — De acordo
com ela, nós andamos sempre para o Norte.
— Então ela mentiu?
— Oh! Mentiu!
— A menos que este seja o Polo Norte!
— O polo! Não, mas…
Havia um fato inexplicável ali. Eu não sabia o que imaginar.
Enquanto isso, aproximamo-nos daquela vegetação que dava pra-
zer de ver. A fome me atormentava e a sede também. Felizmente, de-
pois de duas horas de caminhada, uma bela paisagem se abriu diante
de nossos olhos, inteiramente coberta de oliveiras, romãs e vinhas que
pareciam pertencer ao mundo todo. Aliás, em nossa miséria, não éra-
mos gente para olhar de tão perto. Que prazer foi espremer esses frutos
saborosos em nossos lábios e morder essas uvas vermelhas! Não mui-
to longe, na grama, sob a sombra deliciosa das árvores, descobri uma
nascente de água fresca, onde nosso rosto e nossas mãos mergulharam
voluptuosamente.
Enquanto cada um de nós se abandonava, assim, a todas as doçuras
do repouso, uma criança apareceu entre dois tufos de oliveiras.
— Ah! — exclamei — Um habitante deste feliz país!
Ele era uma espécie de pobrezinho, vestido muito miseravelmente,
bastante enfermiço e a que a nossa aparência parecia assustar muito. De
fato, seminus e com nossas barbas incultas, parecíamos muito mal e, ao
menos que este fosse um país de ladrões, estávamos feito de maneira a
assustar seus habitantes.
No momento em que o menino estava prestes a fugir, Hans correu
atrás dele e o trouxe de volta, apesar de seus gritos e chutes.
Meu tio começou a tranquilizá-lo da melhor maneira que pôde e
lhe disse em bom alemão:
— Qual o nome desta montanha, meu amiguinho?
A criança não respondeu.
— Bem — disse meu tio — não estamos na Alemanha.
Ele repetiu a mesma pergunta em inglês.
A criança também não respondeu. Fiquei muito intrigado.
— Será que ele é mudo?! — gritou o professor que, muito orgulho-
so de seu poliglotismo, repetiu a mesma pergunta em francês.

Viagem ao Centro da Terra 342


Mesmo silêncio da criança.
— Então, vamos tentar o italiano. — retomou meu tio e disse nessa
língua:
— Dove noi siamo?
— Sim! Onde estamos?! — repeti impaciente.
E a criança não respondeu.
— Ora essa! Você vai responder! — gritou meu tio que, começando
a ser vencido pela raiva, sacudiu a criança pelas orelhas. Come si noma
questa isola?
— Stromboli — que escapou das mãos de Hans e alcançou a planí-
cie por entre as oliveiras.
Mal pensamos nele! O Stromboli! Que efeito esse nome inespera-
do produziu na minha imaginação! Estávamos em pleno Mediterrâneo,
no meio do arquipélago das Eólias da memória mitológica, no antigo
Strongyle, onde Éolo2 mantinha acorrentado os ventos e as tempesta-
des. E aquelas montanhas azuis que se arredondavam no levante, eram
as montanhas da Calábria! E esse vulcão elevado no horizonte sul, o
Etna, o próprio Etna, o selvagem!
— Stromboli! Stromboli! — eu repetia.
Meu tio me acompanhava com seus gestos e palavras. Parecíamos
estar cantando em coro!
Ah! Que viagem! Que maravilhosa viagem! Entramos por um vul-
cão e saímos por outro, que estava localizado a mais de cinco mil quilô-
metros do Sneffels, daquela árida terra da Islândia, deixada aos confins
do mundo. O acaso dessa expedição nos havia transportado ao seio das
regiões mais harmoniosas da Terra! Havíamos abandonado a região das
neves eternas por uma de vegetação infinita e deixamos a névoa acin-
zentada que pairava sobre nossas cabeças nas zonas gélidas para retor-
nar ao céu azul da Sicília!
Depois de uma deliciosa refeição composta por frutas e água fresca,
retomamos o caminho para chegar ao porto de Stromboli. Dizer como
havíamos chegado à ilha não nos pareceu prudente: o espírito supersti-
cioso dos italianos não teria deixado de ver em nós demônios vomita-
dos dos seios do inferno. Então, tivemos que nos resignar a passar por
humildes náufragos. Era menos glorioso, mas mais seguro.

Viagem ao Centro da Terra 343


Ao longo do caminho, ouvi meu tio sussurrar:
— Mas a bússola! A bússola, que apontava para o norte! Como ex-
plicar esse fato?
— Oras! — disse com um grande ar de desdém — Não temos de
explicá-lo, é mais fácil.
— Que exemplo! Um professor do Johannaeum que não consegue
encontrar a razão de um fenômeno cósmico, seria uma vergonha!
Falando assim, meu tio, seminu, com a bolsa de couro na cintura e
ajeitando os óculos no nariz, voltou a ser o terrível professor de mine-
ralogia.
Uma hora depois de termos deixado o bosque das oliveiras, che-
gamos ao porto de San Vincenzo, Hans reivindicou seu prêmio por sua
décima terceira semana de serviço, que lhe foi acertado com calorosos
apertos de mão.
Nesse instante, se ele não compartilhou de nossa emoção muito
natural, ao menos se entregou a um movimento de expansão extraor-
dinário.
Com a ponta dos dedos, apertou levemente as nossas mãos e se pôs
a sorrir.

1- O levante é um termo geológico antiquado que se refere a região do leste do Mediterrâneo.

2- Era uma figura mitológica grega, o guardião dos ventos.

Viagem ao Centro da Terra 344


Capítulo 45
FÄRVAL
45. FÄRVAL

Aqui está a conclusão de uma narrativa na qual recusarão acreditar


aqueles habituados a não se surpreenderem com nada. Mas eu sou um
couraçado de batalha contra a incredulidade humana.
Fomos recebidos pelos pescadores de Stromboli com as atenções
dadas aos náufragos. Eles nos deram roupas e alimentos. Após quarenta
e oito horas de espera, no dia 31 de Agosto, um pequeno speronare1 nos
conduziu a Messina, onde alguns dias de repouso nos livraram de todo
nosso cansaço.
Na sexta-feira, 4 de Setembro, embarcamos no Volturne, um dos
navios postais dos mensageiros imperiais da França, e, três dias depois,
desembarcamos em Marselha, tendo apenas uma preocupação em men-
te, a nossa maldita bússola. Esse fato inexplicável ainda me incomodava
seriamente. Na noite de 9 de Setembro, chegamos a Hamburgo.
O quão espantada ficou Martha e quão alegre ficou Graüben re-
nuncio de descrever.
— Agora que você é um herói — disse minha querida noiva — não
precisa mais me deixar, Axel.
Olhei para ela. Ela estava chorando enquanto sorria.
Deixo a imaginação se o retorno do Professor Lidenbrock causou
sensação à Hamburgo. Graças às indiscrições de Martha, a notícia de
sua partida para o centro da Terra se espalhou pelo mundo inteiro. Nin-
guém queria acreditar, e, quando o viram novamente, também não acre-
ditaram.
No entanto, a presença de Hans e várias informações vindas da Is-
lândia modificaram pouco a pouco a opinião pública.
E então, meu tio se tornou um grande homem, e eu, o sobrinho
de um grande homem, o que já é alguma coisa. Hamburgo deu uma
festa em nossa homenagem. Uma sessão pública foi realizada no Johan-
naeum, onde o professor relatou sua expedição e omitiu apenas os fatos
relativos à bússola. No mesmo dia, ele depositou nos arquivos da cidade
o documento de Saknussemm, e expressou seu profundo pesar pelas
circunstâncias, mais fortes que sua vontade, não terem permitido seguir

Viagem ao Centro da Terra 347


até o centro da Terra as pegadas do viajante islandês. Ele foi modesto em
sua glória e sua reputação aumentou.
Tanta honra devia necessariamente despertar invejosos. Ele tinha
alguns, e, como suas teorias, apoiadas sobre certos fatos, contradiziam
os sistemas da ciência sobre a questão do fogo central, ele sustentou,
pela pena e pela palavra, notáveis discussões com sábios de todos os
países.
De minha parte, não posso admitir sua teoria do resfriamento: ape-
sar do que vi, acredito e sempre acreditarei na teoria do calor central.
Mas admito que certas circunstâncias ainda mal definidas podem mo-
dificar esta lei sob a ação de fenômenos naturais.
No momento em que essas questões estavam palpitando, meu tio
teve um verdadeiro pesar. Hans, apesar de suas súplicas, havia deixado
Hamburgo. O homem a quem devíamos tudo não estava disposto a nos
deixar pagar nossa dívida com ele. Ele foi tomado pela nostalgia da Is-
lândia.
— Färval — disse ele um dia e com essa simples palavra de adeus,
partiu para Reykjavik, aonde chegou feliz.
Estávamos particularmente apegados ao nosso bravo caçador de
êider. Sua ausência nunca o fará ser esquecido por aqueles cuja vida sal-
vou e certamente não morrerei sem revê-lo uma última vez.
Para concluir, devo acrescentar que esta Viagem ao Centro da Terra
causou uma enorme sensação pelo mundo. Foi impresso e traduzido
para todos os idiomas. Os jornais mais conceituados disputavam pe-
los principais episódios, que foram comentados, discutidos, atacados e
apoiados com igual convicção no campo dos crentes e incrédulos. Coisa
rara! Meu tio desfrutou durante sua vida toda a glória que adquiriu e até
o senhor Barnum, ofereceu para “exibi-lo” por um preço muito alto nos
Estados da União.
Mas um desagrado, digamos até um tormento, se infiltrou em meio
a essa glória. Um fato permaneceu inexplicável, o da bússola. Ora, para
um sábio, esse fenômeno inexplicável tornou-se um suplício para a in-
teligência. O céu reservava ao meu tio completa felicidade.
Um dia, enquanto guardava uma coleção de minerais em seu gabi-
nete, vi essa famosa bússola e comecei a observá-la.
Durante seis meses ela estava lá, em seu canto, sem suspeitar do
aborrecimento que causava.

Viagem ao Centro da Terra 348


De repente, qual foi meu espanto! Soltei um grito. O professor veio
correndo.
— O que está havendo? — perguntou.
— Está bússola!
— O que tem?
— Sua agulha indica o sul e não o norte!
— O que você está dizendo?
— Veja! Seus polos estão trocados.
— Trocados?!
Meu tio olhou, comparou e fez a casa tremer com um salto soberbo.
Que luz iluminou a sua mente e a minha!
— Mas então — disse assim que recuperou a fala — depois de nossa
chegada ao Cabo Saknussemm, a agulha desta maldita bússola, apontou
para o sul em vez do norte?
— Evidentemente.
— Nosso erro pode então ser explicado. Mas que fenômeno pode-
ria ter produzido essa inversão dos polos?
— Nada mais simples.
— Explique-se, meu rapaz.
— Durante a tempestade, sobre o Mar Lidenbrock, aquela bola de
fogo que imantou o ferro da jangada simplesmente desorientou nossa
bússola!
— Ah! — exclamou o professor, rindo alto. — Então foi um truque
de eletricidade?
A partir desse dia, meu tio foi o mais feliz dos sábios, e eu, o mais
feliz dos homens, pois minha linda virlandesa, abdicando de sua posição
de pupila, passou a ocupar a casa da Königstrasse na dupla qualidade de
sobrinha e esposa. É inútil acrescentar que seu tio era o ilustre Professor
Otto Lidenbrock, membro correspondente de todas as sociedades cien-
tíficas, geográficas e mineralógicas das cinco partes do mundo.

1- Uma pequena embarcação mercante, utilizada no Mediterrâneo.

Viagem ao Centro da Terra 349


Extras
Pedro Sobreiro
Por Pedro Sobreiro

Nascido em 8 de Fevereiro de 1828, na cidade francesa de Nantes,


Jules Gabriel Verne foi o mais velho dos cinco filhos de Pierre Verne
e Sophie Allote de la Fuÿe. Criado num contexto familiar burguês, o
pequeno Jules tinha a vida encaminhada para seguir uma carreira da
advocacia, tal qual seu pai. Porém, seus olhos não brilhavam para as
leis, sua verdadeira paixão era a escrita.

Como vinha de uma família culta e abastada, Jules – ou Júlio,


como é conhecido no Brasil – cresceu em um meio no qual a
poesia ocasional era incentivada, já que os versos eram recitados
em aniversários, casamentos e reuniões de família como forma de
mostrar o amor pelos amigos e parentes. Por isso, desde bem novinho,
ele escrevia versinhos para treinar. Inclusive, a partir dos 12 anos de
idade, o jovem passou a carregar um lápis no bolso para todo lugar
que fosse para que pudesse escrever sempre que possível.

Viagem ao Centro da Terra 353


E foi justamente na adolescência que ele começou a desenvolver
seu texto em um caderno de poesia. Aos 15 anos, o jovem poeta
trabalhava do lirismo ao romance, flertava com a sátira, navegando
pelos mais variados estilos literários possíveis de se adaptar a poesia.
Mesmo depois de se tornar um escritor consagrado, seguiu escrevendo
suas poesias nesses cadernos, que só viriam a ser publicados para o
mundo em 1989.

Já a paixão pelas viagens e aventuras vem desde a infância. No


auge de seus 6 anos, o pequeno Júlio Verne vivia cercado por portos
e docas dos rios ao redor de sua casa. Além disso, ele tinha aulas com
a viúva de um capitão que contava histórias das aventuras do marido
em alto mar. Diz a lenda que ele aprontava na infância, chegando até
a tentar fugir de casa aos 11 anos, quando planejou embarcar como
clandestino em uma escuna de três mastros para chegar à Índia, onde
compraria um colar de diamantes para presentear Carolina Tronson,
uma prima por quem ele havia desenvolvido um certo interesse.
Infelizmente, o pai do garoto conseguiu interceptar o menino antes
que ele pudesse concluir seu plano. Diante da surra que levou e do
posterior interesse não correspondido da prima, Júlio, supostamente,
teria prometido viajar apenas pelo mundo dos sonhos. No entanto,
essa história carece de mais fontes, então é tomada mais como uma
lenda que cerca o autor.

Na adolescência, estudou retórica e filosofia no Liceu de Nantes,


onde teve contato com mitologias, História e Ciência, além de
histórias fantásticas da antiguidade, aumentando ainda mais a paixão
do jovem pelas viagens e pelos barcos. Posteriormente, estudaria
Direito em Nantes por influência do pai. Só que ele não se enxergava
trabalhando como advogado ou procurador. Mesmo assim, precisou
se mudar para Paris para fazer os exames finais do curso. Na Cidade
Luz, o jovem começa a se interessar pelo teatro e pela vocação artística
que Paris exercia. Diante de seu sonho, Júlio começa a publicar textos
no periódico Musée des Familles, dirigido por Pierre Chevalier, para
complementar a pensão paga pelo pai para os estudos do Direito.
Inspirado pelas obras de Victor Hugo e Alexandre Dumas, Verne
desenvolve suas peças e pequenas óperas baseadas em viagens e

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romance. Quando Dumas tem contato com “Contratos Rompidos”,
fica encantado com o que lê e consegue que a obra seja apresentada no
teatro Lyrique, no Châtelet. E assim começa uma trajetória teatral que
traria fortuna e reconhecimento a Júlio Verne.

Mas a vida do autor no mercado literário tem mesmo uma


guinada quando ele se associa a Pierre-Jules Hetzel, em 1862. Famoso
por ser o editor que publicava as grandes obras de Victor Hugo, Pierre
viu o jovem ser recusado por 15 editores que não viram potencial em
“Viagem Aérea”, uma história de aventura sobre uma viagem de balão
na África. Diferentemente dos outros, Hetzel entendeu que seu amigo
tinha um estilo único de escrita e decidiu publicar seu projeto sob
uma condição: que ele trocasse o nome da obra para “Cinco Semanas
em um Balão”. Júlio Verne aceitou e poucos meses depois, em 31 de
Janeiro de 1863, seu primeiro livro foi publicado. A aventura foi um
sucesso e teve tiragem inicial de 2 mil exemplares. Além do sucesso
de vendas, a história bombou com críticas positivas, que chamavam
atenção para o sarcasmo poderoso de Verne ao tratar aspectos sociais
e uma riqueza de detalhes técnicos, como a geografia dos locais e
as espécies de animais presentes na trama, que faziam os leitores se
questionarem se estavam lendo uma obra de fantasia ou um relato real
de um aventureiro que vivenciou tudo aquilo.

No ano seguinte, em 1864, Hetzel estabeleceu um contrato para


o escritor garantindo que ele entregasse dois livros por ano. Assim,
seguindo a tendência das “Viagens Extraordinárias”, Júlio Verne lançou
“Viagem ao Centro da Terra”, que se tornou um clássico instantâneo
da aventura e da ficção científica. A parceria era tão positiva, que eles
assinaram um novo contrato em 1865, assegurando três obras de Júlio
Verne sendo lançadas anualmente. Em 1866, com a morte de Hetzel, o
filho do editor assumiu a empresa e seguiu com os projetos de Verne.

Viagens Extraordinárias

A série das “Viagens Extraordinárias” tinha como objetivo contar


histórias e promover a Ciência, uma mistura das possibilidades do
mundo real com os conhecimentos científicos da época de forma

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didática, promovendo uma ficção praticamente enciclopédica. Essa
proposta era muito ousada porque precisava unir dois mundos
completamente distintos: o das possibilidades fantásticas do romance
com a realidade e a frieza da Ciência, como Astronomia, Geologia,
Biologia e Geografia, que não abrem margem para erros. Porém,
Júlio Verne demonstrou grande domínio ao lançar obras não apenas
cientificamente corretas, coerentes e muito inspiradas, mas também
visionárias, como “Da Terra à Lua”, “Vinte Mil Léguas Submarinas”,
“A Volta ao Mundo em 80 Dias” e, claro, “Viagem ao Centro da Terra”.

As inspirações de Verne

Como todo grande autor, Júlio Verne tinha suas inspirações.


Além de Victor Hugo e Alexandre Dumas, que ele conheceu e sofreu
influência direta, Verne era apaixonado pelos contos de Edgar Allan
Poe, a quem dedicou um estudo no Musée de Familles, escrito em 1962
e publicado em 1964. Segundo o autor, “Edgar Allan Poe inventou
uma nova forma na literatura; criou um gênero à parte que só poderia
proceder dele mesmo e do qual parece possuir o segredo; pode-se
dizer o chefe de uma escola do misterioso, que ele recuou ao limite do
impossível; ele terá os seus imitadores”.

Outro homem que foi fundamental para os feitos de Verne foi o


fotógrafo Felix Nadar, com quem desenvolveu uma grande amizade.
Nadar era apaixonado pelo balonismo e tinha muitos amigos
cientistas, que foram prontamente apresentados a Verne, que amava
fazer pesquisas e imaginar como seriam outros lugares do mundo.
Após esse contato com os contos de Poe e com o mundo científico de
Felix, Júlio Verne começou a escrever o futuro “Cinco Semanas em
um Balão”, e o resto é história.

A influência de Edgar Allan Poe, porém, é muito mais um gatilho


do que uma ‘cartilha de como escrever’ seguida por Verne. O trabalho
dos contos de horror incentivou Júlio Verne a buscar seu próprio
gênero, por mais estranho e exótico que fosse.

Viagem ao Centro da Terra 356


Já as histórias fantásticas que mantinham um pé no realismo
sofreram grande influência de autores como o inglês Daniel Defoe,
autor do clássico imortal “Robinson Crusoé”, e o irlandês Jonathan
Swift, famoso por “As Viagens de Gulliver”.

No caso específico de “Viagem ao Centro da Terra”, a inspiração


maior veio de “La Terre Avant Le Déluge” (A Terra Antes do Dilúvio),
do cientista e jornalista Louis Figuier, que trazia vários conceitos da
Paleontologia, mostrando um mundo com répteis, plantas e outras
criaturas gigantes.

Influenciados pela Viagem ao Centro da Terra

Com o sucesso do livro e o avanço das tecnologias, “Viagem ao


Centro da Terra” se tornou influência para centenas de produções nas
TVs, cinemas, quadrinhos e por aí vai. Na década de 1960, por exemplo,
quando o rádio ainda estava em alta, a BBC de Londres chamou os
atores Trevor Martin e Nigel Anthony para estrelarem uma série de
sete capítulos baseada na aventura. O sucesso foi tão grande que no
ano seguinte, em 1963, eles convocaram Bernard Horsfall e Jeffrey
Banks para estrelarem uma nova adaptação, mas agora dividida em
oito capítulos. Ao longo dos anos, a BBC voltou a reencenar essa rádio
série, tendo episódios gravados em 1995, 2011, 2012, 2014 e 2017.

Nas televisões, o exemplo mais famoso é uma série animada da


20th Century Studio, a antiga Fox, baseada no livro. Ao longo dos 17
episódios, que foram exibidos de 1967 a 1969, o Professor Lidenbrock
e seu parceiro precisam encontrar uma forma de chegar ao centro da
Terra antes do terrível Conde Saknussemm. Para isso, eles vão seguir
a trilha deixada por um antepassado do Conde, Arne Saknussemm.

Nos quadrinhos, um projeto da Revista Recreio se tornou uma


grande homenagem à obra de Júlio Verne. Na série de quadrinhos
lançada entre 2005 e 2006 chamada “Rock Animal: Aventura no
Centro da Terra”, o Doutor Gema e os outros personagens da franquia
Rock Animal precisam levar os animais de pedra de volta para o

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centro da Terra. Porém, o caminho é muito perigoso e os exploradores
da revista precisarão encontrar um meio de sobreviver e levar os “rock
animal” de volta para casa.

Já nas aventuras do Tio Patinhas, em 1949, e republicada algumas


vezes nos anos seguintes, o médico do Tio Patinhas recomendou a
ele procurar novas aventuras para ficar bem. Tendo explorado
praticamente todos os cantos do mundo, o ricaço de Patópolis entra
em desespero. Então, seus sobrinhos sugerem uma viagem ao centro
da Terra. Chegando lá, eles se deparam com um mundo idêntico ao
descrito por Júlio Verne no livro. E surpreendendo a muitos, eles
acabam encontrando também o Professor Lidenbrock, brincando
com as teorias da conspiração de que Júlio Verne contava histórias
reais, não ficção.

No universo dos super-heróis da DC Comics, Travis Morgan,


também conhecido como o herói Guerreiro, era um piloto da Força
Aérea dos EUA que acabou entrando num buraco no chão do Polo
Norte e foi parar na terra selvagem de Skartaris. Apesar dele achar que
aquele reino estava situado no centro da Terra, acaba descobrindo que
aquela entrada pela qual passou era um portal para outra dimensão.
Segundo o criador do personagem e desse mundo fantástico, Mike
Grell, Skartaris foi uma homenagem à montanha Scartaris, que aponta
o caminho da entrada para o centro da Terra no vulcão Sneffels no
livro “Viagem ao Centro da Terra”. As plantas e animais mostrados
nos quadrinhos também são referências ao livro.

Partindo para os cinemas, a história já ganhou algumas


adaptações. As duas mais famosas são as versões de 1959 e de 2008. O
filme de 1959, dirigido por Henry Levin, estrelado por James Mason
e Patt Boone, trouxe algumas alterações na história original, como na
mudança do nome do protagonista, que foi de Otto Lidenbrock para
Oliver Lindenbrook, Axel virou Alec, além de transferir a história de
Hamburgo, na Alemanha, para Edinburgo, na Escócia. E como todo
filme hollywoodiano, introduziram um vilão caricato e uma jovem
explorada. Apesar das mudanças, o filme teve boas críticas e foi um
sucesso de bilheteria.

Viagem ao Centro da Terra 358


Já a versão de 2008 usou outro artifício para contar a história. Na
trama, Trevor Anderson (Brendan Fraser) e seu sobrinho Sean (Josh
Hutcherson) estão passando um tempo juntos, quando recebem uma
caixa com itens de Max, o irmão falecido de Trevor e pai de Sean.
Quando percebem que as anotações de Max no livro “Viagem ao
Centro da Terra” estão descrevendo eventos geológicos atuais, eles vão
para a Islândia investigar. Chegando lá, contratam uma guia (Anita
Briem) para explorar o Sneffels e acabam seguindo os passos de Otto
Lidenbrock e Axel, descobrindo que a história contada por Júlio Verne
não era ficção. Apesar de ter divergências quanto a história original,
o longa é uma adaptação voltada para um público mais infantil e
foi vendida, na época, com o chamariz da tecnologia 3D, que estava
avançando. As críticas foram mistas, mas o filme conseguiu arrecadar
um valor considerável ao redor do mundo, tanto que rendeu uma
sequência chamada “Viagem 2: A Ilha Misteriosa”, lançada em 2012,
baseada em outras obras de Verne.

Entre essas duas versões mais famosas, houve também um


filme espanhol de 1977, chamado “Viaje al Cientro de la Tierra” ou
“Where Time Began”, que não fez muito sucesso e trouxe um monte
de dinossauros para a história e até mesmo um gorilão ao estilo King
Kong.

Entre 1988 e 1989, uma franquia adolescente estrelada por


Kathy Ireland, chamada “Uma Estranha Em Los Angeles”, chegou
aos cinemas adaptando bem mal a história de “Viagem ao Centro
da Terra”. Na trama, Wanda Saknussemm (Kathy) é uma adolescente
excluída que recebe uma carta do pai desaparecido falando sobre
um país africano. Ela viaja até lá e descobre sobre Atlantis, uma nave
alienígena que caiu diretamente no centro da Terra. A garota vai
investigar e... acaba caindo também. No centro do planeta, descobre
uma civilização morando por lá e passa a ser tratada como um tipo
de alienígena. Então, ela precisa encontrar um meio de escapar para
voltar a sua vida normal.

Se o primeiro filme já não tinha nada a ver com a história do


livro, o segundo, que adotou o título de “Journey To The Center Of

Viagem ao Centro da Terra 359


The Earth”, conseguiu ser ainda pior. A história acompanha um grupo
de jovens explorando a caverna de um vulcão. Quando ele entra em
erupção, a cidade de Atlantis volta a receber visitantes da superfície,
incluindo Wanda Saknussemm. Eles consideram isso uma ameaça
e decidem juntar um exército para tomar a Terra. Assim como o
primeiro capítulo, esse filme foi um fracasso de crítica e bilheteria.

Rumando para filmes melhores, na clássica trilogia “De Volta


Para o Futuro”, o Doutor Emmett Brown, interpretado por Christopher
Lloyd, se tornou cientista por ter crescido como um ávido leitor de
Júlio Verne, em especial de “Viagem ao Centro da Terra”, tanto que
ele diz que tentou cavar um buraco até o centro do globo quando
tinha apenas 12 anos. No terceiro capítulo da saga, é revelado também
que seus dois filhos se chamam Júlio e Verne. Como se não fosse o
bastante, ao longo do filme, ele grava suas iniciais no poço da mina
em que guarda a máquina do tempo, assim como Arne Saknussemm
faz no livro para guiar exploradores que surgissem depois dele. É uma
referência muito sutil que apenas os fãs mais atentos de “Viagem ao
Centro da Terra” pegaram.

Outra produção que bebe direto da fonte deste livro é o fenômeno


da DC, “Aquaman”. Lançado em 2018, o filme é repleto de referências
ao trabalho de Verne. A começar pela sequência de abertura, na
qual o super-herói (Jason Momoa) cita o autor com a frase “coloque
dois navios em mar aberto sem vento ou maré e eles se encontrarão”
enquanto descreve o encontro dos pais. Posteriormente, já próximo
ao clímax do filme, ele encontra sua mãe (Nicole Kidman) em um
reino subterrâneo que é muito similar às descrições do centro da Terra
de Júlio Verne, inclusive trazendo as criaturas marinhas monstruosas
e o clima quente e úmido.

No sucesso de 2021 da Warner, “Godzilla Vs Kong”, parte


fundamental da história é a teoria da Terra Oca, que mostra um
mundo secreto no núcleo do planeta. Segundo o filme, é lá que os
Kaijus vivem, incluindo os antepassados do King Kong. O visual dessa
Terra Oca é baseado no centro da Terra Verniano.

Viagem ao Centro da Terra 360


E fora do mundo do entretenimento, na vida real, as histórias e
engenhocas mirabolantes de Júlio Verne também influenciaram em
muitas invenções e acontecimentos históricos. Não à toa, ele é descrito
por muitos como um grande visionário, chegando até mesmo a ter
seguidores que não apenas acreditam que ele foi um dos pais da Ciência
do século XX, realmente lendo suas obras não como ficção, mas sim
como histórias reais. Só que isso é tema para outra obra do GGAC que
está vindo por aí: “A Mente de Júlio Verne”, que você poderá conferir e
mergulhar a fundo na intrépida e genial mente do autor.

Se um escritor é genial a ponto de exercer influência para outras


mentes geniais e prever fatos históricos, mesmo com obras claramente
fictícias, como “Viagem ao Centro da Terra”, é porque ele conseguiu
se imortalizar no imaginário popular. E esse é Júlio Verne, uma lenda
que conseguiu transportar milhões de pessoas ao longo dos séculos
para lugares fantásticos na África, para o mundo da Lua e até mesmo
para o Centro da Terra.

Viagem ao Centro da Terra 361


Curadores
Nosso muito obrigado aos curadores que toparam
compartilhar essa jornada conosco antes mesmo dela existir.

Adriele Silva - Livingforpages

Amanda Nicole - Eurekamundo

Ana Clara - Anadoroendo

Bruna Costabeber - Umoceanodehistorias

Caio Tonco - Tonco.books

Calixto Neto - Calixto.neto

Douglas Henrique - Literalmente.oficial

Erika Neves - Erikalendo

Felipe Oliveira - Eng.felipeautor

Isabella Oliveira - Tudoelivros

Júlia Costa - Atrasdaspaginas

Letícia Ribeiro - Vemlecomigo

Michele Lima - Nanossaestante

Renata Martins - Inparadisium

Vanessa Severino - Blitz_literaria

Wallacy Mota - Livrosdowally

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Apoiadores
Nosso muito obrigado a todos os apoiadores que contribuíram no projeto
de financiamento coletivo e que fizeram essa ideia se concretizar em realidade.

Adriana Garcia Amaral Castelo Bruno Lanza


Alan Feitoza Bruno Mendonça da Silva
Alan Lamotte Bruno Pinheiro Oliveira
Alecsander Alves de Souza Bruno Trevisan
Alex Figueiredo Cadu Rodrigues
Alexandre Galhardi Caio Cerano
Aline Borges Fonseca Caliel de Souza
Aline de Rosa Lima Camila Atan M. Dias
Aline Fonda Carolina Bilarva
Aline Salla Carolina O. Yeh
Allan N. P. dos Santos Cássia Regina V. V. Bernardinette
Altair Andriolo Filho Cássio Felipe de Abreu
Alysson Bruno Cecília Cintra Nogueira
Ana Clara Cintra Nogueira Cesar Lopes Aguiar
Ana Clara Garcia Clarissa & Rui
Ana Cristina S. souza Claudia de Araújo Lima
Ana Luísa H. Rodrigues Conrado De Biasi
Ana Paula Silva Cosimo Barretta
André Estefani Souto Cristiane Tribst
Anna Victoria Fenandes Cristiano Dias
Antonio Andderson Cristina Gória de F. Araujo
Arthur Emílio do N. Gonçalves Cristina Maria Busarello
Arthur Gallo Dagir Dalila Heloá Volkweis
Arthur Zimmer Daniel Cazé
Artur Gouveia Daniele F. dos S. Teixeira
Artur Pessonio Deborah Ribeiro Baptista
Artur Rocha Lapot Dennis Ragonha
Aryane Rabelo de Amorim Diane Barros
Augusto Bello Zorzi Diego Pareira da Silva
Beatriz Bandeira Diogo Gomes
Beatriz da S. F. Nunes Djullyanna Lilargem Ramos
Bruna Fernandes Eddie Fernandes
Bruno Guimaraes Edu Cazorla
Bruno Kramer Eduardo Izu

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Eduardo N. K. Bernardes Josiene Maria santos
Eduardo Santos JP Acciari
Enrique Carvalho Bohm Júlia da Silva Nunes
Enzio Buarque Juliana Haueisen
Evelling Castro Julio Cegão
Everton Vogado Kaio Cubaski Luccas
Fabio Brentegani Karina dos Santos Ornelas
Felicidade Das Chagas Brito Karly Cazonato Fernandes
Felipe Diamantino Kátia Vasconcelos
Felipe M. Oliveira Kauã Francisco Moreira
Felipe Nascimento Cunha Kéia e Iasmin
Felipe Nogueira Klinger Neves Maciel
Fernanda Ouverney T. de Sá B. Pires Larissa Fagundes Lacerda
Francisco Bandeira Leandro Gunsch
Francisco Eugenio Nogueira Leandro Ribeiro
Gabriel Amirati Leandro sanches
Gabriel Castilho Leonardo de Atayde Pereira
Gabriel de Avila Batista Leonardo Ribeiro Da Silva
Gabriel Garcia Letícia Bittes
Gabriel Morales Letícia Maciel
Gabriel Pessine Lilly Krug
Gian Carlo Fortmuller Luana Mota
Giovanna Alice Lucas B. Saliba
Giulia Lima Lucas M. S. Monteiro
Guilherme H. dos Santos Lucas Monteiro
Guilherme R. Alves Luccas Emanuel
Guilherme S. de Rezende Luciana M. Y. Harada
Guilherme Terriaga Luis Vendruscolo
Gustavo G. P. Contage Luiz Felipe
Gustavo Luiz Furuhata Ferreira Luiz Felipe P. Stelling
Habyb Salomão Lacerda Luiz Henrique Torres
Heitor Vieira Freire Luiz Trezena
Humberto Willians Lourenço Maicon Falcão
Isabella R. Marcelo Ribeiro Câmara
Jaderson Goulart Junior Marcia Seabra
Jair dantas Marco Antonio da Costa
Janine Soares de Oliveira Marcos Adriano S. Konageski
Jessica Bocatti Marcos Glapp
Jhony Sganzerla Marcos Monteiro
João Alberto Mendonça Silva Marcos Roberto Piaceski da Cruz
João Vitor Rodrigues Reis Maria Eduarda Mesquita
João Zyrianoff Castilho Maria Monteiro
José Augusto Pereira Rabello Mariano Machado Belem
José Maria M. D. de Carvalho Marilia Gabriela S. Vieira
José Tertuliano Oliveira Marisol Prol

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Mateus Cremio Ricardo Coutinho
Mateus Pinto Celestino Soares Ricardo Manzini
Mateus Vieira Roberta Ragonha
Matheus Adriani Rodrigo Maciel de Souza
Matheus Echeli Rodrigo Nogueira de Andrade
Matheus Nunes da Silva Rodrigo Rocha
Matheus wolinger Corsani Roger Rayner Cunha Bento
Melissa e Nunes Rogério Barbosa Vieira
Moacir Bobar Jr Rogério Olmos
Mônica Rodrigues Ronaldo Ragonha
Monocelho_mann Ruan Guilhon
Murilo De Peder Zandoná Sajunior L Maranhão
Natalia Marsoli Samuel Arcângelo
Natalie Deyrmendjian Sara Oliveira
Natasha Hornink Alonso Savio Souza Maia
Natercia M. Pinto Silvia Maria dos Santos Moura
Nathalia Alves Guimarães Eler Silvia Ribeiro Castelo
Nathália Souza Simonarde Lima e Silva Junior
Nathália Vieira Santos Stella Cruz Ruiz
Nathalli Rogiski Sueli Rodrigues Barretta
Náyra Louise Alonso Marque Suellen Hornos Vieira
Olavo Kern Talita Fernandes Martins de Sousa
Olivio Tibério Langank Senger Neto Thaís Toninatto
Orlando Cordeiro Junior Thalita Varoneli
Paulo Henrique Vidal Cervi Thiago Alves Ferrari
Paulo Mendes de Carvalho Neto Thiago de Oliveira Soares
Pedro A. S. de Araújo Thiago Dias Monteiro
Pedro Bachega Thiago Monteiro
Pedro Henrique S. A. Picoli Thimaeus dos Santos Freitas
Pedro Miridan Rosas Tiago Troian Trevisan
Pedro Sobreiro Uliana Franco Medina Procópio
Pietro Kauê Bueno Albach Vanessa Santa Brígida da Silva
Plínio M. M. Meireles Verginio Baiense
Priscila Gorgulho Vergínio Campos e Souza
Professor Rodrigo da Silva Lima Victor Arthur
Rafael Battaglia Popp Victor Avner
Rafael Miskulin Linares Victor Mello
Rafael Ramalho da Silva Victoria Cardoso
Rafael Rodrigues Vinícius Gabriel
Rammon Ladeira Vitória Rocha
Ramon Arthur Ribeiro da Silva Walkíria Valle
Raphael Blazevicius William Ohnuma
Regina Lucia Romano Yasmin Fervença
Renan Oliveira Santana Yuri Alekseyevich
Ricardo Antônio Honorato Paes Zuzu Bastos

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“Não há nada impossível;
há só vontades mais ou menos enérgicas.”
Júlio Verne

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