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II – BHAWAN

Rosa Maria Perez

The task of ending Untouchability is a woman’s question (…).


You must think and realise that you have as much cha- racter
and purity as a brahman woman (…). So, take a vow that you
will not live with the stigma (B.R. Ambedkar, in Rege
2006:54-55)

Uma cenografia íntima

Alguns antropólogos não voltam aos lugares iniciais, iniciáticos.


Exaustão? Esgotamento de objecto? Sequelas do “choque cultural”? Outros
voltam repetidamente, como se os lugares de pesquisa não seesgotassem
nem os esgotassem. Efectivamente, os lugares antropológicos podem
expulsar-nos ou reter-nos para sempre e, nesta medida, eles moldam-nos
como a nossa subjectividade molda a produção de conhecimento.
Eu volto sempre a Ahmedabad com a nostalgia do primeiro amor.
Ahmedabad. Evocação da estranheza da primeira vez, há mais de trinta
anos, onde, apesar de tantos espaços desconhecidos, era possível traçar
referências: o cinema Regal, a caminho da cidade velha, murada, e dos seus
pols, os espaços fechados em ruas estreitas, a isolar castas de indesejáveis
contágios rituais; o Law Garden e as exuberantes buganvílias a proteger
namorados furtivos, e uma ou outra padiola de pizza a trazer de volta
memórias gustativas há meses diluídas; o bairro de Navrangpura e o doce
acolhimento do Saint Xavier Ladies' Hostel, onde um quarto me recebia nos
fins de semana em que não ficava na aldeia; Navrangpura e a Mill Owners’
Association, desenhada por Le Corbusier, e os fins de dia a subir ao terceiro
andar, para me sentar numa das fachadas brise-soleil.
Ahmedabad da longuíssima Ashram Road e do Gujarat Vidyapith,
fundado por Gandhi em 1920 como Rashtriya Vidyapith e centro de
referência para o movimento nacionalista; o Gujarat Vidyapith onde,

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numa tarde quentíssima de Setembro de 1983, o Professor Ramesh Shroff
me recebeu como responsável académico e partilhou comigo, deslumbra-
do, alguns longos percursos em direcção a Intocáveis que o seu estatuto
social mantivera longe. Ashram Road e o ashram de Gandhi nas margens
do rio Sabarmati e a tranquilidade que sempre me trouxe; as livrarias de
arte, as livrarias de livros em gujarati; as lojas de kadhi (o algodão fiado e
tecido manualmente) e as peças que comprava para as noivas Vankar de
Valthera, os pauzinhos de incenso, agarbatii, e o luxo do ghee, a manteiga
clarificada para o pooja doméstico, porque os templos, esses, eram veda-
dos – são vedados – aos Intocáveis de então, Dalits de agora.
Ahmedabad. As semanas a passarem lentamente em Valthera, as sau-
dades de casa amortizadas por longas esperas de ligação telefónica inter-
continental ou ludibriadas com chocolates Cadbury, a que a tecnologia
indiana dava um estranho sabor a shampoo. Ahmedabad. As pequenas lojas
de tudo, onde comprava as pilhas que mantinham ligado na aldeia o rádio
de ondas curtas e que, à noite, alimentavam a lanterna que projectava uma
luz definhada no meu caderno de campo. Ahmedabad. Os mercados de rua
onde comprava legumes e fruta para encher o saco que arrastava de
camioneta em camioneta nas oito horas que me levavam a Valthera.
Ahmedabad. A presença muçulmana antes de 1985 espalhada pela cidade
e hoje acantonada a ghettos nas suas margens e em Juhapura, o maior ghetto
muçulmano da Ásia e o mais visível dano das lutas comunais entre hindus
e muçulmanos. Ahmedabad, a cidade murada que o sultão Ahmed Shah
fundou em 1411 e que o Islão assinala desde a pequena mesquita de Siddi
Sayed – cujas jalis, janelas em pedra rendilhada, são o símbolo da cidade –
aos misteriosos minaretes de Jhulta Minar e à lindíssima Jama Masjid, no
centro da cidade murada.
Ahmedabad. A cumplicidade criada ao longo dos anos com mulheres
anónimas, a habituação ao chamanento dos lavadeiros dobis ou a esse outro
chamamento, à oração, azan, a evocar os tempos em que hindus e
muçulmanos coexistiam em paz. Ahmedabad e a corporização de uma
paisagem sonora, por vezes amena por vezes agreste, com as buzinas
ensurdecedoras de inúmeros rikshaws a roçarem perigosamente pessoas e
animais em filas congestionadas. Ahmedabad dos pastores Rabari a passe-
ar camelos pelas avenidas entre veículos e peões, dos vendedores de água
de coco e de cana, das padiolas de bijuterias baratas para anseios de
Bollywood.
Vinte anos mais tarde, essa outra Ahmedabad, a que quatro mandatos
de Narendra Modi imprimiram o fundamentalismo hindu que ele viria a
expandir para toda a Índia, depois do rasgão irreparável de 2022 entre
hindus e muçulmanos. Ahmedabad e o projecto de smart city e de me-

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gapolis, de provedora de energia a outros estados da Índia. Ahmedabad
dos centros comerciais gigantescos de marcas internacionais e cozinha
“americana”; Ahmedabad das casas de luxo de Vastrapur e de hotéis de
muitas estrelas; Ahmedabad dos Abani e de outros bilionários a passearem
opulência por entre pedintes esfomeados. Ahmedabad a cobrir-se de
poluição e de construções intermináveis, a atirar para a rua colmeias de sem-
abrigo e a esconder em slums insalubres uma pobreza sem remédio.
Ahmedabad onde procuro nos mercados cheiros do passado, em discretos
restaurantes sabores antigos da cozinha gujarati, em lojas cada vez mais
escassas tecidos não-sintéticos, bhakhri e sabonetes ayurvédicos, burfi e
copinhos de chá, comprados ao longo das ruas a cúmplices chaiwalah.
Ahmedabad onde regresso a casa no cheiro do sândalo e do incenso a
engolir o sufoco do gasóleo; Ahmedabad da velha, nova Navrangpura
vaidosa e cosmopolita onde me perco, sem o traçado urbano que me era
familiar. Ahmedabad do Indian Institure of Technolgy, do campus em-
prestado em Chankheda, da excitação de estudantes de tecnologias com a
minha “Antropologia no século XXI”, do Kiranbhai a conduzir-me acro-
baticamente no seu rikshaw amarelo e de outros bhai que são meus irmãos,
de amigos novos para toda a vida, das aulas de yoga, dos concertos de sitar
e tabla noite dentro.
Ahmedabad onde uma intimidade de décadas emergiu da antropologia e
quebrou a dicotomia entre trabalho e vida, entre mim e os meus interlocuto-
res, entre o olhar académico e a explosão dos sentidos e dos sentimentos.
Ahmedabad e eu. Nós. Nós: conturbada relação de atracção e recusa,
de privação e de excessos, de segurança e receio, de tranquilidade e desas-
sossego. Nós. Os sentimentos do trabalho de campo a expandirem-se para
relações exteriores a ele e a identidade da disciplina, longamente preser-
vada por tantos, a ser posta em causa. Nós. Nós que são as mulheres Dalit
e eu, que são a tessitura que nos aproxima e nos afasta e que me leva a
interrogar os limiares da Antropologia, a descanonizá-la, liberta de
alinhamentos metodológicos e de estratégias teóricas que frequentemente
lhe impuseram uma idílica objectividade.
Ahmedabad, enfim, do projecto de investigação Of Sandalwood and
Women. An Anthropological Approach to Technology and Health e do
longo caminho que me levou a Bhawan.

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Etnodrama1: conhecimento e experiência
Acumuladas décadas de teoria antropológica, poderá a realidade social
dela prescindir para se estruturar enquanto narrativa credível, aceitável pelo
cânone académico para lá do registo confessional, da biografia, da memória,
do texto experimental, quiçá da auto-etnografia? A questão ganha em ser
posta em sentido contrário: poderá uma realidade social onde diferentes
pessoas vivem e sentem ser apropriada por uma etnografia ciosa de a
encerrar numa escrita por onde ela se escoa? Como escrever subjectividades
partilhadas e passar do monólogo etnográfico ao diálogo onde possam
emergir vozes secundarizadas, se não silenciadas pelos limites da escrita?
Como sair do ghetto antropológico para o mundo de outras mulheres,
tradicionalmente contidas em arreigadas estruturas patriarcais? Como dar
centralidade narrativa às mulheres Dalit, localizar--nos, como sugeria
Fabian, num mesmo tempo, o tempo presente do discurso, como condição
de conhecimento na contingência do nosso encontro? Como prescindir do
survival kit antropológico e dar proeminência a um saber que não se
acomoda aos paradigmas académicos?
*
Quando conheci Bhawan tinham passado muitos anos de trabalho de
campo na Índia, numa partilha de intimidades que tinha desafiado o
paradigma da observação e da escrita etnográfica. Quando conheci Bhawan
tentava minimizar dispositivos teóricos, segura, todavia, da metodologia a
adoptar: uma etnografia colaborativa. Essa tinha sido a grande
aprendizagem de um continuado trabalho nas margens sociais: a
contingência da alterização – quantas vezes, nos incidentes do encontro
etnográfico era eu esse outro que os antropólogos tinham eleito como
objecto de estudo? –, o empenhamento em dar voz a vozes subalterniza-
das, o questionamento da hierarquia entre os meus interlocutores e eu
própria, apesar da percepção de um indelével resíduo hierárquico, quanto
mais não fosse pelo modelo de mulher que eu representava.
Quando a conheci, Bhawan era tão jovem que mal roçava o fim da
adolescência. Tinha casado com catorze anos e, um ano depois, foi mãe pela
primeira vez. No bairro de lata para onde a levara o princípio da

1 Tomo o termo de empréstimo a Johnny Saldaña que assim o definiu: “An ethnodrama,

the written script, consists of dramatized, significant selections of narrative collected


through interviews, participant observation field notes, journal entries, and/or print and
media artifacts such as diaries, television broadcasts, newspaper articles, and court
proceedings. Simply put, this is dramatizing the data” (Saldaña 2005:33.

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patrilocalidade hindu, sentava-se sozinha à beira da estrada que atravessava
o “bairro”, indiferente ao ruído dos carros, dos autocarros, dos ricshaws a
apitar freneticamente por entre pessoas e animais. Vigiava o filho que
embalava mesmo quando ele dormia profundamente, com o olhar triste
posto num horizonte inexistente para lá das fatias de casas e decastas do outro
lado da estrada. Não respondia aos meus sorridentes namasté e raramente me
olhava. O pedaço de vida passado numa aldeia remota do Gujarate tinha-me
ensinado a ler os silêncios, a integrá-los em sistemas de comunicação mais
vastos em que linguagens não-verbais revelavam significados inesperados.
Efectivamente, a minha longa permanência em Valthera, a que fui
regressando ao longo dos anos, a minha também longa vivência na cidade de
Ahmedabad e, mais recentemente, em Chankheda e Palaj, muitas viagens por
outros contextos da Índia, cujas línguas desconheço, ensinaram-me
diferentes sentidos do silêncio, social e ritualmente codificado, nessa troca
de subjetividades que faz a centralidade do encontro etnográfico.
Todavia, o silêncio persistente de Bhawan, o desconhecimento do tom e
do timbre da sua voz, a rigidez do corpo magríssimo sentado quase sempre
no mesmo lugar, cedo se tornaram perturbadores. O silêncio de Bhawan
mostrava como o meu aparato de comunicação se revelava precário e frágil;
por isso, de regresso ao apartamento de Chankedha, tentava identificar fios
que me levassem até ela, que interrompessem a sua incómoda contenção,
que penetrassem o filtro do seu olhar abandonado e triste. Comprava doces,
que ela silenciosamente ignorava, levava cobertores para as noites geladas
da sua pequena casa, estendia-lhe desajeitadamente um ou outro dupata
colorido para cobrir a cabeça nas tardes de sol. Era, todavia, a sogra que os
recebia e os guardava sem eu saber a quem os destinava.
Purdah, o hábito de as mulheres cobrirem a cara com uma ponta do
sari na presença dos homens mais velhos da família de aliança ou de
estranhos, não era praticado pelas mulheres Dalit do slum, ao contrário do
que tinha observado em Valthera e noutras aldeias do Gujarate. Essa
ausência daquilo que, noutros contextos, constituía rigorosas relações de
evitamento no interior da casa e da aldeia, correspondia a uma rara proxi-
midade entre mulheres ligadas por relações de aliança (relação de gracejo,
diriam os antropólogos do parentesco). Noutras casas, sogras de idade
indefinida, imobilizadas por anos a enrolar agarbatti, tinham como inter-
locutoras privilegiadas as noras, que acumulavam o trabalho no exterior
com as actividades domésticas e que, esgotadas, tiravam tempo a noites
muito curtas para cuidarem delas, afectuosamente. Não era, pois, a sogra de
Bhawan a origem do seu silêncio dorido. Como outras mulheres da sua
geração, esta sogra dava-se a pequenos luxos e, ao fim da tarde, à volta

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de pratinhos de chá – a forma económica de famílias carenciadas respeitarem
a hospitalidade hindu –, reunia vizinhas ruidosas, que partilhavam queixas
da idade, de maridos indolentes e fait-divers hilariantes. Nem as queixas nem
o riso delas interrompiam o silêncio de Bhawan.
Anos e anos de treino antropológico a derrubar barreiras de língua
culminavam na certeza de não haver certezas e, muito menos, de uma
autoridade académica que, de facto, eu questionava há muito. Anos de
tentativa de aprendizagem de comunicação não-verbal – o olhar, os gestos,
os movimentos do corpo, os silêncios, os complexos sentidos dos silêncios
– eram dissolvidos pela apetência da voz, pela soberania das palavras. No
entanto, foi o silêncio e a solidão partilhada com outras mulheres em
Valthera, a aldeia inicial e iniciática, que me permitiram entender a vivência
da marginalização, ao mesmo tempo que, muito precocemente, me
permitiram avaliar os limites – e as limitações – da observação etnográfica.
Bhawan e o silêncio de Bhawan desafiavam-me a identificar o impacto
de regimes epistémicos que tinha tentado eliminar e a procurar resgatar
outra epistemologia, subalterna, que me permitisse interrogar os processos
da representação em antropologia e examinar criticamente relações em
constante transformação.
Nesse espaço inesperado, reconheci classificações resistentes que se
impunham entre nós, apesar dos meus alertas para as anular. Tratava-se de
des-classificar: categorias, ideias, as tais ideas out of place. De reflectir
againts the grain para verificar a lógica de distorções dos subalternos na
cultura “oficial” e descobrir a semiótica social das suas estratégias epráticas
sociais e políticas. Partir do silêncio de Bhawan para inverter aquilo que em
antropologia tinha constituído, tantas vezes, pura extracção e,
simultaneamente, procurar dissolver relações de poder assimétricas.
Localizar-me entre Dalits, os subalternos que os estudos subalternos não
tinham integrado na escrita da história, responsabilizava-me a tentar
estabelecer uma reciprocidade que era, antes de tudo, de natureza ética.

O encontro com Bhawan tinha-me feito, se não esquecer, secundarizar


o que me levou ali: um projecto de investigação interdisciplinar desenha-
do com base no conhecimento quase íntimo dos Dalits, na vivência parti-
lhada da intocabilidade, na responsabilidade cívica de ir além de uma mera
investigação académica. Quem era eu ali? A antropóloga que coordenava
uma equipa empolgada num projecto de antropologia? Ou a mulher –
embora antropóloga – que tinha conhecido de perto a degradação social e
económica de mulheres Dalit, a dor atávica da sua humilhação social?
Quantas vozes para revelar, quantos silêncios para perscrutar, na

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desejada mutualidade da experiência fundadora e fundamental daquele
encontro.
*
Numa manhã de inverno no Gujarate, quando os corpos se contraem
dentro de fracos agasalhos, tentei romper a barreira que me era sistemati-
camente erguida e aceder ao espaço onde era enrolado o agabartti. A
mediadora entre as trabalhadoras e o empregador aceitou o meu convite
para partilhar um chai quente e, apesar de evitar engenhosamente asminhas
perguntas, abriu-me a porta de uma grande e inóspita sala, onde, sentadas
no chão de cimento, se espalhavam jovens que eu conhecia do slum. Aí,
elas, hindus, partilhavam o espaço com outras jovens, muçulmanas,
distantes, todas elas, dos conflitos comunais da cidade, e próximas na
dureza de um trabalho à primeira vista suave, e, dobradas sobre uma
pranchade madeira rente ao chão, enrolavam pauzinhos numa pasta feita
de areia, pó de carvão, óleo e essências de sândalo, jasmim, patchouli, que,
secos ao sol, seria transformados em agarbatti. O convite para eu repro-
duzir o trabalho que faziam foi mais do que objecto de riso pelas jovens; foi
a percepção da dureza daquela actividade aparentemente anódina e que,
todavia, distorcia a postura (donde tantos problemas ortopédicos de coluna
e anca) e enchia as narinas de um pó misturado com as essências baratas
para perfumar o incenso, que, em poucos anos, causava doenças
respiratórias irreversíveis.
Essas jovens eram totalmente iletradas. Apesar do Right to Education
Act que, em 2019, tornou a educação gratuita e obrigatória entre os seis e
os catorze anos e um direito fundamental da criança, apesar de viverem na
cidade onde, em princípio, os dispositivos de prevenção da iliteracia infantil
seriam eficazes, elas nunca tinham ido à escola, como tinha ocorrido com
as mães e as avós. Como elas, estas jovens desconheciam os direitos que
lhes estavam constitucionalmente reservados (desde logo, a abolição da
intocabilidade) e aos quais a vida no slum, destituída de um poder
organizado que não a voz geral da queixa e do lamento, era alheia.
Consequentemente, eram casadas muito antes da idade permitida por lei (a
mesma lei que proibiu o casamento infantil) e procriavam muito precoce-
mente, em corpos impreparados e imaturos. De novo, a antropologia em que
me formei saltava-me ao caminho: como preservar o repertório conceptual
e o cânon etnográfico num contexto de abuso? Como não questionar uma
prática que não reconhecia (ou só muito recentemente começava a
reconhecer) a descontinuidade entre protocolos académicos e as vivências
com os interlocutores do trabalho de campo?
Quase trinta anos depois de Valthera, o mesmo impasse assaltava-me
nas noites irrequietas de Chankheda, depois de mais de uma hora de

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rickshaw fazer o percurso do slum para “casa”: a antropologia comopaixão,
sim, mas como não ler aos Dalits os seus direitos consagrados por lei pela
Constituição da Índia desde 1950? Por outras palavras, como não repudiar
a dicotomia entre etnografia e ética? Era esse o verdadeiro impasse: a noção
de que a antropologia se tinha produzido sobre uma lacuna ética e continuar
a reproduzi-la no resguardo da concha académica. Antropologia pública,
quem sabe? Quem sabe prescindir de alguns protocolos de produção de
conhecimento e de um legado intelectual que restringia a abertura a
experiências etnográficas diferentes? Passar dos testemunhos a testemunha,
ir mais além do relativismo cultural, reconhecer a possibilidade de um nós
cívico, comprometido na expectativa da mudança social ou, pelo menos,
moral?
Longas conversas com mães adolescentes, algumas a entrar nos vinte
anos com dois ou três filhos, cuja exaustão física era a face aparente de
profundas depressões – para as quais não tinham terminologia nem saber –
levaram-nos, qual espelho de Valthera, a uma insuspeita proximidade. Em
muitas madrugadas recebia WhatsApp de algumas a saber se as encontraria
nesse dia, eu, às vezes didi, “irmã mais velha”, às vezes mata, “mãe”.
Numa dessas madrugadas, a mensagem era de Bhawan.

A voz de Bhawan

Eram 4 horas quando acordei ao som do bip a assinalar a entrada de


mensagens. Esperei duas horas para acordar o motorista de rickshaw, que
conhecia todos os meus trajectos por Ahmedabad, Kiranbhai – um bhai que,
mais do que um termo de apelação para “irmão”, era um termo de
parentesco ritual, depois de um bhaiya dooj ter selado a nossa protecção
recíproca. Antes de as mulheres e os homens saírem para trabalhar, eu
estava já sentada numa pedra do outro lado da estrada, atordoada pelas
buzinas de bicicletas e camiões, pelos insultos gritados pela janela dos
carros, pelo fumo do gasóleo. Esperava que Bhawan se fosse sentar como
sempre à porta da pequena casa, cercada pelos bebés e crianças pequenas
que ficavam à guarda das avós, quando ela atravessou a estrada ao meu
encontro. A estranheza da sua voz foi quase tão impactante como o
acumular dos seus silêncios. Foi o começo de uma fiada de conversas em
que a ouvia sem nunca a interromper.
Soube que a sua aldeia de origem era muito distante, na fronteira de
Sindh com o Paquistão, e que essa distância a tinha impedido de voltar a
casa dos pais, como era norma, depois do nascimento do primeiro filho.
Soube que o seu recato prolongado se devia a um parto que a tinha lança-
do para o limiar da morte, ao mesmo tempo que a poupava ao regresso ao

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trabalho, onde outras jovens Dalit enrolavam agarbatti. A minha consta-
tação de que a sua aliança com um homem de Ahmedabad desafiava as
assunções da antropologia da Índia e as minhas próprias sobre os limiares
geográficos da endogamia viria a ser esclarecida por Bhawan noutro
encontro: era especialmente ágil e eficiente a enrolar agarbatti, donde o
casamento arranjado num vasto eixo geográfico.
O telemóvel mantinha os fios dos afectos que a ligava à família de
sangue, cada vez mais longínqua à medida que o filho crescia e outros filhos
viriam, e à medida que, passado o dolo físico do parto, regressaria ao
trabalho para que a sua eficiência assegurasse à família o parco orçamento
que o seu jovem marido, fútil e preguiçoso, frustrava. A passagem de didi
a mata por parte de Bhawan desenvolveu em mim sentimentos de protecção
que se tinham insinuado desde o primeiro dia. Os encontroscom outras
Dalits, as confidências em sussurro para as quais o meu gujarati era
insuficiente, não incluíam Bahwan sem que, no entanto, parecessem
constituir um factor de desequilíbrio nas nossas relações. A pouco e pouco
eu era envolvida numa teia de afeição que ia esboroando as premissas do
encontro etnográfico e esbatendo um legado de relações sociais codificadas
sobre um deficit de humanidade.
A grande carência de Bhawan era da mãe, mata, uma relação que, ao ser
interrompida, lhe infligia além de uma quebra de afecto uma fractura no seu
sentido de pertença. Efectivamente, como referi noutros textos, o tempo mais
privilegiado da vida de uma mulher hindu, muitas vezes reduzido, era o
tempo de filha. Sendo parte intrínseca da família alargada, dominante nas
aldeias da Índia, são-lhe dadas prerrogativas familiares e sociais retiradas à
nora, forçada pelo casamento patrilocal a redefinir um novo papel social. A
entrada de uma mulher, uma nora, na família de aliança é, desde o início,
marcada por constrangimentos na comunicação e nos movimentos a que a
filha, pelo contrário, é subtraída. O purdah, imposto à mulher do filho como
acima referi, distingue-a de imediato da (s) irmã (s) do marido a quem,
exceptuando as limitações impostas a qualquer relação que envolva a sexua-
lidade, poucas restrições são impostas.
O casamento de Bhawan, decorrente do desenvolvimento de tecnolo-
gias de comunicação que alargaram substantivamente os limites geográfi-
cos da endogamia, foi, por isso, duplamente traumático: projectou-a para
uma distância intransponível da família de sangue e atribuiu-lhe precoce-
mente o estatuto de nora. E apesar de as suas capacidades singulares na
produção de adarbatti – as mesmas que levaram a uma aliança em estados
tão distantes – lhe darem um papel particular no interior da nova família,
ela era uma nora.

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Na sua aldeia, o facto de o professor primário ser um Dalit empenhado
na qualificação social da sua casta através da educação, permitiu a Bhavan
cumprir uma parte do ensino obrigatório, interrompido pelo casamento.
Deste modo, ao contrário das outras mulheres da família e do slum, Bhawan
sabia ler e escrever, capacidades que a afastavam ainda mais de possíveis
interlocutoras. O seu deslumbramento pela leitura de livros em gujarati que
lhe fui comprando, as longas mensagens que me enviava, o cuidado posto
em manter imaculados o bloco e as canetas que lhe ofereci podiam consti-
tuir interessantes elementos para uma antropologia interessada em educação
e desigualdade. Para mim, nesse reforço da procura de Bhawan da identida-
de amputada de filha, era a vida a afastar-se da antropologia, embora o
projecto de investigação que eu coordenava tivesse como objectivo levar às
mulheres a doopia, máquina manual que amenizaria os seus problemas
ortopédicos e respiratórios e lhes daria independência económica.
Um trabalho etnográfico, este? A mudança de contexto intelectual e
político da antropologia introduziu, sabemos, novas questões e novas
possibilidades de diversidade na pesquisa e percorreu um já longo cami-
nho desde que diferentes chamadas surgiram para a reinventar, descoloni-
zar, recapturar. Um trabalho etnográfico, sim, que reclame uma perspecti-
va alternativa à ênfase na alteridade e que reconheça as periferias como
lugares dinâmicos de inovação de onde se possa interrogar o poder inscri-
to nas relações etnográficas e a dominação de género. Em suma, uma
etnografia que dê lugar à voz de mulheres subalternas, Dalits, como
possibilidade de desalojar a hierarquia do encontro etnográfico.
E, no entanto, agora que escrevo, que vozes reproduzo e que vozes silen-
cio? Que ritmos, timbres, tons inibiram a comunicação e que ritmos, timbres,
tons a estimularam? Na complexidade desse encontro (etnográfico), a nossa
interacção estava obviamente saturada de subjectividades que se projectam
na voz e não consigo reproduzir na escrita, menorizando a importância do
silêncio ou derramando-o para o interior de narrativas que tomo como está-
veis, ignorando as fracturas e as lacunas, os equívocos e os mal-entendidos
das vozes que escrevo. Falo com elas ou falo por e sobre elas, apesar de estar
atenta às relações de poder que se inscrevem entre nós? Eis os limites de
uma etnografia colaborativa. Eis os limites de qualquer etnografia.
Ahmedabad. Um dos mapas da minha vida misturada com as vidas de
mulheres Dalit. Nós. O conhecimento da segregação que a escrita não
pode reproduzir, enquanto convenção de gramáticas e léxicos, mas tam-
bém de conhecimentos e significações fundacionais. Nós. Próximas na vida
e inevitavelmente separadas na narrativa, mas, quem sabe, uma narrativa
das / sobre as margens, da sociedade e do conhecimento, possa revelar as
potencialidades de uma epistemologia subalterna.

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