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167.2 OBSERVATÓRIO DO FUTEBOL E DO TORCER

De Raposão a Lulu da Pomerânia:


discursos homofóbicos do/no futebol
Georgino Jorge de Souza Neto, Zeca Medrado  2 de maio de 2023

No dia 23 de março de 2023 o departamento de Marketing do Cruzeiro Esporte Clube


anunciava a mudança visual do Raposão, o mascote oficial do clube. Segundo os
idealizadores da nova versão, a ideia era exibir “um visual mais próximo das raposas e
também abrir a possibilidade para ampliar ativações junto ao torcedor e às diversas
marcas”. No entanto, não contavam com a incrível repercussão negativa, expressa em
um duplo movimento: de revolta por parte dos cruzeirenses e de deboche por parte dos
rivais atleticanos. Mas qual foi a verdadeira origem da avalanche de indignação/chacota
que se revelou especialmente nas redes sociais logo após o anúncio? Qual fato
causador de tamanho incômodo? Dentre tantos comentários captados, é inescapável a Privacidade - Termos

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percepção de que quase a totalidade destes possuem alguma motivação homofóbica.

Ora, não nos surpreende tal constatação. O futebol brasileiro é a expressão viva de uma
sociedade calcada nos ditames da heteronormatividade, que legitima e reforça
comportamentos que rechaçam o escape dos códigos de masculinidade e virilidade tão
densamente presentes neste esporte.

De acordo com Franzini (2005), “a virilidade virtuosa do esporte é frequentemente


ressaltada pela sentença ʻfutebol é coisa de machoʼ, bem como em tiradas jocosas
reveladoras de vivo preconceito”. Assim, comumente percebemos que o lugar comum
das ofensas entre adversários futebolísticos passa pelo questionamento da sexualidade
masculina: bicha, viado, gay e boiola são expressões corriqueiras no vernáculo de
insultos no universo futebolístico. A título de ilustração, os atleticanos se referem
jocosamente aos cruzeirenses como “Maria” e os cruzeirenses elegeram “Gaylo” como
adjetivação neologista para se dirigirem aos atleticanos. Ambos miram na frágil
heterossexualidade masculina como forma de diminuir ou injuriar seu rival.

Voltando ao caso do mascote cruzeirense, é importante fazermos a sua


contextualização histórica. Os principais clubes mineiros têm os seus mascotes
projetados pelo desenhista e jornalista belorizontino Fernando Pieruccetti,
popularmente conhecido pelo seu pseudônimo de Mangabeira. Por sua vez, este usava
como critério definidor para a determinação dos mascotes características ligadas aos
seus torcedores e/ou dirigentes. No caso do Cruzeiro, a escolha pela Raposa se deu em
razão da suposta esperteza dos dirigentes italianos do clube na realização dos negócios.
Ou seja, em nenhum momento a sexualidade foi um parâmetro para a eleição da raposa
(a não ser que admitamos que os homossexuais são mais espertos que os héteros). Da
Raposa ao Raposão, o uso do mascote de Mangabeira se circunscrevia ao universo
jornalístico (obviamente sendo apropriado por seus torcedores, que se instituíam de tal
identidade). O nascedouro do Raposão (em 2003) já ocorre num claro cenário
mercantilizado do futebol, que via na exploração do mascote mais que uma identidade
torcedora, mas sobretudo uma possibilidade de lucro e retorno financeiro com a fixação
de uma marca. Portanto, há uma ruptura de sentido quanto à finalidade de existência
dos mascotes, que passam a assumir uma função de produto a ser consumido.

Retornando à questão central do texto: porque tamanha comoção com a alteração


visual do Raposão? Na verdade, porque tamanha comoção com esta alteração visual do
Raposão (posto que outras mudanças já ocorreram anteriormente). Para tentarmos

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compreender tal situação, recorremos a alguns dos milhares de comentários postados


nas redes sociais logo após o anúncio. Eis alguns:

“Rapozete voltou”; “As unhas estão lindas”; “Raposa vaidosa”;


“ Q u e r a p o s a b a n d i d a ” ; “ L u l u d a Po m e r â n i a ” ; “ Q u e f o f i n h a ” ; “ N ã o
s e i p o r q u e e s s e c h i l i q u e t o d o d a s M a r i a s , e s t á a ca r a d e l a s ” ; “ Q u e m
g o s t o u d a m u d a n ça f o r a m a s f r a n g a s , n ó s c r u z e i r e n s e s n ã o
g o s t a m o s e r e a g i m o s à a l t u r a ” ; “ M a s co t e d e u n h a f e i t a , q u e
ridículo”; “Simboliza as Marias”; “Esse Ronaldo deve estar
p e n s a n d o q u e o g o s t o d o s t o r ce d o r e s d o C r u z e i r o é i g u a l o d e l e , q u e
pegava travesti”; “Único mascote trans do Brasil só o Crucru tem”;
“Ronaldo quer transformar o Raposão em mascote LGBT”.

Fonte: Cruzeiro/Divulgação

Um torcedor descreveu características de como o Raposão deve ser: “cabuloso, gigante,

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bolado, com raiva, com ódio no coração, sangue nos olhos…” Quem tem que ser
assim?! Pensando em termos de representação social, a qual coletividade pertence um
mascote com tais características? Como operam estas interações entre indivíduo e
grupo, de que formas influenciam comportamentos – inclusive para além deste espaço
de lazer? Ou ainda, como o discurso materializa a teoria das representações sociais?

As mídias Instagram, Facebook e Twitter são difusoras de representações sociais


possíveis, eletivas para ganharem adesão das torcidas. Nesse sentido, trata-se de um
campo de disputa. A reação belicosa da torcida cruzeirense fez com que os trabalhos de
reformulação visual do Raposão fossem interrompidos.

Sob a perspectiva de Moscovicci (2003), as representações sociais possuem caráter de


produtor e de modificador de realidade social – simultaneamente. Note que não
estamos falando do novo/antigo Raposão. Também não é sobre o trabalho da equipe de
designers e marketing. Também não estamos falando da relação entre a diretoria e do
sócio-torcedor. Tudo isso é pano de fundo para aquilo que realmente importa.

A naturalização da masculinidade doentia que escapa às suas farpas é o subtexto que


emerge para a superfície aqui. Diluído nos comentários e reações dos torcedores e
escancarado nas diversas insatisfações.

Nesse sentido, quais os elementos que compõem os desconfortos dos torcedores?


Entende-se que muito do que é considerado como legítimo e aceitável está diluído
nestes discursos que emergem das expectativas relacionadas às representações sociais.
Eis que surge então a figura no macho: cabuloso, gigante e bolado! De acordo com o
comentário deste torcedor, é assim que um bom representante da coletividade deve
ser.

Diversos subtextos estão presentes nesta narrativa e representam o quanto o machismo


compõe uma estrutura sofisticada e inquestionável de naturalizar comportamentos e
práticas. Apontaremos três deles:

Neste primeiro aspecto, enunciamos o problema que os torcedores assumem para si,
ao abraçar a postura de sustentar este modelo de comportamento que é temido e
odioso, no instante em que reivindicam com tanto fervor essa representação cabulosa e
com ódio no coração.

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Segundo, a intensidade dos comentários revela a aversão com tudo o que se distancia
deste imaginário de masculinidade. Não tem espaço em campo para aquilo que não
performar virilidade e não provocar temor. O mais grave: figuras que representem este
desajuste poderão ser rechaçadas, com a mesma intensidade.

Por fim, uma leitura possível consiste no fato de que o Raposão é um dispositivo de
representação oficial do time: intocável, inquestionável e que precisa ser perpetuada,
assim como a masculinidade cabulosa. Emerge então outro questionamento: Quais são
os espaços destinados às torcidas dissidentes, uma vez que representam tudo aquilo
que também foi rejeitado no Raposão?

Esta é uma reflexão necessária que emerge no desdobramento de nossas análises, a


partir de algo aparentemente banal, como a mudança de visual de um mascote de um
grande clube do futebol brasileiro. Daí, conclui-se que o mascote precisa reforçar a
virilidade (e se opor a tudo que se distancia do universo masculinizante). Essa mesma
masculinidade intocável ainda é um calo que aperta na cena esportiva, notadamente
no futebol, seja de forma sorrateira ou escancarada. É ela quem conduz/mobiliza as
manifestações dentro e fora de campo, utilizadas para ofender e reivindicar.

O futebol é espaço de catarse coletiva (frase de lugar-comum entre os estudiosos deste


fenômeno). Mas é urgente repensarmos se a catarse coletiva produzida pelo futebol não
acaba reforçando e legitimando a naturalização perniciosa de preconceitos e
discriminações, como os discursos homofóbicos. Não é mais possível escondermos a
sujeira para debaixo do imenso tapete verde…

Referências
FRANCINI, F. Futebol é coisa pra macho. Revista Brasileira de História, São Paulo:
v.25, n.50, p. 315-328, 2005.

MOSCOVICI, S. O fenômeno das representações sociais. In: S. Moscovici (Ed.),


Representações sociais: investigações em psicologia social (pp. 29-109). Petrópolis:
Vozes, 2003.

Republique

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.

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Georgino Jorge Souza Neto

Mestre e Doutor em Lazer pela UFMG. Professor da Universidade


Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Membro do Grupo de
Estudos Sobre Futebol e Torcidas/GEFuT-UFMG. Membro do
Laboratório de Estudo, Pesquisa e Extensão do Lazer/LUDENS-
UNIMONTES. Membro do Observatório do Futebol e do Torcer/
UNIMONTES. Torcedor do Galo...

Zeca Medrado

 

Viado, nortemineiro, das Ciências Sociais, interessado em pensar


sobre as masculinidades no futebol, pesquisador das identidades
dissidentes de sexo e gênero.

Como citar
SOUZA NETO, Georgino Jorge de; MEDRADO, Zeca. De Raposão a Lulu da Pomerânia: discursos homofóbicos do/no
futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 2, 2023.

EXPRESSO CASCADURA
FUTEBOL PELO BRASIL
José Augusto
Futebol Moderno: Prestes: o
Leia como
também:
ele invadiu presidente da
a mentalidade Resposta
dos torcedores
178.3 Histórica
178.1 177.31

Diego Martins Leandro Tavares Fontes


HISTÓRIA

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A necessidade de
se provar:
misoginia e
racismo no
futebol
Nathália Fernandes
Pessanha

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andre augustowz ?1ded − ⚑
um mês atrás

Oi li completamente sua matéria sou atleticano porém você concorda que o mais importante não é questão da
raposa tá afeminada mas sim a questão da rivalidade entre cruzeiro e galo e o que representa os mascotes os
mascotes são feitos em todos os times como modo de representação dos times e espelhar sua força e poder
contra o inimigo infelizmente o pessoal de marketing e visual do cruzeiro erraram na escolha, o raposão,galão,
urubu entre outros também não foi feito no mundo onde vivemos hoje e querendo ou não faz parte da historia
do clube e o mesmo não deve mexer nos símbolos ainda maís em um símbolo que foi dado pelo mangabeira
porém anexado pela torcida agradeço desde já a sua atenção! Um Abraço André

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