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Carlos Seth Bastos

ESPÍRITOS
SOB
INVESTIGAÇÃO
Resgatando parte da história
Distribuição:

Alameda dos Guaiases, 16 – Indianópolis


CEP 04079​-010 – São Paulo​​-SP
Telefone: (11) 5072​-2211
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© 2022 Carlos Seth Bastos
Os direitos autorais desta edição foram cedidos ao CCDPE – ECM.

CENTRO DE CULTURA, DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA DO ESPIRITISMO – EDUARDO CARVALHO MONTEIRO


Alameda dos Guaiases, 16 – Indianópolis
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1ª edição – Dezembro de 2022


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A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio,


somente será permitida com a autorização por escrito da editora.
(Lei nº 9.610 de 19.02.1998)

SUPERVISÃO EDITORIAL:
Julia Nezu

REVISÃO INICIAL:
Adair Ribeiro Jr., Brutus Abel Fratuce Pimentel, Charles Kempf,Ery Lopes, Luciana Farias e Telma L. G. Bastos

REVISÃO FINAL:
A.J.Orlando

CAPA E DIAGRAMAÇÃO:
André Stenico e Victor Benatti
É preciso que a Humanidade conheça os nomes dos primeiros pioneiros da obra (...), e que seja mostrada a história autêntica, em oposição às histórias
apócrifas que o interesse pessoal poderia fabricar.
Revista Espírita, outubro (1862), p. 307.

Em memória de meus pais Seth e Ivete,


À minha amada esposa Telma,
Às minhas queridas filhas Bárbara e Letícia,
e respectivos genros, Felipe e Tulio.
Sumário

Agradecimentos
Apresentação
Introdução
Prefácios

Primeira fase: O período Rivail: Das lides escolares à questão da sobrevivência


1. De Rivail a Kardec
2. Rivail e a família
3. Da pré-adolescência à juventude
4. A participação no Exército e na Guarda Nacional
5. A carreira educacional
6. A vida no Instituto Rivail
7. Os anos mais turbulentos
8. Atividades com teatros
9. Últimas atividades de Rivail

Segunda fase: O período Kardec: Dos fenômenos físicos à Doutrina Espírita


1. A onda de manifestações espirituais
2. Os anos de descobertas
3. Novos personagens
4. A Codificação
5. A verdadeira identidade das irmãs Baudin
6. Srta. Japhet, a filha de Noé
7. Sr. Roze, o médium obsidiado
8. As obras revistas, corrigidas e aumentadas
9. Srta. Huet, a médium judia
10. Sr. D’Ambel, o médium de Erasto
11. Sra. Costel, a médium misteriosa
12. A correspondência de Kardec
13. As obras segundo o Espiritismo
14. Sr. Rodolphe e Sr. Vézy
15. Sra. Cazemajour, a médium de Bordeaux
16. Alfred Maxime Louis Didier
17. As dissidências
18. O ano de 1865
19. Ermance Dufaux de la Jonchère
20. Sr. Rul, o professor de equitação
21. Leymarie, o futuro administrador
22. Os Espíritos de O céu e o inferno
23. A saúde de Kardec e os últimos anos da Codificação
24. Os últimos médiuns
25. A morte de Kardec

Terceira fase: O período pós-Kardec: Das polêmicas à ruína financeira


1. O início do pós-Kardec
2. Flammarion e Desliens, ciência versus moral
3. A cizânia entre as sociedades
4. Leymarie, ainda longe de Paris
5. O retorno de Leymarie e o inimigo em comum
6. O processo dos espíritas
7. Olhares retrospectivos de 1875 até 1879
8. A teosofia
9. A pneumatologia universal
10. A maçonaria
11. O roustainguismo
12. O caso A Gênese e O céu e o inferno
13. Uma visão além das polêmicas
14. A ruína financeira da Sociedade Anônima
15. O fim das sociedades e o reinício

Apêndices
Bibliografia
Bônus
Epílogo
Lista de figuras
Nomes citados neste livro
Agradecimentos

Claro que os primeiros agradecimentos vão à família, destacando-se a paciência da minha esposa, pois após eu ter trabalhado mais de trinta e cinco anos
em apenas duas multinacionais de telecomunicações, uma sueca e outra chinesa, nas áreas de engenharia e de logística, não abandonei o ritmo frenético
desta última e, aposentado, me dediquei a esta pesquisa por cerca de quatro anos, totalizando mais de 9.000 horas de atividades quase ininterruptas.
A ideia nunca foi escrever um livro, mas apenas compartilhar o resultado das descobertas nas redes sociais e incentivar a pesquisa colaborativa. Contudo,
problemas operacionais com a rede social escolhida, o quase esgotamento das fontes primárias hoje à disposição sobre o período alvo das pesquisas (Rivail,
Kardec e pós-Kardec), a demanda de muitas pessoas interessadas pela sua consolidação e o estímulo recebido da família numa simples caminhada de
domingo resultaram nesta obra.
Ao longo desta jornada não poderia deixar de agradecer os colegas que se tornaram grandes amigos: Luciana Farias, Adair Ribeiro Júnior e Charles
Kempf. Todos eles são pesquisadores notáveis, generosos e humildes, cada um com uma afinidade maior de pesquisas: Luciana, especialista na
comparação e análise crítica das edições das obras de Kardec; Adair, apaixonado por manuscritos e livros antigos; e Charles, que sempre gentil, atendeu
todos os nossos pedidos de resgate presencial de documentos, principalmente nos Arquivos Municipais de Paris e nos Arquivos Nacionais da França, e que,
entre outras qualidades, se tornou a maior autoridade sobre a vida de Rivail.
Agradecemos ainda ao Brutus, Calsone, Donha, Ery, Leonil e Wanderlei, que em momentos diferentes também nos auxiliaram muito; bem como aos
antagonistas (sim, sempre há a crítica cega e sistematicamente malévola*), que nos fortaleceram na caminhada.
E, finalmente, nossa gratidão ao colega John Warne Monroe, autor de Laboratories of faith, que diante de alguns pequenos, mas ousados
questionamentos sobre seu livro, nos inspirou com estas palavras: “As a historian it is of course always deeply gratifying to see everyone move closer to
the truth”, ou seja, “Como historiador, é claro que é sempre profundamente gratificante ver todos se aproximarem mais da verdade”.
Termino informando que este volume procurou trazer apenas informações inéditas, principalmente com relação às identidades dos médiuns utilizados por
Allan Kardec, nosso primeiro foco de investigações, que depois se estendeu aos períodos pré e pós-Kardec. Portanto, são recomendáveis leituras
complementares como a obra em três volumes de Z. Wantuil e F. Thiesen, Allan Kardec (meticulosa pesquisa biobibliográfica) e a de J. W. Monroe,
Laboratories of faith, mesmerism, Spiritism, and occultism in modern France.
E como diria brincando minha filha mais nova, “levante as mãos para o céu” para agradecer... por tudo.

Carlos Seth Bastos


Jacareí, 28 de agosto de 2022
*Revista Espírita, dezembro (1864), p. 398.
Prefácios

Fui contaminado com o “vírus” da pesquisa pelo querido irmão Eduardo Carvalho Monteiro, quando fomos juntos para Tours atrás de documentos e
informações sobre Léon Denis, depois do 4º Congresso Espírita Mundial que aconteceu em Paris em outubro de 2004, comemorando o bicentenário do
nascimento de Allan Kardec. Nos “Archives de Touraine”, num só dia, encontramos facilmente vários documentos, graças à preparação minuciosa do
Eduardo, mas ainda longe de dispor de todos os recursos de hoje. Infelizmente, o Eduardo regressou à pátria espiritual no ano seguinte.
Como estava ainda em atividade profissional, continuei pesquisando num ritmo lento, embora utilizando progressivamente os novos recursos que
apareciam. Com a digitalização, indexação e disponibilização em nível mundial de livros, documentos, arquivos, jornais e revistas, as pesquisas históricas
entraram em uma nova era. Muitas podem ser feitas on-line, sem sair de casa, e trazem informações e pistas para outras pesquisas em documentos ainda
não digitalizados. Mas não deixam de representar um investimento significativo de tempo.
Além disso, apareceram em 2010 vários documentos originais sobre Kardec e Rivail, entregues pelo herdeiro de Hubert Forestier, dando muitas pistas
novas para revisar e completar a biografia de Kardec. Naquela época, o acervo “Canuto Abreu” permanecia um “mito”, Eduardo Carvalho Monteiro e
Nestor Masotti tinham conhecimento, mas sem acesso aos documentos.
Quando conheci Carlos Seth Bastos há quase quatro anos pela internet e consultei seus primeiros posts no Facebook, percebi logo a medida da qualidade
e da seriedade do trabalho que efetuava de maneira muito intensa. Imaginei a minúcia e as horas que ele dedicava às pesquisas. Seguindo o ideal de
Eduardo Carvalho Monteiro de transparência máxima nessas pesquisas, passamos imediatamente a colaborar, permitindo assim somar os esforços e evitar
trabalho em dobro.
Graças ao trabalho incansável de Carlos, as pesquisas progrediram rapidamente, e se estenderam do escopo inicial, que era a pesquisa sobre os médiuns
da Codificação, para um escopo mais abrangente incluindo Rivail, Kardec e o período pós-Kardec. Todas as descobertas foram regularmente colocadas na
página do Facebook dedicada, permitindo a todos os interessados acompanhar o progresso rápido das pesquisas.
Também, em agosto de 2018, apareceram na livraria Leymarie outras centenas de documentos originais sobre Rivail e Kardec: consegui a autorização
para fotografar todos os documentos antes que fossem vendidos e disseminados, a grande maioria sendo hoje parte do museu AKOL. Compartilhamos sem
demora todas as imagens e as primeiras transcrições e análises com Carlos, embora sabendo que a transcrição, contextualização e tradução de tantos
documentos levaria anos.
E, provavelmente, com a ajuda da espiritualidade, naquele mesmo ano, foram também divulgados os primeiros documentos do acervo “Canuto Abreu”,
essencialmente sobre o período Allan Kardec.
Foi também iniciado o Projeto Kardec (projetokardec.ufjf.br), plataforma digital para disponibilizar progressivamente todo esse material, gratuitamente,
graças à colaboração da Universidade Federal de Juiz de Fora.
“Quando o servidor está pronto, o serviço aparece” dizia André Luiz pela mediunidade de Chico Xavier...
Parabéns a Carlos Seth pelo trabalho incansável e por este livro, primeira compilação impressa dos resultados do trabalho de pesquisas e análises de todo
esse material. O caminho já percorrido é imenso, mas o caminho que resta a percorrer talvez seja maior ainda...
Um trabalho colaborativo e desinteressado em prol da causa espírita permitirá progredir nessa senda num ritmo adequado. Esperamos que a leitura dessa
obra aglutine novos trabalhadores nesta seara.

Chales Kempf1
Cravanche, 28 de setembro de 2022

***

Numa determinada época, vieram os Espíritos, missionários de Deus, derramar sobre a Terra sementes de luz em forma de conhecimentos mais
detalhados acerca da natureza espiritual, em confirmação patente à ideia generalizada da imortalidade da alma. Dispersas e aparentemente desordenadas, as
revelações provindas dessa verdadeira invasão espiritual careciam ser, num segundo momento, compiladas metodicamente e oferecidas ao público em geral
de forma didática, de modo a configurar uma doutrina lógica, compreensível, coesa e produtiva para o objetivo a que naturalmente se destina, qual seja a de
promover o progresso moral e intelectual da humanidade em face dos valores da Lei Divina. Dizemos “num segundo momento” porque, com efeito, o
primeiro foi o de abalar o reino das crenças místicas, dogmáticas e revestidas de fanatismo, bem como os reinos da incredulidade e do materialismo, então
tonificados pela pretensão cientificista de compreender e explicar tudo pelas leis convencionais dos ditos sábios e doutores.
A esta tarefa — laboriosa, ao mesmo tempo que gloriosa — de fundar a nova doutrina, lançou-se o pedagogo francês Rivail, mestre em didática e
consagrado autor de obras pedagógicas que, para tal desiderato, passou a adotar o pseudônimo Allan Kardec, caracterizando uma nova etapa de sua vida,
em conexão com seu histórico espiritual, porquanto não poderia ser fortuita a sua designação para o posto de codificador espírita, mas sim o cumprimento
de uma programação reencarnatória. E nunca será o bastante reconhecermos que ele executou sua missão magistralmente.
Era missão kardequiana a de estabelecer os fundamentos doutrinários e conduzir a primeira geração do movimento espírita, fundamentos esses colhidos e
sistematizados a partir de uma pilha de documentos (psicografias, transcrições de ditados mediúnicos, correspondências, etc.) e da observação direta dele
enquanto assistente de várias sessões espirituais, concatenando ideias, comparando contradições e estabelecendo conceitos objetivos onde, muitas vezes,
imperava a dispersão ou o emaranhado de informações à primeira vista desconexos. Eis, pois, que seu legado é um sistema que com muita propriedade é
justamente identificado como A Terceira Revelação da Lei de Deus, também o Paráclito, o Consolador prometido por Jesus.
Estabelecida a doutrina, Kardec retorna à pátria espiritual e a obra prossegue a cargo dos discípulos. Todavia, sabemos que as gerações sucessivas do
movimento espírita não lograram manter acesa aquela chama ardente que era a ideia de a Doutrina Espírita renovar espiritualmente o mundo, a começar
pelo seu berço: a França. Bastou cerca de meio século apenas para o esfriamento dos ânimos e para a desarticulação praticamente completa daquela
campanha outrora tão promissora em solo francês e demais nações europeias, fora outras tantas localidades ao redor do mundo; até mesmo o grande
tesouro documental espírita — manuscritos de Allan Kardec e outros arquivos que o Mestre juntara com a intenção de, entre outras coisas, preservar a
Historiografia Espírita — viria a se tornar mera mercadoria.
Felizmente, sem dúvida, sob os auspícios da espiritualidade, uma geração renovadora de espíritas veio se situar no cone sul das Américas, notadamente
no Brasil, encontrando aqui um solo mais fértil para as sementes kardecistas — para não dizer o único. Eu dou fé do que, nesse particular, disse o querido
Chico Xavier: os mais devotados confrades das primeiras gerações espíritas alistaram-se para reencarnar nas terras tupiniquins a fim de reavivar a flama do
Espiritismo. Com efeito, malgrado todas as dificuldades e controvérsias, temos um movimento espírita brasileiro ativo, para o qual temos a graça de
conhecer abnegados trabalhadores.
Neste começo de segunda década do século XXI, extraordinariamente, nosso movimento espírita brasileiro vive um momento especial, marcado pelo
avivamento da pesquisa historiográfica espírita por ensejo da recuperação de grande parte daqueles arquivos kardequianos, sobre os quais aqui já foi
referido. Mediante o esforço de vários confrades, manuscritos do Codificador, suas correspondências e outros documentos originais da maior importância
para a composição da História da nossa doutrina estão sendo tratados e disponibilizados ao público em geral, concentrados principalmente no Projeto Allan
Kardec regido pela Universidade Federal de Juiz de Fora, de Minas Gerais, através de um portal on-line livremente acessível a todos. Paralelamente, outros
tantos arquivos históricos assaz relevantes para nós estão sendo dispostos pela internet, tal o caso dos registros da Biblioteca Nacional da França, por via do
seu site Gallica. São milhares de peças preciosas a serem trabalhadas, contextualizadas e transformadas em instrumento tanto de instrução doutrinária
quanto de divulgação espírita — um trabalho gigante para anos e anos de devotamento.
E dentre as pessoas mais devotadas que ora estão se debruçando sobre essa pilha de documentos históricos espíritas, encontramos Carlos Seth Bastos que
vem, felizmente, através desta obra valiosíssima, adiantar bastante o trabalho dos demais historiadores interessados em desbravar essa floresta imensa que
esses documentos recém-recuperados apresentam.
Este livro contém uma síntese maravilhosa dos manuscritos kardequianos, das cartas entre Rivail e Amélie, entre Kardec e seus correspondentes espíritas
mundo afora; dos registros de cartórios e artigos de jornais e revistas que atestam fatos históricos que nos ajudam a compreender o contexto do
desenvolvimento da doutrina que abraçamos de coração; o cruzamento de informações e metadados que anulam discussões tradicionais, que derrubam
mitos clássicos e nos guiam para a veracidade de certos eventos e desmistificam velhos e errôneos conceitos. É, enfim, um compêndio básico para todo
interessado na História do Espiritismo.
Não nos furtamos ao dever de dar a conhecer aos leitores o reconhecimento do mérito do autor, a quem consagramos o título de Sir CSI do Espiritismo.
Este reconhecimento é, além disso, um sinal de garantia da qualidade da síntese historiográfica aqui contida, posto que desconhecemos outro historiador
espírita que tenha tido melhor qualificação que Carlos Seth Bastos para tratar e ajuntar os metadados dessa floresta recém-descoberta de documentos
relacionados à nossa doutrina. E o melhor é que Sir CSI faz escola: somos testemunhas de que todos os interessados no assunto em voga que procuram o
Sir CSI encontram nele uma resposta quase instantânea; seu espírito de cooperação é de um tipo de desprendimento nada comum nos pesquisadores —
quase sempre ávidos por garimpar e esconder suas descobertas para lançá-las com pompa, intencionados em interesses individualistas.
Além do desprendimento, é justo citarmos a precisão bem apurada de suas pesquisas, estritamente alinhadas com o rigor natural de um trabalho sério e
qualificado, cuidando de se servir de fontes as mais seguras, observando os detalhes mais minuciosos de cada registro, semelhante ao trabalho de uma
perícia forense, como é representada na série televisiva americana CSI — origem da metáfora CSI do Espiritismo, aqui designada Codification Séances
Investigation, aplicada para o título da fanpage administrada por Carlos Seth Bastos na rede social Facebook.
Voilà, meus caros confrades espíritas e irmãos, graças ao notável esforço e capacidade do Sir CSI, um delicioso passeio histórico pela origem e primeiros
passos do Espiritismo, ao lado de Allan Kardec e demais protagonistas da nascente e nossa amada doutrina, cuja continuação e sucesso dependem em parte
de nossa contribuição, para nosso próprio sucesso, pelo que fazemos o apelo e prece em favor de que todos nós possamos nos solidarizar na divulgação
desta doutrina excelsa, com Kardec, com Jesus e com nosso Pai Celestial.

Ery Lopes2
São Paulo, 28 de setembro de 2022

***

O espiritismo foi considerado por Allan Kardec uma revelação, a terceira revelação, síntese e atualização, em tempos de racionalidade científica, de
outras duas da tradição judaico-cristã, as leis mosaicas e as leis evangélicas; como, enfim, o “consolador prometido”. Todavia, quando estamos diante de
uma história positiva do Espiritismo, isto é, de um discurso sobre o passado devidamente justificado por fontes documentais e por argumentos sólidos,
então aquilo que eventualmente pode ser revelado é o quanto essa revelação pode ser ressignificada, o quanto não é apenas o recebimento de mensagens de
espíritos, prontas ou acabadas, mas sobretudo o resultado de uma árdua construção, do esforço e do trabalho, das hipóteses e das investigações, das
formulações e das reformulações de um homem que aceitou a “missão” de estabelecer uma coerente doutrina, uma doutrina que articula princípios
metafísicos e valores morais. Este livro, Espíritos sob investigação: resgatando parte da história, de C. S. Bastos, tem como objetivo principal apresentar
informações “inéditas” sobre o movimento espírita nascente e, eventualmente, corrigir certas preconcepções acerca dele; mas também acaba oferecendo ao
leitor, mesmo que indiretamente, esse tipo de compreensão da dinâmica de um período histórico pouco estudado pela historiografia.
Em relação à vida de Kardec, e não apenas à sua obra ou ao espiritismo, esse tipo de compreensão também adquire relevância. Quem estabeleceu uma
doutrina que conta com muitos adeptos, por muitos aceita, estudada e praticada, tem frequentemente a sua vida idealizada, até mesmo mitificada e
mistificada; isso ocorre com a de não poucos filósofos e mestres da espiritualidade: o “fundador” tende a ser concebido como tendo um caráter distinto do
da humanidade. Corrigir, porém, certas preconcepções sobre a vida de Kardec não é diminuir o rigor moral de sua pessoa e o contributo de sua obra. Ao
contrário, é fazer jus a eles. É resgatá-los.
C. S. Bastos é espírita e vem pesquisando a história do espiritismo, de modo sistemático, há quatro anos, com uma admirável disciplina de trabalho
cotidiano. Mas apesar de sua fé raciocinada (ou justamente devido a ela), sabe separar, de modo rigoroso, a esfera das suas convicções e crenças da esfera
de suas hipóteses e investigações, o espírita do pesquisador. O que talvez seja uma das atitudes mais difíceis para qualquer um que se atém objetivamente a
um tema de pesquisa ao qual tem adesão existencial. Não cair no proselitismo fácil é uma virtude rara. E todas as suas pesquisas foram e ainda são
realizadas com esse espírito, que se curva ao tribunal da razão e das evidências, e de um modo amplo e generoso; ele sempre insistiu em publicizar o
resultado delas, conforme as realizava. O ambiente relativamente novo da internet e dos veículos de comunicação digital propiciou esse tipo de processo,
mas também, e sobretudo, incrementou e facilitou extremamente a própria pesquisa, a busca por informações ou dados e o encontro com colaboradores: a
quantidade de arquivos, acervos e bibliotecas cujos conteúdos estão disponíveis é atualmente imensa e crescente. Inclusive a própria edição de vários
documentos, manuscritos e fragmentos de Kardec e de seus coetâneos também se beneficia dessas possibilidades técnicas.
Escrito com um estilo sóbrio e direto, este livro não deixa de ser o resultado, mesmo que parcial, de toda essa disciplina de trabalho cotidiano. Ao lê-lo,
intuímos —e porque também acompanhamos de muito perto a trajetória de seu autor— o quanto a lógica do fazer história se aproxima da lógica das
investigações de um detetive: e o quanto essa abordagem pode ser realmente eficaz. Nele, o historiador —para quem paciência, constância e resiliência são
virtudes próprias— revela-se uma espécie de miniaturista, obstinada e particularmente atento a acontecimentos mínimos, a figuras periféricas, a problemas
domésticos, financeiros e de saúde, a uma mancha num documento e ao uso de um pronome num manuscrito. São minúcias ou detalhes que resultaram de
uma investigação, investigação que foi movida por uma hipótese; minúcias ou detalhes que podem conduzir a outras hipóteses, hipóteses que podem mover
outras investigações, e assim sucessivamente, num processo de construção de um quadro sempre lacunar, mas cada vez mais completo e geral. Se tivermos
que classificar este livro dentro da lista instável dos gêneros historiográficos, diríamos que se aproxima do da micro-história.
Toda essa profusão de informações ou dados está organizada, neste livro, numa forma simples, quase natural, em três períodos gerais. No primeiro, o
período Rivail, discursa-se sobre o atarefado educador e empreendedor, sobre o modo como administrava seus projetos, seus sucessos e seus fracassos,
sobre o cotidiano no Instituto Rivail e as iniciativas no mundo teatral. No segundo, o período Kardec, discursa-se sobre a gênese do espiritismo e de seu
principal teórico, priorizando especialmente a elucidação da identidade dos médiuns em seus contextos, sobre o cuidado com as obras espíritas e as
dissidências. No terceiro, o período pós-Kardec, discursa-se sobre as dúvidas e dificuldades daqueles que deveriam dar continuidade ao espiritismo, sobre
as tensões na Sociedade Parisiense e na Sociedade Anônima, sobre Leymarie, o lamentável processo dos espíritos e a presença do catolicismo, sobre as
relações ambivalentes com a moderna teosofia.
Assim, nesse último período, o livro oferece também significativos indícios que auxiliaram a responder a uma ampla pergunta, que pode incomodar
adeptos preocupados com a continuidade do movimento espírita: por que o espiritismo, que Kardec afirmava vir a ser universalmente aceito, tornou-se tão
restrito e ostracizado na França e na Europa e, mesmo no Brasil, onde é relativamente bem-sucedido, transformou-se em não poucas e distintas variantes?
Sabemos que C. S. Bastos —que nos honra com sua amizade— espera que este seu livro venha a servir não apenas ao diletantismo dos leitores, mas
também a futuras pesquisas e ao exercício de interpretar o movimento espírita em relação com o desenvolvimento dos conceitos da doutrina espírita. Esse
desprendimento é próprio de quem compreende que a história, assim como a ciência, é ou deve ser uma disciplina colaborativa.
E o Espiritismo não deixou de ser assim desenvolvido: em colaboração. Kardec e os Espíritos superiores são considerados figuras centrais, e a doutrina
que da interação deles resultou é o pressuposto de toda a pesquisa histórica; mas essa doutrina não seria possível sem uma multidão de colaboradores, de
figuras periféricas, invisíveis e visíveis, desencarnados e encarnados. A revelação espírita, dizíamos, foi uma construção, e aspira a ser uma construção
contínua, que se transforma, que se adapta, que progride, seja nos seus três aspectos conhecidos, como ciência, filosofia e religião, seja também, ousamos
dizer, na reescritura e na iluminação do seu próprio passado, como história viva.

Brutus Abel3
São José dos Campos, 3 de outubro de 2022
1 Engenheiro, presidente da Federação Espírita Francesa.
2 Músico e escritor espírita.
3 Doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).
Apresentação

O que nos moveu a fazer a pesquisa que originou este livro foi a falta de informações sobre os médiuns4 utilizados por Allan Kardec, o Espírito
encarnado responsável pela doutrina espírita. Depois disso, ampliamos o escopo para os períodos pré e pós-Kardec.
A bibliografia disponível até então era falha. Por exemplo, não mencionava a passagem pela Guarda Nacional de Paris ou por uma agenciadora de
artistas, de Rivail, nome verdadeiro de Allan Kardec.
Os médiuns, apesar da influência que exercem sobre as comunicações5, eram totalmente desconhecidos, nada se sabia sobre suas origens, suas
ocupações, suas idades.
Depois da morte de Allan Kardec e de Amélie Boudet, o administrador responsável pelo legado foi o médium e ex-alfaiate Pierre Gaëtan Leymarie. Ele,
que foi preso por causa de fraudes com fotografias dos Espíritos, também abriu espaço na Revista Espírita6 para desvios doutrinários, como a teosofia e o
roustainguismo. Berthe Fropo, seguidora do Espiritismo, escancarou sua revolta contra Leymarie no livro Muita luz, de 1884, refutado por ele com Ficções
e insinuações, dois meses depois. Para termos uma melhor compreensão das alegações que foram apresentadas nestas obras e termos uma visão mais
completa do período, estendemos as pesquisas para o jornal Le Spiritisme7 e para as edições da Revista Espírita após a morte de Allan Kardec.
A bibliografia sobre estes três recortes temporais (vida de Kardec, médiuns e período pós-Kardec) continha lacunas e equívocos, porque fundamentada
em:
1. Fontes secundárias, baseadas apenas em depoimentos verbais ou em poucas transcrições de periódicos da época, como as que sustentaram livros com a biografia de Allan Kardec8. As mais antigas
que depois foram replicadas sem grandes acréscimos são as transcrições de dois discursos: um de 1888 feito por Leymarie e outro de 1896 feito por Henri Sausse, outro adepto do Espiritismo. A
transcrição deste último discurso foi mais tarde melhorada e transformada em livro em 1901.

2. Um romance de Canuto Abreu chamado O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária, que trazia vários erros sobre a identidade dos médiuns. O autor já tinha deixado claro no título que a
obra não se tratava de um livro de história. Contudo, por este possuir vários manuscritos de Allan Kardec, trazidos da França, acreditou-se na autenticidade das informações.

3. Livros diversos polarizados por opiniões sem fundamentação em fontes históricas, que levaram Leymarie a ficar conhecido no Brasil como o coveiro do Espiritismo.

Com exceção dos três volumes da obra de Zeus Wantuil e Francisco Thiesen, intitulada Allan Kardec, que falam da influência de Pestalozzi na sua
formação, da improbabilidade dele ter sido médico ou maçom etc., os demais livros não nos trouxeram grandes novidades biográficas sobre a vida do
responsável pela doutrina espírita.
Algumas cartas deste período, esquecidas na Livraria Leymarie e adquiridas recentemente pelo museu Allan Kardec on-line, foram transcritas, traduzidas
e publicizadas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Junto com outras fontes diretas, como o acervo “Hubert Forestier”, também disponível na
UFJF, os Arquivos Nacionais da França, os Arquivos Municipais de Paris, a Biblioteca Nacional da França, etc., nos foi possível incorporar novas
informações ao que já se conhecia da vida de Rivail, que chamamos de primeiro período.
Para o segundo período, que começa com os fenômenos das mesas girantes e vai até a morte de Allan Kardec, buscamos concentrar nossos esforços na
identificação dos personagens mais relevantes. As informações que tínhamos sobre eles eram escassas e erradas, a maior parte baseada no citado livro de
Canuto Abreu. Também exploramos o contexto da Codificação, com informações dos manuscritos de Allan Kardec.
Iniciativas mais recentes, que exploraram melhor esta época, não tocaram em profundidade nosso objeto de pesquisa, e estão disponíveis apenas em
outros idiomas. Elas contêm também alguns equívocos como abordaremos ao longo do livro. Entre essas iniciativas, podemos destacar as obras de Marion
Aubrée e François Laplantine, La table, le livre et les esprits9, e de John Warne Monroe, Laboratories of faith10, que também analisam com propriedade o
pós-Kardec. Por isso, nesta segunda parte, decidimos incluir minibiografias de personagens que participaram da construção do Espiritismo. Foram eles os
nossos principais Espíritos investigados, fossem eles desencarnados ou ainda encarnados (médiuns e outros personagens). Falamos também do trabalho, da
correspondência e da saúde do nosso protagonista, Allan Kardec.
Sobre o último período, o pós-Kardec, a polarização entre diversos grupos no Brasil11 fez com que muitos se alinhassem de um ou de outro lado da
questão: por que o Espiritismo encolheu na França? Nossas pesquisas revelaram a identidade de vários personagens desta época. Colhemos também mais
subsídios para entender um pouco mais o contexto desde a morte de Allan Kardec até a falência da sociedade criada para dar continuação às suas obras
espíritas. Esta contribuição resgata parte da história e é mais um recurso para que novas pesquisas possam se aprofundar na questão.
Ao longo deste livro também contamos indiretamente um pouco da própria história da pesquisa, mostrando as pistas e as trilhas percorridas, nem sempre
bem sucedidas nas primeiras tentativas. Em algumas ocasiões, quando um fato pesquisado pertencia à mesma época do assunto abordado em determinado
capítulo, mas não estava diretamente relacionado ao tema, segregamos a informação em um quadro cinza fora do texto principal.
Nosso trabalho sempre buscou o lastro das fontes primárias, isto é, registros de estado civil (nascimento, casamento e óbito), contratos, hipotecas,
inventários e mapas antigos. Também usamos como fontes diretas: manuscritos, almanaques, revistas, jornais e livros da época.
O processo de identificação de personagens tem vários níveis de aprofundamento, como vemos a seguir com alguns exemplos:
1. Reconhecimento da sua relevância: Sra. Costel (médium) | Georges (Espírito);

2. Dados disponíveis: Sra. Costel foi pintora e aluna de Georges;

3. Identidade: Ea Guillon Lethière (médium) | Louis Henri Georgè (Espírito);

4. Genealogia: Ea se casou com o Sr. Costel;

5. Relações e atividades: Ea também foi escritora e amiga de Alfred Didier (pintor e médium);

6. Personalidade: Ea era de comportamento resistente.


Geralmente saímos dos níveis 1 e 2 para os níveis 3 a 5. Os personagens para os quais nos aproximamos do nível 6 passaram por um processo de
contextualização para conhecermos as influências a que poderiam estar submetidos, como as de Pestalozzi sobre Allan Kardec ou as da teosofia sobre
Leymarie.
Como conclusão das pesquisas foi possível demonstrar que muitas coisas em que se acreditava, por exemplo, que Allan Kardec falava todas as línguas da
Europa, exceto o russo, ou que as médiuns Baudin eram adolescentes, não passavam de lendas que não correspondiam verdadeiramente aos fatos.
Procuramos esclarecer ainda outras questões como quem eram os médiuns com quem Allan Kardec trabalhou, se suas últimas obras fundamentais foram
adulteradas por Leymarie e quem foram os responsáveis pela queda do Espiritismo na França, seu país de origem.
Boa leitura, e para quem aprecia as notas, bons estudos!

4 Médium é a pessoa com a suposta aptidão de sentir a influência dos Espíritos. Os principais tipos são: médiuns de efeitos físicos e médiuns de efeitos intelectuais, entre eles os médiuns escreventes ou psicógrafos.
5 O livro dos médiuns, segunda parte, capítulos XIX e XX.
6 Periódico mensal criado por Allan Kardec em janeiro de 1858.
7 Por já se encontrar popularizada, ao longo do livro manteremos a denominação em francês do jornal O Espiritismo, criado pela União Espírita Francesa em março de 1883.
8 Para uma lista de todas as biografias disponíveis veja: C. S. Bastos, “De Rivail a Kardec: um resumo das novas descobertas”, Jornal de Estudos Espíritas, 9, 010202 (2021). DOI: 10.22568/jee9.artn.010202. Link de acesso:
sites.google.com/site/jeespiritas/volumes/volume-9-2021/resumo-art-n-010202 ; acesso em: 04/08/2022.
9 A mesa, o livro e os espíritos – nascimento, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil.
10 Laboratórios de fé – Mesmerismo, Espiritismo e Ocultismo na França Moderna.
11 Poderíamos citar livremente: laicos (espíritas que não concordam com nenhum possível aspecto religioso da doutrina), kardecistas (espíritas que aceitam todas as obras de Kardec), ecléticos (espíritas que aceitam outras correntes de pensamento místico,
religioso, filosófico, científico ou pseudocientífico), sincréticos (espíritas que querem introduzir estas correntes de pensamento na doutrina) etc. O termo “kardecista” é rejeitado por alguns, embora o próprio Allan Kardec o tenha empregado.
Introdução

É verão no hemisfério norte. Mesmo nos frios países nórdicos, julho ainda parece ser muito quente naquele distante ano de 1759, dois anos depois da
terrível onda de calor que varreu a Europa. Emanuel Swedenborg, um erudito espiritualista já com setenta e um anos de idade, jantando às 6 horas da tarde
na cidade de Gotemburgo, na Suécia, vê, num estado de consciência alterada, o incêndio que começava perto da sua casa no bairro de Mullvaden, em
Estocolmo, a quase quinhentos quilômetros de distância. Era o fenômeno da clarividência, presente desde sempre na história, inclusive nos livros sagrados
das religiões estabelecidas.
Um quarto de século depois, em 1784, um discípulo do médico Franz Anton Mesmer, o Marquês de Puységur, aos trinta e três anos, magnetiza na França
seu jardineiro Victor Rass, de apenas dezoito anos. Este entra num estado sonambúlico e, meio dormindo, meio acordado, começa a falar detalhadamente
da doença que afligia ele próprio e dos remédios que deviam curá-lo. A idade não parecia ser um obstáculo ao conhecimento.
Após sessenta e quatro anos, no início da primavera de 1848, seria estabelecido em Hydesville, nos Estados Unidos, pela menina Catherine “Kate” Fox,
de onze anos de idade, um código de batidas que acabaria permitindo o início de um diálogo com o Espírito de um caixeiro viajante.
Seria ainda necessária quase uma década para, em 1857, ser lançado um livro que se propôs a explicar todos esses fenômenos do ponto de vista de uma
ciência. É desta alegada ciência espírita que vamos conhecer os personagens responsáveis, Espíritos protagonistas e coadjuvantes, encarnados e
desencarnados. Seriam eles pessoas comuns ou superiores em conhecimento e moral? Esta superioridade era absoluta ou em relação à média da
humanidade da época? Para isso vamos viajar no tempo, desde o final do século XVIII até o início do século XX. Buscaremos, principalmente,
informações desconhecidas pela maioria das pessoas.
Ao longo da história abordaremos curiosidades como: havia dúvidas se o autor daquele livro de 1857, intitulado O livro dos espíritos, era mesmo filho de
seu declarado pai?
Primeira fase

O período Rivail: das lides escolares à questão da sobrevivência


Imagem na sequência com as principais atividades de Rivail
Legenda:
DC: Délassements Comiques
1. De Rivail a Kardec

Antes de chegarmos até Allan Kardec, o autor de O livro dos espíritos, faremos uma revisão das biografias conhecidas de Hypolite Léon Denizard Rivail,
seu nome verdadeiro12. Tais apontamentos nos possibilitarão conhecer um pouco da trajetória do principal Espírito encarnado responsável pela doutrina
espírita, bem como o contexto em que estava inserido e, consequentemente, as influências a que esteve submetido.
Revelaremos o lado mais humano de Kardec, suas ambições, suas imperfeições, suas dificuldades para a própria subsistência, mas também seu lado
paternal, sua generosidade e sua austeridade.
Nos ampararemos mais em fatos. Para isso, nos socorreremos em diversos arquivos, principalmente da França e do Brasil, onde encontramos documentos
e correspondências, imagens e registros históricos do Espiritismo, em um trabalho de investigação com toda a facilidade que a tecnologia do século XXI
oferece.
Estas fontes nos ajudarão a conhecer melhor a vida de Rivail e de outros personagens do século XIX. Teria ele participado de conflitos armados, teria
tido sucesso profissional na carreira educacional, teria visitado cassinos, teria sido preso, teria sido difamado? Muitas questões serão respondidas; para
outras, apontaremos o caminho, mas a resposta definitiva ficará para depois, principalmente para quando mais dados forem disponibilizados publicamente
por aqueles que detém acervos importantes13.

Fig. 1: Fotografias de Allan Kardec


Fontes: Museu Allan Kardec online (Brasil), Biblioteca Pública del Estado en Pontevedra (Espanha), coleção do autor e Museu del Disseny de Barcelona (Espanha)

12 Grafado em sequências e formas diversas em vários documentos: Denisard Hypolite Leon Rivail no registro de nascimento de 1804, Hyppolite Leon Denizard Rivail no contrato de casamento de 1832, Hypolite Léon Denizard Rivail no testamento de 1846,
Léon Hippolyte Denisart Rivail no registro de óbito de 1869 e Denizard Hippolyte Léon Rivail numa decisão judicial para o inventário de 1869.
13 Acervos de Silvino Canuto Abreu (em poder da Fundação Espírita André Luiz), do museu Allan Kardec online (adquiridos da Livraria Leymarie), de Hubert Forestier e de Prévost (em poder dos Arquivos Municipais de Paris).
2. Rivail e a família

Uma fonte relevante de pesquisa são os registros de estado civil14. Por meio deles podemos descobrir a ancestralidade dos personagens estudados e,
assim, localizá-los diante de fatos relevantes da história. Conseguimos identificar ainda onde nasceram, viveram e morreram, dando-nos uma orientação
geográfica sobre suas movimentações ao longo da vida. Profissões, endereços, testemunhas e outras informações encontradas nestes registros também nos
permitem cruzar dados e achar relações de amizade, descobrir a identidade de novos personagens e revelar um contexto em relação aos diversos períodos
da história.
Começamos a jornada percorrendo os registros sobre Rivail, nosso protagonista, e o conectamos com os outros membros de sua família.
Em 22 de novembro de 1795, em plena Revolução Francesa, nasceu em Thiais, no Vale do Marne, a filha de Julien Louis e Julie Louise, Amélie
Gabrielle Boudet. Ao se tornar esposa do autor de O livro dos espíritos, ela seria conhecida mais tarde como a Sra. Allan Kardec.
No início do século XIX, dois meses antes da coroação de Napoleão I, nasceu seu futuro marido, Rivail, em 3 de outubro de 1804, às 19 horas15. Nasceu
em Lyon, mas nunca viveu lá. Passou sua infância nos arredores de Bourg-en-Bresse, a mais de sessenta quilômetros de distância. Seus irmãos mais velhos,
um menino e uma menina, já haviam falecido em tenra idade quando ele nasceu: Auguste, com seis anos, e Marie, com dois. Isaure, a mais nova, também
nasceu em Lyon, em 1806. Segundo consta em seu registro de nascimento, naquela época seu pai vivia na Dordonha, em Belvès. Não sabemos quando ela
morreu, contudo não acompanhou o irmão e a mãe, Jeanne Louise Duhamel, quando estes se mudaram para Yverdon-les-Bains, onde Rivail iria estudar no
castelo do educador suíço Pestalozzi.

Fig. 2: Fragmento do registro de nascimento de Allan Kardec


Fonte: Archives de Lyon, cote: 2E110, download de 24 de agosto de 2022

Não há informações sobre a convivência de Rivail com seu pai, o advogado Jean Baptiste. Estimava-se que o contato entre eles tivesse cessado por volta
de 1807, com Rivail ainda criança, de acordo com uma declaração registrada em 1832, no contrato de casamento dele com Amélie Boudet: “ausente sem
notícias desde mais de vinte e cinco anos e presumivelmente morto na Espanha”. O casamento ocorreu três dias depois do contrato assinado, no dia 9 de
fevereiro, em pleno inverno. Pouco meses depois, em 3 de julho, Rivail perdeu a mãe. Restou-lhe apenas o tio, François Duhamel, que se mostrou bastante
problemático, como veremos durante os anos mais turbulentos.
Constatamos que Jean Baptiste não estava morto naquela época, mas apenas distante da família, pois, de acordo com seu registro de óbito, ele morreu em
26 de junho de 1834, aos setenta e cinco anos, a quase quinhentos quilômetros de Paris, numa casa em Allées de Tourny, na comuna16 de Périgueux, na
Dordonha, departamento17 onde já vivia quando do nascimento da filha Isaure. Ao que tudo indica, ele abandonou a família e, posteriormente, conviveu
com outra mulher, Marie Lavour, viúva do também advogado Guillaume Tremoulet de Leyssales. Ele morava de favor e vivia da renda de um capital dela,
quando morreu pobre e sozinho.
No mesmo ano do falecimento do pai, pouco tempo depois, em agosto, Rivail foi à procura de uma tia paterna chamada Reine, na estância balneária de
Aix-les-Bains, na Saboia, que na época pertencia à Itália. Reine Rivail era duplamente viúva, primeiramente do Sr. Gay e depois do Sr. Mathevot,
acumulando riquezas significativas. Ele não tinha proximidade com a tia, pois, como disse na época, o objetivo da visita tinha sido atingido, com ela
reconhecendo-o como sobrinho.
Enquanto estava nesta viagem à procura da tia, Rivail falou para a esposa, em uma carta de 20 de agosto18, que uma criança de um ano de idade, que o
acompanhou na carruagem de Paris a Lyon, o fez gozar antecipadamente os encantos da paternidade. Amélie Boudet, que estava em Château-du-Loir, na
casa dos pais, já estaria grávida, ou Rivail apenas ansiava com essa possibilidade? Na carta de 8 de outubro deste mesmo ano ele termina assim “Adeus,
abraço/beijo vocês dois, do fundo do coração, como podem imaginar, e aguardo com impaciência o momento de fazê-lo de verdade”19. A quem Rivail
estaria se referindo, além da esposa? Seria a um bebê ou ao tio François, que já vivia com eles?
Sete anos depois, em 20 de agosto de 1841, Rivail escreveu de Lyon à esposa, que estava em Paris, para falar do funeral e o inventário da tia Reine. Na
carta, relatou que havia suspeitas de que ele não fosse filho de seu pai, embora tenha acrescentado que poderia provar ser isso inexato! Fato é que o
sobrinho não foi contemplado nem com um franco dessa herança.
Uma menina chamada Louise aparece pela primeira vez numa carta de três dias depois. Nesta carta e nas que se seguiram, ela sempre é mencionada com
expressões de carinho: “Abrace bem a minha pequena Louise, cuja escrita me deu muito prazer”, “Beije minha pequena Louise por mim”, etc. Supondo
que tenha aprendido a ler e escrever em torno dos sete anos, ela bem poderia ter nascido em 1834. Considerando que ela não aparece em cartas disponíveis
de 1835 e 1837, suspeitamos que ela possa não ser filha do casal. Se Amélie estava grávida naquela época, poderia ela ter perdido a criança? Seria Louise,
então, uma filha adotiva? O Código Napoleônico vigente à época só permitia adoção de maiores de vinte e um anos e por pessoas que tivessem acima de
cinquenta anos20. Sendo assim, a adoção, se ocorreu, foi informal.
Isto é o pouco que sabemos da menina que acabou falecendo no final de 1845, conforme carta que o pai de Amélie Boudet enviou à filha, lamentando a
morte da menina. Da mesma forma, desconhecemos detalhes de Mariette, a sonâmbula sempre consultada por Rivail, inclusive sobre a saúde frágil de
Louise, como encontramos em várias cartas dele à esposa.
Já os pais de Amélie Boudet morreram em julho e agosto de 184721, duas perdas sucessivas que impactaram bastante a esposa de Rivail22.
Não podemos deixar de comentar também que o apelido “Gabi”, usado para a Sra. Rivail, só foi utilizado por autores brasileiros. Em todas as cartas23,
Rivail sempre se refere à esposa nos seguintes termos: minha querida Amélie (ma chère Amélie), minha boa Amélie (ma bonne Amélie), minha querida
amiga (ma chère amie) e senhorita Amélie Boudet (mademoiselle Amélie Boudet), obviamente antes do casamento. Também não podemos ignorar o lado
romântico de Rivail em suas cartas, como quando diz em 23 de junho de 1842: “(...) eu teria deixado para trás, com prazer, todos os chapéus do mundo
para poder te abraçar antes da minha partida (...)”. Ou em 4 de agosto (ou setembro)24 de 1834: “Se vieres, não te esqueças de trazer tuas joias, bijuterias,
etc. a fim de ficares elegante e bonita, ainda que, no teu caso, a natureza não precise de arte...”. Aliás, nesta carta, Rivail também alertou que precisava de
um pouco mais de dinheiro para o seu retorno da visita à tia, talvez apenas um contratempo, já que no ano seguinte fez um empréstimo significativo, de
6.000 francos25, ao cunhado Julien François Boudet, quando este era notário em Gisors, na região da Normandia. Em 1839 esta dívida foi cobrada
judicialmente por Rivail junto ao fiador26.

Fig. 3: Fragmento da carta de 23 de junho de 1842 de Rivail em Aix-la-Chapelle para “ma chère Amélie”
Fonte: Portal Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora

É a história da vida deste personagem, Rivail, e sua transformação em Allan Kardec, que vamos contar nos próximos capítulos.

14 Os registros de estado civil (nascimento, casamento e óbito) e inventários referenciados ao longo do texto estão disponíveis nos sites: archives.paris.fr/ [Arquivos Municipais de Paris], através de francearchives.fr/map/223682/ [acesso a arquivos de outras
comunas] ou facebook.com/HistoriaDoEspiritismo [CSI do Espiritismo].
15 Na noite anterior a 12 vendémiaire do ano 13 do calendário revolucionário.
16 Comuna é equivalente a município. Usamos ambos os termos ao longo do texto.
17 Departamento é equivalente a Estado.
18 As cartas e outros manuscritos (como preces, evocações, discursos etc.) referenciados ao longo do texto estão disponíveis nos sites: projetokardec.ufjf.br/ [Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora] ou espirito.org.br/material/ [Materiais
dos livros e do Centro de Documentação e Obras Raras da Fundação Espírita André Luiz] e comentadas em facebook.com/HistoriaDoEspiritismo [CSI do Espiritismo].
19 Adieu, je vous embrasse tous les deux de tout cœur comme vous pouvez le penser et attends avec impatience le moment de le faire en réalité.
20 J. F. Mignot, Les adoptions en France et en Italie: une histoire comparée du droit et des pratiques (XIXe-XXIe siècles). Population – Paris, Institut National D’études Démographiques, 70 (4) 10.3917/popu.1504.0805 (2015), p. 805. Link de acesso:
halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-01326723/document; acesso em: 04/08/2022, e R. O. Bénech, De l’illégalité de l’adoption des enfants naturels. Impr. de P. Montaubin, Toulouse – France (1843). Link de acesso:
gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k57017435.r=système%20d%27adoption; acesso em: 04/08/2022.
21 O pai no dia 6 de julho em Château-du-Loir e a mãe em 5 de agosto em Paris.
22 No seu discurso de encerramento do ano letivo no Pensionato de meninas, feito em 7 de setembro de 1847, ele informa que ela não teria condições de fazer seu tradicional discurso.
23 Foram analisadas quarenta e sete cartas entre os anos de 1831 e 1864, a maioria disponível no site: projetokardec.ufjf.br/ [Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora].
24 A data da postagem é setembro, mas na carta está agosto.
25 Algo como 60.000 reais. Para esta estimativa foi feita uma comparação entre os valores de hoje e os preços de periódicos, livros e refeições de meados do século XIX, bem como de salários de operários e empregados do comércio.
26 “Morin C. Rivail”, Journal des huissiers, vol. XX (1839), p. 182. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k54716698/f184.item; acesso em: 04/08/2022.
3. Da pré-adolescência à juventude

Retornemos a história para a pré-adolescência de Rivail. A partir do final de 1815, pouco depois do início do Segundo Reinado de Luís XVIII na França,
Rivail, com onze anos, começaria a estudar com Pestalozzi.
Em seu livro Curso prático e teórico de aritmética, segundo o método de Pestalozzi, com modificações27, de 1824, o jovem Rivail lembrou desse tempo
de infância (na página x):
Devo aqui prestar homenagem a uma pessoa que protegeu minha infância, o Sr. Boniface, discípulo de Pestalozzi, um professor que se distingue pela sua erudição e pelo seu talento para
ensinar.

Em 1862 Alexandre Boniface e Rivail são mencionados juntos, como pares, entre os primeiros discípulos de Pestalozzi28.
Informações de Lachâtre de 1857 e testemunhos de Amélie Boudet a Anna Blackwell após a morte de Allan Kardec em 1869, também citam a educação
inicial de Rivail na Instituição Pestalozziana de Yverdon. Essas eram provas circunstanciais.
Em 1915, preocupado em encontrar vestígios mais robustos, um correspondente da Revista Científica e Moral do Espiritismo29 buscou mais provas. Ele
não encontrou registros de Rivail, mas apenas da sua mãe, Jeanne Louise Rivail, na lista de estrangeiros em Yverdon, nos “Archives communales
vaudoises”. Mais evidências materiais foram obtidas recentemente nos mesmos arquivos. Tais registros confirmaram que Rivail e sua mãe moraram em
Yverdon, na Suíça, de 1815 até meados de 1820, quando retornaram à França.
Voltamos a ter notícias de Rivail somente em 1823, em Paris, mais de três anos depois da volta da Suíça. Não se sabe se retornaram de lá para a região de
Bourg-en-Bresse, ou diretamente para Paris. No início daquele ano, foi registrado no jornal Bibliographie de la France30 o prospecto do seu livro sobre
aritmética, já mencionado. Seu endereço em Paris era a Rua de la Harpe. No final do ano, foi registrado o livro, em dois volumes, que teve o ano de 1824
impresso na página de rosto. A partir daí, ele começará em Paris sua carreira na educação, com altos e baixos como mestre de pensionato (maître de
pension). Nesta época, Rivail também começou a estudar o magnetismo animal, pois ele mesmo declarou em 1858 que já professava esta prática por trinta
e cinco anos, portanto desde 1823.
Paralelamente às atividades educacionais, Rivail, com vinte anos de idade em 1824, teve também que se alistar no Exército31. Ele já tinha se mudado para
a Rua Richer em Paris, endereço da Escola de primeiro grau que tinha fundado, conforme consta de seu documento no Exército.
Rivail só foi incorporado mais de seis anos depois. Ele foi fuzileiro e granadeiro. Teria lutado em algum conflito armado?

27 A grande maioria dos livros referenciados ao longo do texto está disponível nos sites: gallica.bnf.fr da BnF [Biblioteca Nacional da França], books.google.com.br/ [Google Books], archive.org/ [Internet Archive] ou hathitrust.org/ [HathiTrust Digital
Library]. Quando não, ou se conveniente, estará referenciado em nota.
28 “The coming meeting at Mt. Vernon”, Ohio Educational Monthly, vol. 11 (1862), p. 217. Link de acesso: books.google.com.br/books?id=r0BGAQAAMAAJ; acesso em: 04/08/2022.
29 Revista Científica e Moral do Espiritismo, julho (1924), pp. 220-221.
30 A grande maioria dos jornais e revistas referenciados ao longo do texto está disponível nos sites: gallica.bnf.fr e retronews.fr/ da BnF [Biblioteca Nacional da França] e iapsop.com/ da IAPSOP [International Association for the Preservation of Spiritualist
and Occult Periodicals]. Quando não, ou se conveniente, estará referenciado em nota. Conforme a legislação francesa da época, toda obra deveria ter um Depósito Legal (alguns exemplares para bibliotecas e órgãos do governo) e o seu registro era publicado
no jornal Bibliographie de la France.
31 A lei Gouvion-Saint-Cyr de 1818 previa a constituição de um exército de 240.000 homens. Como o serviço militar durava seis anos, só era necessário recrutar 40.000 homens por ano. Alguns jovens franceses de vinte anos, portanto, não cumpriam o serviço
militar, que começava em 1º de janeiro e, em tempos de paz, terminava em 31 de dezembro.
4. A participação no Exército e na Guarda Nacional

Conforme a legislação da época, Rivail se alistou no Exército em 1824, foi incorporado em 1831 e ainda participou da Guarda Nacional de Paris desde
1833, numa época em que a França esteve envolvida em vários conflitos externos e internos.
Quando os holandeses se retiraram da Bélgica em 1831, após a curta guerra chamada de “Campanha dos 10 dias”32, deixaram uma guarnição na cidadela
de Antuérpia, o que levou a uma segunda intervenção do Exército do Norte entre 15 de novembro e 23 de dezembro de 1832. A campanha teve a
participação do 61º regimento.
Entre estes dois conflitos, houve a rebelião de 5 e 6 de junho de 1832, contra o governo do rei Luís Filipe, retratada na obra Os miseráveis, de Victor
Hugo.
Esta rebelião foi uma insurreição antimonarquista dos republicanos parisienses, ocorrida duas semanas após a morte de Casimir Pierre Périer, Presidente
do Conselho (uma espécie de primeiro-ministro), vítima da epidemia de cólera que assolou a França durante a primavera de 1832, e que terminou com mais
de dezoito mil mortos só em Paris. Outra vítima da cólera foi Jean Maximilien Lamarque, um ex-comandante popular, crítico da monarquia, em 1º de
junho. Seu funeral criou uma situação propícia ao surgimento da insurreição. Parte da Guarda Nacional desertou e se aliou com os insurgentes. Durante a
noite de 5 e 6 de junho, vinte mil milicianos da Guarda Nacional de Paris foram reforçados por cerca de quarenta mil soldados do exército regular, que
conseguiram então conter a revolta. As baixas totais no levante foram de cerca de oitocentas pessoas.
Bem, embora a profissão de Rivail aparecesse como sendo “chef d’institution” no contrato de casamento e no registro reconstituído de casamento33, no
extrato do próprio registro de casamento ele aparece como “soldado de licença do 61º regimento estacionado em Rouen”. O único outro documento que
temos sobre o “Rivail soldado” é o “Congé du Service de l’Armée Active” ou “Licença de Serviço do Exército Ativo”.

Compleição física de Rivail


aos 20 anos na “Licença de
Serviço do Exército Ativo”
Altura 1,69 m
Cabelos e
Castanhos
sobrancelhas
Olhos Castanhos
Testa Alta
Nariz Reto
Tamanho
Boca
médio
Queixo Redondo
Rosto Oval

O documento diz que Rivail, soldado jovem de 1824, só foi incorporado ao 61º regimento em 1º de abril de 1831. Sua função seria fuzileiro.
De acordo com os “detalhes dos serviços”, teria pedido licença de um ano (consistente com o extrato do registro de casamento de fevereiro de 1832), e
então dado baixa, se retirando definitivamente no inverno de 1833, em 1º de janeiro.
Além do Exército, Rivail foi eleito cabo (caporal) da companhia de granadeiros do 1º batalhão da 11ª legião da Guarda Nacional de Paris em 24 de maio
de 1831, conforme seu diploma eleitoral34.

Fig. 4: Diploma eleitoral de Rivail da Guarda Nacional de Paris


Fonte: Acervo “Hubert Forestier”

A Guarda Nacional era uma espécie de milícia burguesa regulamentada pelo governo (lei de 22 de março de 1831). Suas unidades básicas eram as
companhias, que formavam os batalhões. Uma legião era formada de quatro batalhões, agrupados por arrondissement35. Por exemplo, a 10ª legião de Paris
estava associada ao 10º arrondissement. Os oficiais eram eleitos pelos seus integrantes, que eram todos os contribuintes (portanto, só os mais abastados)
com idade entre vinte e sessenta anos. A recusa ao serviço era punida por alguns dias de detenção36.
E quanto à participação de Rivail naqueles conflitos?
Se a licença do Exército tivesse terminado em 1º de abril de 1832, um ano após ser concedida, Rivail poderia ter participado como fuzileiro no cerco de
Antuérpia, entre 15 de novembro e 23 de dezembro, mas no documento do Exército não existe nenhum registro de sua participação em campanhas. Talvez,
portanto, a licença do 61º regimento tivesse sido prorrogada até a baixa definitiva e, neste caso, ele estaria em Paris durante o ano de 1832, o que foi
confirmado por outras evidências. Em 1º de agosto de 1831, foi emitido seu certificado de membro da Sociedade de Educação Nacional e nos dias 29 de
junho37 e 16 de outubro de 183238 Rival participou de reuniões desta sociedade em Paris. Em junho de 1832, ganhou o prêmio da Academia de Arras, que
também fica no norte da França, mas sendo identificado nas Memórias da Academia de Arras como chefe de instituição em Paris.
Teria Rivail, então, participado da rebelião de junho 1832 em Paris? Não há evidências, mas supomos que não, pois pertencia à 11ª legião da Guarda
Nacional, que ficava na parte sul de Paris39, e os principais conflitos aconteceram na parte norte40.
Em resumo, com relação à carreira militar, temos:

Data Evento
Rivail foi incorporado ao 61º regimento, mas tirou licença de um ano, provavelmente estendida até 01/1833, ou foi dispensado mesmo, já que pela lei, filho mais velho ou único de viúva
04/1831
(lembrando que o pai na verdade não estava morto, mas desaparecido) não precisava servir (lei Gouvion-Saint-Cyr)
05/1831 Rivail foi eleito cabo (caporal) do 1º batalhão da 11ª legião da Guarda Nacional em Paris, sendo que as eleições ocorriam de três em três anos41
02/1832 Rivail se casou em Paris, quando estava de licença do 61º regimento estacionado em Rouen, no norte da França
06/1832 Revolução de junho em Paris com participação da Guarda Nacional e do Exército
06/1832 Rivail participou de reunião da Sociedade de Educação Nacional em Paris, mencionando sua presença em reunião anterior
12/1832 A França terminou o “Cerco da cidadela de Antuérpia”, que durou pouco menos de quarenta dias com a participação do 61º regimento
01/1833 A Licença do Exército foi assinada com baixa definitiva devido à “l’intention de se retirer”, sem qualquer registro de participação em campanha

Portanto, Rivail não deve ter participado de nenhum conflito armado.

32 A “Campanha dos 10 dias”, de 2 a 12 de agosto de 1831, foi uma tentativa frustrada da Holanda para acabar com a independência belga, que havia sido garantida por ingleses e franceses.
33 Em maio de 1871, com o fim da Comuna de Paris, houve os incêndios na Chefatura de Polícia (Préfecture de Police) e nos Arquivos Municipais de Paris, que destruíram inúmeros documentos. Dos oito milhões de registros de estado civil perdidos, apenas
um terço foi reconstituído. Foram utilizadas fontes diversas para esta reconstituição, não necessariamente as mais precisas, sem contar os problemas de transcrição.
34 Encontrado no acervo “Hubert Forestier”.
35 Arrondissement é um distrito, ou conjunto de bairros.
36 “Gardes Nationales de France”, Almanach royal et national (1831), p. 570. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2037584/f568.image; acesso em: 04/08/2022.
37 Sabatier, “Société d’Éducation Nationale”, Gazette des écoles, 3º ano, nº 265, 19 de julho (1832), p. 1. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9793611s.r=rivail; acesso em: 04/08/2022.
38 A. Michelot, “Association des Chefs d’Institution – Société d’Éducation Nationale”, Gazette des écoles, 3º ano, nº 290, 6 de dezembro (1832), p. 1. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9793587k.r=rivail; acesso em: 04/08/2022.
39 Margem esquerda do Sena (Rive Gauche).
40 Margem direita do Sena (Rive Droite).
41 Ledru-Rollin, “Garde Nationale”, Répertoire général: contenant la jurisprudence de 1791 à 1847, vol. 8 (1848), p. 73, item 352. Link de acesso: books.google.com.br/books?id=tvIqAQAAMAAJ; acesso em: 04/08/2020.
5. A carreira educacional

Em 1825, ano da coroação de Charles X, Rivail já tinha fundado uma Escola de primeiro grau na Rua Richer, que em 1828 a transferiu ao Sr. Sabatier.
Sua carreira educacional começava a decolar e passou, então, a dirigir, no lugar do Sr. Lemoine, um Pensionato para Meninos na Rua de Vaugirard. Em 30
de janeiro de 1828, o Le Courrier Français42 trouxe o seguinte anúncio:
Instituição do Sr. Rivail, Rua de Vaugirard, nº 65, Paris.

Não há pai que não se estremeça com a mera ideia de vícios de todo tipo e, especialmente, os hábitos perniciosos que seus filhos podem contrair na educação pública e as consequências fatais
que podem ter para sua inteligência, sua saúde e suas vidas. Uma experiência de dez anos na carreira de educação e um contínuo estudo da infância fizeram com que o Sr. Rivail observasse as
fontes do mal; ele se convenceu de que, até agora, as pessoas se enganaram quanto aos meios reais de destruí-lo, ou melhor ainda, que nada havia sido feito sobre esse assunto; a prova é que é
bem sabido que ainda não conseguimos fazer isso. É óbvio que a vigilância não é suficiente; porque há tantos momentos em que as crianças podem escapar dessa vigilância, por mais ativa que
seja, que é fácil conceber que esse meio significa ser apenas um auxiliar indispensável; mas que não cumpre o objeto a ser proposto se não for acompanhado de outros meios capazes de destruir as
numerosas causas que podem produzir o mal. O Sr. Rivail, portanto, acha que será útil para os filhos e pais, colocar em prática em seu estabelecimento os meios inteiramente novos que suas
observações lhe sugeriram, meios dos quais, até agora, nenhum uso foi ainda feito em qualquer parte. Ficará feliz se ele puder, assim, garantir a saúde e a vida dos primeiros e tranquilizar a
solicitude dos últimos. Tal é o propósito de seus esforços, um objetivo que ele certamente alcançará se for adequadamente assistido pelos pais. Para garantir o sucesso de seus meios, ele se limita a
levar apenas filhos pequenos, condição indispensável. Em consequência, ele os receberá apenas até a idade de dez e até treze anos, quando ele vai estar perfeitamente seguro de seu caráter. Eles
podem receber em seu estabelecimento a mais variada e extensa instrução de todos os tipos, e completar sua educação lá. O método que o Sr. Rivail segue permite que eles façam progresso rápido
e sólido, uma vez que não se limita a ensinar-lhes palavras, mas se esforça para desenvolver suas ideias e seu julgamento; o Sr. Rivail rejeita todo ensinamento mecânico. Línguas vivas fazem parte
do plano de instrução da casa e não são pagas separadamente.

Talvez seja desta época o texto a seguir, assinado por H. L. D. Rivail e só encontrado na nova edição de 1873 do Curso normal de ensino fundamental.
Introdução à leitura, de L. Guérin43.
Uma criancinha mimada

Certa noite, uma criancinha mimada viu a lua num balde d’água.

– Dê-me a lua – disse à sua babá –, eu quero a lua!

Esta lhe respondeu, rindo de sua impaciência:

– Se você a quer, pegue-a!

A criança, então, foi acometida por uma cólera assustadora; chorou, bateu os pés e gritou tão forte e por tanto tempo que ficou doente e quase morreu, pois a cólera pode nos deixar doentes.
Temos visto crianças adquirirem icterícia depois de um acesso violento de cólera.

Vemos nas duas publicações a preocupação de Rivail com os vícios das crianças que ele se propunha a combater durante o período da infância.
Ainda em 1828, ele sugeriu um Plano proposto para a melhoria da educação pública. Em 1830, traduziu os três primeiros livros de Telêmaco, escritos
por Fénelon, do francês para o alemão, idioma que esqueceria na maturidade. Em agosto de 1830, logo após a Revolução de julho, participou de uma
reunião de chefes de instituição e mestres de pensionatos com o recém-proclamado rei Luís Filipe. Na audiência, Rivail apresentou algumas considerações
sobre seu plano para a instrução pública. Suspeitava-se que num dos bolsos do casaco trazia também um projeto de lei sobre a Universidade, que teria
apresentado, se tivesse o consentimento dos outros chefes de instituição44. Tal projeto foi divulgado em 1831, ano em que também publicou sua Gramática
Francesa Clássica.
Como seria então o cotidiano nos seus pensionatos? Sucesso financeiro também seria uma preocupação para ele?

42 “Avis divers – Institution de M. Rivail, Rue de Vaugirard nº 65 à Paris”, Le Courrier, nº 30, 30 de janeiro (1828), p. 4. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k4707205d/f4.image.r=rivail; acesso em: 04/08/2022.
43 L. Guérin, Cours normal d’enseignement élémentaire. Guérin-Nicolot, Paris – France (1873), pp. 59-60. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6474222m/f60.image.r=rivail; acesso em: 04/08/2022.
44 “Nouvelles diverses”, Gazette des écoles, nº 73, 26 de agosto (1830), p. 284. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9792376s/f4.image.r=rivail; acesso em 04/08/2022.
6. A vida no Instituto Rivail

Em 8 de setembro de 1831, Rivail enviou uma carta à sua futura esposa, Amélie Boudet, falando da mudança das instalações do pensionato, para um
novo endereço, no qual ele já estava residindo havia seis semanas, junto com a mãe e o tio, François Duhamel. Tal imóvel, na Rua de Sèvres, foi alugado
dos jesuítas por quatorze anos45. Na carta, Rivail mencionou também as funções de governanta, que Amélie Boudet provavelmente assumiria logo após o
casamento, ocorrido no início de 1832.
Cartas de Louis e Ernest Teissier du Cros, dois alunos oriundos da região de Cevenas, no centro-sul da França, nos contam mais sobre a vida no internato
em Paris, logo depois da mudança de endereço. É do trabalho de transcrição e análise destas cartas, feito por Romain Daudé, que colhemos fragmentos do
cotidiano do pensionato46.
Qual era a origem desses alunos?
Protestantes, os Teissiers, estabelecidos na aldeia de Cros e depois em Valleraugue, eram, desde o século XVII, uma linhagem de mercadores e fiandeiros
de seda cujos negócios se cruzavam com o comércio, agricultura e sericultura47. Com relação às suas responsabilidades futuras, o filho mais velho de Louis
Pierre Teissier du Cros, Louis, se encarregaria das oficinas no local; o mais jovem, Ernest, ficaria a cargo da prospecção e do acompanhamento comercial,
na França e no exterior, Alemanha e Grã-Bretanha48. No que se refere à educação de seus filhos, foi um pastor que recomendou aos pais um internato
recém-inaugurado em Lyon. Mas, alguns meses depois, insatisfeito com a pedagogia e os problemas disciplinares que prevaleciam no referido internato,
Louis Pierre decidiu retirar de lá seus dois filhos e procurar, imediatamente, um estabelecimento que pudesse acomodá-los em Paris. No final, um internato
particular onde seu sobrinho, Adrien Angliviel, já estava estudando, tinha vagas. Desta vez, era um internato não confessional.
Louis tinha dezessete e Ernest onze anos no final de outubro de 1831, quando chegaram em Paris.
O pensionato, agora denominado Instituto Rivail, estava localizado em um imóvel burguês, abrindo-se de um lado para a Rua de Sèvres e do outro para
um pátio estendido por um jardim49. O valor pago por Louis Pierre Teissier du Cros por seus dois filhos era de 715 francos por trimestre50, aos quais eram
adicionados todos os custos acessórios, como livros e mapas, aulas particulares, roupas, passeios, etc. As cartas nos dizem que havia um número
aproximado de quarenta pensionistas, entre os quais vinte internos e vinte semipensionistas. Os alunos estavam repartidos em várias divisões, sendo o
maior número da idade de Ernest. Louis e seu primo Adrien, ambos nascidos em 1814, estavam, portanto, entre os mais velhos. Além de Rivail e os
parentes, Louis também citou como residentes os criados, entre eles a dona da “nossa roupa suja”, o homem que “arrumava a nossa bagunça” e o porteiro.
Além da relação educada e respeitosa entre o mestre do internato, os professores e os alunos, parecia haver um ambiente cordial, senão familiar, no
estabelecimento. No Instituto Rivail, os residentes não usavam uniforme, mas sim o traje burguês dos jovens da época, o que Louis chamava de “nossa
roupa do dia a dia”.

Fig. 5: Mapa com a planta baixa do Instituto Rivail em destaque


Fonte: Archives de Paris, cote: AN0709, download de 24 de agosto de 2022

O mestre do internato, Rivail, era famoso por seus métodos inspirados nos princípios de educação retirados da obra Emílio, de Jean Jacques Rousseau.
No contato com este último, o jovem Rivail adquiriu e desenvolveu o gosto pelas questões da pedagogia e da educação51. Era uma figura culta, que não
media esforços para divulgar suas teses pedagógicas, em particular às sociedades eruditas do reino52. Em 1832, ganhou a votação da Academia de Arras,
que convidava a trabalhar sobre o seguinte tema: “Quais são as modificações úteis e fáceis a introduzir no ensino atual dos colégios para adaptá-los mais ao
estado da civilização e às necessidades da época?”53. O prêmio recebido refletiu-se em todo o internato, como comentou Louis ao pai: “Sem dúvida, você já
deve ter visto nos jornais que ele conquistou uma medalha de ouro de 300 francos na Academia de Arras, onde todos os chefes de instituição competiam
pelo melhor método de ensino”.
Em um trecho desta tese, Rivail diz:
Não devemos confiar mais a educação [dos jovens] ao primeiro indivíduo que afirma possuir as qualidades de um professor, do que confiaríamos sua saúde ao primeiro que se dissesse médico
sem ter comprovado.

Não encontramos nenhuma evidência que o seu Plano proposto para a melhoria da educação pública de 182854 tenha recebido algum prêmio da mesma
Academia, contudo, evidentemente, achamos similaridades entre ele e a monografia premiada de 1831, por exemplo, quando diz:
Não confiaríamos a saúde a um indivíduo que se dissesse médico sem ter estudado medicina; por que confiamos assim tão levianamente os filhos a homens que não sabem o que é educação?

A propósito, Rivail só se tornou membro correspondente da Academia de Arras quando foi nomeado em 15 de março de 183355.
Ainda assim, segundo Daudé, os professores que trabalhavam nos internatos constituíam um grupo diverso e difícil de se definir: quais seriam as suas
origens sociais? Quais seriam a sua formação e a sua experiência? As cartas silenciaram sobre esses aspectos. Um fato óbvio era a multidisciplinaridade
que reinava entre os professores do Instituto Rivail: era raro ter um professor por disciplina. Assim, Louis estudou sob a direção de um “mestre da língua
francesa, geografia e física (...), que era um homem de letras e que trabalhava com uma obra de fabricação de tecidos de seda na França e na Inglaterra”. A
competência dos professores às vezes levava a pedidos de explicações bastante firmes, como em setembro de 1832, quando o tio Jacques, residente em
Paris, exigiu que Rivail “nos desse melhores professores”. Poucos dias depois, alguns deles deixariam o instituto e seriam substituídos; no final de 1832, o
professor de desenho faria as malas56.
Os cursos oferecidos eram de três tipos: cursos comuns, aulas particulares tomadas no internato e cursos públicos ministrados fora (em “A Sorbonne” e
no “Artes e Ofícios”)57.
Entre as disciplinas ministradas aos internos, o francês ocupava um lugar importante, mas também havia inglês, alemão, etc. A matemática estava no
centro do currículo dos jovens e tinham, também, aulas de história, geografia, física e cosmografia, além de cursos públicos, realizados fora do instituto: de
química industrial pelo Sr. Payen58, de geografia natural pelo Sr. Loubens59, de astronomia pelo Sr. Biot60, de física experimental pelo Sr. Pouillet61 e de
história moderna pelo Sr. Lourmand62. Rivail dava as aulas de física, geografia, matemática, cosmografia e leitura dirigida63. Para os dois meninos, a prática
das artes no internato se limitava ao desenho e à música. Louis tocava flauta doce e Ernest estava aprendendo violino.
O Instituto Rivail, que ficou conhecido também como Liceu Polimático, foi a primeira instituição na qual foram organizados estudos completos fora dos
estudos clássicos64:
Convidamos os amigos do “progresso da educação pública” a visitar o Liceu Polimático de nosso colega Sr. Rivail, Rua de Sèvres, 35. Esta é a primeira instituição na qual foram organizados
estudos completos fora dos estudos clássicos. Eles agora incluem: instrução religiosa, leitura comum e leitura de oratória, escrita; língua francesa, retórica e literatura; latim, grego, inglês,
alemão, geografia, história, aritmética e geometria usuais, matemática superior; desenho geométrico de plantas [planos], máquinas e obras de arte; desenho acadêmico e paisagístico; geografia
astronômica; física e a química usuais; anatomia fisiológica e higiênica; anatomia aplicada ao desenho e à pintura; mecânica aplicada às artes; tecnologia; um curso completo de estudos
comerciais e industriais; e um curso preparatório para o bacharelado em artes e ciências.

Uma sucessão de boas notas era recompensada por uma ida ao espetáculo, como em 26 de maio de 1832: “Esqueci de dizer que o Sr. Rivail, vendo que
eu ainda tinha um ‘6’ [nota máxima, que variava de ‘1’ até ‘6’], assim como um de meus camaradas, nos levou ao show do Sr. Comte [prestidigitador e
ventríloquo suíço] no sábado, onde nos divertimos muito”.
Louis, o mais velho, descreveu assim a atmosfera de estudo que reinava no estabelecimento: “(...) as atividades do internato continuam indo bem; cada
aluno trabalha lá bastante bem e, em geral, o comportamento de todos é excelente”. A jornada do aluno tinha um ritmo constante: “Você primeiro saberá
que todas as manhãs, quando acordo, tenho duas horas de estudo: uma das 6 às 7 e outra das 7 às 8. Aproveito esse tempo para aprender todas as lições que
tenho que recitar no dia. Café da manhã servido65, começamos a estudar até o meio-dia, que é a hora do almoço66 (...) depois disso temos uma hora de
recreio e depois retomamos o estudo até as 16h30, que é a hora do jantar; (…) depois disso vamos correr no jardim até as 17h30; finalmente, voltamos a
estudar até as 21 h e vamos nos deitar”.
Ernest ganhava dez tostões67 por semana, mas as sanções pecuniárias a que estava acostumado frequentemente corroíam essas economias (ou pé-de-
meia), como ele confidenciou aos pais: “pagamos uma multa68 por sentar nas mesas, por escalar uma janela ou quando algo é quebrado, significa que, no
final da semana, eu só tenho cinco tostões”.
Uma certa cautela era necessária quanto ao conteúdo da correspondência recebida, como Louis lembrou ao pai: “Finalmente, você me pergunta se o Sr.
Rivail abre as cartas; vou te dizer que ele faz muito mais; ele só recebe as que são timbradas e isso levou-me a dizer aos meus camaradas de Lyon que as
enviassem para Adrien”.
A publicidade que Rivail fazia em torno de seu internato e a divulgação que mantinha de seus métodos de ensino “inovadores” podiam explicar a
passagem de certos visitantes de terras mais distantes, como destacou Ernest: “são quatro turcos que vieram ontem69 e, algum tempo atrás, um egípcio
também veio”.
Podemos ver esta preocupação com a publicidade também no finalzinho do verão de 1837, quando Rivail foi a Londres divulgar o Liceu Polimático. É
do London Morning Post de 16 de setembro de 1837 o anúncio:
Educação francesa – Sr. Rivail, diretor da famosa instituição de jovens conhecida como Lycée Polymatique, Paris, nº 39 [sic], Rua de Sèvres, tem a honra de informar às famílias inglesas que
gostariam de enviar seus filhos à França, que ele está em Londres por alguns dias. Ele dará aos pais toda a informação de que necessitam, e as recomendações mais respeitáveis, sobre a educação
dada nesta instituição, umas das mais belas de Paris, e onde os jovens estrangeiros são mais capazes de progredir rapidamente na língua francesa e em todas as ciências práticas. Ele se
encarregará de levar a Paris os jovens que serão confiados a ele. Entre em contato com o Sr. Rival, No. 3, Trinity Place, Charing Cross, das 9 h da manhã às 3 h.

Infelizmente, depois de treze dias lá, não teve sucesso.


Bem, na tarde de terça-feira, 14 de agosto de 1832, a cerimônia de premiação foi de natureza solene70, conforme narrou Louis: “(...) correu tudo muito
bem; uma espécie de barraca decorada com vários tapetes trazidos da manufatura dos Gobelins foi erguida no pátio; todos os pais se reuniram no jardim à 1
hora, e o Sr. Rivail começou a fazer seu discurso às 2 horas; durou cerca de vinte e cinco minutos e agradou muita gente71. (...). Em seguida, os livros foram
distribuídos a todos os alunos (...); recebi o primeiro prêmio em Aritmética, uma obra em dois volumes intitulada Cartas para Émilie; recebi então a Lógica
francesa e o Dicionário da Bíblia como prêmios de satisfação geral; a Educação completa, em quatro volumes, como prêmio de boa conduta; e O século de
Luís XIV, em dois volumes, como prêmio de bom caráter”.
As férias dos internos começariam após a cerimônia de premiação: alunos “de fora” (diurnos) teriam apenas quinze dias de férias, e os internos teriam um
mês e meio.
Entre os eventos importantes daquele ano de 1832, a epidemia de cólera seria profundamente lembrada. Em Paris, o primeiro caso foi registrado em 26
de março de 1832. Em 5 de abril, Louis escreveu: “Você deve ter ficado muito assustado quando soube da chegada do cólera a Paris. Na verdade, é uma
doença grave (...). De preferência ataca as pessoas do povo que não têm meios para se preservar, por isso há um número bastante grande em todos os
hospitais; em geral, todos aqueles que cometem muito excesso ao ceder às bebidas ou a outras paixões são principalmente afetados; mas o surpreendente é
que ataca poucos jovens; em Viena, Áustria, onde permaneceu por dois ou três meses, morreram apenas três meninos de treze a quinze anos, os quais,
ainda assim, eram da classe trabalhadora”. E deu as instruções aplicadas pelo mestre do pensionato a fim de proteger o internato da epidemia: “As várias
maneiras de se proteger do cólera são não pegar um resfriado, se proteger da umidade e comer alimentos muito saudáveis. Também é bom envolver o corpo
com um cinto de lã e, algumas vezes, tomar um banho agradavelmente quente. Quanto a isso, vocês podem ficar completamente seguros por nossa conta;
estamos em um estabelecimento muito bem ventilado; nossa comida mudou completamente; não recebemos mais laticínios nem salada; também tivemos o
cuidado de manter-nos sempre com as meias de lã; e hoje devemos ser levados para um banho”.
Além disso, “mantemos cloro constantemente em nosso dormitório e na sala de estudo e, uma vez a cada cinco dias, lavamos os pés com ele”. Paris se
esvaziou de seus habitantes ou, ao menos, daqueles que podiam ir para o campo: “uma multidão de pessoas ricas nas quais a doença começou a penetrar
está deixando a capital”. Os que permaneciam limitavam suas saídas ao mínimo. O internato via seus efetivos diminuírem: “Há um internato próximo que
acaba de ser fechado; de cinquenta a sessenta alunos, restam apenas cinco a seis. No do Sr. Rivail, sete ou oito internos saíram, somos apenas doze
residentes”.
O mestre do internato se apressou em escrever aos pais para tranquilizá-los e informá-los sobre as medidas que tomou para conter a epidemia: “Os
principais itens considerados envenenados são o vinho dos comerciantes, a água nos baldes dos carregadores e os bolos e doces que se vendem e se
distribuem nas ruas. Quanto ao primeiro objeto, temos nosso suprimento de vinho, para o segundo, temos um barril de água que os próprios empregados da
casa irão encher; em relação aos bolos, não deixei os alunos passearem hoje para que não ficassem tentados a comprar lá fora. Gosto de acreditar, senhor,
que esta informação geral dissipará qualquer ansiedade em você, e o fará presumir que todas as medidas detalhadas, as quais lhe transmito, são de minha
parte objeto de tão meticuloso cuidado”. E continuando nos rumores de envenenamento ou conspiração que acompanhavam a epidemia: “As pessoas
‘surtaram’ e basta ver um indivíduo rondando uma loja de vinhos para gritar: envenenador, e ele é massacrado ali mesmo. Foi assim que ontem vimos
pessoas, talvez inocentes, ou jogadas no Sena ou massacradas por uma gentalha furiosa”.
Algumas semanas depois, Louis anunciou que o fim da epidemia agora era apenas uma questão de dias: “Os últimos jornais e as últimas cartas que
recebeu devem tê-lo tranquilizado perfeitamente por causa do cólera. É bem verdade dizer que essa doença diminui muito e que só morrem de cem a cento
e vinte pessoas por dia. Além disso, acredito que, em menos de dez dias, estaremos totalmente livres dela”.
Para Louis Teissier du Cros, os estudos no Instituto Rivail estavam prestes a terminar. Ele retornou a Valleraugue em 1833, aos dezenove anos. Seu
irmão Ernest permaneceu como estudante em Paris no internato até 1836. Aos dezesseis anos, ele conseguiu alguns segundos lugares. “Sem ser o melhor
de sua classe”, comentou o Sr. Rivail com cautela, “ele não é o último”. E ele ganhou os galões de prata, “tanto mais honroso quanto dá o importante
privilégio de ser isento de toda punição”72.
Seu tio Jacques estava tentando convertê-lo ao sotaque afiado73 da boa sociedade parisiense, para fazê-lo abandonar “essas entonações sulistas, das quais
temos muita dificuldade em nos livrar”. E se congratulava por estar se saindo melhor do que Louis ou Adrien.
Mas Louis Pierre, o pai, logo ficou impaciente. Esses estudos pareciam longos para ele. De Valleraugue, Louis, o filho mais velho, achou adequado
explicar a situação a seu tio Jacques, que colocou Ernest sob sua proteção: “Estamos tão irritados com os procedimentos meticulosos que o Sr. Rivail
emprega para ganhar dinheiro74, que é hora de acabar com isso; papai agora não tem outro desejo senão colocar seus filhos o mais rápido possível à frente
de seu negócio”. O futuro viajante corporativo deveria ser capaz de falar alemão e inglês o mais rápido possível. E ainda estava longe disso. Ele tinha que
ser mandado para o exterior. Jacques concordou, ele sempre achou que as aulas de línguas com o Sr. Rivail eram uma perda de tempo. Ele aconselhou
começar pela Alemanha. E na primavera de 183775 Ernest aparece com um Sr. Hahn em Frankfurt.
Esta educação de dois filhos de Cevenas no internato parisiense de Rivail era um passo no processo de criação de uma elite moderna: a de uma burguesia
esclarecida, motor da Revolução Industrial e que cultivava valores humanistas76.
Outros alunos que passaram pelo Instituto Rivail foram: Eugène Mathieu, poeta e dramaturgo, nascido em 1821 na Bretanha77; Mihran Düz Bey, armênio
nascido em 1817 em Constantinopla, um dos capitalistas mais ricos do país; Pascal Artin Bilezikdji, também armênio nascido em Constantinopla em 1814,
fotógrafo, numismata e arquiteto; Auguste Louis Dominique Delpech, médico, político e epidemiologista nascido em 1818; e Charles Gabriel Thalès
Bernard, poeta e escritor, nascido em 1821 em Paris78; além de Louis Rouyer, que com quinze anos também fez um discurso na cerimônia de premiação de
agosto de 183279.

45 J. Burnichon, La Compagnie de Jésus en France : histoire d’un siècle, 1814-1914, vol II. Gabriel Beauchesne, Éditeur, Paris – France (1916), p. 147. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k65825444/f157.image.r=bail; acesso em: 04/08/2022.
46 R. Daudé, “Deux Cévenols à Paris : les lettres de Louis et Ernest Teissier du Cros à la pension Rivail (1830-1833)”, Mémoires de l’Académie de Nîmes, IXe série, vol. XCII (2018), p.125. Link de acesso: communication.academiedenimes.org/wp-
content/uploads/2019/07/Mémoires-2018.pdf; acesso em: 04/08/2022.
47 R. Teissier du Cros, Chroniques cévenoles, Une famille de filateurs de soie à Valleraugue (1792-1904). Les Presses du Languedoc, Montpellier – France (1996), p. 89.
48 Ibid., p. 135.
49 Nossas investigações em plantas antigas revelaram que metade do terreno usado na época pelo Liceu Polimático é ocupado hoje pela Igreja de Santo Inácio e a outra metade corresponde a 50% do atual Centro Sèvres; em resumo, no espaço do Instituto
Rivail temos atualmente uma Igreja Católica, parte da uma faculdade jesuíta e algumas lojas.
50 Cerca de 1.200 reais por mês por aluno.
51 R. Daudé, “Deux Cévenols à Paris : les lettres de Louis et Ernest Teissier du Cros à la pension Rivail (1830-1833)”, Mémoires de l’Académie de Nîmes, IXe série, vol. XCII (2018), p.129. Link de acesso: communication.academiedenimes.org/wp-
content/uploads/2019/07/Mémoires-2018.pdf; acesso em: 04/08/2022.
52 Rivail tinha diplomas de participante de pelo menos doze sociedades: de encorajamento da indústria nacional (1825), de agricultura do departamento de l’Ain (1828), de previdência de chefes de instituições e mestres de pensionato (1829), de gramática
(1829), de estatística universal (1831), de educação nacional (1831), da academia de Arras (1833), do instituto histórico (1834), da sociedade de ciências naturais (1835), do instituto de línguas (1838), da sociedade frenológica (1843) e da sociedade de
instrução elementar (1847). Talvez tivesse também da academia da indústria agrícola, manufatureira e comercial [conforme Z. Wantuil e F. Thiesen, Allan Kardec, vol. I. FEB, Rio de Janeiro, RJ (1979), p. 177].
53 H. L. D Rivail, “Examen sur la question suivante, proposée par la Société Royale d’Arras, Quelles sont les modifications utiles et faciles a introduire dans l’enseignement actuel des collèges pour le mettre plus en rapport avec l’état de la civilisation et les
besoins de l’époque?”, Mémoires de l’académie des sciences, lettres et arts d’Arras, vol. 13. Topino, Arras – France (1832), p. 68. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6461942k/f84.image.r=rivail; acesso em: 04/08/2022.
54 H. L. D. Rivail, Plan proposé pour l’amélioration de l’éducation publique. Dentu, Paris – France (1828). Link de acesso: catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb30010983k; acesso em: 04/08/2022.
55 “Membres correspondants”, Mémoires de l’académie des sciences, lettres et arts d’Arras, vol. 26 (1853), p. 561. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k57745774/f565.image.r=rivail; acesso em: 04/08/2022.
56 Esta preocupação com os professores também apareceu no Journal des débats politiques et littéraires de 14 de setembro de 1837, num julgamento de falsidade ideológica para admissão ao grau de bacharel em letras, em que Rivail, como testemunha
ausente, declarou por escrito que Morlat, um dos acusados, havia lhe oferecido jovens como mestres de estudos, mas que havia recusado seus bons ofícios, acreditando que ele era pouco escrupuloso na escolha das pessoas que apresentava; Morlat protestou
alegando que isso não era verdade e que o jovem mencionado pelo Sr. Rivail fora recomendado pelo Padre Loriquet, um ex-jesuíta.
57 Importantes estabelecimentos de ensino superior na França.
58 Anselme Payen (1795-1871) foi químico e industrial francês, a quem devemos a descoberta da celulose.
59 Émile Loubens (1799-1889) foi geógrafo e pedagogo francês.
60 Jean Baptiste Biot (1774-1862) foi físico, astrônomo e matemático francês, precursor das equações de Maxwell para o eletromagnetismo.
61 Claude Servais Mathias Pouillet (1790-1868) foi físico e político francês.
62 Antoine Désiré Lourmand (1795 – 1864) foi secretário-geral da Sociedade de Métodos de Ensino.
63 Alguns outros professores que passaram pelo Instituto foram o Sr. Joseph Ottavi (1809-1841), professor itinerante, palestrante, jornalista e crítico literário francês, que deu um curso de literatura no Liceu [Le Charivari de 8 de abril de 1836] e o Sr. De
Brière, arqueólogo, membro da Sociedade Asiática e autor do livro A história do Prêmio Volney de 1833, que ministrou seu terceiro curso sobre religiões antigas e hieróglifos egípcios no anfiteatro do Liceu [Gazette de France de 29 de fevereiro de 1840],
além do Sr. Jean Jacques Vignerte (1806-1870), político francês, filiado à Sociedade de Direitos Humanos, que foi preso e condenado várias vezes, até que em 1835 fugiu da prisão e foi para um exílio de seis anos. E, ainda, os Srs. Gilbert Vallet e Héraudet,
cujas identidades completas não temos [Z. Wantuil e F. Thiesen, Allan Kardec: o educador e o codificador, 4ª Edição. FEB, Brasília, DF (2019)].
64 Société des études historiques, “Chronique”, Journal de l’Institut historique, vol. II (1835), p. 218. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k11521r/f222.image.r=rivail; acesso em: 04/08/2022.
65 Uma tigela cheia de leite com um grande pedaço de pão.
66 Sempre tem dois pratos: mingau e salada ou queijo.
67 Dez sous d’argent ou 10 x 0,05 franco = 0,50 franco ou 5,00 reais.
68 Daudé transcreveu da carta como “amande [sic]”, isto é, “amêndoa [sic]”. De qualquer forma, Ernest queria dizer “amende”, ou seja, “multa”.
69 Talvez Mihran Düz Bey e Pascal Artin Bilezikdji, armênios nascidos em Constantinopla, que foram alunos do instituto e que mencionamos no final do capítulo.
70 O final do ano letivo acontecia em meados do ano, e era seguido da cerimônia de premiação, com vários discursos.
71 H. L. D. Rivail, Discours prononcé à la distribution des prix du 14 aou^t 1834, par M. Rivail, chef d’institution. Institution Rivail, Paris – France (1834). Link de acesso: catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb30010931b; acesso em: 04/08/2022.
72 R. Teissier du Cros, Chroniques cévenoles, Une famille de filateurs de soie à Valleraugue (1792-1904). Les Presses du Languedoc, Montpellier – France (1996), p. 152.
73 Sotaque específico das regiões do norte da França. É um regionalismo assim designado pelos falantes do sul, como eram os Teissiers.
74 Talvez uma reclamação com relação às multas por indisciplina.
75 Ascélie, a mãe, se opôs à sua saída da França antes dos dezessete anos.
76 R. Daudé, “Deux Cévenols à Paris : les lettres de Louis et Ernest Teissier du Cros à la pension Rivail (1830-1833)”, Mémoires de l’Académie de Nîmes, IXe série, vol. XCII (2018), p.125. Link de acesso: communication.academiedenimes.org/wp-
content/uploads/2019/07/Mémoires-2018.pdf; acesso em: 04/08/2022.
77 F. N. Staaff, La littérature française depuis la formation de la langue jusqu’à nos jours: 2. ptie. Poëtes vivants en 1870. Didier et Cie, Paris – France (1877), p. 863. Link de acesso: books.google.com.br/books?id=7pE9AAAAYAAJ; acesso em:
04/08/2022.
78 Ibid., p. 1068.
79 L. Rouyer, Discours prononcé par le jeune Louis Rouyer, a^gé de 15 ans, élève de l’Institution Rivail, à la distribution des prix du 14 aou^t 1834. Institution Rivail, Paris – France (1834). Link de acesso: catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb30010931b; acesso
em: 04/08/2022.
7. Os anos mais turbulentos

Junto às atividades educacionais, Rivail também exerceu sua criatividade com invenções. Em maio de 1835, duas delas foram noticiadas no jornal Le
Censeur, de Lyon: um medidor de parâmetros do vento e um sistema de dessalinização, aparentemente sem maiores repercussões. O pensionato continuou
sendo sua principal prioridade até 1840.
Mesmo assim, decidiu, no início de 1839, fundar um Banco de Trocas junto com Maurice Lachâtre80, mais tarde responsável pela enciclopédia conhecida
como Novo Dicionário Universal e futuro editor na França de O Capital de Karl Marx81.
Bem, o objetivo do Banco de Trocas era facilitar as transações comerciais, fornecer novas oportunidades ao comércio e à indústria e prover a falta de
recursos pecuniários por meio de troca de produtos de qualquer natureza. Esta instituição também publicou o Journal de la Banque des échanges, de curta
duração.
A década de 1840 e o início dos anos 1850 foi um período complexo da vida de Rivail, com vários embaraços, tanto na carreira educacional, quanto na
vida pessoal e nos outros negócios, incluindo a transferência da função de “maître de pension” do Liceu Polimático para o Sr. Amédée Pitolet em 1840, a
morte e a herança da tia rica em 1841, visitas à Aix-la-Chapelle (Aachen, na Alemanha) junto com o tio em 1842, a saída da sociedade com Lachâtre em
1843, a detenção em 1844, o falecimento da pequena Louise em 1845 e dos pais de Amélie Boudet em 1847, etc.
Chegando perto dos quarenta anos de idade, ele também buscou outras formas de aumentar a renda, trabalhando como liquidante de uma companhia de
seguros e talvez do jornal La Patrie, junto com o pedagogo e escritor Lévi Alvarès82, como professor de matemática e, junto com Amélie Boudet, na
direção de uma Escola de Comércio e um Pensionato para Meninas, que na verdade pertencia à professora Sra. Ouradou. Continuou também participando
de várias sociedades, inclusive do Instituto Histórico e da Sociedade Frenológica. Depois disso, foi contador e tesoureiro no Théâtre des Délassements-
Comiques, como veremos no próximo capítulo.
Vamos agora conhecer um pouco mais desta fase atribulada. Comecemos em 28 de janeiro de 1840 com a publicação de uma deliberação do Conselho
Real para transferência da função de “maître de pension” de Rivail parao Sr. Pitolet83. Talvez os negócios não estivessem indo bem, porque o arrendamento
do prédio do Liceu junto aos jesuítas terminaria apenas em 1845.
No Almanaque dos 500.000 endereços de Paris de janeiro de 1841 ainda temos Rivail e Pitolet juntos no endereço do Liceu Polimático84. Rivail,
entretanto, teve dificuldades para receber o dinheiro da transferência do pensionato. “Aguardo com expectativa a decisão do terceiro árbitro no caso
Pitolet” disse ele numa carta de 23 de agosto de 1841 para “ma chère Amélie”, endereçada de Lyon, onde estava para o funeral da tia Reine. Só na carta de
9 de outubro de 1841, agora de Paris para Château-du-Loir, onde a esposa estava na casa dos pais, encontramos: “É um avanço que consegui obter a
obrigação [a dívida] de Pitolet, e isso não foi sem dificuldade”.
Rivail já tinha se mudado em 1841 para a Rua Tiquetonne85, enquanto Pitolet continuou na Rua de Sèvres até 1845, quando então se transferiu para a Rua
Clichy86, deixando o prédio sem qualquer manutenção. Um processo foi iniciado na justiça pelos proprietários do imóvel contra ele e Rivail, por este ter
sido seu fiador. Em uma audiência de fevereiro de 1846, a Corte de Apelação (segunda instância) confirmou a decisão do Tribunal Civil do Sena (primeira
instância) de junho de 1845, que os tinha condenado ao pagamento de determinada quantia.
No início de 1842 Rivail foi nomeado administrador provisório da Seguradora “Le Palladium, Assurances des villes et des campagnes”.
Um ponto controverso, nesta época, foram suas idas à Alemanha, junto com o tio François Duhamel, talvez porque ainda falasse alemão na época, talvez
porque, como matemático, conhecia bem estatística, e desta forma ajudaria o tio nas tentativas de tirar a sorte na sala de jogos da “Redoute”, famoso
cassino desta cidade. Ou então, poderia ser um costume da burguesia francesa da época, como também era o hábito de aspirar um pouco de tabaco moído,
que Rivail aparentemente cultivava, já que possuía uma tabaqueira87.

Fig. 6: Litografia do interior de La Redoute em Aix-la-Chapelle, de F. Stroobant


Fonte: Domínio Público88

Na carta de 15 de agosto de 1842, postada na Alemanha, em Aix-le-Chapelle, à “ma bonne Amélie”, em que a pequena Louise também foi citada,
descobrimos o seguinte: “(...) eu queria poder anunciar a você algum resultado positivo, eu só posso lhe dar esperanças (...)” e “(...) meu negócio aqui é tão
importante quanto o banco [a sociedade que tinha com Lachâtre], fizemos muitas outras tentativas com boas e más alternativas (...)”. Uma carta anterior, de
23 de junho, nos dá a entender que Rivail e o tio estavam nesta cidade pela primeira vez. Uma carta posterior, de 24 de outubro, revelou que não foram
bem-sucedidos, razão pela qual, talvez, tivesse decidido não retornar à Alemanha no ano seguinte.
De volta a Paris e ainda sem nenhuma escola ou pensionato, participou na sessão de 27 de junho de 1843 da Sociedade Frenológica de Paris89, onde
apresentou uma dissertação90:
– Rivail lê uma dissertação sobre as causas da dissidência entre teólogos e frenologistas. Rivail encontra a causa dessa dissidência na invasão da frenologia em terras que não são dela. Ele acha
que qualquer pesquisa sobre a natureza da alma está fora do âmbito da frenologia. Da mesma forma, ele acrescenta que físicos e astrônomos observam, calculam e preveem os fenômenos da
gravitação e dos movimentos celestes sem voltar à primeira causa do impulso dado à matéria na origem do tempo; do mesmo modo, a frenologia pode estudar e analisar os fenômenos das
faculdades sem se preocupar com a causa primária ou a alma. Na prática, a frenologia se torna uma ciência puramente fisiológica e anatômica, alheia a qualquer controvérsia sobre espiritualismo
e materialismo, e compatível com todas as crenças; pois não há nada que impeça que alguns atribuam a causa do fenômeno do pensamento a uma alma imaterial e imortal, e outros ao simples
resultado da harmonia do jogo dos órgãos, pois no final das contas, o fenômeno, como fato material, existe assim mesmo.

Para evitar as disputas que surgem com muita frequência da confusão de palavras, o Sr. Rivail gostaria que elas apresentassem uma aceitação definitiva e não sujeita a várias interpretações;
não são essas as palavras “alma” e “psicologia” que, pelo contrário, têm tantos significados quanto opiniões sobre a natureza da alma. Para o Sr. Rivail, a frenologia é dividida em três ramos:

1. Facultologia, parte da frenologia que lida com o estudo das faculdades e suas combinações, ou seja, os fenômenos da vida intelectual e moral, abstraídos da causa primária;

2. Organologia cerebral, parte da frenologia que lida com as várias seções do cérebro atribuídas a cada faculdade;

3. Cranioscopia, que lida com a influência dos órgãos cerebrais na forma do crânio e sinais externos nos quais se pode apreciar o desenvolvimento desses órgãos.

Pela palavra facultologia, em substituição a psicologia, a ciência encontra-se encerrada dentro dos verdadeiros limites de suas atribuições, e a palavra frenologia, que como qualificação geral
da ciência não será mais confundida com cranioscopia, que tem um objeto muito especial, e que é realmente apenas uma divisão.

E apesar da carta de 22 de outubro de 1843 dizer que Rivail já tinha tomado algumas iniciativas quanto às aulas e que iria levá-las adiante mais
ativamente, em outra, de 6 de novembro de 1843, em pleno início de ano letivo91, ele avisou que iria se reencontrar com Amélie Boudet na casa dos pais
dela. Para isso, ele, que usava frequentemente o serviço de transporte Laffitte (carruagens), estava pensando desta vez em usar barco para o trajeto entre
Orléans e Tours, parte intermediária do caminho entre Paris e Château-du-Loir. Como Allan Kardec, ele usaria com maior frequência a malha ferroviária,
desenvolvida mais extensamente a partir da década de 1850.

Fig. 7: Litografia de Messagerie Laffitte, Gaillard et Cie, de V. Adam


Fonte: Museu Carnavalet

Só quase um ano depois, na carta de 16 de setembro de 1844, ele confirmou que estava agora em tratativas com a Sra. Ouradou para assumir o
estabelecimento dela e que ainda não tinha novos alunos.
Um pouco antes, ainda em 1844, Rivail foi detido por vinte e quatro horas, de 24 a 25 de julho. Seu “certificat d’écrou”, que seria o registro da detenção,
não mencionou as razões, talvez alguma questão de burocracia disciplinar. Ele já morava então na Rua Mauconseil, que ficava no antigo 5º arrondissement,
mas estava lotado na 10ª legião, que correspondia ao arrondissement do seu endereço mais antigo, uma vez que, como já vimos, cada arrondissement tinha
uma legião associada. Pode ser que tenha havido alguma falha de comunicação de Rivail.
Na época, os comandantes de Rivail eram o Coronel Visconde Augustin Louis Lemercier e o Tenente-Coronel Dequevauvillers. No Manual dos
Conselhos de Disciplina das Guardas Nacionais92, não há penas de um dia. Para dois dias há somente estas possibilidades:
1. Abandono de suas armas ou de seu posto antes de ser substituído [no plantão];

2. Conduta que pode prejudicar a disciplina da Guarda Nacional ou à ordem pública, quando em serviço.

Já no artigo 18 da legislação sobre a Guarda Nacional93 é informado que “Em caso de mudança de domicílio ou de residência habitual, o cidadão inscrito
terá o seu nome apagado do registro da antiga municipalidade, será inscrito no da nova e será distribuído a uma companhia; caso contrário, ficará sujeito ao
serviço ou substituição em ambas as municipalidades”. Não sabemos se isso se aplicaria aos distritos de Paris.
Finalmente, vemos na carta de 29 de setembro de 1845, endereçada a “ma chère Amélie”, o retorno às atividades educacionais: “(...) 14 novas [alunas],
das quais 12 estão inscritas, havia 74 presentes durante a primeira semana do ano letivo, enquanto no outro ano havia apenas 40”. Rivail estava se referindo
à Escola de Comércio e Pensionato para Meninas na Rua Mauconseil, que durou do final de 1844 até o início de 1850, portanto antes da lei Falloux ser
aprovada em 15 de março de 1850, e que na prática permitiu o controle da Igreja Católica sobre o ensino. A passagem de tal lei teve a cooperação de Luís
Napoleão, eleito fazia pouco mais de um ano, após a Revolução de 1848.
São desta época os discursos de Amélie no encerramento do ano letivo, nos quais ela diz: “(...) o amor filial é um dever sagrado, visto que, depois de
Deus, seus pais são o que vocês têm de mais querido no mundo. Foi o próprio Deus que o gravou no coração do homem e o inscreveu nos seus
mandamentos, de modo que falhar neles seria ofender a Deus e violar os seus santos preceitos”94 e “(...) me fazem apreciar o título de mãe que me dão.
Esse título, quero continuar a justificá-lo perante os seus olhos pelo meu carinho, pelo dos seus pais, pela minha constante diligência. Mas esse título, ainda
que me dê direitos, também me impõe um dever, o de zelar pelo seu caráter, como faria uma verdadeira mãe, e reprimir os seus desvios”95.
Enquanto isso, no Instituto Histórico, no biênio 1845/1846, quando D. Pedro II do Brasil era membro protetor, Rivail era membro residente; fazia parte
da 3ª classe (História das ciências físicas, matemáticas, sociais e filosóficas)96.
Apesar desta aparente estabilidade, em uma carta de 30 de abril de 1846, Rivail mencionou uma correspondência recebida do tio, falando do empréstimo
de 400 francos que o sobrinho tinha lhe feito e, também, de negócios com cavalos, talvez corridas, sugerindo que o casal Rivail se juntasse a ele em Aix-la-
Chapelle. O tio não se emendaria! Como ele retornou a Paris ainda em setembro, deixando uma tal Eloise, que lhe havia roubado, parece que os negócios
não prosperaram.
De qualquer forma, o trabalho continuou normalmente no Pensionato para Meninas até que novas circunstâncias forçassem Rivail a deixá-lo em janeiro
de 1850.
No seu último discurso na cerimônia de premiação, Rivail, que gostava de palestrar, depois de discorrer sobre amabilidade, benevolência e consideração,
fala: “(...) comum é ver os professores ou as professoras sendo consultados sobre o caráter dos jovens que eles educaram, antes de se casarem, e isso já nos
aconteceu mais de uma vez. Isso porque aquele que, em sua juventude, mostrou-se fundamentalmente bom, benevolente, ativo e trabalhador oferece
garantias que nunca encontraremos em quem se mostrou mau companheiro, mau filho, enganador, astucioso, preguiçoso e desordeiro”97.
80 A maior parte dos contratos, estatutos e atas das sociedades referenciadas ao longo do texto estão disponíveis nos sites: siv.archives-nationales.culture.gouv.fr [Arquivos Nacionais da França] e archives.paris.fr/ [Arquivos Municipais de Paris] ou
facebook.com/HistoriaDoEspiritismo [CSI do Espiritismo].
81 Aliás, numa correspondência enviada ao seu genro Paul Lafargue, de 1872, Marx chegou a chamar Lachâtre de charlatão abominável, devido à dor de cabeça que a tradução francesa estava lhe dando [R. Pinho, Apontamentos sobre a primeira edição
francesa d’O capital – II. Monografia (s/n). Link de acesso: aterraeredonda.com.br/apontamentos-sobre-a-primeira-edicao-francesa-do-capital-ii/; acesso em: 05/08/2022]. Em outra carta, desta vez ao próprio Lachâtre, de 1873, Marx mencionou o
Espiritismo, doutrina estabelecida por Rivail anos depois, e que ele, Marx, detestava [C. S. Bastos, Manuscrito em um lote de cartas de 160.000 euros revela o que Karl Marx pensava do Espiritismo em 1873! Monografia (s/n). Link para uma versão on-
line do texto: facebook.com/HistoriaDoEspiritismo/posts/pfbid02i5ri7PWmiBkuviGZdXHjMYzHVHmsWBRVMJFmR8tsNVmTkTF7LGaGeZZPxGAJd5w3l; acesso em: 05/08/2022.
82 É da autoria de ambos o livro Gramática normal dos exames de 1849.
83 Ministère de l’Instruction publique, “Délibérations du Conseil Royal”, Journal général de l’Instruction publique, vol. 9, nº 16, 22 de fevereiro (1840), p. 117. Link de acesso: books.google.com.br/books?hl=pt-BR&id=4puRO4Vrn7IC; acesso em:
05/08/2022.
84 “Liste générale des adresses de Paris”, Almanach des 500.000 adresses de Paris, des départements et des pays étrangers (1841), p. 495. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k62931221/f574.image.r=rivail; acesso em: 05/08/2022.
85 Mais tarde, em 1848, morou nesta mesma rua o Sr. Louis Alphonse Cahagnet, magnetizador, autor de Arcanes de la vie future dévoilés (Mistérios da vida futura desvendados), e cuja sonâmbula, Adèle Maginot, atendia no mesmo endereço. Nesta rua
também viveu, pelo menos entre 1856 e 1863, o relojoeiro Sr. Jean Pierre Roustan, magnetizador da Srta. Célina Japhet, futura médium utilizada por Rivail.
86 “Liste générale des adresses de Paris”, Almanach des 500.000 adresses de Paris, des départements et des pays étrangers (1845), p. CXXXVI. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6292987t/f133.image.r=pitolet; acesso em: 05/08/2022.
87 No testamento de Amélie Boudet ela deixa para o Sr. Hubert Joly (1820-1906), futuro gerente da Revista Espírita, “uma caixa de rapé de prata e corrente de ouro de seu marido”.
88 Link de acesso: commons.wikimedia.org/wiki/File:Kurhaus_Aachen_Spielsaal_Strooban.jpg; acesso em: 05/08/2022.
89 A frenologia é considerada hoje uma pseudociência.
90 “Société phrénologique de Paris”, Encyclographie des sciences médicales, 5ª série, vol. VIII, agosto (1843), p. 154.
91 Pelas nossas pesquisas, o ano letivo se iniciava entre setembro e outubro e terminava entre junho e julho do ano seguinte, com os discursos das solenidades de encerramento sendo feitos no início de agosto e as férias acontecendo entre agosto e setembro.
92 Manuel des Conseils de Discipline des Gardes Nationales, troisième édition. Chez P. Dupont et G. Laguionie, Paris – France (1833), p. 131. Link de acesso: data.decalog.net/enap1/liens/fonds/F3B23.pdf; acesso em: 05/08/2022.
93 Législation relative à la garde nationale (de 1789 au 22 mars 1831). Imprimerie et Librairie Administratives de Paul Dupont et Cie, Paris – France (1840), p. 32. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6378414r/f74.image.r=domicile; acesso em:
05/08/2022.
94 [Discurso – Amélie Boudet]. Disponível em: projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=107. Acesso em: 05/08/2022. Projeto Allan Kardec.
95 [Discurso – Amélie Boudet]. Disponível em: projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=124. Acesso em: 05/08/2022. Projeto Allan Kardec.
96 “État actuel de l’Institute Historique”, Annuaire des lettres, des arts et des théâtres (1845), pp. 90-91. Link de acesso: archive.org/details/annuairedeslettr00pari/page/90; acesso em: 05/08/2022.
97 [Discurso – Allan Kardec]. Disponível em: projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=109. Acesso em: 05/08/2022. Projeto Allan Kardec.
Com relação à carreira educacional de Rivail, podemos resumir agora:

Período Evento
De 1825 até 1827 Escola de primeiro grau; depois disso Sabatier fica com a escola
De 1828 até 1831 Pensionato para Meninos na Rua de Vaugirard
De 1831 até 1840 Pensionato para Meninos ou Liceu Polimático na Rua de Sèvres
Em 1841 Liceu Polimático com Pitolet; depois disso Pitolet fica com a escola
De 1842 até 1844 Outras atividades
De 1844 até 1850 Pensionato para Meninas e Escola de Comércio; depois Rivail aparece só como “homem de letras” e professor de matemática

Em 1850 Rivail começaria também outra carreira, agora nos teatros!


8. Atividades com teatros

Rivail sempre gostou de teatros: em 1837, quando esteve em Londres, foi duas vezes a teatros secundários, bem mais baratos que os grandes teatros, que
custavam 3,75 francos. Na Revista Espírita98 de julho de 1862, ele mencionou a peça Os efêmeros, que assistiu no Odeon havia uns quarenta anos e cujo
autor ele não se lembrava mais. Ela lhe havia provocado uma forte impressão. A cena se passava no país dos efêmeros, cujos habitantes viviam apenas
vinte e quatro horas. Na verdade, a peça é de 182899, e foi escrita por Louis Benoît Picard e Antoine François “Dercy” Picard.
A despeito de não haver nenhuma evidência de sua participação na autoria da peça Uma paixão de salão, de 1845, escrita por Napoléon Gallois e H.
Rivail, talvez um homônimo, ele também trabalhou em outras atividades relacionadas aos teatros.
Diante da pergunta do juiz, Leymarie esclareceu, conforme lemos no livro Processo dos espíritas de 1875, de sua esposa Marina Leymarie100:
Juiz – Ele [Rivail] se ocupava muito também de teatros – afirma o juiz, e pergunta: – Não vendia ele entradas?

Leymarie – Não é verdade. Ele não escapou a provações terríveis; muito confiante, colocara seus recursos financeiros com um amigo diretor de teatro [Théâtre des Délassements-Comiques]
que, em seguida, teve consideráveis prejuízos; Allan Kardec encontrou-se, por algum tempo, em situação embaraçosa e teve de fazer a escrituração dos livros daquele mesmo teatro; sempre
ganhou honestamente a vida.

Bem, não precisaríamos aguardar 1875 para conhecer os vínculos de Rivail com aquele teatro, cujo prédio, aliás, foi demolido em 1862 durante a famosa
renovação de Haussmann promovida pelo Segundo Império101. O amigo que adquiriu o teatro em 1849 foi Émile Taigny102.

Fig. 8: Théâtre des Délassements-Comiques (o segundo identificado da direita para a esquerda).


Fonte: T. J. Walsh, Second Empire opera

Qual era, então, a atividade de Rivail no Théâtre des Délassements-Comiques desde 20 de maio de 1850, data do depósito no notário dos documentos
para sua exploração? Conforme os estatutos, ele foi “administrateur-caissier”, uma espécie de contador e tesoureiro. Não era “contrôleur”, não vendia
bilhetes e nem era “régisseur” [gerente de palco].
Nesta época, ele preferia se identificar publicamente como Denizard, imaginamos, para não vincular estas atividades com as de educador. Numa hipoteca
de 1849 de 10.000 francos103, ele também tem Denizard em maior destaque em relação a Rivail104.
Em 1852, ele se tornou responsável pela liquidação do teatro, em direitos iguais, junto com Émile Taigny.
Com a saída do amigo, Denizard participou, em meados de 1853, da “caçada pelo privilégio”, isto é, pelo direito de dirigir o Théâtre des Délassements-
Comiques, conforme vemos entre as edições de 18 de junho e 22 julho do L’Éventail105.
Mas finalmente, o Sr. Charles Hiltbrunner, editor-chefe do Messager des Théâtres, assumiu o teatro a partir de 1853 e foi com ele até 1857106. Sob sua
direção, as atrizes começaram a se prostituir fora do Délassements-Comiques. Em 1854, no Journal des Goncourt, é relatado que Hiltbrunner se gabava de
administrar não um teatro, mas um bordel: “É bem simples. Só dou 50 a 60 francos às minhas atrizes: tenho 30.000 francos de aluguel, só posso dar isso.
Meus atores não têm muito mais. São todos cafetões ou homossexuais. Muitas vezes, uma mulher vem me procurar, me dizendo que os 50 francos não são
suficientes, que ela vai ter que complementar, trazer homens ao quarto, a cinco tostões107... isso não é da minha conta: eu tenho 30.000 francos de
aluguel”108.
Contudo, Denizard já estava em outro teatro.
Ele morou no mesmo endereço do Théâtre de la Porte Saint-Martin entre 1852 e 1854. Além do “homem de letras”, no endereço também encontramos a
Réju de Backer & Denizard, agentes dramáticos, que era uma empresa agenciadora de artistas. Como Réju de Backer & Compagnie, já com a participação
de Rivail desde janeiro de 1852, era anunciado na L’Argus: revue théâtrale et journal des comédiens109:
Senhoras e senhores, os artistas que desejam se apresentar no Théâtre de l’Opéra-National são avisados de que as audições serão realizadas em breve; eles devem estar bem o suficiente para se
inscreverem sem atraso com os senhores Réju de Backer & Compagnie, Boulevard Saint-Martin, 18, especialmente encarregados dos compromissos deste teatro.

Encerramos com outra peça assistida por Rivail/Kardec. Em O livro dos médiuns ele narrou que entre os atos da ópera Obéron foi ouvido o Espírito
Weber e, depois, o Espírito encarregado de dirigir uma das cantoras. Esses e outros Espíritos foram vistos pelo médium. A representação foi no Théâtre-
Lyrique. A peça estreou em Paris ao final de fevereiro de 1857 e se chamava Oberon, or The Elf King’s Oath (Juramento do Rei Elfo)110. Weber é Carl
Maria von Weber, o compositor alemão da peça.
Antes de começar a doutrina espírita, em quais outras atividades teria Rivail se envolvido?

98 Além da Revista Espírita, Rivail, como Allan Kardec, é autor das seguintes obras sobre o Espiritismo: O livro dos espíritos (1857-1860-1863), Instruções práticas sobre as manifestações espíritas (1858), O que é o espiritismo (1859-1862-1865), O livro
dos médiuns (1861-1861/1862), Carta sobre o espiritismo (1860), O espiritismo na sua expressão mais simples (1862), Viagem espírita em 1862 (1862), Imitação do evangelho segundo o espiritismo/O evangelho segundo o espiritismo (1864-1865/1866),
Resumo da lei dos fenômenos espíritas (1864-1865), O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo (1865-1869), Coleção de preces espíritas (1865), A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo (1868-1869/1873), Caracteres
da revelação espírita (1868-1869) e Catálogo racional de obras para se formar uma biblioteca espírita (1869). São consideradas fundamentais: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno e A Gênese.
As datas correspondem ao ano de lançamento, de revisão intermediária e de última revisão. No caso de divergências entre o registro no jornal Bibliographie de la France e o ano estampado na página de rosto, optamos por colocar os dois anos.
99 L. B. Picard & D. Picard, Les ephemeres. Chez J. N. Barba, Paris – France (1828). Link de acesso: books.google.com.br/books?id=cOhKAAAAcAAJ; acesso em: 05/08/2022.
100 Mme. P. G. Leymarie, Procès des spirites. La Librairie Spirite, Paris – France (1875), p. 10. Link de acesso: books.google.com.br/books?id=Kyu5dD9NRoQC; acesso em: 05/08/2022.
101 Vasto programa de obras públicas encomendado pelo imperador Napoleão III e dirigido por George Eugène Haussmann, governador do antigo departamento do Sena (que incluía Paris), entre 1853 e 1870. Para promover melhorias nas manobras militares,
assim como na circulação e na higienização da capital francesa, demoliu bairros medievais considerados superlotados e insalubres, construiu avenidas largas (os imensos boulevards), novos parques e praças, novos esgotos, fontes e aquedutos, etc. O plano
de ruas e a aparência distinta do centro de Paris hoje são em grande parte o resultado da renovação de Haussmann.
102 H. Beaulieu, Les théâtres du boulevard du Crime. H. Daragon, Paris – France (1905), p. 58. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k122811d/f58.image.r=taigny; acesso em: 05/08/2022.
103 “Archives fiscales”, Archives de Paris. Link de acesso: p. 11 de archives.paris.fr/arkotheque/visionneuse/visionneuse.php?
arko=YTo2OntzOjQ6ImRhdGUiO3M6MTA6IjIwMTktMDgtMTgiO3M6MTA6InR5cGVfZm9uZHMiO3M6MTE6ImFya29fc2VyaWVsIjtzOjQ6InJlZjEiO2k6MzI7czo0OiJyZWYyIjtpOjgxNztzOjE2OiJ2aXNpb25uZXVzZV9odG1sIjtiOjE7czoyMToidmlzaW9ubmV1c2VfaHRtbF9tb2RlIjtzOjQ
acesso em: 05/08/2022.
104 Esta quantia seria usada integralmente para a compra da Villa de Ségur, imóvel que, com as melhorias introduzidas pelo casal, teve uma valorização imensa nos anos seguintes: em 1869, no inventário de Rivail, apareceu com um valor de quase 170.000
francos, e no de Amélie Boudet, em 1883, com um valor acima de 240.000 francos [2.400.000 reais].
105 “Délassements-Comiques”, L’Éventail (1853). Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb32771718j/date; acesso em: 05/08/2022.
106 “Inventaire F/21/953-F/21/1339,F/21/2799-F/21/2838”, Archives de France. Link de acesso: francearchives.fr/fr/facomponent/8699ba71030f15972aafd620f9c4d83644252cb7; acesso em: 05/08/2022.
107 Cinco sous = 0,25 francos ou 2,50 reais.
108 A. Giard, “Sarah Bernhardt était-elle actrice ou prostituée?”, Libération (2015). Link de acesso: liberation.fr/debats/2015/12/13/sarah-bernhardt-etait-elle-actrice-ou-prostituee_1811533/; acesso em: 05/08/2022.
109 L’Argus, 4º ano, 15 de abril (1852), p. 2. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6526372b/f2.image.r=”reju%20de%20Backer”; acesso em: 05/08/2022.
110 “Théâtre-Lyrique”, Le Nouvelliste, 27 de fevereiro (1857) p. 1. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k63385674/f1.image.r=”rossi-caccia”; acesso em: 05/08/2022 e
C. A. Cambon, Obéron : esquisse de décor de l’acte II, tableau 4. Paris – France (1857). Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b7001133x; acesso em: 05/08/2022.
9. Últimas atividades de Rivail

No outono de 1853, Rivail obteve a patente de sua terceira invenção conhecida, um sistema de vaso-sifão móvel com tubos de vidro111. Devido às
reformas de Haussmann, talvez ele vislumbrasse um uso intensivo da sua invenção, o que acabou não acontecendo.
Enquanto isso, François Duhamel, o tio problemático, continuava tentando a sorte nos jogos e, com isso, arrastando o sobrinho e sua esposa.
No final do ano, numa carta de 20 de novembro, Rivail mostrou sua desilusão, dizendo à Amélie Boudet, que se encontrava em Aix-le-Bains com o tio:
“(...) confesso que minha decepção foi grande; de acordo com seu primeiro lance, fiz meus pequenos cálculos, e Deus sabe que decepção! Não há nenhum
entendimento sobre isso. Começo a acreditar que existe um poder superior que frustra todas as combinações desse tipo de especulação”.
E, finalmente, na publicação Le Tintamarre de 25 de dezembro de 1853, encontramos a seguinte nota com mais uma tentativa de Rivail de prosperar nos
negócios112:
Uma empresa também surgiu, com um capital de dois milhões, sob o título “Bazar des bons marchés”. O “ex-cassier” do Théâtre des Délassements-Comiques está à frente desta empresa. Rivail,
que já formou um “banco de trocas” sob o nome corporativo de Lachâtre e Rivail, está novamente chamando por patrocínio. Vamos examinar isso no próximo ano.

Aparentemente, esta iniciativa também não teve sucesso e ele começou a trabalhar, a partir de 1855, para a livraria eclesiástica do católico ultramontano
Jean Benoît Pélagaud, cuja sede era em Lyon, mas que tinha uma sucursal em Paris. Numa carta escrita em Lyon em setembro de 1900 pelo filho, Élisée
Pélagaud, disponível no terceiro volume da coleção A morte e o seu mistério, do astrônomo francês Camille Flammarion113, encontramo-lo dizendo que
Rivail era telhudo (maniático), mas na nota Flammarion diz que esta não era sua opinião e que o conheceu pessoalmente. Esta fonte confirma também que
Rivail cuidava da contabilidade, tanto da livraria, quanto do jornal católico L’Univers, embora não forneça datas mais precisas.
Também em 1855, em janeiro, faleceu o tio na Rua des Martyrs, nº 8, novo endereço de Rivail a partir deste ano. Mesmo causando tantos problemas, o
tio ainda era acolhido pelo casal.
Enquanto Rivail se virava para cuidar da sobrevivência, eventos inexplicáveis surgiam ao redor do mundo.

111 Ministère du commerce, Catalogue des brevets d’invention pris du 1er janvier ou 31 décembre. Imprimerie et librairie de Mme Ve Bouchard-Huzard, Paris – France (1853), p. 169. Link de acesso:
gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k63655085/f177.image.r=rivail; acesso em: 05/08/2022.
112 Dubourieu, “Voyage à travers l’Industrie”, Le Tintamarre, 11º ano, 25 de dezembro (1853), p. 4. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5669499d/f4.image.r=rivail; acesso em: 05/08/2022.
113 C. Flammarion, La mort et son mystère – III : Après la mort. Impr. L. Maretheux; Ernest Flammarion, Paris – France (1922). Link de acesso: catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb321097823; acesso em: 05/08/2022.
Segunda fase

O período Kardec: dos fenômenos físicos à Doutrina Espírita


Imagem na sequência com os principais médiuns na Revista Espírita
Legenda:
R: Rodolphe | CF: Camille Flammarion
LE: O livro dos espíritos | LM: O livro dos médiuns | ESE: O evangelho segundo o espiritismo | CI: O céu de o inferno | AG: A Gênese | O número significa a edição em que a obra revisada foi publicada.
1. A onda de manifestações espirituais

Retornemos um pouco no tempo. Em 6 de março de 1844, final do inverno no hemisfério norte, Andrew Jackson Davis alegava ter sido transportado, em
estado de consciência alterada, para as Montanhas Catskill, no estado de Nova York, a sessenta quilômetros de distância da cidade de Poughkeepsie, onde
ele se encontrava. Lá teria se reunido com o filósofo e médico Cláudio Galeno e com Swedenborg, nosso personagem do início do livro, Espíritos que lhe
ministraram conhecimentos em medicina e filosofia moral. Na França, em 15 de janeiro de 1846, Angélique Cottin, médium motora114, começava a
provocar fenômenos de transporte de objetos, sem interação física, conhecido também como telecinese. Finalmente, em 31 de março de 1848, Kate Fox e o
Espírito Charles B. Rosna davam início ao chamado Espiritualismo Moderno, em Hydesville, também no estado de Nova York. Ela e as irmãs
estabeleceram um código de batidas (raps) para entreter uma conversação com o Espírito. Mais tarde, elas fariam declarações contraditórias, ora negando,
em 1888, ora reafirmando estes fenômenos, em 1889.
No entanto, segundo a Srta. Huet115, a primeira médium da França teria sido Léontine Bégin. A Srta. Huet se refere a ela, em pelo menos duas ocasiões.
No seu jornal Le Progrès Spiritualiste de 1º de junho de 1867:
Ele [Conde d’Ourches116] se encontrou com a Srta. Léontine Bégin, a primeira médium conhecida em Paris, que o iniciou nessa crença (...). É graças a ele que eu [Srta. Huet] sou espírita: foi ele
que fez minha educação mediúnica (...).

E depois, no jornal Le Spiritisme117 da 1ª quinzena de novembro de 1888:


Há cerca de trinta anos, tive a sorte de conhecer o Sr. conde d’Ourches numa reunião de magnetizadores presidida pelo Marquês Duplantis118; este senhor recebia em sua casa todas as manhãs
uma sociedade de homens sérios e cultos; e ali, na companhia do barão de Güldenstubbe119, autor de várias obras muito notáveis, do conde de Beaurepaire, do Sr. Tiedeman, um rico holandês,
conhecido hoje em Londres pelo nome de Martheze120, um dos generosos partidários do espiritualismo, do marquês d’Escodega de Boisse121, do general de Brevern122, de Henri Delaage123, do Sr.
Mathieu124, membro da sociedade filotécnica, fizemos experiências com as mesas girantes. Gastávamos um tempo muito longo, pois quinze ou vinte minutos se passavam antes que houvesse um
movimento. Foram as Srtas. Fox da América que trouxeram essas crenças para a Europa. A Srta. Léontine Bégin foi a primeira médium que obteve os raps ou batidas.

Infelizmente, a Srta. Huet não informa a data, mas supomos que os primeiros “raps” obtidos através dela tenham acontecido entre final de 1848 e início
de 1849. Como Rose Charlote “Léontine” Bégin nasceu no início da primavera de 1837, em Metz, no nordeste da França, ela deveria ter apenas onze anos
de idade quando os fenômenos foram obtidos.
A Srta. Léontine Bégin também é, provavelmente, a Srta. Léontine B. da carta do Dr. Clever de Maldigny125, encontrada no Journal du Magnétisme de
1860126, onde ele diz:
A Srta. Léontine B.... é uma das médiuns mais incríveis que eu conheço. A meu pedido, ela teve a gentileza de prosseguir conosco com as experiências mediúnicas. Logo, e ao nosso chamado,
forças ocultas de diferentes personagens produziram para nós, pela mão da médium, vários desenhos, emblemas e vários gráficos.

Aqui a médium teria então migrado dos efeitos físicos para os efeitos intelectuais.
A Srta. Huet também havia mencionado o barão de Güldenstubbe. Na edição de novembro de 1861 da Revista Espiritualista127 consta que um círculo em
1849 era formado pela Sra. D’Abnour, pelo Sr. barão de Güldenstubbe, pelo abade Châtel128, pela Srta. Japhet e pelo seu magnetizador Sr. Roustan129,
totalizando cinco pessoas. Esta mesma formação também aparece na versão de 1870 do livro Pneumatologia positiva, do barão e de sua irmã Julie, que
acrescenta a informação que, após vinte reuniões, o Conde d’Ourches começou a participar das sessões, mas que tiveram que interrompê-las
completamente, só recomeçando no início de 1853. Na entrevista que Aksakof fez com a Srta. Japhet e publicou no The Spiritualist de agosto de 1875, são
acrescentadas três senhoritas Bouvrais aos demais integrantes deste grupo, o que totalizaria nove participantes (ou dez se incluirmos a irmã do barão)130.
Esta entrevista foi reproduzida pela Sra. Emma Britten Hardinge no livro Milagres do século XIX, de 1883, com as mesmas três senhoritas fazendo parte do
grupo131. As Bouvrais são as únicas personagens não identificadas até agora, ao passo que as irmãs Baudin e sua mãe, personagens que ainda veremos,
nunca foram mencionadas.
Aquela versão de 1870 do livro do barão de Güldenstubbe, em alemão, com caracteres góticos, é diferente das versões em francês de 1857 e 1870, mas
também traz importantes informações:
Em 1850, cerca de três anos antes da epidemia das mesas girantes eclodir, uma mulher americana trouxe a boa notícia ao autor [Güldenstubbe], da descoberta de uma relação experimental com
o mundo espiritual por meio de “raps”. Só depois de seis meses o autor conseguiu com esta americana, chamada D’Abnour, de Nova Orleans, estabelecer um círculo baseado no modelo
americano, a fim de familiarizar a França com os misteriosos espíritos de Rochester e a psicografia. Infelizmente, inúmeros obstáculos foram colocados em seu caminho pelos magnetizadores. Os
estudantes de fluidismo mesmérico e até mesmo aqueles que se autodenominavam magnetizadores espiritualistas, mas na verdade eram apenas sonâmbulos de grau inferior, consideravam as
batidas misteriosas dos Espíritos como loucura, artifício e devaneios. Até mesmo Cahagnet132, com sua famosa sonâmbula Adèle [Maginot], achava que o intercurso com o mundo espiritual através
da clarividência era preferível ao toque direto do Espírito, e de jeito nenhum quis contribuir para os experimentos do autor nesse caso. Somente Roustan e sua sonâmbula, a Srta. Japhet, que mais
tarde escreveu o chamado Livro dos Espíritos de Allan Kardec, juntaram-se às experiências. O conhecido abade Châtel, fundador da Igreja Católica Francesa, também entrou no círculo do autor.
Foi um crime ultrajante, na opinião da Igreja Católica, que esse abade quisesse rezar a missa em francês profano. É sabido que as tentativas de Châtel a esse respeito fracassaram completamente.
Além das qualidades morais dos membros, os círculos americanos baseiam-se na distinção entre os elementos positivos, magnéticos, não receptivos; e os elementos elétricos negativos, sensíveis.
Esses círculos são geralmente formados por doze pessoas, seis das quais representam os elementos positivos e as outras seis os elementos negativos ou sensíveis. A diferenciação desses elementos
não deve ser baseada no gênero da pessoa, embora em geral as mulheres tenham qualidades negativas e positivas, enquanto os homens são dotados de atributos magnéticos positivos. Antes dos
círculos serem formados é preciso pois sondar bem a constituição moral e física de cada um, pois há mulheres delicadas que possuem qualidades masculinas, e há homens fortes que possuem
qualidades morais femininas (...). Os seis indivíduos sensíveis são geralmente colocados à direita do médium. A mais próxima é a pessoa mais sensível ou negativa, geralmente reconhecida pelas
qualidades benevolentes de seu coração e sensibilidade, enquanto a pessoa mais positiva ou inteligente senta-se à esquerda do médium. Agora, para formar a corrente, todas as doze pessoas devem
colocar a mão direita sobre a mesa e a mão esquerda sobre a mão do vizinho, e esse processo deve ocorrer ao redor de toda a mesa (...). Foi somente depois de vinte sessões [portanto,
provavelmente em 1851] que alcançamos os “raps” dos espíritos dos americanos, quando o conhecido veterano do magnetismo, Conde d’Ourches, começou a participar em nossas sessões. Logo
depois, porém, nosso encontro semanal, que acontecia todas as sextas-feiras (Rua des Martyrs, nº 46133), foi severamente censurado pela reintrodução do despotismo na França após o golpe de
Estado de Bonaparte [de Napoleão III, em 2 de dezembro de 1851]. (...) transferimos as reuniões para outro dia e para outra parte da cidade, na Rua de la Madeleine, nº 30, então a casa do autor.
No entanto, a polícia sempre vigilante logo descobriu novamente o local de nossas reuniões, e tivemos que interrompê-las completamente, e só pudemos iniciá-las no começo de 1853, quando a
epidemia das mesas girantes agitou toda a Europa. O autor, junto com seu honrado amigo, o Conde d’Ourches, fez muitas experiências com mesas giratórias, e ambos conseguimos, primeiro em
Paris, colocar mesas em movimento sem tocá-las; às vezes até mesas flutuavam no ar sem serem tocadas, e eram carregadas pela sala por forças invisíveis.

Em 11 de setembro de 1853, começaram também as experiências de Victor Hugo, nas Ilhas Jersey, uma dependência da Coroa Britânica.
Em outro trecho do livro de Güldenstubbe, ele critica Allan Kardec:
Infelizmente, experimentadores e médiuns ignorantes são muitas vezes levados a invocar grandes mentes históricas sem ter os meios para controlar suas identidades. Allan Kardec e sua seita de
espíritos em Paris, com São Luís e Santo Agostinho, fazem tal abuso. O São Luís de Allan Kardec há muito perdeu seu “établishmment” e até esqueceu a ingênua e poética língua francesa antiga.
Agostinho, convocado pelos Espíritos, não conhece melhor a língua sagrada da igreja, pois não dá uma palavra em latim. Um rígido controle de identidade é especialmente necessário quando um
Espírito desconhecido ostenta um grande nome, a fim de satisfazer seu desejo de relacionamento com os homens.

Mas não nos precipitemos mais. Quando teria Rivail se envolvido pela primeira vez com as mesas girantes? Em 1850, 1851, 1852, 1853, 1854 ou 1855?

114 Médium motor é a pessoa com a suposta aptidão de produzir movimentos de corpos inertes. É uma variedade de médium de efeitos físicos.
115 Ver capítulo 9 na segunda parte deste livro.
116 Didier Balthazard d’Ourches, faleceu em 1867 aos oitenta e dois anos.
117 Órgão da União Espírita Francesa de 1883 até 1891, quando esta foi dissolvida. O jornal continuou até 1895.
118 Possivelmente um distinto médico falecido em julho de 1876, sogro do pianista Ernst Heinrich Lübeck.
119 Johann Ludwig von Güldenstubbe (1817-1873), filósofo espiritualista estoniano.
120 Johannes Nicolaas Tiedeman (1821-1888) ajudou no financiamento da primeira edição de O livro dos espíritos.
121 Possivelmente Jean Arnauld d’Escodega.
122 Possivelmente Pontus Alexander Ludwig Graf Brevern-de la Gardie (1814-1890).
123 Henri Delaage (1825-1882), filósofo ocultista francês.
124 Ver capítulo 9 na segunda parte deste livro.
125 Charles Auguste Clever de Maldigny, aquele que teria operado a si mesmo de cálculos renais na bexiga.
126 C. de Maldigny, “Au Docteur Charpignon, D’Orléans”, Journal du Magnétisme, vol. 19 (1860), p. 372. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/journal_du_magnetisme/journal_du_magnetisme_v19_1860.pdf; acesso em: 06/08/2022.
127 A Revista Espiritualista, fundada em 1858 por Zéphyr Joseph Piérart (com tiragem de 600 exemplares em 1864), era uma antagonista da Revista Espírita, fundada também em 1858 por Allan Kardec (com tiragem de 1800 exemplares no mesmo ano de
1864), principalmente na questão da reencarnação.
128 Ferdinand François Châtel (1795-1875), clérigo francês.
129 Ver capítulo 6 na segunda parte deste livro.
130 A. Aksakof, “Researches on the historical origin of the reincarnation speculations of French spiritualists”, The Spiritualist, vol. VII, nº 7, 13 de agosto (1875), p. 75. Link de acesso:
iapsop.com/archive/materials/spiritualist/spiritualist_v7_n7_aug_13_1875.pdf; acesso em: 06/08/2022.
131 Há divergências em relação à formação do grupo nas narrativas de outros autores, mas aqui só apresentamos informações obtidas em fontes primárias.
132 Louis Alphonse Cahagnet (1809-1885), escritor e magnetizador francês.
133 Residência de Célina Japhet.
2. Os anos de descobertas

No capítulo anterior, foi apresentada a epidemia das mesas girantes na França de 1853. Vimos a Sra. D’Abnour que teria começado as experiências entre
1849 e 1850 com o barão de Güldenstubbe. Conforme ele reportou, obtiveram o fenômeno das mesas girantes apenas em 1853.
Temos também outra versão situando os primeiros resultados em 1851, depois de, segundo Anna Blackwell134, ela ter introduzido os fenômenos (na
verdade, dado conhecimento dos fenômenos) na França em 1850135. Trata-se de um médium americano não identificado no consulado dos Estados Unidos
em Paris, segundo narrativas de Victorien Sardou136 em 1897 em dois jornais, que aqui resumimos de forma livre, primeiramente com a do Le Figaro137:
Eu [Sardou] tinha um amigo chamado Goujon, astrônomo assistente do Observatório e secretário de Arago138. Nós éramos muito próximos, e muitas vezes eu ia fumar meu charuto com ele à
noite, jogar xadrez e conversar. Uma noite, enquanto caminhávamos na avenida do Observatório, ele me disse, de repente: você já ouviu falar das histórias fantásticas que acabaram de acontecer
na América, os movimentos de objetos, as mesas falantes, etc.? Agora, anteontem, o cônsul americano em Paris veio pedir a Arago para assistir a uma experiência que ele estava organizando; ele
tinha, disse ele, um médium extraordinário que produzia fenômenos incríveis, mas ele queria que esse experimento ocorresse diante de um cientista considerável como ele, que pudesse tomar as
precauções necessárias para evitar qualquer trapaça. Arago, doente de diabetes e deitado, delegou a mim e a seu sobrinho Mathieu para substituí-lo. Então, fomos ontem à noite ao cônsul.
Primeiro, fomos colocados na frente da mesa em que o sujeito deveria operar. Era uma mesa de jantar para dez pessoas, excessivamente pesada. Nós olhamos, de fato, em todos os lados, embaixo,
ao redor, no chão, em todos os lugares: era uma mesa natural! O médium chegou, a mesa se ergueu sobre as duas pernas direitas, pressionamos com todas as nossas forças para impedir que ela
subisse mais, e nos sentimos levantados do chão com ela. Esta manhã, não nos atrevemos a falar com Arago sobre isso, com medo de que ele risse de nós, e esperávamos que ele tivesse esquecido...
Mas, por conta própria, ele nos pediu notícias da experiência. Nós contamos. O que? Disse o mestre em frente de nossos rostos um pouco tímidos. Meus filhos, um fato é um fato. Quando não
podemos explicá-lo, vamos apenas registrá-lo; esse é o nosso dever. Quanto a mim [Sardou], quando meu amigo Goujon terminou de contar sua história, eu caí na gargalhada. E ele nunca mais
falou comigo sobre isso. Esta é a história do meu primeiro contato com o Espiritismo. Algum tempo depois, eu estava almoçando com amigos que contavam essas histórias extraordinárias. Eles
conheciam a Srta. Beuc139, que escrevia na Revue de la Démocratie Pacifique. Ela era uma discípula de Fourier140. Venha para a casa dela, disseram-me. Srta. Beuc morava na Rua de Beaune, nº 2
ou 4, bem em frente à casa de Voltaire. Acima de seu apartamento morava Hennequin, fourierista enlouquecido, que acreditava estar em comunicação com a Alma da Terra; abaixo dela, Eugène
Nus, também espírita, entregou-se a algumas experiências muito boas. Então, eu estava lá, no centro dos Espíritos, como um sanduíche. Na casa da Srta. Beuc, encontrei a Sra. Blackwell, também
fourierista e de rara inteligência. Fui apresentado, é claro, como um cético, e os experimentos começaram. A mesinha de pedestal (guéridon) permaneceu em silêncio. Eles insistiram: nada! Eles
me disseram: volte depois de amanhã, vamos tentar novamente. Voltei à Rua de Beaune no dia marcado, e fui informado de que imediatamente após minha partida a mesa de pedestal ganhou vida.
Recomeçaram comigo as tentativas de dois dias antes. Nada! Tentamos muito: nada, nada, nada! Não há mais dúvidas, sua presença impede, disse-me a dona da casa. Pedi desculpas por ser um
desmancha-prazeres e saí do lugar. Em vez de me desencorajar, esses fracassos me animaram. Raciocinei comigo mesmo: se essas pessoas são charlatães, por que hesitam em operar na minha
frente? Prestidigitadores não têm escrúpulos! Se são sinceros, o que significa esta parada que minha presença produz na realização desses fenômenos? Então comecei a visitar, nos quatro cantos
de Paris, todos os lugares onde tive a sorte de encontrar mesas eloquentes ou aparições de fantasmas. Uma noite, caí na Rua Tiquetonne, na casa de uma dama Japhet141, no meio da companhia de
sonâmbulos, pessoas ingênuas, ilusionistas, malandros, vadias e, ao mesmo tempo, gente honesta como eu, que a curiosidade trouxe, inclusive o futuro pároco de Saint-Augustin. Felizmente, lá
também encontrei Rivail, que acabava de ser batizado de Allan Kardec142.

E a história continua, com Sardou esclarecendo sobre seu testemunho em relação aos fenômenos produzidos pelo médium Daniel Dunglas Home143,
sobre sua vontade de ser médium e o incentivo do barão Du Potet, fundador do Journal du Magnétisme, para que ele insistisse nisso, seu primeiro desenho
mediúnico, e ainda que esta mediunidade durou exatamente dezoito meses; mas paramos por aqui.
A onda de manifestações espirituais que veio da América e atingiu a Europa permitiu que as vidas de Rivail, Victorien Sardou e outros personagens se
cruzassem em algum momento da década de 1850.
Rivail, o antigo mestre de pensionato, havia percebido que além da diversão que as mesas girantes proporcionavam aos diversos círculos que se
formavam em Paris, ele poderia obter melhor aproveitamento, se pudesse interrogá-las sobre assuntos mais graves para a humanidade, de natureza
filosófica e científica.
Neste momento, começou o Espiritismo e Rivail se tornou Allan Kardec.
O jornal L’Éclair144, irônico, informou que “se Allan Kardec era o sumo sacerdote desta religião, tão antiga quanto o mundo, mas renovada pelo processo
das mesas girantes, Victorien Sardou poderia lhe reivindicar a paternidade. Interessava, portanto, às vésperas da estreia de Espiritismo [peça teatral escrita
por Sardou], saber como nasceram e se afirmaram as convicções do ilustre acadêmico [Sardou] – que, mais seguramente que Naundorff145, inspirou Allan
Kardec e, portanto, merece ser chamado de pai do Espiritismo”.
O restante da narrativa é bem semelhante ao Le Figaro, embora com outros detalhes, como quando diz que a Srta. Japhet era bastante suspeita para ele e
que, apesar do óbvio charlatanismo da boa senhora, mesmo assim, havia notado alguns fenômenos interessantes; ou quando relata que junto com Allan
Kardec, pediram ao Espírito presente que determinasse a base do dogma espírita e que foi ele [Sardou] quem, guiado pelas suas leituras, tinha restaurado o
sentido das respostas mal interpretadas ou obscuras do Espírito; e, assim, ele [Sardou] ditou em três sessões o cenário da doutrina que Allan Kardec
desenvolveria posteriormente. E o jornal, ainda mais ironicamente, conclui que não se deveria mais nomear Allan Kardec, mas sim Allan Kardou, pois o
autor do Espiritismo, a peça [teatral], é o pai inegável do Espiritismo, a fé146.
Temos, portanto, duas versões para o aparecimento do fenômeno das mesas girantes na França: entre 1849 e 1850, com a Sra. D’Abnour, a Srta. Japhet, o
barão de Güldenstubbe, etc., apesar de resultados mais concretos só em 1853; e, em 1851, com um médium americano no consulado dos Estados Unidos
em Paris, com a presença dos Srs. Goujon e Mathieu, representantes de Arago, embora esta versão não tenha mais evidências além do testemunho de
Sardou.
Só algum tempo depois, mais precisamente em 1855, na casa da Srta. Beuque e na presença de Anna Blackwell, Sardou foi às experimentações com as
mesas girantes147.
Quando então teria Rivail começado a se interessar pelos fenômenos?
Maurice Lachâtre, em 1865148, escreveu ser 1850:
Por volta de 1850 tão logo se tratou das manifestações dos espíritos, Allan Kardec se entregou às observações perseverantes sobre esses fenômenos e se dedicou principalmente a deduzir deles
as consequências filosóficas.
Anna Blackwell, em 1869149, supunha ser 1851, conforme informações passadas pela própria Amélie Boudet:
(...) até a conclusão de mais três trabalhos, a serem adicionados a suas valiosas contribuições [de Allan Kardec] à filosofia do Espiritualismo [sic] nos últimos dezoito anos.

Anna Blackwell, em 1891150, continua supondo ser 1851:


(...) ele [Allan Kardec] dedicou duas noites de cada semana, durante os anos de 1851 e 1852, para obter, por essas senhoritas [Baudin], as respostas (...) para uma série de perguntas sobre a
origem, os deveres e o destino da raça humana, que ele havia cuidadosamente elaborado para este fim. (...) reuniram-se em torno de Rivail, que em 1853 havia formado um “círculo” de mais de
cem membros; “círculo” presidido por ele, e que se reunia semanalmente em sua residência na Rua des Martyrs (...).

Allan Kardec, em 1861151, acreditava ter sido em 1853:


(...) eu [Allan Kardec] coordenei os princípios e formei um corpo de doutrina, não como uma compilação, mas contando com um estudo cuidadoso e prático durante oito anos de trabalho
assíduo.

Henri Sausse, em 1896152, registrou ser em 1854:


Foi em 1854 que o Sr. Rivail ouviu falar pela primeira vez nas mesas girantes (...).

Allan Kardec em Obras póstumas153 declarou ser em 1854:


Foi em 1854 que ouvi falar pela primeira vez nas mesas girantes. Encontrei um dia o magnetizador, Sr. Fortier (...). No ano seguinte, estávamos em começo de 1855, encontrei-me com o Sr.
Carlotti (...). Passado algum tempo, pelo mês de maio de 1855, fui à casa da sonâmbula Roger, em companhia do Sr. Fortier, seu magnetizador. Lá encontrei o Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison (...).
O Sr. Pâtier (...) me convidou a assistir às experiências que se realizavam em casa da Sra. Plainemaison (...). Foi aí que, pela primeira vez, presenciei o fenômeno das mesas que giravam (...).
Numa das reuniões da Sra. Plainemaison travei conhecimento com a família Baudin (...). O Sr. Baudin me convidou para assistir às sessões semanais que se realizavam em sua casa (...).

Logo não é crível que Rivail tenha tido contato com as mesas girantes no período de 1850 até 1853. Mais provável tenha sido entre 1853 e 1855.
Devemos lembrar também que Rivail estudava magnetismo e, provavelmente, tenha tido contato com a mediunidade sonambúlica antes das mesas girantes.
Assim sendo, todos poderiam estar certos, exceto Blackwell quando fala do encontro com as Baudin em 1851 e 1852 e com o “círculo” em 1853, na Rua
des Martyrs, para onde Rivail só se mudou em 1855; a não ser que ela tivesse se enganado e mencionado o endereço de Célina Japhet, que também residia
nesta mesma rua.
Na versão de Obras póstumas, Kardec citou sua interação com vários personagens, o Sr. Carlotti, o Sr. Fortier, a sonâmbula Roger, o Sr. Pâtier, a Sra.
Plainemaison e a família Baudin, todos cuja identidade completa não se conhecia até o início do século XXI. Quem seriam eles?

134 Anna Blackwell (1816-1900), que também usou o pseudônimo de Fidelitas, foi uma escritora, jornalista e tradutora britânica.
135 A. Blackwell, “Explanation and History of the mysterious communication with spirits – Analyse et Critique”, Journal du Magnétisme, vol. 9 (1850), p. 550. Link de acesso:
iapsop.com/archive/materials/journal_du_magnetisme/journal_du_magnetisme_v9_1850.pdf; acesso em: 06/08/2022. E:
A. Blackwell, “Coups Mystérieux”, Journal du Magnétisme, vol. 12 (1853), p. 187. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/journal_du_magnetisme/journal_du_magnetisme_v12_1853.pdf; acesso em: 06/08/2022.
136 Victorien Sardou (1831-1908) foi um dramaturgo francês, autor da peça teatral Espiritismo, chamada no Brasil de Amargo Despertar.
137 J. Huret, “Comment M. Sardou devint spirite”, Le Figaro, 43º ano, 3ª série, nº 39, 8 fevereiro (1897), p. 4. Link de acesso: retronews.fr/journal/le-figaro-1854-/8-fevrier-1897/104/788367/4; acesso em: 06/08/2022.
138 François Jean Dominique Arago (1786-1853) foi um astrônomo e político francês.
139 Louise Aimée Beuque (1788-1871) foi uma livreira falansteriana francesa.
140 Charles Fourier (1772-1837) foi um filósofo francês, um dos pais do cooperativismo e do socialismo utópico, tendo incentivado a formação de comunidades autossuficientes chamadas falanstérios, como o do Saí, em Santa Catarina.
141 Na verdade, era a casa do Sr. Roustan, seu magnetizador.
142 A informação está cronologicamente inconsistente, pois Allan Kardec deve ter adotado este pseudônimo em 1857, já que ainda usou Villarius até o início deste ano. Sardou fala aqui que encontrou Allan Kardec na casa da Srta. Japhet, enquanto a Srta.
Japhet declarou na entrevista a Aksakof que Rivail lhe foi apresentado em 1856 por Sardou.
143 Daniel Dunglas Home (1833-1886) foi um médium escocês, com a alegada capacidade de levitar.
144 “L’Actualite”, L’Éclair, 2º ano, nº 2997, 2ª edição, 9 fevereiro (1897), p. 1. Link de acesso: retronews.fr/journal/l-eclair/9-fevrier-1897/2539/4061429/1; acesso em: 06/08/2022.
145 As misteriosas circunstâncias do falecimento de Luís XVII da França fizeram que ao largo do século XIX surgissem uma série de falsos delfins, dos quais o mais célebre foi Karl Wilhelm Naundorff, relojoeiro alemão.
146 O jornal evidentemente se refere aqui à doutrina espírita.
147 As versões dos anais dos Congressos Internacionais de 1888 em Barcelona e de 1889 em Paris são confusas. Na versão em espanhol, um grupo com pessoas eminentes, inclusive Sardou pai e filho, teria se ocupado dos fenômenos por cinco anos, desde
1850. A versão em francês é a mesma, mas sem nomear as pessoas. Os anais do Congresso de Paris são semelhantes à versão em espanhol do congresso anterior. Tal versão em espanhol também situou a observação dos fenômenos por Kardec em 1850,
enquanto a em francês, em 1855, mesma data registrada pelo congresso de 1889.
148 M. La Châtre, Nouveau dictionnaire universel, vol. I. Docks de la librairie, Paris – France (1865). Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k506777/f201.item; acesso em: 06/08/2022.
149 R. Beamish, “Death of Allan Kardec”, The Spiritual Magazine, 2ª série, 4º vol., nº ٥, maio (1869), p. 231. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/spiritual_magazine_uk/spiritual_magazine_s2_v4_n5_may_1869.pdf; acesso em: 06/08/2022.
150 Le Spiritisme, 9º ano, nº 2, 1º de fevereiro (1891), p. 27.
151 A. Kardec, “Observations de M. Allan Kardec sur l’article de M. Octave Giraud, concernant le spiritisme”, La Gironde, ٩º ano, nº ٣٦٩, 20 de junho (1861), p. 2. Link de acesso: retronews.fr/journal/la-gironde/20-juin-1861/2003/3599549/3; acesso em:
06/08/2022.
152 H. Sausse, “Discours de M. H. Sausse”, La Paix Universelle, 6º ano, nº 132 , 16-31 de março (1896), p. 268. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/paix_universelle/paix_universelle_v6_1896_partial.pdf; acesso em: 06/08/2022.
153 A. Kardec, “Ma première initiation au Spiritisme”, Œuvres posthumes. Librairie des Sciences Spirites et Psychiques, Paris – France (1912), p. 303. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5601429m/f315.item; acesso em: 06/08/2022.
3. Novos personagens

Alexandre Delanne154, pai do engenheiro e pesquisador espírita Gabriel Delanne, fala que o Sr. Carlotti era um linguista distinto, laureado pelo Instituto
por sua apresentação da “Linguagem Universal”, morto em Lyon155. Embora com algumas inconsistências, o Sr. Carlotti seria provavelmente Marco ou
Marc Carlotti, professor de línguas, homem de letras, ganhador de prêmios Volney do Institut de France em 1841 e 1845, desencarnando celibatário em
Marseille em 10 de junho de 1868.
Ao contrário do que se propaga, não deve ter existido nenhuma médium chamada Aline Carlotti, filha de um Sr. Carlotti, comerciante156. Aliás, Allan Kardec mencionou apenas Aline C.
em Obras Póstumas157.

Ao longo das pesquisas, encontramos as seguintes datas de nascimento possíveis do Sr. Carlotti: 1786, 1788, 1790 e 1791; bem como os seguintes locais
de nascimento: Poggio-di-Venaco (U Poghju di Venacu) e Ajaccio, ambos na Córsega, ilha do mar Mediterrâneo, governada pela França.
O segundo personagem que Rivail encontrou para falar-lhe das mesas girantes foi o Sr. Fortier, magnetizador da Sra. Roger. Ele era integrante da
“Société Philanthro-Magnétique”158.
Seu nome completo era Jacques Auguste Fortier (1803-1880) e sua profissão era chaveiro.
Já a Sra. Roger se chamava Adélaïde Joséphine Roger (1820-1883) e era sonâmbula profissional. Em 1854 foi julgada, conforme o Journal du
Magnétisme do mesmo ano, mas em 1855, em carta ao mesmo jornal, afirma que: “Se é verdade que, como sonâmbula, fui consultada, é completamente
impreciso dizer que fui sentenciada, nem sequer fui processada por fraude”. Ela é também citada nas edições da Revista Espírita de 1858 e 1863, mas é na
de 1864 que descobrimos que Allan Kardec a consultou sobre uma afecção da qual sofria, ou seja, desde longo tempo, ainda como Rivail, que ele se
consultava com sonâmbulas, como Mariette159.
A Sra. Roger foi novamente aos tribunais em 1876, bem como o Sr. Fortier160, como vemos nos registros da audiência, a seguir:
Uma consulta tumultuada

Tribunal Criminal do Sena

Presidência do Sr. Carlet

Audiência de 18 de maio de 1876

Alguns magnetizadores afirmam adormecer a lua e fazê-la cair em síncope. Essa piada escapou de Arago em um momento de bom humor. Poderia ser aplicada aqui, supondo que fosse permitido
comparar a Srta. Roger à lua, paralelo exagerado, certamente. Ela é sonâmbula e se às vezes ela tem algo em comum com os astros, é quando o Sr. Fortier, seu associado, a transporta em espírito
para regiões etéreas, pelo vigor do seu fluido. Infelizmente, o sr. Fortier é um mágico que finge colocar a Srta. Roger para dormir e só consegue colocá-la na cama. Essa é, pelo menos, a versão do
Sr. Serin. Deixe que ele se explique:

SR. SERIN, entalhador, 38 anos. – Eu recebi cartas anônimas e uma delas havia me causado sérios danos. Para conhecer o autor, um amigo aconselhou-me a consultar um sonâmbulo. Foi
quando decidi ir até à casa da senhora. Comecei perguntando pela consulta. Ela me pediu 20 francos. Ofereci 5 francos, mas a senhora não aceitou. Fechamos em 10 francos. O Sr. Fortier a pôs
para dormir e nos deixou a sós. Perguntei então:

- De quem são essas cartas?

- Não sei, ela respondeu.

- É de um homem ou de uma mulher?

- De uma mulher.

- Essa mulher é casada?

- Sim.

- Qual é o nome dela?

- Maria.

- Seu sobrenome de solteira?

- Não sei!

- Seu sobrenome de casada?

- Não sei.

- Não é... (e cito um sobrenome ao acaso).

- Sim, isso mesmo, ela respondeu.

- E qual o meu sobrenome?

- Não sei.

E enquanto eu a exortava (com palavras, é claro) a me dizer alguma coisa, ela tocou a campainha e me disse: “Você me enerva, você me irrita!”. Quando o Sr. Fortier entrou, disse-lhe:
“Senhor, não consegui nada da senhora, por isso tenha a gentiliza de lhe dar um pouco mais de fluido”. (risos) Então a senhora exclama: “Eu não posso lhe responder, só consigo encontrar os
nomes de ladrões e assassinos! (risos prolongados).
Foi então que eu disse: “Você entende que não posso lhe dar 10 francos por isso”. Neste momento, a senhora passa por trás de mim como se fosse sair e me dá um soco atrás da cabeça e, então,
me leva de volta para a porta me dando três chutes que não chegaram ao seu destino. (risos) Parece que é hábito da Srta. Roger tocar a campainha enquanto dorme, quando chega o fim da
consulta.

- Bizarro! exclama o Sr. Presidente [Sr. Carlet].

Bizarro, certamente; mas esta ciência do magnetismo animal é muito misteriosa! Não desçamos, porém, pela ladeira das teorias: que existe um fluido, tendo sua sede no cérebro e podendo se
espalhar até as extremidades do corpo pela pura força da vontade, é fato que eminentes médicos reconheceram. Quanto ao uso ou abuso de que esse fluido é objeto, não temos aqui nem lugar nem
tempo para explicar, mas ouçamos os réus.

SRTA. ROGER (Adélaïde-Joséphine), 56 anos. – Sou associada do Sr. Fortier há 20 anos. Tenho consciência; vou contar exatamente como o evento aconteceu. Eu estava sozinha quando este
cavalheiro entrou correndo pela manhã dizendo: “É aqui a sonâmbula?” Eu lhe digo: “Sim”. Ele continua: “Não acredito nessas piadas (blagues-là); mas recebo cartas anônimas todos os dias e
quero saber quem está me escrevendo”. Fiquei completamente atordoada com essa forma abrupta e rude de se apresentar. Embora me sentisse pouco à vontade com ele, decidi atendê-lo. O Sr.
Fortier pôs-me a dormir e me colocou a venda nos olhos. Quando toquei a campainha, o Sr. Fortier veio correndo e me acordou, depois me acalmou, como se faz com os sonâmbulos. Eu poderia
ter tido um colapso nervoso. Parece que o Sr. Serin me insultou, e quando da chegada do Sr. Fortier, ele exclamou: “A senhora não me disse nada; é tudo brincadeira, é roubo; vocês são ladrões e
eu não quero ser roubado!...”. Quanto a repetir para vocês o que ele me disse, não posso, não me lembro mais de nada.

Sr. FORTIER (Jacques-Auguste), 73 anos, professor de magnetismo. – Quando cheguei, encontrei a sonâmbula prestes a cair em catalepsia. Eu a acalmei e, então, não pude deixar de dizer ao
Sr. Serin: “O que você fez com essa mulher para colocá-la em tal estado?”. Mas ela não o chutou; no máximo ela o repreendeu, era eu quem falava com o Sr. Serin.

As testemunhas de defesa trazem informações favoráveis ao Sr. Fortier e à Srta. Roger. De vários depoimentos, parece resultar que certos clientes teriam ficado mais felizes com eles do que o
pleiteante.

Sr. Jules Favre, que defende ambos, está, sobretudo, empenhado em evidenciar sua boa-fé.

Ambos são absolvidos.

A Revista Espírita de junho de 1876 comenta: “O julgamento durou três horas. O resultado é que a prática da clarividência mesmérica não será mais
considerada crime na França. Um passo adiante e o próprio Espiritualismo será fato consumado (fait accompli) aos olhos da lei”.
Passemos agora ao Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison.
Relembremos Obras Póstumas161: “O Sr. Pâtier era funcionário público, já de certa idade162, muito instruído, de caráter grave, frio e calmo; sua
linguagem pausada, isenta de todo entusiasmo, produziu em mim viva impressão e, quando me convidou a assistir às experiências que se realizavam em
casa da Sra. Plainemaison, à Rua Grange-Batelière, nº 18163, aceitei imediatamente. Foi aí que, pela primeira vez, presenciei o fenômeno das mesas (...)”.
Sobre Pâtier, encontramos ainda uma carta de Allan Kardec de 23 de abril de 1857, em que este lhe envia em anexo um exemplar do recém-lançado O
livro dos espíritos.
Descobrimos, então, que o advogado Léon Pâtier tinha aparecido como testemunha no registro de óbito da Sra. Plainemaison. Ele era natural de Limoges,
conhecida mundialmente pelos seus esmaltes e porcelanas, e morreu aos sessenta e sete anos, sem ter se casado, em 1863, no 8º arrondissement de Paris. A
Sra. Plainemaison era a Sra. Jeanne Elisa Laroche, também nascida em Limoges, casada em segundas núpcias com outro advogado desta mesma comuna,
Jean Pierre Plainemaison, e falecida aos cinquenta e quatro anos em 1861. Nesta época, ela já estava em novo endereço, na Rua Duperré, nº 7, mas de
1854164 a 1857165 ela viveu na Rua Grange-Batelière, nº 16 (e não 18).
Jean Pierre faleceu três anos depois de sua esposa, em 1864, diferentemente do que Canuto Abreu informa em O livro dos espíritos e sua tradição
histórica e lendária166, quando diz que: “As Senhoras De Plainemaison e De Cardonne viviam de rendas deixadas pelos falecidos maridos”.
Nossa última personagem desta fase pré-Kardec é justamente a Sra. De Cardonne.
As únicas coisas que sabíamos dela é que vivia em Paris em 6 de maio de 1857, data da mensagem “A tiara espiritual”, obtida por ela da leitura das mãos
de um cético Kardec e inserida em Obras póstumas167; e que em 1858 deixou a cidade, tendo Kardec a visto novamente só em 1866.
Nossas investigações levaram à Armande Françoise Joséphine Morin, casada com o Sr. Camille Jules Paul Joseph de Cardonne. Tanto ele como o filho
Henry e, certamente, a mãe tinham o sobrenome Mauvoisin de Cardonne. De Cardonne é a “maison” onde o Sr. De Cardonne nasceu.
Daniel Dunglas Home e a esposa citaram a Sra. A. [de Armande] Mavoisin de Cardonne em alguns livros, inclusive falando da sua amizade com o Sr.
Victorien Sardou168. Aí temos dois possíveis equívocos, talvez devido à língua: os ingleses mencionaram “Mavoisin”, em vez de “Mauvoisin”; e citaram
“Émile”, o filho surdo curado por Home, embora todos os filhos da Sra. De Cardonne tivessem “Camille” no nome. Este caso de cura é citado pela
“Society for Psychical Research”169.
O Sr. De Cardonne viveu na Rússia e suspeitamos que seja no período mencionado por Allan Kardec, no intervalo de oito anos entre 1858 e 1865.
Portanto, se a Sra. Cardonne tenha sido a esposa do biógrafo de Alexandre II da Rússia, então ela era a Sra. Armande Mauvoisin de Cardonne, nascida em
Paris e falecida aos cinquenta e cinco anos no 6º arrondissement de Paris em 1874.

154 C. Abreu, O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária. Edições LFU, São Paulo – SP (1992), p. 126.
155 A. Kardec, “Ma mission”, Œuvres Posthumes. Librairie des Sciences Spirites et Psychiques, Paris – France (1912), p. 322. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5601429m/f334.item; acesso em: 06/08/2022.
156 O Sr. Delanne se chamava François Eugène “Alexandre” Delanne, nascido na comuna de Oyrières em 19 de abril de 1829. Era caixeiro-viajante ou vendedor ambulante (voyageur de commerce). Desencarnou em 2 de março de 1901 aos setenta e dois anos
incompletos, quando residia junto com o filho Gabriel no 16º arrondissement de Paris. Era filho de Claude Delanne e Catherine Berger. Foi casado com Marie Alexandrine Didelot. Não sabemos quando acrescentou o prenome Alexandre, mas ele já o usou
no registro de nascimento do irmão de Gabriel, Ernest. Foi enterrado no cemitério de Bagneux e depois transferido para o Père Lachaise em 1906.
157 Le Spiritisme, 6º ano, nº 20, 2ª quinzena de outubro (1888), p. 231.
158 Por volta dos anos 1840, existiam duas sociedades magnéticas em Paris: a “Société Philanthro-Magnétique” (SPM) e a “Société du Mesmérisme” (SdM). Embora Allan Kardec tenha dito em 1858 na Revista Espírita, e em 1860 na 2ª edição de O livro dos
espíritos, que estudava o tema havia trinta e cinco anos, não encontramos ainda nenhuma evidência que ele tenha sido membro de qualquer sociedade magnética. Alguns conhecidos integrantes da SPM eram o Sr. Millet e o Sr. Fortier. Publicavam o jornal
L’Union Magnétique. Já a SdM publicava o Journal du Magnétisme do barão Du Potet, que mais tarde se interessaria pela teosofia.
159 Já citada no segundo capítulo da primeira parte.
160 “Une consultation orageuse”, Le Petit Journal, 14º ano, nº 4898, 24 de maio (1876), p. 3.
161 A. Kardec, “Ma première initiation au Spiritisme”, Œuvres Posthumes. Librairie des Sciences Spirites et Psychiques, Paris – France (1912), p. 303. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5601429m/f315.item; acesso em: 06/08/2022.
162 Cinquenta e nove anos em 1855, como será demonstrado.
163 Um erro tipográfico, como também será demonstrado.
164 “Liste générale des adresses de Paris”, Almanach des 500.000 adresses de Paris, des départements et des pays étrangers (1854), p. 1154. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6319811j/f1100.item; acesso em: 06/08/2022.
165 Id. (1857), p. 1066. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6305463c/f1014.item; acesso em: 06/08/2022.
166 C. Abreu, O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária. Edições LFU, São Paulo – SP (1992), p. 132.
167 A. Kardec, “La tiare spirituelle”, Œuvres Posthumes. Librairie des Sciences Spirites et Psychiques, Paris – France (1912), p. 329. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5601429m/f341.item; acesso em: 06/08/2022.
168 Mme D. Home, D. D. Home, His life and mission. Trübner & Co, London – UK (1888), pp. 80-83.
169 A. T. & F. W. H. Myers, “Mind-Cure, Faith-Cure, and the Miracles of Lourdes”, Proceedings of the Society for Psychical Research, vol. 9 (1894), pp. 197-199, Link de acesso: books.google.com.br/books?id=6zTYAAAAIAAJ; acesso em: 06/08/2022.
4. A Codificação

Chamamos a fase de Kardec de 1855 a 1869 como “período da codificação da doutrina espírita”, ou simplesmente Codificação. Não nos deteremos na
discussão sobre a conveniência ou não do uso do termo, pois o aplicaremos simplesmente para designar o intervalo de tempo entre a preparação da primeira
edição de O livro dos espíritos e a morte de Allan Kardec.
Do trabalho paciente de propor perguntas aos Espíritos, refletir sobre as respostas dadas através dos médiuns e perguntar novamente para se assegurar do
entendimento, surgiu O livro dos espíritos.
Em algum momento de 1856, Kardec se sentiu sem ideias para uma parte deste livro, mas um prospecto de uma versão anônima já circulava, conforme
uma nota no Journal du Magnétisme, de 25 de fevereiro de 1857, que dizia: “Este elemento é denominado espírito em uma obra anônima que está sendo
impressa sobre o assunto em Paris e cujo prospecto nos foi entregue. Esta obra é intitulada: Os livros dos espíritos ou princípios da doutrina espírita
escritos sob o ditado e por ordem dos espíritos superiores. Um vol. in-8. Preço: 3 fr. Chez Villarius, Rua Jacob, 35”. Villarius é uma combinação
aproximada das letras de Rivail, que adotou este pseudônimo antes de usar Allan Kardec.
Segundo informado na Revista Espírita de janeiro de 1858, Kardec se utilizou apenas das Srtas. B. e da Srta. Japhet para elaborar a primeira edição de O
livro dos espíritos. Em Obras póstumas ele mencionou as Srtas. Baudin e a Srta. Japhet, mas também acrescentou que “(...) dez médiuns prestaram
concurso a esse trabalho”. Em 1868, Allan Kardec esclareceu ao Sr. Charles Fauvety170 que foram mais de vinte médiuns; no entanto, estava se referindo às
edições posteriores, como a segunda edição, completamente reformulada e significativamente aumentada.
Para esta primeira preparação de O livro dos espíritos não há evidências do aproveitamento de cinquenta cadernos com informações dos Espíritos,
oferecidos a Rivail171.
Sua situação financeira ainda era instável, tanto que numa prece de 1857 ele diz:
Dois meios seriam muito providenciais ao objetivo: o primeiro, o mais simples, é tirar proveito o mais rápido possível de meu terreno; com isso eu não teria de me preocupar com coisas
materiais. O segundo é que alguém me legue uma certa renda, como aquela do Home; isso me daria os meios de realizar muitas coisas e de as dirigir como eu entendo, uma vez que eu não teria de
estar na dependência da vontade e do capricho das ideias de ninguém.

Apesar das dificuldades, Rivail seguiu em frente.


O Sr. Tiedeman172 o ajudaria no financiamento da primeira edição, lançada em 18 de abril de 1857, e só registrada no jornal Bibliographie de la France
em 30 de maio. Não sabemos ainda quantos exemplares foram impressos.
Em janeiro de 1858, tivemos ainda o lançamento da Revista Espírita com periodicidade mensal e a fundação em 1º de abril da Sociedade Parisiense de
Estudos Espíritas, que chamaremos simplesmente de SPEE173.
Quase quatro meses depois, em 31 de julho de 1858, foi registrado o livro Instruções práticas sobre as manifestações espíritas, que futuramente seria
substituído por O livro dos médiuns.
Em 20 de agosto de 1859, foi a vez de o livro O que é o espiritismo ser registrado no jornal Bibliographie de la France.
Todos os três livros lançados neste período foram impressos pela tipografia Beau na comuna de Saint-Germain-en-Laye, que fica a pouco mais de vinte
quilômetros de Paris.
Em 15 de setembro de 1859, a tipografia Bourdier registrou junto ao Ministério do Interior em Paris a Declaração do Impressor com mil exemplares de
uma nova edição de O livro dos espíritos. Esta somente foi registrada no jornal Bibliographie de la France em março de 1860174. A Bourdier se tornaria a
principal tipografia dos livros da Codificação.
Como O livro dos espíritos, todas as demais obras fundamentais e algumas daquelas consideradas como resumos da doutrina foram submetidas à
reimpressão175 depois de realizada sua revisão, correção e ampliação.
São consideradas obras fundamentais: O livro dos espíritos (1857-1860-1863), O livro dos médiuns (1861-1861/1862), Imitação do evangelho segundo o
espiritismo/O evangelho segundo o espiritismo (1864-1865/1866), O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo (1865-1869) e A Gênese, os
milagres e as predições segundo o espiritismo (1868-1869/1873).
São consideradas resumos da doutrina: O que é o espiritismo (1859-1862-1865), O espiritismo na sua expressão mais simples (1862), Viagem espírita
em 1862 (1862), Resumo da lei dos fenômenos espíritas (1864-1865) e Caracteres da revelação espírita (1868-1869).
As datas correspondem aos anos de lançamento, de revisão intermediária e de última revisão. No caso de divergências entre o registro no jornal
Bibliographie de la France e o ano estampado na página de rosto, optamos por colocar os dois anos entre uma barra oblíqua.
Quem seriam os médiuns deste período?
Temos suspeitas de alguns e certezas sobre outros. Em O livro dos espíritos suspeitamos da participação do Sr. Alfred Didier, da Srta. Ermance Dufaux,
do Sr. Victorien Sardou e da Srta. Aline C., mas não falaremos destes dois últimos, pois muito já se sabe sobre o Sr. Victorien Sardou; e a Srta. Aline C.
ainda não foi identificada. As certezas são as Srtas. Baudin, a Srta. Japhet, o Sr. Roze (Sr. R.) e o Sr. L., este último também não identificado.
Os médiuns das demais obras foram identificados através do cruzamento das mensagens disponíveis na Revista Espírita (ou em opúsculos de outros
autores)176, com as comunicações das obras fundamentais177. Para descobrirmos suas identidades, selecionamos uma amostra representativa178: Srta. Huet,
Sr. D’Ambel, Sra. Costel (Sra. L.), Sr. Rodolphe R. (Sr. R.), Sr. Vézy, Sra. Cazemajour, Sr. Alfred Didier, Srta. Ermance Dufaux, Srs. Rul e Leymarie,
além dos Srs. Flammarion e Desliens.
Certamente, fazendo uso do método denominado como “Controle Universal do Ensino dos Espíritos”, Allan Kardec deve ter usado muitos outros
médiuns não identificados, consolidando as informações obtidas através de seus próprios textos ou de comunicações de Espíritos que sintetizassem toda
essa concordância.
Além dos médiuns e outros personagens importantes de seu relacionamento, também descobrimos a identidade de vários Espíritos.
Não escolhemos Espíritos cuja biografia é facilmente encontrada, mas aqueles dos quais muito pouco se sabia, a não ser o conteúdo das suas
comunicações: Georges, Lapommeray, a rainha de Oude, Srta. Emma, Dr. Vignal, Sixdeniers, Joseph Bré, Verger, Lemaire e Jacques Latour.
Todos estes personagens serão apresentados na medida da sua relevância para o contexto, isto é, não necessariamente conforme foram se integrando ao
trabalho de Allan Kardec, embora a maioria siga uma ordem cronológica.
Flammarion, por exemplo, frequentou a SPEE em 1862, teve mensagens aproveitadas em A Gênese de 1868 e foi presidente honorário da SPEE em
1870. Optamos por falar dele na terceira fase, quando abordamos o período pós-Kardec. Da mesma forma, Desliens, que também trabalhou ao lado de
Allan Kardec, será tratado neste último período.
Algumas dúvidas sempre ficaram no ar: na transição de Rivail para Kardec, teria ele trabalhado com médiuns crianças e adolescentes para a produção de
sua primeira obra espírita, O livro dos espíritos?
Esta é uma das perguntas que vamos responder. Iremos desvendar neste primeiro momento a identidade das duas irmãs Baudin, da Srta. Célina Japhet e
do Sr. Roze.

170 Charles Fauvety (1813-1894), maçom, fundador da religião laica.


171 Quem citou incialmente estes cadernos foi Henri Sausse, o primeiro biógrafo de Allan Kardec. Ele anotou em 1896: “(...) tinham reunido cinquenta cadernos de comunicações diversas, que eles não conseguiam pôr em ordem. Conhecendo as vastas e raras
aptidões de sintetizar do Sr. Rivail, esses senhores lhe remeteram os cadernos, pedindo-lhe que deles tomasse conhecimento e os sintetizasse”. Mas o que Leymarie disse em 1888, segundo a versão em espanhol dos anais do Congresso de Barcelona, foi:
“(...) obtiveram milhares de comunicações de almas que se diziam de pessoas mortas (...). Não conseguindo sistematizar nem ordenar as comunicações recebidas, houve o acordo de encomendar esse trabalho ao sábio professor Denizart [sic], cujo espírito
sintético era bem conhecido”. A versão em francês destes anais é parecida.
172 Já citado no segundo capítulo da segunda parte.
173 Segundo Camille Flammarion e a Srta. Huet, o Sr. Ledoyen, livreiro, editor e administrador-tesoureiro da SPEE, seria considerado o decano do Espiritismo, não só pela analogia do próprio nome (le doyen = o decano), mas porque foi provavelmente o
membro mais antigo da Sociedade e, portanto, um dos primeiros espíritas. Para outras informações sobre Simon Alexandre Ledoyen, ver: C. S. Bastos, Coadjuvantes da Codificação Espírita. Portal Luz Espírita e Autores Espíritas Clássicos (2020), p. 49.
Link de acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L178.pdf; acesso em: 06/08/2022.
174 Conforme a legislação da época, toda obra, independentemente da edição, deveria ter uma Declaração do Impressor (a intenção de produzi-la), seu Depósito Legal (alguns exemplares para bibliotecas e órgãos do governo) e o registro associado no jornal
Bibliographie de la France. Embora não esteja claro na lei, nossas investigações apontam que eventualmente uma Declaração do Impressor possa ter uma quantidade de exemplares suficiente para cobrir mais de uma edição, dispensando novo Depósito
Legal. Mas, uma vez apresentada uma Declaração, deveria haver o respectivo Depósito.
175 O termo “reimpressão”, que hoje é usado comumente para impressão do mesmo conteúdo, era utilizado na época de Allan Kardec para qualquer obra que precisasse ser impressa novamente, fosse ela original ou revisada. Da mesma forma, o termo “nova
edição”, que hoje se refere a uma obra com alteração de conteúdo, era usado indistintamente. Uma tiragem, inclusive, poderia servir para várias edições com o mesmo conteúdo.
176 Onde o médium e o Espírito foram identificados.
177 Onde apenas o Espírito foi identificado.
178 Para a lista completa de médiuns identificados por obra fundamental, ver o apêndice 2.
5. A verdadeira identidade das irmãs Baudin

Primeiramente, vamos ao pouco que Allan Kardec nos informou sobre a família Baudin: eles se reuniam na Rua Rochechouart, em 1855, e, depois, na
Rua Lamartine, em 1856. Ele não disse os números dos prédios. Uma das irmãs Baudin se chamava Caroline e, ao final de 1857, as duas Srtas. Baudin se
casaram, as reuniões cessaram e a família se dispersou. Ele também não informou a idade das jovens.

Fig. 9: Rua Lamartine entre 1865 e 1868


Fonte: Museu Carnavalet | Crédito: L. Gloaguen

Um certo François Alphonse Baudin nasceu no pequeno município de Gray, na região administrativa de Franche-Comté. Na época de seu casamento,
tinha a mesma profissão do pai, que era comerciante numa mercearia. Casou-se com Barbe Mathilde Eberlen dita Avrelet. O Sr. Baudin teve também
outras profissões, como inventor, engenheiro civil, negociante e industrial179. Teriam sido eles o casal Baudin, pais das irmãs Baudin utilizadas na
Codificação da Doutrina Espírita?
No ano de 1851, este Sr. Baudin morava na Rua Rochechouart, nº 66, conforme registro numa disputa para venda de carvão vegetal com a Dulaurier et
Cie180. Em 1857, seu endereço é o mesmo mencionado por Allan Kardec na Revista Espírita de novembro de 1858: Rua Lamartine. O nº é o 34, segundo a
Gazette des Tribunaux de 15 de julho de 1857181.
Ele tinha uma filha chamada Catherine Caroline Baudin que se casou em 13 de agosto de 1857. Ela desencarnou à meia-noite do dia 29 para o dia 30 de
novembro de 1883 na sua casa na comuna de Puteaux, ao lado de Paris. Puteaux é o município onde hoje fica o Arche de la Défense. Tinha duas filhas,
Hélène e Alice Chailan de Moriés.
Ampliamos as buscas e encontramos em Gray o seu registro de nascimento, com a data de 13 de janeiro de 1827. Portanto, tinha trinta anos, em 1857.
Caroline Baudin tinha pelo menos um irmão, Gustave Baudin, provavelmente nascido, em Paris, em 1845.
E quanto à segunda Srta. Baudin? E se ela não se chamasse Julie, como todos pensavam182, mas tivesse se casado no mesmo dia que a nossa Catherine
Caroline Baudin?
Caroline e Gustave tinham uma irmã chamada Pélagie, também nascida em Gray em 3 de outubro de 1829 e que se casou exatamente no mesmo dia de
Caroline. Teve um filho, chamado Michel Alfred Nourisson, mais conhecido como Michel Nour, desencarnado em 1951. Esta seria a segunda Srta. Baudin,
aliás nunca identificada por Kardec em nenhuma obra como Julie ou qualquer outro nome. Ela faleceu em 22 de agosto de 1887, em Neuilly-sur-Seine.
Desta forma, a irmã Baudin mais nova nunca foi Julie, como narrou Canuto de Abreu, e sim Pélagie, e tinha 28 anos, em 1857.

Fig. 10: Registros de casamento das irmãs Baudin, 13 de agosto de 1857, IX arrondissement
Fonte: Archives de Paris, cote: 5Mi1 2301, download de 24 de agosto de 2022

Portanto, as Srtas. Baudin não eram adolescentes, mas adultas, o Sr. Baudin não era um rico fazendeiro e a família não retornou às ilhas Reunião no
Oceano Índico183, onde nunca estiveram. Estas informações não são relevantes do ponto de vista doutrinário, a não ser que se queira discutir a participação
de crianças e adolescentes em reuniões mediúnicas. Ainda assim, traz uma contribuição para o resgate fidedigno, em oposição ao que se imaginava saber.

Informações de Informações de
Fontes primárias
Kardec Canuto
Sr. Baudin Émile Charles François Alphonse
Profissão não informada Fazendeiro e industrial Comerciante, engenheiro, industrial etc.
Sra. Baudin Clémantine Barbe Mathilde Eberlin dite Avrelet
R. Rochechouart R. Rochechouart, 7 R. Rochechouart, 66
R. Lamartine R. Lamartine, 21 R. Lamartine, 34
Caroline B. Caroline Baudin Catherine Caroline Baudin
Srta. Baudin Julie Baudin Pélagie Baudin
Idades não informadas 16 e 18 anos em 1857 28 e 30 anos em 1857
Casamento ao final de 1857 Julho e outubro de 1857 13 de agosto de 1857
Dispersão da família Ilha de Reunião Grande Paris184
Sr. Baudin Émile Charles François Alphonse

A narrativa de Alexandre Delanne sobre elas também é imprecisa: ele cita as Sras. Baudin, de uma certa idade, originárias de Franche-Comté, e que
mantinham um pequeno cenáculo na Rua Sainte Appoline para o estudo do fenômeno das mesas girantes185. Na verdade, as Srtas. Baudin (elas se casaram
apenas em 1857), apesar de terem vinte e seis e vinte e oito anos, em 1855, e serem de Gray186, na região administrativa de Franche-Comté, moraram, como
vimos, na Rua Rochechouart e depois, em 1856, na Rua Lamartine (e não na Rua Sainte Appoline), antiga Rua Coquenard.
Foi através delas que a primeira edição de O livro dos espíritos foi feita. Mas o trabalho precisava de uma revisão, e para isso Rivail utilizou uma só
médium.

179 Os registros de estado civil (nascimento, casamento e óbito) da família Baudin também podem ser encontrados em: Bastos, C.S., “A verdadeira identidade das primeiras médiuns utilizadas por Kardec”, Jornal de Estudos Espíritas, 7, 010202 (2019). DOI:
10.22568/jee.v7.artn. 010202. Link de acesso: sites.google.com/site/jeespiritas/volumes/volume-7---2019/resumo---art-n-010202; acesso em: 06/08/2022.
180 “Minutes et répertoires du notaire Ernest Simon Marie VALLÉE, 16 mai 1850 – 9 avril 1856 (étude LXXXIII)”, Archives de France. Link de acesso: p. 203 de siv.archives-nationales.culture.gouv.fr/siv/rechercheconsultation/consultation/ir/pdfIR.action?
irId=FRAN_IR_042793; acesso em: 06/08/2022.
181 Dutreih, “Sociétés”, Gazette des Tribunaux, nº ٩٤٥١, 15 de julho (1857), p. 692. Link de acesso: data.decalog.net/enap1/Liens/Gazette/18570715.pdf; acesso em: 06/08/2022.
182 C. Abreu, O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária. Edições LFU, São Paulo – SP (1992), p. 86.
183 Ibid., pp. 86 e 132.
184 Caroline viveu em Nanterre e faleceu em Puteaux. Pélagie viveu em Courbevoie e morreu em Neuilly-sur-Seine.
185 Le Spiritisme, 6º ano, nº 20, 2ª quinzena de outubro (1888), p. 231.
186 Gray fica a menos de doze quilômetros de Oyrières, comuna natal de Alexandre Delanne.
6. Srta. Japhet, a filha de Noé

Junto com a identidade completa da Srta. Japhet, a médium que ajudou Allan Kardec na revisão da primeira edição de O livro dos espíritos e, segundo
ela própria, na preparação de grande parte de O livro dos médiuns187, vamos identificar seu magnetizador, o Sr. Roustan, aquele que a induzia ao estado
sonambúlico.
Em 1840, Célina tinha dezessete anos, vivia em Paris e foi magnetizada pela primeira vez pelo Sr. Ricard. Um ano depois ela voltou a morar no interior,
perdeu o movimento das pernas e ficou na cama por pouco mais de dois anos. Em 1843, depois de magnetizada pelo irmão, Célina prescreveu remédios a si
mesma e, após menos de dois meses, pode andar com muletas, recuperando totalmente a saúde durante o ano.
Por volta de 1845, Célina voltou a Paris em busca do Sr. Ricard e conheceu os Srs. Millet e Roustan. Este último era relojoeiro e um dos inventores de
um sistema de navegação por meio de barco, chamado “cyclonydrôme”, seja lá o que for isso. Ele tinha nascido em 25 de setembro de 1796, na atual
Digne-les-Bains, capital dos Alpes da Alta Provença. Filho de Pierre François Xavier, seu nome completo era Jean Pierre Roustan188.
Célina, então, mudou seu sobrenome para Japhet e se tornou sonâmbula profissional. Em 1846, ela fez três anúncios no jornal Le Cocher oferecendo seus
serviços na Rua du Marché Saint-Honoré, nº 14, mesmo endereço de Roustan:
Srta. Célina, Sonâmbula. Dá consultas sobre todos os tipos de assuntos, durante a semana, das 3 às 6 horas; domingos e feriados, do meio-dia às 2 horas, e todos os dias nas horas solicitadas.
Basta dirigir-lhe uma pergunta oral ou escrita que lhe é transmitida por seu magnetizador, para que atinja o objetivo de suas pesquisas. Pessoas que não podem vir elas mesmas, podem enviar
alguém em seu lugar. Nota. A Srta. Célina atende os convites a domicílio.

É neste período que também recebeu informações sobre o tema “reencarnação”, pelos Espíritos de seu avô, Santa Teresa e outros.
Do ponto de vista espiritualista (que não aceita a reencarnação), 1847 é uma data importante, pois Cahagnet publicou seu primeiro livro chamado
Mistérios da vida futura desvendados. Em 24 de agosto de 1848, pouco menos de cinco meses depois dos eventos de Hydesville, Roustan fez a experiência
de Cahagnet com haxixe:
9º ÊXTASE.

SR. ROUSTAN, RELOJOEIRO.

Este cavalheiro toma a dose comum de haxixe às 11h30; os primeiros efeitos não são sentidos até às 4 horas; eles teriam resultado em nada se eu [Cahagnet] não tivesse dado a ele uma dose do
meu licor sonambúlico. Este cavalheiro tinha preparado um número de questões, cujas soluções ele desejou obter quando neste estado; mas assim ele não teve sucesso no seu objetivo. Quadros,
mais ou menos em harmonia, se apresentaram à sua visão, e nem sempre suportavam uma resposta às suas perguntas, que podem ser divididas em três classes: psicológicas, religiosas e políticas;
as questões psicológicas eram para saber se nós nascemos materialmente diversas vezes na Terra. O Sr. Roustan acreditava na afirmativa, de acordo com seus sonâmbulos [provavelmente Célina
Japhet], que lhe asseguravam que ele já tinha vivido materialmente várias vezes; ele acredita que foi um filho de Noé [conforme a Bíblia, um deles se chamava Japhet, além de Sem e Cam], o bom
ladrão [São Dimas] etc. Ele deseja saber se isso é verdade: a resposta foi na forma de um quadro alegórico representando três globos, um dos quais era mais brilhante do que os outros; então
apareceu diante dele uma imensa multidão de almas, de altura, forma e cor habituais, passando para um estado de obscuridade, escuridão e morte, e, em seguida, voltando ao seu primeiro estado,
aparentemente indo em torno de uma ilha, e se perdendo nas suas sinuosidades. Esta resposta será categórica para aqueles que compartilham da revelação contida sobre este aspecto no primeiro
volume dos Arcanos189; mas não conseguiu destruir a crença que o Sr. Roustan tem de ter aparecido várias vezes na Terra.

A questão religiosa é resumida pela visão de quadros representando o Cristo e a virgem, tanto numa cruz quanto numa montanha alta, e diferentes alegorias das escrituras; tudo misturado com
animais de todas as espécies, que incessantemente dificultavam as percepções do Sr. Roustan, por sua proximidade indesejada.

No que diz respeito à questão da política, a resposta foi dada na visão de um furacão terrível, carregando montes de palha, seguido por uma série inumerável de guerreiros, atravessando com a
rapidez do relâmpago uma montanha, que barrou sua passagem, parando num vasto espaço repleto de blocos de pedra.

Mil quadros, cada um mais diferente do que o outro, apareceram a ele com rapidez incrível, apresentando-lhe os objetos mais estranhos; água, mares e animais predominavam especialmente.
Com o intuito de estabelecer um pouco de harmonia em suas ideias, eu tentei tocar um pouco minha flauta. Ao ouvir a “Marseillaise” ele teve uma visão pitoresca das mais belas. Ele viu um grande
quadrado longo, limitado nos dois lados por uma imensa multidão: um homem a cavalo estava no final, gesticulando na medida, em poses guerreiras e graciosas, como se ele mesmo estivesse
cantando este hino patriótico. Este quadro causou uma impressão significativa no Sr. Roustan. Assim, terminou o êxtase deste cavalheiro: ou a dose era muito fraca, ou, como eu imagino, ele se
sentia constrangido pelas pessoas presentes. Ele propôs tomar uma segunda vez, a fim de definir plenamente este estado, e obter respostas mais claras às suas perguntas [não sabemos se isto
aconteceu].

Foi em 1848, também, que Célina pareceu encerrar sua primeira fase como sonâmbula profissional sob o controle de Roustan. Ambos fariam parte do
círculo com Güldenstubbe, como já vimos. O período coincide com o início da Segunda República até o golpe de estado de 1851 que estabeleceu o
Segundo Império na França a partir de 1852.
Depois, de 1855 até 1870, segundo ela revelou numa entrevista a Aksakof, faziam parte daquele círculo: Sr. Tierry, Sr. René Gaspard Ernest “Saint-
René” Taillandier, Sr. Tillman190, Sr. Ramon de la Sagra, Sr. Sardou pai191 e Sr. Sardou filho192, Sr. Roustan e Sra. [Srta.] Célina193.
Em 1855, A. S. Morin194 fez um comentário positivo sobre Célina Japhet. Eis um fragmento do seu texto sobre o romance La bonne aventure de Eugène
Sue, encontrado no volume 14 do Jornal do Magnetismo de 1855:
Uma moça jovem e encantadora teve a curiosidade de consultar seu futuro e dirigiu-se à Srta. Cœlina Japhet, que é ao mesmo tempo sonâmbula, médium e cartomante. As cartas foram usadas.
A adivinha viu que a consulente se casaria com um homem viúvo, de idade madura, e tendo uma menininha; que ela não iria obter o consentimento de seu pai e que ela seria obrigada a fazer uma
respeitosa “interpelação com suas exigências”. A consulente protestou e disse que preferia ficar como filha a fazer esse casamento. Mas um ano não se passou, e tudo o que foi anunciado para ela
foi realizado de um ponto a outro. Deve-se notar que, durante sua consulta, ela não conhecia ninguém que depois se tornasse seu marido e que, consequentemente, a adivinha não poderia ler em
sua mente nem prosseguir por conjecturas.

No ano de 1856, através de Victorien Sardou, há o encontro de Célina Japhet com Allan Kardec195. Neste ano temos a revisão feita por ambos da primeira
edição de O livro dos espíritos. Em Obras póstumas196 e na Revista Espírita de janeiro de 1858, é dito que tais reuniões aconteceram na residência do Sr.
Roustan na Rua Tiquetonne, nº 14197. Foi na casa de Roustan, através da médium Célina Japhet, que Allan Kardec recebeu a primeira revelação da sua
missão, em 30 de abril de 1856198:
Quando o bordão soar, abandoná-lo-eis; apenas aliviareis o vosso semelhante; individualmente o magnetizareis, a fim de curá-lo. Depois, cada um no posto que lhe foi preparado, porque de
tudo se fará mister, pois que tudo será destruído, ao menos temporariamente. Deixará de haver religião e uma se fará necessária, mas verdadeira, grande, bela e digna do Criador... Seus primeiros
alicerces já foram colocados... Quanto a ti, Rivail, a tua missão é aí (Livre, a cesta se voltou rapidamente para o meu lado, como o teria feito uma pessoa que me apontasse com o dedo). A ti, M..., a
espada que não fere, porém mata; contra tudo o que é, serás tu o primeiro a vir. Ele, Rivail, virá em segundo lugar: é o obreiro que reconstrói o que foi demolido.

Champfleury, pseudônimo de Jules François Felix Husson, publicou em 1859, sua obra de ficção realista O baile de máscaras da vida parisiense,
escrevendo sobre uma Srta. Célina Japhet de forma desabonadora. O romance é uma obra de ficção, contudo o autor é defensor do movimento artístico e
literário chamado “realismo”.
De qualquer forma, eis alguns fragmentos deste romance: “(...) Matifeu, uma espécie de homem de negócios (...), usava o magnetizador Redjougla e a
sonâmbula Célina Japhet como se fossem dois subalternos”, “(...) esse grande desejo por dinheiro [de Redjougla] o tinha levado durante dois anos a
aproveitar-se, juntamente com Célina Japhet, de Matifeu, que um dia, dando-se conta que estava sendo enganado pelos dois escroques, desconcertou-os
(...)”, “Matifeu (...) conquanto recuperasse os 40.000 francos que o magnetizador lhe tinha extorquido, só aceitou o seu arrependimento na condição
expressa que Redjougla e Célina Japhet trabalhassem com exclusividade para ele durante três anos, condições que foram aceitas (...)”, “Abaixo de cinco
francos ninguém tinha direito à consulta (...)”, “[Matifeu] (...) levava habilmente as pessoas presentes a falarem sobre o assunto que os levava à consulta, e
transmitia a Redjougla e a Célina Japhet as informações que estimulavam os seus fenômenos de dupla vista” e “Redjougla e Céline Japhet, cujo salário era
de um louis [moeda de ouro de 20 francos] cada um, até quitarem a dívida, consideravam-se explorados por Matifeu (...)”.
Quem teria inspirado o escritor? Enfim, é evidente que a Srta. Japhet cobrava por seus serviços.
Em 1861, quatorze anos antes da publicação daquela entrevista a Aksakof, Célina Japhet já mostrava indiretamente toda sua mágoa com Allan Kardec
num artigo na Revista Espiritualista de novembro: “Três homens e apenas uma mulher [refere-se a Sra. D’Abnour] levaram-na a sério e formaram um
grupo para estudar a nova ideia. Esses três homens eram o Sr. Güldenstubbe, o abade Châtel, o magnetista Roustan, e a Sra. [Srta.] Célina Japhet, a
sonâmbula, esta última com as faculdades mediúnicas das quais devemos a maior parte de O livro dos espíritos e que, por este trabalho, aguarda ainda,
após quatro anos, a legítima remuneração moral e material do tempo e dos cuidados cansativos gastos por ela”.
Em 1862, ainda teríamos uma carta de Jules Lovy, publicada no Le Magnétiseur [de Charles Léonard Lafontaine] de 15 de abril, criticando a SPEE: “Quanto às sessões semanais do Sr.
Allan Kardec, onde se limita à leitura de fragmentos literários ditados pelos mortos, elas oferecem à minha alma ‘gourmand’ um alimento muito pobre”; e conta sobre a evocação da Srta.
Désirée Godu, viva199, que estabelece uma comunicação telegráfica, na interpretação de Jules, entre a Rua Tiquetonne [onde Célina atuava] e a comuna de Hennebont, a quase quinhentos
quilômetros de distância.

Em 1862, Célina participou também do círculo dessa Revista Espiritualista, rival da Revista Espírita de Kardec. Aquela, na sua edição de janeiro,
informou: “Um desacordo perfeito separa o Espiritismo da Rua Sainte Anne200 do espiritualismo da Rua du Bouloi201 (...)”. Em novembro e dezembro, a
Revista Espiritualista publicou as polêmicas sobre geografia: “além do gelo do Polo Norte, existiriam populações civilizadas, de tradições pré-diluvianas”.
Estas foram exploradas pelo jornal L’Opinion Nationale: “é sem dúvida Japhet [um dos filhos de Noé], um ancestral de Célina, que lhe teria revelado tais
mistérios”.
Oito anos depois, com o começo da guerra Franco-Prussiana em 1870, o círculo de Célina foi desfeito. Depois, de 1871 até 1874, ela voltou a anunciar
seus serviços de sonâmbula, agora na Rua des Enfants Rouge. Em 1873, houve a entrevista de Célina à Aksakof, publicada apenas em 1875, como visto
anteriormente. O Sr. Taillandier ainda trabalhava com ela, que, para entrar no estado sonambúlico, usava objetos deixados pelo seu magnetizador202, o Sr.
Roustan, que já tinha saído do círculo em 1864.
Depois de publicada a entrevista de Célina em 13 de agosto de 1875, tivemos a réplica de Anna Blackwell de 27 de agosto203 e a tréplica de Daniel
Dunglas Home de 8 de outubro204 sobre a reencarnação. Foi Leymarie, em 15 de outubro205, que fez a defesa de Allan Kardec em relação às acusações da
Srta. Japhet: “Por que o Sr. Kardec deveria dar mais atenção à participação da Srta. Japhet do que a outros médiuns e sonâmbulos que ele mesmerizou e
que também confirmam sua parte na compilação de O livro dos espíritos? Todos eles são igualmente modestos e despretensiosos”. Acrescentou ainda:
“Quem sequer pensou em jogar a Srta. Japhet ou qualquer outro médium nas sombras? Todos eles foram úteis no seu caminho em um determinado
momento, mas o que pensar de colocar uma dúzia destes nomes no topo de cada parágrafo? Não seria simplesmente absurdo?”.
De 1875 até 1877, Célina fez novos anúncios, mas em nova rua, embora no mesmo edifício, já que houve alteração no seu nome e traçado: agora se
chamava Rua des Archives.
Em 1879, faleceu o Sr. Taillandier e, em 30 de abril de 1884, aos sessenta e dois anos de idade, foi a vez de Célina Japhet.
Ela tinha nascido em 1822, em Caen, na região da Normandia, portanto, tinha trinta e cinco anos em 1857, quinze anos a mais do que se supunha. Seu
verdadeiro nome era Célina (ou Cœlina) Eugénie Béquet. Seu pai, François Béquet, era comerciante de bibelôs (marchand bimbelotier) e nunca foi viúvo,
como informado por Canuto Abreu206, pois sua esposa, Aimable Julie Le Planquais morreu em 1859, depois dele. Célina Japhet viveu seus últimos dias em
Paris e morreu solteira.
Umas das evidências que nos ajudou a encontrar os registros de estado civil dela e de Roustan foi a presença dele como testemunha no casamento de
Aimable Hipollyte, irmão de Célina Japhet. A outra foi seu testamento hológrafo (feito pelas próprias mãos), disponível nos Arquivos Nacionais da França.
Sua assinatura aparece como C. Bequet dita Japhet e o endereço é o mesmo da época em que foi entrevistada por Aksakof.

Fig. 11: Fragmento do testamento de Célina Bequet dita Japhet com sua assinatura de 1876
Fonte: Arquivos Nacionais da França, cote: MC/ET/CIII (1884)

Célina, que era a segunda, teve mais três irmãos: Antonielle Justine de 1819, Georges Alphonse de 1823 e Aimable Hippolyte de 1827. Este último, um
vendedor ambulante, foi condenado em 1846 (pela venda de escritos ilícitos), em 1852 (por desacato ao oficial da força policial) e, mais tarde, em 1872
(por porte de armas). Os filhos deste “communard” de Nogent-sur-Marne nasceram entre 1854 e 1863, portanto antes da oficialização do casamento, sendo
que a primeira nasceu na Bélgica, onde ele provavelmente encontrava-se exilado antes da anistia.
Seriam os eventos antes da primeira prisão em 1846 o motivo da Srta. Célina ter adotado o sobrenome Japhet? Como ela disse, a mudança em 1845 foi
por motivos familiares. Mas por que Célina teria escolhido o sobrenome Japhet? Como vimos, Roustan acreditava ser a reencarnação de um dos filhos de
Noé (o da arca). Japhet era um deles. Fato é, como comprovamos, que seu primeiro nome não era Ruth207.
Da mesma maneira, seu pai não era contador, ela não emigrou para a Espanha, não se casou, pelo menos oficialmente, e nem era neta de Hahnemann,
todos equívocos que se espalharam pelo movimento espírita.
Embora haja outras versões para Rivail ter escolhido o nome “Allan Kardec”, Célina diz à Aksakof que “Allan” lhe foi revelado e que “Kardec” o foi
para o médium Sr. Roze. Quem foi ele?

187 Publicada depois de Instruções práticas sobre as manifestações espíritas e O que é o espiritismo.
188 Jean Pierre tinha um irmão gêmeo, Felix Chrisosthome.
189 Livros de Cahagnet intitulados Mistérios da vida futura desvendados.
190 Talvez Johannes Nicolaas Tiedeman.
191 Antoine Léandre Sardou.
192 Victorien Sardou.
193 A. Aksakof, “Researches on the historical origin of the reincarnation speculations of French spiritualists”, The Spiritualist, vol. VII, nº 7, 13 de agosto (1875), p. 75. Link de acesso:
iapsop.com/archive/materials/spiritualist/spiritualist_v7_n7_aug_13_1875.pdf; acesso em: 07/08/2022.
194 André Saturnin Morin (1807-1888). Não confundir com Louis Joseph Félix Morin, médium da SPEE.
195 No relato a Aksakof, Japhet informa que Sardou lhe apresentou Kardec, mas no relato de Sardou, como vimos anteriormente, ele se encontrou com Kardec quando visitou Japhet.
196 Sem a identificação do número da residência.
197 Provável erro tipográfico, já que entre 1856 e 1863, Roustan morava no nº 12.
198 A. Kardec, “Première révélation de ma mission”, Œuvres Posthumes. Librairie des Sciences Spirites et Psychiques, Paris – France (1912), p. 316. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5601429m/f328.item; acesso em: 07/08/2022.
199 Seria, na verdade, a evocação de “A Voz”, seu Espírito familiar.
200 Sede da SPEE e da Revista Espírita.
201 Sede da Revista Espiritualista, distante apenas 850 m da sede da Revista Espírita.
202 Algum tipo de reflexo condicionado pela convivência anterior com o magnetizador.
203 A. Blackwell, “The origin of Allan Kardec’s Spirit’s Book”, The Spiritualist, vol. VII, nº 9, 27 de agosto (1875), p. 105. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/spiritualist/spiritualist_v7_n9_aug_27_1875.pdf; acesso em: 07/08/2022.
204 D. D. Home, “Mr. D. D. Home on reincarnation”, The Spiritualist, vol. VII, nº 14, 1º de outubro (1875), p. 165. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/spiritualist/spiritualist_v7_n14_oct_1_1875.pdf; acesso em: 07/08/2022.
205 P. G. Leymarie, “Reincarnation”, The Spiritualist, vol. VII, nº 15, 8 de outubro (1875), p. 174. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/spiritualist/spiritualist_v7_n15_oct_8_1875.pdf; acesso em: 07/08/2022.
206 C. Abreu, O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária. Edições LFU, São Paulo – SP (1992), p. 97.
207 Ibidem.
7. Sr. Roze, o médium obsidiado

Entre 1859 e 1860, o Sr. Roze trouxe várias mensagens de São Luís, Santo Agostinho, Lamennais, Vicente de Paulo, o Espírito da Verdade, etc., que
apareceram na Revista Espírita. Foi a comunicação espontânea de Chateaubriand, “O tempo presente”, publicada na edição de fevereiro de 1860208, que foi
aproveitada em O livro dos médiuns209:
O próprio Cristo preside aos trabalhos de toda sorte que se acham em via de execução, para vos abrirem a era de renovação e de aperfeiçoamento, que os vossos guias espirituais vos predizem.
Se, com efeito, afora as manifestações espíritas lançardes os olhos sobre os acontecimentos contemporâneos, reconhecereis, sem hesitação, os sinais precursores, que vos provarão, de maneira
irrefragável, serem chegados os tempos preditos. Estabelecem-se comunicações entre todos os povos. Derribadas as barreiras materiais, os obstáculos morais que se lhes opõem à união, os
preconceitos políticos e religiosos rapidamente se apagarão e o reinado da fraternidade se implantará, afinal, de forma sólida e durável. Observai que já os próprios soberanos, impelidos por
invisível mão, tomam, coisa para vós inaudita! a iniciativa das reformas. E as reformas, quando partem de cima e espontaneamente, são muito mais rápidas e duráveis, do que as que partem de
baixo e são arrancadas pela força. Eu pressentira, malgrado a prejuízos de infância e de educação, malgrado ao culto da lembrança, a época atual. Sou feliz por isso e mais feliz ainda por vos vir
dizer: Irmãos, coragem! trabalhai por vós e pelo futuro dos vossos; trabalhai, sobretudo, por vos melhorardes pessoalmente e gozareis, na vossa primeira existência, de uma ventura de que tão
difícil vos é fazer ideia, quanto a mim vo-la fazer compreender.

Em 1862, ele começou a publicar seus três volumes de Revelações do mundo dos espíritos, tornando-se, aparentemente, “criador de um sistema espiritual
rival ao de Kardec”210. No primeiro volume do livro, vemos que: “Ele [Arago] descreveu as topografias dos vários planetas, bem como os principais
atributos de seus habitantes. Venusianos, ele deixou saber, eram inteligentes, mas socialmente regressivos [ou menos desenvolvidos], enquanto os
netunianos eram criaturas morais, mas não sofisticadas. Os jupitorianos eram os mais avançados, chegando ao estágio onde todos os seres existiam em
harmonia e podiam levitar”211.
Sobre isso, Allan Kardec escreveu: “Quanto à obra do Sr. Roze e às teorias que contém, elas estão completamente fora do ensino geral dos Espíritos e
não são mais aceitas por nenhum espírita sério. As descrições que são feitas de mundos diferentes são puramente hipotéticas e não podem ser submetidas a
nenhum controle sério. Estas são as opiniões de um Espírito, opiniões tão discutíveis quanto as de qualquer ser pensante, a maioria das quais são ilógicas e
não podem ser escrutinadas. As assinaturas dessas comunicações são obviamente apócrifas”. Esta foi uma resposta de Kardec de março de 1869, através de
seu secretário, à carta de Samson212, impressa na Revista Espírita de janeiro de 1920.
No Catálogo racional de obras para se formar uma biblioteca espírita, último opúsculo de Allan Kardec, também é dito sobre a obra do Sr. Roze:
“Teorias cosmogônicas e psicológicas notoriamente contraditadas pela Ciência e pelo ensino geral dos Espíritos, e que a Doutrina Espírita não pode
admitir”.
Quem seria o Sr. Roze?
Seria ele um impressor septuagenário na época em que trabalhou com Kardec, quando o manuscrito que se tornaria O livro dos espíritos estava em seus
estágios iniciais213? A fonte do autor do livro Laboratories of faith vem de uma carta, encontrada numa série de correspondências de 1863, de Camille
Flammarion, então com vinte e um anos de idade, ao Sr. Sabo214, com trinta e cinco, presidente da Sociedade Espírita de Bordeaux e genro da Sra.
Cazemajour215, onde é anotado: “O que você me conta da carta do Sr. Salgues d’Angers, sobre o Sr. Allan Kardec e o Sr. Roze, está em completa harmonia
com o que foi dito aqui, quando falamos sobre isso. É triste, profundamente triste ver um velho octogenário216 ainda deixar o ódio acompanhar seus passos
trêmulos até a beira da sepultura. Recebi uma carta de recomendação dele por ocasião de meu pequeno trabalho com os habitantes do outro mundo, que me
foi elogiosa e, entre parênteses, cheia de animosidade contra nossos confrades no Espiritismo. Eu respondi a ele como um homem imparcial que busca a
verdade; ele não acusou o recebimento desta resposta”.
Na verdade o Sr. Roze não era octogenário nesta época, e sim o Sr. Salgues, como veremos.
A Revista Espiritualista de 1862 publicou uma carta de 24 de junho do Sr. Salgues, que fala do Sr. Roze e de Kardec. Antes, o editor deste periódico,
Piérart escrevera que: “(...) lamentamos que ele [o Sr. Salgues] não tenha falado com mais cuidado das opiniões emitidas pelo Sr. Roze (...). Temos a
vantagem de conhecer o Sr. Roze. Ele é um homem de boa-fé, com uma mente lúcida e franca, que não deve ser confundida com certos espíritas”. E
prossegue: “Nós não compartilhamos todas as doutrinas de sua obra, mas devemos confessar que há coisas notáveis e interessantes a serem encontradas e
que se ficará impressionado quando se sabe que elas foram descobertas por um homem que recebeu apenas uma educação elementar (...)”.
O Sr. Salgues escreveu: “O Sr. Rivail pelo menos reencarna nossas almas apenas em corpos de homens. Mas o Sr. Roze, com seus Espíritos, vai mais
longe. Ele afirma que nossas primeiras reencarnações acontecem em animais, primeiro em animálculos microscópicos (...) o Sr. Roze, ou melhor, seu
professor celestial, assegura-nos que temos começado pelo mineral, depois zoófitos (...) passando (...) pelos ácaros, pelos piolhos, pelas pulgas (...); e
alhures, macacos, etc.”. E continuou: “Mas eu acho difícil termos sido mônadas, piolhos, pulgas ou insetos, antes de sermos homens. É porque estas pestes
vivem apenas às nossas custas e que, para que haja ácaros, deve haver os queijos nos quais esses insetos se alimentam e, consequentemente, os homens que
os produzem”. Não temos o texto original do Sr. Roze para entender se ambos se referem ao Espírito (que certamente não reencarna em animais) ou ao
princípio inteligente individualizado (que deve iniciar sua jornada nas manifestações mais simples de vida material).
Na sequência, o Sr. Salgues explicou: “Depois de ter passado pelos moluscos (...) temos a honra, com o Sr. Roze e seus Espíritos, de nos tornar
quadrúpedes como os ratos, gatos (...) depois dos quais nos tornamos personagens de maior valor, por exemplo: burros, ovelhas, cães, porcos, ou patos,
gansos, perus. E sobre isso, o Sr. Roze nos diz que as mulheres vêm de pássaros, porque sua desenvoltura apresenta o balanço, a leveza e o ‘laisser-aller’
dos pássaros. Na verdade, deve-se acreditar, lendo estas ruminações curiosas e hilárias, que o Sr. Roze foi encarregado de afundar a doutrina mirabolante
das reencarnações”217.
Graças à carta de 11 de abril de 1865, enviada a Allan Kardec pelo Sr. Salgues, mencionando seu artigo no jornal Le sauveur des peuples de 12 de março,
descobrimos que ele218 tinha oitenta e dois anos nesta época. Era a ele que Flammarion se referia como octogenário na sua carta de 1863 a Sabo.
A carta foi publicada na Revista Espírita de maio de 1865. Nela o Sr. Salgues esclareceu: “Um anúncio de meu opúsculo [A confusão do império de Satã] foi feito por um jornal [Le
sauveur des peuples] ao qual enviei um exemplar. Tive que censurar o autor por ter-me chamado de adversário IMPLACÁVEL do Espiritismo (...) combati de boa-fé a doutrina das
encarnações, mas depois de haver reconhecido muitas incoerências espiritualistas e, como notei no Espiritismo certos detalhes que não cativavam minha confiança, acabei por me limitar à
observação minuciosa, esperando com paciência o dia em que, com uma natureza mais perfeita, pudesse eu reconhecer a verdade a respeito de nosso destino após a vida na matéria. Por ora
me basta, em relação aos fatos e às comunicações dos Espíritos, estar seguro de uma segunda vida no estado espiritual”.

Qual seria, então, a idade do Sr. Roze? Seguiremos agora uma trilha que nos ajudará a encontrar sua identidade.
O elo começa frágil e se inicia partindo de um endereço. Nada nos asseguraria que este endereço fosse o do Sr. Roze, médium; assim como nada nos
garantiria ainda que o Sr. J. Roze, da trilogia Revelações do mundo dos espíritos, fosse o médium utilizado por Allan Kardec. Supomos apenas que, por um
tal Sr. Roze, com seu respectivo endereço, aparecer na Revista Espiritualista como participante das experiências com a Srta. Huet, ele tinha interesse no
assunto e poderia ter sido um médium. Este endereço nos levou a Jules Roze, entalhador.
Eis o caminho seguido: na página 280 da Revista Espiritualista de 1859 obtivemos o endereço: Quai de la Tournelle, nº 11. Neste mesmo ano, neste
mesmo endereço, temos a renovação da patente de um ralador (moulin-râpe), que supomos ser de queijo, concedida ao Sr. Louis Jules Roze, “graveur”
(gravador em aço e entalhador).
A partir da patente, descobrimos outra em 1846, de um “rôtissoire-irrigateur”. O endereço agora é Quai des Augustins, nº 49. Mas novamente, neste
mesmo ano, neste mesmo endereço, temos sua inscrição de participação no “Salon de Paris”219. É no registro de 1847 que também encontramos a
informação sobre seu local de nascimento: Brunehamel220, no departamento de Aisne, a cerca de duzentos quilômetros de Paris. Lá encontramos seu
registro de nascimento em 11 de junho de 1817. Era filho de Louis Roze, tenente do 101º regimento de infantaria de linha221.
J. Roze publicou no segundo volume de suas Revelações do mundo dos espíritos, a mensagem “Na guerra”, de César. É a mesma comunicação de Júlio
César, obtida através do Sr. R., e publicada na Revista Espírita de dezembro de 1859. Nela, Júlio César revelava ter reencarnado como Luís IX (São Luís).
O mesmo aconteceu com as duas mensagens de Vicente de Paulo da mesma edição da Revista Espírita, que apareceram com os títulos “Da caridade” e “A
união é a força” no livro de J. Roze. Com isso podemos afirmar agora que várias comunicações de 1859 do médium Sr. R.222 seriam, na verdade, do Sr.
Roze.
Ou seja, o Sr. R. (na Revista Espírita de 1859), o Sr. Roze (na Revista Espírita de 1860) e o Sr. J. Roze seriam a mesma pessoa. Podemos ainda asseverar
isso sobre o Sr. R. da mensagem “Os inimigos do progresso”, de Lamennais, na Revista Espírita de novembro de 1860. Neste ano, o Sr. Roze já se
identificava assim, e não mais como Sr. R. A mensagem de Lamennais também está inserida naquele livro de J. Roze, como “Da não eternidade das
penas”, e foi incorporada na questão 1009 de O livro dos espíritos.
Foi assim que descobrimos que o Sr. Roze era Louis Jules Roze, entalhador (e não, impressor). Ele faleceu em 11 de março de 1866 em Fontainebleau,
pouco antes de completar quarenta e nove anos de idade. A esposa se chamava Marie Antoinette Menneron. Na sua trilogia Revelações do mundo dos
espíritos, criticada por Allan Kardec, ela é referenciada no segundo volume como Sra. V*** R..., médium vidente. No seu registro de casamento
descobrimos que o Sr. Roze foi seu segundo marido, mas foi só no seu registro de óbito que encontramos seu nome completo: Marie Antoinette Virginie
Menneron. “Virginie” deve ter sido adicionado por ela mesma, pois não aparece nos registros anteriores, inclusive no de nascimento.
No 35º Relatório anual de 1859 da “Sociedade para a colocação em aprendizagem de jovens órfãos”, reconhecida como instituição de utilidade pública,
descobrimos que o Sr. Roze também apadrinhava órfãos.
Infelizmente, em uma carta de 1867 a Augustin Babin, Allan Kardec comenta da obsessão e da fascinação que pesou sobre o Sr. Roze nos últimos seis
anos de sua vida, portanto desde 1860, antes da publicação dos seus livros.

208 No boletim sobre a sessão de 20 de janeiro de 1860, na mesma edição da Revista Espírita, é mencionada uma mensagem de Chateaubriand pelo Sr. Roze.
209 No item II do capítulo XXXI da segunda parte.
210 J. W. Monroe, Laboratories of faith. Cornell University Press, Ithaca – NY (2008), p. 139.
211 Theresa Levitt, The shadow of enlightenment. Oxford University Press, New York – NY (2009), p. 105.
212 Não confundir com o Sr. Alexandre Jacques Sanson, inventor, autor de vários livros, e que aparece como encarnado e desencarnado na Revista Espírita [conforme C. S. Bastos, Coadjuvantes da Codificação Espírita. Portal Luz Espírita e Autores Espíritas
Clássicos (2020), p. 81. Link de acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L178.pdf; acesso em: 07/08/2022].
213 J. W. Monroe, Crossing Over: Allan Kardec and the Transnationalization of Modern Spiritualism
Monografia (s/n). Link de acesso: academia.edu/20013185/Crossing_Over_Allan_Kardec_and_the_Transnationalization_of_Modern_Spiritualism; acesso em: 07/08/2022.
214 Secretário pessoal de Allan Kardec entre a saída do Sr. D’Ambel e a entrada do Sr. Desliens.
215 Uma das médiuns com mensagens aproveitas em O evangelho segundo o espiritismo e O céu e o inferno.
216 O Sr. Roze estaria na faixa dos setenta anos na década de 1850, mas já seria octogenário na década seguinte, contudo estas informações são imprecisas, como veremos. Conversamos com o autor John Warne Monroe que atualizará sua obra em futuras
edições.
217 Em outro trecho, o Sr. Salgues também criticou Allan Kardec: “Sim, é o Sr. Rivail que nos diz sem rir, sem ter a menor consideração ao fato de que todos os médiuns que permanecem estranhos a seus credos recebem comunicações contrárias à
reencarnação, especialmente na América, onde são milhões de espiritualistas que repudiam esse dogma (...)”. E termina defendendo seu ponto de vista, como ele mesmo diz “trazendo a luz para a escuridão desta escola de reencarnacionistas”. Antes, na
Revista Espírita de fevereiro, e posteriormente na de março do mesmo ano de 1862, Allan Kardec já rebatia: “Isso responde à objeção de um dos nossos assinantes, o Sr. Salgues, de Angers, que é um dos antagonistas confessos da reencarnação e que
pretende que os Espíritos e os médiuns que a ensinam sofram a nossa influência, de vez que os que se comunicam com ele dizem o contrário. (...) Se tal resultado é devido a nossa influência, atribuem-nos uma muito grande, pois se estende da Europa à
América, à Ásia, à África e até à Oceania (...)”.
218 Seu nome completo era Louis Auguste Gratien Salgues (1784-1874), conforme nossas pesquisas revelaram.
219 Exibição anual de obras de arte, selecionadas por um júri, no Salon d’Apollon do Museu do Louvre. A inscrição do Sr. Roze está no Registre des artistes, par ordre alphabétique avec les numéros de leurs ouvrages (1847), p. 84. Link de acesso:
culture.gouv.fr/Wave/savimage/manus/AMN/KK017-2.pdf; acesso em: 07/08/2022.
220 Id. (1848), p. 81. Link de acesso: culture.gouv.fr/Wave/savimage/manus/AMN/KK018-2.pdf; acesso em: 07/08/2022.
221 Não confundir com Louis Rose, conhecido como Louis “Moses” Rose, morto na batalha de Forte Álamo, pela independência do Texas contra as tropas mexicanas.
222 Não confundir com o Sr. R., de Mulhouse, que era o Sr. Mardochée Rodolphe Rubio; nem com o Sr. R., correspondente do Instituto de França e membro da SPEE que comentou uma mensagem de São Luís na “Teoria do móvel de nossas ações”.
8. As obras revistas, corrigidas e aumentadas

Depois do lançamento de O livro dos espíritos, algumas questões ainda atormentavam Allan Kardec. A maledicência e a questão financeira também
continuavam assombrando-o. Numa prece, ele pediu ao “Senhor Deus Todo-Poderoso”, que às vezes abreviava como S.D.T.P.: “(...) se me é permitido
formular um desejo, eu vos pediria, Senhor, os meios de me libertar de qualquer dependência, delas e sobretudo da sociedade. Visto que a autoridade moral
não é suficiente, dai-me, eu vos peço, algum recurso material, a fim de fechar, se é possível, a boca das más línguas”. Esta prece, similar à de 1857223, é de
4 de dezembro de 1860. Lembramos que Allan Kardec fez empréstimos de 16.000 francos em 30 de outubro de 1858 e de 9.000 francos em 22 de junho de
1861, junto ao Crédit Foncier, dando como garantia a Villa de Ségur.
Outra questão que o afligia era a busca incessante pelo conhecimento. Em uma evocação de 1860, ele rogou: “Em nome de Deus Todo-Poderoso, eu peço
que o Espírito de Georges224 aceite comparecer. (...) Eu gostaria notadamente de ter a contrapartida da situação dos maus [que] é o quadro da felicidade do
justo. Depois uma explicação satisfatória sobre a alma dos animais225 e o princípio vital das plantas. Isso irá completar a magnífica obra que o senhor
acabou de começar, e eu desde já lhe agradeço por isso”.
Toda esta situação às vezes o levava a um estado inexplicável de contrariedade, mau humor e ansiedade, como podemos constatar em outra prece,
também de 1860: “Em nome de Deus Todo-Poderoso, Espírito da Verdade, eu te peço para restaurar a minha calma e me inspirar as melhores resoluções a
tomar. Faz com que, durante meu sono, eu venha a me retemperar e a me fortalecer entre os bons Espíritos e restabelecer, ao meu despertar, uma intuição
saudável”.
Mas nada impedia Allan Kardec de buscar um certo perfeccionismo, fato que pode ser constatado pela atualização constante de suas obras. O livro dos
espíritos foi “inteiramente reformulado e consideravelmente aumentado” na edição de 1860, com mil exemplares, como já vimos. O livro dos médiuns foi
lançado em 1861, seis meses após a Declaração de Impressão de 1860, com dois mil exemplares. A segunda edição, também de 1861 e com mais dois mil
exemplares, foi “revista e corrigida com a ajuda dos Espíritos, e aumentada com um grande número de novas instruções”.
Isto também aconteceu com O que é o espiritismo, primeiramente “inteiramente reformulado e consideravelmente aumentado”, e depois, novamente,
“reformulado e consideravelmente aumentado”; e com a “nova edição aumentada” do Resumo da lei dos fenômenos espíritas. O espiritismo na sua
expressão mais simples também teve uma “nova edição”.
Outra curiosidade é que se a segunda edição tivesse sido revisada, ela seria a “second édition”, caso contrário seria a “deuxième édition”.

Fig. 12: Capas das obras fundamentais a partir da segunda edição, com destaque para a “seconde édition” de O livro dos espíritos e de O livro dos médiuns. As demais foram revisadas depois da “deuxième édition”. A segunda edição de O céu e o inferno não
foi encontrada até hoje.
Fonte: Kardecpedia

O brasileiro Francisco Antônio Pereira Rocha226 recebeu uma correspondência de Allan Kardec, de 23 de agosto de 1860, informando que ficava
lisonjeado com o desejo que ele lhe manifestava de fazer uma tradução em português de O livro dos espíritos e de suas Instruções práticas. Revela, no
entanto, que mesmo almejando a propagação da doutrina espírita, não era mais dono dessas obras, que pertenciam ao editor, que, por sua vez, pensava que
a tradução poderia trazer-lhe prejuízo considerável, diminuindo a venda da edição francesa. Mesmo assim, Allan Kardec obteve o consentimento do Sr.
Didier227, o editor, e autorizou as traduções que, afinal, parecem não ter acontecido. Allan Kardec também havia dito:
Presumo que a edição que tem de O livro dos espíritos seja a segunda; seria, pois, muito importante não fazer a tradução da primeira, que é muito menos completa. Esta segunda edição esgotou-
se em quatro meses; foi impressa uma terceira, semelhante à segunda, salvo alguns itens acrescentados228; de modo que seria útil fazer a tradução desta última edição.

Quanto à Instrução prática [na verdade, Instruções práticas], também está esgotada, e vai ser substituída por uma nova obra muito mais completa, e que seria mais útil traduzir do que a que o
senhor tem. Essa nova obra já está no prelo e aparecerá em dois meses aproximadamente.

Da mesma forma, as três últimas obras consideradas fundamentais foram atualizadas por Allan Kardec: O evangelho segundo o espiritismo foi “revisto,
corrigido e modificado”, O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo teve a “nova edição inteiramente revista e corrigida” e A Gênese, os
milagres e as predições segundo o espiritismo foi “revista, corrigida e aumentada”.
Vamos falar primeiramente dos responsáveis pela viabilização de O livro dos médiuns, independentemente se da primeira ou da segunda edição. Não
falaremos mais nem do Sr. Roze, que participou tanto de O livro dos espíritos quanto de O livro dos médiuns, nem da Srta. Japhet, que alega também ter
participado de ambos. Falaremos da Srta. Huet, que não chegou a participar da segunda edição de O livro dos espíritos, pois, como vimos, a Declaração do
Impressor do livro é de setembro de 1859, e ela só foi admitida na SPEE em outubro229. Os outros dois personagens de O livro dos médiuns serão o Sr.
D’Ambel e a Sra. Costel. Não abordaremos o Sr. Darcol, a Sra. Schmidt e a Sra. Schutz230.
223 Citada no terceiro capítulo da segunda parte.
224 Louis Henri Georgè (1826-1857), pintor francês, como ainda veremos.
225 Na Revista Espírita, de agosto de 1911, saía o último ensaio póstumo de Allan Kardec, sobre “o futuro dos animais”. Nele, é dito que “Em resumo, a alma animal entra na humanidade por várias portas, umas inferiores, outras superiores, mas todas um dia
chegam ao mesmo nível”. Conforme Sophie Rosen Dufaure, no livro Excelsior! de 1910, Kardec possuía um angorá chamado Minet.
226 Francisco Antônio Pereira Rocha, jurista consagrado, nascido na Bahia. Foi fundador da Companhia de Águas do Queimado, na cidade de Salvador, e da Companhia Hydraulica Porto Alegrense, para fornecer água potável à cidade de Porto Alegre
[conforme C. S. Bastos, Coadjuvantes da Codificação Espírita. Portal Luz Espírita e Autores Espíritas Clássicos (2020), p. 77. Link de acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L178.pdf; acesso em: 07/08/2022].
227 Pierre Paul Didier (1800-1865), editor de obras de Allan Kardec e pai do médium Alfred Didier.
228 Questões 222 e 613.
229 Evidentemente que entre a Declaração do Impressor e o Depósito Legal da obra, com o respectivo registro no jornal Bibliographie de la France, talvez ainda pudesse haver eventuais ajustes. No caso da segunda edição de O livro dos espíritos tivemos dois
registros em março de 1860, embora a obra tenha sido anunciada na Revista Espírita em janeiro.
230 Não encontramos ainda elementos suficientes para uma identificação segura destes personagens.
9. Srta. Huet, a médium judia

Junto com a Srta. Huet, que não tinha um magnetizador associado, falaremos de seu grande amigo, Pierre François Mathieu, mais conhecido como P. F.
Mathieu, antigo farmacêutico – chefe do Exército e membro de várias sociedades científicas. Ele é o mesmo Mathieu da carta que foi mencionada em O
livro dos médiuns231 e na Revista Espírita de agosto de 1861. Falecido em 1864, ele foi diretor-presidente de estudos do Salon de la Madeleine, da Srta.
Huet. Ele inclusive enviava cartas à Revista Espiritualista de Piérart.
Em março de 1854, portanto ainda antes da publicação de O livro dos espíritos, o antigo farmacêutico foi um dos primeiros a usar a prancheta: “Como
estudioso, o Sr. Mathieu não usou o meio rude, lento e difícil da mesa falante. Nós tínhamos acabado de inventar a prancheta (planchette) e a cesta
(corbeille), e foi pela prancheta que Jullie foi evocada”232.
Na Revista Espiritualista, em 1859, foi publicado um longo trabalho do Sr. Mathieu com os resultados de uma série de experimentações que realizou
com ajuda da médium Srta. Huet, e que foi apresentado à Academia de Ciências. Na introdução de Laboratories of faith encontramos o relato de tais
experiências: “Uma delas, que ocorreu em uma capela da nave da basílica parisiense de Notre-Dame des Victoires233, envolvia uma folha de papel comum
que havia sido retirada da escrivaninha de Mathieu no dia anterior. Depois de verificar que a folha estava em branco, dobrou-a em quatro e colocou-a em
um degrau da capela. Huet meditou em silêncio por alguns instantes e após, enquanto recitava uma prece, tocou as pontas dos dedos enluvadas no papel
dobrado. Quando Huet puxou os dedos para longe, Mathieu abriu a folha e, para sua grande estupefação, descobriu a palavra fé escrita, como que com
lápis, em uma das partes interiores do papel!”.
Este fenômeno era a escrita direta ou pneumatografia, comentada por Allan Kardec234, que informou ainda as presenças de Didier (seu editor, encarnado)
e Fénelon (desencarnado) nas experiências que se seguiram, em 4 de julho de 1859, na Notre-Dame des Victoires e 12 de julho, no Louvre e na igreja São
Germano de Auxerre235. De fato, o barão de Güldenstubbe, no livro Pneumatologia positiva, já alegava ter tido um primeiro sucesso com a escrita direta,
sem médiuns236, em 13 de agosto de 1856.
No final de 1858, o jornal L’Union Magnétique estabeleceu uma comissão com mesmeristas do campo terapêutico e do campo espiritualista
(sonambulismo induzido), que convenceu a Srta. Huet a participar de experimentos utilizando a tiptologia (alfabeto e pancadas). Como médium sonâmbula,
ela era diferente de outros, pois não precisava ser magnetizada para entrar em transe237. Dois espiritualistas do grupo, Henri Delaage e Piérart, aceitavam os
requerimentos dela, enquanto outros não concordavam que ela atuasse como magnetizadora e sonâmbula. No final, oito homens que participaram do
experimento, determinaram que não havia provas conclusivas da atuação de Espíritos. Embora Delaage e Piérart fossem contra, os outros seis decidiram
por publicar os resultados em L’Union Magnétique, de 15 de agosto de 1859. Após a publicação, ocorreu um intenso debate entre Piérart, espiritualista, e
A. S. Morin, um cético.
Depois disso, temos a fase da Srta. Huet na SPEE. Uma carta de 22 de outubro de 1859 traz a informação da aprovação da sua entrada na sociedade. De
janeiro de 1860 a janeiro de 1861, a médium foi responsável por vinte e cinco mensagens de Channing, São Luís, Charles Nodier, Fénelon, etc., que
apareceram na Revista Espírita. Em outra carta, de 17 de janeiro de 1861, foi informado que a sociedade estava prescindindo dela devido ao mau uso
recorrente que a Srta. Huet estava fazendo da mediunidade. Depois disso, a médium ainda teve uma longa carreira até sua morte em Neuilly-sur-Seine.
Embora já se tenha dito que em 1860 a Srta. Huet tinha se tornado a voz exclusiva de São Luís238, registramos apenas quatro mensagens dela assinadas
por São Luís. Nesse ano, ele se manifestou muitas outras vezes, sem a identificação do médium, mas também através do Sr. C., do Sr. D., do Sr. Darcol e
da Sra. N239. Portanto, não podemos afirmar que a voz exclusiva de São Luís seja através da Srta. Huet, apesar dele ter declarado através da médium:
“Quanto às várias comunicações que me atribuem, são por vezes de outro Espírito que usa o meu nome. Pouco me comunico fora da Sociedade, que tomei
sob meu patrocínio240. Gosto destes lugares de reunião, que me são especialmente consagrados. É somente aqui que gosto de dar avisos e conselhos. Assim,
desconfiai dos Espíritos que às vezes se servem do meu nome”241.
Se assim for (voz exclusiva), podemos imaginar que todas as mensagens de São Luís em O evangelho segundo o espiritismo tenham sido obtidas através
da Srta. Huet, pois todas elas são de Paris, sendo duas de 1859 e nove de 1860.

Fig. 13: Fragmento de cópia da evocação “Questões sobre Júpiter (a São Luís)”,pela médium Srta. Huet, de 28 de dezembro de 1860 na SPEE (a letra é de Kardec)
Fonte: Museu Allan Kardec online

Já William Ellery Channing, um norte-americano conhecido como o “apóstolo do unitarismo”, corrente protestante que negava o dogma da trindade
cristã, teve suas mensagens obtidas unicamente por ela, sendo que quatro comunicações foram publicadas na Revista Espírita. Uma delas, “A voz do anjo
guardião”, de janeiro de 1861, foi aproveitada por Allan Kardec em O livro dos médiuns242:
Todos os homens são médiuns, todos têm um Espírito que os dirige para o bem, quando sabem escutá-lo. Agora, que uns se comuniquem diretamente com ele, valendo-se de uma mediunidade
especial, que outros não o escutem senão com o coração e com a inteligência, pouco importa: não deixa de ser um Espírito familiar quem os aconselha. Chamai-lhe espírito, razão, inteligência: é
sempre uma voz que responde à vossa alma, pronunciando boas palavras. Apenas, nem sempre as compreendeis. Nem todos sabem agir de acordo com os conselhos da razão, não dessa razão que
antes se arrasta e rasteja do que caminha, dessa razão que se perde no emaranhado dos interesses materiais e grosseiros, mas dessa razão que eleva o homem acima de si mesmo, que o transporta
a regiões desconhecidas, chama sagrada que inspira o artista e o poeta, pensamento divino que exalça o filósofo, arroubo que arrebata os indivíduos e povos, razão que o vulgo não pode
compreender, porém que ergue o homem e o aproxima de Deus, mais que nenhuma outra criatura, entendimento que o conduz do conhecido ao desconhecido e lhe faz executar as coisas mais
sublimes. Escutai essa voz interior, esse bom gênio, que incessantemente vos fala, e chegareis progressivamente a ouvir o vosso anjo guardião, que do alto dos céus vos estende as mãos. Repito: a
voz íntima que fala ao coração é a dos bons Espíritos e é deste ponto de vista que todos os homens são médiuns.
Poderíamos inferir, portanto, que as demais mensagens deste Espírito em O livro dos médiuns também pudessem ter sido obtidas através da Srta. Huet.
Curioso que Channing era protestante, enquanto a Srta. Huet era de família judia243.
Como a Srta. Japhet, a Srta. Huet cobraria pelos seus dons mediúnicos?
Ela mesma responde sobre isso em carta enviada em 1859 à Revista Espiritualista, na qual escreveu, em relação aos médiuns farsantes, que não recebia
nenhuma retribuição aos seus serviços. Ainda assim, Camille Flammarion pensava diferente: “Na época da qual falava há pouco (1861-1863), participei,
como secretário, de experiências realizadas regularmente uma vez por semana no salão de uma médium reputada, a senhorita Huet, na Rua Mont-Thabor. A
mediunidade era, de algum modo, sua profissão e, mais de uma vez, ela foi flagrada blefando admiravelmente. Podemos supor que ela própria, com muita
frequência, dava as pancadas, batendo seus pés contra a mesa. Mas obtínhamos, muitas vezes, ruídos de serra, de plaina, de ribombo de tambor, de
torrentes [de água], impossíveis de imitar (...)”244.
Judith Gautier, para cujo pai a Srta. Huet trabalhava, a descreveu de forma cruel, por exemplo, supondo que sua voz anasalada característica teria sido
causada pela presença de um pólipo no seu nariz: “Algumas vagas noções zoológicas levaram-nos a pensar que o pólipo era um animal, muito feio e muito
assustador, e esperávamos vê-lo fugir, um dia, do nariz de Bourbon [adunco] que o servia como uma caverna”245. Judith implicou até com o fato de sua
professora, a Srta. Huet, gostar muito de escargot, enquanto referia à sua irmã, pianista, como a bela Virginie. Judith mencionou também que o escritor e
crítico francês Paul de Saint-Victor, chamava maliciosamente a governanta como Honnorine “Huai”, isto é, sem o “t”, para imitar o sotaque do sul do país.
A Srta. Huet era governanta na casa do Sr. Gautier246.
Honnorine Marie Cecile Huet nasceu em 1º de outubro de 1819, em Toulon, embora tenha vivido em Marselha, ambas comunas do litoral sul da França,
conhecido como Côte d’Azur.
Em uma edição de dezembro de 1865, do jornal O Futuro (L’Avenir) do Sr. D’Ambel, ex-secretário pessoal de Allan Kardec e antigo vice-presidente da
SPEE, foi noticiada a abertura de um salão de leitura na casa da Srta. Huet. Neste salão, os livros e jornais espíritas e espiritualistas estavam à disposição
dos visitantes. Era aberto todos os dias, do meio-dia às 5 horas da tarde, exceto domingos e feriados. Após a morte trágica do Sr. D’Ambel em 1866, seu
periódico foi substituído pelo jornal O Progresso Espiritualista (Le Progrès Spiritualiste), que tinha como editora a Srta. Huet. O periódico durou apenas
seis meses.
Depois da guerra Franco-Prussiana, ela se mudou para a Inglaterra, vivendo em Londres de 1871 até 1873, pelo menos.
Em 1874 foi publicado em Paris o livro As memórias de dois espíritos, suas várias vidas, contadas a sua mãe por Sr. Raoul d’A. – dois anos de idade247,
de autoria da médium. Nele é mencionado Maria d’Albuquerque, mãe do brasileiro Raoul d’A, nascido em 1870 e desencarnado aos dois anos de idade,
que é o autor espiritual do livro. Já sabíamos que a Srta. Huet havia se encontrado com a Baronesa de Vera Cruz, “uma brasileira rica, tão boa quanto
rica”248.
Seriam Maria d’Albuquerque e a Baronesa de Vera Cruz a mesma pessoa? Tudo indica que sim, embora Antonia Maria Cavalcanti de Albuquerque, também conhecida como Antonia
Cavalcanti Carneiro da Cunha, nascida em 1831 ou 1832, só tivesse tido uma filha desencarnada aos dez anos em 1867, e não tenha registrado nem um filho após a morte do marido, em
1869, quando ela tinha apenas trinta e oito anos de idade. Seu nome completo de casada deveria ser Antonia Maria Cavalcanti de Albuquerque Carneiro da Cunha, ou seja, Maria
d’Albuquerque.249

Em novembro de 1876, a Srta. Huet viajou até a Suíça, quando talvez estivesse voltando para Paris de uma outra viagem à Inglaterra, conforme havia
anunciado em janeiro. Ela esteve em Saxon, no cantão de Valais, e assim relatou, de Paris, no início de dezembro:
Tendo retornado, gostaria de lhe dizer como os espíritas são tratados lá (...) nenhuma objeção pode ser levantada contra eles, quando sete ou oito pessoas se reúnem em torno de uma mesa para
realizar uma reunião. Essas pessoas podem ser objeto de um pesar compassivo, mas em nenhum caso elas estarão erradas. Na França, Inglaterra e América, as mesas girantes não são proibidas,
mas aqui na Saxônia (...) em 17 de novembro de 1876, nove de nós estávamos em um hotel para uma reunião. Pouco antes do início, um cavalheiro explicava como poderia ganhar £ 4.000 em uma
semana na roleta da cidade (...) quando uma batida foi ouvida na porta (...) dois policiais, seguidos por um cavalheiro à paisana, entraram (...) Surpresa com esta visita inesperada, perguntei o que
eles queriam. Antes de responder, eles vasculharam a sala com atenção e, quando não encontraram nada suspeito a não ser uma companhia de damas e cavalheiros sentados em volta de uma mesa
com duas luzes acesas, disse um dos homens de uniforme em voz mais alta (...): “Eles estão ‘em volta da mesa’ aqui, e isso é ilegal!” (...) Um cavalheiro presente se opôs a essa intrusão e disse:
“Estamos aqui em nosso próprio quarto e temos o direito de fazer o que quisermos. Com que direito você entra em uma sala privada e quem lhe enviou?”. Resposta: “Viemos sob a autoridade da
chefatura de polícia, a quem uma reclamação sobre suas ações chegou, pois o que você está fazendo é proibido” (...) Nosso interlocutor continuou: “Isso é proibido porque perturba a mente das
pessoas e causa distúrbios nas famílias; além disso, aqueles que fazem essas coisas estão parcialmente enlouquecidos. Se você continuar (...) será condenado a três anos de prisão, ou (...) será
expulso deste país (...)”. Nós rimos dessa ameaça, mas prometemos não violar a suposta lei e a polícia nos deixou. Eles temem que as mesas girantes possam perturbar a harmonia da família,
dando liberdade total às mesas de jogo! Para evitar distúrbios, fomos forçados a interromper nossas sessões. Esta é agora uma república que hospeda “communards” [referência aos membros da
Comuna de Paris], mas ameaça com três anos de prisão (...) as pessoas honestas que têm fé.

Em 1881, com quase sessenta e dois anos, ela participou do funeral do barão Du Potet, fundador do Journal du Magnétisme, e em dezembro de 1888
iniciou a publicação de uma série de artigos chamada Memórias de um salão espírita no jornal Le Spiritisme, encerrando-a em março de 1892.
Na Revista Espírita de julho de 1893, localizamos, finalmente, uma nota sobre sua internação num asilo, após um acidente de carruagem. Ela tinha
setenta e três anos de idade. Quase dois anos depois, ela desencarnou no dia 4 de maio de 1895 no seu último lar, o lar de idosos Sainte Anne (hoje Théâtre
des Sablons) em Neuilly-sur-Seine, município da grande Paris.
Quando dissemos que a Srta. Huet assumiu o lugar do Sr. D’Ambel, mencionamos sua morte trágica. Quem foi este personagem afinal? Quais as razões
que o levaram a este desfecho?

231 No item 317 do capítulo XXVIII da segunda parte.


232 G. de Longpérier, “La magie moderne”, Musée universel, nº 8 (1858), p. 394. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6214937b; acesso em: 08/08/2022.
233 Em 13 de junho de 1859. A outra foi em 29 de junho de 1859 na Igreja Notre-Dame de Lorette.
234 Revista Espírita, agosto (1859), p. 205.
235 Ver, também, a experiência de 11 de fevereiro de 1860, descrita na Revista Espírita de maio do mesmo ano.
236 A doutrina espírita não prescinde de médiuns para a obtenção de qualquer efeito físico.
237 Diferentemente da Sra. Roger ou da Srta. Japhet, que tinham magnetizadores associados (Sr. Fortier e Sr. Roustan, respectivamente).
238 J. W. Monroe, Laboratories of faith. Cornell University Press, Ithaca – NY (2008), p. 137.
239 Ao longo dos anos, São Luís se manifestou na Revista Espírita pelos menos pelos seguintes médiuns: Srs. Bertrand, C., Coll ou Collin, D., Darcol, Delanne, Desliens e R. (Roze); Sras. B., Breul, Costel, Delanne e N.; e Srtas. Dufaux e Huet.
240 São Luís, em vida, foi extremamente devoto à fé católica e um líder militar que lançou as bases da justiça real francesa, introduzindo, por exemplo, a presunção de inocência no processo criminal.
241 Declaração feita na Revista Espírita de abril de 1860.
242 No item X do capítulo XXXI da segunda parte.
243 J. W. Monroe, Laboratories of faith. Cornell University Press, Ithaca – NY (2008), p. 92.
244 C. Flammarion, Les forces naturelles inconnues. Ernest Flammarion, Paris – France (1907), pp. 58-59. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k107823d; acesso em: 08/08/2022.
245 J. Gautier, Le second rang du collier. Félix Juven Éditeur, Paris – France (1909), p. 7. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k832586; acesso em: 08/08/2022.
246 Pierre Jules Théophile Gautier, escritor de várias obras do romantismo e parnasianismo, mas também de Spirite, publicada no folhetim Moniteur Universel e comentada na Revista Espírita de março de 1866
247 Ela já havia publicado o Manual do espiritismo em 1869.
248 Le Spiritisme, 7º ano, nº 3, março (1889), p. 45.
249 Era uma das mulheres mais ricas de Pernambuco, era Senhora dos engenhos: Tamataúpe/Carpina, Monjope/Igarassu, São João/Cabo de Santo Agostinho e São Caetano/Cabo de Santo Agostinho. A Baronesa de Vera Cruz, certa ocasião, mandou publicar
no Diário de Pernambuco um anúncio para localizar o escravo Manoel Catuaba, padeiro e cozinheiro do engenho Monjope, pois o mesmo valia muito, já que tinha um dos ofícios de destaque no engenho. A fuga tinha ocorrido do dia 11 para o dia 12 de
abril de 1876. A Baronesa faleceu em 1892 aos cinquenta e nove anos de idade. Boa parte de seu mobiliário e acervo artístico foi doado ao Instituto Arqueológico e Histórico de Pernambuco.
10. Sr. D’Ambel, o médium de Erasto

Todas as comunicações de Erasto, com identificação de médium, foram através do Sr. D’Ambel, inclusive a mensagem sobre o cão do Sr. T. no capítulo
“Da mediunidade nos animais” de O livro dos médiuns. Na Revista Espírita de agosto de 1861, encontramos que o Sr. T. se chamava Thiry250. Erasto, dito
discípulo de São Paulo, grego de Corinto, foi o Espírito mais atuante em O livro dos médiuns, com doze mensagens identificadas, fato verificado apenas a
partir da sua segunda edição. Além deste livro, podemos confirmar a participação do sistema “Erasto – D’Ambel” em O evangelho segundo o espiritismo
(“Missão dos Espíritas”251, etc.) e em O céu e o inferno (“Antonio B.”252, etc.)253.
O Sr. D’Ambel foi vice-presidente da SPEE e primeiro secretário pessoal de Allan Kardec. Ele nasceu no Natal de 1816, na comuna de Grenoble, aos pés
dos Alpes franceses, a quinhentos e setenta e um quilômetros de Paris. Casou-se com Marie Léonie Georgè, irmã do Espírito Georges, em fevereiro de
1846, quando era inspetor de uma seguradora contra incêndios, a Compagnie du Soleil. Segundo São Luís, Georges, em vida, foi pintor e professor de
desenho da Sra. Costel, outra médium atuante da Revista Espírita.
Chamado pelos opositores até de “tenente” de Allan Kardec, foi editor de partituras musicais, mas faliu em 1857. Seu nome completo era Emmanuel
Balthazard Marie Eugène Alis d’Ambel, mas usou vários pseudônimos como: Abel d’Islam, Marie Alis, A. D’A., Al. de Paris, E. Alis, etc.
Assinou textos nos jornais La Vérité, de Lyon, e La Ruche, de Bordeaux, como este artigo de 1863 do Sr. Abel d’Islam, do qual colhemos este fragmento
com o discurso do Sr. D’Ambel (ele mesmo), na sessão de 13 de agosto de 1863, da SPEE:
(...) Agora, aqui está o discurso de encerramento proferido pelo vice-presidente da Sociedade Espírita de Paris:

“Senhoras e senhores,

Vamos sair por algumas semanas; cada um de vocês vai revigorar suas forças na doçura do descanso e nos encantos das férias; mas antes de nos separarmos, permita-me dizer algumas
palavras de despedida.

Que cada um de vocês, queridos colegas, inspirando-se no exemplo de nosso querido mestre, tire um pouco da atmosfera acolhedora que respiramos aqui, que cada um de vocês empreste dele
um pouco desta fé viva que torna possível andar sobre as águas; e nosso descanso momentâneo, nossas férias atuais não serão perdidas pela grande causa à qual nos dedicamos.

Ao nos tornarmos espíritas, todos aceitamos uma parte do fardo das almas a serem salvas; pois as verdades que são tão amplamente transmitidas a nós por nossos amigos do além-túmulo não
nos são dadas para nosso uso exclusivo, nosso único aprimoramento; devemos transferir grande parte disso para aqueles que não foram tocados até hoje pela grande graça que Deus nos deu. Mas
você espalhará, estou convencido, esse maná celestial ao redor de você, você o distribuirá entre suas famílias, seus amigos e, especialmente, a todos aqueles a quem você verá sofrer, pois é um
remédio soberano para todo sofrimento e toda a amargura terrena.

É também em nome de todas as famílias cujo Espiritismo consolidou os laços que estavam prontos para se romper, em nome de todas as famílias onde a paz e a tranquilidade substituíram
discussões e tempestades, em nome de todos os espíritas que a santa fé trouxe de volta aos caminhos do Senhor, que venho aqui para agradecer ao excelente Presidente, cuja obra deu origem a
tantos milagres.

Sim, graças a você, caro Allan Kardec, a felicidade que havia fugido retornou sob mais de um teto; a tranquilidade que tinha desaparecido retornou a mais de uma casa; e muitos entre os aflitos
da vida vieram, como o Sr. du L..., para agradecer a Deus por seu sofrimento; mas esses resultados não foram obtidos sem o uso de suas próprias forças, e não foi administrando os salões e os
prazeres que você derramou luz sobre toda a escuridão, coragem em todos os fracassos e bálsamo em todas as dores.

Eu também era um destes aflitos de que estava falando anteriormente, e estava indo direto ao fundo quando uma mão amiga – deixe-me agradecê-la aqui publicamente – me mostrou sua
doutrina que, como um farol, me fez ver as terríveis profundezas onde eu iria afundar.

Posso, portanto, com alguma razão, agradecer-vos em nome de todos aqueles que você salvou, em nome de todos os espíritas e, mais particularmente, em nome de meus colegas da Sociedade de
Paris, que foram melhores do que todos os outros capazes de apreciar suas qualidades eminentes e fazer justiça ao seu trabalho frutífero.

Se algumas deserções vieram, se algumas críticas detalhadas foram ouvidas, se algum amor-próprio se desmoronou e se ciúmes ardentes surgiram de seus sucessos, o que importa, meu mestre?
Cartas como a do médico [Sr. du L...] são feitas para nos fazer ver a verdade verdadeira e consolá-lo de quaisquer ataques pobres.

Receba, portanto, caro mestre, este testemunho de estima, simpatia e, acima de tudo, gratidão que tenho o prazer de lhe dar aqui, em nome de todos os espíritas meus irmãos.”

Os aplausos calorosos e unânimes que saudaram esse discurso provam o quanto o Sr. Alis D’Ambel se tornou o intérprete fiel dos sentimentos de seus colegas da Sociedade de Paris. Eu não
tenho nenhuma dúvida, queridos leitores, que vocês também vão encontrar uma expressão de como vocês se sentem sobre o venerado Chefe da doutrina espírita.

Abel d’Islam.

A Revista Espírita era também um laboratório de Allan Kardec para a preparação das obras fundamentais da doutrina espírita, por isso não é
surpreendente que na sua edição de agosto de 1864 encontremos uma mensagem polêmica sobre o México, não aproveitada em nenhum outro livro, com
incas, que nunca habitaram o México, e que, ao contrário do que supõe a comunicação, tinham um exército e ofereciam sacrifícios humanos. Apesar do
médium ser o Sr. D’Ambel, Erasto não a assina. Deduzimos que seja ele porque Allan Kardec afirmou no comentário que se segue à mensagem: “Quanto
aos indígenas do México, diremos, como Erasto (...)”.
Em pelo menos quatro comunicações de Erasto (Epístola aos espíritas lioneses, A guerra surda, Futuro do Espiritismo e O juízo final) não houve
identificação do médium.
A mensagem “Primeira epístola aos espíritas de Bordeaux” também foi trazida através do Sr. D’Ambel, conforme esclareceu Kardec: “O Espírito de
Erasto, que já conheceis, senhores, por suas notáveis dissertações que já lestes, também quer trazer-vos o tributo de seus conselhos. Antes de minha partida
de Paris254, ele ditou, por intermédio de seu médium habitual, a comunicação seguinte, que vou ter a honra de vos ler”. Além de Erasto, há algumas
mensagens obtidas de outros Espíritos, como do Visconde Delaunay – pseudônimo de Delphine de Girardin, Antonio B., a pobre Mary (suicida), Jobard255,
François-Nicolas Madeleine256, Espírito da Verdade, etc.
Fig. 14: Fragmento da comunicação “Sobre a responsabilidade dos pais”, de Erasto, pelo médium Sr. D’Ambel, de 14 de fevereiro de 1862, na SPEE (a anotação “Educação”, na parte superior, é de Kardec)
Fonte: Museu Allan Kardec online

Na segunda parte de Obras Póstumas, sobre “A minha primeira iniciação no Espiritismo”, temos várias comunicações pelo médium Sr. d’A..., do
Espírito Verdade, do Espírito E. (provavelmente Erasto) e de Erasto. As cartas de Kardec à sua esposa confirmam algumas destas suposições, quando, por
exemplo, escreveu na carta de 6 de setembro de 1863: “Darás conhecimento desta resposta ao Sr. D’Ambel e lhe dirás que eu ficaria muito contente se
Erasto, a Verdade ou qualquer outro Espírito bom houvesse por bem me dar uma comunicação em meu retiro”257.
Interessante também que o livro Spiritisme et fusionisme258 de 1863, escrito por Toscan, fez uma crítica ao Espiritismo a partir da evocação feita por
Kardec, através do Sr. D’Ambel, do Espírito chamado Sr. De Tourreil, falecido em abril de 1863.
Apesar desta proximidade com Allan Kardec, o Sr. D’Ambel apareceu nas publicações da Revista Espírita, apenas de junho de 1861 a julho de 1865,
com cerca de vinte e oito comunicações, sendo dezenove de Erasto.
Em julho de 1864, surgiu o jornal L’Avenir, inicialmente saudado na Revista Espírita, de agosto daquele ano259, mas que se tornou uma dissidência de
Allan Kardec.
Este jornal se precipitou em relação a alguns assuntos, como a morte espiritual, com matérias publicadas entre setembro de 1864 e junho de 1865. Allan
Kardec só se manifestaria sobre o tema na Revista Espírita de abril de 1865, dizendo que a questão da morte espiritual estava em estudo naquele
momento260.
A partir deste ano, as relações de D’Ambel com a SPEE pareciam se deteriorar. Um manuscrito de 8 de outubro de 1865 com a descrição de uma sessão
sonambúlica com o Sr. Morin261, escancarou a situação:
O sujeito que está sendo colocado em estado de sonambulismo é requisitado pelo senhor Allan Kardec para, gentilmente, reportar-se à reunião da Sociedade, na sexta-feira, 6 de outubro de
1865. (...)

Pergunta: Examine um pouco a impressão geral produzida pela sessão da última sexta-feira sobre os sócios e os visitantes. Diga-nos, também, por que o senhor D’Ambel se absteve de tomar seu
lugar como médium?

Após longo silêncio, durante o qual o senhor Morin parece examinar cada assistente e percorrer as filas na ordem em que foram realmente dispostas, ele diz: (...) Quanto ao senhor D’Ambel,
vejo dois homens com ele! Um é seu livre-arbítrio, seu eu; o outro, a influência de seus assistentes (espirituais). Seu eu lhe dissera: não, não vá para a sessão [à qual] sua assistência lhe disse para
ir. Ele não queria, a assistência queria, e como afinal o livre-arbítrio nem sempre é o mais forte, ele veio. (...) Ele, ele é mau, muito mau, cheio de personalidade, de orgulho e de ideias adquiridas.
Seu entorno (espiritual) é bom, mas seu ego o supera (...). Mas, sobretudo, não ponha fé em nada que saia da boca desse homem. Ele é maldoso, falso, hipócrita; o bem quer às vezes agir sobre ele,
mas o orgulho, a inveja, o ciúme, essa trilogia de paixões sempre vence. Seria melhor para todos e para ele mesmo que ele se retirasse completamente! (...) Hoje se alarga um abismo entre os
espíritas puristas e os pequenos sectários que se formam ao nosso redor; mas, enfim, por que ele veio? ele não deveria ter vindo. De tudo isso, resulta que, para alguns, ele se sentia fraco demais;
para outros, ele estava com medo. (...) Ele ganhou a perda de sua revista, que logo deixará de existir.

Pergunta: Você poderia nos dizer qual dos dois, o senhor D’Ambel ou o senhor Canu262, domina o outro?

Resposta: A principal causa da última reviravolta do senhor D’Ambel é o senhor Canu, mas o motivo da mudança deste último não se deve ao senhor D’Ambel. (...) Natureza oscilante, pouco
firme e duvidando de tudo e de todos. (...) ele foi o ponto de partida para a mudança do senhor D’Ambel, com quem ele era muito mais íntimo do que é atualmente. Não é dele que virá a ruína do
Espiritismo; ele não deve ser temido; o mal que ele poderia fazer está feito. Mas eu temeria mais, eu desconfiaria mais do caráter falso e dissimulado do senhor D’Ambel. (...).

Pergunta: (...) para o senhor D’Ambel deve ser um grande desapontamento (...) se sua revista fracassar. Ele cai do pedestal em que estava; seu desejo de fazer escola está arruinado. (Ele não
fará escola.) É o que ele procurava com Pezzani263, de Lyon; em conjunto, eles fizeram causa comum. Esse famoso artigo, objeto de tantas críticas, foi feito de acordo com Pezzani?

Resposta: Já há desacordo entre eles. Como tudo que é ditado pelo engodo de certo egoísmo, esses dois seres se deram as mãos para cavalgar, mas com a intenção mútua de se darem um coice
de jumento; atingido o objetivo, brigaram no caminho. Ainda que não abertamente, há divergências entre eles: um escreve algo que o outro não compreende no mesmo sentido; um fazia isso, o
outro, aquilo; em suma, é uma associação inofensiva. Na sexta-feira, o senhor D’Ambel atraiu marcante desaprovação, o que terá consequências desastrosas para sua prosperidade material. (...)

Na edição do L’Avenir anterior a 1º de março de 1866 se iniciou a publicação do polêmico O livro de Erasto, em oito partes, terminado na edição de 12
de abril de 1866. Além da “doutrina dos anjos caídos”, encontramos alguns trechos estranhos como a descrição das pessoas da era anti-hebraica. Erasto,
irreconhecível, também se esqueceu da cultura oriental, além de apresentar o Cristo como salvador, etc.
Uma semana depois da última publicação de O livro de Erasto, saiu o último número de L’Avenir, em 19 de abril de 1866. E em 17 de novembro do
mesmo ano, o Sr. D’Ambel desencarnava de forma trágica.
Ele se suicidou aos cinquenta anos incompletos, no outono de 1866, em 17 de novembro, no 9º arrondissement de Paris, não aos trinta e cinco anos como
foi noticiado. Entre outros, o La Liberté, de 21 de novembro de 1866, publicou o fato, conforme este extrato: “Um jornalista, o Sr. Alis D’Ambel, que
dirigia o L’Avenir, Moniteur du Spiritisme, suicidou-se na manhã de sábado no apartamento que ocupava na rue de Bréda, nº 22. Ele havia se trancado na
noite anterior em seu escritório, dizendo à Sra. D’Ambel que foi obrigado a passar a noite para terminar uma obra literária muito urgente. Na manhã
seguinte, sua esposa, não o vendo aparecer, entrou no escritório para induzi-lo a descansar um pouco; mas, naquele momento, uma visão triste se
apresentou aos seus olhos: o Sr. D’Ambel havia se matado enforcando-se, por meio de sua gravata, em um trinco da janela. Ele tinha trinta e cinco anos; ele
morre de tristeza, desespero e miséria. Seus móveis iam ser vendidos, seu pão talvez fosse curto; sem saber para onde se virar, enforcou-se com a gravata
no sábado às 8 horas da manhã”.
Allan Kardec também noticiou sua morte na Revista Espírita de dezembro de 1866: “Uma morte que nos surpreendeu tanto quanto nos afligiu foi a do
Sr. D’Ambel, antigo diretor do jornal L’Avenir, ocorrida a 17 de novembro de 1866. Suas exéquias se realizaram na Igreja de Notre-Dame de Lorette, sua
paróquia264. A malevolência dos jornais que dele falaram revelou-se, nesta circunstância, de maneira lamentável, por sua afetação em ressaltar, exagerar,
envenenar, como se tivessem prazer em revolver o ferro na ferida, tudo quanto esta morte poderia ter de penoso, sem consideração pelas suscetibilidades de
família, esquecendo até o respeito que se deve aos mortos, sejam quais forem suas opiniões e suas crenças em vida. Esses mesmos jornais teriam gritado
escândalo e profanação contra quem quer que dessa maneira tivesse falado de um dos seus. (...) Vimos com prazer o jornal Le Pays, de 25 de novembro
[ver a seguir], embora num artigo pouco simpático à doutrina, responder com energia essa falta de consideração de alguns confrades, e censurar, como ela
merece, a mistura de publicidade nas coisas íntimas da família. O Siècle, de 19 de novembro, também tinha noticiado o acontecimento com todas as
conveniências desejáveis [não o identificava]. Acrescentaremos que o morto não deixa filhos e que sua viúva se retirou para a sua família.”
Vejamos alguns fragmentos do que Chantenay escreveu no jornal Le Pays: “(...) Muitas vezes vi o Sr. D’Ambel de perto: era um homem gentil, bom,
acima de tudo inofensivo; – havia em toda a sua pessoa, e há muito tempo, um tom geral de tristeza e desânimo. Como ele era muito educado e de muita
boa-fé, pedi-lhe várias vezes que me iniciasse nas peculiaridades do Espiritismo, e ele o fez de boa vontade, com grande simplicidade, sem procurar
qualquer meio de proselitismo, e de forma tão séria que o ouvíamos com interesse desenvolvendo as teorias mais bizarras. No entanto, há cinco ou seis
meses, ele não gostava mais de insistir em suas doutrinas espíritas – as alusões à sua crença eram dolorosas para ele, e eu não lhe falava mais sobre isso.
Talvez o infeliz tivesse invocado a memória de suas existências anteriores, e tivesse seguido as inspirações de outro mundo para tentar uma especulação
aventureira neste (...)”.
É, realmente, uma surpresa este fim, já que o próprio D’Ambel tinha afirmado, pouco mais de dois anos antes, na edição de 11 de agosto de 1864 do seu
jornal: “Acrescentemos que se realmente tivesse conhecido o Espiritismo, nossa doutrina tê-lo-ia detido na rampa fatal, mostrando-lhe todo o horror que
nos inspira o suicídio e todas as consequências terríveis que tal crime arrasta consigo”. O artigo “Um suicídio falsamente atribuído ao Espiritismo” foi
reproduzido na Revista Espírita de setembro de 1864. Enfim, os médiuns daquela época, como os de hoje, têm suas imperfeições humanas.
Apesar de O livro de Erasto se posicionar contra o método usado por Allan Kardec, conhecido como “Controle Universal do Ensino dos Espíritos”,
D’Ambel republicou no último número do L’Avenir dois artigos da Revista Espírita: “O Espiritismo sem os Espíritos” e “O Espiritismo independente”.
Teria D’Ambel se dado conta do seu erro e tentado se reconciliar com Allan Kardec em 1866?
Enfim, no caso de D’Ambel e Erasto, reconhece-se Allan Kardec como a liga que manteve o sistema saudável e em condições de trazer as lúcidas
mensagens de O livro dos médiuns. A única variável que diferencia o sistema “Erasto – D’Ambel” da Codificação em relação a O livro de Erasto é o bom-
senso de Allan Kardec. Coube a ele, em última instância, avaliar quais comunicações iriam fazer parte das obras fundamentais. Seus métodos (caráter dos
envolvidos, “Controle Universal do Ensino dos Espíritos” e bom-senso) sempre demonstraram a prioridade que ele dava ao conteúdo das mensagens.
Ainda assim, conhecer os médiuns e os Espíritos nos dá uma visão mais precisa e nos permite uma avaliação da superioridade dos Espíritos desencarnados,
que embora superiores à média da humanidade, certamente ainda não eram puros.
Apesar dos pseudônimos usados em outras publicações, o Sr. D’Ambel não os utilizou enquanto esteve na SPEE. Mas e quanto à Sra. Costel, aluna de
desenho do cunhado dele?

250 Existe uma carta de 3 de maio de 1861, enviada a um certo sr. Thiry, em que Allan Kardec faz um desabafo, dizendo que tinha trabalhado até à 1h30 da madrugada, levantando-se depois às 5h30 da manhã, devido ao número de correspondências a
despachar. Faz ainda uma reflexão sobre as críticas que recebia. O Sr. Thiry poderia ser Pierre Thiry Ainé, coordenador do livro Le spiritisme ou Spiritualisme à Metz, de 1861, mas ainda não há como confirmar.
251 Capítulo XX, item IV.
252 Segunda parte, capítulo VIII.
253 Além de Erasto – D’Ambel, percebemos uma preferência (não necessariamente exclusiva) de outros Espíritos por alguns médiuns: Georges – Costel, Santo Agostinho – Vézy, Ferdinand – Cazemajour, Moki – Desliens e Sanson – Leymarie, além de São
Luís – Huet.
254 Referência à viagem espírita de 1861, a Lyon e a Bordeaux/Blaye, feita em duas etapas, isto é, com retorno a Paris entre uma e outra.
255 Jean Baptiste Ambroise Marcellin Jobard (1792-1861), litógrafo, fotógrafo, escritor, diretor do Museu Real da Indústria de Bruxelas, professor, inventor e inspirador da lâmpada elétrica.
256 Cardeal Morlot (1795-1862).
257 Referência à viagem de 1863 a Sainte Adresse, na Normandia, para preparação de O evangelho segundo o espiritismo.
258 O fusionismo era uma seita ou, alegadamente, uma doutrina de universalização realizando o verdadeiro catolicismo, criada por Louis Jean Baptiste de Tourreil (1799-1863), socialista utópico.
259 E, em Londres, no The Spiritual Magazine, volumes 5-6, de 1864.
260 O Museu Allan Kardec online possui um dossiê chamado “Morte Espiritual”, com mensagens obtidas através de vários médiuns, entre eles o Sr. Vézy e os futuros dissidentes, Sr. D’Ambel, Sra. Costel e Sr. Alfred Didier. A primeira comunicação é de
novembro de 1863 e a última, de janeiro de 1866, mas a grande concentração acontece em 1864. Aparentemente Allan Kardec ainda aguardava a concordância universal do ensino dos espíritos.
261 Louis Joseph Félix Morin (1841-1876), o mesmo da comunicação do Espírito Allan Kardec na casa de Jean Baptiste Caussin.
262 Alexandre Canu, professor de línguas, foi secretário da SPEE e o primeiro tradutor, na França, de uma obra espírita para o português (O espiritismo na sua mais simples expressão, de 1862). Não há qualquer evidência de sua passagem pelo Brasil.
263 Ver ainda carta de amizade de André Pezzani (1818-1877) a Kardec, de 27 de dezembro de 1865, disponível na Revista Espírita, de maio de 1917 e no Reformador, de agosto do mesmo ano.
264 Muitos espíritas, e/ou seus familiares, pareciam ainda manter suas convicções religiosas tradicionais.
11. Sra. Costel, a médium misteriosa

Em quatro anos e meio, de agosto de 1860 até maio de 1865, a prolífica Sra. Costel trouxe cerca de setenta mensagens de Espíritos desencarnados à
Revista Espírita. Se considerarmos seus outros codinomes desde abril de 1860, acrescentaríamos mais dez mensagens, tornando-a assim uma das médiuns
mais produtivas da SPEE. Apesar disso, seu aproveitamento nas obras fundamentais da doutrina espírita não foi proporcional.
A Sra. Costel recebeu, entre outras, comunicações de Hahnemann, São Luís, Jean Jacques Rousseau, João Evangelista, Jobard, Delphine de Girardin,
Lázaro e, principalmente, de Georges265, que apesar de falar sobre Marte e Júpiter266, também teve uma boa mensagem sobre sessões mediúnicas publicada
na Revista Espírita de setembro de 1860, utilizada em O livro dos médiuns267:
Falar-vos-ei da necessidade de observardes, nas vossas sessões, a maior regularidade, isto é, de evitardes toda confusão, toda divergência de ideias. A divergência favorece a substituição dos
Espíritos bons pelos maus e quase sempre são estes que respondem às questões propostas. Por outro lado, numa reunião composta de elementos diversos e desconhecidos uns dos outros, por que
meio se hão de evitar as ideias contraditórias, a distração, ou, ainda pior, uma vaga indiferença zombeteira? Esse meio quisera eu achá-lo eficaz e certo. Talvez esteja na concentração dos fluidos
esparsos em torno dos médiuns. Unicamente eles, mas, sobretudo, os que são estimados, retêm na reunião os bons Espíritos. Porém, a influência deles mal chega para dispersar a turba dos
Espíritos levianos. É excelente o trabalho de exame das comunicações. Nunca será demais aprofundarem-se as questões e, principalmente, as respostas. O erro é fácil, mesmo para os Espíritos
animados das melhores intenções. A lentidão da escrita, durante a qual o Espírito se afasta do assunto, que ele esgota logo que o concebeu, a mobilidade e a indiferença para com certas formas
convidas, todas estas razões e muitas outras vos criam o dever de só limitada confiança dispensardes ao que obtiverdes, subordinando-o sempre ao exame, ainda quando se trate das mais
autênticas comunicações.

Aparentemente quase todas as comunicações identificadas de Georges são através do casal Costel, levando-nos a crer que a mensagem “Cuidar do corpo
e do Espírito”, no capítulo XVII de O evangelho segundo o espiritismo, também o seja.
Das três comunicações de J. J. Rousseau, através do Sr. Bertrand, do Sr. Morin e da Sra. Costel, apenas esta última foi utilizada em O livro dos médiuns.
A primeira pista para descobrir sua verdadeira identidade veio de O céu e o inferno, onde foi republicada a comunicação de Pierre Jouty encontrada na
Revista Espírita de outubro de 1861. Nela, foi revelado que o Espírito comunicante seria pai da médium. Nossas suspeitas recaíram sobre Ea Guillon
Lethière, que era neta do Sr. Jouty. Esta, entre outras, poderia ser mais uma forma dela tentar nos despistar:
1. O avô de Ea Guillon Lethière, por parte de mãe se chamaria Pierre Jouty. Este avô morreu antes do nascimento da médium, tendo sua avó, Marthe Antoinette Tournier Delabaury, se casado
novamente com Clément Hugon Marcillac;

2. A mãe de Ea, Elisa Jouty, havia abandonado o marido, Jacques Mignon, condenado por falsificação em 1821, embora em 1874 apareça como sua viúva. Ea é fruto do relacionamento de Elisa com
Auguste Guillon Lethière, filho do pintor neoclássico Guillaume Guillon Lethière. Aparentemente Auguste esteve ausente da vida de Ea por um longo tempo, logo não sabemos a quem ela preferia
chamar de pai;

3. Ea casou-se com o joalheiro Charles René Lescot em 1840. O Sr. Lescot e a agora Sra. Lescot misturaram as mesmas letras do sobrenome para utilizar em um novo codinome na Revista Espírita, Sr.
e Sra. Costel, a fim de permanecerem incógnitos.

Na lista de ouvintes admitidos na SPEE, de 24 de junho de 1864, o nome da Sra. Costel aparece rasurado. Aparentemente, o secretário se esqueceu que
ela preferiria o anonimato e começou escrevendo seu verdadeiro nome, Sra. Lescot, na frente dos seus indicados268.
Nascida em Paris, em 21 de novembro de 1821, seu nome completo era: Honorée Ea Guillaume Guillon Lethière. Observe-se que não havia muita
precisão nas grafias: Honoré Ea Guillaume Guillon no registro de nascimento, Honorée ex-Guillaume Guillon Lethière no registro reconstituído de
casamento com Charles René Lescot, Honoré Ea Guillaume Guillon Lethière no registro de óbito de Charles René Lescot e Honorée Ea Guillaume Guillon
Lethière no seu registro de óbito.
Antes dela aparecer na Revista Espírita, encontramos a Sra. L. e a Sra. Lesc. com algumas comunicações publicadas.
A Sra. Lesc., também, foi relativamente pródiga em mensagens, com comunicações de Georges269, Alfred Musset e Delphine de Girardin; aparecendo
pela primeira vez no Boletim de junho de 1860 da Revista Espírita, que menciona mensagens de abril e maio. Na Revista Espírita de junho de 1860, em
“Ditados”, Georges já era identificado como amigo, pintor de talento e gênio familiar da Sra. Lesc., também. A última comunicação dela é de julho de
1860. A curta, mas também prolífica passagem da Sra. Lesc., foi substituída pela Sra. Costel.
Seria ela, também, a Sra. L., com uma única mensagem publicada em abril de 1860, de São Bento (republicada no item V do capítulo XXXI, da segunda
parte de O livro dos médiuns), e outra, de Georges270?
Uma leitura mais atenta da Revista Espírita tira quaisquer dúvidas sobre a Sra. Costel, a Sra. Lesc. e a Sra. L. serem a mesma pessoa. As mensagens
obtidas pela Sra. Costel (“Honestidade relativa”, “Máscaras humanas” e “Primeiras impressões de um Espírito”) publicadas em agosto e novembro de
1860, na Revista Espírita, são mencionadas no boletim de julho de 1860 como sendo da Sra. L. (“Honestidade relativa”) e da Sra. Lesc. (“Máscaras
humanas” e “Primeiras impressões de um Espírito”).

Fig. 15: Fragmento da comunicação “Estudo sobre a unidade”,de Lázaro, pela médium Sra. Costel, de 18 de março de 1864
Fonte: Museu Allan Kardec online

A prodigalidade da Sra. Costel continuou no jornal L’Avenir do Sr. D’Ambel. No ano de 1864, foram publicados oito ditados por ela recebidos. Em
1865, foram treze ditados. E, em 1866, foram dois ditados de Um Espírito e um artigo: “O homem, a mulher, a criança, a família”. A médium publicou
também no jornal La Vérité.
Os dois últimos indícios que temos sobre a identidade da Sra. Costel estão na Revista Espírita de abril de 1861. A Sra. Costel recebeu uma mensagem de
um amigo de quatorze anos de seu filho Charles. Apesar do nome ser do esposo de Ea, ela tinha um filho. Ele se chamava Marcel Samuel Lescot e tinha
quase dezesseis anos na época.
Seria esta mais uma tentativa de nos despistar!
O filho da Sra. Costel publicou, em 1903, o Curso cinematográfico: Itália, África, Espanha, onde conta sobre um quadro legado por sua mãe, do também médium e pintor A. Didier, seu
colega da SPEE. Trata-se da pintura “Chegada de Catherine D’Aragon em Villefranche”, mas pela descrição, é o quadro “Chegada de Catarina da Áustria”. A Sra. Lescot foi herdeira
universal de Alfred Didier. Qual teria sido a natureza do relacionamento entre eles? Veremos isso mais tarde.

Além do Sr. Albert na Revista Espírita de janeiro de 1864, apenas a Sra. Costel nos trouxe mensagens de Samuel Hahnemann, o criador da homeopatia.
Existiria alguma relação entre eles? Apesar de fontes secundárias informarem que Ea teria ficado sob a guarda de Mélanie Hahnemann271, ela mesma diz
que foram Charles e Letizia272, também netos de Guillaume Guillon Lethière, mas filhos do tio de Ea, Alexandre, filho de outro relacionamento do avô
paterno com Marie Agathe Lapôtre; e não Charles e Ea, também neta, mas filha de Auguste.
Como vemos, esta família da Sra. Costel, seja por parte de mãe, seja por parte de pai, era bem complexa.
Descobrimos através das cartas de Auguste, conhecido como Guillon di Saint Leger, que a relação dele com a filha parecia ser distante273. Com outra
mulher ele teve ainda outra filha, Roma Rosina Guillon Lethière, que trabalhou como atriz na Inglaterra274.
A Sra. Costel abandonou a SPEE em 1865. Já havíamos visto que D’Ambel e Erasto não eram mais os mesmos, após abandonarem a sociedade. O
mesmo aconteceu com o sistema “Georges – Costel”. Vejam um fragmento de uma mensagem deles sobre o Espiritismo, publicado no L’Avenir do Sr.
D’Ambel, de 11 de maio de 1865:
O Espiritismo está aí! (...) levado pela corrente da superstição e da credulidade, ainda não ultrapassou os limites de uma iniciação vulgar e permanece em uma imobilidade temporária,
oferecendo a seus detratores os lados fracos de uma doutrina construída às pressas e mal encenada. O Espiritismo é prejudicado em seu progresso real pela rotina dos lugares-comuns que já têm
força de lei e criam uma espécie de ortodoxia muito inferior à grandiosidade da ideia espiritualista.

O estado atual do Espiritismo é ruim, mas não é desesperador.

E acrescentamos mais fragmentos, agora dos comentários ao artigo, feitos pelo Sr. Guipon de Bordeaux na edição de 22 de junho de 1865:
Mas onde o Espírito Georges mais verdadeiramente aponta a causa desse mal é quando ele diz que o Espiritismo é prejudicado em seu progresso real pela rotina de lugares-comuns que já têm
força de lei. Eles criam uma espécie de ortodoxia muito inferior à grandeza da ideia espiritualista.

Não, o Espiritismo não pode ser uma religião, no sentido atual da palavra, e ninguém pode alegar infalibilidade (...) querem dogmatizar demais o Espiritismo, pretendendo impor como lei
absoluta e indiscutível o que eles recebam ou acreditam receber dos bons Espíritos.

O Espírito Georges está certo novamente quando diz que, sem estar no mínimo desesperador, o estado atual do Espiritismo não é menos ruim. Oh! sim, é ruim, ruim em toda parte, em Paris
como em Toulouse, em Lyon como em Bordeaux, no Norte como no Sul; teve idas e vindas, dissolução de sociedades, dissoluções de nossos órgãos.

Eis que, então, São Bento traz, através da Sra. Delanne275, uma mensagem a respeito, publicada no L’Avenir do dia 30 de novembro de 1865:
Façamos então uma retrospectiva do Espiritismo e consideremos seu rápido progresso. Você acha que este não é o dedo de Deus? Você já viu um único dos falsos princípios, um dos erros de
seus primeiros passos, se espalhar por toda parte? Não!

Em poucos anos, esta abençoada ciência reuniu milhões de homens; fenômenos de toda espécie, frutos da mediunidade, ocorrem em toda parte e obrigam as pessoas mais sérias a cuidar deles e
para eles estudar. Qual é, então, a doutrina que conquistou tantos seguidores em tão pouco tempo? Sem dúvida não há nenhuma, e esta é uma prova de sua origem. Porque entre aqueles que
fizeram seus propagadores, há quem hoje busque atrapalhar seu progresso? Ah! É que eles esperavam que com a ajuda do Espiritismo pudessem emitir seus sistemas pessoais, então, visto que isso
não é possível, porque Deus mantém sua obra, procuram diminuir o que não podem destruir; mas todos seus esforços, apesar da eloquência do estilo, serão nulos diante da vontade de Deus que
zela por sua obra.

O Espiritismo veio, principalmente, para trazer os homens de volta ao bem, para lhes provar de forma irrefutável a imortalidade de sua alma e sua individualidade: esta é a meta principal do
Espiritismo. As questões científicas são apenas secundárias (...).

Não é o nascimento de Cristo o emblema do Espiritismo?

Finalmente, em 28 de dezembro de 1865, temos uma resposta do Sr. Alexandre Delanne:


Vou lembrá-los aqui de forma sucinta para que todos possam julgar, na verdade, de que lado está a verdade. Tratava-se de duas comunicações intituladas: Espiritismo e Mediunidade, assinada
Georges, médium Sra. Costel, comunicação que foi uma crítica contundente à Doutrina que professamos, como infelizmente o L’Avenir às vezes produz. Era nosso dever (1) não nos calarmos
diante de uma crítica tão infundada. Foi isso que nos levou a enviar nossa carta. Mas notamos na reprodução do ditado espontâneo de São Bento, uma quantidade de palavras suprimidas e que,
assim, não só desfiguram seu estilo, mas distorcem seu real sentido.

Seguem correções em relação à mensagem de São Bento, as quais não reproduzimos aqui. Termina dizendo:
Por que, aliás, você se lembrou da comunicação assinada por Georges? Sei de uma boa fonte que vários de seus leitores (2) enviaram refutações sobre isso e que não tiveram as honras de
publicidade, pela mesma causa que tem impedido você, ou seu conselho editorial, de publicar a nossa mais cedo.

[Comentários de D’Ambel]:

(1) Que direito você tem de criticar o que não entende? E de que autoridade você se orgulha de repelir o que filósofos e laureados do Instituto, como Pezzani, aceitam como sinceros e
verdadeiros?

(2) Certamente você deve saber disso! Mas, permita-me, senhor, dizer que isso não é correto. O estilo e a grafia me fizeram reconhecer um único oponente em relação às comunicações da
Sra. Costel.
Em resumo, a Sra. Costel e Georges aparentemente se afastaram em 1865, pois nunca mais apareceram na Revista Espírita. As verdadeiras razões
desconhecemos, mas estas mensagens no L’Avenir nos deram alguns indícios. Poderemos então futuramente explorar várias hipóteses:
1. A Sra. Costel teria se solidarizado com seu grande amigo, o médium e pintor, Sr. Alfred Didier, que havia se oposto à evocação de seu pai na SPEE, na mesma semana do funeral, tendo notificado
Allan Kardec, que havia então respondido com uma recusa, objetando que não poderia impedir o Espírito de seu pai de se comunicar com a sociedade, ou em grupos particulares;

2. A Sra. Costel não teria ficado confortável com uma possível falta de espaço ao contraditório276 na SPEE, já que no artigo 3º do seu estatuto era dito: “A Sociedade não admitirá senão as pessoas que
simpatizem com seus princípios e com o objetivo de seus trabalhos (...). Em consequência, exclui todo aquele que possa trazer elementos de perturbação às suas reuniões, seja por espírito de
hostilidade e de oposição sistemática, seja por qualquer outra causa, e fazer, assim, que se perca o tempo em discussões inúteis”;

3. A Sra. Costel não teria gostado da posição de Allan Kardec e seus amigos mais próximos, como o casal Delanne, por achar que estes eram muito supersticiosos, crédulos e ortodoxos, conforme
opinião de Georges sobre o Espiritismo, e por estes também concordarem que as questões científicas eram apenas secundárias, conforme São Bento;

4. A Sra. Costel teria se melindrado após a publicação em 26 de agosto de 1865 (data no jornal Bibliographie de la France) do livro O céu e o inferno, porque o consideraria uma heresia ou uma
blasfêmia contra a religião estabelecida. Diferentemente de Camille Flammarion, longe de algum apreço especial pela ciência, talvez ela tivesse uma reverência muito grande à religião católica.

Como vemos, são muitas as possíveis hipóteses para uma dissidência, como são também para as deserções da Srta. Japhet (provavelmente por não haver
sido mencionada em O livro dos espíritos e por ser ela uma sonâmbula profissional), do Sr. Roze (possivelmente por suas ideias inseridas depois nos três
volumes de Revelações do mundo dos espíritos, principalmente as descrições feitas de outros mundos), de Camille Flammarion (por duvidar da própria
mediunidade e por considerar o aspecto científico como prioritário), etc.
Entre sua saída da SPEE e sua desencarnação na comuna de Fondettes, já no século XX, a médium Costel foi autora de Cartas de Réa Delcroix277,
publicado em 1879, como sendo de Marie Desyles. Na verdade, o livro seria de Ea Lescot nascida Guillon Lethière. Vejam alguns fragmentos do que disse
J. Barbey d’Aurevilly sobre a obra: “Eis um livro misterioso, doloroso e encantador, do qual nós podemos perguntar se é mais que literatura, e se não seria
vida, vida real (...). É um romance ou uma história? (...) Essas cartas de uma desconhecida Réa Delcroix, assinadas por uma desconhecida Marie Desyles,
pseudônimo sob pseudônimo, máscara sobre máscara, são realmente cartas de amor, daquelas cartas que nunca publicamos, que ficam no fundo do gavetas
(...)”.
Ea Lescot desencarnou em 5 de junho de 1902, em Fondettes, vizinha de Tours, a duzentos e quarenta e seis quilômetros de Paris.
Ela foi a médium com mais comunicações aproveitadas em O céu e o inferno: Srta. Emma , Jean Reynaud278, Jobard, Claire, Novel, Lapommeray e
Pierre Jouty, além das mensagens “O castigo” e “Duplo suicídio por amor e por dever”.
A mensagem “O castigo” é de Georges, seu guia espiritual.
Este Espírito teve ensinamentos aproveitados por Allan Kardec em O livro dos médiuns, O evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno e na
Revista Espírita. Teve ainda, como já vimos, comunicações polêmicas sobre Marte, Júpiter e Vênus. A grande parte destas comunicações ocorreu através
da Sra. Costel, mas algumas foram dadas através do Sr. Costel e do Sr. Vézy.
Algumas pistas sobre Georges foram deixadas na Revista Espírita:
1. Junho de 1860: Morreu há poucos anos;

2. Junho de 1860: Pintor e amigo da Sra. Lescot (segundo Kardec);

3. Setembro de 1860: Professor de pintura da Sra. Costel (segundo São Luís);

4. Outubro de 1863: Cunhado do Sr. D’Ambel (segundo Kardec);

5. Outubro de 1863: Enterrado em Montmartre.

Seguindo estes rastros, encontramos então Louis Henri Georgè, pintor, nascido em Sisteron, no departamento dos Alpes da Alta Provença, em 30 de
janeiro de 1826, e falecido em 27 de julho de 1857, em Paris, com pouco mais de trinta e um anos. Era irmão de Léonie, mulher de D’Ambel. Georges se
casou em 1853, pouco mais de quatro anos antes de desencarnar. Sua esposa se chamava Elisabeth Louise Pasquet.
A informação sobre a sua sepultura foi mencionada na Revista Espírita de outubro de 1863 (“Enterro de um espírita na vala comum”): “Terminadas as
últimas formalidades fúnebres, esses senhores foram fazer uma visita espírita, no mesmo cemitério, ao túmulo de Georges, esse eminente Espírito que deu,
por intermédio da Sra. Costel, as belas comunicações que nossos leitores por vezes têm admirado. O Sr. Georges era, em vida, cunhado do Sr. D’Ambel”.
Descobrimos a localização exata da sua sepultura: rua 17, cova 32. Mais tarde, em 1865, foi transferido para a divisão 27, Avenida Berlioz (antiga
Avenida de la Cloche), sepultura 26.
Naquela sua evocação de 1860, mencionada anteriormente279, Allan Kardec agradeceu a bela e sublime comunicação que Georges havia ditado à senhora
Lescot e que achava ser uma obra-prima de profundidade, de verdade e de eloquência.

265 Indevidamente traduzido como Jorge, pois se trata de sobrenome.


266 Uma mensagem sobre Vênus foi obtida do mesmo Espírito, mas através do marido da médium, o Sr. Costel.
267 No item XXIV do capítulo XXXI da segunda parte.
268 A SPEE tinha sessões que podiam ter a presença de pessoas não associadas, desde que indicadas por um sócio.
269 Não confundir este Georges com o Bispo de Périgueux e de Sarlat, guia de outro médium.
270 Conforme Boletim da Revista Espírita, de julho de 1860, referente à leitura de comunicação de 1º de junho.
271 Rima Handley, A Homeopathic Love Story: The Story of Samuel and Mélanie Hahnemann. North Atlantic Books, Berkeley – Califórnia (1993), pp. 46 e 115.
272 Marie Mélanie Hahnemann, Procès de Madame Hahnemann, docteur en homéopathie. Imprimerie A. Henry, Paris – França (1847). p. 21.
273 As cartas estão disponíveis no site: sardegnadigitallibrary.it/index.php?xsl=2436&s=17&v=9&c=4463&id=129055 [Carteggio Saint Leger na Biblioteca Digital da Sardenha].
274 Na carta do pai da Sra. Costel, de 21 de março de 1859, surgiu outra informação, o endereço de Ea em Paris à época (Rua de Parme), próximo ao endereço de D’Ambel (Rua Bréda). Aliás, o Sr. Alfred Didier também morou, trabalhou ou estudou a
duzentos e oitenta metros do Sr. D’Ambel (Rua Duperré). O edifício tinha estúdios de artistas e uma dúzia de alojamentos.
275 A Sra. Delanne se chamava Marie Alexandrine Didelot, nascida na comuna de Tréveray em 14 de maio de 1831. Era comerciante (négociant). Desencarnou em 25 de agosto de 1894, aos sessenta e três, quando residia no 1º arrondissement de Paris. Era
filha de Claude Didelot e de Marie Anne Bouchon. Foi enterrada no cemitério de Bagneux e depois transferida para o Père Lachaise em 1906.
276 Veja a posição de Allan Kardec em relação à questão da morte espiritual mencionada no capítulo anterior, com o que, conforme esta hipótese, a Sra. Costel e os demais médiuns dissidentes não concordavam, uma das razões pela qual teriam abandonado a
SPEE.
277 M. Desyles, Lettres de Réa Delcroix (1879). Link para acesso: lettresreadelcroix.unblog.fr/; acesso em: 08/08/2022.
278 Jean Ernest Reynaud (1806-1863), filósofo francês.
279 Veja o capítulo sobre as obras “revistas, corrigidas e aumentadas”.
12. A correspondência de Kardec

Entre a revisão das primeiras obras e o lançamento de novos livros, houve uma intensa troca de correspondência entre Amélie Boudet e Allan Kardec.
Vejamos uma pequena retrospectiva das cartas de 1861 até 1864, a fim de conhecermos um pouco mais do cotidiano deste período.
Enquanto Allan Kardec viajava a Lyon em 1861, Amélie Boudet lhe contava que o Sr. Dumas o havia presenteado com vinte e cinco charutos e que,
quando ele voltasse, já encontraria pronta a reforma da casa, inclusive, com a capela da Villa de Ségur inaugurada. Ela também diz que assistiu à missa e
que havia apenas quarenta pessoas, contrastando com as cento e sessenta pessoas que participaram do banquete em homenagem a Allan Kardec em Lyon.
Interessante, também, que ele conta que todas as vezes que introduziu o capítulo das experiências físicas, via que isso interessava pouco aos interlocutores;
mas que prestavam mais atenção quando se tratava das consequências morais e filosóficas do Espiritismo. Ambas as cartas são de 20 de setembro de 1861.
Em 9 de outubro deste ano, houve também o Auto-de-fé de Barcelona, com a queima de obras espíritas e relacionadas, fato já bastante conhecido.

Fig. 16: Planta baixa da Villa de Ségur


Fonte: Arquivos Nacionais da França, cote: MC/RE/XCV (1883)

O verão de 1862 na França foi muito quente e seco. Na Saboia, havia dois meses, desde o início de julho, que não caía uma gota d’água. O final desta
estação e o início de outono foi a época de outra excursão de Allan Kardec, que deu origem ao livro Viagem espírita em 1862, com um trecho de
aproximadamente cento e cinquenta quilômetros feito por mar, entre Bordeaux (via Royan) e Marennes, onde os espíritas eram numerosos, apesar das
perseguições do clero. Em uma das cartas daquele ano a correspondentes diversos, antes da viagem, Allan Kardec lamentou o desvio que a Srta. Désirée
Godu havia dado à sua mediunidade. Durante a viagem ele também mencionou numa carta à esposa que setecentas pessoas haviam se reunido para ouvi-lo
em Lyon, que uma conspiração havia sido organizada para causar desordem na reunião, para vaiar, etc., mas que tudo havia transcorrido na mais plena
ordem. Informou, também, que tinha todos os detalhes da intervenção dos Espíritos nesse caso. Depois, enigmaticamente, falou que a morte em Lyon do
marechal Castellane280 não deixava de estar relacionada a isso! Relatou ainda o atraso de Nîmes, cujos habitantes estavam divididos entre católicos furiosos
e protestantes fanáticos, inflamados há séculos uns contra os outros. Já em Bordeaux, foram mil pessoas esperando para ouvi-lo. Amélie Boudet também
lhe enviava cartas. Numa delas, curiosamente, conta que uma loteria foi sorteada, mas não ganharam nada.
Nas cartas de 1863 encontramos estatísticas e expectativas algo exageradas: seriam cinco a seis milhões de espíritas; em Lyon, mais de trinta mil; em
Bordeaux, mais de dez mil, e em alguns anos o Espiritismo se tornaria a crença geral. Apesar disso, em Lyon, ataques de adversários vinham de toda
parte281. É naquele ano também que Allan Kardec foi a Antuérpia, na Bélgica, e para Le Havre e Sainte Adresse, na Normandia, onde preparou a Imitação
do evangelho segundo o espiritismo. Antes da viagem, ele ainda esclareceu um correspondente: “(...) não posso discutir por escrito os pontos de doutrina
controvertidos pelos que não partilham de minhas opiniões de maneira completa. Minhas obras tratam de todas essas questões e eu nada poderia
acrescentar que não fosse repetição sem utilidade, que me tomaria tempo de que não posso dispor senão por necessidade absoluta”. Allan Kardec e Amélie
Boudet também conversaram sobre a inconveniência da vinda de Maurice Lachâtre do exílio na Espanha para a França, pois temiam que ele fizesse muitas
excentricidades. Numa carta, vemos ainda toda a afetividade de Amélie Boudet: “Eu anseio abraçar você e ver minha viuvez cessar”. Noutra, Allan Kardec
mostra sua intenção, não concretizada, de visitar Turim, na Itália.
Finalmente, em 1864 podemos destacar a viagem a Bruxelas, na Bélgica, passando por Douai, na França; e a oferta de emprego ao Sr. Sabo, futuro
secretário pessoal, mas que acabou não atendendo às expectativas e foi logo substituído. Para Allan Kardec, seu secretário, que cuidaria fundamentalmente
das correspondências, não poderia ser apenas um copista, mas um substituto dele mesmo, ativo, dedicado à causa, bem imbuído dos princípios da doutrina,
em quem pudesse ter absoluta confiança.

280 Esprit Victor Élisabeth Boniface (1788-1862), conhecido como Boniface de Castellane, foi um marechal francês.
281 Allan Kardec havia sido aconselhado a não ir a Lyon naquele ano de 1863, devido às perseguições que o arcebispo de lá promoveria contra ele.
13. As obras segundo o Espiritismo

Depois dos princípios estabelecidos em O livro dos espíritos e O livro dos médiuns, Allan Kardec começou a publicar uma série de obras com a
aplicação destes conceitos282.
Todas estas obras seguintes não entraram na lista de livros proibidos pela Igreja Católica. O decreto do Santo Ofício de 20 de abril de 1864 condenou quatro obras de Allan Kardec, que
foram então incluídas no apêndice do Index Librorum Prohibitorum de 1876 pelo papa Pio IX: a Revista Espírita, O Espiritismo na sua expressão mais simples, O livro dos espíritos e O
livro dos médiuns. Foram esquecidos O que é o espiritismo, Carta sobre o espiritismo e Viagem espírita. As obras, na companhia da Crítica da razão pura, de Kant, foram mantidas lá até a
sua última edição, em 1948, pelo papa Pio XII, e, portanto, permaneceram assim até 1966, quando o Index foi abolido pelo papa Paulo VI.

O primeiro livro foi O evangelho segundo o espiritismo, cuja primeira edição tinha saído como Imitação do evangelho segundo o espiritismo. Allan
Kardec relatou alguns descuidos da tipografia, que exigiram a reimpressão de certas partes deste livro, o que teria causado a demora para o seu
lançamento283. Depois veio O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo. Teríamos ainda a quinta e última obra também considerada
fundamental: A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. Esta foi, claro, a terceira “segundo o Espiritismo”.
Se tivesse tido mais tempo antes de desencarnar, Allan Kardec talvez tivesse publicado: O livro dos magnetizadores, O estado social e o reino de Deus
segundo o espiritismo e A religião segundo o espiritismo284.
O evangelho segundo o espiritismo teve a participação dos Srs. D’Ambel, Robin, Rodolphe, Vézy, Alfred Didier e das Sras. Boyer, Cazemajour,
Collignon e Schmidt, além de outros médiuns para os quais temos, por enquanto, apenas suspeitas. Falaremos um pouco mais sobre o Sr. Rodolphe, o Sr.
Vézy, a Sra. Cazemajour e o Sr. Alfred Didier, uma vez que já falamos sobre Sr. D’Ambel.
Quanto aos demais, ou muito já se sabe sobre, como a Sra. Émilie Aimée Charlotte Bréard Collignon (1820-1902), natural da Bélgica e residente na
França, ou ainda não encontramos informações suficientes, como o Sr. Robin e as Sras. Boyer e Schmidt. Da Revista Espírita de fevereiro de 1866,
extraímos do texto “Os Quiproquós”: “Há muitos Robin no mundo, como há muitos Martin”! Quanto à Sra. Boyer, embora também não a tenhamos
identificado, nossa investigação trouxe informações interessantes sobre o método usado por Allan Kardec.
A Sra. Boyer contribuiu no capítulo XIII de O evangelho segundo o espiritismo com uma mensagem da Irmã Rosália, pois encontramos a mesma
comunicação na primeira série do livro Os habitantes do outro mundo, de Camille Flammarion, dando crédito à médium. Allan Kardec, como em muitas
outras vezes, fez alguns ajustes na comunicação, tanto no texto que foi publicado na Revista Espírita, quanto no que saiu na Imitação do evangelho e em O
evangelho segundo o espiritismo285.

282 Nesta época, no final de 1863, O livro dos espíritos já estava na décima edição, com mais de dez mil exemplares impressos sem contar a primeira edição, e O livro dos médiuns estava na sexta edição com onze mil, quantidade similar ao número de
exemplares de O espiritismo na sua expressão mais simples. A Viagem espírita em 1862 saiu numa única edição com mil e quinhentos exemplares, no final de 1862.
283 Na Declaração do Impressor feita em janeiro de 1864 para a Imitação do evangelho segundo o espiritismo constou a informação de dois mil exemplares. Os problemas na tipografia fizeram com que a obra só fosse registrada em abril no jornal
Bibliographie de la France.
284 [Manuscrito de Kardec]. Disponível em: projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=217. Acesso em: 08/08/2022. Projeto Allan Kardec.
285 A constatação das diferenças entre o texto original dessa mensagem e o ajustado por Allan Kardec, pode ser verificada na comparação das mensagens de 17 e 24 de março de 1860 do livro de Flammarion de 1862, e a mensagem publicada na Revista
Espírita de outubro de 1860, que é uma junção das duas anteriores, além da incluída na Imitação e no Evangelho. Em outras ocasiões Allan Kardec foi mais ousado, talvez sugerindo encarnações de um mesmo Espírito, como pode ser observado, por
exemplo, na mesma mensagem atribuída a São Francisco de Salles (1567-1622) na Revista Espírita, de novembro de 1860, e a Pascal (1623-1662) no item XIII do capítulo XXXI da segunda parte de O livro dos médiuns.
14. Sr. Rodolphe e Sr. Vézy

O Sr. Rodolphe de Mulhouse foi um dos médiuns de O evangelho segundo o espiritismo.


Seu nome completo era Mardochée “Rodolphe” Rubio, nascido em 13 de novembro de 1824, no distrito de Saint Esprit, em Bayonne, comuna nos
Pirineus Atlânticos, e falecido em 1º de janeiro de 1884, no mesmo município.
Para chegarmos à sua identidade, seguimos as únicas pistas da Revista Espírita de setembro de 1861:
1. Seu avô se chamava Mardochée;

2. Seu tio se chamava Édouard Pereyre.

O avô, por parte de pai, de Rodolphe Rubio também se chamava Mardochée Rubio, falecido em Santander, capital da comunidade autônoma da
Cantábria, na Espanha. O tio, por parte de mãe, do “nosso” personagem se chamava “Daniel” Alvares Pereyre Jacob, mas assinava como “Édouard”
Pereyre, como pode ser observado no seu registro de casamento.
Portanto, o médium de “A lei de Moisés e a lei de Cristo” da Revista Espírita de março de 1861, com grande parte publicada no item 9 do capítulo I de O
evangelho segundo o espiritismo, era Mardochée “Rodolphe” Rubio. Ele incluiu o cognome “Rodolphe” a partir do nascimento da primeira filha em
Bordeaux, como constou no registro de nascimento dela e dos demais filhos. Eram, certamente, descendentes judeus dos “cristãos novos” vindos da
Península Ibérica.
Já o Sr. Vézy tem cerca de vinte comunicações na Revista Espírita, entre elas de Jobard, Voltaire e, principalmente, de Santo Agostinho. A única
mensagem de Vianney286 foi através do Sr. Vézy e foi publicada no capítulo VIII de O evangelho segundo o espiritismo, com o título “Bem-aventurados os
que têm fechados os olhos”, a mesma comunicação que foi publicada na Revista Espírita de julho de 1863.

Fig. 17: Fragmento da comunicação “Destino da alma & morte espiritual”,de Santo Agostinho, pelo médium Sr. Vézy, de 6 de janeiro na SPEE (a anotação “TB” à esquerda é de Kardec e significa “très bon” ou “muito bom”)
Fonte: Museu Allan Kardec online

Em uma carta de Allan Kardec ao Sr. Vézy em maio de 1865287, ele incentivou o médium a responder ao jornal L’Avenir, de 20 de abril, que havia
publicado uma comunicação de Erasto intitulada “Estudo sobre as futuras transformações do ser”, que tratava da morte espiritual288.
A última aparição do Sr. Vézy na Revista Espírita, como encarnado, se deu na edição de maio de 1865. Como desencarnado, ele apareceu novamente
numa mensagem, na verdade em duas frases publicadas na edição de dezembro de 1868, através do médium Sr. Bertrand:
O reconhecimento é um benefício que recompensa aquele que o merece. A gratidão é um ato do coração que dá, ao mesmo tempo, o prazer do bem àquele a quem se deve ser reconhecido e
àquele que o é.

Ele havia desencarnado em Paris aos trinta e três anos apenas, em 6 de fevereiro de 1868, tendo nascido em 5 de julho de 1834, na mesma cidade.
Seu nome era Eugène Vézy. Foi contador e assistente de Gaspard Félix Tournachon (1820-1910), famoso fotógrafo, balonista, caricaturista e jornalista
francês, conhecido como Félix Nadar. Vézy também era desenhista e morava no Boulevard des Capucines, no famoso 9º arrondissement289, mesmo avenida
onde Nadar tinha seu estúdio.
Casado em 1862, em Héry, na região de Franche-Comté, morreu pouco mais de cinco anos depois, no hospital público da Rua du Faubourg Saint-
Denis290. Jules Vézy, trinta e sete anos, irmão mais velho, foi uma das testemunhas no registro de óbito, além do Sr. Barret. Na lista de ouvintes da SPEE,
encontramos também, entre outros convidados do Sr. Eugène Vézy, o Sr. Barret e o Sr. Jules Vézy.
A mensagem de Antoine Costeau, que está em O céu e o inferno e na Revista Espírita de outubro de 1863 (“Enterro de um espírita na vala comum”),
também foi obtida através do Sr. Vézy.

286 Jean Marie Baptiste Vianney ou São João Batista Maria Vianney (1786-1859), o cura D’Ars, foi um padre francês, considerado o “padroeiro de todos os párocos do mundo”.
287 [Carta de Allan Kardec para Eugène Vézy]. Disponível em: gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b10084935d/f175.item. Acesso em: 08/08/2022.
288 Veja a posição de Allan Kardec em relação à questão da morte espiritual mencionada no capítulo sobre o Sr. D’Ambel.
289 Além do Sr. Vézy, moraram no 9º arrondissement: os Srs. Kardec, Leymarie, Canu, Roustan, D’Ambel, Morin, as Sras./Srtas. Costel, Roger, Huet, Japhet, Baudin etc.
290 No mesmo local fica hoje o Hôpital Fernand-Widal. Este estabelecimento foi criado por Vicente de Paulo em meados do século XVI e, em 1858, tinha 300 leitos. Era uma “Maison municipale de santé” (Casa municipal de saúde) conhecida como “Maison
Dubois”.
15. Sra. Cazemajour, a médium de Bordeaux

A médium Marguerite Clémence Lajarriges, a Sra. Cazemajour, comerciante de vinhos, tem mensagens em O evangelho segundo o espiritismo e em O
céu e o inferno.
Foi casada com Jean Cazemajour, em 1832, e seus filhos se chamavam Marie Clémentine (de 1833), Léger Firmin (de 1834), Jeanne Félicia (de 1835, 1ª
esposa de Sabo), Catherine Georgette (de 1837) e Catherine Georgette Cécilia (de 1842, 2ª esposa de Sabo). Tanto o casamento quanto o nascimento dos
filhos aconteceram em Bordeaux. No seu passaporte de agosto de 1857 descobrimos que ela tinha apenas 1,45 de altura, cabelos grisalhos e testa
arredondada. Nesta época, foi à Bolonha, na Itália.
A não ser que tenha tido um outro filho que não conseguimos identificar, seu único filho homem, Léger Firmin, desencarnado com poucos dias de vida,
em 1834, se identificava como o Espírito Ferdinand, um dos guias espirituais da Sociedade Espírita de Bordeaux, conforme informado em La Ruche de 1º
junho de 1863, que acrescenta que ele também ditou belas e profundas mensagens que foram publicadas por Allan Kardec.
É de Bordeaux que vem a mensagem de Ferdinand chamada “Missão do homem inteligente na Terra”, inserida no capítulo VII de O evangelho segundo
o espiritismo, dada em 1862, supostamente pela Sra. Cazemajour. A primeira mensagem desse Espírito na Revista Espírita, “Vinde a nós”, é de maio de
1861. Félicia, a outra filha, também se comunicou algumas vezes, como nas mensagens “O deboche”291 e “A esperança”292, obtidas através da mãe.
Outra mensagem da médium, a “Lei do amor”, foi desmembrada por Kardec e incluída em O evangelho segundo o espiritismo em duas partes: “A lei do
amor”293 e “O ódio”294. A referida comunicação não foi publicada na Revista Espírita e, sim, em Reflexões sobre o espiritismo, Os espíritas e seus
contraditores, de J. Chapelot, pseudônimo de Jean Condat295.
Duas comunicações obtidas por meio da Sra. Cazemajour foram inseridas em O céu e o inferno, depois de anteriormente aparecerem na Revista Espírita:
a da viúva Foulon296 e a do Dr. Demeure297, quatro dias depois da sua desencarnação.

Fig. 18: Fragmento da comunicação “Jean Hus”, dele mesmo, pela médium Sra. Cazemajour, de 3 de janeiro de 1865
Fonte: Museu Allan Kardec online

A médium desencarnou em 26 de agosto de 1866, aos cinquenta e quatros anos. Sua última doença durou mais de um ano, pois além de 240 francos em
remédios, o Sr. Sabo, pagou 120 francos ao médico (e ainda 128 francos da administração do funeral e do serviço religioso298, entre outras despesas),
conforme informações obtidas em seu inventário299. Aliás, nesta época, apenas sua última filha estava viva, conforme se depreende deste documento.
Segundo o zuavo Jacob300, na Revista Teúrgica de 1888, ela teria morrido de câncer de mama301.
O genro da Sra. Cazemajour, o corso “Émile” Antoine Sabo substituiu o Sr. D’Ambel como secretário de Allan Kardec, mas não durou muito tempo na
função302, que foi então assumida pelo Sr. Desliens.
Para esta substituição, Allan Kardec consultou em 18 de junho de 1865, na Villa de Ségur, o Espírito da viúva Foulon, através do médium e amigo Sr.
Tailleur303:
{Senhor Sabò304.}

Pergunta: (à senhora Foulon) Você provavelmente sabe que o senhor Sabò não está mais comigo?

Resposta: Isso estava previsto há bastante tempo; era inevitável; você nos ouviu, você deve estar satisfeito.

Pergunta: Que efeito produziu nele a saída imediata, que determinei, do apartamento que ele ocupa aqui?

Resposta: Ele desejava sair da casa antes mesmo de sair do trabalho; ele se achava um escravo. Ele não é o mais culpado; é um ser nulo.

Pergunta: O que ele vai fazer agora?

Resposta: Estamos tentando abrigá-lo o mais rápido possível. Ele tem família.

{Senhor Desliens.}

Pergunta: Pretendo substituí-lo, provisoriamente, pelo senhor Desliens; o que você acha?

Resposta: Sim, mas a saúde dele é muito delicada; ele terá muita dedicação, mas pouca força física. Um pouco confuso; você ainda terá muito trabalho com ele. Ele tem uma natureza franca e
dedicada. Ouça: coloque-o provisoriamente; você vai se sair muito bem; é necessário; mas ele o deixará por causa de sua frágil saúde.

Pergunta: Preciso, porém, de alguém sério e capaz, e não vejo ninguém.

Resposta: Trataremos disso durante o período provisório desse jovem.


Pergunta: Acima de tudo, não me deem um segundo Sabò.

Resposta: Não, não. Você não terá um similar.

Não é um mal, você ter-lhe-á feito bem; ele refletirá sobre tudo o que lhe acontece, e um dia ele se colocará fora do domínio daquela que muitas vezes o influenciam muito mal; mas isso não vai
durar muito tempo, pois ele viverá pouco.

Fig. 19: Fragmento da evocação da Sra. Foulon sobre os Srs. Sabo e Desliens, de 18 de junho de 1865
Fonte: Museu Allan Kardec online

O Sr. Sabo foi casado a partir de 1854, em primeiras núpcias, com Jeanne Félicia, com quem teve seu primeiro filho, chamado Joseph Sabo. Após a
desencarnação de sua esposa, ele se casou, às vésperas do Natal de 1862, com a cunhada, Catherine Georgette Cécilia.
Ele possuía as seguintes características físicas: cabelos, sobrancelhas, barba e olhos castanhos, nariz grande, rosto oval, testa aberta, boca média, queixo
redondo e cútis comum. Tinha, ainda, uma pequena cicatriz na testa do lado esquerdo, como descrito no seu passaporte.
Antoine Sabo (nome nos registros de nascimento, casamento, etc.) adotou o nome Émile Sabo (nome no passaporte e no registro de óbito da Sra.
Cazemajour). O mesmo talvez pudesse ter acontecido com Léger Firmin Cazemajour, o Espírito Ferdinand.
Não se conhece o seu paradeiro, pois sumiu em 1871 sem deixar pistas. Ele foi dado como desaparecido na identificação de seu primogênito, Edgar,
quando este foi convocado para o serviço militar. “Edgar” foi também um acréscimo feito por ele mesmo, Joseph Sabo, ao seu nome.

291 Revista Espírita, junho (1861), p. 187.


292 Revista Espírita, fevereiro (1862), p. 58.
293 No capítulo XI.
294 No capítulo XII.
295 As partes I e III foram aproveitadas no capítulo XI e a parte II no capítulo XII.
296 Noemie Victoire Wollis, viúva do Sr. Esprit Michel Foulon, faleceu em 1865 aos sessenta e cinco anos.
297 Antoine Jean Demeure faleceu em 1865 aos setenta e um anos.
298 Como já dissemos, muitos espíritas e/ou seus familiares pareciam ainda manter suas convicções religiosas tradicionais.
299 Apenas como curiosidade, deste seu inventário constavam, entre outros itens de mobília e vestuário: uma mesa de trabalho e uma cômoda em madeira de nogueira avaliadas em 30 francos; um Cristo de madeira avaliado em 6 francos; cinco lenços
coloridos, seis lenços brancos, uma anágua de merino preta, um vestido “en orléans”, um gorro de merino, um xale de merino, um xale de lã grossa, oito pares de meias e um par de chinelos de lã, tudo isso avaliado em 22 francos, etc. Como era
comerciante de vinhos, ainda tinha, num depósito, tambores de vinho tinto (vintage de St. George, de St. Loubès, de Petit Médoc etc.), vinho branco (vintage d’Entre-deux-Mers), champagne e conhaque.
300 Auguste Henri Jacob (1828-1913), famoso curandeiro francês. Foi um zuavo, isto é, um soldado do exército colonial francês.
301 A Revista Teúrgica é uma fonte secundária eivada de maledicências, por isso a utilizamos de forma restrita.
302 De outubro de 1864 até junho de 1865.
303 Jean Marie Tailleur (1809-1885) foi um fabricante falido de parafusos e, junto com Amélie Boudet e outros, um dos fundadores da sociedade que daria continuidade à publicação das obras espíritas de Allan Kardec. Casado em 1834 com Aglaé Clémence
Pierre, era pai da obsidiada Jenny Elisabeth (1837-1875).
304 Apesar de grafado como Sabò, o correto é Sabo.
16. Alfred Maxime Louis Didier

Em capítulos anteriores, havíamos nos perguntado se teria existido algo mais do que uma grande amizade entre a Sra. Costel e o Sr. Alfred Didier, ambos
dissidentes da SPEE.
Como ela, ele era pintor e médium bastante ativo na Revista Espírita. Alfred Didier foi o médium mais usado pelo Espírito Lamennais. É dele a
mensagem “Caridade para com os criminosos” da Revista Espírita de março de 1862, que também aparece com pequenas alterações em O evangelho
segundo o espiritismo como “Deve-se expor a vida por um malfeitor?”:
Acha-se em perigo de morte um homem; para o salvar tem um outro que expor a vida. Sabe-se, porém, que aquele é um malfeitor e que, se escapar, poderá cometer novos crimes. Deve, não
obstante, o segundo arriscar-se para o salvar?

Questão muito grave é esta e que, naturalmente, se pode apresentar ao Espírito. Responderei, na conformidade do meu adiantamento moral, pois o de que se trata é de saber se se deve expor a
vida, mesmo por um malfeitor. O devotamento é cego; socorre-se um inimigo; deve-se, portanto, socorrer o inimigo da sociedade, a um malfeitor, em suma. Julgais que será somente à morte que,
em tal caso, se corre a arrancar o desgraçado? É, talvez, a toda a sua vida passada. Imaginai, com efeito, que, nos rápidos instantes que lhe arrebatam os derradeiros alentos de vida, o homem
perdido volve ao seu passado, ou que, antes, este se ergue diante dele. A morte, quiçá, lhe chega cedo demais; a reencarnação poderá vir a ser-lhe terrível. Lançai-vos, então, ó homens; lançai-vos
todos vós a quem a ciência espírita esclareceu; lançai-vos, arrancai-o à sua condenação e, talvez, esse homem, que teria morrido a blasfemar, se atirará nos vossos braços. Todavia, não tendes que
indagar se o fará, ou não; socorrei-o, porquanto, salvando-o, obedeceis a essa voz do coração, que vos diz: “Podes salvá-lo, salva-o!”

O comentário à história de Lapommeray em O céu e o inferno, feito por Lamennais, também foi obtido por meio de Alfred Didier, conforme Revista
Espírita de julho de 1864.

Fig. 20: Fragmento da comunicação “Sobre a interrupção das faculdades medianímicas”,de Mesmer, pelo médium Sr. Didier, de 1º de julho de 1864 na SPEE (o título e as anotações à esquerda do manuscrito são de Kardec)
Fonte: Museu Allan Kardec online

Depois de se afastar da SPEE, o médium celibatário supostamente se dedicou apenas à pintura, o que é verificado através de diversos quadros, inclusive
seu autorretrato, hoje no Museu de Belas Artes de Tours.
Em Paris, seu endereço era na Rua Duperré, nº 97; onde ficavam estúdios e alojamentos de artistas.
O médium, filho do editor e livreiro Pierre Paul Didier, desencarnou de uma doença do estômago, em 18 de outubro de 1892, na comuna de Fondettes, a
duzentos e quarenta e seis quilômetros de Paris, no departamento de Indre-Et-Loire. Como vimos, ele deixou como sua herdeira universal a amiga, Sra.
Costel, que também residia em Fondettes na época.
No Dicionário geral de artistas da escola francesa desde a origem das artes do desenho até os dias atuais sua data de nascimento estava indicada como
19 de outubro de 1840. Encontramos, então, seu registro de nascimento reconstituído nos Arquivos Municipais de Paris, confirmando esta data305. Teria
dezenove anos quando começou na SPEE, em 1859. Porém, na Revista Espírita de fevereiro de 1858, Allan Kardec relata que Clary D., morta em 1850,
aos treze anos, comunicou-se com ele por meio de seu irmão, médium psicógrafo, em 12 de janeiro de 1857. Segundo a resposta da última pergunta, na
casa estariam muitos assistentes. Estas informações seriam precisas? O médium seria Alfred Didier, então com dezesseis anos?
No livro Manual prático do magnetismo animal, Alphonse Teste fala de uma Clary D., que tinha doze anos ou menos, quando morreu de tuberculose, em
4 de junho de 1840, cujo pai era o Sr. D, um dos nossos principais livreiros na capital, então morando na Rua Pavée Saint André, nº 2. Já na segunda série
do livro Os habitantes do outro mundo, de Camille Flammarion, vemos uma Clary Didier e um A. Didier também figurando como médium de Lamennais.
Tudo indica que Clary D. se chamava Clarisse Didier, nascida provavelmente em 1826, filha de Pierre Paul Didier, residente no Quai des Grand-
Augustins. Pierre, também, teve Jules Didier, nascido em 1831 e Alfred Didier nascido em 1840. O registro de óbito de Clarisse é de 4 de junho de 1840,
falecida aos quatorze anos. Aparentemente o prédio do Quai des Grand-Augustins, nº 35 tinha uma entrada pela Rua Pavée Saint André, nº 2, que mais
tarde viria a se chamar Rue Séguier. Quando Jules nasceu o endereço era Quai des Grand-Augustins, nº 47, mas no nascimento de Alfred, o endereço era o
nº 35306.
Portanto, parece que na Revista Espírita de fevereiro de 1858, houve a intenção de manter o anonimato ou talvez tenha havido um engano sobre o ano da
morte de Clary D., em 1850. É mais provável que ela seja Clarisse Didier, chamada de Clary D., falecida em 1840. Com isso, o Sr. Alfred Didier, que não
teria conhecido a irmã, passaria a ser o médium mais novo da dita Codificação, pelo menos numa conversa de além-túmulo em que Allan Kardec esteve
presente, já que na SPEE ele apareceu apenas em 1859, com dezenove anos. Em 12 de janeiro de 1857, ele tinha dezesseis anos, menos do que a Srta.
Ermance Dufaux, que tinha dezoito anos nesta época. Este raciocínio é válido se a Revista Espírita sempre estiver associando Didier filho a Alfred, e não a
Jules.
Mas por que Alfred teria abandonado a SPEE em 1865?
Allan Kardec enfrentou dissidências e inimigos desde sempre. Na sua correspondência, este tema foi tratado em 1857 e de 1860 a 1868. Na Revista
Espírita, ele também abordou o assunto em várias ocasiões.
Numa correspondência sarcástica enviada ao Le Courrier du Gard, de 3 de julho de 1864, encontramos, entre outras difamações: “(...) Espiritismo, uma
das mais ridículas doenças da época. Seu grão-sacerdote, o Sr. AK, já lança contra os dissidentes, a ira da excomunhão; a intolerância é o padrão das
pequenas igrejas (...)! O Sr. AK, ‘ex-contrôleur’ do Délassements-Comiques, excomunga o Sr. Didier, o Sr. Piérart excomunga o Sr. AK que, por sua vez,
apaga o sarcasmo dos Srs. Huet e Rodière”.
Já vimos que Allan Kardec nunca foi “contrôleur”, e sim “administrateur-caissier”. Na época, o Sr. Gonnet era o “contrôleur”. Mas, enfim, apesar de
não sabermos se o correspondente se referia a Didier pai ou filho, poderia ser que em torno de 1º de julho de 1864307, data da carta, tivesse havido algum
distúrbio, com o início de mais uma dissidência. Talvez fosse apenas maledicência mesmo, pois a livraria de Didier pai continuou publicando as obras de
Allan Kardec, e as últimas comunicações obtidas através de Alfred Didier ainda apareceram na Revista Espírita de julho de 1865.
Outra hipótese provável pode estar relacionada com a morte de seu pai em 2 de dezembro de 1865, pois no L’Avenir do Sr. D’Ambel, de 4 de janeiro de
1866, Alfred explicou sua oposição à evocação de seu pai na SPEE, na mesma semana do funeral, tendo notificado Allan Kardec por carta, e depois
pessoalmente, para que não renovasse a evocação. Allan Kardec havia respondido com uma recusa, objetando que Alfred Didier não tinha a capacidade de
se opor à evocação, e que não poderia impedir o Espírito de seu pai de se comunicar com a sociedade, ou em grupos particulares. A mesma declaração
havia sido repetida de viva voz na última reunião na Rua Sainte Anne. Embora Alfred Didier tenha reconhecido que não poderia impor sua vontade a cada
espírita em particular, mas apenas às reuniões de caráter público, afirmou ainda na carta ao L’Avenir que os espíritas se equivocavam em se entregar a
evocações, que não dão resultado, não fornecem prova de identidade e, como dizia seu querido pai, serviam de vara aos nossos adversários para flagelar a
doutrina espírita.
Mas ainda não respondemos se havia algo mais do que uma grande amizade entre a Sra. Costel e o Sr. Alfred Didier, além de ambos terem abandonado
Allan Kardec.
Eles moraram juntos em 1872, na pequena Saint Bohaire, no departamento de Loir-et-Cher, mas não em 1876 e 1881, anos correspondentes aos
recenseamentos, onde localizamos as informações de seus endereços em locais diferentes. Em 1872, os dados dos residentes e respectivas idades no nº 1 da
rua única de Le Logis (hospedaria Château du Logis) eram: Elisa Jouty, viúva do Sr. Mignon, que teria setenta e três anos (e não sessenta e sete como
informado no recenseamento), a Sra. Costel, que teria cinquenta e um anos (e não quarenta e dois) e o Sr. Alfred Didier, que teria trinta e dois anos (e não
quarenta e cinco); só o filho da Sra. Costel teve a data informada corretamente: vinte e seis anos. Curioso, também, que o marido Charles, falecido só em
1880, não vivia neste endereço, portanto ela não era viúva, como também indicou o censo. Ela e Alfred Didier voltaram a morar no mesmo endereço em
1891, um ano antes da morte dele, no Château du Grand Martigny, em Fondettes, mas não em 1886, quando ela vivia lá com uma irmã e os empregados.

305 Pela idade que constava no registro de óbito deduz-se ser 1845. As pessoas não eram muito precisas em informar a idade em alguns registros de estado civil, principalmente no de óbito.
306 Os pais de Clarisse, Jules e Alfred, viveram no nº 47 pelo menos desde que se casaram em 1824 até o início de 1840; e a partir daí no nº 35, conforme detalhes encontrados também nas diversas edições do Almanaque dos 500.000 endereços de Paris. O
livreiro morreu em 1865 na Rue Séguier, nº 2, ou seja, no mesmo endereço.
307 A primeira mensagem obtida por Alfred Didier no dossiê sobre a morte espiritual é de 1º de maio de 1864, assinalada como “TB” (très bon ou muito bom) por Allan Kardec. Veja a posição de Allan Kardec em relação a esta questão no capítulo sobre o Sr.
D’Ambel.
Em resumo:
• 1872: Ambos moravam em Saint Bohaire;

• 1876: Só Costel e a mãe, sem Didier, residiam em Saint-Bohaire;

• 1881: Só Costel e a mãe, sem Didier, residiam em Saint-Bohaire;

• 1886: Só Costel e uma irmã, sem Didier, residiam em Fondettes;

• 1891: Ambos moravam em Fondettes.

Não sabemos a natureza do relacionamento do Sr. Alfred Didier e da Sra. Costel, mas não há dúvida que eram grandes amigos.

Fig. 21: Autorretrato de Alfred Didier


Fonte: Museu de Belas Artes de Tours
17. As dissidências

O que teria contribuído para a saída de importantes médiuns da SPEE, principalmente em 1865?
Numa carta de 15 de março de 1860 a Pierre Dubois, Allan Kardec disse: “A Sociedade, dizeis, é minha criança; com efeito, eu servi de alguma coisa
para a sua existência, mas com frequência acontece de a criança esquecer seu pai, e este é, de certa maneira, o caso aqui, porque ela não leva em conta o
que fiz por ela, em particular, e pela causa do Espiritismo em geral, à qual devotei minha vida, minhas vigílias, e sacrifiquei meus interesses materiais. Com
efeito, quero que a Sociedade prospere, e é por isso que certas medidas me parecem indispensáveis; mas digo-vos com toda sinceridade que, se ela não
adotar medidas eficazes para prevenir o retorno desses inconvenientes indicados pela experiência; se entrevejo nela elementos de perturbação, melhor que
eu me retire por completo, e é isso que farei, pois não quero perder meu tempo em discussões inúteis e incessantemente recorrentes”.
No “Discurso do Sr. Allan Kardec na abertura do ano social, a 1º de abril de 1862” publicado na Revista Espírita, de junho daquele ano, destacamos estes
fragmentos: “Nós, que antes de tudo buscamos a instrução, damos mais valor àquilo que satisfaz ao pensamento do que ao que apenas regala os olhos.
Assim, preferimos um médium útil, com o qual aprendemos alguma coisa, a um outro admirável, com quem nada aprendemos”. E continuou: “Mas, como
discutir comunicações com médiuns que não suportam a menor controvérsia; que se melindram com uma observação crítica, com uma simples observação,
e acham mau que não se aplaudam as coisas que recebem, mesmo aquelas inçadas de grosseiras heresias científicas?”. Acrescentou ainda: “Alguns levam a
sua susceptibilidade ao ponto de ofender-se com a prioridade dada à leitura das comunicações recebidas por outros médiuns. Por que uma comunicação é
preferida à sua?”.
No “Golpe de vista sobre o Espiritismo em 1864” publicado na Revista Espírita de janeiro de 1865, Allan Kardec informou:
Sabemos muito bem que, por não havermos incensado certos indivíduos, os afastamos de nós e que eles se voltaram para o lado de onde vinha o incenso.
Mas, que nos importa!
E ainda, na Revista Espírita, de junho do mesmo ano, sobre a “Nova tática dos adversários do Espiritismo”:
Não esqueçamos que o Espiritismo não está acabado. Ele ainda não fez senão plantar balizas, mas, para avançar com segurança, deve fazê-lo gradualmente, à medida que o terreno esteja
preparado para recebê-lo e bastante consolidado para nele pôr o pé com segurança. Os impacientes, que não sabem esperar o momento propício, comprometem a colheita, como comprometem a
sorte das batalhas. Entre os impacientes há, sem dúvida, aqueles de muito boa-fé; quereriam ver as coisas irem ainda mais depressa, mas assemelham-se a essas criaturas que julgam adiantar o
tempo adiantando o relógio. Outros, não menos sinceros, são levados pelo amor-próprio a chegar primeiro; semeiam antes da estação e só colhem frutos abortados. Ao lado desses, outros há,
infelizmente, que empurram o carro por trás, esperando vê-lo tombar.

O ano de 1865 foi um ano terrível para Allan Kardec, devido à grande doença que o acometeu em janeiro, e cujas sequelas ele levaria até o final da vida.
18. O ano de 1865

Ainda em 1864, tivemos a publicação da Imitação do evangelho segundo o espiritismo e do Resumo da lei dos fenômenos espíritas. No ano seguinte, em
março, a tipografia Bourdier fez a Declaração do Impressor de O evangelho segundo o espiritismo, com apenas quinhentos exemplares. Antes, em 31 de
janeiro de 1865, Allan Kardec começou a passar muito mal, ficando dois meses de cama e passando no mínimo um mês sem sair do próprio quarto. Em
tradução livre, ele descreveu seus sintomas ao Dr. Finella308, em 6 de abril de 1865:
Foi unanimemente reconhecido que a primeira causa veio de um excesso de trabalho e falta de exercício. De fato, trabalhei a maior parte do tempo dezoito horas e mais sem parar e sem
qualquer outra interrupção, além do tempo para fazer minhas refeições rapidamente. Tenho uma predisposição natural ao reumatismo do qual sofri muito em várias ocasiões e em várias partes do
corpo.

Nesta última circunstância, a doença invadiu as membranas do coração e da pleura. Durante toda a doença, a urina está de um vermelho de tijolo, grossa como mingau. Hoje voltei ao normal,
exceto por falta de ar e dores nos músculos peitorais que às vezes me acometem ao caminhar, mas principalmente ao subir; depois, muita rigidez nas articulações dos membros inferiores, o que faz
com que andar me canse rapidamente. Às vezes também sinto um latejar violento no peito. Sangue muito espesso e circulando com dificuldade. Sinto que se fosse mais fluido, estaria mais alerta.
Parei com toda a medicação e acho que o bom tempo e algum exercício me farão muito bem.

Há cerca de um ano, os Espíritos anunciaram que eu teria uma doença grave, mas que seria seguida de um retorno à saúde robusta, saúde de que necessitava para a conclusão do meu trabalho.
A primeira parte da previsão está cumprida, espero o mesmo para a segunda, e talvez você possa contribuir com algumas prescrições.

Nesta mesma carta, Allan Kardec descreveu os sintomas de sua esposa309, Amélie Boudet:
Já faz muito tempo, há fraqueza geral no lado direito; a sensibilidade do toque nos dedos da mão às vezes é muito fraca; seus joelhos estão quase sempre frios e, após a fadiga da caminhada, ela
tem cãibras terríveis nas pernas à noite, especialmente a direita. Inflamação intestinal quase crônica; matéria negra recozida às vezes misturada com sangue; dor e asfixia causados por gases; bom
estômago, mas digestões muito lentas, embora não dolorosas. Temperamento sanguíneo, muito vivo e muito ativo, (...); apesar disso um desejo irresistível de dormir à noite depois do jantar e até
mesmo durante o dia quando ela está inativa. Tudo indica que os pulmões estão em boas condições. Quando jovem, sofreu uma terrível entorse no pé direito, que rompeu os ligamentos e levou um
ano para se recuperar. Desde então, sempre houve fraqueza na perna e em todo o lado; há alguns anos essa fraqueza assumiu o caráter de paralisia.

Mais tarde, Allan Kardec voltou a escrever ao mesmo médico: “Vou lhe dizer então, querido doutor, que, depois de pontualmente ter seguido o primeiro
tratamento que você me prescreveu, e esgotado o frasco de glóbulos, não senti nenhuma melhora”.
Apesar da saúde precária, sua produção continuou. No final de maio de 1865, a tipografia Bourdier fez a Declaração do Impressor com três mil
exemplares de O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo, cuja primeira edição foi depositada e registrada em setembro. Até o final do
ano, considerando o ano estampado nas folhas de rosto dos livros, chegou-se à décima-terceira edição de O livro dos espíritos, à sexta de O que é o
espiritismo, à nona edição de O livro dos médiuns, à sétima de O espiritismo na sua expressão mais simples e à segunda edição de O evangelho, além da
publicação da Coleção de preces espíritas. Totalizando as obras, chegou-se a mais de sessenta e dois mil exemplares.
Naquele ano, Allan Kardec ainda foi a Zimmerwald, numa colina perto de Berna, na Suíça, junto com Amélie Boudet, para cuidar da saúde e poder
recuperar-se melhor. Voltou a ficar doente no inverno de 1866, em Paris, o que talvez o tenha levado a pensar no ano seguinte em mudar-se, por algum
tempo, para Locarno, também na Suíça.
No final do ano de 1865, numa carta de 31 de outubro à Sra. Villon, Allan Kardec descreveu assim o passe310: “Para torná-lo mais eficaz, teria que usar o
magnetismo espiritual invocando a ajuda de bons espíritos. (...) em vez de se limitar aos passes gerais, deve-se atacar direta e vigorosamente as partes
afetadas, primeiro pela imposição das mãos apoiada por uma vontade poderosa, e depois pelos passes sobre essas mesmas partes, liberando o fluido pelas
extremidades internas”.
Apesar da doença e das deserções, 1865 foi também o ano de lançamento de O céu e o inferno. É sobre mais personagens desta obra fundamental que
apresentaremos o resultado de nossas investigações311.

308 Autor do livro Novo método homeopático baseado na aplicação de remédios complexos para o tratamento de todas as doenças.
309 Por estes e outros sintomas revelados em outras cartas, e considerando que ela faleceu apenas em 1883, provavelmente o diagnóstico da sua doença seria úlcera péptica, isto é, hemorrágica.
310 Prática largamente adotada nos centros espíritas, com alguns estudos científicos ainda não conclusivos. Para maiores informações sobre este assunto e outros relacionados a Espiritismo e ciência, acessar facebook.com/CienciaDoEspiritismo [CSI do
Espiritismo]. Apesar daquela descrição do passe, Allan Kardec disse em algum momento que a SPEE não oferecia consultas médicas e não tinha o poder de curar. O objetivo da SPEE era exclusivamente o estudo da parte moral e filosófica da doutrina
espírita, e não a cura dos enfermos.
311 Para a lista completa de Espíritos e médiuns identificados de O céu e o inferno, ver o apêndice 3.
19. Ermance Dufaux de la Jonchère

Hermance Dufaux de La Jonchère ou Ermance Dufaux, grafia mais comumente utilizada, desapareceu do cenário francês por quase vinte anos, entre
1858 e 1878. Sua última aparição na Revista Espírita, como médium da SPEE, foi em 1858, embora em novembro de 1862 tenha enviado uma receita
mediúnica de um remédio.
Em 1878, temos seu primeiro livro não mediúnico, chamado Etiqueta na vida cotidiana e nas cerimônias civis e religiosas, seguido de O que senhores e
funcionários domésticos precisam saber, de 1884, A criança, higiene e cuidados maternos na primeira idade, para uso de jovens mães e babás, de 1886, e
Tratado prático de bordado, de 1888.
Não sabemos o porquê daquela ausência, mas já sabemos que ela não nasceu nem em 1841, nem em Fontainebleau, localizada a setenta quilômetros de
Paris, como se pensou durante muito tempo312. A data de 1841 deve ter sido obtida deduzindo-se do ano da publicação do seu livro Vida de Joana d’Arc,
ditada por ela mesma, que foi 1855, da sua idade de quatorze anos, que foi indicada na obra. Mas nada nos garantia que o ano em que escreveu o ditado
fosse o mesmo ano de sua publicação.
Na dedicatória de seu outro livro, Etiqueta na vida cotidiana e nas cerimônias civis e religiosas, ao Marquês de Verteillac, Ermance Dufaux afirmou que
seu bisavô viveu nos domínios de La Jonchère e Cateauguière [sic]. Colhemos aí também a informação que tinha uma irmã. Entretanto, nos arquivos
departamentais de la Vendée (onde fica La Jonchère e La Châtaigneraie), não tivemos sucesso na obtenção de mais dados. Encontramos então no Boletim
da Sociedade Literária e Histórica de La Brie a informação de que ela era membro correspondente. Encontramos ainda neste boletim a referência a um
local, pista crucial que nos ajudou a buscar mais informações e revelar a completa identidade da médium e seus familiares: Mont-Valérien. Nossa sorte
estava mudando!
Mont-Valérien fica na comuna de Suresnes, ao lado de Paris. Voilà! Hermance Dufaux de La Jonchère, nascida em Cambrai, comuna a cento e oitenta e
dois quilômetros de Paris, filha de Jacques Dufaux de La Jonchère e Léonide Groslevin, desencarnou em Suresnes em 3 de março de 1915. Em Cambrai,
descobrimos seu registro de nascimento, datado de 8 de março de 1839. Consequentemente ela não tinha quatorze anos em 1855, quando publicou a obra
mediúnica sobre Joana D’Arc, mas dezesseis. Este seu primeiro livro deve ter sido escrito em 1853.
Em 1857, quando já trabalhava com Allan Kardec, Ermance Dufaux tinha dezoito anos313.
Sua irmã mais nova nasceu em 1851 e se chamava Marguerite Marie Dufaux, tendo se casado em 1883, mais de cinco anos após a desencarnação de sua
mãe, em 1878. Uma das testemunhas do casamento de Marguerite foi o próprio Marquês de Verteillac, aquele que havia recebido uma dedicatória de
Ermance.
O pai, Jacques Dufaux, que ajudou Allan Kardec a obter uma das autorizações para o funcionamento da SPEE, nascido em Poitiers, capital do
departamento de Vienne, desencarnou em 1876, aos setenta e um anos, em Paris, quando residia na Rue Vaneau, localizada a apenas oitocentos e cinquenta
metros da Villa de Ségur, refúgio do casal Kardec.
No registro de casamento de 1838 do Sr. Jacques Dufaux e no registro de nascimento de suas filhas, Ermance e Marguerite, sua profissão consta como
sendo “contrôleur de contributions directes”, que traduziríamos como “fiscal da receita”.
Por que muitos dizem que ele era triticultor e vinhateiro em Fontainebleau? Talvez porque Canuto Abreu no seu O livro dos espíritos e sua tradição
histórica e lendária314 tenha afirmado isso! Contudo, este livro não é de história, como o próprio título sugere.
Ainda assim, a família parece ter passado por Fontainebleau. Na Revista Espiritualista de outubro de 1861 encontramos a informação: “Srta. Ermance
Dufaux afirma que seu livro é o puro resultado de suas faculdades mediúnicas e que seu pai não teve nada a ver com isso, como pode ser visto pelas outras
seiscentas pessoas de Fontainebleau e Paris que compareceram ao ditado de várias páginas de seu livro, pessoas representadas com honra na mais alta
sociedade e cujos nomes divulgaremos, se necessário”. A primeira e segunda cartas no apêndice deste primeiro livro confirmam isso.
Além da biografia de Joana D’Arc, publicada em livro em 1855, temos a História de Luís XI ditada por ele mesmo, aparentemente também de 1853, mas
publicada em trinta e oito artigos ou dez capítulos de maio de 1864 até maio de 1865 no La Vérité, jornal de Lyon dirigido por Evariste Edoux. Parece que
existiu também a história de Luís IX (São Luís) contada por ele mesmo315. Além desta e da biografia de Charles VIII, também não encontrada, temos a
História militar d’Eugène de Beauharnais, vice-rei da Itália, publicada no jornal Le Sauveur des Peuples, dirigido por Armand Lefraise, de Bordeaux,
entre agosto de 1864 e maio de 1865, embora pareçam que tenham sido ditadas em 1857.
Embora tenha deixado cedo a SPEE, comunicações de Espíritos obtidas através da Srta. Dufaux foram utilizadas em O céu e o inferno ou a justiça divina
segundo o espiritismo, a quarta obra fundamental da Codificação.

312 Até a Biblioteca Nacional da França publicava esta informação, corrigida após nosso alerta com as devidas evidências. Link de acesso: data.bnf.fr/fr/13091113/ermance_dufaux_de_la_jonchere/; acesso em: 09/08/2022.
313 Na época a maioridade era atingida a partir dos vinte e um anos.
314 C. Abreu, O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária. Edições LFU, São Paulo – SP (1992), p. 132.
315 Revista Espírita, abril (1859), p. 112.
20. Sr. Rul, o professor de equitação

Outro personagem com mensagens em O céu e o inferno foi o Sr. Rul. Ele foi o responsável, na Revista Espírita de dezembro de 1864, por uma
comunicação que seria do próprio Jesus, e que foi assinada pelo Espírito da Verdade316. Eis um fragmento:
Há várias moradas na casa de meu Pai, disse-lhes eu há dezoito séculos. Estas palavras, o Espiritismo veio fazê-las compreendidas.

Assim como o casal Delanne, o Sr. Rul ficou bastante tempo na SPEE, mas poucas mensagens foram publicadas na Revista Espírita, sendo a última na
edição de janeiro de 1869. Já era médium desde 1862 e frequentava a Sociedade desde antes. Outra comunicação obtida por ele apareceu em 9 de janeiro
de 1865 no jornal La Sauveur des Peuples, de Bordeaux, assinada por Santo Agostinho.

Fig. 22: Fragmento da comunicação “Rachel”, dela mesmo, pelo médium Sr. Rul, de 10 de outubro de 1867 na casa dele (as anotações no canto centro esquerdo superior são de Kardec)
Fonte: Museu Allan Kardec online

Seu nome era Louis Joseph Gabriel Rul, casado, professor de equitação, nascido em 1811 na comuna de Pointe-à-Pitre, no departamento ultramarino de
Guadalupe, no Caribe, e desencarnado aos setenta anos nos em 21 de fevereiro de 1882.
No início de 1851, morava no 10º arrondissement de Paris, mas depois mudou-se para Viena, na Áustria. O Sr. Rul foi também inventor, como tantos
outros personagens estudados. Em 1859, fez o depósito para garantir a patente de um aparelho a vapor destinado a preparar a têmpera em destilarias e
cervejarias. Interessante que nessa época era advogado.
Foi autor de várias obras317, entre as quais: Primeiros elementos de ginástica e instrução militar, para uso das escolas de 1874. Foi este livro que nos
levou à identidade do médium, porque o livro fez parte da seção Bibliografia da Revista Espírita de agosto de 1874, apresentado como sendo do médium
Louis Rul!

316 Allan Kardec comentou depois da mensagem: “(...) À vista desses nomes venerados, o primeiro sentimento do médium modesto é o de dúvida, porque ele não se julga digno de tal favor”.
317 Método Baucher. Programa de equitação, de 1846, O Baucherismo reduzido a sua mais simples expressão, de 1857, Quatro anos em Graefenberg, manual higiênico-hidropático, de 1857, Progressão metódica de adestramento com cabeçada simples de
todos os cavalos da cavalaria, de 1870 etc.
21. Leymarie, o futuro administrador

Pierre Gaëtan Leymarie, alfaiate, futuro dirigente da Sociedade Anônima318, foi médium da SPEE, trabalhando ao lado de Allan Kardec. Nasceu em 2 de
maio de 1827, em Tulle, comuna no Sudoeste da França, e faleceu em 10 de abril de 1901, em Paris.
Será que Leymarie esteve realmente exilado no Rio de Janeiro antes da Codificação?
Não encontramos qualquer referência a uma única fonte primária para comprovar tais declarações, que parecem ter surgido com o livro de 1989 O
espiritismo, de Régis Ladous, ou com o livro de 1990 A mesa, o livro e os espíritos, de Marion Aubrée e François Laplantine. Infelizmente, todas estas
fontes secundárias não apresentam qualquer documentação comprobatória. Enfim, qualquer um pode avaliar sua citação: “Ele se exilou no Brasil, onde
começou a espalhar o Espiritismo”, isto antes da chamada Codificação.
Portanto, se o republicano Leymarie esteve no Brasil de 1852319 a 1859320, ninguém sabe, ninguém viu.
É ele mesmo quem nos conta sobre sua iniciação na doutrina espírita, no suplemento literário de domingo do Le Figaro de 5 de outubro de 1895:
A fé sempre foi dada a você? perguntei ao Sr. Leymarie.

- Eu entendi muito estranhamente. Jovem, eu era um niilista321. Refugiados na Bélgica, pregamos o liberalismo e o ateísmo para alguns. De volta a Paris, o acaso me fez entrar em um dentista na
Cité Bergère322. Enquanto examinava minhas gengivas, ele me contou sobre sua relação constante com os Espíritos. Absurdo! eu pensei. Mas quando meu dente doente foi curado, meu ceticismo
diminuiu. “Venha comigo para a casa de Allan Kardec”, disse o artista, guardando o estojo. O que o destino pode conter? Para um dente estragado, senhor! Chegado ao círculo espírita, qual foi o
meu espanto ao receber imediatamente o título de médium! Ainda não tinha suspeitado que escrevia automaticamente frases inteiras que eu desconhecia. Daquele dia em diante fui um seguidor.

Durante a Codificação, o médium Leymarie trouxe dezenas de mensagens. As comunicações de Sanson323, Cardon e Clara Rivier aparecem tanto na
Revista Espírita324, quanto em O céu e o inferno325. Talvez “A lei do amor”, de Sanson, em O evangelho segundo o espiritismo326, também tenha sido obtida
por Leymarie, pois só encontramos Sanson se comunicando através deste médium.
Resgatamos ainda uma narrativa na Revista Espírita de abril de 1874 sobre visão a distância, que traz informações sobre as atitudes de Leymarie na
época da Codificação. Os personagens identificados nesta publicação são:
• Sr. L. = Pierre Gaëtan Leymarie

• Jeanne = Marie Angèle Jeanne Leymarie, nascida em 14 de julho de 1864

• Dr. Houat = Louis Timagène Houat327

• Canaguier = Antoine Jules Napoléon Canaguier328

• Sra. Roger = Adélaïde Joséphine Roger

• Sra. L. = Marina Duclos Leymarie

Vejamos um resumo dos fatos narrados na Revista.

1. Há dez anos329, o Sr. L... estava em Le Havre. Sua filhinha Jeanne, de seis meses, teve convulsões em Paris, na rua de Provence. Dr. J... e Dr. Houat
haviam “condenado” a criança. Sr. Canaguier e sua senhora dirigiram-se à casa de Allan Kardec, rogando-lhe que indicasse um sonâmbulo. Na ausência da
Sra. Roger, em quem tinha total confiança, indicou na Rua des Martyrs, nº 17, a Sra. Rosalie Leménager, que ele não conhecia, mas sobre a qual muitas
coisas boas lhe haviam sido contadas. Esta sonâmbula recusou uma consulta (eram 9h da noite), mas por insistência do Sr. Canaguier, ela teve a bondade
de se deixar adormecer, depois pediu um objeto carregado pela paciente, que ele não tinha, então ela pegou sua mão, que havia tocado Jeanne, e aspirou.
Imediatamente a viu, indicou a rua, o número, o andar (coisas desconhecidas da vidente no estado normal); indicou o tratamento seguido e, contrapondo-se
ao erro muito involuntário dos médicos, declarou que a criança ficaria curada em oito dias. A prescrição foi seguida e Jeanne melhorou na manhã seguinte.
Quando não havia dúvida de uma nova crise, a Sra. Canaguier pegou um pano tocado pela paciente e voltou para a Sra. Rosalie. Adormecida, ela notou que
se esqueceram de dar-lhe o pó da Princesa de Carignan330, o que era verdade. O Sr. L... chegou à noite, Jeanne sorriu, e uma semana depois ela estava
animada e saudável.

2. O Sr. Canaguier, algum tempo antes da doença de Jeanne, teve sua filha afetada por crupe. O Sr. L... estava partindo para Versalhes, quando uma voz o
mandou ir para a Rua Montmartre. Ele obedeceu, chegou depois da partida dos médicos que queriam fazer uma operação na garganta, operação quase
sempre fatal. Apesar da oposição dos pais decididos a não martirizar a moribunda, ele foi aos três médicos e Palmyre foi salva. Atualmente, ela é uma
garota alta e bonita. A solidariedade entre os espíritas oferece aquelas combinações de circunstâncias que os indiferentes chamam de acaso, e que
chamamos de consequências naturais da assistência dos Espíritos.

3. A Sra. L... estava a vinte e cinco léguas331 de Paris, um mês depois da doença de Jeanne, as emoções que ela teve perturbaram sua saúde, abscessos nos
seios a impediam de amamentar sua filha. Com uma carta fechada, a Sra. Rosalie Leménager se transportou [em Espírito] a Pimprez e ordenou que um
punhado de folhas de bardana fosse colocado em um litro de água junto com uma pitada de rosas de Provins e uma colher de mel, e que depois de meia
hora de fervura, as folhas fossem colocadas na “parte sofredora”, duas ou três aplicações para obter a cura completa. A Sra. Rosalie pegou a carta
novamente e, mentalmente, seguiu um caminho invisível, indicando-o com a mão, então ela disse: “a Sra. L... mora em uma casa situada no alto de um
jardim cuja encosta termina no canal no Oise, entre o jardim e a margem do canal existe um riacho onde se encontra uma ponte que toca na margem numa
massa de folhas, verdes em cima, aveludadas embaixo, largas como a mão, espalhadas por um espaço de um metro de diâmetro, elas são as bardanas. A
clarividente disse a verdade. A Sra. L... foi ao fundo do jardim, apesar do seu estado de sofrimento agudo, e perguntou à velha Tatique, uma vizinha, para
que serviam estas folhas: “São bardanas”, disse ela. No dia seguinte, a sofredora mulher foi curada e pode amamentar sua filhinha. Ela era espírita? Não
[ainda estamos no início de 1865], mas tirou as seguintes consequências desses fatos:
Se, dormindo em Paris, o Espírito sonâmbulo pode vir à Rua de Provence para ver Jeanne, e descrever os remédios administrados, isto é, ver o passado, é
que vestígios, inapreciáveis para nossos sentidos materiais, permanecem eternamente visíveis ao Espírito; se o Sr. L..., partindo para Versalhes e ignorando
a posição da filha do Sr. C..., é obrigado, estando na estação, a voltar seis quilômetros para ajudar a salvá-la, é porque ele escuta forças desconhecidas e
inteligentes, que intervêm quando necessário, para modificar nossas resoluções mais determinadas. Se a Sra. Rosalie consegue ler uma carta fechada, é
porque o corpo e os olhos humanos, esses instrumentos de manifestações materiais, podem ser afastados pelo Espírito, liberado com a ajuda de eflúvios
magnéticos, para vir a Pimprez, fazer um diagnóstico seguro e encontrar folhas de bardana. Está, pois, comprovado que uma pequena folha de papel deixa
vestígios indeléveis de sua passagem.
Pouco mais de um ano depois, Leymarie enfrentou novos problemas familiares.

Fig. 23: Fotografia da família Leymarie


Fonte: Museu Allan Kardec online

Um dia depois da esposa ter dado à luz a uma criança natimorta de oito meses, Leymarie enviou um bilhete a Allan Kardec justificando sua ausência na
sessão das sextas-feiras da SPEE. O bilhete diz:
Mestre

Não posso estar no meu posto esta noite. Madame Leymarie deu à luz a uma criança morta nascida ontem de noite, quinta-feira, às 11 horas, após grandes sofrimentos. A doença de minha
jovenzinha havia perturbado tanto a Sra. Leymarie que a criança estava morta após oito ou dez dias. Graças a Deus, a mãe está se recuperando bem, mas quando penso nas consequências de um
parto/gestação de oito meses com uma criança morta, eu me curvo à vontade divina que poderia ter me provado terrivelmente. Peça desculpas à nossa querida sociedade e meus respeitos à senhora
Allan Kardec.

Seu todo devotado médium

PG Leymarie

20 de abril de 1866.

Mais de cinco anos depois, em 27 de junho de 1871, Desliens, gerente da Revista Espírita, escreveu sua carta de renúncia, abrindo campo à
administração de Leymarie, como abordaremos na terceira fase.

318 Sociedade criada por Amélie Boudet e outros espíritas, após o falecimento de Allan Kardec.
319 Depois do golpe de estado de 2 de dezembro de 1851.
320 Antes da anistia de 16 de agosto de 1859.
321 “Néantiste” no original. Aquele que considera que as crenças e os valores tradicionais são infundados.
322 Especulamos, sem maiores evidências, se o dentista de Leymarie não seria o Dr. Bouneau, mencionado num artigo sobre o uso do clorato de potássio para tratamento de estomatites, na Revue de thérapeutique médico-chirurgicale e que trabalhava na Cité
Bergère, pelo menos de 1860 até 1864. Estimamos que Leymarie tenha começado a frequentar a SPEE em 1862.
323 Alexandre Jacques Sanson, antigo membro da SPEE, falecido em 1862 aos setenta e três anos, foi escritor, inventor e especialista em aerostação.
324 Edições da Revista Espírita de maio até julho de 1862, de março e de agosto de 1863.
325 O céu e o inferno, segunda parte, capítulos II, III e VIII.
326 O evangelho segundo o espiritismo, capítulo XI, item 10.
327 C. S. Bastos, Coadjuvantes da Codificação Espírita. Portal Luz Espírita e Autores Espíritas Clássicos (2020), p. 42. Link de acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L178.pdf; acesso em: 09/08/2022.
328 Antoine Jules Napoléon Canaguier (1832-1895), representante comercial e futuro membro do comitê da SPEE de 1870.
329 Na verdade há nove anos e três meses.
330 Este pó, usado contra convulsões em crianças, era composto de visco de carvalho, raiz de dictamnus, chifre de veado, raiz de peônia e carbonato de amônia.
331 Aproximadamente, cento e onze quilômetros.
22. Os Espíritos de O céu e o inferno

Falamos da identidade de vários médiuns, cujas mensagens dos Espíritos comunicantes foram aproveitadas também em O céu e o inferno, como o Sr.
D’Ambel, o Sr. e a Sra. Costel, o Sr. Vézy, a Sra. Cazemajour, o Sr. Alfred Didier, a Srta. Ermance Dufaux e o Srs. Rul e Leymarie. Ainda falaremos sobre
o Sr. Desliens, mas não dos seguintes personagens: a filha da Sra. F.; os Srs. Aubert e Charles V.; o Sr. e a Sra. Forbes; as Sras. C. de Bruxelas, C. de
Bordeaux, Estefânia, Patet e Xavier (Sra. X.). Destes, obtivemos a identidade apenas do Sr. e Sra. Forbes332, e da Sra. Patet333.
Agora abordaremos alguns Espíritos endurecidos de O céu e o inferno que quando encarnados foram Lapommeray e a rainha de Oude. Veremos ainda o
suicida da Samaritana. Depois, conheceremos a identidade dos Espíritos felizes Srta. Emma, Dr. Vignal e Sixdeniers; o Espírito em condição média Joseph
Bré; e os criminosos arrependidos Verger, Lemaire e Jacques Latour334. Sobre os Espíritos felizes Sanson, Jobard, Dr. Demeure335, viúva Foulon336, Jean
Reynaud e Antoine Costeau337, não comentaremos338.
Vamos identificar primeiramente um Espírito que usou a Sra. Costel como médium. Trata-se de Lapommeray. Encontramos uma comunicação dele, no
capítulo VII da segunda parte de O céu e o inferno, trazendo informações sobre sua situação após a morte. Também se manifestaram sobre o caso:
Lamennais, através do Sr. Alfred Didier, Erasto, através do Sr. D’Ambel, e Jean Reynaud, igualmente pela Sra. Costel.
Eis a sua história segundo a justiça terrena: seu nome era Edmond Désiré Couty de la Pommerais, médico homeopata, jogador compulsivo e assassino,
que envenenou sua sogra e sua amante. Nascido em 1830, foi executado pela guilhotina em junho de 1864. O motivo? O assassinato da Sra. De Pauw, sua
amante, para pegar o dinheiro do seguro em 1863. Ele também teria assassinado em 1862 a Sra. Dubizy, sua sogra, para pegar a herança. O método
utilizado nos assassinatos foi envenenamento por dedaleira339.
Vejamos como tudo aconteceu: ele encontrou a Sra. Dubizy em um ônibus340, ouvindo que ela havia herdado uma certa quantia de dinheiro a seguiu para
descobrir sua casa e conseguiu apresentar-se à sua família. Acabou se casando com sua filha. Pommerais já sabia que a sogra possuía cerca de 2.000
libras341, e que após a sua morte iria para sua esposa sem qualquer restrição. Não muito depois de seu casamento, a Sra. Dubizy, cuja saúde era excelente,
morreu repentinamente, com sintomas fortemente sugestivos da ação de um veneno violento. Se ela foi assassinada por seu genro ainda era uma questão
em aberto, já que ele não foi levado a julgamento por essa acusação. Pommerais recebeu seu dinheiro, mas uma quantia pequena, incompatível com seus
desejos, e então foi que ele concebeu outro esquema.
Ele renovou suas relações com a Sra. De Pauw, viúva, que estava feliz em encontrar seu antigo amante, e disse a ela que tinha concebido um projeto pelo
qual poderia fazer uma ampla provisão para ela e para seus filhos. Ele propôs segurar sua vida por 22.000 libras, pagando o primeiro prêmio anual, que
seria de 758 libras; e disse a ela que, se logo após a operação, ela fingisse estar gravemente doente, a empresa compraria as apólices de bom grado dando-
lhe uma renda anual de 240 libras, das quais ele receberia metade do reembolso de sua pensão. Ele fez os seguros através de um corretor, e pagou o prêmio,
provavelmente com o dinheiro que herdou da Sra. Dubizy. Quando disse a ela que havia chegado a hora de simular uma doença grave, deu-lhe drogas que
produziriam o aparecimento de sintomas alarmantes. O fim logo chegou. Quanto mais ele a visitava, pior ficava, e por fim ela morreu em terrível agonia,
apenas duas ou três horas depois que a deixou pela última vez.
Para demonstrar a presença da dedaleira no corpo de Pauw, o patologista forense Ambroise Tardieu injetou em sapos um extrato com o vômito recolhido
da vítima, bem como uma solução padrão. As reações daqueles sapos injetados com o padrão e aqueles injetados com o extrato eram exatamente as
mesmas! Esta prova foi exibida no tribunal e, em 9 de junho de 1864, Pommerais foi condenado por assassinato e executado.
A mensagem do Espírito assassino, recebido pela Sra. Costel, deve ter sido obtida naquele mesmo mês.
As conclusões e o testemunho de Tardieu sofreram uma crítica em 1865 no The American Journal of the Medical Sciences, vol. 50, mas já era tarde, a
sentença já havia sido cumprida.

Fig. 24: Retrato de Couty de la Pommerais


Fonte: Museu Carnavalet

No capítulo VII da segunda parte de O céu e o inferno, temos a presença de outro Espírito endurecido, a rainha de Oude ou Aúde, um reino da Índia
localizado entre o Ganges e o Himalaia, hoje parte do estado de Uttar Pradesh:
(...) Sob que forma estais aqui? – R. Sou sempre rainha... pensas que cessei de sê-lo? Vós sois pouco respeitosos... sabei que se fala de outro modo com rainhas (...).

A médium foi a Srta. Ermance Dufaux, cuja identificação foi possível em virtude da mesma comunicação estar na Revista Espírita de março de 1858. Tal
rainha se chamava (Janab-i-Alia) Malika-i-Kishwar Bahadur, falecida no Hotel Laffitte de Paris, em 24 de janeiro de 1858. Foi enterrada no famoso
cemitério Père Lachaise e era mãe de Nawab Wajid Ali Shah, que tinha Begum Hazrat Mahal342 como segunda esposa. A rainha tinha ido à Europa para
interceder em favor do filho, que havia perdido seu reinado para os ingleses.
Fig. 25: Funerais da rainha de Oude
Fonte: Coleção de C. Kempf

Entre os suicidas de O céu e o inferno, temos o da Samaritana. O jornal satírico Tintamarre diz que o Le Constitutionnel lhe atribuiu quarenta anos, o Le
Courrier de Paris, cinquenta e cinco anos, e que assim os jornais de grande formato acabariam por admitir que este homem morreu de velhice nos “Banhos
da Samaritana”. Na verdade, ele havia se cortado com uma navalha, inclusive na carótida. Obviamente, não conseguimos sua identidade.
O local chamado “Banhos da Samaritana” era uma construção flutuante no Sena contendo banhos públicos. O elegante e impressionante navio continha cem banheiras, colocadas em
pequenos cubículos distribuídos em dois andares. Se podia ir para um banho simples ou para banhos medicinais, banhos de vapor, duchas e hidroterapia. As chaminés das caldeiras de
aquecimento com sua decoração de palmeiras de metal eram famosas em toda a Paris. O “Bains de la Samaritaine” desapareceu em 1919, afundado por uma enchente do Sena.

Em O céu e o inferno foi usado como referência um jornal que lhe atribuiu cerca de cinquenta anos. O suicida foi evocado no dia 13 de abril de 1858,
seis dias após sua morte:
(...) Que motivo o levou ao suicídio? – R. Estou morto?... Não!... Estou em meu corpo... Não sabeis quanto sofro!... Eu sufoco!... Que uma mão piedosa venha dar-me um fim (...).

Fig. 26: Banhos da Samaritana


Fonte: Museu Carnavalet

Comecemos agora a conhecer os Espíritos felizes, com a comovente história da Srta. Emma Livry. Uma mensagem dela em O céu e o inferno foi obtida
através da Sra. Costel:
(...) Desprendi-me da Terra qual fruto maduro que se destacasse da árvore antes do tempo. Eu não tinha sido tocada pelo demônio do orgulho que estimula as almas desditosas, arrastadas pelos
sucessos embriagadores e brilhantes da juventude. Bendigo, pois, o fogo, o sofrimento, a prova, que não passavam de expiação. Semelhante a esses brancos e leves fios do outono, flutuo na torrente
luminosa, e não são mais as estrelas de diamante que me rebrilham na fronte, mas as áureas estrelas do bom Deus.

Seu nome era Jeanne Emma Emarot, nascida em Paris, em setembro de 1841. Vítima de um acidente no palco da Ópera de Paris, ela morreu em julho de
1863.
Em 15 de novembro de 1862, durante um ensaio da ópera La Muette de Portici, Emma Livry chegou muito perto da rampa de gás que iluminava o palco.
Seu tutu de gaze pegou fogo e este a envolveu muito rapidamente. Transformada em uma tocha viva, ela cruzou o palco três vezes antes que um bombeiro
tivesse tido tempo de correr para ela. Percebendo que estava prestes a ficar nua, Emma Livry piorou suas queimaduras pegando os pedaços do material em
chamas com as mãos para se cobrir com eles. O que restou de sua fantasia estava na palma de sua mão. Acreditando que estava fazendo a coisa certa, sua
professora, a ex-dançarina Marie Taglioni, a untou com graxa. O remédio acabou sendo pior do que a doença. Em 15 de julho de 1863, a conselho de seu
médico, que lhe ordenou que abandonasse a poluição parisiense, foi transportada para o castelo de Villiers, em Neuilly-sur-Seine, alugado por sua mãe.
Infelizmente, suas feridas reabriram durante o transporte e infeccionaram. Ela morreu de sepse no dia 26 de julho, oito meses após a tragédia, levando
consigo uma época que marcou a história do balé romântico. Ela tinha vinte e um anos de idade. Parte do cinto de Emma e um pedaço de tecido estão
mantidos nas vitrines do Museu da Ópera.

Fig. 27: Fotografia de Emma Livry no papel-título do balé La Sylphide, de 1862, em Paris
Fonte: Domínio Público343

Passemos agora ao Sr. Vignal, com a mensagem trazida pelo médium Sr. Desliens. Seu nome era Etienne Theodore Vignal, autor da tese Ensaio sobre as
queimaduras. Ele faleceu em março de 1865. Conforme seu registro de óbito, ele morreu no dia 26, e não no dia 27, como está em O céu e o inferno e na
edição original de maio da Revista Espírita daquele ano344. Desencarnou celibatário aos sessenta e um anos de idade no 10º arrondissement de Paris,
mesma cidade onde nasceu.
Foi acusado em 1853 de pertencer à uma sociedade secreta, a Liga Federal, que conspirou contra a vida de Napoleão III, denúncia negada pelo Dr.
Vignal. Tinham encontrado dois sabres e duas pistolas carregadas na sua casa (para defesa pessoal, como ele alegou). Ainda assim foi condenado a seis
meses de prisão, cem francos de multa e um ano de privação dos direitos civis, junto com outros vinte e dois réus.
Terminamos a abordagem dos Espíritos felizes com Sixdeniers. Numa comunicação de 11 de fevereiro de 1861, dada em Bordeaux, e reproduzida em O
céu e o inferno, descobrimos que ele foi conhecido do médium durante a vida.
Seu nome era Alexandre Vincent Sixdeniers, casado, entalhador, que se afogou acidentalmente em Paris, em 10 de junho de 1846, com a idade de
cinquenta anos. A filha mencionada em O céu e o inferno era Henriette Cléonie, falecida em 1852, aos vinte e três anos de idade, seis anos após o pai. O
acidente aconteceu no Sena, na Pont-au-Change. Os jornais da época trazem várias notícias sobre o assunto, como: “Morreu num domingo de uma maneira
muito infeliz. Ele havia formulado o projeto de descer o Sena de barco com alguns amigos, da Ponte Louis Philippe até Auteuil; mas ao chegar na Pont-au-
Change, o barco bateu no reforço de um dos arcos, e virou. Imediatamente desapareceu na água”.

Era um entalhador conhecido, participante de várias edições do Salão de Paris. Algumas de suas obras podem ser encontradas no British Museum.

Fig. 28: Retrato de Alexandre Vincent Sixdeniers


Fonte: Museu Carnavalet

O Espírito em condição média Joseph Bré poderia ser Jean Jacques Bréard, avô de Émilie Collignon. Seria ele o mesmo Joseph das comunicações de O
evangelho segundo o espiritismo: “A indulgência”345 e “A fé, mãe da esperança e da caridade”346? Para a primeira mensagem acreditamos que sim, pois
depois de publicada em 1864 na Imitação do evangelho (com o nome do Espírito Joseph e não da médium), foi republicada no La Lumière pour tours de
15 de março de 1865 (com o nome da médium Sra. Collignon, e não do Espírito). Outra evidência que liga ambos os personagens está no Le Sauveur des
peuples de 5 de junho de 1864, onde Joseph aparece como guia da Sra. Collignon.
Quanto a esta mudança de nomes, Joseph x Jacques, temos a troca em vários outros exemplos de personagens que participaram da história do
Espiritismo: Alexandre x François Delanne, Émile x Antoine Sabo, Antoine x Julien Costeau etc.
Prosseguimos falando agora sobre os criminosos arrependidos.
O padre católico Jean Louis Verger foi o assassino do arcebispo de Paris, do qual temos apenas alguns detalhes a acrescentar: uma das motivações do
crime seria o fato dele não aceitar o celibato clerical e o dogma da Imaculada Conceição. Todo seu processo, até sua condenação à morte, foi encontrado
nos jornais da época. Foi guilhotinado em 30 de janeiro de 1857, aos trinta anos de idade. Pouco antes de sua execução, ele pediria perdão por seu crime e
suas faltas, e se confessaria ao capelão347, diferentemente do que é informado em O céu e o inferno, ou seja, talvez as últimas palavras, quando ainda vivo,
não refletiriam realmente o que ele sentia.
A comunicação de Verger foi obtida por um dos médiuns da primeira edição de O livro dos espíritos, pois ela também aparece na nota XII do item 268
da primeira edição.
A mensagem de Lemaire, outro criminoso arrependido de O céu e o inferno, é a mesma da Revista Espírita de março de 1858, portanto obtida por
Ermance Dufaux.
Ferdinand Henri Lemaire foi julgado junto com seu bando e condenado à morte em novembro de 1857 por cinquenta roubos, três assassinatos e dois
incêndios. Podemos conhecer sua história em Causas famosas348: “Ao chegar na prisão, Lemaire não revela nenhuma preocupação; seu olhar ainda está
opaco, hebetado, sua boca conservava aquele sorriso estúpido que havíamos notado no decorrer dos debates [do julgamento]”. Foi decapitado no meio de
uma imensa planície acerca de oitocentos metros de Rosières-en-Santerre, aos vinte e cinco anos de idade, na manhã de 31 de dezembro de 1857.
Concluímos com a comunicação do criminoso arrependido Jacques Latour, obtida pelo médium Sr. Rul. Esta mensagem está entre outras trazidas por
uma médium de Bruxelas, um dia após a morte desse personagem. Assim como Lapommeray, Latour foi condenado à guilhotina. Algumas das
comunicações pelo Sr. Rul foram publicadas também na Revista Espírita de novembro de 1864, e foram obtidas em 4 e 5 de outubro, três semanas depois
da desencarnação do Espírito. Eis um resumo da sua história, segundo a justiça humana:
Em 25 de fevereiro de 1864, assassinou quatro pessoas com um machado. Jacques Latour, nascido na minúscula Sentein, no departamento de L’Ariège,
na fronteira com Andorra e Espanha, foi preso com seu cúmplice François Audouy. Foi condenado à morte e guilhotinado em público em 12 de setembro
na capital do departamento, Foix. Audouy foi condenado a trabalhos forçados por toda a vida em Caiena, capital da Guiana Francesa.
Uma carta enviada ao jornal The Aberystwith Observer nos dá a descrição das últimas horas de Latour349:
Parece que no domingo Latour recebeu o capelão da prisão com respeito, e ouviu suas orações e exortações com aparente atenção, aceitando até um crucifixo e alguns livros que ele havia
recusado anteriormente. Esse estado de espírito melhorado durou até que o carcereiro entrou em sua cela às 5 horas para algemá-lo. Latour pareceu surpreso; mas o carcereiro, que o tratou com
a maior paciência, explicou com grande cautela que sua última hora se aproximava, pois a execução seria às sete da manhã seguinte. Por um momento Latour pareceu atordoado, depois ficando
perfeitamente furioso, ele irrompeu na linguagem mais temerosa, xingando os juízes, o júri e a sociedade em geral – “Os demônios, o antropófago e aquele capelão, um auxiliar de Satanás, talvez
Lúcifer encarnado”. Seus uivos e gritos de raiva pareciam excitá-lo ainda mais e, pegando o crucifixo com as mãos algemadas, ele o quebrou em pedaços com os dentes, cuspindo os fragmentos
com uma raiva concentrada que era horrível de testemunhar. De repente, ele correu para os livros e, jogando-os no chão, disse zombeteiro: “Ah, o velho capelão ficará encantado quando ele vier,
mas ele não precisa aparecer – cuidado!”. Então, ouvindo um toque na porta de sua cela, “Ah, aqui está o sujeito, Satanás – Lúcifer! Vou informá-lo que amanhã vou cantar ‘De la Dargouille’
[talvez ‘De la Gargouille’] (uma canção muito obscena). Isso vai ser divertido! O capelão idoso, cuja paciência e devoção ao miserável foram além do elogio, pediu então uma entrevista final.
“Vê-lo? Não eu; Só quero ver os carrascos”. Às seis da manhã de segunda-feira, porém, o capelão estava presente, determinado a cumprir seu dever até o fim. “Velho pecador, o que você quer?”
foi a saudação de Latour. “Lúcifer, ‘avaunt’! Vá e veja seu amigo Satanás. Ah, como ficarei feliz em vê-lo! Jacques Latour não é homem para temê-lo. Será o contrário – Satanás terá medo dele!”
Trouxeram-lhe o desjejum, que ele havia pedido na noite anterior. “Isto é bife de primeira”, disse ele, mas eu deveria ter preferido uma fatia da minha própria perna, e se alguém tivesse frito um
pouco para mim eu teria agradecido!” Às 6h45, os policiais vieram levá-lo à carruagem. Enquanto caminhava pelos corredores, ouviu um dos cavalos relinchar. “Ah, ouço Rosinante, cavalo de
Dom Quixote de la Mancha”. Então, vendo a jovem filha do carcereiro, gritou: “Ah, aí está Dulcinéia Toboso, a senhora dos meus pensamentos. Bom dia, Dulcinéia”. Ele queria caminhar até o
local da execução, mas como chovia ele entrou na carruagem, o velho capelão seguindo a pé evidentemente absorto em oração e parecendo profundamente angustiado. Um piquete de soldados
cercou o cadafalso e várias brigadas de policiais. A multidão era enorme, mas perfeitamente silenciosa, mesmo quando a carruagem estava à vista, Latour de pé nela e cantando em voz alta “La
Mère Gaspard”, uma música muito popular entre o povo, Ele quebrou um dos vidros com a cabeça antes de sair da carruagem: ao chegar ao pé do cadafalso, o capelão tentou novamente falar
com ele. Latour virou-se para o carrasco e subiu os degraus do cadafalso, cantando com uma voz tão estentórea que cada palavra era ouvida pelo lugar, a paródia que ele mesmo compôs sobre a
Marseillaise:

Vamos, pobre vítima,


O dia da sua morte chegou.

Contra você da tirania

A lâmina sangrenta é levantada!

Ele continuou a cantar na plataforma e enquanto ele estava sendo amarrado ao basculante. Literalmente, o som de sua voz só cessou quando sua cabeça caiu na cesta sob a guilhotina. Não
houve a menor expressão de simpatia entre a multidão, que parecia totalmente enojada.

Este último Espírito pesquisado de O céu e o inferno se comunicou pelo médium Sr. Rul.

332 Hugo (ou Hugh) Frederick Forbes (1808-1892) e Laura Passerini Corretesi (2ª esposa).
333 Louise Adélaïde Elisa Didier ou Elisa Adélaïde Didier.
334 Para a lista completa de Espíritos e médiuns identificados de O céu e o inferno, ver o apêndice 3.
335 Antoine Jean Demeure, faleceu em 1865 aos setenta e um anos.
336 Noemie Victoire Wollis, viúva do Sr. Esprit Michel Foulon, faleceu em 1865 aos sessenta e cinco anos.
337 Julien “Antoine” Costeau (1814-1863), capataz (contremaître) e calceteiro (ouvrier paveur).
338 Dados biográficos sobre alguns destes Espíritos estão disponíveis em: C. S. Bastos, Coadjuvantes da Codificação Espírita. Portal Luz Espírita e Autores Espíritas Clássicos (2020). Link de acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L178.pdf; acesso em:
09/08/2022.
339 A dedaleira pode ser usada para fins medicinais, por conter digoxina, um importante medicamento cardíaco prescrito em casos de arritmia ou insuficiência cardíaca. Em doses altas e se administrada a pessoas que não necessitam, pode provocar um ataque
cardíaco e, finalmente, a morte.
340 Obviamente de tração animal.
341 A moeda é libras porque a notícia saiu num jornal inglês.
342 Ela é conhecida pelo papel de liderança que teve na Rebelião Indiana de 1857 contra a Companhia Britânica das Índias Orientais.
343 Link de acesso: commons.wikimedia.org/wiki/File:Emma_Livry_-Sylphide_1.JPG; acesso em: 09/08/2022.
344 Em algumas traduções da Revista Espírita aparece dia 25 como o dia do óbito.
345 Capítulo X, item 16.
346 Capítulo XIX, item 11.
347 A. Bayvet, “Derniers moments de Verger”, L’Écho rochelais, 29º ano, nº 10, 4 de fevereiro (1857), p. 2.
348 A. Fouquier, Causes célèbres de tous les peuples, vol. II, caderno 10. Lebrun et Cie, Paris – France (1859), p. 1. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k425328/f365.item; acesso em: 09/08/2022.
349 “Last hours of a murderer”, The Aberystwith Observer, vol. 7, nº 328, 24 de setembro (1864), p. 3. Link de acesso: papuraunewydd.llyfrgell.cymru/view/3037836/3037839; acesso em: 09/08/2022.
23. A saúde de Kardec e os últimos anos da Codificação

De 1865 até 1869 Allan Kardec ficou mais na Villa de Ségur do que na SPEE. Se entre 1860 e 1865 tinha feito várias viagens, inclusive à Bélgica e à
Suíça, estas diminuiriam neste novo período350.
Na primavera de 1866 ele teve alguma doença que lhe provocou uma sonolência e absorção quase contínuas até o verão351. No outono daquele ano, ele
teria tido um AVC ou, como ele descreveu, esteve muito doente de um derrame (très malade d’une congestion cérébrale); sem contar que depois ele
passou mal por todo o inverno.
No ano seguinte, em uma viagem à Bordeaux, Allan Kardec mencionou em seu discurso o termo “kardecista”352:
Os espíritas, qualquer que seja o matiz de suas posições – sejam americanos ou europeus, kardecistas, como se diz, ou outros, seja qual for o nome que se lhes dê –, devem todos, portanto, se
forem coerentes com seus princípios, dar-se as mãos, considerando que marcham na direção do mesmo objetivo: a emancipação moral da humanidade.

Nesta época, ele já recebia de seis a oito mil cartas por ano.
Entre as correspondências de 1867 encontramos um pedido de ajuda de Allan Kardec a uma criança de oito anos de uma família necessitada, a fim de que
ela pudesse aprender agricultura nas lides da fazenda.
Em 1868, ele iria só uma vez por semana à Rua Sainte Anne, sede da Sociedade. Numa carta de 26 de abril de 1868 enviada a Grand-Pré em Genebra,
cidade na Suíça onde residia, à Sra. Marie Antoinette Bourdin353, ele disse:
O lado esquerdo do peito ficou inchado e, assim que ando, sinto dores e sufocamentos que me obrigam a parar; então toda a máquina está emperrada, exceto a cabeça que ainda está livre, o que
é essencial para mim, pois é minha ferramenta de trabalho.

E acrescentou:
Desde minha grande doença em 1865, causada por reumatismo no coração e nos pulmões, nunca fiquei completamente curado, apesar de tudo o que fiz.

A doença parece ter sido miocardite ou pericardite causada por febre reumática.
No verão de 1868 ele teria tido outro AVC ou, novamente, “congestion cérébrale”.
A doença não o impediu de trabalhar.
As consequências morais do Espiritismo, em virtude da crença em Deus e nas suas leis, fizeram Allan Kardec se posicionar, ora favoravelmente, no final
de 1866, à constituição de uma religião354, ora contrariamente, deixando seus adeptos, quase dois anos depois, livres para continuar nas suas profissões de
fé, uma vez que o Espiritismo “pode congraçar-se com todos os cultos, isto é, com todas as maneiras de adorar Deus”355. Contudo, em nossa opinião
diríamos: “Diga-me o que entendes por religião, e eu te digo se o Espiritismo é ou não uma religião”356.
Até a sua desencarnação ele ainda manteve as publicações mensais da Revista Espírita, bem como escreveu o livro A Gênese, os milagres e as predições
segundo o espiritismo em 1867 e o revisou no final de 1868. O céu e o inferno também foi revisado na mesma época, além de ter publicado sua última obra
em 1869, o Catálogo racional de obras para se formar uma biblioteca espírita.

350 Com Amélie Boudet ele ainda foi pelo menos a Bordeaux, além de Bonneval, Orléans e Tours em 1867, onde se encontrou com o jovem Léon Denis, que narrou esta cena bucólica: “No dia seguinte, quando fui levar-lhe os meus cumprimentos, encontrei-o
nesse mesmo jardim, trepado num escabelo, colhendo cerejas para a Sra. Allan Kardec”, conforme p. 255 dos Anais do Congresso Espírita de 1925. Em 1868, Allan Kardec ainda foi a Bron.
351 Revista Espírita, junho (1866), p. 172.
352 [Discurso de Allan Kardec]. Disponível em: projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=180. Acesso em: 10/08/2022. Projeto Allan Kardec.
353 Famosa médium vidente do copo d’água, autora de vários livros, entre eles A mediunidade no copo d’água, instruções gerais dadas pelos espíritos. Teve ainda a perda da filha Laure, de apenas vinte anos, no Brasil.
354 [Prece de Allan Kardec]. Disponível em: projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=179. Acesso em: 10/08/2022. Projeto Allan Kardec.
355 Discurso de Allan Kardec na Revista Espírita de dezembro de 1868.
356 Quais os requisitos de uma religião? Ter cultos de adoração ou ofertas de cura alternativa, sejam milagres ou não? Ter uma ética aplicada à conduta moral, por exemplo, a ética da reciprocidade? Crer em Deus/deuses ou em dogmas, que a ciência material
não comprova? Acreditar em santos, anjos, demônios, elementais, Espíritos etc., bem como em penas e recompensas na eternidade? Teria que ter uma submissão à alguma hierarquia, ter livros de referência, considerados sagrados ou não, com uma narrativa
não científica da criação? Precisaria cultivar a oração ou ter rituais? Necessitaria de símbolos ostensivos?
24. Os últimos médiuns

Em 5 de março de 1869, participaram de uma sessão transcrita por Allan Kardec: os Srs. Desliens, Nivard, Morin, Bertrand e Leymarie. Não achamos
muita coisa sobre Nivard e deixaremos para falar depois de Desliens. Este último foi o terceiro secretário de Allan Kardec e único médium, além de
Camille Flammarion, a participar da quinta edição de A Gênese, com mensagens de Galileu.
O Sr. Morin, já mencionado quando da sessão sonambúlica sobre o Sr. D’Ambel, apareceu na lista de presença da SPEE, na reunião de 10 de março de
1865, com o endereço na Rua Grange-Batelière, nº 8, no já famoso 9º arrondissement. Era amigo do Sr. Bertrand, pois foi o Sr. Morin quem o apresentou à
Sociedade. Já o Sr. Morin foi apresentado pelo Sr. Ducanel.
O Sr. Morin recebeu, de 1865 a 1869, cerca de vinte mensagens que se encontram publicadas na Revista Espírita, entre elas de Demeure, Paulo,
Lacordaire, J. J. Rousseau e Jobard, mas nenhuma delas foi replicada em alguma obra fundamental. É dele também a mensagem encontrada na edição de
abril de 1868, sobre “O fim do mundo em 1911”; tema exageradamente recorrente desde sempre! É também dele a mensagem “Publicações espíritas”
inserida na segunda parte de Obras póstumas.
Daniel Dunglas Home em seu livro Luzes e sombras do espiritualismo diz que o Sr. Morin, médium inspirado, e não sonâmbulo muito lúcido, como
descrito na Revista Espírita, recebeu uma mensagem de Allan Kardec em 6 de novembro de 1869 na casa do Sr. Caussin357, arrependido de seu egoísmo e
lamentando a direção que tinha dado ao Espiritismo! Voltaremos a esta comunicação mais tarde.
Ele desencarnou em 1876, conforme a Revista Espírita de fevereiro de 1877. No seu registro de óbito achamos a data exata de falecimento em 19 de
junho, e a informação sobre uma das testemunhas, seu amigo e pintor Auguste Antoine Bertrand. No jornal Le Droit de 27 de outubro de 1867,
encontramos o nome e o domicílio do médium, Louis Joseph Félix Morin residente na Rue Grange-Batelière, nº 8, endereço que já conhecíamos,
confirmando assim a sua identidade. Ele nasceu em 27 de julho de 1841, em Valence, Drôme, casou-se com Marie Octavie Royer em 1868 em Paris; e
desencarnou também em Paris, com apenas trinta e quatro anos de idade. Teve pelo menos dois filhos, que se chamavam Émile François Adolphe Morin e
Jeanne Elise Morin.
No mesmo endereço do Sr. Morin e do Sr. Bertrand encontrado no registro de óbito do primeiro, a grande avenida chamada Boulevard Montparnasse, nº
161, morava também um possível irmão do segundo, o igualmente pintor, James Bertrand, autor de “Ophelia”, de 1872358.
Quanto ao Sr. Bertrand, descobrimos apenas sua provável data de nascimento: 1839. Ele era desenhista e litógrafo, e também um ótimo médium
escrevente, segundo aquela mesma Revista Espírita de janeiro de 1867. O Sr. Bertrand recebeu mais de sessenta mensagens, na verdade, comunicações
coletivas com algumas frases, e poucas mensagens mais extensas, de Demeure, Mesmer, Napoleão, General Bertrand, Luís XVI, Newton, Jean Reynaud,
François Arago, Eugène Sue, Jacques Arago, Alfred de Musset, São Luís, etc.; e depois de Sócrates, Platão, Fénelon, Voltaire, Lafontaine, Esopo, Molière,
J. J. Rousseau, Balzac, Pascal, Descartes, Lamennais, Lacordaire, Massillon, etc. Assim, sequencialmente, nos mesmos dias. Recebeu mensagens tanto na
SPEE quanto no grupo do Sr. Desliens e no grupo do Sr. Delanne, mas nenhuma delas foi aproveitada em alguma obra fundamental.
Fez uma litografia de Allan Kardec em 1866, onde registra seu nome: Aug. Bertrand.

Fig. 29: Litografia de Allan Kardec por Auguste Bertrand


Fonte: Coleção de E. Burin

Sobre o Sr. Nivard, só sabemos que era filho de Louis Nivard e que entre 1867 e 1869 trouxe apenas cinco mensagens que integraram a Revista Espírita,
nenhuma porém aproveitada por Allan Kardec nas obras fundamentais. A mensagem de Rossini da edição de março de 1869, “A música e as harmonias
celestes”, foi colocada na primeira parte de Obras póstumas como “Música espírita”, embora atribuída a Nivart. Este é provavelmente mais um erro
tipográfico desta última obra.

Fig. 30: Fragmento da comunicação de Lamartine, pelo médium Sr. Nivard, de 13 de março de 1869
Fonte: Museu Allan Kardec online

357 Jean Baptiste Caussin (1826-1893), vice-presidente da SPEE em 1870.


358 Este quadro foi leiloado nos dias atuais por mais de 650.000 reais.
25. A morte de Kardec

No final de 1868, sem contar as edições mensais da Revista Espírita, chegaríamos a mais de setenta e dois mil exemplares de obras colocados à venda,
com um lucro de aproximadamente 48% sobre o faturamento, ou seja, pouco mais de cinco mil reais por mês ao longo de toda a Codificação, e, mesmo
assim, este valor deveria ser compartilhado com o editor. O livro dos espíritos chegou à décima quinta edição, O livro dos médiuns à décima, O evangelho
segundo o espiritismo à quarta, O céu e o inferno à terceira e A Gênese, o último sucesso de vendas, à quarta edição359.
Chega então 1869... Na edição de maio do Spiritual Magazine encontramos:
MORTE DO SR. ALLAN KARDEC.

Senhor, – Uma carta que acabei de receber de Paris anuncia a partida repentina na quarta-feira, 31 de março, de um dos mais talentosos de nossos irmãos espiritualistas360, o Sr. ALLAN
KARDEC.

A causa imediata foi a ruptura de um aneurisma361 que o havia ameaçado há muito tempo, mas que ele esperava que fosse adiado até a conclusão de mais três trabalhos362, a serem adicionados a
suas valiosas contribuições à filosofia do Espiritualismo nos últimos 18 anos363.

Para conseguir isso com mais eficácia, ele já havia colocado a condução da Revista Espírita nas mãos de um comitê e renunciara à presidência da Sociedade Espírita de Paris.

O trabalho de mudança da Rua St. Anne, que há tanto tempo foi o centro do movimento espírita em Paris, para a Avenida de Ségur, onde o Sr. Kardec possuía uma pequena propriedade, parece
ter acelerado o triste acontecimento.

Que a Sra. Kardec, que sempre teve uma parte dedicada e eficiente nos trabalhos do marido, juntamente com a Sociedade de Paris, receberá a profunda simpatia de você e seus leitores pela
perda que sofreram, não posso duvidar.

Não havia evidências de que algum sofrimento físico tivesse sido experimentado – e uma comunicação subsequente, feita pelo espírito glorificado à Sociedade na sexta-feira após sua partida,
corroborou lindamente a garantia dada em O céu e o inferno, de que “a morte para o Espírito purificado é simplesmente um sono de alguns momentos, isento de sofrimento, e onde a vigília é uma
alegria indizível”. “Um fechamento adequado”, como minha correspondente, Sra. Anna Blackwell, acrescenta, “de uma vida de abnegação, devoção, trabalho incansável, constância inabalável e
caridade inesgotável que conquistaram para o Sr. Kardec uma afeição profunda e reverente do círculo – amplo como o mundo – daqueles a quem em meio ao ateísmo, materialismo e descrença da
época, seus ensinamentos trouxeram a luz da imortalidade.”

Cerca de oitocentas pessoas compareceram ao funeral no cemitério de Montmartre – um número que poderia ter duplicado, se tivesse sido concedido mais tempo entre a morte e o enterro.
Quando o caixão estava no lugar, Sr. Levent364, Presidente da Sociedade, leu o discurso e a oração. Ele foi seguido pelos Srs. Camille Flammarion, Émile Barroult365 e Coronel de Mallet366. É
doloroso registrar que a cerimônia solene e comovente foi interrompida pela interferência gratuita de um policial, pedindo aos oradores que terminassem um processo não sancionado pela
presença e cooperação de um padre.

Permita-me permanecer, sinceramente,

Woolston Lawn, Southampton, Rich. Beamish.

7 de abril de 1869.

E continuou:
Acabei de receber o seguinte relato da carreira do Sr. Allan Kardec. Os fatos foram fornecidos à minha correspondente pela própria Sra. Kardec. A declaração pode formar um apêndice
interessante ao aviso da morte do Sr. Kardec, se não for tarde demais para sua próxima publicação.

Allan Kardec nasceu em Lyon, em 4 de outubro de 1804. Seu nome de família era Rivail. Por esse nome, ele viveu, trabalhou e escreveu antes de sua conexão com o Espiritualismo367. Da razão
da mudança, posso falar outra hora. Seu pai era advogado, de uma família altamente respeitável, cujos membros mais velhos haviam cumprido os deveres da magistratura por muitas gerações. Sua
mãe, a quem ele estava profundamente apegado, e por cuja memória ele acalentava uma lembrança apaixonada, parece ter possuído não apenas grande beleza e atração pessoal, mas também ter
sido uma mulher altamente talentosa e um dos ornamentos mais brilhantes da sociedade de Lyon [sic].

Allan recebeu sua educação inicial na Instituição Pestalozziana de Yverdon, no Cantão de Vaud. Ele logo demonstrou sua aptidão em adquirir conhecimento, bem como seu amor por distribuí-
lo; poucas coisas lhe davam mais prazer do que ser autorizado a ajudar aqueles de seus companheiros de escola que eram menos avançados do que ele era.

Seu amor pela natureza era intenso. Ele é conhecido por passar dias inteiros nas montanhas vizinhas fazendo coleções para seu herbário.

Ao sair da escola, dedicou-se ao ensino e na tradução de várias obras francesas para o alemão. Para mais eficazmente realizar suas visões educacionais, ele, em 1824, passou a residir em Paris
e, quatro anos depois, comprou uma grande escola para meninos, que conduzia com tanta habilidade e sucesso, que em 1830 ele alugou um grande prédio na Rua de Sèvres368, para o qual
transferiu seus estudantes, e no qual ministrou, gratuitamente, palestras sobre Química, Astronomia, Anatomia Comparada, Frenologia e Magnetismo Animal369, para todos que desejassem
informações sobre esses assuntos importantes.

As aulas somavam mais de quinhentos e incluíam muitos indivíduos altamente distintos. Não obstante a grande quantidade de trabalho assim autoimposto, ele ainda encontrou tempo para
cumprir os deveres de secretário das Sociedades Frenológicas e Magnéticas370 e contribuir com uma série de obras elementares em Gramática, Aritmética e História da França para as Escolas
Universitárias francesas, que ainda são mantidas nessas escolas. Ele também elaborou um Livro de Memórias sobre Reforma Educacional, apresentado à Câmara Legislativa, discutido, admirado
e negligenciado.

Em 1862, convencido da realidade dos fenômenos espirituais, abandonou todas as outras atividades e dedicou-se exclusivamente à elucidação dos problemas complexos que o Espiritualismo
apresenta371. Para essa tarefa, ele trouxe grandes aquisições, julgamento amadurecido, oportunidades incomuns e um espírito verdadeiramente elevado e devocional que lhe permitiu tratar as
perguntas à medida que surgiam com uma perspicácia filosófica e sinceridade afetuosa, que operavam poderosamente na direção da mente de seus compatriotas ao conhecimento de seu destino
superior.

Sete obras admiráveis agora se seguiram em rápida sucessão, de sua caneta, a saber: O que é o espiritismo?; O espiritismo em sua expressão mais simples; O livro dos espíritos; O céu e o
inferno; O livro dos médiuns; O evangelho segundo o espiritismo e A Gênese. Esses trabalhos especiais tampouco esgotaram seu entusiasmo ou zelo. Ele não apenas organizou a “Société d’Étude
Psychologique”, à Presidência da qual foi reeleito ano a ano por unanimidade, mas continuou a editar a Revista Espírita até o final.
Resta apenas acrescentar que o Sr. Kardec é sucedido na Presidência da “Société d’Étude Psychologique” por seu valioso amigo Coronel Mallet (não “de Mallet”), que anunciou sua
determinação em deixar o exército para vender uma boa propriedade em Douai, e dedicar-se a seus novos deveres, nos quais é apoiado pela simpatia de sua amável esposa, que é ela mesma uma
excelente médium372.

Rich. Beamish.

19 de abril de 1869.

Fig. 31: Registro de óbito de Allan Kardec, 31 de março de 1869, II arrondissement


Fonte: Archives de Paris, cote: V4E 191, download de 24 de agosto de 2022

Allan Kardec foi enterrado no Cemitério de Montmartre, na rua 18, cova 1. Posteriormente seus restos mortais foram transferidos para o Cemitério Père
Lachaise, junto com os da sogra. A esposa, Amélie Boudet, também foi enterrada aí.
A sucessão patrimonial de Allan Kardec nos mostra que o inventário de Kardec estava no 6º Bureaux de Paris. Na primeira página do documento
constatamos que Amélie Boudet era a legatária universal nos termos do testamento hológrafo (escrito de próprio punho) de 26 de abril de 1846. Lá temos o
“reprises sur la communauté”, que são os bens adquiridos antes do casamento, além daqueles que foram incorporados ao patrimônio, durante a união, por
doação ou herança. Na segunda página, encontramos o total destes bens oriundos da viúva no valor de 60.276,31 francos. Na terceira e última página,
temos o patrimônio do casal no valor de 194.982 francos. Percebemos também o valor dos direitos de publicação e propriedade das obras de Rivail e de
Kardec: 20.000 francos. Por fim, uma dívida a receber da livraria responsável pelas quatro primeiras edições de A Gênese, no valor de 2.600 francos, talvez
referente à sua quinta edição. Na época os imóveis da Villa de Ségur já estavam avaliados em 169.600 francos.

359 Antes da sua morte, Allan Kardec ainda publicaria a décima sexta edição de O livro dos espíritos. Embora prontas, a quarta edição de O céu e o inferno e a quinta edição de A Gênese seriam publicadas postumamente, bem como todas as outras edições das
demais obras.
360 A correspondente, Anna Blackwell, não faz distinção entre espiritualistas e espíritas.
361 Embora aparentemente tivesse miocardite ou pericardite causada por febre reumática, além de ter tido AVCs, a causa da morte parece ter sido a ruptura de um aneurisma de aorta.
362 Flammarion só mencionou em seu discurso que Kardec trabalhava numa obra sobre as relações entre o Magnetismo e o Espiritismo, mas novas descobertas sugerem que Kardec pudesse estar escrevendo obras sobre religião e estado social antes de
desencarnar.
363 Como muitos ingleses, a correspondente também não faz distinção entre Espiritualismo e Espiritismo, embora defenda a reencarnação. Parece ainda estar convencida do início das atividades espíritas de Kardec em 1851, o que já foi demonstrado ser
improvável.
364 Jules Théophile Nestor Anatole Levent (1824-1888) era amigo do casal Kardec.
365 Na verdade, Barrault, mas apesar de suas ligações com o Espiritismo, a Revista Espírita de maio de 1869 aponta o Sr. Alexandre Delanne, como responsável pela terceira fala.
366 A Revista Espírita de maio de 1869 indica o Sr. E. Muller (e no índice o Sr. Émile Muller), mas acreditamos que tenha havido um engano e que, na verdade, se referisse mesmo ao Sr. Émile Malet. Henri Sausse também conta de duas cartas do Sr. E.
Muller ao Sr. Finet sobre a morte de Kardec. O Sr. Finet era gerente do jornal Le Spiritisme à Lyon e tinha um grupo mediúnico frequentado por Henri Sausse. Mas o verdadeiro amigo do casal Kardec era o Sr. E. Malet. Então, quem seria ele? Quando a
caminho de Bruxelas e Antuérpia, em 1864, Kardec passa por Douai, onde vivia o Sr. Malet, um oficial superior e homem de Ciência. Foi presidente da SPEE por menos de quatro meses, após a morte de Kardec. O autor das cartas ao Sr. Finet e um dos
oradores do funeral de Kardec deve ter sido, portanto, o coronel Émile Malet (1815-1890).
367 A correspondente novamente não faz distinção entre Espiritualismo e Espiritismo.
368 Como já vimos através de carta escrita pelo próprio Allan Kardec, o início do aluguel foi em 1831.
369 Nos cursos do Liceu Polimático nada encontramos sobre Frenologia e Magnetismo Animal, que parecem então ter sido objeto de palestras ocasionais.
370 Até hoje só encontramos evidências de suas atividades na Sociedade Frenológica de Paris.
371 Eis a data, segundo Amélie, em que Kardec abandona qualquer outra atividade não ligada ao Espiritismo. E novamente o termo espiritualismo em vez de Espiritismo.
372 A esposa de Malet se chamava Camille Demommerot.
Terceira fase

O período pós-Kardec:das polêmicas à ruína financeira


Imagem na sequência com as principais sociedades espíritas do período
1. O início do pós-Kardec

Amélie Boudet que havia secundado Allan Kardec na tarefa laboriosa373, depois da morte do marido, assumiu seu lugar. A Sra. Kardec exerceu os
direitos legais sobre as obras publicadas; da Revista Espírita, tendo como redator-chefe o Sr. Desliens; e da Livraria Espírita, que estava sob a direção do
Sr. Bittard. A licença de funcionamento (brevet) da Livraria, emitida em nome de Allan Kardec logo após a sua morte, foi oficialmente transferida à
Amélie Boudet em agosto de 1869.
O Sr. Malet, que seria o candidato de Allan Kardec após sua renúncia, foi eleito o novo presidente da SPEE.
Ainda em maio de 1869, Amélie Boudet declarou firmemente seus propósitos na edição daquele mês da Revista Espírita: “doar anualmente ao Fundo
Geral do Espiritismo o excedente dos lucros provenientes da venda dos livros espíritas e das assinaturas da Revista, bem como das operações da Livraria
Espírita, mas com a condição expressa de que ninguém, a título de membro do Comitê Central ou outro, tenha o direito de imiscuir-se neste negócio
industrial (...), já que pretende tudo gerir pessoalmente, programar as reimpressões das obras, as publicações novas, regular a seu critério os emolumentos
de seus empregados, o aluguel, as despesas futuras, numa palavra, todos os gastos gerais. A Revista estaria aberta à publicação dos artigos que o Comitê
Central julgasse úteis à causa do Espiritismo, mas com a condição expressa de serem previamente sancionados pela proprietária e pelo Comitê de Redação,
sucedendo o mesmo com todas as publicações, sejam quais forem”.
Em julho de 1869, foi fundada a Sociedade Anônima com participações e capital variável do fundo geral e central do Espiritismo, conforme premissas da
Constituição Transitória do Espiritismo, tendo a Sra. Kardec a maior participação, com 25.000 francos. A partir de agora a chamaremos simplesmente de
SA374. Os demais fundadores eram os Srs. Monvoisin375, Guilbert376, Desliens377, Bittard378, Tailleur379 e Joly380. Para equalizar a participação de todos os
acionistas foi adotado um sistema de votação que considerava um voto de mesmo peso por acionista, independentemente de seu percentual de participação.
Enquanto isso, no mesmo mês, o Sr. Malet demitiu-se da SPEE, retornando em janeiro de 1870 como vice-presidente.
Amélie Boudet foi eleita para o Conselho Fiscal da SA, ocupando esta função comprovadamente em pelo menos três exercícios financeiros: 1869/1870,
1872/1873 e 1874/1875. No relatório do Conselho Fiscal de 1870, uma informação merece ser destacada: a SA declarou ter confeccionado mercadorias
(obras) só a partir de 13 de agosto de 1869, de forma que todas as publicações posteriores à morte de Allan Kardec e anteriores a esta data foram
autorizadas e supervisionadas por Amélie Boudet e operacionalizadas por Bittard. Como ela trouxe mercadorias para compor o estoque da sociedade, no
valor de 11.000 francos, estas seriam as obras de Allan Kardec publicadas no período de transição gerido por ela, incluindo a quinta edição de A Gênese e a
quarta edição de O céu e o inferno.
Os eventuais lucros continuavam sendo reinvestidos.

Fig. 32: Retrato de Amélie Boudet


Fonte: Museu Allan Kardec online

Pouco mais de um ano após a desencarnação de Allan Kardec, a guerra Franco-Prussiana começou.
Vamos conhecer melhor dois personagens importantes desta época, mas que já tinham convivido com Allan Kardec: Flammarion e Desliens.

373 Revista Espírita, junho (1865), p. 165.


374 A SA mudaria de nome algumas vezes (para Sociedade para a continuação das obras espíritas de Allan Kardec, anônima e de capital variável, depois Sociedade Científica do Espiritismo e então Sociedade da Livraria Espírita, fundada por Allan Kardec),
mas manteremos a sigla.
375 Raymond Auguste Quinsac Monvoisin, famoso pintor, inclusive de quadros de D. Pedro II do Brasil, Joana d’Arc, Amélie Boudet e Allan Kardec, alguns deles espoliados pelos nazistas e não mais encontrados.
376 Gustave Achille Guilbert (1833-1874) fez parte do primeiro conselho fiscal da SA, junto com Amélie Boudet.
377 Armand Theodore Desliens (1843-1905) foi secretário de Kardec e era responsável pela Revista Espírita. Foi eleito administrador da SA, junto com Bittard e Tailleur.
378 Édouard Mathieu Bittard, nascido por volta de 1829, era responsável pela Livraria Espírita. Foi eleito administrador da SA, junto com Desliens e Tailleur.
379 Jean Marie Tailleur (1809-1885) era amigo do casal Kardec. Foi eleito administrador da SA, junto com Desliens e Bittard.
380 Hubert Joly (1820-1906) era amigo do casal Kardec, tanto que Amélie Boudet lhe deixou uma caixa de rapé de prata e corrente de ouro de seu marido, e para a filha dele um relógio de ouro com pedras e corrente de ouro Jasseron (o padrão Jasseron é o de
uma corrente de argolas). Marmorista, foi idealizador do dólmen do túmulo de Allan Kardec no cemitério Père Lachaise.
2. Flammarion e Desliens, ciência versus moral

Procuraremos enriquecer o muito que já se sabe da biografia do astrônomo Nicolas Camille Flammarion, trazendo novas informações, como por
exemplo, suas dúvidas em relação ao Espiritismo e à sua própria mediunidade.
Em 1899, encontramos, entre outros detalhes, estas declarações: “O [jornal] Débats conta a conversão de Camille Flammarion, que renuncia ao
Espiritismo para acreditar só na ciência” e “Ele supõe, portanto, que é sua própria mente, o espírito ‘exteriorizado’ de Flammarion, que traduziu apenas o
que se sabia de seu tempo (...)”381. Isto antes da publicação da segunda edição do livro As forças naturais desconhecidas de 1907382, onde ele ainda
explorou o assunto!
Será tudo isso verdade?
Uma série de debates e cartas se seguiram no Le Figaro. Vejamos alguns extratos da entrevista dada por Flammarion (CF) a Ed. Bourgès (ED) na edição
do dia 10 de julho:
ED: Olá querido mestre, o que está acontecendo e por que esta carta de abjuração?

CF: Fico espantado com o barulho que foi feito em meu nome por alguns dias, não escrevi nenhuma carta e não desisti de nenhum de meus estudos.

ED: Então, essa assim chamada abjuração é falsa?

CF: Absolutamente. Eu sempre estudo cuidadosamente todos os fenômenos psíquicos, e estou mais convencido do que nunca de que somos muito ignorantes (...)

Prosseguiu, então, explicando uma possível fonte do mal-entendido (seu artigo de 7 de maio de 1899 publicado no Les Annales politiques et littéraires),
reforçando que não havia abandonado os estudos destes fenômenos!
No entanto, na carta de 8 de maio de 1870 de Flammarion, então presidente honorário da SPEE, ao secretário honorário do Comitê de Espiritualismo da
Sociedade Dialética de Londres, Sr. George Wheatley Bennett, Esq.383, ele diz em alguns fragmentos384:
Senhor, tenho que me desculpar pela longa demora em responder às perguntas que seu Comitê me fez (...)

Nos últimos dez anos, tive muito interesse nos chamados “fenômenos espirituais”. Todo cientista deveria dizer, com o velho escritor romano, “Homo sum, et nihil humanum a me alienum puto”
[Sou humano, e nada do que é humano me é estranho]385 (...)

Dos que se autodenominam “médiuns” e “espíritas”, um número considerável são pessoas de inteligência limitada, incapazes de usar o método experimental para apoiar a investigação desta
ordem de fenômenos e, consequentemente, são frequentemente enganados por sua credulidade ou ignorância; enquanto outros, dos quais o número também é considerável, são impostores cujo
senso moral se tornou tão embotado pelo hábito da fraude que parecem ser incapazes de avaliar a hediondez de seu abuso criminoso da confiança daqueles que se dirigem a eles para instrução ou
consolo. (...) No entanto, não hesito em afirmar minha convicção, com base no exame pessoal do assunto, de que qualquer cientista que declare os fenômenos denominados “magnético”,
“sonambúlico”, “mediúnico” e outros ainda não explicados pela ciência, como “impossível”, é aquele que fala sem saber do que está falando (...)

Depois de uma afirmação tão categórica, quase não é necessário assegurar aos membros da Sociedade Dialética que adquiri, por meio de minha própria observação, a certeza absoluta da
realidade desses fenômenos.

Estabelecido este primeiro ponto, chego ao próximo ponto de sua investigação, viz. [nomeadamente], a explicação desses fenômenos. Com relação a este ponto, ainda não estou preparado para
fazer qualquer afirmação positiva (...)

Meu culto professor e amigo, Sr. Babinet, do Instituto, que tem se empenhado, junto com o Sr. E. Liais, (agora Diretor do Observatório do Brasil) e vários outros de meus colegas do
Observatório de Paris, para averiguar sua natureza e causa, não está totalmente convencido da intervenção dos espíritos em sua produção (...)

Nossa Terra, sendo um dos corpos celestes, uma província de existência planetária, e nossa vida presente sendo uma fase de nossa duração eterna, parece apenas natural (o sobrenatural não
existe) que deveria existir uma ligação permanente entre as esferas, os corpos e as almas do universo e, portanto, totalmente provável que a existência desse elo seja demonstrada, com o tempo,
pelo avanço das descobertas científicas.

Seria difícil subestimar a importância das questões assim apresentadas à consideração; e tenho visto com viva satisfação a nobre iniciativa que, através da formação de sua Comissão de
Investigação, foi tomada por um corpo de homens assim justamente eminentes como os membros da Sociedade Dialética, na investigação experimental destes fenômenos profundamente
interessantes.

Entre 1861 e 1863, Flammarion tinha participado, como secretário, de experiências realizadas regularmente uma vez por semana no salão da Srta. Huet,
já afastada da SPEE.
O responsável, em última instância, por Flammarion se tornar espírita foi Balthazar386, o Espírito gastrônomo da Revista Espírita de novembro de
dezembro de 1860. Numa carta que Flammarion enviou a Charles Burdy em novembro de 1861, foi mencionada uma sessão de efeitos físicos com aquele
Espírito. Dois dias antes, numa carta endereçada a Allan Kardec, ele solicitou seu ingresso na SPEE, dizendo: “(...) o Espírito causou uma série
impressionante de batidas e levantou uma mesa do chão, suspendendo-a no ar”.
O astrônomo contribuiu para o capítulo “Uranografia Geral” do livro A Gênese, com comunicações de Galileu. Nas quatro primeiras edições de 1868, ele
também participou com o texto “A ciência”. Sabemos disso porque na segunda série do livro Os habitantes do outro mundo, publicado por Camille
Flammarion, com mensagens obtidas principalmente pela Srta. Huet, encontramos uma mensagem de Galileu pelo médium C. F. intitulada “A ciência”.
Este texto, publicado em 1863 e, provavelmente, escrito por meio de Camille Flammarion, foi modificado por Allan Kardec e publicado em A Gênese.
Ainda assim, trazia uma mensagem que poderia ser considerada poética, mas que, em nossa opinião, não tinha nenhuma ideia relevante que justificasse
estar num subtítulo que tratasse de ciência, o que nos leva a afirmar que foi uma decisão acertada de Allan Kardec tê-la retirado na quinta edição.
Camille Flammarion sempre foi um personagem controverso no Espiritismo. Recusou a presidência da SPEE387 porque, segundo ele, “nove décimos dos
seus discípulos continuariam a ver, durante muito tempo ainda, uma religião mais que uma ciência, e que a identidade dos ‘Espíritos’ estava longe ainda de
ser provada”, denotando sua visão científica do Espiritismo, conforme explicou nas suas Memórias biográficas e filosóficas de um astrônomo, de 1912.
Apesar disso, se envolveu também com a teosofia388. Desde 1882 foi representante no Conselho Geral e vice-presidente da Parent Theosophical Society
(sociedade-mãe da teosofia), enquanto Leymarie, sempre questionado por mesclar Espiritismo com doutrinas místicas, não ocupou nenhum cargo de
direção, atuando apenas como um representante.
Nas suas Memórias, Flammarion cita ainda André Pezzani389 e qualifica-o de amigo: “como meu saudoso amigo Pezzani disse meio século atrás”.
Confirmamos a amizade pelas referências mais antigas do próprio Pezzani, respectivamente em 1869, no livro A filosofia do futuro, e em 1872, no livro
Uma filosofia nova: “recomendamos particularmente os belos escritos de nosso erudito amigo Camille Flammarion” e “foi magistralmente tratado pelo
nosso ilustre amigo Camille Flammarion”. Enfim, se eram amigos sinceros ou apenas protocolarmente, não sabemos, mas esta é mais uma informação na
contextualização do período pós-Kardec.

Fig. 33: Fotografia de Camille Flammarion aos dezesseis anos de idade


Fonte: Ministério da Cultura da França

Se Flammarion tinha um viés científico, Desliens parecia ter outro.


Armand Théodore Desliens, contador, nasceu em 3 de novembro de 1843, na comuna de Villeneuve-sur-Yonne, a cento e quarenta quilômetros de Paris.
Foi secretário de Allan Kardec, após a saída de Sabo, de 1866 até 1869. Foi também testemunha no registro de óbito de Allan Kardec.
Sua primeira aparição na Revista Espírita se deu em 1865. Na edição de setembro de 1868, foi publicada a mensagem de Galileu, cujo conteúdo foi
inserido na quinta edição de A Gênese, sob o título “Aumento ou diminuição do volume da Terra”. A mensagem foi uma resposta a uma questão de um
correspondente feita em relação à edição anterior de A Gênese. Portanto, não foi apenas Camille Flammarion que recebeu mensagens de Galileu inseridas
na última obra fundamental da Codificação.
Das dezenas de mensagens recebidas por Desliens e publicadas na Revista Espírita, entre as quais de São Luís, Rossini, Quinemant, Demeure e Moki,
que só teria se comunicado por meio dele, foi a do Dr. Vignal a aproveitada em O céu e o inferno, depois de sair na Revista Espírita de maio de 1865. O
Dr. Vignal é o mesmo da experiência com a evocação de pessoas vivas, de acordo com o boletim de março de 1860 da mesma Revista Espírita.
Na inauguração do dólmen druídico de Kardec, no cemitério do Père Lachaise, em 31 de março de 1870, lá pelas 2 horas da tarde, Desliens, num longo
discurso intitulado “O homem é espírito e matéria”, enalteceu a figura missionária de Kardec. Menos de duas semanas depois, em 12 de abril, fundou um
novo círculo espírita, na Rue des Batignolles. Aliás, ele já conduzia o “grupo Desliens” desde 1867.
Embora considerando “ciência e razão” como preciosos auxiliares, seu foco era “caridade, fraternidade e solidariedade”.
Um mês após o final da Comuna de Paris, numa carta de 27 de junho de 1871, publicada na Revista Espírita de setembro de 1871, Desliens renunciou à
diretoria da SA e à secretaria da Revista Espírita, alegando enfraquecimento geral e saúde instável. O espaço foi ocupado por Leymarie. Depois, Desliens
ainda se casou duas vezes, teve cinco filhos, três enteados, e desencarnou com quase sessenta e dois anos de idade.
Na sua carta de 1º de março de 1885, em manifestação sobre as acusações de adulteração e na defesa da quinta edição de A Gênese, confirmou que não
era militante da vida espírita há quatorze anos.
Desliens desencarnou em 11 de setembro de 1905, provavelmente na atual comuna de Boulogne-Billancourt, e foi transferido ao necrotério do Quai de
l’Archevêché, no 4º arrondissement de Paris. Nesta época, residia em Malakoff, comuna na região metropolitana da grande Paris. O registro de seu
segundo casamento foi apenas a oficialização de sua união, pois é de 29 de maio de 1900, quando seus cinco filhos (o primeiro era da primeira união) já
tinham nascido, e os dois últimos já tinham desencarnado.
Concluímos destacando que se Allan Kardec incluiu Os quatro evangelhos, de Roustaing390, no Catálogo racional de obras para se formar uma
biblioteca espírita, embora com as ressalvas necessárias, Desliens não as manteve na nota a seguir, de julho de 1870.
Evangelhos (os quatro), seguidos pelos Mandamentos, explicados em Espírito e em verdade pelos Evangelistas; por ROUSTAING, advogado em Bordeaux. – 3 vols. in-12; 10,50 francos. Paris,
Livraria espírita, Rua de Lille, 7.

Nós informamos nossos leitores que a Livraria espírita acaba de receber um número de cópias deste livro que se pensava estar completamente esgotado. Estes três volumes serão enviados
gratuitamente [apenas sem os custos de frete] aos nossos assinantes que nos solicitarem mediante uma ordem de pagamento de 10,50 francos, enviada ao Sr. Bittard.

Para o Comitê Administrativo, o Secretário-Gerente: A. Desliens.

Talvez influenciada pelos dirigentes Flammarion, Bonnemère391, Caussin392 e Morin393, a SPEE de 1870 caminhava para uma abordagem mais científica
do Espiritismo, enquanto a SA, através de Desliens, ainda permanecia apenas no aspecto moral.

381 O Leitor, “Revue des Journaux”, Le Figaro, 45º ano, ٣ª série, nº 181, 30 junho (1899), p. 3. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k284802n/f3.image.r=flammarion; acesso em: 10/08/2022.
382 A primeira edição de 1865, assinada com o pseudônimo de Hermès, não abordou o assunto.
383 Esquire é um título de cortesia acima da categoria de cavalheiro (gentleman) e abaixo da categoria de cavaleiro (knight).
384 London Dialectical Society, “M. Camille Flammarion”, Report of spiritualism, of the committee of the London dialectical society. Longmans, Green, Reader and Dyer, London – UK (1871), pp. 349-354. Link de acesso:
archive.org/details/reportofspiritua00lond/page/349/mode/2up; acesso em: 10/08/2022.
385 A frase é da obra Heauton Timorumenos de Publius Terentius Afer, mais conhecido como Terêncio, dramaturgo e poeta romano, nascido entre 195-185 AEC e falecido por volta de 159 AEC. A frase correta é: Homo sum, et nihil humani a me alienum
puto.
386 Alexandre “Balthazard” Laurent Grimod de La Reynière (1758-1837) era advogado, mas adquiriu fama durante o reinado de Napoleão I, por seu estilo de vida sensual e gastronômico. Era filho de Laurent Grimod de La Reynière, que o mantinha afastado
das pessoas por ele ter nascido com mãos deformadas. Foi o primeiro crítico público da culinária dos restaurantes que surgiram em Paris no final do século XVIII e floresceram sob o regime napoleônico. É também uma fonte de citações na literatura
gastronômica francesa, através dos oito volumes de seu Almanaque daqueles que amam a boa cozinha (Almanach des gourmands), que editou e publicou de 1803 a 1812. Foram estes os primeiros guias de restaurantes. Reunia-se semanalmente com amigos
para jantar no Hôtel Grimod de La Reynière. Os pratos eram enviados pelos principais restaurantes de Paris para julgamento. Ele herdou a fortuna da família, casou-se com sua devotada amante, deu seu próprio funeral em 1812 para ver quem viria e depois
retirou-se para o Château de Villiers-sur-Orge, perto de Paris, cerca de nove quilômetros de distância de Juvisy-sur-Orge, onde Flammarion estabeleceu seu observatório em 1883.
387 Camille Flammarion acabou aceitando ser presidente honorário em 1870.
388 A teosofia é considerada hoje um conjunto de ideias religiosas e místicas.
389 Pezzani, segundo aqueles que creem na adulteração da quarta edição de O céu e o inferno, é peça-chave, pois defenderia uma moral oposta à de Kardec.
390 Jean-Baptiste Roustaing (1805-1879), advogado e escritor francês, presidente da Ordem dos Advogados de Bordeaux entre 1848 e 1849.
391 Joseph Eugène Bonnemère (1813-1893), historiador e escritor francês, presidente da SPEE em 1870.
392 Jean Baptiste Caussin (1826-1893), vice-presidente da SPEE de 1870.
393 Louis Joseph Félix Morin (1841-1876), médium e primeiro secretário da SPEE em 1870.
3. A cizânia entre as sociedades

Em 1870, tínhamos duas sociedades responsáveis pelo legado de Allan Kardec: a SPEE, que deveria continuar com os trabalhos mediúnicos como nos
tempos da Codificação; e a SA, que seria responsável pela divulgação das obras de Allan Kardec através da Livraria Espírita e, também, da Revista
Espírita, principal fonte de recursos materiais. A SPEE se manteria através das mensalidades dos associados e a SA através das vendas de revistas e livros.
Os lucros seriam reinvestidos na própria SA. Instituições acessórias e complementares ao seu comitê central não chegaram a ser implementadas (biblioteca,
museu, dispensário médico, caixa de assistência, asilo etc.)394. Este arranjo parece ter provocado conflitos.
Uma mensagem pelo médium Leymarie, resultado de uma evocação de 10 de abril de 1870 de Baluze395, trouxe uma intrigante informação396: “(...) o
mestre Allan Kardec estava esperando, confiando demais em certos conselhos; ele partiu de repente e sem um homem dedicado, sem Bittard, não só a Sra.
A. Kardec teria deixado a obra desmoronar, porque ela não tem o bom senso para dirigir; mas os benevolentes teriam destruído por vinte anos a obra do
Mestre, que se salva graças a um homem de grande senso e egoísta de boa escola (...)”. A comunicação se referia a Édouard Mathieu Bittard, um dos
fundadores da SA e gerente da Livraria Espírita, e trazia uma importante revelação: “A última luta entre a SA e a sociedade espírita [SPEE] foi
desencadeada por nós [os Espíritos] com o apoio do mestre [Kardec], cada um tirou a sua insígnia (cocarde), todos os interesses foram colocados em jogo e
agora este homenzinho que se chama Bittard e, no entanto, tão preciso, tão matemático, conhece as máscaras e os rostos, você pode confiar nele (...)”397.
Já tínhamos conhecimento que em 6 de novembro de 1869, dois integrantes da nova diretoria da SPEE de 1870, o Sr. Caussin (segundo vice-presidente)
e o Sr. Morin (primeiro secretário), apresentaram uma suposta e improvável “confissão póstuma” de Allan Kardec, da qual agora reproduzimos alguns
fragmentos398:
Sr. Morin, médium, sonâmbulo falante.

Comunicação dada na casa do Sr. Caussin, Rua St. Denis, nº 345, em 6 de novembro de 1869.

Allan Kardec falando pela boca do Sr. Morin. Sua confissão póstuma.

Durante os últimos anos de minha vida, eu trabalhei com o cuidado de deixar de lado todas as inteligências, todos os homens cercados de estima pública, e que, trabalhando na ciência espírita,
poderiam ter monopolizado para eles uma parte dos créditos que eu desejei só para mim.

(...)

O Espiritismo arrastou-se para as profundezas do ridículo, representado apenas por personalidades ínfimas, as quais me esforcei demais para elevar.

(...)

De um ponto de vista da filosofia, pouco resultado. Para algumas inteligências, quantos ignorantes!

De um ponto de vista religioso, quantos supersticiosos que saíram de uma superstição para cair em outra!

Consequências de meu egoísmo.

Se eu não tivesse descartado as inteligências transcendentais, o Espiritismo não seria representado exclusivamente, na maioria de seus seguidores, por adeptos vindos de dentro das classes
operárias, os únicos onde minha eloquência e meu saber poderiam ter acesso.

Allan Kardec.

Seria esta a razão do conflito? Vejamos as importantes informações que foram apresentadas no discurso de Eugène Bonnemère, presidente em exercício
da SPEE, na reunião mediúnica geral de 2 de fevereiro de 1870399:
SENHORAS, SENHORES,

A última reunião foi tão cheia que, por falta de tempo, o vosso novo Presidente não pôde, em seu nome e em nome dos seus colegas e colaboradores, expressar-vos o agradecimento conjunto
pela confiança com que vossos votos os honraram. Eles só pedem essa confiança por um ano. Em um ano, outros, sem dúvida mais capazes, serão apresentados ao seu voto e farão avançar o
trabalho que continuaremos. Porque é preciso entender que somos apenas os continuadores de Allan Kardec, nosso falecido mestre, e suas importantes obras que todos conheceis, os livros, nos
quais ele lançou os alicerces inabaláveis da doutrina espírita, são nosso ponto de partida e nossa base.

Claro, o Espiritismo não é um intruso no mundo. Existem ancestrais gloriosos, cuja antiguidade se perde na noite do tempo, e, sem ir além da nossa história, se os gauleses, nossos pais, não
temiam a morte e não temiam as dores da última hora, é que, entre os povos da antiguidade, só eles sabiam que estes poucos dias que passamos na terra são apenas uma das etapas que cada um
proporciona na eternidade. No entardecer da vida, eles adormeceram, confiantes, nos braços da natureza que reclamava seus corpos desgastados para torná-los os elementos rejuvenescidos de
novas existências, como a criança, que no entardecer de seu dia, adormece nos braços de sua mãe, e cujo olho semicerrado ainda vê o sorriso e cujo ouvido vagamente ouve a canção se esvair; ela
adormece, sabendo muito bem que o despertar não está longe e que, amanhã, os seus lábios encontrarão o seio materno sempre inesgotável.

Eles [os gauleses] acreditavam na segunda vista, compreenderam a importância da missão sacerdotal das mulheres, e suas Druidesas eram estáticas inspiradas.

A ciência faltava a esses homens da antiguidade. Chegou enfim, estendeu nossos horizontes, ou melhor, suprimiu todos eles, e agora sabemos que nossa vida imortal se agita no infinito do
espaço, como no infinito do tempo.

A América e a Inglaterra nos precederam neste campo. Mas é a glória de Allan Kardec ter adotado a criança que mal gaguejou suas primeiras palavras, tê-la acolhido sob sua asa, aquecido em
seu coração, iluminado com as luzes de sua inteligência, para torná-la o adulto que apenas temos que apresentar ao mundo.

A tarefa do Mestre era difícil. Tudo tinha que ser criado. Era preciso construir relações, criar simpatias, esclarecer os homens de boa vontade que buscavam a verdade, convencer os incrédulos,
desconcertar o riso, assegurar a fé hesitante dos novos convertidos. Allan Kardec fez de si mesmo o vertedouro absorvente onde tudo terminava, o pivô em torno do qual tudo girava sem se afastar
jamais do centro atrator; ele acrescentou todas essas energias às suas, e foi então que surgiram essas obras magistrais que todos vocês leram: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns, O
evangelho segundo o espiritismo, O céu e o inferno, finalmente A Gênese, os milagres e as predições.
Era preciso agir assim para triunfar sobre tantos obstáculos conjurados contra a nova ideia. Tudo se confundia nele, tudo saía dele, e assim se manteve esta unidade de pontos de vista, de
direção, de doutrina, tão necessária para o sucesso.

Mas é chegado o momento, pelo menos acreditamos, de adentrar caminhos mais amplos. Nenhum de nós tem a força para aceitar o legado de Allan Kardec em sua integridade. O Mestre
desapareceu, o papel modesto de seus apóstolos é suficiente para nossa ambição. Mas o apostolado é essencialmente múltiplo, a tarefa se divide para ser mais fácil; um dirige seus passos para o
norte, o outro para o sul, e então todos trazem ao centro comum a colheita das almas, a colheita abençoada que fizeram em benefício da nova crença. O Mestre agia por absorção, por
concentração; vamos agir por difusão, por radiação. Queremos erguer o imenso edifício que abrigará as infinitas esperanças da humanidade reconciliada com Deus, com a natureza, consigo
mesma. Este será o trabalho de todos: os mais fortes trarão sua pedra, outros, o grão de areia, e outros, finalmente, o átomo do pó. Mas, na balança divina, os méritos se medem pela boa vontade,
não pela força despendida, e, aos olhos de Deus, o átomo do pó e os mundos são iguais, porque ambos lhe custaram tanto.

Também eu vos falarei, começando dos meus colegas e colaboradores. Vós também sereis nossos colaboradores, senhoras e senhores. Cada um de vós irradiareis ao redor de si, em vossa
modesta esfera, cada um provocará adesões, porque, vós sabeis, acabamos de passar por uma crise dolorosa que limpou nossas fileiras, e devemos pensar em reabastecê-las. Vós organizareis
pequenos grupos que nos trarão o resultado de seus trabalhos e, em troca, daremos a eles o apoio de nossa força coletiva. Como sempre, iremos reservar um lugar nas nossas sessões de Médiuns e
discutiremos os trabalhos obtidos. Quem quiser [poderá] pedir para colocar, na agenda do dia, alguma questão ainda obscura que precisará ser esclarecida. Vamos tomar conhecimento dela, dar-
lhe um número de registro e chegará a vez dela.

Vamos, portanto, expandir nosso foco e o círculo de nossos estudos. Talvez tenha sido necessário que, na sua origem, o Espiritismo, combatido por todos os lados, se mantivesse estreito e
dogmático, mas hoje convém colocá-lo no terreno crítico, científico e filosófico. Seria muito lamentável aquele que entre nós se recusasse a nada aceitar além de sua bagagem de ideias atuais!
Portanto, abriremos nossas portas a todos aqueles que confessarem conosco a fé comum; nós aceitaremos, nós provocaremos o debate sobre todos os detalhes, e assim nossas sessões se tornarão
tão proveitosas quanto interessantes. Temos a pretensão de ter muito a ensinar aos outros, mas também sabemos que nos resta muito a aprender.

Vinde então a nós, vós todos, pobres corações partidos que choram os amigos que primeiro partiram para as pátrias celestes. O Espiritismo é a correspondência das almas, é o anel que liga este
mundo conhecido com o conjunto dos mundos desconhecidos que nos chamam, e nossos Médiuns vos mostrarão que, aqueles por quem pensastes que deveriam orar, velam por vós, e rezam por vós.
Vinde a nós, vós que tendes sede de uma moral que satisfaça as aspirações religiosas do seu coração e da sua razão. Nós vos faremos tocar a alma imortal, pois a vereis deslumbrante em suas
manifestações. Nós vos faremos ver Deus, sempre justo e bom, deixando os ímpios se ferirem, na liberdade deles, para se reservar de os recompensar a cada passo que eles dão nas vias do bem,
isto é, da redenção. Somos nós que fazemos os nossos destinos, somos nossos próprios justiceiros, e, unidos num só feixe pela grande lei da solidariedade, recolhemos, neste mundo ou nos outros, a
nossa parte de todo o bem, como de todo o mal que semeamos.

Vós já entendestes qual direção será dada ao vosso trabalho por vosso novo presidente. Essa direção será essencialmente impessoal. Ele contentar-se-á em conduzir os debates, fá-lo-á com
imparcialidade, com uma firmeza temperada por um sentimento vivo de fraternidade cordial. O seu verdadeiro presidente, aliás, não está aqui, porque quando o senhor Flammarion quis aceitar
apenas a presidência honorária, ficou subentendido entre todos nós que ele seria, ao mesmo tempo, presidente honorário e ativo. Quanto a mim, sempre vou me apagar para colocar os outros em
evidência. Muitas vezes eu me privarei de assistir [presidir] às sessões, para que os dois vice-presidentes por sua vez assumam a cadeira em meu lugar: que eles vos conheçam e sejam conhecidos
por vós, e, eventualmente, que a prosperidade, a própria existência da Sociedade não seja mais subordinada à existência de um homem.

Eugène Bonnemère.

A guerra Franco-Prussiana só começou em julho de 1870, portanto ainda não seria este fato que “limparia as fileiras” da SPEE, mas provavelmente a
morte de Kardec e a luta com a SA. No cenário político francês tivemos apenas as conturbadas eleições legislativas entre 24 de maio e 7 de junho de 1869.
Nenhum representante da SPEE discursou na inauguração do túmulo de Allan Kardec no Père Lachaise em 31 de março de 1870.
Como no “Olhar retrospectivo sobre o estado do Espiritismo em 1869”400 foi afirmado que a SA tinha condições de representar o Espiritismo, na nossa
leitura, em contraposição à SPEE, e um ano depois, no “Olhar retrospectivo sobre o movimento espírita em 1870” informou-se que a SA havia sofrido
ataques daqueles que queriam semear a divisão, parece que a cizânia realmente existiu. Aprofundando a crise, o número de frequentadores dos grupos
espíritas reduziu exponencialmente durante a guerra, apesar de outros círculos terem se dedicado à formação de palestrantes. Neste período ocorreu a
popularização da mediunidade de cura.
Durante a guerra, ocorreu o início do cerco de Paris em 19 de setembro de 1870. Não foram localizadas mais informações sobre o cotidiano da SPEE
entre a posse de Bonnemère em 1870 (por um ano) e a posse de Charles Boiste401 em 1872. Talvez, a entidade tenha paralisado suas atividades no período,
enquanto a SA resistia apesar das duras provações.
Em um relatório de polícia de 1875, escrito por Armand Marseille, abordando o ano de 1870, vemos os seguintes fragmentos:
Você pode encontrar um pouco de tudo nesta revista mensal [se refere à Revista Espírita], exceto coisas razoáveis.

(...) ao mesmo tempo, Bicêtre [se refere ao manicômio] foi enriquecido por sujeitos que levaram a sério a leitura de jornais espíritas.

O Espiritismo está para a alma o que o absinto [se refere à bebida, geralmente apresentada como droga alucinógena] está para o corpo. O Espiritismo e o absinto destroem cruelmente a
democracia.

O mais importante estava no final deste relatório. Claro, as declarações anteriores já nos impeliriam a utilizar algum tipo de filtro na análise das
afirmativas a seguir, buscando apenas aquilo que poderia ser um fato não polarizado pela opinião do autor:
O Sr. Mallet, professor de fortificação e construção na escola de artilharia de Vincennes, oficial da Legião de Honra, residente na avenida des Amandiers, nº 3, foi, após a morte de Rivail,
nomeado presidente da SPEE. Logo ele manifestou tendências para ampliar o círculo desta sociedade que, até então, permanecera local, e para torná-la o centro das sociedades espíritas das
províncias, sob o nome de: Sociedade Central de Espiritismo402.

Membros, temendo que o estabelecimento de uma sociedade comercial como a do Fundo Geral e Central do Espiritismo, ao lado de uma sociedade puramente científica, desviasse esta de seu
propósito original e produzisse confusão no espírito de muitas pessoas, não acolheram a criação da viúva Rivail com simpatia. Este empreendimento parecia-lhes ter, sob o pretexto da ciência, um
caráter muito pronunciado de especulação, para não vir, mais cedo ou mais tarde, usar a SPEE como um instrumento e subordinar aos seus interesses últimos. A viúva Rivail, ao provocar e aceitar
doações que atribuía ao fundo geral e central do Espiritismo, logo pareceu provar que eles estavam certos. Essas doações foram realmente feitas para a sociedade comercial? Alguns contestaram.
No entanto, não foi feita qualquer tentativa de averiguá-lo e, devido aos serviços prestados à obra pelo marido, não se colocou nenhum obstáculo às operações mais ou menos regulares da viúva
Rivail. Todavia, Sr. Mallet falou sobre este ponto com mais liberdade do que os outros membros; a viúva Rivail e seus membros, indispostos contra ele, espalharam boatos infelizes sobre sua
moralidade e o levaram, por seus aborrecimentos, a renunciar ao cargo de presidente403.

A Sra. viúva Rivail pediu então a dissolução da SPEE (dezembro de 1869) e sua imediata reconstituição sob o mesmo título, com os mesmos regulamentos, mas sob sua influência404.

Consultado sobre a conveniência desta mudança, dei parecer desfavorável. Ao mesmo tempo, aconselhei aceitar, a fim de estabelecer o acordo entre os adeptos das doutrinas espíritas, a
assistência do Sr. Camille Flammarion, um dos membros da SPEE; Sr. Flammarion, um antigo estudante astrônomo do observatório de Paris, editor do Cosmos e editor científico do Le Siècle,
autor de vários livros sobre ciência astronômica, já tinha notoriedade suficiente para poder ocupar com proveito a presidência da SPEE e evitar invasões da Sociedade comercial405.

Com o conhecimento destas novas informações fica mais clara a declaração de Flammarion no seu livro de memórias. Sua recusa não aconteceu após a
desencarnação de Kardec, mas após a renúncia de Malet e o pedido de dissolução da SPEE em dezembro de 1869. Ainda assim, ele aceitou o cargo de
presidente honorário. Contudo, na interpretação do presidente Bonnemère em seu discurso, Flammarion era o presidente de fato.
A diretoria era então formada por Flammarion (presidente honorário), o historiador Bonnemère (presidente), Malet, oficial do exército (primeiro vice-
presidente), Caussin, artista desenhista autográfico406 (segundo vice-presidente), Morin, representante comercial (secretário principal), A. Ravan,
negociante (secretário adjunto) e J. Henry (tesoureiro). Quando Flammarion mencionou em suas memórias os nove décimos, talvez falasse dos discípulos e
não necessariamente aos diretores407.
A cizânia entre as duas entidades só terminou frente a um inimigo em comum: o “processo dos espíritas”, como veremos depois do retorno de Leymarie
ao cenário parisiense.

394 Para mais alguns detalhes ver Bônus 2 – Projeto, constituição e estatutos.
395 Provavelmente Étienne Baluze (1630-1718), historiógrafo e bibliotecário francês, nascido em Tulle, mesma cidade de Leymarie.
396 A mensagem foi encontrada nos arquivos pessoais de Prévost, na pasta D89J dos Arquivos Municipais de Paris. O Sr. Prévost foi um sansimoniano, membro da SPEE que teve sucesso nos negócios em Paris, com várias lojas. Infelizmente perdeu cedo seus
filhos e a esposa, que morreu no parto. No final de sua carreira comercial decidiu usar sua fortuna na fundação de um asilo em sua aldeia natal, Cempuis. Este asilo, que inicialmente recebeu idosos carentes e alguns órfãos, tornou-se gradualmente um
orfanato agrícola. Na Revista Espírita de outubro de 1863 é falado sobre sua inauguração. Nele havia uma capela dedicada a São Vicente de Paulo. Prévost foi associado a Ferdinand Buisson, então membro do Comitê de Assistência e Patrocínio a Órfãos de
Paris. Isso o levou a assinar, em 1871, um acordo com essa organização filantrópica protestante, a fim de confiar ao orfanato as crianças escolhidas pelo comitê. Sabe-se ainda que foi dirigido de 1880 a 1894 pelo pedagogo anarquista Paul Robin, que o
tornou o primeiro estabelecimento experimental de educação libertária, onde ele implementou seus princípios numa escola mista com educação integral.
397 A linguagem algo confusa é própria do sistema “Baluze – Leymarie”.
398 Home, D. D, Lights and shadows of Spiritualism. Virtue & Co, London – UK (1877), p. 224.
399 E. Bonnemère, Discours prononcé par M. E. Bonnemère, président de la Société Parisienne des études spirites, à la séance générale du 2 février 1870. L. Toinon, Saint-Germain – France (1870).
400 Os olhares retrospectivos ou golpes de vista sobre determinado ano eram geralmente publicados na Revista Espírita de janeiro do ano seguinte.
401 Depois de Kardec, Charles Boiste (1813-1893) foi o presidente mais longevo da SPEE.
402 Isto explicaria o que é dito no olhar retrospectivo de 1869: a SA tinha condições de representar o Espiritismo, ou seja, em oposição às tendências de Malet.
403 Na visão do representante da polícia, esta seria a verdadeira causa da renúncia de Malet, que parecia desconhecer a destinação prevista nos estatutos dos eventuais lucros da SA.
404 Contudo um novo estatuto foi criado com algumas alterações, por exemplo, um incentivo ao pagamento antecipado de 400 francos para isenção da cota anual de 24 francos e da joia de 10 francos; e Malet retornou então como vice-presidente no início de
1870.
405 O representante da polícia parece infiltrado na SPEE.
406 Aquele que desenha em papel especial para uma litografia, sem gravuras de intermediários, como as usadas por um entalhador.
407 Além da diretoria, tínhamos os membros do comitê: Antoine Jules Napoléon Canaguier (1832-1894), Anna Blackwell (1816-1900), Ange Casimir Émile Barrault (1826-1894), Charles André Collard (1819-1882) e Auguste Antoine Bertrand.
4. Leymarie, ainda longe de Paris

Em 1870, Leymarie se encontrava distante, mais preocupado com os conflitos da guerra Franco-Prussiana. Destacamos alguns fragmentos encontrados
em quatro de suas cartas endereçadas ao Sr. Prévost, localizadas no arquivo pessoal deste personagem.
Paris, 18 de agosto de 1870

Senhor Prévost,

Compartilhamos as mesmas ideias, tanto para o Espiritismo quanto para as ideias patrióticas (...)

Amigo, que progressão para a queda408, e desde o plebiscito409, que lição – eles votaram como cegos e Deus nos pune a todos conjuntamente (...)

Venho, pois, de Pimprez, onde reside a minha pequena família (...)

Queria explicar-lhes que o imperador, pelo plebiscito, pediu o direito de comandar os exércitos de terra e mar, além do direito de fazer guerra e que, votando sim, lhe haviam concedido o seu
pedido (...)

Enquanto isso, os prussianos marcham sobre Paris e nosso exército está recuando. Grandes comunas como Metz se curvam a quatro homens e um cabo (...)

Nesse ínterim, vejo com pesar todos aqueles que não são retidos pela idade e pela família, e pensando nesta França nervosa, irritável e orgulhosa em sua essência, recupero a confiança e
saberemos como expulsar os despotismos da Prússia e ao mesmo tempo do Império (...)

Espalhar a educação abundantemente, habituar o campo à vida política, é a grande obra daqui para a frente, temos que ir trabalhar com rigor, os Espíritos já nos disseram muitas vezes (...) os
arquivos do Sr. Kardec estão cheios dessas comunicações.

Se por medo da passagem de tropas você precisa de algumas pessoas enérgicas, por favor, considere-me. Já que não temos armas em Paris, posso ser de alguma utilidade para você.

Sr. Guilbert410 escreveu-me esta manhã de Rouen (...)

Fiz um trabalho muito longo para a Revista Espírita sobre a relação do homem com a vida animal e sobre a inteligência originária das espécies mais humildes, subindo de degrau em degrau até
o homem e depois ir além dele para ir como um Espírito para a erraticidade.

Adeus, Sr. Prévost, em nome de minha família, do Sr. Bittard e nossos amigos em comum (...)

P. G. Leymarie.

Como percebido, Leymarie era de fato um republicano, envolvido em temas políticos e disposto a ir à luta pelas suas ideias. Ainda visitava Paris, embora
já em meados de 1870 não vivesse lá, mas em Pimprez, a mais de cem quilômetros da capital, e a aproximadamente à mesma distância de Cempuis, onde
morava o Sr. Prévost. Estava também envolvido com assuntos relacionados à educação411. Conhecia os arquivos de Kardec, bem como o Sr. Guilbert e o
Sr. Bittard, fundadores da SA. Estava longe da administração desta sociedade, mas submeteu uma série de artigos à Revista Espírita, publicados entre
setembro de 1870 e janeiro de 1871.
Numa segunda carta que Leymarie enviou, agora de Pimprez, ao Sr. Prévost, em 8 de setembro de 1870, vinte dias após a carta anterior, seis dias depois
da queda do imperador Napoleão III e quatro dias após a proclamação da Terceira República, colhemos os seguintes fragmentos:
Pimprez, 8 de setembro de 1870

Senhor e irmão,

Estou com minha família em Pimprez (...) porque minha velha tia está acamada e não podemos abandoná-la (...)

Mas, dezoito anos de opressão e aviltamento412 rebaixaram o caráter de todos, a energia de 93413 está quase morta e o ousado camponês vê com apreensão o advento da república (...)

Sr. Lescot414 deixara-se levar pela apatia natural do campo e, como espírita praticante, [tem] o horror da guerra a ponto de não interferir nas rixas de sangue. – Tive que usar um raciocínio
filosoficamente espírita (...) ele entende hoje que a palavra república em seu sentido mais amplo é a salvaguarda da humanidade e até mesmo a única garantia que pode dar um impulso generoso
às convicções espíritas.

(...) que nossos amigos da erraticidade lhe deem anos de vida suficientes para ver nossas esperanças democráticas e sociais se tornarem realidade (...)

Recebi ontem uma carta do meu amigo Bittard, a quem dirijo a segunda parte do meu trabalho sobre a inteligência dos animais. Ele está encantado com a república, que finalmente nos
permitirá divulgar as obras espíritas a baixo custo (...). Estou preparando uma terceira parte para a Revista e todo esse complicado trabalho me é difícil (...)

A Sra. Leymarie não quer voltar a Paris e fica com a tia doente. Portanto, devo ficar com minha família esperando os prussianos chegarem (...)

Ah, se todos nós tivéssemos armas e homens determinados, mas nada além de apatia e egoísmo (...)

P. G. Leymarie.

Leymarie continuou expondo seu viés político, suas esperanças democráticas e sociais, e sua preocupação com os prussianos que, em breve, chegaram a
Paris, mantendo a cidade cercada de 19 de setembro de 1870 até 28 de janeiro de 1871. Mostrou-se disposto a pegar em armas pela liberdade. Continuou
longe da administração da Revista Espírita, mas colaborando com artigos como os publicados sobre a inteligência dos animais. Cria que a república
permitiria baixar os custos das obras espíritas, apesar que os seus preços se mantiveram no mesmo patamar até o final do século XIX.
A terceira carta enviada por Leymarie, ainda em Pimprez, ao Sr. Prévost, é de 10 de novembro de 1870, quase dois meses após o início do cerco de Paris
pelos prussianos. O cabeçalho impresso à esquerda sugere a participação de Leymarie na Liga de Ensino de Jean Macé415. Um dos endereços da Liga era a
Rua Vivienne, nº 53. A alfaiataria de Leymarie funcionou neste mesmo número, que também era o endereço do Sr. Emmanuel Vauchez, secretário geral da
Liga.
Liga de Ensino, Círculo Parisiense, Secretaria Geral, Rua Vivienne, 53 | Rua St Honoré, 175

Pimprez, 10 de novembro de 1870

Irmão Prévost,

Passei o dia de sábado em Amiens com o Sr. Jeannerod, governador416 de Oise e o Sr. Marlière de la Somme417. Descobri com tristeza que o Sr. Jeannerod não estava à altura da missão que deve
cumprir no Oise, falta-lhe energia, ou melhor, fé no desenvolvimento da defesa, é um pessimista que momentaneamente saberia sacrificar a Alsácia418 (...)

Só peço cama e comida do soldado, sem salário. Se o governador aceitar a minha oferta, sei que os bons Espíritos nos aconselham a trabalhar com energia pelo bem comum, e como se trata de
salvar a França, esteja certo meu amigo que darei no Oise um ou mais açoites que farão a partir de agora que os prefeitos419 ajam com rapidez e vigor (...)

Sr. Lescot vai começar comigo uma aula noturna onde vamos misturar ciência com política, uma forma de iluminar nossos camponeses, vamos acender um fogão e oferecer um copo de cidra (...)

P. G. Leymarie.

Fig. 34: Fragmentos de carta de Leymarie para Prévost


Fonte: Arquivos Municipais de Paris, cote: D89J

Leymarie continuava preocupado com a educação, a política, a guerra Franco-Prussiana e a liberdade, e ainda distante da direção da Revista Espírita.
A quarta carta enviada ao Sr. Prévost, em 30 de dezembro de 1870, também foi escrita em Pimprez. Eis mais alguns fragmentos:
Pimprez, 30 de dezembro de 1870

Senhor Prévost, irmão e amigo,

1871 apresenta-se sob tristes auspícios: terminaremos afinal expulsando os prussianos? Tenho a firme esperança (...)

Não tenho notícias de Rouen ou Paris (...)

Vemos apenas tropas com capacetes pontiagudos desfavoráveis (...)

Sr. Lescot se reúne com toda a minha família para lhe desejar um Feliz Ano Novo (...)

Deus, amigo, que possamos, na primeira vez que apertarmos as mãos, nos encontrarmos sob um governo de uma república democrática e social, bem livres desses bandidos de além do Reno,
que se fossem gente boa, deveriam ter se livrado de sua aristocracia insolente, para apertar a mão da França em vista da República Federal Europeia (...)

Amizade muito sincera.

P. G. Leymarie.

Como o cerco de Paris durou mais de quatro meses, só terminando em 28 de janeiro de 1871, diferentemente dos que acreditam na sua suposta influência
negativa em assuntos dos dois primeiros anos do pós-Kardec420, o único complô do qual Leymarie poderia ter participado neste período seria contra os
prussianos. A guerra Franco-Prussiana se encerrou em 10 de maio de 1871, mas Paris ainda sofreu com a Comuna421 até o dia 28 de maio.

408 Queda do imperador, que aconteceu em 2 de setembro de 1870.


409 Plebiscito que aprovou o Segundo Império.
410 Gustave Achille Guilbert (1833-1874), um dos fundadores da SA.
411 Leymarie participava na Liga do Ensino, desde sua fundação por Jean Macé em 1866.
412 Desde o início do Segundo Império, instaurado em 2 de dezembro de 1852, consequência do autogolpe de estado de 2 de dezembro 1851, que deu fim à Segunda República.
413 O ano de 1793 foi muito complexo na história da Revolução Francesa, com eventos como a Guerra de Vendeia, a expulsão dos invasores absolutistas europeus, etc.
414 Não parece se tratar do marido da Sra. Costel, pois Leymarie o conheceu há não muito tempo.
415 Jean François Macé (1815-1894), educador, político e franco-maçom.
416 “Préfet” e não “maire”.
417 Supomos que Leymarie possa ter se equivocado, pois o Sr. Jules Lardière foi “préfet” do departamento de la Somme no período, mas o Sr. Marlière foi “préfet” do departamento de Saône-et-Loire e, ainda assim, renunciou em 4 de setembro de 1870.
418 Como parte da Lorena, a Alsácia foi reunificada à Alemanha após a guerra em 1870, e assim permaneceu até que parte da Alsácia foi libertada em 1914. No final da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha cedeu o restante de volta à França pelo Tratado de
Versalhes.
419 “Maires” e não “préfets”.
420 Autores contemporâneos sugeriram seu envolvimento na adulteração das últimas obras revisadas por Allan Kardec, o que já foi demonstrado ser improvável.
421 Que havia se iniciado em 18 de março.
5. O retorno de Leymarie e o inimigo em comum

Leymarie assumiu a Revista Espírita em meados de 1871, com a renúncia de Desliens422. Nesta época, em 31 de agosto, Adolphe Thiers recebeu o título
de (primeiro) presidente da (terceira) República, exercendo a função até 24 de maio de 1873.
A Revista Espírita de janeiro de 1872, já sob direção de Leymarie, trouxe um artigo que se referiu ao ano anterior como um ano triste; o periódico tinha
permanecido de pé apesar das duras provações de 1870 e 1871423. Assinantes não tinham recebido exemplares devido ao estado de sítio, embora os pedidos
tivessem sido numerosos. Falou-se também das pesquisas de William Crookes e Edward William Cox424. No texto que fez referência ao novo livro de
Louis Figuier, O dia após a morte, ou a vida futura de acordo com a ciência, acrescentou-se que a SA observava atenta para que novas tendências não
decapitassem a obra de Allan Kardec. Foi informado ainda sobre um grupo que havia sido reunido para estudar a telegrafia humana.
O ano seguinte foi descrito na Revista Espírita como um ano muito agitado; depois da exaltação do trabalho de Allan Kardec para os correspondentes, o
periódico deu destaque à fenomenalidade que tinha despertado sob um novo caráter que tenderia a se generalizar (efeitos físicos, inclusive fotografias de
Espíritos).
Nestes dois anos, nota-se um zelo pela obra de Kardec, mas com um viés um pouco mais científico, que, contudo, acabaria se degenerando no “processo
dos espíritas”.
Em 1873, teve início a “ordre moral”, nome dado à política conservadora e clerical definida em 26 de maio após a queda de Thiers e a eleição para
presidente do marechal Mac Mahon. Esta política tinha suas raízes na influência da Igreja. Apesar da vitória republicana nas eleições de fevereiro de 1876,
tal política só terminou após o sucesso dos republicanos nas eleições de outubro de 1877. A “ordre moral” acabou por promover uma perseguição aos
espíritas.
Com a saída de Bittard em meados de 1873, a Livraria Espírita também foi assumida por Leymarie, que recebeu então um aumento salarial conforme
aprovado em Assembleia Geral Ordinária da SA425, presidida por Crouzet426.
Na Revista Espírita de janeiro de 1874, Crouzet escreveu aos assinantes sobre o desejo de Allan Kardec em relação à SA427, da sua execução por Amélie
Boudet, das dolorosas provações por que passou a França e que retardaram muito o funcionamento da SA, sem, no entanto, comprometer sua existência e,
como consequência, do único diretor [Leymarie] que seria contrabalanceado pelo aumento das medidas de fiscalização [novo Comitê de Leitura428, além do
Comitê de Fiscalização]. Amélie Boudet, que já fazia parte do Comitê de Fiscalização, também foi eleita para o novo Comitê de Leitura.
Crouzet ainda mencionou a alteração no nome da sociedade, promovida naquela assembleia de 18 de outubro de 1873, “salientando a exclusão de
qualquer ideia de mercantilismo, só mantendo em seu nome o que a lei proibia de excluir”. A “Sociedade anônima com participações e capital variável do
fundo geral e central do Espiritismo” passou a se chamar “Sociedade para a continuação das obras espíritas de Allan Kardec, anônima e de capital
variável”.
Depois desta carta de Crouzet aos assinantes, a Revista mencionou o desenvolvimento do movimento espírita mundial, e alertou para difamadores e
grupos espíritas católicos.
Na Revista de janeiro de 1875, refletindo sobre o ano anterior, Leymarie exaltou Allan Kardec e conclamou: “Fujamos da aridez moral dos escolásticos
de todas as igrejas e reanimemo-nos para as verdades radiantes dadas pelos Espíritos”.
Infelizmente, 1874 foi o ano com o maior envolvimento de Leymarie com as fotografias dos Espíritos.
Nos arquivos de Prévost encontramos ainda uma correspondência de Leymarie deste ano. Eis um fragmento da carta escrita em papel timbrado da
Livraria Espírita:
Paris, 24 de março de 1874

Para Sr. Prévost, em Cempuis via Grandvillers, Oise.

Envio-lhe meu retrato e do coronel de artilharia Carré429, juntamente com meu bom amigo o Espírito Edwards430. Tenho certeza de que, ao posar na casa de Buguet431, você conseguirá a Sra.
Prévost432.

Tanto Leymarie, quanto os demais membros da SA, se mostraram ingênuos com relação às fotografias dos Espíritos, que culminaram com o “processo
dos espíritas”.
Provavelmente, devido a isso e à opressão da nova “ordre moral”, vários relatórios de polícia foram produzidos sobre o Espiritismo, sendo pelo menos
três em 1875.
O relatório de 28 de abril de 1875 foi assinado por Justin Guillaume Lombard433. O documento descreveu uma reunião da SPEE com trinta e cinco
pessoas (vinte e cinco homens e dez mulheres) realizada das 20h às 23h20 na casa do seu presidente, o Sr. Boiste. O fato narrado ocorreu logo após a
detenção de Leymarie em 22 de abril434, devido ao seu envolvimento com as fraudes produzidas pelo fotógrafo Buguet.
Do relato de Lombard colhemos este fragmento da fala de Boiste: “(...) era uma guerra que queriam travar contra os espíritas, que havia perigo para eles;
mas que aqueles que acreditavam firmemente no Espiritismo pertenciam a uma religião à parte, livre de toda perseguição”. Lombard acrescentou ainda que
o Sr. Boiste pediu para pesquisarem a vida íntima do Sr. Delahaye, juiz de instrução, bem como suas crenças religiosas que, segundo o Sr. Boiste, podiam
ter uma grande influência no tribunal e na sentença que ele seria chamado a proferir. Lombard mencionou também Casimir Henricy435, dizendo que ele
agora era um espírita fanático que empurrava suas crenças a ponto de ir aos enfermos para oferecer-lhes seus serviços de cura como médium. Finalizou,
então, dizendo: “Tenho sérias razões para acreditar que este estranho mundo é governado por algumas pessoas inteligentes que vivem dele e exploram a
credulidade pública com a ajuda de consultas médicas ou outras que cobram caro”.
Em resumo, a SPEE de Boiste estava agora solidária com Leymarie, da SA; mostrando que a cizânia antiga não mais existia. A “ordre moral”, o
“processo dos espíritas” e a campanha antiespírita da imprensa contribuíram para a união dos espíritas e até para o aumento do número de assinantes da
Revista Espírita436.

422 Apenas esta última informação seria suficiente para excluir Leymarie como um dos suspeitos de uma suposta adulteração da quinta edição de A Gênese, cuja autoria já foi demonstrada como sendo de Allan Kardec.
423 Entre as provações, recordamos a cizânia entre a SPEE e a SA, com disputas pelo poder e por financiamento das respectivas atividades durante 1870; a guerra Franco-Prussiana iniciada em julho de 1870 e o cerco de Paris em setembro de 1870, ambos os
eventos terminados em janeiro de 1871; e a comuna de Paris, que durou apenas de março a maio de 1871, com término ao final da “Semana Sangrenta”.
424 Com o que chamavam de força psíquica, que seria o fluido perispiritual.
425 Allan Kardec previu funções remuneradas desde a “Constituição Transitória do Espiritismo”. O salário de 2.400 francos anuais passou para 3.000, com o acúmulo de funções, tendo Leymarie que se dedicar em tempo integral, de acordo com a modificação
do artigo 13 promovida no estatuto da SA.
426 Jean Pierre Louis Crouzet (1804-1887), advogado, membro da SA e autor de Repertório do Espiritismo, de 1874.
427 É dito que “No estado da nossa legislação, Allan Kardec reconheceu que tinha apenas um meio prático para estabelecer uma obra duradoura, nomeadamente a constituição de uma sociedade comercial criando um ser coletivo que deveria ter todos os
direitos de uma pessoa civil; estava na véspera de realizar esta sociedade (...)”. O termo usado foi “personne civile”; se tivesse sido usado “personne morale”, traduziríamos como “pessoa jurídica”.
428 Uma espécie de Comitê Editorial, responsável pela análise das matérias a serem publicadas na Revista Espírita. Amélie Boudet foi eleita como um dos membros, junto com o Srs. Jules Théophile Nestor Anatole Levent (1824-1888) e Hubert Joly (1820-
1906).
429 Albin François Joseph Carré (1822-1907).
430 Édouard Poiret.
431 Édouard Isidore Buguet (1840-1901).
432 Agnès Colette Josèphe Vandenbulcke, que morreu de parto em 1827.
433 Falaremos mais deste policial durante o “processo dos espíritas”.
434 A liberdade provisória de Leymarie veio no dia 20 de maio.
435 Comerciante de madeiras e homem de letras.
436 Na verdade, tinha dobrado, segundo Leymarie numa carta de 25 de março de 1875 a Prévost.
6. O processo dos espíritas

Já comentamos sobre o Sr. Delahaye, juiz de instrução do caso das fotografias dos Espíritos, quando o Sr. Boiste, presidente da SPEE, pediu para
pesquisarem sua vida íntima, bem como suas crenças religiosas, que podiam ter uma grande influência no tribunal. Na versão em português do livro
Processo dos Espíritas, escrito por Marina Duclos, esposa de Leymarie, o Sr. Delahaye não foi nominado e foi referido apenas como juiz de instrução.
Diferentemente da versão original em francês, a versão em português também não traz o conteúdo das cartas existentes em defesa de Leymarie. O processo
pode ser analisado ainda sob uma outra perspectiva, o da Revista dos grandes processos contemporâneos, de Gaston Lèbre.
Não seremos nós a inocentar Leymarie (e demais membros do Comitê de Fiscalização da SA), cuja ingenuidade foi flagrante, todavia entendemos que
hoje este processo poderia ser anulado, considerando-se apenas aquilo que encontramos no livro da Sra. Leymarie.
Traremos as influências a que estava submetido o juiz de instrução, responsável por colher todos os elementos probatórios, bem como a identidade do
magistrado e a do autor da denúncia.
Entenderemos que o juiz de instrução, novamente, se fosse hoje, deveria ter se declarado impedido. Mas não seria o caso, pois tudo indica que o processo
foi uma “armação” de representantes da igreja dominante para condenar Leymarie e o Espiritismo, e não para apurar as fraudes e seu principal responsável:
Buguet437.
Vejamos alguns fragmentos do livro de Marina Duclos Leymarie:
Quero dizer que foi o Juiz de Instrução que disse isso. Ele me disse que pretendia me fazer confessar essa coisa, mas eu sempre lhe disse que queria testemunhar o contrário.

(...) tampouco o Juiz de Instrução estava de boa-fé, nem demonstrava o devido respeito pelas pessoas que depunham.

Queixa-se ainda essa testemunha de que o Juiz de Instrução parecia zombar dele (...)

Havia mais, porém: cartas de Buguet, na qual ele se afirmava médium e que o desmentiam na sua atual posição perante a Justiça, não constavam dos documentos vindos do Juiz de Instrução.

Certamente você [Leymarie] pode me chamar como testemunha; já me ofereci para dar meu testemunho ao Sr. Delahaye [o Juiz de Instrução], mas ele não quis me ouvir.

Eis então as identidades dos principais personagens de acusação:


Autor da denúncia: Justin Guillaume Lombard (1838-1880), policial, oficial de paz do 11º arrondissement de Paris e membro da polícia política. A sua
morte foi anunciada no Le Petite République de 13 de abril de 1880 nos seguintes termos: “O Sr. Lombard, o triste policial que teve que renunciar ao cargo
de oficial de paz após as revelações feitas sobre seu papel no caso Rouvier, acaba de morrer aos quarenta anos. Ele fará falta para Le Figaro, Le Gaulois e
Sr. Maxime du Camp (de Satory)”. Aparentemente esta última frase foi colocada de forma irônica, já que o Sr. Lombard supostamente vazava informações
confidenciais para a imprensa.
Magistrado: Gustave Félix Millet (1818-1893), juiz e vice-presidente do Tribunal do Sena desde 1873, conselheiro da Corte de Paris a partir do final de
1876. Autor de La situation438, perdeu a esposa com cinquenta e seis anos em 1886, e o filho em 1891, aos vinte e três anos, quando um ônibus passou por
cima dele e de sua bicicleta.
Juiz: “Armand” Édouard Jacques Delahaye (1834-1887), juiz de instrução do Tribunal de la Seine.
É sobre o Sr. Delahaye que traremos mais algumas informações. Seu nome completo era Édouard Jacques Delahaye (o “Armand” não aparece em
nenhum dos seus registros de estado civil). Ele renunciou em protesto contra a lei de 18 de março de 1880, que também se referia à liberdade do ensino
superior, além de proibir o ensino pelas congregações religiosas e dispersar as não autorizadas439. Era membro da sociedade “Educação e Ensino” de
assistência jurídica às escolas católicas. A Sociedade Geral de Educação e Ensino é uma associação católica francesa formada por leigos e destinada à
defesa da educação católica.
Corroborando a informação sobre a renúncia, encontramos no Boletim oficial do Ministério da Justiça do último trimestre de 1879, a nomeação em 13 de
novembro do Sr. Albert Clerc como substituto do Sr. Delahaye como juiz de instrução, que a seu pedido voltaria a exercer a função de simples juiz.
A lei de 1880 foi aprovada na Câmara em 15 de julho de 1879, antes das discussões no Senado.
Em L’Observateur français, encontramos o anúncio da sua morte: “Tomamos conhecimento da morte do Sr. Edmond Delahaye, ex-juiz de instrução do
Tribunal de la Seine, que faleceu após uma longa e dolorosa doença. O Sr. Delahaye foi destituído quando do saneamento da magistratura. Ele era um
cristão convicto, um homem bom em todos os sentidos da palavra: ele deixa a todos aqueles que se aproximaram dele uma profunda lembrança. As muitas
expressões de simpatia que sua morte suscitou serão um alívio para a dor de sua viúva. O funeral do Sr. Delahaye terá lugar amanhã, às 10 horas, na Igreja
de Santo Agostinho”.
Estas informações nos ajudam a entender um pouco o viés do Sr. Delahaye, juiz de instrução do “processo dos espíritas”.
Vejamos outros personagens que também nos auxiliam a compreender melhor o porquê de considerarmos que o “processo dos espíritas” poderia estar
“viciado”, isto é, contaminado por ideias religiosas pré-concebidas:
Promotor: Louis Georges Édouard Dubois (1838-1923), magistrado e “avocat de la République”, que em julho de 1880 também renunciou à sua função
de promotor, recusando-se a aplicar aquela lei sobre a expulsão das congregações religiosas.
Testemunha: Alphonse Chevillard. Este professor da Escola de Belas-Artes já era conhecido dos espíritas, por ser contrário à sua doutrina. Escreveu o
livro Estudos experimentais sobre o fluido nervoso e solução definitiva do problema espírita, comentado nas edições de 1869 da Revista Espírita em março
e abril, ainda por Kardec. Numa caricatura de 29 de junho de 1875 de Chevillard, feita por Pepin, este escreveu embaixo: “Deus pode derrubá-lo, espíritas
nunca!!!”.
Em resumo, nesta primeira instância, tivemos pelo menos o juiz de instrução e o promotor vinculados à defesa da educação católica.
Berthe Fropo440, em Muita Luz, se equivocou ao dizer levianamente que Leymarie se deixou ser condenado sem apelação, alegação que foi prontamente
refutada por ele em Ficções e Insinuações.
Será que o julgamento nas instâncias superiores teria sido mais justo?
A segunda instância chamava-se Corte de Apelação.
Identificamos o juiz relator, Sr. “Alfred” Simon Marie Chevillote (1816-1883), procurador geral da Argélia, que também trabalhou na “Cour d’Appel de
Paris” e era de família muçulmana.
O magistrado que presidiu a corte foi o Sr. Félix Rohaut de Fleury (1813-1890). Este juiz era de família bastante católica, pois seu irmão Charles foi
autor de livros como: Memórias sobre os instrumentos da paixão de N.-S. J.-C. [Nosso Senhor Jesus Cristo] e O evangelho: estudos iconográficos e
arqueológicos; seu sobrinho Hubert, filho de Charles, foi um dos responsáveis pela iniciativa de construção da basílica do Sacré-Cœur em Paris; e seu
outro sobrinho Georges, também filho de Charles, deu continuidade à obra do pai, com os vários volumes de Os santos da missa e seus monumentos.
A maior surpresa veio com o Sr. Joseph Amélie Benoist (1828-1911), “avocat général”, isto é, o promotor do caso. Ele foi autor do livro Da constituição
das sociedades com vistas ao estabelecimento de escolas livres, aparentemente um bom tema, mas patrocinado pela Sociedade Geral de Educação e
Ensino, que, como já vimos, era uma associação católica francesa formada por leigos e destinada à defesa da educação católica.
Um dos principais argumentos para a manutenção da sentença contra Leymarie foi o depoimento de Chevillard. Hoje, esta evidência seria considerada
circunstancial e, portanto, rejeitada, já que seria a “palavra de um contra a palavra de outro”.
Na primeira instância, Chevillard havia afirmado que tinha assistido a “experiências com fantasmas” na casa de Leymarie, e tinha este último mais na
conta de um espírito fraco do que de um escroque. Leymarie, diante do juiz, disse que era a primeira vez que estava vendo Chevillard, e que ele nunca
esteve em sua casa.
Na segunda instância, o promotor, Sr. Benoist, sustentou sua prevenção com relação aos acusados e a corte confirmou a sentença em 6 de agosto de
1875. Como dissemos, uma consideração decisiva foi:
Considerando que, havendo ainda dúvidas sobre a sua cumplicidade [de Leymarie], bastaria recordar que fazia sessões espíritas em sua casa onde se obtinham aparições, como testemunhou o
Sr. Chevillard (...)

Além das outras considerações, todas questionáveis, pois fundamentadas apenas em opiniões, vejamos mais uma:
Considerando, aliás, que agindo assim, Leymarie obedecia a um duplo interesse muito evidente: o aumento dos benefícios reservados a ele e aos adeptos de sua doutrina.

As considerações do promotor atingiam todos os adeptos do Espiritismo. O fato indica isenção ou parcialidade da corte?
Concluindo, nesta segunda instância tivemos pelo menos o magistrado de família bastante católica e o promotor vinculado à defesa da educação católica.
Haveria ainda uma terceira instância para este julgamento?
Como nos mostram os fatos, o “processo dos espíritas” foi conduzido até agora com base em evidências circunstanciais, testemunhos e opiniões, além de
cartas ignoradas pelo tribunal; e, obviamente, jamais haveria condições de se provar ou não a mediunidade ocasional de Buguet, que era um dos
fundamentos da defesa de Leymarie.
O marido de uma das testemunhas de acusação contra as fraudes de Alfred Henry Firman (o médium americano de efeitos físicos, também denunciado
neste processo) publicou o livro Espiritomaníacos e espiritofóbicos, estudo sobre espiritismo. Nas pp. 24-25, o Dr. Hilarion Huguet escreveu:
Afirmamos nossa crença na boa fé de Leymarie, o defendemos perante a Corte de Apelação e, conforme declaramos perante os tribunais, “longe de acreditar que ele estava em conluio com o Sr.
Buguet, o Sr. Leymarie sempre nos pareceu investigar se Buguet estava empregando um estratagema, a fim de revelá-lo”.

Condenado pela Corte de Apelação, o Sr. Leymarie está recorrendo à Corte de Cassação. Aplaudimos esta resolução (...).

Que o Sr. Leymarie foi enganado por Buguet é óbvio, segundo o próprio Buguet.

Mas que o Sr. Leymarie cometeu a fraude, que ele a encorajou, longe de revelá-la, é o que não podemos acreditar.

Frequentemente, o Sr. Leymarie provocava uma checagem, buscava oportunidades para fazê-la; – por que não deveria ter se curvado diante do depoimento de inúmeras testemunhas [que não
viam fraudes], mais capazes de desvendar o engano e mais interessadas em fazê-lo?

Esperamos, portanto, que a Corte de Cassação pronuncie a revisão deste julgamento e que um novo julgamento estabeleça claramente que uma solidariedade não pode existir entre “Leymarie,
enganado por Buguet” e “Buguet enganando Leymarie”.

Como foi então o julgamento na Corte de Cassação, a chamada terceira instância?


Buguet enviou uma carta na qual afirmava energicamente seu poder como médium, mas infelizmente a Corte, obrigada a manter como constantes os
fatos estabelecidos pela sentença do tribunal de Paris, não pode ordenar uma nova investigação. O recurso de Leymarie foi rejeitado em 5 de fevereiro de
1876.
O juiz relator foi o Sr. Romain Albéric Saint Luc Courborieu, sobre o qual só encontramos detalhes da sua vida profissional.
Já o promotor (avocat général) daquela Corte, responsável pelas conclusões, foi o Sr. Achille Arthur Desjardins (1835-1901). Durante o período da
“ordre moral”441, ficou elegível para o cargo de procurador-geral. O avanço deste cristão orleanista foi, no entanto, bloqueado pela chegada dos
republicanos ao poder a partir de 1877. Era um cristão engajado, que fez parte da Sociedade antiescravagista e que presidiu a Liga nacional contra o
ateísmo.
O presidente da Câmara Criminal, responsável pelo julgamento, foi o Sr. Victor Armand Joseph Pouliaude de Carnières, às vezes temido pela sua
austeridade moral.
Resumindo: na primeira instância, temos dúvidas sobre a imparcialidade do magistrado, Sr. Millet, e certeza sobre a falta de isenção do juiz de instrução,
Sr. Delahaye, e do promotor, Sr. Dubois. Na segunda instância, temos opinião neutra sobre o juiz relator, Sr. Chevillote e dúvidas sobre a imparcialidade
do magistrado, Sr. Rohaut de Fleury, mas convicção sobre a falta de isenção do promotor, Sr. Benoist. Mantemo-nos neutros sobre a atuação do presidente
da câmara criminal da terceira e última instância, Sr. De Carnières, bem como do juiz relator, Sr. Courborieu, mas estamos convencidos da falta de isenção
do Sr. Desjardins. Nossa análise sugere então que, dos nove atores do judiciário francês nas três instâncias, seis foram tendenciosos e três teriam mantido a
necessária neutralidade.
Para terminar, apresentamos alguns fragmentos do Le Figaro de 29 de agosto de 1876:
Rimos muito neste momento no Ministério da Justiça. Você se lembra do julgamento do fotógrafo espírita Buguet? Uma das vítimas deste caso (...) foi um certo Leymarie, diretor da Revista
Espírita. Agora, todos os seus correligionários na América e na Inglaterra, todos eles, você leu corretamente, estão neste momento pedindo seu perdão. (...) chegaram ontem ao gabinete do Sr.
Dufaure [Jules Dufaure, Ministro da Justiça] duas imensas, improváveis, inauditas, inimagináveis, insanas súplicas. Uma, enfim, a que foi enviada pela Inglaterra, tem dez metros de comprimento.
(...) contém as assinaturas dos discípulos ingleses de Allan Kardec. E o pedido que foi feito em nome dos Estados Unidos! Este não tem menos de sessenta metros de comprimento. (...) Quanto ao
número de assinaturas (...) você entenderá que nem tentamos contá-lo. O Espiritismo vai bem, na América.

Contudo, a afirmação retumbante do Sr. Dubois, promotor na primeira instância, resume tudo o que já poderia ter sido esperado com relação ao desfecho
deste “processo dos espíritas” nas três instâncias: “O Espiritismo é apenas uma colossal mistificação exercida por um número limitado de malandros sobre
um grande número de tolos”.
Leymarie já tinha sido detido antes do julgamento na prisão de Mazas por aproximadamente um mês, a partir do dia 22 de abril de 1875. Este tempo de
detenção talvez tenha sido abatido da sentença de um ano, uma das possíveis razões pela qual ele saiu depois de nove meses encarcerado na prisão de La
Santé.
Em meados de maio, ele realmente ainda estava em Mazas, conforme nota que ainda acrescentou: “O clero em Paris está zangado com o Sr. Leymarie
por ter inserido na Revista Espírita uma resposta inteligente à pastoral contra o Espiritismo emitida pelo Bispo de Toulouse442; na verdade, o clero gostaria
de aniquilar tanto ele quanto sua revista, se pudessem, e, como têm grande influência, os processos contra o sr. Leymarie são observados pelos espíritas
parisienses com alguma ansiedade”443.
Ele foi solto em 21 de maio: “O Sr. Leymarie, editor da Revista Espírita, só foi solto, com a mesma fiança, anteontem”444. Esta informação foi repetida
no Spiritual Scientist, de Boston, de 17 de junho, que acrescentou: “Leymarie é um cavalheiro e um homem de cultura, e deu as mais amplas provas de sua
sinceridade como espiritualista”. Nesta mesma edição, Anna Blackwell escreveu: “No próximo julgamento, é da maior importância apresentar provas
realmente de peso da realidade dos fenômenos, especialmente de materializações e fotografias de espíritos. Se o Sr. Crookes, o Sr. Varley [Cromwell
Fleetwood Varley] e outros de sua posição comparecessem ao julgamento, a sociedade aqui pagaria suas despesas (...)”. Este mesmo jornal informou ainda
na edição de 24 de junho de 1875, ainda antes da condenação: “A seguir, será a vez do Sr. Leymarie [depois do Sr. Firman], e tememos que ele venha a ser
a segunda vítima da intolerância e malícia Católica Romana”.
Ele também não “fugiu para a Bélgica para evitar sua sentença de prisão, que mais tarde seria comutada”445. Ele obteve uma licença sob uma nova fiança
de 80 libras e viajou para participar do Congresso de Bruxelas, que teve início em 25 de setembro de 1875. Ele retornou a Paris em 30 de setembro, pelo
menos segundo Marina Leymarie informou a Anna Blackwell446.

437 Édouard Isidore Buguet também tinha uma secretária que teria falsificado a letra de Allan Kardec na fotografia com Amélie Boudet. Era provavelmente Léonie Caroline Ménessier (1851-1905), mas não nos aprofundamos na pesquisa desta personagem.
438 Neste livro, o magistrado diz nas pp. 7-8: “O que fizemos com o sacerdócio? o que é hoje: pedagogo, que ensina catecismo às crianças; um mestre de Cantochão [prática monofônica de canto utilizada nos rituais sagrados]; o confessor das senhorinhas; o
impotente defensor de uma sociedade diante da Justiça de Deus! Sua influência é muito limitada, se coopera na conservação das boas tradições e dos bons costumes, só coopera mais do que eventualmente no governo do Estado! Não é mais uma ordem; não
é mais do que uma corporação de Pastores. Coisa extraordinária, neste papel que é em parte o dos pastores das igrejas reformadas, o padre já não sabe falar aos homens! Ele não lhes conta nada sobre trabalho, sobre família. Ele está em silêncio sobre o
patriotismo! Esquece os grandes interesses da vida, pela glória dos dogmas, que seus ouvintes já não ouvem”; e depois, surpreendentemente, nas pp. 26-27: “O sacerdócio faz esse trabalho bem para os fiéis católicos. Por que um governo não deveria imitá-
lo? A moralidade é semelhante à religião, ambas podem ser aprendidas. Quando o Estado der a cada um de nós uma regra, princípios e uma fé comum, poderá então, sem perigo, autorizar a liberdade de educação. Enquanto não o fizer, a liberdade de
educação dividirá seus filhos, em vez de uni-los, e prolongará em nossa história a existência desastrosa dos partidos políticos. Se, pelo contrário, o Estado entrar no caminho da educação cívica, idêntica, obrigatória para todos, o egoísmo familiar e o espírito
partidário serão superados”.
439 A primeira expulsão das congregações religiosas aconteceu em 1880 provocando demissões em massa no Judiciário. Tendo a circular ministerial de 24 de junho de 1880 confiado aos magistrados de acusação [procuradores] a execução das expulsões, a
aplicação dos decretos provocou demissões em massa entre os promotores que condenaram essas medidas antirreligiosas. Quinhentos e cinquenta e seis magistrados recusaram-se assim a cumprir as ordens do governo e preferiram demitir-se (...). O mal-
estar generalizou-se a todos os níveis da hierarquia, tanto na magistratura “sentada” como no ministério público; houve assim cinquenta e seis membros renunciantes de tribunais de apelação, sessenta e três promotores públicos, cento e trinta e nove
suplentes, sessenta e seis juízes de paz e cento e oitenta e oito dos seus suplentes, trinta e dois juízes etc. Os jornais católicos mantiveram a agitação, publicando todos os dias as cartas de demissão dos magistrados e dos funcionários que se recusavam a se
submeter. De fato, também ocorreram demissões de oficiais, comissários de polícia e policiais. Os promotores que se recusaram [a aplicar o decreto] eram em sua maioria católicos, mas também havia protestantes (...).
440 Berthe Fropo (1821-1898), primeira vice-presidente da União Espírita Francesa.
441 Novamente, a “ordre moral” foi uma coalização de direita e o nome de uma política para a reconquista religiosa da sociedade. Baseava-se numa educação religiosa reforçada, a única que seria capaz de erradicar as más influências herdadas da filosofia do
Iluminismo e do Positivismo.
442 Nas edições da Revista Espírita de março e abril de 1875, encontramos a pastoral e a resposta. Mas, conforme as pp. 174-175 de Laboratories of faith: “O primeiro sinal de problemas para Leymarie e os espíritas apareceu em meados de novembro de 1874,
quando o Ministério do Interior proibiu Les mondes des esprits, de Audouard. O Ministério não deu conta de suas razões para censurar o livro, mas o apoio entusiástico do texto a Buguet, provavelmente, motivou a decisão: a investigação policial do
fotógrafo havia começado cerca de três semanas antes de o Ministério emitir sua ordem (...)”. Ela reclama da censura, conforme o jornal Le Rappel de 12 de novembro de 1874.
443 “Persecution of spiritualists in Paris”, The Spiritualist, vol. 6, nº 20, 14 de maio (1875), p. 234. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/spiritualist/spiritualist_v6_n20_may_14_1875.pdf; acesso em: 12/08/2022.
444 Carta de 23 de maio publicada na edição de 28 de maio de 1875 do jornal The Spiritualist de Londres.
445 J. W. Monroe, Laboratories of faith. Cornell University Press, Ithaca – NY (2008), p. 195.
446 A. Blackwell, “The persecution of spiritualists in Paris”, Spiritual Scientist, vol. 3, nº 7, 21 de outubro (1875), p. 82. Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/spiritual_scientist/spiritual_scientist_v3_n7_oct_21_1875.pdf; acesso em: 12/08/2022.
Atualizamos a cronologia dos principais fatos do “processo dos espíritas”:

Data Evento
01/04/1873 O médium Céphas447 traz instruções para se obter fotografia espíritas
01/01/1874 Fotografia do Espírito Katie King feita por William Crookes é mencionada no Quarterly Journal of Science448
01/01/1874 Primeira referência a Buguet e suas fotografias na Revista Espírita
Olympe Audouard (1832-1890), membro da futura União Espírita Francesa, publica Les mondes des esprits, com referências a Buguet, talvez o estopim do “processo dos espíritas” (a data é a
01/08/1874
do registro do livro no jornal Bibliographie de la France)
01/04/1875 Resposta de Valentin Tournier (1821-1898) na Revista Espírita ao bispo de Toulouse
22/04/1875 Leymarie é detido na prisão de Mazas
21/05/1875 Leymarie é solto, depois de aproximadamente um mês
17/06/1875 Leymarie é condenado a um ano de prisão e 500 francos de multa, depois de duas sessões
06/08/1875 O tribunal de apelação confirma a sentença, depois de duas sessões
Enquanto aguarda a solicitação de anulação da pena, Leymarie participa do Congresso de Bruxelas (depois de obter licença e pagar nova fiança), retornando da Bélgica, em 30 de setembro de
25/09/1875
1875
05/02/1876 O tribunal de cassação rejeita a solicitação de anulação da sentença, depois de uma sessão
22/04/1876 Leymarie é confinado à prisão de La Santé
22/01/1877 Leymarie é libertado, depois de nove meses (não sabemos ainda todas as razões da redução da pena)

Na biografia de P. G. Leymarie publicada no livro de 1906, Os pioneiros do espiritismo na França, de J. Malgras, encontramos: “Os inimigos do
Espiritismo, à espreita de qualquer coisa que pudesse deter o movimento ascendente desta doutrina, agarraram avidamente à oportunidade de uma prova
para lhe dar um golpe e acabar com ela sob a poderosa arma do ridículo. E, de fato, foi menos o julgamento das fotografias do que o julgamento dos
próprios espíritas. O Sr. Leymarie, tomado como bode expiatório, foi acusado de todos os delitos e de todas as zombarias e condenado. Apressemo-nos a
dizer que esta condenação foi apagada [effacée] poucos meses depois por uma reabilitação completa, e que o Espiritismo emergiu desta prova mais forte do
que nunca, assim como o Sr. Leymarie ganhou um recrudescimento da estima e confiança com a simpatia geral dos sinceros amigos da causa”.
Ou seja, Leymarie cumpriu a pena, e embora não tenha sido absolvido judicialmente, sua condenação foi esquecida pelo tempo, pelo menos, segundo J.
Malgras.
Um relatório de polícia de 31 de março de 1875, assinado por Girard, informou a presença de oitocentas pessoas no túmulo de Allan Kardec no Cemitério do Père Lachaise das 14h30 às
15h50, nomeou quem fez os seis discursos, quantificou as coroas (dezesseis) e buquês (oito), bem como informou o nome de algumas flores e suas cores (violetas nos buquês e perpétuas
amarelas e vermelhas nas coroas). No ano anterior, estiveram presentes apenas trezentas pessoas. Ao longo dos anos, a quantidade de pessoas oscilou de duzentas, logo após o “processo
dos espíritas”, até seiscentas pessoas em 1884, mas variando depois em torno de quinhentas a trezentas pessoas. Com base apenas nestes números, não se pode afirmar categoricamente
quão negativo tenha sido o “processo dos espíritas” no médio prazo, já que depois da redução em 1876, o número acabou se estabilizando ao longo dos anos e voltando aos patamares de
1874.
447 Louis de Montaut (Céphas), juiz de paz em Parentis-en-Born, era amigo de Kardec, e trouxe esta mensagem na Revista Espírita de abril de 1873.
448 O primeiro retrato copiado de uma fotografia de 7 de maio de 1873 foi publicado na p. 201 da edição de 15 de maio de 1873 de The Spiritualist. Ver ainda a p. 108 do livro Researches in the phenomena of spiritualism, de W. Crookes. e fig. 39 na p. 497 do
vol. II (Les apparitions des morts) do livro Les apparitions matérialisées des vivants & des morts, de G. Delanne.
7. Olhares retrospectivos de 1875 até 1879

Os olhares retrospectivos ou golpes de vista sobre determinado ano, como já vimos, eram artigos geralmente publicados na Revista Espírita de janeiro do
ano seguinte, trazendo análises, reflexões e perspectivas para o ano. Tal prática tinha sido iniciada por Allan Kardec, por exemplo, com “Estado do
Espiritismo em 1863”, de janeiro de 1864, “Golpe de vista sobre o Espiritismo em 1864”, de janeiro de 1865, “Olhar retrospectivo sobre o movimento
espírita”, de janeiro de 1867 e “Golpe de vista retrospectivo”, de janeiro de 1868.
Com poucas exceções, desde o início do pós-Kardec, a Revista Espírita continuou com o modelo adotado, às vezes com um olhar retrospectivo disperso,
como na edição de maio de 1875, um mês antes da condenação de Leymarie no “processo dos espíritas” em primeira instância.
Esta edição da Revista Espírita se referiu a Allan Kardec como um magnetizador experiente, que sempre condenou a mediunidade paga, numa crítica aos
anglo-saxões para quem “tempo é dinheiro”. Apresentou ainda uma tradução de um artigo de Niceforo Filalete449 trazendo comentários sobre espíritas que
só se interessavam ou pelo fenômeno, ou pela filosofia, ou pela moral450. Depois da análise deste artigo, falou-se de médiuns que faziam curas gratuitas
pela imposição das mãos, com a ajuda da oração e da fé racional. Esses médiuns tinham sido processados e multados, mas depois de uma investigação,
tiveram a honra perfeitamente restabelecida em Béziers, na região de Occitânia.
Conforme Leymarie relatou na Revista Espírita do ano seguinte, 1875 tinha começado sob auspícios mais felizes. Falou, também, das experiências de
sociedades científicas. Depois contou sobre a dura prova a que tinha sido submetido451, o julgamento e a campanha da imprensa francesa antiespírita. Os
fatos acabaram provocando um efeito contrário: na Inglaterra e na América, Leymarie foi visto como mártir.
Escreveu que a SA tratava com Blackwell sobre a impressão de suas traduções das obras de Kardec para o inglês. Comentou-se, ainda, do movimento
espírita ao redor do mundo, destacando-se que alguns grupos em Paris se dedicavam a problemas sabiamente deixados no escuro há dezessete anos, sem,
no entanto, elencá-los.
Em Ficções e Insinuações, Leymarie disse que uma carta de 3 de novembro de 1875 do seu editor, Sr. Trübner (Londres, na Inglaterra), contou-lhe que dos setecentos e setenta e cinco
volumes de O livro dos espíritos, tinha vendido apenas cem exemplares, e que não aconselhava imprimir mais que setecentos e setenta e cinco volumes de O livro dos médiuns, pois que O
livro dos espíritos foi muito mal-recebido na Inglaterra e, sobretudo, maltratado pela crítica desse país. Um ano teria sido suficiente para reverter tal impressão, pelo menos na língua
inglesa?

No bom ano de 1876452, conforme foi descrito na Revista Espírita453, especialmente pela reaproximação ocorrida na grande família espiritualista e
espírita, tivemos julgados inocentes cinco dos seis médiuns acusados de cura por meio do magnetismo. Curiosamente, foi dito que já havia se esgotado seis
edições em inglês de O livro dos médiuns (tradução de Emma A. Wood) e duas de O livro dos espíritos, dos editores Srs. Colby e Rich (Boston, nos EUA).
Falou-se também de materializações e sobre o movimento espírita internacional, inclusive de personagens importantes como Aksakof, Crookes, Srs.
Lieutaud454 e Doutor Netto, do Rio de Janeiro, e irmãos de São Paulo. Comentou-se, ainda, sobre um estranho “tratamento da obsessão e da loucura com
seda”455.
Neste ano em que Leymarie esteve preso a partir de abril, o futuro presidente da SPEE, capitão Alexandre Bourgès456, ficou na cogerência da Revista
Espírita (de agosto de 1875 até outubro de 1876, quando assumiu o Sr. Hubert Joly).
“Em 1877, tristes preocupações assolaram a França”. A Revista Espírita se referiu certamente à crise constitucional de 16 de maio. Entretanto, relatou
que fatos comprovavam o crescimento do movimento espírita no mundo e que, do Rio de Janeiro, a sociedade espírita havia enviado os cinco volumes do
Mestre traduzidos para o português457.
A Revista Espírita também abriu as portas aos relatos da Sociedade de Magnetismo (ou magnética) de Paris, onde, segundo o periódico, todos os
membros eram espíritas. Lembrou ainda que todos os anos, no dia 31 de março, espíritas delegados pelos grupos parisienses circulavam às duas da tarde ao
redor do dólmen que cobre os restos mortais de Allan Kardec. Na sequência, falou da multiplicação de médiuns curadores por toda parte e da partida de
Antoinette Bourdin e filhas para a América do Sul [Brasil].
Continuou informando que apesar de ter se afirmado que os médiuns estavam se tornando escassos, a reunião espírita de 1º de novembro, citada pela
Revista Espírita de 10 de dezembro de 1876 [sic]458, desmentiria essa afirmação um tanto ousada. Ainda assim, comentou que se sabia que o título de
espírita diminuía aos olhos do mundo oficial aquele que o carregava. Terminou falando de fotografias espíritas obtidas em Cuba!
No “Olhar retrospectivo sobre o ano de 1878”, ano da terceira Exposição Universal em Paris, os espíritas estavam felizes com este evento cheio de
serenidade, tão moralizante, que lhes permitiu confraternizar com seus F.E.C.459 que tinham vindo de todo o mundo para assisti-lo. O evento foi usado
também para justificar a mudança de endereço da SA460. Contou-se da intenção de visita dos teosofistas Sr. Olcott e Sra. Blavatsky à SA e à recém-fundada
Sociedade Científica de Estudos Psicológicos461. Falou-se do lançamento de Ísis sem véu, que teve um exemplar presenteado pela autora, Sra. Blavatsky, ao
Sr. e Sra. Leymarie, como uma obra erudita, cheia de espírito socrático462, bem como de obras de Crookes, Zollner, Aug. Babin etc. Tratou-se, também, de
novas revistas ao redor do mundo, além do aumento de páginas da Revista Espírita.
A política de “ordre moral” do governo havia terminado por volta de 1876 ou 1877, mas a influência da igreja na sociedade, contra o Espiritismo, estava
cada vez mais forte. Entre os antagonistas estavam também acadêmicos materialistas, apesar dos seus questionáveis tratamentos para a possessão.
Numa extensa carta aos assinantes da Revista Espírita em janeiro de 1880, os administradores H. Joly e P. G. Leymarie identificaram os inimigos do
Espiritismo: sumos sacerdotes e teólogos da igreja positiva, além de guardiões da ciência acadêmica, escritores oportunistas do jornal La République
Française, os Jules Soury463, os editores militantes da imprensa política e da imprensa jesuíta, além de perturbados sectários religiosos que, impotentes,
passaram a apoiar os ateus nesta campanha geral contra o Espiritismo. Questionaram se aqueles escritores desavergonhados não deveriam ser vistos como
os histéricos da verdadeira ciência, os neuropatas da infalibilidade materialista. Mencionaram ainda o livro O espiritismo diante da ciência464, que dava a
prova de que eminentes astrônomos, químicos, matemáticos, linguistas, antropólogos, engenheiros, filósofos e literatos sustentavam a tese tratada por Allan
Kardec.
Prosseguiram, então, dizendo:
A velha Sorbonne, cuja cúpula antes abrigava apenas grupos de estudiosos sérios, tão famosos por tudo o que lá se fazia, a respeitável Sorbonne recebe lamentáveis mágicos que são elevados à
dignidade de professores de antiespiritismo; ex-médiuns e espíritas, autorizados pelo poder, voltam a exterminar o Espiritismo. Nas províncias, divertidos físicos da mesma ordem vão por toda
parte, com sua prestidigitação, aos teatros, aos seminários e principalmente às casas religiosas, para provar que os Espíritos não existem, pois médiuns e charlatões, espíritas e vigaristas
[chevaliers d’industrie] são coisas semelhantes! querem desprezar e incapacitar quem crê no Espiritismo. Este proceder, esta malandragem para surpreender a religião dos simples, ou dos que não
leem, não emprega apenas a ajuda de trapaceiros [joueurs de gobelets] que enfeitiçam o seu público, existem outros métodos para semear armadilhas diante da boa-fé dos leitores, citamos um
exemplo:

Na França, duas poderosas empresas [seguradoras], a “Assurance générale sur la vie” e a “Nationale”, enviam a cada ano aos seus segurados, que são milhões, um almanaque contendo
artigos intitulados: “O Espiritismo e o Seguro”, uma coleção real de banalidades desleais para fazer os segurados rirem às custas de homens livres, independentes e estudiosos; essas trivialidades,
com as quais esses almanaques afirmam “ter bem e devidamente enterrado o Espiritismo na França”, são recomendadas pelos diretores dessas empresas que não são nada menos, segundo nos
dizem, do que servidores fiéis do Sagrado Coração de Jesus, da Santíssima Maria Alacoque. Com essas loucuras burlescas, sem lógica e sem bom senso, os sectários provam sua impotência! os
homens mais hábeis desta seita, que por sua vez entraram na disputa, desdobraram todos os seus argumentos, durante vinte e cinco anos, e como o Espiritismo vai bem, apenas verdadeiros
estudiosos, e não “courtiers de la littérature”, o adotam e defendem mais do que nunca, os homens sérios continuam convencidos de que a falta de boas razões, por si só, força os hipócritas
[escobards] a usar o recurso triste e ignóbil da calúnia.

O Espiritismo permanece o que realmente é; sua doutrina concisa e clara, desvinculada de falsas interpretações, porque está escrita em termos tão compreensíveis e o todo é tão lógico, que seus
inimigos jamais conseguirão fazê-la dizer o contrário do que diz, fazê-la tirar adeptos da moderação que espanta e frustra seus caluniadores; os últimos, de acordo com A.K., podem ser numerados
da seguinte forma: Fanáticos de todas as seitas, Crentes satisfeitos, Crentes ambiciosos, Crentes formais, Materialistas sistemáticos, Sensualistas, Despreocupados, Panteístas, Deístas,
Espiritualistas sem sistemas, Crentes progressistas, Crentes insatisfeitos, Incrédulos por falta de algo melhor, Livres-pensadores, Espíritas de intenção.

H. Joly e P. G. Leymarie ainda acrescentaram a afirmação que circulava pelos detratores do Espiritismo: “Deus não existe e se ele existe, ele não pode
mudar nada nas leis eternas; agora, por que rezar para ele, já que o destino dos Espíritos está traçado, dizem? qualquer pedido por palavras torna-se inútil, e
orar nas reuniões é manter o preconceito e a superstição, sendo o Espiritismo uma ciência e não uma religião”.
Argumentaram então: “Quer esta ordem de ideias seja pessoal de um grupo, quer tenha sido habilmente insinuada entre os espíritas, não fica menos
estabelecido que, se pelas leis fluídicas se explica o poder do pensamento que pode atrair um Espírito, conceberemos da mesma forma o poder de oração
que nada mais é do que um pensamento projetado para uma meta prevista e determinada; rebelião e orgulho, por si só, podem negar sua eficácia. As almas
dos nossos mortos nesta vida só pedem um bom pensamento, uma oração, porque lhes é útil, que vejamos o seu valor em certas doenças, e que os médiuns
curadores a utilizem como o melhor dos auxiliares. Os presunçosos e os ignorantes, que não rezam, ignoram a força que uma invocação mental, que um
bom pensamento dá ao Espírito pronto a enfraquecer, a quem lamenta o ausente, que precisa de apoio moral na adversidade, a todos os que acreditam que
ao elevar a alma, escapa-se de coisas muito materiais para entrar em comunhão com Deus e com o mundo espiritual”.
Na sequência da carta, encontramos em outro artigo: “Parece que no Piemonte os pobres possuídos de Verzeguis eram atormentados de todas as
maneiras, ou pelos padres, ou pela faculdade de medicina, ou pelas autoridades; esta trindade de forças nada tinha compreendido destes casos
extraordinários que pertenciam ao domínio espírita (...). O Sr. doutor Charcot, que encontrou, diz ele, o mesmo caráter dessa possessão nos efeitos nervosos
que ela produz sobre os histéricos da Salpétrière, deveria curar os possuídos de Verzeguis ou então dar aos seus colegas do Piemonte os meios curativos
que possui (...)”.
Da morte de Allan Kardec até 1879, vários fatos podem assim ser resumidos:
1. Popularização dos médiuns curadores e formação de palestrantes;

2. Forte influência da Igreja Católica na sociedade;

3. Processo dos espíritas, que acabou unindo-os e que também não teve influência a médio prazo, já que o número de adeptos do Espiritismo permaneceu relativamente estável.

449 Pseudônimo de Vincenzo Scarpa.


450 Annali dello Spiritismo in Italia de 1º de janeiro de 1875.
451 Primeira detenção em abril de 1875.
452 Apesar da prisão de Leymarie em abril de 1876.
453 Leymarie só saiu da prisão depois da edição de janeiro de 1877.
454 François Denis Casimir Ajute Lieutaud (1822-1889), professor, tesoureiro do grupo Confúcio e autor, entre outras obras, de Un manosquin au Brésil.
455 E. Crowell, “Interesting experiments – Silk a non-conductor of psychic magnetism”, American Spiritual Magazine, vol. 2 (1876), p. 136. Link de acesso: books.google.com.br/books?hl=pt-BR&id=YBX4K4ih8-AC; acesso em: 12/08/2022.
456 Depois de Kardec e Boiste, Simon Alexandre Bourgès (1822-1886) foi o presidente mais longevo da SPEE.
457 São de 1875: O livro dos espíritos, O livro dos médiuns e O céu e o inferno. O evangelho segundo o espiritismo é de 1876 e A Gênese só foi traduzida em 1882.
458 O correto é 1º de dezembro de 1877.
459 A partir do final de 1877, a sigla começa a ser usada com maior frequência. F.E.C. = “Frères En Croyance” ou Irmãos Em Crença. Outras siglas utilizadas ao longo da Revista Espírita são: F.E.S. = “Frères En Spiritisme” ou Irmãos Em Espiritismo; S.E.C.
= “Sœurs En Croyance” ou Irmãs Em Crença; e S.E.S. = “Sœurs En Spiritisme” ou Irmãs Em Espiritismo. Tal prática foi talvez inspirada na maçonaria. Allan Kardec chegou a utilizar a expressão “frère en croyance” em sua correspondência, mas não a
sigla.
460 Em Ficções e insinuações. Leymarie diz que a mudança foi aprovada por unanimidade em Assembleia Geral, inclusive com o voto de Amélie Boudet. Aliás, em 1878, a Livraria Espírita também mudou de nome e passou a se chamar Livraria de Ciências
Psicológicas.
461 Não confundir esta sociedade do maçom Charles Fauvety com a SPEE ou com a Sociedade Científica do Espiritismo, novo nome da SA a partir de agosto de 1883, e nem com a Sociedade do Espiritismo Científico, de A. Laurent de Faget.
462 O rompimento oficial de Leymarie com a teosofia aconteceu apenas em 1884.
463 Jules Soury (1842-1915) foi um teórico e historiador da neuropsicologia, professor da École Pratique des Hautes Études. Ele é conhecido por suas convicções antissemitas e seu compromisso nacionalista.
464 C. Fauvety et al., Le spiritisme devant la science et le matérialisme mécaniciste devant la raison. Librairie des Sciences psychologiques, Paris – France (1880). Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k54937565; acesso em: 12/08/2022. Não
confundir com aquele livro com o mesmo título escrito por Gabriel Delanne.
8. A teosofia

Muita coisa já foi dita sobre a teosofia e Leymarie, entre elas: “Ele estava interessado em uma variedade de novas tendências, incluindo a teosofia, e
parecia ter sido um tanto crédulo”465, “(...) todas as suas comunicações teosóficas na Revue trazem adjetivos medidos e bem posicionados, que revelam um
Leymarie altamente teosofista (...)”466 e “Era um praticante de teosofia de Blavatsky, defendia as alucinações de Roustaing e era apaixonado pela
maçonaria”467.
No entanto, se a Revista Espírita de 1881 se referiu a cursos promovidos pela teosofia, na nossa análise incluída na tradução da brochura Ficções e
insinuações, de 1884468 vemos que o jornal O Teosofista de fevereiro de 1905 havia declarado: “(...) em cooperação com alguns amigos o Sr. Leymarie
formou um ramo da nossa Sociedade, mas não teve uma existência muito prolongada, e como ele não podia se soltar de seu Espiritismo ortodoxo, a
conexão foi finalmente descartada”.
De fato, embora o Comitê de Leitura da Revista Espírita tenha dado espaço à teosofia, Leymarie se redimiu da aproximação com esta doutrina em um
artigo de 15 de dezembro de 1885469. Poderia se alegar que “o estrago já estava feito”, contudo encontramos vários personagens importantes para o
Espiritismo que estudaram a doutrina teosófica, como por exemplo Flammarion, depois de ser espírita, foi um teosofista atuante; Herculano Pires, da
mesma forma, foi teosofista, mas antes de se tornar espírita. Angeli Torteroli, antirroustainguista, também se dedicou ao estudo da teosofia470.
No artigo mencionado, foram feitos comentários a esta resposta dada no jornal L’Anti-Matérialiste de 5 de dezembro de 1885 pelo Sr. F.-Ch. Barlet471 às
Sras. Léa de M.472 e Pauline Pozzi473: “Todos os chamados fenômenos espíritas vêm dos Elementais, agentes sem inteligência, de forças cegas, aos quais
certas correntes magnéticas se prestam para traduzi-los em ações, até mesmo em ideias inconscientes. Nossa prova está no fato de que os Iniciados fazem
esses Espíritos dizerem e fazerem aquilo que lhes agrada e quando lhes agrada. Os médiuns, ao contrário, longe de dominá-los, colocam-se passivamente
ao serviço de seus desejos, e aí está o perigo do Espiritismo”.
Na sequência do artigo, Leymarie afirmou (destaques em negrito são nossos):
Desde 1872, temos mantido contato constante com a Sra. Blavatsky e o Coronel Olcott; fomos nomeados membros da Sociedade Teosófica, desde sua fundação em Nova York, e, posteriormente,
membros do Conselho Geral, títulos graciosos não merecidos, pois éramos ignorantes em teosofismo, estudantes também honrados com essas distinções, mas que dizíamos bem alto permanecer na
expectativa, querendo ser esclarecidos com segurança e racionalmente antes de aceitar uma nova teoria.

Para nós, para os Srs. Ch. Fauvety, E. Nus, Tremeschini e muitos outros, este esclarecimento não tinha chegado, mas veio até nós trazido pelos próprios fundadores da Sociedade Teosófica da
Índia, que anunciaram pela imprensa sua viagem à Europa, que iria se revolucionar intelectualmente. Isso foi em 1884474.

Juntamente com as Sras. Ch. Fauvety e Deraisme – Srs. Ch. Fauvety – E. Nus – P. G. Leymarie por um lado. – Sr. Coronel Olcott – Sra. Blavatsky – Brahme Mohini, discípulo (chela) e ilustre
especialista em sânscrito, foram convidados para uma reunião, em Asnières, na casa do Sr. Ch. Fauvety. Às 3 horas da tarde, reuniram-se as referidas pessoas e, além disso, dois professores
ingleses que falavam o francês fluentemente, teosofistas muito educados, apresentados como pessoas distintas – duas pérolas raras, segundo a expressão da Sra. Blavatsky.

Após uma discussão cuidadosa, calma e séria de três horas, nossas indagações muito específicas não obtiveram soluções; nossos adversários não concluíram nem apresentaram senão
argumentos sem critério, conhecidos da velha filosofia, e tudo isso, sem provas científicas, sem o fato capital que confirmasse a teoria. Para entender, seria preciso: treinamento especial, viver
apenas de vegetais, privar-se de vinho, licores fermentados, beber água, deitar-se na esteira, ser casto, enfim, matar o corpo para fortalecer o espírito. Tínhamos acreditado e acreditamos na boa fé
dos teosofistas presentes, que eram Mestres, mas notamos sua incapacidade de responder às nossas perguntas; os Mahatmas, tão poderosos, com os quais os delegados se correspondem
instantaneamente, deveriam ter se unido aos seus alunos, que, em seu nome, deveriam produzir pelo menos um daqueles fenômenos que costumam ter, dizem eles, um simples fato capital que
confirmaria cientificamente suas teorias que nasceram a 3.000 léguas475 da Europa, e, enfim, para que não pudéssemos repetir este ditado popular: Uma bela fala que vem de longe (A beau parler
qui vient de loin). O Sr. Fauvety com um sorriso, e em voz baixa, proferiu estas palavras expressivas e formais que encerraram nossa conversa de três horas: “Queridos teosofistas, lamentamos
dizer-lhes, conquanto fiquemos gratos por sua visita fraterna, mas vocês não nos deram mais do que a velha ladainha” (la vieille rengaine). Pode não ser palavra por palavra, mas o pensamento
é bem tal e qual.

Caros teosofistas, que passaram seu tempo se denegrindo durante a estadia de seus mestres em Paris, como só os sectários podem fazer; vocês se devoraram ferozmente na França e na
Inglaterra, entristecendo a Sra. Blavatsky e o Coronel Olcott, que vieram revolucionar o mundo intelectual europeu, e teria sido melhor nos provar a razão de ser do teosofismo; sem
complicações. Sejam lógicos e sejam claros em seus sete elementos ou sete princípios. É verdade que vocês têm atração por palavras estrangeiras, novas para neófitos ávidos pelo desconhecido:
Luiga Sahira — Kama Rupa — Manas — Atma — Karma — Kama loca — Devachan — Rupa loca — Arupa — Loka-l’avitchi — o Nirvana — Upadana — Nyakta — Avyakta — Prakriti, etc., etc.
Não entender nada, isso seria a iniciação? Quando se está de posse dessas palavras e dos sete elementos, pelo menos, não se deve morder a mão do iniciado que os tornou teosofistas! E o que
vocês fizeram em relação a esta brava senhora, com este grande coração, a autora de Ísis sem véu!!! É de se perguntar se o vírus árabe é absorvido pelo Ocultismo.

Vocês refutam a doutrina espírita que vocês acham enganosa e nebulosa! Mostram-nos, na linguagem simples e nítida de Allan Kardec, tão compreensível e tão lógica, que vocês estão certos? É
fácil empilhar palavras umas sobre as outras, exigir um treinamento especial, uma alta iniciação que só se obtém em graus sucessivos, e adornar suas teorias filosóficas, muito respeitáveis sem
dúvida, mas cuja validade os líderes de sua escola são impotentes para demonstrar o fundamento a homens tão experientes como E. Nus, Ch. Fauvety, etc., etc. Para dar uma lição aos outros,
parece necessário compreender propriamente.

Até novas e completas provas, queridas senhoritas Turin476, preservemos nosso livre-arbítrio e o inegável direito de julgar severamente todas as novas teorias, usando a razão simples e fria.

(...) Assim como o catolicismo moderno é apenas um reflexo doentio do cristianismo de 2.000 anos atrás, a teosofia atual não é mais do que a noção bem vaga de verdades que iluminam o
mundo há 50.000 anos.

Para a equipe editorial: P.-G. Leymarie.

As relações entre Leymarie e Blavatsky já não eram boas desde 1882, pelo menos. Na carta endereçada ao Sr. Courmes477, em 17 de janeiro daquele ano,
ela falou de Leymarie como muito fanático e muito kardeciano (trop bigot et trop kardécien), acrescentando ainda que confiava um pouco no Sr. Bilière,
mas nada no Sr. Leymarie. Para o mesmo destinatário, em 17 de abril de 1883, Blavatsky informou: “Leymarie escreveu-me uma longa carta, uma
verdadeira reclamação normanda. Ele me acusa de traí-los, de trair Espíritos queridos, de querer fundar um jornal que tratasse do ocultismo e explicasse a
natureza desses Espíritos! (...) Gosto muito dele, Leymarie; mas ele é mesmo um fanático (...)”. E em 17 de julho de 1883, para um “querido irmão em
Buda”, mencionando os três grupos teosóficos de Paris, ela desabafou: “3º Grupo: Sociedade Teosófica de Paris, presidente??? Nunca pudemos descobrir.
É Leymarie? (...) Peço perdão se você tem amigos lá, mas todos que eu conheço são idiotas incuráveis, a meu ver.”478
Na Revista Espírita de 1º de janeiro de 1886, foi reforçado que “(...) para nos garantirmos mutuamente contra as insinuações dos teosofistas, que tendem
a fazer crer que os espíritas se extraviaram por um ensino errôneo e falso, inserimos, no nº 24 da Revista de 1885, a expressão formal da verdade, a
fotografia exata de nossa entrevista com os líderes da teosofia, e demonstramos sua incapacidade de nos provar a validade de suas teorias! (...) qualquer
novo ensino tinha que estar em conformidade com a razão, a lógica e o bom senso, o que o ensino defendido pelos jornais e escritores teosóficos não
poderia nos dar. (...) Isso é o suficiente, ao que parece, e nós lançamos luz suficiente sobre essas sombras para não voltar para elas novamente. Repitamos
com o poeta latino: Errare humanum est (Errar é humano)”.
Dois anos depois, na Revista Espírita de 1º de janeiro de 1887, foi dito: “(...) Para os mahatmas, os budistas, os teosofistas, os sectários de Vintras, os do
Deus Hierofante e irmão mais velho de Jesus Cristo, autores de todos os tipos de missões, os espíritas são mentes ignorantes, simples de espírito que
cometem o erro imperdoável de fugir dos inovadores nebulosos e de sua filosofia incompreensível. Esses pseudossábios (...)”.
Finalmente, na Revista Espírita de janeiro de 1891, foi esclarecido: “(...) eles afirmam que a teosofia neobudista não é uma religião, mas a essência de
todas as crenças e a verdade absoluta (...) Ah! como é bom ser um humilde aluno de Allan Kardec, praticar a filosofia do bom senso acessível a todos,
compreensível, consoladora e amplamente aberta a todo progresso. Embora respeitando a pesquisa acadêmica e o orgulho desproporcional desses
inovadores neobudistas, continuamos a ser simples pesquisadores, amigos da verdade, como os pequeninos que somos. (...) os neobudistas fariam crer que
somos seus vassalos e queremos nossa liberdade sem nenhum obstáculo. A Revista Espírita representa apenas a doutrina de Allan Kardec, cujas
informações estão abertas a todos os avanços; só mudaremos nossas ideias adquiridas se um movimento para a frente nos for indicado por novas verdades,
racionais e justas, simples e compreensíveis. O discurso vazio budista nos desagrada soberanamente e por boas razões”.
A teosofia continuou permeando a Revista Espírita por aproximadamente seis anos, principalmente de 1878, quando o livro Ísis sem véu, de Blavatsky,
foi divulgado, até 1883. Em 1884, houve o rompimento oficial. Ainda assim, uma nota ou outra ainda apareceu, como a seguir.
Numa carta encontrada na Revista Espírita de março de 1897, o comandante Courmes, teosofista, disse:
(...) durante o ano terrível, você se lembra, querido Sr. Leymarie, e nos últimos sete dias sangrentos da insurreição [comuna] de Paris, em 1871, quando a carnificina e o fogo espalharam sua
devastação por todos os pontos da capital. Atirei-me com meus marinheiros no meio da fornalha; qual é o poder que me levou, oficial simples e jovem, na frente da casa que continha os Arquivos
do Espiritismo, em 24 de maio, no exato momento em que as chamas iriam alcançá-lo?

Na edição de novembro do mesmo ano, numa nota sobre conferências teosóficas, encontramos:
(...) ele tem o direito às simpatias de todos os espíritas por ter, durante a comuna, em 1871, com os marinheiros por ele comandados, resgatado do fogo a Livraria Espírita, no nº 7 da Rua de
Lille, e também o busto do mestre Allan Kardec, perto do Père Lachaise.

Como percebemos, recortes da história apenas afirmam o que a pessoa fazia, dizia ou acreditava em um momento no tempo! Não há garantia de que ela
foi assim a vida toda.

465 L. L. Sharp, Secular spirituality: reincarnation and spiritism in nineteenth-century France. Lexington Books, Plymouth – UK (2006), p. 80.
466 A. Calsone, Em nome de Kardec. 1ª Edição. Vivaluz Editora, Atibaia – SP (2015), p. 36.
467 J. Hessen, Movimento espírita pós-Kardec – episódios e declínio doutrinário na França. Monografia (s/n). Link para acesso: jorgehessenestudandoEspiritismo.blogspot.com.br/2017/02/movimentoespirita-pos-kardec-episodios.html; acesso em:
13/08/2022.
468 P. G. Leymarie, Ficções e insinuações – Resposta à brochura Muita luz. Portal Luz Espírita, Autores Espíritas Clássicos e CSI do Espiritismo (2021), p. 64. Link de acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L57.pdf; acesso em: 13/08/2022.
469 Apesar da posição contrária à teosofia, a admiração de Leymarie pela Sra. Blavatsky e pelo Coronel Olcott permaneceria.
470 A. Ribeiro Jr., A obra esquecida de Angeli Torteroli. CCDPE-ECM. São Paulo – SP (2022), p. 324.
471 Albert Faucheux (1838-1921), conhecido como F.-Ch. Barlet, um dos primeiros membros do ramo francês da Sociedade Teosófica.
472 Léa, condessa de Magny, conforme a Revista Espírita de fevereiro de 1895.
473 Pauline, casada com o Sr. Pozzi, conforme a Revista Espírita de março de 1895.
474 O ano de 1884 foi quando houve o rompimento oficial entre Leymarie e a teosofia [P. G. Leymarie, Ficções e insinuações – Resposta à brochura Muita luz. Portal Luz Espírita, Autores Espíritas Clássicos e CSI do Espiritismo (2021), p. 65. Link de
acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L57.pdf; acesso em: 13/08/2022].
475 Aproximadamente treze mil e trezentos quilômetros.
476 Assim eram conhecidas Pauline e Léa Turin, antes de se casarem, conforme a Revista Espírita de junho de 1891.
477 Dominique Albert Courmes (1843-1914), comandante da marinha francesa.
478 C. Blech, Contribution à L’histoire de la Société Théosophique en France. Éditions Adyar, Paris – France (1933), pp. 9-18 e 29-32. Link de acesso: resources.theosophical.org/pdf/Authors/Blech/Blech_Histoire.pdf; acesso em: 13/08/2022.
9. A pneumatologia universal

Vejamos, inicialmente, o que nos trazem as análises e conclusões de três diferentes autores sobre a pneumatologia universal.
“Em meados de 1880, sr. Leymarie se filiou à enigmática Sociedade do Livre Pensamento Religioso e à Sociedade da Pneumatologia Universal, o que
reforçou elementos secretos na Doutrina479, além de serem contraditórios aos preceitos espíritas”480.
“A pneumatologia universal tinha três princípios: a crença em Deus, na imortalidade da alma e na comunhão com as “inteligências superiores”. Dado que
considerava os Espíritos como “inteligências superiores”, divergia do Espiritismo, que ensina que também existem Espíritos imperfeitos481. Tampouco
reconhecia outros princípios doutrinários fundamentais, como o da pluralidade das existências corporais ou reencarnação482. Apesar do significativo espaço
concedido à teosofia e à pneumatologia universal483 em detrimento do Espiritismo (...)”484.
“Além disso, Leymarie se tornou um dos diretores da Pneumatologia Universal, instituição espiritualista não alinhada ao Espiritismo, e esta também
passou a ocupar, com destaque, as páginas da Revista Espírita485, a despeito de suas ideias contrastantes com as de Kardec”486.
Vamos entender melhor o contexto de Leymarie com relação à pneumatologia universal, através das fontes diretas encontradas.
Em janeiro de 1881, foi mencionado na Revista Espírita o título de presidente da 31ª decúria487 da sociedade espírita conhecida como Pneumatologia
Universal, oferecido a Leymarie. Neste artigo foi transcrita uma conferência do Sr. P. P., iniciais de Pirro Pierrusini, presidente do Centro Ocidental de
Pneumatologia Universal (11ª decúria). Não encontramos mais informações sobre sua identidade, mas na conferência ele diz: “Sinto a necessidade de
expressar minha gratidão ao irmão Rodolphe488, que, com tanto conhecimento de nossa doutrina, com grande clareza e eloquência, nos explicou a diferença
que existe entre a filosofia espiritualista e a filosofia espírita”. Na sequência fez uma crítica aos espiritualistas, em favor dos espíritas. Falou, ainda, que
“Deus não pode ser mau, não se vinga, é perfeito demais (...)” e que “por intermédio de Espíritos superiores a nós, ele continuamente nos faz traçar o
caminho que devemos seguir”. Complementou, dizendo em outro trecho: “Irmãos, pela nossa filosofia revelada, rasgamos o véu tecido pelas superstições,
demonstramos a pureza de Deus, que na sua justiça se revela a nós pelo belo, pelo verdadeiro, pelo bom. O Deus perfeito não ameaça, ajuda-nos a andar,
não nos abandona, mas nos encoraja; ele não quer nos punir, mas quer nos recompensar (...). Nosso Deus é o pai que nos enche de bênçãos depois de ter
criado nossa alma à sua imagem, alma perfectível pelas vidas sucessivas que retornam a ele”. E acrescentou: “Agora devemos ensinar aos homens que a
felicidade eterna não pode ser comprada, não pode ser adquirida com dinheiro, pelo sacrifício de ovelhas, em benefício dos sacerdotes parasitas, e que essa
felicidade se adquire com virtude moral, porque somente esta virtude agrada a Deus (...)”.
Não encontramos nesta palestra, nada muito diferente do que Allan Kardec e os Espíritos escreveram em O evangelho segundo o espiritismo.
A segunda e última menção à pneumatologia universal está na referência a uma carta do Sr. Pirro Pierrusini, de Livorno, publicada em um artigo na
Revista Espírita de junho de 1881. Nele, Leymarie lamentou não ter podido entrar em contato com esta sociedade de forma constante. Descobrimos ainda
que o Sr. Pierrusini, quando magnetizado espiritualmente, adormecia e se correspondia com outras sociedades pneumatológicas. Na carta, o Sr. Pierrusini
relatou efeitos físicos, como a aparição de uma bola de fogo de vinte centímetros de diâmetro e os interessantes fenômenos de transporte fluídico de cartas,
acrescentando que “para esses fenômenos, dizem nossos amigos, você tem que ter muitos médiuns de terceira encarnação”, que seriam também “médiuns
sonâmbulos falantes”.
Com exceção desta estranha referência à terceira encarnação, nada diferente do que temos em O livro dos médiuns.
Neste mesmo artigo, Leymarie ainda falou do Sr. Coen489, engenheiro em Livorno, homem culto, devotado, pneumatologista ilustre; e terminou pedindo
desculpas ao Sr. Pierrusini por não poder divulgar as palestras recebidas de Livorno, pois não havia espaço suficiente para publicá-las na íntegra, seja qual
fosse o valor que reconhecessem nelas... Prometeu incluir em breve uma delas, mas provavelmente desistiu, pois não a encontramos.
Quanto ao Sr. Coen, encontramos mais detalhes. Na Revista Espírita de novembro de 1880, descobrimos que este líder de um importante grupo de
espíritas de Livorno visitou a Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, que dividia a sede com a Sociedade para a continuação das obras espíritas de
Allan Kardec. A Revista ainda informou através de Louise de Lasserre490 que o Sr. Coen, animado por uma fé profunda, foi por muito tempo um
materialista. Em sessão da Sociedade Científica no dia 17 de setembro de 1880, ele falou por mais de uma hora e meia. Disse que o círculo de Livorno era
pequeno em número, mas que estava unido pelo pensamento a outros centros espíritas espalhados por todo o globo, e era, sem dúvida, por causa desta
grande união de forças psíquicas, que conseguiram obter a reconstituição de diplomas e pergaminhos, mesmo depois de rasgados, queimados e reduzidos a
cinzas. Prosseguiu dizendo que a cada dia os diferentes círculos unidos entre si correspondiam-se pela desintegração (“désatomisation”) das cartas, ou seja,
não usavam mais os correios, os Espíritos se encarregavam de transportar as cartas e relatar as respostas.
O artigo foi finalizado informando que “esses fatos despertaram uma curiosidade ardente entre muitos; esperemos que os espíritas da França, unindo
forças, possam deixar as estradas já batidas e tentar pela fé e pela vontade, produzir fenômenos tão interessantes. Não podemos esquecer que muitos
ouvintes, sem negar o fenômeno, gostariam de ver isso acontecer na frente deles”491.
Portanto Leymarie nunca deu destaque ou espaço significativo na Revista Espírita à pneumatologia universal, cujo foco parece ter sido direcionado à
pesquisa dos fenômenos físicos de transporte de cartas.
479 Embora existam poucas informações sobre esta sociedade de Livorno, não conseguimos identificar tais elementos secretos e preceitos contraditórios.
480 A. Calsone, “As mulheres fortes do Espiritismo francês”. Jornal de Estudos Espíritas 5, 010204 (2017). DOI: 10.22568/jee.v5.artn.010204. Link de acesso: sites.google.com/site/jeespiritas/volumes/volume-5---2017/resumo---art-n-010204; acesso em:
13/08/2022.
481 Sobre a pneumatologia universal, na Revista Espírita de junho de 1881 é mencionada apenas a comunicação com os “superiores”, mas não a inexistência de “inferiores”.
482 Não encontramos qualquer fonte que confirme esta afirmativa, muito pelo contrário, na Revista Espírita de janeiro de 1881 o Sr. Pirro Pierrusini, presidente do Centro Ocidental de Pneumatologia Universal, fala da “alma perfectível pelas vidas
sucessivas”.
483 Não foram encontrados mais do que dois pequenos artigos sobre a pneumatologia universal em todas as coleções da Revista Espírita, justamente os de janeiro e junho de 1881; não confundir nem com os livros do marquês de Mirville ou do barão von
Güldenstubbe e sua irmã Julie, nem com a Academia pneumatológica-psicológica de Florença; em filosofia, pneumatologia é simplesmente a parte da metafísica que trata da alma e de Deus.
484 S. Privato Goidanich, O legado de Allan Kardec. 1ª Edição. USE/CCDPE. São Paulo – SP (2018), p. 224.
485 Como exposto anteriormente, não há mais do que dois pequenos artigos na Revista Espírita, um que fala de fenômenos de transporte, outro da imortalidade do Espírito perfectível, ambos compatíveis com as ideias de Kardec.
486 W. Garcia, Ponto final – o reencontro com o espiritismo com Allan Kardec. 1ª Edição. Editora EME. Capivari – SP (2020), p. 183.
487 Grupo de 10 pessoas, ou, na escola, classe dos alunos mais adiantados que tem como professor um desses alunos.
488 Especulamos se o Sr. Rodolphe não era o descendente judeu Mardochée “Rodolphe” Rubio, um dos médiuns de O evangelho segundo o espiritismo.
489 O Sr. Coen é Adolfo Coen. Nascido em Livorno em 9 de janeiro de 1848 de uma família judia, como o Sr. Rodolphe, ele estudou primeiro na Universidade de Pisa, depois na de Bolonha, lá graduou-se com louvor em matemática em 1885. Ensinou esta
matéria em várias cidades (Tempio, Cagliari, Vicenza, Cosenza, Salerno e Mântua). Foi membro honorário da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos da França, membro fundador da União Matemática Italiana e oficial da coroa da Itália. Publicou
alguns livros didáticos entre 1887 e 1895 para o ensino médio. Foi autor de L’aritmetica razionale: richiesta dai programmi ministeriali per il ginnasio superiore, mas também de I fenomeni spiritici e le loro cause. Neste último, usou o pseudônimo de
Mario del Pilastro, conforme a Revista Espírita de 1º de janeiro de 1884. Aí também descobrimos o nome de sua esposa: Emma. Não estudamos esta obra, mas não encontramos nenhuma referência a tal “terceira encarnação”. Ele morreu em Livorno, em 17
de dezembro de 1926.
490 Pseudônimo da Srta. Marie Drouin, conforme a Revista Espírita de novembro de 1890.
491 Eles se propuseram a repetir com Paris uma experiência feita entre as sociedades de Livorno e Bruxelas com a desintegração e transporte de cartas. Os resultados seriam reportados na Revista Espírita. Aparentemente não tiveram sucesso!
10. A maçonaria

Se não há dúvidas quanto a Léon Denis, o mesmo não podemos afirmar sobre Leymarie ter sido maçom, pois não foram encontradas evidências baseadas
em fontes diretas.
O médium Leymarie trouxe em 1864 uma mensagem sobre a franco-maçonaria, assim como também ocorreu com a Srta. Béguet492 e o Sr. D’Ambel.
Seu amigo, o Sr. Fauvety, era um jornalista e filósofo maçom que publicou vários artigos na Revista Espírita e no Boletim da Sociedade Científica de
Estudos Psicológicos. Em determinada época, este boletim circulou também junto com a revista.
Fauvety respondeu assim ao artigo “Espíritas e Sábios” publicado no jornal A República Francesa de 7 a 10 de outubro de 1879: “(...) sem aceitar as
conclusões do Espiritismo no que diz respeito à intervenção dos espíritos e reservando sobre esse ponto meu julgamento, eu, em geral, compartilho suas
doutrinas e suas crenças. Esse artigo onde vemos duas autoridades, uma na Alemanha [Wilhelm Maximilian Wundt] e outra na França [Jules Soury],
unindo-se para derrubar o Espiritismo, tem todo o valor moral de um processo tendencioso”493.
Outro amigo de Leymarie, o Sr. Macé, fundador da Liga de Ensino, também era maçom.
Leymarie deu uma palestra em 1883 para o Círculo Republicano de Moreuil, intitulada “A Liga de Ensino e a Franco-Maçonaria”, onde aproveitou
também para falar sobre a igualdade das mulheres e a necessidade de reforma social, tudo isso do ponto de vista do espiritualismo moderno, conforme
localizado em Le Progrès de la Somme de 20 de novembro de 1883 e na Revista Espírita 1º de janeiro de 1884.
Fora isso, a única relação de Leymarie com a maçonaria foi um artigo com uma crítica sobre o livro de Jean Maire de 1900 O credo filosófico de um
franco-maçom, feita por ele na Revista Espírita de 1º de dezembro de 1900.

492 Louise Marie Angélique Béguet, depois de 1865, Sra. Fix.


493 C. Fauvety et al., Le spiritisme devant la science et le matérialisme mécaniciste devant la raison. Librairie des Sciences psychologiques, Paris – France (1880), p. 1. Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k54937565/f10.item; acesso em:
13/08/2022. Não confundir com aquele livro com o mesmo título escrito por Gabriel Delanne.
11. O roustainguismo

Para melhor entendimento do que o movimento espírita pensa sobre o envolvimento de Leymarie com as ideias de Roustaing, trazemos, inicialmente,
três opiniões de autores diversos.
“Em pouco tempo, a RR [neologismo criado pelo autor para Rede Roustaing] contava com dezenas de conferencistas, escolhidos e indicados a dedo,
muitos deles magnetistas, ocultistas, teosofistas, místicos e, claro, roustainguianos cúmplices de M. [Sr.] P.-G. Leymarie e de J. Guérin”494.
“Leymarie não simpatizava com a teoria exposta na obra de Roustaing, tampouco com o autor nem com a médium Émilie Collignon, segundo consta de
uma carta que escreveu para Mendy, capitão reformado, em 5 de maio de 1878 (...) No entanto, pouco tempo depois de ter escrito essa carta, Leymarie
converteu-se no grande colaborador de um dos mais fervorosos discípulos de Roustaing na difusão da teoria exposta na obra Espiritismo cristão ou
revelação da revelação: os quatro evangelhos seguidos dos mandamentos explicados em espírito e em verdade pelos evangelistas assistidos pelos
apóstolos e Moisés”495.
“A cooperação de Pierre Gaëtan Leymarie mostrou-se decisiva no triunfo obtido pelos roustainguistas (...) A este maremoto, cheio de emaranhados e
confusão, de perda de identidade e rumos, é adicionada a acusação contra Leymarie de ter contribuído com a adulteração da última das obras escritas por
Kardec496 (...)”497.
O que de fato aconteceu?
À exceção da menção de Desliens sobre Os quatro evangelhos na Revista Espírita de julho de 1870, que visava cumprir o propósito da Livraria Espírita
de colocar à disposição dos leitores todas as obras listadas no Catálogo racional, e de um comentário de Blackwell, em janeiro de 1876, sobre a
conveniência de traduzir a obra, as citações a Roustaing e sua teoria passaram a aparecer com alguma frequência somente a partir de 1879. O ano coincide
com a morte de Roustaing anunciada na Revista Espírita por Guérin498, um de seus discípulos. Em maio deste ano Guérin ofertou gratuitamente alguns
exemplares de Os quatro evangelhos, de Roustaing. Artigos sobre o roustainguismo na Revista Espírita, a favor e contra499, só ganharam força em janeiro
de 1883. Neste mês, houve a publicação da polêmica troca de cartas entre Gabriel Delanne e Jean Guérin sobre a encarnação de Cristo500.
Guérin havia se tornado membro da SA em 1882. O auge de artigos sobre Roustaing aconteceu em 1883, ano em que a brochura de seus alunos501 foi
distribuída junto com a Revista Espírita, segundo informações de Berthe Fropo. Em várias ocasiões a Revista Espírita desmentiu a versão de Fropo ao
informar que a Livraria Espírita nada teve a ver com sua impressão e envio502. Ainda assim, publicou seus questionamentos entre julho e setembro de 1883.
Em agosto, o Comitê de Leitura da Revista Espírita informou que, a pedido do Sr. René Caillié, inseriria o resumo que ele havia feito da obra de
Roustaing. Segundo os seus discípulos, ela oferecia meios aos protestantes e católicos para aceitar a revelação espírita! O comitê informou, ainda, que
publicaria artigos a favor e contra a obra. O periódico fez a ressalva de que não se responsabilizaria pelas ideias expressas, mas que era desejável que
fossem conhecidas, para se separar o joio do trigo, como os espíritos livres, inimigos do preconceito, deviam fazer.
Em setembro, Leymarie reforçou que não era responsável pelos artigos publicados na Revista Espírita a favor ou contra a teosofia ou o roustainguismo,
mas que submetia “todas as coisas” ao estudo.
Em 1884, houve mais menções e críticas do que defesa ou desenvolvimento da teoria de Roustaing, embora outros seguidores seus também tenham
recebido espaço, como J. E. Guillet, criticado por Alexandre Vincent e Céphas na Revista Espírita em 1885. Guérin faleceu neste ano e, a partir do ano
seguinte, as referências diminuíram consideravelmente. No início de 1886, foi publicado um artigo conciliador de Céphas503, embora sustentando as
diferenças das ideias roustainguistas em relação à doutrina espírita. Depois disso, encontramos só raras menções, como no artigo do final do ano de J.
Camille Chaigneau504, que fala da pouca importância da escola de Roustaing e do Espiritismo dogmático (em oposição ao doutrinário).
Portanto, o roustainguismo teve algum destaque na Revista Espírita por aproximadamente quatro anos, de 1883 até 1886.
A partir de 1890, as referências a Roustaing ou à sua obra, passaram a ser mais esporádicas ainda, com vários anos sem qualquer citação a este autor ou
às suas ideias.
Somente em junho de 1898, já no final da vida, Leymarie colocou Roustaing como amigo da causa. Em 1900, contemporizou com todos, mencionando
Blavatsky, com cuja teosofia havia rompido; e René Caillié que, segundo ele, “sintetizou em um único volume a bela obra de J. B. Roustaing (...)”. Se neste
mesmo ano, na necrologia de J. E Guillet505, Leymarie mencionou Roustaing e as duas obras de Guillet que, segundo ele, mereceriam ser lidas506, em
janeiro de 1914, Paul Leymarie, seu filho, esclareceu que “A obra de Roustaing é notável à primeira vista, contudo, é contrária aos ensinamentos de Allan
Kardec. Atraente e aparentemente lógica, ela é – em efeito – susceptível de criar cismas muito sérios. Até agora, entretanto, este trabalho não atingiu o
objetivo pretendido de seu autor. O ensinamento kardecista, portanto, segue sendo o único que deve ser considerado pelos espíritas”.
Não há como negar alguma permissividade do Comitê de Leitura da Revista Espírita e do eclético Leymarie para com Roustaing, por um certo período,
mas a obsessão atual pelo tema, sob nossa perspectiva, é exagerada. Não analisamos a propagação das ideias de Roustaing pelo Brasil507, mas apenas na
França e Bélgica.
E quanto ao jornal Le Spiritisme? Qual teria sido o espaço dado neste periódico para o debate das ideias de Roustaing?
Na 1ª quinzena de março de 1883, logo em seu primeiro número, encontramos a seguinte informação: “o jornal Le Spiritisme é antes de tudo um órgão
filosófico, abre suas colunas a todas as controvérsias sérias, mas o comitê só se responsabiliza pelos artigos que são assinados como ‘O comitê’. Estamos
felizes com a colaboração de nosso irmão tão conhecido e apreciado, René Caillié, e estamos começando desde o primeiro número a publicação de um
estudo que ele fez sobre as obras do Sr. Roustaing, deixando a ele a responsabilidade de suas avaliações”508.
Em outras palavras, o jornal Le Spiritisme e a Revista Espírita seguiam a mesma linha editorial, ou seja, explorando todas as controvérsias sérias, como a
do roustainguista René Caillié.
Fig. 35: Fragmentos de Le Spiritisme e da Revista Espírita de 1883, isentando-se das publicações sobre Roustaing
Fonte: Encyclopédie Spirite

No Le Spiritisme, tivemos artigos contrários a Roustaing até 1887, inclusive os de autoria de Berthe Fropo e Henri Sausse, quando então a polêmica
esfria. Daquele ano, destacamos a carta aos leitores na edição da 1ª quinzena de março: “o jornal Le Spiritisme está entrando no quinto ano de sua
existência e é com satisfação que constatamos o apoio moral que os leitores lhe dão. Desde a fundação desta folha, temos nos engajado em muitas lutas,
tivemos que superar muitos preconceitos, e as batalhas que temos travado contra teorias nefastas, como a de Roustaing, a teosofia e a mediunidade venal,
mostraram a necessidade de um órgão absolutamente dedicado à defesa da doutrina kardecista e de seu chefe venerado”.
Depois disso, só raras menções como aconteceu na 1ª quinzena de março de 1888, quando na seção denominada Bibliografia, Sausse tratou de outra obra
do roustainguista J. E. Guillet509.
Outro fato relevante diz respeito às conferências, financiadas por uma subscrição que teve Jean Guérin como idealizador e principal doador.
Na Revista Espírita de agosto de 1880, que pode ser acessada pelo site Retronews510, encontramos um manuscrito “perdido” de 1º de julho de Guérin
sobre o assunto. Tal manuscrito está transcrito na Revista Espírita de julho, porém como se tivesse sido escrito em maio.
Destacamos que esta carta de Guérin nada disse sobre Roustaing, mas apenas informou que as conferências deveriam ser puramente espíritas, e ter por
objeto o desenvolvimento de pontos doutrinários: existência de Deus, imortalidade da alma, os Espíritos, possibilidade de suas comunicações conosco,
pluralidade dos mundos, pluralidade das existências, leis morais que decorrem de seus princípios, etc. Para subsidiar e incentivar as palestras, Guérin faria
uma doação anual de 5.000 francos, mais 1.000 francos anuais para cobrir as despesas de um órgão destinado a publicar os relatórios destas conferências511.
No entanto, em pelo menos duas ocasiões Roustaing foi mencionado. Em maio de 1881, Guérin disse que “deveriam falar apenas de Kardec, Roustaing e
sábios modernos”. Em julho de 1882, uma nota mencionou uma palestra de Leymarie na casa de Guérin, em que falou, entre outros, de Roustaing.
Apesar disso, nos perguntamos: quais eram e onde atuavam os principais conferencistas financiados por aquela subscrição? Formariam mesmo uma
“rede roustainguista”?
Vejamos:
Conferencistas da Bélgica (em ordem geográfica de Norte a Sul):
• Benoît Martin (1814-1910) (Bruxelas): Dedicado ao Espiritismo científico (como Gabriel Delanne) e ao magnetismo, redator de O Monitor Espírita e Magnético Belga;

• Hyacinthe Vanderyst (1835?-1925) (Spa): De acordo com Gabriel Delanne ele era kardecista512, diretor da revista O Mensageiro de Liège, tendo se convertido ao Espiritismo em Antuérpia513;

• Oscar Henrion (Liège): Professor e poeta nas horas vagas, autor de Olla Podrida, em 1883 fez uma palestra sobre a não divindade do Cristo, usando o livro do Sr. A. Bellemare514, portanto não era
roustainguista515;

• Alfred Crignier | Crigniez516 (Charleroi): Residente em Bruxelas em 1881, ferroviário, dedicado ao magnetismo, atraiu muitos doentes em busca de alívio e por isso foi processado pela prática ilegal da
medicina.

Conferencistas da França (em ordem geográfica de Norte a Sul)


• Bonnefond | A. Bonnefont (Norte): De Douai, foi autor de Lições de espiritismo para crianças (fundamentado em O livro dos espíritos); era contra o dogmatismo religioso517;

• Jules (Augustin Louis) Jésupret (pai)518 (1833-1919) (Norte): Fazia conferências nas comunas vizinhas de Douai, tendo se convertido ao Espiritismo em 1874 (através de Bonnefont), conforme os
arquivos do Institut Général des Forces Psychosiques, onde também encontramos a informação que ele foi deísta, livre-pensador, republicano avançado, radical-socialista e autor de A vida519;

• Jules (Antoine) Jésupret (filho)520 (1859-1931) (Norte): Editor da revista O futuro da humanidade; autor de O Magnetismo animal acessível a todos (obra elogiada por Gabriel Delanne521), Catolicismo
e espiritismo (obra recebida favoravelmente pelo jornal Le Spiritisme e pela Revista Espírita, e incluída no Index da Igreja Católica);

• Sophie Rosen Dufaure (1823?-1919) (Paris): Obviamente, como já vimos, não era roustainguista;

• Olympe Audouard (1832-1890) (Paris): Membro da União Espírita Francesa, não deveria ser roustainguista522;

• Léon Denis (1846-1927) (Região de Tours e de Le Mans): Obviamente, não era roustainguista;

• P. Verdad523 (pseudônimo de Jules Jacques Toussaint Lessard) (1856-1918) (Leste): Já sabíamos das suas críticas a Os quatro evangelhos524. Foi editor científico de O antimaterialista de 1883 a 1884,
antes de René Caillié, que assumiu de 1884 a 1886. Continuador da obra de Charles Fauvety, notadamente da ideia de uma religião laica, publicou diversos trabalhos, dentre os quais Argumentos
contra a pena de morte. P. Verdad, obviamente, não era roustainguista;

• Alexandre Vincent525 (La Rochelle): De Angoulins, já conhecíamos suas críticas a Os quatro evangelhos na Revista Espírita de 1º de janeiro de 1885. Foi autor de O espiritualismo experimental e os
“apports” e articulista do jornal Le Spiritisme. Pelo exposto, também não era roustainguista;

• Ernest (Joseph) Cordurié (nome de Marc Baptiste)526 (1824?-1888) (Bordeaux): Advogado de Montirat (em la Pégarié) e médium, autor de Cartas aos camponeses sobre o espiritismo e Cartas a
Maria sobre o espiritismo. Recebeu várias mensagens do Espírito Allan Kardec (e de Amélie Boudet), publicadas na Revista Espírita a partir de 1870. Além de Marc Baptiste, usava também o
pseudônimo de um “colaborador espiritual”. Era admirado pelos espíritas527. “Longe das brigas e divisões que tantas vezes afligiram os amigos da humanidade”, como dito por Céphas528.
Acreditamos que não deveria ser roustainguista;

• Valentin (Anne Marie) Tournier (1821-1898) (Região de Carcassonne): Autor de O espiritismo diante da razão (Os fatos) e O espiritismo diante da razão (As doutrinas), bem como de Instrução
pastoral sobre espiritismo [do arcebispo de Toulouse, seguida de sua refutação] e Resposta à ‘Carta pastoral’ do monsenhor Billard, era articulista de O mensageiro, onde publicou na edição de 15
de julho de 1888 sua conferência realizada em Carcassonne em 23 de outubro de 1881, na qual disse: “O nascimento de Jesus teve o caráter milagroso que lhe é atribuído (...)? Não hesito em
responder não”. Na obra póstuma Filosofia do bom senso, publicada pela Sra. Anna Tournier, podemos encontrar o retrato do autor. Uma breve biografia dele pode ser encontrada na obra de J.
Malgras. Também não era roustainguista;

• François Vallès (1805-1887) (Centro e Montpellier): Engenheiro-chefe de estradas e pontes, foi autor de vários livros, entre eles Palestras sobre o espiritismo e As conferências espíritas do ano de
1882529. Temos também uma curta biografia no livro de J. Malgras. Acreditamos que não era roustainguista. Na p. 145 do livro Palestras sobre o espiritismo ele diz: “Se, nas duas conversas em que
se discutiu a existência de Jesus, não tivéssemos sido obrigados a nos manter dentro dos limites impostos ao nosso assunto, poderíamos ter mostrado como, diante dos fatos espíritas conhecidos,
desvanece-se e desaparece o caráter sobrenatural que temos atribuído aos milagres de Jesus (...)”.

Outros personagens relevantes (em ordem alfabética de nome e pseudônimo) são:


• Alexandre Bellemare [falecido em 1885]: Amigo de Allan Kardec e presidente honorário da União Espírita Francesa530, não era roustainguista;

• Alfred Léonard Caron [falecido em 1901]: Não existem fatos que o liguem ao roustainguismo;

• Céphas (pseudônimo de Louis de Montaut) [falecido em 1896]: Amigo de Allan Kardec e juiz de paz531, não era roustainguista;

• Gabriel Delanne [falecido em 1926]: Obviamente, não era roustainguista;

• J. E. Guillet [falecido em 1900]: Pelos fatos encontrados, era roustainguista!

• Jean Camille Chaigneau [falecido em 1918]: Último presidente da SPEE, não era roustainguista;

• Jean Guérin [falecido em 1885]: Era roustainguista!

• L. Thibaud: Autor de Espiritismo – memórias do Grupo Girondino532, não era roustainguista;

• René Caillié [falecido em 1896]: Era roustainguista!

Se estes são os personagens responsáveis pelas conferências, podemos constatar que não havia uma rede roustainguista.
O Espiritismo não se confunde com o roustainguismo, suas propostas têm bases diferentes. Kardec evidenciou a principal teoria apresentada por
Roustaing e expôs as razões para ela divergir do ensino dos Espíritos. Na Revista Espírita de julho de 1866, Kardec relatou que Roustaing, em Os quatro
evangelhos, “dá ao Cristo, em vez de um corpo carnal, um corpo fluídico”, como premissa e pedra angular de uma teoria que, “se um dia fosse reconhecida
errônea, faltando a base, o edifício desabaria”. Em A Gênese (capítulo XV), Kardec analisou a posição de Roustaing e escreveu: “Segundo outra opinião,
Jesus não teria tido um corpo carnal, mas apenas um corpo fluídico; ele não teria sido em toda a sua vida mais do que uma aparição tangível, ou numa
palavra, uma espécie de agênere” (item 64), e concluiu que suas consequências lógicas eram inadmissíveis, porque rebaixariam moralmente Jesus, em vez
de o elevarem (item 66). Por fim, fechou a questão da natureza do corpo de Jesus, segundo a doutrina espírita, dizendo que “Jesus teve então, como
qualquer pessoa, um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é atestado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos que marcaram a sua vida”
(item 66).
Na Revista Espírita, Kardec não evitava tratar de temas divergentes ou até opostos à doutrina, pelo contrário, dava-lhes a oportunidade de estudo e
buscava deles extrair aprendizados. Vimos Kardec citar Roustaing e sua obra algumas vezes na Revista Espírita. No Catálogo racional, Kardec
recomendou que os espíritas lessem Os quatro evangelhos, como parte das “Obras diversas sobre o Espiritismo, ou complementares da doutrina”, assim
como a obra Revelações do além-túmulo, de Henri Dozon, uma “Coletânea de instruções que tendem à união do Catolicismo e do Espiritismo, marcados
por um forte sentimento religioso e por alta moralidade, com numerosas preces ditadas pelos Espíritos (Revista Espírita de janeiro de 1862)”.
Considerando a quantidade de artigos, muitos dos quais fazendo simples menção a Roustaing, não nos parece que a Revista Espírita tenha sido um
instrumento preponderante para que o roustainguismo prosperasse na França, nem que Leymarie tenha sido seu permanente agente de divulgação.

494 A. Calsone, Madame Kardec. 1ª Edição. Vivaluz Editora, Atibaia – SP (2016), p. 143.
495 S. Privato Goidanich, O legado de Allan Kardec. 2ª Edição. Edição USE/CCPDE, São Paulo – SP (2018), pp. 237-238.
496 A confusão está formada, com Leymarie sendo acusado injustamente da adulteração da quinta edição de A Gênese, tudo isso para o triunfo roustainguista!
497 W. Garcia, Ponto final – o reencontro do espiritismo com Allan Kardec. Editora EME. Edição do Kindle (2020), p. 24. Prefácio de Jon Aizpúrua.
498 Jean Guérin (1825-1885), viticultor francês e roustainguista.
499 Menções esporádicas sobre Roustaing foram publicadas desde a época de Allan Kardec.
500 Na verdade, as cartas não foram publicadas na Revista Espírita, mas no Boletim da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, que circulava junto. Aqui, destacamos um comentário de cada um dos missivistas:
Gabriel Delanne: “Resumindo, então, direi que a visão espiritual permanente de Cristo, não mais do que a penetração da mente, não é suficiente para torná-lo uma exceção na humanidade. A consciência moderna protesta contra essa isenção que Deus teria
concedido a Jesus”.
Jean Guérin: “Allan Kardec, cuja alta autoridade você gosta de invocar, não temeu, enquanto caminhou livre de todas as preocupações, sob a égide das boas influências orientadoras do mandato que recebera, de publicar os livros fundamentais do Espiritismo,
de declarar sem qualquer escrúpulo, na sequência de uma comunicação mais notável, recebida por um dos melhores médiuns da Sociedade de Paris (Livro dos médiuns, páginas 473 e 474 [na verdade, páginas 474 e 475, pelo menos da 2ª a 11ª edição
francesa]) e atribuído a Jesus de Nazaré, – ele não teve medo de fazer esta observação: ‘De modo algum duvidamos de que ele possa manifestar-se; mas, se os Espíritos verdadeiramente superiores não o fazem, senão em circunstâncias excepcionais, a razão
nos inibe de acreditar que o Espírito, por excelência puro, responda ao chamado do primeiro que apareça’. Ao colocar esta afirmação em paralelo com o que lhe foi revelado na página 46 [na verdade, pergunta 113 na página 49, pelo menos da 2ª a 17ª
edição francesa] do Livro dos espíritos sobre os Espíritos puros que, ‘tendo atingido a soma da perfeição de que a criatura é suscetível, não precisam mais passar nem por provações, nem expiação, não estando mais sujeitos à reencarnação em corpos
perecíveis, é para eles a vida eterna que realizam no seio de Deus’- conseguimos estabelecer este silogismo completamente peremptório: Espíritos puros não reencarnam. Jesus é um Espírito puro. Então Jesus não pode reencarnar”.
501 Conforme o jornal Bibliographie de la France, a brochura dos alunos de Roustaing foi registrada em 25 de agosto de 1883, e a resposta aos seus alunos, preparada pela União Espírita Francesa, em 20 de outubro.
502 Em janeiro de 1884, Leymarie reforçou que a Livraria Espírita era completamente alheia à impressão e envio do panfleto editado pelos alunos de Roustaing, mas contemporizaram a situação apelando à tolerância ensinada por Allan Kardec. Falavam ainda
que Guérin e seus amigos não poderiam e nunca tiveram a tola pretensão de modificar as bases do Espiritismo.
503 Pseudônimo de Louis de Montaut, juiz de paz em Parentis-en-Born, Landes, desencarnado em 25 de janeiro de 1896, aos sessenta e um anos, amigo de Allan Kardec.
504 Presidente da SPEE entre 1888 e 1889.
505 Provavelmente Joseph Exupère Guillet.
506 A queda original segundo o espiritismo e Os quatro evangelhos de J.-B. Roustaing e O livro dos espíritos, resposta ao Sr. Alexandre Vincent.
507 O roustainguismo já era estudado no Brasil desde 1873 na Sociedade de Estudos Espiríticos – Grupo Confúcio, mas teve impulso com o Grupo dos Humildes, em 1880, antes portanto do espaço dado na Revista Espírita, que teve seu auge de 1883 até
1886. [A. Ribeiro Jr., A obra esquecida de Angeli Torteroli. CCDPE-ECM. São Paulo – SP (2022), p. 532].
508 Recordamos que o mesmo aconteceu com o artigo “Uma infâmia”, assinado por Henri Sausse e não por “O comitê”.
509 O amor e o casamento segundo o Espiritismo. Interessante notar que no artigo, discorrendo sobre as almas gêmeas, Sausse perguntou: “Allan Kardec e Roustaing foram enganados neste ponto?”.
510 Revista Espírita, agosto (1880). Link de acesso: retronews.fr/journal/la-revue-spirite/1-aout-1880/1829/3285767/52; acesso em: 13/08/2022.
511 Na Revista Espírita de janeiro de 1883, os administradores, Leymarie e Joly, falaram da herança de 40.000 francos de Roustaing a Guérin (e não à SA) para tradução de Os quatro evangelhos, cujos detalhes foram dados aos herdeiros, a fim de que ficasse
claro que o dinheiro para as conferências não tinha vindo desta soma.
512 Revista Científica e Moral do Espiritismo, julho (1925), p. 224.
513 Revista Espírita, setembro (1866), p. 263.
514 Espírita e Cristão de 1883.
515 Revista Espírita, dezembro (1883), p. 601.
516 E não Léon Crignier, como às vezes referenciado.
517 Revista Espírita, julho (1883), p. 305.
518 Filho de Augustin Jésupret e Catherine Liermin, casado com Thérèse Descamps.
519 Junto com Jean Beziat e Paul Pillaut, que se dedicavam à cura através do sopro, do magnetismo, etc., embora suponhamos que estas últimas afirmativas possam estar se referindo a Jules Jésupret filho.
520 Filho de Jules (Augustin Louis) Jésupret e Thérèse Descamps. Não confundir com Jules Lucien Jésupret, que desencarnou em 10 de dezembro de 1887.
521 Le Spiritisme, 1º ano, nº 11, 1ª quinzena de agosto (1883), p 7.
522 Pelo menos não encontramos nenhuma referência ao roustainguismo nas suas obras: À travers l’Amérique; North America, Les mondes des esprits ou La vie après la mort e Voyage à travers mes souvenirs. Feminista, ela escreveu inúmeras outras obras,
como Comment aiment les hommes, Guerre aux hommes, L’homme de quarante ans, La femme dans le mariage, la séparation et le divorce, L’amie intime, L’amour, le matérialisme, le spiritualiste, le complet et divin, Silhouettes parisiennes, etc.
523 E não Paul Verdad.
524 Revista Espírita, 1º de outubro (1884), p. 609.
525 Não confundir com François Vincent da SA.
526 Na Revista Espírita de 15 de junho e na de 1º de julho de 1888, podemos encontrar mais informações sobre ele. Era filho de Marc “Antoine” Cordurié e Josephine Ninette Guerriet. Tinha um irmão chamado Gustave Cordurié.
527 Na Revista Espírita de 15 de junho e de 1º de julho de 1888, em O mensageiro de 1º e 15 de julho de 1888, e em Le Spiritisme da 1ª quinzena de agosto de 1888 podemos ver este apreço.
528 Revista Espírita, 1º de julho (1888), p. 414.
529 Na Revista Espírita de 15 de abril de 1886 podemos obter a relação completa de títulos das suas conferências até 1885.
530 Le Spiritisme, 3º ano, nº 15, 1ª quinzena de outubro (1885), p. 1.
531 Revista Espírita, março (1896), p. 187.
532 Livro recomendado pelo jornal Le Spiritisme da 1ª quinzena de janeiro de 1888 e pela Revista Espírita de 1º de fevereiro de 1888.
12. O caso A Gênese e O céu e o inferno

Uma denúncia de Henri Sausse de 1884, posteriormente requentada no Brasil em várias épocas, acusava Leymarie de ter adulterado a quinta edição de A
Gênese. Em pleno século XXI, outros autores sugeriram que Jean Baptiste Roustaing e André Pezzani teriam adulterado a quarta edição de O céu e o
inferno533.
Evidências achadas recentemente demonstraram suficientemente a autoria de Allan Kardec, tanto da quinta edição de A Gênese, quanto da quarta edição
de O céu e o inferno, obras que foram publicadas postumamente por sua esposa, Amélie Boudet, ainda em 1869, antes mesmo da fundação da SA.
Recordemos algumas das inúmeras provas encontradas:
1. A carta de Allan Kardec de 25 de setembro de 1868 informando que A Gênese já estava pronta e 50% reimpressa com correções e acréscimos importantes, e que O céu e o inferno iria para
reimpressão com correções;

2. A declaração do responsável pelas matrizes e clichês, Sr. Jean Joseph Rousset, de que Allan Kardec já havia pago pelo serviço feito em dezembro de 1868. Tal fato comprova o “congelamento” neste
ano do texto atualizado de A Gênese na forma de matrizes;

3. A própria quinta edição de A Gênese de 1869, encontrada na Biblioteca da Universidade de Neuchâtel na Suíça;

4. O inventário de 1873, feito por Amélie Boudet e Leymarie, registrando a quarta edição de O céu e o inferno, em fevereiro de 1869, e a quinta e sexta edições de A Gênese, também publicadas em
1869;

5. A ata da Assembleia Geral Ordinária de 18 de outubro de 1873 da SA, assinada por Amélie Boudet e Leymarie, disponível nos Arquivos Municipais de Paris, comentando sobre a qualidade do
inventário feito pela Sra. Kardec;

6. O uso posterior, por Henri Sausse, autor da denúncia inicial de adulteração, assim como por Gabriel Delanne, Laurent de Faget534 e Léon Denis, de textos existentes na quinta edição de A Gênese.

Fig. 36: Evidências da autoria de Allan Kardec da quinta edição de A Gênese


Fontes: Biblioteca da Universidade de Neuchâtel, Museu Allan Kardec online e Arquivos Municipais de Paris, cote: D31U3

Artigos de natureza acadêmica já foram publicados sobre este assunto pelo Jornal de Estudos Espíritas535.
Um ponto controverso da questão poderia ser associado à ausência de Depósito Legal antes da morte de Allan Kardec. A partir do estudo da legislação
francesa à época, descobrimos que toda Declaração do Impressor deveria ter um Depósito Legal correspondente, independentemente do conteúdo da obra
ter sido alterado ou não536. A responsabilidade pela declaração e pelo depósito era da tipografia. No caso da quinta edição de A Gênese, a Declaração do
Impressor é de 4 de fevereiro de 1869. Esta declaração não teve o respectivo depósito. Só no final de 1872 a situação da quinta edição foi regularizada, com
nova declaração e novo depósito, mas com o conteúdo exatamente igual à versão de 1869.
Acreditamos também que a edição de 1872 possa ser o aproveitamento das folhas e exemplares prontos que não puderam ser vendidos em 1869, devido a
algum eventual problema entre a tipografia Rouge e a Livraria Internacional, que só tenha se desenrolado depois da falência desta última em 1872.
Curiosamente, no inventário de Allan Kardec temos um crédito a receber desta livraria no valor de 2.600 francos, correspondente a 2.000 exemplares a um
custo de 1,30 francos.
Mesmo que se considerasse que Allan Kardec tivesse promovido alguns ajustes, mas não todos, ter-se-ia que considerar também as enormes dificuldades
de um eventual adulterador para obter uma cópia do texto atualizado, ter tempo suficiente para fazer as mudanças537, convencer a tipografia a refazer os
caracteres móveis e o responsável pelas matrizes a confeccioná-las novamente, tudo sem ser delatado por estes profissionais e sem ser descoberto por
Amélie Boudet ou qualquer outra pessoa próxima às sociedades espíritas, enfim, uma probabilidade ínfima.
A acusação sobre Leymarie não se confirmou, já que ele estava longe de Paris quando as edições foram publicadas. As suposições sobre uma possível
negligência ou ingenuidade de Amélie Boudet também não se sustentaram, já que ela tomou firmemente as rédeas do legado do marido logo após a sua
morte.

533 Em vez de se fazer uma análise crítica dos textos de Allan Kardec, algumas pessoas do movimento espírita prefere colocá-lo acima das imperfeições humanas, e atribuir qualquer desvio em relação às ideias que eles mesmo cultivam, como uma adulteração
jamais comprovada. Aqueles que por questões de heteronomia negam a autoria do texto do “Código penal da vida futura” de O céu e o inferno [Segunda parte, capítulo VII], validam O evangelho segundo o espiritismo, com suas “Causas anteriores das
aflições” [Capítulo V, itens 6 a 10], etc., com as mesmas características.
534 Adolphe Laurent de Faget (1846-1912), publicista, poeta e espírita francês, foi fundador da Sociedade Fraternal de Estudos Científicos e Morais do Espiritismo, presidente da Sociedade do Espiritismo Científico, redator do jornal Le Spiritisme e fundador
do periódico Le Progrès Spirite.
535 A. Ribeiro Jr., C. S. Bastos e L. Farias, “Uma revisão na história da 5ª edição de A Gênese Parte I – Os eventos relacionados à impressão e à publicação da edição de 1869”, Jornal de Estudos Espíritas, 8, 010209 (2020). DOI: 10.22568/jee.v8.artn.010209.
Link de acesso: sites.google.com/site/jeespiritas/volumes/volume-8---2020/resumo-art-n-010209; acesso em: 13/08/2022; e:
A. Ribeiro Jr., C. S. Bastos e L. Farias, “Uma revisão na história da 5ª edição de A Gênese Parte II – Os eventos relacionados à atualização da obra e à preparação para impressão em 1868”, Jornal de Estudos Espíritas, 10, 010202 (2022). DOI:
10.22568/jee10.artn.010202. Link de acesso: sites.google.com/site/jeespiritas/volumes/volume-10-2022/resumo-art-n-010202; acesso em: 13/08/2022.
536 Existem vários exemplos da própria obra de Allan Kardec em que foram feitos depósitos sem haver qualquer alteração de conteúdo em relação à edição anterior, dos quais podemos citar: 3ª edição de 1862 de O livro dos médiuns, 12ª edição de 1864 de O
livro dos espíritos, 4ª edição de 1868 de O evangelho segundo o espiritismo, etc.
537 A publicação da edição alterada ocorreu entre abril e maio de 1869.
13. Uma visão além das polêmicas

Para uma visão um pouco além das polêmicas (teosofia, pneumatologia universal, maçonaria, roustainguismo e denúncia infundada de adulteração de A
Gênese), faremos uma breve retrospectiva de 1880 até 1890 com base em artigos da Revista Espírita e do jornal Le Spiritisme.

Foi falado aos leitores da Revista Espírita em janeiro de 1881, que os impacientes reclamavam que a SA não andava como eles queriam, mas que ela
fazia o que podia, não o que desejava. Divulgar a doutrina era seu objetivo, preferindo a difusão geral à concentração de todos os esforços em Paris.
Estavam sendo priorizadas boas traduções das obras espíritas e conferências538. Contaram, também, sobre uma sociedade de livre pensamento religioso
destinada à assistência moral e ao sepultamento laico539, fundada pela Sociedade Científica de Estudos Psicológicos540.
Em 1882, falaram da arrecadação de 10.000 francos para que cada cidade central pudesse construir uma sala espaçosa para as palestras. Estas salas não seriam dedicadas apenas ao
ensino espírita, porque tinha sido espontaneamente acordado entre Guérin e os partidários da causa, que seriam oferecidas à Liga Francesa de Ensino [de Jean Macé] e a todas as sociedades
preocupadas com a educação moral e a instrução popular. Guérin desejava o auxílio da SA, que tinha duração de noventa e nove anos e da qual era membro, para salvaguarda dos
donatários contra o desaparecimento inesperado de um ou mais grupos locais; em consequência, desejava que os fundos fossem enviados à referida Sociedade para depósito no Banco da
França; entendia que, diante das possibilidades de dispersão dos grupos locais, a Sociedade fosse a dona dessas salas, para torná-las inalienáveis e dar-lhes por noventa e nove anos a
apropriação desejada pelos fundadores. Guérin realizava este projeto para Bordeaux. O montante que atribuiu à construção deste salão deveria ser inscrito nos registros da Sociedade em
ações nominativas de 500 francos541.

Em 1882, foi dito ainda que constataram que os preconceitos contra o Espiritismo se extinguiam à medida que se avançava na investigação séria e
contínua. Ataques injustos não tinham mais à sua disposição um governo que lhes emprestava o auxílio do “braço secular”542. Reforçaram a ideia que o
Espiritismo não apenas matava o milagre, mas libertava o livre-arbítrio e o senso comum. Acrescentaram que a SA permanecia em paz, indiferente às vãs
palavras, e com autonomia [maîtresse chez elle]543! Completaram com a informação que, como o próprio Allan Kardec havia falado sobre o caráter
progressivo do Espiritismo, caminhavam lado a lado com a Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, com todas as sociedades espíritas, teosóficas,
swedenborguianas, com aquelas do magnetismo e das ciências modernas difundidas no mundo, examinando os resultados e aceitando o que poderia
aumentar a realização intelectual e o valor moral544. Falaram, então, da ajuda de Guérin, que tinha dado um prêmio de 3.000 francos que possibilitou a
impressão de dois livros: A alma e suas manifestações ao longo da história, do historiador Eugène Bonnemère, e O espiritualismo na história, do professor
de filosofia, em Esmirna, Sr. Rossi de Giustiniani545.
Goidanich afirmou que a Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, vinculada à Sociedade Anônima, se afastava ainda mais da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas546. Na
verdade, podemos dizer que dos trinta e seis personagens identificados como diretores e membros da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos no período de 1878 a 1882, apenas sete
foram ou seriam vinculados à SA547, enquanto treze foram ou seriam ligados à SPEE548 ou à União Espírita Francesa, fundada ao final de 1882549, além dos Rosen, vinculados à União, mas
sem cargo, e de Bougueret, primeiro presidente da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, espírita de primeira hora e amigo de Allan Kardec550.

Ainda em 1882, o Boletim da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos de Charles Fauvety começou a circular junto com a Revista Espírita. Estes
boletins traziam temas como: Deus, Magnetismo Animal, Hipnotismo nos animais, Efeitos físicos, Física, Psicologia, Religião do futuro, Teosofia, etc. Em
1883, foram abordados os assuntos: Mistérios cristãos, Ocultismo e Roustainguismo. Antes dos boletins, a Revista Espírita incorporava artigos com as
atividades da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos.
Em janeiro de 1883, a Revista Espírita mencionou que as cinco obras fundamentais de Allan Kardec, traduzidas para todas as línguas faladas na
Europa551, ainda estavam vendendo. Como outros divulgadores da doutrina espírita, Leymarie ia a todos os lugares; tinha estado recentemente na Bélgica e
estaria se preparando para uma viagem de conferências a Dijon, Besançon, Lyon, Marselha e Aix. Léon Denis, também, dava belas e interessantes palestras
sobre a pluralidade dos mundos habitados, em Le Mans e nas comunas que se irradiam ao redor da bela Touraine552.
Mencionou-se, ainda, nesta mesma edição da Revista Espírita, o aumento dos médiuns de cura. O capital da sociedade também havia subido para
150.000 francos553.
Depois da visita de Leymarie à Bélgica, tinha se começado a falar da implementação da Federação Espírita Francesa e Belga, mas às vésperas do Natal
de 1882 foi fundada a “Union Spirite Française” (União Espírita Francesa), que chamaremos simplesmente de USF554. Note-se que não se falou da sua
fundação na Revista Espírita.
No dia 21 de janeiro de 1883, Amélie Boudet, a Sra. Allan Kardec, desencarnou aos oitenta e sete anos. No seu enterro várias pessoas discursaram, entre
elas os Srs. Leymarie, Charles Fauvety, Gabriel Delanne, Carrier e Camille Chaigneau, além da Sra. Rosen e do Dr. Josset. Em 1º de janeiro do ano
seguinte, Leymarie e Joly, em nome de muitas sociedades como eles mesmo disseram, iriam ao túmulo do mestre e de sua companheira para lhes prestar
uma respeitosa homenagem.
Um ano após a fundação da USF, sua vice-presidente, Berthe Fropo, na seção “Correspondência” da edição da primeira quinzena de dezembro de 1883
do jornal Le Spiritisme, escreveu:
Infelizmente! Além dos mares, o nome do mestre é respeitado e venerado, e é em sua própria casa que ele é caçado e zombado.
Ninguém se dignou a responder ao meu artigo555, “não temos que responder a ninguém”. É mais fácil tratar as minhas justas alegações com calúnias, fofocas e números fantasiosos.

Se os números são fantasiosos, foi o Sr. Leymarie quem me deu, e ele esperava, disse ele, chegar ao milhão. Quanto à calúnia, fui eu que, quando fui solicitada a baixar o preço dos livros,
respondi que era difícil, pois era necessário dar pensão alimentícia à Sra. Kardec? Ela, que tinha uma renda de dez mil livros!... Então, que ela não era espírita, que ela era tão clerical, graças à
influência da Sra. Fropo, que ela tinha um altar em sua casa, e que tinha missa rezada lá. Os espíritas se afastaram dela, daí o vazio que se formou em torno da viúva do mestre. Alguns amigos e eu
permanecemos fiéis a ele, e é para mim a maior glória da minha vida ter sido amada até o último suspiro por esses dois grandes Espíritos.

Na edição da segunda quinzena, foi a vez de Michel Rosen desabafar através do artigo “Uma retificação”:
Por um lado, o Sr. Leymarie, administrador e curador das obras espíritas, declara-se francamente teosofista. Ele tem um pergaminho de membro da Sociedade Teosófica, cuja doutrina é a
antítese da nossa. É algo como um pastor protestante, que se torna membro da Igreja Católica, Apostólica e Romana, inimigo do protestantismo.

Por outro lado, patrocina e defende J. B. Roustaing, o caluniador de Kardec e seu antagonista por suas obras.

Depois disso, as declamações em favor do Mestre não têm valor, sente-se que o Sr. Leymarie só acredita estar vinculado a elas por sua posição.

Como vemos, a antiga cizânia já apaziguada entre a SPEE e a SA, ressurgiu entre a USF e a SA. Leymarie, que já havia negado qualquer participação na
distribuição da brochura dos alunos de Roustaing, reforçou esta declaração em janeiro de 1884, ano em que também rompeu com a teosofia.
No “Olhar retrospectivo sobre o Espiritismo” desta edição de 1884 da Revista Espírita, P. G. Leymarie e H. Joly falaram também de doze556 jornais ou
revistas que representavam o Espiritismo, inclusive o Le Spiritisme557.
Comentou-se, ainda, que a Sociedade não era milionária, como alguns alegavam; que o legado da Sra. Allan Kardec tinha uma importância irreal devido
aos enormes custos do inventário e a renda vitalícia que ela havia deixado para sete pessoas558. A Villa de Ségur poderia ser vendida por 200.000 francos,
mas com os arrendamentos de quinze anos deixados pela Sra. Allan Kardec, seu valor talvez fosse de 300.000 francos quando os arrendamentos
terminassem. Leymarie e Joly, agora na renomeada Sociedade Científica de Espiritismo559, acrescentaram que quando fossem ricos, seguiriam à risca o
pensamento expresso por Allan Kardec: “Milionário, constituiria um capital inalienável para, 1º garantir uma existência independente aos espíritas
esclarecidos, cuja capacidade seria notória, que se dedicariam de corpo e alma à nossa causa; 2º atender as atuais necessidades do Espiritismo, sem recorrer
à sorte de eventuais recursos, como somos obrigados a fazer”560.
Mas a tensão entre a SA e a USF continuou. O auge da crise aconteceu em 1884, com a publicação de Muita luz561, de Berthe Fropo; e de Ficções e
insinuações562, resposta de Leymarie àquela publicação.
O jornal Le Spiritisme da primeira quinzena de julho de 1884 trouxe mais cartas com testemunhos de Michel Rosen, A. His e Carrier em defesa de Muita
luz e criticando o teor da obra Ficções e insinuações563. Na edição da primeira quinzena de agosto, Sophie, esposa de Michel Rosen, amiga de Leymarie e
de sua família desde 1874 até 1883, mostrou-se indignada com o envolvimento dele com a teosofia e com a brochura dos alunos de Roustaing.
Aparentemente não acreditaram na negativa de Leymarie em relação à sua não participação neste fato.
Nesta mesma edição do jornal, o capitão Bourgès, um dos fundadores da USF, que estava deixando a presidência da SPEE, assim se expressou:
Numa época em que meu zelo pelo Espiritismo às vezes arriscava arrastar minha impressionabilidade sulista longe demais, julguei ser meu dever agir contra o Sr. Leymarie, no interesse da
causa, você não pode duvidar; mas me esqueci de distinguir entre o homem privado e o administrador, e os meus ataques adquiriram um caráter pessoal que, hoje mais calmo, sinto-me obrigado a
repudiar. É neste sentido, apenas, que fiz uma abordagem absolutamente individual a ele, onde só estou engajado por razões de consciência. Por isso, recuso formalmente aqui qualquer
solidariedade que, de alguma forma, se estenderia às comunidades das quais faço parte.

O ano de 1884, segundo a Revista Espírita, também foi caracterizado por uma crise comercial que varreu a Europa; grandes e graves sofrimentos foram
suportados com energia por todos e, mais facilmente, pela grande família espírita. Quatro publicações espíritas desapareceram564. A Revista informou ainda
que várias tentativas de se fundar grandes sociedades tiveram êxito apenas parcial, porque, satisfeitos com o que o Espiritismo lhes ensinou e deu, os
membros dessas sociedades não quiseram romper com os costumes; a pesquisa (...) do ponto de vista das descobertas científicas parecia desagradá-los.
Porém, como destacou o periódico, Allan Kardec dizia que: “Em vez de estagnar, o Espiritismo deveria acompanhar a humanidade em seu curso
progressivo, nunca se deixando ultrapassar (...)”. E prosseguiu-se dizendo que essas palavras, impressas em O evangelho segundo o espiritismo, de Allan
Kardec em 1864, estavam reimpressas em A Gênese, em 1867 e 1868565.
Concluiu-se informando que a Society for Psychical Research, fundada em Londres (...) estava mostrando o caminho pelo qual deviam entrar, em vez de
se absterem majestosamente, como faziam os cientistas franceses. O que era apenas o exame dos fenômenos, com a ajuda de esforços individuais, tornou-
se o destino de uma sociedade erudita, fundada em base ampla em fevereiro de 1882.
Estavam também atentos porque, apesar das relações fraternas e contínuas que mantinham com ambas, a Aliança Espiritualista Americana (de Nova
York) e a Aliança Espiritualista de Londres, estavam tentando federalizar todos os espíritas e todos os espiritualistas.
Finalmente, foi informado que a Sociedade Científica do Espiritismo (Anônima e de Capital Variável) tinha duas sessões semanais, às 8h30 da noite, na
sexta-feira para as sessões espíritas inauguradas desde 1855566, e na terça-feira para as experiências de libertação da alma567, de leitura do pensamento568 e
de magnetismo em geral; os salões recebiam uma multidão ansiosa que, muitas vezes, não conseguiam conter. O texto era assinado por Puvis569, secretário
do Comitê de Direção, além dos administradores Joly e Leymarie.
Do final de 1884 até o início de 1885 ainda tivemos a polêmica sobre A Gênese. Nos anos seguintes, as críticas no Le Spiritisme se arrefeceram, embora a
divisão permanecesse até 1887.
O jornal Les Annales Politiques et Littéraires de 11 de abril de 1886 falou que quinhentas pessoas estiveram presentes no aniversário de morte de Allan Kardec naquele ano, apesar do
mal tempo. No entanto, um dos relatórios de polícia falou em trezentas pessoas e outro em sessenta. O primeiro se referiu à SA e à SPEE, cujos dirigentes estiveram juntos no Père Lachaise
no dia 28 de março, domingo; o segundo se referiu à USF que esteve lá no dia 31 de março, quarta-feira. Na prece de domingo, o Sr. Waroquier570 “pediu a Jesus Cristo, que sempre foi o
guia e modelo do Sr. Allan Kardec, para intervir e colocar um fim ao espírito de divisão que existia entre os diferentes grupos espíritas, se não no fundo, pelo menos em forma”.

Para o ano de 1886 tinham sido previstas provações materiais difíceis de se suportar; devendo os espíritas, que não se queixavam e suportavam
estoicamente a vida atormentada, ir às verdadeiras misérias571. O conselho de administração da SA tinha decidido que o dinheiro gasto na compra de
cartões de visita, que negociavam aos milhares no Ano Novo, iria para as mãos de quem não podia esperar.
Em 1887, Leymarie disse: “Espíritas bem-intencionados descobrem que algumas publicações espíritas se desviam em vários pontos do ensino de Allan
Kardec e nos impõem esta obrigação de trazer de volta os dissidentes; fazem de nós um Deus ex machina572 (...). No entanto, A. K. não se declarou
infalível, uma vez que disse repetidamente que recebemos apenas o ABC do que foi prometido (...). Ora, notemos, que os espíritas que não aceitam o
Espiritismo da primeira hora, em seu teor absoluto, são homens estudiosos e sinceros (...). Longe de os condenar, aplaudamos a iniciativa que tomaram;
que cada um de nós, em nosso meio, tenha o mesmo ardor pela busca da verdade (...)”. Em mais um trecho falou: “Quem desaprova o pensamento contido
em um artigo de jornal deve apresentar objeções a quem o escreveu, provando-lhe que está errado (...), forçando-o (...) a aceitar mais opiniões de acordo
com a razão e ciência, e não de acordo com o que o mestre disse sobre ela”.
Em outras passagens, aqui resumidas, afirmou que, ao contrário da Igreja Católica, o Espiritismo queria caminhar e viver essencialmente laico, amigo do
livre-arbítrio e do fato que atingia os sentidos; dizer que éramos infalíveis seria cometer um ato de sumo sacerdócio e nos conduzir ao papado, à fundação
de uma igreja e, por consequência, à criação de uma teocracia. Leymarie falou então do magnetismo e do hipnotismo, que tinha avançado e se estabelecido
no campo acadêmico. Ousou dizer que ele era sinônimo do Espiritismo, e que em 1900, este teria cidadania na Faculdade de Medicina.
Enquanto isso, o jornal Le Spiritisme da primeira quinzena de fevereiro de 1887 voltou a criticar Leymarie. Primeiramente através de um post scriptum a
uma carta da Sra. Jouffroy, em que ela reclamava ter sido despejada da Villa de Ségur. A Sra. e o Sr. Jouffroy, pelo testamento de Amélie Boudet, tinham
sido beneficiados com uma renda vitalícia. No post scriptum assinado pelo comitê encontramos: “Esta carta dispensa comentários, é suficientemente
eloquente para mostrar o descaso que se faz dos amigos do Sr. e da Sra. Allan Kardec e a forma como os desejos dos donatários são entendidos. Está muito
longe da criação da casa de refúgio”573. Depois, outra reclamação foi publicada, agora na primeira quinzena de abril, de um inquilino despejado por falta de
pagamento.
O clima entre a SA e a USF pareceu ficar mais amistoso apenas a partir de 1888, com o Congresso Internacional Espírita de Barcelona e a preparação do
Congresso Espírita e Espiritualista Internacional de Paris, em 1889.
Em janeiro de 1888, Leymarie informou que as edições dos livros fundamentais já passavam de trinta574. Disse, também, que a Revista envelheceria e
sempre seria jovem, pois Allan Kardec tinha recomendado com firmeza e sabedoria que ela estivesse sempre em sintonia com o movimento científico
moderno; golpear o adversário com o ridículo, a arma jesuítica, não seria provar [algo], mas diminuir-se.
Em 1889, Leymarie enumerou doze fatos relevantes, dos quais destacamos:
• Que devemos ter o respeito do livre-pensador espírita, por aquele cujas ideias espíritas apresentam alguns pontos de divergência com as nossas;

• Que o hipnotismo era a apropriação ilícita exata do magnetismo antigo e que, assim demarcado pelas academias científicas, não era menos verdade que esses acadêmicos cairiam inevitavelmente no
Espiritismo pelo estudo do hipnotismo;

• Que o Espiritismo desprezado e ridicularizado tinha adeptos esclarecidos em todas as partes do mundo. Tanto era verdade que o Congresso Espírita de Barcelona, de 1º de setembro de 1888, reuniu
delegados de várias nações575;

• Que se houvesse um Congresso Espírita em 1889, no dia 1º de setembro em Paris, só poderia ser com a ajuda de todos os partidários da imortalidade da alma que acreditassem na relação entre os
vivos e os mortos com a ajuda de médiuns;

• Que em vista deste Congresso, devemos reter as questões que nos unem, excluindo, até um exame mais aprofundado, todas aquelas que nos dividem.

Como de maio a outubro de 1889, ano da inauguração da Torre Eiffel576, haveria a Exposição Universal de Paris, Leymarie registrou sua insatisfação com
o espaço dado neste evento à Livraria Espírita.
No ano seguinte, em janeiro de 1890, lemos na Revista Espírita: “Desde 1º de janeiro de 1858, quando apareceu o primeiro caderno desta revista de
Allan Kardec, a velha geração espírita quase desapareceu (...). Nossas fileiras estão se diluindo, mas os Congressos de 1888 em Barcelona e de 1889 em
Paris, demonstram abundantemente que os vazios estão sendo preenchidos (...). Foi combinado que multidões de questões divisórias seriam deixadas de
lado, e não foi culpa do ‘bureau’ se os antirreencarnacionistas levantaram questões prematuras (...). Nunca afirmamos, nem mesmo no Congresso, que
Allan Kardec foi o criador do Espiritismo, pela simples razão de que o Espiritismo é, como o universo, eterno e infinito (...). Os espiritualistas (...) da
escola de Jackson Davis afirmam que este filósofo criou o Espiritualismo moderno (...). Eles estão certos para Jackson Davis, assim como nós para Allan
Kardec (...). Não acreditamos que temos a verdade absoluta, sendo apenas simples alunos, mas pedimos para sermos esclarecidos sobre o que é racional. Só
modificaremos nossas ideias (...) quando este movimento de avanço for necessariamente provado como racional (...)”.
Depois, o periódico informou: “Doravante, a Revista Espírita só aparecerá uma vez por mês577, como antes, para economizar o tempo que muitas vezes
nos falta; entretanto, ao longo do ano nossos assinantes terão a mesma quantidade de material (...)”.
Em janeiro de 1891, destacamos a frase assinada pela “redação” da Revista Espírita: “Temos essa opinião aceita, felizmente, de que o Espiritismo deve
permanecer ele mesmo, sem promiscuidade (...)”.
A Revista Espírita acrescentou que o Comitê de Propaganda nomeado pelo último Congresso Espírita tinha criado um concurso para uma obra, cujo
esboço tinha sido traçado em sua edição de julho de 1890. Desde sua criação, as seguintes obras foram depositadas na livraria:
1. Obras póstumas de Allan Kardec;

2. Estudos sobre a existência de Deus, da alma, diálogo de controvérsias, do Sr. Ginoux pai;

3. Pesquisas, do Sr. Louis Gardy, de Genebra, resposta ao Dr. Yung;

4. O fracionamento do infinito, do Sr. D’Anglemont;

5. A vingança do judeu, pelo Espírito de Rochester, em dois volumes;

6. Considerações sobre os fenômenos do espiritismo, de Papus;

7. Relatório do Congresso Internacional Espírita e Espiritualista de 1889;

8. Depois da morte, de Léon Denis.

Além disso, para cumprir uma das recomendações dos delegados ao Congresso de 1889, tinha sido formada uma sociedade para o desenvolvimento da
mediunidade e estabelecimento de seu sentido, de forma científica. Esta entidade era a Sociedade do Espiritismo Científico578.
Fig. 37: Capa dos Anais do Congresso Espírita e Espiritualista Internacional de 1889, em Paris, com 40.000 aderentes
Fonte: Encyclopédie Spirite

Concluiu-se este primeiro artigo de 1891 da Revista Espírita com estas palavras: “O futuro está no Espiritismo, disse Allan Kardec, e todos os anátemas
do mundo não podem impedir que esta ciência se afirme; o Espiritismo, acrescentou, não tendo dogmas, fica feliz em registrar as verdadeiras descobertas;
mudará se lhe for mostrado que está errado e como princípio aceita qualquer nova verdade, se for racional e fora do domínio da utopia, esta é a sua força.
Repetimos com o mestre: a ciência será espírita ou não, e o Espiritismo será científico se quiser progredir e ter sua importância no mundo”.
Em resumo, no período de 1880 a 1890 tivemos:
1. Foco em palestras;

2. Foco na ciência, mesmo que viesse a contradizer Allan Kardec, mas também com espaço ao misticismo e à pseudociência;

3. Reafirmação de que o Espiritismo deveria permanecer ele mesmo, sem promiscuidade.

Constatamos, também, que houve a divisão entre grupos espíritas, mas com duração efêmera da USF (cinco anos) e diminuição dos ataques externos ao
Espiritismo. Em 1884, boa parte dos adeptos de primeira hora tinha partido e, em 1889, a velha geração espírita praticamente tinha desaparecido.
Na década seguinte, ocorreu a fundação da Federação Espírita Universal entre 20 de novembro de 1892579 e 5 de setembro de 1893580. Esta federação foi
resultado da fusão do Comitê de Propaganda e da Sociedade do Espiritismo Científico, criados no Congresso de Paris em 1889, com a Sociedade Fraternal
Espírita. Mais tarde, a Federação passou a ser chamada de Sociedade Francesa de Estudos dos Fenômenos Psíquicos.
Em 1893, quatrocentas pessoas foram ao túmulo de Kardec e, em 1894, trezentas pessoas.

Depois, tivemos o início do processo de falência da SA em 15 de janeiro de 1895, sendo que o principal impacto financeiro veio da anulação dos
testamentos de Guérin e de Amélie Boudet.

538 Leymarie relatou que Allan Kardec tinha essa ideia em mente e que a tinha compartilhado em seus encontros íntimos, esperando o momento certo para ter conferencistas instruídos, capazes de falar com aquela sábia moderação que garantiria o sufrágio das
maiorias.
539 Segundo o artigo, o objetivo era unir todos aqueles que professavam a fé em Deus, na imortalidade da alma, na comunhão entre vivos e mortos, e mesmo aqueles que, após terem deixado de acreditar nos dogmas dos cultos antigos, não eram menos
animados por sentimentos religiosos, que tinham respeito pela sepultura, seja qual fosse o seu ideal.
540 A sociedade tinha o objetivo de estudar o Espiritismo, cientificamente.
541 Como foram aportadas vinte e uma ações, supomos que o projeto tenha sido de 10.500 francos.
542 Justiça temporal do Estado e não a justiça eclesiástica da Igreja.
543 Claro, esta é a perspectiva de Leymarie, não necessariamente de outros espíritas.
544 A questão que perdura até hoje seriam os critérios de aceitação de qualquer nova proposta em relação à pesquisa associada. Allan Kardec, na Constituição Transitória do Espiritismo, dizia: “Se é certo que a utopia de ontem muitas vezes é a verdade de
amanhã, deixemos ao amanhã o trabalho de realizar a utopia de ontem, mas não embaracemos a doutrina com princípios que seriam considerados como quimeras e que fariam que os homens positivos a rejeitassem”.
545 E. H. Rossi de Justiniani (ou Giustiniani), autor de Le demon de Socrate e, como vimos, de Le spiritualisme dans l’histoire. Ver também artigos contra a teosofia nas edições da Revista Espírita de 1879.
546 S. Privato Goidanich, O legado de Allan Kardec. 1ª Edição. USE/CCDPE. São Paulo – SP (2018), p. 204.
547 Barroux, Caron, Joly, Leymarie, Vautier, Vincent e Waroquier.
548 Barrault, Bonnemère, Chaigneau, Collard e Ravan.
549 Caron, que também foi da SA, Chaigneau, que também foi da SPEE, Chazarain, Georges Cochet, Colin, Devoluet, Thurman e Noeggerath.
550 Le Spiritisme, 6º ano, nº 10, 2ª quinzena de maio (1888), p. 120.
551 Embora com obras traduzidas até 1882 (não necessariamente as consideradas fundamentais) para o alemão, croata, dinamarquês, espanhol, grego, holandês, inglês, italiano, norueguês, polonês, português, russo, sueco e tcheco, Leymarie, como sempre,
exagera e depois ainda passa dados equivocados com relação às edições das obras fundamentais em francês. Numa breve busca entre outras línguas, parece que a primeira obra (retrabalhada) em húngaro foi publicada apenas em 1884, em romeno e turco só
no século XX e em finlandês no século XXI.
552 Conhecida como “O Jardim da França”, sua principal comuna era Tours.
553 O aumento do capital foi formalizado em 1883, devido ao aporte do imóvel de Guérin em Bordeaux no valor de 108.000 francos, portanto sem liquidez. Curiosamente, foi em 1883 que os empréstimos de Rivail, contraídos em 1858 e 1861 no valor de
25.000 francos (29.007 incluindo taxas e juros), foram quitados. Se somarmos todas as hipotecas feitas pela Sociedade entre 1883 e 1884 teremos 103.200 francos, ligeiramente menor que o aporte do imóvel de Guérin. A aplicação deste dinheiro é ainda
uma questão pendente de aprofundamento.
554 A USF só teve dois presidentes: Dr. Josset e Dr. Nicolas Pierre Reignier, desencarnado em 2 de junho de 1889, quando Auzanneau e Fropo eram seus vice-presidentes.
555 Refere-se ao artigo “Um pouco de Luz” (Un peu de Lumière) publicado no jornal Le Spiritisme da segunda quinzena de outubro de 1883.
556 Na verdade treze, contando a própria Revista Espírita.
557 Na França: 1. A Revista Espírita, 2. O Boletim da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos do Sr. Fauvety, 3. A Luz da Sra. Grange, 4. O antimaterialista do Sr. Verdad, 5. Le Spiritisme do Sr. Gabriel Delanne, 6. O Mundo Invisível do Sr. Thouars, 7.
Le Papillon da Sra. Olympe Audouard, 8. O Propagador Espírita do Sr. Streiff, que teve que interromper seu trabalho; e na Bélgica: 9. Le De Rots do Sr. Dossaer, 10. O Monitor Espírita e Magnético do Sr. Turck, 11. O Mensageiro dos Srs. Godard, Adam
e Keppeler, 12. O Farol dos Srs. Henrion e Marcq, e 13. O Boletim da Federação Belga dos Srs. Beyns, Frentz, Crignier e Martin.
558 Estas sete pessoas eram: 1. Anne Marie Marceline Heloïse Grenier (de Lyon), 2. Marie Thérèse Clairotet (casada com Louis Auguste Jouffroy), 3. Marie Brun (casada com Henry Grappin), 4. Georges Auguste Adrien Brun (irmão de Marie Brun), 5.
Léontine Henriette Henry (filha de Felicité), 6. Julie Antoinette Felicité Poitier e 7. Irma Louise Berneron (casada com Pierre Eugène Boulat).
559 Foi no final de 1883 que a Sociedade para a continuação das obras espíritas de Allan Kardec passou a se chamar Sociedade Científica do Espiritismo, conforme a Revista Espírita de outubro de 1883.
560 Esta era uma resposta ao artigo “Um pouco de Luz” (Un peu de Lumière), de Berthe Fropo, publicado no jornal Le Spiritisme da segunda quinzena de outubro de 1883.
561 B. Fropo, Muita luz. Portal Luz Espírita (2018). Link de acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L158.pdf; acesso em: 14/08/2022.
562 P. G. Leymarie, Ficções e insinuações – Resposta à brochura Muita luz. Portal Luz Espírita, Autores Espíritas Clássicos e CSI do Espiritismo (2021). Link de acesso: luzespirita.org.br/leitura/pdf/L57.pdf; acesso em: 14/08/2022.
563 Na tradução da obra para o português, foram incluídas análises do CSI do Espiritismo das alegações onde evidências puderam ser encontradas. Deixaram-se de comentar as alegações dos dois lados, baseadas apenas em provas circunstanciais
(testemunhos).
564 O Mundo invisível, O Propagador Espírita, O Farol e O Boletim da Sociedade Científica, que foi substituído por uma segunda seção da Revista Espírita, passando a ser bimestral.
565 Se refere à versão original de 1867, publicada em quatro edições durante 1868 (primeira à quarta); e à versão revisada, corrigida e aumentada de 1868, produzida em duas edições durante 1869 (quinta e sexta) e 1872.
566 Curioso que não é mencionado nenhum vínculo com a SPEE, que ainda existia nesta época.
567 Emancipação da alma ou desdobramento.
568 Telegrafia humana ou telepatia.
569 Gilbert Étienne Alexandre “Paul” Puvis, que usava também o pseudônimo Algol.
570 Jean Louis de Waroquier, integrante do Conselho Fiscal da Sociedade em 1884 e vice-presidente dela em 1887, ano da sua morte.
571 Além da continuidade da crise comercial, tivemos as eleições legislativas de 14 a 17 de outubro de 1885, que assistiram a um impulso dos conservadores e ao fortalecimento da extrema esquerda (radicais e uma dezena de socialistas). A esquerda
republicana, porém, conseguiu salvar a maioria.
572 “Deus surgido da máquina” é uma expressão utilizada para, diante de um problema aparentemente insolúvel em uma história, surgir uma ocorrência inesperada e improvável que o resolveria.
573 Ver Bônus 2 – Projeto, constituição e estatutos.
574 Leymarie sempre foi displicente com estes números; pelas nossas contas seriam oitenta e sete; a não ser que estivesse contando apenas a partir de 1873, quando assumiu a Livraria Espírita, neste caso seriam trinta e sete.
575 Vale mencionar um desvio do Visconde de Torres Solanot feito logo na introdução dos anais do Congresso: “Em 1866 apareceu a obra intitulada: O espiritismo cristão ou revelação da revelação. – Os quatro evangelhos, de J. B. Roustaing, advogado da
corte imperial de Bordeaux. Esta obra mediúnica, que em nada contradiz a doutrina exposta por Allan Kardec, aborda algumas questões que este, com a sua prudência e bom senso, não julgou oportuno abordar ainda”.
576 A construção da torre começou em 1887 e a inauguração aconteceu em 31 de março de 1889. Era a peça central da Exposição Universal de Paris de 1889, em comemoração ao centenário da Revolução Francesa.
577 No período de janeiro de 1884 a dezembro de 1889, a Revista Espírita foi publicada quinzenalmente.
578 Entidade dirigida por Laurent de Faget; não confundir com a Sociedade Científica do Espiritismo, de Leymarie.
579 Data do início dos preparativos conforme Le Spiritisme de janeiro de 1893, com a eleição do 1º “bureau” da Federação Espírita Universal.
580 Data da adoção do nome oficial conforme Le Spiritisme de outubro de 1893.
14. A ruína financeira da Sociedade Anônima

A Sociedade do Fundo Geral e Central do Espiritismo, fundada em 1869, havia passado em 1873 a se chamar Sociedade para a continuação das obras
espíritas de Allan Kardec, anônima e de capital variável. Em 1883, teve o nome alterado novamente para Sociedade Científica do Espiritismo e, em 1888,
para Sociedade da Livraria Espírita, fundada por Allan Kardec.
Esta sociedade foi beneficiada com pelo menos três testamentos581: de Émile Bourdier, falecido em 1879 (contestado pelo prefeito de Brunay, mas
mantido em 1881), de Jean Guérin, falecido em 1885 (contestado por parentes, e anulado em 1892), e de Amélie Boudet, falecida em 1883 (contestado por
parentes, e anulado em 1898).
O testamento de Guérin, anulado em 1892, teve esta decisão mantida em 1894 depois das apelações. A Corte que apreciou e julgou o processo
reconheceu que a SA jamais tinha distribuído lucros aos seus acionistas, e, portanto, não estava tipificada para receber doações582.
Em 1894, o tribunal de cassação, rejeitando o recurso feito por Leymarie, assim se manifestou sobre o testamento de Jean Guérin:: “(...) considerando
que uma associação que não visa a obtenção de lucros a serem repartidos entre os sócios não é uma sociedade (...), que, portanto, a menos que seja
legalmente reconhecida pelo Estado, não constitui uma pessoa jurídica capaz de receber doações generosas (...); considerando que esta condição substancial
de qualquer sociedade não pode ser encontrada na Sociedade Científica do Espiritismo, que o Sr. Guérin estabeleceu como sua legatária universal por seu
testamento holográfico de 4 de agosto de 1885 (...); e que durante toda a vigência da sociedade, fixada em 99 anos, seus membros não foram chamados a
nenhuma participação nos lucros (...); considerando, por outro lado, que a referida sociedade nunca foi legalmente reconhecida pelo Estado [como pessoa
jurídica com o objetivo de partilhar o lucro] (...). Por estas razões, rejeite-se (...)”.
Em 15 de janeiro de 1895, teve início o processo de falência da SA, consolidando-se sua derrocada com a anulação do testamento de Amélie Boudet em
1898 em favor dos herdeiros da Srta. Thierce, prima da Sra. Kardec. As razões que fundamentaram a decisão da Corte foram as mesmas alegadas no
julgamento do testamento de Guérin. Outros herdeiros de Amélie Boudet se juntaram ao processo de nulidade do testamento.
Eis alguns fragmentos do julgamento de 1898 do processo de anulação do testamento da Sra. Kardec583:
Presume-se, portanto, ter aceitado a sucessão, e que a sua aceitação [pela Srta. Thierce, através dos 20.000 francos oferecidos por Leymarie] impediu a abertura dos direitos (...) pelos Le Riche
de Cheveigné, herdeiros de grau posterior;

Considerando, no entanto, que as senhoras Aubin de Blanpré e Royer-Collard, na qualidade de legatárias universais da Srta. Thierce, intervieram separadamente na instância e que, nesta nova
qualidade, concluem pelos mesmos fins; que sua qualidade de legatários universais da Srta. Thierce não é contestada (...)

Considerando que todas essas cláusulas [do estatuto da Sociedade] demonstram claramente que qualquer ideia de lucro e especulação pessoal estava ausente dos motivos da associação; que de
fato, vemos aí que, durante a vida da sociedade, seus membros não foram chamados a compartilhar os lucros a serem realizados em decorrência das operações em que estava envolvida e, em
particular, em decorrência da operação da livraria que, como eles próprios reconheceram, não estava entre suas mãos “uma empresa comercial particular”, mas um meio de ação “criado tendo
em vista os interesses da doutrina e sua propagação pelo livro” (...)

Considerando que o art. 1832 do código civil define como sociedade o contrato pelo qual duas ou mais pessoas se comprometem a pôr algo em comum, com o objetivo de partilhar o lucro que
daí possa resultar (...)

Considerando que, de acordo com a escritura recebida por Fessard, notário em Brunoy, em 6 de agosto de 1895, Leymarie, atuando como liquidante da Sociedade da Livraria Espírita, vendeu a
Gérard vários edifícios localizados em Paris, avenida de Ségur, nºs 37, 39 e 41, pelo preço principal de 350.000 francos, dos quais 150.090 foram declarados, na escritura, pagos em dinheiro, e o
saldo estipulado a pagar, no prazo de dois anos, nas mãos, quer da sociedade vendedora, quer dos credores registrados; que os nºs 37 e 39 vieram à sociedade a partir do legado universal que lhe
foi feito pela viúva Rivail, nos termos do referido testamento, e o nº 41, de uma aquisição por ela [a sociedade] contratada em 1888 (...)

Declara Alexandre Le Riche de Cheveigné, a senhora viúva Gillet, a senhora de Frondeville, François Le Riche de Cheveigné, ès noms, a viúva Aubin de Blanpré; a senhora Royer-Collard,
Albert Gatine e a senhora Chalvet inadmissíveis em seu pedido como herdeiros até o sexto grau da senhora viúva Rivail, dispensem-os;

Aceita as senhoras Aubin de Blanpré e Royer-Collard intervindo como legatárias universais da Srta. Thierce (...)

Dito que a associação conhecida com a denominação de Sociedade Científica do Espiritismo não constituiu uma pessoa jurídica [por não se enquadrar nesta condição, isto é, por não ter como
objetivo aumentar a fortuna dos sócios] e que, portanto, não pode receber testamento;

Declara nulo e sem efeito a legado universal concedido em seu benefício pela Sra. Boudet, viúva de Rivail, dito Allan Kardec (...)

Condena Leymarie, como representante dos membros da associação da Livraria Espírita fundada por Allan Kardec, a devolver às senhoras Aubin de Blanpré e Royer-Collard todos os bens,
móveis e imóveis, pendentes da sucessão da senhora viúva Rivail e a prestar contas de todos os valores de alienação que recebeu e respectivos frutos;

Afirma que a venda consentida por Leymarie em benefício de Gérard, conforme escritura recebida por Fessard, notário em Brunoy, em 6 de agosto de 1895, é nula por feita a non domino
[venda por quem não é o proprietário]; diz que o edifício situado em Paris, avenida de Ségur, nº 37 e 39, nunca deixou de pertencer ao espólio da Sra. Rivail, com exclusão de Gérard e de todos os
outros;

Custas a serem suportadas, 1/5 pelos Le Riche de Cheveigné, 4/5 por Leymarie, ès noms, e Gérard.

A Sociedade afundava nos empréstimos que havia contraído e, ainda, perdeu os imóveis que garantiam as hipotecas.
Um segundo testamento de Amélie Boudet surgiu em 1899 em favor de Hubert Joly, que foi prontamente contestado pela Sra. Camille Potherat de Thou,
viúva do Sr. Georges Dubin de Blanpré, e pela Sra. Marie Potherat de Thou, esposa do Sr. Paul Royer-Collard. Este testamento foi igualmente anulado.
Depois da apelação, a sentença foi confirmada em 1901.
Neste ano, com a morte de Leymarie, o processo de dissolução, iniciado em 1895, passou a ter seu filho Auguste Paul Leymarie como liquidante.
Quem seriam os parentes de quarto (Thierce) e sexto graus (os demais), mencionados na sentença de 1898584?A avó materna de Amélie Boudet era também a avó materna da Srta.
Thierce, que morreu com pouco mais de cem anos em 1893. Esta avó, antes de se casar com o avô materno de Amélie, teve um outro casamento, cujo ramo gerou todos os descendentes que
agora reclamavam a herança da Sra. Kardec. Tais descendentes eram todos trinetos daquela avó de Amélie, que se chamava Anne Louise Villain de Quincy. Em resumo, dos nove trinetos
da avó de Amélie Boudet (incluindo uma menor de idade585), apenas duas trinetas foram aceitas por serem legatárias da Srta. Thierce e não por serem primas distantes. A venda da Villa de
Ségur foi cancelada.

581 Berthe Fropo mencionou no livro Muita luz a herança de Gustave Achille Guilbert, um dos fundadores da SA, falecido em 1874. O valor, segundo Leymarie na brochura Ficções e insinuações, foi usado integralmente para a publicação das traduções da
Srta. Blackwell de O livro dos espíritos e O livro dos médiuns para o inglês.
582 O processo foi aberto em 1888, o julgamento aconteceu em 4 de abril de 1892 e teve desdobramentos até 1905.
583 O processo foi aberto em 1897, o julgamento aconteceu em 31 de janeiro de 1898 e teve desdobramentos até 1905.
584 No direito de família, teríamos como exemplos de quarto grau: prima Thierce (quarto grau colateral), filha da tia de Amélie (terceiro grau colateral), que era filha da avó de Amélie (segundo grau); e de sexto grau: trinetos (sexto grau colateral), filhos dos
bisnetos (quinto grau colateral), que por sua vez eram filhos dos netos da avó de Amélie com outro marido (quarto grau colateral), filhos da filha (terceiro grau colateral) da avó de Amélie com outro marido (segundo grau). Popular e equivocadamente,
chamaríamos estes trinetos de primos de quarto grau de Amélie, por parte de avó materna.
585 Srta. Noël Le Riche de Cheveigné, menor sob a tutela natural e legal da sua mãe viúva Le Riche de Cheveigné.
15. O fim das sociedades e o reinício

A SPEE já tinha desaparecido em 1890. Seu periódico Pensamento Livre só havia circulado de 1885 até 1886, quando, sob seus auspícios, foi substituído
pelo Novo Pensamento até 1887. A USF, após quatro anos de inatividade, foi dissolvida em 1891. O jornal Le Spiritisme permaneceu com Gabriel Delanne
como redator-chefe até setembro de 1893, quando o periódico foi vendido a Arthur d’Anglemont. A partir de outubro, D’Anglemont passou a ser o redator-
chefe da parte filosófica e científica e Adolphe Laurent de Faget, da parte espírita e literária. Em janeiro de 1895, saiu seu último número, com críticas e
acusações graves a Laurent de Faget, que começou a publicar o jornal Progresso Espírita. Em julho de 1896, Gabriel Delanne lançou a Revista Científica e
Moral do Espiritismo.
Em 1895, como já abordamos, o processo de falência da SA foi iniciado.
Na Revista Espírita de maio de 1900, ano de outro Congresso Espírita e Espiritualista Internacional em Paris, Leymarie, provavelmente já debilitado e a
menos de um ano da sua desencarnação, vítima de uma longa e cruel enfermidade, contemporizou com todos, como já vimos, elogiando Laurent de Faget e
mencionando Blavatsky, pessoas com quem teve desavenças. Mesmo em condições de saúde precárias, defendeu mais uma vez Allan Kardec contra aos
artigos de Aksakof, alimentados pelas insinuações antirreencarnacionistas de Piérart e reproduzidos agora pelo teosofista Sr. conde César de Vesmes.
Escreveu também sobre René Caillié, que, segundo Leymarie, “sintetizou em um único volume a bela obra de J. B. Roustaing (...)”. Disse ainda que: “(...)
aí, as disposições testamentárias mal definidas deste último [Jean Guérin], também os estatutos mal formulados da Sociedade da Livraria Espírita, seja
pelas ideias deixadas sobre o assunto por Allan Kardec, seja pelo Sr. Mathieu Bittard e o notário da sociedade [Sr. Vassal], deu como resultado, após
longos processos judiciais, a perda dos bens legados pelo Sr. J. Guérin e os da Sra. viúva Rivail Allan Kardec, a ruína da sociedade e trinta anos de labuta e
economias perdidas para a causa. Não obstante, abençoemos esses doadores; que a sua memória nos seja cara porque foram bem-intencionados”.
Leymarie complementou então: “(...) E os homens desinteressados que dirigiram a Sociedade da Livraria Espírita: Srs. Levent586, De Montaut587 o juiz
íntegro, A. Caron588, Guilbert589, Crouzet590 advogado, Vincent591, Vautier592, P. Puvis593 o poeta, De Coninck594, E. Cordurié595 advogado, Ladame596
advogado, Yourievich597, doutor Flasschoen598, Gambu Amédée599, Letellier600, Eeckhout601, H. Joly602, J. Guérin603, Sra. Rivail A. K., Sr. Gay604, Sr. e Sra.
Magat605, Sra. Marina Leymarie, Sr. P. G. Leymarie, não cumpriram todos mais do que o seu dever? Nenhum deles recebeu dividendo de fim de ano e
decidiu-se nas assembleias gerais anuais que todos os lucros iriam para o Fundo de Reserva, para fazer frente a imprevistos, ações judiciais, prejuízos. Este
sábio sistema de previdência foi considerado bom em 1879606 e o tribunal honrou esta sociedade, reconhecendo-a em perfeita conformidade com a lei, com
capacidade de receber por doação e testamento. Dezessete anos depois, outros juízes, no mesmo tribunal, disseram que a mesma sociedade não tinha
existência jurídica, não podia receber, porque os seus membros desinteressados nunca tinham tocado em dividendos. Despojaram uma sociedade de gente
boa, que cometeu o erro de não saber lidar com os bens espíritas!!!”.
Leymarie citou ainda o prefácio de Flammarion no livro A sobrevivência, de Rufina Noeggerath, a “boa mãe” (“bonne maman”): “Certa vez eu disse, em
um discurso no funeral de Allan Kardec, que o Espiritismo não é uma religião, mas uma ciência. Talvez o futuro junte ciência e religião em uma única
síntese. Vamos estudar, observar, buscar”.
Finalizou, então, repetindo, segundo ele, estas palavras proféticas de Allan Kardec:
O Espiritismo que caminha com o progresso nunca será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe revelassem que ele está errado em um ponto, ele mudaria nesse ponto; se uma nova
verdade viesse à tona, ele a aceitaria.

As descobertas da ciência glorificam a Deus em vez de rebaixá-lo; elas apenas destroem o que os homens construíram sobre as concepções errôneas que eles têm de Deus.

Nossa linha de conduta não está traçada assim clara e sabiamente?

P. G. Leymarie.

Neste artigo, com referência a nomes de pessoas de todo o planeta, não há menção a qualquer brasileiro ou radicado no Brasil, nem mesmo alguns dos
mencionados em edições anteriores da Revista Espírita607. Também não foram mencionados o major Salustiano José Monteiro de Barros ou Afonso Angeli
Torteroli, ambos responsáveis pelos periódicos Revista da Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade e O Renovador, que apareceram na edição de 1º
de janeiro de 1897 da Revista Espírita, junto com Antonio Pinheiro Guedes, Carlos Joaquim de Lima e Cirne, etc.
Em 10 de abril de 1901, Leymarie desencarnou. Seu corpo foi cremado e a urna com suas cinzas foi enterrada em um túmulo (ao invés de depositadas no
columbário) no Père Lachaise. Tanto o casal Leymarie quanto a Sra. Joly estão enterrados neste mesmo túmulo608.
O documento “As últimas vontades de Leymarie”, que faz parte do acervo do Museu Allan Kardec online, confirma seu desejo de ser cremado.
Paris, 27 de março de 1901,

Aqui estão meus últimos desejos:

Eu quero ser enterrado civilmente, mas religiosamente, minha esposa ou meus amigos devem fazer orações espíritas sobre meu corpo. – Meu corpo será posto em um caixão de ripa de madeira
branca, colocado em uma carroça de última classe e transportado diretamente para o Colombarium do Père Lachaise (cemitério), para ser cremado lá.

Agradeço à Sra. Leymarie que tem sido uma gentil e boa providência para mim desde o primeiro dia de nosso casamento, pelo carinho que ela nunca deixou de me dar; se a magoei, que me
perdoe, é contra a minha vontade porque eu a amo e reverencio. Que Jean seja a alegria e o consolo dos seus.

Obrigado ao meu filho Paul, à minha filha Jeanne, ao meu genro Sr. Jean Gacon609, por suas carinhosas atenções durante nossa vida juntos. Que Deus os abençoe; Que eles se unam e cerquem a
Sra. Leymarie com respeito, eles ficarão bem.

Lamento que a cremação de meu corpo cause alguma perturbação religiosa para minha irmã Émilie e para a família de meu irmão Henri em Bordeaux; que eles me perdoem por este pequeno
problema. Eu estimo muito Émilie. Obrigado aos amigos que comparecerão à minha cremação.
A Sra. Leymarie, exceto para a cremação, teria liberdade para modificar as cláusulas secundárias, eu não gostaria de causar problemas a ela, nem à minha filha.

Feito em Paris, em 27 de março de 1901, com toda a vontade.

P. G. Leymarie

Depois disso, como já mencionamos, tivemos em 30 de março de 1901, sua substituição pelo filho, Auguste Paul Leymarie, como liquidante da
Sociedade da Livraria Espírita.
Quase cento e um anos depois do nascimento de Allan Kardec, e pouco mais de quatro meses após a morte de Marina Leymarie, em setembro de 1904,
foi fundada em 1905 a Sociedade em nome coletivo Leymarie & Gacon, Librairie Spirite, por Auguste Paul Leymarie e seu cunhado Louis Joseph Gacon.
O século XX tem início com apenas duas instituições mais representativas em Paris: a Livraria Leymarie e a Sociedade Francesa de Estudos dos
Fenômenos Psíquicos, que embora tendo Gabriel Delanne como um dos seus membros, não tinha “Espiritismo” no nome.
A Revista Espírita, agora sob a direção de Paul Leymarie610, publicava na edição de janeiro de 1905, uma propaganda sobre a venda de bolas de cristal.
Se na edição de janeiro de 1914, ele tinha esclarecido que a obra de Roustaing era notável à primeira vista, contudo, era contrária aos ensinamentos de
Allan Kardec; e que o ensinamento kardecista, portanto, seguia sendo o único que deveria ser considerado pelos espíritas; ele também publicou artigos
como “a religião do futuro” e “reflexões de um teósofo”, além de, novamente, anunciar a venda de bolas de cristal.
Em 1913, foi fundada a Sociedade de Estudos Espíritas por Puvis (Algol), Paul Leymarie, Paul Bodier, etc., além de Gabriel Delanne, presidente
honorário, coronel De Rochas e Camille Flammarion, membros honorários.

Fig. 38: Fotografia de Paul Leymarie


Fonte: Museu Allan Kardec online

586 Jules Théophile Nestor Anatole Levent.


587 Louis de Montaut ou Céphas (pseudônimo).
588 Alfred Léonard Caron.
589 Gustave Achille Guilbert.
590 Jean Pierre Louis Crouzet.
591 François Vincent.
592 Alfred Raphaël Vautier.
593 Gilbert Étienne Alexandre “Paul” Puvis ou Algol (pseudônimo).
594 Charles Louis Deconninck, marido de Louise Suinot.
595 Ernest Cordurié ou Marc Baptiste (pseudônimo).
596 Charles Auguste Ladame.
597 Talvez Alexandre Semyonovich Yourievitch, pai de Serge Yourievitch.
598 Charles Isidore Flasschoen.
599 Cyrille Amédée Gambu.
600 Alfred Charles Ferdinand Felix Le Tellier.
601 Émile Pierre Eeckhout.
602 Hubert Joly.
603 Jean Guérin.
604 Antoine Gay.
605 Jean Magat e Philomène Guiraud.
606 Como vimos, em 1879 faleceu Émile Bourdier, autor de Rudimentos elementares do espiritismo, que deixou uma casa na comuna de Brunoy como legado à SA. Em 1881, um tribunal decidiu que a Sociedade poderia receber este legado, ao contrário das
decisões posteriores em relação aos legados de Jean Guérin e Amélie Boudet.
607 Como Francisco de Siqueira Dias Sobrinho, Antonio da Silva Netto, Joaquim Carlos Travassos, François Denis Casimir Ajute Lieutaud, Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, Francisca Hortencia Perret Collard, Augusto Elias da Silva, Manuel Lopes de
Carvalho Ramos, Herculano Forte, Francisco Antonio Xavier Pinheiro, Manuel Rodrigues Fortes, Luiz Olympio Telles de Menezes e Antonio José Malheiros, ou da edição de 15 de outubro de 1888, onde constam outros nomes, inclusive o do senador
conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva, sobrinho-neto do Patriarca da Independência.
608 O Sr. Hubert Joly, em seu próprio testamento em favor de Leymarie, pediu para ser enterrado junto com a esposa, Marie Barbe Didier, cujo óbito aconteceu em 20 de janeiro de 1875, pouco mais de três anos depois do seu casamento ocorrido em 26 de
outubro de 1871. Tanto ela, quanto o casal Leymarie, foram enterrados na sepultura #237 do cemitério Père Lachaise. Mas ele desencarnou em 9 de março de 1906, aos oitenta e seis anos incompletos, ao passo que Leymarie, o responsável por realizar seu
desejo, faleceu em 1901, enquanto sua esposa, Marina Duclos, morreu em 1904. Como não encontramos o registro de seu enterro naquele cemitério de Paris, presumimos que talvez ele tenha sido enterrado mesmo em Issy, de onde partiu do mundo físico.
609 Jean Gacon era o neto de Leymarie, filho do seu genro Louis Joseph Gacon com sua filha. Aparentemente, Leymarie, morto duas semanas depois, se confundiu.
610 A mãe tinha assumido a Revista depois da morte do marido e a conduziu até a sua desencarnação.
Epílogo

Neste livro, estudamos a transformação do antigo mestre de pensionato, escritor de livros didáticos e ex-contador, Rivail, em um dos protagonistas do
Espiritismo, o Sr. Allan Kardec. Apresentamos detalhes inéditos sobre sua família, sua carreira educacional, suas atividades com teatros, sua luta pela
sobrevivência.
Revelamos, ainda, os principais médiuns utilizados por ele, cujas identidades completas eram totalmente desconhecidas. Entre estes médiuns e demais
frequentadores da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas tínhamos artistas como pintores, desenhistas, litógrafos e entalhadores611; professores612;
contadores613; chaveiros, relojoeiros e joalheiros614; alfaiates615 e outros comerciantes616; além daqueles que viviam da mediunidade617. Entre eles também
encontramos alguns que foram inventores618.
Todos estes Espíritos encarnados investigados eram pessoas comuns619. Apesar de ao seu lado se apresentarem Espíritos desencarnados considerados
moral e intelectualmente superiores, notamos a ausência de outros Espíritos notáveis em suas áreas de conhecimento, já desencarnados em 1857620, ano de
lançamento de O livro dos espíritos. Claro, muitos não foram ou não quiseram se identificar e, portanto, podem ter também contribuído, o que talvez jamais
saibamos621. Daqueles que se identificaram, mas que eram desconhecidos pela maioria das pessoas, trouxemos detalhes das suas vidas, como as de Espíritos
felizes e de criminosos arrependidos.
Após o falecimento de Allan Kardec, o Espiritismo, espremido entre a igreja que o atacava e a ciência que ou o ridicularizava, ou não pesquisava o
suficiente sobre seus fundamentos, deixou-se levar pelos conflitos entre seus representantes622 e pela ingenuidade e vaidade de seus dirigentes, que se
permitiram desvios exploratórios, abrindo espaço na Revista Espírita à fotografia dos Espíritos, à teosofia, ao roustainguismo, etc. Entretanto, os fatores
preponderantes para o fim do Espiritismo na França talvez tenham sido a ruína financeira da Sociedade Anônima e a falta de dedicação aos estudos
doutrinários por parte dos espíritas em geral.
Parte da história do Espiritismo foi resgatada, mas pesquisas precisam continuar para uma visão mais completa da situação:
• Razões das dissidências à época de Allan Kardec;

• Conhecimento mais aprofundado da vida dos personagens, cujas identidades já foram descobertas;

• Identidade de personagens relevantes como Aline C., Adrien, Canu, Nivard etc.;

• Desdobramentos do pós-Kardec623, inclusive com a consulta ampliada às fontes da época, como os anais de todos os congressos espíritas e espiritualistas.

O Espiritismo ressurgiu no Brasil com forte viés religioso para atendimento de todos que nele buscavam consolação. Este renascimento se dá atualmente
pelo mundo, em parte sem esta conotação religiosa. Mas isso seria assunto para outro livro.

611 Os médiuns A. Didier, Costel, Vézy, Bertrand, Roze etc.; além de Monvoisin e do Espírito Georges.
612 O médium Rul (professor de equitação); além de Canu (professor de línguas) e do próprio Rivail. Carlotti também era professor de línguas, mas não há indícios que tenha frequentado a SPEE.
613 Além de Rivail, o médium Desliens também se tornou contador.
614 Lateltin era joalheiro. Roustan era relojoeiro e Fortier era chaveiro, mas também não sabemos se estes dois últimos frequentavam a SPEE.
615 Leymarie, etc.
616 Cazemajour, Delanne, Morin e Rodolphe, além de D’Ambel, que foi editor musical e do jornal L’Avenir.
617 Roger, Japhet e Huet, apesar desta, que também foi governanta, negar qualquer cobrança.
618 Roze, Rul e Sanson, além de Rivail, Demeure e do pai das irmãs Baudin.
619 Mas isso não tira o mérito do Espiritismo e de sua lógica intrínseca. Se no aspecto científico o Espiritismo ficou restrito, inclusive à ciência da época, é no aspecto filosófico que ele desenvolve conceitos robustos como a pluralidade das existências, com a
reencarnação sem retrogradação, a comunicabilidade dos Espíritos, a pluralidade dos mundos habitados, etc.
620 No período da dita Codificação não encontramos mensagens de Newton ou Descartes (apenas uma frase de cada um na Revista Espírita), de Kepler ou Lavoisier (menções apenas a quando estavam encarnados); de representantes da filosofia, como Comte,
James Lind, David Hume, John Locke, Francis Bacon, Kant, Leibniz, Spinoza, Aristóteles, etc.; ou de outros expoentes da ciência à sua época como Leonardo da Vinci, Copérnico, Tycho Brache, Dalton, Ørsted, etc.; sem falar de Espíritos do Oriente, como
Aryabhata da Índia, que propôs o heliocentrismo muito antes do que Copérnico; Shen Kuo, um Leonardo da Vinci da China; Alhazen do Iraque, autor do Livro de óptica; ou Avicena do Irã, autor de O Cânone da Medicina.
621 Os dez que se identificaram na segunda edição de O livro dos espíritos foram São João Evangelista (10-103), Santo Agostinho (354-430), São Vicente de Paulo (1581-1660), São Luís ou Luís IX (1214-1270), O Espírito da Verdade, Sócrates (496 AEC-
399 AEC), Platão (428 AEC-348 AEC), Fénelon (1651-1715), Franklin (1706-1790) e Swedenborg (1688-1772). Hahnemann (1755-1843) e Napoleão I (1769-1821) só apareceram na primeira edição, que também não incluía Santo Agostinho, São Luís, o
Espírito da Verdade e Platão. Em nenhuma destas edições apareceu Erasto. Das dez assinaturas da segunda edição, 50% eram de ex-religiosos, 20% de ex-filósofos e 10% de ex-cientistas, além de Swedenborg e O Espírito da Verdade, que para muitos é
Jesus.
622 O conflito entre a SPEE e a SA, devido à fundação desta última em 1869, diminuiu com o “processo dos espíritas” em 1875. O conflito entre a USF e a SA, devido aos espaços dados na Revista Espírita à teosofia e ao roustainguismo esmoreceram durante
as preparações do Congresso Espírita e Espiritualista Internacional de 1889 em Paris.
623 Poderíamos citar:
• Eventual contrato entre Allan Kardec e Édouard Mathieu Bittard para concessão da Livraria Espírita por quinze anos;
• Detalhes da falência da Livraria Internacional, responsável pelas edições de A Gênese;
• Detalhes dos inventários de Roustaing, Guérin e Leymarie;
• Evolução acionária da SA;
• Aplicação dos recursos das hipotecas feitas pela SA;
• Desdobramentos da falência da SA (cancelamento da venda da Villa de Ségur e manutenção dos direitos sobre as obras de Allan Kardec com Leymarie);
• Evolução patrimonial de Leymarie;
• Alterações acionária e estatutária da Livraria Leymarie;
• Sucessão da Société d’Études Spirites S.A.R.L., ligada a La Maison des Spirites (para recuperação de quadros roubados pelos nazistas).
Bônus

1. Um engano biográfico repetido sobre Rivail

No discurso biográfico feito no Congresso Espírita de 1888, realizado em Barcelona624, feito pelo próprio Leymarie, encontramos a origem de algumas
informações ainda não comprovadas, das quais destacamos:
Sr. Rivail era então conhecido como um excelente gramático e linguista; ele havia dado à França elementos para uma melhor direção da educação pedagógica; bacharel em ciências e letras, ele
sabia, exceto russo, todas as línguas faladas na Europa; havia concluído o curso completo de direito e medicina e fora coroado por várias academias; ele se tornou um poderoso magnetizador
porque a ciência de Mesmer o interessou.

Tais informações foram então replicadas, por exemplo, por Henri Sausse e outros.
A biografia feita por Henri Sausse foi escrita em 1896 e publicada pela primeira vez em livro, em 1901. O A Paz Universal de maio de 1896 começou a
publicá-la625. Era a transcrição de um discurso feito em Lyon por Henri Sausse, em 31 de março de 1896626. A biografia em espanhol, no formato de livro,
saiu em 1901627.
Vejamos então o que este autor e outros repetiram:
• Henri Sausse: “era linguista insigne, conhecia a fundo e falava corretamente o alemão, o inglês, o italiano e o espanhol; conhecia também o holandês”;

• Carlos Imbassahy628: “conhecia o alemão, o inglês, o italiano, o espanhol, o holandês, sem falar na língua materna”;

• Júlio Abreu Filho629: “falava corretamente inglês, alemão, holandês, espanhol, italiano e era grande conhecedor do grego e do latim”;

• Chrysanto de Brito630: “conhecendo perfeitamente e falando o alemão, o inglês, o italiano, o espanhol e também o holandês”;

Contudo, Allan Kardec, no mínimo, não falava nem italiano nem espanhol, e já tinha esquecido o alemão.
Compare ainda a versão de 1901, em espanhol, da biografia feita por Henri Sausse:
(...) lingüista distinguido, conocía á fondo y hablaba correctamente el alemán, inglés, italiano y español, poseía también el holandés y podía fácilmente expresarse en este idioma631.

Com a versão do discurso original de 1896:


(...) linguiste distingué, il connaissait à fond et parlait couramment l’allemand et l’anglais, l’italien et l’espagnol ; il connaissait aussi le hollandais et pouvait facilement s’exprimer dans cette
langue632.

E com a versão de 1927, em francês633:


(...) linguiste distingué, il connaissait à fond et parlait couramment l’allemand et l’anglais ; il connaissait aussi le hollandais et pouvait facilement s’exprimer dans cette langue634.

A versão de 1927 corrigiu o exagero da versão de 1896, mas ainda assim está imprecisa.

624 P. G. Leymarie, Congrès international spirite de Barcelone – “La parole est donnée à M. P. G. Leymarie”. Librairie des sciences psychologiques, Paris – France (1888). Link de acesso: gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5500750h/f67.item; acesso em:
15/08/2022.
625 H. Sausse, “Discours de M. H. Sausse”, Le Paix Universelle, 6º ano, nº 128, 16-31 de março (1896), p. 268. Link de acesso: p. 28 de iapsop.com/archive/materials/paix_universelle/paix_universelle_v6_1896_partial.pdf; acesso em: 15/08/2022.
626 H. Sausse, Biographie d’Allan Kardec. Impr. de E. Arrault, Tours – France (1896). Link de acesso: catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb31303249n; acesso em: 15/08/2022.
627 H. Sausse, Biografia de Allan Kardec. Imprenta de Juan Torrents y Coral, Barcelona – Espanha (1901). Link de acesso: allankardec.online/pdf/135; acesso em: 15/08/2022.
628 C. Imbassahy, A Missão de Allan Kardec. Edição conjunta de: FEP, FEC, FERGS, USESP e USERJ (1988).
629 J. Abreu Filho, Biografia de Allan Kardec. Edição PENSE – Pensamento Social Espírita, Santos – SP (1973).
630 C. de Brito, Allan Kardec e o espiritismo. Editora Eco, Rio de Janeiro – RJ (1935).
631 (...) linguista distinto, conhecia a fundo e falava corretamente alemão, inglês, italiano e espanhol, possuía também holandês e poderia facilmente se expressar neste idioma.
632 (…) linguista distinto, conhecia a fundo e falava fluentemente alemão e inglês, italiano e espanhol; sabia também holandês e podia facilmente se expressar nesta língua.
633 H. Sausse, Biographie d’Allan Kardec. Editions Jean Meyer (B. P. S.), Paris – France (1927). Link de acesso: allankardec.online/pdf/150; acesso em: 15/08/2022.
634 (…) linguista distinto, conhecia a fundo e falava fluentemente alemão e inglês; sabia também holandês e podia facilmente se expressar nessa língua.
2. Projeto, constituição e estatutos

No arquivo de Prévost disponível nos Arquivos Municipais de Paris, também encontramos algumas correspondências de Allan Kardec e um manuscrito
chamado “Projeto concernente ao Espiritismo”. A letra não é dele e o manuscrito não está datado, embora esteja entre as correspondências de 1862. Uma
cópia, agora com a letra de Allan Kardec, ainda sem data, faz parte do acervo do Museu Allan Kardec online635. Uma versão modificada foi publicada na
Revista Espírita de janeiro de 1907, e já se encontra traduzida para o português636, onde há a menção que o fragmento póstumo remontava a 1862. Nele
encontramos a intenção sugerida pelos Espíritos de utilizar a Villa de Ségur como um Port-Royal637 do Espiritismo, sem ter o caráter monástico. Seria
limitado a doze membros, sem contar o chefe, e teria biblioteca, sala de conferências, etc., onde seriam formados oradores encarregados de difundir alhures
o ensino espírita.

Fig. 39 e 40: Fragmentos do “Projeto concernente ao Espiritismo”


Fontes: Museu Allan Kardec online (manuscrito na parte superior) e
Arquivos Municipais de Paris, cote: D89J (manuscrito na parte inferior)

Infelizmente, Allan Kardec nunca teve recursos suficientes para implementar a ideia. Tanto que nas diversas versões da “Constituição Transitória do
Espiritismo”, datadas de 1868, ele menciona que “O projeto de uma casa de retiro, na acepção completa do vocábulo, não pode ser executado de início, em
razão dos capitais que semelhante fundação exigiria e, além disto, porque é preciso deixar à administração o tempo necessário para ela firmar-se e caminhar
com regularidade, antes de pensar em complicar suas atribuições por empreendimentos nos quais poderia fracassar. Abraçar muitas coisas, antes de se ter
assegurado meios de execução, seria uma imprudência. Compreendereis isto facilmente se refletirdes em todos os detalhes que comportam
estabelecimentos desse gênero. Sem dúvida, é bom ter boas intenções, mas, antes de tudo, é preciso poder realizá-las”638. Este texto, que estava no item
VIII – Vias e meios, foi reproduzido na segunda parte de Obras póstumas, mas no item V – Instituições acessórias e complementares da comissão central,
da Constituição do Espiritismo. Em um manuscrito do Museu Allan Kardec online, sem título e sem data, que se inicia com “A constituição do Espiritismo
tem, então, como complemento indispensável (...)”, encontramos o mesmo texto associado ao capítulo III – Instituições acessórias à Comissão.
Seja pela falta de recursos, seja pela necessidade de adequação à legislação da época, os estatutos da SA, fundada por Amélie Boudet, não contemplaram
nenhuma instituição acessória (biblioteca, museu, dispensário médico, caixa de socorro, asilo, etc.).
Já em relação aos estatutos da SPEE, não encontramos diferenças significativas entre as versões da época de Allan Kardec e a versão de 1870, já
abordada anteriormente.
635 [Projeto concernente ao Espiritismo]. Disponível em: projetokardec.ufjf.br/item-pt/?id=229. Acesso em: 03/10/2022. Projeto Allan Kardec.
636 Z. Wantuil e F. Thiesen, Allan Kardec, vol. II. FEB, Rio de Janeiro, RJ (1979), p. 232-236.
637 Port-Royal des Champs, mosteiro fundado no século XIII, na pequena Magny-les-Hameaux, a aproximadamente doze quilômetros de Versalhes, foi palco de uma intensa vida religiosa primeiro, depois intelectual e política.
638 Revista Espírita, dezembro (1868), p. 392.
3. Bittard, da Livraria Espírita

Edouard Mathieu Bittard, ex-funcionário da Livraria Internacional639, foi contratado por Allan Kardec para cuidar da Livraria Espírita. Sabemos que ele
nasceu por volta de 1829, mas ainda não localizamos seus registros de estado civil. Bittard foi um dos fundadores da SA.
Depois de renunciar à administração da Livraria Espírita em junho de 1873, ele chegou a participar da Assembleia Geral Ordinária da SA em outubro do
mesmo ano. Nesta reunião, foi criticado por sua gestão, inclusive pela escrituração contábil da Sociedade. Foi esta uma das razões para o inventário geral
da Livraria feito por Amélie Boudet e Leymarie em 1873.
A saída de Bittard foi oficializada na assembleia. Ele deixou de ser acionista e sua cota de dois mil francos foi substituída por ações dos Srs. Vincent640,
Carré641, Caron642 e Yvose643, com uma parte de quinhentos francos cada. Foi decidida ainda a retenção de quaisquer valores que, supostamente, poderiam
ser devidos ao ex-administrador.
Nos arquivos pessoais de Prévost já mencionados, encontramos também uma carta de 8 de agosto de 1873, escrita por Bittard:
Paris, 8 de agosto de 1873

Meu caro Sr. Prévost,

Vejo com tristeza que sua saúde está sendo afetada novamente, mas eu não acho, como você, que o momento [da sua morte] está se aproximando, atribuo isso ao calor tropical com que fomos
abençoados este ano e que está afetando nossos corpos [a máxima em Paris no dia 8 de agosto de 1873 foi de 37,2°C].

(...) estou no quarto desde segunda-feira devido a um acúmulo de fluidos no coração; como você, me vendo vomitando sangue pela boca e narinas, e quase sufocado por essas hemorragias,
acreditei que havia chegado o momento, as crises ocorriam principalmente no meio da noite, minha pobre esposa estava muito preocupada; (...) comecei a magnetizar meu estômago e tórax e
consegui parar a asfixia, tomei então hypécac [provavelmente ipeca ou ipecacuanha] (glóbulo homeopático que tenho uma caixa e um “traité” [tintura]) e pude esperar assim pelo médico que me
receitou o mesmo remédio em dose maior, acrescentando outro remédio, e hoje todo cuspe e vômito cessaram, de forma que em 8 dias eu terei sido retirado dessa má situação pela medicina
espírita, enquanto a medicina materialista teria me mantido um mês e mais com muitos cautérios e remédios muito caros, soma-se a isso a intervenção do invisível que não era menos eficaz,
especialmente na hora das convulsões.

Respondendo à pergunta que me fazes, a doação entre vivos seria impossível (...) [e segue aconselhando juridicamente Prévost sobre seu testamento]

Se eu soubesse exatamente o quão mal você está, eu poderia ter consultado meu médico e enviado os glóbulos certos para você (...)644

Com os melhores cumprimentos.

E. Mathieu Bittard.

Fui à Rua Ramponneau, nº 34, na sua última casa, e disseram que não o conheciam [o zuavo Jacob]. Eu o vi muito pouco para conhecê-lo e julgá-lo, só me lembrava do alívio que ele trouxe
para alguns pacientes. Isso é tudo que sei sobre ele. O zuavo [Jacob] tem uma faculdade intermitente, de alguns meses, para suas curas; quando não falamos mais dele é porque ele perdeu sua
faculdade, então ele muda de bairro e reaparece somente quando sente sua faculdade retornando. Ele deve estar descansando agora, pois foi acusado por uma senhora quinze dias atrás.

Parece que o conhecimento jurídico e notarial de Bittard era bastante amplo. Foi ele quem ajudou a preparar o primeiro estatuto da SA, adequando-o à
legislação vigente. Como vimos anteriormente, mais tarde, tal estatuto seria criticado por Leymarie pelos problemas com as heranças recebidas, uma das
causas da ruína financeira da sociedade.

639 Responsável pelas edições de A Gênese.


640 François Vincent, nascido em Rivière-les-Fosses, faleceu em Vaux-sous-Aubigny aos 74 anos em 1900. Fez fortuna em Buenos Aires.
641 Albin François Joseph Carré (1822-1907), coronel de artilharia residente em Bourges.
642 Alfred Léonard Caron (1822-1902).
643 Lowinski Yvose Laurent, nascido por volta de 1805, foi um rico fabricante de tecidos impermeáveis para trens.
644 Prévost havia dito estar nas últimas, e Bittard havia dito que não acreditava, que isto já havia acontecido há dois anos; e de fato, Prévost desencarnou só quase dois anos depois, em 29 de abril de 1875.
4. Caminhos de outras sociedades, que não a Sociedade Anônima

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas


No jornal Le Spiritisme da segunda quinzena de janeiro de 1887, encontramos um protesto dizendo que desde setembro de 1886 havia uma cisão na
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE). Sob a presidência de Louis Prud’homme, que substituiu Just L’Hernault, materialistas, dissidentes e
imortalistas proclamavam tendências novas contra Allan Kardec. Entre outros, assinavam o protesto que pedia novas eleições na SPEE: L’Hernault, A.
Delanne e G. Delanne, Auzanneau e B. Fropo. Em defesa de Allan Kardec também foram publicadas cartas de Céphas (da Sociedade Anônima), de Léon
Denis, etc.
Na segunda quinzena de fevereiro de 1887, foi publicado no mesmo jornal um contraprotesto enviado por Émile Blin645, vice-presidente da SPEE,
assinado por Prud’homme e toda a diretoria eleita, exceto o próprio Émile Blin. Afirmavam que nunca deixaram de se dedicar ao caminho que a SPEE há
muito havia traçado, que nada mais era do que a busca da verdade através da experimentação científica. Acrescentaram que a propaganda sempre tinha sido
o objeto principal de seus esforços e que, por conseguinte, não podiam atacar o “nome glorioso” do fundador da SPEE, como tampouco o próprio
Espiritismo; que, ao contrário, confinando-se ao terreno mais propício à expansão das ideias espíritas, acreditavam estar prestando serviço maior à causa.
Seguiu-se uma carta do próprio Émile Blin dizendo que não tinha assinado o contraprotesto por não concordar totalmente com seu conteúdo. Ele
reclamou do fato dos signatários só terem se queixado do aparecimento do misticismo imortalista na Sociedade. Colocou-se então contra as questões
dogmáticas e informou que havia pedido a renúncia do comitê, enumerando as razões.
Na sequência, também encontramos uma carta de H. Tarlay, contra o Imortalismo.
Mas, na verdade, Émile Blin era a favor do Imortalismo.
Nas edições de novembro e de dezembro de 1887 do jornal La Pensée Nouvelle (O Novo Pensamento), que substituiu La Pensée Libre (O Pensamento
Livre) da SPEE, foi publicado o discurso de Émile Blin, agora presidente da SPEE, feito em 8 de outubro: “(...) Fomos então informados de Allan Kardec e
suas obras; ele nos foi apresentado como o fundador do Espiritismo e seus livros nos foram apontados como contendo tudo o que era importante saber
sobre o assunto; fomos informados do homem como uma espécie de semideus e de suas obras como uma quase revelação do Alto. Não tivemos então
nenhuma razão para duvidar do que nos foi dito; mas a leitura desses livros imediatamente nos forneceu muita coisa, para não compartilhar a opinião geral
dos espíritas a respeito dele. Deixando de lado inteiramente o autor desses livros, e sem nos ocuparmos de sua personalidade, que aliás nada tem a ver com
o julgamento que se tem o direito de transmitir sobre suas obras, vemos que elas tendem, sobretudo, a servir de base para uma nova religião. Em vez de
encontrar ali, como pensávamos, dados friamente científicos, encontramos ali raciocínios tão místicos quanto os de um catecismo. Em vez de um
enunciado de fatos, e apenas fatos com suas consequências imediatas e nada mais que suas consequências imediatas, vemos esses fatos servirem de ponto
de partida para inferências, que se apresentam, não como hipóteses prováveis, mas como pontos doutrinários absolutamente demonstrados. Finalmente, em
vez de encontrar ali os materiais necessários para o estudo de uma nova ciência, encontramos ali orações; orações de todos os comprimentos e fórmulas tão
variadas quanto as de qualquer paroquiano romano; e entre as condições exigidas para a obtenção de um fenômeno espírita, vemos que se recomenda
primeiro dirigir uma oração ao Senhor Deus Todo-Poderoso para exortá-lo a fazer da experiência um sucesso. Pois bem, esta maneira de proceder, para
produzir um fato material, causa um arrepio perceptível na mente daqueles que não estão acostumados a murmurar uma oração no início de uma operação
de física ou química para pedir a uma divindade hipotética que gentilmente ajude na combinação que está prestes a ocorrer (...)”.
O longo discurso continuou no mesmo teor, igualando as obras fundamentais aos livros de qualquer religião e chamando o Espiritismo de doutrina
religioso-mística.
Em outro trecho afirmou: “(...) Foi então que nos lembramos entre nós do nome proposto, há mais de trinta anos, pelo Sr. Tremeschini646, um dos que, à
época, se recusava a seguir Allan Kardec no campo do misticismo em que se envolvia. O Sr. Tremeschini, desejando já naquele momento permanecer
firmemente no terreno das coisas demonstradas e demonstráveis, e reconhecendo como provado por essas coisas apenas a sobrevivência da individualidade
humana e sua imortalidade, propôs dar a esta doutrina experimental o nome lógico de Imortalismo. É este nome que inscrevemos aqui em nosso programa,
e a doutrina que ensinamos é, consequentemente, a doutrina imortalista (...). Essas duas grandes correntes de ideias, uma mística [segundo ele, o
Espiritismo], outra positivista [o Imortalismo], ainda eram perceptíveis no ano passado entre os membros de nossa Sociedade. Um dia, o choque, há muito
previsto, ocorreu e trouxe entre nós uma cisão mais aparente do que real. A Sociedade Parisiense (...) tornou-se (...) um centro mais especialmente dedicado
à propaganda do Imortalismo, podendo esta propaganda (...) ser exercida em paralelo ao das Sociedades Kardecistas. É isso que me faz dizer que a cisão é
mais aparente do que real; de fato, podemos ver que o ponto de partida e o objetivo pretendido são absolutamente os mesmos; o ponto de partida são os
fenômenos psíquicos; o objetivo é a guerra contra o niilismo e sua terrível doutrina. Mas, embora acreditemos que esse objetivo seja alcançado tão logo
tenhamos dado ao homem a prova material da sobrevivência e imortalidade de sua individualidade, não ousamos ir mais longe, o Espiritismo de Allan
Kardec leva seus ensinamentos muito além desse ponto e afirma onde ainda duvidamos. (...) nenhum de nós acredita que deve considerar o próximo como
um inimigo, porque acredita ou não acredita em Deus; não amaldiçoamos nenhum de nós que tenha confiança no valor da oração sincera, só porque não
compartilhamos dessa confiança (...). Pois se nossa razão se recusa a aceitar um Deus pessoal sem outras provas além daquelas banalizadas por todas as
religiões, se não queremos admitir a existência desse tipo de potentado volúvel e caprichoso, que nosso amigo, Sr. Chaigneau, tão apropriadamente chamou
“o bicho-papão do céu”, nunca estabelecemos aqui como princípio absoluto, a negação de qualquer força ou poder dirigente, que se poderia chamar de
Deus, se insistirmos nesse nome”.
Émile Blin falou ainda dos fiéis da Igreja Kardecista que, sem perceber, estavam errando ao fazer da crença em Deus e da crença nos Espíritos duas
coisas relacionadas.
Finalizou dizendo: “Até que tenhamos trazido à Sociedade parisiense um número suficiente de membros para entrar neste caminho de pesquisa,
devemos, para ver nossas fileiras aumentarem, convidar a vir até nós os incrédulos e os descrentes para, pela palavra, deixá-los conhecer nossas intenções,
provar-lhes nosso desinteresse e persuadi-los de nossa boa fé e honestidade; então, por experiências tão simples quanto possível, por em suas mãos os
meios de adquirir para si a certeza de que tudo o que propomos é real e, de fato, a doutrina imortalista é a única que, sem misticismo e sem orações, dá ao
homem a consolação e a coragem no presente, e a esperança e a fé no futuro”.
Como vemos, a SPEE deixou de seguir as obras de Allan Kardec, para se concentrar apenas nas provas da imortalidade da alma, prescindido da crença na
existência de Deus e na eficácia da prece.
O periódico brasileiro Reformador de março de 1887 já tinha informado sobre o Congresso Internacional do Livre-Pensamento e as considerações
favoráveis de Émile di Rienzi647, do jornal La Pensée Nouvelle, sobre o Imortalismo. Havia mencionado também a controvérsia que se seguiu entre os
periódicos Le Spiritisme e Revista Espírita de um lado, e La Pensée Nouvelle e Vie Posthume de outro. Finalmente, tinha lamentado o cisma que estava se
estabelecendo no Espiritismo.
Apesar de tudo, eis o que Émile Blin falou no discurso no túmulo de Allan Kardec, publicado pela Revista Espírita de 15 de abril de 1888: “(...) É para
destruir essa monstruosa concepção do nada que Allan Kardec dedicou sua vida, lançando os primeiros fundamentos de sua doutrina, e nós que
continuamos seus trabalhos, nós que nos dedicamos à difusão do Espiritismo, que propagamos, por todos os meios possíveis, a prática e estudo, nós que
somos hoje os representantes da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas que ele fundou há trinta anos neste exato momento, não podemos deixar de
cumprir o dever que nos foi imposto, de agradecer e homenagear todos os nossos predecessores neste trabalho, mas especialmente aquele que repousa sob
este dólmen, e cujo nome será sempre um dos mais gloriosos e venerados”.
Depois de Émile Blin, Chaigneau assumiu a SPEE, que desapareceu em 1890.
Como vemos, o Imortalismo parece ter sido uma tentativa de se cativar os não-religiosos para alguns dos fundamentos do Espiritismo. Para isso teve que
rejeitar outros.
A Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, mais tarde Liga de Estudos Psicológicos e depois absorvida pela Sociedade Átmica
Sophie Rosen Dufaure ficou em Paris por vinte e oito anos. Promovida a vice-presidente da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos (SCEP), de
Charles Fauvety, conviveu com Eugène Nus, Joseph Tremeschini, René Caillié, etc., por mais de oito anos. Supondo que Sophie estivesse nesta sociedade
desde sua fundação em 1878, deve ter permanecido lá até 1886. Em 1884, o presidente da SCEP era o Sr. Reignier, que futuramente também presidiria a
União Espírita Francesa. Nesta época, o Sr. Fauvety era presidente de honra da SCEP e da Liga de Estudos Psicológicos do Sr. Tremeschini, que também
combateu a teosofia. No Prefácio dos comentários sobre o Sômedaevo de Gaetomo [Gautama]648 de 1885, descobrimos que a Liga era referenciada como
Sociedade Átmica. Tal sociedade se envolveu numa polêmica em 1886 contra as materializações, efeitos físicos que, segundo ela, seriam apenas o produto
de sugestões magnéticas; as aparições não seriam mais que o resultado da ação da entidade inteligente, que para ser vista atuava no cérebro dos
espectadores. Apesar de encontrarmos alguns espíritas nestas sociedades, elas não eram espíritas.

645 Émile Louis Blin (1839-1890), chefe do escritório da Companhia Ferroviária do Leste.
646 Giuseppe Antonio (ou Joseph Antoine) Tremeschini (1818-1889), engenheiro, cosmógrafo e inventor.
647 Émile Désiré Michelis di Rienzi, nascido em 1861, foi escritor e esperantista.
648 Também conhecido como Somodævo de Gôtomo/Gaotomo, mas nunca publicado (só foi publicado o prefácio), conforme Paul Gibier em O Espiritismo (Faquirismo ocidental), de 1886.
Bibliografia

Fontes utilizadas de forma mais reduzida estão indicadas apenas nas notas de rodapé.

Manuscritos:
Arquivos da Chefatura de Polícia de Paris.
Arquivos do Observatório de Juvisy-sur-Orge.
Arquivos Municipais de Paris [Link de acesso: archives.paris.fr; acesso em: 17/08/2022].
Arquivos Municipais ou Departamentais relacionados a outras comunas francesas [Link de acesso: francearchives.fr/map/223682/; acesso em:
17/08/2022].
Arquivos Nacionais da França [Link de acesso: siv.archives-nationales.culture.gouv.fr; acesso em: 17/08/2022].
Materiais dos livros e do Centro de Documentação e Obras Raras da Fundação Espírita André Luiz [Link de acesso: espirito.org.br/material/; acesso em:
17/08/2022].
Museu Allan Kardec online [Link de acesso: allankardec.online; acesso em: 17/08/2022].
Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora [Link de acesso: projetokardec.ufjf.br/; acesso em: 17/08/2022].

Jornais e revistas espíritas e espiritualistas:


Encyclopédie Spirite [Link de acesso: sites.google.com/spiritisme.net/encyclopedie-spirite/revues-spirites; acesso em: 17/08/2022].
International Association for the Preservation of Spiritualist and Occult Periodicals [Link de acesso: iapsop.com/archive/materials/; acesso em:
17/08/2022].

Outros jornais e revistas do século XIX:


Gallica – Site de documentos digitalizados da Biblioteca Nacional da França [Link de acesso: gallica.bnf.fr/; acesso em: 17/08/2022].
Retronews – Site de imprensa da Biblioteca Nacional da França [Link de acesso: retronews.fr/les-journaux; acesso em: 17/08/2022].

Obras de Allan Kardec:


Kardecpedia (obras originais e em português) [Link de acesso: kardecpedia.com; acesso em: 17/08/2022].
Obras de Kardec (comparativo de obras originais e em português [Link de acesso: obrasdekardec.com.br; acesso em: 17/08/2022].

Outras fontes primárias:


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Compte rendu du Congrès International réuni à Paris du 6 au 13 Septembre 1925. Éditions Jean Meyer (B. P. S.), Paris – France (1927).
Compte rendu du Congrès Spirite et Spiritualiste International de 1889. Librairie Spirite, Paris – France (1890).
Flammarion, C., La mort et son mystère, 3 vols. Ernest Flammarion, Paris – France (1920-1922).
____________, Les forces naturelles inconnues. Ernest Flammarion, Paris – France (1907).
____________, Les habitants de l’autre monde, révélations d’outre-tombe, 2 vols. Ledoyen, Paris – France (1862-1863).
____________, Mémoires biographiques et philosophiques d’un astronome. Ernest Flammarion, Paris – France (1911).
Fouquier, A., Causes célèbres de tous les peuples, vol. II. Lebrun et Cie, Paris – France (1859).
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Güldenstubbe, Baron L. von, Positive pneumatologie. Lindemann, Sttutgart – Deutschland (1870).
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Reseña completa del Congreso Internacional Espiritista de Barcelona. Imprenta de Daniel Cortezo y C.ª, Barcelona – España (1888).
Rivail, H. L. D., Plan proposé pour l’amélioration de l’éducation publique. Dentu, Paris – France (1828).
Rosen Dufaure, S., Excelsior! Leymarie, Paris – France (1910).
Roustaing, J. B., Spiritisme chrétien, ou révélation de la révélation, les quatre evangiles suivis des commandements, expliqués en esprit et en vérité par les
évangélistes assistés des apôtres, Moïse. 3 vols. Librairie centrale, Paris – France (1866).
____________, Les quatre evangiles de J.B. Roustaing, réponse à ses critiques et à ses adversaires. J. Durand, Bordeaux – France (1882).
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Teste, A., Manuel pratique de magnétisme animal, deuxième édition, revue, corrigée et augmentée. J. B. Baillière, Paris – France (1843).
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Nota: A maioria dos livros está disponível nos sites: gallica.bnf.fr da BnF [Biblioteca Nacional da França], books.google.com.br/ [Google Books],
archive.org/ [Internet Archive] ou hathitrust.org/ [HathiTrust Digital Library.

Outras fontes secundárias:


Abreu, C., O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária. Edições LFU, São Paulo – SP (1992).
Abreu Filho, J., Biografia de Allan Kardec. Edição PENSE – Pensamento Social Espírita, Santos – SP (1973).
Bastos, C.S., A verdadeira identidade das primeiras médiuns utilizadas por Kardec. Jornal de Estudos Espíritas, 7, 010202 (2019). DOI:
10.22568/jee.v7.artn. 010202.
____________, Coadjuvantes da codificação espírita. Portal Luz Espírita e Autores Espíritas Clássicos (2020).
____________, De Rivail a Kardec. Portal Luz Espírita e Autores Espíritas Clássicos (2020).
____________, De Rivail a Kardec: um resumo de novas descobertas. Jornal de Estudos Espíritas, 9, 010202 (2021). DOI: 10.22568/jee.v9.artn. 010202.
Bastos, C.S., Farias, L. & Ribeiro Jr., Adair, Uma revisão na história da 5a edição de A Gênese Parte I – Os eventos relacionados à impressão e à
publicação da edição de 1869. Jornal de Estudos Espíritas, 8, 010209 (2020). DOI: 10.22568/jee.v8.artn.010209.
____________, Uma revisão na história da 5a edição de A Gênese Parte II – Os eventos relacionados à atualização da obra e à preparação para
impressão em 1868. Jornal de Estudos Espíritas, 10, 010202 (2022). DOI: 10.22568/jee10.artn.010202.
Brito, C. de, Allan Kardec e o espiritismo. Editora Eco, Rio de Janeiro – RJ (1935).
Calsone, A., As mulheres fortes do espiritismo francês. Jornal de Estudos Espíritas 5, 010204 (2017). DOI: 10.22568/jee.v5.artn.010204.
____________, Em nome de Kardec. 1ª Edição. Vivaluz Editora, Atibaia – SP (2015).
____________, Madame Kardec. 1ª Edição. Vivaluz Editora, Atibaia – SP (2016).
Daudé R., Deux Cévenols à Paris : les lettres de Louis et Ernest Teissier du Cros à la pension Rivail (1830-1833). Mémoires de l’Académie de Nîmes –
IXe série, vol. XCII (2018).
Garcia, W., Ponto final – o reencontro com o espiritismo com Allan Kardec. 1ª Edição. Editora EME. Capivari – SP (2020).
Imbassahy, C., A missão de Allan Kardec. Edição conjunta de: FEP, FEC, FERGS, USESP e USERJ (1988).
Laplantine, F.& Aubrée, M., La table, le livre et les esprits, naissance, évolution et actualité du mouvement social spirite entre France et Brésil. J.C.
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Levitt, T., The shadow of enlightenment. Oxford University Press, New York – NY (2009).
Monroe, J. W., Laboratories of faith. Cornell University Press, Ithaca – NY (2008).
Privato Goidanich, S., O legado de Allan Kardec. 1ª Edição. USE/CCDPE. São Paulo – SP (2018).
Sausse, H., Biografia de Allan Kardec. Imprenta de Juan Torrents y Coral, Barcelona – Espanha (1901).
____________, Biographie d’Allan Kardec. Éditions Jean Meyer (B. P. S.), Paris – France (1927).
Sharp, L. L., Secular spirituality: reincarnation and spiritism in nineteenth-century France. Lexington Books, Plymouth – UK (2006).
Teissier du Cros, R., Chroniques cévenoles, une famille de filateurs de soie à Valleraugue (1792-1904). Les Presses du Languedoc, Montpellier – France
(1996).
Wantuil, Z. & Thiesen, F., Allan Kardec, 3 vols. FEB, Rio de Janeiro – RJ (1979).
Apêndices

1. Cronologia dos períodos estudados


Cronologia do período pré-Rivail

Ano Pré-Rivail Referência


1759 Swedenborg de Gotemburgo vê o incêndio em Estocolmo 19/07/1759
1784 Victor Rass é magnetizado por Puységur 04/05/1784
1795 Nascimento de Amélie ... atenção ao dia: não foi dia 23 22/11/1795
Cronologia dos primeiros quarenta anos de Rivail

Ano Os primeiros quarenta anos de Rivail Referência


1804 Nascimento de Rivail 03/10/1804
1804 Coroação de Napoleão I 02/12/1804
1815 Início do 2º reinado de Luís XVIII 08/07/1815
1815 Chegada a Yverdon de Rivail e da mãe 12/1815
1820 Retorno de Rivail e da mãe, de Yverdon 29/06/1820
1822 Nascimento de Célina Japhet 01/04/1822
1823 Lançamento do primeiro livro de Rivail sobre Aritmética (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 06/12/1823

1825 Rivail dirige a Escola de 1º grau em Paris 1825

1825 Coroação de Charles X 29/05/1825


1827 Nascimento de Caroline Baudin 13/01/1827
1828 Rivail dirige o Pensionato para Meninos na Rue de Vaugirard 30/01/1828
1829 Nascimento de Pélagie Baudin 03/10/1829
1830 Proclamação do Rei Luís Filipe, após a Revolução de Julho (3 Gloriosas ou 3 dias gloriosos) 09/08/1830
1830 Rivail participa de uma reunião dos mestres de pensionato com o Rei Luís Filipe 26/08/1830
1831 Rivail é eleito cabo da Guarda Nacional de Paris 24/05/1831
1831 Rivail transfere o Pensionato para Meninos e funda o Liceu Polimático da Rue de Sèvres 28/07/1831
1832 Casamento de Rivail e Amélie 06/02/1832
1832 Desencarnação da mãe de Rivail 03/07/1832
1834 Desencarnação do pai de Rivail 26/06/1834
1835 Invenções de Rivail são noticiadas: medidor de parâmetros do vento e aparato de dessalinização 04/05/1835
1837 Chegada de Rivail a Londres para divulgação do Liceu Polimático 06/09/1837
1839 Rivail funda o Banco de Trocas com Maurice Lachâtre 01/03/1839
1839 Nascimento de Ermance Dufaux 08/03/1839
1840 Rivail transfere o Liceu Polimático para Pitolet 28/01/1840
1842 Rivail é nomeado administrador provisório da Seguradora Le Palladium 28/02/1842
1842 Viagem de Rivail a Aix-la-Chapelle (Aachen) acompanhando o tio 21/06/1842
Cronologia dos anos mais turbulentos de Rivail

Ano Os anos mais turbulentos de Rivail Referência


1844 Andrew Jackson Davis vê Galeno & Swedenborg (Espíritos) 06/03/1844
1845 Desencarnação de Louise, “afilhada ou filha” de Rivail 1845
1846 Angélique Cottin, médium motora, provoca fenômenos físicos (telecinese) 15/01/1846
1847 Desencarnação do pai de Amélie 06/07/1847
1847 Desencarnação da mãe de Amélie 05/08/1847
1848 Kate Fox e Charles B. Rosna (Espírito) nos EUA dão início ao chamado Espiritualismo Moderno 31/03/1848
1848 Luís Napoleão é eleito presidente, após a Revolução de 1848 10/12/1848
184? Léontine Bégin, 1ª médium da França, segundo a Srta. Huet 1848-1849
1849 Primeiro grupo de estudo dos raps e mesas girantes é formado com Güldenstubbe, Japhet etc. 1849
1849 Rivail faz uma hipoteca de 10.000 francos 24/08/1849
1850 Rivail deixa a direção do Pensionato para Meninas e da Escola de Comércio 08/02/1850
1850 Lei Falloux para promoção de escolas católicas é promulgada 15/03/1850
1850 Rivail trabalha como contador e tesoureiro do teatro Délassements-Comiques 20/05/1850
1851 Médium no consulado americano, na presença de Goujon, enviado de Arago, faz as mesas girarem 1851
1852 Rivail se associa na Réju de Backer & Denizard (agenciadora de artistas) 23/01/1852
1852 Rivail, junto com Taigny, é liquidante na dissolução do teatro Délassements-Comiques 15/09/1852
1852 Luís Napoleão, agora Napoleão III, se torna imperador, após o Golpe de Estado de 1851 02/12/1852
1853 Início da epidemia das mesas girantes na França 23/04/1853
1853 Rivail disputa os direitos de uso do teatro Délassements-Comiques 18/06/1853
1853 Experiências de Victor Hugo nas Ilhas Jersey (Dependência da Coroa Britânica) 11/09/1853
1853 Brevet (patente) da invenção de um sistema de sifão é concedido a Rivail 24/10/1853
1853 Rivail tenta formar o Bazar des bons marchés 11/12/1853
Cronologia do período pré-Kardec

Ano Pré-Kardec: os anos de descobertas de Rivail Referência


1854 Rivail apenas ouve falar sobre as mesas girantes 1854
1854 Manifestação de Jullie (Espírito) através das cestas com lápis (sem a presença de Rivail) 03/1854
1855 Desencarnação do tio de Rivail 21/01/1855
1855 Experiências com mesas girantes na casa da Srta. Beuque com Anna Blackwell (sem Rivail) 1855
1855 Início do trabalho de Rivail na livraria e no jornal católicos 1855
1855 Rivail vai às experiências na casa das Srtas. Baudin 1855
1855 Rivail vai às experiências nas casas da Sra. Roger e da Sra. Plainemaison 05/1855
1856 Rivail vai às experiências nas casas da Srta. Japhet e da Srta. Aline C. (e também nos Baudin) 1856
1856 Primeiro sucesso com a escrita direta (sem médiuns [sic], segundo Güldenstubbe) 13/08/1856
1857 Rivail vai às experiências nas casas da Sra. De Cardonne e da Srta. Dufaux (e também nos Baudin) 1857
Cronologia da Codificação

Ano O período da Codificação Referência


1857 Lançamento de O livro dos espíritos 18/04/1857
1857 Desencarnação de Georges, Espírito familiar 27/07/1857
1858 Lançamento da Revista Espírita 01/01/1858
1858 Fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas 01/04/1858
1858 Lançamento de Instruções práticas sobre as manifestações espíritas (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 31/07/1858
1859 É obtida a escrita direta com Srta. Huet na igreja Notre-Dame des Victoires 13/06/1859
1859 Lançamento de O que é o espiritismo (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 20/08/1859
1860 Lançamento da segunda edição revisada de O Livro dos Espíritos (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 03/03/1860
1860 Lançamento de O livro dos médiuns (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 19/01/1861
1861 Lançamento da segunda edição revisada de O livro dos Médiuns (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 26/10/1861
1861 Auto-de-fé de Barcelona 09/10/1861
1862 Lançamento de O espiritismo na sua mais simples expressão (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 01/02/1862
1862 Lançamento de Viagem espírita em 1862 (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 13/12/1862
1864 Lançamento de Imitação do evangelho segundo o espiritismo (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 16/04/1864
1864 Obras de Allan Kardec são inscritas no Index Librorum Prohibitorum 20/04/1864
1864 Lançamento de Resumo da lei dos fenômenos espíritas (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 23/04/1864
1865 Grave doença de Allan Kardec 31/01/1865
1865 Lançamento da segunda edição de O evangelho segundo o espiritismo (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 25/03/1865
1865 Lançamento de O céu e o inferno (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 26/08/1865
1865 Lançamento da terceira edição revisada de O evangelho segundo o espiritismo (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 02/12/1865
1866 Desencarnação de D’Ambel, médium de Erasto 17/11/1866
1868 Lançamento de A Gênese (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 01/02/1868
1868 Lançamento de Caracteres da revelação espírita (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 07/03/1868
1869 Desencarnação de Allan Kardec [provavelmente sofria de miocardite ou pericardite originada por febre reumática] 31/03/1869
Cronologia do pós-Kardec, de 1869 a 1879

Ano Pós-Kardec: de 1869 a 1879 Referência


1869 Brevet (licença) de funcionamento da Livraria Espírita é concedido a Allan Kardec 02/04/1869
1869 Lançamento da quinta edição revisada por Kardec de A Gênese (Data da pesquisa CSI/AKOL/ODK) 04-05/1869
1869 Lançamento da quarta edição revisada por Kardec de O céu e o inferno (Data da Revista Espírita) 01/06/1869
1869 Fundação da Sociedade Anônima com participações e capital variável do fundo geral e central do Espiritismo 22/07/1869
1869 Brevet (licença) de funcionamento da Livraria Espírita é transferido a Amélie Boudet 20/08/1869
1870 Bonnemère (presidente em exercício) e Flammarion (presidente de honra) assumem a SPEE, depois da renúncia de Malet em 07/1869, que retorna como VP 01/01/1870
1870 Início da Guerra Franco-Prussiana, que só terminaria em 29/01/1871 19/07/1870
1871 Fim da Comuna de Paris, que tinha se iniciado em 18/03/1871 28/05/1871
1871 Desliens renuncia e Leymarie, que vivia em Pimprez desde meados de 1870, o substitui na Revista Espírita 27/06/1871
1871 Adolphe Thiers recebe o título de (primeiro) presidente da (terceira) República, que exerce até 24/05/1873 31/08/1871
1873 Início da “Ordem Moral” sob o governo do presidente Patrice de Mac Mahon 27/05/1873
A Sociedade Anônima passa a se chamar Sociedade para a continuação das obras espíritas de Allan Kardec, anônima e de capital variável, com Leymarie como único administrador,
1873 18/10/1873
depois da renúncia de Bittard em junho
1874 Fotografia do Espírito Katie King feita por William Crookes é mencionada no Quarterly Journal of Science (primeira reprodução em 15/05/1873) 01/01/1874
1874 Primeira referência a Buguet e suas fotografias na Revista Espírita 01/01/1874
1875 O tribunal de primeira instância do “processo dos espíritas” condena Leymarie, sentença confirmada em 06/08/1875 no tribunal de apelação (segunda instância) 17/06/1875
1875 Depois de obter uma licença enquanto aguarda o recurso no tribunal de cassação (terceira instância) Leymarie participa do Congresso de Bruxelas 25/09/1875
1876 Leymarie é preso após um julgamento tendencioso conforme pesquisa do CSI (primeira detenção de um mês em 22/04/1875 e terceira instância em 05/02/1876) 22/04/1876
1877 Leymarie é libertado 22/01/1877
1877 Comunicado da Sociedade Teosófica é veiculado na Revista Espírita 01/05/1877
1878 A Revista Espírita anuncia Ísis sem véu, de Blavatsky, junto com outras obras de 1877 01/01/1878
1878 A Livraria Espírita passa a se chamar Livraria de Ciências Psicológicas 07/1878
1879 Guérin oferta alguns exemplares grátis de Os quatro evangelhos de Roustaing na Revista Espírita 01/05/1879
Cronologia do pós-Kardec, de 1880 a 1890

Ano Pós-Kardec: de 1880 a 1890 Referência


1881 Ajuda de Guérin para conferências menciona que deveriam falar apenas de Kardec, Roustaing e sábios modernos 01/05/1881
1882 Blavatsky diz em carta ao teosofista Courmes que Leymarie é muito fanático e muito kardeciano 17/01/1882
1882 Fundação da União Espírita Francesa 24/12/1882
1883 Desencarnação de Amélie Boudet [ela provavelmente sofria de úlcera péptica (hemorrágica)] 21/01/1883
1883 A Revista Espírita informa que, como o Le Spiritisme, publicaria artigos do roustainguista Caillié, mas também contrários ao tema 01/08/1883
1883 A Sociedade para a continuação das obras espíritas de Allan Kardec passa a se chamar Sociedade Científica do Espiritismo 10/1883
1883 Desencarnação de Caroline Baudin 29/11/1883
1884 Desencarnação de Célina Japhet 30/04/1884
1884 Fropo lança Muita luz com acusações a Leymarie, algumas levianas, conforme pesquisa do CSI (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 31/05/1884
1884 Rompimento com a teosofia, confirmado em 15/12/1885 com a conclusão que não apresentavam senão argumentos sem critério e sem provas científicas 01/08/1884
1884 Leymarie, em resposta à Fropo, lança Ficções e insinuações (Data do registro no jornal Bibliographie de la France) 02/08/1884
1886 Artigo de Chaigneau na Revista Espírita fala da pouca importância da escola de Roustaing 15/12/1886
1887 Desencarnação de Pélagie Baudin 22/08/1887
1888 A Sociedade Científica do Espiritismo passa a se chamar Sociedade da Livraria Espírita fundada por Allan Kardec. 30/09/1888
1888 Congresso Internacional de Barcelona 09/1888
1889 Congresso Internacional de Paris 09/1889
1890 Desaparecimento da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas 1890
Cronologia do pós-Kardec, de 1891 a 1901

Ano Pós-Kardec: de 1891 a 1901 Referência


1891 Dissolução da União Espírita Francesa, após quatro anos de inatividade 21/10/1891
1892 Testamento de Jean Guérin em favor da Sociedade Anônima é anulado [o processo se inicia em 1888 com desdobramentos até 1905] 04/04/1892
Eleição do 1º bureau da Federação Espírita Universal, resultado da fusão do Comitê de Propaganda e da Sociedade do Espiritismo Científico, criados no Congresso de 1889, com a
1892 20/11/1892
Sociedade Fraternal Espírita; mais tarde, passaria a ser a Sociedade Francesa de Estudos dos Fenômenos Psíquicos.
1892 Congresso Internacional de Madrid (com maioria de espanhóis) 10/1892
1895 Início do processo de falência da Sociedade Anônima 15/01/1895
1898 Testamento de Amélie Boudet em favor da Sociedade Anônima é anulado [o processo se inicia em 1897 com desdobramentos até 1905] 31/01/1898
1898 Congresso Internacional de Londres (com maioria de ingleses) 06/1898
1900 Congresso Internacional de Paris 09/1900
Cronologia do início do século XX

Ano O início do século XX Referência


1901 Desencarnação de Leymarie 10/04/1901
1902 Desencarnação da Sra. Costel, médium de Georges 05/06/1902
1905 Reaparecimento da Livraria como Sociedade em nome coletivo Leymarie & Gacon, Librairie Spirite 08/02/1905
1907 Congresso Internacional de Antuérpia 05/1907
1910 Congresso Universal de Bruxelas 07/1910
1913 Congresso Universal de Genebra 05/1913
Fundação da Sociedade de Estudos Espíritas por Puvis (Algol), Paul Leymarie, Paul Bodier etc., além de Gabriel Delanne, coronel De Rochas e Camille Flammarion (constituída em
1913 15/06/1913
31/07/1913)
1914 Início da Primeira Guerra Mundial 28/07/1914
1914 Primeira interrupção na publicação da Revista Espírita, que dura até julho de 1915 01/08/1914
1915 Desencarnação de Ermance Dufaux 03/03/1915
1915 Segunda interrupção na publicação da Revista Espírita, que dura até dezembro de 1916 01/10/1915

Glossário
AKOL: Museu Allan Kardec online (allankardec.online)
CSI do Espiritismo: Codification Séances Investigation ou Investigação das Sessões mediúnicas da Codificação, Imagens e registros históricos do Espiritismo (facebook.com/HistoriaDoEspiritismo)
ODK: Obras de Kardec (obrasdekardec.com.br)
2. Médiuns das obras fundamentais
As senhoritas da Codificação

Médium LE LM ESE CI AG
Srta. Aline C. o
Srta. Caroline Baudin x
Srta. Celine Japhet x o
Srta. Ermance Dufaux o x
Srta. Huet x o o
Srta. Pélagie Baudin x
As damas da Codificação

Médium LE LM ESE CI AG
Sra. Boyer x
Sra. C. (de Bordéus) x
Sra. C. (de Bruxelas) x
Sra. Cazemajour x x
Sra. Collignon x o
Sra. Costel x o x
Sra. Dymidowicz o
Sra. F. (filha da) x
Sra. Forbes x
Sra. Patet x
Sra. Schmidt x x
Sra. Schutz x
Sra. Stéphanie S. (ou Estefânia) x
Sra. Xavier (Sra. X.) x
Os cavalheiros da Codificação

Médium LE LM ESE CI AG
Sr. A. Didier o x x
Sr. Aubert x
Sr. Camille Flammarion x
Sr. Charles V. x
Sr. Costel x
Sr. D’Ambel x x x
Sr. Darcol x
Sr. Desliens x x
Sr. Hugh Forbes x
Sr. L. x
Sr. Leymarie o x
Sr. M. Rodolphe R. (Sr. R.) x
Sr. Percheron o
Sr. Robin x
Sr. Roze (Sr. R.) x x o
Sr. Rul x
Sr. Vézy x x
Sr. Victorien Sardou o

Legenda:
LE: O livro dos espíritos
LM: O livro dos médiuns
ESE: O evangelho segundo o espiritismo
CI: O céu de o inferno, ou a justiça divina segundo o espiritismo
AG: A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo
Médiuns em negrito: identidade completa já conhecida ou descoberta pelo CSI do Espiritismo
Médiuns marcados com “x”: com evidências de participação na obra
Médiuns marcados com “o”: com suspeitas de participação na obra
Nota: Tabelas em constante atualização.
3. Espíritos e médiuns de O céu e o inferno
Espíritos felizes e em condição média

Capítulo Espíritos com médiuns identificados Médiuns


Felizes Sanson Leymarie
Felizes Srta. Emma Sra. Costel
Felizes Antoine Costeau Sr. E. Vézy
Felizes Jean Reynaud Sr. Charles V. |Sra. Costel
Felizes Jean Reynaud Sra. C. (de Bordeaux)
Felizes Dr. Demeure Sra. Cazemajour
Felizes Dr. Vignal Sr. Desliens
Felizes Jobard Sra. Estefânia |Sra. Costel
Felizes Sra. viúva Foulon Sra. Cazemajour
Condição média Cardon Leymarie
Condição média Joseph Bré Sra. Collignon (suspeita)
Espíritos sofredores, suicidas e criminosos arrependidos

Capítulo Espíritos com médiuns identificados Médiuns


Sofredores Claire Sra. Costel
Sofredores François Riquier Filha da Sra. F.
Sofredores Novel Sra. Costel
Sofredores O castigo Sra. Costel
Suicidas Duplo suicídio Sr. E. Vézy (suspeito)
Suicidas Duplo suicídio Sra. Costel
Suicidas Louis e a costureira de botinas Suspeitos
Suicidas O pai e o recruta Suspeitos
Suicidas O suicida da Samaritana Suspeitos
Arrependidos Jacques Latour Sr. Rul |Sra. C (de Bruxelas)
Arrependidos Lemaire Srta. Dufaux
Arrependidos O Espírito de Castelnaudary Sra. Xavier | Sr. e Sra. Forbes
Arrependidos Verger Da 1ª ed. de O livro dos espíritos
Espíritos endurecidos e expiações terrestres

Capítulo Espíritos com médiuns identificados Médiuns


Endurecidos A rainha de Oude Srta. Dufaux
Endurecidos Lapommeray | Erasto | Jean Reynaud | Lamennais Sra. Costel |Sr. D’Ambel | Sr. Costel | Sr. A. Didier
Expiações Antonio B... Sr. D’Ambel
Expiações Charles de Saint-G. | Pierre Jouty Suspeitos | Sra. Costel
Expiações Clara Rivier Leymarie
Expiações Julienne Marie Sra. Patet | Sr. Aubert

Legenda:
Personagens em negrito: identidade completa já conhecida ou descoberta pelo CSI do Espiritismo.
4. Alguns personagens da terceira fase

A. Bonnefont François Vincent


Achille Sylvain Ravan (a ser confirmado) Gilbert Étienne Alexandre “Paul” Puvis ou Algol
Albin François Joseph Carré Édouard Gourmez, marido de Adelaide Caboche
Alexandre Bellemare Gustave Achille Guilbert
Alexandre Bourgès Henri Evette
Alexandre Dossaer Hubert Joly
Alexandre Semyonovich Yourievitch Hyacinthe Vanderyst
Alexandre Vincent Jean Baptiste Caussin
Alfred Charles Ferdinand Felix Le Tellier Jean Camille Chaigneau
Alfred Crignier Jean Magat, marido de Philoméne Guiraud
Alfred Léonard Caron Jean Marie Tailleur
Alfred Raphaël Vautier Jean Pierre Louis Crouzet
Ange Casimir Émile Barrault Joseph Henry, de Billancourt (a ser confirmado)
Antoine Gay Jules (Antoine) Jésupret (filho)
Antoine Jules Napoléon Canaguier Jules (Augustin Louis) Jésupret (pai)
Auzanneau Jules Jacques Toussaint Lessard ou P. Verdad
Benoît Martin Jules Théophile Nestor Anatole Levent
Berthe Fropo Just L’Hernault
Charles André Collard Léon Barroux
Charles Auguste Ladame Louis de Montaut ou Céphas
Charles Boiste Louis Joseph Félix Morin
Charles Isidore Flasschoen Louis Prud’homme
Charles Deconninck, marido de Louise Suinot Lowinski Yvose Laurent
Cyrille Amédée Gambu Michel e Sophie Rosen Dufaure
Édouard Mathieu Bittard Nicolas Pierre Reignier
Émile Blin Olympe Audouard
Émile Malet Oscar Henrion
Émile Pierre Eeckhout Rufina Noeggerath
Ernest Cordurié ou Marc Baptiste Raymond Quinsac Monvoisin
Eugène Bonnemère Thomas Reed, marido da Sra. D’Esperance
François Vallès Valentin (Anne Marie) Tournier

Legenda:
Personagens em caracteres normais: SPEE
Personagens em itálico: SA
Personagens em negrito: USF
Personagens em negrito e itálico: conferencistas espíritas

Notas:
• Obviamente, alguns personagens podem ter pertencido a mais de uma sociedade.
• Nem todos os personagens identificados neste apêndice foram mencionados no livro, pois muitos são apenas coadjuvantes, como os acionistas minoritários da SA.
• Nem todos os personagens conhecidos desta fase foram incluídos nesta tabela, por muito já se saber deles, por exemplo, Adolphe Laurent de Faget, Gabriel Delanne, Henri Sausse e Léon Denis.
5. Novas efemérides espíritas
Janeiro até junho

Data Evento Personagem


01/01/1884 Desencarne Sr. Rodolphe, de Mulhouse
13/01/1827 Nascimento Caroline Baudin
30/01/1826 Nascimento Georges, Espírito familiar
06/02/1868 Desencarne Eugène Vézy
21/02/1882 Desencarne Sr. Rul
02/03/1901 Desencarne Sr. Delanne, pai de Gabriel
03/03/1915 Desencarne Ermance Dufaux
08/03/1839 Nascimento Ermance Dufaux
01/04/1822 Nascimento Célina Japhet
19/04/1829 Nascimento Sr. Delanne, pai de Gabriel
21/04/1862 Desencarne Sr. Sanson
30/04/1884 Desencarne Célina Japhet
04/05/1895 Desencarne Srta. Huet
14/05/1831 Nascimento Sra. Delanne, mãe de Gabriel
23/05/1812 Nascimento Sra. Cazemajour
05/06/1902 Desencarne Sra. Costel (Ea Lescot)
19/06/1876 Desencarne Sr. Morin
Julho até dezembro

Data Evento Personagem


05/07/1834 Nascimento Eugène Vézy
27/07/1841 Nascimento Sr. Morin
27/07/1857 Desencarne Georges, Espírito familiar
22/08/1887 Desencarne Pélagie Baudin
25/08/1894 Desencarne Sra. Delanne, mãe de Gabriel
26/08/1866 Desencarne Sra. Cazemajour
11/09/1905 Desencarne Sr. Desliens
01/10/1819 Nascimento Srta. Huet
03/10/1829 Nascimento Pélagie Baudin
18/10/1892 Desencarne Alfred Didier
19/10/1840 Nascimento Alfred Didier
03/11/1843 Nascimento Sr. Desliens
13/11/1824 Nascimento Sr. Rodolphe, de Mulhouse
17/11/1866 Desencarne Sr. D’Ambel
21/11/1821 Nascimento Sra. Costel (Ea Lescot)
29/11/1883 Desencarne Caroline Baudin
25/12/1816 Nascimento Sr. D’Ambel

Nota: Apenas acréscimos ao que já é largamente conhecido.


6. Genealogia simplificada de Allan Kardec

Mapa genealógico auxiliar dos capítulos 2 e 7 da primeira fase e do capítulo 14 da terceira fase
Lista de figuras

Fig. 1: Fotografias de Allan Kardec


Fig. 2: Fragmento do registro de nascimento de Allan Kardec
Fig. 3: Fragmento da carta de 23 de junho de 1842 de Rivail
Fig. 4: Diploma eleitoral de Rivail da Guarda Nacional de Paris
Fig. 5: Mapa com a planta baixa do Instituto Rivail em destaque
Fig. 6: Litografia do interior de La Redoute em Aix-la-Chapelle, de F. Stroobant
Fig. 7: Litografia de Messagerie Laffitte, Gaillard et Cie, de V. Adam
Fig. 8: Théâtre des Délassements-Comiques
Fig. 9: Rua Lamartine entre 1865 e 1868
Fig. 10: Registros de casamento das irmãs Baudin
Fig. 11: Fragmento do testamento de Célina Bequet dita Japhet
Fig. 12: Capas das obras fundamentais a partir da segunda edição
Fig. 13: Fragmento de cópia da evocação “Questões sobre Júpiter (a São Luís)”
Fig. 14: Fragmento da comunicação “Sobre a responsabilidade dos pais”,
Fig. 15: Fragmento da comunicação “Estudo sobre a unidade”
Fig. 16: Planta baixa da Villa de Ségur
Fig. 17: Fragmento da comunicação “Destino da alma & morte espiritual”
Fig. 18: Fragmento da comunicação “Jean Hus”
Fig. 19: Fragmento da evocação da Sra. Foulon sobre os Srs. Sabo e Desliens
Fig. 20: Fragmento da comunicação “Sobre a interrupção das faculdades medianímicas”
Fig. 21: Autorretrato de Alfred Didier
Fig. 22: Fragmento da comunicação “Rachel”
Fig. 23: Fotografia da família Leymarie
Fig. 24: Retrato de Couty de la Pommerais
Fig. 25: Funerais da rainha de Oude
Fig. 26: Banhos da Samaritana
Fig. 27: Fotografia de Emma Livry no papel-título do balé La Sylphide
Fig. 28: Retrato de Alexandre Vincent Sixdeniers
Fig. 29: Litografia de Allan Kardec por Auguste Bertrand
Fig. 30: Fragmento da comunicação de Lamartine
Fig. 31: Registro de óbito de Allan Kardec
Fig. 32: Retrato de Amélie Boudet
Fig. 33: Fotografia de Camille Flammarion aos dezesseis anos de idade
Fig. 34: Fragmentos de carta de Leymarie para Prévost
Fig. 35: Fragmentos de Le Spiritisme e da Revista Espírita de 1883
Fig. 36: Evidências da autoria de Allan Kardec da quinta edição de A Gênese
Fig. 37: Capa dos Anais do Congresso Espírita e Espiritualista Internacional de 1889
Fig. 38: Fotografia de Paul Leymarie
Fig. 39 e 40: Fragmentos do “Projeto concernente ao Espiritismo”
Nomes citados neste livro

A
Adam
Adrien
Aksakof
Albert
Alexandre II
Algol
Alhazen
Alvarès
Angliviel
Arago
Aristóteles
Artin Bilezikdji
Aryabhata
Aubert
Audouard
Audouy
Auzanneau
Avicena
Avrelet

B
Babin
Babinet
Bacon
Balthazar
Baluze
Balzac
Barlet
Barrault
Barret
Barroux
Baudin
Beamish
Beau
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