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Artistas da fome

Pseudônimo: Cortázar

As mãos maternas davam um sutil impulso à frente nas costas do casal de crianças

maltrapilhas, as pessoas sentadas à mesa observavam em primeiro relance com um

espanto que nos segundos posteriores se naturalizava aos filhos dos núcleos urbanos.

Estes jantavam, na maioria das vezes negavam, e por fim sussurravam a situação do trio

familiar; isto é, a mãe por si só era acusada, réu inquestionável, enquanto o casal de

crianças era visto como vítima, sem saúde, educação, higiene, mas, principal e

unicamente, com fome.

Por sorte, característica da espécie ou ironia de uma época de amores efêmeros, o íntimo

elo entre a mãe, a filha de sete e o filho de cinco era o amor: o tradicional e recorrente

amor.

A praça de alimentação era o lugar de costume deles, sabiam a quem pedir e a quem não

pedir, onde e quando. Indelicadeza tanta era suplicar com fome no momento em que os

outros se alimentavam, ou se pedia antes da refeição, quando a fome é desejo comum,

ou depois, quando a fome vira privilégio.

Mas, de um modo geral, facilmente se identificava as intenções dos consumidores pelos

repuxos faciais e olhares. Quando não, a fala da mãe se interrompia com indagações

agressivas: — “Cadê o pai dessas crianças, mulher?!".

O mundo era a praça, e, no dia em que surgiu um palhaço viajante elaborando mágica e

graça, os clientes, a mãe e as crias explodiram em risos e gargalhadas; esqueceram-se


dos seus problemas e se preocuparam apenas em absorver euforicamente cada um dos

trejeitos e firulas do palhaço.

Ao fim, os aplausos soaram com um frenesi amalucado, o chapéu ao chão transbordou

de notas e moedas, algumas mesas chamavam o artista para beliscar uns petiscos ou

tomar um suco refrescante... Que agitação, em menos de duas horas!

O palhaço partiu, o público guardou como lembrança, a rotina novamente imperou,

trazendo consigo os problemas esquecidos por uma ligeira distração. Dias correram e o

palhaço tornou-se uma vaga e nostálgica lembrança, perdendo seu brilho de ineditismo

que o tempo faz questão de esmaecer.

A mãe, dias depois, pôs-se a refletir sobre o evento circense e entre remendos de trapos

coloridos, perucas de fitas e narizes marcados com um velho batom vermelho da sua

época de adolescente.

Voilà! Ou como diria o nortista: Olha já!

Aí estava a praça: a mãe e as crianças como aprendizes cômicos de palhaços, mais

simpáticos, menos recusáveis, ainda com fome.

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