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A linha torta do Equador

O rio Alalaú escorria em seu milenar leito as águas para encher as panças dos indígenas
também milenares naquelas terras; ali residia uma etnia extensa e de costumes
firmemente estabelecidos na Amazônia, até que as expansões políticas dos brancos
europeus repercutiram nos seus filhos mestiços e bastardos, enfim, brasileiros,
irreverentes de nascença e violentos por organização cívica, ou ainda, por
desorganização mental. A ditadura militar de cima e do Sul observara as malocas por
um helicóptero de combate e, com uma coordenação que é permanentemente ausente
em todos os setores públicos da política, articularam um despejo sobre as habitações
indígenas de uma substância pulverizada, incendiária e mortal, napalm, aniquilando os
que ali estavam; não satisfeitos, se deslocaram para uns pontos de convivência dos
Waimiri Atroari e anunciaram uma guerra à base de tiro, alvejando de surpresa as
possíveis resistências locais da integração estatal e executando crueldades inumanas
ignoradas nos relatórios militares.

Quase cinquenta anos depois, dois homens utilizam a ponte do massacre, a BR-174,
Manaus-Boa Vista, para cumprir uma demanda de seu odiado serviço. Não é raro, no
correr do automóvel, verificar, nas margens da estrada, os filhos e netos dos
sobreviventes do massacre ocasionado pelos civilizados militares e pela antiga autarquia
político-militar brasileira. A viagem seguia e a memória de um dia ter sido aquela
rodovia a causa de uma iminente extinção dos Waimiri Atroari, mais uma, perdeu-se no
meio de tantas informações jogadas pelo nosso manipulador portátil. (Ei, escritor, essa
denúncia está se tornando repetitiva, e se não for rotulada como mimimi, sem dúvidas
vai ser desprezada como militância barata para as paredes.) Pois bem, então vamos
prosseguir, de maneira isolada, a história verídica.

Os dois homens, como já mencionado, partiam sob as ordens da empresa para executar
um trabalho que poderia ser resolvido por uma simples ligação; mas, não, facilitar a
resolução do problema era uma atitude condenável, uma vez que a empresa não
receberia a verba orçada para o deslocamento dos trabalhadores e o serviço em si. A
sacanagem que os dois concordavam, embora omitissem pelas suas permanências no
emprego, era que, independentemente se eles resolvessem o problema por telefone ou
presencialmente, não receberiam nenhum adicional aos seus salários. Ora, as
hospedagens e alimentações eram previamente estabelecidas, mas se porventura desse
algo de errado, eles seriam os culpados e arcariam com as despesas imprevistas.

Sempre quando esta discussão vinha à tona, citavam o caso de Guido, um recém-
contratado que em sua primeira viagem tomou duas multas e trincou o para-choque do
carro. Ao fim da missão, foi demitido antes dos três meses de experiência, e mesmo com
a dispensa do conserto do para-choque, assumiu duas multas, ambas descontadas do
salário de Guido; ou seja, trabalhou de graça, e, se tivesse tomado mais uma multa,
sairia num prejuízo superior ao que havia recebido.

Nesta ocasião, quem dos dois homens vinham dirigindo era Zeca, funcionário antigo,
calejado e sem nenhuma fraqueza aparente, rico em histórias extraordinárias das quais
ele sempre é o herói e pobre em riqueza. Ao lado dele, Jomar, um jovem inexperiente na
empresa, mas folgado quando a situação o permite ser e proprietário de um ego digno de
veneração própria. Zeca tinha uma barba de lenhador, era musculoso e tinha a mania de
cutucar os dentes com o dedo mindinho esquerdo enquanto dirigia. Jomar não era
corpulento como o seu parceiro, no entanto, se destacava por tirar boas risadas em
momentos inesperados e, se pudéssemos caracterizar uma mania, poderia se dizer que
fosse a de incessantemente estalar o pescoço.

Os homens iam de Manaus rumo à Nova Colina, em Roraima, para lá se hospedarem e


no dia seguinte prosseguirem para o destino, uma indústria cosmética cuja matéria-
prima era o dendê. Eles nada tinham a ver com dendê, apesar do comentário cheio de
admiração quando da rodovia, já no Sul de Roraima, visualizam as margens repletas de
pé de dendê, uma palmeira verde reluzente que, nas palavras de Jomar: “Dá que nem
mato!”. A empresa da dupla trabalhava como reparadora e conservadora de maquinário
industrial, um ramo paralelo à profusão de indústrias suscitadas pela Zona Franca de
Manaus. Acostumada a reaproveitar a mão de obra despejada do distrito, a empresa teve
a sacada empresarial de terceirizar (ou seria quarteirizar?) o conserto nas grandes
companhias; estas não precisavam manter um funcionário para agir somente quando
tudo dava errado; definitivamente, não, agora a empresa da dupla assumia os casos das
grandes indústrias, mediando os ganhos reduzidos de uma classe que tinha duas opções:
aceitar um salário menor na repartição dos lucros da sua empresa terceirizada ou ficar
desempregado.

O carro acelerando pela estrada denotava um contraste absurdo com a selva derredor
tentando a todo custo se apropriar do espaço que sempre a ela pertencera. A rodovia
relativamente reta, cortando os rios assoreados, pulando em pontes os córregos e
margeando aqui e acolá lagos de sucuris, tratava de servir ao ser humano o seu papel de
explorador distante, focado de um ponto urbano ao outro e indiferente às vidas
marginais da natureza.

O horizonte acatava a paisagem do futuro, as placas de advertência eram explícitas e


igualmente ignoradas. Não atropele os animais. A dupla ouvia uma música, à escolha de
Jomar, que dizia: açaí, guardiã; zum de besouro, um ímã; branca é a tez da manhã. Por
terem saído cedo de Manaus e abastecido o carro em Presidente Figueiredo, quando a
tez branca da manhã era a fumaça das queimadas cada vez mais frequentes, estavam
adiantados com relação ao plano estipulado pela empresa; chegariam quase uma hora
mais cedo no hotel Caburaí, local reservado pela empresa. Chegariam, mas não
chegaram.

O retrato do crime no grande lago de Balbina também pouco despertou interesse,


adentraram o seguimento de 125 quilômetros de estrada na terra indígena Waimiri
Atroari. Decreto 97.837/89, de 16/06/89. Nos próximos 125 quilômetros: não jogue
lixo, não atropele animais, evite parar, não fotografe, nem filme. Os Waimiri Atroari
agradecem. Boa Viagem. Antes da única cena relevante do relato, os quatro olhos dentro
do carro avistaram uma paisagem difícil de ignorar, ao contrário das placas e das
degradações ambientais passadas: um dossel dá origem a um túnel ecológico, onde as
árvores de lados opostos se enamoram em um contato distante de seus troncos, mas
próximos de suas copas; os raios solares infiltram por entre os ramos. Ademais, homens
de coletes à pista, fazendo o que parecia ser um levantamento topográfico; não atropele
os animais; pedras na pista sendo compactadas pelo rolo-compressor; e um
contorcionismo das mãos de Zeca no volante para desviar dos buracos na pista.

Banheiro térmico enfaixado com cintas no reboque de uma picape. Sim, bem lembrado,
agora, sem digressões, eis a única cena relevante: o carro avançava cortando os
eventuais caminhões pesados, num determinado trecho, após o dossel de enamorados, a
via livre propicia uma velocidade maior, e é isto que o pé de Zeca faz. Contudo, ao
observarem no horizonte um obstáculo distante na pista, a dupla se põe de olhos
arregalados em curiosidade. O carro reduz a velocidade, para acompanhar com mais
atenção os detalhes do que se via como uma miragem remota: no centro da rodovia,
uma onça-pintada os encara de frente, remotamente, com uma imposição corporal
própria de uma tirana da floresta e não recua ante o avanço do carro. O automóvel se
aproxima e, finalmente, a onça-pintada esboça um princípio de receio, dando duas
suaves passadas para a sua direita, esquerda do motorista. O animal parece imbatível,
desprezando a aproximação do carro e exigindo a licença de quem sempre esteve ali.

Jomar – Vai, mano, joga o carro em cima do bicho pra ver se ele é doido mesmo.

Zeca – Vou nada, isso pode complicar a gente na empresa.

Jomar – Dá nada não. Onça é bicho rápido, vai desviar. Vamos só passar perto, pra ver
melhor e assustar ele. Mas passa chutado mesmo, mano.

Zeca – Vamos só olhar, mesmo. Alguém ver e denunciar, a empresa vai arregaçar nós
dois. Justa causa na certa.

Jomar – Me dá o carro, então, mano, que eu tenho coragem pra fazer.

Zeca – Deixa de graça, moleque.

Jomar – Acelera, mano, vai! Não é sempre que a gente tem uma oportunidade dessas
aqui.

Zeca – De quê?

Jomar – De ver isso e botar a onça pra correr, pô. Dá uma escorada nela, ou um susto
pelo menos.

Zeca acelera, desloca o carro sutilmente na direção do animal, não suficientemente para
bater, porém, suficientemente para injetar uma dose cavalar de adrenalina nos dois. A
onça-pintada se demonstra impassível, dando mais duas indolentes passadas e
finalmente parando próximo à margem da rodovia. O carro toma velocidade cortando o
vento e prestes a passar raspando a onça-pintada; a arriscada colisão se aproxima:
cinquenta metros, passará perto; quarenta metros, a onça não se mexe; trinta metros,
Jomar insiste para Zeca deslizar um pouco mais rumo ao animal; vinte metro, nada mais
há o que fazer, passará raspando e a onça ignora de todo a ofensiva do carro; dez
metros, Zeca dá uma inesperada guinada à esquerda, atingindo o flanco do bicho e o
arremessando para a lateral da pista.

Jomar – Puta merda! Por que tu fez isso, mano?

Zeca – Cacete. Não era isso que tu queria?

Silêncio.

Jomar – Cara, isso é um pecado mortal, coisa de gente má.

Zeca – A culpa então é só minha? Porra, tu foi dar ideia, aí fiquei confuso com isso
tudo. Isso vai complicar a gente na empresa.

Jomar – Tava só te testando, pô. Se eu soubesse que tu ia matar o coitado, não tinha
avisado. E agora?

Zeca – Vamos ter que dar um jeito. Nós dois somos os culpados. Eu tava dirigindo, mas
quem deu a ideia foi tu. Não adianta discutir, agora.

Jomar – Tô suando frio.

Zeca – Não é pra tanto, Jomar. A gente pode ir embora; se alguém questionar, é só dizer
que a onça atravessou de supetão a pista.

Jomar – Não, vamos cuidar de levar a onça pra alguém responsável. Eu sou crente e se
duvidar isso é pecado de nem ir pro purgatório. Aqui não tem sinal de rede.

Zeca – Deixa de leseira, Jomar.

Jomar – Respeita a minha crença, parceiro. Eu não vou deixar o bicho aqui. A gente
falar que foi acidente? Beleza; mas, mano, tu vai conseguir deitar a cabeça na cama à
noite e não pensar na injustiça que a gente fez.
Zeca – Deixa de drama, rapaz. A tua ideia é colocar a onça no porta-malas e ir atrás de
ajuda?

Jomar – Sim.

Zeca – Telezé! O Ibama pegar a gente eu é que vou ser preso, até por que era eu quem
dirigia. Sem contar que tu vai pegar a conta no trabalho. Ou já esqueceu do Guido?

Jomar – Fala pras autoridades que foi um acidente. Eu é que não vou ser um pecador
desalmado. Sou temente a Deus que só, pô.

Zeca – Tu vai descer do carro? Tá maluco, rapaz? Se a onça acordar, ela vai te desossar,
Jomar.

Jomar – Abre o porta-malas, lá tem corda. Vou amarrar o bicho e nós dois vamos
carregar ela pra dentro. No final da reserva tem um ponto de fiscalização pra pedir
ajuda.

Zeca – Não vai tocar na onça, Jomar, é perigoso, ela pode arrancar teu braço com uma
mordida. Pra que tu vai inventar de fazer isso? Deixa disso e vamos logo embora; tu vai
colocar o nosso emprego e a nossa inocência em risco. Entra logo e vamos seguir pra
Nova Colina, cara.

Jomar – Eu que vou assumir a bronca, mano, não é tu, não. Agora destranca esse porta-
malas. A minha salvação pode depender dessa onça, mano, tô sentindo isso. Bora, pô,
quanto mais rápido, mais cedo a gente termina isso. Daqui eu não arredo o pé. É minha
religião!

Jomar tremeu ao se deparar com a onça-pintada abatida, com as cordas em mãos ouvia o
estertor pesado do animal e evitava retroceder e dar o braço a torcer para Zeca. Zeca
abre a porta do carro e, por cima dela, observa a amarração apressada do seu colega. Ao
sinal de Jomar, a contragosto, ele aproxima o carro rés ao animal com suas patas
amarradas e com uma volta de corta no pescoço encerrando um nó firme. A face da
onça-pintada, mesmo desacordada, expressava um ar arredio à dupla. Jomar fracassava
em esconder a mão tremendo e o rosto apavorado. Quem sabe pela catinga estranha que
açoitava os seus narizes, eles preferiram prosseguir no plano confuso e, juntos, carregar
o animal para dentro do porta-malas, movendo umas ferramentas para o banco de trás
do carro para liberar espaço. Não discutiram mais, até mesmo para Zeca parecia ser a
escolha mais humana a se fazer, por mais que se atrasasse um pouco a rota e pudesse
colocar o seu emprego em risco.

Apesar do pavor de uma abrupta surpresa, no caso de a onça-pintada acordar, a dupla


pôs, dispendendo muita energia, o animal de ronco agonizante para dentro do carro.
Logo após entrarem no carro para buscar ajuda, uma chuva torrencial desabou em fúria.
Os pingos grossos e esparsos de chuva davam lugar a uma branquidão turva, o limpador
do para-brisa era inútil, contudo, a dupla indiscutivelmente decidiu seguir adiante.
Deveriam economizar tempo para cumprir com os seus horários e, se desse, salvar a
vida da onça-pintada. Um clarão no toró, relâmpago bravo, Zeca espreme a vista, Jomar
sente o cheiro do animal em si. Outro clarão, os diálogos não mais existem, não terá
Zeca e Jomar brigando. Jomar morreu. Outro clarão. Como assim, morreu? Os clarões!
O carro derrapa, capota numa vala e assim fica, com os corpos comprimidos sobre as
suas cabeças. Apenas Zeca, por automatismo, estava com o cinto de segurança. Como
aconteceu, malmente Zeca, o único sobrevivente dos três, sabia descrever. Tivesse
diminuído a velocidade... Quem sabe parado o carro e ligado o pisca-alerta... Agora, não
adianta. Jomar está morto.

Um caminhoneiro, ao passar no trajeto do acidente, observou o vão na vegetação e as


marcas do pneu. Sinalizou o acidente na procura de ajuda e formulou a hipótese de
aquaplanagem, por puro palpite. Zeca havia sido encaminhado para o hospital de
Rorainópolis, estava desacordado, ainda permaneceria em coma até a cena final do
conto.

Ao removerem os corpos da dupla, um sem e o outro com vida, percebeu-se uma


concentração aguada de sangue permeando o vidro traseiro espatifado na serrapilheira,
que, pelos ferimentos de Zeca e Jomar, não compreendiam a uma quantidade absurda de
sangue. Com mais calma, viu-se que, na verdade, a poça de sangue vinha de um filete
vermelho-escuro da traseira do carro, pingando de uma brecha no porta-malas. O leitor
sabe bem do que se trata, podendo soar como hábito prolixo estas descrições dispersas.
Pois bem, abriram o porta-malas do carro e de lá despenca ao chão, ensanguentado e
amarrado tal como um torturado, um indígena Waimiri Atroari, morto e besuntado com
o vermelho empapado. O cabelo rente às sobrancelhas e com os lados estendidos até o
maxilar; cabelos ralos e castanhos, a pele negra, altura mediana, olhos salientes e
miçangas no pescoço. Ao ajeitarem o corpo arremessado ao solo, notou-se duas colinas
salientes no peitoral: era mulher, uma indígena.

Um clarão. Quatro semanas em coma, já transferido para Manaus, Zeca acordava e


lentamente tentava associar o que havia acontecido. Definitivamente não se recordava
de nada depois do choque com a onça e o clarão. Guido (recontratado na vaga de
Jomar), acompanhado de um delegado e um médico, vieram dar a trágica notícia: Jomar
estava morto. Sem maiores comoções, Zeca procurava o desfecho sobre a onça. Os
policiais foram categóricos, relatando o acidente em pormenores e mostrando fotos a
modo de comprovação: não existia onça, era delírio, o que tinha era uma indígena
amarrada e morta. Riram da persistência de Zeca sobre a onça-pintada, a morte do
estimado amigo devia ter deixado sua mente confusa. As imagens eram claras e factuais,
os corpos estavam fotografados para quem quiser ver, se sensibilizar, e rapidamente
esquecer. O médico o liberou para repouso em casa; Guido confirmou que, apesar do
acidente, a empresa o tinha perdoado e ele continuaria no trabalho, desde que não mais
dirigisse; os policiais lamentaram pela morte do amigo e, na despedida, confortaram o
homem dizendo para esquecer esse sonho da onça-pintada, pois era apenas uma
indígena; praquelas bandas, animal daquele porte não vivia em beira de estrada, talvez o
coma tivesse estimulado na fantasia de uma história extraordinária, na qual ele sempre,
ou quase sempre, era o herói.

Manaus, 07/01/2024

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