Affirmações (1921) - Jackson de Figueiredo

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AFFIRMAÇÕES
Gdrcia Rosa (ensaio de critica), 1915.
Itàvier* Marques fè'nsaio tíe critica)," 2.a edição, 1916.
Algumas reflexões sobre a philosophia de Farias Brito,
1916.
'** '0^:crepusculo*interior, 19lV * ^ *'» .> '>>.:'
Bôa imprensa (critica), 1919. .».,«.
A questão social na philosophia- de **Fàrias Brito, 1919.
Humilhados e Luminosos (Edição do «Annuario do Bra-
sil>04^92V . f A
Do nacionalismo na Viora presente (Edição da «Livra
ria ISatholica»), 1921. > t
Pascal e a inquietação ^moderna (Éâíçao dô^Annua-
rio do Brasil»), 1922. ^
i\* v A Reacção do Bom Senso (Edição do -«Annuario do
Brasil»), 1923.
c Auta% de Sousa (Edição do- Centro D.'' vVital), , 1924,.
COLLECÇAO EDUARDO PRADO
SERIE A

Jackson de Figueiredo

Affirmações

EDIÇÃO DO
CENTRO D. VITAL
RIO DE JANEIRO

Typ. do Annuario do Brasil


160
°>G<¥7

h7Jl

Alceu Amoroso Lima

— a quem verdadeiramente
e admiro —

J. de F.
PREFACIO

O titulo deste livro não é expressão de or


gulho. Elle exprime, sim, o fim que sempre
tive em vista ao escrever qualquer das paginas
aqui reunidas: primeiro, mostrar que tudo quan
to ha de affirmativo, de verdadeiramente vivo
na civilizarão cccidental, conscien te nente cu não.
se liga ao espirito da philosophia tradicional,
é obra, é creação da Igreja Catholica, do espi
rito catholico, o espirito affirmativo por excel-
lencia, e o é ou porque fosse esse espirito quem
propriamente o creasse ou porque a elle se deve
que não houvesse morrido.
«A Igreja, diz Sertillanges, utilisa todas as
doutrinas, todas as tendencias, todos os valores
assimilaveis á sua vida, mas como ao alimento
que uma vez assimilado, fica realmente assimi
lado, isto é, perde sua autonomia e suje:ta-se
de novo á lei vital: assim, nos primeiros dias
da Igreja, o sentimento israelita, o pensamento
grego, a organisação romana; mais tarde, uma
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multidão de elementos de ordem intellectual ou


pratica foram incorporados á vida catholica sem
que o germen inicial perdesse o que quer que
fosse, satisfeito de nutrir-se, de enriquecer-se
sempre, na mesma essencia»
O segundo fim por mim visado nestes diver
sos ensaios foi, é claro, uma consequencia da
convicção que me guiava quando procurava de
monstrar, de varios modos, e em todos os sen
tidos, a verdade tão limpidamente expressa por
Sertillanges. Eis aqui um homem de bem, uma
obra de que é facil apprehender-se o amor da
verdade; neste pensador tão amargo, tão de-
silludido, naquelle artista tão ironico e cruel,
tão sensual ou tão sceptico, que será o que os
mantem literariamente tão ordenados, que é o
que faz a sua força de expressão, a limpidez,
a simplicidade, a positividade, a affirmativida-
de seu estylo?
Penso eu que é o sei lo da catholicidade,
o sinete, a marca da civilização, cujos beneficies
a Igreja, victima de tantas ingratidões, não nega
nem mesmo aos mais rebeldes de seus filhos.
E é isto o que procuro demonstrar. Devo dizer
que já em 1907, Louis Dimier no seu notavel
curso sobre os mestres da Contra-Revolução (2),

í1) Sertillanges — VEgllse l, 121.


(2) L. Diinier — Les maitres de Ia Contre —
Revolution, Paris, Nlle. Lib. Nationale, 1907.
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seguia em França esse como instincto do bom


senso no dominio das letras historicas e poli
ticas e até mesmo da critica literaria e de ar
tes, como no caso dos Goncourt.
Não sigo, pois, sosinho, nem é pouco hon
rosa a companhia que tenho na direcção que
tomei em escrevendo estes ensaios.
Postos de lado o amor, a amizade que me
ligaram aos autores que, ainda assim, como
catholko, do ponto de vista das idéas — criti
quei — pois este livro não é um rosario de lou
vores — creio que não será difficil verificar que,
na obra do critico; elles só apparecem como ele
mentos de uma apologia da Igreja.
Se merecer alguma attenção, ver-se-á que
não ha pagina deste livro que não obedeça a
esta orientação doutrinaria, que é aliás o unico
merito de tudo quanto tenho escripto, merito
que não é meu, mas do espirito mesmo a Igreja.
Eu proprio me condemno, porém, pelo or
gulho que possa haver na confissão, que faço,
de que só vejo no mundo um ideal á altura de
uma verdadeira consciencia: servir á Igreja, de-
fendel-a, espalhar cada vez mais o seu espirito,
apontal-a como unico refugio da bondade e do
amor, como unica força contra a Força, como
amparo, unico realmente seguro, á intelligencia
e á sensibilidade.

Jackson de Figueiredo.
MELLO MORAES FILHO

(O POETA)

Se de algum homem se pode dizer que


foi genial pelo coração, digo-o eu de Mello
Moraes Filho. Pelo menos assim o conheci
e já é commum citar-se aquella frase celebre
em que se affirma que o genio é obra da
paciencia.
Era tamanha a irradiação da sua bondade
que, as mais das vezes, em frente della, não
podiamos sentir a presença de um velho. O
que se via era esta sublime mocidade do es
pirito: a bondade que não foge á tristeza e
ás lagrimas mas tambem como que inde
pende do tempo.
Triste, de lagrimas nos olhos, tantas vezes
assim o vi, ao meu velho e querido amigo,
nos ultimos annos de sua vida! E a ver
dade é que, desde que vira partir para o tu
mulo a companheira adorada da sua perigri
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nação, não voava o seu mais puro desejo


além da pedra daquelle tumulo.
Bem me recordo da ultima vez que esti
vemos juntos . . . Em sua casa, tudo, naquelle dia,
lhe reflectia a tristeza. Era o valente coração
que, mais uma vez, fôra golpeado num da-
quelles grandes affectos que elle considerava
a gloria de sua vida. Tivera noticia da morte
de um amigo e não lhe cançava perguntar
ao destino: Que faço eu que não me vou
tambem? Para que me reserva Deus? Muito
pouco, de certo, o que tenho a viver . . . Não
seria mais caridosa a morte, se estes poucos
dias têm que ser ainda de soffrimentos, de
dolorosas sorprezas?
A sua visão final da vida era esta: tudo
estava transformado em derredor, o seu mundo
já morrera, e elle era tambem como um morto
para este mundo presente.
Entretanto, á menor solicitação á sua ter
nura, como se transformava o velho sonhador!
Era de vel-o, heroico, tentando o impossivel
para dar uma prova de seu carinho. Ninguem
dirá jamais que alta e profunda significação
teve para mim um só desses esforços daquelle
eterno bohemio, que elle o foi, se bohemia
é poder sorrir como elle sorria em face das
mais dolorosas contingencias do seu viver, e
saber dar á escuridão o brilho das proprias
lagrimas. Que fez elle, em Londres, senão
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isto, quando entre gente de circo se bateu


contra a fome e a miseria, tendo por armas,
tão somente, as cordas de um violão e as
rimas da sua saudade da patria longinqua?

Mas o meu caso. Foi nos dias tragicos


da ultima epidemia, que afundara o Rio no
mais lugubre anniquilamento. Eu lia nnos olhos
das pessoas que ainda podiam velar-me o sof-
frimento que ellas todas tinham como certa
a minha morte.
Errava-me o pensamento, tambem cançado,
pelo mais escuro deserto de desillusão. De
repente alguem me annunciou Mello Moraes.
Mesmo naquelle estado, não foi pequeno o meu
espanto. Pois elle, que eu sabia ter sido tambem
atacado pelo mal terrivel, e velho, e já de
si mesmo abatido, se abalara até alli? Alguem
que sempre lhe foi dedicada, o acompanhava
com a inquietação a pintar-se-lhe no rosto.
Comprehendi que elle não ousara sahir sosinho
ou não lh'o tinham consentido o amor e o
receio dos seus. Não! a bondade humana é
bem maior do que se pensa, geralmente, na
amarga vulgaridade das horas de luta in
gloria . . .
Chegou-se a mim Mello Moraes e sorria,
sorria, podendo eu ver, porém, que tinha la
grimas nos olhos. A amizade era o que assim
lhe perturbava o sacerdocio da profissão, ha
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. tanto tempo exercido somente a preço de co


ração, de caridade e amor.
Quando o vi sahir trôpego, curvado ao
peso dos annos e do mal, que a todos abatia,
eu senti que a minha alma reagia contra a
fraqueza physica, senti como que a força de
uma certeza moral influindo directamente sobre
o meu estado até então: a certeza de que a
vida, que dá taes exemplos de abnegação e
desinteresse, merece ser vivida, merece ser
amada. E não só estas as provas do vigor es
piritual de Mello Moraes Filho até o fim da
sua existencia.
Se a arte já lhe não dava senão rithmo á
tristeza, o amor de tudo quanto dizia respeito
ao seu Brazil, ao seu Brazil tradicional, não
se lhes esgotara e bastava avivar-lhe a chamma
com uma pergunta, uma allusão, para que se
o visse vibrar de enthusiasmo nas azas de
uma grande saudade, ou de indignação em face
do presente. Vinham-lhe então aos labios os
grandes nomes, que eram como as luminosas
estrellas do seu passado: Castro Alves, Varella,
Laurindo, o velho Imperador, os velhos poli
ticos, os agitadores de idéas, os homens de
acção do periodo que considerava a idade de
ouro da nossa nacionalidade.
Que é que restava daquelle Brazil que
fôra respeitado e querido e parecia destinado
a dominar a America semi-barbara e re
Affirmações 15

volucionaria? Nada. Mello Moraes Filho esque


cia que do proprio Imperador maldissera, que
aquelles dias, que já se lhe afiguravam de
gloria, elle os julgara, quando vividos, como
julgava os dias presentes. O poeta só atravez
os vidros da saudade se reconciliava com a
vida, mas até este seu tão permanente quão
ingenuo pessimismo do presente, tambem re
flectia aquella mocidade de espirito, capaz de
ser assim inalteravel em quem jámais fôra no
mundo senão um verdadeiro poeta, isto é, uma
intelligencia tão grande quanto simples a ser
viço de um coração de criança.

* * *

Dizer da obra de Mello Moraes Filho o


que ella foi como obra literaria, ainda hoje é
cousa difficil. São de hontem os julgamentos
extremos: de um lado, os de um Sylvio Ro-
méro, os de um Xavier Marques, por exemplo,
mais admirativos que, propriamente, criticos,
maximé os do primeiro; do outro lado, os de
um Verissimo, puramente criticos, no máo sen
tido da palavra, reveladores da nenhuma sym-
pathia com que o julgador se dava ao tra
balho de lêr a obra do velho poeta.
Parece-me que a verdade ainda estará com
16 Affirmações

o fiel da balança que não pender para ne


nhum dos lados ou, quando muito, se incline
um pouco para aquelle em que estão Xavier
Marques e Sylvio Roméro.
De facto, o que se nota em toda a obra
poetica de Mello Moraes Filho e, de certo
ponto de vista, pode-se considerar sua obra como
obra meramente poetica, é uma grande, se
bem que pouco profunda, expontaneidade de
sentimento, servida, ás vezes, por uma imagi
nação mais brilhante que propriamente alta.
à sua intelligencia não faltava, de certo,
o dom da observação, e, não só na sua prosa,
mas até no seu verso, ha provas evidentes de
que havia em Mello Moraes Filho um obser
vador perspicaz. Uma cousa, porém, era a sua
observação, outra, a sua exposição do que havia
observado, do que havia estudado, do que o
impressionára como facto curioso, digno de
nota. Sendo eminentemente objectivo — um dos
poetas menos subjectivistas do Brazil, chamou-
Ihe Xavier Marques — dava-se com elle, entre
tanto, uma singular transfiguração de romantis
mo, o mais subjectivo. Mello Moraes Filho era
um exaltado, um desordenado, um homem que
facilmente passava os limites da curiosidade e
do amor e se deixava arrastar pela paixão.
Póde servir de exemplo uma pagina sua qual
quer, mas lembro uma em que é mais facil a
verificação do seu processo espiritual, porque
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tem muito mais proximo um optimo termo de


comparação.
Vêde, entre as paginas escriptas por seu
pai, a que relata a vida extravagante e dolo
rosa de um certo fidalgo allemão que, após um
amor infeliz e mil venturas romanescas, acabou
doido ou quasi isto, como um dos typos de
rua de mais interessante psychologia, que tem
tido o Rio de Janeiro. Procurai depois na obra
de Mello Moraes Filho a mesma historia: o
contraste é flagrante. No primeiro a narrativa
interessa pela simplicidade da exposição, que
deixa aos factos mesmos o papel de dominar
a attenção do leitor. No segundo, a narrativa
é quasi um fio invisivel; o que ha sim, é, um
transbordar de generosas e melancolicas exal
tações do poeta ante aquelle thema de vida
fanada, desbaratada, desgraçada.
Nas Festas e Tradições Populares ha tre
chos que fazem lastimar o ter-se perdido com
Mello Moraes Filho um admiravel romancista
dos nossos costumes. O mesmo facto pode ser
observado na sua excellente contribuição sobre
a historia dos Ciganos no Brazil. Mas o que
domina estas e outras obras suas é, sobretudo,
um vivo trabalho de imaginação, de poetisação,
nem sempre bom, nem sempre a salvo de ar
tificios literarios, a ponto que o historiador
amante da verdade poderá, ás vezes, como
Verissimo, duvidar se Mello Moraes Filho conta
18 Affirmações

o que, de facto, vio e ouvio ou o que so


mente imaginou. Em tudo com que contribuiu
para o estudo do nosso folk-lore — e não foi
pouco o que fez — esta duvida pode Ievantar-se
a içada instante. Estude-se o volume que por
ahi anda da sua Revista Antropologica e se
ajuizará de como a propria sciencia não podia
separar-se em Mello Moraes Filho da poesia
mais francamente poesia.
A poesia dominou em absoluto a vida de
Mello Moraes Filho e d'ahi o seu indomavel
amor do passado, que é como que a rea
lidade já entregue ao ideal. Entretanto é força
dizer que se não deve condemnar, de modo
absoluto, o caracter formal da historia da
nossa vida social, emprehendida por Mello
Moraes Filho, mesmo quando os seus quadros
tomavam mais largas proporções e, por conse
guinte, maiores responsabilidades. Notou Cham
berlain esta tendencia entre os gregos: casar
sempre a propria historia á força divinisadora
da sua poesia. Marathona talvez não tivesse
sido o que elles disseram depois que foi — mas
de tal lição da sua historia lucraram os seus
filhos, lucraram quantos leram o& seus his
toriadores.
Mello Moraes Filho fizera-se um intransi
gente nacionalista. Para elle até as nossas su
perstições eram sagradas.
« O progresso — diz elle — tem levado do
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nosso povo as crenças e as superstições, e


com ellas a sua felicidade real ».
Elle proprio com uma pontinha de ironia,
lastimou — dizem — a campanha saneadora de
Oswaldo Cruz. A febre amarella era uma pro
tectora do Brazil. Se ella desapparecesse o
estrangeiro viria em ondas ... O estrangeiro
era, a seu vêr, o diluvio . . .
Um homem assim devia ter, certamente,
visão bastante optimista do que fomos. E tinha.
O violão, o reizado, as tayeiras, qualquer dos
nossos bailes pastoris, a chegança, os para
fusos — todas estas manifestações da nossa
vida popular outr'ora eram para elle, Mello
Moraes, encantos como nunca os houve em
parte alguma do mundo. Os nossos indios, os
nossos negros eram, no seu entender, algumas
vezes, um privilegio da nacionalidade: só esses
povos trouxeram contingentes de poesia pro
pria, singular, curiosissima, capazes de formar
como formaram, mesclando-se á portuguesa, uma
outra poesia, a brazileira. Ê neste ponto que não
têm razão os positivistas, quando fallam de he
roismo português em relação a um homem que
aqui viveu e lutou, só porque esse homem per
tence pela «cultura á civilisação vinda da Eu
ropa. Esse homem, pelo contrario, foi heroe
de uma outra civilisação — da brazileira — que
não foi, que não é essa ou aquella, mas a
que, em meio diverso, com o caracter geral
20 Affirmações

do Christianismo, resultou do choque de tantas


quantas aqui têm vindo procurar o amplo seio
da terra prodigiosa.
Cousa extravagante mas facilmente expli
cavel era o amor de Mello Moraes Filho, isto
é, de um nativista tão radical, ás raças exo
ticas, taes como os ciganos, no passado e,
no presente, os japonezes.
O seu proposito historiando e descrevendo
a vida do cigano em nosso paiz) foi provar, como
mostrou Sylvio Roméro, « que no corpo da
poesia, contos, lendas e tradições populares do
Brazil não devemos contar somente com por
tugueses, africanos, indios e mestiços dessas
tres raças. Devemos contar tambem com um
factor geralmente esquecido, o cigano ».
O japonez que era, nos seus ultimos annos
de vida, conviva costumeiro da sua larga hos
pitalidade, este era a seus olhos um irmão vi-
ctorioso do nosso maltratado aborigene.
Poeta da escravidão, porque era sel-o do
indio, que se não dobrou, e do africano, que
deu sempre a nota christã mais profunda da
nossa historia, Mello Moraes Filho tinha, no
entanto, predilecção notavel pelo primeiro
destes elementos da nossa formação ethnica.
Suas poesias mais formosas, como Ponte
de lianas, Tapara da lua, Tarde tropical, são
todas de inspiração puramente americana, como
tambem o seu Mysterio — ANCHIETA — es
Affirmações 21

boço de poema que deveria ser meditado por


todos os grandes poetas brazileiros, porque
estou convicto que elle poderia inspirar a nossa
verdadeira epopéa: a epopéa do Christianismo
nas terras selvagens, mais em luta com o
civilisado que se dizia christão do que com
a ingenua e muitas vezes explorada rebeldia
do selvicola.
Foi Mello Moraes Filho um poeta infe
rior quanto á technica do verso, peccou cem
vezes em relação ás formas classicas da nossa
poesia. Não ha negar. Basta, porém, citar a sua

PONTE DE LIANAS

Eis a 1floresta, o valle, o ermo agreste,


Em que ,as aves do céo passam cantando;
O rio tque de estrellas se reveste
 limpidez ida noite murmurando;
A balsa .plena desse odor celeste,
Qual incenso ,que a Deus sobe voando;
Em que mas séstas, ao pá-d'arco louro,
Canta a cigarra de esmeralda e ouro.

Além se eleva á fonte debruçada,


A triste piassaba em seu deserto,
Como a viuva á terra abençoada,
 terra santa de um sepulchro aberto.
Talvez, ó sim!— quem sabe? — a malfadada
Pergunte ao écho pelo ar desperto:
22 Affirmaçõbs

— Que é da tribu que vinha aqui, responde !


E o écho repercute : aonde . . . ? aonde . . . ?

Eterna solidão pende dos braços


Do silencio do ermo e da campina;
Ébria de orvalho e brisas dos espaços,
Dobra a corolla a flôr adamantina,
E do vargedo aos humidos regaços,
No capinzal tostado que se inclina,
Junto d'um lago que desfaz-se em risos
Se escuta a cascavel soar seus guisos.

Nos grossos arvoredos seculares


Enroscam-se as lianas rescendentes :
Unias, lá trepam, vão topar com os ares,
Cahindo em chuva dos ramaes pendentes;
Outras, descendo a rocha, a novos lares,
Os tectos verdes, forram, quaes serpentes;
Enreda a sicopira, alastra a fresta
O polvo de lianas da floresta.

Tomando de um sipó que desamarra,


Se atira nagua a india forasteira,
E á outra banda do riacho amarra
A corda no tronco que lhe fica á beira;
E suspensa á liana em que se agarra,
Levando a ponta á que ficou fronteira,
Enlaça — e tem por premio a seus labores
Caminhar numa ponte aberta em flores.

Suave curva aerea e caprichosa


Esta descreve em lyricos festejos ;
Paira-lhe nagua a sombra perfumosa
Affirmações 23

Que os vagalumes crivam de lampejos;


E sob um céo aziil, ether de rosa,
Da natureza aos barbaros arpejos,
Passa o caboclo tardo e sem conforto
A taba conduzindo o tapir morto.

Estes versos só deixarão de ser sentidos


e amado quando o Brazil não existir mais.
O calor da nossa natureza, as suas côres,
a belleza, a pompa um pouco melancolica de
que ella se reveste, ahi estão magnificamente
expressas, profundamente poetisadas.
Na TARDE TROPICAL ainda mais se
patenteiam os seus magnificos dons de pai
sagista, mas paisagista no mais alto sentido
da palavra, que tira da propria alma as me
lhores tintas com que acaricia as bellezas do
quadro selvagem que a natureza lhe mostra.
Dahi o profundo sentimento de humanidade
que anima todas as linhas da paisagem, o
movimento proprio aos seres que elle vê, co
roados de soberana melancolia, ou da eterna
poesia religiosa de que os reveste o mys-
terio circumdante . . . Mello Moraes Filho, mais
talvez que qualquer dos nossos grandes poetas,
sabe elevar-se ao hymno, ao verdadeiro hymno,
que é o religioso — casando á poesia
interior a poesia das cousas, harmonisando-as
com espirito grave, quase triste, ante a força
creadora da belleza, na musica não menos grave
24 Affirmações

e profunda do seu verso. É preciso ,citar TARDE


TROPICAL para comprehender-se bem a que
alturas poude elevar-se este poeta, que po
deria ter ficado entre os primeiros do Brazil
se fortuitas circumstancias não houvessem des
viado as energias de seu espirito para o campo
do que se pode chamar a poesia anedoctica
da nossa historia social, em que se conser
varam sempre altas mas onde não eram mais
possiveis os mesmos vôos audaciosos do seu
canto á nossa natureza e ao nosso rude he
roismo de povo christão em face desta mesma
natureza.

TARDE TROPICAL

É a hora do dia em que das mattas


Desce a sombra da basta gamelleira,
E saltando das lapas as cascatas
Espadanam das aguas a poeira . . .
Em que a onça lambendo as ruivas patas,
Rente o peito com o chão da cordilheira,
Encurva o dorso, e cerra, em abandono,
Os olhos de ouro, de fadiga e somno ! . . .

Em que o indio perdido na savana


Conta a Tupan seus barbaros segredos . . .
E a tarde — bella moça americana —
Côa a luz do crepusc'lo em brônzeos dedos!
Em que as flores vermelhas da liana,
Affirmações

Da ponte de cipó dos arvoredos,


Cahindo ao sopro da macia aragem
Se estendem sobre as rêdes do selvagem!..

Hora de amor, de prece, hora de encanto!


Tu murmuras nos rios transparentes;
E tens por voz da guaraponga o canto
E o ronco das giboias nas vertentes ! . . .
Quando tinges no occaso o claro manto,
E alem descambas desses céos ardentes,
Mão de mysterio, por velar-te a urna,
Ergue no espaço a lampada nocturna!

É já quasi ao sol pôsto, quando a terra


Trescala de selvatica harmonia . . .
E á cascavel que dorme pela serra
Espanta o silvo da cauan bravia!
E se ruge o jaguar, que o fogo aterra,
Acceso á porta da cabana esguia,
Retumbam échos nos rochedos fundos,
— Titans rolando do Equador nos mundos ! . .

Os cactus em flôr, pela clareira,


Se illuminam de insectos scintillantes;
E a velha da tribu, a feiticeira,
Evoca os gemios da floresta, errantes!
E se os lumes sinistros da fogueira
Aos sortilegios lustram mais fumantes,
As corujas, nos ares ululando,
à face do Crescente vão voando ! . . .

Hora de amor, de adoração, de crença,


Ave-Maria! — Estrella dos palmares!
Affirmações

Tu mitigas do escravo a dor intensa,


 santa uncção dos mysticos cantares!
Quando baixas do céo, a selva immensa
Manda esperar-te os largos nenuphares . . .
E o oceano, na vaga que fluctúa
Reflecte de teus pés a meia lua!

Tardes de minha terra ! ó prado ! ó flores !


Nos braços do lethargo, á frouxa luz
Do sol que morre — dorme natureza!
E as rolas pelas moitas dos bambus
Arrulam doces cantos de tristeza!
E o caboclo que leva os filhos nús
Do Amazonas á rija correnteza,
Penetrando a floresta em mudo assombro,
A um tem pela mão — traz outro ao hombro!....

Bosques cheios de sombra e de harmonias!


Valles e serras, magicos vapores,
Ninho das garças nas lagoas frias!
Vós recordais-me a trilha dos amores,
O colmo das deixadas phantasias,
Por onde essa illusão que a alma nos cansa
Pendura as rêdes de ouro da esperança!

Adeus, ó tarde, adeus! que os horizontes


Cobrem do dia morto o corpo algente . . .
Turva neblina rdla pelos montes,
— Cinza das azas desse sol poente!...
Ave-Maria! Ao céo quando remontes,
Da natureza eterna ao hymno ardente,
Que a ti subam d'est'harpa os sons finaes
Aos enlevos das tardes tropicaes!
Affirmações 27

Não; é preciso não ceder completamente


aos que tudo querem reduzir, em nossa poesia,
ao brilho exterior, á pompa, á plastica mais
correcta que a de que se pode gabar a poesia
portuguesa em geral. Não; outro é tambem
o espirito e, sob este novo padrão, é preciso
dizer que o poeta da «Ponte de lianas», da
« Tarde tropical », de « Anchieta » foi um grande
poeta.
Se não mantem na maior parte da sua
producção poetica esta elevada harmonia entre
a forma e o espirito da mais alta poesia
brasileira, nestes poemas, pelo menos, foi di
gno emulo de Castro Alves e ultrapassou Va-
rella e Goncalves Dias, porque é muito mais
vivo o seu americanismo e muito mais liberto
de artificios literarios o seu canto ás bellezas
de nossa terra.
Em « Anchieta » e na « Tarde tropical »,
repito, estão talvez impressas as grandes li
nhas poeticas que deverão dominar a nossa
verdadeira epopéa, que ha de ser, pela voz
inspirada do nosso maior poeta do futuro, o
hymno religiosissimo á nossa grande victoria
— á victoria do baptismo christão que redimiu
esta terra e fez surgir no globo, retalhado de
odios, um novo patriotismo, verdadeiramente
emanado das sagradas doutrinas e ensina
mentos da Egreja: patriotismo zeloso das na-
turaes divisões que a vida impõe aos homens
28 Affirmações

e ás collectividades, mas dominado, neste zelo,


pelo espirito de caridade, que é a universal
alma da mesma Egreja.
Creio que não erro ao affirmar que a
melhor producção poetica de Mello Moraes
Filho contém os germens de uma verdadeira
esthesia americana, em que as influencias, so
bretudo de Castro Alves, tomam o caracter
muito definido de poesia propriamente nossa.
Xavier Marques assim caracteriza esse tom
especial da melhor poesia que está nos « Cantos
do Equador»: «Lêde — diz o critico bahiano
— as poesias de Mello Moraes Filho, e ao
contrario das de certos «genios de paciencia»
encontrareis em suas estrophes, em vez da
descripção impertinente com ares de analyse,
uma brevidade eloquente, uns traços e jogos
de luz rapidos, mas bastantes a despertarem
a imagem do que elle pinta.
A dóse de descripção equilibra-se com a
dóse de imaginação; desse equilibrio resulta
a verdade do quadro amenizada com uns tons
pinturescos de idealismo e penetrada do sen
timento inseparavel do lyrista».
Pouco antes dissera o mesmo critico mais
laconica porém não menos expressivamente:
« Suas pinturas mostram a paizagem no mesmo
gráo de expressão que o sentimento. Têm obser
vação, mas observação commovida ».
Tambem Sylvio Romero já delle dissera:
Affirmações 29

«A poesia de Mello Moraes Filho possue


uma das qualidades mais preconizadas da
poesia contemporanea, a objectividade. E assim
é; em nenhum de seus livros deu elle entrada
a producções puramente pessoaes e subjectivas.
Mas essa objectividade é idealisada; della o
poeta extrae aquellas tintas, aquelles tons,
que mais se coadunam com a indole de sua
intelligencia ».

Ora, supppnho que esta sempre foi a ca


racteristica dos verdadeiros grandes poetas,
aquelles em que predomina o espirito obje
ctivo, o que não quer dizer que se não possa
fazer alta poesia subjectiva, que se não possa
mesmo ser um grande poeta pela expressão
de um temperamento, a lutar comsigo mesmo.
São estes, porém, muito mais raros e para
serem grandes de verdade têm que casar ao
seu lyrismo interior, á sua esthesia, preoccu-
pações de ordem intellectual, sem ligação di
recta com a poesia, têm que vestir, com esta,
uma philosophia, uma idéa superior, o que
não é commum. É o pensamento, propria
mente, o que faz a grandeza dos poetas sub
jectivos. Ao poeta em si, lyrico ou não, basta
ser um pintor, saber imprimir o seu proprio
rythmo espiritual, isto é, sentimento ás coisas
do mundo que o rodeia.
Parece-me que as qualidades notadas por
30 Affirmações

Xavier Marques na poesia de Mello Moraes


Filho, e que fazem em sua obra aquillo em
que avisto os delineamentos de uma esthesia
puramente americana, já têm entre nós, a sua
linhagem, pois são ellas as que realizaram
a nossa verdadeira poesia no romance de
Alencar e na dramatização da nossa historia
social com Euclydes da Cunha.
O que fez a excellencia destes autores foi,
justamente, o que notou Sylvio Romero que
havia em alto gráo em Mello Moraes Filho:
a « intuição » de cada um dos typos compo
nentes de nossa civilização, dos principaes,
pelo menos, do indio, do negro e do portu-
guez e, mais ainda, do mestiço, que já é uma
resultante muito mais complexa do que seria
se a sua ascendencia fosse tão só a daquelles
tres typos, alicerces da nação brazileira.
Ora, em Mello Moraes, tanto quanto em
Alencar, houve não só a intuição de cada
typo, mas tambem, pelo que chamarei mi
lagre poetico, a visão propria a cada typo,
das coisas e da vida do Brazil, e, por isto,
sobre a poesia da terra, como visão de um
poeta que já a si mesmo se olhava e se
sentia como uma synthese do nosso desenvolvi
mento social, levantou Mello Moraes a poesia
do indio,, a do negro, a do portuguez, a do
mestiço, indo até ao extremo de não
consentir que se perdesse a de elementos ethno
Affirmações 31

graphicos de minima importancia, como a do


cigano; porque estou convicto, ao con
trario de Sylvio Romero, que o poeta do
minou sempre o historiador na obra de Mello
Moraes, e fez mais do que recolher o que
nos apresentou como folklore daquella gente
singular.
É julgando-o deste ponto de vista — nem
posso crer na utilidade da critica literaria que
não esteja intimamente ligada á critica social
— que reputo injustiça digna de ser desfeita,
maximé em livro de tanto valor, a que pra
ticou o eminente critico nacional contempo
raneo, sr. Ronald de Carvalho, que, na sua
« Pequena historia da literatura brasileira »
menos de uma linha dedicou a Mello Moraes
Filho, apertando-lhe o nome entre o de dois
ou tres « poetas menores », epigonos do ro
mantismo brazileiro, «bucolistas leves e chis
tosos », como lhes chamou.
A meu ver, mesmo de qualquer outro
ponto de vista que não, o meu, Mello Moraes
Filho foi, como poeta, muito mais do que isto.

Tem-se dito que Mello Moraes Filho foi


um imitador de Castro Alves. Este é tão
grande, penso eu, no dominio da nossa poesia,
que ainda pudera ser grande um poeta nosso
32 Affirmações

que unicamente o imitasse. Tal não se deu,


porém, com Mello Moraes. O sentimento geral
da nação,, que se agitava numa luta de ideaes
como jamais se viu repetir-se entre nós, fez
com que os dois nortistas tivessem, como, aliás,
teve Tobias Barreto e tiveram outros, algumas
cordas dímãs nas lyras de oiro.
Um exame imparcial da evolução poetica
de ambos, mostraria, porém, sem muito custo,
a diversidade essencial das suas poesias.
Foi Castro Alves, mesmo no lyrismo, um
epico ou, pelo menos, uma vibração de alma
tão apaixonada e tão alta que enthusiasma
sempre, arrebata, transfigura quem o lê, mas
poucas vezes, muito poucas vezes terá tido
o condão de commover, « docemente », de falar
ás forças humildes mas tambem santas do co
ração. Até a sua paixão amorosa raro po
dará achar écho na alma da maioria absoluta
dos seus leitores. Estes a admiram no seu
voluptuoso desregramento, na sua indomavel
audacia, na sua grande desgraça, na sua pro
funda sinceridade, mas admiram só, porque
a belleza é sempre admiravel, e ali abre e
move as azas assombradoras uma grande e
tragica belleza. Não na podem sentir, todavia,
áquella paixão que é de poeta somente, de
um homem que se sentia predestinado, que
trazia escripto a fogo no coração o destino
dos heroes da paixão ... É ás vezes um des
Affirmações 33

criptivo, mas quando descreve parece fazel-o


tambem com o fogo vivo de uma palheta so
brenatural, e até a sua melancolia tem qualquer
cousa de dantesco, de soberanamente esma
gador. Castro Alves foi um mundo, de brilho
incomparavel, a rolar pelo firmamento da nossa
alma collectiva, mas como um « eu », um ser
que era elle só, para elle só, amando-se, ado-
rando-se, arranjando-se, accesso de glorias e
de dores, ao abysmo da morte prematura. Sim,
elle foi o poeta dos Escravos, cantou o tre
mendo soffrimento, lançou-se como o raio
contra a monstruosa injustiça de que era vi-
ctima uma raça, mas ainda fez tudo isto como
o « condotieri » victorioso, raro desceu o olhar
até a scena humilde onde, de facto, se des
enrolava aquelle drama. Por isso não viu talvez
o mais doloroso porque o mais humilde, nem
conheceu a belleza mais pura que se elevava
no meio daquelle vasto pantanal. Tudo o mais
que não é assim, elevado mas pessoalissimo,
na poesia de Castro Alves, são notas esparsas,
sem valor no conjuncto, nem perturba a har
monia da soa obra.
Quão longe está Mello Moraes Filho do
arrebatado dramatisador do «Navio Negreiro»!
Como já observou Xavier Marques, a obra
de Mello Moraes Filho foi das mais objectivas
da nossa poesia, até ao tempo em que surgiu.
Já fiz notar, por minha vez, que o romantismo
3
34 Affirmações

mais subjectivo palpitava entretanto no fundo


daquella apparente objectividade, tanto em ver
dade foi Mello Moraes tambem um desor
denado, um apaixonado nos annos da sua mo
cidade. Aquella tendencia, porém, para o obje-
ctivismo era um natural correctivo á desordem
interior e é força reconhecer que Mello Moraes
Filho buscou sempre impressionar mais como
pintor que, propriamente, como pamphletario
ou analysta. Que a sua pintura tinha as tintas
do amor, do carinho, da exaltação mesmo,
não resta duvida, e era desta maneira que
elle queria tocar o coração de quem a via, em
favor dos desgraçados de que se fizera advo
gado. O seu processo foi assim, de modo
geral, como poeta da escravidão, contrario ao
de Castro Alves, levando sobre este a van
tagem de não ser só um libelista contra a
escravidão, mas tambem um apologista da
raça, ou melhor, das raças, que mais soffre-
ram na formação da nossa nacionalidade. Pin-
ta-as nas suas festas, nos seus folguedos, nos
seus ritos, mostra-as resignadas, bondosas, ca
rinhosas, dominadoras da propria misera si
tuação» pelo dom interior da poesia, pela in
genua fé de que se animavam.
Quando Castro Alves faz esta mesma
poesia, fal-o incidentemente, ao passo que ha,
visivel, em Mello Moraes Filho, o proposito
de desenvolvel-a em todos os sentidos. Po
Affirmações 35

de-se dizer mesmo que elle foi o defensor


das raças opprimidas, por ter sido dos que
melhor revelaram dellas a graça, a bondade,
a simplicidade christã, a capacidade heroica
de trabalho e soffrimento. A sua poesia, dado,
o fim a que se propunha, não podia deixar
de descrever as scenas selvagens da escra
vidão, sangrentos episodios daquella triste his
toria, mas é este, justamente, o lado menos
original da sua obra. Neste, repito, o que
ha de proprio, e não fica a dever a Castro
Alves nem a nenhum outro dos nossos maiores
poetas, é a feição picturesca, é, realmente, o
que elle consegue reviver da vida quotidiana,
das horas vulgares do povo soffredor mas
resistente. E não só agora se expressa um
tal juizo critico a respeito da obra de Mello
Moraes, mostrando o que caracteristicamente
o differencia de Castro Alves. Ao sahir a
2a edição dos « Poemas da escravidão » quem,
competentemente, criticava pelas columnas da
«Revista Brazileira», assim já se exprimia: «O
fim do Dr. Mello Moraes Filho, compondo
esses versos naturaes, que muitos já sabem
de cór e a outros têm servido de modelo para
cantos da mesma natureza, não é incitar o
escravo á insurreição, tornal-o algoz do se
nhor, fazel-o conspirador, criminoso, assassino.
As harmonias da lyra do Dr. Mello Moraes
Filho não são échos de uma tuba de guerra.
36 Affirmações

Elle não préga a desordem nas fazendas, a.


emboscada nos caminhos, o conciliabulo no
eito, o veneno e o incendio no lar, o assas
sinio no lar e nas ruas. O poeta só tem um
fim — tornar odiosa a escravidão, despertando
a compaixão pelo escravo; e elle desperta
aquella, descrevendo a triste condição deste
em versos de variado metro, que parece me-
direm-se pela variedade dos padecimentos do
captivo ». E depois de notar que em « Partida
de escravos », « Ama de leite », « A feiticeira »,
« Os Filhos », « A Familia », « Verba testamen
taria», «Escravo fugido», se reconhece «a vida
do escravo no Brazil, cuidadosamente obser
vada e habilmente descripta» accrescentava :
«O Sr. Dr. Mello Moraes Filho inicia
uma escola, abre um caminho, mostra um
rumo que pode ser seguido pelos novos
poetas ».
Assim já então se havia claramente dis
tinguido o que havia de proprio, de original
na obra de Mello Moraes Filho.
E Sylvio Romero, de quem Xavier Mar
ques, no já citado estudo, endossa a opinião,
ainda mais claramente deixou resolvida esta
questão : « Mello Moraes Filho — diz elle —
seguiu por outra vereda e por vereda tal que,
por este lado, não se parece com um só dos
poetas brazileiros, sobrepujando a todos. Mello
Moraes não ostenta aquellas opulencias, aquelle
Affirmações 37

farfalhar de bonitas phrases ao gosto de Castro


Alves; sua maneira é outra; elle colloca-se
no meio do facto da escravidão, mette-se entre
os captivos e os senhores, assiste ao viver
daquelle mundo especial das « Fazendas » €
diz sem grandes adornos as cruezas que viu.
São pequenos quadros, pequenos esboços pelos
quaes circula a verdade, a sinceridade ».
Não me parece mais justo o juizo dos
que querem ver em poesia como «Tarde
tropical » e outras do mesmo genero dos
«CANTOS DO EQUADOR» a já desmentida
imitação de Castro Alves, pelo menos, quanto
aos « Poemas da escravidão ». Ouvi do proprio
Mello Moraes Filho que não conhecia a
«Tarde» de Castro Alves quando escreveu a
sua «Tarde tropical». Não é preciso pedir a
ninguem que confie na palavra de Mello
Moraes. Basta que se comparem as duas poesias
para ver-se que, se ha entre ellas muita se
melhança de forma e rithmo, ha na de Mello
Moraes sentimento religioso, mais senti
mento brazileiro, e até mais vigor poetico.
Somente a «Tarde tropical» merece esta pe
quena discussão, em toda a obra de Mello
Moraes, penso eu, mas aqui mesmo deixo as
duas primeiras estrophes da « Tarde » de Castro
Alves para que immediatamente possam ser
comparadas com as já citadas estrophes do
poeta dos «Cantos do Equador».
38 Affirmações

« Era a hora em que a tarde se debruça


Lá da crista das serras mais remotas . . .
E da araponga o canto, que soluça,
Acorda os écos nas sombrias grotas;
Quando sobre a lagôa, que se embuça,
Passa o bando selvagem das gaivotas . . .
E a onça sobre as lapas salta urrando
Da cordilheira os visos abalando.

Era a hora, em que os cardos rumorejam,


Como um abrir de bocas inspiradas,
Pelos dedos das auras perfumadas . . .
E os angicos as comas espanejam
A hora, em que as gardenias, que se beijam;
São timidas, medrosas desposadas;
E a pedra ... a flor ... as selvas . , . os condores
óuaguejam . . . falam . . . cantam seus amores ».

Poderia citar a poesia toda e estou certo


que só se admittiria imitação por parte de
Mello Moraes, se se admittisse que houve
proposito seu de supplantar, desta vez, o
maior dos poetas brasileiros.

Foi a poesia companheira de Mello Mo


raes Filho até os seus ultimos dias de vida.
A bondade de que o poeta tinha cheio
o coração dava a este, oomo disse, tanta
Affirmações 39

força de bem querer, tanta capacidade de


sympathia que os que lhe ficavam proximos
tinham a illusão de que a mocidade ali ficara,
milagrosamente, animando, amparando o espi
rito daquelle trôpego velho . . . Mas a verdade
é que já lhe minguava o surto poetico, ou
se despira de galas com o depurarem-se-lhe
as paixões, estancarem-se-lhe as fontes do
enthusiasmo. O mundo vivo era para elle um
pequenino circulo de creaturas que o ama
vam. O seu mundo, aquelle por que vibrara,
aquelle que encarnara, já morrera.
Para que me reserva Deus? — não era
esta uma pergunta sua predilecta, que tantas
vezes me fez? O seu ultimo grande enthu
siasmo foi talvez o da festa que lhe fize
ram1 em S. Paulo. Tudo o mais, e assim foi
desde a morte da sua adorada esposa,
D. Joaquina de Mello Moraes, foram soffri-
mentos e dores, bons ou máos, mas sempre
a mesma amargura sob formas diversas.
A vida era-lhe um peso. Lembro-me bem
como o impressionaram dois versos de Garcia
Rosa, citados no pequenino estudo que publi
quei sobre a obra, até hoje quasi toda inedita
deste nobre poeta de minha terra. Elle proprio,
que já raramente decorava, m'os recitou:

« Para a turva consciencia emocional do triste


Toda a noção "do real se lhe restringe á dor ».
40 Affirmações

E sublinhouos com um daquelles seus


tristes sorrisos, que só confiava aos mais
Íntimos.
« Altar encerrado » foi mesmo o nome
que deu á homenagem que a sua mal ferida
lyra ainda prestou á memoria da inesqueci
vel companheira. Neste livrinho tudo é tris
teza, tudo é saudade, tudo é pranto, e tudo
se exprime de modo tão simples como se
para sempre se houvesse ausentado do seu
espirito qualquer velleidade literaria. O seu
verso tomou então a sua muito amada forma
popular, a trova, isenta de todo o rigor de
rima, mas tão viva como se cada uma dellas
fosse uma lagrima, uma quente lagrima . . .

. Aquelle que sobrevive


à sua propria ventura,
E um morto que caminha
Sem encontrar sepultura.

Por morte de velhos donos


Vemos casas tão sentidas,
Como se fossem viuvas
De eterno luto vestidas.

Sua eterna mocidade


Canta o riacho a correr,
E eu vou carpindo os meus males,
Sem acabar de morrer.
Affirmações 41

Nos climas frios da morte


Se estancam dores e tis,
A prova é que lá existem
Os que não existem mais.

Quando por 'tudo no mundo


Nos vae n'alma a indifferença
Pouco nos resta da vida
Para acabar a sentença.

Depois que baixaste á campa


De tiôr me senti morrer!
Mortos existem que vivem,
Porque precisam viver!...

Da vida quando o interesse


Nos morre òu pouco nos resta,
O homem1 vive da vida
Que a dôr da vida lhe empresta.

Estas gotas de pranto foram as ultimas


da sua poesia. Não foram poucas, foram
muitas até, mas quasi todas assim, reflectindo
o luto em que se amortalhára o seu combalido
espirito. De algumas que ajuntei e de outras
que mão piedosa me ha confiado ainda aqui
citarei estas, que dizem mais vivamente da
ultima phase de sua vida:

Pelo declinio da vida


Aos poucos a noite cresce,
E quando a treva é completa,
A patria nos desconhece.
42 Affirmações

É sempre através do pranto


Que a ti minh'alma transportas
Oh! minha estrella perdida
No .céo das estrellas mortas!

Quando a moldura dos tempos


É acanhada de mais,
Figuras nullas, pequenas,
Tomam formas colossaes..

A morte, por ser desgraça,


Não deixa de ser ventura,
Pois corta pelas raizes
Males que a vida não cura.

Depois que òs sonhos se foram,


As illusões, as venturas,
Não sei que fazem no mundo
Umas tantas creaturas.

* » *

O velho Mello Moraes Filho, o poeta


que, mais que outro qualquer, aspirou sem
pre ser nacional, da sua patria, do seu meio,
não pode ficar esquecido, e muito menos cari
caturado na má vontade de alguns apressados
mentores de fancaria.
O Brasil que cada vez mais se affirma,
Affirmações 43

autonomo, e quer que em todos os seus filhos


o sentimento da nacionalidade se faça força
de consciencia, razão de todo esforço, deve
glorificar o cantor da nossa gente humilde,
o poeta nacionalista por excellencia.
TRAÇOS PARA UMA APOLOGIA
DE OLAVO BILAC

A Alcides Maya e Gregorio da Fonseca.

Poder-se-ia definir a musica a «cousa


em si» nos dominios da Arte, se ella não
fosse simplesmente a mais vulgar das forças
poeticas de que é dotado o espirito humano,
em face do desencanto da vida, ante o eterno
ideal de perfeição.
Este ideal é o de uma união cada vez
mais intima entre o homem' e a belleza que
existe no mundo. Arte é, propriamente, Poesia,
força suprema do espirito que, assim como
realiza no mundo material idéas de ordem
pratica, realiza tambem o ideal, rythmando as
desencontradas anciedades do coração, conci
liando a magoa de viver a uma idéa mais
bella da vida, conciliando o sentimento, que
é sempre producto de uma limitação, ao
46 Affirmações

mundo da liberdade, que é o reino mesmo


do espirito, e escapa ás definições.
E' deste ponto de vista que a Arte, sendo,
quasi sempre, a objectivação do soffrimento
individual, póde ser considerada como signal
de ventura dos povos, dado que, de facto,
é uma victoria do espirito sobre as forcas da
natureza, em cujo seio a sociedade humana
foi posta por Deus como corôa e gloria da
creação. Mais ainda: é uma victoria do espi
rito contra a sua propria condição actual,
affirmando assim que lhe é possivel uma vida
superior. O homem que não é «um imperio
no imperio»; que não independe do mundo
physico, forma, entretanto, pouco a pouco,
aqui mesmo, sobre a arida rocha em que foi
deposto, esse « imperio no imperio », porque
a Poesia, que guarda o que Mario de Alen
car chamou tradição da dôr humana, guarda
tambem a historia de uma porção de homens,
já livres da acção da natureza, e que a domi
naram subjectivamente, modelaram-na em obra
de Arte, apresentaram-na, purificada, humani
zada pelo beijo ardente do espirito na exaltação
mysteriosa e sempiterna da dôr.
A Poesia, diz Chamberlain, constitue a
raiz de todas as artes, e esta já era a opinião
dos Gregos. A musica será neste terceiro
mundo, como á Arte chama o referido autor
allemão, a força configuradora, se bem que
Affirmações 47

a mais bem sentida, a menos definida, a


menos bem espiritual, aquella que, parecendo
agitar o fundo mesmo da personalidade huma
na, accórda somente, com mais vigor actual,
o mar de instinctos, as ondas de sensualidade
mais ou menos grosseira em que sobrenada
o que de mais elevado, na ordem da natureza,
existe no homem, isto é, a razão. As outras
artes são, todas ellas, mais intellectuaes e, por
conseguinte, marcam victorias humanas mais
elevadas, dado que a razão é caracteristica do
homem, e a este cabe impôr a razão á natu
reza. A architectura, a pintura, a esculptura,
por exemplo, são, evidentemente, ora um
esforço do homem para dominar intellectual-
mente a natureza, ora uma espontanea trans
figuração do amor humano. E nesta transfi
guração do amor, limitando aquella ordem da
caridade de que nos fala Pascal, já actua
mais a graça de Deus do que a vontade do
homem, e eis porque se faz o amor a força
creadora por excellencia, parallela ás que per
correm o Cosmo, e, em meio do mundo, o
artista é como a imagem real do Creador.
E como o que se faz pelo amor é sempre
mais digno de ser amado que o que se faz
pelo puro esforço intellectual, a architectura,
em que, de facto, é maior este esforço do
que em qualquer das outras artes, é a arte
que, por excellencia, está ligada á cultura
48 Affirmações

scientifica, e, dahi, por certo, a opinião de


Simmel que a glorifica como a mais alta e
a mais nobre das artes. A meu ver cabe á
poesia, á arte do verso, propriamente, esta
primazia. Ella é a manifestação mais per
feita da Poesia em si, da Poesia tal como a
defini; ella é a corôa de todas as artes, pois,
mais do que qualquer outra, reune em si
todas as energias sensuaes e intellectuaes que
se encontram no vasto dominio da Arte —
approximando-se da musica pelo rythmo e
das demais artes por exprimir de cada uma,
na sua linguagem mais intellectual, o fundo
de sentimento, em todas ellas mais ou menos
estratificado. Só ella tem o movimento da
musica alliado á disciplina severa em que se
amortecem as suas irmãs.
Por isso a grande poesia é, quasi sempre,
signal da madureza dos povos capazes de
ideal, capazes por conseguinte, de se apre
sentarem como portadores de uma nova
expressão da vida moral.
Após o milagre do Christianismo ha de
a poesia, no Occidente, exprimir, dentro do
grande circulo de caridade em que Jesus
accordou todos os homens, uma anciedade
nova — generosa anciedade, porém que só
significa o desejo de penetrar mais fundo
esse fim sobrenatural do homem, totalmente
revelado do alto da Cruz, e de que a edade
Affirmações 49

antiga só teve a vaga intuição ou um conhe


cimento parcial.

»
• •

Tudo me leva a crêr que o Brazil, ali


cerçado na fé dos sublimes apostolos que
aqui plantaram aquella arvore bemdita da
Cruz, e deram á nacionalidade o seu cara
cter definitivo, tudo me leva a crêr — até
mesmo os nossos erros, sempre nascidos da
excessiva bondade — que o Brazil ha de ser,
já é o terreno proprio ao florescimento, em
seiva nova, de álguns dos principios divinos
do Christianismo, na pratica social, guarda
dos, isentos de todo erro, pela santa Igreja
Catholica Romana.
É deste dado de fé que tenho partido
constantemente para o exame do nosso pre
sente e a indagação do nosso futuro e, se
no horizonte limitado das cousas, não têm
sido poucas as vezes em que o pessimismo
e a desolação me têm abatido, o certo é que
só por momentos lhes soffro o jugo desmo-
ralizante, pois, no alto, refulgindo com brilho
glorioso vejo o cruzeiro ideal e, em derredor,
a generosidade e a coragem deste povo, com
todas as portas decoração abertas ao mundo
e, guardado por Deus, no fundo deste mesmo
50 Affirmações

coração, o sacrario da sua viril sentimenta


lidade, reserva que sempre foi do verdadeiro
heroismo.
A poesia tem sido no Brazil signo, já
o disse, da nossa provavel grandeza, na
obra civilizadora do Christianismo. Elevada
e fecunda, essa poesia jámais perdieu, máu
grádo as investidas do individualismo mo
derno, que, da Europa, como peste infernal,
se espalhou pelo mundo, desde o seculo XVI,
jámais perdeu, digo, o espirito de alta socia
bilidade, que é a gloria da sua missão sobre
a terra, a sua força religiosa.

Alexandre, Marilia, qiial o rio,


Que engrossando no inverno tudo arrasa,
Na frente das oohortes
Cerca, vence, abrasa
As cidades mais fortes.
Foi na gloria das armas o primeiro;
Morreu na flôr dos annos, e já tinha
Vencido o mundo inteiro.

Mas este bom soldado, cujo nome


Não ha poder algum que não abata,
Foi, Marilia, sómente
Hum ditoso pirata,
Hum salteador valente.
Se não tem uma fama baixa, e escura,
Foi por se pôr ao lado da injustiça
A isolente ventura.
Affirmações 51

Assim falava o maior dos nossos arcades,


sacrificado depois pela justiça de Portugal, e
em toda a poesia brazileira de então para
cá, jámais se desmente esta nossa concepção
christã da vida.
'É a poesia quem mata, entre nós, a
escravidão, é ella, hoje em dia, aquelle sacra
rio de que falei, onde guardamos, intacta, a
sentimentalidade nativa, o nucleo de fé ardente
de que se irradia a força divina que nos pro
tege das aggressões do cosmopolitismo, que
vem rebaixando tudo na orbita do planeta.

*
* *

A figura de Olavo BiL;^ surge., em meio


de nossa anciedade poetica, como a mais
completa que, até hoje, temos tido, depois de
Castro Alves, se quizermos julgar os nossos
grandes poetas deste ponto de vista da nacio
nalidade que vae conquistando a consciencia
de si mesma e se impondo á historia do
mundo como pagina á parte.
Gonçalves Dias ou Alberto de Oliveira,
por exemplo, julgados do ponto de vista da
poesia em si, em nada são menores do que
Castro Alves ou Bilac. Elles, porém, apezar
do indianismo do primeiro, e do reflexo, que
ha na obra do segundo, da luz e dos encan
52 Affirmações

tos da nossa natureza, não são o que se


poderá chamar, propriamente, uma realização
do genio da grande raça historica que o
meio sul-americano vem modelando. Brazi-
leiros, ambos, não resta duvida, porque já
não podem ser confundidos com os poetas
lusitanos e ambos mais correctos que os dous
poetas em que vejo aquella realização, elles
não viram quebradas as linhas da sua intima
harmonia pelo surto de uma destas manifes
tações que limitam com o genio e são expres
sões de raça, caracteristica de povo.
Vêde Castro Alves: é a explosão de uma
idealidade tão desorientada quanto generosa.
A America não quer escravos: juntemos as
vozes de todos os ideaes de justiça que o
homem tem proclamado ás vozes gigantescas
da natureza, e que todas ellas — versos de
Victor Hugo, aguas de Paulo Affonso — cla
mem contra a escravidão no Brasil! É a
violencia, o desassombro de um sentimenta
lismo que não vê sequer razões utilitarias.
Vejamos Olavo Bilac: é o genio da plas
ticidade que já nos pertence integralmente.
Impõe-se aos nossos ouvidos, á nossa memo
ria, ao nosso coração, ao nosso espirito.
Não é mais a expressão camoneana nem
o vigor verbal que Junqueiro tomou de em
prestimo a V. Hugo, nem a lamurienta e
indecisa linguagem dos demais vates modernos
Affirmações 53

de Portugal. Não é tambem — porque é já a


harmonia de todas ellas — as vozes mais aspe
ras, porém mais eloquentes e mais claras dos
nossos maiores poetas contemporaneos. A sua
arte é já o que elle proprio disse da musica
brazileira — flôr amorosa de tres raças tristes
— elegancia, sobriedade, doçura, muita doçura,
sem que jámais desfalleça o enthusiasmo, a
força viva da alma que se impõe a outras
almas, porque dellas exprime, como se ellas
mesmas fosse, seja o ideal mais nobre, seja
a paixão mais pequenina. E é só por isso
que não foi surpresa para mim que Olavo
Bilac pudesse ser um dia o homem que fa
lasse a todo o Brazil, e por este se tivesse
feito comprehender e applaudir, de ideaes que
ha muito tempo tinham encontrado, no paiz,
interpretes, defensores e apostolos mais graves.

* •

Uma das provas de que se reflectia na


alma de Olavo Bilac a alma brazileira é a
melancolia que, sobre a sua obra, está, dos
versos mais sensuaes e brilhantes ás inquie
tações do seu vespertino crepusculo intellectual
— cortado de tão intimas afflicções — como a
figura angelica, mysteriosa, que a protegeu
sempre da sujeira realista e, emprestando-lhe
54 A.FFIRMAÇÕES

as azas de um tenue intellectualismo, poude


conserval-a, até o fim, entre os limpidos raios
de uma esthesia, se bem que sensual, como
todas o são mais ou menos, se bem que
ardentemente sensual, jámais de sensualidade
grosseira e repugnante.
O amor, o amor da mulher jámais pos
suida, foi, incontestavelmente, a nota mais
constante da sua psychologia e, tão triste,
tão formidavelmente triste, tão profundamente
dolorosa, que é quasi impossivel evitar o
romance na vida de Olavo Bilac, e a lenda
de que o Poeta foi um desgraçado sentimental
que arrastou até a sepultura a cruz de uma
grande paixão infeliz, ha de completar-se.
A verdade é que ainda eu vivia no Norte
e já ouvia sobre o seu caso passional duas
versões tão simples e verosimeis que impõem
a crença de um fundo qualquer de verdade
em que repouse uma dellas.
O que é preciso accentuar bem, diante
das accusações levianas que tem soffrido a
obra de Olavo Bilac, é que, mesmo naquella
Via Lactea da sua mocidade, em que o Poeta
apparecia com a palavra facil e o facil
enthusiasmo de um elegante e quasi mephis-
tophelico trovador para mocinhas enamoradas,
ainda alli, á lyra excellente não faltava a
nota grave e melancolica, ferindo, no seu
ardor juvenil, o ouvido dos astros, a alma
Affirmações 55

profunda do céo mysterioso, onde parecia


descançar esse grande amor, de cujo alonga
mento, de cuja renuncia e infelicidade elle
mesmo, o Poeta, disse, quasi no fim da vida,
que foi como «uma porta de ouro para a
gloria». Logo, no portal da Via Lactea, appa-
rece a mulher mysteriosa que a sua paixão
quasi divinizara.

«E, ó meu amor! eu te buscava, quando


Vi que no alto surgias, calma e bella,
O olhar celeste para o meu baixando ...»

E depois, seguidamente, são as notas real


mente epicas da sua poesia, se assim se póde
dizer do heroismo de uma paixão que cresce
no soffrimento, domina a distancia, domina o
tempo, esquece o fél de cada dia vivido e
vive no firme desejo de refazer no futuro as
horas dolorosas da mesma saudade.
Os exemplos são as maravilhas mais vivas
de seu lyrismo, as mais humanas de toda a
poesia brazileira, dignas de figurarem entre as
mais famosas da poesia moderna.
Recordemos algumas.
É aqui a magua de sua fraqueza ante o
o peccado:
Viver não pude sem que o fél provasse
Desse outro amor que nos perverte e engana;
Porque homem sou, e homem não ha que passe
Virgem de todo pela vida humana.
56 Affirmações

Porque tanta serpente atra e profana


Dentro d'ahna deixei que se aninhasse
Porque, abrasado de uma sêde insana
A impuros labios entreguei a face?

Depois dos labios soffregos e ardentes


Senti — duro castigo aos meus desejos
O gume fino de perversos dentes.. . .

E não posso das faces polluidas


Apagar os vestigios desses beijos
E os sangrentos signaes dessas feridas.

Agora esta pagina de saudade, em que


por entre as pompas da vaidade satisfeita
soluçam o seu grande desencanto e a sua .
derrota:

Inda hoje, o livro do passado abrindo,


Lembro-as, e punge-me a lembrança delias;
Lembro-as, e vejo-as, como as vi partindo
Estas cantando, soluçando aquellas.

Umas, de meigo olhar piedoso e lindo


Sob as rosas de neve das capellas;
Outras, de Jabios de coral, sorrindo,
Desnudo o seio, lubricas e bel las . . .

Todas, formosas como tu, chegaram,


Partiram ... e, ao partir, dentro ejn meu seio
Todo o veneno da paixão deixaram.
Affirmações 57

Mas, oh! nenhuma teve o teu encanto,


Nem teve olhar como esse olhar, tão cheio
De luz tão viva, que abrasasse tanto!

Aqui, o poeta irmana ao tragico mutismo


da sua desillusão a natureza toda:

Por tanto tempo, desvairado e afflicto


Fitei naquella noite o firmamento,
Que inda hoje mesmo, quando acaso o fito,
Tudo aquillo me vem ao pensamento.

Sahi, no peito o derradeiro grito


Calcando, a custo, sem chorar, violento . . .
E o céo fulgia placido e infinito,
E havia um choro no rumor do ' vento . . .

Piedoso céo, que a minha dôr sentiste!


A aurea esphera da lua o occaso entrava,
Rompendo as leves nuvens transparentes;

E sobre mim, silenciosa e triste,


A via-lactea se desenrolava
Como um jorro de lagrimas ardentes.

Em «Carcere» o poeta arrasta os pesa


dos grilhões da eterna saudade; em outra
pagina adiante, sentindo-se quasi suffocado,
rebenta as cordas do coração para poder
gritar:
58 Affirmações

Ah! quem pôde saber de que outras vidas veio?...


Quantas vezes, fitando a Via-Lactea, creio
Todo o mysterio ver aberto ao meu olhar!
Tremo ... e cuido sentir dentro de mim pesar
Um'alma alheia, uma alma em minha alma escondida,
— O cadaver de alguem de quem carrego a vida . . .

E, ainda mais alto, ainda mais indomavel,


o mesmo grito de coração que, desta vez,
quebrantado pelo excesso mesmo da dôr,
acaba num soluço . . .

Se por vinte annos, nesta furna escura,


Deixei dormir a minha maldição,
— Hoje, velha e cançada de amargura,
Minh'alma se abrirá como um vulcão.

E, em torrentes de colera e loucura,


Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte annos de silencio e de tortura,
Vinte annos de agonia e solidão . . .

Maldita sejas pelo Ideal perdido!


Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!

Pelas horas vividas sem prazer!


Pela tristeza do que tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser! . . .

Dentro do mesmo circulo de paixão dolo


rosa poude Bilac cantar a gloria e a desven
Affirmações 59

tura de ser só, thema a que voltava, sob a


inspiração da sua propria solitaria existen
cia.
Quantas vezes não me deu Olavo Bilac,
passando por entre o sussurro de admiração
e os sorrisos da inveja e da maledicencia,
a exacta impressão daquelle modo de sentir
de Descartes!...
Passeava entre os homens como quem
passeia entre arvores . . . Arvores ha que dão
sombra, mas quantas offerecem o espinho em
troca de um gesto carinhoso!...
As suas evocações surgem como ondas
de um immenso deserto — Marco Antonio,
ainda forte, mas sem mais o ardor com que
poderia refazer-se ante a gloria, adormece na
sua tenda quasi imperial, como o viajor vaga
bundo, sonhando o perdido amor . . . Tapir era
o ultimo da raça de valentes . . . Fernão Dias
Paes Leme expira na solidão, imprimindo-lhe
o seu sonho maravilhoso . . . Depois, aos ver
sos de Pouchkine, dá Bilac uma tal força de
expressão que, sente-se bem, o Poeta viveu
aquella poesia, aquelles versos são seus, não
são a méra traducção de uma dôr alheia.
Na pagina violenta do Peccador explode o
mesmo soffrimento, numa outra forma de
revolta — sente-se quanto lhe pesa o erro —
tanto! que acaba por se lhe fazer uma especie
de gloria. E nem deixa, o Poeta de desenhar,
60 Affirmações

uma vez, a figura perfeita do ser maldito que


é o homem que se sente só.

Este, que um Deus cruel arremessou á vida


Marcando-o com o signal da sua maldição,
— Este desabrochou como a herva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida . . .


Sem constancia no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos máus, filhos da solidão.

Longos dias sem sol ! noites de eterno luto I


Alma céga, perdida á tôa no caminho!
Roto casco de náo, desprezado no mar!

E arvore, acabará sem nunca dar um fructo;


E homem ha de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!

Nos seus ultimos annos abrandara-se-lhe


no coração a grande chamma . . . Ainda assim
é ella a que se alteia* em « Samaritana » e
revive em « Beijo » e, mais formosa ainda e
ainda mais triste, no soneto « Prece », hymno
de voluptuoso amor á dôr antiga:

Durma, de tuas mãos nas palmas sacrosantas,


O meu remorso. Velho e pobre como Job,
Perdendo-te, a melhor de tantas posses, tantas,
Malsinado de Deus, perdi ... Tu foste a só !
Affirmações 61

Ao céo, por teu perdão, a minha alma, que encantas,


Suba, como por uma escada de Jacob,
Perdi-te . . . E eras a graça, alta entre as altas santas
A sombra, a força, o aroma, a luz. Tu foste a só!

Tu foste a só! Não valho a poeira que levantas,


Quando passas. Não valho a esmola do teu dó!
— Mas deixa-me chorar, beijando as tuas plantas.

Mas deixa-me clamar humilhado no pó:


Tu, que em misericordia as Madonas supplantas,
Acolhe a contricção do máu . . . Tu foste a só!

Quem já o leu uma vez, poderá jámais


esquecer aquelle trecho das memorias de Cha-
teaubriand sobre Charlote Ives?
Fala o grande «iniciador da melancolia
moderna» do que é o amor:

«... II ne manque à l'amour que la durée


pour être à la fois PEden avant la chute et
l'Hosanna sans fin. Faites que la beauté reste,
que la jeunesse demeure, que le coeur ne se
puisse lasser, et vous reproduirez le ciei.
L'amour est si bien la felicité souveraine qu'il
est poursuivi de la chimère d'être toujours;
il ne veut prononcer que des serments irré-
vocables; au défaut de ses joies, il cherche
a éterniser ses douleurs; ange tombé, il parle
encore le language qu'il parlait au séjour
incorruptible ».
62 Affirmações

Esta foi tambem a visão interior de Olavo


Bilac. Quem quer que tenha consciencia capaz
de reflectir quanto ha de grave e temeroso
nas idéas, nos sentimentos, apparentemente os
mais frageis, mas que fazem a razão de ser
de uma vida humana, não pode esquivar-se
a um gesto de respeito ante a actividade mys-
teriosa de um coração como o do nosso Poeta
que, dentre os frouxeis de tantos ninhos volu
ptuosos, teve sempre uma casta e amarissima
saudade do alto e ideal amor que a vida lhe
deixara antever e lhe negara. Se este amor
não existiu, de facto, na vida de Olavo Bilac,
não sei de caso mais singular de humana psy-
chologia que expresse mais vehementemente
quanto é poderosa a força configuradora da
Arte, isto é, como explica Chamberlain, este
conhecimento que se incorpora á consciencia
e se faz elemento vivo, «un état du sujet».

*
• *

Apprehendido um traço como este da


psychologia de Olavo Bilac, por mais que o
desmintam as linhas exteriores, tão modera
das, da sua poetica, que muita vez se acercou
da impassibilidade parnasiana, a verdade "é
que se descobre em quanto foi agitação e
soffrer, em que se debateu, a funda ferida
Affirmações 63

da sensibilidade romantica, a mais infernal


molestia que já feriu o coração do homem
moderno, isto é, desde que a peste da Reforma
o deixou enfraquecido, a braços com o indi
vidualismo.
Houve em Bilac o que Pierre Lasserre
chamaria « l'evahissement de i'âme tout entière
par la vie sensitive et spontanée».
« Sensualidade de idéas, métaphysica das
emoções, materialismo mystico, bestialidade
lyrica, emfim, a podridão romantica da intel-
ligencia», eis os traços principaes da obra
romantica, puramente romantica. « Cet horri-
ble mélange de choses — pergunta L. Las
serre — n'est-il pas toute la philosophie d'un
Quinet? d'un Pierre Leroux? Ils disent Réli-
gion, Humanité, Infini, et ils ne parlent que
de leur propre cceur. Et leur cceur, oú ils
veulent tout faire tenir, est un chaos ».
Não é, de todo, assim o caso de Olavo
Bilac. Alma realmente grande, e tendo cres
cido num meio mais puro, Bilac, se perso
nificou o mal estar que tambem nos invadiu
com o diluvio das meias idéas que apodre
ceram a Europa, e aqui, até certo ponto,
perturbaram a unidade formal de nosso cara
cter collectivo — unidade esta que devemos á
Igreja — o certo é que, reagindo a tempo
contra o seu proprio individualismo, elle veio,
pelo milagre do talento e energias desço
64 Affirmações

nhecidas de seu coração, a se fazer a perso


nificação dos novos sentimentos em que se
refaz a nação, nas suas camadas superiores.
O Caçador de esmeraldas, que fôra uma
nota quasi sem ligação á primeira parte da
sua obra, pode-se dizer que derrama o seu
augusto sonho de esperança, vencedor de
todas as amarguras presentes, pelas paginas
mais meditadas da Tarde.
Patria! é o ultimo grito de Olavo Bilac.
O romantico perde o sentimento de um
infinito humano que nada significa, senão na
ordem religiosa, para se fazer realmente
humano, buscando dar as tintas do amor ao
grande edificio de civilização que um Estado
novo quer ter de pé, obedecendo no seu par-
ticularismo ás razões divinas que mysteriosa-
mente orientam o homem na face do planeta.

Patria latejo em ti !
t«.r.l . . .
Vivo, choro em teu pranto, e, em teus dias felizes,
No alto, como uma flor, em ti, pompeio e exulto!
E eu, morto — sendo tu cheia de cicatrizes,

Tu golpeada e insultada — eu tremerei sepulto:


E os meus ossos no chão, como as tuas raizes,
Se torcerão de dôr, soffrendo o golpe, o insulto!

Já não tem Bilac preferencia por indio,


negro ou Portuguez, canta o que elle chamou
Affirmações 65

a « flôr amorosa de tres raças tristes », que


não é sómerrte a musica brazileira, mas a
nossa propria raça, a nossa cultura, tudo
quanto já se objectiva em obra de arte ou
pensamento da consciencia de que já somos
um povo a viver sobre si mesmo.
Elle sabia, porém, que não dizia a ultima
palavra que a Poesia ha de dizer no Brazil.

E ha na esperança, de que me commovo,


E na grita de duvidas, que escuto,
A incerteza e a alvorada do meu povo!

E até a satyra pode vibrar a lyra outr'ora


orgulhosa da sua elegante indifferença pelos
homens de que, sem o saber, traduzia a alma
inquieta, amorosa e brilhante, portadora de
todas as possibilidades ideaes que só a paixão
tem o poder de transformar em realidades.
Na sua intima lucta predominou, por fim,
o amor a que a razão esclarece, e a idéa
deixou de ser na sua obra o joguete infeliz,
de uma sensibilidade. Antes, esta passou a
deixar-se guiar por aquella.
Não teve Bilac a idéa nitida de que um
povo só se faz grande quando faz de si
mesmo uma idéa religiosa. Sentiu, nos seus
ultimos dias, que um reflexo lhe agitava a
alma, de alguma grande luz que nascia em
nossos horizontes espirituaes. Mas só viu o
66 Affirmações

crepusculo matutino, nem poude oomprehender


que, ainda desconhecida, e já era forte essa
luz na alma do nosso povo— o mais generoso,
o mais naturalmente christão que já existiu.
Todavia, cantou Bilac o que ainda poude ver
da paisagem que principiava a offerecer á luz
gloriosa o seu vasto seio, thesouro de infi
nita riqueza.
Outras objectivações teve a poesia de
Bilac, maximé no seu ultimo livro, mas todas
ellas expressam o que elle proprio chamou
a incerteza e a alvorada de seu povo.
Uma grita de duvidas echoava no seu
coração, e Bilac seguia talvez o caminho mais
curto para a fé. Não a alcançou, porém, e
é verdade que jámais teve um pensamento
original, jámais revelou uma comprehensão
menos futil desta ordem, a mais elevada da
vida. Não se elevou da fé patriotica á fé em
Deus, á verdadeira fé. Velhissimos logares
communs disse-os de modo brilhante e se
sente no que deixou de melhor nestes domi
nios a influencia directa, mas tardia, de An-
thero de Quental, influencia facilmente appre-
hensivel, tão diversas eram as naturezas dos
dous poetas. Eis porque Bilac foi, de facto,
inferior todas as vezes que, não exprimindo o
sentir do povo que o impellia, quiz pensar
alguma cousa por si, sem ter a base de cul
tura necessaria a indagações daquella ordem.
Affirmações 67

Mais feliz foi sempre em face ás idéas


propriamente inspiradoras da poesia roman
tica e exemplos nos deu realmente admiraveis.
O soneto «Perfeição» é um dos mais bellos.
Olavo Bilac não foi, em verdade, um
pensador.
Não teve mesmo, como Schiller, a idéa
de que o homem só é capaz de possuir a
suprema verdade sob a forma de Belleza,
mas deste grande erro sentiu intimamente
quanto elle contém de verdadeira verdade.
Por isso foi a mais alta personalidade
da nossa cultura plastica, no que respeita á
lingua nacional, á lingua brazileira. Reflectiu,
como artista que era, da nossa inquietação
presente a bravura das nossas paixões, a
delicadeza de todas ellas e a luminosa bon
dade que nos favorece, até nas crises sociaes
mais perigosas. E a sua gloria ultima foi
tambem a de reflectir com extranha intensi
dade a nossa paixão nascente ; o desejo de
sermos fortes, de sermos realmente fortes —
isto é, de possuirmos a força para exercicio
da nossa immensa generosidade.
Não quiz fazer critica á obra de Olavo
Bilac e muito menos á sua vida quotidiana.
Anecdotas jámais poderão amesquinhar, po
rém, a vida de um homem verdadeiramente
nobre em tudo quanto realizou em face de
uma nação.
68 Affirmações

Sorprehendeu-tne ver que muitos bravos


espiritos emprehendessem diminuir o enthu-
siasmo da nossa mocidade pelo seu grande
poeta, apresentando-o como um bohemio ou
um feliz caçador de applausos.
Entristece uma campanha como esta, mas
não chega a provocar revolta, pois a nação,
queiram ou não os inimigos de Bilac, já tem,
ha de ter sempre uma idéa verdadeira do que
elle foi: um poeta comprehendido, sentindo
por todos os seus concidadãos e que, por isto
mesmo, quando um dia lhes falou dos seus
deveres, dos deveres de cada um para com
todos, dos deveres de todos para com a idéa
da grande Patria que se vae fazendo clara e
gloriosa, foi tambem comprehendido e sentido.
Não sou o que Machado de Assis cha
mava um professor de melancolia e tenho em
horror os que o são, dado que elles defor
mam com artificio aquella que, naturalmente,
é nossa e não condemno.
Quanta tristeza se encontre em obra sin
cera só significa força.
Ha tristeza na obra de Olavo Bilac, ha
tristeza em nossa vida presente? É sincera?
Pois ficae certos que ella representa a força
com que batemos ás portas do futuro.
E Deus de justiça ha de abril-as de par
em par ás gerações que ahi vêm.
ATRAVEZ DA OBRA DE
AFRÂNIO PEIXOTO

Afranio Peixoto foi durante muito tempo


para mim uma especie de fascinação contra-
dictoria: tive-lhe sympathia porque, graças a
Deus, sympathizo com todo esforço intellectual
legitimo; olhei-o com desconfiança por diver
sos motivos. Um destes foi a lenda que o
apresentava como detractor de Farias Brito.
Desfel-a Mario de Alencar deante de mim
e a Farias Brito mostrei a sem razão de
qualquer queixa. Mostrei devéras, não com
insinuações que só vingam quando são más,
e o que é certo é que a Afranio offereceu
Farias Brito um exemplar de seu ultimo livro
e de Afranio recebeu palavras de carinho e
admiração.
O trecho em que Afranio Peixoto, no seu
70 Affirmações

discurso de recepção na Academia de Letras,


se refere ao concurso de logica ein que, no
Gymnasio Pedro II, foram contendores Farias
Brito — victorioso — e Euclydes da Cunha —
vencido — é o seguinte :

« Tentou — fala de Euclydes da Cunha —


tentou o magisterio concorrendo a uma cadeira
de logica no Gymnasio Nacional: vieram-lhe
então no encalço todas as mediocridades que
elle tinha o dom perigoso de açular. Pare
cia não haver logar para elle, onde tanta
gente andava indevidamente. Comtudo, e isso
é digno de ser assignalado, ao contrario, do
que seria de esperar, véio-lhe a justiça da
escolha»

Se acaso fôra meu o elogio a Euclydes


da Cunha, nem seria preciso logar em que
o louvor fosse obrigatorio, para que tivesse
sido muito mais enthusiastico, menos vacil-
lante, do que foi o de Afranio Peixoto, no
momento em que tomava posse da cadeira da
Academia, que pertencera ao autor d' Os Ser
tões. Assim, falo com absoluta insuspeição.
Admiro Euclydes da Cunha como admiro o
Brazil — semi-barbaro e gigantesco, rude nas
suas linhas geraes, mas brilhante, deslumbra

(s Afranio Peixoto — A poeira da estrada — 24.


Affirmações 71

dor, ás vezes, a este sol glorioso da America.


A verdade, porém, é que só a paixão do mo
mento poderia levar Afranio Peixoto á affir-
mação infundada de que fôra obra de justiça
a que dera a Euclydes da Cunha as palmas
da victoria . . . conquistada por Farias Brito,
ante os que ajuisaram do pleito, ali, onde o
autor da Finalidade do Mundo se apresentara
quasi desconhecido de todos, vindo do extremo
norte da Republica, pobre, tendo feito o sacri
ficio de quasi tudo quanto possuia, e, ousando
dar tal passo, sem contar, ao menos, com o
mais leve bafejo de protecção official.
Bem sabe Afranio Peixoto que este não
era, de modo algum, o caso de Euclydes da
Cunha, pois, alem de ser no Rio, o escriptor
victorioso que era, se alguem teve alli, naquelle
encontro memoravel, alem do talento e da
cultura, forças outras que combatessem a seu
favor, foi, diga-se verdade, foi o autor d' Os
Sertões, e só estas lhe valeram bem mais,
por fim, do que a Farias Brito o esforço com
que venceu todas as desconfianças, todas as
más vontades, todas as difficuldades do grande
meio intellectúal que ousava olhar de frente,
pela primeira vez.
Até ahi a injustiça practicada por Afranio
Peixoto.
Entre esta, porem, e a de ter collocado
Farias Brito entre as mediocridades que sahi
72 Affirmações

ram no encalço de quem, como Euclydes,


tinha o dom perigoso de açulal-as, vae grande
differença, e só o animo prevenido poderia
emprestar tal extensão a uma phrase que só
peccou, de facto, pelo vago da generalização.
Mas é evidente que Afranio Peixoto não
poderia esperar uma tal interpretação da parte
de um publico que fôra presente a todas as
peripecias daquella lucta, pois é sabido que
Farias Brito e Euclydes da Cunha mantive
ram, até o fim, as mesmas cordeaes relações
do primeiro momento, e sabido tambem que
os mesmos foram os detractores de ambos,
quando a lucta sahiu do terreno proprio para
o da imprensa.
Fosse como fosse, porém, durante muito
tempo, o amigo que fui de Farias Brito e
tenho fé em Deus que serei de sua memoria,
recebeu de bôa fé a insidia e suffocou a viva
sympathia que me inspirava Afranio Peixoto.
Erro perdoavel, como perdoavel seria mesmo
o de Afranio Peixoto se a injustiça para com
o espirito genial e infeliz de Farias Brito
tivesse tido de sua parte a extensão que já
se lhe quiz dar.
Quem lhe sacudiria a primeira pedra? Eu
proprio vi Farias Brito commetter injustiça
não pequena . . . elle que teve alguma cousa
de santo a irradiar-lhe continuamente do cora
ção. Não a applaudi tambem. Condemnei-a
Affirmações 73

mesmo, mas oondemnei-a como quem sabe


que até a Revelação que a Deus approuve dar
de si mesmo é obscura e difficil aos nossos
olhos mortaes. Que se dirá do que vem do
coração do homem?


• •

Da leitura meditada que tenho feito de


quasi tudo quanto tem publicado Afranio Pei
xoto e até de uma convivencia levada sempre
a extremos de franqueza, pela finura de seu
tacto, pela minha natural rudez, julgo que
tenho da sua intelligencia aquelle conheci
mento que dá direito a um juizo, senão
verdadeiramente verdadeiro, pelo menos tão
verdadeiro quanto o que um homem sincero
pode fazer de outro homem.
Cousa singular, entretanto, é que o que
me encanta ao emprehender dar este juizo
publicamente, entre contemporaneos, por con
seguinte, entre gente suspeita e suspeitosa, é,
justamente, repetir-se entre o seu e o meu
espirito, se bem agora um pouco modificado,
o phenomeno da fascinação que é, por um
lado, pura admiração pelo artista, que elle é,
por outro, sem deixar de haver tambem admi
ração, uma quasi absoluta discordancia de
idéas e sentimentos, em relação a quasi todos
74 AffirMações

os problemas da vida em geral, e, sobretudo,


em relação ao Brazil. Somos, deante das
questões mais graves que atormentam a nacio
nalidade brazileira, dois julgadores — elle, de
alto renome — eu, humilde e desautorizado —
dois julgadores, digo, que, amando-se talvez
porque sejam tão differentes, se atormentam
naquelle mundo de ideaes e doutrinas a que
. cada um de nós, como tantos outros, leva
muito das melhores forças de seu espirito, no
desejo de concorrer com um pouco de bem
para o futuro do Brazil e, por conseguinte,
queira ou não o « metequismo » nacional, para
o futuro do mundo.


• •

Alguem poderá notar, entretanto, que é


Afranio Peixoto creatura em quem será diffi-
cil encontrar opiniões extremadas a tal ponto
que assim se chocassem com as duras arestas
de um espirito como o meu, absolutamente
arregimentado numa escola de opiniões cimen
tadas em dogmas de fé.
Direi, porem, que é justamente aquella
feição amoravel de seu espirito, aquelle blan-
dicioso meio termo em que se compraz, era
face da vida, o que mais nos distancia nos
dominios do pensamento.
Affirmações 75

Quando sondo a desordem que vae por


este mundo, penso, ás vezes, que o não está,
de facto, no terreno das idéas, mais proximo
do sim, do que aquelle termo medio em que
a sophistica genial do pantheismo moderno
baseou toda uma logica digna de si mesma.
Assim, do que pude saber por noticias espar
sas de imprensa, nada mais triste a meu vêr
— máu grado o sorriso e a gentileza da pala
vra — nada mais triste que a attitude franca
mente pragmatista adoptada por Afranio
Peixoto no Curso de Religião de que se
encarregou na Faculdade de Philosophia e
Letras, no decorrer de 1919.
O pragmatismo teve isto de util, em certo
momento da vidà dos povos occidentaes. Foi
um movimento da « elite » intellectual que logo
se impoz á attenção de todos, porque tivesse
conseguido mostrar as falhas do ingenuo mate
rialismo que tudo queria dominar, em nome
da sciencia. Dizem os pragmatistas: não deve
mos desprezar nada do que é o homem e na
«totalidade humana» a religião é força a que
se não pode negar papel importante. Já Berg-
son, o metaphysico do pragmatismo, atrelou
o seu pensamento, pelo menos de um modo
geral, ás formas tradicionaes da philosophia,
e o pragmatismo poude merecer, como mere
ceu, a sympathia de alguns pensadores catho-
licos. No Brazil, porem, não precisavamos
76 Affirmações

nós desta philosophia de transição. Entre nós


nunca o materialismo tivera victoria de monta,
a não ser no reduzido circulo dos chamados
homens de sciencia, incapazes de philosophar
e sem influencia sobre a massa popular.
Este materialismo dos homens de sciencia
sempre foi o menos prejudicial, porque não
impede a actividade util e tem a ingenuidade
da fé. Contra as correntes mais largas do
agnosticismo que pareciam querer dominar a
nossa vida intellectual, surgira, como violenta
expressão da nossa revolta, a obra de Farias
Brito, já de um ponto de vista muito mais
alto que o de Bergson proclamando o valor
da metaphysica, reivindicando o espirito e o
testemunho da consciencia rio conjuncto das
forças universaes.
Ora, não é o pragmatismo mais do que
uma pequena victoria do individualismo sobre
si mesmo e, se a sua base é individualismo,
é claro que lhe escapa o verdadeiro sentido
da religião.
Em verdade, não poderá nunca a religião
ser analysada ou historiada por quem encare
o dado religioso como um dos muitos de que
se compõe a vida humana, no seu aspecto
social.
É ella o laço espiritual entre o homem
e tudo o mais que não seja o homem, é ella
a origem da vida moral, o que quer dizer
Affirmações 77

a razão de ser da nossa actividade — a base,


o fundo noumenico — digamos assim — da
nossa vida, em face do qual, tudo o mais,
desta mesma vida, é phenomeno.
Mais triste é vêr, porem, que uma alma
tão viva como a de Afranio Peixoto, apezar
do bom orvalho de luz que lhe veiu da idéa
— força do pragmatista, em que, pelo menos,
se salva o sentimento religioso — ainda hoje
se deixe dominar pela seccura do falso philo-
sophismo que forjou com successo, durante
tanto tempo, as mais variadas historias da
religião, com tanta segurança, em taes domi
nios, onde não é possivel a experimentação,
quanto em outros em que, com esta, andou
dialogando, com bathibius e pitecanthropus.
A idéa, por excellencia, do pragmatismo
é, como disse, a do aproveitamento utilitario
de todas as nossas energias sentimentaes e
intellectuaes, e Afranio della não se desviou
porque désse da religião esta ou aquella
explicação. O pragmatismo é uma especie de
corredor de hotel que dá sahida a todas as
doutrinas, disse o proprio James . . . excepto,
já se vê, á doutrina catholica. O que admira
é que Afranio nem no convivio de uma tal
idéa sentisse reflorir em sua alma o senti
mento religioso. Porque este, mesmo na mais
individualista das suas formas, lhe escapa, e
eis porque não lhe repugnam companhias real
78 Affirmações

mente indignas da sua intelligencia. O arido


pedantismo judaico de um Salomon Reinach,
por exemplo, em que a má fé se casa tão
bem á curteza de espirito, e certos criticoides
modernos, incapazes de dar um só passo, em
taes dominios, que não caiam, immediatamente,
envolvidos nos erros mais grosseiros, jámais
poderá aguçar o senso critico de quem queira
entrar essas regiões mysteriosas de nossa
historia sobre o planeta.
Porque é preciso dizer com franqueza que
não são alli essenciaesos cotejamentos de datas
e comparações quasi sempre felizes, graças
ás sombras de que a magestade solemne da
ignorancia, que se rotula de liberdade scien-
tifica, ousà toucar as questões mais simples
e mais claras.
Ninguem póde imaginar maior absurdo
que o com que se apresentam taes espiritos
no scenario das luctas religiosas. Declarados
inimigos da metaphysica, por conseguinte da
logica, fazendo alguns até gloria desta con
fissão, não se comprehende como ousem
enfrentar problemas de tal transcendencia,
como os da religião, os quaes envolvem a
natureza metaphysica do homem e ainda sup-
põem mais dilatados dominios á personalidade
humana. No circulo em que se move esta
mesma personalidade ousam negar os mys-
terios religiosos, com a só autoridade das
Affirmações 79

suas convicções, estas, ninguem sabe bem


baseadas em que, dado que toda especie de
mysterio tambem as punje e maltrata, mesmo
no terreno puramente scientifico, da melhor
e mais acatada sciencia, materialista ou não.
Falem por mim os proprios sabios.
Eis aqui a palavra de um crente; mas
é Pasteur quem fala:

« Que existe alem desta abobada estrel-


lada? Novos ceus estrellados. Seja! E alem?
O espirito humano impellido por uma força
invencivel, não deixará de perguntar: Que ha
para alem? Quer elle parar no espaço ou no
tempo? Como o ponto em que pára é sempre
uma grandeza finita, somente maior do que
todas as precedentes, mal começa a observal-a,
logo volta a implacavel questão e sempre, sem
lhe ser possivel fazer calar o grito de sua
curiosidade. De nada vale responder: para
alem ha espaços, tempos, grandezas sem
limites. Ninguem comprehenderá taes palavras.
Aquelle que proclama a existencia do infinito
— e ninguem pode escapar a isso — accumula
nesta affirmação mais sobrenatural do que o que
existe nos milagres de todas as religiões; por
que a noção de infinito tem este duplo cara
cter: impõe-se e é incomprehensivel. Quando
esta noção se apodera do entendimento, não
ha remedio senão prostrar-se ».
80 Affirmações

Fale agora o mais endurecido dos mate


rialistas—ouçamos Virchow:

« Ninguem conhece — diz elle — um unico


facto positivo que prove que uma massa inor
ganica mesmo da Sociedade Carbonio & Cia.
se tenha transformado em massa organica.
Portanto, se não quero crer que houve um
creador especial, dèvo recorrer á geração
espontanea; isto é evidente: tertium non datar.
Quando se diz: — Não admitto a creação e
quero uma explicação da origem da vida —
apresenta-se uma these; mas com vontade ou
sem ella é preciso chegar á segunda: ergo,
admitto a geração espontanea. Mas desta não
temos prova alguma; ninguem viu uma pro-
ducção espontanea de materia organica; não
são os theologos, mas os sabios que a regei-
tam. E' preciso optar entre a geração espon
tanea e a creação; a falar com franqueza,
nós, os sabios (materialistas) deviamos ter uma
pequena preferencia pela geração espontanea.
Ah! se apparecesse alguma demonstração...
Mas a mim parece-me que temos de esperar
muito tempo . . . com o Bathybius mais uma
vez desappareceu a esperança de uma demons
tração»

í1) V. Apologia Scientifica de Senderens — trad.


port. 106-151.
Affirmações 81

Ora, é a religião condição da Igreja, isto


é, da communidade que se julga ao mesmo
tempo terrestre e divina, mundana e sobre
natural í1). Alli se adora o mysterio e tam^
bem pelo amor se quer penetral-o. Por isto
jamais o mysterio poderá deprimir o verda
deiro crente, e à religião jámais negará o que
mais existe, como faz tantas vezes a sciencia,
que assim se nega a si mesma.
Como fazer historia da religião se não
se possue sentimento religioso que, unico,
poderia esclarecer a propria razão entre as
difficuldades com que se ha de deparar, por
força? Em terreno bem mais facil de ser abor
dado, que historia faria de qualquer arte em
geral, um individuo desprovido de sentimento
artistico ?
E ainda que se ouse tentativa desta ordem,
como fazel-a relativamente autorizada quando,
com a só ajuda da razão, não se fez estudo
serio das formas exteriores communs a todas
as religiões, e a analyse aprofundada da base
logica ou philosophica em que repousam os
dogmas? (2)

(1) Alzog — Hist. da Igreja I-2 — trad. port.


(í) Não se faz mister mais do que relembrar
aqui que, sendo, como sou, catholico, acceito a expli
cação que dá a philosophia da Igreja da existencia de
outras religiões, que não só a verdadeira, e, nellas,
de muitos pontos de fé semelhantes ou quasi identicos
6
82 Affirmações

Pode-se dizer que o homem é o ente


essencialmente historico (1) porque é o ente
essencialmente religioso — isto é — um ser com
finalidade moral, e foi por isto que J. de
Muller « reconheceu, depois de muitos esfor
ços, que só o Evangelho podia dar o fio
conductor para o estudo da historia uni
versal » (2^ .

aos do Mosaismo, que a revelação de Jesus Christo


inundou de nova luz. A não ser nos cinemas, ou
romances de datas fabulosas sobre a antiguidade do
homem, vão passando de moda, e a Biblia, novamente,
vae sendo tida pelo documento de mais valor desta
mesma antiguidade. E é assim apezar de, na propria
Igreja, desde Sto. Agostinho, reconhecer-se que ha
nella signaes de recomposições artificiaes e systema-
ticas (V. Apologia Scientifica de Senderens — 307) e
negar-se o valor e até a existencia da chronologia
biblica (obr. cit. cap. XIX). O ponto de vista em
que se colloca o verdadeiro catholico é o seguinte:
« O judaismo preparava a humanidade de um modo
directo e positivo para a vinda do Messias; o paga
nismo fazia o mesmo de modo indirecto e negativo.
Este havia chegado, no imperio romano, ao apogeo
de seu desenvolvimento interior e exterior » (H. Bruck
— Manuel de VHistorie de VEglise 1-21 — trad. franc.) .
(1) Alzog— Obr. cit. I — 6.
(2) Alzog — Obr. cit. I — 6.
Affirmações 83

Esta a unidade interior que a historia


universal requer, e cuja necessidade já Polybio
proclamava. Tire-se á historia, principalmente
á historia da religião esta elevada idéa do
plano divino, a que o homem está enquadrado
'— o homem, ser livre, capaz de a si proprio
determinar-se, e tudo o mais que se fizer
será romance fantasista com maior ou menor
numero de personagens (+).
Afranio Peixoto neste seu curso fez o que
fazem todos os sociologos sem fé: deu mostras
de conhecer todas as tentativas de explicação
do phenomeno religioso — de Stacio ou Petro-
\iio a Spencer ou Durckeim e, por fim, lá
deixou escorregar tambem uma applicação sua
da doutrina dos tropismos . . .
Das explicações que a religião dá de si
mesma, de como nasceu, nada. Mesmo porque,
se entrasse tal circulo, de duas, uma: ou teria
que mostrar conhecimento seguro da dogma
tica de todas as religiões, ou teria que lhe
negar valor em relação á vida mental do
homem religioso, o que implicaria, é claro,
a sua propria vida moral. Ora, não é a pri
meira daquellas obrigações materia facil de

(4) Já Cicero assim entendia: «As idéas funda-


mentaes derivam de uma Lei suprema anterior aos
Codigos e ás Cidades,, e destinada a todos os seculos »
V. Hisí. des croyances I — pag. I.
84 Affirmações

ser resolvida, sem grande saber da vida inte


rior das religiões, no que ella tem de maia
mysterioso e é, a cada hora, motivo de
espanto, e até de dilaceramento para todos
os que ousam aprofundar os enigmas de que
se reveste o porque de nossa singular attitude
em face do universo. Tambem o que Afranio
desejou, e. pensa ter conseguido, foi não ferir
nenhum dos crentes que o ouviram, maximé
áquelles do culto a que o ligam1 tantos laços
de coração e o que ha de mais delicado na sua
esthesia.
Julgou-se Afranio capaz de imparcialidade
e como garantia desta procurou demonstrar
que entre sciencia e religião não ha antago
nismo, sendo ambas methodos de sensação e
oomprehensão do mundo: uma partindo do
relativo para o absoluto, outra vindo do
absoluto para o relativo.
Não viu Afranio Peixoto, porém, que já
nesta definição lançava duro remoque áquella
das duas que se dá como fundada na Reve
lação, e a quem repugna a idéa de methodo,
isto é, de perfectibilidade alcançada corn
esforço puramente humano.
Sem o querer reponta em tal definição o
materialista . . . Eis a verdade.
Imparcialidade a estas alturas é, de facto,
impossivel e isto mesmo teve que confessar
Strauss que, a principio, tão longe levou a
Affirmações 85

pretensão de possuil-a. « Não ha ninguem


completamente imparcial — diz com razão
Hettinger (') — especialmente numa questão
que domina e envolve o homem inteiro, rege
e forma todos os seus pensamentos, dá usna
direcção a toda a sua existencia e para toda
a vida é de importancia maxima, como nenhum
outro assumpto ».
Demais força é confessar que quem ousa
vestir a vida da formula geral — evolução
- é tambem um hierarchizador da mesma vida.
Fossem dois methodos a religião e a sciencia, e a
um delles — é evidente — caberia legitima supe
rioridade. O que é verdade porém, é que nos
dominios bem mais vastos da religião, cabe
a sciencia, que lhe é subordinada, cabe aquillo
que era para Farias Brito, por exemplo, toda
a religião, isto é, o governo mais natural a
que o homem se deve sujeitar — pois ahi não
se comprehende senão um dos caracteristicos
da religião, uma das suas manifestações obje
ctivas — cabem todas as formas da vida social
que lhe reflectem a luz vinda do alto.
Para affirmar o contrario seria mister de
monstrar o illogismo da Revelação e isto é
difficil.
De que os homens não foram crescendo

(!) Hettinger — Apologia do Christianismo —


trad. port. I — 27.
86 Affirmações

em religiosidade até á organisação dos grandes


systemas religiosos que dominam ou fazem
a historia do mundo, ainda não é preciso
accrescentar mais provas ás seis formuladas
pelo velho Bergier, principalmente ás 3.a, 4.»
e 5.a, todas resumidas neste simples raciocinio:
«A historia nos ensina que o homem não foi,
primitivamente, tão estupido, nem, posterior
mente tão illustrado, como o suppõem os phi-
losophos. Accrescentemos que se o genero hu
mano houvera sido creado no estado de bru
talidade e barbarie, em que se acharam alguns
individuos por espaço de muitos seculos, nelle
houvera continuado, e talvez, na actualidade,
ainda assim se achasse. Para saber o que ha
de certo sobre este ponto, recorremos á his
toria, aos monumentos, ás tradições populares,
e não a raciocinios e conjecturas» (*). Siga-
se-lhe o methodo a tal altura e ver-se-á, em
toda a parte, que os testemunhos da passagem
de um homem mais perfeito, de que todos
nós somos filhos decahidos, em maior ou
menor gráu de miseria, são patentes, obri
gando já a que meditassem sobre tão fortes
indicios sabios como Martius e Humboldt, phi-
losophos como Renouvier, Secretan, Farias
Brito (*).

(!) Bergier — Tratado historico y dogmatico de


la verdadeira religion — 1 — 6 trad. hesp.
(2) As palavras de Humboldt são tão eloquentes
AfpUmações 87

Não comprehendeu Afranio Peixoto que,


sobre a movediça base pragmatista, em que
os principios são mesmo negações mais ou
menos disfarçadas de todos os principios, não
cimentada por conseguinte uma tal base com

que devo aqui registral-as: «Estas antiquissimas tra


dições do genero humano — diz elle — que encontra
mos espalhadas, semelhantes aos restos de um grande
naufragio em toda a superficie da terra, inspiram o
maior interesse ao philosophico investigador da historia
da humanidade: em toda a parte apresentam a forma
e caracteres de semelhança, que nos excitam á admi
ração, as tradições cosmogonicas de todos os povos.
Assim numerosas linguas que parecem pertencer
a ramos isolados e distinctos da familia humana, nos
transmittem os mesmos factos. A essencia dos aconte
cimentos sobre as gerações extinctas e o renovamento
da natureza não soffrem alteração; mas cada um dos
povos lhe transmitte o seu colorido particular. Quer
nos grandes continentes, quer nas pequenas ilhas do
Oceano Pacifico existe sempre um monte mais ele
vado, onde se refugiaram' os restos do genero humano,
que poderam escapar á catastrophe. Quem estuda atten-
tamente as antiguidades mexicanas dos tempos que
precederam o descobrimento do mundo novo, e co
nhece o interior das florestas do Orenoco, a pequenez
e disseminação dos estabelecimentos europeus em rela
ção com as tribus indigenas independentes, mal póde
attribuir as notadas semelhanças á influencia dos mis
sionarios, e do Christianismo ás tradições nacionaes ».
O proprio Kant, a seu modo, explicou o estado
actual do homem: « Uma propensão corrompida ger
minou no homem ; é inutil dar disto uma demonstração
88 Affirm*ções

a forte liga de uma logica sem descontinui


dade, todo pensamento, mesmo o bom, em
qualquer ordem em que fructifique, é fructo
malsão, incapaz de alimentar aquelles a que
se destina.

formal, já que uma multidão infinda de exemplos


frisantes está patente a nossos olhos pela experiencia
e pelos factos dos homens » — V. Hettinger — Apo
logia do Christianismo — III — 232 e 22, v.
Desta critica historica, chamada scientifica, a que
se filia Afranio Peixoto, disse bem Dõllinger: «Uns
deixar-se-ão conduzir com intima satisfação pelos
escriptores que atrapalham as memorias do passado,
lisongeiam ao demonio malicioso sempre de embos
cada ao peito do homem, attribuindo aos factos mais
grandiosos motivos impuros e causas ridiculas, e espe
cialmente envolvem as questões religiosas por meio
de voluntaria alteração dos factos, com imagens arbi
trarias e a exhibição do que é universal e humano.
Outros pelo inverso, por virtude do seu sentimento
profundamente moral e amor da verdade demonstrada,
recusam sua fé e confiança a taes historiadores, com
acertado dom de adivinhação; e onde mesmo lhes não
seja dado reconhecer as origens, presentirão estas
indignas traças, e penetrarão muitas vezes a verdade,
ou, pelo menos se approximarão delia através da
nuvem d'uma artificiosa alteração. A exposição que
havemos feito nos conduz á conclusão que todos os
conhecimentos teem o seu fundamento na moral, ou
no dominio da moral; se isto assim não fôra os
homens de talento e os sabios levariam grande vanta
gem aos pobres e illustrados até no conhecimento do
bem e do mal. Mas não é assim por uma justa e
AfFIRMAÇÕES 89

No seu caso as adivinhações da arte são


como um contraveneno ao scepticismo que se
assenhoreou de sua alma — uma das mais vivas
que tenho conhecido — com encantos realmente
poderosos.
Mas até onde a arte póde amparar um
espirito, uma consciencia?
É o que veremos, após a analyse da acção
deste mesmo espirito, quando, armado de
outras forças, tem procurado sorprehender a
realidade e reduzil-a a pensamento, a ver
dades, que teem tambem a sua belleza. A
Platão ou a Plotino ha quem attribua a de
finição, senão verdadeira, pelo menos, for
mosa, de que o bello é o esplendor da ver
dade. O artista que sempre foi e é Afranio
Peixoto não regeitou encontrar em outros do
mínios, que não os da pura esthesia, a ver-

sabia lei, que o homem não pode metter na sua


cabeça aquillo que o seu coração não sabe: e quando
o homem obdura a sua vontade, tambem contra a
vontade se obdura a sua intelligencia » (V. Hettinger
— Obr. cit. I — 27, 8) . A taes palavras poude accres-
centar estas outras do proprio Hettinger: «Porque
o homem nada comprehende, quando pretende saber
tudo e até o que é impossivel saber-se e quando o
sobrenatural lhe foge á percepção desespera e des-
anima-se facilmente até de conseguir conhecer aquillo
que está nos limites da sua esphera intellectual » Obr.
cit., 1 — 43.
90 Affirmações

dadeira belleza — e se fez homem de scien-


cia.
Será esta a explicação mais fiel do seu
enorme labor no nosso scenario scientifico?
Póde ser e eu o affirmaria, não fosse o temor
de susceptibilidades que não são só fraqueza
de artistas, mas tambem de grammaticos e
até de sabios.
O facto é que Afranio Peixoto é tambem
autoridade, entre nós, em diversas ordens do
conhecimento scientifico, e dado o seu sce-
pticismo — de origem, aliás, puramente scien-
tifica, e, por conseguinte, a meu ver, dada a
falha que lhe é propria de principios capazes
de lhe fornecerem uma firme orientação, em
meio de tantos e tão complexos problemas,
sigamol-o através o labyrintho das idéas.

II

Afranio Peixoto, ao entrar o templo das


letras, já vem armado cavalleiro e é com
os dêdos de ferro da sciencia que lhe bate ás
portas de oiro.
De facto, seu nome apparece, pela pri
meira vez, chamando a attenção geral, sobre
a capa de uma thése de doutoramento, mas
Affirmações 91

esta que lhe sahe das mãos para o julga


mento dos mestres, não é — vê-se logo — o
agrupamento ridiculo de meia duzia de pa
ginas, mal traduzidas, sobre um assumpto
qualquer. É um livro em todo o rigor da
palavra, um livro que não pode ficar nas pra
teleiras de um Archivo de Faculdade. Mal se
faz conhecido o seu trabalho sobre « Epilepsia
e Crime » e já, pela recommendação das nossas
maiores autoridades em tal materia, tem o
joven scientista renome compensador e editor
para o livro

(!) Prefaciam-no então Nina Rodrigues e Juliano


Moreira e este assim fala do successo obtido pelo
novel scientista: «Da primeira tiragem desta mono-
graphia, exemplares foram enviados a varios scien-
tistas do velho mundo. De lá não se fez tardar ao
autor a salutar incitação a novos emprehendimentos.
O sabio professor Enrico Morselli, director da clinica
psychiatrica de Genova, Benedikt, o emérito professor
de neuropathologia em Vienna, Ch. Feré, o illustre
medico da Bicêtre, Lacassagne, o notavel professor de
medicina legal, Gabriel Tarde, o emerito jurista, Jules
Christian, medico de Charenton, Charlin, do Salpé-
trière, Ed. Toulouse de Villejuif, Miguel Bombarda,
professor em Lisboa e director do hospital de Rilha-
folles, enviaram ao Dr. Afranio Peixoto autographos
que o honram. O Professor Clovis Bevilacqua, os
Drs .Franco da Rocha e Viveiros de Castro tambem
não lhe regateiaram louvores. Este ultimo em uma
excellente sentença publicada no « Jornal do Com-
mercio » encomiou este estudo fundamentando razões
92 Affírmações

Dahi em deante, sente-se que todo o es


forço de Afranio Peixoto se fixou no desejo
de dar ao Brazil um verdadeiro Tratado de
Medicina Social, de que « Epilepsia e Crime »
e outras monographias como «A herança do
adulterio», (tambem de 1898) e «Thanatos-
copia Judiciaria» (1901) não são mais do que
dados esparsos do estudo dos males sociaes,
estudo que, evidentemente, devia ser feito para
que se firmasse a autoridade de quem dese
java apontar meios de cura.
A mim não me cabe julgar destes livros
a parte puramente scientifica (pois o meu di-
lettantismo a tanto não, se affoita) senão as
ideas resultantes das falhas de um systema
materialista, de que o autor não percebe o
illogismo.
Se além do ataque convulsivo outros si-
gnaes evidenciam a existencia do mal sagrado,
se multiplice, se una a epilepsia, se degene
ração, se molestia, quaes as suas causas me
canicas provocadoras, se o genio desapparece
ou não sob a acção progressiva do mal, se
Lombroso teve ou não razão na sua milione
sima these, casando a epilepsia ao crime; nada
disto me interessa, de facto. São problemas

em trechos daqui extrahidos ». Pref. de « Epilepsia


e Crime», pag. III — Bahia — Oliveira & Comp. Ed.
1898.
Affirmações 93

que quasi só se ligam á parte exterior da


psychologia e, ao ultimo delles no que contem
de intenção materialista, dá o proprio Afranio
golpe decisivo.
Interessa-me muito mais a verificação de
que Afranio Peixoto, por isto mesmo que es
colheu, em tal epoca da sua vida, semelhante
these para a sua meditação, dava sem querer,
sobre a escarninha face da vida, o traço de
finitivo da sua personalidade de imaginativo
por excellencia.
De facto, nenhuma das realidades do
mundo, que não seja o amor, aliás tão de
mistura sempre com o crime (*), mais do que
este fere a imaginação e é causa de espan
tosos momentos em que a vida interior acolhe
todas as cores do inferno e é varrida pelas
chammas furiosas de hallucinações sobre hal-

(!) « L'amour qui tient une si grande place dans


la vie et dans la litterature, en occupe une de plus
en plus considérable dans les affaires criminelles et
dans la statisque des suicides. Pendant que les roman-
ciers et les poètes celebrent les vertus et les beautés
de I'amour, les magistrais constatent chaque jour les
hontes, les désespoirs, et les crimes. II n'est pas
de passion qui fasse autant de désespérés, de fous
et d'assassins; il n'est pas qui conduise autant de
malheureux et de coupables á la Morgue, á Pasile
d'aliénés et á la cour d'assises » L. Proal — Le crime
et le suicide passionels.
94 Affirmações

Iucinações. Terrivel circulo este em que debate


a consciencia, entre o relevo do criminoso,
desafiando natureza e leis, com o seu mysterio,
e a fragilidade de nosso juizo.
Uma penitenciaria resume tão poderosa
mente as feições infinitamente diversas da
vida, que a sua só presença deante de uma
consciencia viva será sempre motivo que ex
plique a loucura. Um homem preso, encar
cerado, temido de outros homens, como se
fora um animal selvagem, veste toda a nossa
miseria, não a sua somente, mas até a daquelle
mesmo a que não chega o echo de seu sof-
frimento. A grande sombra de nosso mysterio,
do mysterio que somos sobre a face. da terra,
delle deriva como deriva do coração de um
santo, delle, do mais rude, do mais cynico,
do mais temivel dos condemnados, distenden-
do-se sobre a terra de pólo a pólo e alcan-
çando-nos a todos.
Eis porque a philantropia de uns e o
sentimento juridico de outros, nos agitados
dias que antecederam e succederam á Revo
lução Franceza, foram buscar no fundo das
prisões motivos de gloria e de maiores dores
para o coração atormentado do homem.
Rousseau lançara já o germen inquie
tante do romantismo, e o imperialismo deste,
digamos assim, a paixão substituindo a theoria,
passando pouco a pouco por cima de todo
Affirmações 95

bom senso, acabou por dominar tambem a


sciencia, em todas as suas ramificações. O ro
mantismo scientifico foi somente mais tardio
e, assim como o outro, ainda resiste ás in
vestidas da critica, apezar de lhe não ser fa
voravel o terreno em que, inexplicavelmente,
se implantou. A anthropologia, por exemplo,
agitada por tal espirito, maximé nos dominios
de excepção, deu mostras das mais ridiculas
enscenações possiveis de imaginar. Dentro
della, o tumulto foi egual (senão maior) ao
que notou Afranio Peixoto no seio da Hy-
giene (»).
Quem receiou dar tal ou qual origem ao
homem, quem não buscou ligar o proprio
nome a um qualquer fundamento da sociedade?
Então, nos dominios de excepção, como disse,
nos dominios da genialidade, do crime, da

(!) « Com o advento da era pastoreana — diz


Afranio — a causa-germen se estabeleceu com uma nota
vel precisão, dando á Higiene as suas primeiras noções
scientificas. Em campo tão fértil e de tantas seduções
o exagero era facil: no laboratorio o ponto de honra
era descobrir, ao menos, um micróbio novo, na clinica
era inventar uma doença desconhecida. O bacteriolo-
gismo foi moda, uma transição, como outras ... O
solo, a agua, o ar . . . tudo tinha um aspecto cala
mitoso, recheiado de bactérios, contados, cultivados,
classificados, coleccionados, possibilidades de perigo,
senão ameaças ou já agressões, por toda parte ...»
(V. Higiene 2.a edição, pag. 8).
96 AffirmaçÕes

loucura, teve o homem interpretes taes e tantos


que já não é mais possivel enumeral-os. Simão
Bacamarte que Machado de Assis encarcerou
em Itaguahy foi, de facto, em certo momento,
um typo universal.
No que dezia respeito ao crime, facil foi
esquecer-se que a miseria não é só do cri
minoso mas do homem em geral, e no afan
de proteger-se aquelle, chegou-se, por fim, a
desculpalo e até justifical-o, tudo isto em nome
da sciencia a quem cabia tudo resolver neste
mundo. Reformadores accorriam de todos os
lados e o philantropismo scientifico poude
chegar a taes extremos de carinho pelo homem
que ferira a sociedade e por ella fôra repel-
lido, que Carlyle, um romantico, aliás, porém
de feição mais rude e verdadeira, não se
conteve que não protestasse, pugnando em
favor do soffrimento maior que estava fora
das cadeias, mais desprotegido do que dentro
dellas . . . Puis Malherbe vint . . . veio o di
luvio, como dizia o bom velho Mello Moraes,
isto é, veio Lombroso e á sua arca tantos
foram os anthopologos, os sociologos, de
todos os matizes, que o crime, no meio delles,
perdeu para sempre talvez a sua physionomia
repugnante, passando a ser ephebo maravi
lhoso, cuja filiação se ignora e uns dizem
ser filho da lua, outros do sol e até ha quem
o faça neto da Justiça.
Affirmações 97

Afranio Peixoto, aqui, nestes brazis,


tambem colheu seu ramo de esperança e
partiu em busca de Noé.
Não supportou muito tempo a bebedeira
do patriarcha, mas se enfeitou tambem com
as folhas do parreiral do velho sabio . . . De
pois sahiu em companhia de outros, critican-
do-lhe os modos desabusados, sem reparar,
porém, que aquella teimosia de «generalisar
catalogações de minudencias », tambem lhe fi
cara como vezo do espirito. A paixão ma
terialista se lhe entranhara no coração, e é
muito pouco a ambição do materialista deante
da verdade. Basta-lhe parecer original . . .
Assim, Afranio Peixoto, que nos dominios da
pura sciencia, pudera verificar que, no epile
ptico, não se apaga de todo a consciencia,
mesmo sob o guante mais pesado da crise —
facto este que só pode dar forças ás theorias
espiritualistas — tem no seu primeiro livro,
como idéa defensavel, a da normalidade do
criminoso, a que Albretch e. Hamon tambem,
se não me engano, já haviam dado foros de
cousa digna de ser ouvida e discutida.
Para chegar a esta asserção, ferido o bom
senso, de modo tão impiedoso, se compre-
hende que o espirito não se canse em mar
labarismos, que lhe salvem o desejo de ori
ginalidade, e a differença estabelecida por
Afranio Peixoto entre normalidade biologica
98 Affirmações

e normalidade sociologica, deixa no ar quem


interrogue o porque em taes dominios os
mesmos factos têm caracteres diversos, o
porque taes dominios, elles proprios, entre si
se differençaram e se destacaram do fundo
nebuloso da vida. Claro é que, para um evo
lucionista, taes problemas deveriam ter impor
tancia capital.
Idéa de caracter muito mais serio e mais
digna de ser analysada é, com certeza, a que
expõe Afranio Peixoto na monographia « He
rança do adulterio », — a herança social, idea
a que Pio Viazzi, nos Afthivos de Lombroso,
em 1899, chamou genial.
De facto, posto de lado o jargon materia
lista, sociologico, se a verdadeira philosophia,
baseada no dogma da queda, não póde des
conhecer os phenomenos de hereditariedade
biologica í1), nem tambem a influencia do
meio, que predispõe (2), nem tambem a mesma
influencia do temperamento sobre o caracter (3),
não ha duvida que póde ser discutida a idéa

(!) Mercier — Cours de philosophie, vol. III —


Psychologie t. I Exposé du naturalisme viialiste des
scolastiques — Confirmation de la conception finaliste
de la vie.
(2) Sortais — Traité de philosophie — t. I — Psy
chologie experimentale, 470.
(3) Sortais — Obr. cit., 560 — Th. Sinibaldi — Ele
mentos de philosophia — II — 164 n.
Affirmações 99

de uma herança social, em que, aliás, não


fiquem esquecidos os casos de excepção, ou
de reacção da livre vontade do homem. Em
um meio familiar, absolutamente pervertido,
é bem possivel que as gerações se succedam
pervertidas, afundadas no mal, mas não é im
possivel a excepção gloriosa, que faz o he
roismo ou o romance obscuro de uma alma.
E o caso opposto da maldade que, repentina
mente, se desenvolve em um meio que lhe é
desfavoravel tambem não falta.
A verdade é que são, ante a razão, mys-
teriosas as leis que regem os nossos destinos,
como é mysteriosa a nossa origem.
A fé somente nos illumina e nos dá a
intuição do plano divino em que nos des
envolvemos. Um determinista, um materialista,
como Afranio Peixoto o era, só tem dos factos
uma visão toda exterior e descontinua. Pa
lavra insuspeitissima é a de Haeckel neste
caso: « Os naturalistas da escola exclusivamente
empirica, dominados por uma estranha illusão,
lisonjeiam-se de poder construir o edificio in
teiro da historia natural com factos isolados,
sem os ligar philosophicamente entre si, e com
simples noções isoladas, sem lhes perceber o
sentido. .
Sem duvida, todo systema puramente es
peculativo, absolutamente philosophico, que não
se baseia no fundamento inabalavel dos factos
100 Affirmações

empiricos, é um mero castello de cartas, que


a primeira experiencia lançará por terra; mas
tambem toda obra scientifica, puramente em
pirica, composta unicamente de factos, será,
quando muito, um montão de pedras, nunca
um edificio. Os factos são por si aridos e,
«rorno os apresenta a experiencia, são apenas
materiaes grosseiros; se não forem fecundados
pelo pensamento e ligados pela philosophia,
nunca poderão constituir unia sciencia . . . um
lamentavel antagonismo entre as sciencias na-
turaes e a philosophia, um empirismo gros
seiro, que a maior parte dos naturalistas con
temporaneos desgraçadamente proclama como
sciencia exacta — taes são as causas de tantas
e tão grandes faltas de logica, e da impo
tencia absoluta para tirar dos factos as con
clusões mais elementares . . . » (i ). ' :
Haeckel é idos que erram por muito crerem
em si proprios mas, ao menos, reconhece que
nem tudo, em materia de conhecimento, é
accumular factos sobre factos.
Quando se desconhece a natureza livre do
homem, taes factos pesam sobre as theorias
particulares, afundando-se no erro mais gros
seiro. Nada mais logico, realmente, que ser
levado um determinista a dar o criminoso como

(0 Hist de la creation — Inconvenients de Vem-


pirisme (trad. franc.).
Affirmaçõcs 101

homem normal, isto é, como um puro orga


nismo que como « a immensa maioria dos
organismos destroe, pilha, assassina e faz em
uma palavra, tudo o que sabe e póde fazer
por seu proprio proveito e beneficio sem cuidar
de que o que faz é nocivo ou pernicioso para
os outros organismos que o cercam ».
Afranio Peixoto não generalisa tanto e
tem mais pudor o seu materialismo, mas, é,
por isto mesmo, illogico. Mais logico é, sem
duvida, o proprio Albrecht, sujeitando tudo
ao conceito da lei biologica, materialista.
Se o proprio Afranio apresenta o crimi
noso como um typo natural ('), que importa
que haja outros typos naturaes não criminosos?
Como reconhecer entre elles superioridade?
Esta, terão aquelles que, obedecendo á lei
natural da selecção, mais se fizerem valer sobre
a face da terra, e ninguem poderá dizer que
a humanidade actual não é mesmo o con-
juncto de seres criminosos já vencedores em
grande parte e em breve, talvez, totalmente
victoriosos na lucta contra typos naturaes mais
delicados . . .

Do Tratado de Medicina Social, que é a


sua obra por excellencia, do ponto de vista

• (') Epilepjia e Crime — 80.


102 Affirmações

scientifico, o livro que mais se resente deste


grosso materialismo originario, é a sua Psico
patologia Forense, .(*) em que o perigo de
certas theses tinha, por força, que ser abordado.
Entretanto, é preciso ver que já neste livro não
se repete somente um bom combate contra
os exageros da chamada Escola Positiva, em
materia criminal. O pragmatismo de Afranio
Peixoto se revela em plenitude de força. Assim,
elle proprio chama pragmatica a escola ec-
cletica a que se ligia (*), e entre o que chama
a hypothese philosophica do livre arbitrio e
a do determinismo, procura um padrão para
a responsabilidade e faz da pena a reacção ele
mentar que a incuravel tendencia finalistica
chamou reacção de defesa, como se a ameba
— diz Afranio — um corpusculo unicelular, po-
desse prever a acção bôa ou má que é preciso
repellir ou acceitar.
« A razão não mudaria com a comple
xidade dos organismos. Attracções fisicas e
afinidades quimicas explicam os tropismos ou
tendencias rudimentares e d'ahi ao instincto
e á vontade, por infinitas complicações. Como
attracções e afinidades ha repulsões e anta
gonismos de substancia, tropismos negativos;

í1) Afr. Peixoto — Psico Paíoíogia Forense — Li


vraria Francisco Alves — 1916.
(2) Psico Patologia Forense — 66. *
Affirmações 103

uma acção provoca uma reacção positiva e


negativa». Isto quer dizer que Afranio, sem
esquecer mesmo a differença que vae de nor
malidade biologica á normalidade social, tudo
reduz a uma simples dôr de dente, isto é,
infinitas complicações fazem parecer somente
diversa a dôr de quem precisa de um den
tista e a que levou Othelo ao crime. O que
acho curioso é como um homem de intelli-
gencia tão clara, tão viva como a de Afranio
Peixoto, chega a enganar-se a si proprio com
tanta facilidade. Para Afranio a sociedade que,
atravez de infinitas complicações, fére o que
se chama um criminoso, tem, no fundo, a
mesma graça da beldade que esmaga a pulga,
como nos versos do poeta hespanhol.
Diz Afranio, mais de uma vez, que theo-
logos, philosophos e juristas complicaram sem
necessidade a comprehensão de um problema
facil (!!) que lhes legara resolvido a expe
riencia de todos os tempos da humanidade.
É elle, entretanto, quem resolve tudo com
substituir theorias filhas, quando mais não
forem, de immenso esforço intellectual, por
esta, engraçadissima, das infinitas complica
ções, que marcam a distancia que vae dos
tropismos ao instincto e á vontade.
A estas infinitas complicações deve o
homem muito trabalho e, entre outros, o de
escrever Psycho-Pathologias Forenses, que a Sr.»
104 Affirmações

Ameba jamais lerá... Gosto muito da razão


mas, seriamente, quando vejo que ella trata
com o mesmo despreso, ou com o mesmo
respeito, os velhos Hamurabi, Lycurgo, Solon
e a senhora Ameba, quando vejo que ella
confunde no seio do Universo o Codigo de
Manú e a secreção de um protista mono-
celular qualquer, se já não a tivesse perdido
de vista, era capaz de dar-lhe uma surra ou
quebrar-lhes os oculos de vidros tão grossos.
Emfim, explicada a repulsa de Afranio
Peixoto, ao livre arbitrio, explica-se tudo o
mais que vem nos seus livros, neste dominio
das idéas geraes, e que fôra inutil discutir.
Apezar da critica cerrada que faz aos que
tudo prendem a uma necessidade moral, que
é, nos proprios termos, incomprehensivel, fi-
ca-se a imaginar o que, para elle proprio,
Afranio, é a responsabilidade moral, que faz
derivar da personalidade sã e normal, sus
ceptivel de se determinar pelas representações
do justo e do injusto
Que representações serão as do justo e
do injusto para tal homem — oh ! manes de
Socrates ! — se elle logo em principio, não es
quece Pascal e os Pyreneus!?.
Diz Afranio que o livre arbitrio é uma
hypothese philosophica que nada demonstra e

í1) Psico Patologia Forense — 69.


Affirmações 105

não é necessaria ao fundamento da responsa


bilidade. Antes della — diz elle — o homem já
era responsavel publicamente, moralmente, cri
minalmente (1). Ora, isto é confundir o facto
com as theorias sobre o facto, confundir o
fundamento natural de uma lei com as ex
plicações dadas sobre tal fundamento.
Que o sol existe, existe; que o que se
tem dito sobre o . sol é tudo verdadeiro, não
juro. E antes de formular o homem uma hy-.
pothese sobre o sol, não foi menor a influ
encia do calor e da luz sobre a sua vida.
Afranio Peixoto, que ideou typos naturaes
diversos, deu depois, como origem da vida
social — vida de restricção das actividades —
reacções elementares, puramente egoistas ou
indifferentes do ponto de vista moral (2). E
se assim lhe parecia facil explicar o porque
da responsabilidade, sobre a base de um padrão
biologico do justo e do injusto, era dever seu
explicar tambem como a noção do dever veio
a destacar-se de moveis puramente egoistas e
porque só no homem se armou de tantas
complicações . . . Parece isto cousa de extrema
simplicidade, mas não é. Nunca jamais — a
quem não crê em Deus como legislador su
premo — foi facil explicar o porque cem ego-

(!) Obr. cit., 66.


(2) Obr. cit., 61.
106 Affirmações

ismos juntos criaram uma regra de direito,


nem muito menos uma regra de moralidade,
porque é preciso não as confundir.
O medo ou o temor de represalias não
explica a sujeição dos mais fortes nem pode
ser origem de vida moral, mesmo porque,
quando se faz de um tal elemento base de
moralidade, esquece-se que já, de ante mão,
se admitte organisada a sociedade, pois só
assim se comprehende a efficacia do numero
contendo os impetos das unidades mais fortes.
A formação de tal sociedade é que é difficil
explicar e um contracto previo, por exemplo,
já subentenda tambem gráu de moralidade
muito elevado. Não é isto o que se chama
um circulo vicioso?
Se as affirmações da philosophia que ve
rifica no mundo o facto da liberdade, são
« affirmações simplistas de fé », não sei de que
simplicidade nasce o pedantismo scientifico, a
que todos nós pagamos maior ou menor tri
buto e nos dá por paga do que nos rouba
de ingenuidade um rabinho de papel com hie-
rogliphos . . . Rodemos sobre nós mesmos e
decifremos o que está escripto na cauda mys-
teriosa. Dizem que é o roteiro das minas de
Salomão, mas até agora a ninguem foi pos
sivel decifrar cousa alguma. Andam os patos
sem sapatos — eis o que lá está talvez, penso
eu, pois me lembra do velho Bernardes o conto
Affirmações 107

de um sabio que, ante uma phrase tão simples


e verdadeira, empacou para sempre. E por
falar em patos veiu-me á lembrança agora
esta palavra de Schelling: «Quando vemos
as verdades que muitos antepõem aos thesouros
de sabedoria e sciencia occultos no Christo,
involuntariamente nos recordamos daquelle rei
de quem fala Sancho Pança, que vendeu o seu
reino para comprar um rebanho de patos».

* *

É preciso notar que quando falo do sce-


pticismo de Afranio Peixoto, me refiro ao
scepticismo scientifico que, muitas vezes, a si
mesmo se ignoira e a todo nome attende, menos
ao que lhe é proprio. Afranio Peixoto é sce-
ptico como são todos os positivistas, por
exemplo, ou, mais modernamente, os pragma-
tistas de todos os matizes, isto é, todos aquelles
que teem' como verdade unica a relatividade de
nossos conhecimentos. Nós só conhecemos uma
verdade absoluta: a da relatividade de nossos
conhecimentos.
Taes homens, a contra gosto, se resentem
de tão perigoso descaso da consciencia, e se
resentem em todas as ordens de sua acti
vidade intellectual. Ê isto que os leva a ter
por indignos os argumentos chamados de au
108 Affirmações

toridade, esquecendo que a historia seria im


possivel se da autoridade não fiassemos, e que
uma só verdade que nos toque conceber —
por exemplo: a da relatividade absoluta de
nossos conhecimentos — não poderia entrar em
circulação, se da autoridade não partisse, se,
porque da autoridade, não fosse acceita.
A religião que, quando mais não fosse,
pela sua extensão e immemoravel historicidade
é problema á parte em nossa vida, podem taes
homens olhal-a com real e profundo respeito,
e não haverá, depois disto, problema moral
ou historico, ou facto social presente, sempre
producto de um passado em que a lei reli
giosa foi o elemento unificador, por excellencia,
a que elles possam julgar com a gravidade
da consciencia que, antes do mais, reconhece
que ha entre si propria e o mais que existe
o véo do mysterio religioso. Em verdade, este
véo, se é mysterio da intelligencia, é em
compensação o de onde irradia a singularissima
luz que nos obriga a encarar tudo quanto nos
rodeia com mais alto e comprehensivel res
peito.
O horror á autoridade faz destes homens
simples rebeldes mas de uma credulidade tal
que causa surpresa aos mais fervorosos crentes.
Todas as suas rebeldias só visam, entretanto,
a religião. Elles repetem a curiosa historia
de todos os fanatismos: fogem á verdadeira
Affirmações 109

autoridade e se entregam de mãos e pés


atados a chefes obscuros e rudes, encontrados,
por acaso, em derredor da primeira fogueira
nos desvãos da terra selvagem. E as his
torias mais absurdas, com tanto que lhes aca
rinhem a descrença nas sagradas verdades,
são ouvidas em postura humilde e depois re
petidas com entonações da mais simples e
profunda convicção. Não é certo que tal mul
tidão de sabios teve hallucinações visuaes e
auditivas, em que o Bathibius lhes apparecia
de azas abertas, num halo de luz clarissima,
a falar-lhes da origem da vida? Não é certo
que mil outros sabios, no afan de fazerem
evoluir um macaco, não vacillariam em lhe
dar uma filha a casamento? Não é certo que
um prestigitador de Oenova, a outros tantos
sabios, fez curvar a cabeça ante a verdade
das almas, que elle mostrava estampada nas
asymmetrias de uma porção de faces?
A literatura de Gabriel Tarde garantia
successo a toda ousadia, por mais ridicula
que fosse. Se um homem de lunetas agitava
um rabo de mosquito e gritava que descobrira
a verdade — era uma caça infernal aos mos
quitos e, desrabados todos, ficavam como prova
eloquente de que a verdade — pequena cousa !
— podia estar num rabo de mosquito. Se não
estava, explicava-se o açodamento . . . Uma lei
scientifica arrastara aquelles sabios á imita
110 Affirmações

ção de um sabio de mais personalidade. Fôra


esta a de um idiota — pouco importava: o
mundo todo já repetia, commovidàmente, o
grande nome, e a gloria não é cousa que
se perca, depois de ganha. Nem Judas a perdeu,
que a gloria é fama ou pouco mais. Um
sabio, no sentido vulgar contemporaneo, é
assim o irmão mais velho, como dizia Veuil-
lot, de todo aquelle que, altivo deante de
Deus, arrogante para com a Igreja, não se
ajoelha senão ante si mesmo e ante « le maitre
dont il porte la livrée»... (').
Mas julgo eu, e Deus me perdoe se érro,
é isto ainda signal de vida no coração de taes
homens e, sem que tal supponham, formam
elles escola de crenças neste mundo, e são
tambem defensores da ingenuidade humana.
O sceptico que salta de galho em galho, atrás
de fructos de oiro, dá-nos, pelo menos, um
espectaculo animado e animador. Se não cahir
da arvore pode bem ser que olhe uma vez o
céo. Macaco medonho de ver-se é o que já
não sobe ás arvores da floresta, nem olha
para cima, porque não crê em fructos de qual
quer especie, quanto mais em fructos de oiro.
Sustenta-se de folhas sêccas e tem os
dentes alvissimos de morder a areia humida
das sombrias galerias do bosque. Estes, os

(i) C t. por Lecigne —Veuillot— 1 98.


Affirmações 111

philosophos, unicos que podem chegar a este


estado de absoluta negação — negam a propria
vida que vivem. Para que a esperança? Para
que a actividade? Para que a intelligencia?
Não vale um1 caracol a sabedoria dos homens
e ainda vale menos todo esforço em busca
da felicidade.
A sciencia, pelo menos, não cria nunca
homens de tal natureza. Ella é uma fé tambem,
leva á acção, requer a pratica. Pode des
orientar mas não cretinisa ninguem. Pode
fazer ridiculo mas não é o ridiculo o que
ha de menos util neste mundo. E é por isto
que, na arena scientifica, não é raro encontra-
rem-se individuos que, não tendo olhos para
avistar uma só estrella no horizonte, são, en
tretanto, capazes de trabalhar utilmente na
extincção de formigueiros ou na fabricação
de tira-callos. Ei a verdadeira sciencia é, official,
esta que reconhece só ter que lutar com1 factos,
num dominio, este sim, de pura relatividade.
A Sciencia com s grande, a que lhe dá os
principios, as verdades indemonstraveis, com
que ha de illuminar seu caminho, em busca
das verdades a demonstrar, esta tem que es
capar, por força, á preoccupação de noventa
por cento dos verdadeiros homens de sciencia.
Porque Sciencia com s grande é philosophia,
a verdadeira philosophia, illuminada pela fé,
e que se não deve confundir tambem com a
112 Affirmações

prostituta de Voltaire nem com aquella ingleza


secca e esteril com que se amasiou Em. Kant,
esquecido o bom do virginal allemão que a
mocidade ella a esbanjara, improductivamente,
com David Hume e outros.
Afranio Peixoto não fugiu, de todo, á
tentação de philosophar, dentro do campo das
sciencias. Não creio porem que ande muito
satisfeito com o que fez.
Mas uma cousa são as suas idéas geraes, ou
tra são os seus trabalhos de pura sciencia. Desta
fé tem sido um dos mais abnegados apos
tolos, e o Brazil que eu ainda defenderei de
conceitos seus, deve-lhe já muitos serviços. Em
dez annos de professorado, mais do que isto,
de apostolado pedagogico, tem Afranio, como
Professor da Faculdade de Medicina, da Fa
culdade de Sciencias Juridicas e Sociaes, da
Faculdade de Philosophia e Lettras, como Di
rector do Serviço Medico Legal, como Di
rector da Instrucção Publica do Districto Fe
deral, dado provas de uma rara capacidade
de trabalho e de um ainda raro senso de
penetração das nossas necessidades neste sen
tido. A elle devemos o melhor de quantos
trabalhos possuimos sobre Medicina Legal (l)
e o nosso primeiro compendio didactico de

(') Afr. Peixoto — Medicina Legal — Livr. Fran


cisco Alves — a 3.» ed. é de 1918.
Affirmações 113

Hygiene. Estes livros, ao lado da sua Psico


patologia Forense formam o seu Tratado de
Medicina Publica (*), em que ás noções geraes
se alliam os dados particulares que importam
ao nosso paiz. Este methodo tem toda a sua
pujança na Hygiene, mas é o que segue o
autor no desenvolvimento de toda a obra.
Não são livros estes que me caiba julgar
nos seus detalhes, mas da Higiene, um dos
livros de mais agradavel leitura que já se
escreveram no Brazil — do seu valor scienti-
fico dizem bastante as autorisadissimas pa
lavras do Prof. Rocha Faria, recommendando-a
no seu curso na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro.
Uma cousa se faz logo notar, porém, nesta
obra: é que a Afranio repugnam todas as
formas tradicionaes do pensamento e da acti
vidade humana, em todas as suas manifesta
ções, e á propria Medicina desacredita, e le
vanta como bandeira áe misericordia do mundo
uma sciencia nova ou melhor, uma applicação
practica de todas as sciencias, isto é, a Hy
giene.
Deus lhe proteja os bellos sonhos! A hy
giene do mundo moral já é duas vezes mil-
lenaria. Nem por isto os males teem desap-

(i) Afr. Peixoto — Medicina Legal — Livr. Francisco


Alves — a 3.» ed. é de 191&.
8
114 Affirmações

parecido, e os maus hygienistas não fazem


o menor delles.
Nos scepticos de caracter scientifico facto
notavel é que elles adoram as proprias
idéas . . .
Dahi, a fé que teem quasi todos, na
sciencia, circulo em que taes idéas foram
creadas, algumas vezes, do nada . . . Eis o que
lhes é natural: crêr na sciencia (vaga enti
dade) e mais ainda nas pequeninas entidades
que põem em lugar della, e no direito tambem
de não crer em nada mais . . . Renan chegou
a dar-se como creador do proprio Deus e
prometteu, a quantos embevecidos o ouviam,
a ressurreição de todas as cousas mortas, ao
fim de tudo
Prometteu mais, como se vê, do que pro-
metteram Jesus Christo e a sua Egreja, e
muito sceptico houve que, sentadinho na sua
cadeira, descrente da palavra de quem morreu
na Cruz, sentiu cocegas de idealismo, ante
aquellas sorridentes e modestas explorações
do voltairismo moderno.
Por isto mesmo, porém, que taes homens
crêem nas proprias ideas e precisam objecti-
val-as, e ellas são a Revolução, nos appare-
cem, quase sempre, por mais brando que
delles seja o temperamento, com instinctos de
destruição insopitaveis. Só as suas idéas devem
ficar de pé. Do meio ambiente, o que as
Affirmações I15

repelle, o que as contraria, tem que cahir,


tem que ser destruido e, pelo menos, soffre,
tem que soffrer ataques, já não digo só injus
tos, alguns absurdos.
Afranio Peixoto, erri relação á sua patria,
realisa, apparentemente, este typo. Vemol-o,
mais de uma vez, como porta bandeira das
causas mais injustas contra a nacionalidade
a que pertence. E então as contradicções pare
cem accumular-se vertiginosamente em sua
obra, e em todos os dominios della, porque
até o romance tem sido para Afranio, algu
mas vezes, como que o campo de demonstra
ção de alguns dos seus preconceitos scienti-
ficos.
Do seu volume POEIRA DA ESTRADA,
collecção de discursos, artigos, conferencias,
onde o seu espirito dá mil testemunhos de si
mesmo, mostrando-se tão apto a um minu
cioso exame de elegantes velharias de Rodri
gues Lobo, corrto ao arbitrio de uma compa
ração entre assyrios e allemiães, hellenos e
francezes, prefiro attentar no que ali se contem
de relativo ao caracter nacional ou nas idéas
que dá como dignas de serem aproveitadas
no esforço educativo da nacionalidade.
Todavia como taes idéas as desenvolveu
de modo mais completo no seu livrinho
MINHA TERRA, MINHA GENTE, livrinho a
que dá a honra de chamar do melhor de seus
116 Affirmações

livros, dellas tratarei em conjuncto, fazendo


somente, por emquanto, resaltar o que taes
idéas, já na POEIRA DA ESTRADA, repre
sentam de « derrotismo » nacional.
Foi notavel que Afranio Peixoto, que
ousou declarar, não sei se por ironia, ter sido
a sua primeira ambição consciente a de ser
academico, mesmo no seu discurso de rece
pção na Academia Brazileira, revelou o gosto
amargo de contrariar a tradição e a bôa paz
de espirito daquella casa, ainda que, ás vezes,
com bom gosto muito vivo.
A parte de seu discurso que se refere
a Euclydes da Cunha não é o elogio costu
meiro de taes occasiões; é antes uma ele
gante vigança do bom senso literario e até,
algumas vezes, do scepticismo literario contra
aquella energica expressão da nossa perenne
exaltação lyrica em face da Hatureza e da
vida. Mas como provar que uma tal exaltação
significa ausencia de realidades moraes e intel-
lectuaes capazes de nos guiar nos dominios
practicos da existencia? Impossivel! Acima de
todas as theorias está o facto historico, está
o facto soberbo de nossa evolução social sobre
as terras da America, e até podemos affirmar,
sem temor, que nenhum povo já conseguiu
firmar-se mais duradoiramente que o nosso,
entre tantos impecilhos, na rocha de um sen
timento tão claro e tão puro de nacionalidade.
Affirmaçôes 117

E é certo que jamais desabrochou tal senti


mento entre populações que se não tenham
prendido á terra pelo trabalho e della rece
bido as bençãos da producção recompensadora.
O contrario do que diz Afranio é justamente
o que se pode verificar na historia do Brazil:
nós temos tudo feito sem exagero, nós jámais
substituimos, como diz elle, a vehemencia pela
convicção (x). A nossa exaltação dá-se, pelo
contrario, repito, no sentido todo subjectivo
de que, a todo momento, nos surprehendc-
mos ante a dôr e a incerteza. Somos assim
um povo endolorido ante o ephemero de que
se compõe cada hora presente mas, no fundo
da nossa inquietação, a corrente da fé em
nosso futuro jámais deixou de mover-se ampla,
forte, indomavel, e a poesia que della, de vez
em quando, sobe e nos exalta tambem, esta
é de um brilho tão sereno, tão formoso, que
nunca encontrou forma digna da sua objecti-
vação, a que pretendesse agarrar-se a critica
demolidora. Ella é vaga sem que seja menor
o seu brilho, formosa sem fragilidade, é assim
como o céo mesmo que se desdobra sobre
os nossos campos e as nossas cidades, grande
céo, alto céo em que as tempestades são pouco
duradoiras.
A convicção do que somos, do que vale-

(') Poeira da Estrada, 29.


118 Affirmações

mos, temol-a, não resta duvida. O que nos


falta são convicções . . . isto é, o que nos falta
é o amor da luta, a capacidade de tomarmos
um partido, de adoptarmos um programma no
vasto quadro das nossas possibilidades.
O Brazil ainda não teve o seu grande
poeta, o seu heroe da vida sentimental como
diria Carlyle, mas já é esta poesia real da nossa
vida quem fortalece Euclydes da Cunha contra
a propria enfermidade romantica, e dá á poesia
da sua prosa aquella forte impressão de ver
dade, que embalde Afranio procurará ironisar,
ao lado do Sr. Dr. John Branner, conspicuo
professor de uma Universidade da California.
A historia, tal como a entendia, ou melhor,
tal como a fazia Euclydes da Cunha, nem por
inflammar-se de soffrimento, como no caso dos
Sertões e, por isto mesmo, apresentar-se vi
brante de dolorosa poesia, não será jámais
historia menos digna do melhor senso critico.
Este só nos diz que o verdadeiro historiador
é sempre um poeta, isto é, um ser altamente
dotado de intuição, capaz de ver perfeitamente
a trama finissima, invisivel a olhos vulgares,
que liga todos os factos, vêl-a e sentil-a com1
maxima intensidade na sua mysteriosa vibra
ção de todos os fios em que se debate a
humanidade. Não foram mediocres como
poetas os historiadores hellenicos, e até do
que nos diz Chamberlain podemos inferir que
Affirmações 119

a maior virtude de taes historiadores foi, do


ponto de vista nacional, a poesia que derra
mavam sobre as glorias e as desgraças da
patria. E ainda nós ganhamos e todos os
povos ganharam com isto por que não dei
xaram elles frios catalogos de datas e factos
em1 que, a verdade é esta, nem assim pode
riam ter sido justos e imparciaes.
Materialista ou o que quer que se pareça
com isto, por vicio de educação e não por
temperamento, foi Euclydes, no entanto, um
mystico de mysticismo nacional, como já fez
notar Nestor Victor, em pagina brilhante sobre
nossa historia literaria. Aquellas apparentes
complicações de seu estylo, que Afranio cha
mou de « turgido e vehemente » reduzem-se a
simpllcidade de alma, de uma alma que refle
ctia ingenuamente as forças primitivas da rude
sociedade que descrevia.
Mais ainda, e eis a caracteristica do mys
tico que elle foi : vendo-a, Euclydes, a esta socie
dade barbara, a revolver-se, furiosa ou resi
gnada, entre as paredes de ferro de um meio
em que a propria civilisação, ás vezes, como
que perde o animo, ante a força de tudo
quanto se lhe impõe, domine, ordene e utilize;
vendo-a, digo, elle casou a sua . alma á alma
daquella gente, como que fez do seu espirito
o espirito daquella luta. E não lhe preoccu-
pou o dar, claro e definitivo, um juizo, um
120 Affirmações

julgamento de ordem moral, sobre a trage


dia . . . Deixou ao futuro este papel de Mauds-
ley da nacionalidade . . . Elle fôra unicamente
como um pintor: apresentara um quadro.
Somente o seu sangue fôra uma das tintas
de que se servira, e se lhe via tambem a
figura, ao mesmo tempo irritada e triste, nos
dois planos daquelle vasto scenario em que,
bipartida a nação, entre si se despedeçavam
os seus filhos.
Disse Afranio tambem de Euclydes da
Cunha que era incapaz da ternura e da pie
dade. « Não ha uma só das suas paginas em
que a gente sinta os olhos se molharem de
suave quentura commovida. Não escreveu de
um regato, de um crepusculo, canto de pas
saro ou capricho de mulher. Jactou-se mesmo,
uma vez, de não haver em todos os seus livros,
uma só destas criaturas. Talvez venha daí a
admirável coerencia de sua obra; certamente,
por isso lhe falta aquelle melancólico e dolo
roso desencantamenio, que só ellas conse
guem dar a todas as aspirações e esforços
humanos » i1).
Lembra-me agora que sentida poesia
poude suggerir Euclydes da Cunha ao dese
nhar, com dois traços, um frangalho de gente,
uma pobre velha, em fim de raça, esquecido

(i) Obr. cit., 35.


Affirmações 121

num ponto longinquo de fronteira. Quem não


sentirá tambem oppresso o coração, ao peso
de avivada piedade, ante aquella scena ama-
zonica, que nos descreve, e em que, tristis
simos, espectraes, sob formas humanas de
grosseiros espantalhos, num remanso das
aguas, se encontram e travam mudos dialo
gos todos os infortunios, as desillusões e as
saudades dos nossos heroicos e ignorados
conquistadores do Inferno Verde?
Como negar que foi a piedade que em
prestou ao coração do artista a tinta pode
rosa com que evocou aquelle grande e gene
roso sacrificio?
Como tambem não se sentir commôvido,
não ter piedade ante a soberana evocação?
Nada disto quiz ver Afranio Peixoto que
até ainda parece condemnar quando, falando
dos SERTÕES, nos diz que este « não é livro
de historia, estratégica ou geografia, é ape
nas o livro que conta o efeito dos sertões
sobre a alma de Euclydes da Cunha» ('').
E onde estará o artista que, descrevendo,
não descreva sómento o effeito disto ou
daquillo sobre a sua alma? Para um sensua-
lista, um sceptico, como Afranio cem vezes
tenta ser, nem mesmo o puro homem de scien-
cia fugirá a esta regra. Não sei mesmo como

(1) Obr. cit., 31.


122 Affirmações

se deslembrou Afranio daquelle seu proprio


fino traço de espirito: «Imito os espiritos posi
tivos: imagino . . . » (1).
Desta faculdade, entretanto, muito pouco
usou para com Euclydes da Cunha, num sen
tido optimista. Viu-o, analyzouo traço a traço
e por isto cansou onde outros renovaram1 o
enthusiasmo.
Jámais imaginou o amplo quadro senti
mental em que se movia, soffredoramente,
aquella grande alma e, assim, não conseguiu
apprehender que, na obra de Euclydes da
Cunha, não ha somente o effeito do seu
assombramento ante a patria immensa — ha
tambem desta patria, da sua vida intima, da
sua força latente, tão poderosa que é triste,
uma bravia representação, caracteristicamente
mystica. porque toma, aos olhos de todos nós,
contemporaneos e menos scepticos, o vulto de
uma formidavel onda espiritual, que nos leva
para o desconhecido — esmagando com o peso
da justiça os preconceitos com que temos
deprimido e combatido o nosso homem do
sertão, o endurecido mestiço, verdadeiro
guarda do caracter brazileiro.
O mysticismo nacional nasceu nb seio
desta grande onda de amor nobilitante que
Afranio Peixoto jámais aprofundou. E d'ahi

(1) Obr. cit., 8.


Affirmações 123

os seus mais graves erros como sociologo e


educador, erros a que, felizmente, soube elle
proprio oppôr admiraveis verdades.
Falemos de taes erros e apontemos as
verdades.


* •

Não vale a pena talvez indagar se somos,


nós, brazileiros, tão pomposos quanto, mais
de uma vez, affirma Afranio Peixoto, simples
mente — quem sabe? — porque ainda não fize
mos a nossa lenda de simplicidade, pois que
uma lenda desta especie até aos Estados Uni
dos ainda apadrinha, aliaz não se sabe bem
com que vantagem para elles, que não seja,
talvez, a de emprestar alguma grandeza mais
solida ao mediocrissimo Washington. Afinal de
contas, vivemos hombro a hombro com his-
pano-americanos e não desequilibrarão o Con
tinente as nossas pompas de imaginação e de
linguagem . . . A « legereté » dos francezes, pro
verbial, nem por selo impediu jámais que a
França se puzesse á frente da civilização
christã, e as nossas opulencias de linguagem1
não farão a mais pesada carga que nos diffi-
culte a marcha, neste mundo tão amigo de
pompas e fanfarronadas.
O facto é que nunca foi Afranio Peixoto
124 Afirmações

tão combatido como quando atacou o que


julgou defeitos nossos, proprios da nossa
gente.
Já este caracter de revolta ante o que
elle dizia tão maneirosa e commedidamente
foi prova de que não atacava preconceitos ou
erros — que o erro, como diz de Maistre, por
ser o mal, é o schisma do ser (1 ), — mas a
nossa própria natureza, no que ella tem de
mais vivo, nos seus mais justos orgulhos.
Com o apparecimento do seu livrinho
Minha terra, minha gente, livrinho a que
Afranio, talvez um pouco em consideração a
dissabores e magoas, já chamou de uma feita,
o seu melhor livro (!), viu-se, de facto, era
torno da sua personalidade intellectual, uma
agitação absolutamente desusada, em relação
aos nossos autores de livros didacticos.
A critica de que então se tornou alvo
teve ás vezes o caracter mais violento, da
parte de todos os nativistas orientados pelas
idéas de Alvaro Bomilcar, o autor do Pre
conceito de raça no Brazil.
Tendo eu sido dos primeiros que consciente
mente acceitaram as idéas de Alvaro Bomil
car, e a seu lado combateram a hypocrita
lusophilia de nossa desnacionalisadissima im-

(!) Oeuvres completes, 1° \o\. — Considera(ions


sur la France — 50.
Affirmações 125

prensa, cabe^me, por isto mesmo, falar de


Minha terra, minha gente oom todo o desas
sombro mas tambem oom toda a justiça de
que me sinta capaz.
Do ponto de vista' propriamente pedago
gico, principio por dizer que, apezar do fim
immediato a que se destinou a obra em ques
tão, supponho que mais a dedicou Afranio ás
« creanças grandes » do paiz que ás « pequenas »
— que para ambas as especies, diz elle, logo
no prefacio, a escreveu. E foi isto, certa
mente, o que fez com que Afranio, como
pareceu ao critico do « Jornal do Commercio »
resvalasse, mais de uma vez, em tal ou qual
inconveniencia de linguagem, dando-nos um
livro «mais pamphleto que obra didactica e
repetição sincera das abusões européas, que
diz do nosso passado, da nossa terra e da
nossa gente cousas que podem provocar des
animo ou indignação nos seus pequenos lei
tores» 0).
Entretanto, aquillo a que se propunha
Afranio Peixoto era a « novidade util » de
« escrever para as crianças, pequenas e gran
des, de sua terra, um livro sincero, sem reser
vas nem vehemencias, no qual procurasse

(i ) Citação do Prof. João Kopke — Revista do


Brazil, S. Paulo, A. I. — N. 7.
126 Affirmações

sobre os problemas essenciaes da nossa nacio


nalidade dizer-lhes verdades necessarias» (■).
Já um' livro que visa revolver consciencias
de homens preconceituosos não pode ser bem
entendido pela infancia. A pedagogia do ferro
em brasa, mesmo applicada com delicadeza,
não fará mais que surprehender tristemente
a puericia, e a critica mais cerrada se fez,
justamente, em volta da ousadia desse criterio
adoptado por Afranio.
Julgando o livro de modo absolutamente
desfavoravel appareceu, com maior autoridade,
o Sr. João Kopke, educador paulista, e o
melhor juizo, em favor de Afranio, deu-o o
Sr. João Ribeiro, autoridade, senão ainda
maior, pelo menos, mais famosa, nestes do
minios.
Resume-se a critica do Sr. João Kopke
nas linhas que transcrevo:

« O primeiro erro do illustre académico,


professor emérito e abalisado director da Es
cola Normal, foi destinar a CRIANÇAS a con
templação de assumptos, que lhes não podem
ser submettidos, porque a sua edade não dá
a essas crianças o criterio necessario para a
formação de convicção propria, nem nellas
desperta a materia o interesse infallivel, que

(i) Minha terra, minha gente, prefacio.


Affirmações 127

ahi encontram es ADOLESCENTES, isto é,


aquelles, que se vão a emancipar das influen
cias da infancia para receberem as dos senti
mentos, que a virilidade vem evocando.
O segundo erro foi, dirigindo-se a CRIAN
ÇAS, concentrar em resumo substancioso, que
requer capacidade grande de assimilação, posse
de vocabulario abstracto muito copioso e som-
ma de conhecimentos ou noções impossivel na
edade, empregando exposição muito superior
á comprehensão normal, e de todo despida
do calor narrativo capaz de emocionar, e,
travez da emoção despertada, affectar o leitor
juvenil, produzindo-lhe no coração e na mente
impressões, que assegurassem o éxito do fim
proposto ao livro, isto é, inspirar o zelo pela
patria como terra e nação.
O terceiro erro, e o mais grave de todos,
foi ter mettido entre o quadro do nosso des
envolvimento historico e do nosso meio geo-
graphico, a pretexto de dizer «VERDADES
NECESSARIAS, SEM RESERVAS, NEM
VEHEMENCIAS, SOBRE OS PROBLEMAS
ESSENCIAES DA NOSSA N ACI ON ALI
DADE », o libello accusatorio contra a Repu
blica, no seu conceito responsavel por males
«S£ NÃO DO REGIMEN, AO MENOS
CULPA DE HOMENS POUCO CAPAZES
QUE A TEM SERVIDO», sem entretanto,
indicar meios a que recorrer para rectificar
128 Affirmações

ess'es males, a não ser a diffusão da instruc-


ção, que «CRIA A CONSCIÊNCIA COl.L.E-
CTIVA CAPAZ DE ESCOLHER E IMPOR
HOMENS IDÓNEOS».

E o pensamento que parece ter guiado


o illustre educador paulista na sua longa e
minuciosa critica parece-me que foi o seguinte:

« Antes mil vezes, na metaphora ridicula,


mas optimista, ou gabolas, da canção do negro
Eduardo das Neves, representar aos olhos da
infancia a Europa curvando-se ante o Brazil
ao contemplar o arrojo aeronautico de Santos
Dumont, que não deixa arrebatar á patria de
Bartholomeu de Gusmão a gloria do primeiro
vôo humano, do que fazer esta exhibição appa-
ratosa de vicios de uma raça e erros de gover
nança, sobre que, no seu ardor de regenerar,
o illustre director da Escola Normal, longa
mente discorre, e apenas nomear, sem os pôr
em merecido destaque, com palavras que esti
mulem á sua Imitação, aquelles servidores, que
se sujeitaram ao azar de todas as criticas no
pensamento de servir á nação e a serviram
na medida das suas forças-»

(!) Eduçação moral e civica — João Kopke —


Revista do Brasil, A. I. — N.°s 6 e 7.
Affirmações 129

O Sr. João Ribeiro, pelo contrario, acu


dindo em defesa de Afranio, assim discorre:

«MINHA TERRA, MINHA GENTE não


é um livro libérrimo contra preconceitos, nem
está escripto com a vehemencia que teria um
Ubello. E' absolutamente falso dizel-o ».
« O dr. Kopke, educador emérito e de
autoridade reconhecida, parece ter adoptado
a doutrina perigosa e malsã das reservas
mentaes e da falsificação pelo silencio. A sua
critica a MINHA TERRA, MINHA GENTE de
Afranio Peixoto é absolutamente falha e con-
tradictoria, e o que é peior, dado o seu pres
tigio, um conselho involuntário de abastarda
mento do caracter infantil, o que, digamos
desde logo, não podia estar na sua intenção,
nem nos seus principios. A força mais util
da educação é o habito ou o costume. E a
tradição do vicio ou da mentira é uma das
forças mais rebeldes á extirpação. E' do seu
e do meu, tempo, a lepra da ESCRAVIDÃO
e a força maior que a sustinha era a da
inércia. A todos nós que nascemos no meio
delia, o monstruoso crime parecia cousa natu
ral, como aos proprios negros o parecia.
Nunca foi mais difficil tarefa aos abolicio
nistas que criar a INDIGNAÇÃO. A ternura
e a inconsciencia da época infantil acompa
9
130 Affirmações

nhavam o homem e o embalavam na illusão


do crime até a idade madura.
Isto será talvez excellente para viver,
para entrar na vida social sem complicações.
MENS SANA IN CORPORE SANO. A saude
do espirito deve ignorar os enredos tenebro
sos que o cercam. ORANDUM EST, como
começa o aphorismo tomado a Juvenal.
Mas, não pode ser. Grave ou leve, a
ignorancia é sempre uma enfermidade ».

Ainda no mesmo trabalho lembra o


Sr. João Ribeiro que «na litteratura didactica
de outros paizes encontramos os mais vehe-
mentes libellos contra os defeitos nacionaes »,
citando, como exemplo, ps livros do Dr. Lan-
germann i1).
Eis os dois modos de se expressar da
nossa cultura pedagogica ante o livrinho de
Afranio Peixoto.
A meu ver, posto de lado algum exagero
em que cahiu, a razão estava com o Sr. João
Kõpke.
De facto, nem sempre, como pensa o
Sr. João Ribeiro, a ignorancia é uma enfer
midade. Não ha pedagogo que ouse levar ao
conhecimento de uma sua propria filha todas

(!) João Ribeiro. — Revista do Brasil. — São


Paulo. — A. I. — Set. 1916. — N.° 9.
Affirmações 131

as sombrias e desgraçadas verdades de que


se compõe o negro fundo da vida social.
A força mais util da educação sendo, não
resta duvida, o habito ou o costume, o que
ha a fazer é educar a creança em sãos prin
cipios de moralidade e habitual-a a amar os
seus antepassados, não os apresentando em
pagina de romance realista, mas nas suas
virtudes, nimbados de poesia historica, o que
não é, de modo algum, dar-lhe o habito da
mentira.
Porque este medo ás phrases feitas, como
esta de reservas menta.es, soando já tão falsa
mente aos nossos ouvidos? A verdade é que
a reserva mental é uma necessidade pedago
gica, impõe-se ao educador, que não queira
somente ser um pedante vulgarisador de dou
trinas libertarias, sem nenhum criterio de
ordem social realmente elevado.
Porque não reserva mental? Se o proprio
mestre, maximé entre os que fazem garbo de
relativismo, não póde jámais ter certeza abso
luta sobre certos factos da historia da huma
nidade ou de seu paiz, como apresental-os á
creança, justamente com a sua feição desmo-
ralisante, a mais triste, a mais asquerosa
talvez?
Este sim, seria methodo de abastarda
mento do caracter infantil, para gloriola do
primeiro criterio puramente individual de quem,
132 Affirmações

desde logo, se mostra indigno do papel de


mestre, pela falta de sobriedade, de medida
e até de bondade.
Não por este lado vale a defesa do
Sr. João Ribeiro nem tambem quando pro
cura justificar com o erro de outpos educa
dores, alheias á nossa terra, o de que aqui
foi accusado Afranio Peixoto. A verdade é
que exagerou o Sr. João Kõpke e, tal como
diz o seu contradictor, « MINHA TERRA,
MINHA GENTE não é um livro liberrimo
contra preconceitos, nem está escripto com a
vehemencia qua teria um libello. E' absolu
tamente falso dizel-o ».
Tal a unica defesa que do livro se pode
fazer, conscienciosamente, de um liberalissimo
ponto de vista pedagógico e porque ainda,
entre nós, o que devemos ensinar (em rela
ção a nós mesmos) é uma questão e não
um dogma ...»
O erro está em tel-o dedicado Afranio
tambem á infancia.
Ante as « creanças grandes »,, unicamente,
é que elle pode apparecer, sem mudar de
physionomia. Mas pouco lhe valerá o sorriso
de intrepidez e intima confiança. Será sempre
combatido, como já o foi, emquanto houver
no Brazil signal de vida propria, signal de
vida realmente brazileira. Na minha opinião,
porém, não nos fazem grande mal os livros
Affirmações 133

assim. Pelo contrario: forcam os mesmos timi


dos a se definirem mais claramente na arena
das nossas aspirações sociaes, são como agi
tadas bandeiras de combate. Fira-se o com
bate. É o que desejamos e que, de uma vez
por todas, tenha a nossa terra orientadores
victoriosos, senhores do seu proprio destino,
e lhe deem a ella, terra brazileira, a feição
definitiva a que tão ardentemente aspira.
Mas, como já disse, foi das fileiras arre
gimentadas, desde o apparecimento da Bra-
ziléa, em derredor das idéas de Alvaro Bo
milcar, no campo da historia social brazileira,
que partiram as mais pesadas accusações ao
que se quiz chamar « o pamphleto de Afra
nio Peixoto » contra a nossa nacionalidade.
Lutadores isolados, tambem appareceram, des
piedosos, em face das idéàs que animam as
paginas do ruidoso livrinho, mas estou certo
que, a quem conhece bem o estado actual da
nossa vida social e politica, maximé na Ca
pital da Republica, não passará despercebida
a razão, a principal razão da furia com que
livro de feição tão moderada foi alvo de tão
rudes ataques e até de insultos, absolutamente
indignos da magna causa que se pretendia
defender, como veremos.
Viu-se na grande importancia que deu
Afranio Peixoto á nossa ascendencia lusitana,
no amor com que falou das tradições portu
134 Affirmações

guezas e das que a estas nos ligam, como


que a face da medalha de que a outra era
um exagerado despreso por tudo quanto é
propriamente nosso, pelo nosso mestiço, pelo
nosso esforço collectivo, após a proclamação
da Independencia.
E o elogio que de tal livro fizeram, em-
prestando-lhe tão falsas intenções, alguns
escriptores portuguezes e alguns typos sus
peitos de hermaphrodismo patriotico, acabou
por determinar a revolta, a indignação dos
que não alimentam o menor enthusiasmo pelo
nefasto luso-brazileirismo, com que meia duzia
de solertes exploradores ainda nodoam a vida
livre do Brazil.
Infelizmente a revolta, a indignação são
naturaes mas pessimas armas num1 combate
desta ordem, em que não se poderia desejar,
com justiça, o sossobro de uma bella intel-
ligencia brazileira mas sim a sua libertação
da teia de ingenuidades e falsificações a que
se tem querido reduzir a nossa historia patria.
E ainda mais acertada seria uma critica seria
e reflectida, em face da obra de Afranio Pei
xoto, quando era facil verificar que o seu
erro capital fôra justamente querer levar ás
consciencias infantis o que julgara, erronea
mente, noções mais verdadeiras da nossa his
toria.
Demais não serão descabidas as inter
Affirmações 135

rogações que vou fazer. Terá sido Afranio


Peixoto, realmente, o desabusado apologista
da raça portugueza, o ousado calumniador do
nosso mestiço? Não foi cega a paixão com
que o accusaram de erros tão graves?
É o que devemos examinar com todo o
cuidado, despido o espirito do desejo de agra
dar a quem quer que seja.
Estou e gabo-me de estar entre aquelles
mais emperrados nativistas de quem disse
Afranio que serão arrastados e confundidos,
por fim. Honro-me de ser um patriota de
vistas curtas, que só vê o Brazil, em materia
de patriotismo, e por isto mesmo me julgo
no direito de julgar de MINHA TERRA, MI
NHA GENTE sem medo de parecer menos
Sincero ante os que sempre me tiveram ao
seu lado, na lucta contra a miseravel ou pueril
falsificação de que tem sido victima a historia
da nossa nacionalidade.
Assim detalhamos o assumpto.
É uma verdade que Afranio Peixoto re
petiu sobre as raças vermelha e negra e sobre
os nossos mestiços as muito conhecidas e far
tamente desmentidas noções da sciencia eu-
ropéa, sempre a serviço do mais brutal im
perialismo É uma verdade, não ha ne-

(1) Como elle proprio Afranio, mais de uma vez re


conhece, e adeante mostraremos:
136 Affirmações

gal-o, mas tambem é verdade que fez o elogio


dos jesuitas pelo bem que fizeram ao nosso
selvagem e condemnou o Marquez de Pombal
que, «suprimindo a Companhia de Jesus na
colonia e no reino fez grande mal ao Brazil».
« As aldeias dissolveram-se — diz elle — os in
dios que não foram barbaramente capturados
e mortos, ganharam o matto, para renovarem
o estado de barbaria, depois de um ensaio in
feliz de civilização, mal provada pela malícia
e incerteza dos homens » (Pag. 94 da 2.»
edição).
É assim o proprio Afranio quem reconhece
que só a maldade dos homens impediu que
o indio se civilisasse ao contacto com o mis
sionario christão; é elle tambem quem af-
firma ter o acto do marquez de Pombal feito
grande mal ao Brazil, o que implica dizer
que se o indio tivesse sido mais poupado
e aproveitado o Brazil teria lucrado muito.
É por isto que, apezar de demonstrar
sempre singular e já provado contraditorio des
amor ao nosso indio, muitas e muitas vezes
diz cruamente qual foi o papel do civilizado
em face da primitiva confiança dos primeiros
habitantes do Brazil (Pags. 88, 89, 92, 215, etc.).
É ainda verdade que foi muito menos in
justo para com o negro, o que se evidencia
em muitos trechos de seu livro, bastando
citar estas suas palavras : « Estavam numa
Affirmações 137

evolução social mais adiantada que a dos


indios: tinham governo, alguma disciplina, ha
bitos sedentarios, como agricultores e cria
dores; eram dóceis, esforçados, laboriosos, bem
que pelo medo dos castigos corporaes (*) que
os senhores não poupavam ».
«Paciente e servil foi o negro que*n der
rubou florestas, excavou minas, revolveu e
plantou os campos, colheu e preparou o as-
sucar, o café, o fumo, os cereaes no Brazil.
As negras, empregadas na pequena industria
e no serviço domestico, foram mucamas, cria
das de casa, amas de leite, e concorreram com
a sua sensibilidade affectuosa e humilde, alem
de penas e trabalhos sem conta, para criar
os futuros brazileiros » (Pag. 217).
E, mais positivamente, ainda estas á pag.
120: «E foram estes negros que nos fizeram
o Brazil colonial: derrubaram mattas, plan
taram cannaviaes, cortaram madeiras precio
sas, exploraram ricas minas . . . com que a co
lonia foi crescendo na prosperidade; foram
elles que nos construiram as casas, as cidades,
as estradas, os engenhos e nas industrias e
lavoiras deram vida facil aos senhores, per-

(*) Flagrante injustiça. Quem para si proprio


soube trabalhar tanto e pela liberdade soube sacrifi-
car-se nas terras dos Palmares — não trabalhava pelo
medo dos castigos corporaes, tão somente. Isso é
lenda portugueza, no Brazil.
138 Affirmações

mittindo constituir-se a primitiva sociedade bra


zileira; foram elles nos serviços domesticos,
sempre penosos e quasi sempre delicados, que
nos proviam o lar, nos angariavam e prepa
ravam o sustento, nos faziam as roupas de
uso e até nos criavam os filhos, com o que
se incorporavam na familia brazileira».
Brazileiro, devia lembrar-se Afranio, quem
o faz é o Brazil, é a terra; familia brazileira
é toda aquella que se adaptou ao nosso meio
physico e social e nelle vive. Branca ou" preta,
não importa. Mas após descrever-nos assim
a acção do negro no Brazil, que valem as
suas palavras contra raça tão generosa e forte,
pelo menos, para nós brazileiros, brancos ou
quasi brancos? Sob qualquer ponto de vista,
que não seja o da força immoral, qual o
que mais deve merecer do Brazil contempo
raneo, o negro herculeo e paciente ou aquelle
typo a que Manoel Bomfim tão justamente
chamou de parasitario — o Chondracanéhus da
nossa terra, da nossa civilização?
Não fez Afrânio ao nosso mestiço a de
vida justiça e é este talvez o maior defeito
do seu livro.
Ainda assim reconheceu que alguns dos
seus defeitos, herdados da raça branca e da-
quellas a que chama de inferiores, se são nelle
augmentados, foi isto devido ao clima, á má
educação e, principalmente, á indisciplina so
Affirmações 139

ciai (218). Logo, não são inherentes á mes


tiçagem; e a indisciplina social não nos vem
delle, se bem que della participe tambem. Ê
de seu livro este trecho : « Convem dizer que
elles melhoraram muito: alguns se educaram
e se impuzeram nas armas, nas artes, no jor
nalismo, nas letras, nas sciencias, no magis
terio, na magistratura e na politica, inspi
rando respeito e admiração dos brancos ».
Referia-se ao mulato, propriamente, mas
da mestiçagem cabocla em todo o nordeste
brazileiro, onde o indígena não desappareceu
porque foi assimilado, como affirmou Va-
nhagen (*), diz Afranio quando dá as razões
scientificas da proclamada indolencia do bra
zileiro: «A sobriedade aqui não será virtude,
mas uma necessidade, como a preguiça actual
de muitos brazileiros é uma condição de clima,
que se pode remover — com o regimen, ini
cialmente, e depois pela concorrencia, que es
timula ao trabalho.
« A prova está em que esses nortistas, indo
lentes ás vezes nas suas terras, quando obriga
dos a procurara vida na Amazonia, são ali de
uma resistencia e uma actividade sem egual:
são elles os conquistadores dessa natureza

(i) Afranio reconheoe este facto e é delle


mesmo a citação de Varnhagen (216).
140 Affirmações

hostil, á qual dão o seu esforço e o seu


sangue.
« Porque ociosos viraram activos, molles
deram em destemidos? Porque mudaram para
um clima menos quente (os ventos aliseos,
a humidade e as plantas do valle do Ama
zonas corrigem o calor excessivo dessa la
titude) e são impellidbs pela necessidade.
« A pouca gente, a facilidade da vida, o
calor entorpecedor, fizeram do norte do Brazil,
como disse um extra ngeiro, Orton, «o pa
raiso da indolencia». Quando fôr habitado, e
a competencia estimular a actividade, para sa
tisfazer os encargos da vida, e um regimen
apropriado facilitar a iniciativa e o trabalho,
esses brazileiros serão, na propria terra, o que
são na Amazonia, que elles conquistaram para
a civilização, como os brancos e delicados
europeus não seriam capazes de fazer» (211,
212).
Já é confessar alguma cousa para edi
ficação dos brancos europeus e dos brancoides
do lado de cá.
Mas, como disse, o que mais irrita a
corrente nativista, de que este ensaio é uma
simples objectivação, não é, propriamente,
quanto negou Afranio ao caracter e á intelli-
gencia do nosso indio, do nosso negro, do
nosso mestiço, mas sobretudo o parecer seu
livro, á primeira vista, um cantosinho em
Affirmações 141

prosa quasi rimada do novo « Lusiadas », que


os falsificadores de nossa historia, em home
nagem á plutocracia lusitana, aqui implantada,
vêm fazendo, a golpes de audacioso despre&o
por tudo quanto represente verdade no cyclo
da formação da nossa nacionalidade.
Pois bem, não ha negar que Afranio foi
de um lyrismo absolutamente extranho em sua
obra, quasi todas as vezes que se referiu á
historia de Portugal, e não ha negar tambem
que, em conjuncto, gravemente peccou pela
descabida importancia que deu ás tradições
portuguezas no Brazil, num livro em que as
tradições brazileiras, e os brazileiros, deveriam
merecer tanto carinho.
Mas ainda aqui me cabe lembrar algumas
palavras suas que merecem ser meditadas por
todos quantos queiram julgar da sua attitude
com imparcialidade.
Assim, não é possivel escurecer que, se
Afranio disse mal do caracter brazileiro, disse
tambem, se bem que implicita e não clara-
hiente, que todos os nossos males teem raiz
no caracter portuguez: 1 ° porque, para Afranio,
foi o portuguez quem maltratando e explo
rando o indio não permittiu que elle se ci-
vilisasse; 2° porque foi o portuguez quem,
para o Brazil, por ganancia e falta de escru
pulo, trouxe o negro e o sujeitou, com du
reza, á humilhante condição de escravo; 3.°
142 Affirmações

porque dos portuguezes pensa que são intel-


ligentes e astuciosos mas tambem aventureiros,
cobiçosos de lucro, pesados aos inferiores,
sensuaes, vaidosos, tristes (222).
Como se vê não foi tão serena, como
se disse, a apologia das gentes lusas e mais
ainda ha que admirar se visarmos o que
mais nos interessa, isto é, a nossa actual si
tuação em face dos antigos exploradores.
Citemos as suas proprias palavras: «CON
VÉM DIZER ENTRETANTO — diz elle —
PARA NÃO TOMAR PALAVRAS COMO
REALIDADES, QUE NÃO Ê SOMENTE CO
LÓNIA A REGIÃO SUBMETTIDA À DE
PENDÊNCIA POLITICA DE OUTRA NA
ÇÃO, SENÃO TAMBÉM AQUELLA QUE DE
OUTRA OU DE OUTRAS DEPENDE, NA
SUA FORMAÇÃO ETHNICA, NA SUA
GESTÃO FINANCEIRA, NAS SUAS RELA
ÇÕES ECONÓMICAS, DE COMMERCIO E
INDUSTRIA, E ATÉ NAS MANIFESTAÇÕES
IMPOSTAS OU IMITADAS DE SUA VIDA
POLITICA, MORAL, RELIGIOSA, ARTIS
TICA E LITERÁRIA.
O BRAZIL LIBERTOU-SE DO GO
VERNO PORTUGUÊS; CONTINOA, COM-
TUDO, A SUPPORTAR, AGORA SEM MAIS
IMPACIÊNCIAS, A ASCENDÊNCIA DOS
LUSITANOS NO SEU COMMERCIO, IN
DUSTRIA, IMPRENSA E ATÉ NAS LETRAS,
Affirmações 143

À QUAL NOS SUBMETTEMOS COM UMA


PASSIVIDADE QUE NÃO SERIA TAMA
NHA SE VIESSE APENAS DA GRATIDÃO
DO QUE FIZERAM POR NOS, PELO QUE
LHES DEVEMOS, DE TRADIÇÃO E EXEM
PLOS» (141-142).
Quem fala assim evidentemente nãoapprova
a miseravel covardia com que nos curvamos
sob o guante do capitalismo portuguez que,
por generosidade, deixamos criar aqui fortes
raizes, jamais dilaceradas, dada a infelicissima
maneira pela qual fizemos a nossa indepen
dencia politica.
Isto é o que nós, nativistas, temos dito
e diremos sempre, emquanto nos restar um
pouco da força intima da consciencia, que se
não alimenta de honrarias e gloriolas de um
momento tão falso como este o é na vida
da Capital dia Republica.
Todas as nossas idéas, pode-se dizer que
estão reunidas nestes trechos de admiravel
concisão e sinceridade, escriptos por Alvaro
Bomilcar no ardor da nossa campanha da
Brazilea.
« O Brazil do seculo XX, apezar de suas
atiitudes soberanas, é ainda, com pequenas
differenças, aquella modesta colonia que, ob
tendo de um principe irrequieto uma consti
tuição outorgada, teve a sua maioridade
apenas, e ficou d'isso muito satisfeita . . .
144 Affirmações

Maioridade é cousa um tanio differente


de emancipação ».
Entretanto, continua Alvaro Bomilcar,
« quando, no século XII, o esforço de Affonso
Henriques, nos campos de Ourique e em Val
de Vez, deu ganho de causa a Portugal, e
fez-se a independencia da patria de Viriato,
o novo reino, glorificando a espada generosa
da seu primeiro estadista, procurou, sempre,
e cada vez mais, apezar das identidades tra-
dicionaes e ethnograpfúcas, differençar-se, dis-
tanciando-se pela lingua, leis, usos e costumes,
do velho ramo castelhano, estabelecendo imme-
diatamente a razão de sua existencia, como
povo soberano, no dissidio historico, ou ponto
de partida que aquelle feito assignalara. E,
desde então, o caso veiu se caracterizando,
de modo a poder affirmar-se que sempre Por
tugal teve o seu maximo orgulho no facto
de não pertencer á Hespanha; e em todos
os tempos o menoscabo da lingua e costu
mes hespanhóes, reflectiu o consenso unanime
do povo portuguez, pelo orgão altisonante de
seus bons escriptores e dos melhores repre
sentantes da sua patria ».
E assim tem sido na historia de todos
os povos emancipados da Europa e da Ame
rica, excepção feita apenas do Brazil. Este
quer simplesmente exhibir perante as nações
amigas as credenciaes do seu passado, mos
Affirmações I45

trando sempre o cordão umbelical que o


prende á metropole, e que o faz, ao menos
por hypothese, parecer latino — aspiração
victoriosa entre os que exercem a profissão
intellectual, ou seja — o primado da intelli-
gencia
<> Emquanto é essa uma das manifestações
mais evidentes da nossa degeneração politica,
incapacidade, ou que nome tenha, vê-se que
o velho torrão do Eça de Queiroz e do Cas
tello Branco — também, como nós, carecedor
de um equilibrio continental mais duradoiro,
adopta um processo bem diverso do nosso;
e assim é que prefere volver agora o seu
olhar melancolico, de sonhador e poeta, não
para uma alliança luso-hespanhola, taboa de
salvação repugnante aos brios portuguezes
— mas para as suas tradições gloriosas que,
embora rhetoricas e exageradas, nellas, so
mente nellas, se fundam as derradeiras esa?-
ranças e energias da veneranda Lysia ».

(!) E' claro que não concordamos com Alvaro


Bomilcar quando parece menoscabar o nosso amor
da latinidade. Nem ha sentimento que mais nos honre
e mais justifique o universalismo, que é o ideal de
toda cultura catholica e não se confunde com1 cos
mopolitismo, nem é elle base de ideaes anti-naciona-
listas. Pelo contrario. A' latinidade deve-se, realmente,
a perfeita definição da idea de patria e Portugal
mesmo é um exemplo glorioso do que representa
esta idéa na civilização occidental.
10
146 Affirmações

Citei todos estes trechos porque não faço


aqui literatura e não tenho mesmo o menor
desejo de parecer original. Amo a verdade
e onde a encontro rendo-lhe o meu culto
desinteressado. Ora o que ahi diz Alvaro
Bomilcar, se bem que eu dellee discorde num ou
noutro detalhe, ou melhor, onde fala o falso
espirito liberal que é o que, a meu ver, nos
vae perdendo e alimentando a ousadia do
estrangeiro em nossa terra, tudo o que elle
ahi diz, repito, é pura verdade, e paginas
como estas devem ser relembradas a todo
momento. E' no afan de esculpil-a no coração
de todos os brazileiros que me venho batendo
ha alguns annos, desde que tive a dita de
encontrar no homem modesto mas absoluta
mente seguro das suas convicções, que é Al
varo Bomilcar, a verdadeira comprehensão da
historia brazileira. Esta, ignora-a Afranio Pei
xoto que, de paginas portuguezas, de Portugal,
ou ridiculamente portuguezas, do Brazil, ainda
nos quer impor um sonhado « Brazil, paraiso
dos mulatos » quando isto aqui sempre foi um
paraiso de aventureiros estrangeiros, só agora
um pouco menos arrogantes ou um pouco
mais intimamente inquietos.
Esta incrivel, absurda, monstruosa posição
de inferioridade em que nos temos deixado
ficar ante a antiga metropole é, por exemplo,
o facto mais caracteristico da nossa politica,
Affirmações 147

a unica prova de abastardamento de caracter


que já temos dado, pelo menos, a quem nos
olhe com o mesmo olhar de carinho e espe
rança com que nos viram sempre, em todas
as epocas desta mesma historia, os grandes
brazileiros que tentaram reagir contra o
acobardamento geral ou a hypocrisia de uns
poucos e a cegueira de quasi todos. Não já
era este mesmo o clamor de um Torres Ho
mem, por exemplo, em 1868?
Recordemos tambem uma das suas pagi
nas para vergonha nossa que, mais de cin-
coenta annos depois, ainda merecemos a
mesma critica impiedosa, pois a simples
exposição de factos tão vergonhosos, que
imbecilmente presenciamos e soffremos, é já
de si um desafio aos nossos brios.
« Aquelles que seguem com attençâo —
dizia Torres Homem (*) — o andamento' dos
trabalhos de nossas camaras, estarão sem
duvida lembrados dos projectos offerecidos
naquella sessão por dois honrados deputados
de Pernambuco, os Srs. Nunes Machado e
Urbano, e que tinha por objecto fazer baquear
o monopolio do commercio de retalho, de que
estão de plena e exclusiva posse os Portu-
guezes, e franquear aos filhos do paiz essa

(!) O libello do Povo por Timandro — Lisboa —


Typographia da Nação — 1 868, pags. 113 em deante.
148 Affirmações

carreira, que lhes ha sido até hoje inteira


mente fechada. Esses projectos, bem que
podessem ser notados de alguma exageração
emquanto ao caracter dos meios propostos,
comtudo tão patriotico era o pensamento, que
os inspirava, tão profunda e geralmente sen
tida era a necessidade, que tendião a satis
fazer, que encontrarão na população de nossas
grandes cidades a mais viva e ardente adhesão.
Com effeito, a immensa inferioridade de
condição, em que se acha o triste Brazileiro
no proprio solo, em que nasceu, não tendo
por si mais que o ar e a luz do sol, relati
vamente ao venturoso forasteiro Portuguez
assenhoreado das fontes de nossa riqueza,
sobejamente explica essa manifestação d& sen
timento publico em favor dos mencionados
projectos.
Das industrias taes e quaes a actualidade
apresenta em nossa terra, é a do commercio
a mais commoda, a mais facil, a mais lucra
tiva, quer a confrontemos com a industria
manufactureira, que apenas desponta para nós,
e cujo desenvolvimento prematuro e forçado
fôra antes um mal do que um bem; quer a
comparemos á lavoura, d'onde as difficulda-
des do clima tropical, a concurrencia aviltante
do negro, e a natural esquivança do credito
para as operações do solo, afugentão a popu
lação livre, a quem fattão um emprego, e a
Affirmações 149

possibilidade de empatar capitães na compra


do escravo.
Porem essa industria a mais vantajosa,
e que se exerce extensamente sobre uma massa
de valores superior ao da totalidade da pro-
ducção nacional exportada, não é para o Bra-
zileiro; não; ella pertence ao alluvião de Por-
tuguezes, que enchem e desnacionalisão as
capitães de nossas provindas maritimas, e
que mensalmente se recrutão com centos e
centos de recem-chegados, os quaes vem ainda
minguar nossa civilisação, impregnando-a de
seu espirito estreito, estacionario e rotineiro,
como si não bastasse o infortunio de ter sido
o Brazil descoberto e colonisado por elles (*).
Em vão tentará o filho do paiz ser admit-
tido como caixeiro nos delubros da plutocra
cia lusitana; todas as portas se lhe fechão;

(!) A moderna corrente nacionalista, como o


demonstrei no meu opusculo — Do nacionalsimo na
hora presente — não ajuiza como Torres Homem em
relação á colonisação portugueza. Pelo contrario: julga
que foi benefica, que a ella muito devemos. O pro
blema é muito outro. O que combatemos é que, feita
a Independencia, proclamada e reconhecida, continue
mos sob o aspecto economico, mais ou rnsnos sujeitos
á plutocracia lusitana. E' facto que ella nestes ulti
mos annos vae perdendo muito terreno mas não sabe
mos se é o brazileiro quem o vae occupando ou se
gente, para nós, muito menos digna de respeito e
estima que o portuguez.
150 Affirmações

taes empregos estão reservados para os patri


cios pequeninos, que vierão, ou hão de vir
d'alem-mar contando com o apoio e protecção
desta confraria de nacionalidade. Si apezar de
tudo estabelece-se negociante, as intrigas o
rodeião; procura-se por mil modos alluir seu
credito commercial, pôr tropeços ás suas ope
rações, para punil-o da ousadia de restolhar
uma ou outra espiga nesta messe amplissima,
e privativa de quem é Portuguez.
Assim, emquanto milhares de Brazileiros
obscuramente vegetão sem occupação, sem
carreira, sem posição, elles aqui encontrão o
ELDORADO, os meios de uma opulencia
rapida e facil: para os Portuguezes, as pri
micias da producção, os pomos d'oiro, a im
portancia e influencia que dá o dinheiro; para
nós-outros, os espinhos, o serviço militar, o
imposto do sangue, as fadigas ingratas e este
reis, a miseria e o hospital.
A ideia de uma reforma social destru-
ctiva desta viciosa distribuição do trabalho,
que dá a uma classe de extrangeiros o qui
nhão do leão, e não deixa medrar o povo,
estava contida nos projectos dos dous nobres
deputados, etc. ».
Qualquer homem de bôa fé poderá veri
ficar que ainda em quasi nada foi alterado
este aviltante estado de cousas. Pode-se ainda
hoje, ás vesperas do Centenario da Indepen
Affirmações . 151

dencia, dizer como o mesmo Torres Homem


que «essa reforma, não é uma simples these
do porvir, mas uma questão palpitante da
actualidade»
O testemunho de tão miseravel explora
ção dos nossos sentimentos liberaes já nos
chega até do extrangeiro.
Não faz muitos annos um illustre via
jante francez que nos visitou, o Sr. Paul Adam
do que observou no Rio de Janeiro, deixou
assim expresso o seu justissimo espanto:

« Nos cantos de rua do Rio, o esperto


portuguez estabeleceu a sua venda de tres
portas, que elle atravanca com fructa, legu
mes e peixe, para mercar tudo a preços
loucos. Porque desses quarenta mil fruteiros,
taverneiros, açougueiros, quitandeiros, desses
quarenta mil portuguezes, em cujas casas se
suppre a população de géneros alimenticios,
muitos, depois de ricos, se repatriam. Quando
não, elevam-se a especuladores de terrenos,
emprezarios de construcções, brazileiros e opu-
- lentos personagens. Emquanto esperam, mem
brudos, gordalhufes, as mangas arregaçadas
nos braços cabelludos, removem caixas, pesam
compras, etc.

(i) Obr. cit., pag. 117.


152 , Affirmações

Accrescente-se a espantosa solidariedade


dos portuguezes, causa unica de todos os seus
triumphos. Reclame o freguez contra o preço
phantasãco dos legumes, zangue-se, proteste: a
noticia divulga-se de porta em porta, ante
os balcões, etc. No dia seguinte a cozinheira
do insubmisso pedirá legumes debalde. Será
preciso astucia para obter de algum TRAI
DOR seis simples folhas de verdura, e esse
TRAIDOR ver-se-á, por seus pares, amaldi
çoado, levado ao index, constrangido talvez
a abandonar a sua quitanda. Alem disso,
quando a abundancia do peixe, da fructa,
nesse clima em que tudo se estraga depressa,
poderia, se não incitar o mercador a redu
zir os preços, ao menos fazel-o dar alguma
quebra, para não perder a mercadoria, forma-
se, de repente, um syndicato que resolve sejam
as sobras lançadas ao mar. D'est'arte man-
tem-se os preços prodigiosamente elevados.
E O BRAZILEIRO SUPPORTA TUDO ISSO
DO PORTUGUEZ, SEU IRMÃO CUPIDO,
MAS QUERIDO.
Inda melhor: correspondendo ás solicita
ções da freguezia, que diminuira perante o
aspecto quotidiano de uma carne carissima e
muitissimo mal talhada, installa-se na rua um
açougueiro EUROPEU. Não tarda que o
comprador lhe dê preferencia, o que preju
dicará de certo os portuguezes. Em logar de
Affirmações 153

assimilarem os processos do EXTRANHO,


superiores quanto ao talho e escolha de peso,
certos de que o amor dos brazileiros lhes
perdoa essa inferioridade, os portuguezes
organisam um syndicato de todos os fornece
dores e recusam o pão, os legumes, a fructa,
ou fornecem aos creados, o mais das vezes
negros e mulatos, que porventura tenham
comprado ao intruso, apenas géneros podres.
Dentro em pouco fica o EUROPEU sem ter
quem lhe venda o boi ou carneiro, salvo se
o comprar a peso de oiro, platina ou radiam.

Quanto ao credito é a mesma solidarie


dade das casas portuguezas. Patrões e cai
xeiros reduzem as negras cosinheiras. Apro-
veitam-se. da situação de amantes, obtêm da
apaixonada indicações uteis sobre a fortuna
e negocios do freguez. Si acaso perde este
seu emprego, etc, no dia seguinte já não
encontra fructeiro que lhe venda senão a
dinheiro. A lingtm da negra é uma ficha de
informações commerciaes. Graças a esta poli
tica maravilhosa, sem igual no globo, o
negociante portuguez impõe a um milhão
de habitantes preços fabulosos.

E' impossível comer-se um cacho de uvas


154 Affirmações

supportaveis por menos de tres ou cinco


francos. E esse mesmo cacho de uvas vale
alguns centimos nos suburbios de IJsbôa,
custando mais um ou dois centimos depois
da navegação em frigorifico.

Pelo jantar simples que nós offerecemos


em Paris a umas dez pessoas e que nos custa
mais ou menos dez a quinze luizes, ter-se-á
que pagar, no Rio, de seiscentos a mil fran
cos; tudo o mais desta forma.

Diz-se que os ordenados estão na pro


porção desses preços, na proporção das
despezas. Sim, na classe dos engenheiros, dos
financeiros, dos professores, dos médicos, etc;
mas não para os empregados ordinarios, isto
é, para toda a gente.

Imagina-se quanto seja penosa a exis


tencia assim reduzida pela carestia portugueza
de tudo. E COMPREHENDEM-SE OS RAN
CORES, OS ÓDIOS QUE SE ACCUMULAM
NO FUNDO DE CERTOS CORAÇÕES.

Em pleno seculo XX, pois, TRINTA OU


QUARENTA MIL PORTUGUEZES, PROTE
GIDOS POR UMA LEGISLAÇÃO POR
CERTO EM DEMASIA LIBERAL, RESPEI
TADORA DO INDIVIDUO E DOS SEUS
Affirmações 155

ACTOS, INFLINGEM A VINTE E CINCO


MILHÕES DE BRAZILEIROS ESTAS DIF-
FICULDADES, ESTES SOFFR1MENTOS,
UMA POLITICA INTEIRAMENTE FAVO
RAVEL AO COMMERCIANTE, A> SUA
LIBERDADE ABSOLUTA, AOS SEUS PLA
NOS DE EXPLORAÇÃO.

Os portuguezes possuem no Rio uma bi-


bliotheca consideravel. Possuem tambem um
hospital magnifico, installado num palacio his
torico, com estatuas ete. DESSES DOIS CEN
TROS PORTUGAL CONTINUA A DIRIGIR
OS SEUS ANTIGOS COLONOS. IMPOE-
LHES A CARESTIA DA VIDA E, CONSE-
GUINTEMENTE, UMA CÓLERA GERAL
QUE FORMA A GROSSA NUVEM DO FU
TURO» (»).
Nós não temos jornaes em que se possa
commentar paginas como as que citei, não
temos mesmo livreiros capazes de divulgar
obras de tão grande interesse para a nossa
nacionalidade. Ê preciso reedital-as assim, seja
como fôr, á custa mesmo da bôa medida,

í1) Paul Adam — Visages du Brésil, trad. da


Braziléa — A. 1°, N.° 9. Não resta duvida que ha
algum exagero no que diz o escriptor francez. Mas
não é ridiculo para nós que o que, de facto, existe
possa inspirar, a um estrangeiro, paginas como essa?
156 Affirmações

se por acaso o podemos fazer, e é o que


faço.
Ellas ahi estão sob os olhos do proprio
Afranio Peixoto, Já meditou elle sobre taes
aspectos da nossa questão social? Parece que
não e o digo porque o meu juizo é juizo
de bôa fé.
É esta mesma bôa fé, porém, que nos fez
dar mostras de que tem Afranio a intuição da
gravidade deste problema, em derredor d!o
qual tem tentado Alvaro Bomilcar fazer gra
vitar todo o esforço educativo, da nação, no
seu mais alto sentido.
O autor de Minha terra, minha gente vê
com extranheza que continuamos a supportar,
« agora sem mais impaciencias », a ascendencia
dos lusitanos no commercio, na industria, na
imprensa e até nas letras, e se incide, por
sua vez, em extranheza de nossa parte, é só
porque se limita a uma tal verificação e não
nos verbera, mais duramente, quando tanto
merecemos, num livro em que, tantas vezes,
peccou pelo excesso com que nos condemnou
por faltas mais leves.
Mas devemos reconhecer que não é Alvaro
Bomilcar, menos duro ao falar de nossa gente,
da nossa « degeneração politica ».
« A politica militante no Brazil — diz elle
— sempre foi uma escola de egoismo intelli-
gente. A sua marcha e evolução se caracte
Affirmações 157

risam num traço constante e inalteravel, que


se poderia chamar um eterno — fugir á lucía.
Ella só tem uma tendencia: — fixar indi
vidualidades; e só alimenta uma aspiração cons
tante: — não lucíar! Independencia e 7 de
Abril sem luctas, Abolição e Republica in
cruentas !
Isso, que, para o crysól da critica histo
rica, e entre os optimistas, representa a prova
provada do nosso pacifismo cavalheiresco, é
antes um padrão bem eloquente da nossa in
capacidade politica, e mais um titulo de acerba
ignominia» í1).
Contem esta linguagem cem vezes mais
violencia que tudo quanto escreveu Afranio
Peixoto no seu pretendido pamphleto contra
a nacionalidade brazileira. E é menos patrio
tica por isto? Não. Jamais se disse palavra
mais verdadeira e mais digna de ser ouvida
e acatada. Porque só não a comprehenderá
quem é incapaz de comprehender, de sentir
toda a belleza, toda a coragem de um grito
de alarma, nos limites de um campo que deve
ser de guerra. É a sentinella, é o companheiro
que véla de atalaya e poude distinguir, por
entre a treva, o brilho das armas inimigas.
Deu o rebate para que se levantem os va
lentes, os que teêm brio e o amor da propria

(i) Braziléa — I — N.° 1.


158 Affirmações

dignidade. Só os covardes, os que se sentem


culpados, os que não sabem lactar terão o
coração gelado, e, na voz que clama, escu
tarão a propria condemnação.
O escriptor que ataca os vicios de uma
nação não faz com isto obra de impatrio-
tismo. O proprio erro pode ser producto do
mais puro patriotismo e a sinceridade nem
sempre tem base de verdade. Ataquemos o
erro mas não erremos por nossa vez, em
prestando cores menos nobres a uma con
vicção.
Emfim, creio que posso dar por finda
a discussão do supposto impatriotismo de
Minha terra, minha gente. O livro é condem-
navel do ponto de vista da pedagogia infantil:
não é livro para creanças; se condemna o
nosso mestiço, não o faz de modo absoluto
e não é menos cruel para com os portuguezes;
se erroneamente glorifica as tradicções lusi
tanas, não mente quando não esconde a ti
bieza das nossas; se não verbera violenta
mente a fraternisação dos ideaes brazileiros e
portuguezes, neste momento, pelo menos deixa
ver o espanto que uma tal monstruosidade
causa ao autor.
« O Brazil é uma immensa carta sem en<
dereço » — diz Afranio. E não haveria duvidas,
se de facto caminhassemos de novo para os
braços de Portugal. Jamais o destino, esse
Affirmações 159

incansavel carteiro, adivinharia o que a mão


tremula da covardia e da indignidade houvesse
escripto . . .

Tambem não me contradigo (como se


não contradiz Alvaro Bomilcar, nem Afranio
Peixoto que, como nós, é um optimista do
nosso futuro) quando, após ter feito o elogio
da nossa evolução historica, não escondo e
condemno o nosso servilismo em relação á
antiga metropole ou a nossa anarchia politica.
O facto é que entre o chamado escol da
nação e o que é, propriamente, o povo bra-
zileiro ha uma enorme differença, e é, justa
mente, esta pretensa elite a herdeira de todas
as mazelas da civilização portugueza. Ora é
ella quem constitue, politicamente, a nação —
é ella o Estado, as leis, a opinião valida,'
a nossa feição exterior aos olhos do mundo —
e não é assim um erro condemnal-a sob o
nome do povo brazileiro. Aos olhos do mundo,
repito, ella é, de facto, o povo brazileiro.
Esse outro verdadeiro povo brazileiro, que tão
serenamente tem evolvido, e soffrido todo o
desregramento e egoismo da gente que o
governa, esse outro povo brazileiro, que ha
de um dia governar-se a si mesmo, pelos
160 Affirmações

orgãos de uma legitima representação dos


seus ideaes, (note-se que isto nada tem que
ver com representações de feitio democratico,
revolucionario), esse, nada tem que ver com as
nossas accusações, é elle mesmo quem as faz,
porque nós, os nativistas, os patriotas bra-
zileiros, nada mais somos que povo, povo na
sua mais consciente humildade. Sabemos per
feitamente que não reside nestes grandes cen
tros populosos do littoral a verdadeira aris
tocracia brazileira, mas de nós mesmos ella
ha de surgir um dia, das nossas dores, das
nossas humilhações para vingar quanto, como
povo, temos soffrido das incriveis ousadias do
metéquismo canalha e aventureiro, que está
de posse, quasi absoluta, até hoje, de todos
os orgãos constitutivos da nossa vida politica.
Desde já o que é preciso determinar é
a nossa tradição, a tradição realmente bra
zileira, para que nos guie o verdadeira espirito
historico da nossa nacionalidade. Não tem
pouca razão Charles Maurras quando observa
que a verdadeira tradição de um povo não
pode ser a das suas revoluções, por mais
felizes que se nos apresentem. Dadas, porem,
as condições especiaes em que se formaram
os povos americanos, é força confessar que
a revolução nem sempre pode ter para nós
o caracter negativo com que apparece na
historia das nações européas.
Affirmações 161

A tradição brazileira, por exemplo, for-


smou-se pouco a pouco debaixo mesmo do
regimen colonial mas só a revolução contra
a metropole lhe deu o caracter formal
com que se mantem até os nossos dias.
José de Maistre dizia que ha revoluções
legitimadas pela Providencia.
As dos povos americanos contra as suas
metropoles estão, todas ellas, neste caso. E
preciso respeital-as. Ellas, como disse, deram
forma real á nossa tradição, deram-nos o ca
racter legitimo de povo livre, que nunca se
riamos se não tivessemos uma tradição a cul
tivar e respeitar.

IV

Vejamos agora como nas bôas naturezas as


forças más, insensivelmente, se neutralizam:
assim como o estudo das sciencias naturaes
fez com que em Afranio Peixoto se pudesse
conservar intacto o amor da natureza e da
vida, o seu scepticismo, por ser essencialmente
infenso a toda systematisação, nem consentiu
que se emparedasse em puros dominios de
analyse, nem suffocou o artista sob o peso
de uma construcção logica, dessas com que
162 Affirmações

o individualismo philosophico tem por norma


orgulhosamente suicidar-se.
Não tenho nem de longe a intenção de fa
zer critica propriamente literaria da obra de
Afranio Peixoto», e sim de falar da physionomia
moral com que ella se me revela; mas devo
dizer que o apurado gosto que se lhe nota,
desde a publicação da « Esfinge », cada vez
mais seguro, não poderia alliar-se a tanta vi
vacidade e frescura, a tanta espontaneidade,
se não fôra ainda animado, interiormente, por
aquelle mesmo espirito idealista com que es
creveu as paginas de « Rosa mystica ».
Criticos de responsabilidade, como o Sr.
Tristão de Arhayde e Ronald de Carvalho,
têm-no collocado entre José de Alencar e
Machado de Assis, no quadro da nossa lite
ratura de ficção; mas sem desconhecer que
de ambos ha nelle um traço caracteristico,
deve-se dizer, no entanto, que o que o liga
a Alencar é natural, faz parte mesmo da sua
natureza e é o que elle deverá esforçar-se por
desenvolver, ao passo que, de Machado, o
que se lhe nota é influencia literaria, exte
rior, que o tem levado a preciosissimos de
expressão e a attitudes mentaes que, a meu
ver, não perdurarão. Refiro-me ainda a esse
ou aquelle excesso em que, por vezes, tem
cahido, apparentando um negativismo que toda
a sua vida desmente, e no proprio Machado
Affirmações 163

era de certo secreção de intima e profunda


ferida, que ninguem já desconhece, e a que
faltou, até quasi os seus ultimos dias, o bal
samo da fé, que só elle reconforta.
Em todos os romances de Afranio Peixoto
apparece, de facto, um personagem, pelo menos
— e é assim o Dr. Lisboa na « Esphinge »,
o « Gonzaga » de « Maria Bonita », o Zoroastro
e o Dr. Virgilio de « Fruta do Mato » — que é
como que o écho do intimo pensamento com
que julga Afranio estar construindo a sua
obra. Lembram, não resta duvida, os typos
sinuosos de Machado, indecisos mas sábios,
ou melhor, sabidos, espertalhões, serenos na
apparencia mas soffredores no fundo, de
grande bondade que se disfarça com pequenas
maldades puramente mentaes, mixtos de ti
midez e passividade intelligente ante a vida,
e de audacia negativista ante todos os ideaes.
Taes typos sommados póde-se bem verificar
que fazem o Afranio, que fala directamente
nas « Parabolas ». São negadores superficiaes
e ardentes amantes da vida; mas vem da
creação delles e da revelação das « Parabolas »
o attribuir-se a Afranio feição materialista, que
nunca manteve, rigida e espessa, nem mesmo
na sua obra de sciencia, toda ella, como já
demonstrei, de caracter eminentemente pragma
tico. Seja como fôr, ao observador vulgar não
póde deixar de impressionar muito aquella
164 AffirmaçÕes

constante victoria da vida material sobre a


vida do espirito, tão explorada nos seus
livros, aquella constante negação, directa ou
indirecta, dos supremos fins nobilitantes da
existencia. Nós, porém, podemos dizer que ha
talvez em tudo isto ainda, uma affirmação in
directa. É o proprio Dr. 'Lisboa quem, na
«Esfinge» nos revela o segredo do escriptor:
« O gesto é uma confissão » — diz elle — « Diz
menos a idéa, porque é apenas um movimento
abortado. Só a acção vive integralmente ».
Ha assim em Afranio Peixoto, com todos
os defeitos inherentes ao pragmatismo de ori
gem scientifica moderna, um apologista da
acção, mas tão longe está da grosseria ma
terialista que a sua obra não tem nem os
caracteres exteriores especiaes do naturalismo,
ou melhor, só acolhe do que se concertou
chamar naturalismo, o que é commum a toda
verdadeira obra de arte, que não póde des
conhecer a natureza. Já o disse Longhaye:
«Pur idéalisme, réalisme pur: deux chimères.
Ni le plus fantastique des poètes ne s'affran-
chit tout à fait des réalités sensibles, ni Jíe
plus minutieux photographe de lettres n'é-
chappe à la necessité de mettre du sien dàns
sa vision des choses, par oú il les idéalise
déjà» (i).
(x) G. Longhaye — Dix-Neuvième siècle IV —
Le romance.
Affirmações 165

Mas não resta duvida que ha uma cor


rente naturalista, e é a que diminue o homem
de tal modo, que elle fica sendo um puro
joguete das forças naturaes. Ha em Afranio
tambem, não resta duvida, essa tendencia, e
é ahi que se pode observar a influencia de
Machado sobre a sua obra, no periodo que
vem de « Esfinge » a « Parabolas ». Todavia,
é conveniente advertir que a natureza era para
Machado idéa ainda muito mais abstracta do
que a que geralmente della se tem. Por isso
disse delle Mario de Alencar que fez « natu
ralismo ás avessas» e é, de facto, psychologia,
toda a sua obra, como o é a parte da de
Afranio, em que se lhe altera a visão idea
lista das coisas. Ambos, tanto Machado como
Afranio, são, na realidade, dois espiritualistas
desorientados, amargos, vesgos muitas vezes,
mas espiritualistas. Viveu Machado e vive
Afrânio a concertar com a razão a visão in
genua dos sentidos. Quasi sempre, porque lhes
falte a consciencia religiosa dos fins da exis
tencia, sae-lhes peior a emennda do que o
soneto ... Mas, de bôa fé, não se lhes póde
negar a ordenação, o gosto, que jámais se
alliaram á grosseira visão puramente mate
rialista, sensualista da vida. «Dans l'art comme
dans la vie, (out git à maintenir I'union or-
dennée, normale, des deux éléments qui nous
font hommes: 1'esprit et la chair, I'âme et
166 Affirmações

les sens. En conduite ou en littérature, qui


Ia professe ou la maintient est proprement spi-
ritualiste». (Longhaye, obr. cit. 53).
Quem poderá negar que Afranio man
teve, em toda a sua obra literaria, este equi
librio?
Até em relação ás semelhanças que podem
ser notadas entre alguns de seus romances e
os de outros autores, ainda se póde adduzir
que taes affinidades são verificadas justamente
com escriptores de feição essencialmente con
traria aos processos naturalisticos, de espirito
a que repugna uma concepção puramente ma
terialista da vida.
Ha em « Maria Bonita », por exemplo, a
amplificação do mesmo quadro em que se
move o destino de «Maria Rosa», de Xavier
Marques, o admiravel artista seu conterraneo.
Tanto a novella de Xavier como o ro
mance de Afranio recordam o mesmo drama
tão commum, e que já a poesia de Garcia
Rosa, em Sergipe, assim resumiu:

« Tenho pena de ti porque és formosa


E não sabes talvez que a formusura
Torna ás vezes a moça desditosa ».

Ainda mais verdadeiro é o seguinte:


Afranio amplificou o proprio drama, e além
de o ter deslocado do scenario daquellas, ao
Affirmações 167

mesmo tempo melancholicas e ardentes praias


do Norte, para o interior bahiano, para o seio
do revolto sertão, que é tambem como um
vasto mar de gentes semi barbaras em eterno
conflicto com as muralhas de artificialidade
da nossa vida. urbana e propriamente politica,
deu-lhe um sentido, transformou o que no
outro é desenrolar de paixão rude e simples,
em testemunho da eterna irritação dos deuses
contra a virtude e a belleza dos mortaes.
Em «Maria Bonita» o idylio, que é todo
o «Maria Rosa», quasi que se deixa dominar
pelo espirito de analyse, mas o pessimista que
Afranio Peixoto quer ser, ainda assim não
ousou fazer de Maria Bonita instrumento con
sciente de maldade. O mesmo senso moral
que fez com que Xavier Marques fizesse de
Maria Rosa uma flor, cujo viço magnetisa
as brutas paixões humanas que, por fim, a
destroem, mas sem macular-lhe a pureza innata,
a humana simplicidade, o ingenuo encanto, te-
ve-o Afranio ao modelar Maria Bonita, raro
sonho, dolorosa belleza, um dos typos — no-
te-se bem — mais puros, mais nobres, mais
suaves, mais espirituaes de toda a nossa lite
ratura de ficção.
Differença notavel, porém, é, como já fiz
ver, esta, e em que se verifica, mais uma vez,
o idealismo do autor de «Maria Bonita»:
Xavier Marques reflecte, estheticamente o drama
168 Affirmações

e o scenario; Afranio Peixoto reflecte ainda a


pmlosophia mesma desse drama, uma especie
de convicção raciocinada de que as cousas
bellas e boas são, por isso mesmo, fadadas
á infelicidade, á amargura, á ruina precoce,
á desgraça. E este seu modo de ser é tão
accentuado que afinal a gente fica a imaginar,
lidas as duas formosas obras de arte, que
nada as irmana senão a suggestão dos titulos:
«Maria Rosa», «Maria Bonita», e o mesmo
soffrimento.
A outra affinidade merece tambem séria
attenção da parte de quem queira fazer a
critica da sua obra de arfisfa, e é a que se
deixa ver entre um dos seus typos mais per
turbadores e até perversos e uma celebre per
sonagem do já distanciado Garret. De facto,
a Joanninha de olhos verdes e mysteriosos
das «Viagens á minha terra», do grande ro
mantico portuguez, reapparece com o mesmo
nome, se bem que de olhos negros, em « Fruta
do Mato».
Attenda-se á differença de meio physico e
social e verificar-se-á que o que ha de natu
ralismo no livro recente de Afranio, ainda
é o mesmo que já se podia notar na obra
do nobre romantico peninsular — e pode ser
encontrado na obra de todo verdadeiro ar
tista: um grande e poetico amor da natureza
mas, porque poetico, eminentemente humani
AFFIRMAÇdES 169

sador, configurador, diria Chamberlain, do


objecto a que se refere. Eis porque a natureza
que nos descreve Afranio parece viver tambem
vida humana, vida de sentimento e idealidade,
ou melhor: ha uma permanente penetração
da paisagem, do meio physico pelo espirito
do paisagista — e não só o contacto vulgar
entre a sensibilidade humana e o meio am
biente — a ponto que o que mais se deixa
ver é o homem, o seu amor, as suas dores,
as suas alegrias impressos sobre a face das
cousas que o rodeiam. E é assim desde a
« Esfinge » :

«Errou á tôa por Petropolis, ao longo


das avenidas solitarias, olhando as estrelas
trémulas, as arvores adormecidas, o rio pre
guiçoso que fluia, sem ruido, e encontrando
um ou outro caminhante, cujos passos re-
soavam apressados no lajedo ... A luz fran
zina e espaçada das lampadas cercava-se de
um halo branco de umldade: borboletas negras,
de olhos acesos e asas pesadas, esvoaçavam
em torno, num esforço insistente e baldado,
querendo penetrar o mistério da chama.
Elie pensou, em amargura, que se agitava ••
também inquieto, em torno da sua ilusão ». . *

Pode-se dizer de Paulo que o seu «desejo


vencido » fizera aquella « ultima harmonia de
170 Affirmações

Petropolis», emprestando meditação, tristeza,


contricção, fatiga ás cousas sobre que demo
rava o olhar inquieto e triste. Assim fôra já
em Athenas ao deparar-se com a mulher a
quem deveria decifrar e sacrificar a sua illusão
de creador: a sua humanidade de homem
culto, tocado pela graça do amor, faz que
a paisagem se revista de toda a melancolica
magestade, de toda essa limpida poesia da sua
historia, mas que nem todos podem ver e
sentir.

« Desembarcaram, e em carro descoberto


rodaram pelo cáes movimentado do Pireu,
depois nas ruas desertas de Falero, em de
manda de Athenas, por uma longa avenida
que fechavam lá no fundo as columnas bran
cas e arruinadas de um templo, la-se aproxi
mando o rochedo da Acrópole, coroado de
marmores e memorias sagradas ... O sol po
ente, do outro lado do mar Jonico, para além
das montanhas do Peloponeso, submergia
ainda o Partenon numa poeira dourada. Man
chado a espaços pelo verde escuro dos jardins
um casario branco e indistinto, estendia-se entre
as colinas. A do Museion parecia avançar-lhes
ao encontro. Em Licabéie, recuada e ao lado,
vivia ainda, num cimo, uma aspiração para
o céo . . . Quasi rasa, Colonos, perdia-se no
fumo da distancia. A sombra violenta do fii
Affirmações 171

meto, fechando o horizonte, como que tinha


um aspecto de tristeza meditada . ..
Elie pronunciava algumas palavras, apenas
indicando os sitios e louvando o encanto da
paisagem ... e absorvia-se ás vezes, olhando
para o rosto delia, harmonioso com a sere
nidade perfeita daquelle scenario . . .
O encanto da tarde, a magestade evo
cadora dos togares, um tepido sopro de pri
mavera que desabotoava os campos e apres
sava os corações, deu-lhe a sensação deliciosa
de poesia e de graça, em que a tristeza do
que passou se juntava intimamente ao en
canto do que vivia ...»

Como se vê são as cousas que vão ao


encontro da alma que as chama, dominadora,
senhora do tempo, que as gerou, destruiu, fez
resurgir . . .
E Paulo fala por isto a linguagem da
poesia, a unica que é digina do mesmo homem,
quando assim póde sentir-se, mais vivamente,
á semelhança do Creador:

« Dos recessos da lembrança uma idéa


despertou . . . iomou-o uma emoção silenciosa . . .
e nos labios desabroxou timidamente uma
imagem de movimento, em algumas palavras
sem som . . .
Percebeu Lucia nos labios delle esse fre
172 Affirmações

mito sonoro que palpitava, como ása que en


saiasse voar:
— A belleza de Athenas o fez poeta?
Elie balbuciou com emoção grave e pro
funda:
— Deuses! homens! eu vi, eu vejo He
lena! »

Não é esta a visão de um verdadeiro


materialista. A predominancia db espirito aqui
se impõe irresistivel, como um mundo mais
nobre e mais bello que se sobrepõe ao mundo
das coisas e até mesmo ao que se poderia
chamar o mundo das sensações directas e im-
mediatas.
Ha talvez ainda por ali e, além positi
vamente, nas paginas da « Esfinge » algo da-
quelle maleficio que faz o pernicioso encanto
das obras de D'Annunzio. Mas este mesmo
que é elle senão um grande espiritualista des
vairado, doentio, soberbo como Santanaz dos
proprios erros? Que é elle senão o espirito
audaz que só ouviu a promessa da ressurreição
da Carne na vida eterna e abriu as azas da
revolta, de brilho fascinante, sobre as proprias
trevas do coração infeliz, infinitamente am
bicioso? Mas aquella resurreição não póde
casar-se ás impurezas da carne e, de facto, o
que ficará da obra de D'Annunzio ha de ser
o que ella diz do homem, do homem, mesmo
Affirmações 173

maldito, sob o peso da maldição, mas sempre


graiide, porque de brilho mais infenso ful
gura o sello do espirito de Deus sobre a sua
fronte, a que as paixões, o orgulho incen
deiam.
E Afranio quão longe eálá de qualquer
satanismo poderá avaliar quem souber obser
var o cuidado, a medida com que elle revolve
o mundo mesmo das paixões e do orgulho,
que ha de ter tambem no fundo da aima.
As suas confissões tão leves, são tão in
directamente feitas que jámais, pode-se dizer,
esqueceu Afranio os christianissimos preceitos
de respeito a si proprio e horror ao escandalo.
Esta predominancia do espirito em toda
a obra literaria de Afranio Peixoto ainda se
faz mais notavel nos seus ultimos romances
— « Maria Bonita » e « Fruta do Mato ». Nelles
como nos de Machado de Assis a paisagem
não é feita da cuidada pintura das coisas —
forma-se naturalmente ante o leitor attento
pela força mesma de irradiação dos persona
gens que a reflectem, trazem-na no olhar, nos
modos, na linguagem. E ainda mais predomi
nante, diremos, que em Machado, porque mais
moderada, mais medida, o que subentende
mais força espiritual, pois o espirito é sempre
mais senhor seja do que fôr quando principia
por ser senhor de si mesmo. Ora, na obra
de Machado o homem se move num meio
174 Affirmações

puramente humano, isolado de tudo o mais,


ao passo que na obra de Afranio esse meio
é o mais importante, o mais vivo, o que
mais lhe interessa, mas assentado por sua vez
num maior circulo de mysterio, sobre a na
tureza a que domina e ama.
Onde tambem se póde verificar esta pre
dominancia do espirito em todas as obras de
arte do autor de « Maria Bonita » é no seu
amor ás idéas, amor de que estão cheios
todos os seus livros. Desde a publicação da
« Esfinge » levantou-se a duvida entre criticos
valiosos como José Verissimo e Mario de
Alencar se o autor ali desenvolvia uma these.
Fico ao lado dos que, nesse como em todos
os demais romances de Afranio, encontram
não só uma these mas uma multidão dellas
— se não todas tão claramente expostas como
a da inferioridade do nosso mestiço, a pes
sima these que afeia « Fruta do Mato », pelo
menos, com maior discreção, todas ellas trans
portadas dos seus livros de sciencia. Não devo
repetir o que a maioria dellas me merece.
Mas o que toda a sua obra literaria re
vela, ao contrario do que, com certeza, pensa
o proprio Afranio, é uma grande bondade.
Já se disse que Machado de Assis como
que tinha vergonnha de ser bom e escondia
as dores de seu coração nesse mundo mys-
terioso que é «a lagrima que ri» nos olhos
Affirmações 175

do humorista. Não será esse o mais mys-


terioso dos mundos em que a alma humana,
naturalmente christã, como tão profundamente
já dizia Tertuliano, esconde a sua intima e
original nobreza? Mas o caso de Afranio é
um pouco differente. Elle não tem vergonha
de ser bom. Teme talvez um pouco que o
tenham por incapaz de maldade, attendendo a
que a vida é uma guerra. Não só isto, porém:
quer que o que tem de bom no coração tambem
se imponha, não porque elle proprio o re-
commende aos olhos do mundo, mas por
força mesmo do desinteresse com que se
apresenta, assim em meio a um turbilhão de
ironias, a este mesmo mundo que a tudo
impõe o sello do interesse.
Então, por vezes, se lhe aguça demasiada
mente, como se deu com Machado, a capa
cidade de desmentir todo o bem que o seu
coração sabe querer. Mas o tom sombrio que
então se espalhava sobre a obra de Machado
era sombrio mesmo, tão sombrio, tão impe
netravel, que se chega a duvidar se tem valor
a hypothese da sua bondade. Lêde, porém,
da obra de Afranio, a pagina mais amarga.
E evidente a superficialidade do seu rancor,
do seu despreso, do seu nojo, da sua des
crença dos homens. O que ha, sim, algumas
vezes, sobre uma explendida affirmação de
amor á vida, sobre a fronte mesma da bel
176 Affirmações

leza a que adora, é a sua lagrima sincera,


o brilho da sua magoa, pelo sentimento do
passageiro de tudo e da imperfeição que a
tudo fere, lagrima que rola, ás vezes, e busca
esconder-se num vasto seio de aguas revoltas,
agitadas mas nunca tenebrosas e realmente
ameaçadoras.
Tambem, como já disse, não é de meu
proposito fazer critica da obra literaria de
Afranio Peixoto. Quiz somente mostrar que
ella, na sua complexa objectivação intellectual,
sendo a manifestação mais espontanea e, ao
mesmo tempo, a mais profunda, é, em muitos
dos seus aspectos, como que uma timida mas
dolorosa e, por isto, preciosa retratação de
muitas falsas e levianas affirmações do seu
scepticismo, esse scepticismo que parecendo
ser a nota predominante em toda a sua obra
de sciencia, de pensador e de artista, é, no
entanto, a meu vêr o que menos diz da sua
propria natureza, deixando-se vencer a cada
passo pelas affirmações idealisticas do seu
senso pragmatico das realidades sociaes ou
por esta força de sentimento e de poesia
que o fez um dos artistas mais queridos e
mais merecidamente admirados do Brazil con
temporaneo.
AS IDÉAS GERAES DE FIDELINO
DE FIGUEIREDO

(Conferencia realizada na Bibliotheca Nacional)

De todos os escriptores extrangeiros que


têem visitado o Brazil, nestes ultimos annos,
foi, a meu ver, Fidelino de Figueiredo o que
aqui veio representar das velhas gentes dia
Europa um ideal verdadeiramente digno de
respeito e attenção, fora do circulo em que
se movem os pensadores catholicos, propria
mente.
De facto, espirito formado entre as forças
destruidoras do pandemonio revolucionario,
que tem degradado o seu povo, como a todos
os mais povos tem degredado, Fidelino de
Figueiredo logo se apresenta em sua obra,
sem disfarces, como um reaccionario, sinão
extremado, pelo menos, na ponderada sisudez
de tudo quanto escreve, fortalecido por uma
13
178 Affirmações

alta cultura tradicional, que não se teme de


enfrentar as furias dos iconoclastas de todos
os matizes, que são todos os soldados da
Revolução, sirvam a que amo sirvam.
É assim que elle fala com o sereno des
temor de uma verdadeira convicção:, em pa
gina que diz tanto do pensador quanto do
homem de acção: «A seguir a uma revolução
tão propositalmente anti-historica, como foi a
que implantou a Republica em Portugal, logo
receámos que os intuitos que a animavam, mo
ralidade administrativa e progresso das liber
dades publicas, fossem suppridos por simples
reformas externas, de liturgia social, que uma
crise racionalista tornasse jacobina uma re
volução essencialmente economica. Os factos
deram-nos razão, confirmando as nossas ap-
prehensões. Para contribuir quanto possivel
para que aos progressos do racionalismo po
litico, com todo o seu cortejo de consequencias,
— perseguição religiosa, intolerancia, despo
tismo do Estado, corrupção politica e demago-
gismo, unilateralidade de cultura no ensino pu
blico! e na sciencia, reduzindo á estatistica e aos
orçamentos as unicas bases para a elaboração
de reformas — se oppuzessem, ao menos, al
gumas vozes em defesa de processos inteira
mente adversos, se bem que plenamente com
pativeis com a parte mais essencial do pro-
gramma do novo regimen, iniciámos uma col
A.FFIRMAÇÕES 179

lecção de estudos historicos nacionaes e pro


movemos a fundação de uma sociedade his
torica» (*).
As palavras que ahi ficam e o facto que
ellas revelam, de caracter eminentemente pra
tico, são magnifica prova de que o illustre es-
criptor portuguez é um verdadeiro homem de
pensamento, e não só de letras, e póde ser
vir de exemplo de coragem e perseverança a
quantos, em qualquer paiz do mundo, descon
tentes da tyrannia do racionalismo revolucio
nario, pretendam reagir em nome do espirito
historico de sua nacionalidade. É de notar
tambem, e melhor o provaremos no desenvol
vimento deste breve estudo, que Fidelino de
Figueiredo, como todo o espirito realmente
autonomo, não se proclama um portador de
originalidades e se honra de pertencer a uma
destas grandes correntes philosophicas que ani
mam a vida intellectual do Occidente e buscam
uma realização de ordem pratica e social.
Fidelino de Figueiredo é, caracteristicamente,
um dos mais altos representantes do pragma
tismo, tal como as civilisações latinas o podem
conceber e amar, quero dizer, ainda mais intel-
lectualista que propriamente pratico, mais in
clinado a crer no primado da intelligencia,
que no da vontade, tentando, porém, com se-

(*) O Espirito historico, 19.


' Affirmações

riedade .e desinteresse, um equilibrio entre as


duas forças principaes que dominam o que
os allemães costumavam chamar « a totalidade
humana ».
E' dentro desfe largo programma de pen
samento que, tendo posto de lado, definitiva
mente, ao que parece, a obra de ficção com
que encheu os dias da sUa juventude (')»
Fidelino de Figueiredo faz obra de historia
dor e de critico, obra, de certo, a mais nota
vel .de que se pode gabar o seu paiz, etn
todos os tempos, pelas suas caracteristicas de
independencia, rigor de methodo, pelo menos
em cada uma das suas partes, e nobilissimos
fins sociaes, que logicamente se deprehendem
da severa attitude com que se antepõe aos
preconceitos vulgares de um meio politico que,

(i.) Fidelino de Figueiredo, ao que me informa


um dos seus criticos, o Sr. Eduardo Moreira^ é autor
de alguns volumes de contos e novellas, Maria e
O orphão (1905), Os amores do Visconde (1906),
Sonatas (1908), Os humildes (1908), etc. Estes tra
balhos representam, diz o Sr. E. Moreira « a febre
productora da precoce mocidade». E accrescenta: «Era
o moço de então generosamente rebelde, como hoje o
homem é honestamente ponderado ». São afinal, para
dizer-se tudo, trabalhos dos quinze annos ... E se
dizem de rebeldias são provas, felizmente, de dolo
rosas exj»eriencias, pr©>ra de que a actual attftude
philosophica de Fidelino de Figueiredo tem o sello
do soffrimento e do amor da verdade.
AfFWyiAçõÇ£ 181

áí força,- de querer democratizar um povo, sem


que este* de facto, possua o qHf, se entendeu
chamar de espirito democrático, só tem coii-
seguido impôrrlhej até; agora, os tristes, tri
butos da demagogia revolucionariaf Esta,
idéa patriotica, altamente patriotica* faz-se;
sentir em toda a obra de Fidelino de Figuei
redo e é:Of que mais nos interessa, justamente,
nesta vasta constrqeção em: que Ha* no em-
tanto, muitas outras faces dignas de admira
ção, desde a opinião franca, e corajosa com
que esmaga alguns principios contemporaneos
do reclamo literario, até a profunda e quasi
inexgotavel erudição sobre a literatura por-
tugueza ou a literatura de toda a peninsula
iberica. O pensador independente, autonomo,
movendo-se no circulo da sua concepção pra
gmatica da vida, tem, por força, que ser um
combativo, no mais alto sentido da palavra,
'e eis porque de alguns dos seus livros, ou de
quasi todos, se pode dizer o que elle proprio
já disse de um, isto é, que são «actos moraes».
Em verdade dizer alto e bom som uma palavra
de bom senso aos que fazem garbo da blas-
phemia e da injuria, é revelar-se muito mais
do que uma pura intelligencia, é revelar-se
uma consciencia, no sentido que geralmente
costumo dar a esta palavra: um espirito capaz
de sentir e pensar moralmente, e quem sente
e pensa moralmente tem que viver sempre em
182 Affirmações

combate com os mystificadores da multidão,


demolidores da dignidade humana sobre o
planeta, como diria talvez José de Maistre.
Fidelino de Figueiredo a esta coragem de
reagir junta, porém, e nisto está a sua mais
pura gloria, a faculdade de construir, mesmo
em meio da desordem. Não attende só á de
fesa ante o ataque de que se sente victima na
violencia que fazem á tradição lusitana — atten
de a esta tambem, directamente, protegendo-a,
buscando animal-a, rejuvenescel-a, fortifical-a,
construindo e dedicando um largo templo de
respeito e amor a cada uma das suas imagens
mais queridas — desde a da tradição politica
até a da tradição literaria.
Assim, toda a sua obra, tendo mesmo em
linha de conta todos os retoques a que a vai
sujeitando o que, com razão, considera a força
progressiva de sua consciencia — não só de
critico, como já fiz notar, mas de pensador —
toda a sua obra, digo, ainda vive do mesmo
ideal que inspirou, em 1910, o seu, a meu ver,
principal livro, do ponto de vista do pensa
mento geral, e quero referir-me ao O espirito
historico, introducção á Bibliotheca de Estudos
historicos nacionaes, livfo que foi, de certo
modo, prophetico, em relação á grande trans
formação politica e social que a revolução
republicana triumphante quiz e quer impôr a
Portugal.
Affirmações 183

Nelle, Fidelino de Figueiredo, com o defi


nir o que chama de espirito historico, faz,
realmente, obra de philosopho, pois apresenta
toda uma theoria, senão em detalhe, pelo
menos, nas suas linhas geraes, do papel da
tradição e da idéa de progresso na vida dos
povos, isto, sob o pretexto de delimitar a
funcção critica do historiador. Veremos, e
exemplificaremos, que o seu amor da verdade,
sobrepondo-se ao amor da theoria, o poz, feliz
mente, mais de uma vez, em contradicção com
esta, naquelle mesmo livro e em outros, prin
cipalmente no seu notavel ensaio « Portugal
nas guerras européas », que é como uma obje-
ctivação do seu pensamento director, na sua
concepção da historia.
Assim, para Fidelino de Figueiredo está
o espirito historico para as sociedades como
o preceito socratico para os individuos, e,
neste ponto, folgo de registrar que entre elle
e o nosso Farias Brito ha a concordancia
necessaria em pensadores que, antes do mais,
não esquecem nunca o respeito devido ás tradi
ções do espirito humano, em cujas soberanas
azas palpita, nesta ou naquella forma original
e distincta, o que, em essencia, constitue a
« perennis philosophia ».
Para Fidelino o bem estar e a felicidade
de um povo assim como de um individuo ha
de repousar sempre numa auto-educação intel
Affirmações

ligente, que tenha, como conhecimento este


poder, ao mesmo tempo « coercitivo e liberta
dor», que é o signal das força? verdadeira*
mente beneficas.
Esta attitude é, claramente, uma attitude
forte de razão, ou melhor, dè legitimo racio
nalismo, que tambem existe e é aquelle que
se oppõe tenazmente ao vulgar racionalismo
que principia por desfigurar a natureza hu
mana, reduzindo-a a uma machina a serviço
de principios illogicos, isto é, enfermados da
mais impositiva falta de evidencia, collecção
de doutrinas que só têm servido, até agora,
para atear o incendio revolucionario, pois, em
nome da razão, o que têm feito, de positivo,
é lisongear os mais baixos instinctos do
homem.
Como pragmatista, que o é, sem descam
bar, porém, como já notei, pelo declive em
que se lança o grosso desta corrente, Fide
lino de Figueiredo, no meio agitado para que
escrevia, quiz, com animar os estudos histo
ricos, «temperar numa medida sensata e con
ciliadora o estreito racionalismo que — diz elle
proprio — ha de dominar a opinião publica e
a administração politica, a seguir a uma revo
lução de formulas ». E, buscando um exemplo
sempre facil a todos os estudiosos do mundo
occidental, accrescenta: «Foi tambem a cul
tura historica um dos meios usados em França
Affirmações

para limitar nas classes dirigentes a torrente


do racionalismo, e permittindo-nos recordar,
um exemplo duma distancia secular, porque em
todos os tempos, ainda mesmo no seculo XX,
será caracteristica relevante dos movimentos
revolucionários liberaes a malevolencia contra
a tradição, a tendência francamente anti-
histórica ».
Fidelino de Figueiredo não fugiu a uma
analyse do sentimento geral de historia desde
que o anima este espirito revolucionario, ou
racionalista, e determinando as suas origens
faz notar muito bem que não foi a França
o seu berço, ao contrario do que tanto se tem
affirmado. « Em França — diz elle — só se tira
ram as conclusões praticas dos principios esta
belecidos, por via especulativa, fora desse paiz,
principalmente em Inglaterra». E se não con
cordamos em que fosse aquelle paiz ambiente
proprio para a propagação das idéas chamadas
philantropicas, por ser a sua vida um triste
quadro de miserias, o que já está sufficiente-
mente desmentido por indagadores tão serios
quanto desinteressados, não ha com que inva
lidar a sua affirmação de que coube áquelle
povo catholico, por excellencia, o trabalho
de reproducção e propagação da malefica
philosophia de que decorreu o immoralismo
moderno e contemporaneo nas suas multiplas
feições politicas e sociaes. Para honra da
186 Affirmações

França, e da cultura catholica, porém, não só


a plasticidade de seu espirito e da sua lingua
explica a sua desgraçada missão. O que mais
concorreu para delegar ao povo francez esse
caracter preponderante na formação da pes
sima atmosphera moral em que se debate, ha
quasi dous seculos, o mundo christão, foi o
ardente espirito de proselytismo da «élite»
franceza e, sobretudo, « o espirito logico »
daquelle povo eminentemente pratico, por mais
que o neguem observadores superficiaes, o que
não impede ter nem o bom nem o máo ideal.
E era isto mesmo que esclarecia, em pagina
de soberana belleza e edificante patriotismo,
o grande Freppel, numa das suas pastoraes
sobre os desastres de 70:

« E' proprio do nosso temperamento nacio


nal que as doutrinas, quaesquer que sejam,
não fiquem jámais, entre nós, no estado de
fheoria; com o espirito lógico de que somos
dotados, tiramos dos principios as consequen
cias que contêm, e um dado systema que, em
qualquer outra parte, não se afastaria do hum-
bral das escolas e das universidades, desce até
as nossas massas tão aptas a apprehendel-o
quanto promptas a pôl-o em pratica. Em todas
as cousas temos o costume de ir até o fim,
sem recuar ante nenhuma applicação das idéas
uma vez admittidas e só temos um desejo

'
Affirmações 187

que é o de tornar conformes com ellas


os nossos netos ». « Energia fecunda — dizia
ainda o grande pastor — quando é a verdade
o que nos guia; tendencia fatal se é o erro
que nos arrasta.
« Eis porque, primeiro que todos, fizemos
uma bem amarga experiencia das theorias
malsãs espalhadas no mundo moderno. Desde
o seculo dezeseis a Inglaterra e a Allemanha
preparavam o veneno; bebemol-o exhaustiva-
mente na taça que nos apresentavam. Toda
esta cadeia de erros que começa na revolta
contra a Igreja e acaba na negação de Deus,
diante de nós se desenrolou com uma espan
tosa rapidez.
« Depois de tão violentos choques, como
espantar-nos se se nos mostra o edificio social
abalado até nos seus fundamentos? Esquecendo
que a religião é o primeiro elemento da vida
nacional, quizeram os sophistas banir Deus do
Governo das cousas humanas e dez revoluções,
uma após outra, vieram provar-lhes que o
poder não tem força, se não o resguarda a
magestade de Deus e a liberdade não tem ga
rantia se a lei divina não a protege ».

Não se poderia applicar esta pagina a


esse mesmo Portugal, dos nossos dias, dentro
do qual lucta Fidelino de Figueiredo por um
ideal de reconstrucção nacional?
188: Affirmações

Citei->a toda porque ella é como ura elo


de; ouro da corrente contra a revolução, que
vem de José de Maistre a< Lamazelle e tantos
outros, no momento actual, e ainda mais; o
faço porque aos pensadores, como Fidelino de
Figueiredo, deve-se mostrar com franqueza
que, muito mais do que suppõem, são deve
dores da doutrina catholica e^ no seu caso se;
verifica de modo singular esta influencia neces
saria do pensamento da Igreja nos caracteres
reflectidos e nas intelligencias amantes do me-
thodo e da ordem. Fidelino de Figueiredo,
talvez sem dar por isto, está na mesma cor
rente de Charles Maurras, sendo ambos essen
cialmente deductivos, mas soffrendo das. con
trariedades de um methodo adoptado ainda
por um pouco do que se pode chamar de res
peito humano ante os preconceitos da scien-
cia moderna, ou melhor, desta parte mais
imperativa da sciencia que desde os endeusa-
dores de Bacon, tem dominado as multidões
semi-letradas da Europa e mesmo do mundo.
Em verdade, a desconfiança ante a natu
reza do raciocinio deductivo parece que, como
notava José de Maistre (x) visou, primeiramente a

(') Sobre toda esta questão ver J. de Maistre


— Examen de la philosophie de Bacon, « Oeuvres com
pletes », 6.» vol:, ed. de 1884 — e o prefacio a este
volume feito por A. de Margerie.
Affirmações 189

sua maneira mais simples, o syllogismo, esque


cendo Bacon, em primeiro lugar, e depois os
seus apologistas, que confundiam as leis do
syllogismo com a forma syllogistica. Os ade
ptos de tal ! philosophismo, que pretendiam
combater Aristoteles, esqueciam ou ignoravam
que este, com ter demonstrado as leis do syllo
gismo ou do raciocinio, jamais aconselhou o
uso da forma syllogistica, em qualquer sciencia
racional ou experimental e tambem que o uso
e até o abuso deste methodo da parte dos
escholasticos são bem mais justificaveis do que
geralmente se pensa, tendo ainda servido muito
a espiritos de primeira ordem, na historia do
pensamento moderno, taes como Leibnitz :e
Kant. E é incontestavel o que fartamente provou
o mesmo José de Maistre, isto é, que o methodo
commummente usado pelos escholasticos valia
mais, pelo menos, que o celebre methodo baco-
neano de exclusão, absolutamente irrealizavel
a rigor, em qualquer sciencia, e de que jámais
dependeu nenhuma descoberta, não direi já
no dominio das sciencias puramente raeionaes,
mas no dominio mesmo das sciencias experi-
mentaes, por excellencia.
É que a inducção jámais foi senão, como
ainda diz oadmiravel José de Maistre, «o bom
senso de todos os seculos » e como já deixara
ver o autorizadissimo Euler, entre o syllogismo
e a inducção, a distincção é impossivel, quando
190 Affirmações

não se queira cahir nas mesmas subtilezas


em que resvalou A. de Margerie, no seu pre
facio ao Examen de la philosophie de Bacon.
Porque quando A. de Margerie disse que a in-
ducção, considerada como movimento e marcha
natural do espirito, não é o syllogismo, es
quecia tambem que José de Maistre já clamara
contra os que fazem confusão do syllogismo,
lei necessaria do raciocinio, a que se pode
reduzir todo raciocinio, e a forma syllogistica,
que é uma pura expressão verbal do racio
cinio deductivo simples e regular
É evidente que o cuidado com que os pen
sadores contemporaneos evitam a pecha de
deductivos ainda se liga a este preconceito,
absolutamente risivel, contra o syllogismo.
Entretanto basta que, de animo despreve
nido qualquer pessoa busque apprehender
quanto ha de verdade na affirmação de Huet,
citado tambem por José de Maistre : « todas as de
finições por generos e differenças nada signi
ficam se não se conhece anteriormente o gé
nero e a diferença ». Como, deante de racio
cinio tão simples e claro, excluir a deducção,
maxime das sciencias ligadas á vida moral?
Porque, como induzir-se, se nos escapam as
definições, isto é, o sentido das palavras, pelo

(') V. a respeito, Sortais — Traixé de philosophie


— Espèces de raisonnements.
Affirmações 191

menos? Como não partir do geral para o


particular, de verdades gieraes para verdades
particulares, quando assim se attende a uma
lei de menor esforço, dado que o homem
historicamente, e de outro se não póde fallar,
sempre encontrou, em todos os meios, as idéas
geraes com que se move e de que alimenta
todas as suas idéas particulares em sociedade,
dado que é este o processo mesmo da natu
reza? Claro como o so^l é que o que é essencial
a qualquer sciencia é a idéa que ella propõe
e só o accidental tem que ser ordenado pela
inducção, para os fins praticos a que a sciencia
tem que attende/", e a que deve servir de ideal
a propria sciencia realizada, isto é, a plena
objectivação da idéa geral que ella é. E, neste
ponto, é de notar a absurda posição de certos
pragmatistas, como Fidelino de Figueiredo, que
não querem que as sciencias tenham esse ca
racter de interesse immediato pelo que é util
ao homem como se uma sciencia sem utilidade,
já de si não fosse um contrasenso.
Foi, entretanto, o que quiz fazer Fidelino
de Figueiredo em relação á historia, cuja func-
ção social devera ser cumprida, a seu ver, im
plicitamente, «como a exerce qualquer sciencia
que honestamente labuta pela verdade, não
como fim procurado, mas em consequencia de
ser a historia o estudo das transformações das
sociedades humanas». E continua: «O que á
Affirmações

historia cumpre é diffundir o «spirito historico,


designação que já empregamos e que nós ado
ptamos para designar abreviadamente um de
terminado pendor intellectual, um conjuncto de
habitos mentaes, taes como o gosto dos es
tudos do passado e o respeito por tudo que
o evoque, processo critico de pôr todos <»s
problemas sociaes na sua derivação temporal,
e a serenidade confiante perante as transforma
ções sociaes, que são indicios daquelle inces
sante movimento, que esses mesmos estudos
do passado nos patenteiam. Só o espirito his
torico alcançará esse almejado equilibrio entre
o conservantismo tradicionalista e o moder
nismo progressista, só por elle se poderá con
ciliar a preguiçosa rotina e a impetuosa neo-
philia, elle só limita os extremos secta
rismos » '(').
Nem comprehendo como se póde propor
uma tal neutralidade a uma sciencia, de ordem
moral. Aliás Fidelino de Figueiredo ficaria em
baraçado, por força, se entre dous estudiosos
de historia ouvisse de ambos que pugnavam
pela tradição nacional e, entretanto, lhe fosse
facil verificar que ambos tinham ideaes c*p-
postos e até inimigos. Ver-se-hia, não ha du
vida, como homem que se revela um cara
cter, obrigado a fazer o que, em França, teve

(1) O espirito historico, 2.a edic, 10.


AlTEIflRíljA.ÇÕES

que fazer Charles Maurras: determinar, qual


é esta tradição nacional, e ficar ao lado, de
quem a representasse, de facto. E não é, santo
Deus, o que tem feito Fidelino de Figueiredo?
Positivamente. Todos os seus livros, não só
de historia, mas de critica, são delimitadores da
tradição portugueza e iberica, isto é, mostram
as linhas claras e definidas do que é, caracte
risticamente, o genio portuguez e hispanico,
em geral. Não ha duvida que o homem, ser
racional e livre, o é, entretanto, dentro do
circulo social em que Deus o poz, dando-lhe
uma taboa de valores moraes a respeitar. O
homem é em muito o que é a sua patria, e
quando se põe fora das leis vitaes desta
mesma patria é sempre um ser abjecto ou um
tresloucado. Fidelino, nem de longe, desres
peitou, até agora, nem consentiu que impune
mente se desrespeitasse, esta lei dos seres
normaes, do ponto, de vista da historia social.
O que elle não quiz foi, expressamente, aban
donar o methodo preconisado de passar sempre
da analyse á synthese, não ouso,u confessar
que na sua consciencia, ao emprehender o
seu herculeo trabalho de critica, sobre os ele
mentos heterogeneos que fazem a vida de
cada nação, maxime nos tempos modernos, já
estava de posse do que se pode chamar os
dados irreductiveis da tradição patria.
Analysal-a, justificando-a em cada uma
13
194 Affirmações

das suas partes, principalmente com o obje


ctivo de apontar o que ella não é, este sim,
foi o trabalho scientifico que elle fez, de sci-
encia sincera, util, que se não desliga da phi-
losophia, antes a serve, como parte de um
todo vivo e animado, retribuindo-lhe com es
clarecimentos de pontos obscuros, a grande luz
guiadora, a finalidade que a verdadeira philo-
sophia tem que, necessariamente tambem,
apontar a todos os esforços parciaes, apparen-
temente contradictorios, de todos os homens.
Porque este é o triplice aspecto da philosophia :
é a força viva da consciencia humana; como
tal é quem está de posse das bases mesmas
do conhecimento e, por isto, é quem tem o
direito, ou melhor, a funcção de dizer qual
é a nossa finalidade sobre o planeta. Já se
vê que só admitto como verdadeira a phi
losophia religiosa, a philosophia christã, a que
reconhece, como principal entre aquellas bases
do conhecimento, a Revelação. Não ha, porém,
extranhar aquellas e outras vacillações na obra
de um homem que se nos revela tão sincero
como Fidelino de Figueiredo. Ellas são ainda
tributo doloroso á aridez de uma educação
materialista, de que lhe não ficou somente
a complicada technologia — digo-o, se bem que
contrariando o que diz a este respeito o Sr.
Ed. Moreira — mas tambem uns laivos mais
Affirmações 195

duradouros de scepticismo philosophico. E que


é afinal um pragmatista?
Felizmente, numa alma essencialmente per-
fectivel como a de Fidelino, já se faz sentir,
com bastante força, que um tal scepticismo vaf
desapparecendo ante os raios luminosos do
sadio espiritualismo, que é tudo quanto ha
de mais promissor na estructura moral dos
seus ultimos trabalhos.
Mas se se quizer ajuizar somente do que
ainda constitue a parte mais importante da
sua obra, da publicação do « O espirito his
torico, em 1910, á primeira edição da sua
Historia da liiteratura classica, em 1917, é
força confessar que não deixa de ser bella
e até altamente louvavel a attitude pragma
tista em que se revelou e em que se poude
manter, em um meio tão revolvido pelas pai
xões revolucionarias e onde domina o maior
despreso por tudo quanto é racional, producto
de cultura séria e trabalhada. Fidelino de Fi
gueiredo soube muito bem identificar no seu
justo horror o scientificismo moderno e as
loucuras da Revolução. É preciso citar toda
uma pagina sua em que resalta a nobreza
desta postura, verdadeiramente philosophica, em
face do « problema nacional », o maximo pro
blema deste momento, no seio da civilização
christã. Diz elle: «O espirito scientifico foi
AlTIRiyiAÇÕES

a predominante feição do homem racionalista


dos seculos XVII e XVIII. O racionalista de
testava o pormenor concreto, formal, picto
rico, a impressão, todo se dava á generali
dade, e á abstracção. Dahi, necessariamente,
como o fructo se segue á flôr, uma grande
falta de intuição psychologica, de instincto para
aperceber as differenças individuaes, curtos al
cances de imaginação e uma limitada com-
prehensão. Sieyés, politico, detestava a historia
e um commentador de Montesquieu censura-
va-o por tanto se haver occupado de historia,
elle um historiador. Este conhecimento incom
pleto da natureza, e da vida seria a causa in
terna da morte do proprio racionalismo. Mas
até que esta o accommettesse, o racionalismo
teve o seu livre desenvolvimento. Com Vol
taire e Montesquieu oppôz a variedade das
religiões e instituições politicas, que por sobre
a terra se disseminam, á unidade da religião
official é ás instituições vigentes, defendendo
o deismo e o direito natural. Com os ency-
clopedistas, com Rousseau, e com os que o
coloriram de intermedios cambiantes, condem-
nou summariamente todas as religiões, con-
demnou todas as instituições politicas coevas
e architectou uma sociedade fundada sobre
bases racionaes. Finalmente, na Revolução, tor-
nou-se dogmatico, como uma religião, teve
ÁFF1RMAÇÕES 197

Imesmò a sua divindade, a Razão, e o seu


maximo pontifice Robespierre. Mas a tenta-
fava utopica duma sociedade racionalista ruiu
por terra.
\Ê inteiramente opposta a altitude espi
ritual daqtielte que considerar os phenomenos
sociaes de um ponto de vista historico. Ã socie
dade, o seu mecanismo funccional, as suas
instituições para elle não são nem deixam de
ser logicas e racionaes, são o que são, reali
dades plenamennte explicaveis pela evolução
historica dessa mesma sociedade, mais vivas
ou mais obsoletas, mais ou menos adequaveis
tio bem estar e á felicidade dos elementos que
a compõem. O sentimento religioso, pára só
referir o mais typico dos exemplos, não será
para quem o encarar por um prisma de cul
tura historica, um sentimento sem base expe
rimental e racional, que contradiz o espirito
scientifico, o sentimento religioso será uma
realidade inilludivel, em todas as sociedades e
em todos os tempos verificável, que a psycho-
logia individual e collectiva explicam plena
mente. Ora nos estrictos dominios da sensibi
lidade pessoal, ora mais dominadoramente em
instituições poderosas, elle sempre existiu, e
investir com elle será um pouco como esgri
mir contra os moinhos, porque nenhum legis
lador do mundo conseguirá jámais modificar
198 Affirmações

a psyche humana, em cujos fundamentos elle


reside » í1).
« Um politico de cultura historica tambem
não irá, á força de decretos, fundir num molde
concebido « a priori », todo de subjectivos jui
zos, a sociedade que dirige, porque a socie
dade, organismo vivo com sua individualidade
ou quebrará esse molde ou, sentindo-se forcada
nelle, perderá o seu equilibrio e a sua estabi
lidade, a sua physionomia, a sua regularidade
organica. Qualquer instituição que seja menos
adequada ao bem estar geral deverá por isso
ser modificada ou supprimida, mas sempre
que seja possivel, mantendo a tradição formal.
A cultura historica limitará assim os impulsos
reformistas» (2).
E' só porque tem do espirito historico esta
concepção puramente philosophica, que elle
pôde dizer mais tarde que, ao contrario do que
faz a arte, « a historia liga e explica ». Tudo
para elle é uma questão de methodo e para os
factos sociaes, distanciando-se do estreito secta
rismo racionalista, o methodo, diz elle, deve

(!) A differença de typo vai por minha conta.


E' um modo de chamar a attenção do leitor para o
que ha de mais positivamente digno de admiração nesta
pagina, que pôde ser considerada o pivot da obra
de Fidelino de Figueiredo.
(2) O Espirito historico — 1-18.
Affirmações 199

ser «o humano», Quero esquecer aqui huma-


nismos modernos, tudo quanto por ahi se move
pelo «corredor de hotel» do pragmatismo, só
para lembrar que um tal methodo, em todo
rigor, não póde ser muito differente daquelle
com que José de Maistre fez a mais extraor
dinaria incursão pela historia. E creia Fide
lino de Figueiredo: não desequilibrará, nem
isolará, nem hypertrophiará a propria arte, se
obedece, como deve obedecer tudo o que é
humano, ao espirito historico, á synthese, como
diria Fidelino, que elle apresenta para ser assi
milada, tanto pelo philosopho como pelo ar
tista. E' por isto que se pode dizer que «o
humem é o ente essencialmente historico » e
tudo se simplificará ante o desejo de ser sim
ples, e, por isto mesmo, logico. Sirva-me aqui
a linguagem de Alzog:

«A historia, como facto, é o desenvolvi


mento do espirito humano tal como se mani
festa em suas relações sociaes e com o Estado.
Como sciencia, é a intelligencia desse desen
volvimento. Como arte, é a sua reproducção,
ou representação pela palavra (« historia pro
priamente dita») ('). E dando regras do que
deve constituir a imparcialidade do historia-

(1) J. Alzog — Historia Universal da Igreja


(trad. portugueza) 1° vol., 5.
200 Aj¥m'MÁÇõEs

dor ecclesiastico, pois escrevià uma historiá


da Igreja, dava-as à todos os hisforiadoies íè
definia do melhor mddo o espirito historfcb.
Assim escrevia:
«Diziam os antigos: — O historiador nSô
deve ter patria nem religião; querem os mo
dernos que elle seja completamente livre de
opinião antecipada. Nem uma nem outra cousa
é possivel. Ninguem ptôde fugir ás idéas de
patria, de religião, de igieja, cóm que foi
criado e embalado desde os mais tenros anhos.
Sente-se o seu dominio, apezar dos maiores
esforços em contrario, e os que mais alto fa
lam de imparcialidade são tambem escravos dá
sua poderosa influencia. As leis da imparcia
lidade não são as que deixamos ditas. Ellas
só obrigam o historiador:

1.° A nunca alterar intencional e sciente-


mente os factos ainda que se lhe affigure con
trariarem as suas convicções religiosas; mas a
investigai-os, referil-os como succederam, e
julgal-os com justiça e com moderação.
2.° A reconhecer e confessar os erros da
sua Igreja. O silencio, em tal caso, seria mais
prejudicial do que favoravel aos interesses
dessa Igreja.

Debaixo destas condições, o historiador


ecclesiastico póde e deve manifestar com fran
ÀhTfcftXçíõES 201

qúeià a sua cohvicção religiosa e fazeí-a


penetrar profundamente ho espirito dá sua
obra í}).
Parece-ine incontestavel que, mesmo na
mais remota antiguidade, não se furtaràm os
historiadores, se bem que ò desejassem, á i'n;
fluencia preponderante do meio sociàl, dó séú
meio historico, mas o que é certo é que só
o christianismo poderia formar o verdadeiro
espirito historico, de que Fidelino de Figuei
redo quer ser tambem portador, e é por isto
que J. de Muller teve que reconhecer que « só
o Evangelho podia dar o fio conductor para
o estudo da historia universal e o plano divino
da humanidade» (2).
Seria inutil demonstrar aqui que era essen
cialmente romano o ponto de vista historico
dos historiadores romanos, mas é evidente que
lhes faltava a todos a consciencia nitida de
uma humanidade, que aspira unificar-se, guar
dando mesmo as suas naturaes divisões, num
só ideal de amor e de caridade, numa só com-
prehensão dos fins a que se destina o homem
na scena do mundo.
Tivesse já Fidelino de Figueiredo reco
nhecido, por um movimento a que Pascal cha
maria o mais racional da sua razão, a existen-

(1) Alzog, Obr. cit., I, 13.


(2) Apud J. Alzog, I, 6.
202 Affirmações

cia deste plano divino, e não teria confundido,


elle a quem repugna o methodo materialista
em historia, o processo de verificação das leis
historicas com o empregado na verificação das
leis natura es, sendo estas, tal como dizia Fa
rias Brito « simples abstracções em nós da
ordem dos phenomenos », submettidos por
Deus a um determinismo que não implica limi
tação ao poder divino — ao passo que as leis
historicas, leis que regem a vida dos seres
racionaes, são de muito mais difficil verifica
ção, justamente porque têm que ser sempre
em harmonia com a lei mais alta da liberdade.
No systema de Fidelino de Figueiredo é a
falta do que podemos chamar um principio de
causalidade historica universal o que o leva
a temer a idéa de lei em historia, declarando
mesmo que «onde os sociologos escrevem
leis, deveremos por emquanto sub-entender a
seguinte rubrica mais conforme á verdade:
alguns factos sociaes, cuja repetição tem sido
verificada em periodos de certa identidade,
apurados pelo methodo comparativo applicado
á historia» (1). Para elle, como para o Sr. Pires
de Lima a «idéa de progresso já concebida
desde os mais antigos tempos, tem uma reali
dade effectiva e palpavel; mas temos de con-

(1) O Esp. historico, 39.


Affirmações 203

sideral-a como um facto e não como uma


lei» (1).
Ora, mais simples seria dizer que a lei
de progresso é um facto, facto que se impõe á
consciencia do historiador, como á mesma con
sciencia se impõe a constatação de um outro:
o da decadencia dos povos, á medida que se
distanciam ou nelles se obscurecem os ensina
mentos da primitiva revelação, synthetizados
no Decalogo. O que todo homem de verdadeira
sciencia deve confessar é o que já tantas vezes
tem formulado a sciencia catholica, isto é, que
o não conhecimento perfeito de uma cousa não
deve levar nunca ao abandono da noção que
della temos, como parte que é da nossa con
cepção do mundo. E em que sciencia pode-se
gabar o sabio de conhecer perfeitamente as
suas leis? Se entre os elementos com que se
ergue a construcção historica estão « conceitos
universaes, como são os termos da linguagem »,
se o geral na historia, como diz Lavisse, é mais
certo que o particular, é preciso dizer que não
basta passar sempre da analyse á synthese,
mas até reconhecer que, em historia, a syn
these antecede a analyse, ou melhor, que a
historia, podendo ser campo de investigações
especiaes, essencialmente inductivel, só é verda
deiramente historia quando obedece a proces-

(i) Obr. cit., 46.


204 ÀffírmXções

sos deductiveis, e desce de principios geraes,


humanos, para os paticulares, propriamente
hacionaes, ou de menor extensão ainda. E den-
ítro de. cada 'dominio restrícte, por exerrrplo,
dentro da historia de um dádo paiz, áinda
o processo philosophíco é o mesmo; a tra
dição, hàrmóhia de dados geraes, é que™
guia o historiador ha comparação dos valores
moraes e sociaes. « Homens, instituições, gráh-
des emprezas de acção — diz o proprio Fide
lino — serão por nós julgados de accôrdo côm
uma tabella de valores moraes e sociaes
'Slflanimemente acceita, ousamos esperal-o; as
época! TifrnripJ jjifJTffiní^" as julgaremos de
harmonia com uma tabella\!e vaIores estheti-
cos de permanente acceitaçllfr independente
mente dos caprichos das escoS^ e dos Pre"
juizos das modas». Ora, é eviderr$£ clue clllem
assim procede ama bem mais a ven^?de . his*°"
rica que a sua propria theoria e a sua>Prinieir*
deducção não é a que se opera de umaVoIIec"
ção de documentos a um repertorio de fl?ctps-
A primeira é a que se operou dos princfPlos
geraes nacionaes, a escolha mesma dos dPc_u"
mentos, de que se servirá na reconstitui^0
do passado, para exemplo e animação dos que'
no presente, não pretendem viver só do p^e"
sente, e se consideram, como homens que s*0'
seres historicos, e só por isto, — não é r're"
ciso invocar mais titulos — só por esta uni_
Affirmações

dade no tempo, mais fortes do que todos os


outros sobre o, planeta.

Todas as forças vivas de seu espirito e


todas as vacillações e seccuras nascidas da sua
pouco definida philosophia, ou melhor, resul
tantes da contrariedade entre os seus precon
ceitos scientificos e seu espirito eminentemente
philosophico, levou-as Fidelino de Figueiredo
da sua concepção da historia á sua concepção
da critica literaria.
Quasi que reduzindo o papel do historia
dor e do critico a uma simples escolha de
methodo, parecendo crêr que, escolhido este,
da sua applicação naturalmente resultariam
todos os proveitos que o espirito humano póde
esperar de taes disciplinas, Fidelino de Figuei
redo parecia, a principio, no que respeita á
critica literaria, nada mais prometter que um
erudito, mais bem ordenado, mais intelligente
que o commum dos eruditos.
O seu primeiro trabalho de systematica
exposição das suas idéas sobre a critica lite
raria foi publicado em 1912 e, em 1914, numa
segunda edição em que o autor, forte das suas
convicções, quasi nada alterou: é o que tem
por titulo A critica litteraria como sciencia.
Neste trabalho Fidelino de Figueiredo prin
206 Affirmações

cipia por indagar se se verificam na critica


literaria as tres condições de toda sciencia —
um objecto, um methodo proprio, e leis que
lhe sejam particulares.
Sendo a arte literaria alguma cousa espe
cifica sui generis, ha para a critica literaria
um campo de investigação proprio; sendo o
methodo para estas investigações differente do
methodo da historia geral, pois o critico estuda
directamente etfeitos, ao passo que o historia
dor só faz observação indirecta — a sciencia
que se nos offerece não é do typo das sciencias
naturaes, diz Fidelino, « é uma sciencia social
em via de formação», e por isto não consegue
formular leis. O amor de Fidelino de Figuei
redo, á palavra sciencia não se deixa vencer,
porém, ante esta perspectiva de uma sciencia
sem leis . . . « Praticando o methodo que expu-
zemos — diz elle, ao finalizar o seu livro — e
preenchendo esclarecidamente com os dados da
experiencia, as suas forçosas lacunas, estamos
certos de que se obterão resultados que não
são phantasias, antes serão verdades. E pode-
se fazer sciencia, quando se obtenham resulta
dos scientificos, ainda mesmo que as conclusões
alcançadas não sejam susceptiveis de organi
zação scientifica em principios abstractos e
geraes» (*). Como se vê a defesa é muito

(i) Obr. cit., 76-77.


Affirmações 207

intelligente mas equivale a dizer que todo facto,


só porque verificada a sua existencia, é facto
scientifico, tal como já se quiz impôr entre
estudiosos do magnetismo, do hypnotismo,
etc. Deste modo o erro que muitas vezes tem
apparencia de verdade constitue sciencia. A ver
dade é que só a lei dá caracter de sciencia a
qualquer conhecimento, pois é a primeira veri
ficação acima do empirismo grosseiro. Defini
tivamente não se póde crêr na critica literaria
como sciencia. Isto não impede, porém, que,
ao seu dominio, como em qualquer outro em
que se exerça o espirito humano, possa este
levar noções de philosophia ou de sciencia, de
philosophia principalmente, como unificadora
de todas as manifestações do ser como ser
pensante, se não ha ahi redundancia.
De que serve todo o rigor scientifico de
Fidelino quando elle proprio é forçado a reco
nhecer que nos dominios de tal sciencia não
são poucos os serviços do puro impressio
nismo? A verdade é que é a critica literaria
o dominio da arte literaria reservado unica
mente aos espiritos philosophantes, para não
dizer aos philosophos. Basta que se leve em
conta quanto é determinante na critica este
elemento subtil, por assim dizer imponderavel,
que é quasi toda a obra de arte — o gosto,
para que se confesse que o critico nunca foi
mais que o mesmo artista com as qualidades
208 AhFIR/VJAÇÕES

caracteristicas do, philosopho: capacidade de


generalização, de analyse, etc. O que o artista
puro faz com os materiaes que lhe dá í>
mundo ou a sociedade, faz o critico com a
obra de arte, isto é, uma outra obra de arte,
de caracter somente mais intellectual que sen
timental.
Dahi não haver methodo que valha em
taes dominios o que vale o instincto, que, no
caso, não será instincto creador, mas de lucta
em favor de toda creação, que não está so
mente na originalidade mas tambem em toda
obra de que irradiem forças capazes de crear
um ambiente de vida mais alta, mais pura,
mais digna de ser vivida.
Este o unico valor da critica literaria que
não póde ter por objecto a obra, em si, como
se ella constituisse um mundo á parte dentro
do mundo propriamente humano. Esta, no en
tanto, era a convicção de Fidelino de Figuei
redo que, como já fiz notar, e, neste ponto
ainda mostrando muitas affinidades com Char
les Maurras, quasi reduzia toda a sua obra
ao exercicio de um methodo. O bem, que ella
faria, resultaria da lenta mas segura educação
historica ou critica que um tal exercicio intel
lectual iria espalhando num dado ambiente
social. Assim, se por um processo que se
poderá chamar processo de exclusão, pouco a
pouco se fizer consciente no povo portuguez
Affirmações 209

a sua falha de espirito critico, uma reacção


natural poderá, tanto quanto possivel, fazer
desapparecer aquella lacuna. Imagino que seja
esta a finalidade do esforço com que Fidelino
de Figueiredo systematisa então as suas idéas;
ha nelle, essencialmente, um educador, crendo
fervorosamente na educação. E' esta crença
que, por necessidade de simplificação, o leva
a reduzir tudo a systema, e como a psycho-
logia humana é o dominio da liberdade, esta
mesma necessidade de simplificação, não tendo
por si a base de um systema philosophico
realmente seguro, lança mão de artificios que
são, simplesmente, prova de timidez ante a
complexidade dos problemas a resolver. Um
delles, aquelle que restringiria para sempre o
seu campo de acção, se, de facto, o respeitasse
sempre na construcção da sua obra, é, como
disse, o de considerar as obras literarias como
fins em si, pondo em segundo plano a psy-
chologia dos autores. Armado deste exagerado
amor da objectividade, escreveu Fidelino de
Figueiredo a Historia da critica litteraria em
Portugal, 1910, a Historia da litieratura roman
tica portugueza, 1913, a Historia da litieratura
realista, 1914, dous volumes de Estudos de
litieratura, 1917-1918, a Historia da litieratura
classica, 1917, fora uma dezena mais die
outros ensaios de critica literaria. Não me
cabe analysar nenhuma destas obras neste
14
210 Affirmações

pequeno trabalho em que só pretendo mos


trar a evolução de Fidelino de Figueiredo
do ponto de vista das suas idéas, apontando
assim mais um exemplo valioso de que muito
estreito ainda é o quadro do mais alto idea
lismo emquanto se não deixa penetrar de
espiritualismo. Mas devo dizer que em qual
quer daquellas obras citadas, principalmente
na segunda e na ultima, Fidelino de Figuei
redo faz, ao lado do estudo de cada obra em
si, psychologia dos autores, completando-a
com a psychologia collectiva, particular a cada
época, e até, em muitos pontos, com ensaios
do que se póde chamar uma logica dos senti
mentos geraes. Exemplo disto é quando na
sua Historia da litteraíura classica escreveu
sobre o mysticismo, onde, aliás, nem sempre
foi feliz como interpretador de um estado de
espirito que elle principiou por classificar de
eminentemente literario quando em verdade, o
verdadeiro mystico encarna, quasi sempre uma
reacção contra a letra e a forma; e d'ahi
o mais ou menos agudo individualismo de
quasi todos, são suspeito á Igreja

(!) Tambem jámais a introspecção mystica


excluiu a observação. A introspecção directa no
proprio individuo só se faz completa pela intros
pecção indirecta sobre os individuos. E basta lembrar
que Jesus Christo é todo um mundo em que se
exerce a observação do mystico christão que nada
Affirmações 211

O espirito de Fidelino de Figueiredo


não podia porém deixar-se insular naquelles
aridos propositos. Dahi o acolher nas do
bras do seu systema, já no seu ensaio
sobre a Critica litteraria como sciencia, todas
as forcas vitaes do impressionismo.
« O exagero na attitude impessoal levou
alguns criticos a perderem a sua emotividade
vibratil e sympathica, procurando somente um
producto de pura logica e não de alada ima
ginação ».
O proprio importantissimo papel que dá á
bibliographia, como representação mais simples
dos estados da alma nacional — no que parece
obedecer a um conselho de Leibnitz — leva-nos
á convicção de que o educador, o evangelista
do espirito historico, domina tambem estas

mais pretende que imital-o. O mystico observa em


Jesus e em si mesmo e sobre si mesmo experimenta.
Em um trabalho publicado em 1915 — Caracteristicas
da Litteraiura Portugueza, ainda em peiores erros
incide Fidelino de Figueiredo, deixando-se guiar
pelo mediocrissimo senso critico de Nordau em rela
ção ao mysticismo que acaba por confundir com desor
dem de sentimento. Aos mysticos protestantes pôde
ferir em cheio uma tal accusação, mas nem sempre
attingirá os mysticos catholioos. Não foi debalde que
a Ascetica e a Mystica foram elevadas á ordem de
verdadeiras sciencias, com principios fixos e conclu
sões certas, como se pôde verificar em qualquer com
pendio. Sciencias especulativo-praticas chama-lhes Naval.
212 Affirmações

partes da sua obra. E ahi está porque busca


revestir-se de caracter scientifico a sua critica,
não que ella possa de si mesma crear-se uma
estructura scientifica, com todas as vantagens
de um methodo proprio, mas porque obedece
a uma idéa geral pragmatica, a que domina a
obra do historiador ou do educador que é,
sobretudo, Fidelino de Figueiredo — e o pra
gmatismo nada mais significa que uma das
muitas capitulações da philosophia moderna,
ante o progresso scientifico.
E a prova disto é que quando chega a
vez de analysar o que é essencial á critica
literaria, proposito que a anima e fim a que
se destina — a avaliação da obra, Fidelino não
recusa mais uma homenagem á verdade, e é
assim que nos diz resolutamente:

«Mas a avaliação da obra é o grande


escolho com que tem de se defrontar todas
as diligencias de lançar a critica em bases
objectivas, porque a despeito de todos os
esforços algum elemento subjectivo subsistirá.
Neste ponto não se podem alvitrar regras
severas para severamente seguir e manter,
apenas se deve exigir do critico determinada
preparação, quanto á cultura, e um oonjuncto
de determinadas qualidades, quanto á sua
constituição mental. Exigiremos que o critico
tenha uma cuidada educação psychologica e
AfTIRMAÇÕES 213

philosophica, possua sentimento esfhetico re


quintado e tenha adquirido pela observação
e pela experiencia um vasto conhecimento da
vida, nos seus multiplos aspectos, nos seus
problemas mais urgentes, nas suas correntes
moraes dominantes, queremos dizer no seu
conteudo riquissimo e abundantissimo.
« Com effeito, se a arte literaria tem por
objecto a reproducção da vida, a reconstituição
psychologica da luta humana, como poderá o
critico prescindir do material já quantioso que
fornece a sciencia psychologica, que vai pro
curando systematizar as permanentes genera
lidades da vida do espirito? E se a arte litte-
raria procura ainda evidenciar, trazer a um
relevo de belleza as modalidades transitorias,
fugazes e individuaes da vida do espirito,
afflorações accidentaes, que á sciencia não
interessam, mas que são o fim principal da
arte, como poderá o critico desligar-se e
abstrahir-se da observação quotidiana, que lhe
proporciona essas differenças typicas?
«Para a sua tarefa de avaliação, o critico
analysará as personagens centraes, consideral-
as-ha na sua personalidade autonoma, investi
gará da sua coherencia de procedimento, das
suas idéas, dos seus sentimentos, lançal-os-ha
em confronto, e a cada passo recorrerá aos
dados da sciencia psychologica e da observa
ção. Assim, poderá pronunciar o veredictum ».
214 Apfirmações

E' evidente que Fidelino de Figueiredo se


teme das suas proprias asserções, desconfia do
proprio systema em que desejou enquadrar a
critica. Tal como se sé tratasse da, arte mesma,
a critica literaria se lhe patenteia como um
campo em que o arbitrio individual é quasi
dominador, em que o temperamento do critico
é força impossivel de ser annullada, e todo
methodo scientifico periclitante. Nisto se revela
o seu amor da verdade que forçosamente teria
que arrastalo a confissões mais completas que
esta do que chamarei a primeira phase da
plenitude da sua vida intellectual. O seu pra
gmatismo, apezar da reacção que nelle proprio
se esboçava, ainda obedecia a estreitos propo
sitos scientificos. Mas a reacção, num espirito
trabalhado por tão poderosas forças interiores,
tinha que ser victoriosa, e já se póde dizer
que caminha para completar-se, dominando de
um a outro extremo o vasto campo da sua
actividade de pensador. De facto o caracter
philosophioo da sua obra accentua-se de modo
impressionante já em alguns dos seus ultimos
trabalhos de critica e nelles o que ainda se
atem a um methodo puramente scientifico já
obedece á orientação de uma philosophia que
cada vez mais claramente se define, dentro
do mais amplo espiritualismo.
Assim é que já na sua admiravel mono-
graphia, Creação e critica litteraria, publicada
Affirmações 215

em 1918, — e que é, a meu ver, a pagina em


que, até agora, mais se contém da formosura,
do alto discernimento, das excellencias de sin
ceridade, que animam o seu espirito — já nesta
monographia elle não se peja de confessar as
desillusões que lhe couberam da Iucta em que
se empenhou por dar á critica literaria rigor
de methodo scientifico.
Se na Crítica lideraria como sciencia já
reconhecia que nas duas estações principaes na
marcha do trabalho da critica — impressão do
leitor e juizo esthetico, « outro guia seguro não
ha que não seja o conselho do gosto esclare
cido », no trabalho a que agora nos referimos
não é ousado dizermos que busca identificar a
critica e a arte literaria no mesmo quadro
philosophico dos valores humanos. Já a crea-
ção se lhe impõe tambem como funcção da
critica literaria. E a sua confissão, devo-a
citar, integralmente : « Fallando de creação —
diz elle — não damos a esta o significado de
resurreição artistica, mas o mais amplo de
innovação. Neste sentido, é imminentemente
creado o mathematico, o naturalista, o esta
dista, por mais secca que seja a sua imagi
nação artistica, desde que impelliram o espi
rito humano e as sociedades por trilhos novos,
desde que com elles alguma cousa existio que
sem elles se torna inexplicavel. Ora esta crea
ção é que nós plenamente cremos que pode
216 Affirmações

existir, e repetidamente tem existido, na critica


litteraria, quando a cultivam espiritos de elei
ção, ricos do dom excepcional de saber não
só examinar e apreciar obras de arte, mas
tambem em toda a parte sabendo discernir a
belleza da rudeza e promptamente sabendo
sorprender todas as correntes intellectuaes com
uma especial intuição da consciencia individual
e collectiva.
Sem este complemento, que hoje lhe addi-
tamos e que extrahimos da experiencia, a con
cepção da critica litteraria, por nós exposta na
citada obra (l) poderá parecer demasiado es
treita e reduzida á passiva obediencia de um
methodo pouco fecundo como todos os me-
thodos quando os não vivifica a originalidade
do espirito que os pratica. Longe de nós então
o pensamento de systematisarmos as opera
ções da critica nos trabalhos preparatorios sus
ceptiveis de se descreverem e regularem por
normas fixas, como se descreve e regula a
organização duma bibliographia e duma ta
bella de variantes de textos ou dum quadro
genealogico de manuscriptos. Já então viva
mente diligenciavamos extremar os campos, em
que devem confinar o erudito, o bibliographo,
o philosopho, o editor e o critico litterario.
Hoje este pensamento pelas perplexidades per-

(') Referia-se á Critica UHeraria como sciencia.


Affirmações 217

manentes em que nos sorprendemos apezar


da fidelidade que quizemos guardar ao me-
thodo ha annos formulado á guisa de pro-
gramma, hoje este pensamento de libertar a
critica duma confusão que, sem a dedignar,
a entibia no seu progresso, torna-se mais im
perativo e lança-nos na deliberação de pro
clamar bem alto o muito que nella se contem
de incoercivel, de insystematizavel em qual
quer methodo, e de incompativel com as es
pecialidades affins ».
Pode-se dizer que ainda é timido quanto
nos diz a respeito da creação no dominio da
critica literaria. A verdade é que com a sua
pequena audacia passou o Rubicon . . . e veio
formar ao lado dos que fazem da critica uma
força viva e não um exercicio de analyse mais
ou menos inutil. Nem poderá ficar jungido
áquella arida concepção do espirito creador,
arida sobretudo porque estabelece uma con
fusão de idéas, como tudo o que nasce do
medo. Se a creação é possivel no dominio das
mathematicas ou das sciencias naturaes — e
nestes dominios, sim, no sentido de innovação
— outro é o sentido que tem em critica lite
raria e tão outro que só póde ser comparado
á creação do artista propriamente. Já no pe
quenino ensaio que em 1914 publiquei sobre
a personalidade de Mario de Alencar — per
sonalidade em que, justamente, tão bem se
218 Affirmações

harmonizam o artista e o critico — eu susten


tava que a critica deverá ser olhada não como
verdugo mas como irmã da arte, creadora
tambem, pois crear no sentido humano é
sempre, e nunca mais do que isto, ter olhos
para descobrir).
Ora, assim como o artista arranca de um
turbilhão de desordenados sentimentos, ima
gens e idéas, um todo vivo e harmonioso, e
tudo simplifica com a divina permissão de
jámais suffocar a vida, e sabe da multidão
ephemera subtrahir os typos eternos, assim o
verdadeiro critico é aquelle luminoso, pode
roso olhar que separa o divino, o eterno, do
humano, do passageiro que ha em cada ar
tista.
Representante desta critica foi Rodo na
America do Sul, e o é Nestor Victor, no
Brazil dos nossos dias, assim como até certo
ponto o foi tambem Araripe Junior.
E negar-se-ha a Carlyle, por exemplo, ca
pacidade de critico se meditamos qualquer dos
seus ensaios sobre Goethe?
E que fez Carlyle senão uma obra de arte
em que o drama de um grande espirito ficou
para sempre fixado, esclarecido, com as pro
porções gigantescas que só a arte póde em
prestar? Dir-se-ha que o historiador e o bio-
grapho podem fazer a mesma obra se ani
mados de poder artistico. Puro engano. O his
Affirmações 219

toriador ou o biographo propriamente partiram


do meio social ou do homem para a obra li
teraria que um tal homem houvesse produ
zido. O critico é justamente aquelle que parte
da obra, como manifestação a mais profunda
e reveladora de uma alma, para a reconsti
tuição desta mesma alma nas suas mais in
timas aspirações. Sem saber uma data, um
só facto da vida de um dado individuo, o
critico penetrará através da sua obra o que
houve de realmente poderoso e fecundo no
seu desenvolvimento, e isto porque com elle
se póde identificar, aturdir-se nos mesmos in
ebriamentos, revoltar-se nas mesmas revoltas.
Sahirá deste contacto, de posse de um
novo typo humano, de uma nova expressão de
humanidade. O artista do seu contacto com
a natureza e com a vida não tirou mais do
que isto. A obra de arte é uma visão deli
mitadora do bello, do realmente vivo, na agi
tação permanente das cousas e dos homens.
A critica é esta mesma visão delimitadora do
bello, do realmente vivo, no mundo morto
da letra. É ainda a mesma arte com um ca
racter somente mais intellectual, em que a
paixão da intelligencia toma o lugar da paixão
sentimental.
O que no trabalho da critica — e nem me
refiro ao da critica erudita, que Fidelino
chama de safara como um chão salgado— o
220 Affirmações

que no trabalho da critica, digo, haverá de


presumivelmente scientifico, isto é, fora dos li
mites da arbitrariedade pessoal, será con
sequencia do pensamento philosophico que do
mine a vida do proprio critico e independe da
vocação de estudar e analysar a produoção
literaria. O proprio artista póde revelar na
sua obra, se bem que de modo diverso, esta
sujeição a uma ordem de idéas de caracter
universal. Só um ideal philosophico póde
mesmo limitar aquella arbitrariedade pessoal
do critico de que tânto se temeu, primeira
mente, Fidelino de Figueiredo. E este ideal
é o que constitue a utilidade da critica. Esta
já é, felizmente, a opinião de Fidelino ex
pressa tambem no seu estudo sobre Creação
e critica litteraria. :< Todo o critico litterario —
diz elle — com uma nobre e elevada compre-
hensão do seu intellectual mistér, terá sempre
a dominal-o um alto ideal, como pode ser
o de orientar, drenar para certo sentido as
correntes de idéas dominantes ou o de crear
novas correntes, fomentando e fecundando o
pensamento e o sentimento catholico dos seus
contemporaneos ».
Integrou assim Fidelino de Figueiredo
o seu trabalho como critico literario, ao sys-
tema de ideas geraes, philosophicas, que do
mina a sua obra de historiador, a sua obra
de educador, de pensador diriamos melhor.
Affirmações 221

Pragmatista, mas mantendo intenso o culto


da intelligencia, progressista mas amando fer
vorosamente a tradição, — vendo nella um prin
cipio dominante em toda politica realmente
nacional e humana — analysta, inductivo por
systema, mas reconhecendo implicitamente, em
toda a sua obra, o valor dos dados irredu-
ctiveis da moral social e individual, positivista
nos seus processos mas consentindo já que
uma onda de fé anime as perspectivas da sua
paisagem espiritual — póde-se dizer que do
sceptico ponderado que elle foi, a principio,
vae destacando-se a figura de um pensador de
mais nobre envergadura que procura integrar-se
á «linhagem catholica» a que, de facto per
tence.
A sua obra constitue já o mais alto padrão
de gloria contemporanea da sua patria, no
dominio em que a levantou a sua formidavel
coragem moral. É preciso que completamente
se desenvolva no sentido a que a impellem
todas as suas mais fortes energias e mais
seguras convicções. Creio perfeitamente que
chegará a esse completo desenvolvimento e,
viva da nova vida que só a catholicidade da
Igreja pode dar, ha de vir a ser uma das
mais altas expressões do espirito constructor,
do espirito historico das raças de cultura latina.
'-

\
ROMAIN ROLLAND E A MOCIDADE
INTELLECTUAL BRAZILEIRA

A maioria dos criticos francezes desejou


diminuir o valor da obra de Romain Rolland,
só pelo facto de ser este escriptor um homem
de idéas evidentemente favoraveis a uma li
gação mais intima entre a França e a Al-
lemanha.
Houve quem dissesse que o « Jean Chris
tophe» approximara mais os dois povos que
cincoenta annos de esforços diplomaticos ... o
que, aliás, equivale a dizer iqiue |approximou muito
pouco, pois será difficil mostrar na historia
dos povos occiderftaes uniões sinceras e du
radouras oriundas da acção da diplomacia.
Basta, porém, encarar a obra de Romain Rol
land, somente por este lado, para que se ima
gine a seriedade de que toda ella se reveste
aos olhos, não só do publico em geral, mas
do historiador, maximé após a tragedia mons
224 Affirmações

truosa de que todos nós fomos espectadores


e victimas, tragedia esta que Romain Rolland
não só adivinhou como descreveu e, por evi-
tal-a, luctou, empregou todas as forças mais
nobres da sua intelligencia e do seu coração.
Por isso é a critica franceza, como disse, a
que menos lhe foi favoravel, em toda a Eu
ropa. Houve quem na França mesmo ousasse
dizer que o « Jean Christophe » era a epopéa
da civilização contemporanea, mas ninguem
perdoou ao francez, que é Romain Rolland,
o desejar que, sobre as amarguras de 70,
cahisse um véo de esquecimento. Quer isto
dizer que, acima de interesses reaes e do mais
generoso idealismo, acima de todas as Ver
dades e vantagens na ordem politica contem
poranea, a velha e nobre sociedade franceza
puzera uma só verdade moral: a de que a
sua dignidade de povo fôra maltratada cru
elmente e necessitava apagar a lembrança da
derrota com uma victoria, custosa ou não,
pouco importava.
Erraram os francezes? Só Deus o sabe
e não nos cabe julgar. Só no Brazil, uma im
prensa, quasi toda organizada sobre uma base
de forças economicas estrangeiras, nega o di
reito de errar a quem quer que seja, o mais
patriota, que por acaso tente analysar a nossa
situação moral, em face dos povos que nos
procuram.
Affirmações 225

Entretanto, poderá ser lembrado que


tambem em França não poude viver Romain
Rolland, após a publicação, em plena guerra,
de seu livro « Au dessus de la mélée » . . . Mas
ahi o facto é todo comprehensivel, e é mesmo
ao escriptor francez que se deve accusar de
vaidade desmesurada quando, sob a tempes
tade de fogo e ferro que devastava a sua
patria, quiz mostrar serenidade, ou melhor,
uma isenção de animo incompativel com o
momento e até com a natureza humana.
Este, para mim, o unico erro de Romain
Rolland, a quem julgo, neste caso, como se
eu proprio fosse francez. Como homem, porém,
que sabe admirar a Allemanha e a França
e amal-as tambem, outro é o meu modo de
encarar a « Vie de Jean Christophe ».
Esta obra imtnensa da qual se póde
dizer que é mais complexa que a de Sha
kespeare, dentro de uma rigorosa unidade, ou
melhor, nascida e desenvolvida num circulo
de idéas systematizadas, é, a meu ver, o mais
amplo quadro em que ficarão desenhados para
os seculos vindouros, todos os tormentos, as
dôres, ansias, esperanças, victorias, miserias
e desenganos destes ultimos cincoenta annos
da vida social da Europa, da Europa idealista'
e progressista mas ferida nas fontes da vida
moral, porque deschristianizada, e só idealista,
e só progressista de um ponto de vista er-
15
226 Affirmações

roneo, mundo a um tempo fulgurante e som'-


brio, como a alma mesmo do industrialismo
que se fez o fim unico da vida dos povos
occidentaes.
As proprias idéas de Romain Rolland, as
que deram á sua obra este caracter de uni
dade, que falta á de quasi todos os grandes
Accionistas contemporaneos, são, a meu ver,
más, incapazes de dar á humanidade um só
alento, uma orientação mais firme na recon
quista de si mesma. O individualismo que as
anima jámais poderia dar ao homem de nossos
dias o roteiro da perdida resignação e humil
dade, com que é forçoso atravessar este mys-
terioso valle de lagrimas. O que faz, entre
tanto, digna de amor, de admiração e res
peito a obra de Romain Rolland é que, ao
lado deste seu pessimo philosophismo, as
forças puras da sua arte fazem a miraculosa
pintura de tudo quanto temos soffrido, de
tudo quanto se tem sacrificado de paz e en
canto nas aras do nosso desmedido orgulho.
E é desta pintura commovida e commovedora
de todos os tragicos aspectos da civilização
occidental, desde os mais humildes — das almas,
no seu insulamento — até os mais grandiosos
— dos povos, das multidões, nas suas tre
mendas luctas — que emana uma outra philo-
sophia, suavissima, animadora, vivificadora, de
que o proprio Romain Rolland parece não
Affirmações 227

ter consciencia, e que se transmitte a outras


limas como que educando-as para o sacrificio,
como que para incital-as a soffrer com digni
dade. O idealismo teve, afinal, no creador de
«Jean Christophe», um typo digno de admi
ração, mesmo da parte dos seus mais firmes
adversarios.
Ora, no Brazil, estavamos nós acostu
mados a importar tudo quanto naquella Eu
ropa, assim revolta e malsã, havia de peor . . .
infames voltaireanismozinhos de terceira ordem,
grosseiras affirmações de um materialismo que,
numa das suas mais brilhantes manifestações,
poude ser confundido com o «apachismo», e
por um homem de visão tão aguda como foi
Renouvier . . .
Eis porque é, de facto, para alegrar-se
a gente ao ver que outros já são os astros que
á nossa mocidade intellectual illuminam e ori
entam, neste crepusculo do mundo. Bem mais
altos, bem mais luminosos, bem mais hu
manos!
Ainda não faz muito tempo que Ronald
de Carvalho nos deu com a sua « Pequena his
toria da literatura brazileira», elle, um moço
de vinte poucos annos, o melhor livro que
temos no assumpto, liberto das dolorosas ada
ptações de escolas materialistas, inimigas, por
isto mesmo que são materialistas, de todas
as forças sentimentaes que oompõem a mais
228 Affirmações

alta belleza de nossa vida de povo sul-ame-


ricano; e ha um tal vigor no idealismo do
joven historiador ,que se não póde duvidar de
que eHe subirá ainda mais altot, e ha de fulgir
um dia como estrella de primeira grandeza
no horizonte intellectual de seu paiz, represert-
tando, entre nós, a reacção do espirito contra
o que Narcisse Muniz tão bem classificou de
somnambulismo literario.
Agora, em livro de menor tomo, porém
não menos serio, se revéla Tasso da Silveira
como uma destas novas organizações espiri-
tuaes que tonificam, esclarecem e humanizam
neste momento a atmosphera moral do nosso
pequeno mas agitado scenario de letras.
De seu ensaio sobre Romain Rolland po-
de-se dizer mesmo que é uma das paginas
mais serias da nossa historia literaria no
sentido de que nenhuma já appareceu tão
despida de artificios, e mostrando tão funda,
intima e fraternal ligação com este formidavel
mundo de dôres e ideaes, de que o creador
de « Jean Christophe » fez a maravilhosa pin
tura, a summa sentimental e idealista.
Porque, se de um lado, este ensaio de
Tasso da Silveira não apprehende todas as
faces da obra de Romain Rolland, a verdade
é que nem foi esta a sua intenção, se é que
teve mesmo o que propriamente se chama '
uma intenção, ao escrever esta pagina admi-
Affirmações 229

ravel. Tasso da Silveira obedeceu antes ao que


uão será erroneo chamar uma necessidade, uma
fatalidade psychologica, traçando com mão
nervosa, e ao mesmo tempo firme, a sua
propria profissão de fé idealista, á margem
da grandiosa epopéa do idealismo moderno,
que é a obra de Romain Rolland.
Tasso da Silveira não tem como Ronald
de Carvalho, a fulgurante expressão, a re
quintada elegancia de um escriptor de pura
latinidade. Por isso mesmo, porém, com menos
brilho mas com mais gravidade, se nos apre
senta reflectindo melhor o que somos na al-
chimia mysteriosa do Novo Mundo: uma gi
gantesca alma de povo em que se fundem,
por influxo divino, amarguras e sonhos de
dez outros povos, formando pouco a pouco
um ideal tão alto e tão forte que só se póde
interpretar como uma nova revelação social
do proprio Christianismo, na sua crescente uni
ficação do genero humano.
Romain Rolland vae assim exercer sobre
a nossa mocidade intellectual uma influencia
que, ha dez annos, fôra quasi loucura ima-
ginal-a possivel.
A reacção do pensamento catholico, aju
dada pelo doloroso mas soberbo esforço de
Farias Brito, como chefe do espiritualismo no
Brazil, ou melhor, como creador da philosophia
brazileira, ajudada por este mesmo ideal es
230 AffirmaçÕes

piritualista, presentido e fielmente defendido


por Nestor Victor, nos dominios propriamente
literarios, desde o milagre symbolista entre
nós, já vae dando os frutos de oiro de uma
nova phase de mais coragem, mais ardor, mais
sinceridade, no desenvolvimento da nacionali
dade que, sentindo-se autonoma, sente agora
a necessidade de marcar as fronteiras desta
autonomia, no largo circulo da civilização
christã a que pertence.
à MARGEM
DOS « CONTOS E IMPRESSÕES »
DE MÁRIO DE ALENCAR

Parecerá talvez uma tolice dizer que o


que ha de mais difficil em arte é ser verda
deiramente artista . . . Mas raciocinemos um
pouco e vejamos se não ha razão para
expressarmo-nos assim. O verdadeiro artista,
ao contrario do que geralmente se diz, tudo
leva a crêr que deve ser por excellencia dis
creto, neste sentido de que se apresenta como
uma viva encarnação da ordem, da medida
e, como se fôra um deus, a sua funcção ,é
a de harmonizar, em creações proprias, ele
mentos dispares, forças que se combatem no
amplo seio da vida. Foi pensando deste modo
que Cch. Maurras pôde dizer: « Un poème n'est
point liberté; il est servitude: sa beauté se
juge précisemente en rapport des valeurs natu-
relles mises en jeu avec la sereine vigueur du
rithme ondoyant qui les courbe ».
232 Affirmações

Assim quanto mais desordenada e febril


é a creação do espirito, mais se distancia
da obra de arte propriamente, e só nas civi
lizações decadentes, nas sociedades em phase
de transição, inquietas, incertas do presente
e ainda mais do futuro, pode-se confundir,
como se vae fazendo, na hora presente, em
todo o mundo occidental, o verdadeiro artista
com todos os grandes soffredores que se reve
lam nas letras. O que Boutroux fazia notar
em relação á sciencia tem toda razão de ser
observado em relação á arte. Nem tudo que
tem forma artistica é realmente arte e até
nem toda a belleza que se agita no mundo
do espirito é susceptivel de exprimir-se artis
ticamente.
Sendo o artista, antes do mais, um crea-
dor, elle cresce á medida que domina o
tumulto da sua vida interior e dá a sua obra
o caracter de coisa natural, nascida de uma
necessaria expansão daquella mesma vida.
Elle expressa-se como a natureza tambem sabe
exprimir o que traz de belleza do desconhe
cido jogo das suas forças: serenamente. Por
que a arte só se refere á belleza, e não póde
haver belleza onde não houver harmonia, nem
harmonia onde não haja serenidade.
Quando a natureza apresenta uma crispa
ção tragica em sua sumptuosa face, cessa a
belleza. Dir-se-á que ha no tragico uma bel
Affirmações 233

leza superior e o bello horrivel é expressão


vulgarmente acceita. Mas tanto na natureza
como na obra de arte só a distancia, a altura
em que pairam taes scenas, póde conservar
no espirito que observa, a calma, que, só,
ajuiza com acerto ou sente reflectidamente.
Assim, num cataclismo ou numa batalha só
a visão do conjuncto, tida a distancia, ou de
pura imaginação, poderá conter belleza. Quem
os soffre só vê o pormenor, e, neste, o que
é no todo, de modo exclusivo, deprimente e
desmoralizador. Dahi poder até dizer-se que
a belleza de taes quadros não existe em si
e é o que é, propriamente, belleza humana,
belleza historica, porque synthetisa a recordação
sentimental de todo o soffrimento do homem
sobre o planeta. Na obra de arte, que é outra
cousa muito diversa ou differenciada da natu
reza e da vida, se o que se quer é o tragico,
o horrivel, o monstruoso, para que nella se
mantenha a caracteristica da verdadeira arte
— expressão da belleza, mas expressão que
revela relação de essencias entre a ordem
humana e a ordem propria do bello em si —
é mister que a acção se desenvolva num am
plissimo quadro de linhas serenas, porque o
contraste, amparando a alma do leitor, do
observador, conserva-lhe a capacidade de
ajuizar, o que chamei a capacidade de sentir
reflectidamente. E a verdade é que o tragico
234 Affirmações

póde, por exemplo, ter expressão outra que


não a artistica. O que a arte quer é exprimil-o
artisticamente, isto é, do modo mais adequado
á belleza que o artista póde emprestar-lhe.
A maior difficuldade nestes dominios é
definir o artista que quasi sempre nos appa-
rece em contradicção com uma concepção de
arte, como força de ordem, a mais espontanea
mas não a menos rigorosa nas operações do
espirito. Não é evidente que o artista é o
mais sensual dos homens, pelo menos, dos
homens de pensamento?
Mas sendo a demasiada sensualidade des
regramento, poder-se-á dizer que a obra de
arte, na sua mais alta significação, é o produ-
cto de uma lucta interior, tão enobrecedora
como a que se dá no terreno religioso, fulgu
ração da ordem que nasce do cháos, Victoria
de caracter especial, da razão e do senso
commum contra violentas paixões e instinctos
brutaes.
Mas tudo quanto aqui vim expondo só
se refere ao caracter formal da arte, isto é,
á arte como «expressão de bons ou máos
sentimentos em relação com a vida». Conce-
be-se que ella seja assim uma força serena
ou melhor que ás suas creações empreste
naturalidade. Mas outro é o problema moral
que envolve a arte. Como uma tal força que
só se refere á belleza e producto, em si, de
Affirmações 235

lucta entre o sentimento da ordem e a des


ordem das paixões, poderá alliar-se sempre a
uma concepção enobrecedora da vida, da sua
propria finalidade dentro da vida? Aos puros
esthetas ou aos philosophos que fazem da
belleza o ideal moral (identificação do bem
e do bello) seria facil a resposta se não fosse
a consideração que já tem sido feita e Sortais
assim resume: «Todo acto virtuoso é digno
de estima mas nem sempre merece admiração.
A belleza é um gráo superior de bondade ».
Assim não ha problema mais desorientado
que o da conciliação da arte e da moral, da
harmonia entre a creação artistica e o senti
mento de uma finalidade humana que seja
o bem ou o amor.
Agora mesmo estas longas considerações
nasceram em meu espirito após a leitura do
ultimo livro de Mario de Alencar, obra de
arte, em todas as suas partes, tão alta e tão
perfeita como as que mais se nos tenham já
imposto em nossa literatura.
Pertencendo, no quadro dos nossos ficcio-
nistas, ao que elle proprio, com tão agudo
senso critico, chama de naturalismo psychologi-
co, isto é, pertencendo á mesma ordem literaria
em que figurou Machado de Assis, tem Mario
de Alencar o que, entre nós, quasi constitue
a mais estimavel originalidade — a de ser
sobrio e simples na descripção, tanto quanto
236 Affirmações

discretc na expressão que implique um mais


directo subjectivismo que o que é inevitavel
em obras de arte. São as suas figuras, como
as de Machado, simples, na apparencia, e
vulgares, mas a quem as acompanhe, curiosa
mente, sorprehenderá, ao fim, que todas ellas
têm a intensidade, o vigor, a complexidade
espiritual do que não quer ser somente
humano mas, sim representação symbolica de
diversas relações entre o que, na vida, é
apparente e o que é, de facto, esta mesma
vida.
Differenciam-se, porém, as suas creações
das de Machado de Assis porque não resalta
dellam a ironia que, nas obras do autor de
« Braz de Cubas », não só era fim proposto
como até atmosphera que envolve o leitor,
receioso, desde as primeiras linhas, de que esteja
sendo logrado pelo escriptor, tal a incerteza
dos conceitos, o ar dubitativo de que se
reveste qualquer das suas forcadas affir
mações.
Mas o que quasi se não chega a com-
prehender é porque ha na obra de um homem
tão sereno e aplacado como Mario de Alen
car, cuja bondade é de todos reconhecida, um
tão amargo sentimento da vida, uma tão des-
illudida visão do homem, um tão horrivel
assentimento, monstruoso mesmo na sua resi
gnação, a todas as miserias de que se com
Affirmações 237

põe o quotidiano social. Porque, na realidade,


nem uma só vez, em todas as suas creações,
transparece o energico protesto de uma con
sciencia contra o que é, em favor do que
devera e poderia ser. E não será mesmo
voluntaria cegueira o não avistar, em meio
mesmo a esse doloroso quotidiano, as gene
rosas forcas de ideal e de amor, que ha na
mais humilde tragedia? Ou melhor: que é que
faz o tragico da vida senão a lucta mesma
entre o bem e o mal, o sentimento do dever
e os interesses egoisticos, a consciencia e as
necessidades?
Dirá talvez o creador do « Januario » —
refinado malandrim a que irmanou todos os
homens — que, no retratar assim, com fideli
dade, a existencia, deixa livre a indignação
do leitor e até que não poderia pôr em relevo
a maldade, se não a apresentasse num quadro
de normalidade humana. Mas é ahi que me
desorientam ficções como a « Tia Lúlú », o
« Januario » ou « Surdina da . morte », pois o
que mais vivo alli se desenvolve é justamente
o que ha de máu na existencia, e o que é
bom como que se reveste de uma mediocri
dade nada attrahente.
Em « Surdina da morte », aquelle triste
homem que perdoa o adulterio da propria
esposa, não é mesmo um homem, senão um
ser que já se não póde vingar, como dese
238 Affirmações

jára, e vinga-se como póde — perdoando, se


perdoar é deixar cair sobre a consciencia de
quem fez o mal, todo o peso moral da res
ponsabilidade, ao saber-se descoberto e, por
sua vez, trahido pela vida . . .
Este livro de Mario de Alencar veiu
oonvencer-me ainda mais de que a arte, não
sendo, em si mesma, uma força moral, deve,
como todas as forças do espirito, obedecer
á suprema lei da finalidade humana, pondo-se
em harmonia com as forças que trabalham
o ideal do bem e do amor, e fazem do homem
propriamente homem, isto é, um ser que reage
moralmente contra as suas condições animaes.
Piorque, se assim não fôr, nem sei eu se
a arte tem outro fim senão augmentar a
amargura da vida, e fazer mais negra e mais
pesada e mais triste a nossa existencia de
relação com as cousas do mundo.
FIGURAS

Os scepticos, quando não são simplesmente


pedantes e até, ás vezes, grandes despeitados
a blasonar indifferentismo, são creaturas de
cujo convivio não nos devemos afastar, nós,
crentes, e alguns ha que devemos amar com
todas as forças do coração. Não são infelizes?
E vamos e venhamos: não é o scepticismo
uma attitude quasi racional neste pandemonio
contemporaneo? Cesi toujours Vhomme qai
se pipe . . . Sei-o eu perfeitamente, mas é quasi
racional, como disse, que o homem dos nossos
dias, intelligente e generoso, em muitos casos,
assim se engane ... De facto, a atmosphera
moral se fez demasiado pesada, suffocadora.
Uma lucta infernal, um furioso entrechocar de
idéas e semi-idéas é o que se vê e se sente,
por toda a parte, e nem todos são dotados
da grosseiria necessaria para uma lucta desta
ordem. E desde que a um homem faltou uma
240 Affirmações

rigorosa educação religiosa, que o proteja, é


quasi logica a sua retirada dessa cidade de
moniaca, que só as hostes propriamente enris
tas, isto é, as da Igreja catholica, podem en
frentar a pé firme.
E nem sempre envenena o scepticismo,
nem sempre corta totalmente as raizes di
vinas da alma. O homem é naturalmcente
christão! — profunda palavra esta de Tertu-
liano. Pode-se ver uma creatura que, do ponto
de vista intellectual, discursivo, digamos, vive
como entre nevoas, indeciso, vacillante, practi-
camente viver vida christã, conhecer do amor
o que elle tem de mais alto, que é mesmo
a acção. É uma verdade que não ha mais
forças do mal que apaguem a luz que se
derramou sobre a terra com o sangue de
Jesus Christo.
Quero dizer com isto o seguinte: que
ainda a um homem dessa ordem não faltam
nem mesmo os beneficios do sobrenatural. Elle
vive tambem vida christã, porque o christia-
nismo tudo modificou, tudo illuminou no
mundo moral, e não ha região deste mundo
em que o signal da Cruz não seja visivel.
Jesu, Deus fortis, Jesu poientissime.
O mal tem tomado formas talvez mais
violentas mas é justamente pela omnipresença
do bem. Sente a serpe a presença cada vez.
mais hostil do seu eterno, victorioso inimigo.
Affirmações 241

Na principal das suas obras escreveu Mr.


Bougaud estas nobres e melancolicas palavras:
« Desde que o christianismo appareceu sobre
a terra, tomaram as almas proporções que não
tinham na antiguidade. Mas foi o que não se
viu bem senão em nossos dias, quando, pri
vadas dessa presença de Deus, que tanto as
engrandecera, sentiram-se tristes, inquietas, sof-
fredoras de tormentos que ainda não tinham
nome em nenhuma lingua. O progresso da
consciencia, o engrandecimento do coração, a
extensão da imaginação, a perspectiva de in
finitas alegrias e, de outro lado, a vulgaridade
da vida, a instabilidade do presente, as in
quietações do futuro — tudo contribuiu para
lançar as mais bellas almas numa desencan
tada e amarga vida. A civilização e a sciencia,
em lugar de remediar taes tristezas, augmen-
taram-nas. Elevam a natureza, fazem-na mais
fina, mais delicada. Ora, toda elevação, todo
engrandecimento é uma capacidade a mais de
soffrer. As naturezas raras sentem mais e sof-
frem mais, por conseguinte.
« Já faz muitos annos que sondo uma mul
tidão de almas distinctas, instruidas, mas de
que Deus está ausente. Sempre as vi tristes,
atormentadas pela idéa de Deus, sobrecarre
gadas do mysterio da sua consciencia ou do
peso do seu coração, aspirando quasi todas,
. mesmo a contra gosto, uma vida mais alta,
16
242 AffirmaçÕes

mais viril, mais infinita; e essa tristeza, de


que algumas delias nem tinham consciencia,
fazia-as ainda mais attrahentes e mais bellas ».
Mas não ha só nobreza e melancolia no
que ahi fica transcripto, ha também uma
grande força de observação. A toda hora, taes
almas se nos deparam, assim, bellas, tão
bellas, que dizem tanto ás vezes de Deus,
nas suas tristezas, nos seus desencantos, como
as que ardem na fé e na esperança. É que
ellas são a prova mesma de que nem a bel-
leza em si propria encontra finalidade . . .
Já faz bastante tempo que me approximei
de Constancio Alves, convicto de que ia abei-
rar-me de uma dessas almas. O escriptor era
o que menos me aguçava a curiosidade, tão
pouco mysterioso era para mim, que ha tanto
me fizera seu ledor e admirador. E pensava
eu então: não se escreve tão bem, tão sim
plesmente, sem sinceridade. Mas é certo que
um escriptor, mesmo sem ser insincero, póde
esconder as « reservas mentaes », que o homem
em si possa ter, em face dos mais complexos
problemas da vida. Não crê, por exemplo, um
homem na viabilidade de uma dada idéa. Mas,
como escriptor, defende essa idéa, procede
como se acreditasse possivel realizal-a. É
que o seu scepticismo não vai até o ponto
de suppor que se perde o bom conselho. Não
— o que não é possivel agora, sel-o-á amanhã,
Affirmações 243

e mesmo para que o seja é preciso desde já


ir preparando as almas, formando um dado
ambiente espiritual.
Não seria esse o caso de Constancio Alves?
Que ouvira eu, mesmo de amigos seus? Ah!
alli está um terrivel renaneano . . . sabe o Ana
tole de cór, é um commentario vivo da obra
de Machado . . .
Pois bem: approximei-me de Constancio
Alves; nossa convivencia se tem feito cada
vez mais intima; já o ouvi commentar Renan,
Anatole, Machado, e cada vez mais o homem
que elle é confirma o escriptor, que eu co
nhecia. Nem a mais leve sombra de scepti
cismo! Só se este já se fez, entre nós, syno-
nimo de delicadeza, finura, subtileza de es
pirito . . . Quando muito concordarei em qUe tem
Constancio uma dada especie de scepticismo:
crê muito pouco no que, realmente, merece
pouca fé!
Assim é um sceptico ante as arrogancias
do barato scientificismo (de que Renan foi
um apostolo), assim é um sceptico ante as
estudadas attitudes do scepticismo literario,
que se quer dar como essencial e humano.
E quando, como no caso de Machado de
Assis, o analysta que é Constancio, depara o
scepticismo real, entranhado, profundo, não
lhe segue as pegadas senão para o lastimar,
senão para vir provar depois que um tal per
244 Affirmações

manente estado de espirito não é cousa normal,


é antes producto de molestia, quando mais
não seja de uma enorme covardia, vestida de
graças mil, de mil encantos, mas afinal co
vardia. A Machado, por exemplo, ama de
veras o autor de « Figuras », mas está em face
delle, e assim o ama, como Mr. Bougaud em
face daquellas outras almas de que Deus es
tava ausente. A Constancio Alves não escapa
o vicio que enferma a visão do nosso grande
artista. Toda a' obra de Machado de Assis é
assim como uma ampliação daquella outra que
em Itaguahy mandara construir Simão Baca
marte. Tem de certo mais aprimorada archi-
tectura, fachada hellenica, uma certa graça
mais nova, inspirada nos mestres francezes . . .
Mas lá dentro é primeiro, como numa ante-
sala de reticencias, o frio ar das construcções
egypcias, que, como já foi notado, falam mais de
morte que de vida . . . Hieroglyphos, esphinges
a cada canto, em tudo o mysterio ... E lá,
mais adiante, lá para o coração do vasto
edificio: entre paredes alinhadas, correctas,
pelos longos corredores, a confusão, a lin
guagem lunatica, a loucura, emfim, de quantos
personagens vamos encontrando nesse in
ferno . . . Somente dir-se-á que raros são os
loucos furiosos, raros os que falam muito
alto . . . Parece que o mal geral é a indecisão,
o medo de se revelar tal qual é . . .
Affirmações 245

Falando desses tristes personagens, e do


autor, que os engendrou, assim se expressa
Constancio Alves: «Creando-as á imagem do
modelo que via através do seu pessimismo, não
podia dar-lhes azas de anjos. Dava-lhes pipa
rotes, porque a sua misanthropia mais as des
culpava que as molestava. E a razão da des
culpa era que as tinha a quasi todas por
doidas. « A loucura entra em todas as casas »,
affirmou um dos seus doutores. Desse mal
quasi não escapou sequer um personagem.
Todos são mais ou menos malucos. Ma
luco é Braz Cubas. Maluco é Quincas Borba.
Maluco é Rubião ».
E depois de fazer a observação que re
peti: «a obra de Machado tem um re
sumo no hospicio de Itaguahy», ainda af-
firma Constancio: «Doidos, doidos, todos
doidos ». É assim que ajuiza o autor de Figuras
do valor de psychologo daquelle que se póde
chamar o nosso moralista ás avessas.
O valor moral da psychologia que faz
Constancio Alves é muito outro. Vêde o per
fil mesmo desse Machado de Assis, a quem
não fica devendo como chronista da nossa
vida e em tons de estylo, ou as paginas de
dicadas a Raymundo Corrêa, José Bonifacio
o moço, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Vieira
Fazenda, Rebouças, etc. Foram todas ellas es-
criptas para um publico de jornal mas todas
246 Affirmações

poderam figurar num livro como paginas de


amor á nossa terra, á nossa gente, á nossa
historia. Figuras é esse livro, o primeiro que
ousou publicar o amigo de Joaquim Nabuco,
e justamente quando, ainda em obediencia a
um desejo daquelle grande morto, resolveu
bater ás portas da Academia, onde não está
ha muito tempo porque á sua modestia sempre
se apresentou como homem de jornal e não
como um homem de letras!
E foi assim, convicto da propria desvalia,
como um verdadeiro christão, que pôde modelar
uma obra de escól, apezar de volumosa, pois,
para honra nossa, este escriptor que jámais
sahira das paginas do jornal ou da revista,
ficará tendo não só os seus livros como lugar
obrigado nas anthologias em que figurem os
mais aprimorados cultores da nossa lingua.
Esta é a opinião de mais autorizados que eu.
E só escriptores como elle poderão mesmo
dar vida a livros taes, em que geralmente
se ostentam frias bellezas de linguagem e nada
mais. Da obra de Constancio Alves será sempre
difficil arrancar uma dessas paginas que são
como bem cuidadas, bem estudadas inscripções
de sepulchro. Nunca as suas letras brilham
sobre o pó, a cinza, o nada. Mal as sole
tramos, vemos que vestem pensamento vivo,
sempre sereno mas sempre em movimento.
O seu amor dos grandes caracteres se nos
Affirmações 247

patenteia, em todas as direcções, a todos os mo


mentos. É aqui, falando de D. Antonio de
Macedo Costa: «Os que porventura não accei-
tarem as suas doutrinas; nem por isso estão
desobrigados de seguir o seu exemplo: servir.
lealmente uma causa, tornal-a superior á sua
vida, ao seu destino, aos seus interesses.
« Nesta época de consciencias debeis e de
convicções quebradiças, em que se arvora o
pessimismo em doutrina suprema, porque para
achar bôa a vida é preciso vivel-a — o notavel
bahiano offerece uma lição magistral ».
Poderia dar mais vinte provas desta feição
heroica de seus pensamentos, isto é, de seu
prazer de admirar — o que é cousa difficilima
para quem não é imbecil — do seu carinho
na pintura do que é forte, do que é grande
no mundo moral, ou na vida do homem pro
priamente.
Do « aventureirismo » de um Roosevelt até
a rancorosa teimosia de um Zacharias de Góes
e Vasconcellos,- toda viva expressão humana,
toda vigorosa projecção de caracter « no circulo
atormentado da vida», nelle tem, senão o seu
historiador, pelo menos, um perfeito desenhista,
em quem, ás vezes, se sente que ha até ti
midez e receio no abordar esta ou aquella
desabusada creatura, mas é certo que o im
pulsiona uma especie de instinrto plutarchiano,
e é de ver como a timidez aos poucos se
248 Affirmações

transforma em amor, e o timido se assenhoreia


da alma que o attrahe pela energia dos actos
ou a attitude singular.
Dada essa feição do espirito de Constancio
Alves, seria extranhavel e absolutamente con-
tradictorio se revelasse tambem como iro-
nista. O ironista raras vezes ama e ainda
mais raras vezes, admira, sendo, como é, a
admiração facto de intelligencia e não de sen
timento. Ora, acontece que um ironista póde
muito bem ser um grande caracter, como tudo
leva a crer que foi Machado de Assis. Entre
tanto, como se a si proprio se ignorasse, elle
é um homem que não crê no caracter, mesmo
porque quasi que a sua funcção intellectual se
reduz a mostrar que, sob a illusão da iden
tidade no espaço e no tempo, nada mais ha
que variação constante e continua ao sabor
das circumstancias. O ironista não crê no ca
racter e tambem é incapaz do desenho fiel.
Tudo lhe sahe caricatura, mais ou menos cho
cante, mas sempre caricatura. Tambem não
percebo em Constancio Alves o que se possa
chamar propriamente de « humour ». Se este
é só aquella «lagrima que ri» nos olhos de
uns tantos desillusos, vive ainda Constancio
Alves num grande mundo desses a que cha
mamos mundos de illusão — e antes são de
altos e puros ideaes. Demais quando vale
uma lagrima aquillo que recorda, elle a deixa
Affirmações 249

ver bem viva e bem lagrima, quero dizer,


sem brilho outro que o da propria dor que
a gerou. Alli está a sua confissão, quando es
creve sobre Rodolpho Dantas, ainda na espe
rança de que chegasse o desmentido da sua
morte.
Se o « humour » é fagulha hostil daquelle
«sombrio e silencioso braseiro» em que ardeu
a orgulhosa alma de um Carlyle, por exemplo,
ainda Constancio apparece possuido daquella
humildade que, unica, faz sereno o coração, e
nada, neste livro como no que me lembre de
toda a sua obra, fala com amargor, mesmo
represo, nada traduz, nem de leve, um desses
profundos desesperos, que fazem ter odio á
vida.
Outra componente do «humour» será o
tedio. Constancio não o conhece. A existencia,
mesmo na sua vulgaridade, tão maravilhosa
cousa lhe parece, que não é raro vel-o artista
ainda mais admiravel então, a mostrar a todo
o mundo o que ha de bello, de precioso, de
eterno mesmo, no ephemero vulgar, no pro
saico, no muitas vezes visto—e raras vezes com-
prehendido na suà significação interior, pro
priamente espiritual.
Ha, entretanto, na prosa de Constancio
Alves, qualquer cousa que lembra ora o « hu
mour», ora a ironia. E que será? No relatar
de factos uma certa bonhomia, que é timidez
250 Affirmações

talvez, talvez proposito de não tomar par


tido . . . Mas se focaliza uma das figuras desse '
mundo moral da sua predilecção, não sei se
me tomarão por paradoxal, mas a minha con
vicção é que essa cou&a é a piedade, a immensa
piedade, do seu coração por tudo quanto o
cerca.
A expressão delicada, subtil (de que a
ironia sempre se reveste), as reservas mentaes,
os clarões subitos, os contrastes bem apa
nhados (que são da economia do «humour»),
são a forma e como que a vida intellectual de
certos periodos de Constancio Alves. Outra
cousa, muito outra, é o sentimento que os
ditou, e este é sempre, sempre a piedade.
Eu quizera que me mostrassem neste seu
livro uma palavra cruel ou mesmo um desses
longinquos sorrisos de zombaria, ante seja o
que fôr. Lá está « S. Thomé », a sua profissão
de fé no valor moral da duvida . . . Será ironia
aos que crêm? Duvido.
E nem porque digo que duvido, preparo
defesa nossa, de nós, crentes porque a crença
a que me ligo é a crença racional, que conta
Thomé entre os seus santos.
Nós, os que veneramos Thomé, não cremos
no que repugna á razão. Simplesmente, a nossa
propria razão sabe ver que só é razão como
dizia Pascal, quando, a si propria confessa a
sua fraqueza, ante determinados problemas.
Affirmações 251

E a Revelação que em nada lhe offende


os brios, vem então em sua ajuda.
Deste modo, quando Constancio Alves
aponta S. Thomé ás gerações que passem, nada
mais faz que desenvolver aquella palavra, em
certo sentido profundissima, de quem disse que
«a duvida é o caminho mais curto para a
fé absoluta».
E é bom lembrar que, antes de proclamar
Descartes o seu «Penso, logo existo», já dis
sera Santo Agostinho: «Duvido, logo existo».
E quem esteja a deixar-se escravisar pelo
scepticismo — se quizer ver se é ironia ou ver
dade o que diz Constancio Alves — tenha um
momento de vida heroica, levante-se em si
mesmo, faça como S. Thomé, e, de coração
isento de preconceitos, vá até ao pé da Cruz
de Jesus Christo, toque-a, estude-a, medite-a,
faça o balanço do que ella vale e do que vale
tudo o mais que ha sobre a. terra.
UM NEWMAN RUSSO

Deante das monstruosas scenas descriptas


pelos que, de mais perto, observam o desen
volvimento da acção bolchevista, a muita gente
se affigura perdido, irremediavelmente perdido,
tudo quanto a civilização já conseguira soli
dificar na agitada, obscura e mysteriosa liga
de povos, que faziam a grandeza do Imperio
Russo.
Ha muita precipitação, porém, neste juizo.
à Historia é que cabe informar a quem quer
ter uma visão de conjuncto dos acontecimentos
politicos do seu tempo, e é ella que nos leva
a encarar, com muito menos pessimismo, a
situação actual da Russia.
Não foi menos cruel, menos absurda,
menos sanguinaria e menos irracional, a bur-
guezia franceza que, em nome de uma pre
tensa Razão, tambem levou, de um a outro
extremo do mundo civilizado, o mesmo temor
254 Affirmações

de que se afundasse a «arca sagrada», e mer


gulhasse a terra, mais uma vez, após tantos
seculos de esforço, nas trévas dá barbaria.
A verdade é que o Christianismo, que é
a alma do mundo Occidental, é mesmo uma
alma immortal, capaz de resistir a todos os
attentados, a todas as paixões do barbaro que
sobrevive em tantos seres, socialmente redi
midos pela sua benefica influencia.
E o certo é que, em menos de cincoenta
annos, estava, se não refeito, pelo menos em
marcha ascendente, a distanciar-se do abysmo,
o espirito de ordem e de progresso, em todos
os povos atlingidos pela loucura revolucio
naria.
Assim ha de acontecer á Russia e aos
povos presentemente ameaçados pelo novo
imperialismo revolucionario.
E' certo que, em consequencia ainda da
propria Revolução Franceza, não de todo
domados os seus principios subversivos, são
os povos actualmente como que mais susce
ptiveis desses tremendos contagios . . . É o que
todos sentimos, sem reflectir sobre as causas
que tão profundamente alteraram a athmos-
phera moral do Occidente. Mas a reflexão,
nesses dominios, ao invez de fazer pessimistas,
pensamos nós que é até creadora de con
fiança, de fé no destino dos povos christãos.
O que se passa na Russia não foi sur
Affirmações 255

preza para os que attentavam em sua tene


brosa historia, destes ultimos dois seculos,
principalmente de Alexandre I para cá. Inva
dida, não só por Napoleão, mas, sobretudo
pelo espirito do occidente europeu, tudo, no
Imperio, tinha o aspecto do que se agita só
para morrer, sendo que até a sua propria
religião official parecia concorrer para o apo-
drecimento de todas as consciencias, a deba-
terem-se, todas ellas, entre as pontas do mais
injusto dilemma: ou apodrecer no seio de um
christianismo inorganico, sem chefe espiritual,
realmente á altura da sua missão, de um chris
tianismo, cuja alma era a força do Tzar, ou
apodrecer ao primeiro contacto com os prin
cipios revolucionarios e negativistas de ori
gem allemã e franceza, principalmente allemã.
Uma cousa, porém, esquecem todos aquel-
les que só apontam essas terriveis feições da
vida russa. É o que o Conde José de Maistre
— que foi, justamente, quem melhor descreveu,
até hoje, os germens de decomposição daquelle
edificio social absolutista — também designou
como meio de salvação daquelle povo, como
de todos os povos, aliás: a volta ao seio da
Egreja Catholica, volta, dizemos, porque só
ella, a Egreja Catholica, em face da desman
telada Egreja do Oriente, respeitavel nas suas
origens, representa, ha seculos, a primitiva
unidade dos homens em Jesus Christo, a
256 Affirmações

pureza da doutrina apostolica. Só a Sé Apos


tolica de Pedro será mesmo capaz de levar
á vida interior daquelle desgraçado gigante,
este rithmo moral de que só ella possue o '
segredo, e de que resultam toda a fortaleza
e toda a belleza na vida dos povos.
Ora, de que não foi mentirosa a pro-
phecia do grande philosopho da contra-revo-
lução, temos a prova, não só em factos
propriamente contemporaneos, alguns delles
bem edificantes, como esse da ajuda da Santa
Sé aos famintos russos — ajuda consentida
pelo governo bolchevista que, como todo
qualquer outro que se estabeleça na Russia,
não terá nunca as razões que tinha o Tzar <
de oppôr-se ao desenvolvimento do Catholi-
cismo — mas em factos outros bem mais im
portantes, e que interessam periodo mais largo
da historia daquelle povo modernamente, isto
é, de 1850 para cá.
Referinmo-nos á atíção e enorme influencia
moral e intellectual de Wladimir Soloviev, o '
poderoso adversario de Tolstoi no terreno phi-
losophico e religioso, cuja figura vem de nos
ser completamente revelada por Michel d'Her- :
bigny no formoso livro, que tem o mesmo
titulo que encima estas linhas.
A elle que « conquistou na sua patria o j
maximo de respeito e popularidade », por isto
mesmo que, como disse N. Hoffman, foi um l
Affirmações 257

crente modelado pelo exemplo daquelle que


disse: « EGO ET PATER UNUM SUMUS»,
coube, na opinião dos mais abalisados criticos
da vida social russa, papel importante na
approximação, que se ia lá operando,- entre
governantes e governados, quando, accendida
pela guerra, a Revolução tornou impossivel
uma completa e pacifica reforma da velha
sociedade, que se faria lenta mas seguramente
desde que predominasse a tolerancia para com
a Egreja Catholica.
Admira-nos que tenha escapado a critico
tão bem informado das letras européas, como
mostra ser d'Herbigny, a immensa influencia
que devem1 ter tido sobre Soloviev as diver
sas Memorias e as muitas cartas que escreveu
o Conde José de Maistre sobre a situação
religiosa do povo russo em face da Egreja
Catholica, pois, tanto o ponto de partida da
critica historica como as conclusões a que
chega o philosopho d'A Russia e a Egreja
Universal (obra escripta em francez, são, senão
identicos, pelo menos muitissimo approximadòs.
Esta foi a solemne profissão de fé de
Soloviev, publicada no mesmo livro a que nos
referimos :

« Como membro da verdadeira e veneravel


Egreja Orthodoxa Oriental ou greco-russa, que
não fala por um synodo anticanonico nem por
17
258 Affirmações

servidores do poder secular, mas pela voz dos


seus grandes Padres e doutores, reconheço por
supremo juiz em materia de religião aquelle
que, como tal, foi reconhecido por Santo
Irineo, S. Deniz, o Grande, Santo Athanasio,
o Grande, São João Chrysostomo, S. Cyrillo,
São Flavio, o bemaventurado Teodorêto, São
Maximo, o Confessor, etc,. — a saber o apos
tolo Pedro, que vive nos seus successores, e
que não ouviu em vão as palavras do Se
nhor: «Tu és Pedro e sobre esta pedra edi
ficarei minha Egreja. — Confirma teus irmãos.
Apascenta minhas ovelhas ».

Ora, quem conheça as opiniões formuladas


pelo Conde José de Maistre sobre o possivel
entendimento entre a Egreja Oriental e a
Egreja Catholica, sujeitando-se aquella a reco
nhecer a suprema autoridade desta, e res
peitando esta as liberdades não criminosas
daquella, não pode deixar de notar que outra
não seria a argumentação a usar, a instruir
uma profissão de fé, modelo a todo crente que
desejasse fazer parte da Egreja Universal, sem
abdicar da originalidade da Egreja greco-
russa. Porque, aos entendidos nestas questões
historicas, não passará despercebido que
a exposição de motivos de Soloviev é uma
cerrada argumentação contra a separação
mantida pela Egreja Oriental, no seio da
Affirmaqões i 259

sociedade christã. «Soloviev, diz d'Herbigny,


queria ser membro da Egreja Universal, da
Egreja Catholica Romana, mas não um mem
bro LATINO. « É a Egreja DE ROMA, e não
a Egreja LATINA que é MATER ET MA-
GISTRA OMNIUM ECCLESIARUM ».
Pois bem, esta era tambem a idéa princi
pal, a base mesma do plano que o Conde
José de Maistre apresentava como capaz de
reavivar as crenças do povo russo, sem, de
modo algum, alterar-lhes a essencia.
Não foi assim em vão que, como o phi-
losopho das « Soirées », tambem Soloviev se
apaixonasse pela unidade do mundo moral,
usando tambem — note-se — de linguagem em
que se pode encontrar, sem muito esforço, o
mesmo accento, o mesmo ardor de convicção,
a mesma logica, o mesmo irresistivel poder
de persuasão.
«Todo pensamento — dizia Soloviev —
toda philosophia busca a Unidade. Ora, o
que dá ao mundo sua verdadeira unidade com
sua existencia, é a poderosa, viva e pessoal
realidade de Deus. Sua activa unidade se nos
revelou nas suas obras, mas, sobretudo, na
manifestação que unificou a Magestade Divina,
o espirito humano e a materia corporal, na
pessoa thesudrica de Christo, em que habita
corporalmente a plenitude da Divindade . . .
Mas, do mesmo modo que não teriamos sem
260 Affirmações

Christo a Verdade de Deus, não conheceria


mos a Verdade do Christo, se elle ficasse
sendo para nós uma simples lembrança histo
rica: não é só no passado, é no presente e
além dos limites ordinarios das nossas vidas
humanas, que o Christo nos deve ser apre
sentado na sua viva realidade: é assim que
nol-o apresenta a Egreja. Aquelles que sup-
põem obter pessoalmente e sem intermediario
a plena e definitiva revelação do Christo, não
estão amadurecidos para esta revelação: to-
raam-no pelos phantasmas da sua imaginação.
Devemos procurar a plenitude do Christo,
não na nossa esphera individual, mas na sua
esphera psopria, delle, que é universal, na
Egreja emfim ».
Um povo que ouviu esta palavra e tão
fortemente se commoveu é certo que não
poderá morrer nos braços da revolução. Esta
se christianizará, como se vem christianizando
a revolução franceza nos povos do occidente
europeu e nos demais que soffrem a sua
influencia. « A idéa de uma nação não é —
disse o mesmo Soloviev — o que ella pensa
de si mesma, no tempo, mas o que, sobre
ella, pensa Deus na eternidade ».
Ao visconde de Bonald, o conde José de
Maistre tambem não falava de outro modo:
«Certo, o máu principio faz quanto póde
para estrangular-nos ; nada esquece, e está de
Affirmações 261

accordo assim comsigo mesmo. Entretanto,


ha de vencel-o o seu divino antagonista.
Ser-nos-á preciso tempo e muitos combates,
mas, por fim, venceremos ».
O homem tem a liberdade, mas Deus tem
os seus planos.
-
CARTAS A CAMILLO

PENITENCIAÇOES DO ATHEISMO

Pergunta-me V. o que tenho feito nestes


dias de tão profundo silencio . . . Não creia
que estivesse inactivo. Lia e meditava. Sobre
tudo meditava o que representa, nesta tragica
hora da vida civilizada, em todo o Occidente,
a obra, o esforço do mais bem intencionado
dos atheus, e que lição pode ella dar-nos, a
nós, filhos da Terra da Santa Cruz ... da Santa
Cruz, substituida, ha trinta annos, no pavi
lhão, que fala da nossa soberania, pela hu
milhante legenda de um ridículo sectarismo . . .
Ha no Brazil como V. sabe, uma mul
tidão de homens estudiosos que seriamente
estudam e seriamente aprofundam os problemas
mais complexos que tem a resolver o homem1
de nossos dias. Esta multidão de estudiosos
é, porém, quasi toda silenciosa e tem um
justo horror a um meio literario (o que é
264 Affirmações

um pouco differente do meio propriamente in-


tellectual ) em que pontificam os « cabotinos »
de todo o tamanho, que não tendo força para
luctar em prol de qualquer verdade, irrisoria-
mente se vingam negando-as todas, ou fazendo
affirmações a torto e a direito, sem o menor
pudor intellectual, sem o menor respeito á
logica dos systemas ou mesmo aos factos que
se impõem ás vistas mais curtas. E é uma
verdade que tenno podido dolorosamente ve
rificar a de que os nossos chamados homens
de letras, na sua maioria absoluta, quasi nada
sabem do movimento de idéas que vae, a esta
hora, vivificando a consciencia universal, em
lucta com tão graves e terriveis acontecimentos
como os de que somos testemunhas. A «bête
d'encre », tão commum em nosso meio lite
rario, quasi não tem capacidade de mover-se;
leu dois ou tres romances, leu mais duas ou
tres brochuras do mais ridiculo idealismo, e
isto é o bastante para a sua sêde sentimental.
Compenetrada de seu immenso saber, eil-a a
tecer o ninho da sua gloriola, que é tambem
quanto ambiciona, e tudo faz á custa de im
properios e blasphemias baratas contra as mais
sagradas conquistas da ordem e da civilização,
neste inquieto dominio da vida humana sobre
o planeta.
Não progride, porém; ver uma é ver
todas, não se lhe renovam as imprecações im
Affirmações 265

becis e, as mais das vezes, uma a uma esca-


buja e morre na propria dejecção envenenada.
Mas é por isto que, sendo como é a
ignorancia tão presumpçosa em certas ca
madas dQ nosso meio literario, outro remedio
não ha, que lhes faça bem, senão lembrar
o que se passa na Europa, em relação a este
ou aquelle facto de ordem religiosa ou po
litica.
Sem o sello da Europa, nada ha que preste
para esta gente. Com o sello europeu até o
maximalismo obtem, immediatamente, sem o
menor exame, foros de cidade.
Que se teria dito aqui, por exemplo, se
um sociologo da envergadura de Alberto
Torres, confessando-se atheu, desde o prin
cipio de sua vida publica, se tivesse feito, en
tretanto, dentro mesmo desse atheismo, o mais
acerrimo defensor da Egreja Catholica? Sabe
Deus o que se teria dito! Saber-se-ia que o sr.
Alberto Torres chegara a presidir um Estado
ou a ser ministro, por obra e graça dos frades
allemães, e que só por isto aquelle sociologo
explorava o sentimento religioso do nosso
povo. E a tão pobres imaginações seria em
vão lembrar que o Brazil, sendo como é um
paiz de população catholica, apezar de viver
sob um regimen democratico, não tem no seu
scenario politico nenhuma forte corrente de
opiniões arregimentadas, que representem, de
266 Affirmações

facto, a maioria dos seus filhos, do ponto de


vista religioso. Um dado desta ordem não
teria o menor valor ante a mesquinha con
fraria dos detractores profissionaes.
Mas que pensaria então esta gente da
obra e da acção social de um homem como
Charles Maurras, obra feita e acção exercida
em um paiz como a França, em que tão de
finidas estão as correntes sociaes e politicas
que é quasi considerado uma fraqueza accei-
tar-se lá a ajuda de indifferentes ou neutros,
na grande lucta pelo predominio de uma destas
correntes? Eis no que tenho pensado e é o
que se deve procurar obter, esse julgamento,
que se não sente envergonhado de ser de
applauso para o que tem rotulo estrangeiro,
desde que pode ser de indignação e de odio
para o mesmo facto, na esphera da vida na
cional.
E eis porque, após a leitura que fiz do
livro de Pedro Descoqs — «A travers Poeuvre
de M. Ch. Maurras » — ainda sinto o enthu-
siasmo necessario para fazer-lhe um resumo
das idéas que contêm, maximé daquellas que
nos possam servir, a nós brazileiros, ou de
incitamento a nosso esforço, ou de edificação
ante o que já temos feito, graças a Deus.
Tambem este livro de Pedro Descoqs não
só nos dará, a nós catholicos, o prazer de
ouvir sobre Ch. Maurras a opinião do nosso
Affirmações 267

scepticismo militante. Livro de um jesuita e,


por conseguinte, da mais alta cultura e res
ponsabilidade da Egreja, elle esclarecer-nos-á
sobre qual deve ser, neste momento de verda
deira conflagração universal, que é a das
idéas, a nossa posição deante das forças que,
extranhas á Egreja, sentem, entretanto, a ne
cessidade de combater em favor della, contra
a anarchia dos tempos modernos.
A vida de Charles Maurras, meu caro
Camillo, resume mesmo esta dolorosa epopéa
da hora presente: o homem que, como dizia
Tertuliano, é naturalmente christão, em meio
á desordem em que o lançaram cinco seculos
de individualismo, sente quão monstruoso se
fez o drama da sua existencia, reconhece o
absurdo de uma vida sem hierarchia, sem fi
nalidade espiritual, o impossivel de uma vida
de que foi banido o respeito á autoridade, re
conhece a injustiça de que tem sido victima
a Egreja, dentro de seu coração e ante a sua
consciencia, e, sem ousar mais ajoelhar ante
os altares do Templo, posta-se deante delle
e dá-se de corpo e alma á sua defesa, contra
os profanadores, contra a barbaria moderna,
não menos sombria e perigosa que aquella
com que já luctou a Egreja para salvar a ci
vilização.
Este Templo, a que Charles Maurras
chama «o Templo da definição dos deveres»,
268 Affirmações

é o da Egreja Catholica Apostolica Romana,


unico em que o proprio amor não se di
vorcia da ordem, unico em que não se con
trariam os dados racionaes da liberdade e
da autoridade.

Observe agora as doçuras deste pande-


monio de contradicções . . .
Em um livro publicado em homenagem
a Ch. Maurras, e em que se contam poemas,
perfis, juizos e opiniões de Anatole, Barrès,
Bourget, Daudet, Dimier, Mauclair, Reté e
vinte outros dos grandes nomes da França
contemporanea, nomes que symbolizam talvez
vinte doutrinas contrarias, mas um só ardente
patriotismo, Emile Sicard assim resume o seu
pensamento em relação ao maior publicista
francez de nossos dias:
« Elle é como uma ilha de fé e hones
tidade contra a qual se quebram todas as vagas
da inveja e da ambição ».
Fé e honestidade! — eis tudo, tudo quanto
necessita um espirito para não ser na vida
um simples literato ou um simples politico,
mas um homem, um verdadeiro homem: ser
destinado a progredir, a se tornar digno de
Deus, sob o peso mesmo do soffrimento: «Tu
Affirmações 269

comerás o teu pão no suor do teu rosto ».


A vida de Ch. Maurras, basta exami-
nal-a superficialmente, para que se sinta
que, de toda ella, irradia a melancolica e
profunda verdade que é como o sello divino
sobre as grandezas humanas: a gravidade da
dôr sobre as victorias do esforço heroico.
Em verdade, imagine-se que horriveis os
aspectos, que sangrentos os scenarios deste
mundo em que Ch. Maurras não se quiz
deixar dominar pelo medo nem pela embria
guez das hecatombes, nem pela volupia de
mentir a si mesmo e aos seus irmãos de
infortunio, em meio do incendio que vae
devorando os restos da dignidade humana
sobre a terra . . .
« Le Machiavel du Risorgimento latin tel
apparaitra Ch. Maurras à nos fils». Eis o
que disse Fernand Gauzy, tentando um paral-
lelo impossivel dentro do campo do que cha
mou de razão experimental em politica. Forte
loucura! Entre o politico que verificava a exis
tencia do mal e aconselhava a systematização
do mesmo mal como governo e o pensador
que, penetrando o mal em todos os seus
segredos, não tem outro fim senão combatel-o
sem descanso — o parallelo é absurdo. Outra
é a gloria, outro o martyrio de Ch. Maurras.
Quem de nós, meu amigo, poderá jámais
interpretar o soffrimento desse homem que,
270 Affirmações

tendo podido avistar o porto da salvação, a


todos cede o roteiro e indica o caminho
certo, mas já não tem mais força para seguir
tambem?
Tenho cem vezes meditado o tragico
dessa attitude de Ch. Maurras em face da
Egreja e ainda não vi outro que se lhe
cumpare. Batalhando em prol da felicidade
humana, Maurras não vacilla em dizer a ver
dade: a Egreja Catholica, eis a salvação, eis
o templo em que encontrareis ordem e paz.
Ide a esse templo, meus irmãos.
Mas a si proprio que diz Maurras? O que
acaso se lhe ouve, do seu dialogo intimo, vale
pouco, bem pouco mais que um sorriso do
mais triste amargor. Alma de altissima formo
sura, até a sua desillusão é harmoniosa, con-
funde-se com a belleza e a alegria. Mas, neste
mundo, quantos os enganos!
Póde a belleza estar no contorno da lagri
ma mais triste.
Tendo em horror o espirito de negação,
Ch. Maurras é a obra mais dolorosa que esse
espirito, eminentemente destruidor, pôde fazer,
se se póde dizer assim. A miseravel atmos-
phera que respirou a sua mocidade intelle-
ctual, ainda era aquella que envenenara
Musset ... E quando as almas se sentirão
libertas de taes miserias? «L'orgueil humain,
ce Dieu de i'egoiste, fermait ma bouche à
Affirmações 271

Ia prière, tandis que mon âme effrayée se


réfugiait dans l'éspoir du néant». Não poderia
ser esta a confissão de Ch. Maurras? A ver
dade, porém, é que muito cedo morreram em
sua alma aquellas energias que fazem o ch listão
integral, o catholico integral e, adorando a
belleza, só a forma de toda a belleza pôde
apprehender e possuir, pois a essencia lhe ha
de escapar eternamente, dado que até a esta
só a verdadeira idéa de Deus póde guiar.
Elle sabe, como nota Bruno Durand, que
« a Egreja Romana não é somente um guarda
vigilante da ordem. Ella é mais e melhor do
que uma harmoniosa e tradicional hierarchia.
Ella é a reguladora natural de todos os im
pulsos do coração, a sábia directora das aspi
rações da alma para as regiões superiores ».
É elle proprio quem diz admirar o Catholi-
cismo « em razão do rithmo moral, da medida
interior de que a virtude immediata é esta
belecer espontaneamente uma larga unidade
de pensamento e de coração »>.
Entretanto, a sua propria personalidade
foge a esta unidade, na angustiosa admiração,
no grande e doloroso amor, digamos assim,
á Egreja, amor e admiração puramente intel-
lectuaes, porque o seu proprio coração não
tem mais força e nem sequer acompanha a
intelligencia victoriosa, senhora da verdade.
Este, o seu amarissimo caso. Só um cego não
272 Affirmações

verá entre os esplendores da sua victoria sobre


a anarchia moderna, a sombra do seu pro
prio individualismo, muda, dominada, sim,
mas ainda viva.
Haverá commercio possivel entre a luz
e as trevas? — perguntava S. João da Cruz
— não se deve sair primeiro destas para
entrar aquella? E o grande mystico respondia
a uma tal pergunta com as proprias palavras
da Escriptura: Lux in tenebris lucet, et tene-
brce eam non comprehenderunt.
Entretanto, força é confessar aqui que a
treva comprehendeu a luz e, sem deixar de
ser treva, caminha dentro da luz e diz a
quantos o ouvem: banhae-vos desta luz.
Ch. Maurras, diz Pedro Desooqs, « realiza,
elle, descrente e pagão, este paradoxo des
concertante de falar da Egreja Catholica em
termos em que brilha, a par da mais viva
admiração, uma intelligencia ás vezes exce
pcional dos seus inesgotaveis recursos. Esta
Egreja elle está prompto a defender com
todas as suas forças e a comprehende melhor,
em certos pontos, qus alguns dos seus filhos ».
Atheismo, ou melhor, positivismo — o que
quer dizer scepticismo — e adoração da ordem
em1 todos os dominios da vida — eis os dados
contradictorios de philosophia de Ch. Maurras,
o que Pedro Descoqs chama os seus postu-
ados philosophicos.
Affirmações 273

Como, porém, esta necessidade da ordem


não a restringe Ch. Maurras em qualquer
dominio da vida, sendo a ordem sua paixão
dominante, veremos, como o seu paganismo
se fez, pouco a pouco, o mais ardente defensor
da Egreja Catholica, nestes tempos de anar-
chia, desordem e desrespeito ao bom senso.
«Charles Maurras, diz P. Descoqs, é o
inimigo nato do excesso, da independencia
anarchica. Para elle o individualismo protes
tante e revolucionario e o liberalismo, sob
todas as suas formas, são os dois grandes
erros, ou melhor, o erro unico de que soffre
e morre a sociedade moderna ». « A grande
condição do successo, de dois seculos a esta
parte, parece ter sido deslocar a todo instante
os pólos do pensamento; não se conseguiu
ser ouvido do publico senão creando inteira
mente uma constituição politica, um systema
do universo, erigindo em lei os caprichos da
imaginação.
«A originalidade de Ch. Maurras é fazer
com que tudo volte aos quadros já velhos que
elle crê serem a expressão de verdades eternas ».
Elle quer que se examinem com sympathia e
respeito todas as novidades, mas recommenda
todo rigor no acolhimento, e na escolha, vista
clara, discussão destemerosa ante tudo quanto
se apresente '« á entrada do baluarte da intel-
ligencia ».
18
274 Affirmações

« A liberdade tem o seu throno ao fundo


das regiões inferiores, proximo ao cháos e
ás forças elementares; o que trabalha e cresce,
o que se eleva e se ordena, o que toma as
formaj da perfeição, é tambem o que con
sentiu no entrave e na medida, o que se
sujeitou ao sublime freio da lei. Um poema
não é liberdade, é servidão: sua belleza se
avalia precisamente, pela relação das suas
energias naturaes com a regra superior que
as orienta. Uma civilização esplendida, uma
nacionalidade eminente se definirão pelos
mesmos traços: se as suas energias mergu
lham no tumulto liberal o resultado será o
nada ». «A reflexão, diz Maurras, a regra, o
calculo vivem na natureza uma vida tão
necessaria como o prazer e o amor».
Este o seu ponto de partida, mas ponto
de partida positivo, verificavel, inexcedivel-
mente claro.
Elle é como a pedra do mais sagrado
altar da philosophia e Ch. Maurras não em-
prehendeu sua cruzada antes de immolar sobre
esta pedra o individualismo triumphante de
nossos dias. Elle não se arreceia de combater
o mais idiota e por isto mesmo o mais divi
nizado dos dogmas revolucionarios: a liber
dade de consciencia. « Oaba-se em altas vozes
— diz elle — esta força execravel de dissolução
e de ruina como se ella fosse um bem

»
AffirmaçÕes 275

positivo, um precioso ganho, uma suprema


conquista das edades; como se tivesse alguma
cousa de belloi e de louvavel em si na divisão
das idéas e no desaccordo das doutrinas ». As
nossas cabeças modernas amam taes agentes
de desordem e de confusão. Pois bem: que se
saiba que nenhum soffrimento, nenhuma sub
missão, nenhuma humilhação será muito para
que se reconquiste f> equilibrio, e, por tanto,
a felicidade. Porque a natureza é limitada,
tudo não lhe é permittido; uma ordem se lhe
impõe imperiosamente, que exige uma Iucta
violenta contra instinctos ainda mais violentos.
Que me diz V. a isto, meu querido Ca
millo? E que dirão os nossos luminares dos
templos maçonicos? Com certeza que são
palavras de algum perigoso Torquemada de
lenda voltaireana . . . Mas fique certo V. que
é assim que resume P. Descoqs o ponto de
vista de Ch. Maurras, em face da vida em
geral, e logo se faz comprehensivel que para
o grande publicista francez seja o protestan
tismo o responsavel authentico por todos os
erros contemporaneos, na ordem , especulativa
e na ordem practica. « O reinado da soberania
individual e do livre exame, em que succum-
bimos, lhe é inteiramente imputavel, e, quando
á razão, regra universal que julga conforme
principios fixos e leis eternas, elle substitue
a razão particular, que decide sob a influencia
276 Affirmações

da imaginação, da sensibilidade, do capricho,


das paixões, do temperamento de cada indi
viduo, elle assume a responsabilidade de todos
os nossos erros ».
Para Ch. Maurras, a Revolução franceza
não tem sua origem em Descartes, mas, sim,
em Luthero, e do mesmo modo que o indi
vidualismo politico de 89, o romantismo na
arte e na literatura.
Por isto, declára guerra sem treguas ao
protestantismo e, na ordem literaria, a todas
as formas individualistas do pensamento, em
que predominam sempre as faculdades infe
riores, imaginação e sensibilidade, sendo isto
a triste herança que a escola romantica rece
beu da reforma.

E agora? Que ficará valendo o chefe de


UAction française para os nossos grandes
poetinhas, isto é, para os mais conceituados
pedagogos das nossas encantadoras patricias?
Não me interessam propriamente as idéas
de Ch. Maurras, em relação á arte ou ás
letras, em geral, mas condemnando de pas
sagem, com P. Descoqs, o seu exaggerado ante-
intuicionisrao — tão exaggerado que o faz des
denhar da obra de Chateaubriand, e isto do
modo mais cruel — noto somente que para
Maurras, a força do « estylo » se confunde com
a força do « pensamento » e uma vale o que
Affirmações 277

a outra vale, e os principios mesmo do « gosto »


se identificam com a ordem do pensamento.
Esta doutrina, já defendida no Brazil,
como V sabe, pelo nosso Xavier Marques,
no seu notavel livro sobre A Arte de escrever,
parece não merecer aqui muito credito. É sa
bido que a opinião da maioria dos nossos
homens de letras é que vale mais a pena
« fazer um pouco de estylo », depois que a
obra, do ponto de vista interno, já está feita.
O estylo é para a nossa gente cousa exterior.
Penso que foi João Ribeiro quem já disse
que em certos escritores a operação de «fazer
estylo» é assim como a de pôr um pouco
de canella sobre um prato de arroz doce...
Tambem, as mais das vezes, pouco mais vale
o doce em si que a canella pura . . . Quanto
a Maurras . . .
Como Goethe, elle dirá, talvez, que é
classico tudo quanto é são, romantico o que
é doente, pois, separando-se de Taine, a quem
tanto admira, combate a idéa de que foi o
espirito classico o espirito que preparou a
revolução. « O espirito classico é a essencia
de todas as doutrinas da mais alta humanidade,
é um espirito de autoridade e de aristocracia ».
« Se todo desperdicio das forças humanas,
diz Descoqs, toda perturbação do equilibrio,
são odiosos a Maurras, adivinha-se facilmente
que sentimentos devem ser os seus ante esta
278 Affirmações

forma de dilettantismo que tende a confundir,


numa mesma admiração sympathica, o verda
deiro e o falso, o nobre e o abjecto, o sublime
e o horrivel, comtanto que sejam elegantes e
sinceros. A elegancia e a sinceridade podem
ser criminosas, se não são a expressão de
uma «verdadeira» força, de uma «verdadeira»
vida ».
Para Ch. Maurras, as theorias estheticas
de um Mallarmé, por exemplo, poder-se-iam
applicar sem reserva a qualquer especie de
animaes a que faltassem as qualidades supe
riores da intelligencia . . .
Anda por ahi muita gente que lucrará
com o aviso ...
Volto hoje a expor-lhe a que vexames
se expõe aquelle a quem chamei o mais
bem intencionado dos atheus, nesta hora que
passa.'., que passa, sem que a Egreja, nem
de leve, dê indicios de que vae desapparecer . . .
Vexames multiplos, como V. já tem visto,
como V. verá . . . Pois se até a gloria maior
do atheismo, isto é, a crença na bondade natu
ral do homem, sobre que repousa o dogma
revolucionario da liberdade como principio de
vida e de organização social, pois se até isto
lhe causa horror, avalie que ondas de fel e
de fogo não corta o seu valente coração, na
lucta intima comsigo mesmo!
A philosophia de Ch. Maurras quasi que
Affirmações 279

se limita ao exercido de um methodo sobre


o que se pode chamar a realidade social, me
thodo este que elle não abandona mesmo nos
dominios da critica literaria. Ch. Maurras
não indaga o porque da realidade historica
ou social nem mesmo porque o seu methodo
proprio é o mais util em relação a esta rea
lidade. Verifica os factos com a ajuda deste
methodo e eis tudo. O que se não póde negar
é que o seu methodo é rigorosamente logico,
verdadeiramente claro, de incontestavel utili
dade e se poderia chamar talvez de methodo
moral, porque é a moral o que o anima.
Achille Segard num livro sobre Ch. Maurras
assim se exprime: «Pode-se designar tal me
thodo com o nome de « Empirismo organiza
dor». Em termos menos abstractos é um
methodo baseado na experiencia e que consiste
em indagar da tendencia das idéas, dos senti
mentos ou particularidades do estylo de cada
uma das obras que se estuda e quaes os
resultados se outros livros continuassem e
ampliassem no mesmo sentido a tradição que
de taes idéas e sentimentos se originou».
Assim dos ideaes artisticos, assim dos
ideaes propriamente politicos, e se falo deste
modo é porque é facil comprehender que, para
Ch. Maurras, todas as manifestações da vida
humana têm um valor essencialmente politico.
Elle as julga de accordo com a experiencia:
280 Affirmações

De onde vieram? Os seus ascendentes que


acção exerceram entre os homens? Quaes os
seus frutos na hora presente? Que hypothese
se pode formular sobre a sua acção no
futuro?
Maurras jamais abandonou este traçado,
que é todo o bom senso em materia de inves
tigação social e se encontrará em Aristoteles,
nos mais eminentes pensadores catholicos, e
em Augusto Comte, em Le Play, afinal de
contas, em quantos não se limitaram a fan
tasiar sobre a vida social.
Alguem que o combateu dizia que, acceitas
as suas premissas, não ha meio de se não
acceitar tambem a sua argumentação. « Prin
cipe da deducção, rei do syllogismo », são os
seus titulos reconhecidos, mas tambem o de
verdadeiro sabio nos dominios da observação
social.
O realismo e a logica, diz Noel Francês
(«Revue Bleue», março de 1919) formam o
caracter essencial das suas reflexões politicas.
O seu ponto de partida, nota Descoqs, é
muito simples: «a patria, esta sociedade á qual
todo individuo pertence pelo nascimento e pela
educação, deve ser considerada como a con
dição essencial do seu desenvolvimento. A
patria é, para o homem zeloso de sua digni
dade e da sua felicidade, a primeira das
realidades a defender ».
Affirmações 281

Para Maurras, positivista, para quem « não


ha maior razão de crer na realidade da moral
em si do que na do mundo exterior em si »,
sendo bastante verificar a necessidade de viver,
de agir, de escolher, a patria é um « dado »
indiscutivel, do qual recusa examinar o valor
metaphysico.
Dentro desta sociedade necessaria é que
Ch. Maurras estuda o valor do individuo, e
a sua critica do direito social, em face do
direito individual, foi baseada, diz elle mesmo,
nas proprias desgraças publicas de que tem
sido scenario o seu paiz.
« A ordem social, segundo Maurras, tem
tres principaes adversarios: o liberalismo, a
democracia e o suffragio universal. Todos
decorrem de uma unica fonte: o individualismo
protestante e revolucionario, o homem abstra
cto de Rousseau, realizado em cada um de
nós e que se oppõe sozinho á communidade,
tendo se feito o individuo o centro unico a
que tudo se deve subordinar». Elle rejeita a
democracia sob qualquer forma com que se
apresente. « A democracia é, em primeiro
logar, o governo do numero. Principio absurdo
na sua origem: como o numero poderá ser
o governo? — incompetente no seu exercicio:
não basta contar os votos dos incompetentes
para resolver questões de interesse geral, que
exigem longos annos de estudo, de practica,
282 Affirmações

de meditação — e pernicioso nos seus effeitos:


estiola o individuo, desenvolve o Estado além
da esphera que lhe é propria e, na esphera
em que o Estado devera ser como um rei,
lhe rouba o movimento, a energia, a existencia
mesma ».
Além disto, a verificação deste absurdo:
o Estado democratico tem accentuado cada vez
mais as differenças de classes, tanto é absur
da a pretensão de organizar a democracia.
Esta é o governo do numero e o governo
do numero suppõe o egual valor politico dos
individuos; ora organização implica desegual-
dade. «ORGANIZAR A DEMOCRACIA É
INSTITUIR ARISTOCRACIAS; DEMOCRA
TIZAR UMA ORGANIZAÇÃO É AHI IN
TRODUZIR A DESORDEM».
Esta é tambem a opinião de Lamarzelle,
como fôra, aliás, a de Veuillot, para quem,
como provou Dimier, a democracia é o povo,
os interesses de todos, e organizar taes inte
resses é justamente dar-lhes um orgão regu
lador, e este é o rei. Em verdade, seguindo
ahi as licções da egreja, tal como S. Thomaz,
Maurras não confunde democracia e republica.
Uma republica aristocratica póde ser uma
optima forma de governo, e não duvido que
applaudisse os planos politicos de Bolivar, por
exemplo, na America do Sul. Ch. Maurras só
é raonarchista intransigente se se trata da
Affirmações 283

França, mas nem por isto deixa de argumentar


em favor da monarchia como forma prefe
rivel de governo para todos os povos. Para
elle a unidade social é a familia, é ella o
principal agente creador e conservador da
alma dos povos. Ora, como Augusto Comte,
elle poude vêr « quanto ha de anarchico e
de subversivo em concentrar «a sociabilidade
sobre existencias simultaneas », isto é, crêr que
nos não formamos sociedade senão com os
nossos contemporaneos, desconhecer « o im
perio necessario das gerações anteriores » e,
emfim, fazer prevalecer a solidariedade no
espaço sobre a continuidade que é a solida
riedade no tempo». Elle procura demonstrar
que jamais houve sociedade prospera que não
repousasse numa base politica hereditaria e
é como que tirar ao governo a sua maior
garantia de normalidade e segurança afastal-o
desta suprema lei da hereditariedade. É assim
que elle raciocina : « Desde que a familia é a
cellula primitiva da sociedade e pelo sangue
se communicam tradição, posição, funcção
social, porque a funcção directora e mode
radora dos interesses de ordem geral, não se
transmittirá pelo sangue como as outras?»
A sociedade é para Ch. Maurras um orga
nismo vivo, ou melhor, como um organismo
vivo, porque, como poude explicar P. Las
serre, e nota Descoqs, tomando de empres
284 A.ITIRMAÇÕES

timo á biologia esta concepção organica da


sociedade, Maurras não pretende «identificar»
a sociedade a um corpo animal qualquer.
Estes os limites da sua concepção das
sociedades na sua maior amplitude. Vamos ver
agora como elle julga deveria ser o papel
do Estado nas suas relações com os individuos.

Para Ch. Maurras a politica de que « a


liberdade foi o principio fundamental, em
relação ao qual tudo se deve organizar em
facto e se julgar em direito », « é a morte de
todas as liberdades, o facil triumpho do des
potismo, a oppressão do forte pelo fraco »,
o que, evidentemente, ainda é mais injusto
que a oppressão do fraco pelo forte.
O liberalismo, em todas as suas manifes
tações, é assim totalmente condemnado pelo
grande publicista francez.
Entretanto, nem todos os meios de que
se serve o liberalismo são essencialmente seus
e Ch. Maurras, condemnando, por exemplo,
o suffragio universal, qondemnando a sobe
rania popular, pensa que nem sempre é
conaemnavel o systema de consulta ao povo,
quanto aos seus interesses locaes ou profis-
sionaes.
Ch. Maurras distingue soberania de repre-
?entação. A soberania ou poder do principe
Affirmações 285

« soffre limites mas não divisões ». Todos os


interesses geraes pedem e « não podem ser
representados no Estado senão pelo soberano
e seus conselhos.
« A idéa de uma representação constituindo
um poder para contrabalançar o do monarcha
é o palladium da liberdade para aquelles que
nada sabem de liberdades publicas.
« Ella é o fundamento de todas as consti
tuições da Europa, mas o falso principio
gerador destas constituições está esquecido
por Joda parte onde ha vida, tanto que se
poderá ter a medida desta vida, ajuizando
pelo esquecimento em que se depára a insti
tuição constitucional, da Prussia á Bulgaria,
e pode-se rir dos que procuram nas ficções
parlamentares garantias contra a anarchia ou
o despotismo dos partidos ». Deixar nas mãos
da multidão incompetente e avida os interes
ses essenciaes do paiz, ou melhor, abandonal-os
ás rivalidades de partidos unicamente preoccu-
pados de si mesmos, é expôr os individuos
ás peiores injustiças, e levar a nação ao
abysmo.
Ao lado dos interesses geraes ha os inte
resses particulares; estes devem ser represen
tados no Estado, e o maior prestimo desta
representação deve ser, antes do mais, mostrar
ao soberano quaes « as relações mais sensiveis
entre o interesse geral e os interesses particu
286 Affirmações

lares » ; ella « esclarece o poder sobre as con


sequencias de sua acção ou de sua inercia;
informa o governo dos desejos e das queixas
dos governados; dá ao soberano a medida
do assentimento do paiz ou da sua resis
tencia».
Assim, resume Descoqs as opiniões de
Maurras sobre soberania e representação. Não
se encontra na obra de Maurras a definição
das formas que deveriam revestir a represen
tação popular, tal como elle entende, mas uma
vez assegurado um poder central estavel e
firme, estas formas seriam facilmente deter
minadas « e nada teriam, já se vê, de com-
mum com as nossas actuaes assembléas deli-
berantes ».
Comprehende-se tambem que « numa socie
dade organica, baseada na familia e na pro
fissão a organização do trabalho se resolveria
de si mesma pelo jogo natural dos orgãos
sociaes ». A intervenção do Estado ficaria
reduzida, numa tal sociedade, á execução de
quanto ficasse empiricamente provado que, em
bem da familia e dos individuos, a familia
e os individuos não pudessem, por si mes
mos, executar.
Ch. Maurras é um descentralizador e um
federalista militante. Para elle « cada provincia,
cada região deve zelar os seus proprios inte
resses, o governo central não retem senão a
Affirmações 287

gestão dos interesses superiores: «a diploma


cia, as forcas de terra e de mar e, em gráo
menos elevado, a organização geral das
finanças, se lhe prenderiam por mecanismos
rigorosos e directos: tudo o mais, cléro e
universidades, communas, districtos e provin
cias, assistencia publica e corpos judiciarios,
refariam a sua autonomia: o Estado não teria
em relação a elles senão um direito de vigi
lancia, alta policia, arbitragem e judicatura
supremas. Agrupamentos locaes ou profissio-
naes, associações confissionaes, cidades, re
giões, serão organizações espontaneas, admi
nistrando - se por si mesmas, coordenadas
somente pelo poder central».
Elle proprio, Maurras, assim resume o
seu pensamento: «Ce que j'attends de l'Etat,
c'est « la garantie souveraine de mon essence,
Pindépendence de ma patrie, le libre usage
de mon idiome natal, le maintien des cou-
tumes et des traditions nationales. EN COMPA-
RAISON DE CES DROITS PRIMORDIAUX,
ORGANIQUES, VITAUX, AINÉS DE TOUS
LES AUTRES (QUE L'ETAT SEUL PEUT
ME GARANTIR), LES PAUVRES PETITES
LIBERTES INDIVIDUELLES SONT COMME
L'HYQIÉNE DE L'ONGLE ET DU CHEVEU
PAR RAPPORT Á LA VI E NORMALE DE
UESTOMAC, DU COEUR ET DE L'IN-
TESTIN ».
288 Affirmações

Eis bem claramente affirmada, diz Des-


coqs, a superioridade do direito social sobre
o direito individual, mas eis tambem a affir-
inação não menos clara de que o Estado
não tem direitos senão em vista do bem dos
individuos.
A PALAVRA TRADIÇÃO que apparece
tantas vezes na linguagem de Ch. Maurras
lhe merece uma attenção especial.
Ella precisa, diz elle, ter um sentido
« definido ». Não constitue tradição o crime,
o abuso, o que deprime e avilta. Em França,
por exemplo, o espirito revolucionario não é,
a seu ver, a tradição. No Brazil não o é a
norma de delapidação e oppressão dos gover
nos coloniaes.
« Le vent soufle à la democratie égali-
taire. Donc il faut naviguer avec le vent»,
dirão em França os que fazem da Revolução
a tradição da politica franceza.
Maurras, diz Descoqs, é dos que respon
dem1 simplesmente: «Non, si le vent nous
entraine aux écueils ».
De tudo quanto resumi se faz evidente
que tem razão o seu eminente critico quando
diz que «os principios geraes da politica de
Ch. Maurras, na medida em que contrariam
os dogmas de 1789, e as multidões revolu
cionarias, não somente não ferem o direito
natural e a doutrina da Egreja, mas se ligam
Affirmações 289

perfeitamente á grande corrente da eterna


philosophia que deve ser amada de todo
christão ».
Mas . . . pobre filho de José de Maistre! . . .
Que imprudente ligação consentiste de tua
alma — com quem? — fora dos Sacramentos
desta mesma Egreja a quem veneras?! Não
sabes tu que só tem força real e proveitosa
aquillo a que anima a força invisivel de Jesus
Christo? Que te vale tanto saber, que te vale
tanta coragem, se não tens a humildade que,
unica, abre de par em par as portas do céo,
as portas da perfeita sabedoria, e, unica, póde
collaborar, sobre a terra, com os obreiros da
Cruz?
Não vês que nunca é perfeito o amor
que se limita?...
Maurras atheu, Maurras relativista, e, por
conseguinte, sceptico, desde que se trate de
politica franceza, não admitte outra attitude
deante da Egreja Catholica senão a de admi
ração e amor. « Em politica, em sociologia —
diz elle — toda separação do catholicismo, em
vez de exprimir progresso, denota recuo».
Mais ainda: «OS CATHOLICOS SÃO MUITO
MODESTOS QUANDO PEDEM EGUAL-
DADE POLITICA; ELLES TEEM DIREITO
A UM TRATAMENTO EXCEPCIONAL,
SENDO COMO SÃO, EM FRANÇA, OS
MAIS NUMEROSOS, OS MAIS ANTIGOS,
19
290 Affirmações

OS MAIS INTERESSADOS NO DESENVOL


VIMENTO INTERIOR E EXTERIOR DO
PAIZ. A EGREJA CATHOLICA TEM, DE
DIREITO HISTÓRICO E DE DIREITO
NACIONAL, UM PRIVILEGIO MANIFESTO
SOBRE AS DEMAIS CONFISSÕES. NE
NHUM SIGNAL DE RESPEITO E DE
HONRA LHE DEVE SER TIRADO».
Náo lhe parece, meu caro Camillo, que
estas palavras, podem ser applicadas ao
Brazil? E, entretanto, a verdade é que nós,
catholicos brazileiros, como que nos sentimos
honrados com a situação de favor a que
nos reduziram quatro ou cinco chefetes de
um sectarismo estreito, mesquinho e julgado
ridiculo em todo o mundo.
Pois bem: Maurras chega mesmo á con
clusão de que as sociedades de typo superior
excluem do seu seio todas as formas de diver
gencia religiosa.
E nós vamos consentindo que o yankee
tente desfazer a unidade da consciencia nacio
nal, no que ella tem de mais profundo, só
porque achamos bonito que meia duzia de
cometas do protestantismo, vencido na propria
America do Norte, possam gabar-nos a bôa
indole . . . e o pouco respeito que nos mere
cem as nossas tradições . . .
E é bom ligar o que lhe venho de dizer
ao que, em relação á França, póde ser con
Affirmações 291

siderado uma tristeza. De facto, ella não precisa


neste momento de tradicionalistas, pura e sim
plesmente, mas, sim, pura e simplesmente de
catholicos, de integral catholicismo.
Ora é preciso não esquecer nunca que o
amor que dedica Maurras á Egreja Catho-
lica é um reflexo do seu amor á França, e só
como francez elle está assim intransigentemente
ao lado da Egreja.
Deste ponto de vista, não resta duvida,
a licção que elle dá aos sociologos e pensa
dores brazileiros é das mais profundas, e só
os que quizerem, á viva força, esquecer ou
falsificar a nossa historia não colherão van
tagem do ardor com que o admiravel pole
mista francez defende a religião nacional do
seu paiz.
Entretanto, á Egreja não bastam estas
garantias de ordem puramente nacional e, por
conseguinte, passageiras. O que deseja o ver
dadeiro catholioo é uma politica mundial de
que resaltem caracteres taes que não deixem
duvida quanto aos direitos da Egreja em qual
quer ponto da terra. A Egreja, que reconhece
a soberania do Estado, só poderá reconhecer-
lhe legitimidade quando este não fugir syste-
maticamente á christianização dos seus orgãos,
tornando sempre passiveis de vexações o
crente, o homem de fé, no seu desenvolvi
mento normal dentro da Egreja.
i
292 Affirmações j

Ha assim uma politica catholica, como


diz Descoqs, e a primeira obrigação da socie
dade civil, em1 que predomina esta politica,
será «fazer respeitar a santa e inviolavel
observancia da religião cujos deveres unem
o homem a Deus. (Leão XI11 — Immortale
Dei).
Entretanto, Ch. Maurras, para quem a
vida social obedece a leis, por conseguinte,
a um principio organizador essencialmente
hierarchizador, usa de uma porção de subti
lezas para provar que nenhuma opposição
pode nascer entre a ordem religiosa e a ordem
civil, o que só seria verdade numa sociedade
como a da França, já de si mesma tradicional
mente catholica e organizada, como é aspiração
do seu grande filho.
De facto, a consequencia dos principios
de Ch. Maurras seria a submissão de tudo
á ordem civil.
A religião seria, dentro desta ordem, factor
sempre util e ás vezes essencial, mas poderia
deixar de o ser.
É por isto que contrariamente ao pensar
da Egreja elle não vacilla era usar de ph rases
como esta: «II faut renverser la republique
PAR TOUS LES MOYENS».
Ora, diz Descoqs, organizar a politica sem
ter em conta a moral e a religião e não reco
nhecer nestas senão um valor de facto, é pôr-se
Affirmações 293

e«i opposição a toda a doutrina da Egreja.


« La croyance informe tout I'être et pareille-
ment le fait d'incredulité affecte l'homme tout
entier» (Fidas).
Maurras esquece tambem que o catholico
vive uma ordem sobrenatural e, como provou
Fidas, Maurras faz a mais perigosa confusão
entre a ordem natural e a sobrenatural.
A Egreja bem sabe que «a razão tão
somente, comtanto que seja sã, pode discer
nir o bem do mal e verificar na natureza
do homem uma desordem opposta á nativa
bondade sonhada por Jean Jacques. Assim
póde ella organizar a legislação, mas que seja
humilde e não diga jámais ao dogma: Nada
tenho a aproveitar do que me ensinas ».
O mal de que soffre a doutrina de Ch.
Maurras é o de abandonar ás vezes, a natu
reza dos factos para verificar somente a lei
que explica as ligações destes mesmos factos,
o que pode ser alguma vez motivo de sub
missão a successões passageiras de factos
máus em sua essencia.
A verdade é que se nota em Maurras
aquella obstinada vontade de não crer que
em si proprio descobria Johannes Joergensen
nos seus primeiros annos de peregrinação e
incerteza.
Quem sabe o que o espectaculo da guerra
terá produzido no espirito de Ch. Maurras?
294 Affirmações

Já não é pouco que elle tenha chegado


assim, sozinho, muito além da frivola accu-
sação que se fez a Brunetière: «l'Eglise catho-
lique est un gouvernement. Vous aimez ce
gouvernement fort». Maurras diz claramente:
« Aquelle que disse que é preciso uma religião
para o povo, disse uma grande tolice. É pre
ciso uma religião, é preciso uma educação,
é preciso um conjuncto de freios poderosos
para os guias do povo, seus conselheiros, seus
chefes, por causa mesmo do papel de direc
ção e de refreiamento que elles devem ter
deante do povo: se os furores da besta humana
devem ser temidos de todos, convém temel-os
ainda mais se a besta gosa de poderes mais
fortes e pode revolver um campo de acção
mais extenso ».
A Egreja é para Maurras, mesmo do
seu ponto de vista todo inquinado de rela
tivismo, a guarda da civilização e das nacio
nalidades.
Póde temer, meu caro Camillo, póde temer
as tempestades do mundo, as tempestades da
hora presente quem assim encontra defensores
até no campo inimigo?
Não podia ser vã a promessa de Jesus
Christo.
O grande, o admiravel Macaulay, um pro
testante, aliás, disse um dia esta eloquente
verdade: «A Egreja Catholica viu o começo
Affirmações 295

de todos os governos, de todas as instituições


que existem presentemente, e não ousamos
dizer que ella não está destinada a ver o
fim de todos elles. Ella era grande e res
peitada antes que os saxões puzessem1 o pé
sobre o sólo da Grã-Bretanha, antes que os
francos tivessem atravessado o Rheno, quando
a eloquencia grega ainda florescia em Antio-
chia, quando os idolos eram adorados no tem
plo de Mecca. Ella poderá, pois, ser ainda
grande e respeitada quando algum viajor da
Nova Zelandia vier, no meio de uma vasta
solidão, encostar-se a um arco desmoronado
da ponte de Londres e desenhar as ruinas de
S. Paulo ».
Taine mesmo não falou de modo muito
diverso.
Eis o que á alma de nós, catholicos,
empresta esta magestade de segurança, esta
serena fortaleza com que, em meio deste
monstruoso entrechocar de idéas, em meio á
infernal cidade moderna, estamos de pé, unicos,
realmente de pé, na defesa da civilização. Nós
somos os que sabem, aquelles que, unica
mente, sabem que as portas do Inferno não
prevalecerão.

Publicadas n'0 Jornal — Rio, Julho-


Agosto, 1920.
ANTI-HELLENICAS

Sua pergunta, meu excellente amigo, tem


toda razão de ser e, de modo algum, me
enfada responder-lhe. Tambem tenho mais de
uma vez me irritado ante a incrivel ingenui
dade ou o desabusado pedantismo com que
quasi todo literato, mal sahido dos cueiros, faz,
entre nós, a todo momento e por qualquer
motivo, retumbantes apologias da Grecia,
amontoando, ao sabor da imaginação e da
ignorancia, as batidissimas chapas: a dyoni-
siaca alegria dos hellenos, o sentido apollineo
dos gregos, a graça indefinivel das linhas do
Parthenon, as claras ilhas do mar Egeu . . .
Mas v. nobremente confessa que lhe
causou impressão a carta em que seu velho
amigo compara as virtudes e o heroismo de
Jesus Christo ás virtudes e ao heroismo de
Socrates, concluindo por emprestar á vida
298 Affirmações

deste grande philosopho muito mais belleza


moral que a de que se illumina o que tão
soberbamente chamou a « legenda do filho de
Maria ».
V. está mesmo muito impressionado.
A pergunta que me faz, se já viu na historia
grandeza e formosura egual á da civilização
grega — é uma prova disto. E devo dizer-lhe
com1 franqueza: não me causa nenhum espanto
o seu estado de alma ante as considerações
feitas por seu velho e ingenuo amigo. Ambos,
v. e elle, jámais aprofundaram esta questão
e, sobretudo, jámais fizeram do Evangelho a
leitura demorada e meditada que — com a
limpidez de alma que possuem — facilmente
os levaria á serena e inabalavel convicção de
que todos os philosophos nascidos e por nas
cer, não só os da Grecia, não valem uma
só pagina daquelle livro de que se póde dizer,
com simplicidade, que é a Verdade, a Ver
dade viva e o maior golpe que já soffreu o
mal sobre a terra.
Do Evangelho, desejando fazer-lhe o
elogio, muito bem pensou Leroy que bastava,
com o mais rigoroso objectivismo, fazer a
exposição do que elle é, « O Evangelho — diz
— não se assemelha a qualquer outro livro.
O seu ensino só propõe mysterios, as suas
narrações só contêm milagres. A simplicidade
e sobriedade do estylo formam, com a elevação
Affirmações 299

da doutrina e a importancia dos factos," um


contraste unico na historia das literaturas.
«Narra a vida de um homem que foi car
pinteiro até aos 30 annos; que abriu escola
de religião durante tres annos entre aldeães
e pescadores, e formou um grupo de disci
pulos, gente ignorante e timida, a quem con
fiou a missão de submetter á sua obediencia
o mundo inteiro, os corpos e as almas, as
intelligencias e as vontades; que foi accusado
de trahidor a Deus e á patria pelos repre
sentantes da nação constituidos em synhedrio,
e por esse motivo condemnado á morte na
cruz. Este homem dizia-se Deus ».
«O Evangelho é um pequeno volume, de
umas cem paginas; o seu apparecimento no
mundo fez mais ruido e produziu mais revo
luções do que a fundação e a quéda dos
mais vastos imperios. (Jesus Christo, sua vida
e seu tempo», 1.° v. Prefacio).
Póde-se ser mais simples, pode-se ser
tambem mais verdadeiro? Poder-se-á fazer
uma só objecção bem fundada contra qual
quer das palavras que citei? Mas, medite v.
sobre o valor dos factos ahi narrados e,
queira ou não, ha de forçalo sua nobre con
sciencia a reconhecer o caracter singularissimo
daquelle livro.
Não pense, porém, v. que nós, sómen,te,
os filhos e os soldados da Egreja Catholica,
300 Affirmações

e os nossos desgarrados irmãos, somos os


unicos a proclamar a feição milagrosa do
Evangelho e, por conseguinte, a physionomia
moral verdadeiramente divina de Jesus Christo,
superior a toda argumentação que se baseie
em comparações ou quaesquer outros meios
naturaes, de logica puramente humana. Rous
seau mesmo, um puro deista, justamente con-
demnado pelos seus excessos contra a auto
ridade e a tradição, é assim que nos fala pela
bocca de um dos typos em que mais vivamente
imprimiu o cunho da sua personalidade: «Con-
fesso-vos que a santidade do Evangelho é um
argumento que me fala ao coração, e contra
o qual me pesaria mesmo encontrar qualquer
objecção. Vêde os livros dos philosophos com
toda a sua pompa: como são pequenos ao
pé daquelle! Oppor-me-eis Socrates, sua scien-
cia, seu espirito. Que distancia vae delle ao
filho de Maria! Se a vida e a morte de So
crates são de um sabio, a vida e a morte de
Jesus são de um deus ».
Não sei, meu amigo, era que sentido em
pregou o seu philosopho a palavra legenda.
Acceito-a tal como é, na sua natural signifi
cação. A vida de um santo, porém, pode ter
caracter historico tão claro e limpido como a
de um outro heroe qualquer. Mas seu amigo
insiste de tal modo sobre a veracidade, a natu
ralidade de tudo quanto se attribue a Socrates,
Affirmações 301

a ponto de me parecer que insinua ter a vida


de Jesus aspecto de lenda. Escapa uma tal
discussão ao que me propuz, que foi mostrar-
lhe quanto é erronea a noção geral, a noção
hoje vulgar, da civilização hellenica e, acceitas
como verdadeiramente historicas as persona
lidades de Jesus e de Socrates, demonstrar
a immensa inferioridade deste deante daquelle,
procurando mesmo calar quanto me fôr pos
sivel, nesta discussão, a minha fé religiosa.
Todavia pode v. lembrar ao seu amigo
que é atravéz de uma tradição e da pertinaz
apologia de seus discipulos, que a vida e a
doutrina de Socrates nos são conhecidas e
seria facil mostrar que nem sempre se apre
senta egual a personalidade do mestre aos
seus diversos discipulos, havendo, por exem
plo, desemelhanças entre o Socrates de Platão
e o Socrates de Xenophonte.
Quanto ao caracter puramente humano da
doutrina de Socrates, de que faz padrão de
gloria o seu nobre amigo, delle trataremos em
outra carta, que brevemente lhe escreverei.

II

Não me cabe discutir o milagre, isto é,


o que « não é conforme o curso ordinario da
natureza», tal como me não cabe, já o disse,
302 Affirmações

discutir a veracidade das Escripturas. O que


nos interessa agora é a doutrina de Jesus em
relação á de Socrates e, de ambas, o seu
caracter exterior, quero dizer, a maneira com-
mum de se objectivarem.
Mas, ao discutir tal ponto, ver-se-á que o
milagre não era extranho ao pensamento de
Socrates, que acreditava na directa revelação
da Divindade, e, para quem, a propria vida,
tal como a vivia, era a fiel execução de uma
ordem dos deuses.
Isto, desde já, implica que chamemos a
attenção dos que, levianamente, querem ver
eivada de irracionalidade a doutrinação de
Christo, porque ella use quasi sempre de
autoridade e não da persuasão por meios
logicos. Ora, o que constitue a maior belleza
do Evangelho é, justamente, a sua feição
dogmatica, o seu caracter imperativo. Jesus,
propriamente, não discute; condemna, abençoa,
ordena, interroga algumas vezes, mas nunca
lhe esquece lembrar o seu caracter divino,
mesmo áquelles que mais duramente se lhe
oppõem.
Tomae para exemplo a controversia com
respeito ao sabbado e vereis a differença que
vae da decisão com que Jesus impõe o que '
quer, á longa e paciente acção de Socrates •
ante a má fé do sophista ou a ignorancia
da mocidade. Nem por isto, porém, se tem
Affirmações 303

o direito de dizer que era extranho a Socra


tes o principio de autoridade. Com manifesta
inferioridade de convicção, sim, mas a ver
dade é que elle não ousou nunca apresentar
a sua doutrina como emanação da sua pro
pria intelligencia, tão somente. Pelo contrario:
«elle affirmou sempre que a sua missão era
divina», diz um dos mais autorizados criticos
da sua acção e da sua philosophia, Clodius
Piat («Socrates», 71), o que se pode veri
ficar em Platão, Aristophanes e Xenophonte.
E para uma tal missão, tão grande quanto
perigosa, em que se inspirava elle? Em
sonhos, na voz dos oraculos e até no teste
munho de terceiros, como resalta das suas
proprias palavras :
« Conjuro-vos, athenienses, a que não vos
irriteis se vos parece que falo muito lison
jeiramente de mim mesmo: por testemunho de
minha sabedoria dar-vos-ei o deus mesmo de
Delphos, que vos dirá se ella existe e qual
a sua especie ». E passa a narrar o episodio
de Cherophonte, que foi quem lhe trouxe a
palavra sagrada da Pythia. (V. Platão, Apol.,
conforme a trad. dirigida por E. Saisset, á
qual sempre me reporto).
A vocação de Socrates, pois, se se exercia
pelo poder da sua dialectica, era de fundo
eminentemente religioso e até reaccionario, em
face da philosophia. É sabido que, justamente, ao
304 Affirmações

tempo em que Socrates se predispunha a


exercer sua lata fuacção de pedagogia social,
já a antiga physica, que era quasi toda a
philosophia dos gregos, havia fallido radical
mente, porque, como diz Piat, as suas theorias,
de si mesmas só produziam negações e, com
paradas umas ás outras, só engendravam con-
tradicções (obr. cit., 25). Póde-se dizer que
Socrates deu aos gregos o verdadeiro sentido
da philosophia, mostrando-lhes que a finali
dade de todo o saber humano é de ordem
moral, é de ordem essencialmente religiosa.
Elle fazia da sua obediencia á Divindade a
base da sua resistencia a todas as fraquezas
e vicios da educação de seu tempo. A Her-
migenes, conta Xenophonte (V. Apol. trad. fr.
de Leprévost), que lhe aconselhava que pre
parasse o seu discurso de defesa ante o
misero tribunal que o condemnou, Socrates
respondeu: «Mas, por Jupiter! já por duas
vezes tenho querido preparar minha defesa e
o meu Demonio se oppõe ».
Estas cousas são sabidas de todos quantos
têm estudado a personalidade de Socrates.
Como, pois, falar da sua doutrina qual se
fôra uma doutrina baseada exclusivamente na
argumentação e na logica?
Elle possuia um dado irreductivel, uma
certeza posta acima de toda discussão: o da
existencia de um Bem Supremo, padrão eterno
Affirmações 305

da perfectibilidade humana — e só assim, dada


a concepção religiosa do Estado em que vivia,
se pode chamar de injusta a condemnação que
soffreu.
Tendo tido, não só a idéa, mas até o
sentimento de um Deus superior a todos os
deuses — e não só de um principio primeiro
de todos os phenomenos exteriores, mas de
um Deus origem do direito e do dever, So
crates foi, por isto mesmo, a mais alta figura
moral da civilização hellenica.
Já taxei de absurda qualquer comparação
com Jesus Christo, mas, como até o absurdo
é, muitas vezes, excellente meio de demon
stração, ainda me servirei delle para lhe
demonstrar, meu nobre amigo, quanto, de
facto, é admiravel a licção do philosopho
grego, mas quão longe e abaixo ella ainda
está da licção de Jesus.
Sufficientemente provado, ou melhor, lemL
brado, que o caracter exterior da doutrinação
de Socrates se vale da autoridade e se baseia
na certeza de que ha uma intelligencia supe
rior á intelligencia humana, procurarei mos-
trar-lhe os pontos culminantes da sua philo-
sophia e tambem a inteira fragilidade de que
se resentia a sua acção doutrinaria, no seio
da sociedade. Ficará para depois o examinar
se poderia sahir da -Grecia um systema reli
gioso capaz de, no diluvio de corrupção em
20
306 Affirmações

que se afogavam as velhas civilizações, fazer


sobrenadar a esperança e renovar-se a fé nos
destinos humanos.

III

Penso, meu distincto amigo, ter deixado


bem esclarecido que a doutrinação de Socrates
não teve, nas suas caracteristicas, uma feição
de singularidade, qual fôra a de não se valer
da autoridade. Agora me resta mostrar-lhe que
a sua fraqueza estava mesmo em relação dire
cta com a ausencia de religião positiva no
systema de que emanava, pois o seu evidente
deismo, apezar do muito que cedia ás super
stições da mythologia hellenica, foi, eviden
temente tambem, um inimigo daquella mytho
logia. « Elle substituia, diz Piat, o senso
individual á autoridade e basta este facto
para provar que destruia um dos principios
fundamentaes da antiga religião. Mas ainda
mais grave era o seu monotheismo, a sua
crença em um Deus unico, eterno, invisivel,
omnisciente e todo poderoso» (246).
Se invocava os deuses publicamente e
affirmava sempre obedecer ao seu Demonio,
nem por isto usava de má fé. Basta seguir
o seu raciocinio em qualquer dos vivos dia
logos de Platão, para se adquirir a certeza
Affirmações 307

de que elle, Socrates, só se sentia firme nas


suas negações, ante a má fé dos sophistas
ou as grosseiras superstições populares. Sente-
se 1que a base positiva da sua doutrina ainda
não se estratificara, nem mesmo ao calor das
discussões, e não apresentou contornos niti
dos, traços definitivos de fé positiva, nem
mesmo áquella hora terrivel da sua vida,
batendo já ás portas da morte. Ainda inter
roga: «É tempo de separarmo-nos: eu para
morrer, vós para viverdes ... De quem o me
lhor quinhão? Eis o que ninguem sabe, exce
pto Deus ».
Jesus, pelo contrario, falava do que sabia.
É assim que do throno da sua cruz, responde
ao ladrão arrependido: «Em ve.rdade, te digo,
hoje estarás commigo no Paraiso ».
O facto é que Socrates, lutando em pról
daquella grande idéa, quinhentos annos antes
de Jesus Christo, quando o mundo todo como
que a sentia despertando no fundo da con
sciencia, tendo elle, como tinha, enorme capa
cidade de sacrificio, poderia ter sido uma
especie de arauto do Christianismo, se não,
fôra, apesar de toda a sua grandeza, moral,
um grego, em todo o rigor da palavra, isto,
é, o filho de um povo a quem faltava, abso
lutamente, tal como disse, Jo:éde Maistre, a apti
dão para qualquer grande associação politica
ou moral. « Les Grecs n'eurent jamais l'hon
308 Affirmações

neur d'être « un peuple ». L'histoire ne nous


montre chez eux que des bourgades souve-
raines qui s'égorgent et que rien ne put jamais
amalgamer». («Du Pape», IV-IX). Subten-
tende-se que eu, voluntariamente, esqueço
qualquer argumento de ordem religiosa.
E ainda assim, e como preito á verdade,
lembro que duas são as faces da doutrina
socratica que claramente annunciam a idéa
salvadora de que Jesus se fez interprete
deante da consciência de todos os homens,
tendo-a encontrado, entretanto, como fé posi
tiva de um dado povo: 1." — Socrates prégou
a um povo, eminentemente materialista e
superficial, a superioridade da vida moral, da
riqueza da alma, em face da vida material,
dos prazeres e dos gozos do mundo.
Elle proprio diz aos seus juizes: «Em-
quanto viver jámais deixarei de philosophar,
dando-vos conselhos, proseguindo nos meus
habitos, dizendo a cada um de vós, quando
vos encontrar: Homem de bem, sendo, como
és, atheniense, cidadão da maior cidade do
mundo pela sabedoria e pelo valor, como não
tens vergonha de pensar somente em amon
toar riquezas, adquirir credito e honrarias,
despresando os thesouros da verdade e da
sabedoria, não te esforçando por fazer tua
alma tão bôa quanto ella póde ser?» E depois:
«Minha occupação é trabalhar por vos per
Affirmações 309

suadir, jovens e velhos, de que é preciso não vos


inquietardes tanto do corpo, das riquezas ,e
de todas as outras cousas quanto da alma;
porque não cesso de dizer-vos que a virtude
não vem das riquezas mas que, pelo contra
rio, as riquezas vêm da virtude, e que é della
que nascem todos os outros bens publicos e
particulares». (PI. Apol.). É isto doutrina per
feitamente christã; 2.a — Socrates indicou aos
homens Deus como ideal supremo e é por
isto que se póde chamal-o de « fundador da
psychologia racional ». -< Elle foi o primeiro que
claramente viu, no homem, a alma, na alma
a intelligencia, na intelligencia o eterno ideal
de que está de todo impregnada». (Piai, 235).
Até ahi o que ha de verdadeiramente
edificante na doutrina de Socrates. Um passo
mais e é tudo indecisão, incerteza, sempre a
dolorosa attitude de uma alma dominada, as
mai.5 das vezes, mesmo nas suas melhores
intenções, pelo orgulho intellectual.
Dizer-se sabio por saber que nada sabe,
é negar a toda a humanidade o seu mais
glorioso titulo, é sobrepor-se á razão e ao
bom senso, á historia e á experiencia, em
nome de uma negação arbitraria e injusta.
Socrates só de si mesmo fia e espera, e
d'ahi resulta a sua indomavel incerteza ante
tudo quanto está acima das forças pura
310 Affirmações

mente individuais, desajudadas da tradicção e


da crença.
Se se quer apprehender a idéa que elle
tinha de Deus, já nos embaraça toda especie
de duvida e até pode-se affirmar que pouco
adiantou ao que já fôra mais ou menos con
fessado por poetas e pensadores da. propria
Orecia. A verdade é que o Socrates religioso
de Platão está, como nota Gomperz (« Les
penseurs de la Grèce», II, 89, trad. fr.) em
çontradicção com o de que dá testemunho
Xenophonte, e o proprio autorizadissimo cri
tico, que acabo de citar, não se decide clara
mente entre apresentar-nos a concepção de
Socrates como um pantheismo poetico ou
como um deismo teleologico (Obr. cit., II, 91).
Que, entretanto, de mais alto em qualquer
doutrina do que a idéa de Deus? Como não
ser incerta, negativa mesmo, a sua moral, se
a propria base desta não tinha firmeza? Afinal
de contas a grandeza moral de Socrates tem
mais relevo de sentimento que propriamente
de doutrina, refulge mais na sua coragem
civica e nesse indefinivel dos grandes cara
cteres que propriamente naquella « ordem inte
rior da alma » de que Marco Aurelio e com
elle todos os estoicos, faziam depois tanta
questão. Nelle é mais admiravel o cidadão
que o philosopho.
Eis, meu nobre amigo, do modo mais
Affirmações 311

objectivo possivel, apontada a origem de


todas as fragilidades de que se resentia a
philosophia do mais sabio dos gregos. E, de
facto, percorra v. mesmo qualquer dos dia
logos de Platão, acompanhe Socrates nas azas
da sua ironia ou da sua eloquencia, e ha de
verificar, por fim, o caracter negativo da sua
obra, se bem seja facil reconhecer e de jus
tiça confessar, que elle almejava construir,
edificar em meio das ruinas que ia, não direi
fazendo, mas mostrando ao paganismo, philo-
sophico ou não, com que dialogava.
Acompanheo v. na sua investida contra
as certezas moraes daquelle pobre Euthyphron,
por exemplo, e verá que tanto quanto este
sahirá v. sabendo do que é santidade, o que
quer dizer que v. ficará ignorando-a absolu
tamente no que ella é, se bem que sabendo
alguma coisa do que ella não é. E tenho a
certeza de que v. não me virá dizer depois,
como um dos seus traductores, que, da
demonstração da falsidade de certos principios,
resulta o caracter dogmatico da philosophia
socratica, pois seria isto uma revolução, das
mais perigosas e insensatas, na propria ordem
philosophica. A verdade é que fôra mister,
para construir com exito, sabiamente, imolar,
sobre uma base dogmatica de philosophia, os
falsos principios que tentassem investil-a.
Brevemente, se m'o permittir a saude,
312 Affirmaçqes

analysarei alguns pontos mais restrictos desta


mesma doutrina que v., tão ingenuamente,
quiz comparar com a de Jesus Christo.

IV

Disse-lhe, meu caro amigo, que a moral


socratica não podia deixar de ser vaga e
incerta, dada a pouca firmeza da sua base,
isto é, dada a obscura idéa de Deus em que
assentava, porque, digam o que quizerem dizer
os fundadores de moraes livrescas: nós, os
homens, não conhecemos uma só moral
« vivida, experimentada » que não repouse
numa religião positiva. É preciso lembrar que
não me refiro aos casos individuaes e a
pequeninas seitas que vivem, todas ellas, por
assim dizer, da atmosphera social fornfada
pelos systemas populares, no seio dos quaes
podem socegadamente florescer e até frutifi
car algum tempo.
Todo aquelle que acompanhe Sócrates no
que se póde chamar a sua peregrinação phi-
losophica entre os homens de seu tempo, veri
ficará, como já disse, as falhas immensas da
sua dogmatica, o que significa: do que con-
stitue a essencia de uma verdadeira moral.
Para Socrates « ninguem pecca voluntaria
mente ». Estas poucas palavras são mesmo a
Affirmaçqes 313

alma da philosophia socratica, diz Gomperz


(Obr. cit., 67), e basta medital-as para com-
prehender-se como, justamente, não podia uni
versalizasse, em qualquer sociedade, uma tal
concepção da vida moral. De facto, ha ate
nos proprios termos de tal proposição uma
contradicção flagrante, pois o peccado involun
tario, em ultima essencia, não é peccado; e,
admittida essa proposição verdadeira, está
de si negada a liberdade e, sem liberdade,
a moral é um mytho ou menos que isto:
uma palavra sem sentido.
Desde que para Socrates a moral depen
dia, exclusivamente, da intelligencia — «a falta
de noções justas é a unica origem dos actos
immoraes » (Gomperz, 67) — comprehende-se
que uma tal doutrina jámais poderia entrar
victoriosamente no coração do povo, da huma
nidade, no que tem esta de mais vulgar.
Moral absolutamente intellectualista, só o
sabio poderia alcançal-a e, de facto, apesar
de ser o seu individualismo puramente theo-
rico, na intenção, nem por isto deixou de ser
practico, e são, assim, fundamentadas em razão
as conclusões de Piat: «O projecto de restau
ração moral sonhado por Socrates não se
realizou ». « Sua dialectica nada teve desta
acção profunda que transforma as almas, e
foi, practicamente, impotente» (Obr. cit., 235),
sendo de notar que « dos diversos systemas
314 Affirmações

sahidos de Socrates nem um só foi bastante


forte para impor-se: todos, e muito depressa,
se desmoronaram pela disputa, no scepticismo »
(267). Platão e Aristoteles que, durante algum
tempo, sustaram o impeto da quéda, são real
mente as maiores glorias do pensamento hel-
lenico e das maiores da humanidade. A moral,
porém, nada adiantou com elles. Poeta chamou
Montesquieu ao primeiro e Zeller tambem.
Chamberlain o diz e em sentido mais acer
tado: « Platão foi o Homero do pensamento »
— uma altissima expressão de vida individual,
na ordem do pensamento, o melhor exemplo
« do genio oonfigurador dos gregos », unico
que possuiram, isto é, o poder de emprestar
vida de belleza, e não vida moral, a toda
manifestação intellectual ». A substancia da sua
philosophia não era nova. Elle não pretende,
como fará Spinoza, tirar das profundezas da
sua consciencia a formula de um systema do
mundo logicamente deduzido; não se prende
tambem á natureza com1 a magnifica ingenui
dade de um Descartes, na chimerica esperança
de arrancar das suas entranhas o segredo do
mechanismo que explicaria o universo. Platão
pede emprestado á direita e á esquerda o
que lhe parece melhor e, assimilando intui
ções dos Eleatas, de Heraclito, dos Pythago-
ricos, de Socrates, compõe um iodo que não
é, propriamente, logico, mas, certamente artis
Affirmações 315

tiro» (Genèse du XIX siècle, trad. de R. Go-


let, I, 106).
O caso de Aristoteles é o opposto do de
Platão. Foi um systematisador; pode-se dizer
delle o mesmo que já se disse de S. Thotnaz
— foi o systematisador por excellencia. Mas
nesta, como em todas as outras caracteristicas
de seu genio, foi aquelle homem caso singu-
larissimo entre os hellenicos. Herder delle
disse que «foi talvez o espirito mais secco
que jámais animou o cerebro de um escriptor ».
Discipulo de Platão, a sua obra foi, no en
tanto, como um sopro de morte sobre a mara
vilhosa belleza da obra do mestre, seu rival
depois, e que, unico, poude dar a plastica do
genio ás linhas irrequietas, desordenadas do
pensamento grego.
Por seu bom senso a toda prova, por
seu desilludido positivismo, diz Weber, Aris
toteles é quasi um Semita ou um Romano.
(Hist. de la phil., 121).
Longe de mim ousar discutir o genio de
Platão ou de Aristoteles. Mas apontando-lhe,
de passagem, as suas caracteristicas — no pri
meiro, poesia e indisciplina, no segundo, clas
sificação e seccura — quero lembrar-lhe quão
absolutamente infundada é a affirmação geral
mente feita e geralmente acceita de que foi o
pensamento grego quem preparou a humani
dade para receber as luzes do Christianismo.
316 Affirmações

Esquecem taes affirmadores que o Christia-


nismo se impoz, antes do mais, como força
moral, regeneradora, por via de sentimento
(deixo de lado, intencionalmente, qualquer
allusão ao milagre), e foi no seio das classes
pobres e menos cultas onde, primeiramente,
se avigorou. Foi mesmo quando contra elle,
já se levantavam em toda a terra civilizada
cruzes e fogueiras, que surgiram os primeiros
apologistas, em lucta intellectual, propriamente
dita, com a philosophia pagã. Porque a veT-
dade é que, durante a prégação dos apostolos
e principalmente de Paulo, só o que se fazia
sentir era a radical opposição entre o mundo
que morria e o que vinha de nascer. Só
depois se pôde ver que nem tudo do pas
sado devia desapparecer, e que a razão natu
ral, se de posse agora de novos recursos, era
a mesma com que Deus nos primeiros dias
do homem o dotara.
Uma victoria como a do Christianismo
não póde obter-se á força de syllogismos,
mas sim á custa de sangue. Muito ao con
trario do que se diz, a verdade é que foi
o Christianismo, quando se organizou do
ponto de vista das intelligencias, quem, com
o seu infinito poder de irradiação, universa
lizou realmente o pensamento grego, isto é,
a tudo quanto este tinha capaz de falar á
consciencia das multidões, deu forma simples,
Affirmações 317

categorica, popular, liberta das subtilezas


dialecticas, dando-lhe assim maior circulo de
influencia e protegendo-o do tempo.
A propria philosophia pagã sentiu dire
ctamente a sua acção e o caso de Seneca não
tem outra explicação digna de ser acatada, tal
como o demonstrou José de Maistre (Soirées
— II -9me. Entretien, ed. Vitte et Perrussel).
É preciso, porém, ainda voltar a Socra
tes e aos ultimos resultados da sua phik>-
sophia.
V. ha de ver, meu caro Camillo, quanto
é absurdo querer sobrepor ou mesmo equi
parar o papel do hellenismo ao do Christia-
nismo, na historia da humanidade, mesmo
quando, do primeiro, só nos servimos do que
elle teve de mais alto e mais puro, para
termo de comparação.

«Não é verdade — diz Piat — que a razão,


uma vez esclarecida, não se deixe jámais ven
cer. Ha duas vidas em cada um de nós, como
observava S. Paulo: a do espirito e a da
carne. Ora, a experiencia ahi esta para mos-
trar-nos que a segunda póde sempre sobre
pujar a primeira. E não é o que Socrates teve
de, com tristeza, verificar, por si mesmo, em
318 Affirmações

alguns dos seus discipulos?» (ob. cit. 191).


Elle proprio, apesar de todo o seu saber, não
se confessava combatido pelos tnáus instin-
ctos, sempre em lucta comsigo mesmo? A Vi
ctoria da sua vontade em nada diminue o
valor da asserção que, radicalmente, se oppõe
á sua: é a virtude quem esclarece a intelli-
gencia e fal-a util aos fins do homem. Não
se revia Socrates orgulhoso nos discursos de
Alcebiades? E quem foi Alcebiades? Não era
Athenas a intelligencia do mundo? Onde menos
virtude do que em Athenas? Foram celebres
em toda a antiguidade as sentenças de Ana-
charsis e, entre ellas, ha esta: «Nas assem-
bléas dos gregos são os loucos que decidem ».
Em philosophia moral pode dizer-se que
é um axioma esta sentença de José de Maistre:
« Quanto mais conhece a intelligencia, mais
culpada pode ser». (Obr. cit. 11 — 190).
Eis o que o orgulho intellectual atheniense
não podia conceber ou, pelo menos, confessar,
eis o que Socrates não pôde conceber, nem
o conceberam seus grandes discipulos, os filhos
dilectos da sua philosophia.
Ultima manifestação brilhante, talvez a
mais brilhante e a mais nobre, do genio grego
foi, de certo o estoicismo. É preciso não es
quecer, porém, que já á firmeza do caracter
romano deve ella a belleza moral, a profunda
significação humana que se lhe podè admi
Affirmações 319

rar. Entretanto, quão longe está ainda de


poder comparar-se com o pensamento chris-
tão, em face do mundo! De Zenon a Marco
Aurelio, todo aquelle saber e aquella practica
philosophica não offereceram ao mundo mais
do que o espectaculo de um grande orgulho,
capaz de heroismo, mas de heroismo em que
o amor quasi não tinha logar. A sua ma
xima predilecta era esta: soffro-te, sim, mas
conheçp-te e despreso-te. Se Seneca, se Epi-
cteto, se Marco Aurelio demonstraram conhe
cer as forças de que o homem é dotado para
a lucta, em meio da vida, pode-se dizer de
todos o que disse Pascal do segundo, entre
os que citei: desconheceram sempre a fra
queza da natureza humana, viram na scena
do mundo a marcha de sombrios fantasmas
de uma grande tragedia, jámais as sombras
luminosas de um mysterioso drama de amor.
Se se elevaram, ás vezes, a idéas verdadeira
mente christãs, faltou-lhes o sentimento, e é
quasi certo não se poder negar, como já disse,
que se fazia sentir nelles a pressão destas
mesmas idéas christãs, que conquistavam o
mundo. « Admittindo-se mesmo que é apo-
crypha a correspondencia epistolar entre Se
neca e o Apostolo das nações, deve-se reco
nhecer que, quando o primeiro desceu ao tu
mulo, o segundo já havia percorrido as pro
vincias do Oriente e do Occidente, annun
320 Affirmações

ciando em toda a parte, mesmo em Roma,


a boa nova, a grande revelação do Verbo de
Deus sobre a terra, o Christianismo emfim,
cuja doutrina religiosa, cujas maximas e exem
plos, cujo espirito de caridade tinham pouco
a pouco penetrado todas as camadas sociaes,
infiltrando-se insensivelmente no mundo da sci-
encia, subjugando pela força da sua verdade
e da sua belleza divinas até aquelles espi
ritos que contra elle se revoltavam e lhe
faziam a guerra mais cruel. Só assim é pos
sivel conceber os vislumbres de moral christã
que, confundidos com as frias e orgulhosas
maximas do Estoicismo, apparecem frequen
temente na obra de Seneca». (Hist. de la
Phil. — Gonzalez, trad. franc. I — 436).
Isto é o que se evidencia a todo o his
toriador, armado de boa fé.
Tambem a influencia do estoicismo foi
diminuta. Após ter citado aquella autoridade
ecclesiastica, devo citar, sobre este ponto, uma
palavra insuspeitíssima : « Sua influencia — diz
Weber — não se pode comparar á do Chris
tianismo; ella ficou circumseripta â esphera
letrada e quasi não penetrou as massas. O
estoicismo só tem de popular a sua meta-
physica realista; alimentado de sciencia e de
meditação, evita, elle tambem, «a multidão
profana» e se confunde, na practica, com o
epicurismo» (Hist. de. la Phil. 135-6).
Affirmações 321

E a estes pequeninos circulos sempre se


ateve toda a acção moral da philosophia hel-
lenica. Não é, pois, absurdo, meu caro amigo,
imaginar que a idéa-força (perdoe o termo
antipathico), que domina a nossa civilização —
a da fraternidade humana — é obra da philo
sophia hellenica?
Sempre Socrates será tido como o mais
alto representante daquella philosophia, de
toda a civilização greco-romana — e a elle de-
vemo-nos reportar todas as vezes que fôr
mistér mostrar as graves lacunas da moral
pagã. Pois bem: a verdade verdadeira é que
Socrates mesmo nunca falou db amor do
homem ao homem no sentido em que o
Christianismo o pregou. « On ne rémarque
nulle part qu'il ait parlé de l'amour de l'homme
pour l'homme. Son attique lui a suffit: «O'
bien-amée cité de Jupiter», devait s'écrier
Marc-Auréle. Bien-aimée cité de Cécrops! di-
sait encore le sage d'Alopéce». (Piat. 191).
Mais ainda, se fiassemos da palavra de
Xenophonte poderiamos affirmar que a propria
concepção de justiça era ainda em Socrates
eivada de barbaria: o bem pelo bem, o mal
pelo mal, o bem aos amigos, o mal aos
inimigos. (Piat. 179, 80). Prefiro, porém, crêr
que Platão penetrou mais fundamente o es
pirito da philosophia socratica e que o Criton
e a 2.a parte da discussão de Socrates em
21
322 Affirmações

casa de Céphalo (A Republica), traduzem a


verdade em relação a este ponto da doutrina
do immortal atheniense.
Note v., meu amigo, que jamais procurei
dar noção pessimista do grande reformador
hellenico, nunca lancei mão de diversos au
tores que o deprimem, buscando nas diversas
relações da sua agitada vida, provas de infe
rioridade moral. Não. Se tal pensasse a res
peito delle, não o escolheria para paradigma
da civilização hellenica. Mas julgue v. de tudo
quanto lhe tenho dito e faça a si mesmo,
estas perguntas: que modificação levou So
crates ao coração daquella hetaira de que nos
fala Xenophonte? Que se fez Magdalena ao
deparar-se-lhe Jesus Christo?
A relação é a mesma do que se passou
com a humanidade.
Reflicta v. e não deixará de dizer como
Chamberlain que, mesmo de um ponto de
vista absolutamente positivo, a apparição de
Jesus Christo significa, na historia universal,
apparição de uma nova especie humana.

VI

Dispunha-me a escrever-lhe pela ultima


vez sobre o assumpto que venho discutindo,
quando recebi a carta em que V., meu bon
Affirmações - 323

doso amigo, me transmitte as observações do


seu philosopho a respeito do que qualificou
de « evidente má vontade » minha em relação
ao grande reformador atheniense e ao pen
samento hellenico em geral. Do que V. me
diz, fico certo de que, aos olhos de seu amigo,
pareceu evidente aquella minha má vontade
em dois pontos principaes: 1.° não fiz resaltar
a belleza moral de Socrates em toda a sua
plenitude, pois não falei, como devera, da
sua morte; 2.° foi um pouco levianamente
que fiz dos estoicos da ultima phase « umas
creações do Christianismo nascente ».
Consinta que responda immediatamente.
Em primeiro logar, se não falei da morte
de Socrates com os pormenores desejados pelo
seu philosopho, della fiz entretanto como que
a prova real de que a sua doutrinação foi
mesmo elevada e pura, valendo muito mais
como affirmação de uma grande consciencia
soffredora do que como tentativa de syste-
matização philosophica. Má vontade teria eu
demonstrado se me tivesse posto do lado dos
que acham que foi justa a condemnação que
soffreu o « revolucionario » e só vêem nas
suas palavras perante o tribunal que o con-
demnou, uma ultima jactancia do excelso so-
phista. Pelo contrario, desde o principio desta
discussão, preferi ficar francamente com Platão,
onde outros preferem o que chamam a in
324 Affirmações

genua verdade que resalta da narração de


Xenophonte. De facto, peça V. ao seu amigo
que leia a «Apologia» deste ultimo e verá
que assume as proporções da mais absurda
vaidade tudo o que Socrates diz de si
mesmo. Ora, é bom notar que ante a propria
«Apologia» que nos vem do maior dos seus
discipulos já se não conteve P. Janet, que
não dissesse: «II est difficile de nier que
dans l'« Apologie » la fierté de Socrate ne dé-
génère quelque peu en jactance, et que son
ironie n'ait quelque chose de blessant». (Dict.
des sciences philosophiques de A. Franck, art.
Socrate).
Se eu tivesse dado caracter criminoso á
acção de Socrates, o que muitos têm feito,
então, sim, poderia dizer o seu amigo que
havia má vontade de minha parte. Ou melhor:
se eu tivesse como Oliveira Martins, por exem
plo (Hellenismo e Civ. Christã), dito que a
acção philosophica de Socrates foi prejudicial
á humanidade, concordo que teria sido in
justo. Mas ao invez disto ajuizo até que ella
foi, ainda que limitada ao escol da humani
dade, um grande bem, um «milagre» em meio
a.o essencial materialismo dos gregos.
Afinal, meu caro Camillo, tudo quanto
ousei affirmar sobre Socrates foi o seguinte:
1.° o caracter não singular da sua doutrina,
pois admitte a autoridade; 2.° pouca firmeza
Affirmações 325

deste sentimento da autoridade e dahi todos


os erros proprios a um individualismo, que
não o queria ser na pratica, mas que, mesmo
ahi, não poude deixar de ser o que era em
theoria; 3.° que nada nos leva a crer que
Socrates tivesse a clara noção de humanidade
que nos trouxe o Christianismo.
Em favor desta minha ultima asserção
quer V. palavra mais insuspeita que a de
Renan? Pois este vae até o ponto de negar
ao grego — já não direi o sentimento, o amor
da humanidade — mas até uma verdadeira com-
prehensão do progresso humano. (V. «Ori
gines du Christ. 1—48 — 49).
Quanto ao segundo ponto em que seu
amigo pensa ser evidente a minha má von
tade, principio por negar, em absoluto, ter
em qualquer das minhas cartas dado a en
tender que julgo os estóicos da ultima phase
« umas creações db Christianismo ». Adoptando
francamente, como adoptei, a opinião de José de
Maistre e Gonzalez em relação a Séneca e os
que se lhe seguiram naquelle systema de
kíéas e sentimentos, por isto mesmo, nem de
longe poderia eu, sem flagrante contradição,
adoptar um tal ponto de vista. Se o seu amigo
quizer um resumo realmente genial de tudo
quanto o bom senso, mais do que a vaidade
da erudição, póde fazer valer em prol da
these enrista a respeito das relações entre o
326 Affirmações

Christianismo nascente e a philosophia pagã,


procure ler o que o mesmo José de Maistre es
creveu em relação a Plutarcho, em resposta
aos argumentos de Wittenbach (Oeuvres Com:
plétes V. Prefacio á traducção do livro de
Plutarcho: «Sobre os reiardos da justiça di
vina:)). Ê a profunda argumentação em favor
desta simples e não ousada affirmativa, tão
pouco usada e tão simples que só a sua
enunciação é como que um raio de luz para
todo espirito .que, de boa fé, queira penetrar
taes mysterios da historia do pensamento hu
mano: «é «impossivel» demonstrar «impos
sivel » a proposição affirmativa de que Plutarcho
teve «alguma conhecimento» das verdades do
Christianismo». O que se diz em relação a
Plutarcho pode-se dizer, sem medo de com-
metter uma leviandade, em relação a todos,
os pensadores dos seculos I a III da era
christã, desde que taes pensadores apresentem
pontos de viva semelhança com os primeiros
doutrinadores christãos.
Engana-se o seu apaixonado hellenista
quando me suppõe solitario se nego á civi
lização grega verdadeira elevação moral.
Poucos homens tiveram, modernamente, como
Augusto Comte, uma comprehensão tão larga
e tão profunda dos primeiros periodos histo
ricos da civilização occidental. Pois é elle
quem diz, sem medo de ser contradictado : «Ao
Affirmações 327

ver os gregos preoccupados com subtilezas


philosophicas e puerilidades estheticas, com-
prehende-se bem quanto é vão, ou melhor,
funesto, o exercicio do espirito, quando um
nobre fim não o domina ». Não poderia pro
gredir moralmente a humanidade sob o per-^
nicioso influxo do que o mesmo Comte assim
definiu: «um polytheismo intellectual, incom
pativel com toda disciplina, a ausencia habi
tual de toda destinação social », de que só
havia resultado « uma agitação mental tão es
teril quanto vaga, numa população que só
passivamente participava da elaboração ope
rada no seu seio por espiritos de escol » (Syst.
de P. Positive — III — 353).
Se não se quer ver na victoria do Chris-
tianismo senão um facto historico, explicavel
como outro qualquer, a verdade é que é no
caracter da civilização romana, eminentemente
practico e dominado pelo espirito de unidade,
que se deve procurar a razão do porque o
mundo poude receber da « bôa nova » um novo
ideal que impunha, antes do mais, uma pra-
ctica, uma austera realidade.

VII

Não ha negar que alguns povos, como os


egypcios, consideraram os gregos verdadeiras
328 Affirmações

crianças em materia de saber, sem lhes poder


negar jamais, entretanto, a primazia na arte
de mentir, e, de todas as artes foi aquella a
que mais floresceu entre os hellenos, grandes,
aliás, em tudo quanto se relaciona com a
Arte.
Não foi debalde o conselho de seus phi-
losophos aos seus historiadores. Mentiram estes
sempre e fizeram da historia da sua patria
um maravilhoso poema, exaggerando assim o
direito que tem o historiador de ser um ele
mento de enthusiasmo para os seus compa
triotas. Mas desde os romanos até a critica
moderna, um a um têm sido reduzidos todos
os feitos gloriosos daquella gente, em todos
os dominios em que o caracter teria que ser,
propriamente, o creador e não a intelligencia.
Cita de Maistre a Sallustio que disse de
Athenas o que se veiu a dizer depois de toda
a Grécia: «que a sua gloria é grande mas
muito inferior ao que nos diz a fama», e
tambem aquella fina observação de outro
grande historiador antigo, falando das Ther»
mopylas: « logar celebre mais pela morte do
que pela resistencia dos lacedemonios ».
Assim, se os espiritos criticos, nossos con
temporaneos, recusam ao testemunho dtos gre
gos, sobre a sua propria historia, grande fé,
tal como Chamberlain, nada mais fazem que
repetir a attitude dos antigos historiadores, e
Affirmações 329

até o que na propria vida practica se verifi


cava entre os herdeiros da civilização helle-
nica, quando um Cicero, por exemplo, recu
sava as testemunhas de um processo « porque
são gregos e como taes pertencem á mais le
viana das nações» (Cit. por de Maistre).
Ê indiscutivel que toda a gloria da civi
lização hellenica é puramente intellectual. En
tretanto, força é confessar que em muitos
muitos pontos é discutibilissima a sua superio
ridade, mesmo neste terreno, em relação a
outros povos.
Em primeiro logar a tão proclamada ori
ginalidade dos gregos parece restringir-se a
um mais vivo sentimento de belleza e nada
mais.
Não é preciso mais do que lembrar, como
Schuré e tantos outros, que elles não foram
originaes nas suas mais altas concepções re
ligiosas. Isto é hoje em dia verdade abso
lutamente reconhecido, em critica historica.
Quanto ao que fizeram no dominio da
philosophia, eis o que diz J. de Maistre:
« Leur véritable mérite dans ce genre est
d'avoir été, s'il est permis de s'exprimer ainsi,
les « courtiers » de la science entre l'Asie et
l'Europe. Je ne dis pas que ce mérite ne
soit grand; mais il n'a rien de commun avec
le génie de l'invention, qui manqua totalement
aux grecs » (« Du Pape» — pag. 485). E ainda
330 Affirmações

lembraj.de Maistre o que fizera notar Clemente


de Alexandria, isto é, que a philosophia só
havia chegado á Grecia após ter corrido toda
a terra, e tambem o que aos proprios gregos,
impacientemente, já lhes dizia Taciano no seu
formoso discurso: :«Deixae, pois, de nos dar
imitações por invenções ». Emfim, diz ainda
J. de Maistre, grande autoridade neste como em
todos os assumptos que criticou, « se alguma
cousa parece pertencer propriamente á Grecia
é a musica; entretanto, tudo, neste genero,
lhe vinha do Oriente». E não teme o grande
philosopho nem mesmo apontar-lhes a fra
queza em diversas outras faces do seu genio
artistico, pelo menos, a sem razão com que
geralmente são os gregos apontados como
povo que desafia comparações no que se re
laciona com a Arte.
Assim é que a magestade da architectura
egypcia não tem' que se deixar escurecer ante
a graça, o encanto do que fizeram os hel-
lenos neste sentido.
É levado por este criterio que Chamber
lain discute tambem a asserção de que « les
grecs aient pensé d'avance pour l'humanité»,
contradiz a opinião geral de que só a arte
hellenica conhceeu a verdadeira luz do génio.
Penso como elle, sim, que só a Grecia teve
uma verdadeira cultura artistica, mas o que
admira é que, ainda assim, possamos dizer,
Affirmações 331

sem medo de errar, que Shakespeare foi maior


e mais rico do que Sophocles . . .

Porque eu deste modo o apoio, não se vá


pensar, no em tanto, que applaudo, como elle,
o ridiculo, o grosseiro e jactancioso pensar de
Bacon, em relação á philosophia grega. Já J.
de Maistre demonstrou cabalmente a pequenez
philosophica de quem ousou chamar de pueril
aquillo que simplesmente não pudera com-
prehender. O que não supporto tambem é a
puerilidade dos que, sem o menor esforço
critico, divinizam tudo quanto lhes parece
grego, ' porque muitos ha que hellenizam até
cousas que seriam absolutamente barbaras aos
olhos de um verdadeiro filho de Athenas.
E quero fazer ponto, meu caro Camillo,
nesta nossa longa conversa. Para maior se
gurança das suas convicções e menos teme
ridade de seu amigo, viu v. que não foram
poucas as autoridades que citei em favor do
meu juizo em relação á civilização hellenica.
Creia v. que áquellas autoridades poderia ainda
sommar muitas outras e não menores, um
Oibbons, um Goethe, por exemplo, ambos in
suspeitos de amor á Egreja, como se sabe.
Na simplicidade de sua alma póde v. ficar
tranquillo. Não creia que seja possível de-
monstrar-se realmente, com factos e rigoroso
exame delles, que já houve no mundo poder
332 Affjrmações

civilizador mais nobre, mais formoso e mais


verdadeiro que o Christianismo.
Quanto aos destruidores do grande templo
de Jesus Christo, é deixal-os na sua vã e
criminosa empreitada. O nosso grande Edu
ardo Prado poude um dia figurar o assombro
do maior de todos elles, pelo genio, pela
audacia e pelo cynismo, resurgindo um se
culo após ter descido ao tumulo, entre as
pompas da mais falsa das glorias . . . Morrera
convicto de que a Egreja estava agonisante.
Seculos antes muitos outros haviam levado
essa convicção para o tumulo ... E que viu
elle, que veriam os outros, se resurgissem?
A Egreja sempre viva, sempre gloriosa,
sempre em lucta com as mesmas perseguições,
ouvindo sempre as mesmas prophecias, cada
vez mais ridículas e mais desacreditadas.
SOBRE INTELLIGENCIA E INSTINCTO

Pergunta-me v. se concordo com as defi


nições de Intelligencia e Razão que acaba de
ler no notavel volume de « Ensaios », ultima
mente publicado pelo sr. Antonio Sergio, de
quem se póde dizer que é, neste momento, o
chefe da reacção intellectualista, ultra-raciona-
lista, nos dominios da pedagogia e da politica
portuguezas ... E talvez por isto vive hoje
entre nós e se declara quasi incompativel com
a vida gostosamente revolucionaria dos que
por lá derrubaram o velho throno porque não
era nem intelligente, nem racional, na secular
orientação politica e pedagogica . . .
Quem sabe, meu bom amigo, se o sr. An
tonio Sergio não é, elle proprio, um bom
exemplo do melhor e mais alto que póde
fazer a intelligencia desligada da tradição?
Olhe: poucos escriptores têm tido o Brazil
334 Affirmações

tão pouco amantes das questões de lingua


gem quanto eu, e certo nisto se reflecte uma
insufficiencia da minha cultura, que jámais
escondi e que, sinceramente, me esforço por
fazer desapparecer . . . Mas sem resultado
notavel, tanto é certo que papagaio velho
não aprende a falar.
Sou assim muito desapaixonado em ques
tões de technica philosophica e scientifica, mas
nem por isso deixo de comprehender o mal
immenso que resulta para a cultura geral dos
povos modernos do absoluto abandono das
tradições da linguagem, maximé em certos
dominios, em que as palavras já adquiriram
nobreza historica e universalmente reconhecida
de quantos, com real saber, as trabalham.
Ora, basta ler o livro que v. me indicou,
para ficar-se convicto de que o autor, o
sr. Antonio Sergio, não pecca nestas cousas
por ignorancia. Não nos ficará, pois, o direito
de desconfiar da sua feição «positiva»?
Creio, meu caro Camillo, que, no caso
do sr. Sergio, o que se vê é um negador
que receia as consequencias da negação, e
tudo quanto não póde esconder desse dolo
roso estado de espirito é a desordem de que
está impregnada a sua linguagem, linguagem1
de bom revolucionario, que tudo quer redu
zir a uma formula intellectual, animada do
mais profundo individualismo.
Affirmações 335

Assim, meu amigo, não extranhe v. que


um pensador dotado de tão grande poder de
differenciação, se atire á aventura de con
fundir a intelligencia e a razão com o instin-
cto. (Pag. 120). E deixo de lado tudo o mais
nas subdivisões que estabelece, tanto theori-
cas como practicas, nestes dominios da intel
ligencia.
O que é do saber commum é que á
intelligencia muitos nomes têm sido applica-
dos mas nenhum que a confunda com o
instincto.
Vem dahi talvez, a sua admiração . . . Real
mente o sr. Sergio não ligou muita impor
tancia, em tal caso, a algumas regras a que
todo o pedagogo, principalmente, deve cingir-
se, por dever de disciplina, e assim nem a
sua definição tem os caracteres de uma bôa
definição, sobriedade e clareza, nem a clas
sificação (que o trecho indirectamente revela)
firma o que é essencial a uma classificação,
pois é claro que alli não se estabelece a
ausencia da confusão entre os objectos da
analyse.
Eis como fala o sr. Sergio:
« A intelligencia é o pendor, — o instincto,
digamos assim, — que nos leva a estabelecer
uma unidade, etc. » ; «a Razão é o mesmo
pendor a estabelecer uma harmonia, etc. ».
No que ahi se lê ficam desrespeitadas as
336 Affirmações

regras da classificação tanto geral como parti


cular. O mais materialista dos materialistas
considerará o instincto mais util ao homem1
do que a intelligencia, dando caracter de
maior certeza ás suas operações, mas somente
porque esquece que estas operações só se
referem ao mundo material, e que a intelli
gencia, dependendo das faculdades sensitivas,
não resta duvida, só extrinsecamente depende,
e é, em si mesma, a faculdade pela qual o
homem percebe as verdades universaes, neces
sarias, a que ninguem chegaria pelos sentidos.
Mesmo na differença que estabelece o
sr. Sergio entre intelligencia e razão, se não
ha completa arbitrariedade, ha, pelo menos,
muito obscura determinação dos seus princi
pios, cousa de que se resentem os dois mais
importantes ensaios do seu livro — os que
trazem os titulos de « Sciencia e educação »
e « Educação e philosophia ».
Porque a certas cousas não é mais possi
vel mudar o sentido, tradicional, sem que a
contradicção tome conta de nós.
Melhor do que tudo quanto nos diz alli
o sr. Sergio está em qualquer compendio com
a força enorme di simplicidade: «a intelli
gencia é a faculdade espiritual quando per
cebe immediatamente; esta mesma faculdade
é razão quando deduz uma verdade de outra
verdade já conhecida ».
Affirmações 337

Emfim, o que, como v., tambem não com-


prehendo, é que se chame intelligencia, razão,
o mesmo que instincto — termo este que se
oppõe aos dois primeiros e cuja universal
definição, mesmo entre os mysticos indivi
dualistas, dentro do quadro que fazem da
hierarchia dos instinctos, é, foi sempre a de
« uma tendencia innata e cega a buscar certos
fins por meios não premeditados ».
Eu creio firmemente que a intelligencia
da Revolução não se limita, a ser uma pura
e cega tendencia, pelo menos nos seus mais
altos representantes, maximé naquelles que,
como o sr. Antonio Sergio, já com tanto cui
dado reflectem sobre esta cousa horrivel que
é querer fazer a vida vasia de idéas.

II

Não comprehendeu v. talvez, meu bom


amigo, o porque, se havia de mostrar-lhe que
o sr. Antonio Sergio dava á intelligencia a
mesma significação de instincto, (e, de facto,
além de empregar a propria palavra, já a
antecedera do termo « pendor ») — disse-Ihe eu,
no principio da minha primeira carta que
aquelle vigoroso escriptor se caracteriza por
um ultra-racionalismo, um ultra-intellectua-
lismo, que é o signal do mais doloroso indi
vidualismo, isto é, daquelle em que o indi
22
338 Affirmações

viduo reage com todas as suas forças contra


as paixões, os « instinctos », os « pendores »,
as forças obscuras que tambem fazem a
«totalidade humana», e é mister illuminar
com a intelligencia para governar com a
vontade.
Mas tambem não lhe disse eu que o
sr. Sergio não podia exprimir-se daquelle
modo por ignorancia e que é elle até um
apaixonado pelo culto das idéas e da objecti
vidade?
Nada de sentimentalismos, instinctivismos,
etc, para o sr. Antonio Sergio.
Quando, pelo contrario, se lhe depara um
saudosista, um sentimental ou um puro ver
balista como o sr. Junqueiro, em sua terra,
o que logo lhe atira ás faces é aquella per
gunta usada pelo grande Anthero numa das
suas discussões: «Mas, exmo. senhor, será
possivel viver sem idéas? — Esta é a grande
questão ».
Eu, meu caro Camillo, tanto ao excelso
Quental como ao illustre escriptor que lhe
interessa, diria, sem medo de errar, que a
grande questão não será talvez a de ser ou
não possivel viver sem idéas. O determinar
as idéas sem as quaes não se póde viver é
que será talvez a magna questão.
Mas não divaguemos, pois preciso, em
rigorosa justiça, dizer-lhe que, de facto, se
Affirmações 339

existe, a meu vêr, uma real contradicção na


obra do sr. Sergio, essa contradicção não se
origina da ignorancia do escriptor, mas é sim
a inevitável contradicção de todos os pensa
dores que, por injustificavel capricho indivi
dualista, despresam os criterios classicos da
psychologia.
Assim é que em toda esta questão, de
que trato, o que se evidencia, após um certo
esforço da nossa parte, é que o sr. Antonio
Sergio nos seus « Ensaios » de pedagogia não
quer empregar jámais a palavra « faculdade »,
palavra que tem contra si alguns seculos de
bons serviços á causa da ordem e da Intelli-
gencia, e é, por isto mesmo, nestes tempos de
desordem e desintelligencia, palavra suprema
mente despresivel.
Felizmente, porém, já os mesmos indivi
dualistas, como o sr. Sergio, — individualistas
no sentido em que nós, catholicos, vulgar
mente empregamos esta palavra — já os mes
mos individualistas, como o sr. Sergio, estão
absolutamente descontentes com os resultados
da sua propria Victoria, contra as medidas im
postas pela Egreja, em todos os tempos, aos
que se dão á perigosissima funcção de pensar
para os demais homens, isto é, de os guiar
em nome da razão. É que, como dizia José
de Maistre, o veneno é pelas suas consequen
cias que se deixa conhecer . . .
340 Affirmações

Eu bem comprehendo o que quiz expri


mir o sr. Sergio — veja lá, meu caro Camillo!
— no sincero desejo de defender os direitos
da razão neste pandemonio de semi-idéas, que
é o em que se debatem os dignos filhos da
Reforma, ou melhor, da renascença do paga
nismo, sem mais o senso da belleza . . .
Se v. quizer ver claramente qual é o
pensamento do sr. Sergio, volte á pagina 125
dos seus « Ensaios » e então verá que o que
elle quer dizer, com chamar de Instincto á
Intelligencia, é que não está em nós o deixar
de pensar, se somos homens, é que não está
em nós vivermos sem idéas. Eis, exposto o
seu pensamento: «a intelligibilidade do uni
verso não é uma conclusão da sciencia, mas
a presupposição que a fez nascer; achámos
o universo intelligivel porque partimos do
pre-conceito de que elle o era, filho do nosso
instincto de intelligibilidade, etc. ».
E estende-se uma pagina para amparar
uma tal exposição do que nós diriamos em
poucas palavras, isto é, que o homem é um
ser racional, ou que a essencia do homem
é ser racional, ou ainda, como Pascal — a
caracteristica do homem é a razão, é o pen
samento.
Não é isto, porém, de modo algum equi-i
valente, pelo menos em philosophia, ao que
diz o sr. Sergio, á pagina 126 do seu formoso
Affirmações 341

livro: que « a razão, por sua vez, é um sen


timento e é um instincto ».
O não ultrapassar-se o homem ou a intel-
ligencia humana, o ter ella limites naturaes,
não é ser sujeita a nenhuma fatalidade, pois
se não comprehende um ser ultrapassando a
sua propria essencia, o que equivaleria a
deixar de ser o que é. O que caracteriza a
intelligencia humana é ser livre nos limites
que lhe deu Deus. O instincto é justamente
mais « certo » porque não escolhe, executa
aquillo para que foi feito sem vacillações de
criterio.
O admittir-se, mesmo só de um ponto de
vista philosophico, racional, o Deus Creador,
das almas como das cousas, é o bastante para
resolyer e esclarecer toda esta questão, tão
obscura e complicada se, na propria intelli
gencia, se na propria razão, tão somente, se
quer encontrar o fundamento da vida racio
nal, tal como faz o sr. Antonio Sergio.
Quando em outro ponto de seu livro,
pag. 201, o sr. Sergio, discutindo o que dis
sera Ferrero, isto é, que «o regime antigo
do racionalismo não é contrario á natureza
humana », mais uma vez commette, não direi
já um absurdo mas um desses seus communs
ataques ao que é universal e historicamente
reconhecido no dominio da philosophia, pois
esta é a pergunta que formula: «mas a qual
342 Affirmações

das humanas naturezas?» E continua: Rele-


va-nos aqui distinguir duas: a animal e a
espiritual, a dos instinctos e a da razão ».
Ora, o certo é que não ha « duas natu
rezas humanas ». O sr. Sergio poderia falar
da natureza da razão, da natureza do instincto,
etc, mas jámais dizer o que disse, porque
quando não se quer innovar pelo simples
gosto de innovar — diz-se simplesmente que a
natureza humana se nos apresenta como com
posta de razão, de instinctos, de espiritualidade,
de animalidade, etc.
Emfim, meu caro Camillo, como vê v., o
sr. Sergio é dos que erram por orgulha. Elle
ama uma regra, quer que os homens a reco
nheçam, tanto no dominio moral como no do
puro conhecimento, mas ... eis a verdadeira
grande questão ... — elle, o sr. Sergio, é quem
tem que a determinar, apontal-a, etc.
Assim é sempre, assim foi sempre no
pandemonio philosophico desde o que elle
proprio, o autor dos « Ensaios », chamou de
« disciplina hellenica ».
Disciplina hellenica! meu caro Camillo!
Deus tenha piedade de nós, se é certo
que nos degradamos, tal como diz o sr. Sergio,
todas as vezes que a exorbitamos, o que, a
meu ver, quer dizer creamos alguma cousa
do nada.

à
NETOS DE RENAN

A v., meu caro amigo, parece que impres


sionou a phrase, que foi do escol dos intel-
lectuaes do mundo inteiro e v. já ouviu dos
augustos labios do jornalista de Timboré . . .
«Somos netos de Renan»... Que mal faz isto?
Nenhum, creia v. Somos bisnetos de Voltaire,
tetaranetos de muitos outros desgraçados . . .
se preferimos taes ascendentes entre tantos,
bem mais nobres, que a historia nos apresenta.
Mas emfim, netos de Renan . . . Creia, meu
amigo, o jornalista de Timboré não sabe
o que disse. Foi um puro instrumento, um
instrumento da Providencia! Pequena gloria,
já se vê, para o director-proprietario do « Pro
gresso Timboréense », mas não pouco provei
tosa para nós . . . Porque foi após a leitura
da sua carta que, pela primeira vez em mi
nha vida, pensei na familia de Renan . . . Sim,
aquelle homem, que tão suave e sorridente
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mente envenenou tantos corações, arrancou a


fé de tantas almas frageis, entregou fria. e
despiedosamente tantas consciencias, ardentes
e generosas, ás miserias da duvida, sim, aquelle
homem tambem fizera uma familia, tivera
filhos talvez, e os creara e educara sabe Deus
como! Que fins terá tido aquella gente, que
será ella, hoje em dia, lá, naquella revolvida
terra européa, eis o que a mim proprio per
guntava, tomado, acredite v., de verdadeira
piedade. Pois bem: não só a mim interro
guei. Fil-o tambem a um padre francez, meu
amigo, e que é hoje exemplo de dedicação
e carinho á nossa rude gente do sertão mi
neiro, após ter-se batido quatro annos, como
soldado, nas fileiras do glorioso exercito de
sua terra. A resposta não se fez esperar
muito tempo. E, veja v., não é que aquelle
excellente sacerdote se desse ao trabalho de
escrever, elle proprio, uma historia dos Re-
nans . . . Não. Enviou-me simplesmente um
livro, que veiu a calhar. Avalie, que é, justa
mente, a bibliographia de Ernesto Psichari,
um neto de Renan!...
Chega a parecer resposta directa ao jor
nalista de Timboré, e v. vae ver como acertou
o fino ironista, o rival sertanejo do nosso
Humberto de Campos.
Sim, v. verá, meu amigo, que já não
nos pode molestar, a nós catholicos. a nós,
Affirmações 345

crentes, que se diga das gerações que entram


agora na plenitude da acção, que são netas
do homem que fez de Jesus Christo prota
gonista de um dos mais vis romances das
letras modernas, pela assucarada perfidia com
que quiz vestir de inconsciencia o mesmo typo
— que, para nós, é o Filho de Deus vivo —
mas para elle era tambem o mais alto, o mais
perfeito, da humanidade!!
Até já podemos proclamar bem alto que
somos netos desse homem, para maior gloria
do Deus invencivel e unico.
« Dios non muere », disse o grande Gar
cia Moreno, respondendo á punhalada do in
fernal sectario . . . Sim, Deus não morre, nem
mesmo no sangue dos que blasphemaram de
seu nome, dos que repudiaram o amor de
seu Filho e apunhalaram o seio da sua Esposa.
Nem de leve supponha que exaggero se
lhe digo que este livro, que venho de ler,
me arrancou lagrimas. Somente não lhe sei
dizer se foram ellas de tristeza ou de alegria.
Sei que as chorei. No silencio da noite, em
que, uma a uma, fui voltando as fulgidas
paginas de Henri Massis, como que vi le-
vantar-se, mais do que nunca, formosa, digna
de adoração, a figura da excelsa magestade
do espirito da Egreja, sustentaculo do mundo,
todos os dias crucificado, todos os dias exal
tado, glorificado, vencedor de todo o mal!
346 Affirmações

Ouvi a prece que a todas as horas sobe


aos céos e abranda] a justiça do Creador, soffri
tambem de todos os silenciosos sacrificios, que
se fazem no altar da renuncia ás vaidades
do mundo, e como que, dentro em mim, echoa-
vam tambem — tão grande era o silencio lá
por fóra — os canticos felizes de todos os
que, ardentes de fé, na paz dos claustros ou
nos perigos da catechese, bemdizem Jesus
Christo, aquelle que deu sentido á nossa pe
regrinação sobre a terra.
Mas, se eu pudesse nestas poucas linhas
dar-lhe a biographia desse neto de Renan,
certo v. comprehenderia a minha exaltação.
Delle já se disse até que «a França
christã pode invocal-o nas suas preces ». E
porque não? Que vida mais gloriosa, que
fim mais sublime e mais ardentemente san
tificado? Quem se conhece ahi vencedor de
mais temerosas vaidades?
Avalie v. que educação poderia ter tido
um neto de Renan, respirando a atmosphera
mesma da mais orgulhosa idolatria a tudo
quanto falava daquelle homem, que ousara
contrapor a sua perfida palavra ao1 sangue
dos martyres! Ademais tudo parecia indicar
que era Ernest Psichari um digno herdeiro
do nome tristemente glorioso: o mesmo pen
dor para as letras, o mesmo indomavel intel-
lectualismo, e fluidez de expressão . . .
Affirmações 347

Mas que pode o mal quando Deus não


quer? Que é que tocou o coração do joven
principe da intelligencia?
Ernest Psichari, diz o seu biographo, co
nheceu todas as febres, todas as perturbações
da sua geração, mas sempre adeante dos seus
companheiros, «nelle se exaltava a mocidade
de França ».
Ainda foi com assombro que o viram
abandonar os cursos da Sorbona para fazer-se
soldado e partir para a Africa a uma rude
guerra de conquista. Mas se o enthusiasmo
das suas primeiras obras, nascidas do contacto
com a barbaria e a religiosidade do deserto,
a muitos pareceu ainda enthusiasmo de dile
tante, não tardou que se comprehendesse o
idealista que se revelava com força invencivel.
E não é nunca demais esperar-se de um sol
dado que se faça apostolo. O enthusiasmo
pela guerra não é já enthusiasmo pelo sacri
ficio?
Ernest Psichari em poucos annos de
guerra, de « vida perigosa », se fizera um apos
tolo da desforra franceza, e Deus é como
Deus dos exercitos que, pela primeira vez,
fulge na sua consciencia.
Elle encarna, dentro em pouco, a acção
intensa, mesmo a violencia, para responder
ao scepticismo do avô.
«Nossa geração, escrevia elle, a dos que
348 ' Affirmações

começaram a vida com o seculo, é impor


tante. Neila, sabemos, estão todas as espe
ranças. É della que depende a salvação da
França e assim a do mundo, a da civilização.
Parece-me que os moços sentem obscuramente
que verão grandes cousas, que grandes cousas
se farão por elles. Não serão nem amadores
nem scepticos. Não serão touristas através da
vida. Sabem o <jue se espera delles ». Estava
mudado aos seus olhos o scenario do mundo.
Estava delineado o seu programma, não havia
mais escolher: prendre contre son père ie parti
de ses pères.
Ainda era, quem assim falava, um homem
que não tinha por si as armas de uma fé po
sitiva.
Mas, como elle mesmo disse: Dés qu'on
fait un pas hors de la médiocriiê, on est
sauvé . . . On est embarque dans Vabsolu...
Dahi em deante, seus livros assim como
a sua vida são a resposta mais lucida, mais
vibrante e mais séria que o espirito de ordem
podia dar á anarchia contemporanea, e a sua
figura de heróe e de artista, de homem de
acção e de sabio vae pouco a pouco appro-
ximando-se e por fim surge, duplamente en
volvida, de entre as fileiras dos que, a esta
hora, christãos e francezes, já salvaram as
grandes tradições da sua patria do completo
anniquilamento. A Egreja podia gloriar-se de
Affirmações 349

mais um filho, um verdadeiro filho, amante


e fiel.
E é commovente ler estas palavras do
neto de um Renan ... « Toda a tentativa por
nos libertarmos do catholicismo é um absurdo,
pois, queiramos ou não, somos christãos; e
é uma maldade, visto que, quanto temos de
bello e grande no coração, nos vem do ca
tholicismo. Não apagaremos vinte séculos de
historia, precedidos de toda uma eternidade.
E como a sciencia foi fundada por crentes,
nossa moral, no que tem de nobre e de ele
vado, tambem vem dessa grande e unica
fonte do christianismo, de cujo abandono de
corre a falsa moral assim como a falsa sci
encia ».
No dia 8 de fevereiro de 1913, Ernest
Psichari, o neto de Renan, « foi confirmado
por moais. Gibier, na capei la do pequeno se
minario de Grandchamp.
Com a voz a tremer de ardor contido,
recitou o « Credo », de que, uma a uma, ac-
centuou as syllabas latinas. Após a confirma
ção, o bispo de Versailles lhe perguntou a
sua edade : — Vinte e nove annos ! Muito tempo
perdido! foi a sua resposta.
E porque, assim, tanto tempo perdera foi
que, desde então, o viram seus soldados e
toda a França intellectual arder na febre de
reparar, em cada livro, em cada acto, as in
350 Affirmações

jurias que seu avô fizera á França christã,


e, humilimo, ou melhor, possuido de santo
orgulho, servir a missa e ser aquelle mesmo
ser — sacristão, que Louis Veuillot tambem
quizera ser ... E foi deste modo, entre os
rigores da vida militar e os rigores de uma
exaltada practica christã, que a Grande Guerra
surgiu. Foi dos primeiros que marcharam contra
o inimigo de sua patria, foi dos primeiros
que cahiram fulminados no campo de honra.
«Os que o viram mais tarde ficaram im
pressionados ante a calma de seu rosto; tinha
nas mãos o rozario que pudera segurar».
Eis ahi, meu amigo, como soube morrer
um neto de Renan. Felicito o jornalista de
Timboré pelas suas ironias. Já podemos ser
bons netos de Renan. E v. ha de concordar
commigo: Ernest Psichari foi, de facto, uma
dessas naturezas que são privilegio daquella
nação a quem, nem as desgraças nem os
erros, tiraram ainda o que José de Maistre,
então insuspeito de lhe ser favoravel, poude
observar no seu destino: o exercido de uma
verdadeira magistratura sobre a Europa e, por
conseguinte, sobre o mundo.
Quando uma dessas naturezas apparece
como uma estrella sobre os céos borrascosos
daquella grande patria, não ha consciencia
christã que não veja claramente alguma cousa
de mais profundo e de mais forte, que o
Affirmações 351

que prende todas as mais nações, ligando os


destinos da França aos destinos da Egreja
Catholica.
E tem-se o desejo de dizer que sejam
quaes forem as apparencias, sempre a causa
da França é a causa da Egreja.

Rio, 9—1921.
INDICE

Prefacio
Mello Moraes Filho ."
Traços para uma apologia de Olavo Bilac . . . .
Atravez da obra de Afranio Peixoto ......
As idéas geraes de Fidelino de Figueiredo. . . .
Romain Rolland e a mocidade intellectual Brasileira
A margem dos «Contos e Impressões» de Mario de
Alencar
Figuras
Um Newman russo
Cartas a Camillo
Anti-Hellenicas
Sobre intelligencia e instincto
Netos de Renan

Typ. do Annuario do Brasil


COLLECÇÃO EDUARDO PRADO
(CENTRO D. VITAL)

Serie A.
Pascal e a Inquietação moderna — Jackson
de Figueiredo 49000
O Clero Nacional e a Independencia do Bra
sil — D. Duarte Leopoldo Ja Silva . 49000
Ensaios de Critica Doutrinaria—Perillo Gomes 45000
Pelo Altar c pela Patria — Plácido de Mello 49000
As duas Bandeiras (Catholidsmo e tírasilida-
de) — Alcibiades Delamare 49600
A Theosophia — Perillo Gomes .... 59000
AffirmaçÔes — Jackson de Figueiredo . . . 59000
A Historicidade da Existencia humana de
Jesus-Christo — Lucio José dos Santos . 59000

Serie B
Cheia de Graça Durval de Moraes . . . 49000

Serít C
Julio Maria « Jonathas Serrano 59000
Auta de Souza — Jackson de Figueiredo . . 29000
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