Gordo, difuso, melancólico, o terno de sarja verde-piscina flutuando em seu
corpo, Almada saiu ensaiando um ar de secreta euforia para tentar desfazer seu abatimento. As ruas já se aquietavam; escuras e lustrosas desciam num suave declive e o faziam avançar mansamente, segurando a aba do chapéu quando o vento do rio tocava seu rosto. Nesse momento as garçonetes entravam no primeiro turno. A qualquer hora há homens procurando uma mulher, andam pela cidade sob o sol pálido, passam furtivamente em direção às boates que ao entardecer deixam cair uma música doce sobre a cidade. Almada sentia- se perdido, cheio de medo e de desprezo. Junto com o desalento retornava a lembrança de Larry: o corpo distante da mulher, mole sobre o banco de couro, os joelhos separados, o cabelo vermelho contra as lâmpadas azul- claras do New Deal. Vê-la de longe, em pleno dia, a pele gasta, as olheiras, vacilando contra a luz lívida que descia do céu: altiva, bêbada, indiferente, como se fosse uma planta ou um bicho. “Poder humilhá-la uma vez”, pensou. “Parti-la ao meio para fazê-la gemer e se entregar”. Na esquina, o ponto do New Deal era uma mancha ocre, corroída, mais pervertida ainda sob a neblina das seis horas da tarde. Parado em frente, atarracado, ensimesmado, Almada acendeu um cigarro e ergueu o rosto como que buscando no ar o perfume maligno de Larry. Sentia-se forte agora, capaz de qualquer coisa, capaz de entrar no cabaré e arrancá-la pelo braço e estapeá-la até que obedecesse. “Anos que eu quero levantar voo”, pensou de repente. “Instalar-me por conta própria no Panamá, Quito, Equador.” A um lado, deitada num saguão, viu o vulto sujo de uma mulher que dormia enrolada em trapos. Almada cutucou-a com um pé. — Ei, você — disse. A mulher sentou-se tateando o ar e levantou a cabeça como que enceguecida. — Como você se chama? — disse ele. — Quem? — Você! Não ouviu? — Echevarne Angélica Inés — disse ela, tesa. — Echevarne Angélica Inés, mas me chamam Anahí. — E o que você está fazendo aqui? — Nada — disse ela. — Me dá um dinheiro? — Ah, você quer dinheiro? A mulher apertava contra o corpo um velho casaco de homem que a envolvia como uma túnica. — Bom — disse ele. — Se você se ajoelhar e beijar meus pés eu te dou mil pesos. — Hein? — Está vendo? Olha aqui — disse Almada agitando a nota entre seus dedinhos mochos. — Você se ajoelha e eu te dou isto aqui. — Eu sou ela, sou Anahí. A pecadora, a cigana. — Você ouviu? — disse Almada. — Ou está bêbada? — A macarena, ai macarena, cheia de tules — cantou a mulher e começou a se ajoelhar entre os trapos que cobriam sua pele e a afundar o rosto entre as pernas de Almada. Ele a olhou do alto, majestoso, um brilho úmido em seus olhinhos de gato. — Aí está. Eu sou Almada — disse e estendeu-lhe a nota. — Compra um perfume para você. — A pecadora. Rainha e mãe — disse ela. — Nunca existiu em todo o país um homem mais lindo que Juan Bautista Bairoletto, o cavaleiro. Pela claraboia da boate ouvia-se soar baixinho um piano, indeciso. Almada cerrou as mãos nos bolsos e perfilou-se na direção da música, na direção das cortinas cor de sangue da entrada. — A macarena, ai macarena — cantava a louca. — Cheia de tules e sedas, a macarena, ai, cheia de tules — cantou a louca.
Antúnez entrou no corredor amarelento da pensão de Viamonte e
Reconquista, sossegado, manso então, grato a essa sutil combinação dos fatos da vida que ele chamava seu destino. Fazia uma semana que vivia com Larry. Antes eles se encontravam toda vez que ele se demorava no New Deal sem escolher ou querer admitir que ia por ela; depois, na cama, os dois se usavam com frieza e eficiência, lentos, perversamente. Antúnez acordava depois do meio-dia e ia para a rua, já esquecido do resplandor acre da luz nas persianas entreabertas. Até que por fim uma manhã, sem nada que o fizesse prever, ela se postou nua no meio do quarto e, como se falasse sozinha, pediu a ele que não fosse embora. Antúnez desatou a rir: “Para quê?”, disse. “Ficar?”, disse ele, um homem pesado, envelhecido. “Para quê?”, tinha dito a ela, mas já estava decidido, porque nesse momento começava a ser consciente de sua inexorável decadência, dos sinais desse fracasso que ele escolhera chamar de seu destino. Então deixou-se estar naquele quarto, sem nada para fazer além de se debruçar na sacadinha de ferro e olhar para a ladeira de Viamonte e vê-la chegar, lenta, envolta na neblina do amanhecer. Acostumou-se ao modo que ela tinha de entrar trazendo o cansaço dos homens que lhe haviam pago bebida e aproximar-se, como ofuscada, para deixar o dinheiro sobre o criado-mudo. Acostumou-se também ao pacto, à secreta e querida decisão de não falar do dinheiro, como se os dois soubessem que a mulher pagava dessa forma o modo dele a proteger dos medos que de repente ela sentia de morrer ou de ficar louca. “Já nos resta pouco tempo de jogo, para ela e para mim”, pensou ao chegar no fim do corredor, e nesse momento, antes de abrir a porta do quarto, se deu conta de que a mulher tinha ido embora e que tudo começava a se perder. O que não pôde imaginar foi que do outro lado iria encontrar a desgraça e a aflição, os signos da morte nas gavetas abertas e nos móveis vazios, nos frascos, perfumes e pós de Larry jogados no chão: a despedida ou o adeus escrito com batom no espelho do guarda-roupa, como um aviso que a mulher tivesse querido deixar antes de ir embora. Ele veio o Almada veio veio para me levar sabe tudo da gente veio no cabaré e é como um bicho um lixo ai meu deus vai embora por favor eu te peço foge você Juan ele veio me procurar hoje de tarde é um rato me esquece te peço me esquece como se nunca tivesse estado na tua vida eu Larry pelo que você mais ama não me procura porque ele te mata leu Antúnez as letras trêmulas, desenhadas como uma rede sobre seu rosto refletido na lua do espelho. II
Emilio Renzi se interessava por linguística, mas ganhava a vida fazendo
crítica de livros para o jornal El Mundo: passar cinco anos na faculdade especializando-se na fonologia de Trubetzkoi para acabar escrevendo resenhas de meia página sobre o desolado panorama literário nacional era sem dúvida o motivo de sua melancolia, desse aspecto concentrado e um pouco metafísico que o aproximava das personagens de Robert Arlt. O sujeito que fazia a crônica policial estava doente na tarde em que a notícia do assassinato de Larry chegou no jornal. O velho Luna resolveu mandar Renzi cobrir a notícia porque achou que obrigá-lo a se enfronhar nessa história de putas baratas e cafetões ia lhe fazer bem. Tinham encontrado a mulher crivada de punhaladas perto do New Deal; a única testemunha do crime era uma mendiga meio louca que dizia se chamar Angélica Echevarne. Quando a encontraram ela embalava o cadáver como se fosse uma boneca e repetia uma história incompreensível. A polícia deteve nessa mesma tarde Juan Antúnez, o sujeito que vivia com a garçonete, e o caso parecia resolvido. — Vê se consegue inventar alguma coisa que dê para se aproveitar — disse-lhe o velho Luna. — Vai até o departamento que às seis vão deixar a imprensa entrar. No Departamento de Polícia Renzi encontrou um único jornalista, um tal Rinaldi, que cuidava dos crimes no jornal La Prensa. O sujeito era alto e tinha a pele esponjosa, como se tivesse acabado de sair da água. Fizeram- nos entrar numa salinha pintada de azul-claro que parecia um cinema: quatro lâmpadas iluminavam com uma luz violenta uma espécie de palco de madeira. Ali mostraram um homem altivo que cobria seu rosto com as mãos algemadas; logo em seguida o lugar se encheu de fotógrafos que tiraram instantâneos dele de todos os ângulos. O sujeito parecia flutuar numa névoa e quando baixou as mãos olhou para Renzi com olhos suaves. — Não fui eu — disse. — Foi o gordo Almada, mas esse aí tem proteção dos graúdos. Incomodado, Renzi sentiu que o homem falava somente para ele e lhe exigia ajuda. — Certeza que foi esse aí — disse Rinaldi quando o levaram. — Eu sou capaz de farejar o criminoso a quilômetros: todos têm a mesma cara de gato mijado, todos dizem que não foram eles e falam como se estivessem sonhando. — Me pareceu que dizia a verdade. — Sempre parecem dizer a verdade. Aí vem a louca. A velha entrou olhando para a luz e atravessou o estrado com um leve bamboleio, como se caminhasse amarrada. Assim que começou a ouvi-la, Renzi ligou seu gravador. — Eu vi tudo eu vi como se estivesse vendo meu corpo todo por dentro os gânglios os bofes o coração que pertence e que vai pertencer a Juan Bautista Bairoletto o cavaleiro por esse homem estou dizendo vá embora daqui inimigo de maus bofes ou não está vendo que quer tirar a minha pele às tiras e fazer entremeios rendas roupa de tule trançando o cabelo da Anahí cigana a macarena ai macarena uma azarada é o que você é não tem alma e o brilho nessa mão uma pederneira eu bebo ácido eu juro que bebo ácido se você chegar perto eu bebo ácido pecadora louca de inveja porque estou limpa eu de todo mal sou uma santa Echevarne Angélica Inés mas me chamam Anahí tinha razão o Hitler falou que precisavam todos os entrerrianos sou bruxa e sou cigana e sou a rainha que tece um tule precisam cobrir o brilho dessa mão uma pederneira o brilho que fez ela morrer porque você tira a máscara mascarado que me viu ou não me viu e falou desse dinheiro Mãe Maria Mãe Maria no saguão Anahí foi cigana e foi rainha e foi amiga de Evita Perón e onde será o purgatório se não fosse em Lanús para onde levaram a virgem com capuz nessa máquina com um laço de tule para cobrir o rosto que eu tive sempre branco pela inocência. — Parece uma paródia de Macbeth — sussurrou, erudito, Rinaldi. — Lembra, não? A história que nada significa contada por um louco. — Por um idiota, não por um louco — corrigiu Renzi. — Por um idiota. E quem disse que não significa nada? A mulher continuava falando de cara para a luz. — Por que me chamam traidora sabe por que vou dizer a mim me amava o homem mais lindo desta terra Juan Bautista Bairoletto cavaleiro de poncho inflado no ar é um balão um balão gordo que flutua embaixo da luz amarela não chega perto se chegar perto eu te aviso não me toca com a espada porque é na luz que eu vi tudo eu vi como se estivesse vendo meu corpo todo por dentro os gânglios os bofes o coração que pertenceu que pertence e que vai pertencer. — Vai começar tudo de novo — disse Rinaldi. — Talvez esteja tentando se fazer entender. — Quem? Essa aí? Mas não está vendo que ela é biruta? — disse enquanto se levantava da poltrona. — Não vem? — Não. Eu fico. — Escute, meu velho. Não percebeu que repete sempre a mesma coisa desde que a encontraram? — Por isso mesmo — disse Renzi controlando a fita no gravador. — Por isso é que eu quero ouvir, porque repete sempre a mesma coisa.
Três horas depois Emilio Renzi estendia sobre a surpreendida escrivaninha
do velho Luna uma transcrição literal do monólogo da louca, sublinhado com lápis de diferentes cores e cheio de marcas e de números. — Eu tenho a prova de que Antúnez não matou a mulher. Foi um outro, um sujeito de quem ele falou, um tal de Almada, o gordo Almada. — Mas que ótimo! — disse Luna, sarcástico. — Quer dizer que Antúnez diz que foi o Almada e você acredita. — Não. É a louca quem diz isso, a louca que repete há dez horas a mesma coisa sem dizer nada. Mas justamente por repetir a mesma coisa é que dá para entender o que ela diz. Tem uma série de regras na linguística, um código que se usa para analisar a linguagem psicótica. — Escuta aqui, garoto — disse Luna lentamente. — Você está me gozando? — Calma, me deixe falar um minuto. Num delírio o louco repete, ou melhor, se vê obrigado a repetir certas estruturas verbais que são fixas, como um molde, percebe? Um molde que ele vai enchendo com palavras. Para analisar essa estrutura temos 36 categorias verbais que são chamadas operadores lógicos. São como um mapa, o senhor os põe sobre o que eles dizem e vê que o delírio tem uma ordem, que repete essas fórmulas. O que não cabe nessa ordem, o que não é possível classificar, o que sobra, o desperdício, é o novo: é o que o louco está tentando dizer apesar da compulsão repetitiva. Eu analisei o delírio dessa mulher seguindo esse método. Se o senhor observar vai ver que ela repete um certo número de fórmulas, mas tem uma série de frases, de palavras, que não é possível classificar, que ficam fora dessa estrutura. Eu fiz isso e separei essas palavras, e o que restou? — disse Renzi erguendo o rosto para encarar o velho Luna. — O senhor sabe o que resta? A seguinte frase: “O homem gordo esperava por ela no saguão e não me viu e lhe falou de dinheiro e brilhou essa mão que fez ela morrer.” Percebe? — arrematou Renzi, triunfante. — O assassino é o gordo Almada. O velho Luna olhou para ele impressionado e inclinou-se sobre o papel. — Está vendo? — insistiu Renzi. — Repare que ela vai dizendo essas palavras, as que estão sublinhadas com vermelho, vai encaixando nos buracos que consegue abrir no meio daquilo que é obrigada a repetir, a história de Bairoletto, da virgem e todo o delírio. Se o senhor prestar atenção nas diferentes versões vai ver que as únicas palavras que mudam de lugar são essas com que ela tenta contar o que viu. — Caramba, mas que bacana. Você aprendeu isso na faculdade? — Que é isso, não avacalhe. — Não estou avacalhando, estou falando sério. E agora o que você vai fazer com toda essa papelada? A tese? — Como assim o que eu vou fazer? Vamos publicar no jornal. O velho Luna sorriu como se alguma coisa lhe doesse. — Calma, garoto. Ou você acha que este jornal se dedica à linguística? — Temos de publicar isso, o senhor não percebe? Assim pode ser usado pelos advogados do Antúnez. Não está vendo que esse cara é inocente? — Escuta, esse cara já está frito, não tem advogados, é um cafetão, matou a mina porque no fim essas malucas sempre acabam desse jeito. Achei muito bacana o joguinho de palavras, mas vamos parando por aqui. Vê se faz uma nota de cinquenta linhas contando que a mina foi morta a facada. — Ouça, senhor Luna — interrompeu-o Renzi. — Esse cara vai passar o resto da vida em cana. — Eu sei. Mas faz trinta anos que eu estou nesse negócio e de uma coisa eu sei: a gente não tem de arrumar confusão com a polícia. Se eles dizem que foi a Virgem Maria que o matou, você escreve que foi a Virgem Maria que o matou. — Muito bem — disse Renzi juntando os papéis. — Nesse caso vou mandar os papéis para o juiz. — Mas o que que é, você quer arruinar sua vida? Uma louca de testemunha para salvar um cafetão? Por que você quer se envolver? — Em seu rosto brilhava um doce sossego, uma calma que nunca havia visto nele. — Olha, tira o dia livre, vai pro cinema, faz o que você quiser, mas não arruma confusão. Se você se enrolar com a polícia eu te mando embora do jornal. Renzi sentou-se diante da máquina de escrever e colocou um papel em branco. Ia redigir sua demissão; ia escrever uma carta para o juiz. Pelas janelas, as luzes da cidade pareciam fendas na escuridão. Acendeu um cigarro e permaneceu quieto, pensando em Almada, em Larry, ouvindo a louca que falava de Bairoletto. Depois baixou o rosto e se pôs a escrever quase sem pensar, como se alguém estivesse ditando: Gordo, difuso, melancólico, o terno de sarja verde-piscina flutuando em seu corpo — Renzi começou a escrever —, Almada saiu ensaiando um ar de secreta euforia para tentar desfazer seu abatimento. Ricardo Piglia nasceu em Buenos Aires, Argentina. Romancista, contista e roteirista, publicou Respiração artificial e Nome falso, ambos pela Iluminuras. Traduzido em várias línguas, a crítica o tem apontado como um dos melhores escritores da literatura latino-americana.