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OS PENSÁ.

J)ORI«
HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DO MUNDO OCIDENTAL
HISTORIA DAS GRANDES IDÉIAS
DO MUNDO OCIDENTAL

EDITOR: VICTOR CIVITA


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Platão
Aristóteles
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Sêneca e
Marco Aurélio
S. Agostinho
Erasmo e Thomas More
Bruno, Galileu e Campanella
DO MITO À FILOSOFIA

ue terá levado o homem, a partir própria e completamente diferente da

Q de determinado momento de sua


história, a fazer ciência teórica e
filosofia? Por que surge no Ocidente,
dos “bárbaros” orientais. Assim é que
Diógenes Laércio, em sua Vida dos Filó­
sofos, já se refere à fabulosa antiguidade
mais precisamente na Grécia do século da filosofia entre persas e egípcios. Foi,
VI a.C., uma nova mentalidade, que porém, entre os neoplatônicos, os neopi-
passa a substituir as antigas construções tagóricos, com Filo, o Judeu, e com os
mitológicas pela aventura intelectual, primeiros escritores cristãos que surgiu,
expressa através de investigações cientí­ mais definida, a tese da filiação do pen­
ficas e especulações filosóficas? samento grego ao oriental. Em nome de
Durante muito tempo o problema do afirmações nacionais ou doutrinárias,
começo histórico da filosofia e da ciên­ passou-se a atribuir ao Oriente a condi­
cia teórica foi colocado em termos de ção de fonte originária da tradição filo­
relação Oriente—Grécia. Desde a própria sófica, que os gregos teriam apenas con­
Antiguidade confrontaram-se duas li­ tinuado e expandido.
nhas de interpretação: a dos “orientalis- Ainda no século XIX os historiadores
tas”, que reivindicavam para as antigas se dividem a respeito do começo histó­
civilizações orientais a criação de uma rico da filosofia e da ciência teórica. Ao
sabedoria que os gregos teriam depois orientalismo de Rõth e de Gladisch
apenas herdado e desenvolvido; e a dos opõe-se, por exemplo, o ocidentalismo
“ocidental!stas”, que viam na Grécia o de Zeller ou de Theodor Hopfener. As
berço da filosofia e da ciência teórica. disputas continuariam indefinidamente
Interessante é observar que os próprios em termos da relação “empréstimo” ou
gregos dos séculos V e IV a.C., como “herança” entre Oriente e Grécia, exa­
Platão e Heródoto, estavam ciosos da minada frequentemente com bases ape­
originalidade de sua civilização no nas conjeturais, se dois fatores não vies­
campo científico-filosófico, embora re­ sem, a partir do final do século XIX,
conhecessem que noutros setores, parti­ deslocar o eixo da questão: a expansão
cularmente na arte e na religião, os hele­ das pesquisas arqueológicas e o inte­
nos tinham assimilado elementos resse pela natureza da chamada menta­
orientais. Nos gregos do período alexan­ lidade primitiva ou arcaica.
drino ou helenístico, porém, desaparece A arqueologia veio substituir muitas
essa pretensão de absoluta originali­ das elucubrações por indicações bem
dade: a perda da liberdade política e a mais seguras e convincentes, demolindo
inclusão da Grécia nos amplos impérios preconceitos e, às vezes, propondo hipó­
macedônio e romano alteram a visão que teses novas de trabalho. O interesse pela
os próprios gregos têm de sua cultura. mentalidade arcaica veio, por sua vez,
Já não se sentem — como pretendia Aris­ mostrar que o principal aspecto da ques­
tóteles — dotados de uma “essência” tão da origem histórica da filosofia resí-

I
OS PENSADORES
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de na compreensão de como se processa longo processo de racionalização da cul­


a passagem entre a mentalidade mito- tura, acelerado a partir da demolição da
poética (“fazedora de mitos”) e a menta­ antiga civilização micênica. A partir
lidade teorizante. daí, a convergência de vários fatores —
Embora a questão do início histórico econômicos, sociais, políticos, geográ­
da filosofia e da ciência teórica ainda ficos — permite a eclosão do “milagre
contenha pontos controversos e continue grego”, que teve na ciência teórica e na
um “problema aberto” — na dependência filosofia sua mais grandiosa e impres­
inclusive de novas descobertas arqueoló­ sionante manifestação.
gicas —, a grande maioria dos historia­
dores tende hoje a admitir que somente O nascimento da epopéia
com os gregos começa a audácia e a
aventura expressas numa teoria. As con­ A chegada dos dórios, no século XII
quistas esparsas e assistemáticas da a.C., às circunvizinhanças do mar Egeu
ciência empírica e pragmática dos orien­ constitui momento decisivo na formação
tais, os gregos do século Ví a.C. contra­ do povo e da cultura grega. Na península
põem a busca de uma unidade de e nas ilhas — cenário natural da Grécia
compreensão racional, que organiza, em gestação — está então instalada a
integra e dinamiza os conhecimentos. civilização micênica ou aqueana, que se
Essa mentalidade, porém, resulta de desenvolvera em estreita ligação com a

II
DO MITO À FILOSOFIA

Gréciapré-filosófica: terra de heróis e de


deuses. (Ao lado, baixo-relevo do séc. IVa.C.,
com cenas da “Odisséia” de Homero;
Kunsthistorisch.es Museum, Viena. Abaixo,
Zeus, estátua de bronze do séc. Va.C.;
Stiftung Pressischer Kunsbesitz, Berlim.)

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III
OS PENSADORES

Os deuses antropomórficos da mitologia


grega constituem uma racionalização
do divino e uma exaltação da “medida
humana”, responsável também pela eclosão
aa filosofia. (Ajroaite de Eros.)

civilização cretense e em contato com


povos orientais.
A sociedade micênica apresenta-se
composta por grande número de famílias
principescas, que reinam sobre pequenas
comunidades. Essa pluralidade, decor­
rente da originária divisão em clãs, é
fortalecida pelas próprias caracterís­
ticas físicas da região: o relevo, compar-
timentando o território, torna alguns lo­
cais mais facilmente interligáveis
através do mar. Assim, muito antes que
as condições geográficas contribuam
para que as cidades-Estados (polis) ve­
nham a se desenvolver como unidades
autônomas, já são motivo para que,
desde suas raízes micênicas, a cultura
grega se constitua voltada para o mar:
via de comunicação e de comércio com
outros povos, de intercâmbio e de con­
fronto com outras civilizações, ao
mesmo tempo que incentivo a aventuras
reais e a construções imaginárias.
Chegando em bandos sucessivos, vin­
dos do norte, os dórios dominam a
região. Embora da mesma raiz étnica
dos aqueus, apresentam índice civiliza-
tório mais baixo. Possuem, porém, uma
incontestável superioridade: o uso de
utensílios e armas de ferro, fator deci­
sivo para a vitória sobre os micênicos,
que permaneciam na Idade do Bronze.
As invasões dóricas acarretam migra­
ções de grupos de aqueus, que se trans­
ferem para as ilhas e as costas da Ásia
Menor e aí fundam colônias, tentando
preservar suas tradições, suas institui­
ções e sua organização social de cunho
patriarcal e gentílico.
As novas condições de vida das colô­
nias e a nova mentalidade delas decor­
rente encontram sua primeira expressão
através das epopéias: em poesia o
homem grego canta o declínio das arcai­
cas formas de viver ou pensar, enquanto
prepara o futuro advento da era cientí­
fica e filosófica que a Grécia conhecerá a
partir do século VI a.C.
Resultantes da fusão de lendas eólias

IV
DO MITO À FILOSOFIA

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Nas origens da cultura grega situa-se


a civilização micênica, desenvolvida
em estreita relação com Creta e com
povos orientais. (Acima, Agamenão,
rei de Micenas; máscara de ouro do
século XVI a.C.; Museu Arqueológico
de Atenas. Ao lado, afresco egípcio
do século XII a.C., do túmulo de
Ramsés VI, representa a deusa Nut e
a “viagem noturna do Sol”.)

V
OS PENSADORES

A cultura grega apresentou duas faces


complementares: a “apolínea”, de
luminosidade, ordem, medida, e a
“dionisíaca”, de incontinência,
desmedimento, paixão. (Vaso do séc. V
a.C. mostrando dança dionisíaca;
M. Arqueológico de Ferrara; ao lado,
Apoio do Belvedere. Na outra página,
“Helena de Tróia assistindo
a uma batalha”, relevo em calcário;
Kunsthistorisches Museum, Viena.)

SCALA
e jônicas, as epopéias incorporaram Guerra de Tróia. Desses numerosos poe
relatos mais ou menos fabulosos sobre mas, apenas dois se conservaram: a Ilía-
expedições marítimas e elementos pro­ da e a Odisséia de Homero, escritos
venientes do contato do mundo helênico, entre o século X e o VTH a.C.
em sua fase de formação, com culturas
orientais. A língua desses primeiros poe­ Tempo de deuses e heróis
mas da literatura ocidental é uma mistu­
ra dos dialetos eólio e jônico, com Da vida de Homero praticamente
predominância do último. Entremeando nada se sabe com segurança, embora
lendas e ocorrências históricas — rela­ dados semilendários . sobre ele fossem
tando particularmente os aconteci­ transmitidos desde a Antiguidade. Sete
mentos referentes à derrocada da socie­ cidades gregas reivindicam a honra de
dade micênica —, surgem então cantos e ter sido sua terra natal. Homero é
sagas que os aedos (poetas e declama­ frequentemente descrito como velho è
dores ambulantes) continuamente foram cego, perambulando de cidade em cida­
enriquecendo. Constituídos por sequên­ de, a declamar seus versos. Chegou-se
cias de episódios relativos a um mesmo mesmo a duvidar de sua existência e de
evento ou a um mesmo herói, surgem, que a Ilíada e a Odisséia fossem obra de
assim, “ciclos” que cantam principal­ uma só pessoa. Poderíam ser coletâneas
mente as duas guerras de Tebas e a de cantos populares de antigos aedos e,

VI
DO MITO À FILOSOFIA

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ainda que tenha existido um poeta cha- rência permanece incerta ou obscura, ela
màdo Homero que realizou a ordenação é designada por palavras vagas, como
desse material e o enriqueceu com “théos”, “Zeus” e principalmente “dái-
contribuições próprias, o certo é que mon”. Nas epopéias homéricas, porém,
essas obras contêm passagens proce­ essas formas populares de designação
dentes de épocas diversas. das potências superiores e misteriosas
Além de informar sobre a organização tendem a assumir forma definida, abrin­
da polis arcaica, as epopéias homéricas do caminho à compreensão da divindade
são a primeira expressão documentada e, conseqüentemente, alijando do plano
da visão mito-poética dos gregos. A divino o caráter de inescrutabilidade e
intervenção, benéfica ou maléfica, dos de misteriosa ameaça. Mesmo quando
deuses está no âmago da psicologia dos representam forças da natureza, os deu­
heróis de Homero e comanda suas ações. ses homéricos revestem-se de forma
Com efeito, a Ilíada e a Odisséia apre- humana; esse antropomorfismo atribui-
sentam-se marcadas pela presença cons­ lhes aspecto familiar e até certo ponto
tante de poderes superiores que interfe­ inteligível, afastando os terrores relati­
rem no desenrolar da luta entre gregos e vos a forças obscuras e incontroláveis_.
troianos (tema da Ilíada) e nas aventuras Sobrepondo-se a arcaicas formas de
de Ulisses ou Odisseu (tema da Odis­ religiosidade, Homero exclui do Olim­
séia). Na medida em que essa interfe­ po, mundo dos deuses, as formas mons-

VII
OS PENSADORES

truosas, da mesma maneira que exclui Os deuses homéricos são fundamen­


do culto as práticas mágicas. Esses talmente deuses da luz (de díos provém
aspectos primitivos, quando excepcio­ tanto “deus” quanto “dia”) e seu antro-
nalmente despontam, servem justamente pomorfismo não diz respeito apenas à
para comprovar o trabalho realizado forma exterior, semelhante à dos mor­
pelas epopéias homéricas no sentido de tais: os deuses são também animados
soterrar concepções sombrias e aterrori­ por sentimentos e paixões humanasX A
zadoras, substituindo-as pela visão de humanização do divino aproxima-o da
um divino luminoso e acessível, de con­ compreensão dos homens, mas, por
tornos definidos porque feito à imagem outro lado, deixa o universo — em cujo
do homem. desenvolvimento os deuses podem inter­
A racionalização do divino conduz a vir — suspenso a comportamentos pas­
uma religiosidade “exterior”, que mais sionais e a arbítrios capazes de alterar
convém ao público a que se dirigem as seu curso normal. Isso limita o índice de
epopéias: à polis aristocrática. Essa racionalização contido nas epopéias ho­
religiosidade “apolínea” permanecerá méricas: uma formulação teórica, filosó­
como uma das linhas fundamentais da fica ou científica exigirá, mais tarde, o
religião grega: a de sentido político, que pressuposto de uma legalidade univer­
servirá para justificar as tradições e sal, exercida impessoal e logicamente.
instituições da polis. Então, abolindo-se a atuação de vonta-

VIII
DO MITO À FILOSOFIA

O arbítrio dos deuses, seus atributos


humanos e sua interferência na vida
dos mortais limitam a racionalização
contida na visão mitológica: o universo
não pode ser ainda o cosmo regido pela
neutralidade das leis científicas.
(Napág. ao lado, Afrodite, pintura
de vaso do séc. Va.C.; Museu Nacional
de Palermo. Acima, Helena e Menelau,
bronze do séc. IVa.C., Museu Britânico,
Londres. Ao lado, Artemis de Éfeso;
M. Arqueológico Nacional, Nápoles.)

IX
OS PENSADORES

Da “ I liada” à “Odisséia” as epopéias


homéricas revelam a progressiva
hierarquização do divino, a ressoar
na valoração das ações humanas.
(Ulisses e Calipso, pintura em
vaso; Museu Nacional de Nápoles.)

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des divinas divergentes, chegar-se-á a sua preeminência e organiza finalmente
um divino neutro imparcial: a divina o Olimpo como pai poderoso. O poli-
arché das cosmogonias dos primeiros teísmo homérico não exclui, portanto, a
Filósofos. É bem verdade, porém, que já idéia de uma ação ordenada por parte
na visão mitológica expressa pelas epo­ dos deuses, chegando afinal a admitir
péias, a suserama de Zeus introduz na uma certa unidade na ação divina.
família divina um princípio de ordem,
que tende a unificar e a neutralizar as Os homens e os divinos
preferências discordantes dos vários imortais
deuses. Do ponto de vista ético, essa
suserania estabelece uma diferença mar­ É por oposição aos homens que os
cante entre a Ilíada (obra mais antiga) e deuses homéncos se definem: ao contrá­
a Odisséia: nesta, a fidelidade de Pené- rio dos humanos, seres terrenos, os deu­
lope e os esforços de Ulisses acabam ses são princípios celestes; à diferença
premiados, a revelar, como pressuposto, dos mortais, escapam à velhice e à
um universo de valores morais já hierar- morte. Escapam à morte, mas não são
quizados, sob o controle e a garantia, eternos nem estão fora do tempo: em
em última instância, de Zeus soberano. princípio pode-se saber de quem cada
Desse modo, à imagem da sociedade divindade é Filho ou filha. A imortali­
patriarcal, Zeus fundamenta na força dade, esta sim, está indissoluvelmente

X
DO MITO À FILOSOFIA

Ulisses e Aquiles serão utilizados,


pelos filósofos, como símbolos
de virtudes morais. (Abaixo, ânfora
com Ájax e Aquiles; Museu Etrusco,
Vaticano; ao lado, Ulisses e Tirésias,
detalhe de vaso; Bibl. Nac., Paris.)

SCALA

ligada aos deuses que, por oposição aos morais ou espirituais. Em geral, signi­
humanos mortais, são frequentemente fica força e destreza dos guerreiros ou
designados de “os imortais” e consti­ dos lutadores, valor heróico intima­
tuem, na sua organização e em seu mente vinculado à força fisica. A virtude
comportamento, uma sociedade imortal em Homero é, portanto, atributo dos
de nobres celestes. nobres, os aristoi. Estreitamente asso­
Em Homero, a noção de virtude ciada às noções de honra e de dever,
(areté), ainda não atenuada pelo seu representa um atributo que o indivíduo
posterior uso puramente moral, signifi­ possui desde seu nascimento, a manifes­
cava o mais alto ideal cavalheiresco tar que descende de ilustres antepassa­
aliado a uma conduta cortesã e ao dos. Os heróis, quando se apresentam,
heroísmo guerreiro. Identificada a atri­ fazem questão, por isso mesmo, de reve­
butos da nobreza, a areté, em seu mais lar sua ascendência genealógica, garan­
amplo sentido, designava não apenas a tia de seu valor pessoal. Os aristoi — os
excelência humana, como também a possuidores de areté — são uma minoria
superioridade de seres nào-humanos, que se eleva acima da multidão de ho­
como a força dos deuses ou a rapidez mens comuns; se são dotados de virtudes
dos cavalos nobres. Só algumas vezes, legadas por seus ancestrais, por outro
nos livros finais das epopéias, é que Ho­ lado precisam dar testemunho de sua
mero identifica areté com qualidades excelência, manifestando as mesmas

XI
OS PENSADORES

A mitologia propôs questões retomadas


pelos filósofos, como a da condição
da alma após a morte. (Detalhe de
vaso: Ajax carregando o cadáver de
Aquiles, Museu Arqueológico, Florença.)

qualidades — valentia, força, habilidade “duplo” seria atestada pelos sonhos,


— que caracterizaram seus antepassa­ quando o outro eu parece sair e realizar
dos. Essa demonstração do valor inato peripécias, inclusive envolvendo outros
ocorria sobretudo nos combates singula­ “duplos”. A essa concepção de uma
res, nas justas cavalheirescas: as “aris- dupla existência do homem — como
téias” dos grandes heróis épicos. Sécu­ corporeidade perceptível e como ima­
los mais tarde, o pensamento ético e gem a se manifestar nos sonhos — está li­
pedagógico de Platão e de Aristóteles gada à interpretação homérica da morte
estará fundamentado, em grande parte, e da alma (psyché). A morte não repre­
na ética aristocrática dessa Grécia ar­ sentaria um nada para o homem: apsy­
caica expressa nas epopéias homéricas. ché ou “duplo” desprender-se-ia pela
Só que — sinal de outros tempos — boca ou pela ferida do agonizante, des­
naqueles pensadores a aristocracia de cendo às sombras subterrâneas do
sangue será substituída pela “‘aristo­ Erebo. Desligada definitivamente do
cracia do espírito”, baseada no cultivo corpo (que se decompõe), a.psyché passa
da investigação científica e filosófica. então a integrar o sombrio cortejo de
Homero parece participar da crença, seres que povoam o reino de Hades. Per­
comum a várias culturas primitivas, de manece como uma imagem ou “ídolo”,
que o homem vivo abriga em si um semelhante na aparência ao corpo em
“■duplo”, um outro eu. A existência desse que esteve abrigada; mas carece de

XII
DO MITO À FILOSOFIA

consciência própria, pois nem sequer A fidelidade dejPenélope a Ulisses


conserva as “faculdades” espirituais servirá de metáfora filosófica, para
(inteligência, sensibilidade, etc.). Impo­ exprimir a fidelidade do pensamento
tentes, as sombras vagantes do Hades ao ser. (Ulisses e Penélope, relevo
não interferem na vida dos homens; em terracota; séc. Va.C.; Louvre.)
assim, não há por que lhes render culto
ou buscar seus favores.
Humanizando os deuses e afastando o
temor dos mortos, as epopéias homéri­
cas descrevem um mundo luminoso no
qual os valores da vida presente são
exaltados. Se isso corresponde aos
ideais aristocráticos da época, repre­
senta também o avanço de um processo
de racionalização e laicização da cultu­
ra, que conduzirá à visão filosófica e
científica de um universo governado pela
razão: séculos mais tarde, o filósofo
Heráclito de Éfeso fará de Zeus um dos
nomes do Logos, a razão universal.
Na verdade, a Homero os gregos anti­
gos voltarão sempre, não apenas para
buscar modelos poéticos: temas e perso­
nagens homéricos serão frequentemente
utilizados pelos pensadores para servir
de paradigmas ou de recursos argumen-
tativos. As aventuras e o périplo de Ulis­
ses, por exemplo, serão tomados, sobre­
tudo a partir do socratismo dos cinicos,
como símbolos morais. O Ulisses que
retorna à pátria depois de arrostar e ven­
cer inúmeros perigos e tentações seria o
próprio símbolo dos esforços que a alma
humana teria de realizar para voltar à
sua natureza originária, à sua essencia-
lidade — essa pátria.
de Mileto, de Samos, de Êfeso. Entre
No começo, o Caos esses dois momentos de manifestação do
processo de racionalização por que pas­
O complexo processo de formação do sava a cultura grega, situa-se a obra
povo e da cultura grega determinou o poética de Hesíodo — voz que se eleva da
aparecimento, dentro do mundo helêni- Grécia continental, conjugando as con­
co, de áreas bastante diferenciadas, não quistas da nova mentalidade surgida nas
só quanto às atividades econômicas e às colônias da Ásia Menor com os temas
instituições políticas,mas também quan­ extraídos de sua gente e de sua terra, a
to à própria mentalidade e suas manifes­ Beócia.
tações nos campos da arte, da religião, Tudo que se sabe, com segurança,
do pensamento. À Grécia continental, sobre a vida de Hesíodo, é narrado por
mais presa às tradições da polis arcaica, ele próprio em seus poemas. Seu pai
contrapunham-se as colônias da Ásia habitava Cumes, na Eólia, onde possuía
Menor, situadas em regiões mais distan­ uma pequena empresa de navegação.
tes pelo intercâmbio comercial e cultu­ Arruinado, atravessou o mar Egeu e
ral com outros povos. Da Jônia surgem retornou à Beócia, berço de sua raça. Aí,
as epopéias homéricas e, a partir do sé­ em Ascra, dedicou-se às atividades cam-
culo VI a.C., as primeiras formulações pesinas e aí nasceu, viveu e morreu
filosóficas e científicas dos pensadores Hesíodo (meados do século VIII a.C.).

XIII
OS PENSADORES

FAB B RI
Ao morrer, o pai deixou a Hesíodo e a obra, usando Os Trabalhos e os Dias e
seu irmào Perses as terras que, devido o proêmio da Teogonia para fazer his­
ao clima rude da região, continuaram tória pessoal. Logo depois de exaltar
com esforço a cultivar. Na partilha dos as Musas inspiradoras, refere-se a si
bens, Hesíodo considerou-se lesado pelo próprio no começo da Teogonia: “( . . .)
irmão, que teria comprado os juizes Foram elas que, certo dia, ensinaram a
venais. Essa polêmica com Perses serve Hesíodo um belo canto, quando ele
de tema para uma das duas grandes apascentava suas ovelhas ao pé do Hé-
obras de Hesíodo: Os Trabalhos e os licon divino”.
Dias. Pois, além de cultivar os campos e O conteúdo desse “belo canto” é o
apascentar os rebanhos, Hesíodo tor- relato da origem dos deuses. Tomando
nou-se aedo sob inspiração das Musas, como ponto de partida velhos mitos,
conforme relata em sua outra grande que coordena e enriquece, Hesíodo
obra, a Teogonia. traça uma genealogia sistemática das
Com Hesíodo — como mostra o divindades. Dele provém a idéia de que
historiador do helenismo Werner Jae- os seres individuais que constituem o
ger — dá-se a aparição do subjetivo na universo do divino estão vinculados
literatura. Na épica mais antiga, o por sucessivas procriações, que os
poeta era o simples veículo anônimo prendem aos mesmos antecedentes pri­
das. Musas; .já . Hesíodo . “assina” . sua mordiais. Nessa genealogia sistemá-

XIV
DO MITO À FILOSOFIA

A passagem da mentalidade tica percebe-se o esboço de um pensa­


mito-poética à mentalidade mento racional sustentado pela
científica e filosófica exigência de causalidade, a abrir ca­
tem na dessacralização das técnicas minho para as posteriores cosmogo-
um de seus fatores principais: a nias Filosóficas.
sabedoria patrocinada por Atena O drama teogônico tem início, em
pressupõe também a astúcia e os Hesíodo, com a apresentação das enti­
talentos de que Hermes foi a dades primordiais: adotando implici­
expressão semidivina e semi-humana. tamente o postulado de que tudo tem
(Napág. ao lado, Atena, detalhe origem, Hesíodo mostra que primeiro
de ânfora do séc. VI a. C.; abaixo, teve origem o Caos — abismo sem
Hermes, estatueta em bronze do séc. fundo — e, em seguida, a Terra e o
Va.C.; Museu Nacional, Atenas.) Amor (Eros), ‘■‘'criador de toda a vida”.
De Caos sairá a sombra, sob a forma
de um par: Érebo e Noite. Da sombra
sai, por sua vez, a luz sob a forma de
outro par: Éter e Luz do Dia, ambos Fi­
lhos da Noite. Terra dará nascimento
ao céu, depois às montanhas e ao mar.
Segue-se a apresentação dos Filhos da
luz, dos Filhos da sombra e da descen­
dência da Terra — até o momento do
nascimento de Zeus, que triunfará
sobre seu pai, Cronos. Começará então
a era dos olímpicos.

No trabalho,a virtude
A Teogonia de Hesíodo enumera três
gerações de deuses: a de Céu, a de Cro­
nos e a de Zeus. A interpolaçào dos
episódios de Prometeu e de Pandora na
seqüência da Teogonia — episódios de­
pois retomados em Os Trabalhos e os
Dias — serve a Hesíodo para justificar
a condição humana: Prometeu rouba o
fogo de Zeus para dá-lo aos homens e
atrai para si e para os mortais a ira do
suserano do Olimpo. Zeus condena
Prometeu à tortura de ter o figado
permanentemente devorado por uma
águia. Aos mortais Zeus reserva não
menor castigo: determina a criação de
um ser à imagem das deusas imortais e
entrega-o, como presente de todos os
habitantes do Olimpo, a Epimeteu,
irmão de Prometeu. Pandora — a mu­
lher — leva em suas mãos uma jarra
que, destampada, deixa escapar e
espalhar-se entre os mortais todos os
males. Na jarra, prisioneira, fica ape­
nas a esperança. As duras condições de
trabalho de sua gente sugerem assim a
Hesíodo uma visão pessimista da
humanidade, perseguida pela animosi­
dade dos deuses. E a mulher deixa de

XV
OS PENSADORES

Zeus, sereno e impassível suserano âo


Olimpo, impõe ordem às forças antagônicas
representadas pelas várias divindades,
prenunciando o advento da razão filosófica
e da lei científica de equilíbrio universal.
(Abaixo, detalhes de vasos do séc. Va.C.:
“Luta entre Hércules e Apoio” e “Rapto de
Europa”. Pág. ao lado: Zeus no trono,
bronze do séc. VI a. C.; Museu de Atenas.)

ser exaltada, como na visão aristo­


crática de Homero, para ser caracteri­
zada por esse camponês como mais
uma boca a alimentar e à exigir sacrifí­
cios: “Raça maldita de mulheres, terrí­
vel flagelo instalado no meio dos ho­
mens mortais”.
O mesmo pessimismo transparece no
mito das idades ou das raças, de Os
Trabalhos e os Dias. A história é aí
vista como a perda, de uma idade pri­
meira, a da raça de ouro, que teria vi­
vido livre de cuidados e sofrimentos.
Essa primeira raça foi transformada
nos gênios bons, guardiães dos mor­
tais. Depois surge uma raça inferior,
de prata, cujos indivíduos vivem uma
longa infância de cem anos, mas, cres­
cendo, entregam-se a excessos e recu­
sam-se “a oferecer culto aos Imortais”.

XVI
DO MITO À FILOSOFIA

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XVII
OS PENSADORES

Por isso, “quando o solo os recobriu”, seu amigo, nem o irmão a seu irmão”.
foram transformados em gênios infe­ Do mesmo modo que o mito de Pro­
riores, os chamados bem-aventurados. meteu ilustra a idéia de trabalho, o
Zeus cria então uma “terceira raça de mito das idades ilustra a idéia de justi­
homens perecíveis, raça de bronze, ça: nenhum homem pode furtar-se à lei
bem diferente da raça de prata”. Vio­ do trabalho, assim como nenhuma raça
lentos e fortes, munidos de armas de pode evitar a justiça. Na verdade, esses
bronze, os indivíduos dessa raça aca­ dois temas são complementares, se­
baram sucumbindo nas mãos uns dos gundo Hesíodo: o homem da idade de
outros e transportados para o Hades, ferro está movido pelo instinto de luta
“sem deixar nome sobre a terra”. Em (eris); se a luta se transforma em tra­
seguida, surge a raça dos heróis, que balho, torna-se emulação fecunda,
combateram em Tebas e Tróia; para justa e feliz; se, ao contrário, manifes-
eles Zeus reservou uma morada na Ilha ta-se através da violência, acaba sendo
dos Bem-Aventurados, onde vivem feli­ a perdição do próprio homem. Esse
zes, distantes dos mortais. Finalmente tipo de admoestação que Hesíodo
advêm o duro tempo da raça de ferro — lança a seu irmão Perses inaugura, de­
o tempo do próprio Hesíodo, tempo de pois da ética aristocrática e cavalhei­
incessantes fadigas, misérias e angús­ resca de Homero, a outra grande cor­
tias, mas quando “ainda alguns bens rente de pensamento moral que irá
estão misturados aos males”. A essa alimentar, mais tarde, a meditação
raça aguardam dias terríveis: “O pai filosófica. Com Hesíodo surge a noção
não mais se assemelhará ao filho, nem de que a virtude (areté) é filha do esfor­
o filho ao pai; o hóspede não será mais ço e a de que o trabalho é o fundamento
caro ao seu hospedeiro, nem o amigo a e a salvaguarda da justiça.

BIBLIOGRAFIA
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XVIII
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO - DO MITO À FILOSOFIA


CAP. 1 - PRÉ-SOCRÂTICOS ...............................................................5
CAP. 2 - SÓCRATES ........................................................................... 25
CAP. 3 - PLATÃO ......................................... 45
CAP. 4 - ARISTÓTELES .............................................................. ...65
CAP. 5 - EPICURO ............................................................. .85
CAP. 6 - CÍCERO, SÊNECA e MARCO AURÉLIO ...................... 95
CAP. 7 - S. AGOSTINHO .................................................................105
CAP. 8 - STO. ANSELMO ............................................................... 125
CAP. 9 - ABELARDO ...... ......... 135
CAP. 10 - STO. TOMÁS ..................................................................... 145
CAP. 11 — DANTE ............................................................................... 155
CAP. 12 - DUNS SCOT e OCKHAM ................................................ 159
CAP.13- MAQUIAVEL ..................................................................... 165
CAP. 14 - ERASMO ............................................................................ 185
CAP. 15 - THOMASMORE .............................................................. 199
CAP. 16 - MONTAIGNE ... ............................................................ 205
’ CAP. 17 - BRUNO ...............................................................................225
CAP. 18 - GALILEU ........................................... ;............................... 235
CAP. 19 - CAMPANELLA ..................................................................241
CAP. 20 - BACON ................................................................................ 245
OS PENSADORES

resultado das invasões dóricas, a àquele, o processo que teria produzido o

O partir do século XII a.C., é a


ruína dos reinos micênicos, com
universo atual e dentro dele continuaria
a operar mudanças?
sua estrutura de base agrária, patriarcalNatural, portanto, que ocorressem nas
e gentílica. Fugindo aos invasores e ten­ colônias gregas da Ásia Menor as pri­
tando salvaguardar suas tradições, mui­ meiras manifestações de um pensamento
tos aqueus são forçados a emigrar para dotado de tamanha exigência de com­
as ilhas e as costas da Ásia Menor. Aí os preensão racional que, depois de produ­
jônios fundarão cidades, como Mileto e zir as epopéias homéricas (entre o sécu­
Éfeso, que se transformarão em grandes lo X e o VIII a.C.), eclodiu, no século VI
centros econômicos e culturais. Às prin­ a.C., sob a forma de ciência teórica e
cipais atividades econômicas das colô­ filosofia. É bem verdade que, já no sécu­
nias gregas da Ásia Menor tornam-se, lo VIII a.C., Hesíodo expusera em suas
por íorca mesma da sua localização obras poéticas uma síntese dc relatos
geográfica, a navegação, o comércio e o míticos tradicionais, vinculando-os pelo
artesanato. E, enquanto se intensificam nexo causai das genealogias que liga­
as relações com outros povos, cada vez vam deuses e mortais. Mas, a partir do
mais distantes vão ficando as velhas tra­ século VI a.C., esse tipo de construção
dições remanescentes da sociedade mi- cedeu lugar a uma nova e mais radical
cênica. A acelerada dinâmica social das forma de pensamento racional, que não
polis jônicas corrói as antigas institui­ partia da tradição mítica, mas de reali­
ções e os valores arcaicos, fazendo emer­ dades apreendidas na experiência huma­
gir uma nova mentalidade, fruto da valo­ na cotidiana. Fruto da progressiva valo­
rização das individualidades que se rização da "medida humana” e da
afirmam nas circunstâncias e iniciativas laicização da cultura efetuada pelos gre­
presentes. gos, despontou, nas colônias da Ásia
Durante o século VII a.C., as novas Menor, uma ’ nova mentalidade, que
condições de vida das colônias gregas da coordenou racionalmente os dados da
Ásia Menor acentuam-se devido à revo­ experiência sensível, buscando integrá-
lução econômica representada pela ado­ los numa visão compreensiva e globali-
ção do regime monetário. A moeda, faci­ zadora. Dentro desse espírito surgiram,
litando as trocas, vem fortalecer na Jônia, as primeiras concepções cientí­
econômica e socialmente aqueles que ficas e filosóficas da cultura ocidental,
vivem do comércio, da navegação e do propostas pela escola de Mileto.
artesanato, marcando definitivamente a
decadência da organização social basea­ A água, o ilimitado, o ar
da na aristocracia de sangue. A partir de infinito
então e sobretudo no decorrer do século
VI a.C., a expansão das técnicas — já Procurando reduzir a multiplicidade
desvinculadas da primitiva concepção percebida à unidade exigida pela razão,
que lhes atribuía origem divina — passa os pensadores de Mileto propuseram
a oferecer ao homem imagens explica­ sucessivas versões de uma fisica e de
tivas dotadas de alta dose de racionali­ uma cosmologia constituídas em termos
dade, conduzindo à progressiva rejeição qualitativos: as qualidades sensíveis
e à substituição da visão mítica da reali­ (como “frio”, “quente”, “leve”, “pesa­
dade. A técnica que o homem consegue do”) eram entendidas como realidades
compreender e dominar a ponto de reali­ em si (“o frio”, “o quente”, etc). O uni­
zá-la com suas próprias mãos, repeti-la verso apresentava-se, para os milesia-
e sobretudo ensiná-la apresenta-se nos, como um conjunto ou um “campo”
como um processo de transformação e de no qual se contrapunham pares de opos­
criação. Por que não seria semelhante tos (frio-quente, pesado-leve, etc.).
Segundo uma tradição, que remonta
aos próprios gregos antigos, o primeiro
Na página anterior: a deusa Atena, filósofo teria sido Tales de Mileto. As
detalhe de ànfora ática do século datas a respeito de sua vida são incertas,
V a.C. (M. Kleinkunst, Munique.) sabendo-se, porém, com segurança que

6
PRÉ-SOCRÂTICOS

ele viveu no período compreendido entre


o final do século VII e meados do século
VI a.C. Famoso como matemático, al­
guns historiadores consideram, todavia,
que sua colocação pelos antigos entre os
"sete sábios da Grécia” deveu-se princi­
palmente à sua atuação política: teria
tentado, unir as polis gregas da Ásia
Menor numa confederação, no intuito de
fortalecer o mundo helênico diante das
ameaças de invasões de povos orientais.
Para a história da filosofia, a impor­
tância de Tales advém sobretudo de ter
afirmado que a água era a origem de
todas as coisas. A água seria a physis,
que, no vocabulário da época, abrangia
tanto a acepção de “fonte originária”
quanto a de “processo de surgimento e
de desenvolvimento”, correspondendo
perfeitamente a “gênese”. Segundo a
“Todas as coisas são números. ” Essa interpretação que dará Aristóteles sécu­
máxima atribuída a Pitágorasássinala los mais tarde, teria tido início com
o início da especulação filosófica Tales a explicação do universo através
baseada na matemática. (Pitágoras, da “causa material”. Historiadores mo­
busto em pedra, Museu Britânico.) dernos, porém, rejeitam essa interpreta­
ção, que “aristoteliza” Tales, atribuin­
do-lhe preocupação, de cunho metafísico.
Assim, há quem afirme (Paul Tannery)
que Tales foi importante apenas como
introdutor na Grécia de noções da mate­
mática oriental, que ele mesmo desen­
volveu e aperfeiçoou, e de mitos cosmo-
gônicos, particularmente egípcios, que
laicizou, dando-lhes sustentação racio­
nal. Noutra interpretação (Olof Gigon),
“o surgir da água” significaria um pro­
cesso geológico, sem acepção metafí­
sica: tudo estaria originariamente enco­
berto pela água; sua evaporação
permitiu que as coisas aparecessem. Por
outro lado, alguns intérpretes conside­
ram que outra sentença atribuída a Tales
— “tudo está cheio de deuses” — repre­
senta não um retorno a concepções míti­
cas, mas simplesmente a idéia de que o
universo é dotado de animação, de que a
matéria é viva (“hilozoísmo”).
Um dos aspectos fundamentais da
mentalidade científico-filosófica inaugu­
rada por Tales consistia na possibili­
dade de reformulação e correção das
Opitagorismofez da matemática a via teses propostas. À estabilidade dos
de salvação aa alma, a reconduzi-la mitos arcaicos e à estagnação das espar­
das trevas terrenas às estrelas. sas e assistemáticas conquistas da ciên­
(Prosérpina e Plutão, obra do séc. cia orientaíl, os gregos, a partir de Tales,
Va.C., M. Nacional, Reggio Calabria.) propõem uma nova visão-de-mundo cuja

7
OS PENSADORES

base racional fica evidenciada na medi­ veram as opiniões dos primeiros filóso­
da mesma em que ela é capaz de progre­ fos — atribuem a doutrina da constitui­
dir, ser repensada e substituída. Assim é ção, a partir da arché única, de
que, já nos meados do século VI a.C., a inumeráveis mundos, gerados de manei­
cnefia da escola de Mileto passa a ra sucessiva e/ou simultaneamente.
Anaximandro. Introdutor na Grécia e
aperfeiçoador do relógio de sol (qno- A salvação pela matemática
mon), de origem babilônica, foi também
o primeiro a traçar um mapa geográfico. Durante o século VI a.C. verificou-se,
Para Anaximandro, o universo teria em certas regiões do mundo grego, uma
resultado das modificações ocorridas revivescência da vida religiosa, para a
num princípio originário ou arché. Esse qual contribuiu, inclusive, a linha polí­
princípio seria o ápeiron, que se pode tica adotada em geral pelos tiranos:
traduzir por infinito e/ou ilimitado. para enfraquecer a antiga aristocracia,
Desde a Antiguidade, discute-se se o que se supunha descendente dos deuses
ápeiron pode ser interpretado como infi- protetores das polis, das divindades
nitude espacial, como indeterminação “oficiais”, os tiranos favoreciam a ex­
qualitativa, ou se envolve os dois aspec­ pansão de cultos populares ou estrangei­
tos. Certo é que, para Anaximandro, o ros. Dentre as religiões de mistérios, de
ápeiron estaria animado por um movi­ caráter iniciático, uma teve então enor­
mento eterno, que ocasionaria a separa­ me difusão: o culto de Dioniso, origi­
ção dos pares de opostos. No único frag­ nário da Tráciã, e que passou a consti­
mento que restou de sua obra, tuir o núcleo da religiosidade órfica. O
Anaximandro afirma que, ao longo do orfismo — de Orfeu, que primeiro teria
tempo, os opostos pagam entre si as recebido a revelação de certos mistérios
injustiças reciprocamente cometidas. e que os teria confiado a iniciados, sob a
Para alguns intérpretes isso significaria forma de poemas musicais — era ujnã
a afirmação da lei do equilíbrio univer­ religião eSsencialmente esotérica. Os ór-
sal, garantida através do processo de ficos acreditavam na imortalidade da
compensação dos excessos (p. ex., no alma e na metempsicose, ou seja, a
inverno, o frio seria compensado dos transmigração da alma através de vários
excessos cometidos pelo calor durante o corpos, a fim de efetivar sua purificação.
verão). A alma aspiraria, por sua própria natu­
O último representante da escola reza, a retornar à sua pátria celeste, às
milesiana foi Anaxímenes. Para ele, o estrelas; mas, para se libertar do ciclo
universo resultaria das transformações das reincarnações, o homem necessitava
de um ar infinito (pneuma ápeiron). da ajuda de Dioniso, deus libertador que
Aproveitando — segundo Farrington — a completava a libertação preparada pelas
sugestão oferecida pela técnica de fabri­ práticas catárticas.
cação de feltro (produzido por aglutina­ Pitágoras de Samos, que se tornou fi­
ção de materiais dispersos), em grande gura legendária já na própria Antigui­
expansão na Mileto de sua época, Anaxí­ dade, realizou uma modificação funda­
menes afirmava que todas as coisas se­ mental na doutrina órfica,
riam prouzidas através do duplo pro­ transformando o sentido da “via de
cesso mecânico de rarefação e salvação”: em lugar de Dioniso colocou
condensação do ar infinito. O pensa­ a matemática. Da vida de Pitágoras
mento milesiano adquiria, assim, consis­ quase nada pode ser afirmado com certe­
tência, pois, além de se identificar qual a za, já que ela foi objeto de uma série de
physis, mostrava-se um processo capaz relatos fantasiosos, como os referentes
de tornar compreensível a passagem da às suas viagens e a seus contatos com
unidade primordial à multiplicidade de culturas orientais. Parece certo, contu­
coisas diferenciadas que constituem o do, que ele teria deixado Samos (na
universo. Jônia), na segunda metade do século VI
Como a Anaximandro, também a a.C., fugindo à tirania de Polícrates.
Anaxímenes os doxógrafos — escritores Transferindo-se para Crotona, lá fundou
antigos que recolheram ou transcre­ uma confraria científico-religiosa. Criou

8
PRÉ-SOCRÁTICOS

A filosofia eleáticafoi a mais radical expressão do racionalismo antigo.


Em seu poema, Parmênides de Eléia proclama o primado absoluto da razão,
que impõe a existência do ser único, imóvel, contínuo, homogêneo e eterno.
Os sentidos levariam apenas a opiniões relativas e mutáveis; somente a razão
era a via segura que permitia desvelar a verdade. (Eléia: Porta Rosa.)
um sistema global de doutrinas, cuja processo de libertação da alma num
finalidade era a de descobrir a harmonia esforço inteiramente subjetivo e pura­
que preside à constituição do cosmo e mente humano. A purificação resultaria
traçar, de acordo com ela, as regras da do trabalho intelectual, que descobre a
vida individual e do governo das cida­ estrutura numérica das coisas e torna,
des. Partindo de idéias órficas, o pitago- assim, a alma semelhante ao cosmo, em
rismo pressupunha uma identidade fun­ harmonia, proporção, beleza. Pitágoras
damental, de natureza divina, entre teria chegado à concepção de que todas
todos os seres; essa similitude profunda as coisas são números através, inclusive,
entre os vários existentes era sentida de uma observação no campo musical:
pelo homem sob a forma de um “acordo verifica, no monócórdio, que o som pro­
com a natureza”, que, sobretudo depois duzido varia de acordo com a extensão
do pitagórico Filolaus, será qualificada da corda sonora. Ou seja, descobre que
como uma “harmonia”, garantida pela há uma dependência do som em relação
presença do divino em tudo. Natural à extensão, da música (tão importante
que, dentro de tal concepção, o mal seja como propiciadora de vivências religio­
sempre entendido como desarmonia. sas extáticas) em relação à matemática.
A grande novidade introduzida, certa­ Pitágoras concebe a extensão como
mente pelo próprio Pitágoras, na reli­ descontínua: constituída por unidades
giosidade órfica foi a transformação do indivisíveis e separadas por um “inter-

9
OS PENSADORES

valo”. Segundo a cosmologia pitagórica,


esse “intervalo” seria resultante da
respiração do universo que, vivo, inala­
ria o ar infinito (pneuma ápeiron) em
que estaria imerso. Mínimo de extensão
e mínimo de corpo, as unidades compo­
riam os números. Os números não
seriam, portanto — como virão a ser
mais tarae —, meros símbolos a exprimir
o valor das grandezas: para os pitagóri-
cos, eles são reais, são a própria “alma
das coisas”, são entidades corpóreas
constituídas pelas unidades contíguas.
Assim, quando os pitagóricos falam que
as coisas imitam os números, estariam
entendendo essa imitação (mimesis) num
sentido perfeitamente realista: as coisas
manifestariam externamente a estrutura
numérica que lhes é inerente.
Os pitagóricos adotaram uma repre­
sentação figurada dos números, que per­

M A G N U M PHOTOS
mitia explicitar sua lei de composição.
Os primeiros números, representados
dessa forma, bastavam para justificar o
que há de essencial no universo: o um é o
ponto (.), mínimo de corpo, unidade de
extensão; o dois determina a linha
(. — .); o três gera a superfície Zs,
enquanto o quatro produz o volume :.Ô.
Utilizando uma versão puramente
geométrica do gnomon introduzido na
Grécia por Anaximandro — versão que o
transforma esquematicamente em esqua­
dro —, os pitagóricos investigam as dife­
rentes séries numéricas. E verificam que
o crescimento gnomônico da série dos
números pares determina sempre uma fi­
gura oblonga retangular, enquanto a
série dos ímpares cresce como um qua­
drado, ou seja, como um quadrilátero
que conserva seus lados sempre iguais,
embora aumente de tamanho. Assim, o
número par pode ser visto como a
expressão aritmo-jçeométrica da alteri-
dade, enquanto o impar seria a própria
manifestação básica, na matemática, da
identidade. A partir desses fundamentos
matemáticos, os pitagóricos podem
FABBR1

então conceber todo o universo como um


campo em que se contrapõem o Mesmo e
o Outro. E podem estabelecer, para os
diferentes níveis da realidade, a tabua de Os primeirosfilósofos gregos retomam
opostos, que manifestam aquela oposi­ muitas vezes temas mitológicos como
ção fundamental: 1) finito e infinito, 2) metáforas, recursos de linguagem.
ímpar e par, 3) unidade e multiplici­ (“Ulisses como Arqueiro” e‘Aquiles”,
dade, 4) à direita e à esquerda, 5) macho detalhes de cerâmicas do séc. Va.C.)

10
prê-socrAticos

e fêmea, 6) repouso e movimento, 7) reto políticas). Os pitagóricos se dispersam e


e curvo, 8) luz e obscuridade, 9) bem e Cassam a atuar amplamente no mundo
mal, 10) quadrado e retângulo. Assim, elênico, levando a todos os setores da
categorias biológicas (macho/fêmea), cultura o ideal de salvação do homem e
oposições cosmologicas (à direita/à es­ da polis através da proporção e da
querda — relativas ao movimento dàs medida.
“estrelas fixas” e ao dos “astros erran­
tes”), éticas (bem/mal) etc., seriam, na A unidade do divino
verdade, variações da oposição funda­
mental, que determinaria a própria exis­ As primeiras cosmogonias filosóficas,
tência das unidades numéricas: a oposi­ propostas pelos milesianos.e pelos pita­
ção do limite (péras) e do ilimitado góricos, podem ser vistas como varia­
(ápeiron). ções do monismo corporalista: a diversi­
A primitiva concepção pitagórica de dade das coisas existentes provindo de
número apresentava limitações que logo uma única physis corpórea (seja água,
exigiram dos próprios pitagóricos tenta­ ou ar, ou unidade numérica). Todavia, a
tivas de reformulações. O principal própria divergência entre os pensadores
impasse enfrentado por essa aritmo-geo- — cada qual apontando um tipo de arché
metria baseada em números inteiros (iá e um tipo de processo capaz de transfor­
que as unidades seriam indivisíveis) foi má-la em tantas e tão diferenciadas coi­
a relativa aos irracionais. Tanto na rela­ sas — suscitou a necessidade de se inves­
ção entre certos valores musicais, ex- tigarem os recursos humanos de
Eressos matematicamente, quanto na conhecimento, buscando-se um caminho
ase mesma da matemática surgem de certeza que superasse as opiniões
grandezas inexprimíveis naquela con­ múltiplas e discrepantes. O binômio
cepção de número. Assim, a relação unidade/pluralidade deslocou-se,
entre o lado e a diagonal do quadrado assim, da esfera cosmológica para rea­
(que é a da hipotenusa do triângulo parecer sob a forma de oposição entre
retângulo isósceles com o cateto) torna- verdade única e multiplicidade de opi­
va-se “irracional”: aquelas linhas não niões. Essa encruzilhada do pensamento
apresentam “razão comum”, o que se — que fecundou toda a investigação filo­
evidencia pelo aparecimento, na tradu­ sófica posterior — manifesta-se em He-
ção aritmética da relação entre elas, de ráclito de Êfeso, mas foi sobretudo mar­
valores sem possibilidade de determina­ cada pela escola de Eléia. O eleatismo,
ção exaustiva, comoVíL O “escândalo” segundo a maioria dos historiadores, é
dos irracionais manifestava-se no pró­ que teria inaugurado explicitamente
prio “teorema de Pitágoras” (o qua­ tanto a problemática lógica quanto a
drado construído sobre a hipotenusa é ontológica: as especulações sobre o
igual à soma dos quadrados construídos conhecer e sobre o ser.
sobre os catetos): desde que se atri­ Na Antiguidade, Platão e Aristóteles
buísse valor 1 ao cateto de um triângulo consideravam Parmênides, Zenão e Me-
isósceles, a hipotenusa seria igual a V2? lisso como os representantes do eleatis­
Ou então, quando se pressupunha que os mo. Outros autores antigos situavam
valores correspondentes à hipotenusa e entre os eleatas também Xenófanes e
aos catetos eram números primos entre Górgias, o famoso sofista. Chegou-se
si, acabava-se por se concluir pelo mesmo a considerar Xenófanes como o
absurdo de que um deles não era nem fundador da escola, o que a crítica
par nem ímpar. moderna geralmente rejeita, atribuindo
Apesar desses impasses — e em grande esse papel a Parmênides.
parte por causar deles —, o pensamento Nascido em Colofao, colônia grega da
pitagórico evoluiu e expandiu-se, in­ Âsia Menor, Xenófanes (c. 580-475 a.C.)
fluenciando praticamente todo o desen­ foi para o sul da Itália — então chamada
volvimento cia ciência e da filosofia gre­ Magna Grécia — quando sua terra natal
gas. Em parte a difusão do pitagorismo caiu nas mãos dos medas. À semelhança
deveu-se à própria destruição do núcleo de Pitágoras, levou para essa parte oci­
primitivo de Crotona (talvez por razões dental do mundo helênico os frutos da

11
OS PENSADORES

efervescência intelectual que caracteri­ riam ao desvelamento da verdade (ale-


zava a Jônia, passando a difundir a nova theia) e à certeza, permanecendo no
concepção do universo forjada pelas nível instável das opiniões e das conven­
escolas filosóficas. Durante muito tempo ções de linguagem.
pensou-se que Xenófanes teria escrito Historicamente, o que Parmênides faz
um poema (Sobre a natureza), expondo é extrair do fundo das primeiras cosmo-
idéias filosóficas próprias. Historia­ gonias filosóficas o seu arcabouço lógi­
dores modernos — como Werner Jaeger co, centralizado na noção de unidade. Ao
— recusam essa versão, afirmando que mesmo tempo, tratando essa noção com
em seus poemas Xenófanes teria tão-so­ estrito rigor racional, mostra que ela pa­
mente narrado fatos sobre a invasão dos rece incompatível com a multiplicidade
medas e sobre sua vida pessoal. Além e o movimento percebidos. “O que é”,
disso, teria deixado — e essa seria justa­ sendo “o que é”, terá de ser único: além
mente a parte mais importante de sua do “o que é” apenas poderia existir,
obra — poemas satíricos, os silloi, criti­ diferente dele, “o que não é” — o que
cando, em nome das novas idéias filosó­ ser>a absurdo, pois significaria atribuir
ficas, a mentalidade vulgar, particular­ existência ao não-ser, impensável e indi-
mente quanto à concepção do divino. zível. Pelo mesmo motivo — simples
Apoiado na visão do universo como desdobramento do princípio de identi­
constituído a partir de uma única origem dade o ser tem de ser eterno, imóvel,
(a arché, que os pensadores jônicos já finito, imutável, pleno, contínuo, homo­
qualificavam de “divino”), Xenófanes gêneo e indivisível. A esses atributos
proclama: “Um deus é o supremo entre Parmênides acrescenta o da corporei-
os deuses e os homens; nem em sua dade, exprimindo uma constante na con­
forma, nem em seu pensamento é igual cepção da realidade até esse momento —
aos mortais”. Começava o combate aos e que justamente então começa a entrar
deuses antropomórficos, herdados da em crise.
tradição homérica. Particularmente os caracteres de imu­
tabilidade, imobilidade e unidade con­
O que é — é o que é trariavam frontalmente o depoimento
dos sentidos, que percebem um mundo
Não há segurança quanto às datas de de coisas diversas, móveis e mutáveis. A
nascimento e morte de Parmênides. verdade proclamada pela primeira parte
Sabe-se que viveu no final do século VI e do poema de Parmênides era a manifes­
começo do século V a.C. e que foi legis­ tação de uma razão absoluta, identifi­
lador em sua cidade natal, Eléia. E que cada por isso mesmo com o discurso de
deixou um poema, apresentando suas uma deusa. Contrapunha-se não apenas
idéias filosóficas. ao senso comum, como também a doutri­
O poema de Parmênides divide-se em nas filosóficas correntes na época, como
três partes: o proêmio, rico em metáfo­ o pitagorismo. A recusa de que os senti­
ras, descreve uma experiência de ascese dos pudessem conduzir à verdade e a
e de revelação; a primeira parte apre­ rejeição da legitimidade racional da
senta o conteúdo principal dessa revela­ multiplicidade e do movimento suscita­
ção, mostrando o que seria a “via da ver­ ram críticas ao eleatismo. Aos adversá­
dade”; a segunda parte caracteriza a rios da escola responde Zenão, através
“via da opinião”. A distinção funda­ de argumentos que constituem verda­
mental entre os dois caminhos está em deiras aporias (caminhos sem saída) e
que, no primeiro, o homem se deixa con­ procuram mostrar que as teses dos opo­
duzir apenas pela razão e é então levado sitores do eleatismo, como os pitagóri-
à evidência de que “o que é, é — e não cos, ocultavam contradições internas
pode deixar de ser” (primeira formula­ insuperáveis, além de estarem também
ção explícita do princípio lógico-onto- em desacordo com a experiência sensí­
lógico de identidade). Já na segunda via, vel. Zenão sistematizou o método da
“os mortais de duas cabeças”, pelo fato demonstração “pelo absurdo” e foi
de atentarem para os dados empíricos, considerado por Aristóteles o inventor
as informações dos sentidos, não chega­ da dialética, na sua acepção erística, de

12
PRÉ-SOCRÁTICOS

Partindo de doutrinas religiosas órficas e da "oposição entre corpo e alma,


Pitágoras de Samos investigou a'harmonia musical e o movimento dos astros,
concluindo que em todos os seus setores o cosmo está regido pelo número
e pela lei de proporção: a matemática toma-se paradigma do conhecimento
científico. (Pitágoras, detalhe de “?4 Escola de Atenas”, de Rafael Sanzio.)

13
OS PENSADORES

argumentação combativa que parte das certeza. Nascido em Éfeso, colônia


premissas do próprio adversário e delas grega da Ásia Menor, teria “florescido”
extrai conclusões insustentáveis. (o que, parece, significava para os gre­
Cerca de quarenta anos mais jovem gos atingir o auge de sua produtividade)
3ue seu mestre e conterrâneo Parmêni- por ocasião da 69.a Olimpíada
esr, Zenào teria deixado quarenta argu­ (504/3-501 a.C.). Pertencia à família
mentos, dos quais apenas nove foram real de sua cidade e conta-se que teria
conservados pelos doxógrafos e por renunciado à dignidade de se tomar rei
Aristóteles. Alguns historiadores (A. em favor de seu irmão. A obra que dei­
Rey, J. Zafiropulo) procuraram mostrar xou está constituída por uma série de
que aquela argumentação pode ser dis­ frases isoladas, durante muito tempo
posta em torno de certos problemas consideradas como fragmentos de um
fundamentais: o da grandeza ou o da suposto texto original; posteriormente,
multiplicidade, o do espaço, o do movi­ a crítica filosófica reconheceu qué se
mento, o da percepção sensível. Atrás de tratava, na verdade, de aforismos. Mo­
todas as aporias, contudo, poder-se-ia dernamente, a sequência desses aforis­
surpreender uma questão básica, em mos é apresentada segundo duas nume­
todas elas glosada: a da multiplicidade, rações: ou a inglesa, devida a Bywater,
fonte dos equívocos que o eleatismo, em ou a alemã, de Diels (o que justifica a
nome da razão, denuncia e renega. letra B ou D que aparece comumente
Dos argumentos de Zenão, tornaram- junto ao número do aforismo).
se mais famosos os que visam direta­ A apresentação aforismática de seu
mente ao problema do movimento. Nos pensamento e o estilo intencionalmente
quatro argumentos que restaram sobre o sibilino fazem de Heráclito um dos pen­
tema (o da dicotomia, o da flecha, o de sadores pré-socráticos de mais difícil
Aquiles e a tartaruga e o do estádio), interpretação. Natural, portanto, que a
Zenão mostra que quaisquer que sejam história da filosofia apresente uma
os pressupostos em que se baseie uma sucessão de versões de seu pensamento,
concepção sobre o movimento, sempre se dependentes sempre da perspectiva as­
acaba diante de impasses insuperáveis. sumida pelo próprio intérprete.
Assim, quer se tenha por base uma Para a solução do “problema heraclí-
noção de espaço e tempo como infinita­ tico” dois pontos parecem oferecer bases
mente divisíveis, quer se concebam espa­ mais seguras: a) o confronto das propo­
ço e tempo como divisíveis finitamente sições de Heráclito com seu contexto
(dotados, portanto, de unidades últimas, cultural (o que o próprio filósofo parece
indecomponíveis), sempre a noção de indicar, na medida em que se apresenta
movimento conduzirá a absurdos como o como crítico implacável de idéia e perso­
de Aquiles que jamais alcança em sua nagens de sua época ou da tradição cul­
corrida veloz a lenta tartaruga, ou o da tural grega); b) o estilo de Heráclito, a
flecha que permanece parada em todos revelar um uso peculiar da linguagem.
os pontos de sua trajetória consequen­ Se há aforismos de Heráclito que não
temente impossível. manifestam obscuridade são justamente
os de cunho crítico. Aristocrata, Herá­
O fogo eternamente vivo clito não afirma apenas que “um só é dez
mil para mim, se é o melhor” (D 49),
“Este mundo,, que é o mesmo para como também faz acerbas acusações à
todos, nenhum dos deuses ou dos ho­ mentalidade vulgar desses homenç que
mens o fez; mas foi sempre, é e será um “não sabem o que fazem quando estão
fogo eternamente vivo, que se acende despertos, do mesmo modo que esque­
com medida e se apaga com medida” — cem o (jue fazem durante o sono” (D 1).
nessa frase muitos vêem uma das chaves A religiosidade popular é também ver­
para a decifração do pensamento de gastada: “Os mistérios praticados entre
Heráclito de Éfeso, t[ue já na Antigui­ os homens são mistérios profanos” (D
dade tornou-se conhecido como “o Obs­ 14 b). E explica: “É em vão que eles se
curo”. purificam sujando-se de sangue, como
De sua vida muito pouco se sabe com um homem que tivesse andado na lama e

14
PRÊ-SOCRÁTICOS

quisesse lavar os pés na lama. . (D


68/ 5). Mas nem alguns dos nomes mais
reverenciados na época são poupados:
“O fato de aprender muitas coisas não
instrui a inteligência; do contrário teria
instruído Hesíodo e Pitágoras, do
mesmo modo que Xenófanes e Hecateu”
(D 40). Noutro aforismo Pitágoras é
acusado de possuir uma polimatia (co­
nhecimento de muitas coisas) que não
passava de uma “arte de maldade” (D
129), enquanto Hesíado, “o mestre da
maioria dos homens, os homens pensam
que ele sabia muitas coisas, ele que não
conhecia o dia ou a noite” (D 57). Nem
Homero escapa: “Homero errou em
dizer: ‘Possa a discórdia se extinguir
entre os deuses e os homens!’ Ele não via
que suplicava pela destruição do univer­
so; porque, se sua prece fosse atendida,
todas as coisas pereceríam. ..”(D12a22).
Em meio a tantas criticas, Heráclito
abre, entretanto, uma exceção: para a
Sibila, “que com seus lábios delirantes
diz coisas sem alegria, sem ornatos e
sem perfume”, mas que “atinge com sua
voz para além de mil anos, graças ao
deus que está nela” (D 92). Percebe-se,
dessa maneira, que a adoção do estilo
oracular é intencional em Heráclito, que
nele encontra a via adequada — indireta,
sugestiva — para comunicar seu pensa­
mento: “O mestre a que pertence o orá­
culo de Delfos não exprime nem oculta
seu pensamento, mas o faz ver através
de um sinal” (D 93). O exemplo do deus
de Delfos e da Sibila parece mostrar a
Heráclito a diferença que separa as
palavras do pensamento (logos), a
mesma que distancia a inteligência pri­
vada — o “sono” em que esta imersa a
mentalidade vulgar — da inteligência
comum, a “vigília” daquele que se eleva
acima dos muitos conhecimentos e reco­
nhece “que todas as coisas são Um” (D
50).

A unidade dos opostos


O que diz o Logos, do qual Heráclito
se faz o anunciador e em nome do qual
“A harmonia oculta vale mais que condena o torpor da multidão ou a poli­
a harmonia aparente”, proclamava matia dos supostos sábios, é isto: a uni­
Heráclito de Éfeso. (Heráclito, num dade fundamental de todas as coisas.
detalhe de “A Escola de Atenas”, de Essa é “a natureza que gosta de se ocul­
Rafael; Palácio do Vaticano, Roma.) tar” (D 123). Mas a noção de unidade

15
OS PENSADORES

Empédocles de Agrigento concebeu a constituição do universo atual a partir


de quatro raízes — a água, o ar, a terra e o fogo —, movidas pelas ações
contrárias de Philia (Amor) e Neikos (Ódio). Como a polis democrática ,
também o cosmo seria governado pelo princípio de isonomia, a igualdade
perante a lei. (“Empédocles”, de Signorelli; Catedral de Orvieto.)

fundamental, subjacente à multipli­ forma da unidade, ou melhor, a própria


cidade aparente, já estava expressa pelo unidade. Daí a insuficiência do uso cor­
menos desde Anaximandro de Mileto. A rente das palavras: somente o logos
novidade trazida por Heráciito — e que (razão-discurso) do filósofo consegue
lhe permite julgar tào duramente seus apreender e formular — não ao ouvido
antecessores e contemporâneos — está, mas ao espírito, não diretamente mas
na verdade, em considerar aquela unida­ por via de sugestões sibilinas — aquela
de como uma unidade de tensões opos­ simultaneidade do múltiplo (mostrado
tas. Esta teria sido sua grande desco­ pelos sentidos) e da unidade funda­
berta: existe uma harmonia oculta das mental (descortinada pela inteligência
forças opostas, “como a do arco e da desperta, em “■vigília”).
lira'” (D 51). A Razão (Logos) consis­ Proclama Heráciito: “É sábio escutar
tiría precisamente na unidade profunda não a mim, mas a meu discurso (logos),
que as oposiçôes aparentes ocultam e e confessar que todas as coisas são Um”
sugerem: os contrários, em todos os ní­ (D 50). O Logos seria a unidade nas
veis da realidade, seriam aspectos ine­ mudanças e nas tensões, a reger todos os
rentes a essa unidade. Não se trata, pois, planos da realidade: o fisico, o bioló­
de opor o Um ao Múltiplo, como Xenófa- gico, o psicológico, o político, o moral.
nes e o eleatismo: o Um penetra o Múlti­ E a unidade nas transformações: “Deus
plo e a multiplicidade é apenas uma é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz.

16
PRÉ-SOCRÁTICOS

superabundância-fome; mas ele assume Razão universal e, por isso, impõe medi­
formas variadas, do mesmo modo que o da ao fluxo: “Este mundo (...) foi sem­
fogo, quando misturado a arômatas, é pre, é e será sempre um fogo eterna­
denominado segundo os perfumes de mente vivo, que se acende com medida e
cada uni deles” (D 67). Por isso Homero se apaga com medida” (D 30). A regula­
errara em pedir que cessasse a discórdia ridade e a medida são garantidas pela
entre os deuses e os homens: “O que siinultaneidade dos dois caminhos de
varia está de acordo consigo mesmo” (D transformação que compõem o fluxo
51). A harmonia não é aquela que Pitá­ universal: é ao mesmo tempo que ocorre
goras propunha, de supremacia do Um, a troca do fogo em todas as coisas e de
nem a verdadeira justiça é a que Anaxi­ todas as coisas em fogo, pois “o caminho
mandro havia concebido, ou seja, a para o alto e o caminho para baixo são
extinção dos conflitos e das tensões atra­ um e ò mesmo”. Isso permite então afir­
vés da compensação dos excessos de mar: “ . . .e a metade do mar é terra, a
cada qualidade-substância em relação a metade vento turbilhonante” (D 31).
seu oposto. A justiça não significa Assim, o que garante a tensão intrínseca
apaziguamento; pelo contrário, “o con­ às coisas é aquilo mesmo que as susten­
flito é o pai de todas as coisas: de alguns ta: a medida imposta pelo Logos, essa
faz homens; de alguns, escravos; de “harmonia oculta” que “vale mais que
alguns, homens livres” (D 53). Mas ver harmonia aberta” (D 54).
a realidade como fundamentalmente A consciência da fugacidade das coi­
uma tensão de opostos não significa sas gera uma nota cfe pessimismo que
necessariamente optar pela guerra, no atravessa o pensamento de Heráclito:
plano político; “guerra”, neste último “O homem é acendido e apagado como
sentido, é apenas um dos pólos de uma uma luz no meio da noite” (D 26). Mas o
tensão permanente (“Deus é dia-noite, pessimismo advém, sobretudo, de reco­
inverno-verão, guerra-paz . . .”). E essa nhecer o torpor em que vive a maioria
tensão, que constitui a verdadeira har­ dos homens, ignorantes da lei universal
monia, necessita, para perdurar, de que tudo rege. Por isso, o discurso
ambos os opostos. (logos) do filósofo, embora pretendendo
Numa série de aforismos, Heráclito ser a manifestação da Razão universal
enfatiza o caráter mutável da realidade, (Logos), exprime-se como um solitário
repetindo uma tese que já surgira nos mono-logos, acima dos homens comuns,
mitos arcaicos e, com dimensão filosó­ “esses loucos que quando ouvem são
fica, desde os milesianos. Mas em Herá­ como surdos” (D 34).
clito a noção de fluxo universal torna-se
um mote insistentemente glosado: “Tu As quatro raízes
não podes descer duas vezes no mesmo
rio, porque novas águas correm sempre O eleatismo e, em particular, as apo­
sobre ti” (D 12). O império do Logos em rias de Zenão de Eléia tinham mostrado
sua feição física aparece então como as as consequências extremas a que condu­
transformações do fogo, que são “em zia o monismo corporalista. Revalorizar
primeiro lugar, mar; e a metade do mar a multiplicidade e o movimento, recusa­
é terra e a outra metade vento turbilho- dos pela razão eleática, exigia o aban­
nante” (D 31 a). O Logos-Fogo exerce dono de uma das duas premissas sobre
uma função de racionalização nas trocas as quais vinham se construindo as dife­
substanciais análoga à que a moeda rentes cosmogonias filosóficas: ou o
vinha desempenhando na Grécia, desde o monismo ou o corporalismo. E como não
século VII: “Todas as coisas são troca­ havia ainda possibilidade, naquele mo­
das em fogo e o fogo se troca em todas as mento da cultura grega, de se defender a
coisas, como as mercadorias se trocam tese da incorporeidade, a solução para o
por ouro e o ouro é trocado por mercado­ impasse levantado pelo eleatismo teve
rias” (D 90). Todavia, as transforma­ de provir da substituição do monismo
ções que integram o fluxo universal não pelo pluralismo. Ao mesmo tempo, a
significam desgoverno e desordem; pelo instauração do regime democrático em
contrário, o Logos-Fogo é também algumas polis gregas — ou a luta pela

17
OS PENSADORES

sua instauração — oferecia novas suges­ tidos. Desaparece a monarquia da


tões ao pensamento filosófico: ao uni- razão, o conhecimento se democratiza:
yerso também poder-se-ia aplicar o prin­ todos os recursos de apreensão da reali­
cípio legalizador da multiplicidade dade são igualmente legítimos e devem
política, a isonomia, ou igualdade pe­ ter sua parte na constituição da verdade.
rante a lei. Concebido à imagem da polis Aconselha Empédocles: “Examina de
democrática, o cosmo pode então ser todos os modos possíveis de que maneira
explicado como o jogo regulado de cada coisa se toma evidente. Nào atri­
“iguais”: as quatro raizes de Empédo- buas mais crença a tua vista do que a teu
cles, o múltiplo contido que racionaliza ouvido, a teu ouvido que ressoa mais do
e explica a multiplicidade inumerável que às claras indicações de tua língua.
das coisas móveis percebidas. Não recuses a teus outros membros a tua
Já na Antiguidade a vida de Empédo- confiança, na medida em què eles apre­
cles suscitou relatos diversos e, à seme­ sentam ainda um meio de conhecer; mas
lhança da de Pitágoras, foi envolvida toma . conhecimento de cada coisa da
numa atmosfera de lendas. O que se sabe maneira que a toma clara”. Resultado
de mais seguro provém de Diógenes dessa democratização do processo gno-
Laércio (século III d.C.), que afirma ter siológico é também a natureza do logos
Empédocles nascido em Agrigento, na de Empédocles: não mais o solitário e
Magna Grécia, em aproximadamente pessimista discurso heraclítico, mas dis­
490 a.C., e vivido cerca de sessenta curso dirigido a um ouvinte, a uma outra
anos. Mas a tradição conservou também consciência: “Escuta, pois, Pausâ-
notícia de suas convicções democráticas nias ...” — assim começa o poema Sobre
e fala de sua intensa participação na a Natureza. Abre-se o caminho para o
vida política de Agrigento. socrático diálogo, filho posterior da
Em dois poemas, Empédocles expôs democracia.
seu pensamento: em Sobre a Natureza e A conciliação entre razão e sentidos,
nas Purificações. O primeiro apresenta proposta por Empédocles, conduz à
uma visão do processo cosmogônico que substituição do monismo corporalista
constitui um desenvolvimento, e uma pelo pluralismo: o universo pode ser
modificação da linha de investigação entendido então como o resultado de
iniciada pelos milesianos; o segundo é quatro raízes — a água, o ar, a terra, o
um poema religioso, contendo uma das fogo. Essas raízes estão governadas pela
primeiras exposições da doutrina órfi- isonomia: são “iguais”, nenhuma é mais
co-pitagórica. importante, nenhuma mais primitiva,
O poema Sobre a Natureza exprime todas são eternas e imutáveis. Nem há
uma nova cqncepção de verdade e de mudança substancial: as raízes perma­
razão. O eleatismo havia identificado a necem idênticas a si mesmas. A diversi­
via da verdade com o uso exclusivo da dade das coisas delas resultantes advém
razão, que, apresentada como deusa de sua mistura em diferentes propor­
soberana e absoluta no poema de Parmê­ ções. Proclama Empédocles: “Não há
nides, afirmava a unidade do ser, e, nascimento para nenhuma das coisas
consequentemente, negava a legitimi­ mortais; não há fim pela morte funesta;
dade racional da multiplicidade e do há somente mistura e dissociação dos
movimento. componentes da mistura. Nascimento é
Empédocles altera essa concepção de apenas um nome dado a esse fato pelos
verdade, declarando em seu poema que homens”.
pretende apresentar “apenas o que pode
alcançar a compreensão de um mortal”. O Amor e o Ódio
Para ele, a aletheia não é mais a revela­
ção de uma verdade absoluta, porém Por exigência da razão, as raízes são
uma verdade proporcional à “medida concebidas por Empédocles como imó­
humana”. Isso significa que a evidência veis; mas, por exigência dos sentidos, o
procurada não é a do intelecto puro: é a movimento percebido no universo não
exigência de clareza racional, porém pode ser tido como mera ilusão. Para
aplicada aos dados fornecidos pelos sen­ resolver esse impasse gerado pelo elear

18
PRÊ-SOCRÂTICOS

FAB B RI
^4 Magna Grécia (sul da Itália e Sicília) foi um dos primeirosfocos de
irradiação do pensamentofilosófico antigo. De Eléia eram Parmênides e Zenão,
que defenderam a unidade do ser. De Agrigento era Empédocles, que propôs
a solução pluralista: a multiplicidade inumerável percebida como resultante
da multiplicidade contida pela razão. (Agrigento: templo de Juno Lacínia.)

tismo e conciliar democraticamente as uma perene tensão entre oUmeo Múlti­


duas exigências, concedendo a cada qual plo. Da alternância da supremacia ora
uma satisfação (limitada) de suas reivin­ do Amor, ora do Ódio, surgem as quatro
dicações, Empédocles apela para mais fases que Empédocles descreve em Sobre
dois princípios cosmogônicos: o Amor a Natureza: a primeira, pleno domínio
(Phiha) e o Ódio (Neikos). O primeiro do Amor, determina a existência de um
age como força de atração entre os todo homogêneo e contínuo, à seme­
dissemelhantes (as raízes), enquanto o lhança do ser de Parmênides, e formado
ódio exerce açào contrária, afasta as pela completa fusão das raízes; na
raízes. Empédocles estabelece paridade segunda, devido à atuação crescente do
entre Amor e ódio e as quatro raízes: Ódio, as raízes, já em parte distancia­
são também corpóreos (são “fluidos-for- das, constituem um todo onde se defron­
ças”) e têm a mesma “ idade” das raízes tam forças antagônicas e equivalentes; a
(o que exclui qualquer preeminência por terceira fase é a do domínio pleno do
anterioridade). O princípio de igualda­ Ódio, que estabelece quatro províncias
de, regendo a atuação do Amor e do perfeitamente distintas — a da água, a
ódio, resulta num processo cíclico, que do ar, a da terra e a do fogo; na quarta
oscila entre um estado de máxima jun­ fase o Amor vai reconquistando a supre­
ção (obra do Amor) e de máxima separa­ macia que perdera e o conjunto volta a
ção das raízes (obra do ódio). O pro­ ser uma unidade em tensão (como a con­
cesso cosmogônico repete-se cebida por Heráciito).
indefinidamente e representa, assim, Do ponto de vista estritamente físico,

19
OS PENSADORES

a concepção de Empédocles é da maior desenvolvia-se política e socialmente


importância. O principio de isonomia, alicerçada em valores que apenas indire­
que impõe a compensação cíclica das tamente recebem o influxo da novidade
ações de Amor e Ódio, resulta na adoção filosófica nascida nas colônias: Atenas
da doutrina do eterno retorno — doutrina chega à fase democrática sem ter gerado
que contém em si a idéia do equilíbrio um único filósofo. E ainda perseguiu
relativo entre as forças do universo e a aquele que primeiro para lá se transfere:
da conservação perfeita de sua energia. Anaxágoras.
Além disso, a formação do universo Nascido em Clazômena, aproximada­
atual como resultado da progressiva mente em 500-496 a.C., Anaxágoras
separação das raízes leva Empédocles a levou para Atenas as idéias novas que
formular uma concepção evolucionista, estavam sendo produzidas na Jônia. Em
na qual já aparece a noção de “sobrevi­ Atenas torno.u-se amigo do grande líder
vência dos mais aptos”. político Péricles, mas nem essa amizade
A constituição do universo sendo toda livrou-o do processo que acabou por for­
ela regida pelo princípio de isonomia, çá-lo a abandonar a cidade. Aos olhos
também o organismo humano estaria dos atenienses, a novidade filosófica
sustentado pelo equilíbrio entre os opos­ pareceu um escândalo e uma impiedade.
tos. Nesse ponto, Empédocles teria Historicamente começa com Anaxá­
seguido a linha médica de Alcméon de goras o processo que Atenas moveu con­
Crotona, pitagórico, que explicava o tra a filosofia e que concluirá, mais
organismo humano à semelhança de um tarde, com a condenação à morte de
Estado no qual a isonomia das forças em Sócrates.
oposição correspondería à saúde, en­ Reformulando a linha de pensamento
quanto a doença seria devida à prepon­ jônico, Anaxágoras escreveu, em prosa,
derância monárquica de um dos elemen­ uma obra que tentava, como já o fizera
tos que integram o corpo. Mas Empédocles, conciliar a doutrina eleá-
Empédocles vai além: para ele a igual­ tica de uma substância corpórea imutá­
dade democrática era o princípio que vel com a existência de um mundo que
dirigia todo o cosmo, desde sua gênese. apresenta a aparência do nascimento e
Por isso, o principal papel do filósofo da destruição. Para isso, logo nos pri­
seria o de lutar por democratizar a meiros fragmentos que restaram de seu
polis, integrando-a na lei universal. livro (segundo a ordenação dada por
Relatos fantasiosos apresentam dife­ Diels), Anaxágoras introduz a noção do
rentes versões sobre a morte de Empédo­ infinitamente pequeno: “Todas as coisas
cles. Um deles diz que o filósofo ter-se- estavam juntas, infinitas ao mesmo
ia lançado à cratera do vulcão Etna. tempo em número e em pequenez, por­
Mais provável, porém, é que, por moti­ que o pequeno era também infinito”.
vos políticos, tenha sido banido de sua Essa idéia, contrária à concepção da
cidade, indo acabar seus dias no Pelopo- extensão no pitagorismo primitivo (que
neso. admitia a extensão como composta de
unidades indivisíveis), torna-se funda­
Em tudo uma porção de tudo mental na cosmogonia e na cosmologia
de Anaxágoras. A tese de que “em cada
Fruto de uma ousadia intelectual que coisa existe uma porção de cada coisa”
para existir requeria a libertação do (frag. 11) sustenta-se na divisibilidade
jugo da tradição — para negá-la ou infinita.
remterpretá-la racionalmente —, a filo­ O universo atual constitui-se, segundo
sofia despontara, na Grécia, primeiro Anaxágoras, a partir de um todo origi­
nas regiões periféricas, na Jônia ou na nário no qual todas as coisas estavam
Magna Grécia, nessas fronteiras políti­ juntas e “nenhuma delas podia ser
cas e culturais que separavam o mundo distinguida por causa de sua pequenez”.
helênico de outros povos e outras tradi­ O movimento e a diferenciação só sur­
ções. Ali, em polis mais recentes e dinâ­ gem nesse conjunto aparentemente ho­
micas questiona-se a mentalidade arcai­ mogêneo devido à interferência do Espí­
ca. Enquanto isso, a península grega rito (Nous). Mas, na verdade, o Nous- é

20
PRÊ-SOCRÂTICOS

Interpretações superficiais de ambos os filósofos geraram a tradição que opõe


um Heráclitopessimista e lamuriento ao galhojeiro e hedonista Demócrito.
Na verdade, o pessimismo de Heráclito resultava de sua visão de homens
imersos no torpor da consciência individual e ignorantes da Razão universal.
(‘'‘'Heráclito e Demócrito”, de Donato Bramante; Pinacoteca de Brera, Milão.)

uma corporeidade sutil e sua ação é de animais e vegetais, o homem se destaca


natureza mecânica: move e separa os como o mais sábio. Mas sua forma de
opostos (frio-quente, pesado-leve, etc.) conhecer não pode depender do Nous,
que inicialmente estavam juntos. Devido que, sempre idêntico a si mesmo, é o
a essa ação é que surgem os seres mesmo em todos os seres animados. A
diferenciados. Eosição de Anaxágoras diante do pro-
A ação do Nous decorre de uma carac­ lema do conhecimento revela então
terística que lhe é peculiar: a imiscibili- grande originalidade: os graus de inteli­
dade, que lhe garante a pureza. Afirma gência manifestados pelos seres anima­
Anaxágoras: “Em todas as coisas há dos dependem não do Nous presente
uma porção do Nous e há ainda certas neles, mas da estrutura do corpo a que o
coisas nas quais o Nous está também” Nous está ligado sem se misturar.
(11 D). Sobre uma matéria divisível ao Segundo o depoimento de Aristóteles,
infinito, o Nous exerce apenas uma fun­ Anaxágoras teria afirmado que “o
ção motora inicial (o que será criticado homem pensa porque tem mãos”, tese
pelo Sócrates do Fédon de Platão), pro­ que mais tarde será combatida (como
duzindo na mistura original composta pelo próprio Aristóteles), quando se
por todas as coisas juntas um movi­ intensificar, na sociedade grega, o pre­
mento rotatório, que se expande por conceito contra o trabalho manual,
razões meramente mecânicas e ocasiona geralmente atribuído a escravos.
o surgimento do universo. Todavia, “há z
coisas nas quais o Nous está também” — Átomos, vazio, movimento
o que marcaria a distinção, para Anaxá­
goras, entre seres animados e seres As concepções cosmológica e matemá­
inanimados. Dentre os seres animados, tica do pitagorismo primitivo eram

21
OS PENSADORES

dependentes da noção de número enten­ pequenez); móveis por si mesmos; sem


dido como sucessão de unidades descon­ qualquer distinção qualitativa; apenas
tínuas, discretas. Mas permanecia uma distintos por atributos geométricos — de
questão que comprometia a coerência da forma, tamanho, posição (como N se dis­
visão pitagórica e que Zenão de Eléia tingue de Z) e, quando agrupados, dis­
assinâlou: a do “intervalo” que separa- tintos pelo arranjo (como AN se distin­
raria as unidades. Esse intervalo só gue de NA). Todo o universo estaria,
poderia ter, no mínimo, o tamanho de portanto, constituído por dois princí­
uma unidade (mínimo de extensão e de pios: o contínuo incorpóreo e infinito (o
corpo); assim, o número das unidades de vazio), e o descontínuo corpóreo (os áto­
extensão “crescia” e cada coisa tendia a mos). Rompe-se, desse modo, o monismo
tornar-se infinita. Essa aporia que corporalista, que vinha sendo um pres­
Zenão formula ao pitagorismo parece suposto das diversas cosmogonias e
sugerir que a coerência que se buscava cosmologias gregas.
para as cosmogonias, desde Tales, de­ Parece certo que Leucipo e Demócrito
pendia não apenas da descoberta de um admitiam que o movimento primário dos
processo racional de geração das coisas, átomos seria em todas as direções, como
como também da modificação de certas o da poeira que se vê flutuar no ar, se
noções fundamentais, particularmente a uma réstia penetra num ambiente escu­
de “intervalo” entre as coisas e entre as ro. E é lógico que assim fosse, já que,
unidades que as comporiam. Isto é, esta­ dispersos no vazio, os átomos não te­
va a exigir a reformulação da noção de riam qualquer direção preferencial.
espaço. Essa reformulação foi, por certo, A movimentação dos átomos no vazio
a principal contribuição da escola ato- faria com que os maiores ficassem mais
mista ao desenvolvimento do pensa­ expostos aos impactos dos demais; além
mento científico e filosófico. Segundo a disso, sendo dotados das mais diversas
tradição, a escola teve início com Leuci- formas, eles não apenas se chocariam
po (de Mileto ou de Eléia), mas conheceu como também poderíam se engatar, pro­
a plena aplicação de seus postulados duzindo agrupamentos. A continuação
com Demócrito de Abderá. Mais tarde, dos impactos poderia então ocasionar o
as teses atomistas irão ressurgir com aparecimento, em vários pontos, de vór­
Epicuro e Lucrécio, no período helenís- tices ou turbilhões, à semelhança de
tico da cultura grega. redemoinhos, nos quais os corpos maio­
Quase nada se sabe sobre a vida de res (átomos ou agrupamentos de áto­
Leucipo; alguns autores chegaram mos) tenderíam para o centro. Seria esse
mesmo a pôr em dúvida a sua existência. o começo de um universo. Outros pode­
Todavia, uma tradição que remonta a ríam ser produzidos — sucessiva ou
Aristóteles atribui a esse contemporâneo simultaneamente, sempre devido a cau­
de Empédocles e Anaxágoras (meados sas mecânicas.
do século V a.C.) a criação da teoria
atomista. A ética do mecanicismo
Partindo de colocações do eleatismo —
particularmente de que a afirmação do Muito pouco se sabe sobre a vida de
movimento pressupõe o não-ser —, Leu­ Demócrito. Seu nascimento em Abdera é
cipo e Demócrito teriam concluído que, situado cerca de 470 a.C., e sua morte,
exatamente porque o movimento existe aproximadamente, em 370 a.C. Vivia
(como mostram os sentidos), o não-ser ainda, portanto, quando Platão fundou a
(corpóreo) existe. Afirma-se, assim, pela Academia (c. 387 a.C.). Sabe-se, porém,
primeira vez, a existência do vazio. E que, além de contribuir para a formula­
nesse vazio é que se moveríam os áto­ ção do atomismo físico, aplicou-se prin­
mos, partículas corpóreas, insecáveis cipalmente à solução dos dois problemas
(indivisíveis fisicamente, embora divisí­ que animavam â filosofia de sua época:
veis matematicamente). Os átomos apre­ o do conhecimento e o da ética.
sentavam ainda outras características: Contemporâneo de Sócrates, Demó­
seriam plenos (sem vazio interno); em crito também busca uma resposta para o
número infinito; invisíveis (devido à relativismo dos sofistas, particular-

22
PRÉ-SOCRÂTICOS

A semente do pensamento pré-socrático germinou através de toda a filosofia


antiga. E continuou a fecundar a especulação ocidental. Aos pré-socráticos
voltam sempre os pensadores, de várias épocas, em busca de inspiração e
companhia. Oráculo para a consciência filosófica do Ocidente, o pensamento
pré-socrático éperene desafio. (“Pitágoras , de L. delia Robbia, Florença.)

mente para o de seu conterrâneo Protá- rar, portanto, que o sujeito tem certa
goras, que afirmava que “o homem é a autonomia no ato de conhecer, na medi­
medida de todas as coisas”. A defesa de da em que “traduz” qualitativamente
um conhecimento da physis e indepen­ (doce, amargo, frio, quente) o que no
dente da “medida humana” é feita, por próprio objeto é determinada constitui­
Demócrito, através da distinção entre ção atômica. Aquela autonomia, porém,
dois tipos de conhecimento: o “bastar­ seria restrita: a liberdade de conven­
do”, que seria o conhecimento sensível, a cionar estaria limitada pelo tipo de
exprimir na verdade as disposições do átomo que compõe o objeto.
sujeito antes que a realidade objetiva; e Quanto à ética, Demócrito, do mesmo
o conhecimento “legítimo”, que seria a modo que Sócrates, considera a “igno­
compreensão racional da organização rância do melhor” como a causa do erro.
interna das coisas, ou seja, a compreen­ Guiado pelo prazer, o homem deveria
são de que a physis do universo frag­ saber distinguir o valor dos diferentes
mentara-se na multidão de átomos cor- prazeres, buscando em sua conduta a
póreos que se moviam no vazio infinito. harmonia capaz de lhe conceder a calma
Daí afirmar: “Por convenção (nomos) do corpo — que é a saúde — e a da alma
existe o doce; por convenção há o quente — que seria a felicidade.
e o frio. Mas na verdade há somente áto­ Muitos intérpretes do pensamento de
mos e vazio”. Demócrito parece conside­ Demócrito indagam como o determi­

23
OS PENSADORES

nismo mecanicista do atomismo pode valores norteadores da conduta humana.


pretender abrigar uma ética normativa, No seu pensamento parecem coexistir,
que prescreve como deve ser a conduta assim, duas ordens de preocupações, não
humana. Séculos mais tarde, ao adotar a necessariamente interligadas e coesas: a
física atomista como sustentação para do cientista que procura uma explicação
sua ética, Epicuro introduzirá um certo racional para os fenômenos físicos e a do
arbítrio (o clinamen, o desvio nas traje­ moralista, dc índole conservadora, que
se empenha em traçar normas para a
tórias atômicas) no interior do jogo das
ação humana, tentando refrear a vaga de
forças mecânicas. Em Demócrito isso, relativismo e de individualismo que
porém, não acontece: parece simples­ envolvia a sociedade grega, ameaçando
mente justapor a uma física estritàmente valores e instituições e a anunciar novos
mecanicista uma ética que pressupõe tempos e novas idéias.

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24
CAPITULO 2
OS PENSADORES

A praça pública, a ágora, era o local da cidade onde os atenienses se reuniam


e efetuavam transações comerciais. Aí, no período democrático, ocorriam
assembléias populares. Era aí também que se administrava justiça
e eram realizadas cerimônias religiosas. Sócrates trouxe a filosofia para
a ágora, fazendo do diálogo público a via de procura dà verdade.
(Monumento dos Gigantes, ágora de Atenas.) Na página anterior: busto de
Sócrates do período helenístico, Museu Capitohno, Roma. (Foto Fabbri.)

26
SÓCRATES

democracia ateniense assegurava com as pessoas. Mas dialogar de modo a

A aos cidadãos o exercício da função


legislativa: integrantes da Ekkle-
sia (assembléia popular), podiam e de
viam participar da elaboração das leis
fazê-las tentar justificar os conheci­
mentos, as virtudes ou as habilidades
­ lhes eram atribuídos. Com esse obje­
que
tivo inicial, levava o interlocutor a emi­
Sue regiam a vida e os destinos da cida- tir opiniões referentes à sua própria
e. Mas o regime democrático impunha especialidade, para em seguida interro­
também aos cidadãos a obrigação de gar a respeito do sentido das palavras
defender, como juizes, as leis que eles empregadas. O resultado das questões
mesmos votavam, pois, na condição de habilmente formuladas por Sócrates —
membros das cortes populares, assu­ que alegava que “apenas sabia que nada
miam o compromisso — através do jura­ sabia” — era, com freqüência, tomar
mento heliástico — de fazer acatar aque­ patente a fragilidade das opiniões de
las leis e de decidir, de acordo com elas, seus interlocutores, a inconsistência de
o que seria justo e o que seria injusto, o seus argumentos, a obscuridade de seus
que seria bom ou mau para a cidade-Es- conceitos. Colocados à prova, muitos
tado e seu povo. supostos talentos e muitas reputações de
No ano 399 a.C., o tribunal dos sapiência revelavam-se infundados e
heliastas, constituído por cidadãos pro­ muitas idéias vigentes e consagradas
venientes das dez tribos que compunham pela tradição manifestavam seu caráter
a população de Atenas e escolhidos por Ereconceituoso e sua condição de meros
meio da tiragem de sorte, reuniu-se com ábitos mentais ou simples construções
500 ou 501 membros. Difícil tarefa verbais sem base racional. Evidenciava-
aguardava esses juizes: julgar Sócrates, se a ignorância da própria ignorância:
conhecida mas Controvertida figura. Ci­ situação que, não sendo ultrapassada,
dadão admirado e enaltecido por alguns prendería a alma num estéril engano e, o
— particularmente pelos jovens —, era, 3ue era mais trágico ainda, deixá-la-ia
entretanto, criticado e combatido por istante de si mesma, apartada de sua
outros, que nele viam uma ameaça para própria realidade. Para alguns — os que
as tradições da polis e um elemento per­ aceitavam submeter-se à fase constru­
nicioso à juventude. Indiscutível era seu tiva da dialogação socrática —, aquele
destemor, de que já dera provas em tem­ reconhecimento da ignorância do justo
pos de guerra, como notória a sua significado das palavras representava a
independência pessoal, manifestada não oportunidade de um verdadeiro renasci­
apenas em seu modo peculiar e incon- mento: o renascer na consciência de si
vencional de viver, mas também em mesmo, condição preliminar para a to­
circunstâncias especiais — como quando mada de posse da própria alma. Para
se negou à conivência com sórdida outros, porém, era o esboroar do prestí­
trama política urdida pelos Trinta Tira­ gio em plena praça pública. Ou então
nos que durante algum tempo haviam era a instauração de questões e dúvidas
dominado Atenas. Mas o que sobretudo ali onde há séculos perdurava a cega
o caracterizava era a atividade a que certeza dos preconceitos e das crendi­
vinha se dedicando há anos e que justa­ ces: no campo dos valores morais e reli­
mente suscitava o deleite e a admiração giosos, que orientavam a conduta dos
dos jovens, enquanto noutros despertava mdivíduos mas também serviam de ali­
ressentimentos: conversar. Despreocu­ cerces às instituições políticas.
pado com os bens materiais — cujo acú­
mulo era o objetivo da maioria —, usu­
fruindo os prazeres sem se atormentar O j ulgamento
em viver à sua cata, mas também sem
deles fugir em exageros ascetas, Sócra­ Diante do tribunal popular, Sócrates ê
tes dedicava-se ao que considerava, acusado pelo poeta Meleto, pelo rico
desde certo momento de sua vida, a sua curtidor de peles, influente orador e
missão — a missão que lhe teria sido político Anitos, e por Licâo, personagem
confiada pelo deus de Delfos e que o tor­ de pouca importância. A acusação era
nara um “vagabundo loquaz”: dialogar grave: não reconhecer os deuses do Esta-

27
OS PENSADORES

A inscrição no templo de Apoio em Delfos — “Conhece-te a ti mesmo” —


inspirou o trabalho socrático de despertar as consciências.
Consultado, certa vez, o oráculo de Delfos afirmou que Sócrates era
o mais sábio dos homens, levando-o a assumir a missão de conduzir as pessoas
ao conhecimento de si mesmas. (Delfos:pórtico dos Atenienses.)

do, introduzir novas divindades e cor­ que estava sendo acusado por Meleto de
romper a juventude. O relato do julga­ algo que o próprio Meleto não sabia bem
mento feito por Platão (428-348 a.C.), a explicar o que era, já que não conseguia
Apologia de Sócrates, é geralmente tido definir com clareza o que era bom e o
como bastante fiel aos fatos e apresen­ que era mau para os jovens.
ta-se dividido em três partes. Na primei­ Em nenhum momento de sua defesa —
ra, Sócrates examina e refuta as acusa­ segundo o relato platônico — Sócrates
ções que pairam sobre ele, retraçando apela para a bajulação ou tenta captar a
sua própria vida e procurando mostrar o misericórdia daqueles que o julgavam.
verdadeiro significado de sua “missão”. Sua linguagem é serena — linguagem de
E proclama aos cidadãos que deveriam quem fala em nome da própria cons­
julgá-lo: “Não tenho outra ocupação ciência e não reconhece em si mesmo
senão a de vos persuadir a todos, tanto qualquer culpa. Chega a justificar o tom
velhos como novos, de que cuideis menos de sua autodefesa: “Parece-me não ser
dos vossos corpos e dos vossos bens do justo rogar ao juiz e fazer-se absolver
que da perfeição das vossas almas, e a através de súplicas; é preciso esclarecê-
de vos dizer que a virtude não provém da lo e convencê-lo”. Embora a demonstra­
riqueza, mas sim que é a virtude que ção pública da inconsistência dos argu­
traz a riqueza ou qualquer outra coisa mentos de seus .acusadores e embora a
útil aos homens, quer na vida pública tranqüila e reiterada declaração de ino­
quer na vida privada. Se, dizendo isso, cência — e talvez justamente por mais
eu estou a corromper a juventude, tanto essas manifestações de altaneira inde­
pior; mas, se alguém afirmar que digo pendência de espírito —, Sócrates foi
outra coisa, mente”. Noutro momento de condenado. Mesmo para uma democra­
sua defesa, Sócrates dialoga com um de cia como a ateniense, ele era uma amea­
seus acusadores, Meleto, deixando-o ça e um escândalo: a encarnação, para a
embaraçado quanto ao significado da mentalidade vulgar, do “escândalo filo­
acusação que ele lhe imputava — sófico” que, ali mesmo em Atenas, acar­
“corromper a juventude”. Demonstra retara a perseguição de Anaxágoras de

28
SÓCRATES

Clazômena, que se viu obrigado a fugir.


Como era de praxe, após o veredicto
da condenação, Sócrates foi convidado a
fixar a sua pena. Meleto havia pedido
para o acusado a pena de morte. Mas
seria fácil para Sócrates salvar-se: bas­
tava propor uma outra penalidade, por
exemplo pagar uma multa, como chega­
ram a lhe sugerir os amigos. Afinal, fora
difícil obter um veredicto de culpabili­
dade: havia sido condenado por uma
margem de apenas sessenta votos. Qual­
quer pena moderada que ele mesmo pro­
pusesse seria certamente acatada com
alivio por aquela assembléia constran­
gida por condenar um cidadão que, ape­
sar de suas excentricidades e de suas
atitudes muitas vezes irreverentes e
incômodas, apresentava aspectos de in­
discutível valor. Afinal, era aquele o Só­
crates que não se havia deixado corrom­
per pelos tiranos, inimigos da O “século de Péricles” representou o
democracia, e que lutara bravamente na apogeu econômico, político e artístico
guerra por sua cidade e por seu povo. de Atenas. (Diadumeno, cópia de uma
Bastava que declarasse estar disposto a estátua de Policleto, de 435-431 a.C.,
pagar algumas moedas — e todos sai­ Museu Arqueológico Nacional, Atenas.)
ríam dali satisfeitos consigo mesmos,
por terem cumprido o “dever” de punir e para mim? Eu que me entreguei à pro­
um cidadão suspeito de atividades noci­ cura de cada um de vós em particular, a
vas à cidade, e mais contentes ainda por fim de proporcionar-lhe o que declaro o
se sentirem magnânimos, ao permitirem maior dos benefícios, tentando persuadir
que continuasse vivendo. cada um de vós a cuidar menos do que é
Mas Sócrates não faz concessões. Pro­ seu do que de si próprio, para vir a ser
por-se a cumprir qualquer pena, mesmo quanto melhor e mais sensato, menos
pagar uma multa, por menor que fosse, dos interesses do povo que do próprio
seria aceitar a culpa de que não o acusa­ povo, adotado o mesmo princípio nos de­
va a própria consciência. Na segunda mais cuidados? Que sentença mereço
parte da Apologia, Platão descreve o por ser assim? Algo de bom, Atenienses,
momento em que, novamente diante de se há de ser a sentença verdadeiramente
seus juizes, Sócrates estabelece a pena proporcionada ao mérito; não • só, mas
que julgava merecer. Nem exílio, nem algo de bom adequado a minha pessoa.
multa. “Ora, o homem (Meleto) propõe a O que é adequado a um benfeitor pobre,
sentença de morte. Bem; e eu, que pena que precisa de lazeres para vos viver
vos hei de propor em troca, Atenienses? exortando? Nada tão adequado a tal
A que mereço, não é claro? Qual Será? homem, Atenienses, como ser sustentado
Que sentença corporal ou pecuniária no Pritaneu; muito mais do que a um de
mereço, eu que entendi de não levar uma vós que haja vencido, nas Ólimpíadas,
vida quieta? Eu que, negligenciando o de uma corrida de cavalos, de bigas ou qua­
que cuida toda gente — riquezas, negó­ drigas. Esse vos dá a impressão da feli­
cios, postos militares, tribunas e funções cidade; eu, a felicidade; ele não carece
públicas, conchavos e lutas que ocorrem de sustento, eu careço. Se, pois, cumpre
na política, coisas em que me considero que sentenciem com justiça e em propor­
de fato por demais pundonoroso para me ção ao mérito, eu proponho o sustento no
imiscuir sem me perder —, não me dedi- Pritaneu.”
quei àquilo a que, se me dedicasse, have­ Sócrates não deixava saída para seus
ría de ser completamente inútil para vós juizes. Ou a pena de morte, pedida por

29
OS PENSADORES

que a morte”. Quanto a esta, apenas


pode ser uma destas duas coisas: “Ou
aquele que morre é reduzido ao nada e
não tem mais qualquer consciência, ou
então, conforme ao que se diz, a morte é
uma mudança, uma transmigração da
alma do lugar onde nos encontramos
para outro lugar. Se a morte é a extinção
de todo sentimento e assemelha-se a um
desses sonos nos quais nada se vê,
mesmo em sonho, então morrer é um
ganho maravilhoso. (...) Por outro
lado, se a morte é como uma passagem
daqui para outro lugar, e se é verdade,
como se diz, que todos os mortos aí se
reúnem, pode-se, senhores juizes, imagi­
nar maior bem?” Apoiado nessas hipóte­
ses — as únicas existentes a respeito de
um fato que não permite certezas racio­
nais —, o setuagenário Sócrates despe­
de-se, tranqiiilo, de seus concidadãos:
“Mas eis a hora de partirmos, eu para a
“Tocador de Trompa”, detalhe de um morte, vós para a vida. Quem de nós
pinax, tipo de vaso grego. segue o melhor rumo, ninguém o sabe,
(Século Va.C., Museu Britânico.) exceto o deus”.
A execução da pena teve de ser adiada
Meleto, ou ser alimentado no Pritaneu, por trinta dias. Como acontecia todos os
enquanto fosse vivo, como herói ou bene­ anos, um navio oficial havia sido envia­
mérito da cidade. Impossível voltar do ao santuário de Delos para comemo­
atrás, desfaze»' a condenação, inocentar rar a vitória de Teseu, o herói mitológico
o acusado. Entre a morte e as impossí­ ateniense, sobre o Minotauro, o terrível
veis recompensas, os juizes ficaram sem monstro que habitava o labirinto de
alternativa real. Para não abrir mão de Creta e se alimentava de carne humana.
sua própria consciência, Sócrates optara Enquanto o navio não regressasse de sua
pela morte. Que então morresse. missão sagrada, nenhum condenado
podia ser executado.
No diálogo Fédon, Platão descreve as
O que significa morrer? conversações que, durante os dias de es­
pera na prisão, Sócrates mantivera com
A terceira parte da Apologia pretende seus discípulos e amigos. Um problema
ser a transcrição das ultimas palavras se propunha a todos como urgente e
endereçadas por Sócrates aos que ha­ atormentador: a morte, a morte que para
viam acabado de condená-lo a morrer Sócrates se tornava cada dia mais próxi­
bebendo cicuta. Em sua alocução, a ma. E, do mesmo modo que nas outras
mesma serenidade, o mesmo tom alta­ circunstâncias de sua atividade filosó­
neiro: "Não foi por falta de discursos fica, Sócrates ocupava-se apenas de
que fui condenado, mas por falta de questões que eram propostas imediata e
audácia e porque não quis que ouvisseis vivamente à sua consciência e à de seus
o que para vós teria sido mais agradá­ interlocutores — assim, naqueles dias em
vel, Sócrates lamentando-se, gemendo, que se aguardava o retomo do navio que
fazendo e dizendo uma porção de coisas partira para Delos, somente tinha senti­
que considero indignas de mim, coisas do meditar e dialogar sobre um proble­
que estais habituados a escutar de ou­ ma: o do significado da própria morte.
tros acusados”. Sustenta-o uma certeza: Sócrates então debate com os amigos
mais difícil que evitar a morte é “evitar diversos argumentos que poderíam levar
o mal, porque ele corre mais depressa à admissão da imortalidade da alma,

30
SÓCRATES

“Não, amigos, tudo deve terminar com


palavras de bom augúrio: permanecei,
pois, serenos e fortes”.
Ao sentir os primeiros efeitos da cicu-
ta, Sócrates se deita. Aquele que sempre
indagara sobre o significado das pala­
vras e dos valores que regiam a conduta
humana e investigara o sentido dos cos­
tumes e das leis que governavam a cida­
de buscava a consciência nas ações e nas
afirmativas, mas nào pretendia se sub­
trair às normas estabelecidas e às
exigências dos preceitos e das institui­
ções sociais e políticas. Porque nào traí­
ra sua consciência, preferira a morte a
declarar-se culpado. Mas porque respei­
tava a lei nào quisera fugir da prisão.
Suas* últimas palavras teriam sido ainda
um testemunho dessa dupla fidelidade: a
si mesmo e aos compromissos assumi­
dos. Dirige-se a um dos amigos presen­
tes, lembrando-lhe que deviam um sacri­
Sentado, conversando, Sócrates aparece fício ao deus Asclépio. E morre.
no lado direito do “Sarcófago das
Musas”. (Arte grega, Louvre, Paris.)
O homem e a lenda
uma das únicas soluções que já apontara
na parte final da Apologia, quando se “A vida de um grande homem, parti­
despedira de seus juizes. Sobre a outra cularmente quando ele pertence a uma
— a morte representar o nada, como época remota”, escreve o historiador A.
longa noite de sono sem sonhos — nada E. Taylor, “jamais pode ser o mero
havia a dizer, como nada havia a temer. registro de fatos indiscutíveis. Mesmo
Restava explorar a única possibilidade quando tais fatos são abundantes, a ver­
na'qual o pensamento podia transitar, dadeira tarefa do biógrafo consiste em
tecendo argumentos e conjeturas. interpretá-los; deve penetrar, além dos
Mas o barco está prestes a retomar de simples eventos, no propósito e no cará­
Delos. Na véspera de sua chegada, um ter que eles revelam, o que só consegue
dos amigos avisa a Sócrates: “Amanhã fazer através de um esforço de imagina­
terás de morrer”. O mestre não se per­ ção construtiva. No caso das duas figu­
turba: “Em boa hora, se assim o deseja­ ras históricas que exerceram a mais pro­
rem os deuses, assim seja”. Suplicam- funda influência na vida da humanidade,
lhe que aceite a fuga que os amigos Jesus e Sócrates, fatos indiscutíveis são
haviam preparado. Sócrates recusa. E extraordinariamente raros; talvez haja
explica: a única coisa que importa é apenas uma afirmativa a respeito de
viver honestamente, sem cometer injusti­ cada um deles que não possa ser negada
ça, nem mesmo em retribuição a uma sem que se perca o direito a ser contado
injustiça recebida. Ninguém, nem os entre os sensatos. É certo que Jesus
amigos, consegue convencê-lo a abdicar ‘sofreu sob Pôncio Pilatos’, e é nào
de sua consciência. Entra a mulher de menos certo que Sócrates foi levado a
Sócrates, Xantipa, trazendo os filhos morrer em Atenas, sob acusação de
para a despedida. Sócrates permanece impiedade, no ‘ano de Laques’ (399
sereno. Finalmente chega o carcereiro a.C.). Qualquer consideração sobre
com a cicuta. Imperturbável, Sócrates ambos que vá além dessas afirmativas
toma o vaso que lhe é oferecido, de um constitui inevitavelmente uma constru­
só gole bebendo todo o veneno. Os ami­ ção pessoal.”
gos soluçam. Mas ele ainda os anima: O próprio Sócrates nada deixou a res-

31
OS PENSADORES

Heródoto (à esquerda) descreveu as lutas entre gregos e persas, as guerra


médicas, e ressaltou as profundas diferenças existentes entre a cultura
helênica e a oriental. Tucídides (à direita), ateniense e contemporâneo de
Sócrates, foi o grande historiador da guerra do Peloponeso, entre Atenas e
Esparta. (Bustos de Heródoto e Tucídides, hoje no Museu Nacional, Nápoles.)
peito de suas atividades e de seu pensa­ Para a elucidação da “questão socrá-
mento. Como Jesus, ele nada escreveu e tica” deve-se, de saída, lembrar que o
as principais informações que se têm período em que viveu Sócrates — a Ate­
sobre sua vida e sobre seu ensinamento nas da época de Péricles — não foi mar­
provêm de textos de discipulos, que cado pelo desenvolvimento da prosa lite­
podem ter retratado o mestre com os rária. Foi, ao contrário, uma fase
excessos ditados pela admiração e pelo caracterizada pela criação de grandes
afeto. Além disso, há discrepâncias entre obras teatrais, particularmente tragé­
esses diferentes perfis — o que gera um dias. Isso justifica, de certo modo, o fato
problema sério para os historiadores da de não se ter qualquer alusão de um
filosofia. Por outro lado, Sócrates apare­ contemporâneo a respeito do que Sócra­
ce caricaturado em algumas comédias tes teria feito ou dito até quase a idade
de Aristófanes (c.448-385 a.C.), seu de cinqüenta anos. Tinha aproximada­
contemporâneo, que o utiliza, em parte, mente 47 anos quando alguns poetas cô­
como protótipo dos filósofos que especu­ micos — Aristófanes, Amipsias e depois
lavam sobre os fenômenos celestes ou Eupolis — o tomaram para personagem
que, com artifícios retóricos, “faziam de suas composições burlescas. Dessas,
passar por boa uma causa má”. Na Apo­ apenas a caricatura de Aristófanes con-
logia de Sócrates, escrita por Platão, o servou-se, tornando-se o único depoi­
próprio Sócrates, durante seu julga­ mento sobre Sócrates surgido antes de
mento, é levado a rebater esse seu retra­ sua morte. Depois desta, eclodiu uma
to feito “por um certo poeta cômico”, rica produção literária que tomava Só­
Aristófanes. Mas o fato é que o Sócrates crates para personagem central. Seus
de que se tem notícia através dos textos discípulos fazem-lhe a defesa póstuma e
antigos surge como um rosto diversa­ apresentam-no como modelo da sabedo­
mente refletido por diferentes espelhos. ria e das virtudes humanas: Platão tor-
Quais os que o deformam, exagerando- na-o a figura principal da maioria de
lhe ou modificando-lhe os traços? Onde seus Diálogos, Xenofonte exalta-o prin­
a face verdadeira? cipalmente nas Memoráveis, Ésquines,

32
SÓCRATES

em diversas obras (que se perderam),


falou do mestre de quem fora amigo
constante. Mas todos eles descrevem um
Sócrates de mais de 45 anos. E, possi­
velmente, um dos motivos da diver­
gência entre os depoimentos que ofere­
cem e o de Aristófanes reside neste fato:
eles falavam do Sócrates maduro, o mes­
tre que se considerava imbuído da mis-
sào — assumida em face de decisiva
declaração do oráculo de Delfos — de
despertar os homens para o conheci­
mento de si mesmos. Já Aristófanes,
particularmente nas Nuvens, teria feito
uma caricatura do Sócrates mais jovem,
personagem já famosa em Atenas antes
mesmo de desempenhar a atividade
missionária de que se julgou incumbido
mais tarde.
Visto em épocas tão diferentes, Sócra­
tes podería ter permitido retratos tão
diversos: o mestre modelar, segundo A medicina influenciou a concepção,
seus discípulos, e a personagem apresen­ proposta pelos sofistas e por Sócrates,
tada por Aristófanes, cômica mas peri­ de uma natureza humana autônoma, em
gosa, pois, na medida em que investi­ relação à natureza do universo físico.
garia os fenômenos celestes — como os (Hipócrates, Museu Capitolino, Roma.)
filósofos da Jônia —, lançava o descré­
dito sobre as tradições religiosas que bate. O depoimento de Aristófanes sobre
fundamentavam as instituições políticas, Sócrates possui assim — para muitos
e, enquanto apresentaria “como boa historiadores — um certo fundamento,
uma causa má” — à semelhança de cer­ sobretudo em relação ao Sócrates que
tos sofistas, professores de retórica —, ainda não havia sido tocado pela pala­
daria aos jovens um perigoso exemplo vra do oráculo. Mesmo porque o efeito
de relativismo, capaz de abalar a aceita­ de comicidade a que visava Aristófanes
ção dos valores tradicionais, éticos, não teria qualquer resultado se a carica­
políticos e religiosos. Defensor desses tura traçada não apresentasse, aos olhos
valores, Aristófanes teria centralizado do público, alguma semelhança com o
no ateniense Sócrates a crítica às idéias modelo real.
trazidas de outras terras por pensadores
que haviam acorrido a Atenas atraídos A “questão socrática”
pelo apogeu cultural e político da cida­
de, como Anaxágoras de Clazômena
(c.500-428 a.C.). e Protágoras de Abde- Outros depoimentos antigos impor­
ra (c.490-421 a.C.). O próprio Platão, tantes sobre Sócrates são o de Aristó­
no Fédon, faz Sócrates confessar o entu­ teles (384-322 a.C.) — discípulo de Pla­
siasmo inicial que lhe despertou a obra tão — e os provenientes de biógrafos da
de Anaxágoras; e indiscutivelmente, fase helenística, como Diógenes Laércio
pelo menos na aparência, a dialogação (século III d.C.). Todavia, a interpre­
socrática tinha, por outro lado, muito da tação aristotélica de Sócrates — quç o
surpreendente e embaraçosa habilidade apresenta como iniciador do trabalho de
retórica dos sofistas — o que mostra que, definição de conceitos (relativos ao
embora se apresentando (na versão campo moral) — é vista com reservas
platônica) como adversário daqueles pelos historiadores, pois Aristóteles
mestres de eloqiiência e argumentação, sempre “aristoteliza” o pensamento de
Sócrates absorvera-lhes, se não as teses seus antecessores, tornando-os momen­
relativistas, pelo menos a arma de com- tos preparatórios de suas próprias con-

33
OS PENSADORES

Sócrates, segundo Platão e Xenofonte, teriaparticipado de campanhas


militares, na condição de hoplita, soldado de infantaria fortemente armado.
Na guerra, Sócrates demonstrou extraordinária coragem; na paz, seu destemor
levou-o a enfrentar perigos e até a morte, para cumprir o que lhe ditava sua
consciência. (“Soldados Gregos da Infantaria”, afresco ao século IVa.C.)

cepções filosóficas. Por outro lado, as jônicos e os dos sofistas, então de Xeno­
biografias que sobre os pensadores mais fonte e de Platão é que devem ser reco­
antigos da Grécia foram produzidas no lhidas as principais informações referen­
período helenístico nâo apresentam tes ao Sócrates que marcou tão
grande exigência crítica. Numa fase profundamente não apenas a cultura
marcada pela sombra da perda da liber­ grega como também toda a herança oci­
dade política, o importante para os gre­ dental. Xenofonte, porém, segundo a
gos era descrever a vida daqueles que maioria dos historiadores, espírito bas­
haviam vivido nos momentos da perdida tante simplório, não teria tido condições
grandeza política, sem se importar tanto para apreender toda a dimensão dos ensi­
com o rigor das informações e mistu­ namentos socráticos. Essa seria a razão
rando dados históricos com relatos de, freqüentemente, trazer as idéias éti­
fantasiosos. cas de Sócrates para o nível de simples
As fontes mais seguras para a recons­ lugares-comuns, empobrecendo-as e de­
tituição da vida e do pensamento de Só­ turpando-as.
crates continuam sendo, assim, os depoi­ O contrário exatamente é o que se
mentos de seus contemporâneos. Do pode dizer de Platão: ninguém mais bem
confronto entre os testemunhos deixados dotado para acompanhar o mestre em
por Platão, Xenofonte e Aristófanes é todas as suas sutilezas e em todos os
que sobretudo os historiadores têm pro­ seus vôos, por mais altos que se alças­
curado recompor a verdadeira fisiono­ sem. Aqui o perigo é oposto: Platão pode
mia do Sócrates-homem e do Sócrates- ter atribuído a Sócrates mais do que ele
filósofo. Se Aristófanes teria focalizado disse ou quis dizer. E, na medida em que
Sócrates na fase anterior a seu magis­ o torna personagem-chave de quase
tério filosófico e se, além disso, mistu­ todos os Diálogos que escreveu, não ape­
rou-lhe os traços com os de cosmólogos nas reportou situações e debates vividos

34
SÓCRATES

por Sócrates, como- — considerando-se respeito não o transforma, fundamental­


continuador da linha de pensamento mente, num apelo à consciência do
inaugurada pelo mestre — utilizou-o, a homem que dele se aproxima — como
partir de certo momento da evolução de contemporâneo ou como estudioso, em
sua própria filosofia, como porta-voz de qualquer época, de seu pensamento? Ele.
suas doutrinas. A resolução da “questão que reiteradamente teria afirmado não
socrática” transforma-se assim, em Eossuir ciência alguma, não teria tam-
grande parte, na questão da delimitação ém declarado ter aceito a missão de
de fronteiras entre o pensamento de Só­ ajudar os homens a se voltarem para o
crates e o de Platão, dentro dos próprios conhecimento de si mesmos, para o
Diálogos platônicos. desbravamento da própria subjetivi­
Confrontando-se o socratismo de Pla­ dade-, tentando a conquista da própria
tão com o dos chamados “socráticos alma? Pois essa consciência e essa
menores” (megáricos, cínicos, cirenai- subjetividade é que estão desde logo
cos), pode-se, até certo ponto, tentar comprometidas com Sócrates, quando se
uma aproximação do Sócrates histórico. pretende recuperar sua fisionomia au­
Este, de qualquer forma, desde a Anti­ têntica. Tentar decifrá-lo é já decifrar-se
guidade, perdeu o caráter estrito de um pouco, buscar conhecê-lo é inevita­
indivíduo concreto, condenado à morte velmente uma ocasião para reagir ao
em 399 a.C., para se transformar em desafio de seu enigma. Sócrates remete
ideal humano ou em motivo de escân­ seu decifrador à própria consciência,
dalo — um elemento definitivamente oferecendo-lhe uma ocasião para se
integrante da consciência ética do Oci­ conhecer a si mesmo.
dente. Na medida mesma em que só se
têm de Sócrates reflexos produzidos na
consciência e na obra de discípulos ou de O homem e o oráculo
adversários, já que ele teria escolhido a
comunicação direta e viva do diálogo Nascido em Atenas em 470 ou 469
oral, torna-se difícil reconstituir com a.C., na época em que findava a guerra
fidelidade sua vida e seu pensamento. entre os gregos e os persas (guerras mé­
Diante das incertezas inevitáveis, alguns dicas) e quando a vitória da Grécia mar­
historiadores modernos chegaram a le­ caria o início da fase áurea da democra­
vantar a hipótese da inexistência do Só­ cia ateniense, Sócrates era filho de um
crates histórico — pelo menos com as escultor, Sofronisco, e de uma parteira,
características que lhe foram apontadas Fenareta. Teria seguido, durante algum
pelos relatos dos antigos. Sócrates, che- tempo, a profissão paterna e é provável
gou-se a afirmar, seria uma criação lite­ que tivesse recebido a educação dos jo­
rária, a serviço do nacionalismo atenien­ vens atenienses de seu tempo, apren­
se. Se essa tese não prevalece entre os dendo música, ginástica e gramática.
historiadores, por outro lado é inegável Além disso beneficiou-se da própria
que a recuperação de Sócrates como atmosfera cultural da época, das mais
“fato” histórico defronta-se com a difi­ brilhantes da cultura grega. Era o famo­
culdade da escassez de dados indisputá­ so “século de Péricles”, idade de ouro da
veis: a objetividade histórica de Sócra­ civilização ateniense. Através de sua
tes se dilui na teia de depoimentos frota, Atenas domina os mares e chega a
diversos e às vezes discrepantes. Porém criar uma verdadeira talassocracia. Gra­
não foi justamente isso o que — segundo ças à proteção de Péricles, artistas como
a Apologia platônica — ele quis ser: os escultores Fídias e Ictino embelezam
alguém que apontava não para a ciência a cidade com suas obras magistrais,
das coisas e sim para a consciência do enquanto pensadores de outras regiões
próprio homem? Á ciência sobre Sócra­ do mundo helênico, como Anaxágoras de
tes — a resolução da “questão socráti­ Clazômena e Protágoras de Abdera, tra­
ca”, a reconstituição do Sócrates histó­ zem para Atenas os frutos da investiga­
rico — não poderia assim ser ção filosófica e científica que, desde o
socraticamente reformulada? A escassez século VI a.C., vinha se desenvolvendo
de dados objetivos indiscutíveis a seu nas colônias gregas da Ásia Menor e nas

35
OS PENSADORES

cidades da Magna Grécia (sul da Itália e


Sicilia). É o momento também dos gran­
des autores trágicos: Ésquilo morreu
quando Sócrates tinha cerca de catorze
anos, Sófocles e Eurípides eram aproxi­
madamente mais velhos dez anos que o
filho de Fenareta. Centro do mundo
grego, “Hélade da Hélade”, Atenas é, no
tempo de Sócrates, um ponto de conver­
gência cultural e um laboratório de
experiências políticas, onde se firmara,
pela primeira vez na história dos povos,
a tentativa de um governo democrático,
exercido diretamente por todos os que
usufruíam dos direitos de cidadania.
Nessa democracia, a função pública dos
oradores torna-se fundamental e, conse-
qíientemente, a palavra torna-se não
apenas um instrumento de ascensão polí­
tica, como também um problema a preo­
cupar retóricos e pensadores. Preparar o
indivíduo para a vida pública, conferir-
lhe capacitação ou virtude (aretê) políti­
ca, representa, basicamente, adestrá-lo
na arte da persuasão através da palavra.
Atendendo a esses requisitos da ação
política na Atenas democrática, para aí
acorrem os sofistas, professores de
eloqíiência que, bem remunerados, se Platão expôs e desenvolveu doutrinas
dispunham a ensinar aos jovens atenien­ socráticas. Difícil marcar, na obra
ses o uso correto e hábil da palavra. Eles platônica, a fronteira entre as teses
próprios, designando-se “sábios” ãe Platão e as de Sócrates. (Sócrates
(sofistas), traziam uma mensagem con­
e Platão, desenho do século XIII.)
trária às pretensões dos tradicionais
“amigos da sabedoria” (filósofos). Não
se preocupavam com tentar desvendar o mostra que as noções propostas pelos
segredo dos astros ou da origem do uni­ filósofos como capazes de resolver os
verso, como os cosmologistas jônicos, problemas do mundo físico eram turvas
voltando seu interesse para o plano e cheias dê ambigüidades: seria pelo
humano, dos valores morais e políticos. menos tão dificil falar sobre o ser quanto
Negando a possibilidade de se desvendpr sobre o não-ser. Lidando apenas com
a natureza (physis) das coisas, funda­ suas sensações, o homem não teria aces­
mentam todo o conhecimento na conven­ so direto às coisas e jamais teria a
ção (nomos), a partir das impressões garantia de estar transmitindo a outrem,
sensíveis. Donde resulta que nenhuma com fidelidade, aquilo que ele percebe.
afirmativa poderia pretender validade Resta-lhe um plano em comum com os
absoluta, só valendo relativamente às demais: o das palavras, convenções que
experiências e às circunstâncias em que resumem múltiplas sensações. A lingua­
tem origem. “O homem é a medida de gem é o que compete ao homem investi­
todas as coisas, das que são enquanto gar, desenvolver, aprimorar, para aten­
são e das que não são enquanto não são” der a seus interesses e necessidades.
afirma Protágoras de Abdera, expri­ Desvinculadas da physis, não mais
mindo o relativismo da sofistica. expressão da “alma das coisas”, as
Outro grande representante dessa cor­ palavras se dessacralizam. Mas, com
rente, Górgias de Leontinos (c.487-380 isso, os valores humanos que elas expri­
a.C.), justificando o valor da retórica, mem perdem o peso do absoluto e da

36
SÓCRATES

guns séculos antes. O próprio regime


democrático — fruto daquela valoriza­
ção — permitia ao cidadão ateniense a
experiência diária de que é o homem que
faz ou altera as leis, como resultado do
confronto e do acordo entre interesses e
pontos de vista diferentes.
Embora confundido — como por Aris­
tófanes — com os sofistas. Sócrates
desenvolverá, junto aos atenienses, uma
atividade sob vários aspectos oposta à
dos mestres de eloquência e da arte de
persuasão. Essa atividade ele mesmo
considera, como relata Platão na Apolo-
?iia, a sagrada missão que lhe fora con-
iada pelo deus de Delfos. Até esse
momento, ele havia acompanhado, como
pretendem alguns biógrafos, os ensina­
mentos de sofistas como Hípias (século
V a.C.) e Pródicos (c.465-399 a.C.).
Havia também se encantado provisoria­
mente — como narra o Fédon de Platão —
com a doutrina de Anaxágoras, que afir­
mava que todas as coisas do universo se
tinham organizado devido à ação inicial
da Inteligência ou do Espírito (Nous).
Teria ainda recebido a influência de
duas mulheres, a cortesã Aspásia de Mi-
leto e a sacerdotisa Diotima de Manti-
Euclides de Mégara fundou uma das
néia (a quem Sócrates, no Banquete de
escolas “socráticas menores”. Uniu
Platão, atribui a concepção de amor que
doutrinas de Sócrates ao eleatismo e à
apresenta).
sofistica. (Quadro de G. di Gand e P.
Em 432 a.C. explode o conflito entre
Berruguete, Palácio Ducal, Urbino.)
Atenas e a outra cidade que com ela dis­
putava a hegemonia do mundo grego:
universalidade: tornam-se convencio­ Esparta. Sócrates toma parte na guerra
nais, circunstanciais, relativos. do Peloponeso e destaca-se pela bravura
A moral tradicional e as normas de e pelas demonstrações de resistência fí­
conduta política pareciam estar ameaça­ sica. Durante o cerco de Potidéia, salva
das pela vaga de racionalização trazida a vida de Alcibíades (c.450-404 a.C.),
pelos sofistas. Mas, na verdade, não é que se tomará político e militar famoso
com eles que tem início a humanização e discutido, além de dedicar a Sócrates
relativizadora dos valores. Eles apenas — como Platão o faz declarar no Ban­
exprimem o clima cultural da Atenas quete — um exaltado afeto. No mesmo
daquele tempo: a relativização dos valo­ diálogo, Alcibíades revela outro traço da
res e a laicização das questões morais personalidade de Sócrates que o tomava
aparecem na própria evolução da tragé­ invulgar: certa vez, em Potidéia, ele
dia grega, de Esquilo a Eurípides, pas­ teria permanecido, durante 24 horas,
sando por Sófocles. O “homem medida imóvel e absorto em seus pensamentos,
de todas as coisas” era' mais do que a diante da estupefação dos soldados.
expressão do relativismo de Protágoras Mais tarde (424 a.C.), Sócrates teria
de Abdera: manifestava uma situação participado novamente de campanha
geral do momento histórico vivido pela militar, desta vez em Délio, quando os
Grécia e particularmente por Atenas, atenienses foram derrotados pelos teba-
como resultado da progressiva valoriza­ nos. Teve então a oportunidade de salvar
ção da “medida humana”, iniciada al­ a vida de Xenofonte. Mas também em

37
OS PENSADORES

tempos de paz sua coragem foi demons­ dimensão religiosa. Se, em nome da
trada. Em 406 a.C., enfrentou a ira da indicação contida na afirmativa do orá­
multidão que exigia a condenação sumá­ culo, Sócrates desenvolveu uma insis­
ria dos generais tidos como responsáveis tente investigação sobre o significado de
pelo desastre das Arginusas — quando a palavras, certamente não visava, como
tempestade impediu que fossem recolhi­ interpretará Aristóteles, à definição de
dos no mar, como estabelecia a lei, os conceitos. Tanto, que os Diálogos de
corpos dos que pereceram no combate. Platão, considerados transcrições apro­
Apesar das ameaças, Sócrates, sorteado ximadas de conversações efetivamente
para dirigir a assembléia escolhida para entabuladas por Sócrates (os primeiros
julgar os generais, fez prevalecer a lei, Diálogos, justamente designados
impondo que houvesse tantos julga­ “socráticos”), terminam sempre sem que
mentos quantos eram os acusados. Nou­ se chegue a uma conclusão a respeito do
tra ocasião, quando o regime democrá­ tema debatido. É que, para Sócrates, a
tico foi provisoriamente interrompido meta seria não o assunto em discussão,
pelo governo dos Trinta Tiranos, Sócra­ mas a própria alma do interlocutor, que,
tes arrostou a furia desses oligarcas, ao através do debate, seria levada a tomar
recusar-se a participar da tentativa de consciência de sua real situação, depois
sequestro dos bens de Leon de Salamina, que se reconhecesse povoada de concei­
o que considerava injusto. Diante de tos mal formulados e obscuros.
qualquer forma de governo e de qual­ A implacável racionalização contida
quer autoridade constituída, Sócrates na dialogação socrática — com a qual,
prestava primeiro obediência aos dita­ segundo o filósofo alemão Nietzsche
mes de sua própria consciência. (1844-1900), Sócrates teria amortecido
Mas o fato que teria marcado, de a primitiva força criadora do gênio
forma decisiva, o resto de sua existência grego — significava, ao que parece, fide­
foi, segundo ele mesmo afirma na Apolo­ lidade e submissão ao oráculo. Em Só­
gia, a declaração, pelo oráculo de Delfos crates a razão seria tão mais forte e exi­
a seu amigo Querefonte, de que ele era o gente quanto não teria apenas em si
mais sábio dos homens. Logo ele, sem mesma o motivo de sua autoconfiança. A
qualquer especialização, ele que estava sabedoria oracular — que já havia mar­
ciente de sua ignorância? Logo ele, cado o pensamento e a linguagem de
numa cidade repleta de artistas, orado­ Heráclito de Éfeso (c.540-480 a.C.) —
res, políticos, artesãos? Sócrates parece f>arece constituir para Sócrates o abso-
ter meditado bastante tempo, buscando uto em que se apóia a razão. Ao tentar
o significado das palavras da pitonisa. decifrá-lo, a razão não se contrai, antes
Afinal concluiu que sua sabedoria só se expande, e, porque o absoluto é sua
poderia ser aquela de saber que nada meta e seu ponto de referência, ela pode
sabia, essa consciência da ignorância e deve traçar um itinerário que não
sobre coisas que era sinal e começo da conhece limites.
autcconsciência. E viu nas palavras ora- No cumprimento da missão de que se
culares a indicação de uma missão a sente encarregado, Sócrates dialoga.
cumprir. “Desde então”, conta em seu Geralmente o interlocutor, tido como
julgamento, “de acordo com a vontade autoridade em algum ramo de conheci­
do deus, não deixei de examinar os meus mento ou de atividade, decepciona-o.
concidadãos e os estrangeiros que consi­ Apenas nos artífices encontra alguma
dero sábios e, se me parecerem que não o consciência .daquilo que fazem. Mas
são, vou em auxílio do deus revelando- esses revelam um conhecimento restrito
lhes a sua ignorância.” às suas especializações e embaraçam-se
quando levados a opinar sobre outros
O renascer na própria alma assuntos, embora de geral interesse para
os homens. Isso parece confirmar a Só­
crates o sentido da superioridade que
A atividade filosófica de Sócrates lhe fora atribuída pelo oráculo: o reen­
tinha em sua origem — a crer no depoi­ contro consigo mesmo só pode partir da
mento da Apologia platônica — uma consciência da própria ignorância. Mas

38
SÓCRATES

SCALA

A escola cínica, de Antístenes e Diógenes, desenvolveu, a partir do


socratismo, uma ética baseada no esforço, no autodomínio ena recusa
das convenções sociais. Pautada no exemplo de Sócrates, prescrevia a
fidelidade à natureza humana e a liberdade individual. (Diógenes,
detalhe do “Mosaico dos Filósofos", Museu Romano-Germânico, Colônia.)

39
OS PENSADORES

No seu diálogo Banquete, Platão apresenta Sócrates como um dos comensais


que debatem o tema do amor. Sócrates expõe uma doutrina, que atribui à
sacerdotisa Diotima de Mantinéia, exaltando o papel de Eros: o Amor é que
conduziría a alma, atraída pela beleza, até a contemplação do Belo Absoluto.
(“Gregos num Banquete”, detalhe de um vaso do século IVa.C., Museu Britânico.)

essa ignorância, que é um atributo de vezes lhe freava as iniciativas e impe­


Sócrates, não é geralmente assumida dia-o de dialogar com determinadas pes­
pelas outras pessoas, que se julgam na soas, Sócrates escolhia aqueles com os
posse de “verdades”. Torna-se necessá­ quais a conversa poderia assumir cará­
rio, portanto, levá-las, de saída, a despo- ter de reconstrução, após o exorcismo
jar-se dessas pseudoverdades — única propiciado pela ironia. Nessa outra fase
forma de torná-las aptas a caminharem do método socrático, o interlocutor —
em direção ao conhecimento de si mes­ transformado em discípulo — é levado,
mas. A demolição das falsas idéias que progressivamente, pela habilidade das
fundamentam a falsa imagem que as questões propostas, a tentar elaborar ele
pessoas têm delas próprias é o que pre­ mesmo suas próprias idéias. Não mais a
tende a ironia: momento do diálogo em repetição automática de fórmulas consa­
que Sócrates, reafirmando nada saber, gradas ou chavões herdados, embora
força o interlocutor a expor suas opi­ ocos de sentido. Agora, de início timida­
niões, para, com habilidade, emaranhá- mente, o interlocutor-discípulo é condu­
lo na teia obscura de suas próprias afir­ zido ao risco de tentar ser ele mesmo, de
mativas e acabar reconhecendo a ele mesmo conceber idéias. E de ser ele
ignorância a respeito do que antes julga­ mesmo sua própria alma. Sócrates —
va ter certeza. A ironia socrática tem, dando um exemplo que a pedagogia
assim, a função de propiciar uma catar­ moderna frequentemente tenta reviver —
se: uma purificação da alma por via da reserva-se nessa fase, chamada maiêu-
expulsão das idéias turvas, das ilusões e tica ou parturição das idéias, um papel
dos equívocos que distanciavam a alma semelhante ao de sua mãe, Fenareta. Ela
de si mesma. ajudava as mulheres a darem à luz seus
Orientado por seu “demônio” (dai- filhos; Sócrates, que se dizia ele mesmo
mon), espécie de voz interior que às estéril — pois só sabia que nada sabia —,

40
SÓCRATES

procurava auxiliar as pessoas noutra matemática (relativa aos “irracionais”).


forma de concepção, a das idéias pró­ Mesmo que não se trate, no caso, do re­
prias: forma de se ir ao encontro de si lato de um fato efetivamente ocorrido,
mesmo — como prescrevia a inscrição do ou se teria sido outro o conteúdo da
templo de Delfos — e de fazer de si conversação entre Sócrates e o escravo,
mesmo o seu próprio ponto de partida. não importa: a situação descrita por
Em algumas afirmativas que lhe são Platão é certamente representativa do
atribuídas, Sócrates compara-se aos mé­ menosprezo de Sócrates pelos precon­
dicos: como estes, ele submetia, quando ceitos sociais da própria democracia
necessário, o interlocutor-paciente à ateniense. Demonstrar publicamente que
purgação da ironia, condição preliminar um escraVo era capaz, se bem conduzido
para a recuperação da saúde da alma, pelo processo educativo, de ter acesso às
que seria o conhecimento de si mesma. mais importantes e difíceis questões
E, na verdade, o sentido da filosofia — científicas era sem dúvida provar que ele
que ele identificava com sua sagrada era pelo menos igual, em sua alma, a
missão — era o de conduzir o indivíduo a qualquer cidadão. Era invalidar as
pensar como quem se cura: pensando distâncias sociais e políticas entre os
palavras como quem pensa feridas. indivíduos e mostrar que, de direito,
Na escolha de seus interlocutores, Só­ todos eram intrinsecamente semelhan­
crates não levava em conta fatores de tes. Porque sua missão era levar todos
natureza social e econômica. O seu dai- os homens a buscar o verdadeiro bem —
mon guiava-o no processo seletivo, pelo cuidado da própria alma —, Sócra­
fazendo-o perceber, com um agudo tes contrariava os interesses daquela
senso de oportunidade pedagógica, minoria que detinha o poder na demo­
quais as pessoas que ainda não dispu­ cracia ateniense. Assim, quando em 399
nham de condições psicológicas para ser a.C. a democracia condena-o à morte,
submetidas ao “tratamento” da ironia e ela não apenas o pune: ela se defende.
da maiêutica. Imbuído de espírito mis­
sionário, Sócrates, ao contrário dos
sofistas, não cobrava por seu trabalho:
O que é ser bom?
considerava-se a serviço do deus. Assim,
enquanto a atividade pedagógica dos Para os primeiros filósofos gregos, o
sofistas tinha como conseqüência polí­ homem seria explicado pelo mesmo
tica facilitar a ascensão na vida pública substrato ou pela mesma natureza
daqueles que dispunham de recursos (physis) que justificaria a existência de
suficientes para pagar suas caras lições todos os seres. Se tudo era constituído
— e que, portanto, já detinham em suas ou proviría de água, ou de fogo, ou de
mãos o poder econômico —, a de Sócra­ átomos, também o homem teria na água,
tes, exercida em nome do espírito reli­ no fogo ou nos átomos as “raízes” de sua
gioso, abria-se a qualquer um que mani­ realidade física, psíquica, moral. Como
festasse situação psicológica favorável à transparece claramente no pitagorismo,
realização do processo ae autoconheci- a ética se inseria na cosmologia. Justa­
mento. Essa forma de seleção dos mente a grande revolução filosófica ins­
interlocutores-educandos tornava demo- taurada pelos sofistas consistiu na des­
cratizadora a pedagogia socrática. vinculação do homem em relação à
Mas, para aquela democracia, que physis universal. Certamente sob a
recusava o direito de cidadania às influência das escolas médicas — que
mulheres, aos estrangeiros e aos escra­ verificavam a peculiaridade de determi­
vos — portanto, à maioria da população nadas reações orgânicas do homem —, os
de Atenas —, o Sócrates pedagogo e mé­ sofistas passam a atribuir autonomia à
dico de almas constituía uma denúncia natureza humana. Mas o humanismo
de suas limitações e, conseqüentemente, que formulam apresenta-se vinculado ao
um perigo. No diálogo Ménon, Platão ceticismo, à indiferença religiosa e ao
descreve Sócrates realizando a maiêu­ relativismo epistemológico. Refletindo
tica com um escravo e levando-o a con­ outros fundamentos, o humanismo so-
ceber noções sobre intrincada questão crático — centralizado no preceito

41
OS PENSADORES

tando a excelência de tudo o que é útil


para algum ato ou fim. Com Hesiodo
(século VIII a.C.) é que a aretê passa a
assumir significado mais estritamente
moral: deixa de ser atributo natural de
bem-nascidos para se transformar numa
conquista, resultado do esforço e do tra­
balho enobrecedor de qualquer homem.
Por isso mesmo é que com Hesiodo já se
propõe a questão do ensino da aretê, que
será retomada pelos sofistas e por Só­
crates. Antes dos sofistas, o tema da
aretê e de seu ensino, desde Hesiodo,
estivera inserido na temática de poetas,
como Teognis, Simônides e Píndaro, que
desenvolveram a chamada poesia pare-
nética, de exortação moral. Os sofistas é
que transpõem para a prosa uma ques­
tão de que tradicionalmente se ocupara
a poesia — e isso é sinal de que neles
essa problemática recebia sua definitiva
racionalização.
Sócrates reage ao relativismo sofis­
tico. Ao que tudo indica, alicerçado em
pressupostos religiosos órfico-pita-
góricos, não concebe o conhecimento hu­
mano como apenas a sucessão de im­
pressões sensíveis — fugazes e
Morrer, mas não trair a consciência — intransferíveis — ou a criação, a partir
a última lição de Sócrates. (“Morte de delas, dos sinais convencionais que
Sócrates”, miniatura do século XV, em constituiríam a linguagem. Se as pala­
“A Cidade de Deus”, de S. Agostinho, vras são geralmente um terreno instável
Museu H. Westrenianum, Haia.) e uma expressão de opinião relativa e
insegura, é porque, segundo ele, não
“conhece-te a ti mesmo” — caminha num estariam acompanhadas da consciência
sentido aparentemente semelhante, mas, de seu significado. Mas esse significado,
na verdade, profundamente diverso. por sua vez, deveria emanar da própria
A tradição ética na cultura grega alma do indivíduo, que constitui uma
parte de Homero e Hesiodo. As epopéias unidade subjacente às mutáveis impres­
noméricas (séculos X-VIII a.C.) formu­ sões dos sentidos.
lam uma ética aristocrática que fazia da Na verdade, Sócrates criou uma nova
virtude (aretê) um atributo inerente à concepção de alma (psiquê), que passou
nobreza e manifestado através da condu­ a dominar a tradição ocidental. Antes,
ta cortesã e do heroísmo guerreiro. Jus­ como em Homero, a psiquê era o
tamente porque identificada a atributos “duplo” que podia se desprender provi­
da nobreza, a aretê homérica era usada soriamente durante"o sono ou definitiva­
para designar não apenas a excelência mente, com a morte, mas que nada tinha
humana, como também a superioridade a ver com a vida mental ou as
de seres não-humanos — como a força “faculdades” da pessoa. Nos órficos, era
dos deuses e a rapidez dos cavalos o princípio superior, que se reencamava
nobres. Originariamente, portanto, a sucessivamente, atravessando o pro­
palavra aretê não tem o sentido preciso cesso purificador que a reconduziría às
de “virtude”. Ainda não atenuada pelo estrelas e a reintegraria na harmonia
seu uso posterior puramente ético, esta­ universal; mas, enquanto ligada ao
va de início ligada às noções de função, corpo, só se manifestava em situações
de realização e de capacitação, deno­ excepcionais — sonhos, visões, transes.

42
SÓCRATES

SNARK INTERNATIONAL
Cercado de amigos e discípulos, Sócrates vive seus derradeiros momentos.
A serenidade que mantivera durante a vida, mesmo diante de perigos,
conserva à beira da morte. Em qualquer circunstância, mostra Sócrates,
o importante é conhecer-se a si mesmo e cuidar sempre da própria alma.
(“Morte de Sócrates”, por Louis David, Museu Metropolitano, Nova York.)

Nos pensadores jônicos do século VI to principal da preocupação e dos


a.C., a psiquê era apenas uma parte do cuidados do homem.
todo: porção do pneuma (ar) infinito que Essa concepção de alma toma com­
habitava o corpo, vivificando-o proviso­ preensível a tese socrática de que a vir­
riamente até escapar, como último alen­ tude é conhecimento e que, por conse­
to, na hora da morte — como em Anaxí- guinte, ninguém erra deliberadamente.
menes de Mileto; ou porção de fogo a Só que aquele conhecimento nada teria a
aquecer e animar o corpo até que afinal ver com as opiniões flutuantes e geral­
retomasse à unidade do Fogo-Razão, o mente infundadas. O conhecimento que
Logos universal “eternamente vivo, que Sócrates identifica à aretê é a episteme
se acende com medida e se apaga com (ciência), não a doxa (opinião). E essa
medida” — como em Heráciito de Éfeso. episteme — que riâo pode ser ensinada —
É a partir de Sócrates — ou pelo menos é não constitui uma ciência sobre coisas
na literatura referente a ele e que se se­ ou informações voltadas para a obtenção
guiu à sua morte — que surge a concep­ de prestígio ou de riquezas: é o conheci­
ção de alma como sede da consciência mento de si mesmo, a autoconsciência
normal e do caráter, a alma que no coti­ despertada e mantida em permanente
diano de cada um é aquela realidade vigília. Bom é, assim, o homem auto-
interior que se manifesta através de construído a partir de seu próprio centro
palavras e de ações, podendo ter conhe­ e que age de acordo com as exigências
cimento ou ignorância, bondade ou mal­ de sua alma-consciência: o seu oráculo
dade. E que, por isso, deveria ser o obje­ interior finalmente decifrado.

43
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
480 a.C. — A perda das de Clazômena fixa-se em Aristófanes e o Connos de
Termópilas abre a Grécia Atenas. Amipsias.
central à invasão. A frota 460 a.C. — Nascimento de 421 a.C. — Paz de Nícias:
grega esmaga a persa em Tucídides. fim do primeiro período da
Salamina. Nascimento de 456 a.C. — Morte de Ésqui- guerra.
Eurípides. lo. 415-413 a.C. — A guerra
479 a.C. — Vitória dos gre­ 449-429 a.C. — Governo de recomeça entre Atenas e
gos sobre os persas em Pla­ Péricles. Esparta.
téia, em terra, e em Micala, 432-429 a.C. — Sócrates 406 a.C. — Questão dos
no mar. Término da segun­ participa da campanha e do Arginusas e pritania de Só­
da guerra médica e início da cerco de Potidéia. crates.
hegemonia de Atenas. 431 a.C. — Começo da 404 a.C. — Assédio e capi­
477 a.C. — Formação da guerra do Peloponeso entre tulação de Atenas. Assassí­
confederação de Delos, que Esparta e Atenas. nio de Alcibíades.
se transformará, pouco a 428 a.C. — Nasce Platão. 404-403 a.C. — Governo
pouco, em império atenien­ 424 a.C. — Sócrates parti­ dos Trinta.
se. cipa da batalha de Délio. 403 a.C. — Restauração da
470 ou 469 a.C. — Nasci­ 423 a.C. — São apresenta­ democracia.
mento de Sócrates. dos simultaneamente, em 399 a.C. — Processo e mor­

BRASIL
461 a.C.(?) — Anaxágoras concurso, As Nuvens de te de Sócrates.

-
BIBLIOGRAFIA

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Burnet, John: Greek Philosophy, Macmillan & Co. Ltd., Londres, 1955.
COPYRIGHT MUNDIAL 1972

44
OS PENSADORES

QQ utrora na minha juventude modo, com Tales — que a tradição consi­


■ 1 experimentei o que tantos jo- dera o ponto inicial da investigação
V-X vens experimentaram. Tinha o científico-filosófica ocidental — teria
projeto de, no dia em que pudesse dispor começado também a linhagem dos filó-
de mim próprio, imediatamente intervir sofos-políticos e dos filósofo s-legis-
na política.” Quem assim escreve, em ladores, cuja vida e cuja obra desenvol­
cerca de 354 a.C., é o setuagenário Pla­ veram-se em íntima conexão com os
tão, numa de suas cartas — a carta VII, destinos da polis. No próprio vocabu­
endereçada aos parentes e amigos de lário dos primeiros filósofos manifesta-
Dion de Siracusa. se essa conexão: muitas das palavras
O interesse de Platão pelos assuntos que empregam sugerem experiências de
políticos decorria, em parte, de circuns­ cunho originariamente social, generali­
tâncias de sua vida; mas era também zadas para explicar a organização do
uma atitude compreensível num grego cosmo. Por outro lado, a estrutura polí­
de seu tempo. Toda a vida cultural da tica fornece ao pensador esquemas inter-
Grécia antiga desenvolveu-se estreita­ pretativos: à polis monárquica corres­
mente vinculada aos acontecimentos das ponde uma visão do processo
cidades-Estados, as polis. Essa vincula- cosmogônico entendido como o desdo­
ção resultava fundamentalmente da or­ bramento ou a transformação de um
ganização política, constituída por uma único princípio (arquê), tal como apa­
constelação de cidades-Estados forte­ rece nas primeiras cosmogonias filosófi­
mente ciosas de suas peculiaridades, de cas. Com o tempo, esses esquemas inter-
suas tradições, de seus deuses e heróis. pretativos vão, porém, se alterando, em
A própria dimensão da cidade-Estado parte pela dinâmica inerente ao pensa­
impunha, de saída, grande solidariedade mento filosófico, em parte como reflexo
entre seus habitantes, facilitando a ação das novas formas de vida política. A
coercitiva dos padrões de conduta; e, ao instauração do regime democrático em
mesmo tempo, propiciava à polis o Atenas e em outras cidades suscita
desenvolvimento de uma fisionomia par­ novos temas para a investigação e suge­
ticular, inconfundível, que era o orgulho re novos quadros explicativos: o filósofo
e o patrimônio comum de seus cidadãos. Empédocles de Agrigento — líder demo­
O fenômeno geográfico e o político asso- crático em sua cidade — concebe a orga­
ciavam-se de tal modo que, na língua nização do universo como resultante do
grega, “polis” era, ao mesmo tempo, jogo de múltiplas “raízes” regidas pela
uma expressão geográfica e uma expres­ isonomia (igualdade perante a lei). Ao
são política, designando tanto o lugar da monismo corporalista dos primeiros
cidade quanto a população submetida à pensadores pode então suceder o plura­
mesma soberania. Compreende-se, as­ lismo: o cosmo é compreendido à ima­
sim, por que um grego antigo pensava a gem da pluralidade de poderes da polis
si mesmo antes de tudo como um cida­ democrática.
dão ou como um “animal político”.
Essa ligação estreita entre o homem
grego e a polis transparece na vida e no Quem pede a palavra?
pensamento dos filósofos. Já Tales de
Mileto (século VI a.C.), segundo o histo­ Entre 460 e 430 a.C., Atenas, sob o
riador Heródoto, teria desempenhado governo de Péricles? atingiu o apogeu de
importante papel na política de seu sua vida política e cultural, tomando-se
tempo, tentando induzir os gregos da a cidade-Estado mais proeminente da
Jônia a se unirem numa federação e, Grécia. Essa situação fora conquistada
assim, poderem oferecer resistência à sobretudo depois das guerras médicas,
ameaça persa que se configurava. Desse quando Atenas liderou a defesa do
mundo grego e derrotou os persas.
Libertando as polis gregas da Ásia
Na página anterior: busto de Platão, Menor e apoiando-se sobre poderosa
Museu das Esculturas Clássicas, confederação marítima, Atenas teve seu
Vaticano. (Foto Scala) prestígio aumentado; enquanto expan-

46
PLATÃO

Platão nasceu e morreu em Atenas. AíJundou a Academia, quando a cidade era


o centro intelectual, artístico epolítico da Grécia. Oplatonismo exprime
esse apogeu e o sentido de liberdade que marcava a vida dos atenienses. (Acrópole.)

dia e fortalecia seu imperialismo, inter­ população — os “cidadãos” — usufruía


namente aprimorava a experiência de­ dos privilégios da igualdade perante a
mocrática, instaurada desde 508 a.C. lei e do direito de falar nos debates da
pela revolta popular chefiada por Clíste- Assembléia (isegoria). As decisões polí­
nes. Pela primeira vez na história, o ticas estavam, porém, na dependência de
governo passara a ser exercido pelo interferências ainda mais restritas, pois
povo, que, diretamente, na Assembléia na própria Assembléia nem todos tinham
(Ekklesia), decidia os destinos da polis. os mesmos recursos de atuação. Lido o
Mas, na verdade, a democracia ate­ relatório dos projetos levados à ordem
niense apresentava sérias limitações. do dia, o arauto pronunciava a fórmula
Em primeiro lugar, nem todos podiam tradicional: “Quem pede a palavra?”
participar dos debates da Assembléia: Segundo o princípio da isegoria, qual­
apenas os que possuíam direitos de cida­ quer cidadão tinha o direito de respon­
dania. Essa discriminação excluía das der a esse apelo, mas, de fato, apenas
resoluções políticas a maior parte dos poucos o faziam. Os que possuíam dons
habitantes da polis: as mulheres, os de oratória associados ao conhecimento
estrangeiros, os escravos. Em conse- dos negócios públicos, os hábeis no
qüência, constituía uma minoria o raciocinar e no usar a voz e o gesto,
demos (povo) que assumira o poder em esses é que obtinham ascendência sobre
Atenas. o auditório, impunham seus pontos de
A democracia ateniense era, na verda­ vista através da persuasão retórica e
de, uma forma atenuada de oligarquia lideravam as decisões. A eloqiiência tor­
(governo dos oligoi, de poucos), já que nou-se, assim, uma verdadeira potência
somente aquela pequena parcela da em Atenas; sem ter necessidade de ne-

47
OS PENSADORES

nhum título oficial, o orador exercia


uma espécie de função no Estado. Se
além de orador era um homem de ação —
como Péricles — tomava-se, durante
algum tempo, o verdadeiro chefe do
povo.
O cuida*do dos democratas em impedir
que o poder retomasse às mãos da anti­
ga aristocracia e outra vez se centrali­
zasse, reassumindo caráter vitalício e
hereditário, acabava por erigir obstá­
culos à própria democracia. A preocupa­
ção em preservar a pureza das institui­
ções democráticas, defendendo-as das
facções adversárias — derrotadas mas
sempre atuantes e prontas a tentar recu­
perar antigos privilégios —, levou os
democratas a estabelecer inclusive uma
duração limitada para o exercício das
funções públicas. Para que nenhum
magistrado se acostumasse ao poder e
nele quisesse se perpetuar, as funções
públicas duravam apenas um ano. Além
disso adotou-se a tiragem de sorte para
a escolha dos ocupantes daquelas fun­
ções, com exceção dos comandos milita­
res, dos ocupantes de cargos financeiros
e dos que exerciam comissões técnicas
que exigissem competência especial.
Com o processo de tiragem de sorte —
que parece estranho e irracional à
mentalidade afeita à administração pú­
blica moderna — a democracia grega
procurava defender-se, firmando o poder
nas mãos da Assembléia dos cidadãos.
Tais escrúpulos, porém, vinham tomar
ainda mais instáveis e flutuantes as deci­
sões políticas. O comparecimento à
Assembléia era frequentemente escasso,
já que, em condições normais, muitos
cidadãos preferiam ocupar-se de seus
negócios particulares; os que compare­
ciam aos debates estavam sujeitos às
S influências dos oradores mais hábeis,
< que faziam oscilar as decisões; final-
5 mente, a curta duração das funções pú-
h blicas aumentava mais ainda a dificul-
£ dade de se desenvolver uma linha
política estável, contínua, duradoura.
Da visão dos corpos belos a alma As deficiências do regime democrático
pode elevar-se e contemplar a Beleza ateniense tomaram-se patentes para al­
absoluta, a idéia do Belo. Essa ascese guns pensadores, que se empenharam
— mostra Platão no “Banquete” — é então em corrigi-las. Se a liberdade
comandada por Eros. (“Apoxiomenos”, proporcionada aos cidadãos era um
cópia de um bronze de Lisipo, do século patrimônio caro a ser preservado, a esta­
IVa.C., Museu do Vaticano, Roma.) bilidade política exemplificada por ou­

48
PLATÃO

tros países, como o Egito, parecia inve­


jável. Sem falar que, dentro da própria
Grécia, o militarismo de Esparta sugeria
uma solução política baseada no sacri­
fício das liberdades individuais em nome
da disciplina e da ordem social.
A crítica à democracia ateniense e a
procura de soluções políticas do mundo
grego foram preocupações centrais da
vida e da obra daquele que é por muitos
considerado o maior pensador da Anti­
guidade: Platão. Nele, filosofia e ação
política estiveram permanentemente in­
terligadas, pois alimentou sempre a con­
vicção de que “ . . .os males não cessarão
para os humanos antes que a raça dos
puros e autênticos filósofos chegue ao
poder, ou antes que os chefes das cida­
des, por uma divina graça, ponham-se a
filosofar verdadeiramente” (Carta VII).

Entre a filosofia
e a política

Platão nasceu em Atenas em 428-7


a.C. e morreu em 348-7 a.C. Essas datas
são bastantes significativas: seu nasci­
mento ocorreu no ano seguinte ao da
morte de Péricles; seu falecimento deu-
se dez anos antes da batalha de Quero-
néia, que assegurou a Filipe da Macedô-
nia a conquista do mundo grego. A vida
de Platão transcorreu, portanto, entre a
fase áurea da democracia ateniense e o
final do período helênico: sua obra filo­
sófica representará, em vários aspectos,
a expansão de um pensamento alimen­
tado pelo clima de liberdade e de apogeu
político.
Filho de Ariston e de Perictione, Pla­
tão pertencia a tradicionais famílias de
Atenas e estava ligado, sobretudo pelo
lado materno, a figuras eminentes do
mundo político. Sua mãe descendia de
SCALA

Sólon, o grande legislador, e era irmã de


Cármides e prima de Crítias, dois dos
Trinta Tiranos que dominaram a cidade
durante algum tempo. Além disso, em A filosofia chegou a Atenas com
segundas núpcias Perictione casara-se Anaxágoras. Sócrates foi o primeiro
com Pirilampo, personagem de destaque filósofo que Atenas produziu, mas fez
na época de Péricles. Desse modo, se morrer. Platão é o espírito ateniense
Platão em geral manifesta desapreço que medita sobre o significado dessa
pelos políticos de seu tempo, ele o faz morte. (Esteia com “Atena Pensativa”,
como alguém que viveu nos bastidores Museu da Acrópole, Atenas.)

49
OS PENSADORES

das encenações políticas desde a infân­


cia. Suas críticas à democracia ateniense
pressupunham um conhecimento direto
das manobras políticas e de seus verda­
deiros motivos.
Segundo o depoimento de Aristóteles,
Platão, na juventude, teria conhecido
Crátilo, que, adotando as idéias de
Heráclito de Éfeso sobre a mudança per­
manente de todas as coisas — e certa­
mente interpretando de forma parcial e
empobrecida a tese heraclítica —, afir­
mava a impossibilidade de qualquer
conhecimento estável. Os dados dos sen­
tidos teriam validade instantânea e
fugaz, o que tornava inútil e ilegítima
qualquer afirmativa sobre a realidade:
quando se tentava exprimir algo, este já
deixara de ser o que parecia no momento
anterior. Na versão apresentada por
Crátilo, o incessante movimento das coi­
sas tomava-se um empecilho à ciência e
à ação, que não podiam dispensar bases
estáveis. Buscando justamente estabe­
lecer esses fundamentos seguros para o
conhecimento e para a ação, Platão
desenvolverá, na fase inicial de sua filo­
sofia, uma visão que tende a sustentar a
realidade no intemporal e no estático. Só
posteriormente seu pensamento irá reab-
sorver o movimento e a transformação,
tentando estabelecer a síntese entre a
tradição eleática (que negava a raciona­
lidade de qualquer mudança) e a heraclí­
tica (que afirmava o fluxo contínuo de
todas as coisas).
Mas o grande acontecimento da moci­
dade de Platão foi o encontro com Sócra­
tes. Na época da oligarquia dos Trinta
(entre os quais estavam Cármides e Crí-
tias), os governantes haviam tentado
fazer de Sócrates cúmplice na execução
de Leon de Salamina, cujos bens deseja­
vam confiscar. Sócrates recusou-se a
participar da trama indigna e, evidente­
mente, deixou de ser visto com simpatia
pelos tiranos. Mais tarde, já reinstau-
rado o regime democrático em Atenas,
Sócrates, “o mais justo e o mais sábio Sócrates Foi acusado de corromper a
dos homens”. Difícil marcarafronteira juventude, por difundir idéias contrárias
entre socratismo eplatonismo; à religião tradicional, e condenado a
Sócrates fala através dos Diálogos de morrer bebendo cicuta.
Platão e Platão faz de Sócrates o Platão, que seguira os debates de Só­
porta-voz de suas doutrinas. (Busto de crates e que o considerava — como escre­
Sócrates, Museu das verá no Fédon — “o mais sábio e o mais
Esculturas Clássicas, Vaticano.) justo dos homens”, pôde acompanhar de

50
PLATÃO

perto o tratamento que seu mestre rece­ talvez o mais forte laço afetivo da vida
bera de ambas as facções políticas. de Platão — representa também o início
Parecia náo existir em Atenas um parti­ de reiteradas tentativas para interferir
do no qual um homem que não quisesse na vida política de Siracusa. Platão visi­
abrir mão de princípios éticos pudesse ta ainda o norte da África, mas de sua
se integrar. Diante da injustiça sofrida ida ao Egito quase nada se sabe com
por Sócrates, aprofunda-se o desencanto segurança. Certo é que, em Cirene, intei­
de Platão com a política e com aquela rou-se das pesquisas matemáticas de­
democracia: “Vendo isso e vendo os ho­ senvolvidas por Teodoro, particular­
mens que conduziam a política, quanto mente as referentes aos “irracionais”
mais considerava as leis e os costumes, (grândezas, como ^2~, cuj° valor exato
quanto mais avançava em idade, tanto não se podia determinar). Os irracionais
mais difícil me pareceu administrar os matemáticos inspirarão várias doutrinas
negócios de Estado” (Carta VII). Mas o platônicas, pois representam uma “justa
impacto causado por Sócrates no pensa­ medida” que nenhuma linguagem conse­
mento e na vida de Platão teve também gue exaurir.
outro significado, este de repercussões Nessa época Platão compõe seus pri­
ainda mais duradouras: com Sócrates, o meiros Diálogos, geralmente chamados
jovem Platão pudera sentir ã necessi­ “diálogos socráticos”, pois têm em Só­
dade de fundamentar qualquer atividade crates a personagem central. Entre esses
em conceitos claros e seguros. Por inter­ diálogos está a Apologia de Sócrates,
médio de Sócrates e de sua incessante que pretende reproduzir a defesa feita
ação como perquiridor de consciências e pelo próprio Sócrates diante da Assem­
de crítico de idéias vagas ou preconce­ bléia que o julgou e condenou. Porém, de
bidas, o primado da política torna-se, certa forma, outros diálogos dessa fase
para Platão, o primado da verdade, da constituem também defesas que Platão
ciência. Se o interesse de Platão foi faz de seu mestre, mostrando que nem
inicialmente dirigido para a política, era ímpio nem pervertia os jovens. Nessa
através da influência de Sócrates ele categoria podem ser incluídos o Críton,
reconhece que o importante não era o Laqu.es, o Lysis, o Cármides e o Eutí-
fazer política, qualquer política, mas a fron. Dentre os primeiros diálogos si­
política. Por isso é que se recusa a parti­ tuam-se ainda o Hípias Menor (talvez
cipar, na mocidade, de atividades políti­ também o Hípias Maior), o Protágoras,
cas: primeiro tem de encontrar os funda­ o Górgias — nos quais aparecem os gran­
mentos teóricos da ação política — e de des sofistas — e o lon. É possível que,
toda ação — para orientá-la retamente. A também nessa época, Platão tenha co­
filosofia para Platão representou, assim, meçado a escrever a República. Em
de início, essa ação entravada, a que se geral, os “diálogos socráticos” desen­
renuncia apenas para poder vir a reali­ volvem discussões sobre ética, procu­
zá-la com plenitude de consciência. rando definir determinada virtude
Depois da morte de Sócrates, disperso (coragem, Lacptes; piedade, Eutífron;
o núcleo que se congregara em tomo do amizade, Lysis; autocontrole, Cármi­
mestre, Platão viaja. Visita Megara, des). Mas são diálogos aporéticos, ou
onde Euclides, que também pertencera seja, fazem o levantamento de diferentes
ao grupo socrático, fundara uma escola modos de se conceituar aquelas virtu­
filosófica, vinculando o socratismo e o des, denunciam a fragilidade dessas
eleatismo. Vai ao sul da Itália (Magna conceituações, mas deixam a questão em
Grécia), onde convive cpm Ârquitas de aberto, inconclusa. Isso possivelmente
Tarento. O famoso matemático e político estaria relacionado ao objetivo do pró­
pitagórico dá-lhe um exemplo vivo de prio Sócrates, que se preocupava antes
sábio-govemante, que ele depois aponta­ com o desencadeamento do conheci­
rá, na República, como solução ideal mento de si mesmo e não propriamente
para os problemas políticos. Na Sicília, com definições de conceitos. De qual­
em Siracusa, conquista a amizade e a quer modo, algumas teses socráticas bá­
inteira confiança de Dion, cunhado do ti­ sicas podem ser encontradas nesses diá­
rano Dionísio. Essa ligação com Dion — logos, como a da identificação da

51
OS PENSADORES

virtude com certo tipo de conhecimento e mas não se limitavam ao plano


a da unidade? de todas as virtudes. Os ou­ psicológico e ético: os fundamentos da
tros diálogos dessa fase manifestam ação requeriam uma explicação global
duas preocupações que permanecerão da realidade, na (jual aquela conduta se
constantes na obra platônica: o pro­ desenrola. Depois de suas viagens,
blema político (como no Cármides) e o quando freqüentou centros pitagóricos
do papel que a retórica pode desempe­ de pesquisa científica, Platão via na
nhar na ética e na educação (Górgias, matemática a promessa de um caminho
Protágoras, os dois Hípias). que ultrapassasse as aporias socráticas
— as perguntas que Sócrates fazia, mas
afinal deixava sem resposta — e condu­
A Academia zisse à certeza. A educação deveria, em
última instância, basear-se numa epis­
Cerca de 387 a.C. Platão funda em teme (ciência) e ultrapassar o plano ins­
Atenas a Academia, sua própria escola tável da opinião (doxa). E a política
de investigação científica e filosófica. O poderia deixar de ser o jogo fortuito de
acontecimento é da máxima importância ações motivadas por interesses nem sem­
para a história do pensamento ocidental. pre claros e freqüentemente pouco dig­
Platão torna-se o primeiro dirigente de nos, para se transformar numa ação ilu­
uma instituição permanente, voltada minada pela verdade e um gesto criador
para a pesquisa original e concebida de harmonia, de justiça e de beleza.
como conjugação de esforços de um Durante cerca de vinte anos, Platão
grupo que vê no conhecimento algo vivo dedica-se ao magistério e à composição
e dinâmico e não um corpo de doutrinas de suas obras. Sob forte influência do
a serem simplesmente resguardadas e pitagorismo, escreve os “diálogos de
transmitidas. O que se sabe das ativida­ transição”, que justamente marcam —
des da Academia, bem como a- obra segundo muitos intérpretes — o progres­
escrita de Platão e as notícias sobre seu sivo desligamento das posições origina-
ensinamento oral, testemunham sobre riamente socráticas e a formulação de
essa concepção da atividade intelectual: uma filosofia própria, a partir da nova
antes de tudo busca e inquietação, refor­ saída para o problema do Conhecimento,
mulação permanente e multiplicação das representada pela doutrina das idéias,
vias de abordagem dos problemas, a formas incorpóreas e transcendentes que
filosofia sendo fundamentalmente filoso­ seriam os modelos dos objetos sensíveis.
far — esforço para pensar mais profunda Essas novas formulações aparecem em
e claramente. vários diálogos: Ménon, Fédon, Banque­
Nessa mesma época, em Atenas, Isó- te, República, Fedro. Do mesmo período
crates dirigia um outro estabelecimento é o Eutidemo, que procura estabelecer a
de educação superior. Mas Isócrates — distinção entre a dialética socrática (que
seguindo a linha dos sofistas — preten­ Platão adota e pretende desenvolver) da
dia educar o aspirante à vida pública, “erística”, ou arte das discussões lógi­
dotando-o de recursos retóricos. Nada cas sutis e da disputa verbal, que se tor­
de ciência abstrata: bastava munir o nara a preocupação central da escola de
educando de ‘■‘pontos de vista”, que ele Euclides de Megara. Já no Menexeno o
deveria saber defender de forma persua- tema político reaparece, através da sáti­
siva. Numa democracia dirigida de fato ra a Péricles. Particular importância
por oradores, a instituição de Isócrates apresenta, entre os diálogos dessas fase,
indiscutivelmente desenvolvia uma edu­ o Crátilo, no qual — abrindo perspec­
cação realista, atendendo às necessi­ tivas que ainda hoje a filosofia e a
dades do momento. Mas é outra a pers­ lingüistica exploram — Platão investiga
pectiva da Academia. Para Platão a a possibilidade de extrair a verdade filo­
política não se limitava à prática, inse­ sófica da estrutura da linguagem.
gura e circunstancial. Deveria pressupor Mas um fato interrompe a produção
a investigação sistemática dos funda­ filosófica de Platão e seu magistério na
mentos da conduta humana — como Só­ Academia. Novamente o apelo de Sira-
crates ensinara. Porém, suas bases últi­ cusa e da prática política: em 367 a.C.

52
PLATÃO

SNARK INTERNATIONAL

Depois da morte de Platão, a Academia foi dirigida por Espeusipo, em seguida por
Xenócrates. Posteriormente, com Arcesilau e Caméades, a Nova Academia”
assume índole cética. Novas condições políticas não mais permitem o otimismo que
fazia Platão acreditar na ciência efundamentá-la no Bem. (“Platão Ensinando
Geometria” ou “Conversação ae Filósofos”, Museu Nacional, Nápoles.)

morre Dionísio I, o tirano, que é então Para muitos historiadores, Platão ia a


sucedido por Dionísio II. Dion chama Siracusa tentar aplicar praticamente os
Platão a Siracusa. Parecia o momento ideais políticos que, a essa altura, já
propício para se tentar reformar a vida havia configurado na República. Isso
política da cidade. Numa polis gover­ não parece muito provável. Siracusa,
nada por um único indivíduo, parecia considerada a mais luxuriosa cidade do
bastar convencê-lo para que tudo se mundo grego, não era, pelos seus costu­
encaminhasse da maneira almejada e mes, o local indicado para Platão tentar
correta. Esse pensamento fez Platão afi­ concretizar o modelo político proposto
nal decidir-se, como confessa na Carta na República e que representava um
VII, a atender os rogos de Dion. esforço de racionalização das funções

53
OS PENSADORES

públicas e da estrutura social. Voltando dadeiro não pode dispensar a fundamen­


a Siracusa, o objetivo de Platão seria tação nas idéias. E é esse mundo de
outro, bem mais prático e realista: com essências estáveis e perenes que o diá­
visão de verdadeiro estadista, preocupa­ logo chamado Sofista investiga. Ao exa­
va-o o conjunto do mundo grego. Seu minar as bases da distinção entre verda­
intento, tudo leva a crer, era o de prepa­ de e erro, apresenta aguda crítica da
rar o jovem tirano para refrear o avanço atividade docente dos sofistas, acusados
dos cartagineses e, se possível, expulsá- de criar e difundir imagens falsas, simu­
los da Sicilia, onde já estavam instala­ lacros da verdade. Já o Político retoma a
dos. Siracusa poderia transformar-se no tese de que o ideal para a polis seria a
centro de forte monarquia constitu­ existência de um rei filósofo, que inclu­
cional, que abarcaria o conjunto das sive pudesse governar sem necessidade
comunidades gregas do oeste da Sicilia. de leis.
E o mundo grego, fortalecido por essa A preocupação política que reaparece
união, poderia opor resistência ao es­ ao longo dos diálogos continuava a ter
trangeiro invasor. Mas a missão de Pla­ seu contraponto no campo prático. Atra­
tão fracassou: não conseguiu mudar as vés da Carta VII sabe-se que Platão vol­
disposições de Dionisio II. Apenas con­ tou uma vez mais a Siracusa, pressio­
seguiu que ele se ligasse, em relações de nado por Dion e por Árquitas e a convite
amizade, a Árquitas de Tarento, dando de Dionisio II, que se declarava disposto
um passo em direção ao ideal político de a seguir sua orientação filosófica. Á essa
unificar essa parte do mundo helênico. altura Dion havia sido banido de Sira­
Essa segunda tentativa política malo­ cusa pelo tirano, mas longe de sua pátria
grada deve ter interrompido a composi­ continuava a alimentar o ideal de refor­
ção da série de diálogos constituída pelo mar sua cidade, para nela instaurar um
Parmênides, Teeteto, Sofista e Político. regime que aliasse, como prescrevia Pla­
Diálogos da plena maturidade intelec­ tão, a autoridade e a liberdade.
tual de Platão, neles as primeiras formu­ Essa nova incursão de Platão a Sira­
lações da “doutrina das idéias” (como, cusa foi decepcionante. Dionisio não
por exemplo, apareciam no Fédon) co­ cumpriu nenhuma de suas promessas:
meçam a ser revistas e todo o pensa­ nem modificou sua conduta política,
mento platônico reestrutura-se a partir nem trouxe de volta Dion, nem se entre­
de bases epistemológicas mais exigentes gou ao estudo sério da filosofia. Apesar
e seguras. Ao mesmo tempo, as frontei­ disso quis reter Platão em Siracusa, e o
ras entre o pensamento do próprio Pla­ filósofo só conseguiu afinal sair de lá
tão e o do seu mestre tornam-se mais ní­ graças à interferência de seus amigos de
tidas, de tal modo que, no Parmênides, Tarento. Ao regressar, Platão encontra
em lugar de Sócrates conduzir e domi­ Dion, que preparava uma expedição
nar a discussão, ele aparece jovem e contra Dionisio. A expedição inicial­
inseguro diante de um Parmênides que, mente teve êxito: afinal Dion conseguiu
levantando dificuldades à teoria das livrar sua cidade da tirania que a opri­
idéias, deixa-o embaraçado. Costuma-se mia. Dion, entretanto, começou a encon­
ver nessa inversão do papel atribuído a trar oposições às reformas que queria
Sócrates nos diálogos o indício de que o introduzir e, em meio às perturbações
platonismo já avançara para além das que passaram a agitar a vida política da
concepções socráticas, que o haviam cidade, acabou traído por seus próprios
inicialmente inspirado. amigos e assassinado. E o que foi pior
Mas a crise que o Parmênides parece para Platão: o mandante do crime, Cali-
instaurar na teoria das idéias não signi­ pos, era um ateniense ligado à Academia
ficou que Platão desistisse dessa doutri­ e que fora com Dion para Siracusa.
na. No Teeteto, a discussão sobre o pro­ Perdido o amigo, encerrada a aven­
blema do conhecimento e as críticas à tura política de Siracusa, restavam a
identificação do conhecimento com a Platão os debates da Academia e a
sensação — posição que é aí atribuída ao elaboração de sua obra escrita. Resta-
sofista Protágoras de Abdera — leva à va-lhe o principal: o seu mundo de
reafirmação de que o conhecimento ver­ idéias.

54
PLATÃO

Manifestando uma vida espiritual in­


quieta, em reelaboração permanente, as
últimas obras de Platão levantam novos
problemas ou reexaminam os antigos
sob outros ângulos. Ao Sofista, e ao
Político deveria seguir-se o Filósofo,
diálogo que teria novamente Sócrates
como personagem central. Mas não che­
gou a ser escrito. Em seu lugar surgiram
o Timeu e o Crítias, que deveríam fazer
parte de uma trilogia que ficou inaca­
bada (o Hermocrates seria o terceiro). O
Timeu constitui um vasto mito cosmogô-
nico, no qual Platão — revelando a cres­
cente influência do matematismo pitagó­
rico — descreve a origem do universo. O
Crítias apresenta um Estado — seme­
lhante ao descrito na República —,
identificando-o com a Atenas pré-histó­
rica, que teria salvo o mundo mediter­
râneo da invasão dos habitantes de
Arquitas de Tarento ofereceu a Platão Atlas.
um exemplo concreto de reifilósofo: Da fase final da obra de Platão é
como pitagórico, aplicava à política ainda o Filebo, que retoma o tema da
o senso ae proporção matemática. felicidade humana, tratado à luz das úl­
(Moeda de Tarento, século IIIa.C.) timas formulações do platonismo. Ao
morrer, Platão deixou interminada uma
grande obra: as Leis. Retomando o pro­
blema político e alterando teses expres­
sas anteriormente na República, Platão
propõe, em sua última obra, uma conci­
liação entre monarquia constitucional e
democracia. O interesse juvenil pelos
assuntos políticos acompanhou-o até o
fim de sua vida. Mas o aprofundamento
da consciência política significou um
longo itinerário que permitiu a constru­
ção da primeira grande síntese filosófica
do pensamento antigo e abriu horizontes
de pesquisa ainda hoje explorados, ser­
vindo de inspiração e de estímulo a gran­
des aventuras do espírito.

O mundo das idéias


“Admitamos pois — o que me servirá
de ponto de partida e de base — que exis­
te um Belo em si e por si, um Bom, um
Grande, e assim por diante. Se admitires
O universo, para Platão, foi constituído a existência dessas coisas^ se concor­
à semelhança de uma obra de arte: como dares comigo, esperarei que elas me
cópia de um modelo (as idéias). A arte permitirão tomar-te clara a causa, que
imitaria os objetos sensíveis, imitqçôes assim descobrirás, que faz com que a
das formas. (Vaso ateniense, séc. V a.C., alma seja imortal.” É Sócrates quem
Museu Gregoriano-Etrusco, Vaticano.) fala a Cebes, no Fédon, diálogo no qual

55
OS PENSADORES

A dialética platônica,, desdobramento da dialogação socrática, apresenta um


movimento ascendente — que relaciona os objetos às formas —
e um descendente, que confirma a fundamentação do mundo sensível no mundo
inteligível.^A Dialética”, ae Veronese, Palácio Ducal de Veneza.)

Platão, descrevendo os últimos instantes como essência existente em si — inde­


de vida e as últimas conversações de seu pendente das coisas e do intelecto huma­
mestre, pouco antes de beber a cicuta, no —, representa a adoção, por Platão,
atribui-lhe explicitamente uma nova de um método de pesquisa de índole
linha de resolução de antigos problemas matemática. Colocar um princípio e
filosóficos e científicos: a doutrina das aceitar como verdadeiro o qúe está em
idéias. Pouco antes, no rpesmo diálogo, consonância com ele, rejeitando o que
Sócrates declarara: . . .Eis o caminho lhe está em desacordo — como afirmara
que segui. Coloco em cada caso um prin­ Sócrates — significa pensar “como geô-
cípio, aquele que julgo o mais sólido, e metra”, que propõe hipóteses das quais
tudo o que parece estar em consonância extrai as conseqüências lógicas. E é o
com ele — quer se trate de causas ou de que Platão propõe através da boca de
qualquer outra coisa — admito como Sócrates: remontar do condicionado (os
verdadeiro, admitindo como falso o que problemas a serem resolvidos ou as coi­
com ele não concorda”. Aquela afirma­ sas a serem explicadas) à condição (a
ção de que existe um Belo em si, um hipótese explicativa), visando antes de
Bom em si ou um Grande em si surge, tudo a estabelecer uma relação de conse-
dentro do desenvolvimento da filosofia qiiência lógica entre as duas proposições
platônica, justamente no momento qm (a que exprime o problema e a que
que esta — segundo a maioria dos intér­ exprime sua hipotética resolução). Pro­
pretes — começa a assumir fisionomia visoriamente deixa-se de lado a questão
própria e se distingue do socratismo. de saber se a condição é ela própria
Essa separação teria ocorrido no ponto auto-sustentável ou se exige o recurso a
em que a formulação da noção de idéia, condições mais amplas ou básicas que a

56
PLATÃO

condicionem. De saida, o importante é ponto, ela podia dar-se por satisfeita, na


verificar o que está em consonância com medida em que seu objetivo seria o dra­
o princípio proposto. Todavia o plato- mático embate das. consciências, condi­
nismo nâo se deterá aí: o exame da pri­ ção para o autoconhecimento. Já em
meira hipótese que resulta da aplicação Platão — a partir da fase do Fédon — a
do “método dos geômetras” — a exis­ dialética vai progressivamente perdendo
tência de entidades em si, as idéias, cau­ o interesse humano imediato e a drama-
sas inteligíveis do que os sentidos ticidade, para se converter, cada vez
apreendem — remeterá a outras hipóte­ com mais apoio em recursos matemáti­
ses que a condicionam. O pensamento de cos, num método impessoal e teórico,
Platão irá se construindo, assim, como que visa aos próprios problemas e não
um jogo de hipóteses interligadas. Ao apenas à sondagem da consciência dos
relativismo dos sofistas, Platão opõe interlocutores. Torna-se uma pesquisa
não uma afirmação de verdade simplória das interligações entre as idéias, che­
e dogmática. A busca de uma condição gando, na fase final do platonismo, a ser
incondicionada para o conhecimento, o considerada um tipo de “metrética” ou
encontro com o absoluto fundamento da arte das medidas e das proporções.
verdade (que só então se distingue do “Admitamos pois — o que me servirá
erro e da fantasia), é para Platão não o de ponto de partida e de base — que exis­
ponto de partida mas a meta a ser alcan­ te um Belo em si e por si, um Bom, um
çada. Porém só se chegará aí depois que Grande, e assim por diante.” Essas pala­
se atravesse todo o campo do possível. O vras, que Platão faz Sócrates dizer no
absoluto, o não-hipotético, habita além Fédon, representam uma mudança de
das últimas hipóteses. direção da investigação filosófica em
Nos primeiros diálogos — os da “fase relação aos pensadores do passado. A
socrática” — já se buscava algo de idên­ explicação do mundo físico, desde os
tico e uno que estaria por trás das múlti­ filósofos da escola de Mileto, convertia-
plas maneiras de se entender conceitos se na procura de uma situação primor­
como “temperança” ou “coragem”. Mas dial que justificaria, em seu desdobra­
esse mesmo que existiría em diversas mento, a situação presente do cosmo.
coisas não era ainda uma entidade meta­ Antes, a água (Tales), o ilimitado
física, algo que existisse em si e por si. (Anaximandro), o “tudo junto” (Anaxá-
No Eutífron é que as palavras idéia e goras) — depois, devido a diferentes pro­
eidos aparecem empregadas, pela pri­ cessos de transformação ou de redistri-
meira vez, numa acepção propriamente buiçáo espacial, o universo em seu
platônica. Ambas aquelas palavras são aspecto atual. A explicação filosófica
derivadas de um verbo cujo significado é representava, assim, o encontro de um
“ver” e têm, assim, como acepção origi­ princípio (arquê) originário e era, por
nária, a de “forma visível” (primaria­ isso mesmo, movida por interesse arcai-
mente no sentido de “formato” ou zante, de busca das raízes, de desvela-
“figura”). Ao que parece, já estavam mento das origens. Com Platão essa ín­
integradas ao vocabulário dos pitagóri- dole retrospectiva e “horizontal” da
cos, com o sentido de modelo geométrico investigação é substituída pela perspec­
ou figura. tiva “vertical” e ascendente que propõe,
Nos diálogos da primeira fase, que seguindo a sugestão do método dos geô­
parecem reproduzir as conversações do metras, as idéias como causas intempo­
próprio Sócrates, a procura do mesmo, rais para os objetos sensíveis. O que é
além de ficar restrita à busca de um belo, mais ou menos belo, é belo porque
denominador comum no nível da signifi­ existe um belo pleno, o Belo que, intem-
cação das palavras, limitava-se a deba­ poralmente, explica todos os casos e
tes sobre questões morais. Esses debates graus particulares de beleza, como a
não eram conclusivos: deixavam os pro­ condição sustenta a inteligibilidade do
blemas enriquecidos e revoltos, com isso condicionado.
denunciando a fragilidade ou a parciali­ Através dos diálogos, Platão vai ca­
dade dos pontos de vista confrontados. racterizando essas causas inteligíveis
Se a dialética socrática chegava a esse dos objetos físicos que ele chama de

57
OS PENSADORES

idéias ou formas. Elas seriam incorpó- liga a alma às idéias e justifica que o
reas e invisíveis — o que significa dizer homem as conheça, como explicar o
justamente que não está na matéria a relacionamento entre as formas e os
razão de sua inteligibilidade. Seriam objetos físicos, entre o incorpóreo e o seu
reais, eternas e sempre idênticas a si oposto, o corpóreo? Essa é uma questão
mesmas, escapando à corrosão do que o próprio Platão levanta no diálogo
tempo, que torna perecíveis os objetos fí­ Parmênides. Antes ainda suscita outro
sicos. Mereciam, por .isso mesmo, o problema, que está na base daquele e
qualificativo de “divinas”, qualificativo que não havia sido esclarecido nas obras
que os filósofos anteriores já atribuíam à anteriores: afinal, de que há idéias?
arquê. Perfeitas e imutáveis, as idéias Os exemplos de idéias apresentados
constituiríam os modelos ou paradigmas no Fédon são extraídos ou da esfera dos
dos quais as coisas materiais seriam valores estéticos e morais (o Belo, o
apenas cópias imperfeitas e transitórias. Bom), ou das relações matemáticas (o
Seriam, pois, tipos ideais, a transcender Grande). De fato, desses dois campos é
o plano mutável dos objetos físicos. que o platonismo vai colher preíeren-
A afirmativa de que o mundo material cialmente os pontos de apoio para pro­
se torna compreensível através da hipó­ por um mundo de modelos transcen­
tese das idéias deixa, porém, em sus­ dentes. Isso é compreensível, uma vez
penso um problema decisivo: o da possi­ que a variação de mais e menos (mais
bilidade de se conhecer essas realidades belo, menos belo; maior, menor) parece
invisíveis e incorpóreas. Com efeito, o sugerir a referência a um padrão absolu­
que inicialmente foi tomado como hipó­ to, a uma “justa medida” (o Belo, o
tese explicativa — a existência do mundo Grande). Todavia, já no Crátilo, onde
das idéias — não basta a si mesmo. É aparece a primeira afirmação da trans­
preciso que se admita um conhecimento cendência das idéias, ela é feita a propó­
das idéias incorpóreas que antecede ao sito da idéia referente a um objeto físico,
conhecimento fornecido pelos sentados, a um artefato, a naveta. No Parmênides
que só alcançam o corpóreo. No Mênon o problema ainda mais se aguça ao
Platão expõe a doutrina de que o inte­ fazer-se a pergunta: há uma forma
lecto pode apreender as idéias porque correspondente ao fogo (realidade física
também ele é, como as idéias, incorpó- e natural), uma forma correspondente ao
reo. A alma humana, antes do nasci­ lodo (objeto físico “inferior”)? Valores
mento — antes de prender-se ao cárcere negativos ou realidades abjetas teriam
do corpo — teria contemplado as idéias um modelo no plano das essências divi-
enquanto seguia o cortejo dos deuses. pas? O que está aí em questão é, na ver­
Encarnada, perde a possibilidade de dade, o significado que o mundo físico
contato direto com os arquétipos incor- tem enquanto corpóreo; se é cópia, o que
póreos, mas diante de suas cópias — os lhe confere o estatuto de cópia, distan­
objetos sensíveis — pode ir gradativa­ ciando-o do arquétipo? Se sua causa
mente recuperando o conhecimento das inteligível é o mundo das idéias, o que
idéias. Conhecer seria então lembrar, constitui isto que lhe dá concreção e
reconhecer. A hipótese da reminiscência materialidade?
vem, assim, sustentar a hipótese da exis­ Num primeiro momento, de dialética
tência do mundo das formas. Mas, por ascendente, impulsionada pelo método
sua vez, implica outra doutrina, que a inspirado no procedimento dos matemá­
condiciona: a da preexistência da alma ticos, Platão deixara de lado, proviso­
em relação ao corpo, a da incorruptibi­ riamente, a natureza do sensível en­
lidade dessa alma incorpórea e, portan­ quanto sensível. Mas na etapa final de
to, a da sua imortalidade. Essa imortali­ seu pensamento, animada também por
dade, de que Sócrates não teve certeza uma dialética descendente que procura
nos primeiros diálogos, converte-se, na vincular o inteligível ao sensível, essa
construção do platonismo, numa condi­ questão assumirá crescente interesse,
ção para a ciência, para a explicação motivando a cosmogonia e a física do
inteligível do mundo físico. Timeu. Também no ensinamento oral
Mas se a doutrina da reminiscência dessa fase — segundo o depoimento de

58
PLATÃO

“Aqui não entre quem não souber geometria” — a inscrição na Academia revela
a importância que tiveram as matemáticas na construção do pensamento platônico.
Em sua fase final, as idéias são entendidas como idéias-números e a dialética
é vista como uma metrética, uma arte da medida. (“A Escola de Atenas”, de Rafael.)

59
OS PENSADORES

Aristóteles — Platão ocupou-se do


mesmo problema, embora tratando-o
noutra direção, ao investigar as idéias
relativas aos objetos de arte.
A relação existente entre as formas e
os objetos físicos que lhes são corres-
Ítondentes é a outra grande questão
evantada pelo Parmênides. Platão pre­
tende resolvê-la através de duas noções
fundamentais: a de participação e a de
imitação. No Parmênides o próprio Pla­
tão formula muitas das objeções que
pensadores posteriores (inclusive Aristó­
teles) farão a essas noções. E, se, ao
longo da evolução de seu pensamento,
permanentemente aprofundou, esclare­
ceu ou refez o significado de participa­
ção e de imitação, jamais abriu mão da
transcendência das idéias.
A doutrina platônica da imitação
(mimesis) difere da que os pitagóricos
propunham desde o século VI a.C.
Desenvolvendo um pensamento funda­
mentado nas investigações matemáticas,
os primitivos pitagóricos afirmavam que
“todas as coisas são números”, enten­
dendo como números realidades corpó-
reas, constituídas por unidades inde-
componíveis que eram ao mesmo tempo Plotino: o platonismo helenístico.
o mínimo de corpo e o mínimo de exten­ (Dedicatória a Lourenço de Médicis da
são. As coisas imitariam os números, tradução das “Enéadas” de Plotino, feita
para os pitagóricos, numa acepção ple­ por Ficino, humanista da Renascença.)
namente realista: os objetos refletiríam
exteriormente a sua constituição numé­
rica interior. A mimesis, no pitagorismo,
apresentara portanto um caráter de
imanência: o modelo e a cópia estão
ambos nos planos concretos; são as duas
faces — interna (apreendida racional­
mente) e externa (apreendida pelos sen­
tidos) — da mesma realidade. Com Pla­
tão a noção de imitação adquire acepção
metafísica, em decorrência do
“distanciamento” entre o plano sensível
e o inteligível. Os objetos físicos — múl­
tiplos, concretos e perecíveis — apare­
FRATELLI FABBRI

cem como cópias imperfeitas dos arqué­


tipos ideais, incorpóreos e perenes. O
mundo sensível seria uma imitação do
mundo inteligível, pois todo o universo,
segundo a cosmogonia do Timeu, seria
resultante da ação de um divino artesão
(demiurgo) que teria dado forma, pelo “Timeu”: objeto de conhecimentos
menos até certo ponto, a uma matéria- prováveis, o mundo físico é explicado
prima (a “causa errante”), tomando por por mitos. (Manuscrito do “Timeu”,
modelo as idéias eternas. A arte divina séc. XI, Bibl. Laurenziana, Florença.)

60
PLATÃO

teria produzido as obras da natureza e é que uma classe usufrua de uma felici­
também as imagens dessas obras (como dade superior, mas que toda a cidade
o reflexo do fogo numa parede). Analo­ seja feliz. O indivíduo faria parte da ci­
gamente, a arte humana produz de dupla dade para poder cumprir sua função so­
maneira: o homem tanto constrói uma cial e nisto consiste ser justo: em cum­
casa real como, na condição de pintor, prir a própria função.
pode reproduzir num quadro a imagem A reorganização da cidade, para
dessa casa. O artista aparece por isso, transformá-la em reino da justiça, exige
na República, como “criador de aparên­ naturalmente reformas radicais. A famí­
cias”. O problema da imitação torna-se lia, por exemplo, deveria desaparecer
mais complexo quando referido aos para que as mulheres fossem comuns a
objetos de arte, objetos artificiais, arte­ todos os guardiães; as crianças seriam
fatos. Faz-se então a distinção entre educadas pela cidade e a procriação
^raus intermediários de imitação: o ob­ deveria ser regulada de modo a preser­
jeto natural imita a idéia que lhe é var a eugenia; para evitar os laços fami­
correspondente e a arte imita, por sua liares egoístas, nenhuma criança conhe­
vez, aquela imitação. A relação cópia- cería seu verdadeiro pai e nenhum pai
modelo usada metafisicamente por Pla­ seu verdadeiro filho; a execução dos tra­
tão para explicar a relação sensível-inte- balhos não levaria em conta distinção de
ligivel reaparece assim em sua sexo mas tão-somente a diversidade das
concepção estética e justifica as restri­ aptidões naturais.
ções feitas aos artistas na República. A efètivação dessa utopia social de-
Particularmente os poetas, comô Home­ Íienderia fundamentalmente, por outro
ro, são aí apresentados como fazendo ado, de um cuidadoso sistema educati­
“simulacros com simulacros, afastados vo, que permitisse a cada classe desen­
da verdade”. No caso das artes plásti­ volver as virtudes indispensáveis ao
cas, Platão recusa a utilização dos exercício de suas atribuições. Mas a ci­
recursos da perspectiva, que então se dade ideal só poderia surgir se o gover­
difundiam e lhe pareciam a sofistica na no supremo fosse confiado a reis-filó-
arte, pois acentuavam a “ilusão de reali­ sofos. Esses chefes de Estado seriam
dade’ . A arte imitativa deveria preser­ escolhidos dentre os melhores guardiães
var o caráter de cópia de seus produtos, e submetidos a diversas provas que
não querendo confundi-los com os obje­ permitiríam aquilatar de seu patrio­
tos reais. Outra saida para as artes plás­ tismo e de sua resistência. Mas, princi­
ticas seria tentar reproduzir a verda­ palmente, deveriam realizar uma série
deira realidade — das formas de estudos para poderem atingir a ciên­
incorpóreas —, o que coloca Platão, cia, ou seja, o conhecimento das idéias,
segundo alguns intérpretes, como ante- elevando-se até seu fundamento supre­
cipador da arte abstrata. mo: a idéia do Bem.
A discussão em tomo da cidade ideal
cede então lugar, na República, a duas
Da sombra à luz apresentações sintéticas de como se
desdobraria o conhecimento humano ao
Na República, a organização de uma ascender até a contemplação do mundo
cidade ideal apóia-se numa divisão das essências: o esquema da linha divi­
racional do trabalho. Como reformador dida e a alegoria da caverna.
social, Platão considera que a justiça Uma linha dividida em dois segmen­
depende dessa diversidade de funções tos (AB, BC), um representando o plano
exercidas por três classe distintas: a dos sensível e outro o plano inteligível, serve
artesãos, dedicados à produção de bens a Sócrates (aí certamente apenas porta-
materiais; a dos soldados, encarregados voz de Platão) para tomar visualizável a
de defender a cidade; a dos guardiães, ascese dialética. Esses dois segmentos
incumbidos de zelar pela observância apresentam subdivisões correspondentes
das leis. Produção, defesa, adminis­ a diferentes tipos de objetos sensíveis
tração interna — essas as três funções e inteligíveis e, conseqíi entemente, a
essenciais da cidade. E o importante não modalidades diversas de conhecimento:

61
OS PENSADORES

BEM sensível: as entidades matemáticas são


C
múltiplas (faz-se um cálculo ou uma
— Idéias- Dialética
demonstração geométrica utilizando-se
diversos 3 ou vários triângulos); além
disso a própria representatividade mani­
E
festa um liame do plano matemático com
Objetos Conhecimentos
matemáticos matemáticos
a sensibilidade, a denunciar seu caráter
(Diânoia) de intermediário entre a percepção sen­
sível e a inteligibilidade plena. Esta só
B
se alcança quando, além das entidades
matemáticas, chega-se à evidência pura­
Objetos Crença (Pistis) mente intelectual (nôesis) das idéias.
sensíveis
D Não se trata mais de vários 3, mas da
essência mesma de “trindade”, que con­
Sombras Ilusão, conjetura fere sentido àqueles seus reflexos mate­
máticos; não se trata mais de triângulos
A — de vários tipos —, mas da
“triangularidade” que neles se efetiva,
O processo de conhecimento repre­ sem se esgotar em nenhum deles. Che-
senta uma progressiva passagem das ga-se assim ao domínio das formas, à
sombras e imagens turvas ao luminoso dialética que se apresenta como uma
universo das idéias, atravessando etapas metamatemática. Finalmente, no cume
intermediárias. Cada fase do processo do mundo das idéias, a superessência do
encontra sua fundamentação e resolução Bem daria sustentação a todo esse edifí­
na fase seguinte. O que é visto clara­ cio de formas puras e incorpóreas. Prin­
mente no plano sensível (e só pode ser cípio de conhecimento (do ponto de vista
objeto de uma conjetura) transforma-se do sujeito) e de cognoscibilidade (do
em objeto de crença quando se têm con­ ponto de vista do objeto), o Bem exerce
dições de percepção nítida. Assim, o ani­ um papel análogo ao que o Sol possui no
mal que na obscuridade “parece um plano sensível e material. Princípio de
gato” revela-se de fato um gato quando realidade — é ele que confere às coisas
se acende a luz. Mas essa evidência sen­ essência e existência, transmutando em
sível ainda pertence ao domínio da opi­ estrutura real a tessitura inicialmente
nião: é uma crença (pistis), pois a certe­ hipotética das idéias. Superessência, é o
za só pode advir de uma demonstração absoluto irrelacionável e por isso mesmo
racional e, portanto, depois que se pene­ indefinível: dele — como dos irracionais
tra na esfera do conhecimento inteligí­ matemáticos — só se podem ter indica­
vel. No plano sensível o conhecimento ções aproximadas, como as que se
não ultrapassa o nível da opinião, da obtêm de uma “justa medida”. Do cará­
plausibilidade. A primeira etapa do ter indefinível do Bem necessariamente
conhecimento inteligível é representada decorre um senso agudo da limitação da
pela diânoia, conhecimento discursivo e palavra, que perpassa por toda a obra
mediatizador, que estabelece ligações platônica e está expresso particular­
racionais: é o conhecimento típico das mente no Fedro e na Carta VIL
matemáticas. O conhecimento sensível A alegoria da caverna dramatiza a as-
deve fundamentar-se nesse patamar que cese do conhecimento, complementando
lhe está sobreposto e lhe dá sustentação o esquema da linha dividida. Descreve
— o que significa que, para Platão um prisioneiro que contempla, no fundo
(sugestão que o Renascimento desenvol­ de uma caverna, os reflexos de simula­
verá), o conhecimento do mundo físico cros que — sem que ele possa ver — são
deve ser construído com o instrumental transportados à frente de um fogo artifi­
matemático. Mas os conhecimentos ma­ cial. Como sempre viu essas projeções
temáticos não constituem, no plato­ de artefatos, toma-os por realidade e
nismo, o ápice da ciência. São ainda permanece iludido. A situação desmon-
uma forma de inteligibilidade primeira, ta-se e inverte-se desde que o prisioneiro
marcada por compromissos com o plano se liberta: reconhece o engano em que

62
PLATÃO

SCALA
Platão explica o mundo sensível através do mundo das idéias, só alcançável
pelo intelecto. As idéias permitiríam construir a compreensão científica da
realidade e, modelos perfeitos, orientariam a ação reformadora ou criadora do
homem. (Platão no “Mosaico dos Filósofos”, Museu Romano-Germânico de Colônia.)

permanecera, descobre a “encenação” justiça social, aquele que faz da procura


que até então o enganara e, depois de da verdade uma arte de desprestidigi-
galgar a rampa que conduz à saída da tação, um desilusionismo.
caverna, pode lá fora começar a contem­ O aspecto emocional que a alegoria da
plar a verdadeira realidade. Aos poucos, caverna ressalta no processo de conver­
ele, que fora habituado à sombra, vai são das consciências à luz também está
podendo olhar o mundo real: primeiro apresentado no Banquete. A ascese ao
através de reflexos — como o do céu mundo das idéias é aí descrita — particu­
estrelado refletido na superfície das larmente no discurso que Sócrates atri­
águas tranqüilas —, até finalmente ter bui a Diotima de Mantinéia — como uma
condições para olhar diretamente o Sol, “ascese erótica”. Eros, que desempenha
íònte de toda luz e de toda realidade. em relação aos sentimentos e às emoções
Essa alegoria de múltipla dimensão — o mesmo papel de intermediário que as
pode ser vista tanto como fabulação da entidades matemáticas representam
ascese religiosa, como da filosófica e para a vida intelectual, comanda a subi­
científica — guarda ainda uma conotação da por via da atração que a beleza dos
política, que o contexto da República corpos exerce sobre os sentidos e reme­
não permite negligenciar. Aquele que se tendo afinal à contemplação do Belo
liberta das ilusões e se eleva à visão da supremo, o Belo em si.
realidade é o que pode e deve governar A construção do conhecimento consti­
para libertar os outros prisioneiros das tui, assim, no platonismo, uma conjuga­
sombras: é o filósofo-político, aquele ção de intelecto e emoção, de razão e
que faz de sua sabedoria um instru­ vontade: a episteme é fruto de inteli­
mento de libertação de consciências e de gência e de amor.

63
OS PENSADORES

CRONOLOGIA

508 a.C. - A revolta popular suas idéias, contrárias à reli­ toma ciência das pesquisas
liderada por Clístenes ins­ giosidade popular e oficial. matemáticas de Teodoro) e
taura a democracia em Ate­ 432 a.C. - Irrompe a guerra visita o Egito.
nas. do Peloponeso: entre Atenas 387 a.C. - Platão funda, em
490 - 479 a.C. - Atenas to­ e Esparta. Atenas, a Academia.
ma parte nas guerras médi­ 428 - 427 a.C. - Nasce Pla­ 367 a.C. - Morre Dionísio I,
cas (contra os persas). tão em Atenas. de Siracusa, sendo sucedido
460 - 430 a.C. - Período de 399 a.C. - Julgado pela As­ por seu filho Dionísio II.
apogeu de Atenas, no qual sembléia popular de Atenas, Segunda viagem de Platão a
ocorre o governo de Péri­ Sócrates é condenado a Siracusa.
cles. morrer bebendo cicuta. 361 a.C. - Terceira viagem a
460 a.C. -aproximadamente 388 a.C. -aproximadamente Siracusa.
- Chega a Atenas o filósofo - Platão viaja: Magna Gré­ 348 - 347 a.C. - Platão mor­
Anaxágoras de Clazômena, cia (sul da Itália, Sicília); re em Atenas.
que, embora protegido por em Siracusa, conhece Dion, 338 a.C. - Filipe da Mace-
Péricles, acaba tendo de dei­ cunhado do tirano Dionísio dônia conquista a Grécia,
xar a cidade, devido às per­ I; convive com Euclides em obtendo a vitória na batalha
seguições suscitadas por Megara; vai a Cirene (onde de Queronéia.

BIBLIOGRAFIA

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Field, G. C.: Plato and his Contemporaries, Methuen , Londres, l.“ ed., 1930.

64
OS PENSADORES

A vida de Aristóteles transcorreu estreitamente vinculada à corte de Pela e à


expansão política da Macedônia, iniciada por Filipe e terminada por Alexandre.
(Olímpia: detalhe dos tesouros do “PhiUppeion , construção votiva mandada
erguer por Filipe, em 338 a.C.). Na página anterior: “Aristóteles”, busto em
bronze, que se encontra no Museu Nacional de Nápoles. (Foto Arborio Mella.)

tenas, 367 ou 366 a.C. Ao grande Naquela época duas grandes institui­

A centro intelectual e artístico da


Grécia no século IV a.C., chega um
jovem de cerca de dezoito anos, prove
niente da Macedônia. Como muitos
ções educacionais disputavam em Ate­
nas a preferência dos jovens que, através
de­ estudos superiores, pretendiam se
preparar para exercer com êxito suas
outros, vem atraído pela intensa vida prerrogativas de cidadãos e ascender na
cultural da cidade que lhe acenava com vida pública. De um lado, Isócrates,
oportunidades para prosseguir seus es­ seguindo a trilha dos sofistas, propu­
tudos. Não era belo e para os padrões nha-se a desenvolver no educando a
vigentes no mundo grego, principal­ aretê política — ou seja, a “virtude” ou
mente na Atenas daquele tempo, apre­ capacitação para lidar com os assuntos
sentava características que poderíam relativos à polis — transmitindo-lhe a
dificultar-lhe a carreira e a projeção arte de “emitir opiniões prováveis sobre
social. Em particular uma certa dificul­ coisas úteis”. E, de fato, numa democra­
dade em pronunciar corretamente as cia como a ateniense, cujos destinos
palavras deveria criar-lhe embaraços e dependiam em grande parte da atuação
mesmo complexos numa sociedade que, de oradores, a arte da persuasão por
além de valorizar a beleza física e enal­ meio da palavra manipulada com o bri­
tecer os atletas, admirava a eloqiiência e lho e a eficácia dos recursos retóricos
deixava-se conduzir por oradores. era fator imprescindível para o desempe­

66
ARISTÓTELES

nho de um papel relevante na cidade-Es- sido o próprio Eudoxo quem lhe apre­
tado. Ao contrário de Isócrates, Platão sentou o novo aluno da Academia, o
ensinava que a base para a ação política jovem da Macedônia de olhos pequenos
— como aliás para qualquer ação — deve­ porém reveladores de excepcional viva­
ria ser a investigação cientifica, de Índo­ cidade: Aristóteles de Estagira.
le matemática. Na Academia, que funda­
ra em 387 a.C., mostrava a seus O preceptor de Alexandre
discípulos que a atividade humana,
desde que pretendesse ser correta e De pura raiz jônica, a família de Aris­
responsável, não poderia ser norteada tóteles estava tradicionalmente ligada à
por valores instáveis, formulados segun­ medicina e à casa reinante da Macedô­
do o relativismo e a diversidade das opi­ nia. Seu pai, Nicômaco, era médico e
niões; requeria uma ciência (episteme) amigo do rei Amintas II, pai de Filipe.
dos fundamentos da realidade na qual Estagira, a cidade onde Aristóteles nas­
aquela ação está inserida. Por trás do ceu, em 384 a.C., ficava na Calcídica e,
inseguro universo das palavras — sujei­ apesar de estar situada distante de Ate­
tas à arte encantatória e à prestidigi- nas e em território sob a dependência da
tação dos retóricos — o educando deve­ Macedônia, era na verdade uma cidade
ria ser levado, por via do socrático grega, onde o grego era a língua que se
exame do significado das palavras, à falava. A vida de Aristóteles — e pode-se
contemplação, no ápice da ascensão dizer que até certo ponto sua obra —
dialética, das essências estáveis e pere­ estará marcada por essa dupla vincu-
nes: núcleos de significação dos vocábu­ lação: à cultura helênica e à aventura
los porque razão de ser das próprias coi­ política da Macedônià.
sas, padrões para a conduta humana Ao ingressar na Academia platônica —
porque modelos de todos os existentes que viria a freqiientar durante cerca de
do mundo físico. Para além do plano da vinte anos — Aristóteles já trazia, como
palavra-convenção (nomos) dos sofistas herança de seus antepassados, acen­
e de Isócrates, Platão apontava um ideal tuado interesse pelas pesquisas biológi­
de linguagem construída em função das cas. Ao matematismo que dominava na
idéias, essas justas medidas de signifi­ Academia, ele irá contrapor o espírito de
cação e de realidade. observação e a índole classificatória, tí­
Diante dos dois caminhos — o de Isó- picas da investigação naturalista, e que
crates e o de Platão — o jovem chegado constituirão traços fundamentais de seu
da Macedônia não hesita: ingressa na pensamento.
Academia, embora a advertência da ins­ Por outro lado, embora de raízes gre­
crição de que ali não devesse entrar gas, ele não era cidadão ateniense e esta­
“quem não soubesse geometria”. Mas va estreitamente ligado à casa real da
em 367 a.C. Platão não se encontrava Macedônia. Essa condição de meteco —
em Atenas. Havia morrido Dionísio I, ti­ estrangeiro domiciliado numa cidade
rano de Siracusa, e Platão para lá se grega — explica que ele não viesse a se
dirigira, pela segunda vez, a chamado tornar, como Platão, um pensador polí­
de seu amigo Dion. O novo tirano, Dioní­ tico preocupado com os destinos da polis
sio II, talvez pudesse ser convencido a e com a reforma das instituições. Diante
adotar uma linha política mais justa e das questões políticas Aristóteles assu­
condizente com os interesses gerais do mirá a atitude do homem de estudo, que
mundo helênico. se isola da cidade em pesquisas especu­
O jovem que viera da Macedônia lativas, fazendo da política um objeto de
ingressa, assim, numa Academia ria qual erudição e não uma ocasião para agir.
a figura principal era, no momento, Eu- Em 347 a.C., morrendo Platão, Aris­
doxo de Cnido, matemático e astrônomo tóteles deixa Atenas e vai para Assos, na
que defendia uma ética baseada na Ásia Menor, onde Hérmias, antigo es­
noção de prazer. Somente cerca de um cravo e ex-integrante da Academia,
ano depois é que Platão retoma, fati­ havia se tornado o governante. É possí­
gado por mais uma frustrada expe­ vel que a escolha de Espeusipo, sobrinho
riência política na Sicília. E talvez tenha de Platão, para substituir o mestre na

67
OS PENSADORES

direção da Academia, tenha decepcio­ distantes, conquistadas em suas expedi­


nado Aristóteles; sua destacada atuação ções, Alexandre enviava ao seu ex-pre-
naqueles vinte anos parecia apontá-lo ceptor exemplares da fauna e da flora
como o mais apto a assumir a chefia. que iam enriquecer as coleções do Liceu.
Três anos depois que Aristóteles havia Mas o biologismo era mais que uma
se transferido para Assos, Hérmias foi perspectiva de escola: tornou-se marca
assassinado. Deixou então a cidade, central da própria visão científica e filo­
levando em sua companhia Pítias, sobri­ sófica de Aristóteles, que transpôs para
nha do tirano morto, e que se tomou sua toda a natureza categorias explicativas
primeira esposa. Mais tarde, morrendo pertencentes originariamente ao domí­
Pítias, desposará Herpilis, que lhe dará nio da vida. Em particular, a noção de
um filho, Nicômaco. espécies fixas — sugerida pela observa­
Saindo de Assos, Aristóteles perma­ ção do mundo vegetal e animal — exerce­
nece dois anos em Mitilene, na ilha de rá decisiva influência sobre a física e a
Lesbos. É o momento em que a Macedô- metafísica aristotélicas, na medida em
nia, garantida pelo poderio militar, co­ que se reflete na doutrina do movimento,
meça a manifestar suas vastas ambições elaborada por Aristóteles.
políticas. Filipe, em 343 a.C., chama Apesar da estima que Alexandre pare­
Aristóteles à corte de Pela e confia-lhe ce ter devotado sempre a seu antigo mes­
importante missão: a de educar seu tre, uma barreira os distanciava: Aristó­
filho, Alexandre. Durante anos o filósofo teles não concordava com a fusão da
encarrega-se dessa missão. É ainda pre- civilização grega com a oriental. Segun­
ceptor de Alexandre quando, em 338 do ele, gregos e orientais eram nature­
a.C., os macedônios derrotam os gregos zas distintas, com distintas potenciali­
em Queronéia. Chega ao fim a autono­ dades, e não deveríam coexistir sob o
mia das polis que caracterizara a Grécia mesmo regime político. Aristóteles esta­
do período helênico. A partir de então — va profundamente convencido de que o
dominada pela Macedônia, mais tarde regime político dos gregos era insepa­
por Roma — a Grécia integrará amplos rável de seu temperamento, sendo im­
organismos políticos que diluirão suas possível transferi-lo para outros povos.
fronteiras e atenuarão as distinções cul­ Estabelece nítida distinção entre as
turais que tradicionalmente separavam populações “bárbaras” e a polis grega,
os gregos de outros povos, sobretudo os somente esta sendo uma comunidade
“bárbaros” orientais. perfeita, pois a única a permitir ao
Em 336 a.C., Filipe é assassinado e homem uma vida verdadeiramente boa
Alexandre sobe ao trono. Logo em segui­ segundo os princípios morais e a justiça.
da prepara uma expedição ao Oriente, Depois da morte de Alexandre, em
iniciando a construção de seu grande 323 a.C., Aristóteles passou a ser hosti­
império. Nada mais justificava a perma­ lizado pela facção antimacedônica, que
nência de Aristóteles na corte de Pela. É o considerava politicamente suspeito.
o momento de voltar a Atenas. Lá, pró­ Acusado de impiedade, deixou Atenas e
ximo ao templo dedicado a Apoio Licea- refugiou-se em Caleis, na Eubéia. Aí
no, abre uma escola, o Liceu, que passou morreu no ano de 322 a.C.
a rivalizar com a Academia, então diri­
gida por Xenócrates. Do hábito — aliás O que restou da grande obra
comum em escolas da época — que ti­
nham os estudantes de realizar seus A partir de declarações do próprio
debates enquanto passeavam, teria sur­ Aristóteles, sabe-se que ele realizou dois
gido o termo peripatéticos (que significa tipos de composições: as endereçadas ao
“os que passeiam”) para designar os grande público, redigidas em forma
discípulos de Aristóteles. mais dialética do que demonstrativa, e
Ao contrário da Academia, voltada os escritos ditos filosóficos ou científi­
fundamentalmente para investigações cos, que eram lições destinadas aos alu­
matemáticas, o Liceu transformou-se nos do Liceu. Estas últimas foram as
num centro de estudos dedicados princi­ únicas que se conservaram, embora
palmente às ciências naturais. De terras constituam pequena parcela do total que

68
ARISTÓTELES

Escritores antigos afirmam que Alexandre contribuiu para a manutenção do Liceu,


a instituição de pesquisa e ensino fundada por Aristóteles em Atenas. Após
a morte de Alexandre, os atenienses da facção anti macedônica passaram a
hostilizar o filósofo, que teve afinal de abandonar a cidade. (“Alexandre,
o Grande"', cópia de um busto esculpido por Lisipo, Museu Capitolino, Roma.)

é atribuído, desde a Antiguidade, a espécie de obra que se tornou muito


Aristóteles. apreciada pelos antigos, este diálogo foi
As obras exotéricas, destinadas à mais tarde imitado por Cícero (106-43
publicação, eram frequentemente diálo­ a.C.) no seu Hortensius — a obra que
gos, imitados dos de Platão. Delas resta­ despertará a vocação filosófica de Santo
ram apenas fragmentos, conservados por Agostinho (354-430). Depois que dei­
diversos autores ou referidos em obras xou a Academia e durante o período em
de escritores antigos. De dois desses que esteve em Assos, Aristóteles escre­
diálogos, ambos escritos enquanto Pla­ veu o diálogo Sobre a Filosofa, no qual
tão ainda vivia, ficaram vestígios mais combate a teoria platônica das idéias,
ponderáveis: do Eudemo — que, à seme­ particularmente a teoria dos números
lhança do Fédon de Platão, tratava da ideais, que caracterizara a última fase
imortalidade da alma — e do Protrético, do platonismo. Como o Timeu de Platão,
um elogio da vida contemplativa e um o Sobre a Filosofia apresenta uma con­
convite à filosofia. Protótipo de uma cepção cosmológica de cunho finalista e

69
OS PENSADORES

Apesar de sua origem familiar ser totalmente grega, Aristóteles nasceu em


região dependente da Macedônia. Em Atenas era visto como estrangeiro e lá
viveu na condição de meteco, sem usufruir o direito de cidadania e afastado
das disputas políticas. (Detalhe do relevo do altar de Pérgamo, séc. II a.C.,
representando o combate entre Atena e Alcione, Museu do Estado, Berlim.)

teológico; mas, ao contrário do que pro­ muitos dos quais reunidos sob um título
punha Platão, o universo é aí explicado comum (como é o caso da Física). A
não à semelhança de uma obra de arte — arrumação desses tratados de modo a
resultado da ação de um divino artesão, constituir as séries que integram o con­
o demiurgo —, e sim como um organismo junto das obras de Aristóteles — o Cor-
que se desenvolve graças a um dina­ pus aristotelicum —, remonta a Andrô-
mismo interior, um princípio imanente nico de Rodes, que dirigiu a escola
que Aristóteles denomina “natureza” peripatética no século I a.C.
(physis). O conteúdo do Corpus aristotelicum
As obras de Aristóteles chamadas apresenta uma distribuição sistemática:
acroamáticas, ou seja, compostas para Primeiro, os tratados de lógica, cujo
um auditório de discípulos, apresentam- conjunto recebeu a denominação de
se sob a forma de pequenos tratados, Organon — já que para Aristóteles a ló-

70
ARISTÓTELES

gica nào seria parte integrante da ciên­


cia e da filosofia, mas apenas um instru­
mento (organon) que elas utilizam em
sua construção. O Organon inclui: as
Categorias, que estudam os elementos
do discurso, os termos da linguagem;
Sobre a Interpretação, que trata do juízo
e da proposição; os Analíticos (Primei­
ros e Segundos), que se ocupam do
raciocínio formal (silogismo) e a de­
monstração científica; os Tópicos, que
expõem um método de argumentação
geral, aplicável em todos os setores,
tanto nas discussões práticas quanto no
campo científico; as Refutações sofisti­
cas, que complementam os Tópicos e
investigam os tipos principais de argu­
mentos capciosos.
Após o Organon, o Corpus aristote-
licum apresenta obras dedicadas ao es­
tudo da natureza. Uma primeira série de
tratados refere-se ao mundo físico, com­
preendendo: a Física, que examina con­
ceitos gerais relativos ao mundo físico
(natureza, movimento, infinito, vazio,
lugar, tempo, etc.); o Sobre o Céu (De
Coelo) e o Sobre a Geração e a Corrup-
. cão (De Generatione et Corruptione),
estudos sobre o mundo sideral e o sublu-
nar; finalmente os Meteorológicos, rela­
tivos aos fenômenos atmosféricos.
O Tratado da Alma (De Anima) abre a
série de obras referentes ao mundo vivo,
sendo seguido de pequenos tratados
sobre diferentes funções (a sensação, a
memória, a respiração, etc.) e geral­
mente conhecidos sob denominação lati­
na posterior de Parva naturalia. Mas da
série relativa aos seres vivos a obra prin­
cipal é a História dos Animais, contendo
o registro de múltiplas e minuciosas
observações.
A sequência de obras dedicadas à filo­
sofia teórica ou especulativa é encerrada
por catorze livros sobre a filosofia pri­
meira, ou seja, sobre os primeiros prin­
cípios e as primeiras causas de toda a
realidade. Situados após os tratados
relativos ao mundo físico, esses tratados
receberam a designação geral de Metafí­
sica. Mas, já na própria Antiguidade tal
denominação recebeu uma interpretação Ao examinar um problema, Aristóteles
neoplatônica: aqueles livros abordariam parte das soluções propostas por seus
questões referentes a um plano de reali­ antecessores. Vincula suas idéias à
dade situado além do mundo físico. história. (“Aristóteles”, cópia de um
Depois da filosofia teórica seguem-se, original grego, M. Capitolino, Roma.)

71
OS PENSADORES

no Corpus aristotelicum, as obras de modernos historiadores da filosofia que


filosofia prática: a Ética e a Política. — sobretudo a partir de Werner Jaeger
Das várias versões existentes da ética (1888-1961) — passaram a ressaltar a
aristotélica, a principal é a Ética a Nicô- evolução interna revelada pelas idéias
maco, assim cbamada porque o filho de de Aristóteles, mesmo em obras de fina­
Aristóteles foi quem primeiro a editou. lidade fundamentalmente didática (as
Por sua vez, a Ética a Eudemo k hoje acroamáticas, que constituem, aliás, a
geralmente considerada como uma reda­ quase totalidade das obras que foram
ção mais antiga da Etica de Aristóteles, preservadas).
editada por seu discípulo Eudemo de Por outro lado, o apelo constante à
Rod es. Já a Grande Moral (Magna evolução dos problemas, antes de para
Moralia) seria um resumo da mesma eles propor a sua solução, confere a
Ética, feito em época posterior. Aristóteles o título de primeiro histo­
A obra denominada Política é na ver­ riador da filosofia. Na verdade, dele pro­
dade um conjunto de oito livros que não vém o primeiro esforço de explicação
apresentam encadeamento rigoroso. À sistemática do desenvolvimento das
Política segue-se a Retórica, que se vin­ idéias filosóficas. Não apenas informa­
cula, devido a seu tema, à arte da argu­ ções esparsas — como já haviam apare­
mentação ou dialética exposta nos Tópi­ cido em escritos de outros filósofos,
cos (Organon). Por fim, o Corpus particularmente em Platão —, mas uma
aristotelicum apresenta a Poética, da tentativa de encadeamento das diversas
qual restou apenas fragmento. doutrinas anteriores, com base numa
Além desses trabalhos considerados explicação dos próprios motivos que te-
autênticos, o Corpus abrange ainda al­ riam levado os homens, desde fases pré-
guns escritos que a crítica revelou serem filosóficas, a elaborar sucessivas e cada
apócrifos, como o Sobre o Mundo (De vez mais aprofundadas concepções.
Mundo), os Problemas, o Econômico e o Mostrando a chave desse progresso,
Sobre Melisso, Xenófanés e Górgias. Aristóteles, por isso mesmo, apresenta-
se como seu ponto terminal: em sua
A verdade e a história obra, as tentativas do passado teriam
atingido plena e satisfatória formulação.
O Corpus aristotelicum apresenta o Em nome dessa verdade alcançada — a
pensamento de Aristóteles com uma fei­ sua verdade, a verdade de seu sistema
ção sistemática, como vasto conjunto filosófico — Aristóteles pretende então
enciclopédico no qual os mais diversos julgar os sistemas de seus predecès-
problemas são elucidados de forma sores, mostrando-lhes as falhas e os
aparentemente definitiva. As soluções equívocos. O surgimento da história da
propostas por outros pensadores são filosofia está, desse modo, estreitamente
previamente analisadas e criticadas — e vinculado ao aristotelismo, já que à luz
dessas críticas Aristóteles parte freqüen- de suas doutrinas é que, pela primeira
temente para a formulação de suas pró­ vez, foram relacionados e interpretados
prias concepções. O caráter sistemático os primeiros filósofos.
que revestiu, desde a Antiguidade, o Devido ao interesse do Liceu por
pensamento aristotélico, certamente assuntos históricos, mais tarde alguns
contribuiu para que, sobretudo na Idade seguidores de Aristóteles — continuando
Média, Aristóteles passasse a ser enca­ o trabalho iniciado pelo próprio mestre
rado como a grande autoridade em — coletarão textos e alusões às doutrinas
matérias filosóficas e científicas: era o dos filósofos mais antigos. Esse levanta­
filósofo, que teria construído uma dou­ mento das opiniões dos primeiros pensa­
trina de âmbito universal e de validade dores, chamado “doxografia”, feito se­
permanente, intemporal. Seus textos, gundo pontos de vista aristotélicos,
por isso mesmo, mereceríam não pro­ tomou-se uma das fontes principais para
priamente complementações ou corre­ a recuperação das doutrinas dos pré-so-
ções, mas antes análises e comentários. cráticos. Mas os historiadores modernos
Todavia aquele aspecto sistemático e a precisam realizar meticuloso esforço
aparente fixidez foram reapreciados por crítico para restabelecer o sentido origi-

72
ARISTÓTELES

FABBRI
Num ponto fundamental Aristóteles sempre discordou de Alexandre: a junção de
gregos e não-gregos dentro do mesmo organismo político. Para o filósofo, os
gregos e os “bárbaros” eram essênciasperfeitamente distintas que deviam se
atualizar através de diferentes instituições políticas e sociais. (Detalhe
do Mausoléu de Halicamasso: combate entre gregos e amazonas, M. Britânico.)
nal daquelas doutrinas, extraindo-o de dentro da qual teria sido gerada. Justa­
sob interpretações aristotelizantes. Mui­ mente porque ela se concebe como
tos desses historiadores insistem nas progressivamente preparada através do
“deformações” sofridas pelas idéias dos tempo (pelas “antecipações” dos pensa­
outros filósofos quando reportadas e dores precedentes), é que, ao eclodir,
analisadas por Aristóteles e pelos doxó- com pretensão de plenitude e de vali­
grafos aristotélicos. Tal “deturpação” dade intemporal, volta-se para o passa­
tem, porém, um motivo fundamental: do e procura desvendar-lhe o sentido: a
como em todas as histórias da filosofia meta atingida pretende conter a razão de
que serão desde então produzidas, exis­ ser de todo o itinerário seguido pelas
te por trás da história da filosofia conti­ investigações humanas. Essa a causa
da nas obras de Aristóteles uma filosofia fundamental de o aristotelismo “aristo-
que a predetermina. No caso de Aristóte­ telizar” a história da cultura e, particu­
les, essa filosofia é naturalmente o pró­ larmente, a história da filosofia.
prio aristotelismo, que construíra uma Mas há outros motivos que levam
explicação particular do movimento, da Aristóteles a partir sempre do passado e
transformação e, conseqüentemente, das fazer a história dos problemas que
mudanças históricas. Assim, se o aristo­ investiga. E são motivos historicamente
telismo formula uma verdade válida uni­ compreensíveis: Aristóteles procura ali­
versal e intemporalmente — como Aristó­ cerçar sua própria filosofia no consenso
teles parece acreditar —, é natural que geral, no consensum gentium et tempo-
essa verdade supostamente absoluta seja rum, ou seja, num suposto acordo subja­
utilizada para julgar a própria história cente às opiniões das diversas pessoas

73
OS PENSADORES

Aristóteles, ao lado do jovem Alexandre, interpreta a Filipe da Macedônia e à


sua mulher Olímpia, um sonho do príncipe. Nesta gravura do século XIV, o
filósofo aparece vestido de frade beneditino: indício de quanto seu sistema
estava já associado aos dogmas cristãos e às doutrinas da Igreja, devido
principalmente aos trabalhos de Santo Alberto Magno e de Santo Tomás de Aquino.

nas diferentes épocas. Ele não pretende ra o Liceu, já resultara em perseguição


que suas idéias representem renovações para Anaxágoras e em morte para Só­
absolutas, nem manifestem absoluta crates. Passada a fase da dramática
originalidade. Apresenta-as, ao contrá­ penetração das idéias filosóficas em Ate­
rio, como a formulação acabada de con­ nas — antes desenvolvidas em terras da
ceitos que a humanidade vinha progres­ Jônia ou da Magna Grécia, portanto nos
siva e espontaneamente elaborando, extremos orientais e ocidentais do
desde fases anteriores às especulações mundo helênico —, parecia necessário
teóricas. Aristóteles não quer que sua mostrar que aquelas idéias não se opu­
visão-de-mundo pareça paradoxal aos nham fundamentalmente ao senso
olhos do homem comum ou em confronto comum, nem demoliam as tradições que
com a tradição — ao contrário do que serviam de justificativa à organização
pretendia, na época, uma filosofia como política e social vigente. Essa parece
a dos cínicos. Estes desenvolviam, a par­ ter sido uma das tarefas centrais a que
tir do socratismo, uma ética baseada no se propôs Aristóteles — e daí o cuidado
ideal de retomo à natureza autêntica do em legitimar sua própria posição filosó­
homem e, por isso mesmo, avessa às fica apelando para remotos antecedentes
convenções sociais. Aristóteles, porém, que, preparando-a, garantem-lhe o cará­
não faz filosofia para chocar a mentali­ ter de posição espontânea, natural, sen­
dade corrente; seu propósito parecia ser, sata (pois baseada no senso comum). A
antes, o de abolir o “'escândalo filosófi­ grande quantidade de citações de outros
co”, que ali mesmo, na Atenas onde abri­ pensadores e a freqüente utilização da

74
ARISTÓTELES

de formas ou idéias, arquétipos eternos


dos quais a realidade concreta seria a
cópia imperfeita e perecível. Através da
dialética — feita de sucessivas oposições
e superposições de teses — seria possível
ascender do mundo físico (apreendido
pelos sentidos e objeto apenas de opi­
niões múltiplas e mutáveis) à contem­
plação dos modelos ideais (objetos da
verdadeira ciência).

Da dialética à lógica
A dialética era, todavia, uma constru­
ção marcada pela índole hipotética da
matemática que inspirou o platonismo.
Tanto que, mais tarde, seguidores de
Platão da fase chamada Nova Academia
serão alguns dos principais represen­
tantes do ceticismo antigo. Novas e
adversas circunstâncias históricas —
resultantes da perda da liberdade polí­
tica da Grécia — impedirão o otimismo
que fizera Platão fundamentar o conhe­
cimento científico no Bem. No ápice da
pirâmide de idéias, essa super essência
era a garantia última da certeza do
conhecimento, transmutando em verda­
A metafísica de Aristóteles estuda de o que fora inicialmente uma tessitura
o ser enquanto ser, investigando os de afirmações apenas prováveis. Desde
fundamentos da realidade e da ciência. que seja abolida a sustentação do conhe­
(“Metafísica”, edição do século XIII, cimento no Bem não-hipotético, o plato­
Biblioteca Laurenziana, Florença.) nismo irá se revelar, na formulação dos
integrantes da Nova zXcademia, terreno
tradição poética para corroborar suas propício à frutificação de teses relati-
teses filosóficas parecem ser também vistas e céticas.
indícios daquele cuidado. Do mesmo Aristóteles justamente já teria perce­
modo poder-se-ia explicar a importância bido que a dialética platônica só se
que ele atribui aos provérbios: resumos comprometia com a certeza em última
de antiqüíssima sabedoria e frutos da instância — o que conferia ao platonismo
longa experiência da humanidade, a eles sua inquietação permanente e sua flexi­
Aristóteles não pretende se contrapor, e bilidade, deixando-o, porém, sob a cons­
sim preservá-los, desenvolvê-los e con­ tante ameaça do relativismo. O projeto
duzi-los à plenitude, dando-lhes forma aristotélico torna-se, então, o de forjar
definida e fundamentos racionais. Toda um instrumento mais seguro para a
a obra de Aristóteles está, por isso constituição da ciência: o Organon. Nele
mesmo, animada por forte senso de uni­ a dialética é reduzida à condição de
dade do mundo da cultura e pelo histori- exercício mental que, não lidando com
cismo ditado, em útilma instância, por as próprias coisas mas com as opiniões
suas concepções metafísicas. dos homens sobre as coisas, não pode
Platão ensinava na Academia e nos atingir a verdade, permanecendo no âm­
seus Diálogos que a compreensão dos bito da probabilidade. Essa concepção
fenômenos que ocorrem no mundo físico da dialética como uma ‘‘‘■ginástica do
depende de uma hipótese: a existência espírito”, útil como fase preparatória
de um plano superior da realidade, atin­ para o conhecimento, mas incapaz de
gido apenas pelo intelecto, e constituído chegar à certeza sobre as coisas, justi­
OS PENSADORES

fica a concepção aristotélica da história mais ampla a que o sujeito pode perten­
e, em particular, da história dá filosofia: cer (“O homem é um animal”); a dife­
a história — inserida no domínio da dia­ rença é que permite situar o sujeito rela­
lética — é util e indispensável na medida tivamente às subclasses em que se divide
em que conduz à sua própria superação, o gênero (“O homem é animal racio­
quando o provável se transforma em cer­ nal”); já a espécie constitui a síntese do
teza. Ou quando as opiniões dos anteces­ gênero e da diferença (“O homem é ani­
sores preparam e dão lugar à verdade mal racional”). O próprio e o acidente
que somente seria alcançada pelo pensa­ são atributos que não fazem parte da
mento aristotélico. essência do sujeito, pois não dizem o que
Para se atingir a certeza científica e ele é; todavia, o próprio guarda em rela­
construir um conjunto de conhecimentos ção àquela essência uma dependência
seguros, torna-se necessário, segundo necessária (“A soma dos ângulos inter­
Aristóteles, possuir normas de pensa­ nos de um triângulo equivale a 180o”),
mento que permitam demonstrações cor­ enquanto o acidente pode ou não perten­
retas e, portanto, irretorquíveis. O esta­ cer ao sujeito, ligando-se a ele de modo
belecimento dessas normas confere a contingente e podendo ser afirmado de
Aristóteles o papel de criador da lógica outros tipos de sujeitos (“Este homem é
formal, entendida como a parte da lógi­ magro”).
ca que prescreve regras de raciocínio
independentes do conteúdo dos pensa­ Porque Sócrates é mortal
mentos que esses raciocínios conjugam.
Mas a lógica aristotélica nasce num Aristóteles concorda com Platão ao
meio de retóricos e de sutis argumenta- considerar que só pode haver ciência do
dores. Faz-se necessário, portanto, par­ universal. Mas o conhecimento do uni­
tir de uma análise da linguagem corren­ versal e necessário implica a consciência
te, para identificar seus diferentes usos das razões que tomam necessária uma
e, ao mesmo tempo, enumerar os diver­ determinada afirmativa. Essa necessi­
sos sentidos atribuídos às palavras dade torna-se evidente apenas quando se
empregadas nas discussões. Eis por que apresenta a explicação daquela asser­
as Categorias abrem o Organon com pes­ ção, isto é, quando se mostra a sua
quisas sobre as palavras, procurando causa. O encadeamento rigoroso de
inclusive evitar os equívocos que resul­ proposições, de modo a exprimir um
tam da designação de coisas diferentes raciocínio que pretenda concluir por
através de um mesmo nome (homônimo) uma afirmativa necessária, e o que Aris­
ou da mesma coisa por meio de diversas tóteles investiga nos Analíticos.
palavras (sinônimos). Platão, através do método da divisão,
A teoria das proposições apresentada procurava chegar a definições: como
no Sobre a Interpretação.baseia-se numa exemplifica no diálogo Sofista, poder-
tese de amplo alcance, pois realiza uma se-ia obter a definição de uma espécie
extraordinária simplificação no uni­ por sucessivas divisões do gênero em
verso da linguagem: toda proposição que ela estiver contida. Mas Aristóteles
seria o enunciado de um juízo através do considera insuficiente esse procedimento
qual um predicado é atribuído a deter­ platônico, pois as dicotomias sucessivas
minado sujeito. As proposições podem colocam opções sem determinar necessa­
então ser classificadas em universais ou riamente qual dos dois rumos deve ser
particulares, se o atributo é afirmado tomado. Com a sua doutrina do silogis­
(ou negado) do sujeito como um todo mo, Aristóteles pretende resolver os
(por exemplo: “Todos os homens são impasses criados pela simples dicoto-
mortais”), ou se é afirmado (ou negado) mia, apresentando um encadeamento
de apenas parte do sujeito (“Alguns ho­ que segue uma direção incoercível, rumo
mens são gregos”). a uma conclusão. Com efeito, o silo­
Aristóteles estabelece ainda a distin­ gismo seria um raciocínio no qual,
ção entre cinco tipos possíveis de atribu­ determinadas coisas sendo afirmadas,
tos: o gênero, a espécie, a diferença e o segue-se inevitavelmente uma outra afir­
acidente. O gênero refere-se à classe mativa. Assim, partindo-se das premis-

76
ARISTÓTELES

Ao contrário de Platão, que realizou na teoria e na prática trabalhos voltados


para a reforma das instituições políticas, Aristóteles fez da política objeto
de observação e estudo. A ele deve-se o levantamento das constituições de
várias cidades gregas. (“A Boa e a Má Política”, miniatura do séc. XIV, que
ilustra uma tradução da “Política” de Aristóteles, Bibl. da Bélgica, Bruxelas.)

sas “Todos os homens são mortais” e independentemente do conteúdo das pro­


“Sócrates é homem” — conclui-se fatal­ posições em confronto. Isso significa,
mente que “Sócrates é mortal”. A con­ porém, que se pode aplicar o silogismo a
clusão resulta da simples colocação das proposições falsas, sem prejuízo para a
premissas, não deixando margem a perfeição formal do raciocínio (“Todos
qualquer opção, mas impondo-se com os homens são imortais; Sócrates é
absoluta necessidade. homem; logo, Sócrates é imortal”). Mas
Todo o mecanismo silogistico repousa a ciência não pretende, segundo Aristó­
no papel desempenhado pelo chamado teles, ser dotada apenas de coerência
termo médio (“homem”), que fornece a interna: ela precisa ser construída pelo
razão do que é afirmado na conclusão: perfeito encadeamento lógico de verda­
porque é homem, Sócrates é mortal. des. Assim, o silogismo que equivale à
Esse mecanismo funciona com rigor, demonstração cientifica deverá ser um

77
OS PENSADORES

raciocínio formalmente rigoroso, mas


que parta de premissas verdadeiras.
Desde que a demonstração baseia-se em
pressupostos que ela mesma não susten­
ta, o conhecimento demonstrativo passa
a pressupor um conhecimento não-de-
monstrativo, capaz de atingir, de modo
não discursivo mas imediato, verdades
que constituem os princípios da ciência.
Para Aristóteles, os conhecimentos
anteriores à demonstração seriam ou
verdades indemonstráveis, os axiomas,
que se impõem a qualquer sujeito pen­
sante e que se aplicam a qualquer objeto
de conhecimento (como o princípio de
contradição, que afirma que toda propo­
sição ou é verdadeira ou é falsa), ou
então seriam definições nominais que
explicitam o significado de determinado
termo ("triângulo”, por exemplo) e que
são utilizadas como teses, já que são
simplesmente postas como pontos de
partida para uma demonstração. Os
axiomas seriam comuns a todas as ciên­
cias. enquanto as definições nominais di-
riam respeito a setores particulares da
investigação científica.
Aristóteles considera que não basta à
ciência ser internamente coerente: ela
deve também ser ciência sobre a realida­
de. Desse modo, não é suficiente que ela
parta de axiomas e teses, desenvolven­
do-se dedutivamente com rigor lógico. A
definição nominal diz apenas o que uma
coisa é, mas não afirma que ela é, ou
seja, que realmente existe. Afirmar a
existência seria, assim, mais do que
apresentar uma tese, explorar o signifi­
cado de uma palavra: seria assumir uma
hipótese. Através de hipóteses, cada
ciência afirma a existência de certos
objetos — o que não pode ser feito por
demonstrações, antes permanecendo na
dependência de uma reflexão sobre o
que existe enquanto apenas existe, sobre
o "ser enquanto ser”. A lógica, para não

ficar restrita ao domínio das palavras e


'
SNARK lNTE

para atingir a realidade das coisas —


constituindo um instrumento para a
ciência da realidade — remete, portanto,
a especulações metafísicas. As defini­
ções buscadas pelo conhecimento cientí­ Aristóteles concebeu o mundo físico
fico não devem ser simples esclareci­ como dependente de um Primeiro Motor
mentos sobre o significado das palavras, imóvel. (Aristóteles, detalhe de
mas sim enunciar a constituição essen­ “O Triunfo de Santo Tomás de Aquino’,
cial dos seres. Definir "homem” como quadro de Gozzoli, Louvre, Paris.)

7B
ARISTÓTELES

"animal racional” significa, para Aristó­ partir do conhecimento empírico — é que


teles, mostrar um liame necessário que, a ciência deve tentar estabelecer defini­
no caso da espécie “homem”, liga deter­ ções essenciais e atingir o universal, que
minado gênero (“animal”), o mais pró­ é seu objeto próprio. Toda a teoria aris­
ximo daquela espécie, à diferença espe­ totélica do conhecimento constitui,
cífica ("racional”). .Justamente porque assim, uma explicação de como o sujeito
deve apresentar um elo essencial e pode partir de dados sensíveis que lhe
necessário entre gênero e diferença é que mostram sempre o individual e o concre­
não pode haver, por exemplo, definição to, para chegai- finalmente a formula­
essencial de “homem branco”, já que ções científicas, que são verdadeira­
“branco” é acidente, ou seja, um atri­ mente científicas na medida em que são
buto não-essencial de “homem”. Pela necessárias e universais.
mesma razão não pode haver definição A repetição das observações dos casos
essencial dos indivíduos: define-se particulares permitiría uma operação do
“homem”, mas não se define “Sócrates”. intelecto, a indução, que justamente con­
Como qualquer indivíduo, "Sócrates” duziría — num encaminhamento contrá­
pode ser descrito minuciosamente em rio ao da dedução — do particular ao
seus caracteres peculiares — por isso universal. O universal seria, portanto, o
mesmo não universais —, mas não pode resultado de uma atividade intelectual:
ser jamais definido. O individual — Aris­ surge no intelecto sob a forma de um
tóteles concorda com Platão — não é ob­ conceito (o conceito "pássaro”, por
jeto de ciência. exemplo, que pode existir na mente hu­
mana como resultado final, por via indu­
"O ser se diz em vários tiva, da observação de vários seres con­
sentidos” cretos da mesma espécie: os pássaros de
diversos tipos). Ao contrário de Platão.
A construção de definições científicas Aristóteles não considera o universal
através do relacionamento entre gênero como algo subsistente e, portanto, subs­
próximo e diferença específica pressu­ tancial. Mas se o universal existe apenas
põe um meticuloso levantamento dos no espírito humano, sob a forma de con­
seres, em sua hierarquia e subdivisões. ceito, ele não é criação subjetiva: estaria
No caso dos seres vivos, Aristóteles e os fundamentado na estrutura mesma dos
integrantes do Liceu realizaram esse objetos que o sujeito conhece a partir da
trabalho prévio de classificação siste­ sensação. Os conceitos reproduziríam
mática, baseado em acuradas observa­ não as formas ou idéias transcendentes
ções. Puderam verificar, então, que as ao mundo físico, mas sim a estrutura
diferentes espécies se apresentam como inerente aos próprios objetos: a estru­
variações de um mesmo tema, o gênero. tura básica comum aos diferentes pássa­
Todos os tipos de pássaros, por exem­ ros existentes é que estaria expressa,
plo, revelariam uma estrutura básica universalizadamente, no conceito "pás­
cojnum, que cada qual manifestaria saro”. Mas isso significa que os concei­
diversamente. tos utilizados pelas diversas ciências
Platão, movido pela índole matemá­ estariam dependentes, em última instân­
tica de seu sistema, considerava os obje­ cia, de uma investigação que fosse além
tos particulares e concretos como cópias dos respectivos campos dessas ciências e
imperfeitas e transitórias de modelos penetrasse na estrutura íntima dos seres
incorpóreos e eternos, as idéias. Esses enquanto simplesmente são. As ciências
universais subsistiríam independen­ voltadas para o mundo fisico seriam,
temente de seus reflexos passageiros assim, justificadas pela especulação
apenas aproximados. Aristóteles rejeita metafísica. Esta é que afinal podería —
a transcendência dos arquétipos platôni­ como estr ■; do ser enquanto ser — reve­
cos, considerando-os uma desnecessária lar aqueta estrutura inerente a qualquer
duplicação da realidade sensível. Para ser e a partir da qual o intelecto, usando
ele, a única realidade é esta constituída os dados fornecidos pela sensação, cons­
por seres singulares, concretos, mutá­ truiría conceitos. A metafísica seria,
veis. A partir desta realidade — isto é, a assim, a garantia de que os conceitos

79
OS PENSADORES

não são meras convenções do espírito de ser são vários e os acidentes podem
humano e de que a lógica — o instru­ significai’ uma quantidade, ou uma qua­
mento que permite a utilização científica lidade, ou uma relação (duplo, menor,
desses conceitos — estaria fundamentada pai e filho), ou o onde, ou o quando, ou
na realidade, sobre a qual ela pode, ainda uma posição (sentado), ou um es­
então, legitimamente operar. tado (vestido, equipado), ou uma ação
A metafísica aristotélica reformula a (escrever), ou então uma paixão (estar
noção de ser. Essa noção era interpre­ doente).
tada por Parmênides e pelos seguidores
da escola eleática de modo unívoco: no O Primeiro Motor
seu poema Sobre o ser, Parmênides de Desde o seu começo, no século VI
Eléia (século VI a.C.) afirmava que “o a.C., a especulação filosófica grega ocu-
que é — é o que é", concluindo que o ser pou-se do problema do movimento.
era necessariamente único, pois a multi­ Enquanto Heráciito de Efeso afirmava a
plicidade significaria a admissão da mudança permanente de todas as coisas,
existência do não-ser, o que seria absur­ Parmênides apontava a contradição que
do e inadmissível. Os atomistas (Leucipo existir ia entre a noção de ser e a noção
e Demócrito) quebraram essa unicidade de movimento. Essa contradição Aristó­
do ser eleático quando afirmaram que teles pretende evitar através da interpre­
tanto era ser o corpóreo (os átomos) tação analógica da noção de ser, que lhe
quanto o incorpóreo (o vazio). Mas a permite fazer uma distinção fundamen­
solução atomista permanecia no plano tal: ser não é apenas o que já existe, em
da física e não atingira toda a dimensão ato; ser é também o que pode ser, a
da questão levantada pelo eleatismo. virtualidade, a potência. Assim, sem
Platão retoma o problema e, na fase contrariar qualquer princípio lógico,
final de sua obra (particularmente no poder-se-ia compreender que uma subs­
diálogo Sofista), considera o ser e o tância apresentasse, num dado momen­
não-ser como dois dos gêneros supremos to, certas características, e noutra oca­
dentro da hierarquia das idéias. E o sião manifestasse características
importante é que Platão renova a noção diferentes: se uma folha verde toma-se
de não-ser, entendendo-o não como um amarela é porque verde e amarelo são
nada ou como o vazio: o não-ser seria o acidentes da substância folha (que é
outro, a alteridade que sempre comple­ sempre folha, independente de sua colo­
menta o mesmo, a identidade. Cada exis­ ração). A qualidade "amarelo” é uma
tente surge assim como um jogo, em virtualidade da folha, que num certo
variadas proporções, do mesmo (o que momento se atualiza. E essa passagem
ele ê) com o outro (o que não é ele, os de­ da potência ao ato é que constitui,
mais existentes). segundo a teoria de Aristóteles, o
Aristóteles não considera satisfatória movimento.
a solução platônica. Para fundamentar a Mas Aristóteles não aceita a doutrina
ciência do mundo físico — mundo múlti­ do transformismo universal que, em pen­
plo e mutável — seria preciso romper sadores pré-socráticos como Anaxi-
mais fundo com o eleatismo. Substitui, mandro de Mileto ou Empédocles de
então, a concepção unívoca de ser, que o Agrigento, apresentava todo o universo
considera de modo único e absoluto — como animado por uma transformação
impedindo a compreensão racional do contínua, por um único fluxo que interli­
movimento e da multiplicidade — pela gava as várias espécies num mesmo pro­
concepção analógica: o ser seria análo­ cesso evolutivo. Para Aristóteles o movi­
go, isto é, dotado de diferentes sentidos. mento existe circunscrito às substâncias
Essas diversas acepções do ser pode- que, cada qual, atualiza suas respec­
riam, segundo Aristóteles, ser classifi­ tivas e limitadas potências: o movimento
cadas, da maneira mais ampla, segundo dura enquanto dura a virtualidade do
várias categorias. Assim, qualquer ser, de cada ser, de cada natureza, ces­
termo que designa algo que é, designa sando quando o ser expandiu as suas
ou uma substância (um ser) ou um aci­ potencialidades e se atualiza plena­
dente (um modo de ser); porém os modos mente. Em nome da noção de espécies

80
ARISTÓTELES

A física qualitativista de Aristóteles foi rejeitada pelo Renascimento, que


retomou o matematismo pitagórico-platônico. Mas a influência de Aristóteles
perdurou graças sobretudo às suas idéias metafísicas e à sua lógica, que Kant,
no século XVIII, ainda julgou uma conquista definitiva do espírito humano.
(Aristóteles, detalhe de “A Escola de Atenas”, ae Rafael, Palácio Vaticano.)

81
OS PENSADORES

sempre em vista de um fim que os seres


(naturais ou artefeitos) são criados e se
transformam: a finalidade é que deter­
minaria o que os seres são ou vêm a ser.
No processo do conhecimento, a causa
formal é separada, pelo intelecto, das
características acidentais do objeto e
passa a existir no sujeito, plenamente
atualizada e, portanto, üniversalizada.
Antes existia no objeto concreto, parti-
cularizadamente, como uma estrutura
que o identificava (fazendo-o, por exem­
plo, uma ave e não um peixe), ao mesmo
tempo que o assemelhava, apesar das
peculiaridades individuais, aos demais
seres da mesma espécie (tornando-o uma
das aves existentes); depois de abstraída
dos aspectos materiais e individuali-
zantes (cor branca, bico fino, pescoço
longo, etc.), a forma passa a existir na
mente do sujeito, como um conceito uni­
versal (não mais ave de determinada
família, mas simplesmente “ave”).
Quer na natureza, quer na arte, todo
movimento (tanto deslocamento quanto
mudança qualitativa) constitui, para
Aristóteles, a atualização da potência de
um ser que somente ocorre devido à
As doutrinas aristotélicas marcaram atuação de um ser já em ato: o mármore
o desenvolvimento da filosofia árabe. transforma-se na estátua que ele pode
(Averróis, detalhe de “O Triunfo de ser graças à interferência do escultor,
Santo Tomás de Aquino”, de Bonaiuto, que já possuía a idéia da estátua. Tam­
Santa Maria Nove lia, Florença.) bém na geração natural, a forma pree-
xiste ao ser que é gerado: o ser atuali­
fixas, Aristóteles se apresenta como zado (o homem adulto, por exemplo)
adversário do evolucionismo. torna-se capaz de gerar um ser seme­
Dentro da metafísica aristotélica, a lhante a ele. Assim, as formas, entendi­
doutrina do ato-potência acha-se estrei­ das como tipos de organização bioló­
tamente vinculada a determinada con­ gica, seriam imutáveis e incriadas,
cepção de causalidade. Para Aristóteles, embora sempre inerentes aos indivíduos.
causa é tudo o que contribui para a rea­ Como a intenção do escultor é que
lidade de um ser: é tanto a causa mate­ comanda a transformação do mármore
rial (aquilo de que uma coisa é feita: o em estátua, analogamente é sempre a
mármore de que é feita a estátua), quan­ causa final que rege os movimentos do
to a causa formal (que define o objeto, universo. Cada ser atualizaria suai
distinguindo-o dos demais: estátua de virtualidades devido à ação de outro ser
homem, não de cavalo), como também a que, possuindo-as em ato, funciona
causa final (a idéia da estátua, existente como motor daquela transformação.
como projeto na mente do escultor, e que Contrário à visão evolucionista, fre­
o levou a talhar o bloco de mármore quente nos pré-socráticos, Aristóteles
para dele fazer uma estátua de homem), não admite que o mais possa vir do
como ainda a causa eficiente (oí agente, menos, que o superior provenha do infe­
no caso o escultor, aquele que faz o obje­ rior, que a potência por si só conduza ao
to, atualizando potencialidades de de­ ato. Concebe, então, todo o universo
terminada matéria). A causa formal está como regido pela finalidade e toma os
intimamente ligada à final, pois seria vários movimentos (atualizações das

82
ARISTÓTELES

retirado do lugar que, por sua natureza,


lhe está reservado, o corpo tende a vol­
tar a seu lugar natural (jogada para o
alto — movimento violento — a pedra
tende “naturalmente” a cair, cessado o
efeito da força que a impulsionou).
Como já afirmavam os pitagóricos, o
mundo supralunar estaria constituído
por uma sucessão de esferas, cada qual
movimentando-se em função da esfera
imediatamente superior, que atua como
motor. Essa sucessão de motores-móveis
terminaria — já que o universo seria fini-
lo — num primeiro motor, este imóvel
(para ser o primeiro), e que Aristóteles
chama de Deus. Ato puro, pois do con­
trário se moveria, o Deus aristotélico
paira acima do universo, movendo-o
como causa final: “como o amado atrai o
amante”. Não cria o universo, que ê eter­
no, nem sequer o conhece: conhecer algo
fora de si implicaria atualização de uma
potência e, portanto, imperfeição e in-
completitude. Incorpóreo, pura forma —
a matéria é a sede das potências — esse
primeiro motor imóvel existiria como
pensamento autocontemplativo: como
“um pensamento que se pensa a si mesmo”.
Na Idade Média, Sto. Tomás de Aquino As relações metafísicas matéria-
recorreu a teses aristotélicaspara forma, potência-ato comandam a expli­
harmonizar razão e fé. (Detalhe de cação aristotélica do homem. Assim, o
“Apoteose de Santo Tomás”, de Traini, objetivo primordial da investigação
Igreja de Santa Catarina, em Pisa.) ética seria o de descobrir a causa verda­
deira da existência humana. Num uni­
virtualidades de diferentes naturezas) verso regido pela finalidade, aquela
interdependentes, sem fundi-los, toda­ causa é vista, por Aristóteles, como a
via, na continuidade de um único fluxo procura do bem ou da felicidade, que a
universal. Havería uma açào encadeada alma alcançaria apenas quando exer­
e hierarquizada dos vários motores, o cesse atividades que permitissem sua
mais atualizado movimentando o menos plena realização.
atualizado. A noção biológica de espécies fixas,
O conjunto do universo físico estaria que serve de sugestão à doutrina metafí­
dividido em duas regiões distintas: a sica das diferentes naturezas que se
sublunar, constituída pelos quatro ele­ movem circunscritas às suas potenciali­
mentos herdados da cosmologia de dades, reflete-se na concepção aristoté­
Empédocles — a água, o ar, a terra e o lica da alma e, em decorrência, nas
fogo — e caracterizada por movimentos idéias políticas. Nesse sentido, man­
retilíneos e descontínuos; e a supralu- tendo um espírito conservador, Aristó­
nar, constituída por uma “quinta essên­ teles justifica e defende, por exemplo, a
cia”, o éter, e caracterizada por movi­ escravidão. Do mesmo modo que o uni­
mentos circulares e contínuos. Cada um verso físico estaria constituído por uma
dos elementos do mundo suhlunar teria hierarquia inalterável, segundo a qual
seu “lugar natural” e, forçado a abando- cada ser ocupa, definitivamente, um
ná-lo sob a ação de um agente, executa lugar que lhe seria destinado pela natu­
um “movimento violento”, que cessa ao reza (e do qual ele só se afasta proviso­
cessar a interferência daquele motor: riamente através de movimentos violen­

83
OS PENSADORES

tos), assim também o escravo teria seu mente escravo, sendo destituído por
lugar natural na condição de “ferra­ completo de alma noética, a parte da
menta animada”. Aristóteles chega alma capaz de fazer ciência e filosofia e
mesmo a afirmar que o escravo é escravo que desvenda o sentido e a finalidade úl­
porque tem alma de escravo, é essencial­ tima das coisas.

CRONOLOGIA
387 a.C. — Platão funda a 347/44 a.C. — Aristóteles 335 a.C. — Aristóteles re­

SÃO PAULO -.B R A S IL


Academia cm Atenas. permanece em Assos, na torna a Atenas, onde funda
384 a.C. — Nasce Aristóte­ corte do tirano Hérmias, ex- o L iceu.
les em Estagira, na Calcídi- integrante da Academia. 334 a.C. — Alexandre de­
ca, região dependente da 344 a.C. — Hérmias é as sembarca na Ásia Menor.
Macedônia. sassinado. Aristóteles deixa 333 a.C. — Alexandre ven­
367/66 a.C. — Aristóteles Assos. ce em Isso, na Cilícia, e en­
chega a Atenas e ingressa 344/43 a.C. — Permanên­ tra na Fenícia.
na Academia platônica. cia em Mitilene. 332 a.C. — Alexandre cer­

-
359 a.C. — Filipe inicia seu 343 a.C. — A chamado de ca e conquista Tiro, depois

E INDUSTRIAL
governo na Macedônia e, lo­ Filipe, Aristóteles vai para o Egito.
go em seguida, invade a Pela e torna-se preceptor do 326/25 a.C. — Incursão de
Grécia. jovem A lexandre. Alexandre até as margens
356 a.C. — Em Pela, capi­ 338 a.C. — Os macedônios do Indo.
tal da Macedônia, nasce derrotam os gregos em Que- 323 a.C. — Alexandre mor­

ABRIL S.A. CULTURAL


Alexandre, filho de Filipe. ronéia. re na Babilônia.
347 a.C. — Morte de Pla­ 336 a.C. — Filipe é assassi­ 322 a.C. —Aristóteles mor­
tão. Aristóteles deixa Ate­ nado e Alexandre ascende re em Caleis, na Eubéia,
nas. ao trono da Macedônia. ilha do mar Egeu.

BIBLIOGRAFIA
Traduções das obras de Aristóteles: em inglês, tradução sob a direção de J. A. Smith e W. D.
Ross (The Works of Aristotle), Oxford, 1908 - 1931; em francês, diversas obras traduzidas

-COPYRIGHT MUNDIAL, 1973


por J. Tricot, Librairie J. Vrin, Paris.
Brijn, Jean: Aristote et le Lycée, Presses Universitaires de France, Paris, 1961.
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B1
OS PENSADORES

perda da libçrdade política — pri­ autonomia da cidade-Estado torna sem

A meiro dominada pelos macedô- sentido qualquer sentimento isolacio-


nios, depois pelos romanos — alte­ n;sta. Mas, pelo fato mesmo de inserir-
rou profundamente os quadros dentro se no grande organismo político dos
dos quais a Grécia antiga vinha desen­ macedônios, a cultura grega se difunde,
volvendo sua experiência cultural e, em tornando-se patrimônio comum a todos
particular, sua criação mais arrojada: a os países mediterrâneos. Começa o cha­
especulação filosófica. Tornando-se mado período helenístico, no qual, desde
parte do império fundado por Filipe da a morte de Alexandre até a conquista
Macedônia e ampliado por seu filho Ale­ romana, a cultura grega vai progressiva­
xandre, o país passa a integrar vasto mente se impondo do Egito e da Síria até
organismo político, verdadeiro mosaico Roma e Espanha. E se Atenas inicial­
de povos. Tendem a se diluir as distin­ mente permanece como centro da inves­
ções entre gregos e orientais, distinções tigação científica e filosófica, outros
que, então, os primeiros orgulhosamente focos de atividade intelectual passarão
proclamavam e procuravam preservar. depois a se afirmar, particularmente
O historiador Heródoto (c. 480-c. Alexandria.
425 a.C.) mostrara que a raiz dessas No período helenístico as ciências
distinções estava no senso de liberdade particulares começam a ter desenvolvi­
política que um grego possuía por per­ mento autônomo, despregadas do tronco
tencer a uma cidade-Estado, cônscia de original da antiga sabedoria filosófica.
sua autonomia e de suas tradições, e O século III a.C. é o século de Euclides,
onde, ao usufruir os direitos de cidada­ de Arquimedes (287-212 a.C.) e de Apo-
nia, ele não estava submetido a nenhum lônio de Perga (c. 262 - c.180 a.C.), um
senhor. O abismo entre os gregos do esplêndido século, portanto, para as
período helênico e os “bárbaros” orien­ matemáticas e a astronomia. Mas é tam­
tais provinha, segundo Heródoto, da bém o século em que, no museu de Ale­
consciência de liberdade que os gregos xandria — cujo bibliotecário é o geó­
desenvolveram a partir da peculiaridade grafo Eratóstenes (275- 194 a.C.) —,
de sua organização social e política. ocorre grande desenvolvimento da crí­
Essa consciência de liberdade está ilus­ tica filosófica e das ciências baseadas na
trada, pelo historiador, no episódio dos observação. Surge um novo tipo de inte­
dois espartanos que, por ocasião das lectual, inexistente na fase helênica: o
Guerras Médicas, se apresentam volun­ especialista, o erudito. E se isso repre­
tariamente aos persas para serem sacri­ senta um impulso às especializações
ficados como expiaçào pelo assassínio científicas, manifesta também o novo
dos embaixadores de Xerxes. Indagados rumo que tomara o conhecimento, desde
sobre por que Esparta insistia em resis­ que sua meta deixara de ser o universo
tir ao Grande Rei, rejeitando as vanta­ político: o da realização subjetiva e pes­
gens da rendição e da submissão, os dois soal, que acompanha o ideal de ciência
gregos respondem, altaneiros, ao persa pela ciência.
que os conduzia ao sacrifício: “Tu não
podes compreender. Conheces apenas a Em busca da serenidade
vida de servidão. Jamais experimentaste
a liberdade, para saber se ela é doce ou As novas condições impostas ao
não. Do contrário, tu nos aconselharias mundo grego tornam impossível a parti­
a combater por ela não somente com a cipação do indivíduo no governo da
lança mas também com o machado”. polis, que o cidadão helênico conhecera
Depois da batalha de Queronéia (338 sobretudo na fase democrática. O conhe­
a.C.), que marcà a derrota dos gregos cimento deixa de ser preparação para a
frente à Macedônia, a situação muda atividade política (como fora em Pla­
completamente. O desaparecimento da tão), passando a se ocupar do aprimora­
mento interior do homem. Distanciada
das preocupações políticas, a filosofia
Na página anterior: busto de Epicuro, aspira ao estabelecimento de normas
Museu Capitolino, Roma (Scala). universais para a conduta humana e se

86
EPICURO

A filosofia do período helenístico foi dominada por epicuristas, estóicos,


céticos e ecléticos e pela fusão dessas idéias com a religiosidade oriental.
O neoplatonismo de Plotino (205-270) foi a última manifestação do
pensamento grego, depois das transformações sofridas pelos grandes sistemas
da época clássica. (Sarcófago ae Plotino, Museu Laterano, Vaticano.)
propõe a dirigir as consciências: o pro­ sobre a natureza das coisas a base para
blema ético torna-se o centro da especu­ as suas construções morais. Bem diverso
lação de diferentes correntes filosóficas. será o itinerário prescrito pelo ceticis­
As éticas helenísticas partem à procu­ mo, fundado por Pirro de Élis (360-270
ra do bem individual, de uma sabedoria a.C.): à imperturbabilidade de espírito
que represente a plenitude da realização só se chegaria partindo-se da suspensão
subjetiva: o alcance da perfeita sereni­ de qualquer julgamento, renunciando-se
dade interior, independente das circuns­ a qualquer explicação científica, aban-
tâncias. O bem não mais terá o sentido donando-se toda pretensão de alcançar
metafísico do Bem de Platão, funda­ certezas inatingíveis.
mento das idéias, dos modelos do mundo Outra corrente de pensamento que se
corpóreo, e, consequentemente, susten­ manifesta no período helenístico é o
tação tanto do sujeito do conhecimento e ecletismo. Procurando um critério para
da ação quanto da própria realidade a ação que escapasse às disputas das
objetiva. O bem das éticas helenísticas diferentes escolas, essa filosofia preten­
terá acepção estritamente existencial: é derá estabelecer, para além das diver­
o bem como sinônimo do que é bom para gências, um “sentido comum11, um con­
o indivíduo, para a vida de cada homem. senso universal. Tal forma de pensar
Para traçar o caminho que conduz à teve larga aceitação na fase romana e Cí­
serenidade interior, algumas éticas hele­ cero foi seu mais eminente represen­
nísticas — o epicurismo e o estoicismo — tante.
partem de uma concepção do universo O caráter de religiosidade, que se tor­
fundamentada racionalmente. Ao contrá­ nará evidente no pensamento ocidental a
rio do que propunha o socratismo, partir do século I d.C., afirma-se antes
epicuristas e estóicos fazem da ciência em centros orientais da cultura helenís-

87
OS PENSADORES

tica, como Alexandria. Manifesta-se homem bondoso, de natureza terna e


então acentuada tendência à fusão ou ao amável, que, apesar dos sofrimentos físi­
sincretismo religioso. Ao mesmo tempo, cos impostos pela doença que o tortura e
ocorre o confronto entre duas tradições: aos poucos o paralisa, cultiva as amiza­
a greco-romana, formulada através de des, auxilia os irmãos e trata delicada­
filosofias dotadas de alto índice de mente os escravos. Por essa razão todos
racionalização, e a da religiosidade os que o conhecem dificilmente deixam
oriental, fundada — como no judaísmo e seu convívio.
no cristianismo — na noção de “verdade Epicuro foi intensamente venerado
revelada”. Os primeiros efeitos da reper­ pelos seus primeiros discípulos, grandes
cussão do espírito religioso sobre a filo­ admiradores seus. E cerca de dois sécu­
sofia manifestam-se nos judeus-alexan- los depois de sua morte — ocorrida em
drinos (do século II a.C. ao I d.C.), nos 270 a.C. — ainda será assim exaltado
neopitagóricos e platônicos pitagori- pelo poeta romano Lucrécio, seguidor e
zantes (entre o século I a.C. e III d.C.) e expositor de suas idéias: “Foi um deus,
nos últimos defensores do pensamento e sim, um deus, aquele que primeiro des­
da religião do politeísmo: os neoplatô- cobriu esta maneira de viver que agora
nicos do século II ao século VI d.C. se chama sabedoria, aquele que por sua
O neoplatonismo constituiu a mais arte nos fez escapar de tais tempestades
perfeita manifestação de sincretismo e de tais noites, para colocar nossa vida
religioso dessa época e teve em Plotino numa morada tão calma e tão lumino­
(204-270) seu principal representante. sa”.
Para o neoplatonismo — canto de cisne As tempestades e a noite a que se refe­
do pensamento da antiga Grécia —, todos re o poeta Lucrécio significam os temo­
os seres resultariam de sucessivas ema­ res e as perturbações que agitam o espí­
nações do Um,: divino, transcendente e rito humano e que Epicuro teria
inefável. Antes de se calar, a filosofia ensinado como vencer. “A morada tão
grega medita sobre um último tema: o calma e tão luminosa” seria a meta pro­
silêncio do Ser. posta pelo epicurismo: a morada da
serenidade e do prazer. Com efeito, toda
O jardim da amizade a ética de Epicuro representa um esforço
para libertar a alma humana de equívo­
e do prazer cos ou de infundadas crenças aterroriza­
doras. A filosofia, para Epicuro, deveria
Nascido em 341 a.C., em Atenas ou servir ao homem como instrumento de
em Samos, Epicuro teria acompanhado, libertação e como via de acesso à verda­
dos catorze aos dezoito anos, os ensina­ deira felicidade. Esta consistiría na sere­
mentos do acadêmico Pânfilo. E, através nidade de espírito que advêm da cons­
de Nausífanes de Teo, discípulo de ciência de que é ao homem que compete
Demócrito (c. 460-370 a.C.), teria co­ conseguir o domínio de si mesmo.
nhecido as doutrinas desse grande ato- O autodomínio — objetivo de toda
mista. Durante algum tempo ganhou a reflexão' filosófica — exige a libertação
vida como professor de gramática. Em do jugo das falsas opiniões e a conquista
seguida deu cursos de filosofia, primeiro do conhecimento verdadeiro e seguro da
em Lâmpsaco, depois em Mitilene e realidade e da posição do homem dentro
Colofonte. Finalmente regressa a Ate­ dela. Conseqíientemente, a filosofia pode
nas, por volta de 306 a.C., onde adquire ser dividida em três partes que se articu­
uma pequena casa e abre uma escola de lam. Em primeiro lugar, a lógica, que
filosofia, que ficará conhecida como o permitiría distinguir quais as formas de
Jardim de Epicuro. conhecimento verdadeiro, quais as fal­
Os alunos não têm em Epicuro um sas. Em segundo lugar — com base nas
mestre no estilo tradicional: na verdade, soluções indicadas pela lógica —, uma fí­
formam um grupo de amigos que filoso­ sica que mostrasse a verdadeira estru­
fam juntos. Epicuro exerce influência, tura da realidade na qual se insere o
não só pelo ensino direto como pela homem. A lógica e a física constituiríam,
extraordinária personalidade. É um assim, as disciplinas preliminares a

88
EPICURO

FABBRI

A inserção da Grécia no vasto império macedônico determinou novos rumos


para a cultura grega, agora estreitamente relacionada às culturas orientais.
Começa o período helenístico, quando a Grécia, subjugada por macedônios e
depois por romanos, impõe sua cultura a toda a região mediterrânea.
(Alexandre, cópia romana de original helenístico; Museu Cívico de Bolonha.)

89
OS PENSADORES

possibilitar a descoberta dos funda­ “o calor e o frio passam através das


mentos da ética. Esta seria a terceira paredes”.
parte da filosofia e seu objetivo último, A conjugação do conhecimento sensí­
constituindo a chave para abrir as por­ vel e do conhecimento racional permite a
tas da felicidade. Epicuro justificar sua adesão ao ato-
A teoria do conhecimento dos epicu- mismo criado por Leucipo (meados do
ristas (que eles chamavam de canônica) século V a.C.) e Demócrito (c. 470-c.
é empirista, isto é, reduz toda a origem 370 a.C.). Com efeito, se os sentidos
do conhecimento à experiência sensível. atestam o movimento como uma evidên­
As repetidas experiências dos sentidos, cia, seria verdadeira, graças ao critério
preservadas pela memória, dariam nas­ da não-infirmação, a teoria atomista,
cimento às antecipações (em grego: que apresenta uma explicação racional
prolepsis), equivalentes às noções gerais para o movimento, afirmando que tudo é
ou conceitos. Quando se ouve a palavra constituído de átomos (invisíveis) que se
homem, por exemplo, antecipa-se a pre­ movem no vazio.
sença real e efetiva de um homem, sem Como os anteriores atomistas, Epicu­
que o mesmo esteja sendo apreendido de ro considera os átomos como infinitos
fato por qualquer dos sentidos. As pro­ em número, indivisíveis fisicamente (in-
lepsis teriam a função de classificar as secáveis) e imensamente pequenos (sua
experiências e fixar seus limites de variação de tamanho estaria situada
variação. Seriam em si mesmas verda­ aquém do limiar de percepção); além
deiras, pois simplesmente registram e disso, seriam móveis por si mesmos,
preservam as diferenças e semelhanças pois o vazio não oferecería qualquer
encontradas na experiência sensível. resistência à locomoção. Leucipo e De­
mócrito haviam afirmado que os átomos,
A fonte da verdade materialmente idênticos, diferiam uns
dos outros apenas pela forma, pelo
tamanho, pela posição ou, quando cons­
Depois que se possui um número tituíam conjuntos, pelo arranjo. Epicuro,
suficientemente grande de prolepsis, porém, introduz uma nova distinção: os
podem-se formar juízos, verdadeiros ou átomos seriam diferentes também quan­
falsos. A verdade de um juízo pode ser to ao peso. Os primeiros atomistas
provada, segundo os epicuristas, de consideravam o peso uma resultante do
duas maneiras. Quando o juízo diz res­ tamanho dos átomos: os maiores, mais
peito a algo observável pelos sentidos, o sujeitos aos impactos dos outros, loco­
critério é pura e simplesmente a concor­ movem-se com mais dificuldade e ten­
dância entre o juízo e os fenômenos sen­ dem a ocupar o centro dos agrupamentos
síveis correspondentes. O segundo crité­ de átomos, comportando-se como mais
rio de verificação da verdade de uma pesados. Ao contrário, Epicuro consi­
proposição refere-se aos juízos sobre dera o peso um atributo inerente aos áto­
fenômenos não passíveis de observação mos, concebendo, portanto, um peso
através dos sentidos. Nesse caso diz-se absoluto e não relativo. E devido ao peso
que uma certa proposição é verdadeira é que os átomos, num momento inicial,
se não entrar em contradição com outros são imaginados por Epicuro como “cain­
dados fornecidos pela-experiência (crité­ do”; mas, situados dentro do vazio, te­
rio da não-infirmação). Os fenômenos riam que desenvolver, nessa “queda”,
adotados como prova são apenas signos trajetórias necessariamente paralelas.
de uma realidade invisível. Por exemplo, Isso significa que os átomos jamais se
segundo a doutrina atomista, adotada chocariam — dando origem aos engates e
por Epicuro, “todos os corpos, por mais aos torvelinhos indispensáveis à consti­
compactos que sejam, possuem interstí­ tuição das coisas e dos mundos — se
cios vazios dentro deles”. Esse juízo não algum fator não viesse interferir naquele
é atestado diretamente pelos sentidos; paralelismo das trajetórias. Afastando-
mas, se não for admitido como verda­ se do rígido mecanicismo da fisica dos
deiro, também não seria verdade que “a primeiros atomistas, Epicuro introduz
água destila através das rochas”, ou que então a noção de “desvio” (clinamen):

90
EPICURO

Na época helenística, as ciências começaram a separar-se do tronco comum da


filosofia, constituindo disciplinas autônomas. Alexandria, no Egito, foi o
principal centro do pensamento científico e Arquimedes de Siracusa um dos
maiores representantes da nova física e matemática. (Morte
de Arquimedes a partir de uma pintura de G.C.E. Courtois.)
sem nenhuma razão mecânica, os áto­ mação, encontraria explicação no desvio
mos, em qualquer momento de suas que deve também ocorrer nas trajetórias
trajetórias verticais, podem se desviar e atômicas. Inconcebível seria admitir que
se chocar. O clinamen aparece, assim, um composto (o homem) apresentasse
como a introdução do arbítrio e do atributos inexistentes em seus compo­
imponderável num jogo de forças estri­ nentes (os átomos). A doutrina do clina­
tamente mecânico: é a ruptura da neces­ men serve, assim, para fundamentar,
sidade, do plano da física, para acolher dentro de um universo de coisas regido
a contingência. pelo fatalismo e pela necessidade mecâ­
A justificativa do clinamen está ga­ nica, a espontaneidade da alma, a auto­
rantida pela canônica de Epicuro: a evi­ nomia da vontade, a liberdade humana.
dência imediata revela que existe um ser Na física Epicuro situa as premissas de
— o homem — que, embora constituído de sua ética.
átomos (como todos os seres do univer­
so), manifesta a possibilidade de arbí­ A verdadeira sabedoria
trio, pelo qual altera os rumos de sua Com sua concepção materialista da
vida ou, pelo menos, pode modificar sua realidade, Epicuro pretende libertar o
atitude interior diante dos aconteci­ homem dos dois temores que o impedi­
mentos. A existência da vontade livre ríam de encontrar a felicidade: o medo
seria, portanto, o fato experimentado dos deuses e o temor da morte. Os deu­
que, através do critério da não-infir- ses existem, afirma Epiquro, mas seriam

91
OS PENSADORES'

seres perfeitos que nâo se misturam às ética e não apenas natural — é o “prazer
imperfeições e às vicissitudes da vida do repouso”, constituído pela a tara ria
humana. Os deuses viveríam em perfeita (ausência de perturbação) e pela aponia
serenidade nos espaços que separam os (ausência de dor). Ambas podem ser
mundos. Sua perfeição suprema consti­ alcançadas na medida em que o homem,
tui o ideal a que aspiram os sábios e através do autodomínio, busque a auto-
deve ser objeto de culto desinteressado; suficiência que o torne um ser que tem
não teria sentido adorá-los de maneira em si mesmo sua própria lei, um ser
servil, temerosa e interesseira, pois eles autárquico, capaz de ser feliz e sereno
desconhecem o mundo imperfeito dos independentemente das circunstâncias.
homens e de modo algum atuam sobre Para tanto, deve renunciar aos prazeres
ele. Quanto à morte, não há também por que possam ser fontes de aflição e acei­
que temê-la. Ela não seria mais que a tar a dor quando ela é portadora de um
dissolução do aglomerado de átomos bem futuro (que nunca deve ser confun­
que constitui o corpo e a alma. A morte, dido com a suposta vida depois da
portanto, não existe enquanto o homem morte). É necessário, portanto, fazer um
vive e este não existe mais quando ela cálculo utilitário dos prazeres e das
sobrevem. dores possíveis, como primeiro passo
A libertação do temor dos deuses e da para a conquista da felicidade. Epicuro,
morte não basta para conduzir o homem porém, reconhece que as circunstâncias
à verdadeira felicidade. É necessário podem impor a dor como um fato inelu­
ainda que ele se liberte da ânsia incon- tável. Sabedoria será então utilizar a
trolada de prazeres e do incontido pesar liberdade interior e, através do artificio
pelas dores. que essa liberdade permite, permanecer
A luminosidade racional da doutrina sereno e feliz. A dor presente, ensina
atomista permitiría ao homem afastar os Epicuro, pode-se escapar por meio da
sombrios temores que lhe intranqíii- lembrança dos prazeres passados ou
lizavam a alma, bem como reconhecer- pela expectativa de prazeres futuros.
se como um ser perfeitamente integrado Interiormente, o homem é livre para
na natureza universal. Enquanto ser jogar, à vontade, com as imagens (eido-
natural, o homem — como os animais — la) que seriam resquícios corpóreos (for­
pauta sua vida, espontaneamente, pela mados de átomos mais tênues) de suas
procura do prazer e pela fuga da dor. sensações. Epicuro — ele próprio um
Mas a verdadeira sabedoria está além homem doente e vítima de terríveis sofri­
desse comportamento natural e espontâ­ mentos físicos, ele próprio um grego sem
neo: sábio é reconhecer que há diferentes liberdade política — teria dado a de­
tipos de prazer, para saber selecioná-los monstração dessa técnica interior de
e dosá-los. O hedonismo epicurista reco­ evasão, capaz de permitir ao homem
nhece que o ponto de partida para a feli­ enfrentar serenamente as mais adversas
cidade está na satisfação dos desejos fí­ circunstâncias. Seu hedonismo alta­
sicos, naturais. Mas essa satisfação, mente espiritualizado, que fazia da
para não acarretar sofrimentos, deve ser contemplação intelectual e das delícias
contida, reduzindo-se ao estritamente da amizade os mais elevados prazeres,
necessário: sábio é aquele que “com um legou às éticas posteriores uma lição
pouco de pão e de água rivaliza com Jú­ que nunca mais será esquecida: a de que
piter em felicidade”. o homem também pode se sustentar de
Epicuro considera que todo prazer é recordações e de esperanças.
basicamente um prazer corpóreo. Mas,
ao contrário dos cirenaicos — corrente A poesia do materialismo
hedonista que se pretendia herdeira de
Sócrates —, Epicuro afirma que o prazer Na própria Antiguidade o epicurisino
que o homem deve buscar não é o da não sofreu reformulações. Os seguido­
pura satisfação física imediata e mutá­ res imediatos de Epicuro limitaram-se a
vel, o “prazer do movimento”. Para Epi­ cultuar a memória do mestre e a preser­
curo, o prazer que deve nortear a condu­ var e propagar suas idéias.
ta humana — o prazer com dimensão Segundo Diógenes Laércio, a obra de

92
EPICURO

Epicuro compreendia cerca de trezentos


títulos, dentre os quais só Sobre a Natu­
reza compreendería 37 livros. Dessa
T rtflifirOm í.uv»r<f fJTv^r axxjnrfirtjMlC' grande quantidade de escritos, todavia,
I emf/crtf IncirpT nam&if.iedwKJuefiurt^arnt
restou muito pouco: o próprio Diógenes
Laércio conservou uma Carta a Heró-
doto (que trata da física), uma Carta a
p er-fwile- rrler.wtr finibufMtíam Pítocles (de autenticidade contestada e
C 0fYX *Mrrt v^notluf Jurc-clir'***** tratando dos meteoros) e uma Carta a
Meneceu (sobre moral); Diógenes Laér­
n rccCrrtC omntl p.»<Zxrrm xxAef«»-» cC/re,
cio faz seguir essas cartas de quarenta
ZL cktvpuLrm f^fno JCvmf~ Ji frrfp.iifr ufto sentenças atribuídas a Epicuro e conhe­
TTVtkuCHrirvIl CAH.I âoKCK.lH*> N.lt U|L\,
cidas sob a denominação de Máximas
Principais. Em 1888, K. Wotke desco­
^Iiixkii-ejcpbcttjNunrr Libc-k- tu- briu, num manuscrito da biblioteca do
Vaticano, 81 máximas de Epicuro, algu­
mas já inseridas nas Máximas Princi­
pais. Por outro lado, as escavações rea­
lizadas em Herculanum trouxeram à luz
uma biblioteca epicurista, contendo in­
f
clusive o Sobre a Natureza de Epicuro.
n. cupicÂtf <pn»»ppf r>- Jmorcr,
Mas, se os escritos de Epicuro só são
conhecidos de forma fragmentária, exis­
3 te uma outra fonte para o conhecimento
C ycruTf iitncjiur/mrn rrermJi/yjtve^r-iii^pJt
de sua doutrina: o poema Da Natureza
lir^ãtt-rrKWfUjwfflnt. 6CfotX»fo^hiuÇ das Coisas, de seu seguidor Lucrécio,
«*Br,-er r-t»T rrn iTiimrcoT- ru|xurn»wlrrÇ que viveu em Roma entre os anos 99 e
55 a.C.
Pouco se sabe da vida de Tito Caio
Lucrécio. Nasceu provavelmente em
Roma, onde foi educado.
Quando conheceu a doutrina de Epi­
curo — “honra da raça grega” —, Lucré­
cio deslumbrou-se com seus ensinamen­
tos, que lhe pareceram a chave para
desvendar os segredos do universo e
para abrir as portas da felicidade huma­
na. Seguindo as pegadas do mestre,
Lucrécio propõe-se a tarefa de libertar-
os romanos da religião que os oprimia e
que sobre eles pesava com mais força do
que outrora pesara sobre os gregos.
Além de servir de fonte para conheci­
mento da doutrina epicurista, o poema
de Lucrécio tem imensa importância
literária: através dele Lucrécio se revela
um dos maiores poetas da língua latina.
Lucrécio matou-se em 55 a.C. Seu
poema, escrito em intervalos de ataques
de loucura, ficou inacabado e foi com­
pletamente revisado, para publicação,
Manuscrito medieval do poema Da segundo algumas fontes, por um irmão
Natureza, de Lucrécio, e pormenor de de Cícero chamado Quinto. Segundo ou­
afresco de Serafino dei Serajini tras fontes, aquele trabalho foi feito pelo
(séc. XIV), representando Epicuro. próprio Cícero, que tinha pelo poeta do
(Pinacoteca Comunal de Ferrara) materialismo profunda admiração.

93
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
470 a.C. — Nasce Sócrates. Lao-Tsé, codificador do Cicio, fundador da escola
468 a.C. — Consolida-se tauísmo. estóica. Aristóteles funda o
em Atenas a política do par­ 369 a.C. — Esparta e Ate­ Liceu.
tido aristocrático. nas aliam-se contra Tebas. 331 a.C. — É fundada a ci­
460-370 a.C. — Vida do fi­ 359 a.C. — Ascensão de Fi­ dade de Alexandria, que se
lósofo Demócrito de Abde- lipe ao trono da Macedônia. torna o principal centro co­
ra. 354 a.C. — Primeiros dis­ mercial do Mediterrâneo.
442/1 a.C. — Sófocles es­ cursos de Demóstenes à as­ 323 a.C. — Morte de Ale­
creve Antígone. sembléia do povo. xandre.
438 a.C. — Fídias esculpe 347 a.C. — Morte de Pla­ 306 a.C. — Epicuro abre
A tena Parténos. tão. sua escola em A tenas.
430 a.C. — Nasce Xeno­ 345-342 a.C. — Filipe es­ 300 a.C. — Surge Elemen­
fonte. tende sua dominação sobre tos, de Euclides.
428 a.C. — Nascimento de os bárbaros e na Tessália. 290 a.C. — Fundação do
Platão. 343 a.C. — Aristóteles é museu de Alexandria.
404 a.C. — Paz entre Es-, chamado à Macedônia co­ 287 a.C. — Nascimento de
parta e Atenas. mo preceptor de Alexandre Arquimedes de Siracusa.
399 a.C. — Processo e mor­ Magno, filho de Filipe. 270 a.C. — Epicuro morre
te de Sócrates. 341 a.C. — Epicuro nasce em seu Jardim.
396 a.C. — Surgem os pri­ em Samos. 148 a.C. — Os romanos re­
meiros diálogos de Platão. 340 a.C. — Congresso de duzem a Macedônia a pro­
392-388 a.C. — Últimas co­ Atenas. Guerra entre Filipe víncia.
médias de Aristófanes. e os gregos. 146 a.C. — Destruição de
387 a.C. — Platão funda a 338 a.C. — Batalha de Que- Corinto.
Academia. ronéia: Filipe derrota os 98 (?) a.C. — Nasce Lucré-
384 a.C. — Nasce Demós- gregos; Atenas se submete a cio.
tenes; nesse mesmo ano, em condições humilhantes. 70 (?) a.C. — Nascimento
Estagira, na península Cal- 336 a.C. — Morte de Filipe. de Virgílio.
cídica, nasce Aristóteles. Ascende Alexandre. 55 (?) a.C. — Morre Lucré-
380-320 (?) a.C. — Vida de 334 a.C. — Nasce Zenão de cio.

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94
CAPfruioô

ÜE.

~-

\ CÍCERO
SÉNECA
■ MARCO AURÉLIO
& ü
OS PENSADORES

m janeiro de 49 a.C., o triúnviro

E romano Júlio César atravessou o


Rubicão e desencadeou a guerra
civil que o levaria a dominar todo o
império. Venceu Pompeu em Farsala,
instalou Cleópatra no trono do Egito,
reorganizou o Oriente e derrotou os últi­
mos adeptos do segundo triúnviro na
África, em 46 a.C., e na Espanha, um
ano depois. De volta a Roma em 45 a.C.,
começou a governar como déspota abso­
luto e tratou de eliminar os últimos
adversários. Não suspeitava que isso
teria importantes conseqüências para a
história da filosofia.
Entre os adversários perseguidos es­
tava Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.),
senador e figura proeminente da politica
romana nos anos anteriores. Obrigado a
deixar os negócios públicos, Cícero
recolheu-se à vida privada e retomou a
meditação filosófica, de que já se ocupa­
ra num primeiro exílio, por volta de 51
a.C. O resultado foi um conjunto de
obras, escritas em aproximadamente
dois anos e que versavam sobre os mais Júlio César, escultura do séc. Ia.C.
variados assuntos: Sobre os Fins, Con­ (Museu Nacional da Antiguidade,
trovérsias Tusculanas e Sobre os Deve­ Parma). Página anterior: O Filósofo,
res tratam de problemas éticos; Os Tópi­ Mural da Vila Boscoreale — Museu
cos e Os Acadêmicos abordam questões Nacional de Nápoles. (Scala)
lógicas; A Natureza dos Deuses, Sobre a
Arte Adivinhatória e Sobre o Destino são Essas correntes ele tinha conhecido
dedicados a temas da física. quando, na juventude, estudou em Ate­
Do ponto de vista da filosofia, essas nas, antes de tornar-se conhecido advo­
são as principais obras escritas por Cí­ gado e homem público. Foi discípulo e
cero no retiro forçado por César e vi­ amigo de epicuristas, estóicos, peripaté-
nham juntar-se a Sobre o Orador, escrito ticos e acadêmicos. De todos eles Cícero
em 55 a.C., A República, redigida em 51 retirou algumas idéias e compôs uma
a.C., e Sobre as Leis, provavelmente da síntese que, além da importância pela
mesma época. criação de um vocabulário filosófico
Esse conjunto de obras desempe­ latino, constitui fonte de estudo de boa
nharia papel de primeiro plano na histó­ parte do pensamento clássico.
ria do pensamento porque fazia do latim No que diz respeito às suas próprias
um idioma filosófico. Pouco antes, Lu- posições doutrinárias, Cícero, em teoria
crécio tinha escrito o poema Sobre a do conhecimento, opôs-se tanto ao ceti­
Natureza, mas a obra não foi publicada cismo radical de Pirro de Elis (360-
senão após a morte do poeta e, ao que 270 a.C.) quanto ao dogmatismo extre­
tudo indica, sob os cuidados de Cícero. mado. Defendeu como critério de verda­
Apesar desse valor histórico, as obras de o probabilismo do consenso univer­
de Cícero não contêm um pensamento sal, isto é, aquela posição que acha
original, limitando-se a amalgamar dife­ possível ao homem chegar a algum
rentes teorias filosóficas gregas. Cícero conhecimento das coisas, sem no entanto
foi um típico eclético, discutindo os atingir a verdade absoluta. A verdade
argumentos das diferentes doutrinas estaria naquilo que pode ser aceito por
gregas correntes na época, sem vincu- todos. As razões dessa posição são colo­
lar-se inteiramente a nenhuma. cadas menos num plano puramente lógi-

96
CÍCERO

co do que no terreno das necessidades


práticas do homem. Para Cícero, o pro­
blema do conhecimento não pode ser
solucionado exclusivamente em sua es­
trutura interna. O homem necessita,
todavia, admitir como verdadeiras algu­
mas noções sem as quais não é possível
manter a coesão da sociedade.
Em moral, Cícero adere às doutrinas
estóicas sem, entretanto, aceitar todo o
rigor da concepção segundo a qual o
exercício da virtude basta-se a si mesmo
e consiste na conformidade da conduta
humana às leis racionais da natureza.
Aceita essas idéias, mas exige que
tais normas sejam validadas pelo con­
senso universal.
Esse consenso universal articula-se
em torno de algumas idéias que dão fun­
damento à vida moral e social, princi­
palmente a da existência de Deus e sua
providência. Tais noções seriam com­
provadas pela consciência natural dos
homens e pela constatação de que na
natureza os fenômenos organizam-se em
torno de fins, os quais supõem a exis­
tência de um fim último de todas as coi­
sas. Outra idéia com a mesma função de
fundamentar a vida social e moral é a da
essência espiritual e divina da alma e
sua imortalidade. Essa idéia encontrar-
se-ia confirmada na preocupação do
homem com sua vida futura.

Os estóicos
Depois de Cícero ter iniciado a histó­
ria da filosofia em língua latina, formu­
lando sua síntese eclética, o movimento
de idéias mais importante dentro do pen­
samento romano foi o desenvolvimento
das doutrinas estóicas, também originá­
rias da Grécia, como o epicurismo e o
ecletismo.
A escola estóica foi fundada por
Zenão de Cicio (336-264 a.C.) e conti­
nuada por Cleanto de Assos (331-232
a.C.) e Crisipo de Solis (280-210 a.C).
Posteriormente, a escola transformou-
se, tendendo para uma posição eclética,
com Panécio de Rodes (185-112 a.C.) e
Possidônio de Apaméia (135-51 a.C.) No longo reinado do imperador Augusto
O estoicismo grego propõe uma ima­ surgiu o cristianismo, que,
gem do universo segundo a qual tudo o posteriormente, absorvería elementos
que é corpóreo é semelhante a um ser da filosofia estóica.
vivo, no qual existiría um sopro vital (Estátua de Augusto, Louvre )

97
OS PENSADORES

(pneuma), cuja tensão explicaria a jun­ a natureza, ou seja, seguir a Deus e à


ção e interdependência das partes. No Razão Universal, aceitando o destino e
seu conjunto, o universo seria igual­ conservando a serenidade em qualquer
mente um corpo vivo provido de um circunstância, mesmo na dor e na adver­
sopro igneo (sua alma), que reteria as sidade.
partes e garantiría a coesão do todo.
Essa alma é identificada, por Zenão, à Uma nova lógica
razão, e assim o mundo seria inteira­
mente racional. A Razão Universal Os estóicos gregos não se limitaram a
(Logos), que tudo penetra e comanda, formular uma física e uma ética. Elabo­
tende a eliminar todo tipo de irracionali­ raram também uma teoria do conheci­
dade, tanto na natureza, quanto na con­ mento de acentuada originalidade. As
duta humana, não havendo lugar no uni­ três formariam um conjunto sistemático
verso para o acaso ou a desordem. que expressaria, no plano do conheci­
A racionalidade do processo cósmico mento, a mesma racionalidade encon­
manifesta-se na idéia de ciclo, que os trada na natureza.
estóicos adotam e defendem com rigor. A teoria do conhecimento consiste,
Herdeiros do pensamento de Heráciito para os estóicos, em vincular estreita­
de Éfeso (séc. VI a.C.), os estóicos con­ mente a certeza e a ciência ao plano do
cebem a história do mundo como feita conhecimento sensível. A base de qual­
por sucessão periódica de fases, culmi­ quer conhecimento seriam as impressões
nando na absorção de todas as coisas recebidas pelos sentidos; mas já o nível
pelo Logos, que é Fogo e Zeus. Comple­ do sensível estaria penetrado pela razão,
tado um ciclo, começa tudo de novo: sendo portanto predisposto à sistemati­
após a conflagração universal, o eterno zarão pela inteligência.
retorno.
Tudo o que existe é corpóreo e a pró­
pria razão identifica-se com algo mate­
rial, o fogo. () incorpóreo reduz-se a
meios inativos e impassíveis, como o es­
paço e o vazio; ou então àquilo que se
pode pensar sobre as coisas, mas não às
próprias coisas.
Nesse universo corpóreo e dirigido
pelo fatalismo dos ciclos sempre idênti­
cos, tudo existe e acontece segundo
predeterminação rigorosa porque racio­
nal. Covernada pelo Logos, a natureza é
por isso justa e divina e os estóicos iden­
tificam a virtude moral com o acordo
profundo do homem consigo mesmo e.
através disso, com a própria natureza,
que é intrinsecamente razão. Esse acor­
do consigo mesmo é o que Zenão chama
“prudência” e dela decorrem todas as
demais virtudes, como simples aspectos
ARBORIO MELLA

ou modalidades.
As paixões são consideradas pelos
estóicos como desobediências à razão e
podem ser explicadas como resultantes
de causas externas às raízes do próprio
indivíduo; seriam, como já haviam mos­ Conhecido sobretudo pela oratória e
trado os cínicos, devidas a hábitos de pelo estilo, Cícero é importante como
pensar adquiridos pela influência do defensor do ecletismo e como fonte de
meio e da educação. É necessário ao estudo da filosofia grega. (Cícero,
homem desfazer-se de tudo isso e seguir Museu Capitolino)

98
CÍCERO

Na época helenística, os cultos religiosos orientais penetraram no mundo


grego e romano, determinando modificações significativas na própria
filosofia. Contudo, a antiga mitologia homérica continuou a ser cultivada,
como atesta uma pintura mural romana (séc. I a.C.) que representa íris, mensageira
do Olimpo, conduzindo a deusa Juno para o casamento com Júpiter.

99
OS PENSADORES

Ao lado das coisas sensíveis, os estói-


cos distinguem os “exprimíveis”, isto é,
aquilo que se pode pensar e dizer sobre
as coisas. Os “exprimíveis” seriam obje­
to da dialética, disciplina que se ocupa­
ria dos enunciados verdadeiros ou falsos
a respeito das coisas, e não sobre as pró­
prias coisas.
Os mais simples enunciados, segundo
os estóicos, são compostos por um sujei­
to (expresso por um substantivo ou um
pronome) e um atributo (expresso por
um verbo). Esses enunciados distin-
guem-se, assim, das proposições da lógi­
ca aristotélica, que estabelecem relações
entre conceitos (por exemplo: “o homem
é um animal racional”). Na lógica estói-
ca, o sujeito é sempre singular (alguém,
Pedro, etc.) e o atributo indica sempre
algo que ocorre com o sujeito. As liga­
ções entre os enunciados, portanto,
nunca assumem o caráter de juízo cate­
górico, permanecendo como relaciona­
mento entre eventos, cada qual expresso
por uma proposição simples (por exem­
plo: “Está claro, é dia”).
Os estóicos distinguem cinco tipos de
juízos compostos que reúnem os enun­
ciados simples. O juízo hipotético expri­
me relação entre antecedente e conse-
qüente (“Se há fumaça, há fogo”). O
juízo conjuntivo simplesmente justapõe
fatos (“É dia, está claro”). O juízo dis-
juntivo separa os enunciados, de modo
que só um deles pode ser verdadeiro
(“Ou é dia, ou é noite”). O juízo causai
exprime relação de causa e efeito (“Está
claro porque é dia”). Finalmente, o quin­
to tipo de juízo expressa a idéia de mais
e menos (“Fica menos claro quando é
mais noite”).

A medicina da alma
SNARK INTERNATIONAL

Não foi a lógica dos estóicos gregos,


nem mesmo sua teoria do mundo físico,
que sobretudo atraiu o interesse dos
estóicos romanos. Foi antes sua moral
da resignação, sobretudo nos aspectos
religiosos que ela permitia desenvolver.
O primeiro representante do estoi-
cismo romano, sem contar as idéias Por condenação de Nero, Sênecafoi
estóicas que se encontram no ecletismo obrigado a suicidar-se. (Em. cima:
de Cícero, foi Lucius Annaeus Seneca, busto de Nero, Museu Capitolino.
nascido em Córdoba (Espanha), aproxi­ Embaixo: bronze romano representando
madamente quatro anos antes da era Sêneca; Museu do Louvre, Paris.)

100
SÊNECA

cristã. Era filho de Annaeus Seneca (55 imperador Cláudio César Cermânico. Na
a.C.-39 a.D.) — conhecido como Sêneca, Córsega, Sêneca passaria quase dez
o Velho —, que teve renome como retó­ anos em grande privação material.
rico e do qual restou uma obra escrita Em 49 d.C., Messalina, primeira es­
(Declamações). O futuro filósofo Sêneca posa do imperador Cláudio e respon­
foi educado em Roma, onde estudou a sável pelo exílio de Sêneca, caiu em des­
retórica ligada à filosofia. Em pouco graça e foi condenada à morte. ()
tempo tornou-se famoso como advogado imperador Cláudio casou-se com Agri-
e ascendeu politicamente, passando a pina e esta mandou chamar Sêneca para
ser membro do senado romano e depois educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quan­
nomeado questor. do Nero se torna imperador, Sêneca
O triunfo político, no entanto, não se passa a ser seu principal conselheiro.
fazia sem conflitos e o renome de Sêneca Esse período estende-se até 62 d.C., ano
suscitou a inveja do imperador Calígula, em que sua estrela começa a perder o
que pretendeu desfazer-se dele pelo brilho junto ao despótico soberano. Sê­
assassinato. Sêneca, contudo, foi salvo neca deixa a vida pública e sofre a
por sua frágil saúde; julgava-se que ele perseguição de Nero, que acaba por
morrería muito cedo, de morte natural. condená-lo ao suicídio, em 65 d.C.
O próprio Calígula é que falecería logo As Cartas Morais de Sêneca, escritas
depois e Sêneca pôde continuar vivendo entre os anos 63 e 65 e dirigidas a Lucí-
em relativa tranqüilidade. Não duraria lio, misturam elementos epicuristas com
esse período muito tempo. Em 41 d.C; idéias estóicas e contêm observações
foi desterrado para a Córsega, sob acu­ pessoais, reflexões sobre a literatura e
sação de adultério, supostamente prati­ crítica satírica dos vícios comuns na
cado com Júlia Livila, sobrinha do novo época. Entre os seus doze Ensaios
Morais, destacam-se Sobre a Clemência,
cautelosa advertência a Nero sobre os
perigos da tirania, Da Brevidade da
Vida, análise das frivolidades nas socie­
dades corruptas, e Sobre a Tranqüi­
lidade da Alma, que tem como assunto o
problema da participação na vida públi­
ca. As Questões Naturais expõem a físi­
ca estóica enquanto vinculada aos pro­
blemas éticos.
Além dessas obras propriamente filo­
sóficas, Sêneca escreveu ainda nove tra­
gédias e uma obra-prima da sátira lati­
na, Apolokocintosis, que ridiculariza
Nero e suas pretensões à divindade.
Todas essas obras revelam que Sêneca
foi, sobretudo, um moralista. A filosofia
é para ele uma arte da ação humana,
uma medicina dos males da alma e uma
pedagogia que forma os homens para o
exercício da virtude. O centro da refle­
xão filosófica deve ser, portanto, a ética;
e a física e a lógica devem ser conside­
radas como seus prelúdios.
Sua concepção do mundo repete as
idéias dos estóicos gregos sobre a estru­
Os relevos da coluna de Marco Aurélio tura puramente material da natureza.
(Roma) narram seus feitos como grande Contudo, a razão universal dos gregos
guerreiro. Nos intervalos das Cleanto e Zenão transforma-se em Sêne­
lutas, o imperadorfilósofo ca num deus pessoal, que é sabedoria,
dedicava-se à meditação espiritual. previsão e vigilância, sempre em ação

101
OS PENSADORES

para governar o mundo e realizar uma


ordem maravilhosa.

O imperador filósofo
Cronologicamente, o segundo grande
representante do estoicismo romano foi
Epicteto (c. 50-130), escravo durante
muitos anos e, posteriormente, professor
de filosofia. Seu ensino foi recolhido
pelo discipulo Ariano de Nicomédia, em
oito livros. Chegaram até a atualidade
quatro livros inteiros e apenas alguns
fragmentos dos restantes.
Grande admirador de Epicteto foi o
imperador Marco Aurélio Antonino, que,
nas pausas tranqüilas de seu conturbado
governo, se dedicou à reflexão filosófica
e com isso tornou-se o terceiro e último
grande expoente do estoicismo romano.
Marco Aurélio nasceu em 121, no seio
de uma família aristocrática, e muito
cedo perdeu os pais. Foi então adotado
pelo tio, Aurélio Antonino. O tio tornar -
se-ia imperador e nomearia Marco Auré­
lio seu sucessor, em 161.
Aos onze anos de idade, Marco Auré­
lio conheceu o estoicismo e adotou hábi­
tos de vida austera, recomendados por
aquela escola filosófica. Depois dos anos
de formação passou a colaborar intima­
mente cóm o imperador, seu pai adotivo, Montesquieu sobre Marco Aurélio:
ocupando o cargo de cônsul por três “Sente-se um prazer secreto em si
vezes. Em 161, Aurélio Antonino faleceu mesmo quando se fala desse
e Marco Aurélio tornou-se imperador. imperador . . (Estátua eqüestre
O governo de Marco Aurélio — que se de Marco Aurélio, Capitólio.)
estendeu por quase vinte anos, até sua
morte em 180 — foi p.erturbado por guer­
ras sangrentas e prolongadas, com as O conteúdo das Meditações é a filoso­
consequentes dificuldades internas. fia estóica, mas de um estoicismo bas­
Além disso, Roma foi vítima de inunda­ tante distante das doutrinas de Zenão,
ções, tremores de terra e incêndios. Cleanto e Crisipo. As especulações físi­
Marco Aurélio conseguiu enfrentar cas e lógicas cedem lugar ao caráter
todas as dificuldades, tendo sido exce­ prático dos romanos e ao aconselha­
lente guerreiro e administrador e, ao mento moral. Em Marco Aurélio — como
mesmo tempo, humanizando profunda­ também nas Máximas de Epicteto — a
mente o exercício do poder. Nos poucos questão central da filosofia é o problema
momentos que os encargos de governo de como se deve encarar a vida para que
permitiam, recolhia-se à meditação filo­ se possa viver bem. Esse problema assu­
sófica e escrevia seus pensamentos em me a forma de intensa preocupação com
língua grega, que lhe parecia a mais o estado de sua própria alma, em virtude
apta a exprimir inquietações intelec­ da natureza delicada e sensível do autor
tuais e morais profundas. As Meditações das Meditações, homem sobretudo reli­
(como posteriormente ficaram conheci­ gioso e pouco interessado na investiga­
dos aqueles pensamentos) são simples ção científica. Por essa razão o estoi­
notas, apenas esboçadas. cismo de Marco Aurélio frequentemente

102
MARCO AURÉLIO

scala
Tendo vivido na época de transição entre o fim da cultura clássica e o advento
da fé cristã, Marco Aurélio exprime as inquietações de seu momento.
Muitos elementos de sua moral, herdada do estoicismo grego,
tomar-se-iam parte integrante do pensamentofilosófico do cristianismo.
(M. Aurélio participando de um sacrifício; Museu dos Conservadores, Roma)

apresenta, discrepâncias em relação às Aurélio deve ser procurada menos em


suas origens gregas. Marco Aurélio não suas características psicológicas do que
chegou a ser um pensador original e não nas circunstâncias históricas em que
procurou resolver as inconsistências de viveu. O império romano estava per­
sua própria posição. Enquanto a ortodo­ dendo o antigo esplendor e a cultura
xia estóica levava-o na direção de um clássica greco-latina mostrava os últi­
credo materialista, seu sentimento reli­ mos sinais de vitalidade. Cada vez mais
gioso impelia-o no sentido da força ganhava corpo uma nova concepção do
moral e da benevolência. Por isso, as mundo: o cristianismo.
Meditações de Marco Aurélio expres- Marco Aurélio expressa claramente
sam-se através de uma linguagem que, essa etapa de transição. Nele a auto-su­
por um lado, parece pressupor a aceita­ ficiência do antigo estoicismo grego
ção de um panteísmo puramente físico; cede lugar à falta de confiança em si
por outro, abandona os dogmas da esco­ mesmo e à consciência das próprias
la estóica para seguir os ditames do imperfeições. Com isso antecipa a virtu­
coração. de cristã da humildade e mais um passo
Por certo a verdadeira chave para apenas poderia levá-lo à concepção de
compreensão das oscilações de Marco um Deus único e pessoal.

103
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
106 a.C. — Nasce Cícero, forças de Pompeu; agora, na 50 a.D.(?) - 130a.D.(?)“ —
em Arpina. Espanha. Júlio César tor­ Vida de Epicteto.
88 a.C. — Atenas se revolta na-se ditador. 54 a.D. -— Nero toma-se
contra Roma. 45-44 a.C. — Cícero redige imperador e Sêneca, seu
87 a.C. — Sila, cônsul ro­ suas obras mais importan­ conselheiro.
mano, sitia Atenas. tes. 62 a.D. -- Perseguido por
84 a.C. — Sila pilha Ate­ 44 a.C. — Assassínio de Jú­ Nero, abandona a vida pú-
nas. lio César. blica.
70 a.C.(?) — Nascimento 43 a.C. — No dia 7 de de­ 65 a.D. —- Nero o condena
de Virgílio. zembro, Cícero é assassina­ ao suicídio e ele obedece.
65 a.C. — Nasce Horácio. do. 68 a.D. — Morte de Nero.
53 a.C. — Rompimento en­ 29-19 a.C. — Virgílio com­ 121 a.D. -— Nascimento de
tre César e Pompeu. põe a Eneida. Marco Aurélio.
51 a.C. — Em seu primeiro 4 a.D.(?) — Nasce Sêneca. 161 a.D. -— Torna-se impe-
exílio, Cícero redige suas 30 a.D. — Conversão de rador.
primeiras obras filosóficas. São Paulo. 176 a.D. — Funda quatro
46 a.C. — Júlio César der­ 41 a.D. — Sêneca é banido cadeiras de filosofia em Ro-
rota forças de Pompeu na para a Córsega. ma.
África. 49 a.D. — Torna-se precep- 180 a.D. -— Morre a 17 de
45 a.C. — Nova derrota das tor do jovem Nero. março.

.
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e COPYRIGHT

104
OS PENSADORES

SCALA
m Milão, num dia qualquer de briaguez, não nos prazeres impuros do

E agosto de 386 da era cristã, um


homem de 32 anos de idade cho­

Deprimido e angustiado, estava à procu­


leito e em leviandades, não em conten­
das e emulações, mas revesti-vos de
rava nos jardins de sua residência.
Nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis
da carne com demasiados desejos”.
ra de uma resposta definitiva que lhe Não quis ler mais. Uma espécie de luz
desse sentido para a vida. Nesse momen­ inundou-lhe o coração, dissipando todas
to ouviu uma voz de criança a cantar as trevas da incerteza e ele correu à pró-
como se fosse um refrão: “Toma e lê, cura da mãe para lhe contar o sucedido.
toma e lê”. Levantou-se bruscamente, Ela exultou e bendisse ao Senhor, pois o
conteve a torrente de lágrimas, olhou em filho estava convertido pelas palavras de
torno para descobrir de onde vinha o Paulo de Tarso, e as portas da bem-
canto, mas não viu mais que um livro aventurança eterna abriam-se final­
sobre uma pequena mesa. Abriu e leu a mente para recebê-lo.
página caída por acaso sob seus olhos: O caminho para a salvação vinha
“Não caminheis em glutonarias e em- sendo preparado pela mãe, Mônica,
desde o dia 13 de novembro de 354,
Napágina anterior: S. Agostinho, quando Aurelius Augustinus nasceu, em,
de M. Giambono (séc. XV), Tagaste, na província romana da Numí-
Museu Cívico de Pádua. (Foto Fabbri.) dia, na África. Em Tagaste e Madaura,

106
S. AGOSTINHO

As quatro grandes figuras que estruturaram a Igreja Latina: S. Jerônimo


(c. 340-420), estudioso dos textos bíblicos e tradutor da Vulgata; S. Agostinho,
sistematiza dor da doutrina; S. Gregório (c. 540-604), reformador da liturgia
e da disciplina; S. Ambrósio, pregador e pastor de almas. (Michael Pacher
(c. 1435-1498): Altar dos Padres da Igreja, Alte Pinakothek, Munique.)

cidadezinha próxima, Agostinho fez os esforçasse, mais tarde, para corrigir a


primeiros estudos e deveria parar por aí, lacuna, a fim de aprofundar-se na exege­
mas o pai sacrificou-se para dar ao filho se e na teologia. Gostava, no entanto, de
a educação liberal que poderia abrir-lhe ler na língua materna e toda a sua cultu­
as portas do magistério ou da magistra­ ra se fez essencialmente latina. E foi um
tura. Para isso valeu-se de um amigo diálogo, hoje perdido, do clássico Cícero
rico, Romaniano, que o ajudou a enviar (106-43 a.C.), que lhe abríria as portas
o rapaz para Cartago, onde completaria do saber. Chamava-se Hortensius e era
os estudos superiores. um elogio da filosofia. Encantado com a
Agostinho não foi propriamente um elegância do estilo ciceroniano, recusa­
bom aluno; freqüentemente era espan­ va-se a ler a Bíblia, oferecida insistente­
cado por gazetear e principalmente por mente pela mãe. As escrituras sagradas
detestar a língua grega. Como conse­ pareciam-lhe vulgares e indignas de um
quência, jamais pôde valer-se da leitura homem culto.
dos autores helênicos, não obstante se Antes, porém, de se interessar pelas

107
OS PENSADORES

Teodósio I, o Grande (347-395), foi o imperador romano que fez do cristianismo


religião oficial do império, ordenando a todos os súditos obediência aos
dogmas do concilio de Nicéia e condenando assim as heresias dos arianos e
maniqueus. (“Teodósio Recebe Homenagens dos Vinte”, base de obelisco levado
por Teodósio de Kamak a Constantinopla, hoje no Hipódromo de Istambul.)

questões intelectuais, sua atenção estava nhos de Favônio Eulógio, retórico e até
voltada para as coisas mundanas. Ponti- certo ponto filósofo, que sucederia ao
Ihavam sua vida algumas pequenas más mestre na mesma cátedra, e no de Alípio,
ações, comuns a todo adolescente, como amigo íntimo, companheiro de conver­
roubar peras no quintal do vizinho pelo são e colega de episcopado, nos anos
puro prazer de enfrentar o proibido. seguintes.
Mais séria, entretanto, era uma ligação A maior parte dos alunos, no entanto,
amorosa que os padrões da época não fazia os cursos apenas para cumprir
permitiam terminar em casamento. Foi, obrigações familiares e sociais e, conse-
no entanto, inteiramente fiel à mulher qíientemente, não se interessava muito
amada e com ela teve um filho, Adeoda- pelas aulas. Cansado de ser irritado por
to, falecido em plena adolescência. uma juventude turbulenta, depois de
Não eram só o prazer dos sentidos e o quase dez anos Agostinho resolveu
interesse pela filosofia os centros de sua mudar para Roma.
vida, ao findar a adolescência. Antes dos Enquanto não pôde transferir-se para
vinte anos, faleceu o pai e Agostinho Roma, continuou dedicado à filosofia,
viu-se com pesados encargos de chefe de apesar de limitado pela ignorância do
duas famílias. Voltou, então, para Ta­ grego, a língua mais culta da época.
gaste e abriu uma escola, logo depois Assim, leu as Categorias de Aristóteles
transferindo-se de novo para Cartago, a (384-322 a.C.), mas em tradução latina
fim de ocupar o cargo de professor da e sem a indispensável introdução de Por-
cadeira municipal de retórica, como firio (c. 233-304). Estava limitado tam­
impunha a legislação dos imperadores bém pela impossibilidade de estudar nos
romanos a todas as cidades. Como pro­ melhores centros, como Atenas e Ale­
fessor foi excelente, a crer nos testemu­ xandria. Deixou-se, então, seduzir pelas

108
S. AGOSTINHO

doutrinas dos maniqueus, que afirma­


vam a existência absoluta de dois princí­
pios, o bem e o mal, a luz e as trevas.
Esperou ansiosamente pela visita de
Fausto, um dos chefes da seita e homem
louvado por sua alta sabedoria. O encon­
tro, no entanto, foi decepcionante do
ponto de vista das indagações intelec­
tuais do discípulo, muito embora reco­
nhecesse a simpatia e a capacidade de
convencer do mestre, além de sua
sinceridade.

O caminho da salvação
A viagem para Roma foi movida pela
esperança de encontrar alunos mais
tranqüilos. Os amigos afirmavam tajn
bém que lá Agostinho teria maiores lu­
cros e consideração. A mãe temia por
seu futuro e tudo fez para impedir a via­
gem, a ponto de obrigar Agostinho a
enganá-la na hora da partida.
Em Roma não ficou muito tempo.
Logo dirigiu-se a Milão, residência
imperial, onde ocupou um cargo de pro­ Moeda de ouro da época de Agostinho,
fessor de retórica. De manhã dedicava- montada em anelfiligranado e cunhada
se aos cursos e à tarde percorria as ante- com a efígie do imperador Teodósio I,
câmaras ministeriais, pois essa era a o Grande. Atualmentefaz parte do
maneira correta de “subir na vida”, den­ acervo da Freer Gallery, Washington.
tro do decadente império. As diligências
nesse sentido foram feitas sem muito estrutura interna e defender-se com
empenho, pois Agostinho vivia imerso argumentos racionais, elaborando-se
em graves questões intelectuais e exis­ como teologia. Com a maior tranqüi-
tenciais. Quanto às primeiras, já tinha lidade passava-se, entre os católicos de
abandonado o maniqueísmo e freqüen- Milão, das Enéadas de Plotino para o
tava a Academia platônica, então muito prólogo do Evangelho de São João ou
distante da linha de pensamento de seu para as epístolas de São Paulo.
criador e voltada para um ceticismo e As preocupações existenciais de Agos­
um ecletismo não muito consistentes. tinho diziam respeito à mulher amada,
Quem esperava, como Agostinho, res­ com a-qual não poderia ligar-se de uma
postas definitivas para todos os proble­ vez por todas, pois estava impedido
mas da existência, não poderia conten­ legalmente de fazê-lo. Juridicamente ele
tar-se com isso. Conheceu logo depois os era um “honestiore”, isto é, de categoria
discípulos de Plotino (205-270), tam­ superior, proibido de contrair matri­
bém adeptos do platonismo, mas. na sua mônio com pessoas dos baixos estratos.
versão mística. Q neoplatonismo viria a A mãe insistiu para que ele a abando­
ser a ponte que permitiría a Agostinho nasse e procurasse outra mulher para
dar o grande passo de sua vida, pois casar, segundo as leis do mundo e os
constituía, para os católicos milaneses, preceitos cristãos. A amada foi mandada
a filosofia por excelência, a melhor de volta para a África e fez voto de ja­
formulação da verdade racionalmente mais conhecer outro homem. Adeodato
estabelecida. O neoplatonismo era visto ficou com o pai. Agostinho deveria espe­
como uma doutrina que, com ligeiros rar legalmente dois anos para casar-se
retoques, parecia capaz de auxiliar a fé com a mulher que escolhera. Era tempo
cristã a tomar consciência da própria demasiado longo para quem sentia tão

109
OS PENSADORES

fortemente o apelo da sensualidade. queria e os cuidados que Agostinho


Ligou-se, então, a uma concubina. tomou para não ir a cidade alguma, cuja
A solução para todos os problemas sede vacante pudesse ser-lhe proposta,
viria logo depois de freqíientar Santo surtiram efeito por apenas três anos.
Ambrósio (340? - 397), bispo de Milão, Num dia de 391, penetrando na igreja de
e debater-se até aquele dia de agosto de Hipona (hoje Annaba ou Bone, na Argé­
386, quando a palavra do apóstolo lia), ouviu o bispo Valério propor à
Paulo lhe foi revelada pelo canto infantil assembléia de fiéis a escolha de um
repetido diversas vezes no jardim de sua coadjutor das funções sacerdotais, espe­
residência: “Tolle, lege, tolle, lege”. Já cialmente para o ministério da prega­
não mais procuraria esposa nem abriga­ ção. O povo não teve dúvidas e uma só
ria qualquer esperança do mundo: pene­ vez ecoou pelo templo: “Agostinho,
traria naquela regra de fé, por onde, há presbítero!”
muito, a mãe caminhava. Ele não gostou, mas atendeu ao que
considerou um chamado divino. Desde
Bispo e pensador então foi obrigado a deixar de lado as
pretensões de se limitar à meditação teo­
A nova estrada era estreita, mas segu­ lógica e não mais pôde gozar o “otium
ra e luminosa. Para nela entrar Agosti­ intelectualis”, como tanto desejara. As
nho concluiu que precisava desviar-se exigências do ministério, e principal­
inteiramente daquela outra, de comodi­ mente as funções pastorais, revelaram-
dades mundanas e sensualidade pecami­ se exaustivas e pouco tempo sobrava
nosa. Em primeiro lugar, deveria desfa­ para o trabalho de pensamento. -Vigário
zer-se do cargo de professor municipal. aos 36 anos, bispo coadjutor de Valério
Felizmente faltavam poucos dias para as aos 41 e sucessor deste, logo depois,
férias das vindimas e a demissão foi Agostinho permanecería por mais de
facilitada. Partiu, então, para a proprie­ quarenta anos ligado à igreja de Hipona,
dade rural do amigo Verecundo, em dividindo-se entre tarefas administra­
Cassicíaco, onde descansaria “das an­ tivas e reflexão filosófica. Mas isso não
gústias do século” juntamente com a deixou de ter aspectos positivos, na me­
mãe, o filho e alguns amigos, entre os dida em que o resguardou de um recolhi­
quais Nebrídio e o fiel Alípio, compa­ mento muito severo e o fez conhecer
nheiro de toda a sua vida. aspectos da fé popular, tais como o culto
O passo seguinte seria o batismo na das relíquias e dos mártires.
páscoa, como era costume na Igreja dos O contato com o povo fazia-se de múl­
primeiros tempos. Alípio e Adeodato tiplas maneiras. Em primeiro lugar, nos
também receberam o primeiro sacra­ ofícios propriamente religiosos de cele­
mento, essencial, segundo o cristia­ bração da liturgia, administração dos
nismo, para a santificação da alma. sacramentos e pregação nos domingos e
Mônica, a mãe, tinha atingido o obje­ festas de guarda, quando não todos os
tivo pelo qual lutara a vida toda e pode­ dias. O ministério da palavra produziu
ria esperar tranqíiila a morte, que real­ um número enorme de sermões, quinhen­
mente ocorreu alguns meses depois, no tos dos quais foram recolhidos pelos
outono de 387, na cidade de Óstia. estenógrafos e chegaram até os dias de
Agostinho estava desolado por ter hoje. Além disso, Agostinho dirigia a
perdido a mãe, mas por outro lado tinha instrução catequética dos futuros bati-
diante de si um futuro de verdadeira ale­ zandos e dedicava-se à direção espiri­
gria e esperança. Voltou a Tagaste, ven­ tual e a obras de caridade. Aos poucos,
deu as propriedades paternas e, congre­ essas responsabilidades alargaram-se
gando em tomo de si os amigos mais ainda mais: defendia os pobres, intervi-
fiéis, organizou uma espécie de comuni­ nha junto aos poderosos e magistrados
dade monástica. Ali pretendia passar o em favor dos condenados ou oprimidos,
resto da vida em recolhimento, aprofun­ procurava fazer respeitar o direito de
dando a vocação religiosa e fundamen­ asilo. Se tudo isso não bastasse, era
tando racionalmente a fé que abraçara. ainda obrigado a administrar o patri­
No entanto, nem tudo correu como mônio da igreja e exercer as funções

110
' r ■ "1 iirw «SWÍ

S. AGOSTINHO

“ . . . Não me saciava, nesses primeiros dias, de considerar com inefável doçura


a profundeza de Vossos planos sobre a salvação da humanidade. Quanto não
chorei, fortemente comovido, ao escutar os hinos e cânticos ressoando
maviosamente na Vossa igreja! ...” (Cena do batismo de Agostinho, anônimo
alemão do século XV, Convento de Novacella, Bressanone, Itália.)

111
OS PENSADORES

seculares de verdadeiro juiz, pois desde Morreu no dia 23 de agosto de 430.


Constantino (288? - 337) o império Despedia-se assim da “cidade dos ho­
tinha reconhecido a competência da mens”, que considerava pecaminosa e
autoridade episcopal nos processos em trevas, e penetrava na “Cidade de
civis. Deus”. Deixava, no entanto, uma obra
Apesar de tudo, conseguiu redigir de pensamento que reinaria no Ocidente
uma obra imensa, a maior parte da qual cristão durante pelo menos sete séculos,
inspirada em problemas concretos que até que outras cabeças pensassem a nova
preocupavam a Igreja da época. Exce­ fé em termos filosóficos diferentes.
tuaram-se alguns poucos livros, como as
Confissões, onde Agostinho se revela A Patrística
admirável analista de problemas psico­
lógicos íntimos tanto quanto de questões A nova fé não era tâo nova assim; já
puramente filosóficas, e o De Trinitate, tinha quatro séculos de existência, du­
ao que parece, fruto de uma exigência rante os quais transformara-se profun­
interior e espontânea. Entre as princi­ damente. No começo, tal como se encon­
pais obras de Agostinho, situam-se: tra no Novo Testamento, era uma
Contra os Acadêmicos (escrita em 386), doutrina aparentemente simples, consti­
Solilóquios (387), Do Livre Arbítrio tuída por algumas regras de conduta
(388-395), De Magistro (389), Confis­ moral e pela crença na salvação através
sões (400), Espírito e Letra (412), A Ci­ do sacrifício de Cristo. Não tinha rienhu-
dade de Deus (413-426) e as Retrata­ ma fundamentação filosófica, isto é, não
ções (4 1 3-426). se apresentava como um conjunto de
Quase todas assumiram caráter polê­ idéias produzidas e sistematizadas pela
mico, em decorrência dos diversos con­ razão em um todo lógico. Era uma reli­
flitos que o bispo de Hipona teve de gião revelada e não uma filosofia. Mas
enfrentar. Esse aspecto foi tâo impor­ era também uma religião que servia
tante que levou São Posídio, amigo e como iostrumento de contestação da
primeiro biógrafo de Agostinho, a clas­ ordem imperial vigente e vivia em per­
sificá-las conforme os adversários en­ manente conflito com os senhores roma­
frentados: pagãos, astrólogos, judeus, nos. Por isso desenvolveu instrumentos
maniqueus, priscilanistas, donatistas, de defesa para sobreviver. As armas
pelagianos, arianos e apolinaristas. foram buscadas no campo do próprio
À medida que os anos passavam e a adversário: os filósofos gregos e seus
vélhice começava a chegar, Agostinho continuadores na época helenística e
preocupava-se em reservar mais tempo romana. Esse esforço de conciliação das
para dedicar-se ao trabalho de escrever. verdades reveladas com idéias filosófi­
Em 414 esforçou-se para eliminar as cas, empreendido pelos primeiros pensa­
ocupações exteriores e conseguiu, pelo dores cristãos, Padres da Igreja, produ­
menos, não ter que se deslocar para a ziu a chamada filosofia Patrística, que
sede da igreja africana em Cartago. não chegou a formular sistemas comple­
Pôde, então, passar alguns anos mais tos de filosofia cristã. Os primeiros Pa­
tranqüilos. Mas só em 426, já com 72 dres da Igreja limitaram-se a elabora­
anos de idade, obteve permissão para ções parciais de alguns problemas
ficar livre durante cinco dias por sema­ apologéticos e teológicos. Em outros ter­
na, passando a quase totalidade das fun­ mos, o que se encontra na Patrística são
ções episcopais para o presbítero Herá- escritos de elogio ao cristianismo e ten­
clio. Pôs-se, então, a colocar os seus tativas de mostrá-lo como doutrina não-
livros em ordem, catalogando-os para a oposta às verdades racionais do pensa­
posteridade. mento helênico, tão respeitado pelas
O fim da vida estava chegando e viria autoridades romanas. São Justino (séc.
junto com a invasão dos vândalos, que, II) , Clemente de Alexandria (sécs. II e
depois da devastação da Espanha, pene­ III) e Orígenes (séc. III) caminharam
traram na África e sitiaram Hipona. por essa via e revestiram a revelação
Pouco depois de a cidade ser incendiada cristã de elementos da especulação filo­
pelos bárbaros, Agostinho adoeceu. sófica grega. Em contraposição, os cha-

112
S. AGOSTINHO

mados apologistas latinos reagiram con­


tra essa mistura e defenderam a
originalidade da revelação cristã, funda­
da exclusivamente na fé e nada tendo a
ver com a especulação racional.
Tertuliano (sécs. II e III) afirmava
crer ainda que isso era absurdo. No
fundo ele tinha razão, pois muitos sécu­
los depois se comprovaria que o pensar
racional dificilmente é compatível com a
verdade admitida como fruto de revela­
ção. Mas não foi isso que se evidenciou
nos primeiros séculos do cristianismo e
cada vez mais a filosofia serviu à teolo­
gia, sendo Agostinho o principal adepto
dessa maneira de pensar. Para ele
confluíram ás tendências conflitantes da
Patrística e sua função histórica foi. sin­
tetizar todos os seus componentes.

Fé e razão
A síntese que realizou, ele mesmo deu
a denominação de “filosofia cristã”. O
núcleo em tomo do qual gravitam todas
as suas idéias é o conceito de beatitude.
O problema da felicidade constitui, para
Agostinho, toda a motivação do pensar
filosófico. Uma das últimas obras que
redigiu, a Cidade de Deus, afirma que “o
homem não tem razão para filosofar, ex­
ceto para atingir a felicidade”. A tese é
defendida valendo-se de um manual de
Marcus Terentius Varro (116-27 a.C.),
onde se encontram definidas 288 dife­
rentes teorias filosóficas, reais e possí­
veis, tendo todas em comum a mesma
questão: como obter a felicidade? A filo­
sofia é, assim, entendida não como disci­
plina teórica que coloca problemas à
estrutura do universo físico ou à natu­
reza dos deuses, mas como uma indaga­
ção sobre a condição humana à procura
da beatitude.
A beatitude, no entanto, não foi encon­
trada por Agostinho nos filósofos clássi­
cos que conhecera na juventude, mas nas
Sagradas Escrituras, quando iluminado
pelas palavras de Paulo de Tarso. Não
foi fruto de procedimento intelectual,
mas ato de intuição e de fé.
Impunha-se, portanto, conciliar as
ílNáo conhecí palavras táo puras duas ordens de coisas e com isso Agosti­
que tanto mepersuadissem a nho retorna à questão principal da
confessar-Vos . . (A. da Messina: Patrística, ou seja, ao problema das
S. Agostinho, Gal. Nac. de Palermo.) relações entre a razão e a fé, entre o que

113
OS PENSADORES

Apesar de refutara doutrina da substancialidade do mal e afirmar que este


não é mais do que uma privação do bem, a visão maniqueísta de um permanente
conflito entre Deus e o diabo está sempre presente no pensamento de Agostinho.
(“Santo Agostinho Ora por Todo o Império Romano”, iluminura de uma edição
francesa (séc. XV) da Cidade de Deus, Biblioteca Real da Bélgica, Bruxelas.)
se sabe pela intuição interior e o que se precede-a e é sua conseqüência. É neces­
demonstra racionalmente, entre a verda­ sário compreender para crer e crer para
de revelada e a verdade lógica, entre a compreender (“Intellige ut credas, crede
religiosidade cristã e a filosofia pagã. ut intelligas”).
Desde a conversão, Agostinho se pro­ Mesmo que essa tese não tenha maior
pôs a atingir, pela fé nas Escrituras, o rigor filosófico e soe mais como fórmula
entendimento daquilo que elas ensinam, retórica do que como argumentação ló­
colocando a fé como a via de acesso à gica, teve grande força, pois era um
verdade eterna. Mas, por outro lado, claro resultado da estória pessoal de
sustentou que a fé é precedida por um Agostinho. Antes da conversão ele anda­
certo trabalho da razão. Ainda que as ra inquieto pelos caminhos das elabora­
verdades da fé não sejam demonstráveis, ções racionais dos maniqueus, do ecle­
isto é, passiveis de prova, é possível tismo ciceroniano e do neoplatonismo de
demonstrar o acerto de se crer nelas, e Plotino. Todos, especialmente o último,
essa tarefa cabe à razão. A razão rela- prepararam a explosão mística de ilumi­
ciona-se, portanto, duplamente com a fé: nação pela fé. Depois desta, utilizou

114
S. AGOSTINHO

tudo o que sua cultura filosófica lhe for­ Assim, nenhum cétieo pode refutar al­
necia, no sentido de racionalizar os dog­ guém que afirme simplesmente: “Eu sei
mas cristãos. que isto me parece branco; limito-me à
A filosofia ê, para Agostinho, apenas minha percepção e encontro nela uma
um instrumental auxiliar destinado a verdade que não me pode ser negada”.
um fim que transcende seus próprios Muito diferente seria afirmar somente:
limites. Por isso muitos vêem nele um "Isto é branco”. Neste caso o erro torna-
teólogo e um místico e não propriamente se possível, no primeiro não. Assim,
um filósofo. Todavia, seu pensamento existiria pelo menos uma verdade abso­
manifesta frequentemente grande pene­ luta, que estaria implicada no próprio
tração filosófica na análise de alguns ato de perceber.
problemas particulares e a verdade é Posteriormente (na Cidade de Deus),
que Agostinho conseguiu sistematizar Agostinho levou a argumentação às últi­
uma grandiosa concepção do mundo, do mas conseqíiências e antecipou a refle­
homem e de Deus, que se tomou, por xão cartesiana, formulada dozç séculos
muito tempo, a doutrina fundamental da depois: “Se eu me engano, eu sou, pois
Igreja Católica. aquele que não é não pode ser engana­
do”. Com isso atingia a certeza da pró­
O conhecimento pria existência.
Essa primeira certeza, além de funda­
O primeiro problema filosófico, foca­ mentar toda uma teoria dogmática do
lizado por ‘Agostinho logo após a con­ conhecimento, parecia permitir também
versão, foi o dos fundamentos do conhe­ a revelação da própria essência do ser
cimento, para o qual necessitava urgente humano: o homem seria sobretudo um
de uma resposta racional. Antes debate- ser pensante e seu pensamento não se
ra-se dentro dos limites do ceticismo da confundiría com a materialidade do
Nova Academia platônica, dominada corpo.
pelas análises de Arcesilau (315-241
a.C.) e Caméades (214-129 a.C.), que A alma e o corpo
sustentavam a tese de que não é possível
encontrar um critério de evidência abso­ Essa concepção de homem provinha
luta e indiscutível, o conhecimento limi­ de Platão (428-348 a.C.) e foi conhecida
tando-se ao meramente verossímil, pro­ por Agostinho, pouco antes da conver­
vável ou persuasivo. são, através de Plotino. No diálogo Alci-
Mas a verdade religiosa encontrada bíades, Platão define o homem como
pelo bispo africano, a partir das pala­ uma alma que se serve de um corpo, e
vras de Paulo de Tarso, era sólida e Agostinho mantém permanentemente
firme. Impunha-se, pois, combater os cé­ esse conceito com todas as conse­
ticos e para isso o neoconverso usaria as quências lógicas que ele comporta, den­
armas do adversário. Para os céticos, a tre as quais a-principal é a idéia de
fonte de todo o conhecimento era a per­ transcendência hierárquica da alma
cepção sensível, na qual não se poderia sobre o corpo. Presente em sua morada
encontrar qualquer fundamento para a terrena, a alma teria funções ativas em
certeza, já que os sentidos forneciam relação ao corpo; atenta a tudo o que se
dados variáveis e, portanto, imperfeitos. passa ao redor, nada deixa escapar à sua
No retiro de Cassicíaco, logo após a ação. Os órgãos sensoriais sofrer iam as
conversão, Agostinho pôs-se a meditar ações dos objetos exteriores, mas com a
sobre o assunto e redigiu o diálogo Con­ alma isso não poderia acontecer, pois o
tra os Acadêmicos, reabilitando, através inferior não pode agir sobre o superior.
de engenhosa argumentação, os sentidos Ela, no entanto, não deixaria passar
como fonte de verdade. O erro — diz ele despercebidas as modificações do corpo
— provém dos juízos que se fazem sobre e, sem nada sofrer, tiraria de sua própria
as sensações e não delas próprias. A sen­ substância uma imagem semelhante ao
sação enquanto tal jamais é falsa. Falso objeto: Essa imagem, que constituiría a
é querer ver nela a expressão de uma sensação, não é, portanto, paixão sofri­
verdade externa ao próprio sujeito. da pela alma, mas ação.

115
OS PENSADORES

Entre as sensações, algumas referem- instância, o resultado do bem, conside­


se às necessidades e estados do corpo, rado como um sol que ilumina o mundo
outras dizem respeito a coisas exterio­ inteligível. Agostinho louva os platô­
res. O caráter distintivo desses objetos é nicos por ensinarem que o princípio
a instabilidade; aparecem e desapare­ espiritual de todas as coisas é, ao mesmo
cem, estão aí e já não estão mais, sem tempo, causa de sua própria existência,
que seja possível apreendê-los de uma luz de seu conhecimento e regra de sua
vez por todas. Com isso ficam inteira­ vida. Por conseguinte, todas as proposi­
mente excluídos de qualquer conheci­ ções que se percebem como verdadeiras
mento verdadeiro, pois este exige neces­ seriam tais porque previamente ilumina­
sariamente estabilidade e permanência. das pela luz divina. Entender algo inteli­
O conhecimento não seria, portanto, givelmente equivalería a extrair da alma
apreensão de objetos exteriores ao sujei­ sua própria inteligibilidade e nada se
to, tal como são dados à percepção. poderia conhecer intelectualmente que
Seria, antes, a descoberta de regras já não se possuísse antes, de modo
imutáveis, tais como “2+2=4”, ou então infuso.
o princípio ético segundo o qual é neces­ Ao afirmar esse saber prévio, Agosti­
sário fazer o bem e evitar o mal. Tanto nho aproxima-se da doutrina platônica
num caso como no outro refere-se a rea­ segundo a qual todo conhecimento é
lidades não-sensíveis, cujo caráter fun­ reminiscência. Não obstante as eviden­
damental seria a necessidade, pois são o tes ligações entre os dois pensadores,
que são e não poderíam ser diferentes. Agostinho afasta-se, porém^ de Platão
Da necessidade do conhecimento decor­ ao entender a percepção do inteligível na
rería sua imutabilidade e, desta, a sua alma não como descoberta de um con­
eternidade. teúdo passado, mas como irradiação di­
Essa conclusão coloca desde logo um vina no presente. A alma não passaria
problema, pois revela a existência de por uma existência anterior, na qual
dois tipos inteiramente diferentes de contempla as idéias: ao contrário, exis­
conhecimento. O primeiro, limitado aos tiría uma luz eterna da razão que proce­
sentidos e referente aos objetos exterio­ de de Deus e atuaria a todo momento,
res ou suas imagens, não é necessário, possibilitando o conhecimento das ver­
nem imutável e nem eterno; o segundo, dades eternas. Assim como os objetos
encontrado na matemática e nos princí­ exteriores só podem ser vistos quando
pios fundamentais da sabedoria, consti­ iluminados pela luz do Sol, também as
tui a verdade. Essa verificação permite verdades da sabedoria precisariam ser
que se indague: será o próprio homem a iluminadas pela luz divina para se tor­
fonte dos conhecimentos perfeitos? Con­ narem inteligíveis.
tra a resposta afirmativa depõe o fato de A iluminação divina, contudo, não
ser o homem tão mutável quanto as coi­ dispensa o homem de ter um intelecto
sas dadas à percepção, e justamente por próprio; ao contrário, supõe sua existên­
isso ele se inclina reverente diante da cia. Deus não substitui o intelecto quan­
verdade que o domina. Assim, só haveria do o homem pensa o verdadeiro; a ilumi­
uma resposta possível: a aceitação de nação teria apenas a função de tornar o
que alguma coisa transcende a alma intelecto capaz de pensar corretamente
individual e dá fundamento à verdade. em virtude de uma ordem natural esta­
Seria Deus. belecida por Deus.
Essa ordem é a que existe entre as coi­
A luz da verdade sas do mundo e as realidades inteligíveis
correspondentes, denominadas por
Para explicar como é possível ao Agostinho com diferentes palavras:
homem receber de Deus o conhecimento idéia, forma, espécie, razão ou regra.
das verdades eternas, Agostinho elabora A teoria agostiniana estabelece,
a doutrina da iluminação divina. Trata- assim, que todo conhecimento verda­
se de uma metáfora recebida de Platão, deiro é o resultado de um processo de
que na célebre alegoria da caverna mos­ iluminação divina, que possibilita ao
tra ser o conhecimento, em última homem contemplar as idéias, arquétipos

116
S. AGOSTINHO

eternos de toda a realidade. Nesse tipo


de conhecimento a própria luz divina
nâo é vista, -mas serve apenas para ilu­
minar as idéias. Um outro tipo seria
aquele no qual o homem contempla a luz
divina, olhando o próprio sol: a expe­
riência mística.

Deus
A experiência mística revelaria ao
homem a existência de Deus e levaria à
descoberta dos conhecimentos necessá­
rios, eternos e imutáveis çxistentes na
alma. Implica, pois, a concepção de um
ser transcendente que daria fundamento
à verdade. Deus, assim encontrado, é, ao
mesmo tempo, uma réalidade interna e
transcendente ao pensamento. Sua pre­
sença seria atestada por todos os juízos
formados pelo homem, sejam científicos,
estéticos ou morais. Mas, por outro
lado, a natureza divina escaparia ao
alcance humano. Deus é inefável e mais
fácil é dizer o que Ele não é do que defi-
ni-lo. A melhor forma de designá-lo,
segundo Agostinho, é a encontrada no
livro do Êxodo, quando Jeová, dirigin­
do-se a Moisés, afirma: “Eu sou o que
sou'”. Deus seria a realidade total e
plena, a “essentia” no mais alto grau. E,
a rigor, tal palavra deveria ser empre­
gada tão-somente para designá-Lo.
Todas as demais coisas não têm propria­
mente essência, pois, sendo mutáveis,
seriam constituídas pela mistura do ser
e do não-ser.
A argumentação centralizada na
noção de ser originou-se na filosofia
grega. Provinha de Parmênides de Eléia
(sécs. VI-V a.C.) e Heráclito de Êfeso
(sécs. VI-V a.C.) e foi sistematizada por
Platão, a partir do qual percorreu um
longo caminho até chegar a Agostinho,
através de Plotino. Parmênides tinha
demonstrado que o conceito de ser
implica logicamente sua unidade,.por­
quanto a multiplicidade só poderia
sustentar-se na medida em que se admi­
tisse o absurdo da existência do não-ser.
Da unidade decorrería necessariamente
O último dos quatro grandes Padres da que o ser é eterno, imóvel, indivisível e
Igreja fundamentou quase todas as suas imutável. Por outro lado, tomavam-se
doutrinas na obra de Agostinho. inconcebíveis logicamente as idéias de
(Antonello da Messina: S. Gregário movimento e transformação. Em outras
Magno, Galeria Nacional de Palermo.) palavras, o mundo revelado pelos senti-

117
OS PENSADORES

FABBRI
“Todas estas coisas Te pertencem e são boas porque foram criadas por Ti, que és
Bom. Não existe nada nelas que provenha de nós, a não ser o pecado pelo qual,
com desprezo da ordem, nós amamos, em vez de Ti, o que vem de Ti. ”
(Botticelli: “S. Agostinho em sua Cela”, Gal. degli Ufjizi, Florença.)

dos estaria em desacordo com as exigên­ cristão. Agostinho deu esse passo e ligou
cias da razão. definitivamente o pensamento cristão à
Platão procurou solucionai o proble­ filosofia platônica.
ma, formulando a teoria das idéias (ser), Agostinho concebe a unidade divina
causas inteligíveis do mundo das coisas não como vazia e inerte, mas como
sensíveis (ser-não-ser). As idéias seriam plena, viva e guardando dentro de si a
arquétipos incorpóreos, eternos e imutá­ multiplicidade. Deus compreende três
veis, dos quais os objetos concretos se­ pessoas iguais e consubstanciais: Pai,
riam cópias imperfeitas e perecíveis. Filho e Espírito Santo. O Pai é a essên­
Platão afirmou ainda a existência de cia divina em sua insondável profundi­
uma hierarquia entre os dois mundos e dade; o Filho é o verbo, a razão ou a ver­
dentro do próprio universo das idéias. dade, através da qual Deus se manifesta;
Estas se escalonariam em graus de o Espírito Santo é o amor, mediante o
perfeição, sendo principais as idéias de qual Deus dá nascimento a todos os
verdade, belo e bem, que, por sua vez, seres.
reúnem-se na idéia de uno, conceito A teoria da criação do mundo mani­
fundamental de toda a filosofia de Ploti­ festa claramente a originalidade do pen­
no. Bastava dar mais um passo para se samento cristão diante da filosofia helê-
identificar o uno plotiniano com o Deus nica. Os gregos sempre conceberam o

118
S. AGOSTINHO

mundo como eterno e Deus, para eles,


seria o artífice que trabalha um material
incriado e é capaz de dar forma ao que
sempre existiu e sempre existirá. Deus
criaria apenas a ordem, trasfortnando
em cosmo o caos originário. Muito dife­
rente é a concepção cristã formulada por
Agostinho, para quem Deus, por sua
própria essência trina, é criador de
todos os seres, a partir de nada além
dele e como conseqüência apenas de seu
amor infinito. Deus não seria um artista
que dá forma a uma certa matéria; seria
o criador de todas as formas e todas as
matérias.
Ligado ao problema da criação, Agos­
tinho investigou a noção de tempo, reve­
lando grande penetração analítica. O
tempo é por ele entendido como consti­
tuído por momentos diferentes de passa­
do, presente e futuro; o que significa
descontinuidade e transformação. Con-
seqiientemente, a criação do tempo coin­
cide com a criação do mundo, ele é a
estrutura fundamental do próprio
mundo. Ao contrário, Deus, o ser por
excelência, que é, foi e será, está
completamente fora do tempo, é imutá­
vel e eterno. Em outros termos, o mundo,
sendo uma mescla de ser e não-ser, car­
rega dentro de si um processo de trans­
formação que o faz caminhar do ser para
o não-ser, ou vice-versa. Esse processo
constitui a sucessão temporal de passa­
do, presente e futuro, o que não aconte­
ce, evidentemente, com Deus, único e
verdadeiro ser e, portanto, eterno.
Sendo imutável, Deus é a plenitude do
ser, a perfeição máxima e o bem absolu­
to. A partir dessa idéia Agostinho cons­
trói a doutrina metafísica do bem e do
mal, mais uma vez revelando sua depen­
dência filosófica em relação ao neoplato-
nismo de Plotino, no qual encontra-se a
mesma doutrina, despojada, no entanto,
da vestimenta cristã.
O mundo criado, manifestação da
sabedoria e da bondade de Deus, é uma
obra perfeita. Esse fato é freqüentemente
menosprezado, segundo Agostinho, por­
que se vê o mundo de maneira parcial,
considerando-se certas coisas como más. Ilustrações de uma edição inglesa
É necessário contemplá-lo como um da Cidade de Deus representam
todo, para que ele se revele em toda a discípulos de Agostinho ouvindo uma
sua esplendorosa beleza e bondade. predica, e o julgamento de uma alma.
Tudo aquilo que é é necessariamente (Bibl. Laurenziana, Florença.)

119
OS PENSADORES

bom, pois a idéia de bem está implicada reger o corpo, e o homem, fazendo mau
na idéia de ser. Deus não é, portanto, a uso do livre arbítrio, inverte essa rela­
causa do mal, da mesma forma que a ção, subordinando a alma ao corpo e
matéria também não poderia produzi-lo caindo na concúpiscência e na ignorân­
pois ela é criatura de Deus. cia. Voltada para a matéria, a alma
A natureza do mal deve, assim, ser acaba por secar-se pelo contato com o
encontrada no conceito absolutamente sensível, dando a ele o pouco de subs­
contrário ao conceito de Deus como ser, tância que lhe resta, esvaindo-se no não-
ou seja, no não-ser. O mal fica, portanto, ser e considerando-se a si mesma como
destituído de toda substancialidade. Ele um corpo.
seria apenas a privação do bem. Não No estado de decadência em que se
existem, como queriam os maniqueus, encontra, a alma não pode salvar-se por
dois princípios igualmente poderosos a suas próprias forças. A queda do homem
reger o mundo, mas tão-somente um: é de inteira responsabilidade do livre
Deus, infinitamente bom. arbítrio humano, mas este não é sufi­
ciente para fazê-lo retomar às origens
O homem e o pecado divinas. A salvação não é apenas uma
questão de querer, mas de poder. E esse
Deus é a bondade absoluta e o homem é poder é privilégio de Deus. Chega-se,
o réprobo miserável condenado à dana- assim, à doutrina da predestinação e da
ção eterna e só recuperável mediante a graça, uma das pedras de toque do
graça divina. Eis o cerne da antropo­ agostinismo.
logia agostiniana. A graça é necessária para que o
Para o bispo de Hipona, o homem é homem possa lutar eficazmente contra
uma criatura privilegiada na ordem das as tentações da concupiscência. Sem ela
coisas. Feito à semelhança de Deus, o livre arbítrio pode distinguir o certo do
desdobra-se em correspondência com as errado, mas não pode tomar o bem um
três pessoas da Trindade. As expressões fato concreto. A graça precede todos os
dessa correspondência encontram-se nas esforços de salvação e é seu instrumento
três faculdades da alma. A memória, necessário. Ajunta-se ao livre arbítrio
enquanto persistência de imagens pro­ sem, entretanto, negá-lo; é um fator de
duzidas pela percepção sensível, corres­ correção e não o aniquila. Sem o auxílio
pondería à essência (Deus Pai), aquilo da graça, o livre arbítrio elegería o mal;
que é e nunca deixa de ser; a inteligência com ela, dirige-se para o bem eterno.
seria o correlato do verbo, razão ou ver­ Mas, segundo Agostinho, nem todos
dade (Filho); finalmente, a vontade os homens recebem a graça das mãos de
constituiría a expressão humana do Deus; apenas alguns eleitos, que estão,
amor (Espírito Santo), responsável pela portanto, predestinados à salvação. A
criação do mundo. propósito da graça, Agostinho polemi­
De todas essas faculdades, a mais zou durante anos com o monge Pelágio
importante é a vontade, intervindo em (c. 360-c. 420) e seus seguidores. Os
todos os atos do espírito e constituindo o pelagianistas insistiam no esforço que o
centro da personalidade humana. A von­ homem deve dispender para obter a sal­
tade seria essencialmente criadora e vação e encareciam a eficácia do livre
livre, e nela tem raízes a possibilidade arbítrio. Com isso minimizavam a inter­
de o homem afastar-se de Deus. Tal venção da graça, quando não chegavam
afastamento significa, porém, distan- a negá-la totalmente. A experiência pes­
ciar-se do ser e caminhar para o não-ser, soal de Agostinho, no entanto, atestava
isto é, aproximar-se do mal. Reside aqui vigorosamente contra a tese de Pelágio e
a essência do pecado, que de maneira al­ por causa disso reagiu decidida e, às
guma é necessário e cujo único respon­ vezes, violentamente. A controvérsia ja­
sável seria o próprio livre arbítrio da mais foi totalmente solucionada e os teó­
vontade humana. logos posteriores dividiram-se em tomo
O pecado é, segundo Agostinho, uma da questão. Calvino (1509-1564), por
transgressão da lei divina, na medida em exemplo, levou as teses agostinianas às
que a alma foi criada por Deus para últimas conseqiiências: depois do peca-

120
S. AGOSTINHO

“ . . .todos os seres são bons, uma vez que o criador de todos, sem exceção, é
soberanamente bom. Entretanto, como não são como o próprio criador, soberana
e imutavelmente bons, o bem pode aumentar ou diminuir neles. ”
(Ilustração do século XV, para edição francesa da Cidade de Deus, representa
a cidade terrena ea cidade divina; Museu Meermanno Westreenianum, Haia.)

121
OS PENSADORES

Agostinho morreu em Hipona, a 23 de agosto de 430. Pouco antes, a cidade


tinha sido incendiada pelos vândalos, que a haviam sitiado. Nessa ocasião,
quando a doença ainda não o atingira, o idoso bispo de 75 anos
deu ajuda aos fugitivos do massacre dos bárbaros, (Afresco de Ottaviano
Nelli, na Igreja de Gubbio, Itália, representa a morte de Santo Agostinho.)

do original, o homem está totalmente exposta na Cidade de Deus. Nessa obra


corrompido pela concupiscência e de­ repetem-se também as oposições entre
pende exclusiva e absolutamente da von­ inteligível e sensível, alma e corpo, espí­
tade divina a concessão da graça para a rito e matéria, bem e mal, ser e não-ser,
salvação. Outros aproximaram-se de sintetizando os aspectos essenciais do
Pelágio, tentando restaurar o primado pensamento de Agostinho.
do livre arbítrio e das ações humanas A história é vista pelo bispo de Hipo­
como fonte de salvação. na como resultado do pecado original de
Agostinho tudo fez para conciliar as Adão e Eva, que se transferiu a todos os
duas teses opostas. Por um lado, a von­ homens. Aqueles que nele persistem
tade é livre para escolher o pecado e constroem a cidade humana, ou terrena,
aquele que peca é inteiramènte respon­ onde são permanentemente castigados.
sável por isso, e não Deus; da mesma Os eleitos pela graça divina edificam a
forma, aquele que age segundo o bem di­ Cidade de Deus e vivem em bem-aventu-
vino não deve esquecer que sua própria rança eterna. A construção progressiva
vontade concorreu para essa boa obra. da Cidade de Deus seria, pois, a grande
Por outro lado, a graça seria soberana­ obra começada depois da criação e
mente eficaz, pois a vontade não é capaz incessanternente continuada. Ela daria
de nenhum bem sem o seu concurso. A sentido à história e todos os fatos ocorri­
graça e a liberdade não se excluem, dos trariam a marca da providência divi­
antes, completam-se. na. Caim, o dilúvio, a servidão dos
A teoria da graça e da predestinação hebreus aos egípcios, os impérios assí­
constitui o cerne da antropologia agosti- rios e romano, são expressões da cidade
niana. Da mesma forma, a dualidade dos terrena. Ao contrário, Abel, o episódio
eleitos e dos condenados é a estrutura da arca de Noé, Abraão, Moisés, a época
explicativa da filosofia da história, dos profetas e, sobretudo, a vinda de

122
S. AGOSTINHO

“ . . .aquele descanso com que Vós repousastes no sétimo dia, após tantas obras
excelentes e sumamente boas, ainda que as realizastes sem fadiga, significa
jue nós também, depois de nossos trabalhos, bons porque no-los concedestes,
J escansaremos em Vós no sábado da vida eterna.’’ (Afresco de Ottaviano Nelli,
na Igreja de Gubbio, Itália, representa os funerais de Santo Agostinho.)

Jesus, são manifestações da Cidade de era seria dominada pela palavra do


Deus. bispo de Hipona, pois ninguém como ele
Agostinho assim pensava porque esta­ tinha conseguido, na filosofia ligada ao
va contemplando a destruição final do cristianismo, atingir tal profundidade e
Império Romano, depois doz saque de amplitude de pensamento. Vinculou a
Roma por Alarico (c. 370-410) em 410, filosofia grega, especialmente Platão,
e precisava dar uma resposta aos que aos dogmas cristãos, mas, quando isso
acusavam o cristianismo de responsável não foi possível, não teve dúvidas em
pelo desastre. Para Agostinho não era optar pela fé na palavra revelada. Com­
um desastre; era apenas a mão de Deus bateu vigorosamente o maniqueísmo.
castigando os homens da cidade terrena enquanto teoria metafísica, embora per­
e anunciando o triunfo final do cristia­ manecesse visceralmente impregnado de
nismo. uma concepção nitidamente dualista que
Estava findando a Antiguidade e contrapunha o homem a Deus, o mal ao
preparando-se a Idade Média. A nova bem, as trevas à luz.

CRONOLOGIA
313 — Constantino promul­ 354 — Agostinho nasce em 365 — Agostinho estuda em
ga o Edito de Milão, tornan­ Tagaste, Numídia, na Áfri­ Madaura.
do o cristianismo religião ca. 369 — Vive em Tagaste.
oficial do Império Romano 355 — Invasão da Gália pe­ 370 — Estuda em Cartago.
Ocidental. los francos, alamanos e sa- Os hunos atingem o Don e
350 — Ulfila traduz a Bíblia xões. Os hunos surgem na vencem os ostrogodos.
para o gótico. Rússia. 372 — Nasce o filho Adeo-

123
OS PENSADORES

dato. Agostinho descobre a Teodósr' repele os godos no vadem a Ásia e chegam ate
filosofia através de Cícero e Danúbio. Antióquia.
segue os maniqueístas. 387 — Agostinho é batizado 396 — Os godos invadem a
373 — Leciona em Tagaste. juntamente com Alípio e Grécia. Fim dos Mistérios
Santo Ambrósio torna-se Adeodato; passa algumas de Elêusis.
bispo de Milão. semanas em Roma, depois 397/398 — Agostinho redi­
374 — Leciona em Cartago. da morte de Mônica, sua ge As Confissões.
380 — Teodósio e Graciano mãe, e escreve De Imortali- 399/422 - Redige a obra
contêm os godos no Épiro e tate Animae. De Trinitate.
na Dalmâcia. O Edito de 388 — Parte para a África e 400 -- Os hunos atingem o
Teodósio torna o cristianis­ começa a viver monastica- Elba.
mo religião oficial no Impé mente em Tagaste. Redige 407 — Invasão da Gália pe­
rio Romano do Oriente. De Vera Religione. los vândalos e suevos.
383 — Agostinho abandona 389 — Morte de Adeodato. 408 - Os saxões entram na
o maniqueísmo e leciona em 390 — Conflito entre San­ Bretanha.
Roma. to Ambrósio e Teodósio. 409 — Pelágio em Cartago.
384 — É professor em Mi­ 391 — Agostinho torna-se Os vândalos e os suevos in­
lão. São Jerônimo começa a presbítero de Hipona. vadem a Espanha.
tradução da Bíblia para o 392 — Polemiza com o ma- 410 — Alarico conquista
latim, tradicional mente co­ niqueu Fortunato. O direito Roma.
nhecida como Vulgata. de asilo é reconhecido nas 413 — Agostinho começa a
386 — Agostinho descobre igrejas. São Jerônimo escre­ redigir A Cidade de Deus.
o neoplatonismo; lê âs car­ ve De Viris Illustribus. 417 — Paulus Orosius, dis­
tas de Paulo de Tarso; con­ 394 — Os Jogos Olímpicos cípulo de Agostinho publica
verte-se ao cristianismo; são suprimidos. a Historia Uniyersalis.
parte para Cassicíaco, demi­ 395 — Agostinho torna-se 429 — Os vândalos pene­
te-se do cargo de professor e bispo de Hipona. Sulpício tram na África .
redige Contra Acadêmicos, Severo escreve A Vida de 430 — Agostinho falece em
De Beata Vita e De Ordine. São Martinho. Os hunos in- 28 de agosto.

BIBLIOGRAFIA
Principais edições do texto original das obras completas: “princeps” de Amerbach (Bâle,
1506); dos beneditinos (Paris, 1679); de Migne (1681).
Martin, J.: Saint Augustin, Alcan, Paris, 1901 (2.a edição em 1923).
Portalie', E.: Augustin (Saint), in Dictionnaire de Théologie Catholique, tomo I, Paris, 1902.
Gilson, Étienne: Introduction à lÉtude de Saint Augustin, J. Vrin, Paris, 1929 (2.a edição
em 1943).
Boyer, Charles: Essai sur la Doctrine de Saint Augustin, 1932.
Bardy, G.: Saint Augustin, Desclée de Brower, Paris, 1940.
Sciacca, M. F.: S. Agostino, Morcelliana, Bréscia, 1948.
Markus, R. A.: Augustine, in A Criticai History of Western Philosophy, edição de D. J.
O’Connor, The Free Press of Glencoe -Macmillan Company, Nova York, 1964.
Estudos em português ou editados no Brasil: Teixeira de Pascoaes, Santo Agostinho,
Livraria Civilização, Porto, 1945.
Ricci, Ângelo : Notas sobre o De Magistro, in Veritas, Revista da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, volume I, dezembro de 1956.
Marrou, Henry e Bonnardiere, A. M. La: Santo Agostinho e o Agostinismo, tradução de
Ruy Flores Lopes, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1957.
Sciacca, M. F.: Santò Agostino Essenziale, in Publicações do Instituto de Filosofia da
Universidade do R io Grande do Sul, boletim n.° 2.
Ramos, Guido Soares: La Moral Agustiniana, idem, n.° 8, 1960.

124
OS PENSADORES

FAB B RI
Para a maioria dos historiadores da cultura, a filosofia escolástica,
característica da segunda metade da Idade Média, teve início com Santo
Anselmo de Aosta, assim chamado em virtude da pequena cidade onde nasceu
(Torre de Bramafon, em Aosta, construída nos fins ao século XI.). Na página
anterior: vitral da Catedral de Cantuária representa Santo Anselmo.

ormandia, norte da França, ano O prior mediu suas forças e achou-as

N 1076. Os monges da abadia de


Bec nâo estavam inteiramente sa­

Eram homens de piedosa fé cristã e acre­


frágeis para levar a cabo o empreendi­
mento, mas tal era a insistência dos
monges, que acabou vencido e começou
tisfeitos com as Escrituras Sagradas.
a se desincumbir da tarefa. Depois de
ditavam nas palavras divinas de sua algum tempo, terminou uma pequena
religião. Contudo, sentiam necessidade obra, intitulada Monológio, na qual pro­
de um alimento intelectual superior, que curou provar a existência de Deus, tal
lhes desse as mesmas certezas da revela­ como os monges lhe tinham pedido, isto
ção bíblica, mas de um ponto de vista é, de maneira puramente racional, sem
exclusivamente racional. Em longas auxílio das Sagradas Escrituras.
conversas com o prior da abadia, fica­ Os argumentos desenvolvidos eram
ram convencidos de que ele poderia quatro, mas podem ser reduzidos a dois,
auxiliá-los. Insistiram para que o prior para mais fácil compreensão. O primeiro
redigisse, sob forma de meditação, algu­ de índole platônica, parte da constata­
mas de suas idéias sobre a essência divi­ ção de que o homem encontra no mundo
na e sobre outras questões. Não deveria uma grande quantidade de coisas, que
recorrer, em absoluto, à autoridade das podem ser classificadas como mais ou
Escrituras Sagradas e tudo aquilo que menos boas. As coisas possuem, assim,
fosse exposto deveria ser feito através uma bondade relativa que, necessaria­
do encadeamento lógico da razão. Os mente, deve ter como ponto de compara­
argumentos deveríam ser simples e o es­ ção um bem absoluto. Como as coisas
tilo acessível, a fim de que a verdade se contêm quantidades variáveis de bem,
tornasse evidente pela própria clareza. este não pode ser identificado com essas
Estabeleceram ainda que ele não poderia bondades relativas. O bem absoluto fun­
deixar de responder a eventuais objeções damenta os bens relativos, e se ele não
que se apresentassem ao longo do existisse não teria sentido falar das coi­
trabalho. sas como sendo mais ou menos boas.

126
STO. ANSELMO

O segundo argumento diz respeito à


idéia de causa, principal recurso para
se explicar a razão da existência das
coisas. Todas as coisas são isto ou aqui­
lo por causa de outras coisas; nenhum
ser pode ser por si mesmo, ou a partir de
nada. Em outras palavras, as coisas são
relativas e impõe-se conceber como exis­
tente, necessariamente, um ser absoluto
que é causa de si mesmo e fundamento
de todos os demais seres.

Mente viva e
coração bondoso
O prior que desenvolvera essas argu­
mentações estava apenas iniciando uma
obra que iria colocá-lo como um dos
criadores da chamada filosofia escolás-
tica. Chamava-se Anselmo e tinha nasci­
do na cidade de Aosta, na região do Pie-
monte, Itália, no ano de 1033. Seu pai,
Gondolfo, era um nobre lombardo, e a
mãe Ermenberga, pertencia a uma famí­
lia borguinhona de Aosta, possuidora de
considerável fortuna.
Contrariando a vontade do pai, que
desejava fazer dele um político, Anselmo
preferiu a carreira religiosa. Pouco se
sabe de sua infância e juventude, a não
ser que fez excelentes estudos clássicos.
Tornou-se um dos melhores latinistas de
seu tempo, escrevendo nessa língua com
muita clareza e precisão.
Em 1056, deixou a cidade natal para
ingressar no mosteiro beneditino de Bec,
atraído pelo renome do prior Lanfranco.
Desistiu, no entanto, do projeto ao saber
que Lanfranco tinha mudado para
Roma. Permaneceu então em Lyon, indo
depois para Cluny e Avranches, e só che­
gou a Bec em 1060.
No ano seguinte professoü os votos
THE MANSELL COLLECTION

monacais e, em 1063, era eleito prior,


em virtude de sua capacidade intelectual
e piedade fora do comum. Tinha o dom
de despertar simpatias onde quer que
passasse e sua santidade produzia admi­
radores entusiastas. Era um homem tão
bondoso e paternal — a crer no discípulo
Eadmero, que escreveu sua biografia —,
que ganhava a afeição e a confiança de “O Senhor meu Deus, ensina, agora, ao
todos, vencendo quaisquer resistências e meu coração onde e como procurar-Te,
obtendo muitos triunfos. Característica onde e como encontrar-Te ...”
nesse sentido foi a relação que o ligou a (Santo Anselmo, alto-relevo, Galeria
Osbern, um monge jovem e talentoso, do Cabido, Empoli, Itália.)

127
OS PENSADORES

mas de má conduta e ardente tempera­ cada homem, mas como realidade fora
mento, que se opôs à sua nomeação da inteligência.
como prior. Anselmo acabou por con­ Assim, Anselmo examina o problema
quistá-lo inteiramente, tornando-se Os- do “ser do qual não é possível pensar
bern um discípulo obediente, a ponto de nada maior”. Ele não poderia existir
submeter-se docilmente aos castigos, co­ somente na inteligência, pois se isso
muns na época, quando praticava atos acontecesse poder-se-ia pensar que há
repreensíveis. Osbern obedecia, seguro outro ser existente, não só no pensa­
do afeto paternal de Anselmo. mento, mas também na realidade e que,
Sob orientação de um mestre tão portanto, seria maior (mais perfeito) do
respeitado, a abadia de Bec transfor­ que o primeiro. Em outras palavras,
mou-se num centro de grande atividade uma coisa é certamente maior se pensa­
intelectual e aprendizado monástico. Foi da como existente ao mesmo tempo na
ali que se desenvolveram as extraordi­ inteligência e na realidade, do que exis­
nárias qualidades dialéticas de Ansel­ tente apenas na inteligência. Portanto
mo, fazendo dele uma figura dé primeiro Anselmo conclui que Deus, “o ser do
plano na história da filosofia. O Monoló- qual não é possível pensar nada maior”,
gio (ou Exemplo de Meditação sobre o existe, sem dúvida, na inteligência e na
Fundamento Racional da Fé), escrito em realidade.
1076, foi apenas o início. Nos dois anos Toda a demonstração de Anselmo —
seguintes seria redigida uma outra obra chamada argumento ontológico por
sobre o mesmo tema, o Proslógio (ou A Kant (1724-1804) — repousa sobre três
Fé Buscando Apoiar-se na Razão). pressupostos: uma noção de Deus forne­
cida pela fé; a convicção de que existir
no pensamento já é verdadeiramente
Um célebre argumento existir; a exigência lógica de que a exis­
tência da noção de Deus no pensamento
A redação do Proslógio resultou do determine que se afirme sua existência
sentimento de insatisfação que a pri­ na realidade. O raciocínio portanto
meira obra causara ao autor, quando se remete, em última instância, à fé, e o
deu conta de que “era difícil de ser pensamento de Anselmo percorre um
entendida devido ao entrelaçamento das caminho que vai da fé à razão e retorna
muitas argumentações”. Por isso, come­ ao ponto de partida, concluindo que
çou a pensar se não seria possível “en­ aquilo que é proposto pela fé é indubita­
contrar um único argumento que, válido velmente compreendido pela inteli­
em si e por si, sem nenhum outro, permi­ gência. Para Anselmo, há no pensamento
tisse demonstrar que Deus existe verda­ uma certa idéia de Deus: eis o fato; essa
deiramente e que ele é o Bem Supremo, existência indiscutível exige logica­
não necessitando de coisa alguma, quan­ mente que Deus exista na realidade: eis
do, ao contrário, todos os outros seres a prova. Esta se realiza mediante com­
precisam dele para existirem e serem paração entre o ser pensado e o ser real,
bons”. Em suma, Anselmo procurava, no forçando a inteligência a tomar o segun­
Proslógio,. um argumento apenas, que do como superior ao primeiro.
sozinho pudesse fornecer provas ade­ O argumento não foi aceito por todos
quadas sobre aquilo que o cristão crê no os filósofos da época como realmente
que diz respeito à substância divina. Conclusivo, e o monge Gaunilo levan­
Anselmo parte, assim, de um dado da tou-lhe objeção. Gaunilo afirmava que a
fé e procura, exclusivamente através da existência no pensamento não tem como
razão, provar que o dado da fé corres­ corolário a existência fora do mesmo.
ponde à verdade. O dado em questão é a Existir como objeto de pensamento não
crença do cristão na existência de Deus e seria gozar verdadeira existência; seria
de que este se trata de um ser tal, que simplesmente ser concebido. De acordo
não se pode conceber nada maior (mais com Gaunilo, é possível conceber a exis­
perfeito) do que ele. O problema consiste tência de ilhas perdidas no oceano,
em saber se tal ser existe mesmo, isto é, cobertas de riquezas, mas não se segue
não apenas dentro do pensamento de daí,que elas existam mesmo na realidade.

128
STO. ANSELMO

Além de criador do argumento ontológicopara demonstração da existência de


Deus e iniciador da filosofia escolástica, Santo Anselmo viveu intensamente
o problema das disputas entre o poder temporal e o poder espiritual. Uma
miniatura bolonhesa do século XIV mostra Santo Anselmo defendendo o papa
Urbano VII contra o rei inglês Henrique I. (Biblioteca Marciana, Veneza.)
Anselmo respondeu que a passagem dida em que derivam seu ser da essência
da existência no pensamento à exis­ de Deus. O ser supremo é, assim, conce­
tência na realidade não é logicamente bido por Anselmo como o criador de
necessária, nem possível, a menos que se todas as coisas.
trate do “ser do qual não é possível pen­
sar nada maior”. A noção de ilhas dito­
sas não conteria, evidentemente, nada Reis contra papas
que obrigasse o pensamento a lhes atri­
buir existência. O argumento ontológico Depois do Monológio e do Proslógio,
só seria válido para o ser supremo. Anselmo escreveu ainda muitas outras
Demonstrada a existência de Deus, obras enquanto foi prior da abadia de
Anselmo dedica-se, no Monológio e no Bec. Entre elas sobressaem-se — do
Proslógio, a deduzir todas as conse- ponto de vista da história da filosofia —
qüências referentes aos atributos do ser os trabalhos O Gramático e A Verdade.
supremo. Admitindo-se que Deus seja o O primeiro constitui uma análise sobre
maior dos seres e o máximo bem, segue- se a palavra gramático designa uma
se logicamente que a ele devem ser atri­ substância ou uma qualidade. O segun­
buídas todas as perfeições. Assim, Deus do é especialmente importante porque
seria a máxima sabedoria, verdade, nele se encontra sua teoria do conheci­
potência, justiça e beatitude. Esses atri­ mento que complementa a reflexão inte­
butos pertenceríam a Deus, não como lectual sobre a essência de Deus. São
qualidades exteriores ajustadas à sua também da mesma época A Liberdade de
essência, mas como idênticas à sua Arbítrio e Sobre a Queda do Demônio,
essência. Deus, segundo Anselmo, não nos quais trata de problemas éticos, e
participa de nada; pelo contrário, ele é, ainda Epístola sobre a Encarnação do
por si mesmo, tudo aquilo que é. Deduz- Verbo ou O Mistério da Trindade.
se, de sua essência como ser supremo, Anselmo não foi, contudo, apenas um
que todas as coisas somente são na me­ intelectual voltado exclusivamente para

129
OS PENSADORES

FAB B RI

“ . . .Senhor, se não estás aqui, na minha mente; se estás ausente, onde poderei
encontrar-Te? Se Tu estás por toda parte, por que não Te vejo aqui?
Certamente habitas uma luz inacessível. Mas onde está essa luz inacessível? E
como chegar a ela? Quem me levará até lá e me introduzirá nessa morada cheia
de luz . . .?” (Cripta da Catedral de Canterbury, onde Anselmo foi arcebispo.)

130
STO. ANSELMO

Pouco depois de Santo Anselmo ter ingressado no Mosteiro de Bec, na Normandia,


Guilherme, o Conquistador, duque da Normandia, conquistou a Inglaterra e
tomou-se seu soberano. Isso aconteceu depois da batalha de Hastings (1066),
quando asforças inglesas foram dizimadaspelos soldados vindos da França.
(Tapeçaria de Baieux representa a morte do rei Harold na famosa batalha.)

a meditação filosófica e teológica. Pelo entre o poder temporal e o poder espiri­


contrário, participou ativamente da vida tual situa-se o papel de Anselmo como
política de seu tempo, depois do fecundo “homem do mundo”. Esse papel ele
período de atividade intelectual na aba­ desempenhou de maneira rigorosamente
dia de Bec. coerente com sua participação dentro da
O principal problema político da história do pensamento. Como pensador
época em que Anselmo viveu foi o das característico da escolástica medieval,
disputas entre o poder temporal e o sua participação política foi orientada
poder espiritual, com todas as suas pela idéia de que o Estado está para a
conseqüências, como a simonia (comér­ Igreja assim como a filosofia está para a
cio com os objetos sagrados) e o nico- teologia e a natureza está para a graça.
laísmo (desordem nos costumes). Leigos No tempo em que Anselmo era abade,
desempenhavam papel fundamental na o rei da Inglaterra, Guilherme I, o
distribuição de cargos eclesiásticos e Conquistador, doou terras em seu país
quase todas as igrejas estavam em poder para a abadia de Bec. Por essa razão,
de pessoas que não faziam parte da hie­ Anselmo atravessou o canal da Mancha
rarquia eclesiástica propriamente dita. diversas vezes, a fim de visitar as
A relação entre vassalo e senhor feudal propriedades recebidas e fundar o con­
tendia a se confundir com a relação entre vento de Chester. Em 1903, quando o
o cura da igreja e seu patrono e cada vez reino britânico era governado por Gui­
mais se subordinava o poder espiritual lherme II, o Ruivo, Anselmo foi esco­
ao poder temporal. lhido pelo soberano para suceder a Lan-
Contra esse estado de coisas, insur- franco no cargo de arcebispo de
giu-se a Igreja e procurou reformar as Cantuária.
instituições, sobressaindo-se nessa tare­ Guilherme, o Ruivo, no entanto, tinha
fa a figura do papa Gregório VIL Como pilhado as terras pertencentes ao arce-
resultado, afirmou-se a supremacia da bispado e roubado os rendimentos, de­
Sé Apostólica e Gregório VII procurou pois da morte do antigo arcebispo. Esses
fundar a teocracia pontifícia. atos do rei fizeram com que Anselmo
Nesse contexto de acirradas disputas relutasse em aceitar o cargo, mas aca-

131
OS PENSADORES

Os monges da Idade Média tinham como uma de suas fontes de estudo os textos
de Maurus Rabanus (780-856). Tratando de todos os assuntos, esses textos
compunham uma verdadeira enciclopédia e utilizavam extensamente desenhos com
objetivos didáticos. Acima, página sobre osfilósofos da enciclopédia de
Rabanus, encontrada nos códices da Abadia de Montecassino, Itália (1028).

bou por fazê-lo a fim de lutar pela refor­ fim de buscar o palio, que era o símbolo
ma da Igreja na Inglaterra, constante­ da aprovação papal à sua nomeação
mente ameaçada pelos soberanos. para o arcebispado. O soberano, preten­
Assim, seu primado foi marcado desde dendo manter domínio absoluto sobre a
o início por vigorosa defesa dos direitos Igreja, não queria reconhecer publica­
da Igreja contra o rei. Como primeira mente a autoridade do papa Urbano II.
manifestação nesse sentido, recusou a A disputa prolongou-se por dois anos,
consagração como arcebispo, enquanto depois dos quais os bispos ingleses, reu­
Guilherme, o Ruivo, não restaurasse nidos no sínodo de Rockingham (11 de
Cantuária e reconhecesse o papa Urbano março de 1095), colocaram-se ao lado
II, a quem se opunha o antipapa Cle­ do rei. Na mesma ocasião, o núncio
mente III. Guilherme, doente e temeroso apostólico trouxe o pálio de Roma e
da morte, acabou por concordar e Ansel­ Guilherme encarregou-se de entregá-lo
mo foi consagrado no dia 4 de dezembro ao arcebispo. Anselmo recusou-se a
de 1093. aceitá-lo, pois isso significaria que sua
autoridade espiritual seria devida ao
O pastor protege soberano. Na presença de todos, tomou o
o rebanho pálio do altar e colocou-o sobre os pró­
prios ombros.
A primeira batalha estava vencida, Finalmente, Guilherme, o Ruivo, per­
mas a situação se modificaria logo mitiu a partida de Anselmo para Roma,
depois. Ao recuperar-se da doença, o mas logo depois confiscou novamente as
soberano mostrou a verdadeira face, exi­ terras do arcebispado de Cantuária.
gindo do novo arcebispo excessiva quan­ Em 1098, Anselmo participou de um
tia em dinheiro. Anselmo recusou-se a concilio em Bari e apresentou suas quei­
pagar, pois isso lhe parecia fazer comér­ xas ao papa. O concilio ratificou o
cio com os bens da Igreja. A recusa foi decreto contra as investiduras leigas. No
recebida por Guilherme como uma fim do mesmo ano, Anselmo retirou-se
afronta ao poder real, e sua reação foi para Liberi, vilarejo perto de Cápua, na
impedir Anselmo de dirigir-se a Roma a Itália, onde retomaria à meditação espi-

132

09 B
STO. ANSELMO

ritual para concluir uma obra que se tor­


naria clássica, como tratamento do pro7
blema da redenção. Intitulava-se Por
que Deus se Fez Homem?
Voltaria logo depois às suas disputas
com o soberano inglês. Em 1100, Gui­
lherme, o Ruivo, é assassinado e seu
irmão ascende ao trono, sob o título de
Henrique I. O novo rei convida Anselmo
para voltar à Inglaterra, pretendendo
assim obter apoio eclesiástico. Anselmo
volta, mas, logo depois, rompe relações
com Henrique I, quando este insiste em
investir prelados para as igrejas. O atri­
to se prolonga e Anselmo exila-se por
três anos, de 1103 a 1106. Um ano
depois, o sínodo de Westminster resolve
a questão por algum tempo. O rei renun­
cia à investidura de bispos e abades com
o anel e o bastão episcopais, mas exige,
em troca, que eles o homenageiem antes
das cerimônias de consagração.
Enquanto tudo isso acontecia, Ansel­
mo estava chegando aos seus últimos
dias, cercado pelo carinho dos discí­
pulos e ainda ocupado com a meditação
filosófica. A observação de um dos mon­
ges que o assistem de que ele está “a
ponto de abandonar este mundo para
dirigir-se à corte do Senhor”, Anselmo
responde tranqüilamente: “Se tal é Sua
vontade, obedecerei de bom grado; mas
se quiser deixar-me entre vós até que
termine uma questão que me preocupa o
espírito, relativa à origem da alma, fica­
ria muito agradecido a Ele, pois não sei
se encontraria alguém que se ocupe
disso se eu morrer”.
Faleceu no amanhecer do dia 21 de
abril de 1109, depois de ouvir as pala­
vras do Evangelho lidas por um dos
discípulos: “Sois o que permaneceu co­
migo em meio às tentações e vos preparo
meu reino, como meu Pai celestial o pre­
parou para mim, a fim de que comais e
bebais na mesa de meu reino”.
Logo depois, começaram as romarias
em sua honra na catedral de Cantuária,
e, em 1163, o arcebispo Thomas Becket
“ . . . Não apenas tudo o que é bom e remeteu para Roma seu processo de
grande é assim em virtude de uma canonização. Sua santidade foi decla­
única e mesma coisa, mas parece rada e durante vários séculos foi vene­
também que tudo que existe, existe rado na catedral. Em 1720, o papa Cle­
devido a uma única e mesma coisa. ” mente XI estendeu sua missa e ofício
(Selo de Santo Anselmo e retrato do para toda a igreja e declarou-o Doutor
filósofo executado por Shevet.) da Igreja.

133

71
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1033 — Anselmo nasce em 1077 — Anselmo publica o 1093 -— Anselmo torna-se
Aosta, Piemonte, Itália. Monológio. arcebispo de Cantuária.
1035 — A Boêmia reconhe­ 1078 — Torna-se abade de 1094 — Cid, o Campeador,
ce a soberania alemã. As ci­ Bec. Publica o Proslógio. apodera-se de Valência.
dades lombardas revoltam- 1079 — Nasce Abelardo. 1097 — Retorno de Henri­
se contra os feudos. Início da construção da ca­ que IV à Itália. Anselmo en­
1037 — Nascimento do tedral de Winchester. tra em conflito com Gui­
poeta persa Ornar Khay- 1080 — Surge o antipapa lherme, o Ruivo. Escreve
yam. Clemente III. Por que Deus se Fez Ho­
1041 — Concilio de Mon- 1084 — Henrique IV toma mem?
triond: organização definiti­ Roma e se faz coroar impe­ 1098 — Queixa-se do rei ao
va da “Trégua de Deus”. rador por Clemente III. papa, no concilio de Bari. O
1050 (?) — .Nascimento de 1085 — Morte de Gregório papa Urbano II renova a
Roscelino de Compiègne. VII. Vacância do trono pon­ aliança com os normandos.
1060 — Anselmo ingressa tifício. 1099 — Morte de Urbano
na abadia dos beneditinos 1087 — Guilherme, o Rui­ II- Realizam-se cruzadas na
em Bec. vo, torna-se rei da Inglater­ Palestina e Jerusalém é to­
1066 — Início da constru­ ra. mada.
ção da abadia de Monte 1088 — Urbano II torna-se 1100 — Morte do antipapa
Cassino. papa. Criação da Universi­ Clemente III. Guilherme, o
1070 — Lanfranco torna-se dade de Bolonha. Revolta Ruivo, é assassinado; ascen­
arcebispo de Cantuária. Re­ feudal na Inglaterra. de ao trono inglês Henrique
forma da Igreja inglesa. 1089 — Urbano II retoma I, seu irmão.
1073 — Gregório VII tor­ Roma. 1103 — Anselmo é exilado.
na-se papa, sucedendo a 1090 — Henrique IV inva­ 1106 — Henrique V revol­
Alexandre II. de a Itália. O papa Urbano ta-se contra seu pai, Henri­
1074 — É publicado um de­ II abandona Roma. que IV, que abdica e morre.
creto contra a simonia e o 1091 — Guilherme, o Rui­ 1107 — O sínodo de West-
nicolaísmo. vo, invade a Normandia. minster trata das investidu­
1075 — É publicado um de­ 1092 — Henrique IV, bati­ ras na Inglaterra.
creto contra as investiduras do em Canossa, deixa a 1109 — Anselmo falece no
leigas. Itália. dia 21 de abril.

BIBLIOGRAFIA

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Doctrinale et Littéraire du MoyenÂge, n.° VIII, 1934.
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Kolping, A.: Anselms Proslogion: Beweis der Existenz Gottes, Bonn, 1939.
Barth, K.: Fides Quaerens Intelectum: Anselms Beweis der Existenz Gottes, Munique, 1931;
2.a edição, 1958.
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Combes, A.: Un Inédit de Saint Anselme? Le Traité “De Unitate Divinae Essentiae et Plurali-
tate Creaturarum ", d’aprèsJ. de Ripa, 1944.

134
OS PENSADORES

Antes da ligação amorosa com Heloísa, que fez dos dois um dos casais mais
célebres da história, ao lado de Beatriz e Dante, Laura e Petrarca, Abelardo
foi ídolo dos estudantes parisienses como professor de dialética. (Gravura do
séc. XIX representa sua chegada a Paris.) Pág. anterior: Abelardo e Heloísa,
iluminura do Roman de la Rose, Museu Condé de Chantilly. (Foto Fabbri.)

o século XII, o desenvolvimento da estudou do “quadrivium” (aritmética,

N filosofia na França foi marcado


pela influência do platonismo
(através da escola de Chartres) e pela
disputa entre a facção dos místicos e
geometria, astronomia e música).
Em 1094, dirige-se a Loches, a fim de
estudar lógica sob orientação de Rosce-
lino (c. 1045-1120), o grande mestre da
teólogos e a dos dialéticos ou filósofos. A chamada escola nominalista. Algum
dialética significava, na época, a arte de tempo depois, faz o mesmo em Paris,
discernir o verdadeiro do falso, ou seja, tendo como mestre Guilherme de Cham-
aquela parte da filosofia que trata dos peaux (1070-1121), que seguia orienta­
termos, das proposições e do raciocínio. ção contrária à de Roscelino, defen­
Um grande representante da dialética dendo o realismo dos universais. A
desse tempo foi Pedro Abelardo, nascido “querela dos universais” foi, assim,
em 1079, na pequena localidade de Le desde cedo um dos principais centros de
Pallet, perto de Nantes, França. Filho de interesse de Abelardo, que, posterior­
um pequeno nobre chamado Béranger, mente, faria contribuições relevantes
homem de considerável cultura, Abe­ nesse campo de indagação filosófica.
lardo foi desde cedo orientado para o es­ Depois dos estudos em Loches e Paris,
tudo do “trivium” (gramática, retórica e Abelardo passa a lecionar, primeiro em
dialética) e, ao que tudo indica, nada Melun, depois em CorbeiL Vive um ou

136
ABELARDO

dois anos na Bretanha e volta à escola de


Guilherme de Champeaux, onde pole­
miza com o mestre. Em 1111 ou 1112,
segue cursos de teologia com Anselmo
de Laon (1050-1117), com quem tam­
bém entra em conflito.
De Laon, dirige-se a Paris para lecio­
nar filosofia e teologia, mstalando-se em
Sainte-Geneviève. Durante muitos anos
alcança um triunfo sem precedentes.
Suas aulas tornam-se cada vez mais
concorridas. Os alunos afluem de todas
as províncias e as preleções de Abelardo
são ansiosamente aguardadas.

Os filósofos também amam


Entre os alunos de Abelardo, encon­
tra-se Heloísa, moça de grande beleza e
atributos intelectuais. Os dois apaixo-
nam-se perdidamente: “ . . . nossa pai­
xão não omite qualquer dos graus do
amor e se orna de tudo aquilo que o
amor pode inventar de raró”. Tamanha é
a dedicação de Abelardo pela jovem que
os outros alunos começam a ressentir-se,
ao constatar que o mestre não dá mais
tanta importância à filosofia e à escola.
A relação entre os dois é conhecida
por todos, menos pelo cônego Fulbert,
tio de Heloísa. Porém advertido pelos
amigos ele se torna mais atento e acaba A Catedral de Chartres,fundada no
surpreendendo os dois amantes. Indig­ séc. X, sob direção de S. Fulberto,
nado, faz com que os dois se separem e tomou-se uma das mais importantes
Heloísa refugia-se na casa da irmã de escolas da Europa. Mais tarde,
Abelardo, onde nasce o filho, que recebe apoiou a luta de Abelardo pela razão.
o nome de AstrolábÍQ.
Abelardo planeja casar-se secreta­ Mas Fulbert sente-se ultrajado, pois
mente e viaja para a Bretanha, onde se para ele isso não poderia reparar a ver­
encontra Heloísa. Surpreendentemente, gonha sofrida, e faz uma série de amea­
a amante recusa a proposta. Alega que ças contra o casal. Para preservar a
seu tio não admitiría um casamento segurança de Heloísa, Abelardo leva-a
secreto e um casamento público seria para a abadia de Argenteuil, onde ela
inconveniente, para os dois. O mundo deveria fazer profissão de fé e vestir o
inteiro iria maldizê-la por tomar somen­ hábito monástico, sem, contudo, colocar
te para si um homem tão importante; o véu, símbolo da virgindade.
por outro lado, ela acha que casar-se Fulbert e seus parentes,pensando que
não convém a um filósofo, pois o gover­ Abelardo tivesse abandonado Heloísa, e
no de uma casa é incompatível com o es­ aplicam-lhe terrível punição: contratam
tudo e o ensino. Preferia ser amante e indivíduos que o atacam e emascularri.
não esposa, para que as alegrias que eles Definttivamente s-eparado de Heloísa,
experimentassem fossem tanto mais in­ Abelardo torna-se monge, ingressando
tensas quanto mais raros os encontros. na abadia de Sáint-Denis. Os outros
Apesar de Heloísa opor-se ao matri­ monges consideram indesejável sua pre­
mônio, por insistência de Abelardo aca­ sença, reprovando sua conduta anterior,
bam casando-se secretamente, em Paris. como dissoluta. Em contrapartida, os

137
OS PENSADORES

estudantes pedem insistentemente para conde Thibaud. Pouco depois, recebe


que ele retome seus cursos. Abelardo permissão para fundar a comunidade de
retira-se, então, para Maisoncelle, na Paracleto, na vizinhança de Nogent-sur-
Champagne, a fim.de lecionar, e novamen­ Sèine, que seria doada a Heloísa e suas
te encontra grande número de alunos. monjas.
Nessa ocasião, redige um livro sobre o Em todo esse período conturbado,
problema da unidade è trindade divinas, Abelardo consegue redigir uma série de
no qual se esforça para aplicar os resul­ obras. Entre as principais estão a Dialé­
tados da dialética numa questão central tica, as Glosas, onde discute Aristóteles,
da doutrina católica: se as três pessoas Porfírio e Boécio, e a Teologia Cristã, na
da trindade constituem uma só subs­ qual retoma o tema de sua obra conde­
tância ou três. O livro suscita violentas nada em Soissons. Além desses traba­
polemicas por tocar num ponto delicado. lhos, compõe Sim e Não, compilação
A posição de Abelardo é considerada sistemática de textos dos primeiros pa­
herética e o concilio de Soissons condena dres da Igreja, que manifestam perspec­
a obra. 0 autor é obrigado a queimá-la e tivas divergentes.
seguir forçadamente para o mosteiro de Em 1125, Abelardo dirige-se à Breta­
Saint-Médard. Pouco depois, autori­ nha, onde passa a viver na abadia de
zam-no a voltar para Saint-Denis. Saint-Gildas de Rhuys, exercendo o
Em Saint-Denis, Abelardo criaria pro­ cargo de abade. Ali, entra em novos con­
blemas novamente. 0 mosteiro ofgulha- flitos, só que dessa vez os problemas não
va-se de ter sido fundado por uma perso­ se referem à doutrina teológica. O pro­
nagem cercada de grande prestígio: blema que ele enfrenta é a corrupção.
Dionisio, o Areopagita, juiz do Areó- Atormentado pela concupiscência dos
pago (tribunal ateniense), convertido monges, empenha-se, durante muitos
por São Paulo. Dionisio teria se tomado anos, em acabar com a imoralidade rei­
discípulo do apóstolo e consignado seus nante. Por esse motivo chega a sofrer
ensinamentos em alguns escritos, que tentativa de morte e recorre à autoridade
circularam amplamente durante toda a papal, a fim de expulsar os piores ele­
Idade Média. Na verdade, essas obras ti­ mentos do mosteiro. De nada adianta: os
nham sido escritas nos fins do século V, outros tornam-se ainda mais corruptos.
por um discípulo do neoplatônico Proclo Nessas circunstâncias, começa a redigir
(410-485); por isso, posteriormente, a História das Minhas Calamidades e
passaram a ser identificadas como sendo mantém correspondência com Heloísa,
de Pseudo-Dionísio. escrevendo cartas que imortalizariam os
Contudo, a razão imediata da desa­ dois amantes. ;
vença não foi bem essa, mas algo mais Por volta de 1136, Abelardo volta a
simples. Abelardo encontrou, nessa dar aulas em Paris, com o mesmo brilho
época, num comentário de Beda anterior. Trata os assuntos teológicos de
(672-735) aos Atos dos Apóstolos, a maneira pouco ortodoxa e suscita vio­
afirmação de que Dionisio, o Areopa- lentas polêmicas, principalmente com
gita, tinha sido bispo de Corinto, o que Bernardo de Clairvaux. Abelardo sub­
entrava em contradição com o fato de ter mete os dogmas da fé à análise dialética
sido membro do Areópago ateniense e da razão, aproximando-se perigosa­
fundador do mosteiro. mente do que era considerado heresia.
O fato trazido à luz constituiu um ver­ Bernardo de Clairvaux defende vigoro­
dadeiro escândalo, pois desfazia a ori­ samente o que considerava a pureza da
gem mítica do mosteiro de Saint-Denis, revelação e ataca os filósofos que — no
que ocupava lugar de especial destaque seu entender — a desfiguram.
na França, como necrópole real. Como resultado, as obras de Abelardo
acabam por ser condenadas ao fogo,
Combatendo a corrupção mediante decreto papal. O filósofo dever
ria calar-se perpetuamente e seus parti­
Amainada a situação, Abelardo reti­ dários seriam excomungados.
ra-se para Provins, onde se instala sem Abelardo está cansado de tantas atri-
preocupações materiais, sob proteção do bulações. Passa dos sessenta anos e não

138
ABELARDO

Além de pensador de inteligência brilhante epouco ortodoxa, Abelardo


foi um temperamento apaixonado que se deixava levar por impulsos afetivos
profundos. (Gravuras do séc. XIX representam episódios da tempestuosa
relação amorosa entre Abelardo e Heloísa; Biblioteca Nacional de Paris.)

139
OS PENSADORES

tem mais forças para continuar lutando.


Procura reconciliar-se com Bernardo de
Clairvaux e pede ao papa autorização
para recolher-se ao mosteiro de Cluny,
onde deseja “passar os últimos dias de
sua vida e de sua velhice, que talvez não
sejam numerosos”.
Tinha razão: pouco tempo depois,
levam-no para o mosteiro de Saint-Mar-
cel, perto de Chalon-sur-Saône, onde
vem a falecer, no dia 21 de abril de
1142, deixando uma obra inacabada:
Diálogo entre um Filósofo, um Judeu e
um Cristão.

Um problema antigo
A parte mais produtiva do pensa­
mento filosófico de Abelardo originou-se
de sua atividade como professor de lógi­
ca. Como todos os estudiosos da filoso­
fia da primeira metade do século XII, o
principal problema por ele tratado foi a
questão dos universais.
O problema tem suas origens na Gré­
cia antiga, quando Sócrates afirmava — Separado de Heloísa, Abelardo
contra os sofistas — que o verdadeiro ob­ tomou-se monge e continuou suas
jeto do conhecimento é aquilo que existe prédicas sobre assuntos teológicos e
de comum em todos os seres individuais dialéticos. (Gravura do séc. XIX,
de determinado grupo, e não aquilo que pertencente à coleção UÉcureuil.)
distingue particularmente cada um
deles. No primeiro caso ter-se-ia um uni­ meira ficou conhecida como realismo e
versal, isto é, algo que está em todos os teve como representantes, entre outros,
indivíduos, de maneira permanente e Santo Anselmo e Guilherme de Cham-
imutável; no segundo, o que se apresenta peaux. A segunda chama-se nomina-
seria efêmero e relativo, não possibili­ lismo e teve como defensor extremado
tando, portanto, nenhuma certeza. Se se Roscelino.
trata de conhecer a justiça, por exemplo, O realismo na sua forma mais com­
seria necessário visar à justiça em geral, pleta afirma não só que os universais
e não a esta ou àquela ação justa têm existência real, como constituem
particular. mesmo a mais autêntica realidade. O
Posteriormente, a distinção socrática realismo insere-se, assim, dentro das
foi aperfeiçoada pela lógica de Aristó­ coordenadas do platonismo, que afirma
teles (384-322 a.C.) e, nos comentários a existência de um mundo superior de
de Porfírio (c. 232-304), colocou-se a idéias, das quais as coisas particulares
seguinte questão: os universais possuem conhecidas através dos sentidos consti­
verdadeira existência na realidade? ou tuem apenas cópias imperfeitas e perecí­
são meros produtos do pensamento veis. Em cada membro de uma espécie —
humano? Exemplificando: existe a ani­ afirmava Guilherme de Champeaux —
malidade em geral (universal para os está presente uma natureza comum real,
animais) ou só existe este ou aquele ani­ e os entes individuais diferem apenas em
mal particular? A animalidade não seria seus acidentes e não em sua substância.
apenas um produto do intelecto, sem Por outro lado, Santo Anselmo distingue
qualquer realidade efetiva? três tipos de realidade dos universais. O
Duas soluções opostas foram dadas primeiro tipo seria constituído pelos
pelos filósofos da Idade Média. A pri- universais que são reais na mente de

140
ABELARDO

Deus, como idéias-arquétipos que for­


mam o Verbo; são os universais antes
das coisas (universalia ante rem). O
segundo tipo seria o da realidade dos
universais nas coisas (universalia in re);
a criação do mundo por Deus consistiria
na concretização dos universais existen­
tes em Sua mente. Finalmente, os univer­
sais existiríam realmente na mente de
cada sujeito pensante, sob forma de con­
ceitos; são os universais depois das coi­
sas (universalia post rem).
O nominalismo toma posição diame­
tralmente oposta, esposando a tese de
que a realidade é constituída pelos entes
individuais, não sendo o universal mais
do que uma simples emissão de voz (fla-
tus voeis), meros nomes (dai a expressão
nominalismo).

Que são as palavras?


A solução dada por Abelardo afasta-
se das duas posições extremadas, mas,
ao mesmo tempo, integra elementos de
ambas.
Em primeiro lugar, os universais
constituem, para Abelardo, palavras
significativas e não simples emissões da
voz humana. À indagação de Porfírio
sobre se os universais existem realmente
ou são apenas objetos de intelecçâo,
encontra-se nas obras de Abelardo a
seguinte resposta: por si mesmos, os
universais não existem mais do que no
intelecto, mas eles referem-se a seres
reais.
À segunda indagação de Porfírio, ou
seja, se os universais são corpóreos ou
incorpóreos, a resposta de Abelardo é
dupla: enquanto nomes, eles são corpó­
reos, uma vez que sua natureza é a dos
sons emitidos pela voz humana; no
entanto, sua função significativa, isto é,
o fato de servirem para designar uma
pluralidade de indivíduos semelhantes, é
incorpórea.
Uma terceira indagação de Porfírio —
os universais existem nas coisas sensí­
veis? ou fora delas? — recebe também
dupla resposta. Para Abelardo, alguns
universais existem completamente fora Abelardo defendeu vigorosamente os
de qualquer possibilidade de percepção direitos da razão, contra a
sensível; é o caso do universal alma, por orientação de S. Bernardo de Clairvaux.
exemplo. Outros, ao contrário, tanto (Visto acima em escultura de Sluter,
existiríam no sensível quanto fora dele. na Igreja de Fontaine-les-Dijons.)

141
OS PENSADORES

Os universais que se referem às formas


dos corpos, por exemplo, enquanto
simplesmente as designam, existiríam
no sensível. No entanto, poderia se dar o
caso de eles designarem as formas dos
corpos como que separados do sensível
através da abstração; quando isso acon­
tecesse, os universais em questão existi­
ríam fora do plano sensível.
Finalmente, ym quarto problema, le­
vantado pelo próprio Abelardo, foi obje­
to de suas considerações. Trata-se do
seguinte: se não houvesse os indivíduos
correspondentes, subsistiríam os univer­
sais? A resposta exige que se leve em
consideração dois aspectos: por um
lado, a significação dos universais en­
quanto nomes imediatamente referidos a
indivíduos e, por outro, sua significação
enquanto conceitos. No primeiro caso,
os universais cessariam de existir, não
havendo indivíduos a serem significa­
dos. No segundo caso, contudo, eles
continuariam a existir, pois mesmo que
não houvesse rosas, poder-se-ia dizer: Os restos mortais de Abelardo e
as rosas não existem. Heloísa encontram-se no mausoléu
As respostas dadas por Abelardo aos construído em 1779, na abadia de
intrincados problemas dos universais Paracleto, e transferido, em 1817,
colocam-no como figura de primeiro
para o cemitério Père-Lachaise, Paris.
plano dentro da história da filosofia.
Ainda que elas não tenham resolvido que a revelação seja o fundamento das
todas as questões, tiveram, contudo, o verdades divinas, mas afirma constante­
mérito de apontar um novo caminho, que mente que a verdade da fé pode ser
se poderia chamar de nominalismo entendida também por intermédio da
moderado ou não-realismo. Sobretudo razão. Essa índole intelectualista de seu
importante foi o fato de ter contribuído pensamento tornou-o não apenas um
eficazmente para tomar a lógica uma espírito aberto às discussões filosóficas
disciplina autônoma, ao tratá-la mais e teológicas, como também capaz de se
como ciência das palavras do que das sobrepor a preconceitos vigentes na
coisas, evitando, assim, a interferência época. Assim é que, numa cultura forte­
da metafísica. mente marcada pelo poder temporal e
espiritual da Igreja Católica, tinha cora­
Mais vale a intenção gem de manifestar admiração por filóso­
fos não cristãos, chegando a apontar
Outros campos de indagação preocu­ neles o que considerava anticipações do
param a inteligência irrequieta de Abe­ cristianismo. Admirava sobretudo os
lardo. Um dos problemas que mais o filósofos gregos anteriores a Cristo e
ocuparam foi o das relações entre a chegava a afirmar que eles anteciparam,
razão e a fé. Por temperamento e forma­ através de suas especulações sobre a ori­
ção intelectual, Abelardo tende a super- gem e a estrutura do universo, muitos
valorizar as forças da razão na solução aspectos da revelação cristã. Idéias
dos problemas teológicos. Por outro desse tipo — que Abelardo expunha
lado, como cristão convicto, não nega a abertamente não apenas em suas obras,
autoridade da palavra revelada e consi­ mas também em preleções e debates pú­
dera a razão como instrumento de defesa blicos — acarretaram-lhe a hostilidade
da fé. Abelardo jamais põe em dúvida dos tradicionalistas. Estes sustentavam

142
ABELARDO

Muito antes dos tribunais da Inquisição, criados pela Contra-Reforma católica


do século XVI, já na Idade Média todas as doutrinas que contivessem sinais de
heresia eram combatidas com vigor pelas autoridades eclesiásticas. Obras
de Abelardo foram condenadas à destruição na fogueira. (Miniatura do século
XII mostra uma cena de martírio e suplício de hereges; Biblioteca Vaticana.)
que a teologia era assunto para ser vesse distante da mentalidade medieval,
meditado apenas na solidão dos claus­ Abelardo chegou muito perto disso, ao
tros e não para ser discutido publica­ investigar as fontes da responsabilidade
mente. nas ações humanas.
Relevantes foram as contribuições de Embora diretamente tenha conhecido
Abelardo no campo da ética, apresen­ pouco da obra de Aristóteles, foi na
tadas através de sua obra Conhece-te a linha desse filósofo grego que se situou o
Ti Mesmo. É bem vèrdade que nela Abe­ pensamento de Abelardo, apesar da mar­
lardo trata de assuntos que, posterior­ cante influência também recebida de
mente, deixaram de pertencer ao âmbito Santo Agostinho. Por sua vez, a obra de
próprio da ética, como a questão do Abelardo influenciou, em muitos pontos,
poder de absolvição dos padres. Mas as a elaboração, por Santo Tomás de Aqui-
investigações éticas de Abelardo são no, da Suma Teológica, obr^. que iria
particularmente importantes na medida realizar, no século seguinte, a síntese da
em que ele afirma que a moralidade não dogmática cristã com a filosofia aristo-
reside na obediência exterior a um con­ télica.
junto de regras, porém no íntimo do Abelardo foi um pensador que procu­
coração e da mente. Para Abelardo, o rou abrir novos caminhos em todos os
que é importante moralmente não é a campos que abordou. Impetuoso e com­
ação realizada, mas o sentido que a bativo, dialético brilhante e podej*oso
orienta. Com tais idéias, Abelardo de­ espírito analítico, exerceu larga in­
sempenhou um papel de primeiro plano fluência entre seus contemporâneos e
no movimento intelectual do século XII antecipou, segundo vários de seus intér­
que trouxe à tona a importância funda­ pretes, o racionalismo que iria irromper,
mental da intenção no ato moral. Muito com grande força, no início da Idade
embora uma ética da pura intenção esti­ Moderna.

143
OS PENSADORES

CRONOLOGIA

1079 — Abelardo nasce em França; transfere-a depois de e Trindade Divina e a


Le Paliet, perto de Nantes, para Corbeil,'nos arredores Dialética.
na Bretanha. ãe Paris. 1120 — Termina a Glosa a
1095 — Estuda lógica em 1113 (?) — Encontra Heloí­ Porfírio e pouco depois Sim
Loches, sob orientação de sa. e Não. Morte de Roscelino.
Roscelino. 1114 — Começa a frequen­ 1121 — Morte de Cham­
1096 — As cruzadas fran- tar a escola teológica de An­ peaux.
co-espanholas tomam Hues- selmo de Laon. Permanece T122 — Concordata de
ca. pouco tempo devido a diver­ Worms.
1099 — Revolução comu­ gências com seus mestres. 1125 — Abelardo inicia a
nal em Beauvais. 1116 — Torna-se professor redação da Teologia.
1100 — Abelardo torna-se de teologia e lógica na cate­ 1130 (?) — Criação da Uni­
discípulo de Guilherme de dral de Notre-Dame. versidade de Oxford.
Champeaux, na Escola da 1117 — Morre Anselmo de 1134 — Abelardo inicia a
Catedral,em Paris. Início do Laon. Heloísa refugia-se em troca de cartas com Heloísa.
reinado de Bauduíno I, pri­ Le Pallet, onde nasce A stro- 1136 — Dá aulas de dialéti­
meiro rei de Jerusalém. lábio. ca na Escola de Sainte Ge-
1102 — Abelardo funda a 1118 — Abelardo e Heloísa neviève até 1140.
escola de Melun, onde se en­ fazem votos monacais. An­ 1142 — Falece em Chalon-
contra a corte do rei da selmo redige Sobre a Unida­ sur-Saône, a 21 de abril.

BIBLIOGRAFIA
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Oeuvres Choisies dAbélard, textos apresentados e traduzidos por Maurice de Gandillac,
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Revue Thomiste —Saint Maximin, 1934, n.° 39.
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Jolivet, J.: Sur quelques Critiques de la Théologie dAbélard, in Archives dHistoire Doctri-
nale et Littéraire du Mòyen Âge, n.° 30, 1963.
Blomme, R.: La Doctrine du Peché dans lés Écoles Théologiques de la Première Moitié du
XIISiècle, Louvain et Gembloux, 1958.
Thomas, R.: Der Philosophisch-theologische Erkenntnisweg Peter Abaelards im Dialogus
inter Philosophum, Judaeum et Christianum, Bonn, 1966.
Frascolla, G.: Pietro Abelardo, Pesaro, 1950 — 1951.

144
OS PENSADORES

f_ ( uso comum chama sábios Súmula contra os Gentios e as Questões


* ■ ■ àqueles que ordenam corre- sobre a Alma, compostos, ao que tudo
V_X tamente as coisas e as go­ indica, entre 1259 e 1264; as Questões
vernam bem; por isso Aristóteles afir­ Diversas, começadas em 1263; e final­
mou: ordenar é o ofício do sábio.” mente a Suma Teológica, sua obra mais
Esse pensamento encontra-se ex­ célebre, apesar de não concluída.
presso no primeiro capítulo da Súmula Em todas elas está sempre presente
contra os Gentios, e seu autor parece ter uma vasta erudição, não haurida direta­
seguido rigorosamente a máxima aristo- mente nas fontes, pois Tomás de Aquino
télica, tanto ao construir o maior siste­ não conhecia nem o hebraico, nem o
ma teológico-filosófico da Idade Média, grego, nem o árabe. Limitado ao latim,
quanto em sua vida pessoal. conheceu e utilizou, porém, inúmeros
A biografia de Tomás de Aquino não autores profanos (Eudóxio, Euclides,
apresenta momentos dramáticos, poden­ Hipócrates, Galeno, Ptolomeu), os filó­
do ser sintetizada nas etapas principais sofos gregos, sobretudo Platão e Aristó­
de uma vida inteiramente dedicada à teles, os árabes e judeus (Al Farabi,
meditação e ao estudo. Nascido no cas­ Avempace, Al Ghazali, Avicebrom, Avi-
telo de Roccasecca, perto de Aquino cena, Averróis, Israeli), escolásticos
(Reino das Duas Sicílias), em 1225, como Anselmo de Aosta, Bernardo de
Tomás de Aquino estudou inicialmente Clairvaux, Pedro Lombardo. Mas foi
sob orientação dos monges beneditinos principalmente influenciado por Santo
da Abadia de Montecassino e, em 1244, Agostinho e, mais ainda, por Alberto
ingressou na Ordem dos Dominicanos. Magno, seu mestre em Paris.
Um ano depois encontra-se em Paris,
onde continua a formação teológica com Uma velha questão
Alberto Magno. De 1248 a 1252, per­
Foi sobretudo em Paris que Tomás de
manece em Colônia, ainda dedicado aos
Aquino viveu intensamente os conflitos
mesmos estudos, até que volta a Paris e
intelectuais, típicos de sua época, que
prossegue as atividades universitárias,
opunha o conhecimento pela fé ao
culminando pela obtenção do título de
conhecimento pela razão, a teologia à
doutor em teologia, em 1259. Nesse ano
filosofia, a crença na revelação bíblica
retorna à Itália e leciona em Agnani,
às investigações dos filósofos gregos.
Orvieto, Roma e Viterbo. De 1269 a
Em Paris esses conflitos ganhavam
1272, exerceu em Paris as funções de
dramaticidade mais intensa do que em
professor. Retornando à Itália, veio a
qualquer outra parte da Europa, pois a
morrer no convento dos cistercienses de
cidade era a capital do mais poderoso
Fossanova, não muito longe da cidade
reino da Europa e pólo de atração de
natal, no dia 7 de março de 1274, com
estrangeiros de todas as procedências. O
apenas 49 anos de idade.
papado não abria mão de seus direitos
Tomás de Aquino foi um trabalhador
de organização da universidade e procu­
incansável e um espírito metódico, que
rava fazê-lo no sentido de combater a
se empenhou em ordenar o saber teoló­
predominância dos dialéticos (como
gico e moral acumulado na Idade Média,
eram então chamados os professores de
sobretudo o que recebeu através de seu
filosofia) sobre os teólogos, isto é, os
mestre Alberto Magno. Como resultado,
expositores e comentadores das Sagra­
produziu extensa obra, que apresenta-
das Escrituras. A dialética não deveria
mais de sessenta títulos. As mais impor­
ser mais do que instrumento auxiliar e
tantes são os Comentários sobre as Sen­
os mestres de teologia não deveríam
tenças, provavelmente redigidos entre
fazer “ostentação de filosofia”, determi­
1253 e 1256, em Paris; Os Princípios e
nava uma disposição papal de 1231.
O Ente e a Essência, da mesma época; a
Os conflitos já vinham de algum
tempo, mas acentuaram-se depois da
Pág. ant.: Tomás de Aquino, detalhe divulgação da filosofia aristotélica, gra­
de afresco na Igreja de Santa Maria ças a traduções feitas pela escola de To­
Novella, Florença. (Foto Fabbri.) ledo na segunda metade do século XII. O

146
STO. TOMÁS

Na abadia cisterciense de Fossanova, faleceu aquele que viria a ser chamado


Doutor Angélico, Divino Tomás ou Anjo das Escolas, depois de ter criado o
maior sistema filosófico de toda a Idade Média. Com ele, a filosofia cristã
escolástica chegou à mais completa síntese entre o significado puramente
religioso das sagradas escrituras e as especulações teóricas da razão grega.

147
OS PENSADORES

efeito causado pelas obras de Aristóteles zação de Aristóteles — parece residir na


foi extremamente perturbador. O mais hábil transformação que Santo Tomás
importante fator de conflitos entre os operou na distinção aristotélica entre
admiradores do estagirita e dos defenso­ essência e existência. Aristóteles, nos
res da fé residia no fato de a doutrina Segundos Analíticos, distingue entre as
aristotélica, apresentar, à primeira questões “o que é um ser?” e “esse ser
vista, um conteúdo muito distinto da existe?” A resposta à primeira pergunta
concepção cristã do mundo. Na física constitui a definição de uma essência;
aristotélica o mundo é eterno e incriado. mas, para Aristóteles, uma definição não
Deus é o motor imóvel do universos, o implica jamais a existência, lógica ou
“pensamento que se pensa a si mesmo” e empírica, do definido. Assim, em Aristó­
nada cria, movendo o mundo como causa teles, a distinção entre essência e exis­
final, sem conhecê-lo, “como o amado tência é puramente conceituai, lógica.
atrai o amante”. Por sua vez, a alma não Tomás de Aquino, ao contrário, inter­
é mais do que forma do corpo organi­ preta aquela distinção como ontológica,
zado, devendo nascer e morrer com ele real. Com isso, altera num ponto básico
sem ter qualquer destinação sobrenatu­ o conteúdo da filosofia aristotélica, em­
ral. Assim, a filosofia aristotélica igno­ bora mantenha seu arcabouço racional.
rava totalmente as noções de Deus cria­ Mas é o bastante para torná-la capaz de
dor e providente, bem como as de alma servir de fundamentação racional para
imortal, queda e redenção do homem, os dogmas da revelação cristã, defender
todas fundamentadais à doutrina cristã. a ortodoxia da Igreja e dar combate às
Apesar de tão distante dos dogmas correntes consideradas heréticas. Fazen­
cristãos, a filosofia aristotélica ganhou do apelo ao princípio do realismo onto-
adeptos cada vez mais entusiasmados lógico (segundo o qual “tudo o que está
entre os dialéticos, que nela viam um contido na definição de uma coisa não
alimento intelectual superior e se esfor­ pertence a essa coisa essencialmente,
çavam para adaptá-la à revelação bíbli­ mas acidentalmente por outra”), Tomás
ca. Os esforços, contudo, não eram efi­ de Aquino conclui que a definição da
cientes e os conflitos persistiam. O essência das criaturas não implica sua
aristotelismo não servia, assim, à polí­ existência e, portanto, elas não existem
tica dos papas e medidas rigorosas por si mesmas, e sim devido a uma outra
foram tomadas contra ele. Desde 1211, realidade (ab alio). A distinção real
o concilio de Paris proíbe o ensino da fí­ entre essência e existência torna-se,
sica do filósofo grego e, em 1215, o le­ assim, o fundamento metafísico da con­
gado papal, ao formular os estatutos da tingência das criaturas humanas e per­
Universidade de Paris, proíbe a leitura mite introduzir no peripateismo a idéia
da Metafísica e da Filosofia Natural, de de criação.
Aristóteles. As proibições, contudo, Apenas em Deus haveria identidade
caíam no vazio, diante do entusiasmo do entre essência e existência, Deus existe
público. O papa Gregório IX limitou-se por si e Ele mesmo teria se revelado a
então a ordenar a propagação das obras Moisés, afirmando: “Eu sou aquele que
de Aristóteles, desde que expurgadas de sou”. Deus seria, assim, criador de
afirmações contrárias aos dogmas da todas as coisas e fundamento de suas
Igreja. Inicia-se, assim, a cristianização existências contingentes. Deus seria o
da filosofia aristotélica, o que só veio a puro ato de existir, não sendo uma
se tornar possível graças ao espírito essência qualquer — como o uno, o bem
analítico, à capacidade de ordenação ou o pensamento — à qual se atribuiría a
metódica e à habilidade dialética de existência. Ele não seria um modo emi­
Tomás de Aquino, que ele aliava a um nente de existir — como a eternidade, a
profundo sentimento da fé cristã. imutabilidade ou a necessidade, que
Lhe podem ser atribuídas—,maso próprio
A perfeição divina existir, tomado em si mesmo e ao qual
nada pode ser acrescentado, pois isso
O ponto de partida para a construção seria pressupor uma limitação que não
do tomismo — e a conseqüente cristiani­ Lhe cabe. Desse modo, Deus não se iden-

148
STO. TOMÁS

tifica aos seus atributos; estes é que, ao


contrário, devem ser referidos a Ele,
pois se é o existir puro, Ele é o ser pleno,
nada podendo ser-Lhe atribuído e nada
Lhe faltando. Deus é imóvel e eterno,
pois não é possível conceber Nele qual­
quer transformação. Deus é a perfeição
pura.

As vias que levam a Deus


Segundo Santo Tomás a razão pode
provar a existência de Deus através de
cinco vias, todas de índole realista:
considera-se algum aspecto da realidade
dada pelos sentidos como o efeito do
qual se procura a causa.
A primeira fundamenta-se na consta­
tação de que no universo existe movi­
mento. Baseado em Aristóteles, Santo
Tomás considera que todo movimento
tem uma causa, que deve ser exterior ao
próprio ser que está em movimento, pois
não se pode admitir que uma mesma
coisa possa ser ela mesma a coisa movi­
da e o princípio motor que a faz
movimentai-se. Por outro lado, o pró­
prio motor deve ser movido por um
outro, este por um terceiro, e assim por
diante. Nessas condições, é necessário
admitir ou que a série de motores é infi­
nita e não existe um primeiro termo (não
se conseguindo, assim, explicar o movi­
mento), ou que a série é finita e seu pri­
meiro termo é Deus.
A segunda via diz respeito à idéia de
causa em geral. Todas as coisas ou são
causas, ou são efeitos, não se podendo
conceber que alguma coisa seja causa de
si mesma. Nesse caso, ela seria causa e
efeito ao mesmo tempo, sendo, assim,
Tt7

anterior e posterior, o que seria absurdo.


Por outro lado, toda causa, por sua vez,
deve ter sido causada por outra e esta
por uma terceira, e assim sucessiva­
mente. Impõe-se, portanto, admitir uma
primeira causa não causada, Deus, ou
aceitar uma série infinita e não explicar
.

a causalidade.
Alberto Magno forneceu os elementos A terceira via refere-se aos conceitos
com os quais Santo Tomás edificaria de necessidade e possibilidade. Todos os
seu sistema teológico-filosofico. seres estão em permanente transforma­
(Santo Alberto Magno, por Tommaso de ção, alguns sendo gerados, outros se
Modena, Seminário de Treviso.) corrompendo e deixando de existir. Mas

149
OS PENSADORES

poder ou não existir não é possuir uma encontram-se os anjos e, para explicá-
existência necessária e sim contingente, los, a distinção tomista entre essência e
já que aquilo que é necessário não preci­ existência revela-se particularmente efi­
sa de causa para existir. Assim, o possí­ ciente. Conforme os textos bíblicos, os
vel não teria em si razão suficiente de anjos seriam puros espíritos, o que —
existência e se nas coisas houvesse ape­ interpretado aristotelicamente, sem o
nas p possível, não havería nada. Para princípio tomista da distinção ontoló-
que ò possível exista é necessário, por­ gica entre essência e existência — levaria
tanto, que algo o faça existir. Ou seja: se à conclusão de que são puras formas e,
alguma coisa existe é porque participa portanto, incriados, eternos. Isso seria o
do necessário. Este, por sua vez, exige mesmo que afirmar serem os anjos
uma cadeia de causas, que culmina no iguais a Deus, ou seja, cair-se-ia numa
necessário absoluto, ou seja, Deus. visão politeísta.
A quarta via tomista para provar a A distinção ontológica entre essência
existência de Deus ê de índole platônica e existência permite reinterpretar o prin­
e baseia-se nos graus hierárquicos de cípio aristotélico segundo o qual a forma
perfeição observados nas coisas. Há dá a existência: Santo Tomás pode então
graus na bondade, na verdade, na nobre­ afirmar que é por intermédio da forma
za e nas outras perfeições desse gênero. que Deus proporciona existência aos
O mais e o menos, implicados na noção anjos, que seriam, assim, seres contin­
de grau, pressupõem um termo de gentes. Os anjos seriam, pois, criaturas
comparação que seja absoluto. Deverá como as demais, embora incorpóreas e
existir, portanto, uma verdade e um bem possuidoras da mais alta perfeição den­
em si: Deus. tre as criaturas. Na hierarquia dos anjos
A quinta via fundamenta-se na ordem cada um recebería do imediatamente
das coisas. De acordo com o finalismo superior as espécies inteligíveis, pri­
aristotélico adotado por Tomás de Aqui- meira fragmentação da luz divina, trans­
no, todas as operações dos corpos mate­ mitindo-a à ordem angélica imediata­
riais tenderíam a um fim, mesmo quando mente inferior.
desprovidos da consciência disso. A Na hierarquia descendente das criatu­
regularidade com que alcançam seu fim ras, o homem aparece como um ser dota­
mostraria que eles não estão movidos do de duplo compromisso. Por sua alma,
pertence à série dos seres imateriais,
pelo acaso; a regularidade seria inten­
mas não é uma inteligência pura, como a
cional e desejada. Uma vez que aqueles
corpos estão privados de conhecimento, dos anjos, pois encontra-se essencial­
pode-se concluir que há uma inteligência mente ligada a um corpo. Liame subs­
primeira, ordenadora da finalidade das tancial do universo, o homem é menos
coisas. Essa inteligência soberana seria um elemento do mundo do que um novo
mundo onde se resume a totalidade. A
Deus.
alma humana é, assim, um horizonte
Anjos e homens onde se tocam o mundo dos corpos e o
dos espíritos.
Todas as provas da existência de Deus Por essa dupla natureza é que o
contêm já, implicitamente, o quadro homem pode conhecer (já que é alma),
tomista explicativo da realidade como mas não pode ter contato direto com o
um todo e esse quadro concilia as verda­ inteligível (pois é também corpo). O
des da razão aristotêlica e o conteúdo da conhecimento humano parte sempre dos
revelação bíblica. Torna-se perfeita- sentidos, que revelam objetos concretos
mente concebível pela razão que o e singulares; mas, através da abstração,
mundo seja um conjunto de criaturas é capaz de finalmente forjar conceitos
contingentes, cuja existência é dada por universais. Adotando e desenvolvendo a
Deus, criadas a partir do nada e escalo­ teoria aristotêlica do conhecimento —
nadas segundo graus diversos de perfei­ sustentada pela doutrina metafisica do
ção e participação na essência e exis­ ato-potência —, Santo Tomás afirma que
tência divinas. o intelecto pode gerar conceitos abstra­
No ápice da hierarquia das criaturas tos e universais porque não é um mero

1 50
STO. TOMÁS

SCALA

O afresco pintado na cúpula da Capela dos Espanhóis da Igreja de Santa


Maria Novella, em Florença, intitulado “Triunfo de Santo Tomás de Aquino”,
ilustra a concepção hierárquica desenvolvida pelo filósofo
em todas as suas obras. O mundo é visto por ele como um suceder de níveis,
desde a matéria inanimada até a suprema beatitude do ser eterno que é Deus.

151
OS PENSADORES

intelecto passivo, a receber e registrar ría o problema da Trindade, evitando os


os dados dos sentidos. Ao contrário, o perigos das heresias triteísta e modalis-
processo intelectual seria movido, em ta. A primeira afirmava a tríplice natu­
última instância, pelo “intelecto agen­ reza de Deus a fim de manter a crença de
te”, responsávél pela atividade abstra- Seu desdobramento em três pessoas, o
tiva. Assim, as noções de finalidade e de Pai, o Filho e o Espírito Santo. Inversa­
hierarquia, herdadas de Aristóteles, rea­ mente, a heresia modalista ou sabeliana,
parecem também na teoria tomista do acentuando a unidade da natureza de
conhecimento: embora psicologicamente Deus, era levada a sustentar a existência
o conhecimento tenha início no plano de uma só pessoa. O princípio tomista,
corpóreo (os sentidos que apreendem distinguindo ontologicamente essência e
objetos materiais), na verdade o pro­ existência, sustenta, com argumentos
cesso é comandado pelo fim, situado no filosóficos, a versão ortodoxa da revela­
plano incorpóreo, espiritual (o “inte­ ção: Deus seria uma só natureza exis­
lecto agente” que, já em ato, move a tindo como três pessoas.
atualização da inteligibilidade e da
universalidade potenciais dos dados for­ A Igreja e o Estado
necidos pelos sentidos).
O fim do homem, para Santo Tomás, é
o aperfeiçoamento de sua natureza, o
O combate às heresias que somente pode cumprir-se em Deus.
A distinção real ou ontológica entre Á finalidade última das ações humanas
essência e existência — além de trans­ transcendería, portanto, ao próprio
formar a concepção aristotélica de um homem, cuja vontade, mesmo que ele
mundo eterno e incriado na concepção não o saiba, leva-o a dirigir-se ao ser
cristã de um ser criador (Deus), respon­ supremo.
sável pela existência dos demais seres, Para que possa ser considerada boa, a
as criaturas — possibilitou a Tomás de vontade deve conformar-se à norma
Aquino refutar racionalmente e rejeitar moral que se encontra nos homens como
como heréticas certas concepções cor­ reflexo da lei eterna da vontade divina.
rentes, na época, sobre dogmas da Esta, no entanto, não pode ser conhecida
encarnação de Cristo e da Trindade. pelo homem, de tal forma que ele deve
Com efeito, aplicadas a seres racio­ limitar-se a obedecer aos ditames da lei
nais, as noções de essência e existência natural, entendida como lei da cons­
reduzem-se às de natureza e pessoa. ciência humana.
Afirmando-se a identidade entre essên­ Em política, Santo Tomás distingue
cia e existência (portanto entre natureza três tipos de lei, que dirigem a comuni­
e pessoa), é forçoso concluir pela pre­ dade ao bem comum. O primeiro é cons­
sença em Cristo de duas pessoas, em vir­ tituído pela lei natural (conservação da
tude de sua dupla natureza ou essência vida, geração e educação dos filhos, de­
(divina e humana). Tal conclusão é a que sejo da verdade); o segundo inclui as leis
estava expressa na heresia nestoriana. humanas ou positivas, estabelecidas
Da mesma forma (identificando essência pelo homem com base na lei natural e
e existência, natureza e pessoa) poder- dirigida à utilidade comum; finalmente,
se-ia concluir pela presença em Cristo de a lei divina guiaria o homem à consecu­
uma só natureza (ou a divina ou a huma­ ção de seu fim sobrenatural, enquanto
na), como pretendia a heresia de Euti- alm£t imortal.
Quanto ao problema das relações
ques, (c.378-c.454).
entre o poder temporal e o poder espiri­
A distinção tomista entre essência e
existência, ao contrário, permitia defen­ tual, as idéias de Santo Tomás revelam a
der racionalmente a versão ortodoxa do procura de equilíbrio entre as tendências
dogma, justificando a crença de que conflitantes da época. O Estado (poder
Jesus existiu como uma pessoa (existên­ temporal) é concebido como instituição
cia) a encarnar duas naturezas (essên­ natural, cuja finalidade consistiría em
cias), a divina e a humana. promover e assegurar o bem comum.
De forma análoga, o tomismo resolve­ Por outro lado, a Igreja seria uma

152
STO. TOMÁS

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proirdtcanttcdütBiuun irtigioiinu quta turno niOirsuiiaiD aò diam tnian
ptíhttjco nfotuiir ftuyffligtutt aí cni qm tüiaphãfiaiian rimtf cacOit fau? Ha
Otanutnrqnauutt. <C5nftiamumCi miu-afsnonuitnt-injrdWqítr-aurpHftit
nanitfbiuitftahciwmatfQiliufauc DiUgrntihi tr.tuinn diam cèpxoanunuu
dOuí&stouftnittaíuntp&nm uuirüin- nrimb.* muütalmtniãjiirí rtdriDurtlrtmt
ptmt tjtnff ip nniinplunant m uttlunn mômair mftcutiwn ntrui ftntbn aofafiu
ílimü aiuniie” a digiuntnu-ptim cad g a liot&fihrtáflfun p iruriaíãm ijinauí
aura ca Qucfuut ninatatiu,* ãüfaaiito nur umt Ditariam axrüunt <ljcacruf
nõtrahutrtuihn oririan iJrfnplUK^i nucirico rõnc piiaua mucíb^n pjfiuat n
fuurirüuiurtut iimo2’ apnrânrftn iflr nãmftut foían uiftnu irarfamar Otna-d
plrürr aã üifnutaumptxni quuTquia t tütasírta) pirãu uiurUigHn opmaLctpr
frrqfif arviurarâ rtfttíftôuun rtranai lonffitm tnnpuf etnim ainnirnonc nnuto
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mamim. Cplada nõptrêuiâírrtttr.n1 rio cftiigtflnuiiiV farra inri-~snst aí

Criticado inicialmente, o tomismo acabou por impor-se como principal sistema


filosófico da Igreja Católica. Em lei eclesiástica de 1918, o cánon 589
estabelece que o estudo da filosofia e da teologia deve serfeito “de acordo
com o ensinamento de Santo Tomás de Aquino”. (Página de edição medieval da
Suma Teológica, acervo da Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença.)

153
OS PENSADORES

instituição dotada fundamentalmente de ordem sobrenatural, na medida em que


fins sobrenaturais. Assim, o Estado não esta aperfeiçoaria a primeira.
precisaria se subordinar à Igreja, como A harmonização, no plano social e
se ela fosse um Estado superior. A político, entre poder temporal e poder
subordinação do Estado à Igreja deveria espiritual seria, portanto, análoga à que
limitar-se aos vínculos de subordinação Santo Tomás procura estabelecer entre
existentes entre a ordem natural e a filosofia e teologia, entre razão e fé.

CRONOLOGIA

1225 — Tomás de Aquino até 1248, sob a orientação 1261 — Início do pontifica­
nasce no castelo de Rocca- de A Iberto Magno. do de Urbano IV.
secca. 1248 — Alberto Magno 1265 — Clemente IV ascen­
1226 — Morte de São Fran­ funda, em Colônia, uma fa­ de ao trono papal. Nasce
cisco de Assis. culdade de teologia. Tomás Dante. Tomás redige a Su­
1230 — Tomás inicia seus continua seus estudos em ma Teológica, até 1273.
estudos na Abadia de Mon- Colônia até 1252. 1266 (?) — Nasce Duns
tec assino. 1252 — Leciona em Paris Scot.
1240 — Alberto Magno co­ até 1259. 1268 — Morte de Clemente
meça a ensinar em Paris e a 1257 — Robert de Sorbon IV. Interregno pontificai.
comentar Aristóteles. funda um colégio na Univer­ 1269 — Tomás ensina em
1241 — Morte do papa sidade de Paris. Paris até 1272.
Gregório IX. 1259 — Tomás escreve o 1271 — Eleição de Gregó­
1244 — Fundação da Uni­ Comentário sobre as Sen­ rio X.
versidade de Roma. Tomás tenças e a Suma contra os 1274 — Tomás falece a 7
entra para a Ordem dos Gentios. Leciona na Itália de março, em Fossanova.
Dominicanos. até 1268: Agnani, Orvieto, 1323 — É canonizado pelo
1245 — Estuda em Paris Roma e Viterbo. papa João XXII.

BIBLIOGRAFIA

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Rougier, L.: La Scolastique et le Thomisme, Paris, 1925.

154
OS PENSADORES

uma pequena obra intitulada O

N Banquete, escrita para glorificar a


filosofia e dela extrair regras de
bem viver, o grande poeta italiano Dante
Alighieri (1265-1321) define-se como
alguém que recolhe as migalhas deixa­
das pelos grandes mestres do pensa­
mento e as transmite aos outros.
Essa afirmação contém um certo
fundo de verdade, na medida em que o
poeta não foi propriamente um filósofo
original. Dante foi um poeta-filósofo e
como tal — no dizer de George Santa-
yana (1863-1952) — o maior expoente da
concepção sobrenaturalista do universo,
como Lucrécio (96-55 a.C.) o foi da
visão materialista e Johann Wolfgang
Goethe (1749-1832) da idéia românti-
co-dinamicista.
A principal obra de Dante — a Divina
Comédia — é usualmente interpretada
como representação poética do edifício
conceituai construído por Santo Tomás
de Aquino, e alguns intérpretes chegam

ARBORIO MELLA
a estabelecer paralelos rigorosos entre o
poema e a Suma Teológica. Outros não
são, porém, da mesma opinião e procu­
ram mostrar como a maior parte das
idéias contidas na Divina Comédia cor­
responde a noções comuns a todos os
autores medievais, como o papel prima- Beatriz conduz o poeta ao paraíso.
cial da teologia; a organização hierár­ (Divina Comédia, Bibl. Nacional,
quica da realidade, desde as coisas sen­ Veneza.) Pág. ant.: Dante, em afresco
síveis até os anjos e Deus; o uso de uma de Andréa dei Castagno, Museu de
certa simbologia. Santa Apolônia, Florença. (Foto Fabbri.)
Alguns comentadores têm mostrado a
influência exercida sobre a obra de de Dante por Beatriz. A obra apresenta
Dante pelo pensamento árabe, especial­ clima lírico, sendo constituída por uma
mente Averróis e Avicena. Segundo esses série de poemas, ligados e comentados
intérpretes, sobretudo a idéia de Deus por trechos em prosa, que pretendem
como luz e a doutrina das inteligências e explicar as passagens poéticas de ma­
da iluminação teriam sido extraídas por neira didática. Aparentemente simples,
Dante, menos da tradição agostiniana do a obra encerra, no entanto, uma comple­
que da filosofia árabe. Mas isto é bas­ xidade de significados que têm sido
tante controvertido. diversamente interpretados. Assim é que
Dante integra todas essas idéias numa se pode ver na Vida Nova o drama huma­
síntese que expressa artisticamente a no da procura da verdade eterna e de um
concepção cristã medieval das coisas mundo platônico de puras idéias. A
divinas e humanas. Entretanto, a Divina amada Beatriz — que na Divina Comédia
Comédia — à parte o valor poético — per­ conduz o poeta ao paraíso — tem sido
manece também como expressão signifi­ interpretada como a própria teologia, da
cativa do pensamento original de Dante, qual a filosofia seria serva, de acordo
que antecipa as linhas fundamentais da com a concepção medieval.
filosofia humanista. Mas Dante não compôs apenas poesia
Ao mesmo tempo poética e filosófica, encerrando conteúdo filosófico; escreveu
a Vida Nova é a história do famoso amor também um tratado teórico sobre pro-

156
DANTE

Para compreender a Divina Comédia é necessário lê-la não apenas como um


poema lírico mas como obra de pensamento. O próprio Dante exigia que se
acreditasse na verdade das teses teológicas, filosóficas, éticas epolíticas,
expostas em seus versos. (Virgílio, símbolo da filosofia, conduz Dante no
Inferno; miniatura do séc. XV, Biblioteca Apostólica Vaticana.)

blemas políticos, intitulado Monarquia. tos, o homem necessita, segundo Dante,


O medievalista Étienne Gilson conside­ de dois mestres diferentes. Um seria o
ra-o um livro notável, ao qual poucas papa, que conduz os homens à beatitude
obras de filosofia política da Idade eterna através das verdades da Revela­
Média podem comparar-se. ção; o outro seria o imperador, que deve
Na Monarquia, Dante aponta dois.fins conduzir o gênero humano à felicidade
últimos ao homem, correspondentes à temporal, de acordo com os ensina­
sua dupla natureza. Enquanto ser cor­ mentos da filosofia. Essas duas autori­
ruptível, o homem deve procurar a felici­ dades — 'assim como os fins correspon­
dade possível dentro dos quadros políti­ dentes — são últimas e supremas, cada
cos da cidade; enquanto incorruptível, uma em seu domínio próprio. O impera­
tende à beatitude contemplativa da vida dor e o papa receberíam sua autoridade
eterna. Dentro dessas coordenadas bási­ diretamente de Deus; o chefe temporal
cas, Dante propõe sua solução para o nada deveria ao sumo pontífice, a não
principal problema político que preocu­ ser o respeito filial devido por todos os
pou a segunda fase da Idade Média: o cristãos.
das relações entre o poder temporal e o Outra obra teórica do autor da Divina
poder espiritual, entre o império e o Comédia intitula-se A Respeito da Lin­
papado. guagem Vulgar e ocupa lugar particu-
Para atingir aqueles dois fins distin­ larmente importante dentro da história

157
OS PENSADORES

da linguística. Dante aí estuda critica­ d’oíl”, o provençal, ou ‘Mangue d’oc” e o


mente a natureza e as qualidades da lín­ italiano, ou língua do “si”. Considera-se
gua, analisando o latim, idioma culto da que nessa obra, embora inacabada,
época, e os três idiomas românticos por encontram-se as primeiras formulações
ele conhecidos: o francês, ou ‘Mangue da filologia e da lingíiística modernas.

CRONOLOGIA
1265 — Dante Alighieri 1289 — Combate os gibeli- fácio VIII, Charles de Va-
nasce em Florença, em nos na batalha de Campal- lois vai pacificar Florença.
maio. dino. 1302 — Dante é acusado de
1266 — Nascimento de 1290 — Morte de Beatriz. “baralter ia” (práticas cor­
Giotto. 1293 (?) — Dante escreve ruptas). É exilado.
1274 — Dante encontra Vida Nova. 1303 — Morre Bonifácio
Beatriz pela primeira vez. 1294 (?) — Morre Brunetto VIII.
Morte de Santo Tomás de Latini. Com a morte de Ce­ 1304 — Nasce Petrarca.
Aquino. lestino V, inicia-se o pontifi­ 1307 — Dante escreve o
1276 — Morre o poeta Gui- cado de Bonifácio VIII. Banquete.
do Guinizelli. 1295 — Dante torna se 1308 — Com a morte de
1277 — A doutrina tomista membro do conselho espe­ Alberto da Áustria, Henri­
é condenada em Paris e cial do povo guelfo. que VII de Luxemburgo tor­
Canterbury. 1298 — Dante viaja a San na-se imperador.
1278 — A ordem dominica­ Gimignano em missão di­ 1313 — Morre Henrique
na adota o tomismo como plomática. VII. Dante redige Sobre a
doutrina oficial. 1300 — Morre Guido Ca­ Monarquia.
1285 (?) — Dante casa-se valcanti. 1321 — Morre na noite de
com Gemma Donati. 1301 — A pedido de Boni­ 13 de setembro.

BIBLIOGRAFIA
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Swing,T. K.: The FragileLeaves of the Sybil:Dante’s Master Plan, Westminster, 1962.

158
OS PENSADORES

nquanto em Paris a filosofia esco- problema das relações entre a razão e a

E lástica atingia seu ponto maior de


desenvolvimento com a síntese

bíblica e os conceitos da razão aristoté­


fé. Para Scot, as verdades da fé não
podem ser compreendidas e demons­
tomista entre as verdades da revelação
tradas pela razão, constituindo meros
credibilia (o que pode ser crido). Em
lica, no arquipélago britânico o pensa­ consequência, Duns Scot separa radical­
mento medieval trilhava rumos bem mente a teologia da filosofia e não admi­
diferentes. Radicados numa experiência te que a primeira possa ter qualquer
de vida à margem da Europa continental fundamentação racional, devendo
— não obstante todos os pontos comuns apoiar-se exclusivamente na revelação.
—, os ingleses seguiram caminho próprio A teologia não seria uma disciplina teó­
no domínio das idéias, como se através rica, mas prática, limitando-se a forne­
delas tentassem expressar suas peculia­ cer ao cristão normas reguladoras para
ridades econômicas, sociais e políticas e sua conduta. Por outro, lado, a filosofia
seus desejos de afirmação autônoma, pode proclamar sua independência em
diante das pretensões universalizantes relação à teologia, deixando de ser sua
do pensamento continental, romanizado. serva, como fora em toda a Idade Média.
Dentro dessa perspectiva mais ampla, Esse início de autonomia da razão, reali­
pode-se compreender melhor o trabalho zado por Duns Scot, viria a ter conse­
desenvolvido na Universidade de Ox­ quências profundas no desenvolvimento
ford, no século XIII, particularmente posterior da filosofia.
por Robert de Grosseteste (1168-1253) Outro ponto fundamental de separa­
e Roger Bacon (1214 - 1294). O pri­ ção entre o pensamento de Duns Scot e o
meiro aplica a linguagem matemática à tomismo encontra-se na teoria da essên­
explicação dos fenômenos naturais e o cia. Para Santo Tomás, as essências
segundo defende o primado da experiên­ constituem universais que tornam inteli­
cia, inclusive no campo religioso; ambos gíveis os seres particulares. Desse modo,
repelem a abstração e a silogística o conhecimento só poderia dar-se no
escolásticas, considerando-as insufi­ domínio das essências universais, aque­
cientes para que o homem seja capaz de las formas mediante as quais são deter­
compreender as coisas. minados todos os seres individuais.
Igualmente dentro dessas coorde­ Duns Scot contrapõe-se a essa tese, afir­
nadas de contestação da escolástica e de mando que o universal e o individual
abertura de novos caminhos situa-se a estão contidos indiferentemente na es­
obra de John Duns Scot, nascido na sência. Isso significa que o real não é
Escócia, por volta de 1270, e falecido pura universalidade, pois esta fragmen­
prematuramente em 1308. ta-se nos diferentes indivíduos. Por
Seus objetivos não eram fundamental­ outro lado, significa também que o real
mente filosóficos, mas religiosos; prepa­ não é pura individualidade, o que pode
rar o cristão para receber a graça de ser comprovado pelas idéias gerais. As
Deus e fazê-lo penetrar-se pelo amor essências não seriam, portanto, apenas
divino. Para Duns Scot, a fé, o amor e a universais, mas também individuais. É o
ação têm maior importância para a sal­ que revela o conceito de estidade (em
vação do que a ciência; a verdade encon- latim: haecceitas), a mais original con­
trar-se-ia nos textos bíblicos tal como tribuição filosófica de Duns Scot.
interpretados pela tradição da Igreja, Com a teoria da estidade Duns Scot
cujas decisões estariam isentas de qual­ afasta da filosofia a preocupação exclu­
quer possibilidade de erro. siva com as essências universais e trans-
Duns Scot coloca-se, assim, em posi­ cedentes e formula o início de uma con­
ção diametralmente oposta à de Santo cepção que atribui estatuto de ciência ao
Tomás de Aquino, no que diz respeito ao aqui e agora. Essa legitimação racional
do individual e do imediato parece conti­
nuar a tradição inglesa, já evidenciada
Página anterior: retrato de Duns Scot em Roger Bacon, de valorização da
por Giusto di Gand e Berruguete, experiência. Pode ser interpretada tam­
Palácio Ducal de Urbino. (Scala.) bém como formulação, no plano da pura

160
DUNS SCOT E OCKHAM

filosofia, da necessidade de fundamentar


a justificativa da própria peculiaridade
da experiência cultural inglesa, que,
através de seus filósofos, reconhecia-se
individualizada e contraposta à univer­
salidade cultural e política do continente
europeu.

Um franciscano rebelde
Os elementos de dissolução da esco-
lástica continental, contidos no pensa­
mento de Duns Scot, seriam levados
muito mais adiante pelo seu discípulo
William de Ockham, nascido no condado
de Surrey, por volta de 1290. Desde
muito cedo, Ockham interessou-se pelos
estudos teológicos e ingressou na Ordem
dos Franciscanos. De 1315 a 1323
ministrou aulas em Oxford, fez-se ba­
charel e preencheu os requisitos para o
doutorado, com uma série de conferên­
cias sobre as Sentenças de Pedro Lom-
bardo (1095-1160). Não recebeu,
porém, o título porque as autoridades
papais consideraram demasiado hetero­
doxas as suas teses. Iniciava-se, assim,
a história de sua oposição à ortodoxia
papal. Essa oposição, por um lado,
Duns Scot, o Doutor Sutil, opôs-se, como manifestava o próprio conflito político
os demais membros da Ordem dos entre o poder temporal dos reis ingleses
Franciscanos ingleses, às contra o poder espiritual dos papas; por
soluções tomistas para o problema outro lado exprimia a oposição das
das relações entre a razão e a fé. tendências empiristas da filosofia ingle­
sa ao racionalismo universalizante do
pensamento europeu continental.
Ockham afirmava que “assim como
Cristo não veio ao mundo a fim de tomar
dos homens seus bens e direitos, o vigá­
rio de Cristo (o papa), que lhe é inferior
e de modo algum o iguala em poder, não
tem autoridade ou poder para privar os
outros de seus bens e direitos”.
Por afirmações como essa e todas as
suas implicações, Ockham lançava os
fundamentos do espírito laico. Como
resultado, durante toda a vida esteve em
permanente conflito com as autoridades
da Igreja Romana. Em 1325, foi confi­
nado no convento franciscano de Avi-
nhão, até 1326, esperando a conclusão
Tomando o partido do papa Bonifácio de um processo que condenou seus “he­
VIII, em luta contra Filipe, o Belo, réticos e pestilentos comentários”. No
Scotfoi banido da França pelo rei. ano seguinte envolve-se em disputa
(Filipe, o Belo, recebe o delegado do sobre as ordens mendicantes e corre
papa Bonifácio; Bibl. Nac., Viena.) novo perigo de condenação. Alia-se

161
OS PENSADORES

A Universidade de Oxford, no século XIII, foi centro dos movimentos culturais


ingleses, que se opunham às tendências desenvolvidas na Universidade de
Paris. Enquanto na capitalfrancesa os filósofos caminhavam no sentido da
mais completa racionalização da fé, os ingleses evoluíam no sentido de
separar a religião da filosofia e fundamentavam a tendência empirista.

então ao imperador Luís da Baviera, que universais são, portanto, apenas pala­
tinha colocado um antipapa no trono vras (em latim, nome, donde a expressão
pontificai romano, opondo-se ao papa de “nominalismo” para a teoria de Ock­
Avinhão. As disputas políticas de Ock­ ham). Sendo somente signos, servem
ham continuariam até sua morte, ocor­ para designar um conjunto de seme­
rida por volta de 1349. lhanças ou identidade de caracteres,
O fundamento filosófico do seu com­ abstraídos das coisas individuais pelo
portamento rebelde encontra-se em sua intelecto humano.
doutrina sobre os universais. A teoria da O nominalismo trazia consigo conse­
estidade, elaborada por Duns Scot, tinha qüências da maior importância para a
dado um passo para a negação da reali­ história das idéias. A primeira era a
dade dos universais; Ockham não titu­ transformação de toda ciência em conhe­
beou em percorrer o novo caminho até cimento empírico dos indivíduos, posto
suas últimas conseqüências. Em última que, por um lado, só eles constituiríam a
instância, ele retira dos universais toda verdadeira realidade e, por outro, por­
e qualquer realidade ontológica. Afirma que os indivíduos são conhecidos pri­
que os universais não têm realidade mordialmente no plano da experiência.
objetiva, existindo apenas no intelecto Para Ockham, o conhecimento concei­
humano e como algo produzido por ele; tuai ou abstrativo é confuso e indetermi­
não têm realidade nem nas coisas indivi­ nado, pois apreende apenas os caracte­
duais, nem mesmo na mente divina. Os res comuns a vários objetos e deixa

162
DUNS SCOT E OCKHAM

O palácio de Avinhão (hoje centro cultural) foi sede do papado durante quase
todo o século XIV, como resultado da interferência dos soberanos franceses
na Igreja. Ockham participou das lutas entre o poder temporal e o poder
espiritual, defendendo os reis contra os papas em várias de suas obras, como,
por exemplo, as Oito Questões sobre o Poder e a Autoridade dos Papas.
escapar o que eles têm de particular e
que os distingue dos demais.
Outra conseqüência do nominalismo
consistiu no abismo criado entre o
conhecimento científico (dos seres indi­
viduais, concretos, encontrados na natu­
reza) e os domínios do pensamento reli­
gioso. A fé não poderia encontrar
qualquer apoio na razão, pois os dois
campos seriam indiferentes e alheios um
ao outro. A teologia não seria, portanto,
uma ciência racional e Deus não teria
qualquer interesse para a filosofia. Ciên­
cia e religião eram duas vias paralelas,
“duas verdades” independentes.
A contraparte dessa separação radical
entre a fé e a razão, entre a teologia e a
filosofia, situa-se na oposição entre o
poder espiritual e o poder temporal,
entre o papa e o imperador.
O ocamismo foi, assim, nítida expres­
são da dissolução do espírito medieval.
A filosofia escolástica — que centralizou
O papado transferiu-se para Avinhão sua atenção na tentativa de formular
depois das lutas entre Filipe, o Belo, uma visão universalizante do mundo —
e Bonifácio VIII, acima retratado em chegava ao seu fim. Anunciavam-se as
afresco atribuído ao pintor Giotto. inovações renascentistas e abria-se ca­
(Basílica de São João Latrão, Roma.) minho ao espírito da modernidade.

163
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1266 (?) — John Duns Scot 1302 — Regressa a Paris. 1323 — Ockham é acusado
nasce em Maxton, condado 1303 — Bonifácio VIII ex­ de defender doutrinas heréti­
de Roxburgh, Escócia. comunga Filipe, o Belo. cas.
1277 — Duns Scot entra Scot é banido da França em 1324 — Intimam-no a res­
para o convento franciscano razão de sua oposição ao ponder às acusações. João
de Dumfries. rei. Morre Bonifácio VIII. XXII excomunga Luís da
1281 — Passa a pertencer à 1305 — Scot torna-se dou­ Baviera.
ordem dos menores. tor em teologia. Clemente 1325 — Ockhamfica confi­

BRASIL.
1285 — Filipe IV, o Belo, torna-se papa. nado no convento francisca­
torna-se rei da França. 1308 — Morre Scot. Fun­ no deAvinhão até 1326.
1290 — Fundação da Uni­ dação da Universidade de 1330 — Negociações entre

-
versidade de Lisboa. Coimbra. Luís da Baviera e João

SÃO PAULO
1290 (?) — William de 1313 — Nasce Boccaccio. XXII.
Ockham nasce no condado 1314 — Morte de Filipe, o 1333 — Ockham viaja em
de Surrey, Inglaterra. Belo. companhia do imperador
1291 — Scot ordena-se pa­ 1315 — Ockham leciona Luís da Baviera.
dre. Estuda em Paris até em Oxford até 1323. 1334 — Morre João XXII.

- E INDUSTRIAI.
1293. 1316 — Inicia-se o pontifi­ 1347 — Morre Luís da
1294 — Bonifácio VIII tor­ cado de João XXII. Baviera.
na-se papa. 1322 — Conflito entre João 1348 — Boccaccio começa
1300 — Scot começa a en­ XXII e os franciscanos so­ a escrever o Decamerão.
sinar teologia em Oxford. bre a pobreza apostólica. 1349 (?) — Morre Ockham.

- ABRIL S.A. CULTURAL


BIBLIOGRAFIA
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1935.
Moody, E. A.: Truth and Consequence in Medieval Logic, Amsterdam, 1953.

164
OS PENSADORES

o ano de 1513, na cidade italiana sinatos e espoliações de governantes têm

N de San Casciano, um exilado sido atribuídas à inspiração de O Prínci­


político ocupa-se todas as ma­ pe, e chegam a ter algum valor para
nhãs com administrar a pequena compreender-lhe
priedade a que está confinado e, à tarde,
pro­ o significado. Mas,
freqíi entemente, servem apenas para
joga cartas numa hospedaria com pes­ deformar-lhe o conteúdo mais profundo
soas simples do povoado. À noite, veste e a relevância dentro da história das
trajes de cerimônia e passa a conviver, idéias. Conteúdo e relevância que só
através da leitura, com homens ilustres podem ser apreendidos quando se conhe­
do passado. cem as circunstâncias em que a obra
Chama-se Maquiavel, é de estatura veio à luz, dentro do quadro da vida pes­
média, magro, fronte larga, olhos pene­ soal do autor e das coordenadas econô­
trantes e lábios finos. Ao meditar sobre micas, sociais e políticas da Europa dos
assuntos políticos, alia o fecundo diá­ séculos XV e XVI. A essas condições vin­
logo com autores antigos à longa expe­ cula-se a situação especial da Itália, pá­
riência do mundo moderno, adquirida tria de Maquiavel.
numa vida inteira dedicada aos negócios
públicos florentinos. Um dos resultados Um país turbulento
dessa meditação é um pequeno livro, O
Príncipe, que contém ensinamentos de
Na Itália do Renascimento reina gran­
como conquistar Estados e conservá-los
de confusão. A tirania impera em peque­
sob domínio; em síntese, um manual
nos principados, governados despotica­
para governantes.
mente por casas reinantes sem tradição
O autor dedicou-o a Lourenço II
dinástica ou de direitos contestáveis. A
(1492-1519), potentado da família dos
ilegitimidade do poder gera situações de
Médicis e duque de Urbino, mas o sobe­
crise e instabilidade permanente, onde
rano acolheu friamente a dádiva e não
somente o cálculo político, a astúcia e a
teve tempo para aprender-lhe as lições,
ação rápida e fulminante contra os
pois faleceu logo depois. Outros, no
adversários são capazes demanter o prín­
entanto, parece que souberam aprovei­
cipe. Esmagar ou reduzir à impotência a
tá-las muito bem. Foi o que demonstrou,
oposição interna, atemorizar os súditos
por exemplo, o monarca inglês Henrique
para evitar a subversão e realizar alian­
VIII (1491-1547), ao forjar o célebre
ças com outros principados constituem o
caso da anulação do matrimônio com
eixo da administração. Como o poder se
Catarina de Aragão (1485-1536); esse
funda exclusivamente em atos de força, é
ardil foi que lhe permitiu separar a Igre­
previsível e natural, que pela força seja
ja britânica da Santa Sé, espoliar siste­
deslocado, deste para aquele senhor.
maticamente os mosteiros e consolidar
Nem a religião, nem a tradição, nem a
seu poder absoluto.
vontade popular legitimam o soberano e
Diz -se que também Catarina de Médi­
ele tem de contar exclusivamente com
cis (1519-1589), rainha-mãe da França,
sua energia criadora. A ausência de um
teria seguido os ensinamentos de Ma­
Estado central e a extrema multipolari-
quiavel ao jogar católicos contra protes­
zação do poder criam um vazio, que as
tantes e ordenar o famoso massacre de
1572. Com isso manteve a soberania mais fortes individualidades têm capaci­
dade para ocupar.
para os filhos, indolentes e incapazes de
agir maquiavelicamente como a mãe. Os condottieri são hábeis nisso. Espe­
Ela era filha de Lourenço, ao qual tinha cialistas na técnica militar, aventureiros
sido dedicada a obra que, adolescente e filhos da fortuna, vendem serviços de
ainda, certamente leu interessada. segurança e conquista ao príncipe que
Essa e outras estórias de ardis, assas- melhor pague. Os pequenos Estados não
têm recursos para financiar tropas regu­
lares e não é politicamente possível a
Na páqina anterior: Santi di Tito, criação de exército, o que implica a
retrato de Maquiavel, Palazzo Vecchio, entrega de armas ao povo, fato perigoso
Florença. (Foto Fabbri) para governantes de populações descon-

166
MAQUIAVEL

MONDADORI

Antes de se tornar déspota e tirano, como a maioria dos príncipes italianos da


Renascença, o jovem herdeiro aprende a gramática latina e a retórica,
a fim de ler corretamente os grandes autores clássicos. Aprende também a arte
da equitação e pode passear pelas ruas da cidade, acompanhado por
jovens criados. (Miniatura da Gramática de Donato, Biblioteca Amhrosiana, Milão.)

167
OS PENSADORES

ARBORIO MELLA
Os papas renascentistas desempenharam papel ativo na política italiana.
Alexandre VI (retrato de anônimo do séculoXV), pai de César Bórgia,
foi o inspirador de suas ações de conquista. Júlio II, da família dos Médicis
(retrato de Rafael), foi um guerreiro preocupado em expulsar os “bárbaros”
da península. (Pinacoteca Vaticana, Roma e Galleria degli Uffizi, Florença.)
tentes. Os condottieri adquirem impor­ poderio espanhol, francês e inglês. Na
tância crescente e alguns conquistam verdade, o capitalismo comercial já
principados para si e estabelecem alian­ tinha quase dois séculos na Itália quan­
ças com reis, cardeais e papas. do surgiu nos demais países e funda­
Esse panorama fluido e mutável, de mentou as monarquias absolutistas.
um país dividido em múltiplos Estados, Mas seu desenvolvimento na península
contrasta com a situação da maior parte foi diferente e a congelação do capita­
da Europa ocidental, em que alguns lismo italiano parece ter resultado do
governos enfeixam todo o poder, e sofre próprio êxito econômico, expressado
as conseqiiências de um permanente sob a forma de uma expansão bem suce­
intervencionismo. Os principados italia­ dida do capital mercantil e financeiro. A
nos apelam freqiien temente para as nascente economia comercial italiana, a
monarquias absolutas européias, a fim partir do século XI, articulava-se com o
de solucionar as disputas internas; com mundo feudal circundante, estreitando
isso a Itália torna-se vítima impotente. vínculos de dependência recíproca. A
Alguns pequenos Estados sofrem a sobe­ clientela era constituída pela Igreja,
rania do Império Germânico, e França e Estados feudais, grandes senhores de
Espanha disputam a posse de vários de terras, cortes aristocráticas e camadas
seus territórios. superiores da burguesia, assim como
É estranho que tudo isso acontecesse pelas coroas representativas dos interes­
num país cuja economia tinha conhecido ses dos novos Estados nacionais euro­
muito antes as formas responsáveis pelo peus. As necessidades de consumo desses

168
MAQUIAVEL

gigantescos aparelhos de Estado, em


vias de aparecimento.
A produção manufatureira, instalada
nos territórios dos antigos clientes ita­
lianos procura ampliar mercados, abai­
xando os preços dos produtos e estabele­
cendo medidas de rígida política
protecionista. Apesar disso, a deca­
dência acentua-se, especialmente depois
da queda de Constantinopla para os tur­
cos, em 1453, e da descoberta do cami­
nho marítimo para as índias, em 1494,
acontecimento que deu primazia aos
portugueses e espanhóis no comércio
com o Oriente.
A fraqueza militar e política da penín­
sula, já no começo do século XIV, repre­
senta forte impedimento para expansão
e acumulação de capital. Periodica­
mente, organizam-se progrons antilom-
bardos e as cidades italianas não têm
como se garantir das declarações de
falência dos reis europeus. A Itália é,
assim, desarmada política, militar e
institucionalmente pelo anacronismo da
organização das cidades-Estado e pela
ausência de liderança central incontras-
tável. A essas razões acrescenta-se a
O papa Leão X, também da família dos política temporal do papado que, não
Médicis, consolidou o poder temporal sendo suficientemente forte para reduzir
do papado e procurou anular a todos os Estados ao seu domínio, não é
influência estrangeira. (Quadro de também tão fraco a ponto de impedir a
Rafael, Galleria degli Uffizi, Florença.) unificação, através da figura de um prín­
cipe secular.
setores especializaram a economia na No século XV são evidentes os sinto­
produção de tecidos caros, no comércio mas da decadência. Florença envia seu
de especiarias do Oriente e nos negócios último navio para a Inglaterra em 1480.
bancários com os potentados dos demais Lourenço, o Magnífico (1449-1492), e
países. Essa solidariedade entre a econo­ Júlio de Médicis (1453-1478) instalam
mia italiana e as condições e contradi­ manufaturas de lanifício no arquipélago
ções características da Europa medieval britânico e 33 bancos florentinos trans­
acarretará sua ruína, quando ocorrer a ferem suas sedes para Lyon, na França.
decadência da ordem feudal. Por outro
lado, a relativa facilidade com que os
senhores feudais são afastados do poder Um jovem entra na história
nos núcleos burgueses mais fortes elimi­
na a necessidade de unificação nacional É nesse panorama de crise econômica
como tarefa socialmente necessária. A e política que Nicolau Maquiavel vem à
burguesia dispensa o monarca como luz, em Florença, no dia 3 de maio de
peça essencial para submeter os senho­ 1469, filho de Bernardo, advogado
res feudais, como ocorreu no caso clás­ pertencente aos ramos mais pobres da
sico da França. Ela mesma se concebe nobreza to scan a. Pouco se sabe dos pri­
como aristocracia reinante, mas a orga­ meiros anos de vida de Nicolau e de sua
nização estatal resultante sofre de uma educação, não indo as informações além
debilidade insanável, mostrando-se to- de que leu muito os clássicos latinos e
talmente incapaz de fazer frente aos italianos, mas não dominou o grego.

169
OS PENSADORES

TL PRÍNCIPE
DÍ NICOLO MACHIAVELLk
AL MAGNÍFICO LORENZO
Dl PIERO DE MEDICL
•/
LA V 1 T A
Dl CASTRVÓCIO CASTRACANI .
\ DA L V C C A.
ItMODOGHE.TE.NHE
1 IL DVC A VALENT1NO
PER AMMA12AR.E VlTELLÒZZO VlTEÍlI,
Oliverotto da Fermo, II Sicnór Pagoio,
ET IL DvcA Dl GRAVINA.

I R T T R AT T I
DELLE COSE' DELLA FR AN ÇJA'
ET D E 1É* At AM AGNA.

NL D. L.

Frontispício de uma edição de obras de Maquiavel, incluindo O Príncipe,


dedicado a Lourenço de Médicis. (1550, Biblioteca Nacional Braidense, Milão.)

170
MAQUIAVEL

Do fim da adolescência em diante sua


biografia confunde-se com a história de
Florença e da Itália, da qual nâo pode
ser desligada sob pena de nào ser possí­
vel compreender-lhe o significado.
Em 1494, quando os Médicis são
expulsos de Florença e instala-se o seve­
ro regime republicano do monge Savo-
narola (1452-1498), Maquiavel inicia-
se na vida pública, trabalhando na
chancelaria em cargos de pouca impor­
tância. Quatro anos depois, a oposição
interna, sustentada pelo papa Alexandre
VI (1431-1503), depõe, enforca e quei­
ma Savonarola, e Maquiavel é indicado
para o posto de Segundo Chanceler da
República.
Como funcionário permanente, é mero
executor das decisões dos ottimati, em
nome dos quais administra os negócios e
relações externas da república. È comis­
sionado no Conselho dos Dez da Guerra
e enfrenta os problemas decorrentes da
decadência do imperialismo florentino
em relação às cidades vizinhas, apoia­
das por potências estrangeiras. Espe­ Os feitos de conquista do condottiere
cialmente importante é a longa guerra César Bórgia inspiraram a figura do
contra Pisa, bastião comercial e princi­ príncipe ideal de Maquiavel. (Suposto
pal escoadouro dos produtos de Floren­ retrato de César Bórgia, atribuído
ça. O episódio mais marcante do conflito a Albello Meloni — 1497-1530 hoje
é o da participação do condottiere Paolo na Academia Carrara, Bérgamo.)
Vitelli, comandante das tropas florenti-
nas. Depois de algumas vitórias signifi­
cativas, Vitelli detém-se às portas da ci­ com que os franceses se aliem também
dade inimiga, não desfecha o ataque- ao papado, pondo em cheque os interes­
final e é acusado de fazer jogo duplo. ses florentinos em Rimini, Pesaro, Urbi-
Alega razões de conveniência militar e no, Faenza e Imola. Apesar disso, em
nega todas as acusações de ter-se vendi­ 1499, as tropas franco-florentinas ata­
do aos pisanos, mas, apesar dos protes­ cam e sitiam Pisa, mas não conseguem a
tos de inocência, é executado. vitória. O soberano francês, Luís XIII
A “questão Vitelli” suscita pela pri­ (1462-1 515), atribui o fracasso à estrei-
meira vez um dos temas permanentes da teza da burguesia de Florença, incapaz
obra de Maquiavel: a necessidade de de cuidar devidamente do aprovisiona-
organização de uma milícia nacional, mento das forças,e Maquiavel é enviado
formada por soldados locais discipli­ à corte do monarca, como assessor de
nados. A soberania política — pensa ele. Francesco delia Casa.
— depende de exército próprio, consti­ Com os franceses aprende como era
tuído por soldados leais e convictos de insignificante o peso de um pequeno Es­
que lutam pela causa da pátria. tado como Florença nas relações inter­
Em setembro do mesmo ano do ataque nacionais e, principalmente, que se deve
frustrado a Pisa celebra-se finalmente a confiar pouco em aliados demasiada­
paz entre Florença e França, que até mente poderosos.
então apoiava Pisa, mas agora necessi­ Outras embaixadas seriam feitas pelo
tava de mãos livres para dominar o reino secretário florentino, junto a César Bór­
de Nápoles. Ao mesmo tempo, a intrin­ gia (147 5-1507) e ao papa Júlio II
cada política italiana da Renascença faz (1445-1513), e com ambos aprendería

171
OS PENSADORES

também lições fundamentais sobre a assim sempre presente a seu espírito


ciência e a técnica da política. quando elaborar sob forma teórica a
César Bórgia, filho do papa Alexandre prática política vivida. O tema da distin­
VI e poderoso condottiere, invade Faen- ção entre meios e fins políticos, do ponto
za em 1501 e avança sobre Florença, de vista ético, a arte do governo e o pro­
exigindo o retomo dos Médicis e um jeto de unificação italiana inspirar-se-âo
contrato como defensor da cidade. O na vida e nos atos do condottiere.
território florentino do Vai de Chiana se Uma nova fase da guerra contra. Pisa
subleva e facilita a entrada do invasor. encontra Maquiavel transformado em
Enquanto isso, os aliados franceses hesi­ propugnador das milícias locais, forma­
tam em socorrer Florença e a república das por elementos não mercenários. De­
ameaçada envia Maquiavel, juntamente pois de vencer a resistência dos cidadãos
com Francesco Soderini, bispo de Vol- à idéia, consegue vê-la transformada em
terra, para parlamentar e ganhar tempo realidade com a criação dos Nove das
do invasor. Finalmente as tropas france­ Milícias, organismo do qual será chan­
sas decidem intervir e as forças do celer. Em 1506 escreve um Discurso
condottiere abandonam os territórios Sobre a Preparação Militar Florentina,
ocupados. onde afirma que os Estados e gover­
O episódio tem grande importância nantes dependem de dois fatores princi­
para Maquiavel, porque foi o primeiro pais: justiça e armas. Por justiça enten­
encontro com aquele que viria a ser o de um conjunto de boas instituições,
modelo de O Príncipe e por fazer germi­ mantenedoras da ordem e da estabili­
nar uma parte de sua produção teórica dade sociais, bases sobre as quais pos­
posterior. Encarregado de fazer um rela­ sam ser construídas as virtudes cívicas.
tório sobre como tratar os revoltados do Florença não tem nem armas nem justi­
Vai de Chiana, Maquiavel afirma ser a ça, mas poderia possuir ambas com a
história a mestra dos atos humanos, criação da Milícia Nacional, capaz de
especialmente dos governantes, e que o originar a transformação moral dos
mundo sempre foi habitado por homens florentinos. Outro tema típico de Ma­
com as mesmas paixões, sempre exis­ quiavel, aflorado no Discurso, é o da
tindo governantes e governados, bons e religião como ideologia. O autor dá ên­
maus súditos. Aqueles que se rebelam fase à necessidade de os soldados rece­
devem, portanto, ser punidos. Aprova a berem cuidadosa preparação religiosa, a
tolerância para com os habitantes do fim de tornarem-se mais obedientes.
Vai, mas discorda do tratamento apli­
cado em relação a Arezzo. As tropas de
César Bórgia ainda estavam por perto e Nasce o pensador
era perigoso permitir um foco de rebe­
lião nos limites da cidade. Maquiavel A despeito da criação das milícias e
acha que Arezzo deveria sofrer punição de todo o empenho de seu chanceler, a
exemplar, tal como fizeram os romanos carreira política de Maquiavel estava
com Cartago. para sofrer sério abalo. Enquanto Flo­
Nas novas condições de guerra e da rença alia-se aos franceses, o papado
política interna florentina, fortalece-se o inclina-se pela Espanha e a oposição de
poder executivo e Maquiavel transfor­ interesses tem como resultado a derro­
ma-se na eminência parda do regime, cada dos governantes da cidade. Um
com a designação de Piero Soderini para pequeno exército cerca Florença e, ao
o cargo de gonfaloneiro vitalício. Em mesmo tempo, eclode um levante interno
1 503 é designado para nova missão pelo retomo dos Médicis. O gonfaloneiro
junto a César Bórgia e com ele passa Piero Soderini é destituído do poder e
uma temporada de três meses. O filho do Maquiavel não tem mais lugar na nova
papa Alexandre VI representa para ordem de coisas. É preso, torturado,
Maquiavel o homem providencial, capaz acusado de sedição e confinado em sua
de unir a Itália, opondo barreiras às propriedade particular de San Casciano.
intervenções estrangeiras. A reflexão Em San Casciano, Maquiavel procura
sobre o destino de César Bórgia estará reconquistar os favores da família que

172
MAQUIAVEL

Um pintor anônimo do séc. A^V representou o suplício do monge Savonarola no


dia 23 de maio de 1498, em Florença. Logo depois, Maquiavel iniciou intensa
carreira política, que lhe forneceu os elementos essenciais para a reflexão
histórica e social encontrada em O Príncipe. (Igreja de São Marcos, Florença.)

173

_rr^— ....... ,
OS PENSADORES

reassumira o poder; escreve O Príncipe e


o dedica a Lourenço dé Médicis. Não
atinge o intento na extensão desejada,
mas de qualquer forma consegue voltar
para Florença. Desse período de exílio, e
dos anos seguintes, são os Discursos
sobre a Primeira Década de Tito Lívio,
talvez a mais importante de suas obras,
do ponto de vista estritamente científico.
Escreve também um poema chamado O
Asno, um agradável conto, O Demônio
que se Casou, também conhecio como
Belfagor, e a comédia teatral A Mandrá-
gora, obra-prima do teatro italiano.
Em 1520 redige o diálogo A Arte da
Guerra e, logo depois,a Vida de Castruc-
cio Castracani, uma espécie de biografia
romanceada do condottiere Lucano, no
qual vê a figura ideal — como já tinha
visto em César Bórgia — do novo prínci­
pe, necessário para a unificação da
Itália.
No mesmo ano toma-se historiador
oficial da república, função para a qual
é indicado pelo Studio, Universidade de
Florença. Escreve um Discurso endere­
çado ao papa Leão X (1475-1521), da
família dos Médicis, no qual aconselha o
pontífice a restaurar as antigas liberda­
des da república florentina. No novo
cargo oficial põe-se a escrever as Histó­
rias Florentinas, obra de grande extert-
são, da qual oferece oito volumes, em
1525, ao novo papa, Clemente VII
(1478-1534), também da família dos
Médicis. Compõe uma comédia, Clizia,
imitação livre da Casina de Plauto, sati­
rizando o seu próprio caso amoroso com
uma cantora chamada Bárbara. Maquia­
vel estava casado desde 1501 com
Marietta Orsini, que lhe deu cinco
filhos, mas não foi um marido inteira­
mente fiel.
A vida amorosa, no entanto, não era o
mais importante. Ele amava sobretudo a
cidade que o viu nascer e os assuntos de
Estado. Por isso, continua fazendo o
possível para voltar à vida pública, da
qual tinha sido excluído em 1513. A
oportunidade chega em 1526, quando é
nomeado secretário dos Cinco Provedo­
res das Muralhas, cargo no qual deveria
O jovem Lourenço de Médicis, a quem cuidar das fortificações da cidade e tra­
foi dedicado O Príncipe, retratado tar da defesa em geral.
por Botticelli como personagem do Em 1527, o saque de Roma pelas for­
quadro A Adoração dos Magos. ças do imperador Carlos V (1500-1558),

174
MAQUIAVEL

do Sacro Império Romano-Germânico, O universo mental de Maquiavel é


liberta Florença do jugo dos Médicis. O completamente diverso. Em San Cascia-
acontecimento é saudado por Maquia­ no, tem plena consciência de sua origi­
vel, que via nele a possibilidade de vol­ nalidade e trilha um novo caminho.
tar ao comando da chancelaria. Mas os Deliberadamente distancia-se dos trata­
novos poderosos da república esquece­ dos sistemáticos da escolástica medieval
ram-se do amor que ele sempre teve pela e, à semelhança dos renascentistas preo­
cidade e por sua liberdade. Foi o último cupados com fundar uma nova ciência fí­
de seus desapontamentos e o mais pro­ sica, rompe com o pensamento anterior,
fundo. Não resistindo, toma-se presa através da defesa do método de investi­
fácil da doença e falece no dia 21 de gação empírica. Assim como Leonardo
junho de 1 527, com 58 anos de idade. da Vinci (1452-1519) observa que a
experiência jamais engana e o erro é
A ciência política produto do pensamento especulativo,
quando dele se quer tirar conseqiiências
Maquiavel faleceu sem ter visto reali­ físicas, assim também Maquiavel propõe
zados oS ideais pelos quais se bateu estudar a sociedade pela análise da ver­
durant,e toda a vida. A carreira pessoal dade efetiva dos fatos humanos, sem
nos negócios públicos tinha sido cortada perder-se em vãs especulações. O objeto
pelo meio com o retomo dos Médicis e, de suas reflexões é a realidade política,
quando estes foram destituídos do pensada em termos de prática humana
poder, os concidadãos esqueceram-se concreta, e o centro maior de seu inte­
dele, um homem que a fortuna tinha resse é o fenômeno do poder formalizado
feito capaz de discorrer apenas sobre na instituição do Estado. Não se trata de
assuntos de Estado. Também não foi estudar o tipo ideal de Estado, mas
concretizado, enquanto viveu, o ideal de compreender como as organizações polí­
uma Itália poderosa e unificada. ticas se fundam, se desenvolvem, persis­
Deixou porém um valioso legado: o tem e decaem.
conjunto de idéias elaborado em cinco Esse exame que se pretende pura­
ou seis anos de meditação forçada pelo mente empírico depende, contudo, de
exílio. Talvez nem ele mesmo soubesse duas coordenadas teóricas básicas: uma
avaliar a importância desses pensa­ filosofia da história e uma explicação da
mentos dentro do panorama mais amplo psicologia humana. A primeira concebe
da história, pois especulou sempre sobre o fenômeno histórico não como a idéia
os problemas mais imediatos que se cristã, segundo a qual o desenrolar dos
apresentavam. Apesar disso, revolu­ fatos humanos no tempo cumpre desíg­
cionou a história das teorias políticas, nios divinos, dirigindo-se linearmente
constituindo um marco que a dividiu em para o juízo final, mas como constituído
duas fases distintas. por ciclos, que se renovam em movimen­
Até então, a teoria do Estado e da tos de revolução em tomo de si mesmos.
sociedade não ultrapassava os limites da Os fatos históricos repetem-se nas linhas
especulação filosófica. Em Platão (428 mestras; conhecê-los é apossar-se de um
-348 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.), material de recorrência, essencial para o
Tomás de Aquino (1 225-1274) ou Dante estudo do presente.
(1265-1321), o estudo desses assuntos Tal concepção do acontecer histórico
vinculava-se à moral e constituía-se complementa-se com uma compreensão
como teoria de ideais de organização da psicologia humana. Maquiavel con­
política e social. À mesma regra não clui, através do estudo dos antigos e da
fogem seus contemporâneos, como Eras­ intimidade com os potentados da época,
mo de Rotterdam (1465-1536) no Ma­ que os homens são todos egoístas e
nual do Príncipe Cristão, ou Thomas ambiciosos, só recuando da prática do
More (1478-1535) na Utopia, que, na mal quando coagidos pela força da lei.
base de um humanismo abstrato e des­ Os desejos e as paixões seriam os mes­
carnado de matéria concreta, constroem mos em todas as cidades e em todos os
modelos ideais do bom governante de povos.
uma sociedade justa. A história e a psicologia, assim enten-

175
OS PENSADORES

didas, não são apenas instrumentos teó­


ricos, mas também guias para a ação,
possibilitando a elaboração de um con­
junto de técnicas e procedimentos que
estatuem os cânones de uma arte de
governo. Segundo Maquiavel, quem ob­
serva com diligência os fatos do passado
pode prever o futuro em qualquer repú­
blica e usar os remédios aplicados desde
a Antiguidade ou, na ausência deles,
imaginar novos, de acordo com a seme­
lhança de circunstâncias entre o passado
e o presente.
Para Maquiavel, a psicologia desen­
volvida em tomo do poder fundamenta o
conhecimento secular e autônomo do
político e o separa radicalrtiente da ética
e do direito. Determinadas as causas da
prosperidade e da decadência dos Esta­
dos antigos, pode-se assim compor um
modelo analítico para o estudo das
sociedades contemporâneas, já que às
mesmas causas correspondem os mes­
mos efeitos. Isso não significa, porém,
que o método empírico-comparativo for­
nece uma tipologia de situações-chaves,
no estilo de um manual dogmático. A
teoria científica, estruturada na repeti-
bilidade da história e na invariação do
comportamento humano, deve ser com­
pletada pela investigação das peculiari­
dades da circunstância sobre a qual se
pretende agir.

Liberdade e determinismo
Isolada a situação particular em suas
múltiplas determinações, e feitas as pre­
visões dos desdobramentos prováveis, a
ciência do fenômeno político cede lugar
à arte de bem governar. Assim, o saber
político triunfaria sobre a teoria da his­
tória e a ação humana não estaria conde­
nada a seguir um curso determinado
pelo destino, como nas tragédias gregas.
Embora a realidade determine os limites
da ação, as personalidades decididas e
empreendedoras interferiríam na histó­
ria. A ciência política, enquanto prática,
“ . . . não seifalar de seda ou lã, supera então a concepção de um uni­
benefícios ou perdas;preciso verso fechado e a de uma história cons­
discorrer sobre as coisas ao Estado ou truída por periódicos e inexoráveis
fazer voto de silêncio. ” (Retrato retornos.
de Maquiavel, Rosso Fiorentino, O desdobramento cíclico permanece,
Casa de Maquiavel em San Casciano.) para Maquiavel, o quadro teórico básico

2 76
MAQUIAVEL

de interpretação da história, enquanto


ciência. Ao desdobramento cíclico jun­
ta-se um outro nível de determinações
mais próximas e concretas, sobre as
quais Maquiavel não fornece indicações
rigorosas; compreende-as sob a denomi­
nação geral e clássica de fortuna.
A fortuna proporciona chaves para o
êxito da ação política e constitui a meta­
de da vida que não pode ser governada
pelo indivíduo. Ela proporciona a occa-
sione aproveitada pela virtu do gover­
nante. Em outros termos, o homem de
virtu é aquele que sabe o momento exato

MONDADORI
criado pela fortuna, no qual a ação pode­
rá funcionar com êxito. O estadista
sábio e prudente busca na história uma
situação semelhante e exemplar, da qual
saberia extrair o conhecimento dos
meios para a ação e a previsão dos efei­ Piero Soderini, gonfaloneiro da
tos. Para ser eficaz, a iniciativa política república florentina, apoiou Maquiavel
deve ajustar-se às circunstâncias. Na na criação das milícias. (Anônimo do
contabilidade de Maquiavel, os 50% séc. XVI, Palazzo Pitti, Florença.)
reservados ao arbítrio e à vontade huma­
na teriarn seu círculo de operações possí­
veis no espaço concreto de uma situação
determinada. A ação destinada ao êxito
seria então aquela que se exerce em
compatibilidade com le qualità de’
tempi, e os homens seriam felizes na me­
dida em que soubessem combinar seu
modo de agir com as particularidades do
momento. O necessário é manter-se à
frente dos acontecimentos, procurando
imprimir-lhes rumo e alternativas, dado
que a fortuna é um rio impetuoso e os
homens devem prevenir-se com a edifi­
cação de diques e barragens. A vontade
criadora não passa, assim, de um méto­
do para a ação, pois o agir humano está
condicionado pela necessidade.
O carisma da virtu é próprio daquele
que se conforma à natureza de seu
tempo, apreende-lhe o sentido e se capa­
cita a realizar praticamente a necessi­
dade latente nas circunstâncias. No uso
do instrumental dos mecanismos de
poder, a neutralidade moral decorrería
ARBORIO MELLA

da adequação do agir à realidade. O


homem político deve estar sempre atento
aos sinais da fortuna, pois conhecerá a
ruína se, mudando o tempo e as coisas,
não alterar seu comportamento.
Segundo Maquiavel, a história mostra O historiador Guicciardini opôs-se a
como o talento de alguns heróis foi Maquiavel, defendendo a solução dos
capaz de extrair das circunstâncias, isto problemas de Florença pela diplomacia.

177
OS PENSADORES

é, dos momentos propícios fornecidos


pela fortuna, uma orientação para a
iniciativa, perseguindo-a implacavel­
mente. Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu —
personagens maquiavélicas — criaram
grandes e duradouras instituições por­
que, acolhidos pela fortuna, tiveram
tirocínio para antecipar-se ao tempo e
firmeza para realizar novas obras na
oportunidade exata. A César Bórgia não
faltou valor para lançar-se à missão com
que a fortuna lhe sorria, nem presteza de
visão para reconhecer circunstâncias
favoráveis. No entanto, foi abandonado
pela fortuna, quando esteve próximo de
lograr seus objetivos, ao adoecer grave­
mente após a morte do pai, protetor e
inspirador de suas ações. Mas o irracio­
nal participa igualmente da história,
como na doença de Bórgia, e o que é
previsível nem sempre se consuma. Uma
atitude que desafia a fortuna pode, por­
tanto, freqiientemente premiar seu autor
com o êxito.
O homem de virtu é, assim, o inventor
do possível numa situação concreta
dada, e Maquiavel, no último capítulo
de O Príncipe, exorta a casa reinante dos
Médicis a constituir, dentre seus mem­
bros, o príncipe virtuoso da Itália, que
dela fizesse uma nação unificada.

Principados e repúblicas
Para Maquiavel, o essencial numa
nação é que os conflitos originados em
seu interior sejam controlados e regula­
dos pelo Estado. Em função do modo
pelo qual os bens são compartilhados, as
sociedades concretas assumem diferen­
tes formas. Assim, onde persista ou
possa persistir uma relativa igualdade
entre os cidadãos, o fundador de Estados
deve estabelecer uma república. Ocor­
rendo o contrário, manda a prudência
que seja constituído um principado. Se
não proceder assim, o governante forma­
rá um Estado desequilibrado e sem har­
As técnicas militares constituíram monia, que não poderá subsistir por
preocupação constante de toda a vida de muito tempo.
Maquiavel. O autor de O Príncipe O núcleo da organização do Estado
trata do assunto com Cosimo Rucellai residiría na ordem, que pode manifes­
e Fabrizzio Colonna. (Gravura de tar-se sob várias formas, mas que se
A. Focosi.) Abaixo, fragmento apresentaria basicamente como princi­
do manuscrito da Arte da Guerra. pados ou como repúblicas. As repúblicas
(Biblioteca Nacional de Florença.) apresentariam três modalidades: a aris-

178
MAQUIAVEL

MUNDAOORI
Uma das muitas embaixadas de Maquiavel levou-o a parlamentar com Catarina
Sforza Riario, mulher muito hábil e exigente. Com Francesco delia
Casa, embaixador do rei da França, Luís XII, discutiu os problemas da guerra
contra Pisa. (Litografias de Alessandro Focosi para as Opere Complete di
Niccolò Machiavelli, Milão, 1858, Biblioteca Cívica de Bérgamo.)
tocrática, como Esparta, em que uma As observações levaram Maquiavel a
maioria de governados encontrava-se concluir também que os principados,
subordinada a uma minoria de gover­ quando hereditários, padecem de uma
nantes; a democracia restrita, na qual debilidade congênita, pois pode ocorrer
dá-se o contrário, como ocorreu em Ate­ neles que o poder estabelecido pelo fun­
nas; e a democracia ampla, quando a dador seja usado ambiciosamente pelos
coletividade se autogoverna, fenômeno sucessores, sem a virtu do mesmo. Por
encontrado em Roma após a instituição outro lado, seria fraco o Estado que só
dos tribunos da plebe e a admissão do pode ser governado pela vontade de um
povo à magistratura. homem apenas; na falta deste, não há
Não existiria, contudo, uma ordem como triunfar sobre a desordem. O
ideal, com validade absoluta, indepen­ abuso de poder, por parte dos herdeiros
dente da organização social concreta do herói primordial, fomenta a discórdia
dos povos. O povo é, para Maquiavel, e alimenta conspirações, pondo em peri­
uma matéria que aguarda sua forma e a go a ordem interna.
engenharia da ordem parte da análise da O reino da competição entre Estados
situação social, não resultando do arbí­ não seria controlável, segundo Maquia­
trio do fundador de Estados, mas de sua vel, por instituições nem pela lei, e seria
capacidade para captar, num momento impossível que uma república conse­
de gênio, aquela forma desejável e de guisse permanecer tranquila e gozar de
sua disposição para impô-la sem qual­ liberdade dentro de suas fronteiras. Se
quer vacilação. não molestar as demais, será molestada

179
OS PENSADORES

para si, ao dividir o governo com o sena­


do, e ao criar leis, que ele mesmo sempre
Q»*/ frisrç- ' observou.
^.t.‘í>r~ ífnfv \f*7^
K4 **
t *44w Os fins justificam os meios
rrf b^An^i >
\y» tw*r
^nilb' h • O político de virtu na chefia dos Esta­
dos é um momento breve e excepcional,
e somente a ele os homens isentam de
culpa pelo uso de meios indiscrimi­
luvrAfkfa ^rw
nados, em conjunturas de grave perigo
Y-*» f*’*’"* Arrrvh^r para a comunidade. Disso deriva que a
f, wk» -immA- estabilidade política depende de boas
e'- .j-yL • jí-Mk > leis e instituições, pois o poder pura­
mente pessoal degenera facilmente em
rTV-l farfi <vUw Jy ( tirania e instabilidade. O homem provi­
o/U^À jíizówyA- f dencial jamais é um tirano. Sua heroici-
dade realiza-se no plasmar a forma
Ar-ty' IV/ V»>Ó%'M-,
tvd <***,.»■!
conveniente para a matéria, que é o
povo. Ele institucionaliza a ordem e a
•óX dApntbr -', ,* ',. s ... coesão social, quer em regimes republi­
fwr/<>‘'<VTl/hj^ canos, quer em principados, dependendo
i j* ,^(. das circunstâncias.
\J*A ■Atpi >*</&»*, O herói fundador de Estados e o polí­
‘V****’’ 4/7*/», s tico de virtu, por si sós, não instituem o
V***A Vqfafr | melhor regime e a melhor sociedade. O
nível de solidariedade é maior quando o
povo participa do governo. Homens em
A observação fria e objetiva do liberdade identificam-se com os negó­
comportamento humano, presente nas cios de seu Estado e o defendem como
obras políticas, encontra-se também coisa sua. Nada foi mais difícil para os
na comédia A Mandrágora. (Manuscrito, romanos do que a conquista de povos
Biblioteca Laurenziana, Florença.) vizinhos, amantes da liberdade que
gozavam em seus países. A grandeza ro­
mana deve ser atribuída à liberdade de
por elas, e disso nascería o desejo e seus cidadãos, e a vocação imperial não
a necessidade de conquista. poderia ter sido realizada sem a ampla
O fundador de Estados nâo é, para participação do povo nos negócios pú­
Maquiavel, um homem qualquer, mas blicos. Um povo dócil ou aterrorizado
uma personalidade fora do comum, do­ não' seria capaz de encontrar forças e
tada de uma ética superior, que lhe motivação para conquistar o mundo.
faculta o uso de meios extraordinários Numa nação não corrompida, onde as
para a organização de reinos ou repúbli­ instituições mantenham pela educação e
cas. Rômulo seria um bom exemplo, não pelo exemplo as virtudes cívicas, os
obstante a imagem negativa que dele cidadãos sobrepõem os interesses gerais
sempre se fez, por ter assassinado o aos particulares. A liberdade reforça a
irmão e consentido no assassinato de coesão interna e desanima as pretensões
Tito Tatius, com quem dividia o trono. de conquista dos Estados rivais.
Esse seria um exemplo negativo, caso Maquiavel ensina, ainda, que a ener­
não se considerassem os motivos orien­ gia criadora de uma sociedade livre não
tadores de sua ação. Segundo Maquia­ é dádiva dos beróis fundadores ou dos
vel, a obra de Rômulo o exime de qual­ políticos de virtu. Ela advém do sistema
quer culpa, pois seus fins eram morais. de oposição entre os grandes e o povo e,
Isso fica claro quando se sabe da peque­ assim, os conflitos sociais são necessá­
na parcela de autoridade que reservou rios porque próprios à natureza mesma

180
MAQUIAVEL

da liberdade. As condições desta não são


arbitrárias, mantendo relação neces­
sária com o grau de igualdade existente
no interior do Estado. A corrupção e a
inaptidão para o viver livre provém da
desigualdade, para cuja eliminação é
preciso pedir socorro a remédios ex­
traordinários, coisa que poucos homens
sabem ou querem fazer.
O povo faz parte da galeria de heróis
de Maquiavel. Comparando as repú­
blicas democráticas com os principados,
observa que se julgarmos um príncipe e
um povo subordinados às leis, verifica­
mos que o povo mostra qualidades supe­
riores às do príncipe, porque é mais con­
forme e constante. Se, ao contrário,
ambos estão libertos de qualquer coer-
ção legal, resulta que os erros do povo
são menos numerosos, menores e de
mais fácil reparação do que os do

SNARK INTERNATIONAL
príncipe.

Quem tem razão?


O destino do pensamento de Maquia­
vel, cinco séculos depois de sua morte,
ainda não foi decidido. Lido por muitos
e citado publicamente por poucos, a “ ... ao longo de meu relato, recusei-me
obra do diplomata florentino tem conhe­ sempre a mascarar com aparência
cido quase tantas interpretações diver­ honesta uma ação indigna ...”
gentes quantos são os filósofos e ensaís­ (Retrato de Maquiavel no fim da vida,
tas que dele se aproximam para Biblioteca Nacional de Paris.)
analisá-lo.
O tempo em que viveu não poderia
chocar-se com esse pensamento, pois a zada pelo papa Clemente VII e patroci­
renovação cultural e científica atingia nada por um cardeal romano.
um momento culminante e criava um A má sorte inicia-se com a Contra-Re-
novo universo ideológico, centrado no forma, quando ao cisma protestante
homem e em sua secular aventura. A opõe-se o retomo à ortodoxia e tenta-se
obra de Maquiavel era nítida expressão revitalizar a influência espiritual da
dessas mudanças e ele próprio foi asses­ Igreja e defender seu poder temporal. A
sor de papas e cardeais. A dessacrali- partir daí, a obra de Maquiavel toma-se
zação do político, a independência do extremamente vulnerável. Na. situação
poder temporal frente ao Vaticano, o pri­ especial da Itália, sede fisica da Igreja
mado do Estado face à religião consti­ católica, a subordinação do religioso ao
tuíam um conjunto de circunstâncias que político, defendida por ele, não poderia
se expressavam no desenvolvimento dos ser tolerada. Três décadas após sua
Estados nacionais e conferiam a seu pen­ morte, a reação da Contra-Reforma
samento intensa contemporaneidade. manda queimar-lhe a efígie e, em 1559,
Tudo isso explica porque o manuscrito o papa Paulo IV (1476-1 559) o inclui no
de O Príncipe tenha circulado durante index dos livros proibidos, decisão con­
dezenove anos sem provocar qualquer firmada pelo concilio de Trento em
comoção, e por que a primeira edição, 1564.
publicada em 1532, tenha sido autori- Não obstante a interdição, os livros de

181
OS PENSADORES

Maquiavel circulam amplamente pela nicas utilizadas em sua conservação por


Europa, especialmente na Itália, França parte dos governantes.
e Inglaterra. Nos séculos seguintes, Ainda no século XIX, o autor de O
quando se consolida o poder absoluto Príncipe será transformado em herói
dos monarcas, à acusação de impiedade nacional pelo movimento de unificação
acrescenta-se a de defensor dos déspo­ da Itália, o Risorgimento. Antes, nin­
tas, e O Príncipe é identificado com um guém como Maquiavel tinha se batido
manual de técnicas instrumentais do pela transformação da península ita­
despotismo. O autor era assim abstraído liana numa grande nação.
de seu contexto histórico; criava-se dele No começo do século XX as discre-
a imagem de um talentoso oportunista pâncias no entendimento da obra do
político e fragmentava-se sua obra: diplomata florentino permitirão o apare­
como autor de O Príncipe, seria o cimento de várias interpretações, sensi­
ensaísta cortejador do novo poder da velmente divergentes. Mussolini
família dos Médicis, aos quais se opuse­ (1883-1945) o transformará em precur­
ra quando no governo de Piero Soderini; sor do fascismo e Gramsci (1891-1937),
rejeitado, afirmou convicções republi­ marxista, assimilará ao príncipe ideal
canas nos Discursos sobre a Primeira renascentista o partido do proletariado,
Década de Tito Lívio. como instrumento contemporâneo de sua
O século XVIII redime o autor, embo­ vontade e ação coletivas.
ra o debate tenha ficado circunscrito às
dimensões éticas. Pensadores iluminis- Maquiavel na atualidade
tas, como Rousseau (1712-1778) e
Diderot (1713-1784), defendem a uni­ Modernamente, os estudos têm procu­
dade de sua obra, com base na proble­ rado romper com a tradição de crítica do
mática republicana. Diderot sustenta ser ponto de vista moral, ou com a utiliza­
O Príncipe uma sátira, entendida equi- ção da obra de Maquiavel como instru­
vocamente como elogio. Rousseau subli­ mento ideológico. Procura-se mais am­
nha a profundidade das convicções repu­ plamente determinar a contribuição
blicanas de Maquiavel, que teria sido específica que ele deu à história das
obrigado pelas circunstâncias a disfar­ idéias, especialmente aquilo que se refe­
çar o amor pela liberdade, simulando re aos domínios pertencentes à ciência
dar lições aos reis, quando na verdade as política.
dava ao povo. Estranhamente, o julga­ A tendência é não mais ver o pensa­
mento de Voltaire (1694-1778) será mento de Maquiavel como geometria
negativo, tendo inspirado a Frederico II euclidiana da política eterna, mas como
da Prússia (1712-1786) a redação do pensamento de seu tempo. Por outro
Anti-Maquiavel, crítica qúe pretendia lado, o problema da existência ou não de
ser uma rejeição radical do amoralismo unidade intrínseca entre seus diversos
em política. escritos — especialmente os Discursos
Os democrata-radicais do século XIX sobre a Primeira Década de Tito Lívio e
têm ponto de partida na afirmação do O Príncipe — não é avaliado segundo as
próprio Maquiavel, segundo a qual seus disputas filosóficas que propiciou. O
ensinamentos foram extraídos do estudo maquiavelismo antecede a Maquiavel
atento da história. O maquiavelismo como repositório de práticas que infor­
seria, assim, a prática política corrente mavam a ação dos detentores do poder;
entre os poderosos de todos os tempos. ele simplesmente teria sistematizado
Criadores e detentores das técnicas de esse conhecimento, transformando-o em
dominação não precisariam jamais de engenharia operacional de governo. Nela
lições; Maquiavel teria então, como não haveria lugar para a moral, e o amo­
objetivo, não ensinar a eles, mas ao ralismo dos meios não prejudicaria os
povo. Na impossibilidade de dirigir-se resultados se estes são bons. Voltado
diretamente ao seu público, teria optado para a história, Maquiavel teria apren­
por desmistificar o poder, despojando-o dido que as grandes obras humanas,
de toda moralidade aparente através da como a criação de Estados e religiões,
crua revelação dos procedimentos e téc­ impuseram aos fundadores o uso de

182
MAQUIAVEL

FABBRI

“A todos repugna este bárbaro domínio. Pegue, então, a vossa ilustre casa
neste assunto, com aquele ânimo e aquela esperança com que se entra nas
empresas justas; a fim de que, sob sua bandeira, seja esta pátria honrada. ”
(Palavras finais de O Príncipe, endereçadas a Lourenço de Médicis, cujo túmulo,
esculpido por Michelangelo, encontra-se na Igreja de São Lourenço, Florença.)

183
OS PENSADORES

todos os recursos. E o que fez foi é sempre diferente. Maquiavel simples­


simplesmente aceitar essa realidade mente fez da prática uma teoria. O enun­
como um dado concreto e definidor da ciado brutal dos princípios do maquia­
natureza humana. velismo, com sua chocante amoralidade,
Ê lícito discordar dessas idéias, mas é explicitaria a realidade interna do poder
dificil demonstrar que o convívio polí­ político. E isso talvez seja uma contri­
tico entre os homens tenha sido outro. Se buição não pequena para a superação
existem boas teorias políticas, a prática desse amoralismo.

CRONOLOGIA
1453 — Tomada de Cons- 1502 — Casa-se com Ma- A Mandrágora, obra-prima
tantinopla pelos turcos. rietta Orsini; encontra-se do teatro italiano.
'1454 — A paz de Lodi com César Bórgia em Ro- 1519 — Carlos V torna-se
inaugura um período de magnana. imperador do Sacro Império
equilíbrio entre os Estados 1503 — Preocupa-se com o Romano Germânico. Falece
italianos. problema de substituir os Lourenço de Médicis.
1469 — Maquiavel nasce soldados mercenários por 1520 — Em Luca, trata dos
em Florença, no dia 3 de milícias nacionais. interesses mercantis de Flo­
maio. 1504 — Os franceses pen­ rença. Escreve a Vida de
1473 — Botticelli pinta o dem Nápoles. Michelangelo Castruccio Castracani.
quadro São Sebastião. esculpe o David. 1521 — Publica A Arte da
1492 — Cristóvão Colom ­ 1506 — Maquiavel é esco­ Guerra. Morre Leão X.
bo descobre a América. lhido para o cargo de secre­ 1523 — Júlio de Médicis
1494 — Cessa o poder dos tário dos Nove das Milícias. torna-se papa sob o nome de
Médicis em Florença. Car­ 1511 — Realiza embaixa­ Clementç VII.
los VIII, da França, ataca a das em Milão e na França. 1525 — Oferece ao pontífi­
Itália. 1512 — Os Médicis retor­ ce os oito primeiros livros
1498 — Maquiavel torna-se nam a Florença. das Histórias Florentinas.
segundo chanceler da repú­ 15 13 — Maquiavel é exila^ Francisco Sforza é reconhe­
blica florentina. Vasco da do em San Casciano, onde cido como duque de Milão.
Gama descobre o caminho começa a escrever as princi­ 1527 — Maquiavel é excluí­
para as índias. pais obras: O Príncipe e os do da participação no go­

SÃO PAULO
1500 — Viaja para a Fran­ Discursos sobre a Primeira verno instituído após nova
ça a fim de tratar do proble­ Década de Tito Lívio. queda dos Médicis. .Falece a
ma de Pisa junto a Luís XII. 1518 — Escreve a comédia 21 de junho.

- E INDUSTRIAL
BIBLIOGRAFIA
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Nitti, F.: Machiavelli nella Vita e nelle Dottrine, Nápoles, 1876.
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184
OS PENSADORES

/ / U não lhe dei, Adão, nem um plinas liberais, relativas a atividades


Lj lugar predeterminado, nem exclusivas ao homem e que o distin-
I J um aspecto particular, nem guiam dos animais. A autonomia do ser
quaisquer prerrogativas, a fim de que humano é buscada pelos humanistas da
você possa tomá-los e possuí-los através Renascença através de uma volta à Anti­
de sua própria decisão e de sua própria guidade, a seus modelos e a suas diretri­
escolha.” Assim Deus fala na Oração zes pedagógicas. As chamadas “humani­
sobre a Dignidade do Homem, do pensa­ dades” — poética, retórica, história,
dor italiano Pico delia Mirandola (1463 ética e política — passam desse modo a
- 1494). Naquelas palavras está apre­ constituir, sob a inspiração dos antigos,
sentado um dos temas centrais do a base de uma educação destinada a pre­
humanismo renascentista: a liberdade parar o homem para o exercício de sua
do homem, que o torna um ser capaz de liberdade. Liberdade e capacidade hu­
criar seu próprio projeto de vida. mana de atuar sobre o mundo são temas
Movimento literário e filosófico origi­ fundamentais dos humanistas, apare­
nado na Itália — na segunda metade do cendo não apenas em Pico delia Miran­
século XIV — e depois difundido em ou­ dola, como também em Gianozzo Ma-
tros países da Europa, o humanismo netti (1396-1459), em Marsilio Ficino
constituiu um dos fatores fundamentais (1433-1499), e ressurgindo nos huma­
do surgimento da cultura moderna. Nas­ nistas franceses posteriores, como Char­
cido nas cidades e comunas que, na les Rouillé (1475-c. 1553). Mais tarde é
época, lutavam por sua autonomia, o que as especulações marcadas pela exal­
humanismo repudiou a ordem a e hierar­ tação da capacidade humana serão
quia cósmicas contidas na visão de contrabalançadas pela nota de ceticismo
mundo medieval e resguardadas pelo que o humanismo assumiu no pensa­
Império (o Sacro Império Romano-Ger- mento de Montaigne (1533-1592), de
mânico), pela Igreja e pelo feudalismo. Pierre Charron (1541-1603) e de Fran­
Dentro dessa ordem hierárquica o cisco Sánchez (1552-1581).
homem ocupava lugar insignificante e Outro fundamento do humanismo re­
inalterável, imerso num mundo que era nascentista foi a convicção de que o
visto como ocasião para tentações e mundo natural é o reino do homem. Esse
pecado. Em contraposição à mentali­ naturalismo conduziu, paralelamente à
dade medieval, os humanistas exaltarão afirmativa do valor espiritual do homem
a dignidade do homem, proclamando e que o toma livre, à exaltação do valor
que sua liberdade pode e deve ser exer­ do corpo e dos seus prazeres. Opondo-se
cida tanto em relação à natureza quanto ao ascetismo medieval, humanistas ita­
à sociedade. Como aspecto do Renasci­ lianos, como Lorenzo Valia (1407-
mento, o humanismo reintegra o homem 1457), retomam às teses do epicu-
na natureza e na história, reinterpre- rismo antigo de que o bem é o prazer e
tando-o em função dessas coordenadas. de que a virtude consiste num cálculo de
prazeres. Em nome do hedonismo, Valia
inclusive recusa a superioridade reli­
O humanismo giosa da vida monástica: os verdadeiros
seguidores de Cristo seriam os que dedi­
O termo “humanismo” é derivado de cam suas atividades a Deus, pertençam
humanitas, que no tempo de Cícero ou não a ordens religiosas. O combate ao
(106-43 a.C.) designava a educação do ascetismo e à vida monástica é empreen­
homem enquanto considerado em sua dido também por Gianozzo Manetti,
condição propriamente humana, corres­ Coluccio Salutati (1331-1406) e Poggio
pondendo ao sentido da palavra grega Bracciolini (1380-1459). A afirmação
paideia: a educação por meio de disci- da naturalidade do homem leva ainda os
humanistas a proclamar a superioridade
da vida ativa sobre a contemplativa, e da
Napágina anterior: retrato de Erasmo, filosofia moral sobre a física e a metafí­
Quentin Metsys, Galeria Nacional de sica. “A filosofia moral é, por assim
Arte Antiga, Roma ( Foto Fabbri). dizer, o nosso território”, escreve Leo-

186
ERASMO

SNARK INTERNATIONAL
Originário dos Países Baixos, Erasmo teve o início de sua existência ligado
às cidaaes de Rotterdam e Goude. Mas procurou viver como um cidadão do mundo,
pairando acima das dissenções políticas e defendendo a tolerância religiosa.
(Rotterdam e Goude no tempo de Erasmo, anônimo, Biblioteca Nacional de Paris.)

nardo Bruni (c. 1370-1444). A mesma brem a perspectiva histórica, fazendo no


idéia é defendida por Matteo Palmier plano da temporalidade uma mudança
(1406-1475) e por Bartolomeo de Sac- correspondente à descoberta, ao nível do
chi (1421-1481). Nesse sentido é que o espaço, da perspectiva óptica, pela pin­
humanismo abriu caminho para a obra tura renascentista.
de Maquiavel (1469-1536) — em muitos A rejeição do ascetismo e das filigra­
aspectos considerado humanista. nas teológicas não significou a adoção,
O retomo à Antiguidade, que inspira o pelos humanistas, de uma posição neces­
humanismo renascentista, confere-lhe sariamente anti-religiosa ou anticristã.
agudo senso de historicidade, de que O que fazem é rediscutir temas religio­
carecia a cultura medieval, construída sos, como a providência de Deus e a
em função do ideal de intemporalidade. natureza e o destino da alma, com o
A defesa da eloqüência dos antigos, por objetivo de defender a liberdade humana
exemplo, resultou para os humanistas e a capacidade do homem de agir sobre o
num esforço de recuperação da lingua­ mundo e modificá-lo de acordo com suas
gem genuína da época clássica e num necessidades. Por outro lado, no exame
laborioso empenho para restaurá-la de de problemas religiosos, deram prefe­
sob as deformações sofridas no decorrer rência a dois temas que pareciam, na
da Idade Média. Os humanistas redesco- época, os mais importantes: a função

187
OS PENSADORES

às diversas religiões. Isso implicava


ainda a intrínseca identidade entre filo­
sofia e religião. Perguntava Leonardo
Bruni: “São Paulo ensinou algo mais do
que foi pensado por Platão?” Seguindo a
linhagem da Patrística — a doutrina dos
primeiros padres da Igreja —, os huma­
nistas consideravam que o cristianismo
teria levado à sua plenitude a sabedoria
expressa pelos filósofos antigos: a
Razão (logos) grega seria uma antecipa­
ção do Verbo (Logos) que se encarna em
Cristo. O retomo às origens significava,
assim, para o humanismo da Renas­
cença, a possibilidade de conciliar dife­
rentes concepções filosóficas (como pre­
tende Pico delia Mirandola com o
platonismo e o aristotelismo) e ainda
harmonizá-las com a Cabala, a magia, a
Patrística e a Escolástica. Com isso,
poder-se-ia retomar às fontes de diver­
sas correntes filosóficas e recuperar a
paz religiosa que fora destroçada pelas
disputas teológicas. A tolerância religio­
sa, sustentada por argumentos que já
então exprimem o despontar da mentali­
Em Erasmo o humanismo renascentista dade moderna, ressurge como um dos
apresenta uma de suas manifestações ideais do humanismo de Erasmo de Rot-
mais plenas. (Erasmo em “Julgamento terdam e de Thomas More.
de Salomão”, de Franz Franken, séc.
XVII, Museu Erasmo, em Anderlecht.)
Numa prisão espiritual
civil da religião e a tolerância religiosa.
A primeira associava-se ao naturalismo: Em agosto de 1495, um frade agosti-
na obra Sobre a Dignidade e a Exce­ niano, vmdo de Cambrai, chegou a Paris
lência do Homem, Gianozzo Manetti com o objetivo de obter o título de dou­
defende a tese de que a Bíblia não con­ tor em teologia. Tinha sido contemplado
tém apenas uma proclamação da felici­ com uma bolsa de estudos, mas os esti-
dade Celeste, mas encerraria também pêndios, embora recebidos com regulari­
uma mensagem e um programa relativos dade, eram tâo parcos que foi obrigado a
à felicidade terrena. Por isso mesmo é alojar-se na domuspauperum do colégio
que para Manetti, como para Valia e Montaigu. Situado no Quartier Latin,
outros, a função fundamental da religião sobre a colina de Sainte Geneviève, o edi­
seria relativa à vida civil e à atividade fício era triste e sombrio, os dormitórios
política. sujos, as paredes nuas e geladas. As
A tolerância religiosa constitui outro refeições eram péssimas: freqüente-
traço típico do humanismo renascen­ mente os ovos e a carne eram servidos
tista. Nos séculos posteriores — XVI e quase estragados e o vinho mais parecia
XVII — a tolerância resultará de guerras vinagre.
religiosas que acabarão por determinar Tudo isso poderia ser visto com certa
a coexistência pacífica de vários credos, naturalidade por quem ainda tivesse
que todavia permanecem distanciados e uma visão medieval do mundo, centrali­
irredutíveis. A tolerância preconizada zasse a vida em tomo do espiritual e
pelos humanistas era dê outro tipo, pois negasse o valor das coisas sensíveis.
sustentada pela convicção de que have­ Mas o frade recém-chegado não pensava
ría uma unidade fundamental subjacente e nem sentia desse modo. Para ele o

188
ERASMO

O humanismo, uma das características fundamentais do espírito


renascentista, expressa-se claramente na pintura de Hans Holbein.
Grande amigo de Erasmo, retratou-o inúmeras vezes e desenhou suas mãos,,
como nas reproduções acima, hoje no Museu do Louvre de Paris
e na Galeria Nacional de Parma.

mundo material não era necessariamente Sua mãe chamava-se Margared e era
residência do pecado e reino da contami­ filha de um médico de Zevenbeque. Seu
nação, e cuidar do bem-estar físico não pai, Roger Geert, homem culto e relacio­
significava afastamento da bem-aventu- nado com representantes do humanismo
rança eterna. nos Países Baixos, era um padre com
Pior que o desconforto ou os jejuns, funções itinerantes em diversas paró­
eram os sofrimentos pelos quais tinha quias da cidade de Goude, próxima a
que passar a inteligência diante do ensi­ Rotterdam. A ligação amorosa com
no escolástico, impregnado de sutilezas Margared não era lícita, mas as regras
insípidas, de exagerado formalismo e da vida cristã estavam enfraquecidas,
limitado a discutir temas irrelevantes. naqueles tempos, e os rigores da moral
O colégio Montaigu era, na verdade, agostiniana não eram mais obedecidos
uma verdadeira prisão espiritual, que com tanta severidade. Dessa ligação
poderia ter sido útil para Inácio de Lo- resultou um primeiro filho, chamado
yola (1491-1556), que ali suportou, Pieter. Poucos anos depois viria à luz
durante vinte anos, uma disciplina de Erasmo, num dia e mês conhecidos com
castigos corporais para educar a vonta­ certeza (passagem de 27 para 28 de
de. Mas era absolutamente repugnante outubro), mas num ano que não se sabe
para a natureza nervosa, independente e ao certo qual tenha sido: os biógrafos
moderna do jovem frade Erasmo. Ele era oscilam entre 1465 e 1469. É certo,
exemplo vivo de uma nova ordem de coi­ entretanto, ter o fato ocorrido em Rot­
sas: da mentalidade renascentista, da terdam, para onde Margared fora envia­
qual veio a se tomar um dos maiores da a fim de guardar a discrição neces­
representantes. sária em tais ocasiões. Inicialmente a

189
OS PENSADORES

Espírito inquieto e ávido de liberdade, Erasmo viveu a vida toda


mudando de residência. Um dos lugares ondepermaneceu bom tempo foi
a casa do amigo Pierre Wismann, em Anderlecht, próxima a Bruxelas,
na Bélgica. Hoje é um rico museu de objetos pertencentes a Erasmo.

educação de Erasmo foi confiada a um relativamente cedo: Margared faleceu e


preceptor, com o qual aprendeu as pri­ ele foi obrigado a voltar para Goude.
meiras letras. Mais tarde, em 1475, o Logo depois, o pai também morreu, viti­
pai providenciou seu ingresso na escola mado por uma das pestes que, naquele
dos Irmãos da Vida em Comum, em tempo, assolavam a Europa periodica­
Deventer. Era um estabelecimento famo­ mente. Pieter e Erasmo foram então
so do norte do continente, no qual se res­ enviados pelos tutores a Hertogenbosch,
pirava a atmosfera humanistica que onde encontraram uma disciplina de
imperava na Renascença. claustro extremamente desagradável.
Em Deventer Erasmo encontrou um Não podiam, no entanto, desobedecer
dos melhores ambientes intelectuais da aos tutores e concluíram os estudos,
época, recebendo influência de humanis­ esperando ansiosamente o momento de
tas como Johannes Sintheim e Alexander se tomarem livres. A solução era entrar
Hegius (1433-1498), e viveu feliz com a para alguma ordem religiosa. E, de fato,
mãe e o irmão. Contudo, esses anos de Pieter ingressou no mosteiro de Sion,
bem-estar estavam fadados a terminar perto de Delft, enquanto Erasmo toma­

190
ERASMO

va-se noviço agostiniano em Steyn. era o colégio Montaigu. Nos momentos


Cinco anos depois (1492) era ordenado em que podia ver-se livre, procurava o
sacerdote e concluía um longo período contato com outras instituições e outras
dedicado ao estudo dos autores clássi­ pessoas. Foi assim que conheceu Robert
cos, gregos e latinos, solidificando sua Gaguin (1425-1502) e Faustus Andreli-
formação humanística. Por outro lado, nus (1462-1518), mestres incontestáveis
os rigores da vida monástica acenderam do humanisno na França. No próprio
em Erasmo a paixão pela liberdade pes­ colégio podia aprofundar, o conheci­
soal e a irritação com tudo aquilo que mento dos primeiros padres da igreja e
pudesse restringi-la. Formaram-se aperfeiçoar o latim a ponto de passar a
assim os traços essenciais de um com­ rivalizar com os maiores epistológrafos
plexo caráter integralmente moderno, antigos e modernos.
que colocava acima de tudo a indepen­ No entanto, isso tudo não o isentava
dência intelectual, a liberdade de espí­ dos aspectos negativos da vida em Mon­
rito e o culto do humano em todas as taigu, e as torturas físicas acabaram por
suas formas. deixá-lo enfermo. Tal fato permitiu-lhe,
Ordenado padre pelo bispo de mais uma vez, pôr a sagacidade prática
Utrecht, Erasmo de Rotterdam pôs toda em funcionamento e safar-se para a terra
a inteligência a serviço de seus ideais e natal, sob pretexto de necessitar de cui­
providenciou, através de negociações dados médicos especiais.
secretas muito hábeis — não querendo
opor-se abertamente aos superiores —, Humor e teologia
sua nomeação como secretário do bispo
de Cambrai. Assim poderia libertar-se Como era de se esperar, a cura foi
dos horizontes limitados do mosteiro de muito rápida e logo depois Erasmo apro­
Steyn e tomar contato com o mundo, veitou para libertar-se definitivamente
pois o bispo precisava dele para acom­ do colégio “■vinagre”, como ele mesmo o
panhá-lo até Roma. A viagem, no entan­ chamou. Entretanto, ao voltar a Paris,
to, não chegou a ocorrer, tendo sido no outono de 1496, tinha que providen­
adiada várias vezes, o que permitiu ao ciar a subsistência. A solução era dar
moço, ansioso por liberdade, gozar uns aulas particulares para não recorrer à
tempos de vida sem problemas. Não era Ordem e assim manter sua indepen­
obrigado a dizer missa, podia divertir-se dência. Antes já tinha tratado de criar
à vontade, conhecer pessoas inteligen­ clientela e agora tinha alunos muito
tes, aprofundar-se nos autores clássicos ricos, especialmente entre a aristocracia
e, principalmente, dedicar-se à redação inglesa. Não só pagavam muito bem,
do diálogo Antibárbaros. como possibilitavam-lhe outros privilé­
A boa vida, contudo, deveria acabar. gios, essenciais para quem queria man­
Afinal o bispo não precisava mais de ter-se livre e dedicar-se à criação de
secretário e o alegre frade deveria voltar obras de pensamento e arte. Dessa época
para o convento e dedicar-se aos mesmos datam os primeiros esboços dos Coló-
afazeres dos colegas de batina. Mas quios e De Como Escrever Cartas, além
Erasmo tinha tomado gosto pela liber­ de pequeno volume de poemas.
dade e outra vez teve que usar de habili­ Os Colóquios (modificados em várias
dade para mudar a ordem normal das edições até a definitiva, em 1533) foram
coisas. E o fez tão bem que convenceu o concebidos para funcionar junto aos alu­
bispo a enviá-lo à capital francesa para nos como manual de conversação. Em
obter o título de doutor em teologia. A forma de diálogo extremamente vivo,
vida em Paris tinha enormes vantagens, Erasmo ridiculariza costumes sociais e
pois a universidade era verdadeiro cen­ da Igreja, além de personalidades da
tro internacional de cultura e Erasmo época escondidas sob pseudônimos, mas
poderia desfazer-se do provincianismo facilmente identificáveis pelo público
do país de nascença. mais ilustrado da época. Em O Casa­
E realmente isso aconteceu, apesar de mento e A Jovem Arrependida satiriza
confinado a maior parte do tempo os defensores da vida conventual como
naquela prisão do corpo e da alma que ideal de espiritualidade; na Confissão do

191
OS PENSADORES

Soldado e O Soldado e os Cartuxos qua­ publicar outra obra que marcaria época:
lifica sarcasticamente como loucos os as autoridades portuárias inglesas não
jovens atraídos pela carreira das armas. lhe permitiram carregar as economias
Ele mesmo, no entanto, nada tinha de em ouro e prata, acumuladas custosa­
louco e sabia muito bem como fazer mente. Mais uma vez viu-se forçado a
para dar solução aos problemas de recomeçar de zero a luta pelo pão de
sobrevivência e resguardar sua indepen­ cada dia. Não teve dúvidas sobre como
dência pessoal. Em 1499, acompanhado fazê-lo e em pouco tempo redigiu uma
de lorde Mountjoy, um dos alunos ricos, antologia de citações latinas e provér­
chega à Inglaterra, consegue hospeda­ bios, colocando nas mãos do grande pú­
gem no Saint Mary,s College de Oxford e blico um imenso acervo de cultura, até
toma contato com uma universidade então privilégio de poucos. O livrinho
muito mais aberta a novas idéias do que teve sucesso imediato e foi o primeiro
a de Paris. Em Oxford, estudantes e exemplar de literatura de divulgação.
professores faziam juntos as refeições, Chamava-se Adágios e trouxe celebri­
em meio a animados debates; eram ban- dade para o autor. À cata de patrocínio e
3uetes com companhia culta, boa comi- ao mesmo tempo cioso de sua indepen­
a, não muito vinho e nobre palestra. dência pessoal, viaja pelos Países Bai­
Erasmo sentiu-se em seu elemento, não xos e pela França, sem fixar-se em lugar
só por causa desses costumes cotidianos, algum. Acima de tudo procura não se
mas porque encontrou pessoas que parti­ comprometer com qualquer instituição
lhavam de seus interesses intelectuais. ou pessoa. Almeja apenas ao pouco que
Eram muitos os que pensavam lhe permita satisfazer as necessidades
como ele: o arcebispo William básicas, permanecendo livre para o tra­
Warham (1450-1532) e John Fisher balho intelectual.
(1469-1535), os mestres universitários
William Grocyn (1446-1519), Thomas O Elogio da Loucura
Linacre (1460-1524) e Hugh Latimer
(1485(?)-1555), e sobretudo John Colet
(1467-1519) e o futuro chanceler de Continuando suas viagens, concretiza
Henrique VIII, Thomas More. Juntos, o velho sonho de estagiar na Itália, cen­
conceberam o projeto de restaurar a teo­ tro do humanismo e de toda a renovação
logia através de novas edições dos tex­ intelectual renascentista que se estende
tos bíblicos e propunham-se a iniciar, pela Europa. Não só as bibliotecas ita­
assim, uma revolução na hermenêutica e lianas, onde poderia encontrar preciosos
exegese dos livros sagrados. As conse- manuscritos, mas a tipografia de Aldo
qíiências foram as mais profundas e as Manunzio (1450-1515) excitam-no
novas traduções a partir dos textos ori­ enormemente, e passa horas e horas a
ginais revelaram um cristianismo muito trabalhar com belíssimos caracteres ti­
diverso daquele que perdurara durante pográficos, sobretudo os mais miúdos. A
os séculos da Idade Média. imprensa é para ele mais do que uma
Logo ao chegar à Inglaterra, em simples técnica: é o instrumento maravi­
1499, Erasmo não estava ainda dotado lhoso que abrirá todas as portas da cul­
de todos os instrumentos necessários tura, inaugurando uma nova era.
para esse trabalho, pois faltava-lhe o Em 1509 a Coroa inglesa passa à ca­
domínio do grego. Mas dedicou-se a beça de Henrique VIII (1491-1547), que
aprendê-lo com os colegas ingleses e Erasmo conhecera desde menino e com o
continuou os estudos durante alguns qual chegara a corresponder-se em
anos, até tomar-se apto a fazer a tradu­ latim. O monarca estava sempre imerso
ção, com comentários críticos, do Novo na leitura dos Adágios, segundo infor­
Testamento, publicada em 1516, e que mação do ex-aluno Lorde Mountjoy, e os
veio a constituir um marco dentro da amigos insistem para que Erasmo volté
história da hermenêutica bíblica. à Inglaterra, pois poderia conseguir do
Antes, em 1500, Erasmo tentara dei­ novo soberano uma pensão permanente.
xar a Inglaterra, mas um incidente na Em 1509 deixa definitivamente a Itália
hora da partida obrigou-o a redigir e e hospeda-se em Londres, na casa de

192
ERASMO

Thomas More, onde encontra o ambiente


ideal para o estudo e as longas conver­
sas eruditas. A saúde frágil, porém,
perturba-lhe a tranqüilidade, e crises de
cálculo renal obrigain-no a longas horas
de repouso. Erasmo reage ao mal atra­
vés do recurso que lhe servia até como
remédio: escrever. Nasce assim uma
obra-prima da literatura de todos os
tempos e de todas as línguas: O Elogio
da Loucura.
Apenas sete dias bastaram para escre­
ver a obra, graças à absoluta liberdade
de concepção e total ausência de com­
promissos. Não se tratava de trabalho
feito sob encomenda ou programado
para obtenção urgente de dinheiro para
subsistência. Era uma brincadeira para
passar o tempo, mas quem assim brin­
cava tinha atrás de si toda uma vida
dedicada à melhor literatura clássica e
mais as experiências de um homem vol­
tado inteiramente para as coisas do
espírito.
Erasmo tinha sofrido todas as agruras Embora contribuísse de maneira eficaz
da pobreza e da bastardia e tinha convi­ para a reforma da Igreja, Erasmo
vido com príncipes e poderosos. Tinha teve divergências teológicas com
passado pelos rigores da vida monacal e Lutero, acima retratado por
vira bispos comprazerem-se no luxo e na Lucas Cranach. (Museu Poldi, Milão.)
libertinagem. Fora testemunha do furor
criminoso dos príncipes da Itália em
guerra e vira a miséria aflitiva do povo.
Tudo isso soava-lhe profundamente es­
túpido e ao mesmo tempo a própria
estultícia parecia ser o motor dessas
ações absurdas. Passou-lhe então pela
cabeça, pouco antes de chegar à Ingla­
terra, atravessando os Alpes, a idéia de
colocar isso tudo no papel. As crises de
cálculo renal, na casa do amigo More,
forneceram-lhe as circunstâncias propí­
cias para fazer a Loucura subir ao púlpi­
to, sempre acompanhada pela Lisonja e
pelo Amor-Próprio, e elogiar a si
mesma.
O resultado foi a crítica impiedosa
dos juristas minuciosos, dos filósofos
escolásticos, dos nobres arrogantes, dos
bispos luxuriosos, dos negociantes sór­
didos e estúpidos, dos militares que jul­
gavam ser suficiente atirar uma moeda
numa bandeja para adquirir a indul­
gência que os deixaria puros e limpos
como quando nasceram. Xilografia de Cranach, representando a
Todo O Elogio da Loucura é uma mas­ eucaristia reformada, e onde se vêem
carada, mantida viva pela ambigüidade Lutero e o precursor João Huss.

193
OS PENSADORES

A maior parte dos livros de Erasmo foi editada na cidade suíça de


Basiléia, onde se encontrava a tipografia de Frobenius, uma das
primeiras e mais importantes casas editoras da Europa, responsável
pela publicação de muitos originais dos pensadores renascentistas.
(Gravura de 1493, Civica Raccoita di Stampa Bertarelli, Milão.)
I
estrutural que anima a crítica aos costu­ pes, em contradição com os preceitos do
mes e aos poderosos, e pela inspiração cristianismo original. Os revoltados re­
vibrante vestida de admirável roupagem clamavam uma reforma geral da Igreja e
estilística. A opinião pessoal do autor alimentavam-se ideologicamente das
permanece inacessível e, se alguém se críticas do brilhante humanista Erasmo
atrevesse a discutir com ele por causa do de Rotterdam.
sarcasmo e das críticas que distribui
generosamente, poderia responder, tran­
quilo, que não foi ele quem disse isso,
Liberdade ou servidão?
mas Dona Estultícia. E quem deve tomar
a sério a loucura? As críticas aos costumes e às institui­
O próprio livro nada tinha de louco e, ções, escritas em 1509, vinham-se jun­
muito embora tudo parecesse brinca­ tar a uma nova concepção da vida cristã,
deira para homenagear o anfitrião Tho­ tal como Erasmo tinha exposto no Ma­
mas More (em grego, loucura é moria), a nual do Cristão Militante (1501). Nessa
pequena sátira obteve imediatamente obra sonhava com um ideal religioso ao
enorme sucesso e desempenhou papel alcance de todos, uma religião interiori­
fundamental na eclosão da Reforma zada e humanizada, sem os excessos
protestante. A maior parte daquilo que místicos de boa parte da Idade Média e
os reformadores objetavam a Igreja também sem o racionalismo estéril do
encontrava-se criticado por Erasmo. O formalismo escolástico. Aliam-se tam­
Elogio da Loucura, sob a aparência de bém ao seu trabalho como Eilólogo,
festivo fogo de artifício, foi uma das preocupado com revisar os erros da vul-
obras que mais abalaram seu tempo, gata e dedicado a uma nova tradução,
funcionando como verdadeiro panfleto para o latim, de todo o Novo Testa­
revolucionário. Constituindo a mais ou­ mento. Isso sem contar as inúmeras edi­
sada e a mais artística obra de sua ções críticas, que preparou, das obras
época, era consumida amplamente por dos primeiros padres da Igreja, espe­
aqueles que voltavam de Roma irritados cialmente as de São Jerônimo.
com os desregramentos de papas e car­ Há muito, portanto, Erasmo estava
deais, a viver a vida suntuosa de prínci­ procedendo a uma eficaz reforma da

194
ERASMO

Um quadro a óleo atribuído a Pieter Brueghel, o Velho, mostra a cidade


de Roma no século XVI. A capital dos papas não agradou a Erasmo
senão por suas bibliotecas, onde poderia encontrar originais e cópias
dos autores clássicos e dos primeiros padres da igreja; a seu estudo
dedicou a maior parte da vida, renovando a hermenêutica bíblica.

doutrina cristã, ao atacar o pensamento arcebispo de Canterbury consegue-lhe


medieval em suas bases. Não possuia, um reitorado em Kent, com pensão anual
contudo, aquele grão de loucura que ele de 20 libras, pagáveis inclusive no exte­
mesmo achava necessário para fazer o rior, mesmo que deixasse de exercer as
mundo caminhar mais depressa. Não era funções. Dois anos depois Erasmo trans-
um revolucionário que pegasse em fere-se para Basiléia, na Suíça, tendo,
armas para atacar violentamente o ad­ pouco antes, redigido uma sátira contra
versário e tentar derrotá-lo em pouco o papa Júlio II (1443-1513).
tempo. Não era um condutor de massas, Em Basiléia liga-se ao editor Frobe-
muito embora sua pena tivesse a força nius (1460-1517) e trabalha junto com
de muitos exércitos. Preferia atacar o os operários da tipografia, cuidando do
mal de maneira sutil, através da ironia e texto grego e latino, além de apreciações
da vivacidade de espírito, dirigidas aos críticas, do Novo Testamento e das Car­
mais inteligentes. Solapava as bases do tas de São Jerônimo. Liga-se também ao
pensamento da época sem fazer qual­ pintor Holbein (1497-1543), que o
quer estardalhaço. Era muito diferente retrata várias vezes, e desenha ilustra­
daquele outro frade agostiniano, Marti- ções para O Elogio da Loucura.
nho Lutero (1483-1546), que estava Em meio aos trabalhos eruditos, Eras­
prestes a irromper como um furacão mo entra em contato, pela primeira vez,
para mudar toda a ordem econômica, com Lutero, através de uma carta de
política e religiosa da Europa. Spalatinus, secretário do embaixador da
Em abril de 1511, Erasmo deixou a Saxônia. O diplomata, entre outros
casa de Thomas More, sem ter conse­ assuntos, fala-lhe do jovem frade, que
guido obter a esperada pensão de Henri­ sente por ele a mais alta estima, mas não
que VIII, cujo amor ao humanismo já concorda com sua concepção sobre o pe­
tinha sido substituído pelo amor às intri­ cado original. Não adota a opinião de
gas da corte e à glória nos campos de Aristóteles, segundo o qual é justo aque­
batalha. Viaja então até Paris, a fim de le que procede com justiça. Para Lutero,
publicar O Elogio e retoma à Inglaterra, só se é justo quando se está em estado de
onde passa a ensinar grego e teologia na justiça. Em outros termos, Lutero acha
universidade de Cambridge. Em 1512 o que primeiro é preciso que o indivíduo

195
OS PENSADORES

Acima, à direita., frontispício da obra filológica de Erasmo, denominada


De Duplici Copia Verborum, impressa em 1516; à esquerda, uma das ilustrações
de O Elogio da Loucura, executada na edição de 1520, representando o
tema medieval da loucura, aproveitado por vários pintores renascentistas.

seja transformado interiormente; as pelo menos é no que acreditavam as


obras viriam depois. massas camponesas da época, crença
Nessa pequena discordância filosófica que. interessava aos principes alemães,
estavam contidas todas as diferenças preocupados em libertar-se do jugo eco­
entre os dois reformadores. Erasmo era nômico do Vaticano. Assim, a Reforma
um humanista no mais completo sentido, seguiu o caminho de Lutero e incendiou
que acreditava integralmente nas possi­ o continente, a partir das famosas 95
bilidades de a razão humana distmguir teses redigidas e afixadas na porta da
claramente entre o bem e o mal, e colo­ igreja de Wittenberg, em 31 de outubro
cava no livre arbítrio de cada um a fonte de 1517.
de todo autêntico pensamento religioso e
da opção moral. Lutero esposava o agos- Entre dois fogos
tinismo mais extremado, segundo o qual
o homem é um miserável ser, condenado A história posterior a essa data é mar­
ao pecado e à degradação, da qual só cada pelos insistentes pedidos de Lutero
pode ser salvo pela graça divina; o e dos outros reformadores, no sentido de
homem não pode por si só atingir a bea­ que Erasmo participasse das novas
titude eterna através daquilo que faça; é idéias religiosas, pois afinal todos que­
preciso antes entregar-se a Deus pela fé riam basicanjente as mesmas coisas e o
e esperar pacientemente pela miseri­ célebre humanista seria uma arma deci­
córdia divina. Erasmo procura a reforma siva na luta, com toda sua cultura e eru­
pelo esclarecimento racional, Lutero dição muitíssimo superiores às dos
afirma, antes de tudo, o poder da fé. demais. Do outro lado ocorre o mesmo,
A fé remove montanhas, a razão não; com o Vaticano a solicitar a Erasmo que

196
ERASMO

mas tão-somente um cidadão do mundo.


E isso ele o foi com coerência e lucidez.
Em 1522 publica uma nova edição
ampliada dos Colóquios, na qual apre­
senta uma sociedade justa e racional,
verdadeiramente cristã e amiga da paz,
que julga possível existir no futuro. Em
1 524 é a vez do pequeno tratado Sobre o
Livre Arbítrio, contestado dois anos de­
pois pelo Servo Arbítrio, de Lutero.
Como se tudo isso não bastasse, conti­
nua a trabalhar nas edições críticas dos
textos originais dos primeiros padres da
Igreja.
Em 1529 Basiléia deixa de ser um
refúgio tranqüilo, e os conflitos religio­
sos eclodem. Em fevereiro o culto cató­
lico é oficialmente abolido, os mosteiros
são expropriados, cerram-se as portas
da universidade. Erasmo é obrigado a
partir. Refugia-se na cidade de Friburgo
e continua a escrever: A Amável Concór­
dia da Igreja, uma nova tradução do
Eçclesiastes e quatro volumes sobre a
arte da pregação, dedicados ao bispo
Fisher, que logo depois seria condenado
à morte por não aceitar a autoridade de
Erasmo em seu leito de morte, Henrique VIII em matéria religiosa.
conforme retrato executado por um
A saúde, entretanto, está abalada. O
pintor anônimo. (Máscara mortuária de reumatismo e as dores de estômago são
Erasmo, Museu de Haarlem, Holanda.) insuportáveis. Mas o remédio contra os
males do corpo e do espírito continua à
condenasse as teses de Lutero, para isso mão: escrever. E viajar também. Projeta
chegando mesmo a oferecer-lhe um voltar à terra natal, para onde é chama­
posto de cardeal. Mas Erasmo não se do insistentemente pelo bispo de Bra-
deixa render, porque nào concorda com bante. Vai antes, contudo, para Basiléia,
nenhum dos lados. A Igreja lhe parece onde deveria esperar o degelo da prima­
podre e a exigir profundas modificações, vera. Alguns néis o retêm por mais
mas os reformadores eram, a seu ver, algum tempo e cuidam dele carinhosa­
bárbaros e fanáticos. Além do mais, faz mente. Visita a tipografia de Frobenius
questão de conservar absoluta indepen­ para supervisionar a edição do Eccle-
dência pessoal, e isso implica nào tomar siastes e escreve ainda um Comentário
partido. O que poderia parecer covardia ao Salmo XIV, que há muito tempo pro­
era, na verdade, o resultado de arrai­ metera a um amigo humilde chamado
gada convicção de que os dois lados Eschenfelder. Foi o último trabalho.
estavam errados e o verdadeiro caminho Em junho de 1536 Erasmo está tao
deveria ser criado pelo homem enquanto fraco que já não consegue ler, e um mês
ser inteligente e livre. depois, exatamente no dia 12 de julho,
As paixões a seu redor o aborreciam, pronuncia as últimas palavras de sua
mas apesar disso continuava a executar vida: Lieve God (em holandês: Bom
seu trabalho intelectual. Em 1517 vem à Deus) e exala o último suspiro. Deixava
luz a Questão da Paz, onde advoga o como herança a idéia de que a razão
ideal de uma Europa unida e sem fron­ deve combater todos os fanatismos e que
teiras nacionais. O próprio Erasmo não acima de todos os valores deve estar o
queria ser holandês, francês, inglês, ita­ homem, sobretudo enquanto ser de inte­
liano ou suíço, como realmente não foi, ligência livre.

197
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1465 (?) - Erasmo nasce em gleses. Leonardo da Vinci pinta Maquiavel redige O Príncipe.
Rotterdam, filho natural do A Ceia. 1517 - Edita a Questão da Paz,
padre Roger Geert e Margared. 1500 - Volta a Paris, edita os volta à Inglaterra e nos quatro
1469 - Bessarion publica Con­ Adágios e passa os cinco anos anos seguintes vive em várias
tra os Caluniadores de Platão e seguintes entre a França e os cidades do Brabante.
Marsilio Ficino a Teologia Pla­ Países Baixos. 1519 - Intervém em favor de
tônica. Nasce Maquiavel. 1505 - Outra vez em Londres. Lutero, mas, ao mesmo tempo,
1475 - Entra na Escola dos 1506 - Viaja pela Itália. Reu­ impede a publicação de seus
Irmãos da Vida em Comum, chlin publica Rudimentos da escritos por Frcben.
em Deventer. É editado o Vo­ Língua Hebraica. 1520 - É solicitado por Fran­
cabulário escrito por Johannes 1507 - Trabalha com o editor e cisco I e Henrique VIII a dar
Reuchlin. tipógrafo Aldo Manunzio. parecer sobre o luteranismo.
1481 - É instaurada a Inquisi­ 1509 - Passeia por várias cida­ 1522 - É instado pelo papa
ção na Espanha. des italianas, principalmente Adriano IV a tomar partido
1484 - Falecem os pais; os Roma e Nápoles; retorna à contra Lutero. A Inquisição
tutores o enviam para Herto- Inglaterra, onde escreve O Elo­ chega aos Países Baixos.
genbosch. Marsilio Ficino tra­ gio da Loucura. 1524 - Publica Sobre o Livre
duz Plotino. Nasce Zwínglio. 1511 - Vai a Paris para publi­ Arbítrio.
1486 - Savonarola inicia sua car o Elogio e volta a fim de 1529 - Deixa Basiléia para
pregação em Florença. lecionar em Cambridge. viver em Friburgo.
1487 - Ingressa no convento de 1514 - Vive em Basiléia. 1530 - Edita Do que se Deve
Steyn. Pico delia Mirandola é 1515 - Holbein desenha ilustra­ Fazer para Restaurar a Con­
condenado pelo papa. ções para o Elogio. Francisco I córdia da Igreja, o que suscita
1490 - Lefèvre dÜtaples publi­ ascende ao trono francês e a ira de Lutero. Escreve o últi­
ca Introdução à Metafísica de guerreia na Itália. mo dos Colóquios.
Aristóteles. 1516 - Publica o Novo Testa­ 1535 - Fala-se de sua elevação
1492 - Ordenado padre, traba­ mento, com comentários e a ao cardinalato.
lha com o bispo de Cambrai. Educação do Príncipe Cristão. 1536 - Em 12 de fevereiro
1494 - Chega a Paris. Pomponazzi escreve Tratado Erasmo redige testamento e fa­
1497 - Passa a viver em Ox­ da Imortalidade da Alma, lece na passagem de 11 para 12
ford, junto aos humanistas in- Ariosto, o Orlando Furioso e de julho.

BIBLIOGRAFIA.
Drummond, R.B.: Erasmus, his Life and Character, as Shown in his Correspondence, Lon­
dres, 1873, 2 volumes.
Allen, P.S.: The Age of Erasmus, Oxford, 1914.
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198
, CAPITULO15
OS PENSADORES

FABBRI
A inflexibilidade de.caráter e irremovíveis convicções religiosas levaram
Thomas More a enfrentar a autoridade do monarca inglês Henrique VIII e a
morrer em defesa de suas idéias. (“Thomas More e sua Família”, quadro
baseado em desenho de Holbein.) Na página anterior: retrato de Thomas More,
pintado por Holbein, Galleria degli Uffizzi, em Florença (Foto Scala).

homas More (ou Morus, em facilmente a seu gosto. Ensinou-lhe lite­

T latim) nasceu a 7 de fevereiro de


1478, em Milk Street, Londres,
filho de John More, mordomo de
coln’s Inn e posteriormente cavalheiro e
ratura e treinou-a em música, transfor­
mando-a numa companheira adorável,
Lin­
segundo o depoimento de Erasmo. Jane
deu-lhe quatro filhos e faleceu muito
juiz. Fez os primeiros estudos na Saint moça, seis anos após o casamento. O
Antony’s School e, menino ainda, tor­ segundo matrimônio, com uma viúva
nou-se pajem do arcebispo de Canter- sete anos mais velha do que ele, chama­
bury, John Morton (1420-1500), do da Alice Middleton, não agradou nem
qual recebeu decisiva influência intelec­ um pouco aos amigos, para os quais ela
tual. Em 1490 Morton providenciou-lhe não era jovem nem bela e mostrava-se
o ingresso na universidade de Oxford, hostil aos intelectuais.
onde passou a estudar Direito, a pedido Ao mesmo tempo em que iniciou a
do pai. Ao mesmo tempo dedicava-se à vida familiar, More começou a sua vida
teologia e à literatura grega e latina, pública. O conhecimento das leis, aliado
escrevendo versos tanto em inglês como à maestria na eloquência em inglês e
em latim. Nessa época traduziu quatro latim facilitaram-lhe a carreira. Em
diálogos de Luciano (séc. II) e uma bio­ 1 504 tornou-se membro do parlamento,
grafia de Pico delia Mirandola, um de e desde então nunca mais abandonou a
seus modelos renascentistas. política. Essa atividade tornou-se cada
Em 1505 casou-se com Jane Colt, vez mais intensa, especialmente depois
tendo feito a escolha quando ela era de 1509, ano da morte de Henrique VII
ainda mocinha, para poder moldá-la (1457-1509) e consequente ascensão de

200
THOMAS MORE

Henrique VIII ao trono inglês. Desempe­


nhou um sem número de missões diplo­
máticas até culminar a carreira, em
1529, ao suceder o chanceler Wolsey
(1473-1530) ’ no mais alto cargo do
governo britânico. Nesse posto traba­
lhava arduamente, varando noites para
examinar com cuidado cada caso que se
apresentava. De dia era acessível a
todos, justíssimo juiz e verdadeiro
amigo dos pobres.

Humanismo e prazer

Thomas More era doze anos mais


moço do que Erasmo e recebeu dele a
principal influência intelectual, desde
que o hospedou pela primeira vez em
Londres, em 1499, quando tinha 2 1 anos
de idade. Depois disso estiveram juntos
em muitas outras ocasiões. Nâo foi essa,
contudo, a única influência; ao huma­
nismo universal do autor de O Elogio da
Loucura juntou-se o humanismo cristão
de John Colet, principal responsável
pela transformação dos estudoAs teoló­
A casa de Thomas More, no quarteirão
gicos na Inglaterra do século XVI e
Buckersbury, em Londres. AH, seu
reformador corajoso, idealista e de inte­
amigo Erasmo de Rotterdam escreveu,
ligência penetrante. Além de Erasmo e
em poucos dias, O Elogio da Loucura,
Colet, foi importante, também, na for­
obra que o consagrou àefinitivamente.
mação intelectual de More, a contribui­
ção de William Grocyn, professor na
universidade de Oxford e um dos princi­ ou até mesmo condenados pela Idade,
pais expoentes da new leaming, corrente Média.
constituída pelos que repudiavam os mé­ A posição de More dentro desse pano­
todos tradicionais do ensino escolástico rama mostra-se muito clara na principal
medieval e recebiam de braços abertos a obra que escreveu, a Utopia. A mais
Renascença italiana. Significativa foi significativa característica dessa obra,
ainda a influência de John Morton, arce­ do estrito ponto de vista da história da
bispo de Canterbury e outra das maiores filosofia, reside na revalorização do
figuras da Renascença inglesa. epicurismo, tarefa empreendida também
Toda a obra de Thomas More inseriu- por Ambrogio Traversari (1386-1439),
se assim dentro dos quadros do pensa­ Lorenzo Valia e Erasmo. O primeiro tra­
mento renascentista, mais particular­ duziu a Vida de Epicuro, escrita por
mente dentro das coordenadas do Diógenes Laércio (sec. III) e o segundo
humanismo. Os humanistas se dispu­ retratou muito simpaticamente a dou­
nham a repensar os filósofos antigos, de trina epicurista na obra Sobre a Vontade
maneira a integrá-los na concepção cris­ e o Verdadeiro Bem. Erasmo sacra­
tã de vida, mas o faziam de maneira mentou integralmente o hedonismo epi­
diferente da síntese realizada pela filo­ curista no escrito Sobre o Desprezo do
sofia medieval. Além da reinterpretação Mundo (1490); além disso, num dos úl­
de Platão e Aristóteles, cujo pensamento timos Colóquios (1533) manipulou ha­
racional já tinha sido integrado à revela­ bilmente o conceito de prazer e estabele­
ção cristã, os humanistas trouxeram à ceu as bases do epicurismo cristão.
tona todos aqueles filósofos esquecidos Em More o epicurismo é defendido de

201
OS PENSADORES

maneira indireta, através da evidente


simpatia com que retrata a vida em uma
imaginária ilha chamada Utopia, cujos
habitantes acham estupidez nào procu­
rar o prazer por todos os meios possí­
veis. A virtude, para eles, consiste em
escolher, entre duas volúpias, a mais
deliciosa, a mais picante; e em fugir dos
prazeres a que se seguissem dores mais
vivas do que o gozo que tivessem
proporcionado. Praticar virtudes seve­
ras, renunciar aos prazeres da vida, so­
frer voluntariamente a dor e nada espe­
rar depois da morte em recompensa às
mortificações da terra seria o cumulo da
loucura para os utopianos. Em última
análise, reduzem todas as ações e todas
as virtudes à finalidade do prazer e
entendem a volúpia como todo estado ou
movimento da alma e do corpo, no qual o
homem experimenta deleite natural. Não
sem razão acrescentam a palavra natu­
ral, porque não é somente a sensuali­
dade, mas também a razão o que atrai
para as coisas naturalmente deleitáveis.
Por isso o homem deveria compreender
os bens que podem ser procurados sem Xilogravura de 1518, representando
injustiça, os gozos que não privem de ilha de Utopus, onde vive a sociedade
um prazer mais vivo e não acarretem ideal, descrita por Thomas More na
qualquer mal. principal obra que escreveu.
Em linhas gerais, essas opiniões dos
utopianos constituem elementos funda­
mentais da ética epicurista, mas Thomas
More acrescentou-lhes outros que a des­
figuram e não permitem que se considere
o autor como um simples adepto dessa
filosofia. Entre outras adições, são par­
ticularmente importantes as provindas
de Platão, seu grande favorito, e já inte­
gradas ao pensamento cristão. Assim é
que os bons utopianos devem acreditar
na providência divina, na imortalidade
PLESSNEH INTERNATIONAL

da alma e nas recompensas de uma vida


futura após a morte do corpo. Epicuro,
ao contrário, concebia os deuses como
seres perfeitos, que por isso mesmo nada
teriam a ver com o mundo dos homens,
enquanto qualquer bem só poderia ser
encontrado dentro dos limites do próprio
homem e do mundo.
Além do platonismo, é significativa,
no pensamento de More, a contribuição Quatro séculos após sua morte, Thomas
da filosofia estóica, que transparece na More foi canonizado pela Igreja
insistência, por vezes desproporcionada, católica, à qual serviu fielmente,
no problema da. virtude. A influência (Rubens, cópia de original de Holbein,
estóica toma-se ainda mais explícita na hoje no Museu do Prado, Madri.)

202
THOMAS MORE

importância dada pelos utopianos ao por todos os meios, a possibilidade de os


viver conforme a natureza e o espírito governantes conspirarem contra a liber­
de comunidade natural dos homens. dade, oprimirem o povo com leis tirâni­
Humanista típico, Thomas More sin­ cas ou mudar a forma de governo. Na
tetiza na Utopia o paganismo do pensa­ verdade, os utopianos têm o governo que
mento clássico grego com a concepção Thomas More e os humanistas gosta­
de vida do cristianismo. Por outro lado, riam de ver adotado na Europa. Através
a Utopia constitui expressão do desejo de sua apresentação como uma socie­
de reforma de toda a vida social, política dade imaginária, o autor se permitia cri­
e religiosa dos europeus do século XVI, ticar os regimes políticos existentes,
época de profunda renovação. Foi esse o sem correr perigo de censura.
aspecto da Utopia que maior influência Maior ainda é o significado da obra
exerceu sobre os contemporâneos, tor- com relação ao problema religioso, pres­
nando-a matriz de outras tentativas para tes a eclodir de maneira virulenta com a
retratar uma sociedade ideal, como A reforma de Lutero, em 1517, um ano
Cidade do Sol, de Tommaso Campanella após a redação do livro. Os habitantes
(1568-1639) e A Nova Atlântida, de da Utopia professam várias religiões,
Francis Bacon (1561-1626). desde os mais primitivos cultos astroló­
gicos, como a adoração do Sol, até a
crença num Deus único, eterno, imenso,
Uma república diferente desconhecido, inexplicável, e que preen­
che o mundo inteiro com sua onipotência
Não concordando com a estrutura eco­ e não com sua vastidão corpórea. Apesar
nômica vigente na Inglaterra, o auto dessa diversidade, os adeptos das dife­
descreve uma sociedade ideal comunis­ rentes seitas não entram em conflito e
ta. Para abolir a idéia da propriedade todas as crenças são integralmente
individual e absoluta, os utopianos tro­ respeitadas. O Estado não impõe ne­
cam de casa a cada dez anos e tiram a nhum credo e assegura a tolerância
sorte da que lhes deve caber nas perió­ religiosa.
dicas partilhas. No centro de cada quar­ Assim expressava Thomas More a
teirão das cidades encontra-se um mer­ convicção dos humanistas, preocupados
cado de coisas necessárias à com o rumo das questões religiosas na
subsistência, onde são depositados os Europa cristã, ao mesmo tempo sentindo
diferentes produtos de todas as famílias. a necessidade de uma reforma dentro da
Cada pai de família vai procurar nos Igreja e o perigo de que as novas idéias
mercados tudo de que necessita para os pudessem evoluir abertamente para con­
seus, dele não se exigindo qualquer flitos de consequências imprevisíveis.
espécie de pagamento, seja em dinheiro, Apesar da tolerância religiosa da Uto­
seja em outras mercadorias. Jamais se pia, Thomas More não foi um adepto da
recusa alguma coisa aos pais de família, Reforma protestante. Ao contrário, no
porque todos tiram apenas o necessário Diálogo a Respeito de Heresias e Assun­
para a sobrevivência. Estando seguros tos de Religião, publicado em 1529,
de que nada lhes faltará, não desen­ sustenta a origem divina da autoridade
volvem os instintos de cupidez, tão da Igreja, nega ao homem o direito do
comuns entre os europeus. livre exame das Sagradas Escrituras e
Quanto à organização política, a Uto­ condena como herética a tradução da Bí­
pia regula-se por um regime democrá­ blia feita por Tyndale (1484-1536).
tico, com um sistema completo de elei­ Chega a justificar a erradicação das
ção dos magistrados — até a autoridade heresias sediciosas, como medida neces­
máxima do príncipe —, de forma a não sária para preservar a paz e a segurança
permitir o abuso da autoridade. As leis do Estado. Como chanceler, no entanto,
são discutidas três dias antes de ir à jamais concordou em perseguir os adep­
votação e reunir-se fora do senado e das tos da Reforma, preferindo tentar con­
assembléias populares é crime punido vertê-los pela razão.
com a morte. Muitas das principais A razão, contudo, nem sempre preva­
instituições têm por finalidade impedir, lece e Thomas More acabou vítima do

203
OS PENSADORES

respeito pelo que considerava verda­ com Ana Bolena. Foi então preso na
deiro e por causa de seu caráter inflexí­ Torre de Londres. Durante a prisão
vel, que não lhe permitia curvar-se dian­ escreveu o Diálogo de Consolo Contra a
te do poder. Opressão, no qual confortava todos
Quando Henrique VIII pretendeu se­ aqueles que, como ele, sofriam por causa
parar a Inglaterra da autoridade univer­ de princípios religiosos e de consciência,
sal do papa — e para isso criou o famoso e negava o direito de qualquer chefe de
problema do divórcio com Catarina de Estado ditar leis em matéria de crença.
Aragão —, More opôs-se à pretensão real Na sua crença manteve-se firme, até a
e foi destituído do cargo de chanceler. O condenação final à morte por decapita­
processo contra ele não parou aí. Recu­ ção, em 6 de julho de 1535. Beatificado
sou-se a assinar o Ato de Sucessão, que em 29 de dezembro de 1886, foi canoni­
declarava sem efeito o casamento do zado em 19 de maio de 1935, quatro sé­
monarca com Catarina de Aragão, e ao culos depois de seu martírio em defesa
mesmo tempo validava o matrimônio da liberdade de pensamento.

CRONOLOGIA
1478 - Thomas More nasce em Inn. começa a Guerra anglo-es- 1521 - Torna-se Cavalheiro e
Milk Street, Londres. cocesa. Subtesoureiro do Rei; viaja
1483 - Morte do rei Eduardo 1500 - Revolta de Suffblk. para Calais e Países Baixos.
IV da Inglaterra; massacre de 1504 - Ingressa no parlamento. 1528 - Redige o Diálogo Sobre
seus filhos e consequente as­ 1505 - Casa-se com Jane Colt e as Heresias.
censão de Ricardo III. passa a viver em Buckersbury, 1529 - É escolhido para o
1485 - Ricardo III é assassi­ Londres. cargo de chanceler, em substi­
nado por Henrique Tudor, que 1509 - Henrique VIII ascende tuição ao cardeal Wolsey. O
se torna rei sob o nome de Hen­ ao trono inglês. papa Clemente VII opõe-se ao
rique VII. 1511 - Com a morte da esposa, divórcio de Henrique VIII.
1490 - Revolta na Cornualha. casa-se uma segunda vez; ini­ 1532 - É demitido por não con­
1491 - Obtém privilégio de cia intensa vida diplomática e cordar com a subordinação do
viver na casa do cardeal Mor- administrativa. clero ao monarca inglês.
ton, arcebispo de Canterbury. 1513 - Escreve uma História de 1533 Henrique VIII casa-se
1492 - Ingressa na universidade Ricardo III, posteriormente com Ana Bolena e nasce a futu­
de Oxford, Henrique VII asse­ aproveitada por Shakespeare. ra rainha Elizabeth I.
dia Bolonha e Rodrigo Bórgia Invasão da Inglaterra pelos 1534 - Escreve o Diálogo de
torna-se papa sob o nome de escoceses. Consolo contra a Opressão.
Alexandre VI. 1516 - Publica o texto latino da 1535 - É processado e final­
1496 - É admitido em Lincoln ’s Utopia, em Lovaina. mente condenado à morte.

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204
OS PENSADORES

“Quando jovem, eu gostava de adornos; não tinha outro meio de realçar-me e a coisa
não me assentava mal. ” Eprovável que Montaigne tenha participado dos
divertimentos cortesãos, representados por Antoine Caron (1520-1600) em
“Festa no Castelo de Fontainebleau”. (Gal. Nacional da Escócia, Edimburgo).

s Eyquem constituíam uma família das. Aos poucos a família elevava-se atra­

O de comerciantes de vinho, peixes


salgados e pastéis na cidade de
Bordeaux, perto do litoral atlântico
cês. Nos meados do século XV, seus negó­
vés do generalizado processo de ascensão
da burguesia, que, de classe marginali­
zada­ na Idade Média, tomava-se a princi­
fran
pal protagonista da história moderna.
cios eram relativamente modestos, não Com Grimon, filho de Ramon e herdeiro
indo além de uma mercearia na Rue de la das propriedades comerciais em Bor­
Rousselle, mas pouco a pouco o estabele­ deaux e das terras de Montaigne, a famí­
cimento cresceu com o desenvolvimento lia ascendeu às honras oficiais. Grimon
geral do comércio nessa época. tomou-se magistrado civil e casou as fi­
Ramon, o primeiro dos Eyquem conhe­ lhas com membros da magistratura judi­
cidos, pôde assim adquirir uma senhoria ciária; dois de seus filhos tomaram-se
medieval, situada entre Guienne e Péri- advogados e conselheiros no parlamento
gord, perto de Bordeaux. A propriedade de Bordeaux.
não era muito grande, mas dava-lhe título Pierre, o mais velho, abandonou os li­
de nobreza e ele deixou de ser um simples vros contábeis pela espada, participou
Eyquem para ser Seigneur de Montaigne, das guerras italianas e, ao voltar, divi­
pois esse era o nome das terras adquiri- dia-se entre os afazeres comerciais, a vida
no castelo de Montaigne e as honrosas
tarefas decorrentes dos altos cargos muni­
Na páginp anterior: anônimo do séc. XVI, cipais, para os quais várias vezes foi elei­
retrato de Michel de Montaigne, Museu to. Tais ocupações eram resultados de
de Chantilly. (Snark International.) uma vida inteira dedicada ao trabalho e

206
MONTAIGNE

ao engrandecimento da fortuna familiar,


mas também devido ao fato de ser possui­
dor de terras, símbolo de poder e nobreza.
Pierre Eyquem de Montaigne casou-se,
em 1528, aos trinta e sete anos de idade,
com Antoinette de Louppes de Villeneuve,
filha de um vendedor de vinhos de Toulou-
se. Suas origens eram também burguesas
como as do marido, pois provinha de rica
família de comerciantes judeus: os Lopez
de Portugal e Espanha.
O casal formou assim uma família típi­
ca desses tempos, quando os burgueses
enriquecidos pelo comércio substituíam
os decadentes senhores feudais e procura­
vam combinar o espírito empreendedor
com a mentalidade aristocrática medie­
val. De simples Eyquem e Louppes passa­
ram a Seigneur de Montaigne, tudo fazen­
do para manter a aparência de nobres.
A preocupação com os símbolos exte­
riores da aristocracia explica o empenho
dado à educação do filho Michel, nascido
no castelo de Montaigne, entre 1 1 e 1 2
horas de 28 de fevereiro de 1533. O meni­
no era acordado todas as manhãs ao som
da espineta para que seus ouvidos se tor­
nassem refinados e, até os seis anos de
idade, os familiares e serviçais da casa
estavam proibidos de falar outra língua Na torre do castelo, recolheu-se e “uma
que não o latim, a fim de facilitar seu melancólica disposição de espirito”
aprendizado da linguagem culta da época. engendrou-lhe a idéia de escrever.
Além disso, um preceptor alemão, incapaz
de falar vulgarmente em francês, encarre­
gou-se de ensinar-lhe as primeiras letras
no idioma de Cícero. Enfim, cercado de
todos os cuidados, o menino Michel teve
uma infância “isenta de sujeição rigoro­
sa .. . sem pancadas nem lágrimas”, como
ele mesmo a descreverá mais tarde. Ape­
sar da infância feliz, quase não falará, em
seus escritos, da mãe, como seria de espe­
rar. Aliás, todas as referências às mulhe­
res serão sempre negativas, com raras
exceções. Também sobre os irmãos ele
próprio fornece poucos elementos. Sabe-
se contudo que os dois mais velhos falece­
ram ainda na primeira infância e os outros
quatro tornaram-se, quando adultos, se­
nhores de Beauregard, de La Brousse, de
FAB B RI

Saint Martin e de Mattecoulon. Bem dife­


rente é a impressão causada em Michel
pelo pai e por isso ele traçará um perfil de
Pierre Eyquem relativamente rico. Segun­ Inscrições gregas e latinas nas vigas
do as referências do filho, tratava-se de da biblioteca indicam a formação de um
homem de pequena estatura, saudável e renascentista. (Torre de Montaigne.)

207
OS PENSADORES

de espírito alegre, gênio sociável e res­ das saudações e agradecimentos nem de


peito pela palavra empenhada. Além ‘‘‘tais ou quais cumprimentos verbosos das
disso, tinha predileção pela vida ativa, regras protocolares”. O Parlamento tam­
era extremamente hábil e econômico, bém não o agradava; assim renunciou ao
sabendo viver espartanamente, quando se cargo de conselheiro em favor de um certo
tomava necessário. Florimond de Raymond, retirando-se para
Aos seis anos de idade Michel foi envia­ as terras de Montaigne, em 1 570.
do ao Colégio de Guyenne, em Bordeaux, Dois anos antes, o pai falecera e, depois
onde deveria continuar os estudos como de algumas rusgas com a mãe, mulher
aluno interno e permanecer até a adoles­ hábil nos negócios e principalmente auto­
cência. Aí recebeu influência de dois gran­ ritária, Michel, o mais velho dos irmãos,
des humanistas da época, os professores tornou-se Seigneur de Montaigne, patro-
George Buchanan e M. A. de Muret. De­ nímico que sempre preferiu ao nome ple­
pois de Guyenne, Michel passou a estudar beu Eyquem.
Direito e formou-se, provavelmente em Era então um homem de 37 anos de
Toulouse, em 1554. A carreira de advoga­ idade, casado desde os 32 com Françoise
do, por algum tempo, e os cargos de de la Chassaigne, filha de um conselheiro
conselheiro no Tribunal de Périgord e no do Parlamento de Bordeaux, e aspirava
Parlamento de Bordeaux deixarão recor­ apenas a viver sossegadamente com os
dações desagradáveis de bárbaras insti­ livros. A vida conjugal não o agradava e
tuições jurídicas e de condenações, a seu ter-se-ia “negado a desposar a própria
ver, criminosas. sabedoria, se ela o houvesse querido”.
Contrabalançando esses aspectos nega­ Não procurou o casamento, foi “levado a
tivos, foi na mesma época que teve início a tanto por motivos ocasionais”. Os filhos
grande alegria de sua vida: tomou-se que teve morreram prematuramente, so­
amigo de Etienne de la Boétie. O mais brevivendo apenas uma menina de com­
profundo sentimento tomou conta dos dois pleição frágil e enfermiça, cujo nome era
e nem a afeição paternal nem, mais tarde, Leonor.
o amor conjugal foram capazes de supe­ Dentro desse quadro melancólico, reco­
rá-lo. Páginas comoventes serão escritas lheu-se à torre do castelo e as tristezas da
por Montaigne para recordar essa ligação solidão levaram-no a escrever. Antes
e, quando a morte roubou o companheiro havia traduzido a Teologia Natural, do
querido, em 1563, a existência tomou-se espanhol Raymond Sebond (1569), e edi­
para ele extremamente melancólica; os tado os opúsculos de seu amigo Etienne de
prazeres que se lhe ofereciam como conso­ la Boétie, para os quais redigira um dis­
lação aumentavam ainda mais a tristeza curso preliminar. Esses trabalhos, no
da perda. Os dois participavam juntos de entanto, tinham sido concebidos em cir­
tudo e Montaigne, ao ficar sozinhò, deci­ cunstâncias bastante diversas. Agora,
diu não usufruir de nenhum prazer. achava-se “inteiramente desprovido de
qualquer assunto específico” e tomou
A torre do castelo então a si mesmo como objeto de análise e
discussão. “Concebidos nessa ordem de
idéias, extravagantes e fora de todas as re­
Enquanto Etienne vivia, Michel dedi- gras convencionais”, os Ensaios, como ele
cou-se aos divertimentos mundanos, gos­ mesmo os chamou, eram resultado da
tando de enfeitar-se, beber bom vinho e inclinação ao devaneio, à meditação e à
deliciar-se com as mulheres, vendo-as análise. Mas resultaram também do cos­
apenas como objeto de prazer sensível e tume de anotar as obras lidas quando lhe
achando-as, além de posgessivas, incapa­ vinham ao espírito tantas fantasias “sem
zes de elevação espiritual. ordem nem propósito”. As idéias são colo­
Por outro lado, o exercício da profissão cadas nos Ensaios sob a forma aparente
bem cedo desfez as ambições do recém- de contradições, e o leitor é conduzido por
formado. Tentou fazer carreira na corte e caminhos oblíquos e disfarçados. Parece
acompanhou Carlos IX a Rouen, em 1562, que Montaigne procura deliberadamente
mas logo percebeu não ter qualidades de desnortear o leitor superficial, apresen­
cortesão: não gostava dos salamaleques tando-se como modelo de inconstância e

208
MONTAIGNE

Os conflitos entre o Sacro Império Romano-Germánico, governado por Carlos V,


e a França de Francisco I, o “Rei do Renascimento Francês”, foram freqüentes
e marcaram toda a história da época vivida por Montaigne. Antes de entrar em
guerra, os dois monarcas encontraram-se várias vezes para tentar um acordo.

209
OS PENSADORES

incoerência, confundindo as pistas e falan­


do por meias palavras, porque “é empresa ESS^ffS
difícil, e mais árdua do que parece, acom­
panhar o andar do espírito, penetrar-lhe
as profundezas opacas e os ocultos
DE MICHEL
recantos”. DE MONTAI-
Os títulos que aparecem na obra fre- gne.
qüentemente pouco ou nada têm a ver com
o conteúdo: “A Propósito de um Costume l s e c oj^d.
da Ilha de Ceos” fala do suicídio, “Sobre
os Versos de Virgílio” permite-lhe discor­
rer a respeito do amor, “Dos Coches”
passa por variados assuntos e as carrua­
gens ficam para o fim. “Deve o Coman­
dante de uma Praça Sitiada Sair para
Parlamentar?” é questão que imediata­
mente faz o leitor sorrir, ao contrário de
“De Cerno Filosofar é Aprender a Mor­
rer”. Algumas partes tratam de comporta­
mentos como “A Ociosidade”, “A Covar­
dia”, “O Medo”, “O Arrependimento”, “A
Vaidade”; outras, de tipos humanos como
“Os Coxos” e “Os Mentirosos”.

SNARK INTERNATIONAL
Leitor assíduo de Sêneca, Montaigne
regozija-se em encontrar nele os lugares- ví 'BOnDEAKS.
comuns da sabedoria antiga, apresen­ Par S. Millanges Impritneur ordinaire du Roy.
tados em estilo nervoso, conciso e colori­ iM.D.LXXX.
do. Toma-lhe de empréstimo as máximas, .AVEC PRIKILEGE DK ROT,
metáforas e antíteses e, como o estóico
romano, procura familiarizar-se com
aquele sentimento da morte, adquirido
nos tempos de licenciosidade “em meio às De início, os Ensaios foram escritos para
mulheres e divertimentos”. Admirador si mesmo, “sem pensar na posteridade",
incondicional dos Opúsculos de Plutarco, mas em 1580 o próprio autor cuidou
é encorajado por esse outro estóico a da publicação dos dois primeiros livros.
exprimir opiniões sem preocupar-se com
assunto e composição. Nele tinha encon­
trado um autor pelo qual sentia simpatia Comte, em poder dos huguenotes (nome
fraterna e, portanto, nunca mais o aban­ que, na França, nos séculos XVI e XVII,
donou. os católicos davam aos protestantes, espe­
cialmente aos calvinistas). Isso lhe propi­
ciava muito prazer, permitindo-lhe viver
Diplomacia e arte militar em companhia de homens nobres, jovens e
ativos que o entusiasmavam, como o entu­
Abandonado seria o retiro na torre do siasmava também “a contemplação de
castelo em 1574, depois de dois anos tantos espetáculos trágicos, a liberdade
dedicados à redação da parte essencial do de conversar sem artifícios e de viver uma
Livro 1 e dos seis primeiros capítulos do existência viril e sem cerimônia”. A har­
Livro II dos Ensaios. NeSse ano volta às monia da música guerreira parecia dis­
tarefas de nobre, pois não era “inimigo da trair e aquecer-lhe os ouvidos e a alma,
agitação das cortes” e tinha inclinação fazendo-o pensar que “a morte é mais
para “dar-se muito bem na alta socieda­ abjeta, mais doentia e penosa no leito do
de”, contanto que pudesse dedicar-se a que em combate”. Os Ensaios ficarão,
essas tarefas em momentos que lhe aprou- depois, repletos de reminiscências de sons
vessem. No Bas-Poitou juntou-se ao exér­ de armas e planos estratégicos.
cito encarregado de retomar Fontenay-le- No mesmo ano Montaigne exerce tam-

210
MONTAIGNE

SNARK INTERNATIONAL
Reconstruído em 1884, o castelo de Montaicpie atesta uma fortuna que não
preocupava seu possuidor, pois nunca se deu ao trabalho de verificar títulos de
propriedade que deveria conhecer . . . não por desprezo filosófico pelas coisas
deste mundo . . . mas tão-somente por preguiça e negligência inconfessáveis”.

bém funções diplomáticas, ao encarregar- funções de alcaide acabaram se esten­


se de uma missão junto ao Parlamento de dendo até 1585. O capítulo final da sua
Bordeaux. Visita várias cidades termais gestão como prefeito não teria sido muito
dos Pireneus e recebe algumas recom­ honroso, desde que se dê crédito a duas
pensas cortesãs. Em 1576 escreve Apolo­ cartas de conselheiros da cidade, desco­
gia de Raymond Sebond, o mais longo de bertas no século passado. Elas revelam
seus escritos e o mais rico do ponto de que Montaigne se ausentou da eleição do
vista estritamente filosófico. Nesse traba­ seu sucessor em virtude da peste que gras­
lho encontram-se os elementos essenciais sava na época.
de seu ceticismo. Novo período de inteira Preferiu ficar a salvo na torre do caste­
concentração na obra escrita só recomeça lo, iniciando, como escritor, outro período
em 1578; durante dois anos completa o fecundo, compreendido entre 1586 e
Livro II dos Ensaios. Em 1580 publica os 1588. Foram então compostos os últimos
dois primeiros livros dos Ensaios e viaja Ensaios, que integram o Livro III. Logo
por algum tempo pela Itália, onde é depois de terminar a obra, dirigiu-se a
surpreendido pela sua eleição para o Paris a fim de publicá-la e encontrou a
cargo de prefeito de Bordeaux. O próprio capital convulsionada politicamente. Os
rei ordenou-lhe a posse, em 1581. Mon­ opositores do Rei Henrique de Na varra
taigne foi escolhido pela segunda vez e as vêem no Seigneur de Montaigne um inimi-

211
OS PENSADORES

go, pois este sempre fora adepto do lants”. O monumento funerário, hoje na
monarca. Montaigne é preso e jogado na Faculdade de Letras de Bordeaux, repre­
Bastilha por algumas horas. Da prisão só senta-o deitado, vestido com armadura de
foi libertado por intervenção da rainha- cavaleiro, e dois epitáfios em grego e
mãe, Catarina de Médicis. latim celebram-lhe a sabedoria, os costu­
mes, a eloqüência e o espírito.
Montaigne viveu numa época extrema­
Filosofar é aprender mente conturbada, da qual refletiu algu­
mas características fundamentais, espe­
a morrer cialmente as mais contraditórias.
A primeira dessas características si-
Apesar do episódio inglório, a estada tua-se no plano econômico, social e polí­
em Paris teve aspectos positivos. Serena­ tico das transformações que levaram à
dos os ânimos, Montaigne acompanhou a destruição da economia feudal da Idade
corte até Chartres, Rouen e Blois e, nessa Média e sua substituição pelas atividades
viagem, encontrou Mademoiselle de Gour- manufatureiras e de comércio. A primeira
nay, única mulher a quem se ligou profun­ metade do século XVI na França foi mar­
damente, amando-a como uma filha. Ela cada por esse processo, notando-se cada
tinha vinte e três anos e amava-o com vez maior participação do Estado nos
devoção, editando-lhe as obras depois de assuntos econômicos. A família de Mon­
sua morte. taigne constitui um exemplo típico dessa
O fim da vida anunciava-se através das época em que a burguesia ascendeu ao
crises de cálculos biliares, provável he­ primeiro plano da história social, so­
rança paterna. A despeito dos sofrimentos frendo uma evolução que não se faz sem
cada vez maiores e da freqüente imobili- conflitos profundos.
zação no leito, Montaigne levantava-se A segunda característica vincula-se à
para divertir-se e até mesmo cavalgar. primeira e é representada pela destruição
Detesta os médicos e pretende tratar-se das formas de pensamento vigentes na
por conta própria. A jovialidade e o Idade Média e pela transição'para estru­
humor galhofeiro não se alteram. Detesta turas de pensar diametralmente opostas
o “espírito rabugento e triste, que des­ ao teocentrismo medieval. O homem bur­
preza os prazeres da vida e se apega às guês necessitava de uma nova ciência da
desgraças e nelas se espoja”. Até a falta natureza e de uma nova teoria da essência
de memória contribui para o diverti­ humana que lhe permitissem criar um
mento: os lugares e livros que revê sempre relacionamento diferente com o mundo e
são vistos como sorrindo em fresca novi­ com os semelhantes. A fonte para alimen­
dade. Alguns novos amigos o entretêm, tar essa necessidade intelectual encontra­
especialmente Mlle. de Goumay e Pierre va-se nos autores gregos e romanos esque­
Charron, discípulo* e posteriormente siste- cidos ou condenados pelo espírito
matizador da filosofia cética aprendida medieval. Os antigos valorizavam a natu­
com o mestre. reza sensível, não a viam como residência
Já não é mais tempo de sonhar com de pecado e degradação. Além disso,
ambições mundanas e cargos políticos, freqüentemente colocavam o homem como
embora não lhe faltem oportunidades, centro e obietivo da indagação racional.
graças aos triunfos obtidos por Henrique O retomo aos modelos e às fontes da
de Navarra, ao qual esteve sempre ligado Antiguidade levou à constituição do hu­
politicamente. Limita-se então a dar a fei­ manismo renascentista, principal ali­
ção final aos Ensaios, que continuamente mento espiritual de Montaigne e de outros
revê e aos quais aerescenta novos pensa­ filósofos da época.
mentos. Casou a filha Leonor, em 1592, e Uma terceira característica, associada
esperava pacientemente pela morte, com a intimamente às anteriores — apesar de
qual já se acostumara através da medita­ conflitiva em muitos pontos —, foi o movi­
ção e do sofrimento. Ela chega em meio de mento de reforma religiosa, iniciado por
uma missa celebrada em seu próprio Lutero e liderado na França por Calvin o.
quarto, a 13 de setembro de 1592. No dia Os reformadores protestantes insubordi-
seguinte é sepultado na igreja “des Feuil- naram-se contra o domínio dos papas

212
MONTAIGNE

romanos e contra certos aspectos da dou­


trina católica. No fundo, o significado dos
protestos vinculava-se ao espírito do capi­
talismo burguês nascente. Expressão
clara disso ocorreu justamente na pátria
de Montaigne, ao surgir o protestantismo
calvinista dos huguenotes.
Todas essas características formaram
um processo unitário, muito embora con­
tivessem forças contraditórias e provocas­
sem, consequentemente, os mais variados
conflitos. Por isso mesmo formaram um
quadro extremamente rico do ponto de
vista intelectual e da sensibilidade: cheio
de esperanças risonhas e ao mesmo tempo
dominado por melancólicas dúvidas.

O ceticismo antigo
Todas essas dúvidas aparecem em Mon­
taigne, propondo um enigma difícil de ser
decifrado. Seu pensamento vai e vem, dá
voltas inesperadas, esconde-se atrás de
meias palavras e alusões, não expressa
tudo, temendo levantar suspeitas e gerar
perseguições. Montaigne retrata a própria
vida dá consciência: o que pode haver de
mais complexo e assistemático?
Contudo, é possível extrair dos Ensaios
alguns esquemas básicos e compor um
quadro mais ou menos coerente de idéias.
Para isso a coordenada intelectual mais
evidente que se propõe é o ceticismo, do
qual Montaigne foi, sem dúvida, o maior
representante renascentista.
Essa não era uma novidade na história
da filosofia. Pelo contrário, o ceticismo
foi formulado, em suas linhas essenciais,
pelos antigos pensadores gregos e roma­
nos. Formulações céticas encontram-se no
pensamento dos sofistas do século V a. C.
e mesmo antes, como em Xenófanes de
Colofônio. O sofista Protágoras de Abde-
ra, ao afirmar que “o homem é a medida
de todas as coisas”, teria estabelecido —
segundo uma interpretação que remonta a
Platão — a relatividade de todo conheci­
mento. Se é possível discutir o alcance do
seu relativismo, parece certo, todavia, que
ele negava a possibilidade de o conheci­
mento atingir a natureza (physis) das coi­ Quando Montaigne começou a estudar leis
sas, permanecendo adstrito ao plano da em Toulouse, Henrique If tomou-se rei e
convenção (nomos) humana. Outro sofis­ teve que enfrentar uma onda crescente
ta, Górgias de Leontinos procurou mos­ do calvinismo. (François Clouet,
trar que a idéia de ser é pelo menos tão “Henrique II”, Palácio Pitti, Florença.)

213
OS PENSADORES

(epoché), poder-se-ia então chegar à im-


perturbabilidade do espírito (ataraxia).
Arcesilau (315-241 a.C.) e Caméades
(214-129 a.C.) representaram o ceticismo
que se desenvolveu a partir de alguns
aspectos do platonismo. Com eles, um dos
principais momentos do ceticismo grego
transcorre no interior da Academia platô­
nica, na chamada Nova Academia. A últi­
ma fase do ceticismo grego teve início
como ressurgimento do pirronismo por
obra de Ptolomeu de Cirene e, principal­
mente, de Enesidemo de Cnossos e Sexto
Empírico, durante os séculos II e III da
era cristã. A obra de Sexto Empírico com­
pila sistematicamente todos os argumen­
tos céticos que o pensamento filosófico
havia forjado através dos séculos e consti­
tui a mais valiosa fonte para estudo do
ceticismo antigo. Nele é que Montaigne
baseou todas as suas interrogações de
homem renascentista. Mas aos argumen­
tos do ceticismo antigo deu novo conteú­
do. pois estava radicado numa expe­
riência pessoal e social muito diferente.

O que se pode saber?


Dúvidas e interrogações encontram-se
ein quase todos os Ensaios, constituindo-
“Sou atarracado e forte, tenho o rosto lhes a tônica dominante. Mas é principal­
cheio sem ser halofo; meu humorflutua mente no mais extenso deles, a Apologia
entre o jovial e o melancólico, de Raymond Sebond, que a índole interro-
meu temperamento é algo sanguíneo." gante do pensamento de Montaigne mani­
(Thomas- de Leu, retrato de Montaigne.) festa-se mais claramente. Isso não quer
dizer que esse escrito contenha todo o
conteúdo da filosofia do autor; traça-lhe,
impermeável à razão quanto a de nâo-ser. porém, o perfil extremo e oferece uma
Com isso rebatia a pretensão dos filósofos ordenação formal de suas idéias.
de atingir a intimidade das coisas e deixa­ Raymond Sebond, na sua Teologia
va as palavras como o único território Natural, resumira de maneira relativa­
entregue à interferência humana: a retóri­ mente simples os fundamentos da concep­
ca, como instrumento de persuasão, deve­ ção de vida própria à Idade Média. Para
ria substituir a ciência. essa concepção, as verdades da revelação
Mas o surgimento do ceticismo como cristã e as da razão humana deveríam
escola filosófica só se dá no período hele- necessariamente formar uma unidade
nístico, com Pirro de Elis (360-270 a.C.). isenta de contradições. Entre a natureza e
Pirro, desenvolvendo elementos céticos as Sagradas Escrituras deveria haver
contidos nas chamadas escolas socráticas coincidência perfeita em todas e em cada
menores, formulou um ceticismo radical, uma das partes separadamente, pois
que negava toda possibilidade de o ambas constituiríam representações da
homem atingir conhecimentos estáveis. A essência divina. A missão do pensamento
certeza sendo inalcançável, melhor seria humano seria a de mostrar claramente
abdicar ao empenho inútil de conhecer. essa harmonia, muitas vezes obscurecida
Pela suspensão de qualquer julgamento na natureza. O objetivo último de toda

214
MONTAIGNE

SNARK INTERNATIONAL

“Certas pessoas, referindo-se à minha ação como prefeito de Bordeaux, acham que
me conduzi como alguém que náo se apaixona bastante; não estão muito longe
da verdade . . . Dessa apatia não se deauza qualquer incapacidade e menos ainda
qualquer ingratidão para com esse povo. ” (Residência de Montaigne em Bordeaux.)

215
OS PENSADORES

investigação da inteligência deveria, por­ mente o finalismo de Sebond. A análise do


tanto, desembocar na verdade divina. O conceito aristotélico-medieval de causas
valor e a dignidade do homem, por sua — encontrada em vários Ensaios — instala
vez, só seriam conhecidos na medida em mais fortemente a dúvida a respeito de se
que o homem fosse visto como elo inter­ as coisas da natureza existem em função
mediário de uma corrente contínua, que do homem e voltadas para Deus. “Quando
vai das mais baixas formas de mundo gelam os vinhedos em minha aldeia, o pá­
natural até o ser supremo e absoluto, roco vê nisso uma prova da cólera divina,
Deus. O homem, como parte do reino da por causa da maldade dos homens. E
liberdade, resumiría em si o conteúdo de quem, ante o espetáculo de nossas guerras
todo ser espiritual, e nele é que o reino da civis, não exclama que a máquina do uni­
natureza realizaria seu verdadeiro desti­ verso saiu de suas engrenagens e o juízo
no. Montaigne parece concordar com final nos agarra pelos cabelos sem parar e
todas essas idéias ao fazer a Apologia de pensar que piores coisas aconteceram sem
Raymond Sebond. No entanto, logo se deixar de existir as mil partes restantes?”
manifesta a intenção fundamental e o sen­ Não têm fundamento, portanto, as
tido irônico da obra. Trata-se de uma pretensões subjetivas do indivíduo e a
estranhíssima apologia. Na realidade, a suposta supremacia do homem desfaz-se
pretexto de o defender e correr em auxílio na sucessão e gradação dos seres vivos. O
das damas que se apegavam ao piedoso ser humano é visto como essencialmente
sacerdote Sebond, como rocha firme con­ igual aos animais e Montaigne estabelece
tra os ataques dos incrédulos, Montaigne uma nova concepção teórica do homem,
desfere-lhe o mais rude golpe que um correspondente a uma nova unidade em
racionalista poderia receber; estabelece substituição ao finalismo: o sentimento de
que a razão não é capaz de provar o que comunidade essencial que abarca e entre­
quer que seja. Afirmam os opositores de laça todos os seres vivos, plantas ou
Sebond que ele não demonstra o que pre­ animais.
tendia demonstrar? Sem dúvida, a argu­
mentação do teólogo espanhol não é deci­ O que somos?
siva, mas será alguém capaz de uma
demonstração contrária? O que cumpre Montaigne expressa muito nitidamente
incriminar é a razão humana e não a inca- uma das tônicas fundamentais de seu
nacidade do Senhor Sebond. tempo e concorda com os filósofos renas­
Assim, a base da argumentação da pró­ centistas da natureza, que mostram que a
pria Teologia Natural é dissolvida. Isso unidade entre o homem e o mundo natural
ocorre ainda mais decisivamente quando significa, sobretudo, a consciência de uma
Montaigne põe por terra a simplista uni­ essencial comunidade metafísica. Mon­
dade estabelecida entre o conceito natural taigne não concorda, entretanto, com as
de homem e o conceito afirmado pela conseqüências dessa concepção no que se
revelação cristã. “Quem ensinou ao refere às possibilidades do conhecimento.
homem”, pergunta, “que as maravilhosas Aqueles filósofos concebem o homem
rotações da abóboda celeste . . . foram como um ser capaz de conhecer o universo
instituídas para sua comodidade e servi­ justamente por ser feito da mesma maté­
dão, e mantêm-se para ele e graças a ele ria e produzido pela mesma força cria­
através dos séculos? Existirá algo de mais dora do cosmo, e não por ser um ente
ridículo do que a fatuidade dessa pobre e privilegiado, ao qual o Criador revelaria
miserável criatura, que sequer é dona de todos os enigmas através das Sagradas
si mesma, ao considerar-se dona do uni­ Escrituras, como queriam Sebond e a teo­
verso, cuja parte mínima nem é capaz de logia medieval. Por ser semelhante à
conhecer, menos ainda de dominar?” natureza é que o homem estaria sempre
Na Apologia, as perguntas são feitas subordinado ao conjunto de relações de
para concordar com Sebond no sentido de causa e efeito naturais; pelo mesmo moti­
que a razão é impotente para conhecer por vo, o conhecimento é concebido como um
si só o universo, devendo por isso apelar processo parcial dentro do curso universal
para a fé cristã. Mas, por trás da concor­ e sujeito às leis que regem a totalidade do
dância, as interrogações destroem sutil­ cosmo.

216
MONTAIGNE

Em 1559foi concluída a paz entre Henrique II da França e Filipe II da Espanha,


o que possibilitou ao monarca francês agir contra os calvinistas. Montaigne
juraria fé católica posteriormente, mas alguns irmãos tomaram-se protestantes.
(Pintor anônimo “Paz de Chateau-Cambrèsis”, Arquivo do Estado em Siena.)

Mas como é possível, indaga Montaig­ conhecer a totalidade em que se encontra


ne, derivar as leis reguladoras do universo inserida.
a partir desse pequeno fragmento que é o O centro de toda a problemática do
homem? Nessa interrogação reside toda a conhecimento e, conseqüentemente, de
originalidade do ceticismo de Montaigne, toda filosofia não é, portanto, o mundo,
que soube fazer um giro na questão, inver­ mas o homem. E este pouco sabe de si
tendo os termos do problema e tomando mesmo. Perguntando-se a si próprio sobre
raiz de dúvida aquilo que a fantasia esté­ sua essência, constata um cerco de coisas
tica do panteísmo renascentista conside­ insólitas. Tudo o que vê parece estranho e
rava como solução. bizarro. Tanto as coisas próximas, pelas
Sebond e a metafísica finalista medie­ quais passa sem deter-se, quanto as dis­
val não teriam razão em acreditar que tantes e relatadas pelos outros. Aquilo
Deus revela ao homem a verdade sobre a que toma por real não é mais que uma
natureza: o homem não é um ser privile­ parcela do possível. Como pode pretender
giado. Mas também não têm razão os que isto aqui exista e aquilo ali não?
naturalistas da Renascença: o homem é Colocado diante do desconhecido, frente a
um desprezível fragmento do universo e um mundo de maravilhas, no qual se acha
seria demasiada pretensão considerar implicado, sem poder decifrá-lo, o homem
essa minúscula criatura como capaz de procura refúgio em si mesmo e na própria

217
OS PENSADORES

gada. Experimenta todas as coisas como


se realmente houvesse algo novo, como se
acabasse de despertar para a vida. Eterno
pesquisador, o homem está sempre em
busca de novos conhecimentos, para ele
tudo se torna objeto de meditação. Ofere­
ce um espetáculo permanente para si
mesmo, admirando-se. Não sabe ser a
sede de tantas coisas estranhas e sur­
preendentes. Seu interior parece incom­
preensível e novo e tem o pressentimento
de ter aprendido muitas coisas. Precisa
apenas dar forma a tudo isso. É suficiente
anotar o ocorrido e relatar o que se passou
consigo mesmo, como faz o próprio Mon­
taigne. Quando revê as coisas aconteci­
das, surgem as lembranças que o tocam,
tanto as próximas quanto as remotas.
Aquilo que se passou reaparece em outro
dia; uma lembrança leva a outra. Tudo isso
é um fato presente da vida e dos homens.
Mas o que se sabe, no fim das contas, da
vida e dos homens?
A resposta não é simples, pois nada se
pode dizer, nem uma só palavra que não
contenha ambigiiidades. “Eu nada tenho a
dizer de mim sólida, simples e inteira­
mente, sem confusão e sem mistura, nem
uma palavra . . . Não há descrição que
iguale, em dificuldade, à descrição de si
mesmo.'” É porque estamos presentes em
nós mesmos e somos retalhos de uma con-
textura tão informe e diversa, que cada
Em 1562, Montaigne foi com Carlos IX pedaço e cada momento faz seu jogo. Há
a Rouen. No reinado desse monarca tanta diferença dentro de nós mesmos,
houve a famosa Noite de São Bartolomeu. quanto entre nós e os outros. Quer o
(François Clouet, retrato de Carlos IX, homem se julgue assim, quer de outra
Kunsthistorisch.es Museum, Viena.) maneira, é ele mesmo um ser multiforme,
não um só, mas muitos de cada vez, sem
vida, essa coisa que lhe surge sempre jamais poder se compreender.
como um dado presente. A vida deve ser O homem é, portanto, para Montaigne,
vista exatamente como ela é, no que a tão estranho quanto enigmático, sejam
condiciona, no seu encadeamento, nas quais forem as experiências acumuladas
suas particularidades e no seu ritmo de em sua vida. Jamais atinge a si mesmo e
progressão. O homem sabe não ser possí­ nunca conhece as razões daquilo que se
vel escapar de si mesmo e não pode fugir passa consigo.
da vida. Sabe não ter existência fora das O conhecimento humano encerra-se
fronteiras onde está encerrado. Sabe não dentro dos próprios limites do sujeito pen­
ser mais que um indivíduo, que vive e sante e nada comunica de seguro sobre a
morre, passando altemadamente pela dor natureza das coisas, nem sobre o próprio
e pela alegria. Diante de si a morte, dis­ homem. Igualmente impossível é formular
tante ou próxima, mas sempre presente e um conjunto de preceitos éticos com vali-
com ressonâncias percebidas a todo ins­ dez objetiva. Assim como as sensações
tante. É somente para si mesmo que o nada descobrem dos objetos externos,
homem pode dirigir-se para se conhecer. também os valores, aparentemente ineren­
Ele é o ponto de partida e o ponto de che­ tes às coisas, reduzem-se a reflexos do

218
MONTAIGNE

O ceticismo resguardaria, desse modo,


o indivíduo contra o império das normas
morais impostas pelos outros e, opondo-se
a todas as convenções arbitrárias, assegu-
rar-lhe-ia a liberdade.
Ligam-se assim as teses fundamentais
da filosofia cética e os temas centrais do
estoicismo ético, o que levou muitos intér­
pretes a rotular Montaigne como um
estóico. Os temas estóicos ele os assimi­
lou através da leitura de Sêneca e Plu-
tarco e frequentemente reaparecem nos
Ensaios. Isso, no entanto, não permite
afirmar que ele tenha esposado a filosofia
do Pórtico. Ao contrário, alimentou-se
apenas das suas manifestações mais tar­
dias, encontradas nos romanos, e já bas­
tante distanciadas do corpo de doutrinas
formulado por Zenão de Cicio (334-262
a.C.), Cleanto (304-233 a.C.) e Crisipo
(281-208 a.C.). Nem a lógica, nem a
metafísica do estoicismo grego encon­
tram-se presentes em Montaigne. Assim
ele só pode ser enquadrado como estóico
na medida em que afirma claramente a
autonomia moral do indivíduo, diante dos
costumes e das convenções arbitrárias.
“Para julgar os meus atos, tenho leis e tri­
bunais próprios a que recorro.” Às leis e
convenções arbitrárias opõem-se como
critério as leis naturais. A natureza, con­
tudo, não é entendida como conjunto orde­
nado pela fatalidade universal, como que­
A Margarida de Valo is, irmã de riam as teorias do “cosmo” e da “natura”
Carlos IX, supõe-se que seja dirigido um dos estóicos gregos e romanos. Em Mon­
dos escritos de Montaigne, a Apologia taigne, o conceito de natureza não é um
de Raymond de Sebond. (Desenho de conceito rigoroso e reduz-se àquilo que
Clouet, Museu Condé de Chantilly.) flui espontaneamente do Eu individual. A
natureza é ele mesmo e Montaigne estu­
sujeito, e nada é bom ou mau “em si”. O da-se mais que qualquer outro assunto:
que geralmente chamamos valor das coi­ ele é sua própria metafísica. “Ouso não
sas nâo é o que elas carregam, mas o que somente falar de mim, mas falar somente
nós colocamos nelas. Impõe-se, conse­ de mim: disperso-me quando escrevo
quentemente, a renúncia a toda e qualquer sobre outra coisa.”
moralidade objetiva, pois não haveria
norma alguma, por mais extremada e
fantástica aos nossos olhos, que não seja Uma religião enigmática
encontrada em algum lugar. Nenhum con­
teúdo moral consagrado estaria assim
imune a uma virada pelo avesso, nos vai­ Imerso no Eu contraditório e cambian-
véns dos tempos e espaços. Os princípios te, independente e autônomo, o pensa­
da moral desfazem-se como espuma e só mento moral de Montaigne está no pólo
restaria ao homem voltar-se para si oposto ao da religião, se esta é entendida
mesmo e tentar encontrar um ponto fixo como explicação e chave do mundo. Para
de equilíbrio e quietude, subtraído as ele, a mais desgraçada e frágil criatura
transformações das coisas externas. entre todas é o homem, chafurdado no

219
OS PENSADORES

meio da turba e dos excrementos do posição de Montaigne é a de levantar dú­


mundo, amarrado à pior, à mais morta e vidas e afirmar a ignorância humana. Mas
estagnada parte do universo. Os instintos a religião é considerada válida na medida
dos animais seriam mais perfeitos do que em que afirma o enigma da distinção do
a razáo humana e a religião não pode homem. Todas as soluções que propõe
resolver todos os problemas, pois não para esse enigma seriam, porém, incom­
seria mais que um fruto do costume. patíveis com sua condição humana. En­
“Nascemos cristãos do mesmo modo que quanto interrogação, só permanece legí­
somos perigordinos ou alemães.” A cir­ tima sob condição de ficar sem resposta.
cuncisão. a quaresma, o jejum, a cruz, o Seria, portanto, um modo de desvano, e o
celibato dos padres, a utilização de uma desvario é essencial ao homem. Quando
língua sagrada no culto, a encarnação de nos colocamos no centro do humano, não
Deus, o purgatório, todos esses elementos através do entendimento contente consigo
do cristianismo encontram-se nas reli­ mesmo, mas como consciência que se
giões pagãs. “O homem é bem insensato; maravilha consigo mesma, torna-se im­
não saberia forjar um simples inseto e possível anular o sonho de um reverso das
forja deuses às dúzias.” Interroga-se coisas, ou reprimir a invocação de um
então: o Deus da Bíblia inclui-se entre além inefável. Mas, se existe uma Razão
essas dúzias? Terrível questão para a qual no universo, o homem, segundo Montaig­
o autor dos Ensaios evita respostas muito ne, não penetra seus segredos e tem de
diretas. Na Apologia de Raymond Sebond governar a vida apenas a partir de si
afirma que não recebemos nossa religião a mesmo.
não ser a nosso modo c por nossas mãos e
isso acontece com todas as religiõeâ. O
homem as recebe no país onde se encontra Em política, prudência
e isso é um dos critérios de-sua aceitação.
A idade também influi: as religiões são Governar a vida não é apenas uma ques­
tanto mais seguidas quanto mais velhas tão moral e religiosa, implica também
forem. Ou então o homem se deixa levar tomar partido no sentido político do
pela autoridade daqueles que suStentam a termo. Montaigne viveu numa época em
religião, ou teme as ameaças que ela faz que surgiram inúmeras teorias sobre o
aos crentes, ou ainda acredita esperanço­ governo, tentando resolver as interroga­
samente em suas promessas. Outra re­ ções suscitadas pelo conjunto de fenôme­
gião, porém, com outras testemunhas, nos econômicos e sociais. Não obstante
promessas e ameaças iguais, poderia considerou impossível formular teorias
infundir, pela mesma via, uma crença válidas para todo o sempre, as idéias polí­
contrária. ticas devendo ser limitadas ao que pode
Não obstante to^as essas críticas, não ser conhecido pela experiência. Thomas
se encontra em Montaigne a pretensão de More (1478-1535) imaginou uma Uto­
submeter à discussão metódicà os argu­ pia, Lutero (1483-1546) e Calvino
mentos tradicionais sobre a essência da (1509-1 564) foram obrigados a tratar das
divindade ou para a demonstração de sua questões políticas envolvidas na reforma
existência. O que é compreensível, pois, se religiosa, Maquiavel (1469-1536) elabo­
a metafísica não tem condições para rou uma concepção política realista, Jean
explicar a natureza, muito menores chan­ Bodin (1530-1596) formulou novas idéias
ces teria para penetrar num domínio mais para dar conta da decadência dos estados
complexo. Em conseqüência, o problema medievais. Em todos esses pensadores
religioso restringe-se tão-somente à esfera respira-se uma atmosfera de renovação
do humano. Trata-se de decidir se, no con­ mais ou menos acentuada. Montaigne, ao
junto das coisas e no curso da vida, existi­ contrário, resguarda-se prudentemente
ría um tipo de finalidade que autorize o num empirismo bem de acordo com seu
homem a considerar-se como centro de ceticismo, seu subjetivismo e seu ideal de
interesse para um poder sobre-humano. O imperturbabilidade: expressões significa­
problema religioso remete assim ao pro­ tivas do individualismo burguês.
blema do orgulho. Leu Erasmo e Maquiavel, sem dúvida,
Em suma, em relação ao cristianismo, a sem falar na República e nas Leis de Pla-

220
MONTAIGNE

“Casei com trinta e três anos, mas acho que deveriamos fazê-lo aos trinta e cinco,
como suqere Aristóteles", ou então como Tales, que “fixou ainda melhor os
limites da idade. Na mocidade, respondeu à mãe, que insistia para que se casasse,
que ainda não era tempo; mais tarde, já maduro, objetou que já não era mais
tempo." (“Os Esposos Protegidos pelos Anjos", tapeçariafrancesa do século XV.)

221
OS PENSADORES

SNARK INTERNATIONAL

“Nossas reflexões úteis tomam-se mais embaraçantes e difíceis na medida em que


se fazem mais sérias e profundas. O vício, a morte, a doença são
assuntos graves sobre os quais não podemos meditar muito tempo sem cansar. ”
(Etienne Ficquet, retrato de Montaigne, gravura, Biblioteca Nacional de Paris.)

222
MONTAIGNE

tão, mas encontrou defeitos fundamentais nar tão leve quanto possível a autoridade
nessas construções, que lhe pareceram do Estado. Para ele, o melhor governo
artificiosas e incapazes de serem coloca­ seria o que menos se faz sentir e assegura
das em prática. Para ele, as instituições a ordem pública sem pôr em perigo a vida
estabeleceram-se aos poucos pelo uso. De privada e sem pretender orientar os espíri­
uma maneira ou de outra, o equilíbrio tos. Um tal tipo de governo é o que con­
acabou por impor-se entre as forças, inte­ vém a homens esclarecidos, conscientes de
resses e apetites em jogo na vida humana, seus direitos e deveres e obedientes às leis
e com esses materiais é que se teria for­ da pátria e do príncipe, homens que agem
mado a sociedade. Ajuntem-se alguns ho­ não por temor mas por vontade própria.
mens e eles se ordenarão “como esses Montaigne não escolheu as instituições
objetos heterogêneos que pomos no bolso sob as quais viveu, mas resolveu respeitá-
e acabam por se ajeitar sozinhos”, melhor las, a elas obedecendo fíelmente, como
do que se pretendéssemos colocar ordem achava correto num bom cidadão e súdito
neles. Ainda que sejam ladrões e assassi­ leal. Que não lhe pedissem mais do que o
nos, encontrarão um meio de formar um exigido pela razão e pela cqnsciência.
Estado e outorgar-se um governo. As leis, Escravo da razão, transmitiu essa ser­
para Montaigne, nascem do acaso ou de vidão cheia de perigos à filosofia que lhe
causas que escapam à razão; cumpre sucedeu e marcou uma linha de desenvol­
obedecê-las, pois asseguram a ordem, vimento do pensamento ocidental. Com
mas não se deve ficar iludido sobre seu ela destruiu verdades dogmáticas e mos­
valor intrínseco. Elas mantêm-se não por­ trou que todas se contradizem, mas dei­
que sejam justas mas porque são leis. xou aberta a possibilidade de se concluir
Nisso residiria o fundamento místico de que a própria contradição possa ser
sua autoridade e esse constitui o seu único verdadeira. Numa certa medida foi o que
fundamento. viria a acontecer com Descartes: a sus­
Se as instituições são filhas do costume pensão pirrônica do juízo, encontrada no
e se a política é uma arte rudimentar, o autor dos Ensaios, transformou-se na dú­
melhor governo para cada país é o que vida metódica cartesiana e a análise do Eu
serve agora e vem servindo desde sempre. possibilitou a Descartes concluir “penso,
Os homens observam os inconvenientes da logo existo”.
situação presente e aspiram a mudanças Por outro lado, Pascal viria a se irritar
por meio da repressão dos abusos. Mas com Montaigne, chamando-o pejorativa­
assim fazendo arriscam-se a abalar o mente de pirrônico puro. Apesar disso,
corpo social como um todo. Seria admis­ Pascal abarcou em síntese todas as
sível corrigir algumas imperfeições evi­ suas contradições, pois “não é em Mon­
dentes, mas pretender refundi-lo inteira­ taigne mas em mim mesmo que se acha o
mente seria “remediar os defeitos que nele vejo”. Tomou-lhe de empréstimo
particulares pela confusão geral e curar a a argumentação sobre o homem, para vol-
doença pela morte”. tar-se contra ela e inverter completamente
o sentido dos Ensaios.
O século XVIII aproveitou-se em larga
Escravo» da razão medida de Montaigne. Montesquieu
(1689-1755) classificou-o entre os poetas
Montaigne foi um conservador, mas da filosofia e Voltaire colocou-o no exér­
nada teve de rígido ou estreito, muito cito dos que atacam “1’Infâme”, a Igreja:
menos de dogmático. Por temperamento e “Montaigne, esse autor encantador, / ora
razão foi bem o contrário de um revolu­ profundo, ora frívolo, / de tudo duvidava
cionário; certamente faltaram-lhe a fé e a impunemente / e zombava mui livremente
energia de um homem de ação, o idea­ / dos estúpidos tagarelas da Escola”.
lismo ardente e a vontade. Seu conserva­ Mais tarde, o poeta romântico Chateau-
dorismo pode ser visto, sob certos aspec­ briand (1768-1848) atacou-o porque
tos, como o que no século XIX viria a ser “zombava da boa fé do leitor”, mas ape­
chamado de liberalismo. Em sua concep­ sar >disso os Ensaios ressoam sutilmente
ção política o indivíduo é deixado livre nas suas Memórias cTAlém Túmulo.
dentro do quadro das leis e se procura tor­ Stendhal (1783rl842) consultou os En-

223
OS PENSADORES

satos para escrever o tratado Do Amor e mente, o texto do ensaio sobre os canibais
Béranger lastimava humoristicamente: numa passagem da Tempestade e uma
“Quantas idéias me roubou esse homem!” extensa linhagem de “ensaístas” escreveu
Fora da França, os admiradores e os em língua inglesa. O ensaísta e poeta
detratores foram muitos, formando um Ralph Waldo Emerson (1803-1882)-, nos
rico cortejo. Alfieri (1749-1803), Foscolo Estados Unidos, encontrou em Montaigne
(1778-1827) e Leopardi (1798-1837), na um mestre de vida e os Ensaios pareciam
Itália. Na Inglaterra, Shakespeare ter sido escritos por ele mesmo numa exis­
(1564-1616) aproveitou, quase integral­ tência anterior.

CRONOLOGIA
1533 — Nasce a 28 de feverei­ 1555 — Calvino reprime pelo maso Campanella e Cláudio
ro. Calvino adere à Reforma. terror uma tentativa de revolta Monteverdi.
Henrique VIII casa-se com em Genebra. 1569 — Traduz a Teologia
Ana Bolena. 1556 — Pomponazzi publica Natural de Raymond Sebond.
1536 — Carlos V, imperador De Naturalium. . . Causis. 1571 — Recebe o colar da
do Sacro Império, invade a 1557 — Espanha e Inglaterra Ordem de Saint Michel e o títu­
Provença. Francisco I da Fran­ em guerra contra a França. lo de Cavaleiro da Câmara do
ça confisca Flandres, Artoise e Conhece Etienne de la Boétie. Rei.
Charolais. 1559 — Morte de Henrique II, 1577 — Palestrina e Zoilo
1539 — Inicia os estudos no ascensão de Francisco II ao encarregam-se da revisão do
Colégio de Guyenne, em Bor­ trono francês e consequentes cantochão. El Greco pinta o
deaux, completados em 1546. conflitos entre o parlamento e o Altar de São Domingos.
1541 — Nascimento de Pierre poder real. Amyot traduz as 1580 — Publica em Paris os
Charron, posteriormente discí­ Fidas Paralelas de Plutarco. dois primeiros volumes dos
pulo e sistematizador do ceti­ Acompanha o rei, viajando Ensaios. É publicada Jerusalém
cismo de Montaigne. para Rouen e Blois. Libertada de Torquato Tasso.
1543 — São publicados De 1562 — Ronsard publica os 1581 — Viaja pela Itália e é
Revolutionibus Orbis Terra- Discursos sobre as Misérias de eleito prefeito de Bordeaux.
rum de Copérnicoe De Corpo- Nosso Tempo. As lutas religio­ 1582 — Gregório XIII refor­
ris Humani Fabrica, escrito por sas transformam se em guerra ma o calendário. Giordano
Vessálio. civil na França. Bruno publica o livro De Um-
1545 — Início do concilio de 1563 — Deixa-se abalar com a bris Idearum.
Trento e da Contra Reforma. morte de la Boétie. 1585 — Deixa a prefeitura de
1546 — Michelangelo começa 1564 — Nasce Galileu. Bordeaux.
a decoração da Basílica de São 1565 — Casa-se com Fran- 1591 — Shakespeare escreve
Pedro. Tintoretto pinta a Apre­ çoise de la Chassaigne. Henrique VI. Campanella pu­
sentação no Templo. Nascem 1566— É publicado o Método blica Philosophia Sensibus De-
Tycho Brahe e Cervantes. para Conhecimento da História monstrata.
1547 — Estuda Direito em de Jean Bodin. 1592 — Falece a 13 de setem­
Toulouse. 1568 — Torna-se proprietário bro no castelo de Montaigne.
1553 — Du Bellay publica da senhoria de Montaigne com 1595 —Surge a edição póstuma
Antiguidades de Roma. a morte do pai. Nascem Tho- dos Ensaios.

BIBLIOGRAFIA
Moreau, Pierre: Montaigne, Paris, Boivin, 1939, reed. 1958.
Villey, Pierre: Les Essais de Montaigne, Malfère, 1932, reed. Nizet, 1961.
Merleau-Ponty, Maurice: Lecture de Montaigne, in Temps Modernes, 1947.
Brunschvicg, Leon: Le Progrès de la Conscience dans la Philosophie Occidentale, Paris, Presses
Universitaires de France, 1927, reed. 1953.
Brunschvicg, Leon : Descartes et Pascal Lecteurs de Montaigne, La Baconnière, 1945.
Cassirer, Ernst: El Problema dei Conocimiento en la Filosofia y en la Ciência Modernas, México -
Buenos Aires, Fondo de Cultura Econômica, 1953.
Jeanson, Francis: Montaignepar Lui-même, Coleção “Écrivains de Toujours”, Paris, 1954.
Strowski, Fortunat: Montaigne, Alcan, 1906, reed. 1931.
Weiler, Maurice: Pour Connaítre la Pensée de Montaigne (incluído na edição dos Ensaios da Editora
Globo).
Cresson, Andre': Montaigne, sa Vie, son Oeuvre, coleção“Philosophes”, Paris, 1961.
Thibaudet, A.: Montaigne, Gallimard, 1963.
Bernard Groethuysen : Anthropologie Philosophique, Librairie Gallimard, Paris, 1952.

224
OS PENSADORES

SNARK INTERNATIONAL
A revolução na astronomia realizada por Nicolau Copémico pareceu a Giordano
Bruno apenas uma confirmação das doutrinas encontradas nos escritos do culto
a Hermes Trismegisto, que divinizava o Sol como centro do Universo
(O sistema copemiciano representado por gravador anônimo, Biblioteca
Nacional de Paris.) Na página anterior: retrato de Bruno. (Arborio Mella.)

Renascimento foi caracterizado traram novos meios de expressão. Os

O por profundas transformações


ocorridas na vida e na visão de
mundo do homem europeu. Os horizon
tes geográficos alargaram-se com o de­
pintores não mais representavam as
principais personagens do drama huma­
no­ descarnadas e inseridas dentro de um
mesmo pano de fundo dourado, como no
senvolvimento da arte da navegação e estilo bizantino da Idade Média. Os
as conseqüentes descobertas do caminho grandes da época passaram a ser retra­
marítimo para as índias, do continente tados com feições de homens de carne e
americano e do circuito para uma volta osso e integrados em paisagens naturais,
completa pelo mundo. A classe social cheias de montanhas, rios, árvores e flo­
dos burgueses floresceu, as cidades res. A natureza, revalorizada, era mos­
dedicadas ao comércio internacional trada como fonte de vida e beleza e não
enriqueceram e a economia européia dei­ mais como o perigoso mundo material,
xou de gravitar dentro das limitações ocasião de pecado. Os músicos substi­
dos feudos medievais. A personalidade tuíam os sons monocórdicos do canto­
individual despertou e os artistas encon­ chão religioso pelas novas tonalidades

226
BRUNO

do madrigal amoroso e cortesão, pre­


nunciando a polifonia barroca. Paralela­
mente, as regras da vida cristã estavam
enfraquecidas e os rigores da moral
agostiniana não eram mais obedecidos
com tanta severidade. A verdade é que
os homens estavam se relacionando den­
tro de novas coordenadas e a visão do
mundo não mais podia seguir a orienta­
ção teocêntrica, que prevalecera durante
séculos na Idade Média. Como conse­
quência, engendraram-se transforma­
ções significativas no pensamento cientí­
fico e filosófico. Maquiavel (1469-1527)
funda uma nova ciência dos assuntos
políticos, desvinculando-a de preocupa­
ções morais e religiosas. Erasmo
(14657-1536), Thomas More (1478-
1535) e outros humanistas renovam o
estudo dos textos antigos e defendem o
homem como ser capaz de criar seu pró­
prio projeto de vida. Montaigne
(1533-1592) expressa o advento do
individualismo do homem moderno e
desenvolve uma atitude cética diante do
mundo. O retorno à Antiguidade faz res­
surgir filosofias esquecidas, quando não
condenadas, na Idade Média, como o
estoicismo, o materialismo e o neoplato-
nismo. Uma nova orientação é dada ao
estudo de Aristóteles.
A religião sofre abalos profundos e
cada vez mais se questiona a possibili­
dade de fundamentá-la racionalmente
através da estrutura conceituai aristoté-
lica, tal como a escolástica havia feito.
Surgem as filosofias místico-religio-
sas de Agrippa von Nettesheim
(1468-1535), Paracelso (1493-1541) e
Jakob Bõhme (1575-1624) e eclode a
Reforma de Lutero (1483-1546) e Calvi-
no (1509-1564).
A revalorização do humano e da vida
natural e presente inclui o interesse pela
natureza: o que antes era visto como
mero local de tentações para uma alma
ARBORIO MELLA

que aspirasse a recompensas noutro


mundo, toma-se objeto de conhecimento
científico. Em consequência, desenvol­
vem-se tentativa.s de estudo experi­
mental dos fenômenos — esboçadas
desde o século XIII nas Universidades Nicolau Copémico (em cima),
de Paris e Oxford. Esse tipo de investi­ formulando o heliocentrismo, e Tycho
gação é que ganhará contornos definidos Brahe (embaixo), com precisas
com os trabalhos científicos de Leonardo observações dos astros, alteraram a
da Vinci (1452-1519) e de outros pensa- concepção medieval do Universo.

227
OS PENSADORES

dores, a prenunciar a física de Galileu e calvinismo, mas logo indispõe-se com a


Newton, desenvolvida no século XVII. intolerância sectária dos adeptos dessa
Copérnico (1473-1543) formula a céle­ corrente religiosa. É então obrigado a
bre teoria heliocêntrica, Tycho Brahe deixar a cidade. Em Tolosa permanece
(1546-1601) faz observações precisas durante dois anos ensinando na universi­
sobre o movimento dos astros e Kepler dade, onde se dedica sobretudo à arte
(1571-1630) prepara o caminho para a combinatória de Raimundo Lúlio e a téc­
descoberta da lei da gravitação univer­ nicas de memorização. Em 1 581 passa a
sal de Newton. viver em Paris, entre o ódio dos seguido­
Todas essas transformações não se res de Aristóteles e o entusiasmo de al­
fizeram sem conflitos profundos, pois guns colegas por sua inteligência bri­
significavam, de maneiras diversas, a lhante e extraordinária erudição. Em
derrocada de uma ordem espiritual, so­ 1582 publica As Sombras das Idéias, o
cial e econômica, que há séculos consti­ Canto de Circe e Arquitetura e Comen­
tuía o cerne da vida européia. Os setores tário da Arte de Lúlio, todas versando
tradicionais ameaçados reagiram e en­ sobre a mnemotécnica e a arte combina­
frentaram as inovações, às vezes com tória de Raimundo Lúlio.
violência, levando à morte alguns repre­ Em abril de 1 583, a ameaça de guerra
sentantes da nova mentalidade. Foi o civil na França leva-o a abandonar o
que aconteceu a uma das figuras mais país e dirigir-se à Inglaterra, onde
representativas da Renascença italiana: publica Arte de Recordar, Explicação
Giordano Bruno. dos Trinta Selos e Selo dos Selos. Antes,
porém, dirige uma carta às autoridades
Uma vida de conflitos da Universidade de Oxford, em que soli­
cita liberdade para revelar publicamente
Bruno nasceu em 1548, na pequena
o resultado de suas descobertas filosó­
cidade de Nola, perto de Nápoles, filho
ficas e a consequente refutação da filoso­
do militar João Bruno e de Flaulisa
fia dominante. É aceito como professor,
Savolino. Na pia batismal recebeu o
mas em pouco tempo entra em conflito
nome de Filipe, mudado depois para
com os doutores da universidade e, al­
Giordano, quando vestiu o hábito de clé­
rigo no convento napolitano de São guns meses depois, volta para Londres.
Domingos. Durante dez anos viveu a Na capital britânica, escreve e publica,
vida conventual até doutorar-se em teo­ no espaço de dois anos, várias obras:
logia em 1575. Nesse período estudou Ceia das Cinzas, Sobre a Causa, o Princí­
avidamente quase toda a filosofia grega pio e o Uno, Despacho da Besta Triun­
e medieval e a cabala judaica, deixan­ fante, Cabala do Cavalo Pégaso, O Asno
do-se impressionar particularmente pelo Cilênico, Dos Heróicos Furores e Sobre
“onisciente Lúlio” (1233-1315), o o Infinito, o Universo e os Mundos.
“magnânimo Copérnico” (1473-1543) e No outono de 1585 está de novo na
o “divino Cusano” (1401-1464). Esses França e publica Árvore dos Filósofos,
estudos acabaram por afastar Bruno da hoje perdida, dois diálogos exaltando
ortodoxia católica e motivaram constan­ pretensas descobertas de seu compa­
tes censuras e admoestações dos supe­ triota Fabrício Mordente e dois livros
riores. Afinal foi processado por heresia, sobre Aristóteles. Um deles expõe e
mas salvou-se fugindo para Roma. comenta a física aristotélica, opondo-se
Não fica muito tempo nessa cidade. a ela. Sua oposição às doutrinas do filó­
Abandona as vestes sacerdotais e pere­ sofo grego é reafirmada, ainda com mais
grina pelo norte da Itália, ensinando vigor, nas Cento e Vinte Teses Antiperi-
astronomia e escrevendo uma pequena patéticas sobre a Natureza e o Mundo.
obra, hoje perdida, Sobre os Sinais dos Com isso irrita novamente os doutores
Tempos. da Sorbonne e ê obrigado a deixar outra
As autoridades eclesiásticas, no en­ vez a França, procurando refúgio na Ale­
tanto, não o tinham esquecido e, em manha. A Universidade de Wittenberg o
1579, é desterrado, passando a viver na acolhe em nome da liberdade de pensa­
Suíça e na França. Em Genebra, adere ao mento e Bruno ganha condições para

228
BRUNO

Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um dos maiores representantes do espírito


renascentista italiano. Não bastasse ter sido um dos grandes pintores e
desenhistas de todos os tempos, além de estudioso da anatomia e inventor de
engenhos mecânicos, contribuiu para a história da filosofia com suas idéias a
respeito da experiência e da matemática nos conhecimentos científicos.

publicar outros escritos sobre Lúlio e deixa Helmstadt e dirige-se para Frank-
contra os aristotélicos. A atmosfera furt-am-Main, onde permanece até a pri­
favorável, contudo, começa a mudar com mavera do ano seguinte. Nessa cidade
a preponderância progressiva dos calvi- recebe insistentes convites para retornar
nistas, que já tinham criado problemas à Itália, por parte de um veneziano, cha­
para ele em Genebra. mado João Mocenigo, que deseja conhe­
Dirige-se então a Praga, onde perma­ cer os segredos da mnemotécnica. Pelo
nece por pouco tempo e, em 1588, desejo de rever a terra natal e de reinte­
muda-se para Helmstadt, onde fica grar-se no seio da Igreja, Bruno acaba
durante um ano e meio, produzindo por atender à solicitação. Em agosto de
fecundamente. Ao cqntrário das obras 1591, chega à cidade de Pádua, onde
redigidas na Inglaterra, em italiano, em reencontra um fiel discípulo, Bessler, a
Helmstadt escreve em latim sobre diver­ quem dita duas obras: Sobre as Forças
sos assuntos: imagens, signos e idéias, Atrativas em Geral e Sobre os Selos de
mnemotécnica, magia e metafísica. O Hermes e de Ptolomeu. Em seguida,
mais importante, contudo, são três gran­ muda-se para Veneza, hospeda-se na
des poemas latinos: Sobre o Tríplice Mí­ casa de Mocenigo e começa a ensinar-
nimo e a Tríplice Medida, A Mônada, o lhe a arte de memorizar. O aluno, contu­
Número e a Figura e Sobre o Imenso e do, decepciona-se, pois esperava conse­
Inumerável ou Sobre o Universo e os guir do mestre algum conhecimento
Mundos. secreto que lhe permitisse alcançar a
Em junho de 1590, Giordano Bruno sabedoria definitiva.

229
OS PENSADORES

Bruno, porém, não percebeu o estado contrário à dignidade humana sujeitar-


de espírito do aluno. Iria pagar caro se e submeter-se”.
pela desatenção. Em maio de 1592, Bruno não queria submeter-se à acei­
quando faz preparativos de viagem para tação passiva da ortodoxia escolástica,
Frankfurt, a fim de publicar /!.$• Sete que conheceu no convento dominicano de
Artes Liberais e Inventivas, é preso por Nápoles e que constituía a ciência oficial
Mocenigo na água-furtada de sua pró­ de sua época. Essa ortodoxia tinha sido
pria casa. O aluno exige uma declaração formulada, nos seus princípios essen­
em que Bruno afirmasse ter-lhe transmi­ ciais, pelos teólogos e filósofos da Idade
tido apenas os segredos da mnemotéc- Média, quando integraram num todo
nica. Não conseguindo seu intento, Mo­ unitário as doutrinas provenientes da
cenigo entrega Bruno ao tribunal do revelação dos textos bíblicos e o pensa­
Santo Ofício, juntamente com manus­ mento racional aristotélico.
critos não publicados. Entre estes, en­ O sistema teológico-filosófico resul­
contravam-se duas obras, hoje perdidas: tante tinha como uma de suas peças bá­
Sobre os Atributos de Deus e Pequeno sicas a astronomia de Ptolomeu e afir­
Livro de Conjurações. mava ser a Terra um ponto imóvel
Iniciado o processo, em 3 de julho de privilegiado, centro do movimento circu­
1592, Bruno declara estar arrependido lar de todos os corpos celestes. A essa
de todos os erros que porventura tivesse astronomia juntava-se a concepção de
cometido e pronto para reorientar toda que, excetuando-se o movimento circu­
sua vida. Nesse ponto, o processo pode­ lar uniforme, impresso por Deus aos cor­
ria ter-se encerrado com a absolvição, pos celestes, todos os demais movimen­
mas o papa não o permitiu e fez com que tos são imperfeições, constituindo
o processo passasse ao tribunal do Santo transgressões ou reparações de trans­
Ofício em Roma. Em janeiro de 1593, gressões da ordem divina.
Bruno é entregue às autoridades roma­ A visão do mundo contra a qual Bruno
nas e encarcerado durante sete anos, ao se insurgiu foi a de um universo de coi­
fim dos quais é condenado à morte na sas fixas criadas por um Deus transcen­
fogueira, juntamente com suas obras dente. A tal concepção ele contrapôs as
consideradas heréticas. No dia 17 de descobertas astronômicas de Copémico,
fevereiro de 1600, Giordano Bruno é que contrariavam o próprio núcleo da
executado no Campo das Flores. concepção medieval. Ao formular o sis­
tema heliocêntrico, Copérnico pôs por
O inimigo é a ortodoxia terra a idéia básica da astronomia de
Ptolomeu, atribuindo à Terra uma situa­
Muito antes que isso acontecesse, ção secundária. Bruno viu as implica­
Bruno já sabia de seu destino. Nos proê- ções da teoria copemiciana e defendeu o
mios do Despacho da Besta Triunfante astrônomo polonês dos ataques dos dou­
e Sobre o Infinito, o Universo e os Mun­ tores da Universidade de Oxford, no
dos declarara-se perfeitamente cons­ livro Ceia das Cinzas. Contudo, ao
ciente de que seria “odiado e censurado, mesmo tempo critica-o por ser “apenas
perseguido e assassinado”. Assim, ape­ um matemático”, que não foi capaz de
sar de não poder esperar êxito com seu ver o verdadeiro significado de suas
estudo e trabalho, antes motivos de des­ descobertas. Esse significado Bruno foi
gosto que o aconselhavam a “calar-se buscar em outras fontes bem diferentes,
antes que falar”, Bruno, com os olhos construindo uma cosmologia cujos tra­
fixos na eternidade, tanto mais se esfor­ ços principais são o panteísmo e o
ça “por fender a corrente adversa do rio animismo.
impetuoso”, quanto mais vê “aumentada
a veemência da mesma por seu trajeto A natureza é divina
agitado, profundo e precipitado”. Por
isso, empenhou-se em luta encarniçada Giordano Bruno vê o Universo como
contra a ignorância, o preconceito, o um sistema em permanente transforma­
dogma e a intolerância, achando ser ção, no qual, como já afirmava Heráclito
“digno de mercenários ou escravos e de Éfeso, todas as coisas são e não são

230
BRUNO

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pnnci|:tf cr rnn. trònnti mci t>ucfmjnJwfwncenwiutHrrcwtttidii nitcrne.
ncnniipü
mtim r>i
lü.-i>in .wn
uiaotnmt
unw mo
au JtiMct
tro tiníttoL

Ao lado da preocupação em estudar cientificamente a natureza e da


revalorização da literatura e da arte greco-romana, a Renascença
caracterizou-se também pela difusão das ciências ocultas, da cabala, das
eligiões esotéricas, provenientes ao Egito antigo e da astrologia mesopotâmica.
(Johannes Bianchino: Astrologia; século XV, Biblioteca de Ferrara.)

23
OS PENSADORES

ao mesmo tempo. O mundo não é, eomo


pretendia o aristotelismo — filosofia que
simboliza, segundo Bruno, tudo que é
morto e seco no universo —, uma estru­
tura hierarquizada na qual o movimento
(atualização de uma potência) seria
comandado, em última instância, pelo
estático (o ato puro do imóvel primeiro
motor). Ao contrário, o Universo seria
um todo no qual nada é imóvel, nem
mesmo a Terra, como afirmava a antiga
religião dos egípcios e Copérnico viera
confirmar com seu heliocentrismo.
O movimento de todas as coisas, con­
tudo, não seria de natureza puramente
mecânica, como se o mundo fosse um
jogo de partículas móveis, cujo desloca­
mento e cujos entrechoques resultariam
de um movimento inicial comunicado
por um ser superior. O movimento, para
Bruno, seria da natureza dos seres vivos
e todas as coisas possuiríam um princi­
pio anímico, que as faz transformarem-
se permanentemente.
O princípio anímico, para Bruno, não
se distingue da própria matéria anima­
da. A metafísica que ele propõe consti­
tui, assim, um rigoroso monismo mate­
rialista. Não existem, para ele, duas
substâncias (matéria e espírito) distin­
tas. Tudo o que existe estaria reduzido a
uma única essência material provida de
animação espiritual.
A matéria animada, por outro lado,
carregaria dentro de si a própria divin­
dade e a doutrina formada por essa idéia
constitui o panteísmo de Giordano
Bruno. A ortodoxia cristã, apoiada na
metafísica aristotélico-tomista, colocava
Deus como primeira causa, motor imó­
vel e perfeição absoluta, que seria trans­
cendente, ou seja, tem existência plena e
separada de suas criaturas. Bruno, ao
contrário, concebe Deus como imanente
ao Universo e idêntico a Ele. Deus não
seria um ser que tivesse criado o Univer­
so, mas seria o próprio mundo. A natu­
reza investigada e exaltada pelos ho­
mens da Renascença atinge, desse modo,
a sua mais completa valorização: torna-
se divina.
“Arauto e mártir da nova e livre Ao panteísmo e ao animismo articu­
filosofia”foi a expressão usada por lam-se outras teses do pensamento de
Bernardo Spaventa para caracterizar o Giordano Bruno. Para ele, o Universo
papel histórico de Bruno. (Estátua não é finito e limitado, como pretendia a
de Bruno na Praça Navona, em Roma.) concepção medieval, mas infinito e ili-

232
BRUNO

CdN DEL4I O
G1OR.DA» COMEDIN DEL IiRlr-
TtO XG LAX O .A C H .A D 1. 9X l-
HO BKVNO co di nulla ^4ch.tdemiaidetto il ft-
goiano. flidito.

IN T RI STITI .A HILJ-
DE GLf HEROICI
7 FVRORI. rií: in HiUritMc trifhs.

J/ nrdto illuflrc et eccellentc Cj-


u<illte>ütSionor Phillifflo
Sidneo.

IN P J R I G GI,

P A R IG I, ^dpprefjo Gwjelmo Gtuliano. ^íl


Appreífo Antonio Baio. [egno de

I’ ^4nno. 1585. M. D.LXXh^tL

SCALA
Em janeiro do ano de 1600, ao ouvir a sentença que ordenava a queima de seus
livros e sua morte na fogueira, Giordano Bruno declarou altivamente aos
juizes do tribunal da Inquisição: “Tendes talvez mais medo de proferir a
sentença contra mim do que eu em recebê-la”. (Frontispicios do Candelabro e
Dos Heróicos Furores, de Bruno, editados em 1582 e 1585, respectivamente.)
mitado, como afirmou Lucrécio (c. 98 a. refa de ordem cognitiva, mas sobretudo
C. — 55 a. C.) no poema Da Natureza, uma obrigação moral e religiosa.
repetindo a tese dos antigos atomistas Essas idéias ele as sintetizou numa
gregos. A Terra não seria o centro privi­ metafísica estética, bem ao gosto da
legiado do Universo, como mostrou a Renascença italiana e proveniente de
astronomia de Copérnico, e existiríam diversas fontes. Conceitos fundamentais
inumeráveis mundos habitados, como chegaram a Bruno a partir de Heráclito
também se lê em Lucrécio. e dos materialistas gregos. Outros ele­
O homem é visto por Bruno como um mentos são aqueles que o ligam ao
ser privilegiado que reflete em si a tota­ neoplatonismo de Marcilio Ficino
lidade do Universo e é capaz, portanto, (1433-1499) e Pico delia Mirandola
de penetrar-lhe todos os segredos. A (1463-1494). A influência predomi­
mente humana seria idêntica à mente di­ nante, contudo, foi a da antiga religião
vina que compõe o cerne de todas as coi­ egípcia do culto ao deus Toth, escriba
sas. Exercer as faculdades de imagina­ dos deuses, inventor da escrita e patrono
ção e memória (esta entendida no de todas as artes e ciências. A Hermética
sentido amplo de receptáculo de toda a (do deus grego Hermes Trismegisto,
vida espiritual), permitiria ao homem identificado com Toth pelos neoplatô-
ascender à verdades ocultas do Univer­ nicos) desempenhou papel fundamental
so. Fazer isso não seria apenas uma ta­ no pensamento de Bruno, com a ampla

233
OS PENSADORES

difusão que teve na Renascença. Quando formar os átomos do materialismo de


inquirido sobre as causas do movimento Demócrito, Epicuro e Lucrécio em mô-
da Tenra, na Ceia das Cinzas, Bruno res­ nadas animadas magicamente, Bruno
ponde com uma citação quase literal de prenunciou a monadologia de Leibniz.
textos herméticos. Também o materialismo dinâmico de
Quanto à influência que Bruno exer­ Diderot (1713-1784) deve muito a ele.
ceu nos filósofos posteriores é inegável o Para a história da ciência, Bruno contri­
parentesco que existe entre seu pensa­ buiu com uma nova visão do universo,
mento e o panteísmo de Spinoza apesar dos elementos animistas e poéti­
(1632-1677). Por outro lado, ao trans­ cos contidos em sua cosmologia.

CRONOLOGIA
1548 — Giordano Bruno 1564 — Morte de Calvino. Ceia das Cinzas; Sobre a
nasce em Nola, perto de Nascimento de Galileu. Causa, o Princípio e o Uno;
Nápoles. 1565 — Em junho, Bruno Sobre o Infinito, o Universo
1550 — São publicados o veste o hábito de clérigo. e os Mundos e Despacho da
Tratado dos Escândalos de 1566 — Jean Bodin publica Besta Triunfante.
Calvino e as Odes de Ron- o Método para o Fácil Co­ 1585 — Publica Cabala do
sard. nhecimento da História. Cavalo Pégaso, O Asno Ci-
1551 — Reabertura do con­ 1575 — Bruno torna-se lênico e Dos Heróicos Furo­
cilio de Trento. doutor em teologia. res. Regressa à França.
1552 — Nascimento do 1578 — Bruno publica So­ 1586 (?) — Bruno deixa a
poeta inglês Edmund Spen- bre os Sinais dos Tempos, França, preocupado com
ser. pequena obra que se perdeu. eventuais perseguições. Ob­
1554 — Casamento de Ma­ 1579 — Bruno vai para To- tém a cátedra em Witten-
ria Tudor e Filipe de Espa­ losa, onde recebe o título de berg.
nha. Invenção do processo doutor em artes. 1587 — Maria Stuart é
de amalgamação para ex­ 1582 — Bruno escreve epu­ executada.
trair a prata. blica As Sombras das 1591 — Bruno regressa à
1555 — Os franceses pi­ Idéias, O Canto de Circe e Itália.
lham Havana e tentam esta­ Arquitetura e Comentário 1592 — É encarcerado pelo
belecer-se no Brasil. Calvi­ da Arte Combinatória de Santo Ofício.
no reprime uma tentativa de Raimundo Lúlio. 1596 — Nascimento de
revolta em Genebra. 1583 — Deixa Paris com Descartes.
1562 — Bruno muda-se pa­ destino às Ilhas Britânicas. 1600 — Bruno é condenado
ra Nápolis. 1584 — Escreve e publica e executado.

BIBLIOGRAFIA
Cassirer, Ernst: El Problema dei Conocimiento en la Filosofia y en la Ciência Modernas,
vol. 1, Fondo de Cultura Econômica, Buenos Aires, 2.a edição, 1965.
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Corsano, Antonio: II Pensiero di Giordano Bruno, nel suo Svolgimento Storico, Florença,
1940.
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Mercati, A.: II fommario dei Processo di Giordano Bruno, Cidade do Vaticano, 1946.
Rossi, Paolo: Clavis Universalis, Milão, 1960.
Troilo, E.: La Filosofia di Giordano Bruno, Roma, 1918.
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Felice Tocco, Bylichnis, Roma, 1927.
Tocco, Felice: Le Fonti piu Recenti delia Filosofia dei Bruno, Accademia Lincei, Roma,
1892.

234
‘ GALILEU
OS PENSADORES

m 1609, um professor da universi­

E dade italiana de Pádua teve notí­


cia de que, na Holanda, fora inven­
tado um telescópio e imediatamente
procurou melhores informações sobre
ele. A partir de entáo pôs-se a aperfei­
çoar o instrumento; duplicou sua capaci­
dade de aumento e começou a fazer
observações astronômicas. Um ano de­
pois, publicava um livro intitulado O
Mensageiro Celeste, no qual descrevia o
aspecto montanhoso da superfície lunar,
revelava a existência de inúmeras estre­
las até então desconhecidas e mostrava
que Júpiter possui quatro satélites. Logo
depois, através de outras observações,
descobria as fases do planeta Vênus, as
formas de Saturno e as manchas solares.
Todas essas descobertas consti­
tuíam grandes inovações para a filosofia
da natureza definida pelos teólogos da
Igreja, fundados na física e astronomia
aristotélicas, puramente especulativas.
Mostravam o verdadeiro caminho para o
conhecimento da natureza: a observação
dos fenômenos tais como ocorrem e não
como os explica a pura especulação. À
observação o professor de Pádua ajunta-
ria a experimentação e a matemática
(menosprezada por Aristóteles), que
consideraria como a verdadeira lingua­
gem da natureza. Desse modo, Galileu
tornou-se um dos principais criadores do
moderno método científico.

O limite da audácia
A oposição de Galileu Galilei ao espí­
rito teológico e metafísico acompanha­
va-o havia muito tempo. Nascido em
Pisa, no dia 15 de fevereiro de 1564,
Galileu matriculou-se na Escola de Artes
da cidade natal para estudar medicina,
em 1581. Quatro anos depois, abando­
na-a para dedicar-se exclusivamente à
matemática e, em 1589, torna-se cate-
drático dessa disciplina na Universidade Criados pela Contra-Reforma católica,
de Pisa. Nessa época começa a fazer as os tribunais do Santo Ofício tinham
primeiras investigações em física, parti­ como finalidade reprimir todas as idéias
cularmente em mecânica, tentando des­ consideradas perigosas pela
crever os fenômenos em linguagem ma­ hierarquia da Igreja. (Pedro
temática. Isso suscita violenta oposição Berruguete: “Auto de Fé na Presença
da ciência oficial, representada por de S. Domingos de Gusmão”, Museu do
seguidores de Aristóteles, que discor­ Prado, Madri.) Na página anterior:
dam da aplicação da matemática aos Galileu, por Justus Sustermans,
domínios da física. Essa nova orientação Palácio Pitti, Florença. (Fabbri.)

236
GALILEU

dialogo
D I
GALILEO GAL1LEI LINCEO
MATEMÁTICO SOPRAORD1NARIO
DEI.I.O STVDIO Pi PISA.
E Filofofo, e primário dcl
SERENÍSSIMO

GR.DVCA DI TOSCANA-
Duuc nc i congrefli<li quattrogiornate H difcorrc
k pra i due

MASSIMI SISTLMI DEL MONDO


TO1JLMAICO, E < OPERMCANOi
■prt^mnd > indrt:rminai.ueexle le raficm f ibjfjkbe, t Kalierali
tantoper ítua, tpuantr per faltra parte.

PLESSNER INTERNATIONAL
IN HOr.ENZA, Per Gio:Batifla Landini MDCXXXJl.
CO.V Á/cí.VZ.i DL' SPPEUjORl.

Frontispício da l.a edição do Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas,


Biblioteca do Seminário Vescovile, Pádua; retrato de Galileu, gravura feita
a partir da tela de Justus Sustermans, Galleria degli Uffizi, Florença.

metodológica seria a maior contribuição ção segundo a qual o Sol, como os de­
de Galileu para a história das idéias. mais astros, seria um corpo composto de
Em 1604. Galileu elabora a lei da um único elemento, o éter.
queda livre dos corpos, fundamental A descoberta das manchas solares foi
para todo o desenvolvimento posterior criticada violentamente pelos teólogos,
da mecânica racional. Seis anos depois, que viam na tese de Galileu uma destrui­
começa a fazer observações astronô­ ção da perfeição do céu e uma negação
micas, passando a trabalhar em Floren­ dos textos bíblicos. Galileu escreve,
ça, junto a Cosimo II de Médici. Em então, uma carta para seu aluno Bene-
1612, publica o Discurso sobre as Goi- detto Castelli, afirmando que as passa­
sas que Estão sobre a Agua, no qual ridi­ gens bíblicas não possuem qualquer
culariza a teoria aristotélica dos quatro autoridade no que diz respeito a contro­
elementos sublunares e do éter — supos­ vérsias de cunho científico; a linguagem
to componente único dos corpos celestes da Bíblia deveria ser interpretada à luz
e responsável por sua “perfeição-” — e dos conhecimentos da ciência natural. A
adota a concepção de Demócrito, ato- carta começou a circular em inúmeras
mista, do universo material. Mais uma cópias manuscritas e a oposição ao
manifestação antiaristotélica viria, em autor cresceu progressivamente. As au­
161 3, na História e Demonstração sobre toridades, contudo, limitavam-se a ins-
as Manchas Solares, onde apóia a teoria truí-lo para que não defendesse mais as
de Copérnico e mostra o erro da concep­ idéias copemicianas do movimento da

237
OS PENSADORES

FABBRl
Para Descartes, Galileu “intenta examinar as matérias físicas mediante razões
matemáticas, e nisso estouperfeitamente de acordo com ele e não acho outro
meio de encontrar a verdade”. (Casa de Galileu em Arcetri,perto de Florença.)
Terra e estabilidade do Sol, por serem tados de suas primeiras experiências e
contrárias às escrituras sagradas. Du­ acrescentando algumas reflexões sobre
rante alguns anos Galileu permanece em os princípios da mecânica, essa obra
silêncio. Mas, em 1623, depois de pole­ seria a mais madura de todas que escre­
mizar com um jesuíta sobre a natureza veu. No mesmo ano Galileu perde a visão
dos cometas, volta a ridicularizar as e espera o fim de seus dias, que só iria
teorias aristotélicas no livro O Ensaia- acontecer quatro anos depois, no dia 18
dor e começa a redigir o Diálogo sobre de janeiro de 1642.
os Dois Maiores Sistemas. Neste livro
confronta as idéias de Ptolomeu — Como investigar
segundo o qual a Terra seria estática e o a natureza?
Sol giraria em torno dela — e de Copér-
nico, que afirmava exatamente o contrá­ Galileu tornou-se o criador da física
rio. Porque nenhum editor desejava cor­ moderna, quando enunciou as leis funda­
rer maiores riscos, a obra só seria mentais do movimento; foi também um
publicada em 1632. Foi quando o perigo dos maiores astrônomos de todos os
se declarou: em outubro do mesmo ano, tempos, pelas observações pioneiras que
o autor é convocado para enfrentar um fez com o telescópio. Essas descobertas,
tribunal do Santo Ofício. contudo, foram resultado de uma nova
Condenado em junho de 1633, Galileu maneira de abordar os fenômenos da
é obrigado a abjurar suas teses, sob natureza e nisso reside sua importância
Íiena de ser queimado como herege. Pre- dentro da história da filosofia. No
ère viver e se retrata, mas não se ficou campo das idéias filosóficas, Galileu é
sabendo exatamente em que termos. mais importante pelas contribuições que
Sobre o acontecimento correram versões fez ao método científico do que propria­
muito diferentes, às vezes contraditó­ mente pelas revelações físicas e astronô­
rias. Seja como for, Galileu continuou a micas encontradas em suas obras.
viver e, em 1638, publica clandestina- O primeiro princípio do método gali-
mentê o Discurso a Respeito de Duas leano é a observação dos fenômenos, tais
Novas Ciências. Recapitulando os resul­ como eles ocorrem, sem que o cientista

238
GALILEU

se deixe perturbar por preconceitos


extra-científicos, de natureza religi­
osa ou filosófica. Quando Galileu
aperfeiçoou o telescópio e pôs-se a
observar os astros, deixou de lado a
idéia de perfeição dos corpos celestes,
tal como afirmava a astronomia aristo-
télica que, partindo da pressuposição de
que os corpos celestes descreviam órbi­
tas circulares uniformes, concluiu que
esses corpos seriam compostos exclusi­
vamente de um elemento (o éter) e
seriam, conseqüentemente, homogêneos
e perfeitos. A observação das manchas
solares, feita por Galileu, destruiu essa
teoria e mostrou que o pressuposto da
perfeição dos corpos celestes não deve­
ria ser levado em consideração pelos
astrônomos.
O segundo princípio do método de

SCALA
Galileu consiste na experimentação. Se­
gundo esse princípio, nenhuma afirma­
ção sobre fenômenos naturais, que se
pretenda científica, pode prescindir da
verificação de sua legitimidade através
da produção do fenômeno -em determi­
nadas circunstâncias. Em obediência a
esse preceito, certa vez Galileu subiu à
torre de Pisa e deixou cair dois corpos
livremente, a fim de mostrar como era
incorreta a afirmação do senso comum
(endossada pelos aristotélicos) de que a
queda livre dos corpos depende de suas
massas e de que suas velocidades seriam
diferentes.
O terceiro e último princípio da meto­
dologia galileana estabelece que o corre­
to conhecimento da natureza exige que
se descubra sua regularidade matemá­
tica. Foi o que Galileu fez, por exemplo,
ao revelar que a velocidade adquirida
por um corpo que cai livremente, a par­
tir do repouso, é proporcional ao tempo
e que o espaço percorrido é proporcional
ao quadrado do tempo empregado em
percorrê-lo.
Formulando esses princípios, Galileu
estruturou todo o conhecimento cientí­
fico da natureza e abalou os alicerces
que fundamentavam a concepção medie­
val do mundo. Destruiu a idéia de que o
mundo possui uma estrutura finita, Alto-relevo de Andréa Pisano,
hierarquicamente ordenada e substi- representando a astronomia;
tuiu-a pela visão de um universo aberto, Museu Opera dei Duomo, Florença.
indefinido e até mesmo infinito. Em Instrumentos de Galileu, Museu de
lugar de conceber o múndo como divi- História da Ciência, Florença.

239
OS PENSADORES

dido em duas partes, uma superior, reza é fundamentalmente um conjunto


constituída pelo céu, e a outra inferior, a de fenômenos mecânicos, tal como afir­
Terra em que vive o homem, mostrou mou Demócrito na Antiguidade. De­
que todos os objetos físicos devem ser monstrou o engano do espírito pura­
concebidos como sendo da mesma natu­ mente lógico e dedutivo da filosofia
reza e tratados de modo idêntico, pelo aristotélico-escolástica, quando apli­
menos por aqueles que desejam conhecer cado à explicação dos fenômenos físicos.
cientificamente o Universo. Pôs de lado E mostrou, finalmente, que “o livro da
o finalismo aristotélico e escolástico, natureza está escrito em caracteres
segundo o qual tudo aquilo que ocorre matemáticos” e que, “sem um conheci­
na natureza ocorre para cumprir desíg- mento dos mesmos, os homens não pode­
nios superiores; e mostrou que a natu­ rão compreendê-lo”.

CRONOLOGIA
1564 — Galileu Galilei nas­ 1607 — Galileu escreve a do para depor perante o car­
ce em Pisa, a 15 de feverei­ Defesa contra as Calúnias e deal Belarmino. Um decreto
ro. Nasce Shakespeare. Imposturas de Baldessar da Sagrada Congregação do
1581 — Galileu ingressa na Capra. Index proíbe a obra de Co­
Universidade de Pisa, para 1609 — Aperfeiçoa o teles­ pérnico. Galileu retorna a
estudar medicina. cópio. Florença, em junho.
1584 — Galileu inicia seus 1610 — Descobre os satéli­ 1623 — Galileu inicia o
estudos de matemática. tes de Júpiter. Escreve o Diálogo sobre os Dois
1585 — Abandona a uni­ Mensageiro Celeste. Maiores Sistemas.
versidade sem obter grau. 1612 — Publica o Discurso 1632 — O Diálogo é im­
1589 — Galileu obtém a cá­ sobre as Coisas que Estão presso em fevereiro. Em ou­
tedra de matemática em Pi­ sobre a Água e a História e tubro, Galileu recebe ordem
sa. Demonstrações sobre as de apresentar-se em Roma.
1592 — É nomeado para a Manchas Solares. O domini­ 1633 — Apresenta-se em
cátedra de matemática na cano Lorini denuncia a dou­ Roma, em abril. Em 22 de
Universidade de Pádua. trina de Copérnico como junho abjura e o processo se
1600 — Da união de Gali­ herética. encerra.
leu com Marina Gamba 1615 — Lorini aponta Gali­ 1638 — Galileu publica o
nasce Virgínia. É publicado leu ao Santo Ofício. Discurso sobre Duas Ciên­
o Mysterium Cosmographi- 1616 — Galileu escreve o cias Novas.
cum de Kepler. Condenação Discurso sobre q Fluxo e 1642 — Morre a 18 de
e morte de Giordano Bruno. Refluxo do Mar. É convoca- janeiro.

BIBLIOGRAFIA

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rença, 1909, reimpressa em 1939.
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Turín, Juan: Galileo Atlântico y Kant Copernicano, Córdova, 1944.
Wohlwell, E.: Galilei und sein Kampffür Kopernikanische Lehre, Leipzig e Hamburgo,
1910.

240
OS PENSADORES

ascido na cidade italiana de Stilo,

N na Calábria, no dia 5 de setembro


de 1568, Campanella recebeu o
nome de Giovan Domenico, mas quando
entrou para a ordem dos dominicanos,
em 1583, passou a chamar-se Tommaso.
No convento estudou a filosofia aristoté-
lica, porém entusiasmou-se mais com as
doutrinas naturalistas de Bernardino
Telesio (1509-1588). Em 1591 publica
sua primeira obra, Filosofia Demons­
trada pelos Sentidos e, como resultado,
conhece pela primeira vez os rigores da
perseguição intelectual: passa alguns
meses preso sob suspeita de obter conhe­
cimentos de fonte diabólica. Libertado,
obrigam-no a voltar para a Calábria,
mas ele se dirige a Pádua, onde encontra
Galileu e é de novo processado, sendo
absolvido, no entanto. Algum tempo
depois, por ter discutido artigos de fé
1 IIO M A C AMP A N ELL£ com um judeu, é transferido para Roma,
D E onde, em 1596, abjura formalmente a
heresia que lhe era imputada. No ano
MONARCHIA seguinte, mais um processo é formado
H I S P A N I C A contra ele, fazendo com que fique confi­
DISCVRSVS. nado na Calábria. Para todos esses pro­
cessos, os acusadores encontravam ra­
Pr ooe m i v M. zões nas diversas obras de Campanella,
Onarcbia univerfa- nas quais estavam mesclados elementos
da filosofia neoplatônica e do materia-

B
lu profecia ab Orca
verftü Occnfum, per lismo de Demócrito, bem como temas
manum Afyriorum, políticos. Entre outras, escreveu Sobre a
Medorum , Perfi- Monarquia dos Cristãos (1593), Sobre a
rtim , Gracorum & Romanorum , Hierarquia Eclesiástica (1593), Discur­
(qui ab aquilâ Imperiali in triz sos aos Príncipes da Itália (1595) e Diá­
capita partiti fuerunt,) pervenit logos Políticos Contra Luteranos, Calvi-
tandem ad Hifpanos : quibuí, poft nistas e Outros Heréticos (1595).
ditcturnam fervitutem & direm- Na Calábria, Campanella sensibili­
ptionem <, fato univerfa concejft zou-se com a miséria da população e
cft, majori cum admiratione quam tornou-se líder intelectual de um complô
pricefforibm ejm, adqtiam illa et- político, que as autoridades acabaram
iam, ut eft rerum humanarum vi- por descobrir. Preso em 6 de setembro
A cifft- de 1599, era agora acusado não só de
heresia, mas também de sedição. Condu­
zido a Nápoles, sofreu torturas para
“O século futuro nos julgará, porque confessar sua participação no movimen­
o atual sempre crucifica os seus to, mas não se submeteu; conseguiu
benfeitores; mas depois ressuscitamos, simular loucura e, com isso, salvar-se da
ao terceiro dia ou ao terceiro pena de morte. Contudo, foi condenado à
século. ” (Retrato de Tommaso prisão perpétua, em 1602.
Campanella por Francesco Cozza e Nos primeiros tempos de prisão — na
página inicial de uma de suas obras qual permanecería durante 24 anos —
políticas, editada em 1640; Bibl. Gampanella procurou conciliar suas
Trivulziana, Milão.) Na página idéias com a autoridade da Igreja.
anterior: estátua de Campanella. Escreveu então A Cidade do Sol, em que

242
CAMPANELLA

descreve uma república ideal governada pensar verdadeiro. Ainda como precur­
pela razáo. Além disso, compôs uma sor de Descartes, afirmou o princípio da
série de poemas, talvez os mais originais autoconsciência como base do conheci­
da literatura italiana de sua época. mento e da certeza. Por outro lado,
Em 1609, redigiu uma obra sobre o muito antes dos filósofos idealistas,
paganismo, porém mais importante é a desenvolveu a doutrina segundo a qual
Metafísica, escrita, entre 1602 e 1603, identificam-se o conhecer e o ser. Em ou­
da qual chegou aos dias de hoje uma tra­ tros termos, Campanella admite que se
dução latina publicada em 1638. Quan­ possa desvendar a estrutura das coisas e
do Galileu foi condenado, em 1616, a essência do Universo através da inspe­
Campanella escreveu Apologia de Gali­ ção dos conteúdos da consciência.
leu, defendendo os direitos da ciência Para ele, essa inspeção revela, antes
frente à religião. Não parou aí, contudo, de mais nada, que o homem é um ser que
sua produção intelectual, apesar de existe, que é capaz de conhecimento e
encarcerado. Os trinta livros da Teolo­ que tem vontade. Assim, a existência, o
gia (1613-1614) reconsideram os dog­ conhecimento e a vontade seriam os atri­
mas católicos à luz de sua metafísica e butos fundamentais de todo e qualquer
as conseqüências políticas dessas idéias ser. Esses atributos seriam encontrados
encontram-se em Por que a Terra Toda também no ser supremo, Deus, do qual
Pode Lembrar-se . . ., onde Campanella, derivariam todas as coisas que se encon­
não obstante estivesse preso pela Igreja, tram na natureza.
defende a tese de que todas as nações No que diz respeito à moral, Campa­
devem aceitar a religião cristã. No cár­ nella afirma que o supremo bem consiste
cere redigiu ainda vários escritos sobre na autopreservação, entendida não num
astrologia e memoriais ao papa para que sentido puramente egoístico, mas como
fosse libertado. conservação da existência do homem em
Isso só foi conseguido em 1626. Diri- Deus, na vida futura. Conseqüentemente,
ge-se então a Roma e é chamado pelo Campanella identifica o ser bom com o
papa para realizar práticas mágicas e ser simplesmente, da mesma forma como
astrológicas. Na ocasião, procura fazer identifica ser e conhecer. Para ele, Deus
com que suas idéias de unificação polí­ é o supremo ser e o supremo bem, em
tica de todo o mundo sob a égide da direção ao qual o homem deve dirigir
Igreja sejam aceitas. Não conseguindo, todos os seus atos.
viaja à França, onde tinha grandes ami­ As idéias políticas, no entanto, consti­
zades entre filósofos como Gassendi e tuem a parte mais conhecida do pensa­
Mersenne. Ê recebido cordialmente pelo mento de Campanella. Em diversas
cardeal Richelieu e pelo próprio Rei obras, advogou o estabelecimento de
Luís XIII. Cuida da publicação de suas uma monarquia universal, tendo o papa
obras e permanece em Paris até a morte, como supremo governante espiritual e
no dia 23 de março de 1639. temporal. A Cidade do Sol contém o
esquema de um Estado ideal, inspirado
A Cidade do Sol na República de Platão e na Utopia de
Thomas More. O povo de A Cidade do
Campanella escreveu grande número Sol organiza toda sua vida segundo a
de obras, nas quais misturam-se gramá­ ordem da natureza, divide comunitaria-
tica, política e filosofia com medicina, mente seus bens materiais e suas mulhe­
magia e astronomia. De todo esse acer­ res. A administração seria feita por uma
vo, é possível retirar algumas idéias que rede de funcionários, encarregados de
permaneceram válidas e outras que organizar e transmitir o saber e as técni­
constituíram antecipações importantes cas. Os funcionários seriam, ao mesmo
dentro da história da filosofia. tempo, sábios e sacerdotes, embora não
Destaque especial merece sua teoria fossem cristãos. Campanella afirma, no
do conhecimento. Adiantando-se a Des­ entanto, que A Cidaae do Sol está tão
cartes, Campanella foi o primeiro filó­ próxima do cristianismo que bastaria
sofo moderno a estabelecer a dúvida uni­ juntar-lhe os sacramentos para tomá-la
versal como ponto de partida de todo totalmente cristã.

243
OS PENSADORES

CRONOLOGIA

1568 — Tommaso Campa- 1593 — Campanella publi­ 1600 — É forçado, sob tor­
nella nasce em Stilo, na Ca­ ca A Monarquia dos Cris­ tura, a confessar sua partici­
lábria, a 5 de setembro. tãos e Sobre a Hierarquia pação na conspiração
Nascimento do compositor Eclesiástica. Molina publica 1602 — Campanella escre­
Monteverdi. Da Justiça e do Direito. ve A Cidade do Sol.
1576 — Bodin publica A 1594 — O Parlamento de 1603 — Shakespeare publi­
República. Nasce São Vi­ Paris bane os jesuítas. ca Hamlet. Henrique IV
cente de Paula. 1595 — Campanella publi­ reintroduz os jesuítas na
1583 — Campanella entra ca o Diálogo Político contra França.
para a ordem dominicana. Luteranos, Calvinistas e 1608 — Nascimento de
1584 — Morte de Ivã, o outros Heréticos e os Dis­ Milton e do padre Antônio
Terrível. cursos aos Príncipes da Itá­ Vieira.
1585 — Nascimento de lia. 1616 — Campanella escre­
Jansênio. 1596 — Publicação do So­ ve Apologia de Galileu.

BRASIL
1587 — Criação da impren­ nho de uma Noite de Verão, 1621 — Nascimento de
sa vaticana. Maria Stuart é de Shakespeare. Jean de La Fontaine.
executada. 1598 — E publicado Arca- 1623 — Nascimento de

-
1589 — Campanella viaja dia do teatrólogo Lope de Pascal.

SÃO PAULO
para Nápoles. Vega. O holandês Van 1635 — Campanella publi­
1591 — Publica Filosofia Noort inicia a volta ao mun­ ca Monarquia das Nações.
Demonstrada pelos Senti­ do, completada em 1600. 1636 — Edita o projeto de
dos. É editado o Henrique 1599 — Nasce Cromwell. uma Reformulação das
VI, de Shakespeare. Campanella torna-se o líder Ciências, em cinco tomos.

E INDUSTRIAL
1592 — Nascimento do fi­ de uma conspiração na Ca­ 1639 — Morre a 26 de
lósofo Pierre Gassendi. lábria. março.

BIBLIOGRAFIA

ABRIL S. A. CULTURAL
Corsano, Antonio: Tommaso Campanella, Bari, 1961.
Amenio, Romano:Campanella, Bréscia, 1947.
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-COPYRIGHT MUNDIAL. 1973


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Bonansea, Bernardine M.: Knowledge of the Extramental World in the System of Tomma­
so Campanella, Franciscan Studies, vol. 17, números 2 e 3, 1957.

244
OS PENSADORES

rancis Bacon foi chamado de “pri­ civilização ocidental. Bacon viveu numa

F meiro dos modernos e último dos


antigos”, “inventor do método
experimental”, “fundador da ciência
moderna e do empirismo”. Diderot
época de movimento cultural intenso e
sua atividade política concedeu-lhe con­
dições para dominar essa efervescência,
dentro de uma perspectiva muito mais
(1713-17 84) afirmou que, numa época ampla do que a maior parte de seus
na qual “era impossível escrever a histó­ contemporâneos. Tendo nascido durante
ria daquilo que os homens sahiam, ele o reinado de Elizabeth I, foi testemunha
traçou um mapa do que eles deveríam e participante — nos setores econômico,
aprender”. social, científico, filosófico e religioso —
Outros, contudo, acham que Bacon foi dos combates entre as novas forças que
apenas o arauto da ciência moderna e ja­ surgiam e as antigas estruturas rema­
mais seu criador; ou então vão ainda nescentes.
mais longe em suas críticas, declarando A reforma religiosa realizada por
que ele nada compreendeu de ciência, foi Henrique VIII (1491-1547) trouxera
crédulo e totalmente destituído de espí­ consigo profundas consequências econô­
rito crítico. micas e sociais. Antes, dois terços do
Quanto à sua vida pessoal, o histo­ solo inglês estavam nas mãòs da Igreja
riador da filosofia Pierre-Maxime de Roma; com o confisco dessas proprie­
Schuhl declara: “Bacon não foi um des­ dades, surgiu uma pequena nobreza fun­
ses grandes homens dos quais se podem diária que, juntamente com os elementos
admirar igualmente o pensamento e a ligados às atividades comerciais flores­
atividade”. Sua existência teria sido a centes, serviría de sustentação econômi-
de um cortesão, adulador, intrigante, co-social para o absolutismo, em vias de
versátil e pronto a sacrificar fosse quem consolidação.
fosse para alcançar melhores posições. Além de compor o quadro econômico e
Não se pode negar — como diz o histo­ social mais amplo que explica os confli­
riador Wilhelm Windelband (1848- tos de seu tempo, esse fato relaciona-se
1915) — que o esplendor da vida de de maneira íntima à vida pessoal de
Bacon tenha sido prejudicado por man­ Bacon. Pelo lado paterno, ele era um tí­
chas de graves defeitos morais. A ambi­ pico representante dessa nova camada
ção desmedida precipitou-o nas intrigas social; da mesma forma que o pai, rece­
da vida cortesã. Através de procedi­ beu terras e títulos de nobreza, por ser­
mentos nem sempre muito lícitos, Bacon viços prestados à Coroa. A Inglaterra de
buscou os meios que lhe permitissem Elizabeth 1, depois de sangrentas lutas,
levar uma vida extremamente dispen­ conseguiu um estado de equilíbrio e
diosa. O egoísmo, somado à vontade de segurança interna, tornando-se a maior
triunfar, tirou-lhe o nobre sentimento da potência protestante da época e desen­
amizade. Não seria justo — diz ainda volvendo extraordinária força política.
Windelband — querer dissimular essas No campo científico e artístico, transfor­
deficiências, como o fizeram muitos mou-se no principal palco dos conflitos
admiradores entusiasrúados. Mas igual­ culturais, prolongando o Renascimento
mente injusto seria rebaixar também, italiano.
senão sua grandeza científica, pelo
menos o papel histórico decisivo que A inútil escolástica
desempenhou, lutando a vida inteira Francis Bacon, formado no próprio
pelo progresso das ciências da natureza. centro dessas lutas, lançado no meio das
Nas contradições da vida de Bacon, intrigas políticas — até certo ponto sozi­
podem ser encontrados todos os profun­ nho e ao me^mo tempo cheio das maio­
dos conflitos de um período particular­ res ambições pessoais —, intuiu com
mente rico da história da Inglaterra e da sagacidade o verdadeiro significado do
que estava ocorrendo à sua volta.
Na página anterior: retrato de Bacon Compreendeu que, numa situação como
por Paul van Somer, Gal. Nacional aquela, as forças decisivas do conflito
ae Retratos, Loi Ires. (Foto Fabbri.) eram as da inteligência e do saber. Reu-

246
BACON

Em Londres, às margens do Tâmisa, transcorreram quase todos os acontecimentos


da brilhante carreira política do Lorde Francis Bacon, barão de Verulam,
visconde de Saint Albans e chanceler do rei. Dele afirmaria D^lembert que
foi “o maior, o mais universal e o mais eloqüente dos filósofos”. (Vista de
Londres, desenho de Anthony von Findem (1560), Museu Britânico, Londres.)

niu, assim, as energias espirituais às


necessidades da ação e erigiu como divi­
sa a máxima “Saber é poder”. Esse prin­
cipio tornou-se o fim condutor de sua
vida e de sua atividade intelectual. Se na
própria vida o princípio “Saber é poder”
foi aplicado por ele com inexorável
unilateralidade e perigoso menosprezo
por qualquer lei moral, no campo da
ciência, ao contrário, onde os interesses
pessoais não o desviaram do caminho
traçado, aquele princípio permitiu a
construção de vasto e eficaz sistema de
idéias.
Francis Bacon nasceu no dia 2 2 de
janeiro de 1561, oitavo filho de Sir
Nicholas Bacon e Anna Cook. Desde
muito cedo sofreu influências antagôni­
cas. Seu pai desempenhava a importante
função de Guarda do Grande Selo e seu
tio William Cecil, lorde Burghley, foi
ministro da Rainha Elizabeth durante
quarenta anos. Esse lado da família edu-
cou-o para a carreira diplomática e ensi­
nou-lhe o comportamento mundano de
um verdadeiro cortesão. Por outro lado,
sua mãe, mulher de incomum cultura,
tradutora de obras religiosas latinas, Depois de servir à Rainha Elizabeth,
calvinista em teologia e puritana em Francis Bacon foi lorde chanceler do
moral, estimulou-o no sentido do zelo, Rei Jaime I (1566-1625),
dá dedicação e da severidade. Mãe até acima retratado pelo pintor Anton
certo ponto opressiva, preocupava-se van Dick. (Museu do Louvre, Paris.)

247
OS PENSADORES

com as leituras, o tipo de vida e as com­ os mais altos cargos do reino. Antes que
panhias do filho, mesmo quando este já isso acontecesse, viu-se subitamente sem
era adulto. O culto religioso familiar, fortuna. Logo depois de chegar à Fran­
que ela estimulava e no qual a leitura ça, maus negócios feitos pelo pai obriga-
diária da Bíblia era ato obrigatório, dei­ ram-no a prover sozinho a própria
xou marcas profundas até no estilo lite­ subsistência. Retornou então à Ingla­
rário de Bacon. Esses aspectos contradi­ terra e ingressou em Gray s Inn, espécie
tórios da formação de Francis Bacon de corporação que abrigava os advoga­
permitiríam explicar, segundo vários dos londrinos e, ao mesmo tempo, escola
historiadores, aspectos fundamentais de de Direito. Concluiu o curso em 1 582 e
sua vida e de sua obra. passou a exercer a profissão. Dois anos
Em 1573, com a idade de 12 anos, depois, foi eleito deputado do Parla­
Bacon ingressou no Trinity College da mento inglês e, em 1 589, voltou a Gray’s
Universidade de Cambridge, escola pre­ Inn, desta vez como professor.
ferida pela nova nobreza e pelos novos A carreira política continuou bri­
funcionários do Estado. Em Cambridge, lhante e Bacon, em pouco tempo, rece­
Bacon permaneceu até 157 5, adquirindo beu o título de conselheiro da Coroa. Em
sólidos conhecimentos de Filosofia anti­ 1 593, discursando na Câmara dos Co­
ga e escolástica. No dizer de seu secretá­ muns, fez críticas mordazes acerca de
rio, capelão e biógrafo, William Rawley, impostos exigidos pela Rainha Eliza-
o futuro filósofo e chanceler “sentiu beth. Depois disso, a soberana recusou-
aversão pela filosofia de Aristóteles, não se a nomeá-lo para as funções de Assis­
porque o autor carecesse de valor, uma tente de Procurador Geral da Coroa e
vez que sempre lhe reconheceu as maio­ Procurador da Coroa. Em compensação,
res qualidades, mas pela infecundidade o conde de Essex, seu protetor, faz-lhe
do método, sendo uma filosofia . . . apro­ doação de um belo solar e um parque em
priada para disputas e contendas, mas Twickenham, às margens do Tâmisa.
estéril para a produção de obras que Em Twickenham, Bacon dedicou-se
visem a beneficiar a vida do homem . . .” exclusivamente ao trabalho intelectual e
Ao mesmo tempo, Bacon dava-se redigiu os Ensaios, que o situam entre os
conta do incremento que se processava clássicos da literatura inglesa. A obra
desde os fins da Idade Média. Esse teve ampla difusão, revelando um espí­
incremento ele conheceu através de vá­ rito jovial, perspicaz, ao mesmo tempo
rias obras, como a de mineralogia e mundano e cultivado em letras clássicas
metalurgia de Biringuccio (1480-1539), e assuntos bíblicos. Segundo a maior
Sobre a Pirotecnia, e jia de Rodolfo parte dos críticos, os Ensaios constituem
Agrícola (1494-1555), Sobre as Coisas o retrato mais real de Bacon. Encerram
Metálicas. Conheceu também os Discur­ um repositório de conhecimentos teóri­
sos Admiráveis de Bernard Palissy cos das paixões e da natureza humana,
(1510-1589), sobre química, geologia, aproximando-se do maquiavelisino.
agricultura e outros assuntos. Posterior­ Esse maquiavelismo, que se esconde
mente, em sua principal obra, o Novum nas entrelinhas das opiniões dos En­
Organum, Bacon expressará entusiasmo saios, foi uma constante na vida real do
pela técnica, afirmando que as desco­ autor. A estória de suas ligações com o
bertas da pólvora, da imprensa e da agu­ conde de Essex é significativa nesse sen­
lha de marear (bússola) “mudaram o tido. Boa parte de sua ascensão política
aspecto das coisas em todo o mundo”. foi devida à proteção do conde, mas
Bacon não teve dúvidas em colaborar
O futuro chanceler ativamente para sua execução, quando o
antigo protetor caiu em desgraça junto à
Em 1577, dois anos depois de con­ Rainha Elizabeth e, por isso, tornou-se
cluir os estudos em Cambridge, o pai de inútil aos propósitos ambiciosos do ex-
Bacon enviou-o à França, para trabalhar protegido. O conde de Essex foi acusado
junto ao embaixador Sir Amyas Paulet. de traição e a soberana incumbiu Bacon
Começava, assim, a carreira política e de preparar a acusação legal. O autor
diplomática, na qual Bacon alcançaria dos Ensaios desenvolveu gestões junto a

248
BACON

Francis Bacon nasceu e iniciou sua vida política durante o governo da Rainha
Elizabeth I. Admirada pelo seu povo e pelo próprio papa, que a excomungou,
a soberana consolidou o absolutismo e no seu reinado floresceram o comércio
e a indústria. Na história da cultura, o período elisabetano é de especial
importância, pois viu o Renascimento italiano prolongar-se na Inglaterra.

249

]
OS PENSADORES

Essex no sentido de dissuadi-lo de suas um público mais amplo, objetivando ga­


ligações clandestinas com o pretendente nhar apoio para a grandiosa empresa
escocês ao trono da Inglaterra. Nada científica que projetava; tinha plena
conseguindo, náo teve dúvidas em acu­ consciência de que o trabalho científico
sar o velho amigo, que acabou sendo era algo muito dispendioso e não pode­
condenado à morte e executado em ria ser realizado por um único indivíduo.
1601. Logo depois, Bacon redigiu os Suas gestões para a realização da
Esclarecimentos acerca de Imputações empresa científica sonhada duraram
Relacionadas ao Recém-Falecido Conde enquanto durou sua vida. Curioso é que
de Essex, nos quais se defendia contra não tenha conseguido qualquer apoio,
acusações de deslealdade, afirmando mesmo nos dias de maior fastígio, quan­
que “um homem honesto prefere Deus a do ocupava destacados postos do reino.
seu rei, seu rei a seu amigo”. Teria, Além desse livro, escreveu, na mesma
assim, apenas cumprido com seu dever. época, inúmeros outros. Em geral, tra­
ta-se de opúsculos e esboços, com partes
Um verdadeiro potentado desigualmente desenvolvidas e cujos tí­
De qualquer forma, sua participação tulos pomposos, na maioria das vezes,
no episódio da condenação de Essex aca­ são enganadores. Quase todos só foram
bou por render-lhe maiores juros na vida publicados após sua morte, quando reu­
política. Pouco depois (1603), a sobe­ nidos por William Rawley.
Ao lado da intensa atividade intelec­
rana falece e Jaime 1 ascende ao trono.
Bacon torna-se seu conselheiro ordiná­ tual e política, Bacon vivia como um
rio. Ocupa diversos cargos importantes, grão-senhor. Possuía 72 criados e resi­
recebe o título de “sir”, exerce as fun­ dia, no verão, em suas propriedades de
ções de guarda do Grande Selo. Para Gorhambury e Verulam liou se; no inver­
culminar, eleva-se, em 1618, ao mais no, em York House. Em 1620 publicou a
alto posto do reino britânico: chanceler. mais famosa de suas obras: Novum
Serve ao soberano de maneira total, Organum ou Indicações Verdadeiras
chegando mesmo — segundo alguns acerca da Interpretação da Natureza,
historiadores — a obter confissões dos pârte daquela Grande Instauração, pro­
prisioneiros, “de uma forma ou de jetada alguns anos antes.
outra”. Bacon acreditava em uma na- A queda
ção-Estado ampla, moderna e centrali-,
zada numa monarquia poderosa. Opu­ Os inimigos eram muitos e a situação
nha-se radicalmente às idéias medievais geral da corte mudara bastante no
de feudalismo e divisão de poder tanto decorrer dos anos de esplendor. O
quanto era contra as noções metafísicas descontentamento do Parlamento com a
da filosofia escolástica. Justificou teori­ administração real tornou-se cada vez
camente o absolutismo real e opôs-se a mais intenso, mas ninguém ousava criti­
Sir Ed ward Coke, defensor de maiores car diretamente o soberano; os visados
poderes para o Parlamento. seriam os conselheiros do rei e, sobretu­
Apesar da vida política agitada. do, seu chanceler. Bacon foi acusado de
Bacon não relegava a segundo plano ter recebido suborno de litigantes com
seus interesses filosóficos. Pensava num processos em andamento. Nessa época
ambicioso plano de trabalho científico, cabia aos auxiliares imediatos do rei,
que intitularia, posteriormente, A Gran­ como Bacon, opinarem a respeito de
de Instauração. Enquanto não realizava autorizações para comércio e manufatu­
esse plano, publicou uma obra intitulada ras, monopólios e patentes comerciais.
Da Proficiência e do Progresso do Saber Foi nesse tipo de questão que ele se
Divino e Humano, como trabalho prepa­ envolveu. Apesar da tolerância, comum
ratório para as tarefas mais vastas da na época, para condutas desse tipo, não
Grande Instauração. O Da Proficiência era moral nem legahnente admissível
foi escrito em inglês, ao contrário do que os juizes recebessem presentes.
usual na época, que era escrever em Bacon reconheceu-se culpado, mas ale­
latim. Bacon pretendia, assim, atingir gou que os presentes recebidos não ti-

250
BACON

nham influenciado seu julgamento.


Como consequência, foi obrigado a dei­
xar os cargos que ocupava na adminis­
tração do reino. Em 2 de maio de 1621.
foi-lhe tomado o Grande Selo e. no dia
seguinte, excluíram-no de todos os pos­
tos e o encarceraram na Torre de Lon­
dres. A intervenção do rei fez com que
permanecesse preso apenas alguns dias.
Depois da condenação, Bacon viu
diminuir rapidamente sua fortuna, pois
negava-se a levar vida mais humilde.
Contraiu enormes dívidas. O trabalho
intelectual, no entanto, continuou cada
vez mais intenso. Eoi talvez a época
mais importante para suas obras. Conse­
guiu terminar algumas, deu redação
definitiva a outras e pretendeu concluir
um vasto plano de experiências e obser­
vações científicas.
No ano de 1626, Bacon dedicava-se.
em Londres, a experiências sobre o frio e
a putrefação. Queria saber quanto tempo
o frio preserva a carne e, para isso,
recheou uma galinha com neve. Velho e
enfraquecido, não resistiu aos rigores do
inverno a que se expunha devido às
experiências. Em 9 de abril de 1626.
faleceu vitimado por uma bronquite.

Saber é poder
Bacon terminou seus dias traba­
lhando da maneira como sempre reco­
mendou àqueles que quisessem saber
algo de verdadeiro a respeito da nature­
za: pesquisando experimentalmente. ()
que projetara teoricamente na Grande
Instauração procurou realizar na práti­
ca. Não chegou a descobrir qualquer
coisa nos domínios dos fenômenos natu­
rais, mas deixou indicado, naquele pro­
jeto formulado duas décadas antes da
sua morte, um novo caminho para o
conhecimento científico.
O plano da Grande Instauração com­
preendia seis partes: a primeira era uma
classificação completa das ciências exis­
tentes; a segunda, a apresentação dos
princípios de um novo método para con­
duzir a busca da verdade; a terceira, a
Em vista dos mistérios que cercam a coleta de dados empíricos; a quarta,
vida de Shakespeare (tela da Galeria uma série de exemplos de aplicação do
Nacional de Retratos, Londres), houve método; a quinta, uma lista de generali­
quem atribuísse suas obras a Bacon. zações de suficiente interesse para mos­
(Gravura de uma edição de 1665.) trar o avanço permitido pelo novo méto-

251
OS PENSADORES

^Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o
conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostentação,
infligiram grande dano, tanto àfilosofia, quanto às ciências. Pois, fazendo
valer sua opinião, concorreram para interromper e extinguir as investigações. ”
(Burghley House, Northamptonsnire, exemplo da arquitetura da época de Bacon.)

do; a sexta, a nova filosofia que iria baconiano pretendia um ‘‘‘verdadeiro e


apresentar o resultado final, organizado extraordinário progresso do saber”, e
num sistema completo de axiomas. Bacon clamava por uma reforma total do
Esse vasto e ambicioso plano nào foi conhecimento humano. Ele inicia essa
realizado inteiramente por Bacon. . Dele reforma criticando a filosofia anterior
restaram apenas a parte segunda, refe­ por sua esterilidade quanto a resultados
rente à metodologia, exposta em sua práticos para a vida do homem. Ao fazer
mais conhecida obra, o Novum' Orga- essa crítica, pensava particularmente
num (publicado em 1620); o De Digni- nos filósofos escolásticos, aos quais
tate et Augmentis Scientiarum (reformu­ reconhecia possuírem “‘inteligências for­
lação de O Progresso do Saber, feito em tes e agudas”, mas “enclausurados nas
1623), indicado pelo autor como deven­ celas dos mosteiros e universidades . . .
do representar a primeira parte da Gran­ mais atravancaram as ciências que
de Instauração, ou seja, a referente à concorreram para aumentar-lhes o
divisão das ciências. Restou também peso”. Os escolásticos e todos os repre­
uma História Natural (terceira parte do sentantes das demais filosofias (chama­
plano original), mas muito distante de das racionais por Bacon), como Platão e
suas ambições. os platônicos de todas as épocas, são
Não obstante incompleto, o projeto comparados pelo autor a aranhas que

252
BACON

“Entre os usos e costumes das academias, colégios e outras coletividades


semelhantes, encontram-se apenas elementos contrários ao progresso das
ciências. Aulas e trabalhos estão organizados de forma tal, que nada pode vir
facilmente ao espírito a não ser pensar aquilo que já se está habituado a
pensar. ” (St. PauPs Cross, Londres, gravura de 1620, Museu Britânico.)
OS PENSADORES

EíTayes.
Religious Meditations.
Places ofperfwafion and
diíTwaíion.

Scene and allowed.

At Lokdon,
Printed for Humfrey Hooper, and are
to be foi d at the blacke Bearc
in Chauncery Lane.
H 9 7-

“Seria uma vergonha para a humanidade, se as fronteiras do universo


intelectualficassem limitadas pela estreiteza das invenções antigas, agora
que nosso tempo viu as amplidões do universo material, quero dizer, viu
brilhar e abrir-se para o infinito as terras, os mares do mundo sideral. ”
(Retrato de Francis Bacon e frontispício da primeira edição dos EnsaiosJ

tecem teias maravilhosas, mas permane­ gresso do conhecimento; não apenas a


cem inteiramente alheios à realidade. catalogação de fatos de uma realidade
Bacon critica também os “alquimistas supostamente fixa, ou obediente a uma
e os empíricos, incipientes e grosseiros”, ordem divina, eterna e perfeita. O saber
que recolheriam materiais ao acaso, natural deveria ser concebido como
pretendendo a descoberta de conheci­ saber ativo e fecundo em resultados prá­
mentos ocultos, sem conseguir, contudo, ticos. “Saber é poder”, afirma Bacon, e
integrá-los num todo coerente e sistemá­ repete constantemente essa máxima em
tico; seriam como formigas que acumu­ todas as suas obras. Embora em algu­
lam material sem critério seletivo e o mas passagens refira-se à importância
armazenam, sem introduzir modifica­ de conhecimentos desinteressados, uma
ções. Para Bacon, o verdadeiro filósofo de suas idéias fundamentais reside na
natural (expressão usada na época para oposição à teoria grega do valor do
designar o cientista da natureza) deveria conhecimento puramente teórico ou con­
seguir o exemplo da abelha e trabalhar templativo. Criticando Aristóteles,
na acumulação sistemática de conheci­ Bacon afirma que “todas as razões que
mentos. Deveria também, e sobretudo, este aduz em favor da vida contempla­
descobrir o método que permitisse o pro­ tiva dizem respeito ao bem privado, ao

254
BACON

prazer e à dignidade do indivíduo. Sob


tal aspecto, não há dúvida que a vida
contemplativa leva a palma. . . Mas os
homens devem saber que neste teatro da
vida humana apenas Deus e os anjos
podem ser espectadores”.
Essa perspectiva leva Bacon a se afas­
tar da concepção de conhecimento como
entrega pura e entusiasmada, tal como
se encontra em Ciordano Bruno
(1548-1600) ou no místico Jakob
Bõhme (1575-1 624), que pretendem se
abismar nos mistérios da natureza e da
alma. O saber, para Bacon, ê apenas um
meio mais vigoroso e seguro para con­
quistar o poder sobre a natureza e não
tem valor apenas em si mesmo.
Esse utilitarismo, contudo, não se
confunde com o utilitarismo chão e ras­
teiro. Bacon não exigia que cada conhe­
cimento particular da ciência tivesse
imediatamente uma utilidade prática. O
que concebeu como ciência prática foi o
saber em sua totalidade. Por outro lado,
sua filosofia não pretende entregar o
saber ao homem como instrumento para
o domínio dos semelhantes; ao contrá­
rio, desejou que a ciência servisse à
humanidade em geral, na sua luta per­
manente com a natureza, deixando de
ser concebida simplesmente como con­
templação de uma ordem de coisas eter­
nas e perfeitas, supostamente criadas
por um ser superior.
Os ídolos
“Filósofo da idade industrial’ , “filó­
sofo da ciência planificada”, assim
diversamente chamado pelos historia­
dores da filosofia, Bacon ressalta cons­
tantemente o fato de que, até a sua
época, os filósofos e sábios não trilha­
ram o caminho de uma ciência operati­
va, em beneficio do homem. Por essa
razão, propôs, como uma das tarefas
preliminares de seu projeto, examinar
tecnicamente as causas desse erro. Em
outros termos, para se conseguir o
conhecimento correto da natureza e des­
cobrir os meios de torná-lo eficaz, seria
George Villiers, primeiro duque de necessário ao investigador libertar-se
Buckingham e favorito do soberano daquilo que Bacon chama “ídolos” e
Jaime I, foi grande amigo de Francis noções falsas.
Bacon, quando este foi chanceler. “Os ídolos e noções falsas que ora
(Gal. Nacional de Retratos, Londres.) ocupam o intelecto humano e nele se

2 55
OS PENSADORES

acham implantados não somente o obs­ imaginam a atividade da natureza como


truem, a ponto de ser difícil o acesso à análoga à atividade humana, encon­
verdade, como, mesmo depois de seu trando, assim, antipatias e simpatias
pórtico logrado e descerrado, ressurgi­ nos fenômenos.
rão ‘como obstáculo à própria instaura­ O segundo tipo de “ídolos”, os da
ção das ciências, a não ser que os caverna (termo que alude à celebre ale­
homens, já precavidos contra eles, se goria da República de Platão), são erros
cuidem o mais que possam.” A palavra provenientes da conformação de cada
“ídolo” é empregada por Bacon a partir indivíduo, distinguindo-se, desse modo,
da noção vulgar de imagem de um falso .dos “ídolos da tribo”, que se referem à
deus, da idéia de idolatria, e revela o espécie humana. Cada pessoa — diz
gosto do autor por metáforas religiosas. Bacon — possuix“sua própria caverna
Para Bacon os ídolos são de quatro particular, que interpreta e distorce a
tipos: “da tribo”, “da caverna”, “do luz da natureza”. A tendência dos indiví­
foro” e “do teatro”. Os “ídolos da tribo” duos seria ver todas as coisas sob deter­
são assim chamados porque inerentes à minada luz muito particular, à qual
própria natureza humana “ou à própria estão acostumados. “Assim, alguns espí­
tribo ou raça de homens”. Para os ritos têm condições para assinalar as
homens, por exemplo, é natural tomar o diferenças, outros, as semelhanças, e
conhecimento dado pelos sentidos como ambos tendem ao erro, embora de
verdadeiro. Eles não levam em conta que maneiras opostas; por outro lado, o
as percepções obtidas mediante os senti­ dedicar-se a uma ciência ou a uma espe­
dos são parciais, pois dependentes da culação particular pode conformar de tal
conformação própria do homem en­ modo o pensamento do homem, que este
quanto espécie. Seriam muitos os “ído­ tudo interpreta à luz daquela.”
los da tribo” e eles levariam a uma Os “ídolos do foro” (ou do mercado,
apreensão do universo de maneira mais ou da feira) são erros implicados na
simples do que ele é na verdade e, sobre­ ambiguidade das palavras e na comuni­
tudo, engendraria toda espécie de su­ cação entre os homens. De acordo com
perstições. Segundo Bacon, a tendência Bacon, uma mesma palavra pode ser
da natureza humana no sentido de redu­ usada em sentidos diferentes pelos inter­
zir o complexo ao mais simples implica locutores de um diálogo; isso pode levar
uma visão que se restringe àquilo que é a uma aparente concordância entre as
favorável. Tratar-se-ia de uma espécie pessoas, quando na verdade ocorre o
de inércia do espírito, cujas generaliza­ contrário. Por outro lado, os homens
ções levariam em conta apenas aquilo usam palavras, que não são mais do que
que é conveniente. Exemplo clássico abstrações, como se fossem nomes de
dessas generalizações seria encontrado entidades reais. “O homem crê que a
na astrologia, na qual as crenças supers­ razão governa as palavras, mas é certo
ticiosas ignoram as predições que falha­ também que as palavras atuam sobre o
ram, para ficar apenas com aquelas que intelecto, e é isso que torna a filosofia e
resultaram conforme o esperado. A as ciências sofisticas e ociosas.”
mesma tendência à simplificação existi­ Finalmente, os “ídolos do teatro” têm
ría na antiga noção astronômica segun­ suas causas nos sistemas filosóficos e
do a qual todos os corpos celestes des­ em regras falseadas de demonstração. A
crevem órbitas circulares. Bacon coloca expressão é justificada por Bacon pelo
também como exemplo de “ídolos da fato de esses sistemas constituírem
tribo” toda a falsa ciência da cabala (re­ puras invenções, como as peças de teatro
novada na Inglaterra de seu tempo por que se sucedem na cena e não propor­
Robert Fludd), que imaginava realida­ cionam um retrato fiel do universo, tal
des inexistentes, para fazê-las corres­ como ele realmente é. Criticando o pres­
ponder a necessidades numéricas. A tígio dos sistemas filosóficos, Bacon não
alquimia, muito comum nos fins da poupa ninguém. Trata Aristóteles como
Idade Média e no tempo de Bacon, “o pior dos sofistas”. Para Platão, reser­
igualmente se inclui entre os resultados va os mais ferinos adjetivos: “este tro­
dos “ídolos da tribo”; os alquimistas cista., este poeta pleno de vaidade, este

2 56
BACON

Acontecimento decisivo para a consolidação do poderio inglês foi a derrota da


chamada Invencível Armada espanhola, formada por Filipe II a fim de
conquistar a Inglaterra com 27 000 homens. Elizabeth I e os almirantes Drake
Howard, Hawkins e Frobisher conseguiram derrotar as forças espanholas em 18
de agosto de 1588. (Detalhe de tela do Museu Nacional Marítimo, Greejnwich.)

257
OS PENSADORES

teólogo entusiasta”, que teria confun­ rências positivas de um fenômeno não é.


dido teologia com filosofia, cometendo o contudo, suficiente para fornecer seu
maior dos erros. Critica também os “em­ perfeito conhecimento. Impõe-se verifi­
píricos incipientes”, que conduziriam a car também aqueles casos em que o
experiência como um “prisioneiro em fenômeno não ocorre. Constrói-se.
procissão”. assim, a tábua das ausências ou da
negação. Assim, em relação ao calor,
A verdade da experiência seria necessário conhecer e atentar para
fenômenos como o dos raios de luar ou o
A teoria dos “ídolos”, por sua rique­ do sangue frio de animais mortos.
za e profundidade, subsiste como um A terceira tábua é a das graduações
dos aspectos mais fascinantes e de per­ ou comparações, que consiste na anota­
manente interesse da filosofia baconia- ção dos diferentes graus de variação
na. A ela se têm reportado os estudiosos ocorridos no fenômeno em questão, a fim
dos assuntos de ideologia e, mais recen­ de se descobrirem possíveis correlações
temente, dos problemas de comunicação. entre as modificações.
Contudo, dentro do projeto grandioso Bacon enumera vários procedimentos
elaborado por Bacon, essa teoria ocupa experimentais com a intenção de abran­
apenas uma posição preliminar e consti­ ger o maior número possível de observa­
tui aquilo que ele mesmo chamou “parte ções indutivas: variação (um corpo cai
destrutiva” da Grande ' Instauração. com certa velocidade; se seu peso fosse
A “ parte construtiva” começa com a for­ dobrado, cairia com velocidade dobra­
mulação de um novo método de investiga­ da?); prolongaçáo (o ímã atrai o ferro;
ção da natureza, que permitiria um cor­ pequenas partículas de ferro em solução
reto conhecimento dos fenômenos: aquosa também seriam atraídas?);
partindo-se dos fatos concretos, tais transferência (a chuva faz as plantas
como se dão na experiência, ascende-se crescerem; que influência teria o ato de
às formas gerais, que constituem suas regar que imitasse a chuva?); inversão
leis e causas. Esse procedimento cha- (comprovando-se que o calor propaga-se
ma-se método indutivo. por movimento ascendente, o frio propa-
A teoria da indução, tal como exposta gar-se-ia por movimento descendente?);
no Novum Organum, distingue inicial­ compulsão (certas causas produzem de­
mente experiência vaga e experiência terminados efeitos; aumentando-se ou
escriturada. A primeira compreende o diminuindo-se as causas, os efeitos
conjunto de noções recolhidas pelo ob­ cessarão?); união (o gelo e o salitre,
servador quando opera ao acaso. A separadamente, resfriam os líquidos;
segunda abrange o conjunto de noções que acontecerá se forem unidos?); mu­
acumuladas pelo investigador quando, dança de condições (uma certa combus­
tendo sido posto de sobreaviso por tão, produzida em recipiente fechado,
determinado motivo, observa metodica­ repetir-se-á da mesma forma se ocorrer
mente e faz experimentos. Este último ao ar livre?).
tipo constitui o mais importante e o Da posse dos dados obtidos pela ano­
ponto de partida para a constituição das tação exaustiva das tábuas e dos proce­
tábuas da investigação, núcleo de todo o dimentos complementares, o investi­
método baconiano gador teria cumprido aquilo que Bacon
A primeira tábua de investigação é a chama a “primeira vindima”. A seguir,
de presença ou afirmação. Nela são colo­ deveria recorrer a técnicas auxiliares e
cadas todas as instâncias de um fenô­ Bacon formulou uma série delas, sem
meno que concordem por apresentar as contudo completar o seu projeto. Mostra
mesmas características. Se o problema apenas o funcionamento das instâncias
investigado for, por exemplo, o calor, é prerrogativas, deixando de lado as
necessário estudar todos os casos em demais.
que ele se apresenta, como a luz do sol. As instâncias prerrogativas são fato­
as labaredas de fogo, a temperatura do res que, por sua singularidade, forçam a
sangue humano, e assim por diante. investigação num certo sentido. Dentre
Para Bacon, a verificação das ocor­ as 27 descritas no Novum Organum, as

258
BACON

Voltaire sobre Novum Organum: ‘7? o andaime com que se construiu a nova
filosofia; quando o edifício foi levantado . . . o andaime não serviu para mais
nada. Bacon ainda não conhecia a natureza, mas sabia todos os caminhos que
conduzem a ela”. (O cientista William Gilbert, contemporâneo de Bacon,
fazendo uma experiência diante da Bainha Elizabeth; tela de Acland Hunt.)

2 59
OS PENSADORES

mais importantes sâo as solitárias (cor­ ficado que se deve atribuir àquela pala­
pos iguais em tudo, diferindo com rela­ vra. Em alguns textos, Bacon concorda
ção a somente uma característica); as com a idéia de Platão segundo a qual as
migrantes (casos em que a natureza se formas são os “verdadeiros objetos do
manifesta repentinamente; brancura da conhecimento”. Contudo, isso não quer
água espumosa, por exemplo); as osten­ dizer que o autor do Novum Organum
sivas (quando uma certa característica é aceite a existência de um plano trans­
particularmente evidente, como o peso cendente de idéias puras. Toda a obra de
do mercúrio); as analógicas (um fenô­ Bacon é um atestado eloqíiente contra
meno pode esclarecer outro). Entre todas tal concepção. As formas baconianas
as instâncias prerrogativas, sobres- pertencem ao mundo empírico. Noutros
saem-se as cruciais, aqueles casos deci­ textos, ele fala da forma como ipsissima
sivos que obrigam o investigador a optar res, coisa real ou realidade por excelên­
entre duas explicações diametralmente cia; outras vezes, como “fonte da qual
opostas, que são referentes a um mesmo uma certa coisa emana”; outras ainda,
fenômeno. como “leis de realidade absoluta que
Ao formular a teoria da indução, ou, governam e constituem qualquer natu­
mais exatamente, ao descrever com reza simples”. Essa diversidade de acep­
minúcia todos os cuidados, procedi­ ções, demasiado mescladas com a filoso­
mentos e técnicas para a investigação fia escolástica, da qual Bacon nunca se
dos fenômenos naturais, Bacon, embora libertou completamente, tem feito de sua
não tenha criado a ciência moderna, foi teoria das formas um assunto especial­
seu arauto, na opinião de Léon Brunsch- mente controvertido. Contudo, deixan­
vicg. A indução não era desconhecida do-se de lado a terminologia escolástica
dos antigos, mas com Bacon ganha uma e situando-se dentro do conjunto mais
amplitude e eficácia muito maiores. amplo de sua vida e sua obra, pode-se
Aristóteles já tratara da indução, mas admitir como mais correta a interpre­
se restringiu a seus aspectos puramente tação da forma como, sobretudo, lei e
formais. Para o pensador grego, aquele causa dos fenômenos naturais.
método consiste em, dada uma coleção Segundo Bacon, nos fenômenos natu­
de fenômenos ou coisas particulares, rais há duas faces diversas. Por um lado,
extrair o que existe de geral em todos e eles possuem uma certa disposição,
emcadaum deles.Opõe-se,assim, à dedu­ conformação ou estrutura (esquema-
ção, entendida como o caminho metodo­ tismo latente, na terminologia baconia­
lógico que permite descer do geral ao na). Por outro lado, possuem um aspecto
particular. Em outros termos, a indução dinâmico, que os faz apresentarem-se
aristotélica limita-se a uma coleção em permanente transformação (processo
controlável de inçjivídups. latente). Ambos os aspectos sâo conexos
Para Bacon, a indução torna-se ampli- e têm como princípio a “forma”, princi­
ficadora, isto é, parte-se de uma coleção pio essencial de individuação e lei que
limitada de fatos e o que se descobre rege a geração, ou produção, e o movi­
como válido para eles é estendido a mento dos fenômenos.
todos os análogos, ainda que não tenham Segundo vários intérpretes, Bacon
sido pesquisados um por um. A indução aproxima-se, assim, daquilo que outros
aristotélica apenas ordena o já conhe­ filósofos posteriores (Locke, por exem­
cido e por isso é tautológica; a indução plo) chamariam propriedades primárias
baconiana amplia o conhecimento, avan­ da matéria, por oposição às qualidades
çando de fato o saber. secundárias. As propriedades primárias
seriam a extensão, a figura, o número e
Que são as formas? a impenetrabilidade. Bacon não chega a
formular tal teoria, mas fica bastante
O ponto final da indução é designado, claro em seus textos sobre as formas que
pelo próprio Bacon, pela palavra o autor pensara naquelas propriedades
“forma”. Toca-se aqui num dos pontos essenciais dos objetos, sem as quais eles
mais controvertidos de seu pensamento e deixariam de ser objetos.
os intérpretes divergem quanto ao signi­ Admitindo-se como válida essa apro-

260
BACON

ximação entre Bacon e alguns filósofos


posteriores, chegar-se-ia a uma interpre­
tação de sua filosofia como expressão de
mecanicismo e materialismo. Não é por
acaso que Bacon manifesta grande ad­
miração por Demócrito, o criador do
mecanicismo antigo, chegando a colocá-
lo muito acima de Platão e Aristóteles.
Mais importante, contudo, que o meca­
nicismo — comum à maior parte das filo­
sofias do século XVII — é o seu natura­
lismo, ou seja, a idéia de que as
qualidades naturais são estabelecidas
por via empírica e experimental e -não
por via especulativa, com os pressu­
postos da metafísica tradicional.
Além das dificuldades apresentadas
pela demasiada ligação do conceito de
forma com a filosofia escolástica, outros
aspectos do pensamento de Bacon têm
sido alvo de restrições por parte dos
historiadores da Filosofia.Trata-se prin­
cipalmente da ausência da matemática
em sua metodologia científica. Realmen­
te, Bacon parece não ter entendido o
papel das matemáticas no conhecimento
da natureza. Por sua formação em Cam­
bridge — reduto dos platônicos ingleses
da época —, costumava ligar a matemá­
tica ao uso que dela tinha sido feito por
Platão e pelos platônicos, inclusive no
Renascimento. Todos eles ligavam a
matemática a uma visão teológica do
universo e isso constituía uma concep­
ção diametralmente oposta ao seu pen­
samento. Bacon não chegou, portanto, a
conhecer a matemática laica dos cientis­
tas modernos, que, em seu tempo, era
conhecida apenas em círculos restritos e
só no último quartel do século XVII
estender-se-ia a quase todo trabalho
científico-natural.

O paraíso na terra
Nos últimos anos de vida, Bacon com­
pôs uma pequena obra, editada postu­
mamente, em 1627, por William Raw-
ley. Intitula-se Nova Atlântida, e essa
designação tem significado simbólico,
contrapondo-se à Atlântida mencionada
“Nosso método, contudo, é tão fácil na República de Platão, da mesma
de ser apresentado, quanto difícil de forma como o Novum Organum contra­
aplicar." (Retrato de Bacon e põe-se ao Organon aristotélico.
frontispício do Novum Organum, ed. de A Nova Atlântida é algo muito diverso
1645, Bibl. Nac. Braidense, Milão.) da imaginada por Platão; é uma espécie

261
OS PENSADORES

Bacon foi chanceler de Jaime I (1566-1625), rei da Inglaterra e da Irlanda,


de 1603 a 1625, e da Escócia, como Jaime VI. Sucedendo à Rainha Elizabeth,
Jaime I sustentou o anglicanismo e perseguiu católicos e puritanos; pouco
cuidadoso com o Parlamento, tornou-se rapidamente impopular, o que levou à
queda de Bacon. (Jaime I, álbum de G. von Holtzuschler, Museu Britânico.)

de anti-República. Bacon descreveu um A principal idéia dessa pequena obra


Estado imaginário, onde reina a felici­ inacabada de Bacon é a de que a harmo­
dade graças a certas características de nia e o bem-estar dos homens repousam
sua organização. Sob esse aspecto, no controle cientifico alcançado sobre a
sendo uma utopia, separa-se, no entanto, natureza e a consequente facilitação da
do pensamento utópico usual. Seu nú­ vida em geral. A Casa de Salomão orien­
cleo central não consiste na idéia de que taria e dirigiria a vida dos cidadãos no
é a organização econômica e social, sentido da felicidade e do progresso dos
pelas suas pecuíiaridades e pela justeza habitantes da Nova Atlântida. Suas
de suas soluções, a responsável pelo preocupações estariam centralizadas
bem-estar da população. O segredo do muito mais nos domínios da técnica e da
êxito do Estado imaginário da Nova ciência do que nos problemas econô­
Atlântida reside na existência de uma micos e sociais. Mais importante seria
instituição que, pelo trabalho desenvol­ dominar a natureza do que governar os
vido e resultados propiciados, principal­ homens.
mente pela abundância prodigalizada a A finalidade da Casa de Salomão é o
todos os cidadãos, permite uma organi­ “conhecimento das causas e movimen­
zação justa das estruturas econômicas e tos, das forças interiores da natureza e
sociais. Dessa forma, os elementos eco­ extensão dos poderes do homem a tudo
nômicos e sociais são consequência da que for possível”. O autor descreve
função exercida pela Casa de Salomão, minuciosamente esse colégio de sábios e
onde vivem e trabalham os sábios da instituto de pesquisa, seu sistema de
Nova Atlântida. funcionamento, a distribuição do nume-

262
BACON

Um contemporâneo de Bacon declara que o filósofo foi 'um homem muitíssimo


cândido nas conversações e nas maneiras, grave em seus julgamentos,
invariável em suas fortunas, esplêndido em seus gastos; amigo inalterável
para seus amigos, para nenhum homem inimigo; acima de tudo, um ardoroso e
infatigável servidor do rei ...” (Bacon recebendo uma comissão de lordes.)

roso pessoal técnico, as várias etapas do obra individual, mas coletiva, exigindo
trabalho científico. De grande interesse um verdadeiro exército de pesquisa­
é a insistência de Bacon em descrever o dores que devem recolher material para
imenso aparato exigido pelo trabalho de os intérpretes; a ciência é investigação
pesquisa científica. Aparelhos de todo empírica, nascida do contato com o real
tipo, edifícios elevados e túneis estão à e não oriunda de teorias afirmadas a
disposição dos pesquisadores da Casa de priori; a ciência tem sentido eminente­
Salomão e abrangem todas as varieda­ mente prático, aumentando a duração da
des de aspectos da realidade natural, vida, curando as doenças, fabricando
sob as mais diversas condições. máquinas de todos os tipos, inclusive
A instituição científica está vinculada engenhos para voar e percorrer as águas
diretamente a todas as demais institui­ submarinas.
ções da comunidade: ao hospital, à Além de seu interesse no gênero (como
usina energética, ao centro agrícola. A utopia), a Nova Atlântida de Bacon é um
Casa de Salomão é exemplo claro da clássico da língua inglesa, vasado no
ciência operativa, exposta no Novum mesmo estilo direto e simples, pouco
Organum. Na Nova Atlântida, a ciência mais tarde tornado exemplar em Daniel
não é apresentada como exercício de Defoe e Jonathan Swift. No dizer de
gabinete ou atividade contemplativa, Macaulay (1800-1859), a Nova Atlân­
mas luta árdua e diária com a natureza. tida é obra de “sabedoria serena e
Os traços proféticos do pensamento de profunda”. Nela, Bacon realizou imagi-
Bacon ficam evidentes nas poucas pági­ nariamente aquilo com que sempre so­
nas da Nova Atlântida: a ciência não é nhou mas não conseguiu concretizar.

263
OS PENSADORES

CRONOLOGIA

1558 — A 17 de novembro, publica As Sombras das Casa-se com Alice Bar-


morre Maria Tudor, rainha Idéias. nham.
da Inglaterra. É sucedida 1584 — Bacon é eleito para 1607 — Torna-se procura­
por Elizabeth I. o Parlamento pela primeira dor geral. Redige Pensa­
1561 — Bacon nasce em vez. mentos e Conclusões acerca
Londres, a 22 de janeiro. 1586 — Execução de Maria da Interpretação da Nature­
1565 — Casamento de Ma­ Stuart. za ou sobre a Ciência Ope
ria Stuart e Lorde Darnley. 1588 — Desastre da Inven rativa.
1566 — Nasce o filho de cível Armada. 1613 — Consegue o cargo
Maria Stuart e Lorde Darn 1589 — Bacon torna-se de procurador público.
ley, Jaime, füturo rei da professor de Direito na 1618 — Torna-se lorde

BRASIL.
Inglaterra. Gray ’s Inn. chanceler e barão de Veru-
1573 — Bacon ingressa no 1596 — Nasce Descartes. lam.
Trinity College do Universi­ 1597 — Bacon publica os 1620 — Publica o Novum

-
dade de Cambridge. Ensaios. Organum.

SÃO PAULO
1575 — Abandona a Uni­ 1599 — Nasce Cromwell. 1622 —Publica a História
versidade em dezembro. 1600 — Condenação e exe­ Natural.
1576 — Ingressa na Grays cução de Giordano Bruno. 1623 — Surge Sobre a Dig­
Inn, escola de Direito. É criada a Companhia In­ nidade e Desenvolvimento
1577 — Viaja para a Fran­ glesa das índias Orientais. das Ciências de Bacon. Nas­

-
E INDUSTRIAL
ça. Drake inicia sua viagem 1603 — Morte de Elizabeth ce Pascal.
ao redor do mundo. I. Ascende ao trono Jaime I. 1626 — Bacon morre no
1579 — Bacon retorna à Bacon recebe o título de Ca­ dia 9 de abril.
Inglaterra. valeiro de Jaime I. 1627 — É publicada postu­
1580 — Retoma seus estu­ 1605 — Publica Da Profi­ mamente Sylva Sylvarum de
dos na Gr ay ’s Inn. ciência e do Progresso do Bacon, contendo a Nova

ABRIL S.A. CULTURAL


1582 — Giordano Bruno Saber Divino e Humano. Atlântida.

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Cannstatt, 1963.
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