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Os Pensadores - 53 - História Das Grandes Idéias Do Mundo Ocidental - Volume 1 - 1 Ed - RB
Os Pensadores - 53 - História Das Grandes Idéias Do Mundo Ocidental - Volume 1 - 1 Ed - RB
J)ORI«
HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DO MUNDO OCIDENTAL
HISTORIA DAS GRANDES IDÉIAS
DO MUNDO OCIDENTAL
Conselho Editorial:
Diretor de Grupo: José Américo Motta Pessanha
Editor Chefe: Édson Araújo Cabral (livros)
Secretário Editorial: Ely Mello Soares (fasciculos)
Editoria de Texto: Hélio Leite de Barros (fasciculos)
Remberto Francisco Kuhnen, Nestor Deola,
Arnildo Devegili (livros)
Pesquisa: Israel Betenas
Arte: Constantino Kouzmin-Korovaeff (livros)
Ricardo Amadeo Junior (fasciculos)
Roberto Galvão Paes, Antonio Carlos Vignati
Serviços Editoriais Auxiliares: Janete de Castro Santos
Departamento de Pesquisa Iconográfica: Derli Barroso (chefe),
Renata Lucia Bottini,
Walquíria Dutra de Oliveira,
Cleonice Lima, Míriam Tabarro,
Míriam Almeida, Alda Yaeko
Supervisão de Arte: Elifas Andreatto
Planejamento da Coleção: Andreas Max Pavel
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e jônicas, as epopéias incorporaram Guerra de Tróia. Desses numerosos poe
relatos mais ou menos fabulosos sobre mas, apenas dois se conservaram: a Ilía-
expedições marítimas e elementos pro da e a Odisséia de Homero, escritos
venientes do contato do mundo helênico, entre o século X e o VTH a.C.
em sua fase de formação, com culturas
orientais. A língua desses primeiros poe Tempo de deuses e heróis
mas da literatura ocidental é uma mistu
ra dos dialetos eólio e jônico, com Da vida de Homero praticamente
predominância do último. Entremeando nada se sabe com segurança, embora
lendas e ocorrências históricas — rela dados semilendários . sobre ele fossem
tando particularmente os aconteci transmitidos desde a Antiguidade. Sete
mentos referentes à derrocada da socie cidades gregas reivindicam a honra de
dade micênica —, surgem então cantos e ter sido sua terra natal. Homero é
sagas que os aedos (poetas e declama frequentemente descrito como velho è
dores ambulantes) continuamente foram cego, perambulando de cidade em cida
enriquecendo. Constituídos por sequên de, a declamar seus versos. Chegou-se
cias de episódios relativos a um mesmo mesmo a duvidar de sua existência e de
evento ou a um mesmo herói, surgem, que a Ilíada e a Odisséia fossem obra de
assim, “ciclos” que cantam principal uma só pessoa. Poderíam ser coletâneas
mente as duas guerras de Tebas e a de cantos populares de antigos aedos e,
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des divinas divergentes, chegar-se-á a sua preeminência e organiza finalmente
um divino neutro imparcial: a divina o Olimpo como pai poderoso. O poli-
arché das cosmogonias dos primeiros teísmo homérico não exclui, portanto, a
Filósofos. É bem verdade, porém, que já idéia de uma ação ordenada por parte
na visão mitológica expressa pelas epo dos deuses, chegando afinal a admitir
péias, a suserama de Zeus introduz na uma certa unidade na ação divina.
família divina um princípio de ordem,
que tende a unificar e a neutralizar as Os homens e os divinos
preferências discordantes dos vários imortais
deuses. Do ponto de vista ético, essa
suserania estabelece uma diferença mar É por oposição aos homens que os
cante entre a Ilíada (obra mais antiga) e deuses homéncos se definem: ao contrá
a Odisséia: nesta, a fidelidade de Pené- rio dos humanos, seres terrenos, os deu
lope e os esforços de Ulisses acabam ses são princípios celestes; à diferença
premiados, a revelar, como pressuposto, dos mortais, escapam à velhice e à
um universo de valores morais já hierar- morte. Escapam à morte, mas não são
quizados, sob o controle e a garantia, eternos nem estão fora do tempo: em
em última instância, de Zeus soberano. princípio pode-se saber de quem cada
Desse modo, à imagem da sociedade divindade é Filho ou filha. A imortali
patriarcal, Zeus fundamenta na força dade, esta sim, está indissoluvelmente
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ligada aos deuses que, por oposição aos morais ou espirituais. Em geral, signi
humanos mortais, são frequentemente fica força e destreza dos guerreiros ou
designados de “os imortais” e consti dos lutadores, valor heróico intima
tuem, na sua organização e em seu mente vinculado à força fisica. A virtude
comportamento, uma sociedade imortal em Homero é, portanto, atributo dos
de nobres celestes. nobres, os aristoi. Estreitamente asso
Em Homero, a noção de virtude ciada às noções de honra e de dever,
(areté), ainda não atenuada pelo seu representa um atributo que o indivíduo
posterior uso puramente moral, signifi possui desde seu nascimento, a manifes
cava o mais alto ideal cavalheiresco tar que descende de ilustres antepassa
aliado a uma conduta cortesã e ao dos. Os heróis, quando se apresentam,
heroísmo guerreiro. Identificada a atri fazem questão, por isso mesmo, de reve
butos da nobreza, a areté, em seu mais lar sua ascendência genealógica, garan
amplo sentido, designava não apenas a tia de seu valor pessoal. Os aristoi — os
excelência humana, como também a possuidores de areté — são uma minoria
superioridade de seres nào-humanos, que se eleva acima da multidão de ho
como a força dos deuses ou a rapidez mens comuns; se são dotados de virtudes
dos cavalos nobres. Só algumas vezes, legadas por seus ancestrais, por outro
nos livros finais das epopéias, é que Ho lado precisam dar testemunho de sua
mero identifica areté com qualidades excelência, manifestando as mesmas
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Ao morrer, o pai deixou a Hesíodo e a obra, usando Os Trabalhos e os Dias e
seu irmào Perses as terras que, devido o proêmio da Teogonia para fazer his
ao clima rude da região, continuaram tória pessoal. Logo depois de exaltar
com esforço a cultivar. Na partilha dos as Musas inspiradoras, refere-se a si
bens, Hesíodo considerou-se lesado pelo próprio no começo da Teogonia: “( . . .)
irmão, que teria comprado os juizes Foram elas que, certo dia, ensinaram a
venais. Essa polêmica com Perses serve Hesíodo um belo canto, quando ele
de tema para uma das duas grandes apascentava suas ovelhas ao pé do Hé-
obras de Hesíodo: Os Trabalhos e os licon divino”.
Dias. Pois, além de cultivar os campos e O conteúdo desse “belo canto” é o
apascentar os rebanhos, Hesíodo tor- relato da origem dos deuses. Tomando
nou-se aedo sob inspiração das Musas, como ponto de partida velhos mitos,
conforme relata em sua outra grande que coordena e enriquece, Hesíodo
obra, a Teogonia. traça uma genealogia sistemática das
Com Hesíodo — como mostra o divindades. Dele provém a idéia de que
historiador do helenismo Werner Jae- os seres individuais que constituem o
ger — dá-se a aparição do subjetivo na universo do divino estão vinculados
literatura. Na épica mais antiga, o por sucessivas procriações, que os
poeta era o simples veículo anônimo prendem aos mesmos antecedentes pri
das. Musas; .já . Hesíodo . “assina” . sua mordiais. Nessa genealogia sistemá-
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No trabalho,a virtude
A Teogonia de Hesíodo enumera três
gerações de deuses: a de Céu, a de Cro
nos e a de Zeus. A interpolaçào dos
episódios de Prometeu e de Pandora na
seqüência da Teogonia — episódios de
pois retomados em Os Trabalhos e os
Dias — serve a Hesíodo para justificar
a condição humana: Prometeu rouba o
fogo de Zeus para dá-lo aos homens e
atrai para si e para os mortais a ira do
suserano do Olimpo. Zeus condena
Prometeu à tortura de ter o figado
permanentemente devorado por uma
águia. Aos mortais Zeus reserva não
menor castigo: determina a criação de
um ser à imagem das deusas imortais e
entrega-o, como presente de todos os
habitantes do Olimpo, a Epimeteu,
irmão de Prometeu. Pandora — a mu
lher — leva em suas mãos uma jarra
que, destampada, deixa escapar e
espalhar-se entre os mortais todos os
males. Na jarra, prisioneira, fica ape
nas a esperança. As duras condições de
trabalho de sua gente sugerem assim a
Hesíodo uma visão pessimista da
humanidade, perseguida pela animosi
dade dos deuses. E a mulher deixa de
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Por isso, “quando o solo os recobriu”, seu amigo, nem o irmão a seu irmão”.
foram transformados em gênios infe Do mesmo modo que o mito de Pro
riores, os chamados bem-aventurados. meteu ilustra a idéia de trabalho, o
Zeus cria então uma “terceira raça de mito das idades ilustra a idéia de justi
homens perecíveis, raça de bronze, ça: nenhum homem pode furtar-se à lei
bem diferente da raça de prata”. Vio do trabalho, assim como nenhuma raça
lentos e fortes, munidos de armas de pode evitar a justiça. Na verdade, esses
bronze, os indivíduos dessa raça aca dois temas são complementares, se
baram sucumbindo nas mãos uns dos gundo Hesíodo: o homem da idade de
outros e transportados para o Hades, ferro está movido pelo instinto de luta
“sem deixar nome sobre a terra”. Em (eris); se a luta se transforma em tra
seguida, surge a raça dos heróis, que balho, torna-se emulação fecunda,
combateram em Tebas e Tróia; para justa e feliz; se, ao contrário, manifes-
eles Zeus reservou uma morada na Ilha ta-se através da violência, acaba sendo
dos Bem-Aventurados, onde vivem feli a perdição do próprio homem. Esse
zes, distantes dos mortais. Finalmente tipo de admoestação que Hesíodo
advêm o duro tempo da raça de ferro — lança a seu irmão Perses inaugura, de
o tempo do próprio Hesíodo, tempo de pois da ética aristocrática e cavalhei
incessantes fadigas, misérias e angús resca de Homero, a outra grande cor
tias, mas quando “ainda alguns bens rente de pensamento moral que irá
estão misturados aos males”. A essa alimentar, mais tarde, a meditação
raça aguardam dias terríveis: “O pai filosófica. Com Hesíodo surge a noção
não mais se assemelhará ao filho, nem de que a virtude (areté) é filha do esfor
o filho ao pai; o hóspede não será mais ço e a de que o trabalho é o fundamento
caro ao seu hospedeiro, nem o amigo a e a salvaguarda da justiça.
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SUMÁRIO
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base racional fica evidenciada na medi veram as opiniões dos primeiros filóso
da mesma em que ela é capaz de progre fos — atribuem a doutrina da constitui
dir, ser repensada e substituída. Assim é ção, a partir da arché única, de
que, já nos meados do século VI a.C., a inumeráveis mundos, gerados de manei
cnefia da escola de Mileto passa a ra sucessiva e/ou simultaneamente.
Anaximandro. Introdutor na Grécia e
aperfeiçoador do relógio de sol (qno- A salvação pela matemática
mon), de origem babilônica, foi também
o primeiro a traçar um mapa geográfico. Durante o século VI a.C. verificou-se,
Para Anaximandro, o universo teria em certas regiões do mundo grego, uma
resultado das modificações ocorridas revivescência da vida religiosa, para a
num princípio originário ou arché. Esse qual contribuiu, inclusive, a linha polí
princípio seria o ápeiron, que se pode tica adotada em geral pelos tiranos:
traduzir por infinito e/ou ilimitado. para enfraquecer a antiga aristocracia,
Desde a Antiguidade, discute-se se o que se supunha descendente dos deuses
ápeiron pode ser interpretado como infi- protetores das polis, das divindades
nitude espacial, como indeterminação “oficiais”, os tiranos favoreciam a ex
qualitativa, ou se envolve os dois aspec pansão de cultos populares ou estrangei
tos. Certo é que, para Anaximandro, o ros. Dentre as religiões de mistérios, de
ápeiron estaria animado por um movi caráter iniciático, uma teve então enor
mento eterno, que ocasionaria a separa me difusão: o culto de Dioniso, origi
ção dos pares de opostos. No único frag nário da Tráciã, e que passou a consti
mento que restou de sua obra, tuir o núcleo da religiosidade órfica. O
Anaximandro afirma que, ao longo do orfismo — de Orfeu, que primeiro teria
tempo, os opostos pagam entre si as recebido a revelação de certos mistérios
injustiças reciprocamente cometidas. e que os teria confiado a iniciados, sob a
Para alguns intérpretes isso significaria forma de poemas musicais — era ujnã
a afirmação da lei do equilíbrio univer religião eSsencialmente esotérica. Os ór-
sal, garantida através do processo de ficos acreditavam na imortalidade da
compensação dos excessos (p. ex., no alma e na metempsicose, ou seja, a
inverno, o frio seria compensado dos transmigração da alma através de vários
excessos cometidos pelo calor durante o corpos, a fim de efetivar sua purificação.
verão). A alma aspiraria, por sua própria natu
O último representante da escola reza, a retornar à sua pátria celeste, às
milesiana foi Anaxímenes. Para ele, o estrelas; mas, para se libertar do ciclo
universo resultaria das transformações das reincarnações, o homem necessitava
de um ar infinito (pneuma ápeiron). da ajuda de Dioniso, deus libertador que
Aproveitando — segundo Farrington — a completava a libertação preparada pelas
sugestão oferecida pela técnica de fabri práticas catárticas.
cação de feltro (produzido por aglutina Pitágoras de Samos, que se tornou fi
ção de materiais dispersos), em grande gura legendária já na própria Antigui
expansão na Mileto de sua época, Anaxí dade, realizou uma modificação funda
menes afirmava que todas as coisas se mental na doutrina órfica,
riam prouzidas através do duplo pro transformando o sentido da “via de
cesso mecânico de rarefação e salvação”: em lugar de Dioniso colocou
condensação do ar infinito. O pensa a matemática. Da vida de Pitágoras
mento milesiano adquiria, assim, consis quase nada pode ser afirmado com certe
tência, pois, além de se identificar qual a za, já que ela foi objeto de uma série de
physis, mostrava-se um processo capaz relatos fantasiosos, como os referentes
de tornar compreensível a passagem da às suas viagens e a seus contatos com
unidade primordial à multiplicidade de culturas orientais. Parece certo, contu
coisas diferenciadas que constituem o do, que ele teria deixado Samos (na
universo. Jônia), na segunda metade do século VI
Como a Anaximandro, também a a.C., fugindo à tirania de Polícrates.
Anaxímenes os doxógrafos — escritores Transferindo-se para Crotona, lá fundou
antigos que recolheram ou transcre uma confraria científico-religiosa. Criou
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mitia explicitar sua lei de composição.
Os primeiros números, representados
dessa forma, bastavam para justificar o
que há de essencial no universo: o um é o
ponto (.), mínimo de corpo, unidade de
extensão; o dois determina a linha
(. — .); o três gera a superfície Zs,
enquanto o quatro produz o volume :.Ô.
Utilizando uma versão puramente
geométrica do gnomon introduzido na
Grécia por Anaximandro — versão que o
transforma esquematicamente em esqua
dro —, os pitagóricos investigam as dife
rentes séries numéricas. E verificam que
o crescimento gnomônico da série dos
números pares determina sempre uma fi
gura oblonga retangular, enquanto a
série dos ímpares cresce como um qua
drado, ou seja, como um quadrilátero
que conserva seus lados sempre iguais,
embora aumente de tamanho. Assim, o
número par pode ser visto como a
expressão aritmo-jçeométrica da alteri-
dade, enquanto o impar seria a própria
manifestação básica, na matemática, da
identidade. A partir desses fundamentos
matemáticos, os pitagóricos podem
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superabundância-fome; mas ele assume Razão universal e, por isso, impõe medi
formas variadas, do mesmo modo que o da ao fluxo: “Este mundo (...) foi sem
fogo, quando misturado a arômatas, é pre, é e será sempre um fogo eterna
denominado segundo os perfumes de mente vivo, que se acende com medida e
cada uni deles” (D 67). Por isso Homero se apaga com medida” (D 30). A regula
errara em pedir que cessasse a discórdia ridade e a medida são garantidas pela
entre os deuses e os homens: “O que siinultaneidade dos dois caminhos de
varia está de acordo consigo mesmo” (D transformação que compõem o fluxo
51). A harmonia não é aquela que Pitá universal: é ao mesmo tempo que ocorre
goras propunha, de supremacia do Um, a troca do fogo em todas as coisas e de
nem a verdadeira justiça é a que Anaxi todas as coisas em fogo, pois “o caminho
mandro havia concebido, ou seja, a para o alto e o caminho para baixo são
extinção dos conflitos e das tensões atra um e ò mesmo”. Isso permite então afir
vés da compensação dos excessos de mar: “ . . .e a metade do mar é terra, a
cada qualidade-substância em relação a metade vento turbilhonante” (D 31).
seu oposto. A justiça não significa Assim, o que garante a tensão intrínseca
apaziguamento; pelo contrário, “o con às coisas é aquilo mesmo que as susten
flito é o pai de todas as coisas: de alguns ta: a medida imposta pelo Logos, essa
faz homens; de alguns, escravos; de “harmonia oculta” que “vale mais que
alguns, homens livres” (D 53). Mas ver harmonia aberta” (D 54).
a realidade como fundamentalmente A consciência da fugacidade das coi
uma tensão de opostos não significa sas gera uma nota cfe pessimismo que
necessariamente optar pela guerra, no atravessa o pensamento de Heráclito:
plano político; “guerra”, neste último “O homem é acendido e apagado como
sentido, é apenas um dos pólos de uma uma luz no meio da noite” (D 26). Mas o
tensão permanente (“Deus é dia-noite, pessimismo advém, sobretudo, de reco
inverno-verão, guerra-paz . . .”). E essa nhecer o torpor em que vive a maioria
tensão, que constitui a verdadeira har dos homens, ignorantes da lei universal
monia, necessita, para perdurar, de que tudo rege. Por isso, o discurso
ambos os opostos. (logos) do filósofo, embora pretendendo
Numa série de aforismos, Heráclito ser a manifestação da Razão universal
enfatiza o caráter mutável da realidade, (Logos), exprime-se como um solitário
repetindo uma tese que já surgira nos mono-logos, acima dos homens comuns,
mitos arcaicos e, com dimensão filosó “esses loucos que quando ouvem são
fica, desde os milesianos. Mas em Herá como surdos” (D 34).
clito a noção de fluxo universal torna-se
um mote insistentemente glosado: “Tu As quatro raízes
não podes descer duas vezes no mesmo
rio, porque novas águas correm sempre O eleatismo e, em particular, as apo
sobre ti” (D 12). O império do Logos em rias de Zenão de Eléia tinham mostrado
sua feição física aparece então como as as consequências extremas a que condu
transformações do fogo, que são “em zia o monismo corporalista. Revalorizar
primeiro lugar, mar; e a metade do mar a multiplicidade e o movimento, recusa
é terra e a outra metade vento turbilho- dos pela razão eleática, exigia o aban
nante” (D 31 a). O Logos-Fogo exerce dono de uma das duas premissas sobre
uma função de racionalização nas trocas as quais vinham se construindo as dife
substanciais análoga à que a moeda rentes cosmogonias filosóficas: ou o
vinha desempenhando na Grécia, desde o monismo ou o corporalismo. E como não
século VII: “Todas as coisas são troca havia ainda possibilidade, naquele mo
das em fogo e o fogo se troca em todas as mento da cultura grega, de se defender a
coisas, como as mercadorias se trocam tese da incorporeidade, a solução para o
por ouro e o ouro é trocado por mercado impasse levantado pelo eleatismo teve
rias” (D 90). Todavia, as transforma de provir da substituição do monismo
ções que integram o fluxo universal não pelo pluralismo. Ao mesmo tempo, a
significam desgoverno e desordem; pelo instauração do regime democrático em
contrário, o Logos-Fogo é também algumas polis gregas — ou a luta pela
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^4 Magna Grécia (sul da Itália e Sicília) foi um dos primeirosfocos de
irradiação do pensamentofilosófico antigo. De Eléia eram Parmênides e Zenão,
que defenderam a unidade do ser. De Agrigento era Empédocles, que propôs
a solução pluralista: a multiplicidade inumerável percebida como resultante
da multiplicidade contida pela razão. (Agrigento: templo de Juno Lacínia.)
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mente para o de seu conterrâneo Protá- rar, portanto, que o sujeito tem certa
goras, que afirmava que “o homem é a autonomia no ato de conhecer, na medi
medida de todas as coisas”. A defesa de da em que “traduz” qualitativamente
um conhecimento da physis e indepen (doce, amargo, frio, quente) o que no
dente da “medida humana” é feita, por próprio objeto é determinada constitui
Demócrito, através da distinção entre ção atômica. Aquela autonomia, porém,
dois tipos de conhecimento: o “bastar seria restrita: a liberdade de conven
do”, que seria o conhecimento sensível, a cionar estaria limitada pelo tipo de
exprimir na verdade as disposições do átomo que compõe o objeto.
sujeito antes que a realidade objetiva; e Quanto à ética, Demócrito, do mesmo
o conhecimento “legítimo”, que seria a modo que Sócrates, considera a “igno
compreensão racional da organização rância do melhor” como a causa do erro.
interna das coisas, ou seja, a compreen Guiado pelo prazer, o homem deveria
são de que a physis do universo frag saber distinguir o valor dos diferentes
mentara-se na multidão de átomos cor- prazeres, buscando em sua conduta a
póreos que se moviam no vazio infinito. harmonia capaz de lhe conceder a calma
Daí afirmar: “Por convenção (nomos) do corpo — que é a saúde — e a da alma
existe o doce; por convenção há o quente — que seria a felicidade.
e o frio. Mas na verdade há somente áto Muitos intérpretes do pensamento de
mos e vazio”. Demócrito parece conside Demócrito indagam como o determi
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SÓCRATES
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do, introduzir novas divindades e cor que estava sendo acusado por Meleto de
romper a juventude. O relato do julga algo que o próprio Meleto não sabia bem
mento feito por Platão (428-348 a.C.), a explicar o que era, já que não conseguia
Apologia de Sócrates, é geralmente tido definir com clareza o que era bom e o
como bastante fiel aos fatos e apresen que era mau para os jovens.
ta-se dividido em três partes. Na primei Em nenhum momento de sua defesa —
ra, Sócrates examina e refuta as acusa segundo o relato platônico — Sócrates
ções que pairam sobre ele, retraçando apela para a bajulação ou tenta captar a
sua própria vida e procurando mostrar o misericórdia daqueles que o julgavam.
verdadeiro significado de sua “missão”. Sua linguagem é serena — linguagem de
E proclama aos cidadãos que deveriam quem fala em nome da própria cons
julgá-lo: “Não tenho outra ocupação ciência e não reconhece em si mesmo
senão a de vos persuadir a todos, tanto qualquer culpa. Chega a justificar o tom
velhos como novos, de que cuideis menos de sua autodefesa: “Parece-me não ser
dos vossos corpos e dos vossos bens do justo rogar ao juiz e fazer-se absolver
que da perfeição das vossas almas, e a através de súplicas; é preciso esclarecê-
de vos dizer que a virtude não provém da lo e convencê-lo”. Embora a demonstra
riqueza, mas sim que é a virtude que ção pública da inconsistência dos argu
traz a riqueza ou qualquer outra coisa mentos de seus .acusadores e embora a
útil aos homens, quer na vida pública tranqüila e reiterada declaração de ino
quer na vida privada. Se, dizendo isso, cência — e talvez justamente por mais
eu estou a corromper a juventude, tanto essas manifestações de altaneira inde
pior; mas, se alguém afirmar que digo pendência de espírito —, Sócrates foi
outra coisa, mente”. Noutro momento de condenado. Mesmo para uma democra
sua defesa, Sócrates dialoga com um de cia como a ateniense, ele era uma amea
seus acusadores, Meleto, deixando-o ça e um escândalo: a encarnação, para a
embaraçado quanto ao significado da mentalidade vulgar, do “escândalo filo
acusação que ele lhe imputava — sófico” que, ali mesmo em Atenas, acar
“corromper a juventude”. Demonstra retara a perseguição de Anaxágoras de
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cepções filosóficas. Por outro lado, as jônicos e os dos sofistas, então de Xeno
biografias que sobre os pensadores mais fonte e de Platão é que devem ser reco
antigos da Grécia foram produzidas no lhidas as principais informações referen
período helenístico nâo apresentam tes ao Sócrates que marcou tão
grande exigência crítica. Numa fase profundamente não apenas a cultura
marcada pela sombra da perda da liber grega como também toda a herança oci
dade política, o importante para os gre dental. Xenofonte, porém, segundo a
gos era descrever a vida daqueles que maioria dos historiadores, espírito bas
haviam vivido nos momentos da perdida tante simplório, não teria tido condições
grandeza política, sem se importar tanto para apreender toda a dimensão dos ensi
com o rigor das informações e mistu namentos socráticos. Essa seria a razão
rando dados históricos com relatos de, freqüentemente, trazer as idéias éti
fantasiosos. cas de Sócrates para o nível de simples
As fontes mais seguras para a recons lugares-comuns, empobrecendo-as e de
tituição da vida e do pensamento de Só turpando-as.
crates continuam sendo, assim, os depoi O contrário exatamente é o que se
mentos de seus contemporâneos. Do pode dizer de Platão: ninguém mais bem
confronto entre os testemunhos deixados dotado para acompanhar o mestre em
por Platão, Xenofonte e Aristófanes é todas as suas sutilezas e em todos os
que sobretudo os historiadores têm pro seus vôos, por mais altos que se alças
curado recompor a verdadeira fisiono sem. Aqui o perigo é oposto: Platão pode
mia do Sócrates-homem e do Sócrates- ter atribuído a Sócrates mais do que ele
filósofo. Se Aristófanes teria focalizado disse ou quis dizer. E, na medida em que
Sócrates na fase anterior a seu magis o torna personagem-chave de quase
tério filosófico e se, além disso, mistu todos os Diálogos que escreveu, não ape
rou-lhe os traços com os de cosmólogos nas reportou situações e debates vividos
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tempos de paz sua coragem foi demons dimensão religiosa. Se, em nome da
trada. Em 406 a.C., enfrentou a ira da indicação contida na afirmativa do orá
multidão que exigia a condenação sumá culo, Sócrates desenvolveu uma insis
ria dos generais tidos como responsáveis tente investigação sobre o significado de
pelo desastre das Arginusas — quando a palavras, certamente não visava, como
tempestade impediu que fossem recolhi interpretará Aristóteles, à definição de
dos no mar, como estabelecia a lei, os conceitos. Tanto, que os Diálogos de
corpos dos que pereceram no combate. Platão, considerados transcrições apro
Apesar das ameaças, Sócrates, sorteado ximadas de conversações efetivamente
para dirigir a assembléia escolhida para entabuladas por Sócrates (os primeiros
julgar os generais, fez prevalecer a lei, Diálogos, justamente designados
impondo que houvesse tantos julga “socráticos”), terminam sempre sem que
mentos quantos eram os acusados. Nou se chegue a uma conclusão a respeito do
tra ocasião, quando o regime democrá tema debatido. É que, para Sócrates, a
tico foi provisoriamente interrompido meta seria não o assunto em discussão,
pelo governo dos Trinta Tiranos, Sócra mas a própria alma do interlocutor, que,
tes arrostou a furia desses oligarcas, ao através do debate, seria levada a tomar
recusar-se a participar da tentativa de consciência de sua real situação, depois
sequestro dos bens de Leon de Salamina, que se reconhecesse povoada de concei
o que considerava injusto. Diante de tos mal formulados e obscuros.
qualquer forma de governo e de qual A implacável racionalização contida
quer autoridade constituída, Sócrates na dialogação socrática — com a qual,
prestava primeiro obediência aos dita segundo o filósofo alemão Nietzsche
mes de sua própria consciência. (1844-1900), Sócrates teria amortecido
Mas o fato que teria marcado, de a primitiva força criadora do gênio
forma decisiva, o resto de sua existência grego — significava, ao que parece, fide
foi, segundo ele mesmo afirma na Apolo lidade e submissão ao oráculo. Em Só
gia, a declaração, pelo oráculo de Delfos crates a razão seria tão mais forte e exi
a seu amigo Querefonte, de que ele era o gente quanto não teria apenas em si
mais sábio dos homens. Logo ele, sem mesma o motivo de sua autoconfiança. A
qualquer especialização, ele que estava sabedoria oracular — que já havia mar
ciente de sua ignorância? Logo ele, cado o pensamento e a linguagem de
numa cidade repleta de artistas, orado Heráclito de Éfeso (c.540-480 a.C.) —
res, políticos, artesãos? Sócrates parece f>arece constituir para Sócrates o abso-
ter meditado bastante tempo, buscando uto em que se apóia a razão. Ao tentar
o significado das palavras da pitonisa. decifrá-lo, a razão não se contrai, antes
Afinal concluiu que sua sabedoria só se expande, e, porque o absoluto é sua
poderia ser aquela de saber que nada meta e seu ponto de referência, ela pode
sabia, essa consciência da ignorância e deve traçar um itinerário que não
sobre coisas que era sinal e começo da conhece limites.
autcconsciência. E viu nas palavras ora- No cumprimento da missão de que se
culares a indicação de uma missão a sente encarregado, Sócrates dialoga.
cumprir. “Desde então”, conta em seu Geralmente o interlocutor, tido como
julgamento, “de acordo com a vontade autoridade em algum ramo de conheci
do deus, não deixei de examinar os meus mento ou de atividade, decepciona-o.
concidadãos e os estrangeiros que consi Apenas nos artífices encontra alguma
dero sábios e, se me parecerem que não o consciência .daquilo que fazem. Mas
são, vou em auxílio do deus revelando- esses revelam um conhecimento restrito
lhes a sua ignorância.” às suas especializações e embaraçam-se
quando levados a opinar sobre outros
O renascer na própria alma assuntos, embora de geral interesse para
os homens. Isso parece confirmar a Só
crates o sentido da superioridade que
A atividade filosófica de Sócrates lhe fora atribuída pelo oráculo: o reen
tinha em sua origem — a crer no depoi contro consigo mesmo só pode partir da
mento da Apologia platônica — uma consciência da própria ignorância. Mas
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Cercado de amigos e discípulos, Sócrates vive seus derradeiros momentos.
A serenidade que mantivera durante a vida, mesmo diante de perigos,
conserva à beira da morte. Em qualquer circunstância, mostra Sócrates,
o importante é conhecer-se a si mesmo e cuidar sempre da própria alma.
(“Morte de Sócrates”, por Louis David, Museu Metropolitano, Nova York.)
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CRONOLOGIA
480 a.C. — A perda das de Clazômena fixa-se em Aristófanes e o Connos de
Termópilas abre a Grécia Atenas. Amipsias.
central à invasão. A frota 460 a.C. — Nascimento de 421 a.C. — Paz de Nícias:
grega esmaga a persa em Tucídides. fim do primeiro período da
Salamina. Nascimento de 456 a.C. — Morte de Ésqui- guerra.
Eurípides. lo. 415-413 a.C. — A guerra
479 a.C. — Vitória dos gre 449-429 a.C. — Governo de recomeça entre Atenas e
gos sobre os persas em Pla Péricles. Esparta.
téia, em terra, e em Micala, 432-429 a.C. — Sócrates 406 a.C. — Questão dos
no mar. Término da segun participa da campanha e do Arginusas e pritania de Só
da guerra médica e início da cerco de Potidéia. crates.
hegemonia de Atenas. 431 a.C. — Começo da 404 a.C. — Assédio e capi
477 a.C. — Formação da guerra do Peloponeso entre tulação de Atenas. Assassí
confederação de Delos, que Esparta e Atenas. nio de Alcibíades.
se transformará, pouco a 428 a.C. — Nasce Platão. 404-403 a.C. — Governo
pouco, em império atenien 424 a.C. — Sócrates parti dos Trinta.
se. cipa da batalha de Délio. 403 a.C. — Restauração da
470 ou 469 a.C. — Nasci 423 a.C. — São apresenta democracia.
mento de Sócrates. dos simultaneamente, em 399 a.C. — Processo e mor
BRASIL
461 a.C.(?) — Anaxágoras concurso, As Nuvens de te de Sócrates.
-
BIBLIOGRAFIA
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Mondolfo, Rodolfo: Sócrates, trad. Lycurgo Gomes da Motta, Editora Mestre Jou, São
Paulo, 2.a ed., 1967.
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Humbert, Jean: Socrate et les Petits Socratiques, Presses Universitaires de France, Paris,
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Entre a filosofia
e a política
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perto o tratamento que seu mestre rece talvez o mais forte laço afetivo da vida
bera de ambas as facções políticas. de Platão — representa também o início
Parecia náo existir em Atenas um parti de reiteradas tentativas para interferir
do no qual um homem que não quisesse na vida política de Siracusa. Platão visi
abrir mão de princípios éticos pudesse ta ainda o norte da África, mas de sua
se integrar. Diante da injustiça sofrida ida ao Egito quase nada se sabe com
por Sócrates, aprofunda-se o desencanto segurança. Certo é que, em Cirene, intei
de Platão com a política e com aquela rou-se das pesquisas matemáticas de
democracia: “Vendo isso e vendo os ho senvolvidas por Teodoro, particular
mens que conduziam a política, quanto mente as referentes aos “irracionais”
mais considerava as leis e os costumes, (grândezas, como ^2~, cuj° valor exato
quanto mais avançava em idade, tanto não se podia determinar). Os irracionais
mais difícil me pareceu administrar os matemáticos inspirarão várias doutrinas
negócios de Estado” (Carta VII). Mas o platônicas, pois representam uma “justa
impacto causado por Sócrates no pensa medida” que nenhuma linguagem conse
mento e na vida de Platão teve também gue exaurir.
outro significado, este de repercussões Nessa época Platão compõe seus pri
ainda mais duradouras: com Sócrates, o meiros Diálogos, geralmente chamados
jovem Platão pudera sentir ã necessi “diálogos socráticos”, pois têm em Só
dade de fundamentar qualquer atividade crates a personagem central. Entre esses
em conceitos claros e seguros. Por inter diálogos está a Apologia de Sócrates,
médio de Sócrates e de sua incessante que pretende reproduzir a defesa feita
ação como perquiridor de consciências e pelo próprio Sócrates diante da Assem
de crítico de idéias vagas ou preconce bléia que o julgou e condenou. Porém, de
bidas, o primado da política torna-se, certa forma, outros diálogos dessa fase
para Platão, o primado da verdade, da constituem também defesas que Platão
ciência. Se o interesse de Platão foi faz de seu mestre, mostrando que nem
inicialmente dirigido para a política, era ímpio nem pervertia os jovens. Nessa
através da influência de Sócrates ele categoria podem ser incluídos o Críton,
reconhece que o importante não era o Laqu.es, o Lysis, o Cármides e o Eutí-
fazer política, qualquer política, mas a fron. Dentre os primeiros diálogos si
política. Por isso é que se recusa a parti tuam-se ainda o Hípias Menor (talvez
cipar, na mocidade, de atividades políti também o Hípias Maior), o Protágoras,
cas: primeiro tem de encontrar os funda o Górgias — nos quais aparecem os gran
mentos teóricos da ação política — e de des sofistas — e o lon. É possível que,
toda ação — para orientá-la retamente. A também nessa época, Platão tenha co
filosofia para Platão representou, assim, meçado a escrever a República. Em
de início, essa ação entravada, a que se geral, os “diálogos socráticos” desen
renuncia apenas para poder vir a reali volvem discussões sobre ética, procu
zá-la com plenitude de consciência. rando definir determinada virtude
Depois da morte de Sócrates, disperso (coragem, Lacptes; piedade, Eutífron;
o núcleo que se congregara em tomo do amizade, Lysis; autocontrole, Cármi
mestre, Platão viaja. Visita Megara, des). Mas são diálogos aporéticos, ou
onde Euclides, que também pertencera seja, fazem o levantamento de diferentes
ao grupo socrático, fundara uma escola modos de se conceituar aquelas virtu
filosófica, vinculando o socratismo e o des, denunciam a fragilidade dessas
eleatismo. Vai ao sul da Itália (Magna conceituações, mas deixam a questão em
Grécia), onde convive cpm Ârquitas de aberto, inconclusa. Isso possivelmente
Tarento. O famoso matemático e político estaria relacionado ao objetivo do pró
pitagórico dá-lhe um exemplo vivo de prio Sócrates, que se preocupava antes
sábio-govemante, que ele depois aponta com o desencadeamento do conheci
rá, na República, como solução ideal mento de si mesmo e não propriamente
para os problemas políticos. Na Sicília, com definições de conceitos. De qual
em Siracusa, conquista a amizade e a quer modo, algumas teses socráticas bá
inteira confiança de Dion, cunhado do ti sicas podem ser encontradas nesses diá
rano Dionísio. Essa ligação com Dion — logos, como a da identificação da
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Depois da morte de Platão, a Academia foi dirigida por Espeusipo, em seguida por
Xenócrates. Posteriormente, com Arcesilau e Caméades, a Nova Academia”
assume índole cética. Novas condições políticas não mais permitem o otimismo que
fazia Platão acreditar na ciência efundamentá-la no Bem. (“Platão Ensinando
Geometria” ou “Conversação ae Filósofos”, Museu Nacional, Nápoles.)
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idéias ou formas. Elas seriam incorpó- liga a alma às idéias e justifica que o
reas e invisíveis — o que significa dizer homem as conheça, como explicar o
justamente que não está na matéria a relacionamento entre as formas e os
razão de sua inteligibilidade. Seriam objetos físicos, entre o incorpóreo e o seu
reais, eternas e sempre idênticas a si oposto, o corpóreo? Essa é uma questão
mesmas, escapando à corrosão do que o próprio Platão levanta no diálogo
tempo, que torna perecíveis os objetos fí Parmênides. Antes ainda suscita outro
sicos. Mereciam, por .isso mesmo, o problema, que está na base daquele e
qualificativo de “divinas”, qualificativo que não havia sido esclarecido nas obras
que os filósofos anteriores já atribuíam à anteriores: afinal, de que há idéias?
arquê. Perfeitas e imutáveis, as idéias Os exemplos de idéias apresentados
constituiríam os modelos ou paradigmas no Fédon são extraídos ou da esfera dos
dos quais as coisas materiais seriam valores estéticos e morais (o Belo, o
apenas cópias imperfeitas e transitórias. Bom), ou das relações matemáticas (o
Seriam, pois, tipos ideais, a transcender Grande). De fato, desses dois campos é
o plano mutável dos objetos físicos. que o platonismo vai colher preíeren-
A afirmativa de que o mundo material cialmente os pontos de apoio para pro
se torna compreensível através da hipó por um mundo de modelos transcen
tese das idéias deixa, porém, em sus dentes. Isso é compreensível, uma vez
penso um problema decisivo: o da possi que a variação de mais e menos (mais
bilidade de se conhecer essas realidades belo, menos belo; maior, menor) parece
invisíveis e incorpóreas. Com efeito, o sugerir a referência a um padrão absolu
que inicialmente foi tomado como hipó to, a uma “justa medida” (o Belo, o
tese explicativa — a existência do mundo Grande). Todavia, já no Crátilo, onde
das idéias — não basta a si mesmo. É aparece a primeira afirmação da trans
preciso que se admita um conhecimento cendência das idéias, ela é feita a propó
das idéias incorpóreas que antecede ao sito da idéia referente a um objeto físico,
conhecimento fornecido pelos sentados, a um artefato, a naveta. No Parmênides
que só alcançam o corpóreo. No Mênon o problema ainda mais se aguça ao
Platão expõe a doutrina de que o inte fazer-se a pergunta: há uma forma
lecto pode apreender as idéias porque correspondente ao fogo (realidade física
também ele é, como as idéias, incorpó- e natural), uma forma correspondente ao
reo. A alma humana, antes do nasci lodo (objeto físico “inferior”)? Valores
mento — antes de prender-se ao cárcere negativos ou realidades abjetas teriam
do corpo — teria contemplado as idéias um modelo no plano das essências divi-
enquanto seguia o cortejo dos deuses. pas? O que está aí em questão é, na ver
Encarnada, perde a possibilidade de dade, o significado que o mundo físico
contato direto com os arquétipos incor- tem enquanto corpóreo; se é cópia, o que
póreos, mas diante de suas cópias — os lhe confere o estatuto de cópia, distan
objetos sensíveis — pode ir gradativa ciando-o do arquétipo? Se sua causa
mente recuperando o conhecimento das inteligível é o mundo das idéias, o que
idéias. Conhecer seria então lembrar, constitui isto que lhe dá concreção e
reconhecer. A hipótese da reminiscência materialidade?
vem, assim, sustentar a hipótese da exis Num primeiro momento, de dialética
tência do mundo das formas. Mas, por ascendente, impulsionada pelo método
sua vez, implica outra doutrina, que a inspirado no procedimento dos matemá
condiciona: a da preexistência da alma ticos, Platão deixara de lado, proviso
em relação ao corpo, a da incorruptibi riamente, a natureza do sensível en
lidade dessa alma incorpórea e, portan quanto sensível. Mas na etapa final de
to, a da sua imortalidade. Essa imortali seu pensamento, animada também por
dade, de que Sócrates não teve certeza uma dialética descendente que procura
nos primeiros diálogos, converte-se, na vincular o inteligível ao sensível, essa
construção do platonismo, numa condi questão assumirá crescente interesse,
ção para a ciência, para a explicação motivando a cosmogonia e a física do
inteligível do mundo físico. Timeu. Também no ensinamento oral
Mas se a doutrina da reminiscência dessa fase — segundo o depoimento de
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“Aqui não entre quem não souber geometria” — a inscrição na Academia revela
a importância que tiveram as matemáticas na construção do pensamento platônico.
Em sua fase final, as idéias são entendidas como idéias-números e a dialética
é vista como uma metrética, uma arte da medida. (“A Escola de Atenas”, de Rafael.)
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teria produzido as obras da natureza e é que uma classe usufrua de uma felici
também as imagens dessas obras (como dade superior, mas que toda a cidade
o reflexo do fogo numa parede). Analo seja feliz. O indivíduo faria parte da ci
gamente, a arte humana produz de dupla dade para poder cumprir sua função so
maneira: o homem tanto constrói uma cial e nisto consiste ser justo: em cum
casa real como, na condição de pintor, prir a própria função.
pode reproduzir num quadro a imagem A reorganização da cidade, para
dessa casa. O artista aparece por isso, transformá-la em reino da justiça, exige
na República, como “criador de aparên naturalmente reformas radicais. A famí
cias”. O problema da imitação torna-se lia, por exemplo, deveria desaparecer
mais complexo quando referido aos para que as mulheres fossem comuns a
objetos de arte, objetos artificiais, arte todos os guardiães; as crianças seriam
fatos. Faz-se então a distinção entre educadas pela cidade e a procriação
^raus intermediários de imitação: o ob deveria ser regulada de modo a preser
jeto natural imita a idéia que lhe é var a eugenia; para evitar os laços fami
correspondente e a arte imita, por sua liares egoístas, nenhuma criança conhe
vez, aquela imitação. A relação cópia- cería seu verdadeiro pai e nenhum pai
modelo usada metafisicamente por Pla seu verdadeiro filho; a execução dos tra
tão para explicar a relação sensível-inte- balhos não levaria em conta distinção de
ligivel reaparece assim em sua sexo mas tão-somente a diversidade das
concepção estética e justifica as restri aptidões naturais.
ções feitas aos artistas na República. A efètivação dessa utopia social de-
Particularmente os poetas, comô Home Íienderia fundamentalmente, por outro
ro, são aí apresentados como fazendo ado, de um cuidadoso sistema educati
“simulacros com simulacros, afastados vo, que permitisse a cada classe desen
da verdade”. No caso das artes plásti volver as virtudes indispensáveis ao
cas, Platão recusa a utilização dos exercício de suas atribuições. Mas a ci
recursos da perspectiva, que então se dade ideal só poderia surgir se o gover
difundiam e lhe pareciam a sofistica na no supremo fosse confiado a reis-filó-
arte, pois acentuavam a “ilusão de reali sofos. Esses chefes de Estado seriam
dade’ . A arte imitativa deveria preser escolhidos dentre os melhores guardiães
var o caráter de cópia de seus produtos, e submetidos a diversas provas que
não querendo confundi-los com os obje permitiríam aquilatar de seu patrio
tos reais. Outra saida para as artes plás tismo e de sua resistência. Mas, princi
ticas seria tentar reproduzir a verda palmente, deveriam realizar uma série
deira realidade — das formas de estudos para poderem atingir a ciên
incorpóreas —, o que coloca Platão, cia, ou seja, o conhecimento das idéias,
segundo alguns intérpretes, como ante- elevando-se até seu fundamento supre
cipador da arte abstrata. mo: a idéia do Bem.
A discussão em tomo da cidade ideal
cede então lugar, na República, a duas
Da sombra à luz apresentações sintéticas de como se
desdobraria o conhecimento humano ao
Na República, a organização de uma ascender até a contemplação do mundo
cidade ideal apóia-se numa divisão das essências: o esquema da linha divi
racional do trabalho. Como reformador dida e a alegoria da caverna.
social, Platão considera que a justiça Uma linha dividida em dois segmen
depende dessa diversidade de funções tos (AB, BC), um representando o plano
exercidas por três classe distintas: a dos sensível e outro o plano inteligível, serve
artesãos, dedicados à produção de bens a Sócrates (aí certamente apenas porta-
materiais; a dos soldados, encarregados voz de Platão) para tomar visualizável a
de defender a cidade; a dos guardiães, ascese dialética. Esses dois segmentos
incumbidos de zelar pela observância apresentam subdivisões correspondentes
das leis. Produção, defesa, adminis a diferentes tipos de objetos sensíveis
tração interna — essas as três funções e inteligíveis e, conseqíi entemente, a
essenciais da cidade. E o importante não modalidades diversas de conhecimento:
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Platão explica o mundo sensível através do mundo das idéias, só alcançável
pelo intelecto. As idéias permitiríam construir a compreensão científica da
realidade e, modelos perfeitos, orientariam a ação reformadora ou criadora do
homem. (Platão no “Mosaico dos Filósofos”, Museu Romano-Germânico de Colônia.)
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OS PENSADORES
CRONOLOGIA
508 a.C. - A revolta popular suas idéias, contrárias à reli toma ciência das pesquisas
liderada por Clístenes ins giosidade popular e oficial. matemáticas de Teodoro) e
taura a democracia em Ate 432 a.C. - Irrompe a guerra visita o Egito.
nas. do Peloponeso: entre Atenas 387 a.C. - Platão funda, em
490 - 479 a.C. - Atenas to e Esparta. Atenas, a Academia.
ma parte nas guerras médi 428 - 427 a.C. - Nasce Pla 367 a.C. - Morre Dionísio I,
cas (contra os persas). tão em Atenas. de Siracusa, sendo sucedido
460 - 430 a.C. - Período de 399 a.C. - Julgado pela As por seu filho Dionísio II.
apogeu de Atenas, no qual sembléia popular de Atenas, Segunda viagem de Platão a
ocorre o governo de Péri Sócrates é condenado a Siracusa.
cles. morrer bebendo cicuta. 361 a.C. - Terceira viagem a
460 a.C. -aproximadamente 388 a.C. -aproximadamente Siracusa.
- Chega a Atenas o filósofo - Platão viaja: Magna Gré 348 - 347 a.C. - Platão mor
Anaxágoras de Clazômena, cia (sul da Itália, Sicília); re em Atenas.
que, embora protegido por em Siracusa, conhece Dion, 338 a.C. - Filipe da Mace-
Péricles, acaba tendo de dei cunhado do tirano Dionísio dônia conquista a Grécia,
xar a cidade, devido às per I; convive com Euclides em obtendo a vitória na batalha
seguições suscitadas por Megara; vai a Cirene (onde de Queronéia.
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OS PENSADORES
tenas, 367 ou 366 a.C. Ao grande Naquela época duas grandes institui
66
ARISTÓTELES
nho de um papel relevante na cidade-Es- sido o próprio Eudoxo quem lhe apre
tado. Ao contrário de Isócrates, Platão sentou o novo aluno da Academia, o
ensinava que a base para a ação política jovem da Macedônia de olhos pequenos
— como aliás para qualquer ação — deve porém reveladores de excepcional viva
ria ser a investigação cientifica, de Índo cidade: Aristóteles de Estagira.
le matemática. Na Academia, que funda
ra em 387 a.C., mostrava a seus O preceptor de Alexandre
discípulos que a atividade humana,
desde que pretendesse ser correta e De pura raiz jônica, a família de Aris
responsável, não poderia ser norteada tóteles estava tradicionalmente ligada à
por valores instáveis, formulados segun medicina e à casa reinante da Macedô
do o relativismo e a diversidade das opi nia. Seu pai, Nicômaco, era médico e
niões; requeria uma ciência (episteme) amigo do rei Amintas II, pai de Filipe.
dos fundamentos da realidade na qual Estagira, a cidade onde Aristóteles nas
aquela ação está inserida. Por trás do ceu, em 384 a.C., ficava na Calcídica e,
inseguro universo das palavras — sujei apesar de estar situada distante de Ate
tas à arte encantatória e à prestidigi- nas e em território sob a dependência da
tação dos retóricos — o educando deve Macedônia, era na verdade uma cidade
ria ser levado, por via do socrático grega, onde o grego era a língua que se
exame do significado das palavras, à falava. A vida de Aristóteles — e pode-se
contemplação, no ápice da ascensão dizer que até certo ponto sua obra —
dialética, das essências estáveis e pere estará marcada por essa dupla vincu-
nes: núcleos de significação dos vocábu lação: à cultura helênica e à aventura
los porque razão de ser das próprias coi política da Macedônià.
sas, padrões para a conduta humana Ao ingressar na Academia platônica —
porque modelos de todos os existentes que viria a freqiientar durante cerca de
do mundo físico. Para além do plano da vinte anos — Aristóteles já trazia, como
palavra-convenção (nomos) dos sofistas herança de seus antepassados, acen
e de Isócrates, Platão apontava um ideal tuado interesse pelas pesquisas biológi
de linguagem construída em função das cas. Ao matematismo que dominava na
idéias, essas justas medidas de signifi Academia, ele irá contrapor o espírito de
cação e de realidade. observação e a índole classificatória, tí
Diante dos dois caminhos — o de Isó- picas da investigação naturalista, e que
crates e o de Platão — o jovem chegado constituirão traços fundamentais de seu
da Macedônia não hesita: ingressa na pensamento.
Academia, embora a advertência da ins Por outro lado, embora de raízes gre
crição de que ali não devesse entrar gas, ele não era cidadão ateniense e esta
“quem não soubesse geometria”. Mas va estreitamente ligado à casa real da
em 367 a.C. Platão não se encontrava Macedônia. Essa condição de meteco —
em Atenas. Havia morrido Dionísio I, ti estrangeiro domiciliado numa cidade
rano de Siracusa, e Platão para lá se grega — explica que ele não viesse a se
dirigira, pela segunda vez, a chamado tornar, como Platão, um pensador polí
de seu amigo Dion. O novo tirano, Dioní tico preocupado com os destinos da polis
sio II, talvez pudesse ser convencido a e com a reforma das instituições. Diante
adotar uma linha política mais justa e das questões políticas Aristóteles assu
condizente com os interesses gerais do mirá a atitude do homem de estudo, que
mundo helênico. se isola da cidade em pesquisas especu
O jovem que viera da Macedônia lativas, fazendo da política um objeto de
ingressa, assim, numa Academia ria qual erudição e não uma ocasião para agir.
a figura principal era, no momento, Eu- Em 347 a.C., morrendo Platão, Aris
doxo de Cnido, matemático e astrônomo tóteles deixa Atenas e vai para Assos, na
que defendia uma ética baseada na Ásia Menor, onde Hérmias, antigo es
noção de prazer. Somente cerca de um cravo e ex-integrante da Academia,
ano depois é que Platão retoma, fati havia se tornado o governante. É possí
gado por mais uma frustrada expe vel que a escolha de Espeusipo, sobrinho
riência política na Sicília. E talvez tenha de Platão, para substituir o mestre na
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teológico; mas, ao contrário do que pro muitos dos quais reunidos sob um título
punha Platão, o universo é aí explicado comum (como é o caso da Física). A
não à semelhança de uma obra de arte — arrumação desses tratados de modo a
resultado da ação de um divino artesão, constituir as séries que integram o con
o demiurgo —, e sim como um organismo junto das obras de Aristóteles — o Cor-
que se desenvolve graças a um dina pus aristotelicum —, remonta a Andrô-
mismo interior, um princípio imanente nico de Rodes, que dirigiu a escola
que Aristóteles denomina “natureza” peripatética no século I a.C.
(physis). O conteúdo do Corpus aristotelicum
As obras de Aristóteles chamadas apresenta uma distribuição sistemática:
acroamáticas, ou seja, compostas para Primeiro, os tratados de lógica, cujo
um auditório de discípulos, apresentam- conjunto recebeu a denominação de
se sob a forma de pequenos tratados, Organon — já que para Aristóteles a ló-
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FABBRI
Num ponto fundamental Aristóteles sempre discordou de Alexandre: a junção de
gregos e não-gregos dentro do mesmo organismo político. Para o filósofo, os
gregos e os “bárbaros” eram essênciasperfeitamente distintas que deviam se
atualizar através de diferentes instituições políticas e sociais. (Detalhe
do Mausoléu de Halicamasso: combate entre gregos e amazonas, M. Britânico.)
nal daquelas doutrinas, extraindo-o de dentro da qual teria sido gerada. Justa
sob interpretações aristotelizantes. Mui mente porque ela se concebe como
tos desses historiadores insistem nas progressivamente preparada através do
“deformações” sofridas pelas idéias dos tempo (pelas “antecipações” dos pensa
outros filósofos quando reportadas e dores precedentes), é que, ao eclodir,
analisadas por Aristóteles e pelos doxó- com pretensão de plenitude e de vali
grafos aristotélicos. Tal “deturpação” dade intemporal, volta-se para o passa
tem, porém, um motivo fundamental: do e procura desvendar-lhe o sentido: a
como em todas as histórias da filosofia meta atingida pretende conter a razão de
que serão desde então produzidas, exis ser de todo o itinerário seguido pelas
te por trás da história da filosofia conti investigações humanas. Essa a causa
da nas obras de Aristóteles uma filosofia fundamental de o aristotelismo “aristo-
que a predetermina. No caso de Aristóte telizar” a história da cultura e, particu
les, essa filosofia é naturalmente o pró larmente, a história da filosofia.
prio aristotelismo, que construíra uma Mas há outros motivos que levam
explicação particular do movimento, da Aristóteles a partir sempre do passado e
transformação e, conseqüentemente, das fazer a história dos problemas que
mudanças históricas. Assim, se o aristo investiga. E são motivos historicamente
telismo formula uma verdade válida uni compreensíveis: Aristóteles procura ali
versal e intemporalmente — como Aristó cerçar sua própria filosofia no consenso
teles parece acreditar —, é natural que geral, no consensum gentium et tempo-
essa verdade supostamente absoluta seja rum, ou seja, num suposto acordo subja
utilizada para julgar a própria história cente às opiniões das diversas pessoas
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Da dialética à lógica
A dialética era, todavia, uma constru
ção marcada pela índole hipotética da
matemática que inspirou o platonismo.
Tanto que, mais tarde, seguidores de
Platão da fase chamada Nova Academia
serão alguns dos principais represen
tantes do ceticismo antigo. Novas e
adversas circunstâncias históricas —
resultantes da perda da liberdade polí
tica da Grécia — impedirão o otimismo
que fizera Platão fundamentar o conhe
cimento científico no Bem. No ápice da
pirâmide de idéias, essa super essência
era a garantia última da certeza do
conhecimento, transmutando em verda
A metafísica de Aristóteles estuda de o que fora inicialmente uma tessitura
o ser enquanto ser, investigando os de afirmações apenas prováveis. Desde
fundamentos da realidade e da ciência. que seja abolida a sustentação do conhe
(“Metafísica”, edição do século XIII, cimento no Bem não-hipotético, o plato
Biblioteca Laurenziana, Florença.) nismo irá se revelar, na formulação dos
integrantes da Nova zXcademia, terreno
tradição poética para corroborar suas propício à frutificação de teses relati-
teses filosóficas parecem ser também vistas e céticas.
indícios daquele cuidado. Do mesmo Aristóteles justamente já teria perce
modo poder-se-ia explicar a importância bido que a dialética platônica só se
que ele atribui aos provérbios: resumos comprometia com a certeza em última
de antiqüíssima sabedoria e frutos da instância — o que conferia ao platonismo
longa experiência da humanidade, a eles sua inquietação permanente e sua flexi
Aristóteles não pretende se contrapor, e bilidade, deixando-o, porém, sob a cons
sim preservá-los, desenvolvê-los e con tante ameaça do relativismo. O projeto
duzi-los à plenitude, dando-lhes forma aristotélico torna-se, então, o de forjar
definida e fundamentos racionais. Toda um instrumento mais seguro para a
a obra de Aristóteles está, por isso constituição da ciência: o Organon. Nele
mesmo, animada por forte senso de uni a dialética é reduzida à condição de
dade do mundo da cultura e pelo histori- exercício mental que, não lidando com
cismo ditado, em útilma instância, por as próprias coisas mas com as opiniões
suas concepções metafísicas. dos homens sobre as coisas, não pode
Platão ensinava na Academia e nos atingir a verdade, permanecendo no âm
seus Diálogos que a compreensão dos bito da probabilidade. Essa concepção
fenômenos que ocorrem no mundo físico da dialética como uma ‘‘‘■ginástica do
depende de uma hipótese: a existência espírito”, útil como fase preparatória
de um plano superior da realidade, atin para o conhecimento, mas incapaz de
gido apenas pelo intelecto, e constituído chegar à certeza sobre as coisas, justi
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fica a concepção aristotélica da história mais ampla a que o sujeito pode perten
e, em particular, da história dá filosofia: cer (“O homem é um animal”); a dife
a história — inserida no domínio da dia rença é que permite situar o sujeito rela
lética — é util e indispensável na medida tivamente às subclasses em que se divide
em que conduz à sua própria superação, o gênero (“O homem é animal racio
quando o provável se transforma em cer nal”); já a espécie constitui a síntese do
teza. Ou quando as opiniões dos anteces gênero e da diferença (“O homem é ani
sores preparam e dão lugar à verdade mal racional”). O próprio e o acidente
que somente seria alcançada pelo pensa são atributos que não fazem parte da
mento aristotélico. essência do sujeito, pois não dizem o que
Para se atingir a certeza científica e ele é; todavia, o próprio guarda em rela
construir um conjunto de conhecimentos ção àquela essência uma dependência
seguros, torna-se necessário, segundo necessária (“A soma dos ângulos inter
Aristóteles, possuir normas de pensa nos de um triângulo equivale a 180o”),
mento que permitam demonstrações cor enquanto o acidente pode ou não perten
retas e, portanto, irretorquíveis. O esta cer ao sujeito, ligando-se a ele de modo
belecimento dessas normas confere a contingente e podendo ser afirmado de
Aristóteles o papel de criador da lógica outros tipos de sujeitos (“Este homem é
formal, entendida como a parte da lógi magro”).
ca que prescreve regras de raciocínio
independentes do conteúdo dos pensa Porque Sócrates é mortal
mentos que esses raciocínios conjugam.
Mas a lógica aristotélica nasce num Aristóteles concorda com Platão ao
meio de retóricos e de sutis argumenta- considerar que só pode haver ciência do
dores. Faz-se necessário, portanto, par universal. Mas o conhecimento do uni
tir de uma análise da linguagem corren versal e necessário implica a consciência
te, para identificar seus diferentes usos das razões que tomam necessária uma
e, ao mesmo tempo, enumerar os diver determinada afirmativa. Essa necessi
sos sentidos atribuídos às palavras dade torna-se evidente apenas quando se
empregadas nas discussões. Eis por que apresenta a explicação daquela asser
as Categorias abrem o Organon com pes ção, isto é, quando se mostra a sua
quisas sobre as palavras, procurando causa. O encadeamento rigoroso de
inclusive evitar os equívocos que resul proposições, de modo a exprimir um
tam da designação de coisas diferentes raciocínio que pretenda concluir por
através de um mesmo nome (homônimo) uma afirmativa necessária, e o que Aris
ou da mesma coisa por meio de diversas tóteles investiga nos Analíticos.
palavras (sinônimos). Platão, através do método da divisão,
A teoria das proposições apresentada procurava chegar a definições: como
no Sobre a Interpretação.baseia-se numa exemplifica no diálogo Sofista, poder-
tese de amplo alcance, pois realiza uma se-ia obter a definição de uma espécie
extraordinária simplificação no uni por sucessivas divisões do gênero em
verso da linguagem: toda proposição que ela estiver contida. Mas Aristóteles
seria o enunciado de um juízo através do considera insuficiente esse procedimento
qual um predicado é atribuído a deter platônico, pois as dicotomias sucessivas
minado sujeito. As proposições podem colocam opções sem determinar necessa
então ser classificadas em universais ou riamente qual dos dois rumos deve ser
particulares, se o atributo é afirmado tomado. Com a sua doutrina do silogis
(ou negado) do sujeito como um todo mo, Aristóteles pretende resolver os
(por exemplo: “Todos os homens são impasses criados pela simples dicoto-
mortais”), ou se é afirmado (ou negado) mia, apresentando um encadeamento
de apenas parte do sujeito (“Alguns ho que segue uma direção incoercível, rumo
mens são gregos”). a uma conclusão. Com efeito, o silo
Aristóteles estabelece ainda a distin gismo seria um raciocínio no qual,
ção entre cinco tipos possíveis de atribu determinadas coisas sendo afirmadas,
tos: o gênero, a espécie, a diferença e o segue-se inevitavelmente uma outra afir
acidente. O gênero refere-se à classe mativa. Assim, partindo-se das premis-
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não são meras convenções do espírito de ser são vários e os acidentes podem
humano e de que a lógica — o instru significai’ uma quantidade, ou uma qua
mento que permite a utilização científica lidade, ou uma relação (duplo, menor,
desses conceitos — estaria fundamentada pai e filho), ou o onde, ou o quando, ou
na realidade, sobre a qual ela pode, ainda uma posição (sentado), ou um es
então, legitimamente operar. tado (vestido, equipado), ou uma ação
A metafísica aristotélica reformula a (escrever), ou então uma paixão (estar
noção de ser. Essa noção era interpre doente).
tada por Parmênides e pelos seguidores
da escola eleática de modo unívoco: no O Primeiro Motor
seu poema Sobre o ser, Parmênides de Desde o seu começo, no século VI
Eléia (século VI a.C.) afirmava que “o a.C., a especulação filosófica grega ocu-
que é — é o que é", concluindo que o ser pou-se do problema do movimento.
era necessariamente único, pois a multi Enquanto Heráciito de Efeso afirmava a
plicidade significaria a admissão da mudança permanente de todas as coisas,
existência do não-ser, o que seria absur Parmênides apontava a contradição que
do e inadmissível. Os atomistas (Leucipo existir ia entre a noção de ser e a noção
e Demócrito) quebraram essa unicidade de movimento. Essa contradição Aristó
do ser eleático quando afirmaram que teles pretende evitar através da interpre
tanto era ser o corpóreo (os átomos) tação analógica da noção de ser, que lhe
quanto o incorpóreo (o vazio). Mas a permite fazer uma distinção fundamen
solução atomista permanecia no plano tal: ser não é apenas o que já existe, em
da física e não atingira toda a dimensão ato; ser é também o que pode ser, a
da questão levantada pelo eleatismo. virtualidade, a potência. Assim, sem
Platão retoma o problema e, na fase contrariar qualquer princípio lógico,
final de sua obra (particularmente no poder-se-ia compreender que uma subs
diálogo Sofista), considera o ser e o tância apresentasse, num dado momen
não-ser como dois dos gêneros supremos to, certas características, e noutra oca
dentro da hierarquia das idéias. E o sião manifestasse características
importante é que Platão renova a noção diferentes: se uma folha verde toma-se
de não-ser, entendendo-o não como um amarela é porque verde e amarelo são
nada ou como o vazio: o não-ser seria o acidentes da substância folha (que é
outro, a alteridade que sempre comple sempre folha, independente de sua colo
menta o mesmo, a identidade. Cada exis ração). A qualidade "amarelo” é uma
tente surge assim como um jogo, em virtualidade da folha, que num certo
variadas proporções, do mesmo (o que momento se atualiza. E essa passagem
ele ê) com o outro (o que não é ele, os de da potência ao ato é que constitui,
mais existentes). segundo a teoria de Aristóteles, o
Aristóteles não considera satisfatória movimento.
a solução platônica. Para fundamentar a Mas Aristóteles não aceita a doutrina
ciência do mundo físico — mundo múlti do transformismo universal que, em pen
plo e mutável — seria preciso romper sadores pré-socráticos como Anaxi-
mais fundo com o eleatismo. Substitui, mandro de Mileto ou Empédocles de
então, a concepção unívoca de ser, que o Agrigento, apresentava todo o universo
considera de modo único e absoluto — como animado por uma transformação
impedindo a compreensão racional do contínua, por um único fluxo que interli
movimento e da multiplicidade — pela gava as várias espécies num mesmo pro
concepção analógica: o ser seria análo cesso evolutivo. Para Aristóteles o movi
go, isto é, dotado de diferentes sentidos. mento existe circunscrito às substâncias
Essas diversas acepções do ser pode- que, cada qual, atualiza suas respec
riam, segundo Aristóteles, ser classifi tivas e limitadas potências: o movimento
cadas, da maneira mais ampla, segundo dura enquanto dura a virtualidade do
várias categorias. Assim, qualquer ser, de cada ser, de cada natureza, ces
termo que designa algo que é, designa sando quando o ser expandiu as suas
ou uma substância (um ser) ou um aci potencialidades e se atualiza plena
dente (um modo de ser); porém os modos mente. Em nome da noção de espécies
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tos), assim também o escravo teria seu mente escravo, sendo destituído por
lugar natural na condição de “ferra completo de alma noética, a parte da
menta animada”. Aristóteles chega alma capaz de fazer ciência e filosofia e
mesmo a afirmar que o escravo é escravo que desvenda o sentido e a finalidade úl
porque tem alma de escravo, é essencial tima das coisas.
CRONOLOGIA
387 a.C. — Platão funda a 347/44 a.C. — Aristóteles 335 a.C. — Aristóteles re
-
359 a.C. — Filipe inicia seu 343 a.C. — A chamado de ca e conquista Tiro, depois
E INDUSTRIAL
governo na Macedônia e, lo Filipe, Aristóteles vai para o Egito.
go em seguida, invade a Pela e torna-se preceptor do 326/25 a.C. — Incursão de
Grécia. jovem A lexandre. Alexandre até as margens
356 a.C. — Em Pela, capi 338 a.C. — Os macedônios do Indo.
tal da Macedônia, nasce derrotam os gregos em Que- 323 a.C. — Alexandre mor
BIBLIOGRAFIA
Traduções das obras de Aristóteles: em inglês, tradução sob a direção de J. A. Smith e W. D.
Ross (The Works of Aristotle), Oxford, 1908 - 1931; em francês, diversas obras traduzidas
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seres perfeitos que nâo se misturam às ética e não apenas natural — é o “prazer
imperfeições e às vicissitudes da vida do repouso”, constituído pela a tara ria
humana. Os deuses viveríam em perfeita (ausência de perturbação) e pela aponia
serenidade nos espaços que separam os (ausência de dor). Ambas podem ser
mundos. Sua perfeição suprema consti alcançadas na medida em que o homem,
tui o ideal a que aspiram os sábios e através do autodomínio, busque a auto-
deve ser objeto de culto desinteressado; suficiência que o torne um ser que tem
não teria sentido adorá-los de maneira em si mesmo sua própria lei, um ser
servil, temerosa e interesseira, pois eles autárquico, capaz de ser feliz e sereno
desconhecem o mundo imperfeito dos independentemente das circunstâncias.
homens e de modo algum atuam sobre Para tanto, deve renunciar aos prazeres
ele. Quanto à morte, não há também por que possam ser fontes de aflição e acei
que temê-la. Ela não seria mais que a tar a dor quando ela é portadora de um
dissolução do aglomerado de átomos bem futuro (que nunca deve ser confun
que constitui o corpo e a alma. A morte, dido com a suposta vida depois da
portanto, não existe enquanto o homem morte). É necessário, portanto, fazer um
vive e este não existe mais quando ela cálculo utilitário dos prazeres e das
sobrevem. dores possíveis, como primeiro passo
A libertação do temor dos deuses e da para a conquista da felicidade. Epicuro,
morte não basta para conduzir o homem porém, reconhece que as circunstâncias
à verdadeira felicidade. É necessário podem impor a dor como um fato inelu
ainda que ele se liberte da ânsia incon- tável. Sabedoria será então utilizar a
trolada de prazeres e do incontido pesar liberdade interior e, através do artificio
pelas dores. que essa liberdade permite, permanecer
A luminosidade racional da doutrina sereno e feliz. A dor presente, ensina
atomista permitiría ao homem afastar os Epicuro, pode-se escapar por meio da
sombrios temores que lhe intranqíii- lembrança dos prazeres passados ou
lizavam a alma, bem como reconhecer- pela expectativa de prazeres futuros.
se como um ser perfeitamente integrado Interiormente, o homem é livre para
na natureza universal. Enquanto ser jogar, à vontade, com as imagens (eido-
natural, o homem — como os animais — la) que seriam resquícios corpóreos (for
pauta sua vida, espontaneamente, pela mados de átomos mais tênues) de suas
procura do prazer e pela fuga da dor. sensações. Epicuro — ele próprio um
Mas a verdadeira sabedoria está além homem doente e vítima de terríveis sofri
desse comportamento natural e espontâ mentos físicos, ele próprio um grego sem
neo: sábio é reconhecer que há diferentes liberdade política — teria dado a de
tipos de prazer, para saber selecioná-los monstração dessa técnica interior de
e dosá-los. O hedonismo epicurista reco evasão, capaz de permitir ao homem
nhece que o ponto de partida para a feli enfrentar serenamente as mais adversas
cidade está na satisfação dos desejos fí circunstâncias. Seu hedonismo alta
sicos, naturais. Mas essa satisfação, mente espiritualizado, que fazia da
para não acarretar sofrimentos, deve ser contemplação intelectual e das delícias
contida, reduzindo-se ao estritamente da amizade os mais elevados prazeres,
necessário: sábio é aquele que “com um legou às éticas posteriores uma lição
pouco de pão e de água rivaliza com Jú que nunca mais será esquecida: a de que
piter em felicidade”. o homem também pode se sustentar de
Epicuro considera que todo prazer é recordações e de esperanças.
basicamente um prazer corpóreo. Mas,
ao contrário dos cirenaicos — corrente A poesia do materialismo
hedonista que se pretendia herdeira de
Sócrates —, Epicuro afirma que o prazer Na própria Antiguidade o epicurisino
que o homem deve buscar não é o da não sofreu reformulações. Os seguido
pura satisfação física imediata e mutá res imediatos de Epicuro limitaram-se a
vel, o “prazer do movimento”. Para Epi cultuar a memória do mestre e a preser
curo, o prazer que deve nortear a condu var e propagar suas idéias.
ta humana — o prazer com dimensão Segundo Diógenes Laércio, a obra de
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CRONOLOGIA
470 a.C. — Nasce Sócrates. Lao-Tsé, codificador do Cicio, fundador da escola
468 a.C. — Consolida-se tauísmo. estóica. Aristóteles funda o
em Atenas a política do par 369 a.C. — Esparta e Ate Liceu.
tido aristocrático. nas aliam-se contra Tebas. 331 a.C. — É fundada a ci
460-370 a.C. — Vida do fi 359 a.C. — Ascensão de Fi dade de Alexandria, que se
lósofo Demócrito de Abde- lipe ao trono da Macedônia. torna o principal centro co
ra. 354 a.C. — Primeiros dis mercial do Mediterrâneo.
442/1 a.C. — Sófocles es cursos de Demóstenes à as 323 a.C. — Morte de Ale
creve Antígone. sembléia do povo. xandre.
438 a.C. — Fídias esculpe 347 a.C. — Morte de Pla 306 a.C. — Epicuro abre
A tena Parténos. tão. sua escola em A tenas.
430 a.C. — Nasce Xeno 345-342 a.C. — Filipe es 300 a.C. — Surge Elemen
fonte. tende sua dominação sobre tos, de Euclides.
428 a.C. — Nascimento de os bárbaros e na Tessália. 290 a.C. — Fundação do
Platão. 343 a.C. — Aristóteles é museu de Alexandria.
404 a.C. — Paz entre Es-, chamado à Macedônia co 287 a.C. — Nascimento de
parta e Atenas. mo preceptor de Alexandre Arquimedes de Siracusa.
399 a.C. — Processo e mor Magno, filho de Filipe. 270 a.C. — Epicuro morre
te de Sócrates. 341 a.C. — Epicuro nasce em seu Jardim.
396 a.C. — Surgem os pri em Samos. 148 a.C. — Os romanos re
meiros diálogos de Platão. 340 a.C. — Congresso de duzem a Macedônia a pro
392-388 a.C. — Últimas co Atenas. Guerra entre Filipe víncia.
médias de Aristófanes. e os gregos. 146 a.C. — Destruição de
387 a.C. — Platão funda a 338 a.C. — Batalha de Que- Corinto.
Academia. ronéia: Filipe derrota os 98 (?) a.C. — Nasce Lucré-
384 a.C. — Nasce Demós- gregos; Atenas se submete a cio.
tenes; nesse mesmo ano, em condições humilhantes. 70 (?) a.C. — Nascimento
Estagira, na península Cal- 336 a.C. — Morte de Filipe. de Virgílio.
cídica, nasce Aristóteles. Ascende Alexandre. 55 (?) a.C. — Morre Lucré-
380-320 (?) a.C. — Vida de 334 a.C. — Nasce Zenão de cio.
BIBLIOGRAFIA
Robin, L.: La Pensée Hellénique des Origines à Épicure, Presses Universitaires de France,
Paris, 1967.
Mondolfo, R.: O Pensamento Antigo, tradução brasileira, Ed. Mestre Jou, São Paulo, 1964.
Mondolfo, R.: Moralistas Griegos, Ediciones Iman, Buenos Aires, 1941.
BrüN, J.: Épicure et les Épicuriens, Presses Universitaires de France, Paris, 1961.
Nizan, P.: Les Matérialistes de lAntiquité: Démocrite, Épicure, Lucrèce, F. Maspero, Paris,
1965.
Cresson, A.: Épicure, Presses Universitaires de France, Paris, 1947.
Bignone, E.: L 'Aristotele Perduto e la Formazione Filosófica di Epicuro, Florença, 1936.
Bignone, E.: II Conceito delia Fita Intima nella Filosofia d Epicuro, Atenas e Roma, 1908.
Bignone, E.: Epicuro: Opere, Frammenti, Testimonianze, Bari, 1920.
Bignone, E.: Lucrezio come Interprete delia Filosofia di Epicuro in Italia e Grécia, Florença,
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Brochard, V.: La Théorie du Plaisir d’après Épicure e La Morale dÉpicure in Études de
Philosophie Ancienne et Moderne, J. Vrin, Paris, 1954.
Conche, Lucrèce, Ed. Seghers, Paris, 1967.
Bayet, J.: Études Lucrètiennes, Grenoble, 1948.
Bailey,C .: Lucretius, Oxford, 1949.
Farrington, Benjamin; A Doutrina de Epicuro, trad. brasileira, Zahar Editores, Rio de
Janeiro, 1968.
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CAPfruioô
ÜE.
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\ CÍCERO
SÉNECA
■ MARCO AURÉLIO
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OS PENSADORES
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CÍCERO
Os estóicos
Depois de Cícero ter iniciado a histó
ria da filosofia em língua latina, formu
lando sua síntese eclética, o movimento
de idéias mais importante dentro do pen
samento romano foi o desenvolvimento
das doutrinas estóicas, também originá
rias da Grécia, como o epicurismo e o
ecletismo.
A escola estóica foi fundada por
Zenão de Cicio (336-264 a.C.) e conti
nuada por Cleanto de Assos (331-232
a.C.) e Crisipo de Solis (280-210 a.C).
Posteriormente, a escola transformou-
se, tendendo para uma posição eclética,
com Panécio de Rodes (185-112 a.C.) e
Possidônio de Apaméia (135-51 a.C.) No longo reinado do imperador Augusto
O estoicismo grego propõe uma ima surgiu o cristianismo, que,
gem do universo segundo a qual tudo o posteriormente, absorvería elementos
que é corpóreo é semelhante a um ser da filosofia estóica.
vivo, no qual existiría um sopro vital (Estátua de Augusto, Louvre )
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ou modalidades.
As paixões são consideradas pelos
estóicos como desobediências à razão e
podem ser explicadas como resultantes
de causas externas às raízes do próprio
indivíduo; seriam, como já haviam mos Conhecido sobretudo pela oratória e
trado os cínicos, devidas a hábitos de pelo estilo, Cícero é importante como
pensar adquiridos pela influência do defensor do ecletismo e como fonte de
meio e da educação. É necessário ao estudo da filosofia grega. (Cícero,
homem desfazer-se de tudo isso e seguir Museu Capitolino)
98
CÍCERO
99
OS PENSADORES
A medicina da alma
SNARK INTERNATIONAL
100
SÊNECA
cristã. Era filho de Annaeus Seneca (55 imperador Cláudio César Cermânico. Na
a.C.-39 a.D.) — conhecido como Sêneca, Córsega, Sêneca passaria quase dez
o Velho —, que teve renome como retó anos em grande privação material.
rico e do qual restou uma obra escrita Em 49 d.C., Messalina, primeira es
(Declamações). O futuro filósofo Sêneca posa do imperador Cláudio e respon
foi educado em Roma, onde estudou a sável pelo exílio de Sêneca, caiu em des
retórica ligada à filosofia. Em pouco graça e foi condenada à morte. ()
tempo tornou-se famoso como advogado imperador Cláudio casou-se com Agri-
e ascendeu politicamente, passando a pina e esta mandou chamar Sêneca para
ser membro do senado romano e depois educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quan
nomeado questor. do Nero se torna imperador, Sêneca
O triunfo político, no entanto, não se passa a ser seu principal conselheiro.
fazia sem conflitos e o renome de Sêneca Esse período estende-se até 62 d.C., ano
suscitou a inveja do imperador Calígula, em que sua estrela começa a perder o
que pretendeu desfazer-se dele pelo brilho junto ao despótico soberano. Sê
assassinato. Sêneca, contudo, foi salvo neca deixa a vida pública e sofre a
por sua frágil saúde; julgava-se que ele perseguição de Nero, que acaba por
morrería muito cedo, de morte natural. condená-lo ao suicídio, em 65 d.C.
O próprio Calígula é que falecería logo As Cartas Morais de Sêneca, escritas
depois e Sêneca pôde continuar vivendo entre os anos 63 e 65 e dirigidas a Lucí-
em relativa tranqüilidade. Não duraria lio, misturam elementos epicuristas com
esse período muito tempo. Em 41 d.C; idéias estóicas e contêm observações
foi desterrado para a Córsega, sob acu pessoais, reflexões sobre a literatura e
sação de adultério, supostamente prati crítica satírica dos vícios comuns na
cado com Júlia Livila, sobrinha do novo época. Entre os seus doze Ensaios
Morais, destacam-se Sobre a Clemência,
cautelosa advertência a Nero sobre os
perigos da tirania, Da Brevidade da
Vida, análise das frivolidades nas socie
dades corruptas, e Sobre a Tranqüi
lidade da Alma, que tem como assunto o
problema da participação na vida públi
ca. As Questões Naturais expõem a físi
ca estóica enquanto vinculada aos pro
blemas éticos.
Além dessas obras propriamente filo
sóficas, Sêneca escreveu ainda nove tra
gédias e uma obra-prima da sátira lati
na, Apolokocintosis, que ridiculariza
Nero e suas pretensões à divindade.
Todas essas obras revelam que Sêneca
foi, sobretudo, um moralista. A filosofia
é para ele uma arte da ação humana,
uma medicina dos males da alma e uma
pedagogia que forma os homens para o
exercício da virtude. O centro da refle
xão filosófica deve ser, portanto, a ética;
e a física e a lógica devem ser conside
radas como seus prelúdios.
Sua concepção do mundo repete as
idéias dos estóicos gregos sobre a estru
Os relevos da coluna de Marco Aurélio tura puramente material da natureza.
(Roma) narram seus feitos como grande Contudo, a razão universal dos gregos
guerreiro. Nos intervalos das Cleanto e Zenão transforma-se em Sêne
lutas, o imperadorfilósofo ca num deus pessoal, que é sabedoria,
dedicava-se à meditação espiritual. previsão e vigilância, sempre em ação
101
OS PENSADORES
O imperador filósofo
Cronologicamente, o segundo grande
representante do estoicismo romano foi
Epicteto (c. 50-130), escravo durante
muitos anos e, posteriormente, professor
de filosofia. Seu ensino foi recolhido
pelo discipulo Ariano de Nicomédia, em
oito livros. Chegaram até a atualidade
quatro livros inteiros e apenas alguns
fragmentos dos restantes.
Grande admirador de Epicteto foi o
imperador Marco Aurélio Antonino, que,
nas pausas tranqüilas de seu conturbado
governo, se dedicou à reflexão filosófica
e com isso tornou-se o terceiro e último
grande expoente do estoicismo romano.
Marco Aurélio nasceu em 121, no seio
de uma família aristocrática, e muito
cedo perdeu os pais. Foi então adotado
pelo tio, Aurélio Antonino. O tio tornar -
se-ia imperador e nomearia Marco Auré
lio seu sucessor, em 161.
Aos onze anos de idade, Marco Auré
lio conheceu o estoicismo e adotou hábi
tos de vida austera, recomendados por
aquela escola filosófica. Depois dos anos
de formação passou a colaborar intima
mente cóm o imperador, seu pai adotivo, Montesquieu sobre Marco Aurélio:
ocupando o cargo de cônsul por três “Sente-se um prazer secreto em si
vezes. Em 161, Aurélio Antonino faleceu mesmo quando se fala desse
e Marco Aurélio tornou-se imperador. imperador . . (Estátua eqüestre
O governo de Marco Aurélio — que se de Marco Aurélio, Capitólio.)
estendeu por quase vinte anos, até sua
morte em 180 — foi p.erturbado por guer
ras sangrentas e prolongadas, com as O conteúdo das Meditações é a filoso
consequentes dificuldades internas. fia estóica, mas de um estoicismo bas
Além disso, Roma foi vítima de inunda tante distante das doutrinas de Zenão,
ções, tremores de terra e incêndios. Cleanto e Crisipo. As especulações físi
Marco Aurélio conseguiu enfrentar cas e lógicas cedem lugar ao caráter
todas as dificuldades, tendo sido exce prático dos romanos e ao aconselha
lente guerreiro e administrador e, ao mento moral. Em Marco Aurélio — como
mesmo tempo, humanizando profunda também nas Máximas de Epicteto — a
mente o exercício do poder. Nos poucos questão central da filosofia é o problema
momentos que os encargos de governo de como se deve encarar a vida para que
permitiam, recolhia-se à meditação filo se possa viver bem. Esse problema assu
sófica e escrevia seus pensamentos em me a forma de intensa preocupação com
língua grega, que lhe parecia a mais o estado de sua própria alma, em virtude
apta a exprimir inquietações intelec da natureza delicada e sensível do autor
tuais e morais profundas. As Meditações das Meditações, homem sobretudo reli
(como posteriormente ficaram conheci gioso e pouco interessado na investiga
dos aqueles pensamentos) são simples ção científica. Por essa razão o estoi
notas, apenas esboçadas. cismo de Marco Aurélio frequentemente
102
MARCO AURÉLIO
scala
Tendo vivido na época de transição entre o fim da cultura clássica e o advento
da fé cristã, Marco Aurélio exprime as inquietações de seu momento.
Muitos elementos de sua moral, herdada do estoicismo grego,
tomar-se-iam parte integrante do pensamentofilosófico do cristianismo.
(M. Aurélio participando de um sacrifício; Museu dos Conservadores, Roma)
103
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
106 a.C. — Nasce Cícero, forças de Pompeu; agora, na 50 a.D.(?) - 130a.D.(?)“ —
em Arpina. Espanha. Júlio César tor Vida de Epicteto.
88 a.C. — Atenas se revolta na-se ditador. 54 a.D. -— Nero toma-se
contra Roma. 45-44 a.C. — Cícero redige imperador e Sêneca, seu
87 a.C. — Sila, cônsul ro suas obras mais importan conselheiro.
mano, sitia Atenas. tes. 62 a.D. -- Perseguido por
84 a.C. — Sila pilha Ate 44 a.C. — Assassínio de Jú Nero, abandona a vida pú-
nas. lio César. blica.
70 a.C.(?) — Nascimento 43 a.C. — No dia 7 de de 65 a.D. —- Nero o condena
de Virgílio. zembro, Cícero é assassina ao suicídio e ele obedece.
65 a.C. — Nasce Horácio. do. 68 a.D. — Morte de Nero.
53 a.C. — Rompimento en 29-19 a.C. — Virgílio com 121 a.D. -— Nascimento de
tre César e Pompeu. põe a Eneida. Marco Aurélio.
51 a.C. — Em seu primeiro 4 a.D.(?) — Nasce Sêneca. 161 a.D. -— Torna-se impe-
exílio, Cícero redige suas 30 a.D. — Conversão de rador.
primeiras obras filosóficas. São Paulo. 176 a.D. — Funda quatro
46 a.C. — Júlio César der 41 a.D. — Sêneca é banido cadeiras de filosofia em Ro-
rota forças de Pompeu na para a Córsega. ma.
África. 49 a.D. — Torna-se precep- 180 a.D. -— Morre a 17 de
45 a.C. — Nova derrota das tor do jovem Nero. março.
.
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104
OS PENSADORES
SCALA
m Milão, num dia qualquer de briaguez, não nos prazeres impuros do
106
S. AGOSTINHO
107
OS PENSADORES
questões intelectuais, sua atenção estava nhos de Favônio Eulógio, retórico e até
voltada para as coisas mundanas. Ponti- certo ponto filósofo, que sucederia ao
Ihavam sua vida algumas pequenas más mestre na mesma cátedra, e no de Alípio,
ações, comuns a todo adolescente, como amigo íntimo, companheiro de conver
roubar peras no quintal do vizinho pelo são e colega de episcopado, nos anos
puro prazer de enfrentar o proibido. seguintes.
Mais séria, entretanto, era uma ligação A maior parte dos alunos, no entanto,
amorosa que os padrões da época não fazia os cursos apenas para cumprir
permitiam terminar em casamento. Foi, obrigações familiares e sociais e, conse-
no entanto, inteiramente fiel à mulher qíientemente, não se interessava muito
amada e com ela teve um filho, Adeoda- pelas aulas. Cansado de ser irritado por
to, falecido em plena adolescência. uma juventude turbulenta, depois de
Não eram só o prazer dos sentidos e o quase dez anos Agostinho resolveu
interesse pela filosofia os centros de sua mudar para Roma.
vida, ao findar a adolescência. Antes dos Enquanto não pôde transferir-se para
vinte anos, faleceu o pai e Agostinho Roma, continuou dedicado à filosofia,
viu-se com pesados encargos de chefe de apesar de limitado pela ignorância do
duas famílias. Voltou, então, para Ta grego, a língua mais culta da época.
gaste e abriu uma escola, logo depois Assim, leu as Categorias de Aristóteles
transferindo-se de novo para Cartago, a (384-322 a.C.), mas em tradução latina
fim de ocupar o cargo de professor da e sem a indispensável introdução de Por-
cadeira municipal de retórica, como firio (c. 233-304). Estava limitado tam
impunha a legislação dos imperadores bém pela impossibilidade de estudar nos
romanos a todas as cidades. Como pro melhores centros, como Atenas e Ale
fessor foi excelente, a crer nos testemu xandria. Deixou-se, então, seduzir pelas
108
S. AGOSTINHO
O caminho da salvação
A viagem para Roma foi movida pela
esperança de encontrar alunos mais
tranqüilos. Os amigos afirmavam tajn
bém que lá Agostinho teria maiores lu
cros e consideração. A mãe temia por
seu futuro e tudo fez para impedir a via
gem, a ponto de obrigar Agostinho a
enganá-la na hora da partida.
Em Roma não ficou muito tempo.
Logo dirigiu-se a Milão, residência
imperial, onde ocupou um cargo de pro Moeda de ouro da época de Agostinho,
fessor de retórica. De manhã dedicava- montada em anelfiligranado e cunhada
se aos cursos e à tarde percorria as ante- com a efígie do imperador Teodósio I,
câmaras ministeriais, pois essa era a o Grande. Atualmentefaz parte do
maneira correta de “subir na vida”, den acervo da Freer Gallery, Washington.
tro do decadente império. As diligências
nesse sentido foram feitas sem muito estrutura interna e defender-se com
empenho, pois Agostinho vivia imerso argumentos racionais, elaborando-se
em graves questões intelectuais e exis como teologia. Com a maior tranqüi-
tenciais. Quanto às primeiras, já tinha lidade passava-se, entre os católicos de
abandonado o maniqueísmo e freqüen- Milão, das Enéadas de Plotino para o
tava a Academia platônica, então muito prólogo do Evangelho de São João ou
distante da linha de pensamento de seu para as epístolas de São Paulo.
criador e voltada para um ceticismo e As preocupações existenciais de Agos
um ecletismo não muito consistentes. tinho diziam respeito à mulher amada,
Quem esperava, como Agostinho, res com a-qual não poderia ligar-se de uma
postas definitivas para todos os proble vez por todas, pois estava impedido
mas da existência, não poderia conten legalmente de fazê-lo. Juridicamente ele
tar-se com isso. Conheceu logo depois os era um “honestiore”, isto é, de categoria
discípulos de Plotino (205-270), tam superior, proibido de contrair matri
bém adeptos do platonismo, mas. na sua mônio com pessoas dos baixos estratos.
versão mística. Q neoplatonismo viria a A mãe insistiu para que ele a abando
ser a ponte que permitiría a Agostinho nasse e procurasse outra mulher para
dar o grande passo de sua vida, pois casar, segundo as leis do mundo e os
constituía, para os católicos milaneses, preceitos cristãos. A amada foi mandada
a filosofia por excelência, a melhor de volta para a África e fez voto de ja
formulação da verdade racionalmente mais conhecer outro homem. Adeodato
estabelecida. O neoplatonismo era visto ficou com o pai. Agostinho deveria espe
como uma doutrina que, com ligeiros rar legalmente dois anos para casar-se
retoques, parecia capaz de auxiliar a fé com a mulher que escolhera. Era tempo
cristã a tomar consciência da própria demasiado longo para quem sentia tão
109
OS PENSADORES
110
' r ■ "1 iirw «SWÍ
S. AGOSTINHO
111
OS PENSADORES
112
S. AGOSTINHO
Fé e razão
A síntese que realizou, ele mesmo deu
a denominação de “filosofia cristã”. O
núcleo em tomo do qual gravitam todas
as suas idéias é o conceito de beatitude.
O problema da felicidade constitui, para
Agostinho, toda a motivação do pensar
filosófico. Uma das últimas obras que
redigiu, a Cidade de Deus, afirma que “o
homem não tem razão para filosofar, ex
ceto para atingir a felicidade”. A tese é
defendida valendo-se de um manual de
Marcus Terentius Varro (116-27 a.C.),
onde se encontram definidas 288 dife
rentes teorias filosóficas, reais e possí
veis, tendo todas em comum a mesma
questão: como obter a felicidade? A filo
sofia é, assim, entendida não como disci
plina teórica que coloca problemas à
estrutura do universo físico ou à natu
reza dos deuses, mas como uma indaga
ção sobre a condição humana à procura
da beatitude.
A beatitude, no entanto, não foi encon
trada por Agostinho nos filósofos clássi
cos que conhecera na juventude, mas nas
Sagradas Escrituras, quando iluminado
pelas palavras de Paulo de Tarso. Não
foi fruto de procedimento intelectual,
mas ato de intuição e de fé.
Impunha-se, portanto, conciliar as
ílNáo conhecí palavras táo puras duas ordens de coisas e com isso Agosti
que tanto mepersuadissem a nho retorna à questão principal da
confessar-Vos . . (A. da Messina: Patrística, ou seja, ao problema das
S. Agostinho, Gal. Nac. de Palermo.) relações entre a razão e a fé, entre o que
113
OS PENSADORES
114
S. AGOSTINHO
tudo o que sua cultura filosófica lhe for Assim, nenhum cétieo pode refutar al
necia, no sentido de racionalizar os dog guém que afirme simplesmente: “Eu sei
mas cristãos. que isto me parece branco; limito-me à
A filosofia ê, para Agostinho, apenas minha percepção e encontro nela uma
um instrumental auxiliar destinado a verdade que não me pode ser negada”.
um fim que transcende seus próprios Muito diferente seria afirmar somente:
limites. Por isso muitos vêem nele um "Isto é branco”. Neste caso o erro torna-
teólogo e um místico e não propriamente se possível, no primeiro não. Assim,
um filósofo. Todavia, seu pensamento existiria pelo menos uma verdade abso
manifesta frequentemente grande pene luta, que estaria implicada no próprio
tração filosófica na análise de alguns ato de perceber.
problemas particulares e a verdade é Posteriormente (na Cidade de Deus),
que Agostinho conseguiu sistematizar Agostinho levou a argumentação às últi
uma grandiosa concepção do mundo, do mas conseqíiências e antecipou a refle
homem e de Deus, que se tomou, por xão cartesiana, formulada dozç séculos
muito tempo, a doutrina fundamental da depois: “Se eu me engano, eu sou, pois
Igreja Católica. aquele que não é não pode ser engana
do”. Com isso atingia a certeza da pró
O conhecimento pria existência.
Essa primeira certeza, além de funda
O primeiro problema filosófico, foca mentar toda uma teoria dogmática do
lizado por ‘Agostinho logo após a con conhecimento, parecia permitir também
versão, foi o dos fundamentos do conhe a revelação da própria essência do ser
cimento, para o qual necessitava urgente humano: o homem seria sobretudo um
de uma resposta racional. Antes debate- ser pensante e seu pensamento não se
ra-se dentro dos limites do ceticismo da confundiría com a materialidade do
Nova Academia platônica, dominada corpo.
pelas análises de Arcesilau (315-241
a.C.) e Caméades (214-129 a.C.), que A alma e o corpo
sustentavam a tese de que não é possível
encontrar um critério de evidência abso Essa concepção de homem provinha
luta e indiscutível, o conhecimento limi de Platão (428-348 a.C.) e foi conhecida
tando-se ao meramente verossímil, pro por Agostinho, pouco antes da conver
vável ou persuasivo. são, através de Plotino. No diálogo Alci-
Mas a verdade religiosa encontrada bíades, Platão define o homem como
pelo bispo africano, a partir das pala uma alma que se serve de um corpo, e
vras de Paulo de Tarso, era sólida e Agostinho mantém permanentemente
firme. Impunha-se, pois, combater os cé esse conceito com todas as conse
ticos e para isso o neoconverso usaria as quências lógicas que ele comporta, den
armas do adversário. Para os céticos, a tre as quais a-principal é a idéia de
fonte de todo o conhecimento era a per transcendência hierárquica da alma
cepção sensível, na qual não se poderia sobre o corpo. Presente em sua morada
encontrar qualquer fundamento para a terrena, a alma teria funções ativas em
certeza, já que os sentidos forneciam relação ao corpo; atenta a tudo o que se
dados variáveis e, portanto, imperfeitos. passa ao redor, nada deixa escapar à sua
No retiro de Cassicíaco, logo após a ação. Os órgãos sensoriais sofrer iam as
conversão, Agostinho pôs-se a meditar ações dos objetos exteriores, mas com a
sobre o assunto e redigiu o diálogo Con alma isso não poderia acontecer, pois o
tra os Acadêmicos, reabilitando, através inferior não pode agir sobre o superior.
de engenhosa argumentação, os sentidos Ela, no entanto, não deixaria passar
como fonte de verdade. O erro — diz ele despercebidas as modificações do corpo
— provém dos juízos que se fazem sobre e, sem nada sofrer, tiraria de sua própria
as sensações e não delas próprias. A sen substância uma imagem semelhante ao
sação enquanto tal jamais é falsa. Falso objeto: Essa imagem, que constituiría a
é querer ver nela a expressão de uma sensação, não é, portanto, paixão sofri
verdade externa ao próprio sujeito. da pela alma, mas ação.
115
OS PENSADORES
116
S. AGOSTINHO
Deus
A experiência mística revelaria ao
homem a existência de Deus e levaria à
descoberta dos conhecimentos necessá
rios, eternos e imutáveis çxistentes na
alma. Implica, pois, a concepção de um
ser transcendente que daria fundamento
à verdade. Deus, assim encontrado, é, ao
mesmo tempo, uma réalidade interna e
transcendente ao pensamento. Sua pre
sença seria atestada por todos os juízos
formados pelo homem, sejam científicos,
estéticos ou morais. Mas, por outro
lado, a natureza divina escaparia ao
alcance humano. Deus é inefável e mais
fácil é dizer o que Ele não é do que defi-
ni-lo. A melhor forma de designá-lo,
segundo Agostinho, é a encontrada no
livro do Êxodo, quando Jeová, dirigin
do-se a Moisés, afirma: “Eu sou o que
sou'”. Deus seria a realidade total e
plena, a “essentia” no mais alto grau. E,
a rigor, tal palavra deveria ser empre
gada tão-somente para designá-Lo.
Todas as demais coisas não têm propria
mente essência, pois, sendo mutáveis,
seriam constituídas pela mistura do ser
e do não-ser.
A argumentação centralizada na
noção de ser originou-se na filosofia
grega. Provinha de Parmênides de Eléia
(sécs. VI-V a.C.) e Heráclito de Êfeso
(sécs. VI-V a.C.) e foi sistematizada por
Platão, a partir do qual percorreu um
longo caminho até chegar a Agostinho,
através de Plotino. Parmênides tinha
demonstrado que o conceito de ser
implica logicamente sua unidade,.por
quanto a multiplicidade só poderia
sustentar-se na medida em que se admi
tisse o absurdo da existência do não-ser.
Da unidade decorrería necessariamente
O último dos quatro grandes Padres da que o ser é eterno, imóvel, indivisível e
Igreja fundamentou quase todas as suas imutável. Por outro lado, tomavam-se
doutrinas na obra de Agostinho. inconcebíveis logicamente as idéias de
(Antonello da Messina: S. Gregário movimento e transformação. Em outras
Magno, Galeria Nacional de Palermo.) palavras, o mundo revelado pelos senti-
117
OS PENSADORES
FABBRI
“Todas estas coisas Te pertencem e são boas porque foram criadas por Ti, que és
Bom. Não existe nada nelas que provenha de nós, a não ser o pecado pelo qual,
com desprezo da ordem, nós amamos, em vez de Ti, o que vem de Ti. ”
(Botticelli: “S. Agostinho em sua Cela”, Gal. degli Ufjizi, Florença.)
dos estaria em desacordo com as exigên cristão. Agostinho deu esse passo e ligou
cias da razão. definitivamente o pensamento cristão à
Platão procurou solucionai o proble filosofia platônica.
ma, formulando a teoria das idéias (ser), Agostinho concebe a unidade divina
causas inteligíveis do mundo das coisas não como vazia e inerte, mas como
sensíveis (ser-não-ser). As idéias seriam plena, viva e guardando dentro de si a
arquétipos incorpóreos, eternos e imutá multiplicidade. Deus compreende três
veis, dos quais os objetos concretos se pessoas iguais e consubstanciais: Pai,
riam cópias imperfeitas e perecíveis. Filho e Espírito Santo. O Pai é a essên
Platão afirmou ainda a existência de cia divina em sua insondável profundi
uma hierarquia entre os dois mundos e dade; o Filho é o verbo, a razão ou a ver
dentro do próprio universo das idéias. dade, através da qual Deus se manifesta;
Estas se escalonariam em graus de o Espírito Santo é o amor, mediante o
perfeição, sendo principais as idéias de qual Deus dá nascimento a todos os
verdade, belo e bem, que, por sua vez, seres.
reúnem-se na idéia de uno, conceito A teoria da criação do mundo mani
fundamental de toda a filosofia de Ploti festa claramente a originalidade do pen
no. Bastava dar mais um passo para se samento cristão diante da filosofia helê-
identificar o uno plotiniano com o Deus nica. Os gregos sempre conceberam o
118
S. AGOSTINHO
119
OS PENSADORES
bom, pois a idéia de bem está implicada reger o corpo, e o homem, fazendo mau
na idéia de ser. Deus não é, portanto, a uso do livre arbítrio, inverte essa rela
causa do mal, da mesma forma que a ção, subordinando a alma ao corpo e
matéria também não poderia produzi-lo caindo na concúpiscência e na ignorân
pois ela é criatura de Deus. cia. Voltada para a matéria, a alma
A natureza do mal deve, assim, ser acaba por secar-se pelo contato com o
encontrada no conceito absolutamente sensível, dando a ele o pouco de subs
contrário ao conceito de Deus como ser, tância que lhe resta, esvaindo-se no não-
ou seja, no não-ser. O mal fica, portanto, ser e considerando-se a si mesma como
destituído de toda substancialidade. Ele um corpo.
seria apenas a privação do bem. Não No estado de decadência em que se
existem, como queriam os maniqueus, encontra, a alma não pode salvar-se por
dois princípios igualmente poderosos a suas próprias forças. A queda do homem
reger o mundo, mas tão-somente um: é de inteira responsabilidade do livre
Deus, infinitamente bom. arbítrio humano, mas este não é sufi
ciente para fazê-lo retomar às origens
O homem e o pecado divinas. A salvação não é apenas uma
questão de querer, mas de poder. E esse
Deus é a bondade absoluta e o homem é poder é privilégio de Deus. Chega-se,
o réprobo miserável condenado à dana- assim, à doutrina da predestinação e da
ção eterna e só recuperável mediante a graça, uma das pedras de toque do
graça divina. Eis o cerne da antropo agostinismo.
logia agostiniana. A graça é necessária para que o
Para o bispo de Hipona, o homem é homem possa lutar eficazmente contra
uma criatura privilegiada na ordem das as tentações da concupiscência. Sem ela
coisas. Feito à semelhança de Deus, o livre arbítrio pode distinguir o certo do
desdobra-se em correspondência com as errado, mas não pode tomar o bem um
três pessoas da Trindade. As expressões fato concreto. A graça precede todos os
dessa correspondência encontram-se nas esforços de salvação e é seu instrumento
três faculdades da alma. A memória, necessário. Ajunta-se ao livre arbítrio
enquanto persistência de imagens pro sem, entretanto, negá-lo; é um fator de
duzidas pela percepção sensível, corres correção e não o aniquila. Sem o auxílio
pondería à essência (Deus Pai), aquilo da graça, o livre arbítrio elegería o mal;
que é e nunca deixa de ser; a inteligência com ela, dirige-se para o bem eterno.
seria o correlato do verbo, razão ou ver Mas, segundo Agostinho, nem todos
dade (Filho); finalmente, a vontade os homens recebem a graça das mãos de
constituiría a expressão humana do Deus; apenas alguns eleitos, que estão,
amor (Espírito Santo), responsável pela portanto, predestinados à salvação. A
criação do mundo. propósito da graça, Agostinho polemi
De todas essas faculdades, a mais zou durante anos com o monge Pelágio
importante é a vontade, intervindo em (c. 360-c. 420) e seus seguidores. Os
todos os atos do espírito e constituindo o pelagianistas insistiam no esforço que o
centro da personalidade humana. A von homem deve dispender para obter a sal
tade seria essencialmente criadora e vação e encareciam a eficácia do livre
livre, e nela tem raízes a possibilidade arbítrio. Com isso minimizavam a inter
de o homem afastar-se de Deus. Tal venção da graça, quando não chegavam
afastamento significa, porém, distan- a negá-la totalmente. A experiência pes
ciar-se do ser e caminhar para o não-ser, soal de Agostinho, no entanto, atestava
isto é, aproximar-se do mal. Reside aqui vigorosamente contra a tese de Pelágio e
a essência do pecado, que de maneira al por causa disso reagiu decidida e, às
guma é necessário e cujo único respon vezes, violentamente. A controvérsia ja
sável seria o próprio livre arbítrio da mais foi totalmente solucionada e os teó
vontade humana. logos posteriores dividiram-se em tomo
O pecado é, segundo Agostinho, uma da questão. Calvino (1509-1564), por
transgressão da lei divina, na medida em exemplo, levou as teses agostinianas às
que a alma foi criada por Deus para últimas conseqiiências: depois do peca-
120
S. AGOSTINHO
“ . . .todos os seres são bons, uma vez que o criador de todos, sem exceção, é
soberanamente bom. Entretanto, como não são como o próprio criador, soberana
e imutavelmente bons, o bem pode aumentar ou diminuir neles. ”
(Ilustração do século XV, para edição francesa da Cidade de Deus, representa
a cidade terrena ea cidade divina; Museu Meermanno Westreenianum, Haia.)
121
OS PENSADORES
122
S. AGOSTINHO
“ . . .aquele descanso com que Vós repousastes no sétimo dia, após tantas obras
excelentes e sumamente boas, ainda que as realizastes sem fadiga, significa
jue nós também, depois de nossos trabalhos, bons porque no-los concedestes,
J escansaremos em Vós no sábado da vida eterna.’’ (Afresco de Ottaviano Nelli,
na Igreja de Gubbio, Itália, representa os funerais de Santo Agostinho.)
CRONOLOGIA
313 — Constantino promul 354 — Agostinho nasce em 365 — Agostinho estuda em
ga o Edito de Milão, tornan Tagaste, Numídia, na Áfri Madaura.
do o cristianismo religião ca. 369 — Vive em Tagaste.
oficial do Império Romano 355 — Invasão da Gália pe 370 — Estuda em Cartago.
Ocidental. los francos, alamanos e sa- Os hunos atingem o Don e
350 — Ulfila traduz a Bíblia xões. Os hunos surgem na vencem os ostrogodos.
para o gótico. Rússia. 372 — Nasce o filho Adeo-
123
OS PENSADORES
dato. Agostinho descobre a Teodósr' repele os godos no vadem a Ásia e chegam ate
filosofia através de Cícero e Danúbio. Antióquia.
segue os maniqueístas. 387 — Agostinho é batizado 396 — Os godos invadem a
373 — Leciona em Tagaste. juntamente com Alípio e Grécia. Fim dos Mistérios
Santo Ambrósio torna-se Adeodato; passa algumas de Elêusis.
bispo de Milão. semanas em Roma, depois 397/398 — Agostinho redi
374 — Leciona em Cartago. da morte de Mônica, sua ge As Confissões.
380 — Teodósio e Graciano mãe, e escreve De Imortali- 399/422 - Redige a obra
contêm os godos no Épiro e tate Animae. De Trinitate.
na Dalmâcia. O Edito de 388 — Parte para a África e 400 -- Os hunos atingem o
Teodósio torna o cristianis começa a viver monastica- Elba.
mo religião oficial no Impé mente em Tagaste. Redige 407 — Invasão da Gália pe
rio Romano do Oriente. De Vera Religione. los vândalos e suevos.
383 — Agostinho abandona 389 — Morte de Adeodato. 408 - Os saxões entram na
o maniqueísmo e leciona em 390 — Conflito entre San Bretanha.
Roma. to Ambrósio e Teodósio. 409 — Pelágio em Cartago.
384 — É professor em Mi 391 — Agostinho torna-se Os vândalos e os suevos in
lão. São Jerônimo começa a presbítero de Hipona. vadem a Espanha.
tradução da Bíblia para o 392 — Polemiza com o ma- 410 — Alarico conquista
latim, tradicional mente co niqueu Fortunato. O direito Roma.
nhecida como Vulgata. de asilo é reconhecido nas 413 — Agostinho começa a
386 — Agostinho descobre igrejas. São Jerônimo escre redigir A Cidade de Deus.
o neoplatonismo; lê âs car ve De Viris Illustribus. 417 — Paulus Orosius, dis
tas de Paulo de Tarso; con 394 — Os Jogos Olímpicos cípulo de Agostinho publica
verte-se ao cristianismo; são suprimidos. a Historia Uniyersalis.
parte para Cassicíaco, demi 395 — Agostinho torna-se 429 — Os vândalos pene
te-se do cargo de professor e bispo de Hipona. Sulpício tram na África .
redige Contra Acadêmicos, Severo escreve A Vida de 430 — Agostinho falece em
De Beata Vita e De Ordine. São Martinho. Os hunos in- 28 de agosto.
BIBLIOGRAFIA
Principais edições do texto original das obras completas: “princeps” de Amerbach (Bâle,
1506); dos beneditinos (Paris, 1679); de Migne (1681).
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Universidade do R io Grande do Sul, boletim n.° 2.
Ramos, Guido Soares: La Moral Agustiniana, idem, n.° 8, 1960.
124
OS PENSADORES
FAB B RI
Para a maioria dos historiadores da cultura, a filosofia escolástica,
característica da segunda metade da Idade Média, teve início com Santo
Anselmo de Aosta, assim chamado em virtude da pequena cidade onde nasceu
(Torre de Bramafon, em Aosta, construída nos fins ao século XI.). Na página
anterior: vitral da Catedral de Cantuária representa Santo Anselmo.
126
STO. ANSELMO
Mente viva e
coração bondoso
O prior que desenvolvera essas argu
mentações estava apenas iniciando uma
obra que iria colocá-lo como um dos
criadores da chamada filosofia escolás-
tica. Chamava-se Anselmo e tinha nasci
do na cidade de Aosta, na região do Pie-
monte, Itália, no ano de 1033. Seu pai,
Gondolfo, era um nobre lombardo, e a
mãe Ermenberga, pertencia a uma famí
lia borguinhona de Aosta, possuidora de
considerável fortuna.
Contrariando a vontade do pai, que
desejava fazer dele um político, Anselmo
preferiu a carreira religiosa. Pouco se
sabe de sua infância e juventude, a não
ser que fez excelentes estudos clássicos.
Tornou-se um dos melhores latinistas de
seu tempo, escrevendo nessa língua com
muita clareza e precisão.
Em 1056, deixou a cidade natal para
ingressar no mosteiro beneditino de Bec,
atraído pelo renome do prior Lanfranco.
Desistiu, no entanto, do projeto ao saber
que Lanfranco tinha mudado para
Roma. Permaneceu então em Lyon, indo
depois para Cluny e Avranches, e só che
gou a Bec em 1060.
No ano seguinte professoü os votos
THE MANSELL COLLECTION
127
OS PENSADORES
mas de má conduta e ardente tempera cada homem, mas como realidade fora
mento, que se opôs à sua nomeação da inteligência.
como prior. Anselmo acabou por con Assim, Anselmo examina o problema
quistá-lo inteiramente, tornando-se Os- do “ser do qual não é possível pensar
bern um discípulo obediente, a ponto de nada maior”. Ele não poderia existir
submeter-se docilmente aos castigos, co somente na inteligência, pois se isso
muns na época, quando praticava atos acontecesse poder-se-ia pensar que há
repreensíveis. Osbern obedecia, seguro outro ser existente, não só no pensa
do afeto paternal de Anselmo. mento, mas também na realidade e que,
Sob orientação de um mestre tão portanto, seria maior (mais perfeito) do
respeitado, a abadia de Bec transfor que o primeiro. Em outras palavras,
mou-se num centro de grande atividade uma coisa é certamente maior se pensa
intelectual e aprendizado monástico. Foi da como existente ao mesmo tempo na
ali que se desenvolveram as extraordi inteligência e na realidade, do que exis
nárias qualidades dialéticas de Ansel tente apenas na inteligência. Portanto
mo, fazendo dele uma figura dé primeiro Anselmo conclui que Deus, “o ser do
plano na história da filosofia. O Monoló- qual não é possível pensar nada maior”,
gio (ou Exemplo de Meditação sobre o existe, sem dúvida, na inteligência e na
Fundamento Racional da Fé), escrito em realidade.
1076, foi apenas o início. Nos dois anos Toda a demonstração de Anselmo —
seguintes seria redigida uma outra obra chamada argumento ontológico por
sobre o mesmo tema, o Proslógio (ou A Kant (1724-1804) — repousa sobre três
Fé Buscando Apoiar-se na Razão). pressupostos: uma noção de Deus forne
cida pela fé; a convicção de que existir
no pensamento já é verdadeiramente
Um célebre argumento existir; a exigência lógica de que a exis
tência da noção de Deus no pensamento
A redação do Proslógio resultou do determine que se afirme sua existência
sentimento de insatisfação que a pri na realidade. O raciocínio portanto
meira obra causara ao autor, quando se remete, em última instância, à fé, e o
deu conta de que “era difícil de ser pensamento de Anselmo percorre um
entendida devido ao entrelaçamento das caminho que vai da fé à razão e retorna
muitas argumentações”. Por isso, come ao ponto de partida, concluindo que
çou a pensar se não seria possível “en aquilo que é proposto pela fé é indubita
contrar um único argumento que, válido velmente compreendido pela inteli
em si e por si, sem nenhum outro, permi gência. Para Anselmo, há no pensamento
tisse demonstrar que Deus existe verda uma certa idéia de Deus: eis o fato; essa
deiramente e que ele é o Bem Supremo, existência indiscutível exige logica
não necessitando de coisa alguma, quan mente que Deus exista na realidade: eis
do, ao contrário, todos os outros seres a prova. Esta se realiza mediante com
precisam dele para existirem e serem paração entre o ser pensado e o ser real,
bons”. Em suma, Anselmo procurava, no forçando a inteligência a tomar o segun
Proslógio,. um argumento apenas, que do como superior ao primeiro.
sozinho pudesse fornecer provas ade O argumento não foi aceito por todos
quadas sobre aquilo que o cristão crê no os filósofos da época como realmente
que diz respeito à substância divina. Conclusivo, e o monge Gaunilo levan
Anselmo parte, assim, de um dado da tou-lhe objeção. Gaunilo afirmava que a
fé e procura, exclusivamente através da existência no pensamento não tem como
razão, provar que o dado da fé corres corolário a existência fora do mesmo.
ponde à verdade. O dado em questão é a Existir como objeto de pensamento não
crença do cristão na existência de Deus e seria gozar verdadeira existência; seria
de que este se trata de um ser tal, que simplesmente ser concebido. De acordo
não se pode conceber nada maior (mais com Gaunilo, é possível conceber a exis
perfeito) do que ele. O problema consiste tência de ilhas perdidas no oceano,
em saber se tal ser existe mesmo, isto é, cobertas de riquezas, mas não se segue
não apenas dentro do pensamento de daí,que elas existam mesmo na realidade.
128
STO. ANSELMO
129
OS PENSADORES
FAB B RI
“ . . .Senhor, se não estás aqui, na minha mente; se estás ausente, onde poderei
encontrar-Te? Se Tu estás por toda parte, por que não Te vejo aqui?
Certamente habitas uma luz inacessível. Mas onde está essa luz inacessível? E
como chegar a ela? Quem me levará até lá e me introduzirá nessa morada cheia
de luz . . .?” (Cripta da Catedral de Canterbury, onde Anselmo foi arcebispo.)
130
STO. ANSELMO
131
OS PENSADORES
Os monges da Idade Média tinham como uma de suas fontes de estudo os textos
de Maurus Rabanus (780-856). Tratando de todos os assuntos, esses textos
compunham uma verdadeira enciclopédia e utilizavam extensamente desenhos com
objetivos didáticos. Acima, página sobre osfilósofos da enciclopédia de
Rabanus, encontrada nos códices da Abadia de Montecassino, Itália (1028).
bou por fazê-lo a fim de lutar pela refor fim de buscar o palio, que era o símbolo
ma da Igreja na Inglaterra, constante da aprovação papal à sua nomeação
mente ameaçada pelos soberanos. para o arcebispado. O soberano, preten
Assim, seu primado foi marcado desde dendo manter domínio absoluto sobre a
o início por vigorosa defesa dos direitos Igreja, não queria reconhecer publica
da Igreja contra o rei. Como primeira mente a autoridade do papa Urbano II.
manifestação nesse sentido, recusou a A disputa prolongou-se por dois anos,
consagração como arcebispo, enquanto depois dos quais os bispos ingleses, reu
Guilherme, o Ruivo, não restaurasse nidos no sínodo de Rockingham (11 de
Cantuária e reconhecesse o papa Urbano março de 1095), colocaram-se ao lado
II, a quem se opunha o antipapa Cle do rei. Na mesma ocasião, o núncio
mente III. Guilherme, doente e temeroso apostólico trouxe o pálio de Roma e
da morte, acabou por concordar e Ansel Guilherme encarregou-se de entregá-lo
mo foi consagrado no dia 4 de dezembro ao arcebispo. Anselmo recusou-se a
de 1093. aceitá-lo, pois isso significaria que sua
autoridade espiritual seria devida ao
O pastor protege soberano. Na presença de todos, tomou o
o rebanho pálio do altar e colocou-o sobre os pró
prios ombros.
A primeira batalha estava vencida, Finalmente, Guilherme, o Ruivo, per
mas a situação se modificaria logo mitiu a partida de Anselmo para Roma,
depois. Ao recuperar-se da doença, o mas logo depois confiscou novamente as
soberano mostrou a verdadeira face, exi terras do arcebispado de Cantuária.
gindo do novo arcebispo excessiva quan Em 1098, Anselmo participou de um
tia em dinheiro. Anselmo recusou-se a concilio em Bari e apresentou suas quei
pagar, pois isso lhe parecia fazer comér xas ao papa. O concilio ratificou o
cio com os bens da Igreja. A recusa foi decreto contra as investiduras leigas. No
recebida por Guilherme como uma fim do mesmo ano, Anselmo retirou-se
afronta ao poder real, e sua reação foi para Liberi, vilarejo perto de Cápua, na
impedir Anselmo de dirigir-se a Roma a Itália, onde retomaria à meditação espi-
132
09 B
STO. ANSELMO
133
71
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1033 — Anselmo nasce em 1077 — Anselmo publica o 1093 -— Anselmo torna-se
Aosta, Piemonte, Itália. Monológio. arcebispo de Cantuária.
1035 — A Boêmia reconhe 1078 — Torna-se abade de 1094 — Cid, o Campeador,
ce a soberania alemã. As ci Bec. Publica o Proslógio. apodera-se de Valência.
dades lombardas revoltam- 1079 — Nasce Abelardo. 1097 — Retorno de Henri
se contra os feudos. Início da construção da ca que IV à Itália. Anselmo en
1037 — Nascimento do tedral de Winchester. tra em conflito com Gui
poeta persa Ornar Khay- 1080 — Surge o antipapa lherme, o Ruivo. Escreve
yam. Clemente III. Por que Deus se Fez Ho
1041 — Concilio de Mon- 1084 — Henrique IV toma mem?
triond: organização definiti Roma e se faz coroar impe 1098 — Queixa-se do rei ao
va da “Trégua de Deus”. rador por Clemente III. papa, no concilio de Bari. O
1050 (?) — .Nascimento de 1085 — Morte de Gregório papa Urbano II renova a
Roscelino de Compiègne. VII. Vacância do trono pon aliança com os normandos.
1060 — Anselmo ingressa tifício. 1099 — Morte de Urbano
na abadia dos beneditinos 1087 — Guilherme, o Rui II- Realizam-se cruzadas na
em Bec. vo, torna-se rei da Inglater Palestina e Jerusalém é to
1066 — Início da constru ra. mada.
ção da abadia de Monte 1088 — Urbano II torna-se 1100 — Morte do antipapa
Cassino. papa. Criação da Universi Clemente III. Guilherme, o
1070 — Lanfranco torna-se dade de Bolonha. Revolta Ruivo, é assassinado; ascen
arcebispo de Cantuária. Re feudal na Inglaterra. de ao trono inglês Henrique
forma da Igreja inglesa. 1089 — Urbano II retoma I, seu irmão.
1073 — Gregório VII tor Roma. 1103 — Anselmo é exilado.
na-se papa, sucedendo a 1090 — Henrique IV inva 1106 — Henrique V revol
Alexandre II. de a Itália. O papa Urbano ta-se contra seu pai, Henri
1074 — É publicado um de II abandona Roma. que IV, que abdica e morre.
creto contra a simonia e o 1091 — Guilherme, o Rui 1107 — O sínodo de West-
nicolaísmo. vo, invade a Normandia. minster trata das investidu
1075 — É publicado um de 1092 — Henrique IV, bati ras na Inglaterra.
creto contra as investiduras do em Canossa, deixa a 1109 — Anselmo falece no
leigas. Itália. dia 21 de abril.
BIBLIOGRAFIA
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134
OS PENSADORES
Antes da ligação amorosa com Heloísa, que fez dos dois um dos casais mais
célebres da história, ao lado de Beatriz e Dante, Laura e Petrarca, Abelardo
foi ídolo dos estudantes parisienses como professor de dialética. (Gravura do
séc. XIX representa sua chegada a Paris.) Pág. anterior: Abelardo e Heloísa,
iluminura do Roman de la Rose, Museu Condé de Chantilly. (Foto Fabbri.)
136
ABELARDO
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OS PENSADORES
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ABELARDO
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OS PENSADORES
Um problema antigo
A parte mais produtiva do pensa
mento filosófico de Abelardo originou-se
de sua atividade como professor de lógi
ca. Como todos os estudiosos da filoso
fia da primeira metade do século XII, o
principal problema por ele tratado foi a
questão dos universais.
O problema tem suas origens na Gré
cia antiga, quando Sócrates afirmava — Separado de Heloísa, Abelardo
contra os sofistas — que o verdadeiro ob tomou-se monge e continuou suas
jeto do conhecimento é aquilo que existe prédicas sobre assuntos teológicos e
de comum em todos os seres individuais dialéticos. (Gravura do séc. XIX,
de determinado grupo, e não aquilo que pertencente à coleção UÉcureuil.)
distingue particularmente cada um
deles. No primeiro caso ter-se-ia um uni meira ficou conhecida como realismo e
versal, isto é, algo que está em todos os teve como representantes, entre outros,
indivíduos, de maneira permanente e Santo Anselmo e Guilherme de Cham-
imutável; no segundo, o que se apresenta peaux. A segunda chama-se nomina-
seria efêmero e relativo, não possibili lismo e teve como defensor extremado
tando, portanto, nenhuma certeza. Se se Roscelino.
trata de conhecer a justiça, por exemplo, O realismo na sua forma mais com
seria necessário visar à justiça em geral, pleta afirma não só que os universais
e não a esta ou àquela ação justa têm existência real, como constituem
particular. mesmo a mais autêntica realidade. O
Posteriormente, a distinção socrática realismo insere-se, assim, dentro das
foi aperfeiçoada pela lógica de Aristó coordenadas do platonismo, que afirma
teles (384-322 a.C.) e, nos comentários a existência de um mundo superior de
de Porfírio (c. 232-304), colocou-se a idéias, das quais as coisas particulares
seguinte questão: os universais possuem conhecidas através dos sentidos consti
verdadeira existência na realidade? ou tuem apenas cópias imperfeitas e perecí
são meros produtos do pensamento veis. Em cada membro de uma espécie —
humano? Exemplificando: existe a ani afirmava Guilherme de Champeaux —
malidade em geral (universal para os está presente uma natureza comum real,
animais) ou só existe este ou aquele ani e os entes individuais diferem apenas em
mal particular? A animalidade não seria seus acidentes e não em sua substância.
apenas um produto do intelecto, sem Por outro lado, Santo Anselmo distingue
qualquer realidade efetiva? três tipos de realidade dos universais. O
Duas soluções opostas foram dadas primeiro tipo seria constituído pelos
pelos filósofos da Idade Média. A pri- universais que são reais na mente de
140
ABELARDO
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OS PENSADORES
142
ABELARDO
143
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
BIBLIOGRAFIA
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144
OS PENSADORES
146
STO. TOMÁS
147
OS PENSADORES
148
STO. TOMÁS
a causalidade.
Alberto Magno forneceu os elementos A terceira via refere-se aos conceitos
com os quais Santo Tomás edificaria de necessidade e possibilidade. Todos os
seu sistema teológico-filosofico. seres estão em permanente transforma
(Santo Alberto Magno, por Tommaso de ção, alguns sendo gerados, outros se
Modena, Seminário de Treviso.) corrompendo e deixando de existir. Mas
149
OS PENSADORES
poder ou não existir não é possuir uma encontram-se os anjos e, para explicá-
existência necessária e sim contingente, los, a distinção tomista entre essência e
já que aquilo que é necessário não preci existência revela-se particularmente efi
sa de causa para existir. Assim, o possí ciente. Conforme os textos bíblicos, os
vel não teria em si razão suficiente de anjos seriam puros espíritos, o que —
existência e se nas coisas houvesse ape interpretado aristotelicamente, sem o
nas p possível, não havería nada. Para princípio tomista da distinção ontoló-
que ò possível exista é necessário, por gica entre essência e existência — levaria
tanto, que algo o faça existir. Ou seja: se à conclusão de que são puras formas e,
alguma coisa existe é porque participa portanto, incriados, eternos. Isso seria o
do necessário. Este, por sua vez, exige mesmo que afirmar serem os anjos
uma cadeia de causas, que culmina no iguais a Deus, ou seja, cair-se-ia numa
necessário absoluto, ou seja, Deus. visão politeísta.
A quarta via tomista para provar a A distinção ontológica entre essência
existência de Deus ê de índole platônica e existência permite reinterpretar o prin
e baseia-se nos graus hierárquicos de cípio aristotélico segundo o qual a forma
perfeição observados nas coisas. Há dá a existência: Santo Tomás pode então
graus na bondade, na verdade, na nobre afirmar que é por intermédio da forma
za e nas outras perfeições desse gênero. que Deus proporciona existência aos
O mais e o menos, implicados na noção anjos, que seriam, assim, seres contin
de grau, pressupõem um termo de gentes. Os anjos seriam, pois, criaturas
comparação que seja absoluto. Deverá como as demais, embora incorpóreas e
existir, portanto, uma verdade e um bem possuidoras da mais alta perfeição den
em si: Deus. tre as criaturas. Na hierarquia dos anjos
A quinta via fundamenta-se na ordem cada um recebería do imediatamente
das coisas. De acordo com o finalismo superior as espécies inteligíveis, pri
aristotélico adotado por Tomás de Aqui- meira fragmentação da luz divina, trans
no, todas as operações dos corpos mate mitindo-a à ordem angélica imediata
riais tenderíam a um fim, mesmo quando mente inferior.
desprovidos da consciência disso. A Na hierarquia descendente das criatu
regularidade com que alcançam seu fim ras, o homem aparece como um ser dota
mostraria que eles não estão movidos do de duplo compromisso. Por sua alma,
pertence à série dos seres imateriais,
pelo acaso; a regularidade seria inten
mas não é uma inteligência pura, como a
cional e desejada. Uma vez que aqueles
corpos estão privados de conhecimento, dos anjos, pois encontra-se essencial
pode-se concluir que há uma inteligência mente ligada a um corpo. Liame subs
primeira, ordenadora da finalidade das tancial do universo, o homem é menos
coisas. Essa inteligência soberana seria um elemento do mundo do que um novo
mundo onde se resume a totalidade. A
Deus.
alma humana é, assim, um horizonte
Anjos e homens onde se tocam o mundo dos corpos e o
dos espíritos.
Todas as provas da existência de Deus Por essa dupla natureza é que o
contêm já, implicitamente, o quadro homem pode conhecer (já que é alma),
tomista explicativo da realidade como mas não pode ter contato direto com o
um todo e esse quadro concilia as verda inteligível (pois é também corpo). O
des da razão aristotêlica e o conteúdo da conhecimento humano parte sempre dos
revelação bíblica. Torna-se perfeita- sentidos, que revelam objetos concretos
mente concebível pela razão que o e singulares; mas, através da abstração,
mundo seja um conjunto de criaturas é capaz de finalmente forjar conceitos
contingentes, cuja existência é dada por universais. Adotando e desenvolvendo a
Deus, criadas a partir do nada e escalo teoria aristotêlica do conhecimento —
nadas segundo graus diversos de perfei sustentada pela doutrina metafisica do
ção e participação na essência e exis ato-potência —, Santo Tomás afirma que
tência divinas. o intelecto pode gerar conceitos abstra
No ápice da hierarquia das criaturas tos e universais porque não é um mero
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SCALA
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OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1225 — Tomás de Aquino até 1248, sob a orientação 1261 — Início do pontifica
nasce no castelo de Rocca- de A Iberto Magno. do de Urbano IV.
secca. 1248 — Alberto Magno 1265 — Clemente IV ascen
1226 — Morte de São Fran funda, em Colônia, uma fa de ao trono papal. Nasce
cisco de Assis. culdade de teologia. Tomás Dante. Tomás redige a Su
1230 — Tomás inicia seus continua seus estudos em ma Teológica, até 1273.
estudos na Abadia de Mon- Colônia até 1252. 1266 (?) — Nasce Duns
tec assino. 1252 — Leciona em Paris Scot.
1240 — Alberto Magno co até 1259. 1268 — Morte de Clemente
meça a ensinar em Paris e a 1257 — Robert de Sorbon IV. Interregno pontificai.
comentar Aristóteles. funda um colégio na Univer 1269 — Tomás ensina em
1241 — Morte do papa sidade de Paris. Paris até 1272.
Gregório IX. 1259 — Tomás escreve o 1271 — Eleição de Gregó
1244 — Fundação da Uni Comentário sobre as Sen rio X.
versidade de Roma. Tomás tenças e a Suma contra os 1274 — Tomás falece a 7
entra para a Ordem dos Gentios. Leciona na Itália de março, em Fossanova.
Dominicanos. até 1268: Agnani, Orvieto, 1323 — É canonizado pelo
1245 — Estuda em Paris Roma e Viterbo. papa João XXII.
BIBLIOGRAFIA
154
OS PENSADORES
ARBORIO MELLA
a estabelecer paralelos rigorosos entre o
poema e a Suma Teológica. Outros não
são, porém, da mesma opinião e procu
ram mostrar como a maior parte das
idéias contidas na Divina Comédia cor
responde a noções comuns a todos os
autores medievais, como o papel prima- Beatriz conduz o poeta ao paraíso.
cial da teologia; a organização hierár (Divina Comédia, Bibl. Nacional,
quica da realidade, desde as coisas sen Veneza.) Pág. ant.: Dante, em afresco
síveis até os anjos e Deus; o uso de uma de Andréa dei Castagno, Museu de
certa simbologia. Santa Apolônia, Florença. (Foto Fabbri.)
Alguns comentadores têm mostrado a
influência exercida sobre a obra de de Dante por Beatriz. A obra apresenta
Dante pelo pensamento árabe, especial clima lírico, sendo constituída por uma
mente Averróis e Avicena. Segundo esses série de poemas, ligados e comentados
intérpretes, sobretudo a idéia de Deus por trechos em prosa, que pretendem
como luz e a doutrina das inteligências e explicar as passagens poéticas de ma
da iluminação teriam sido extraídas por neira didática. Aparentemente simples,
Dante, menos da tradição agostiniana do a obra encerra, no entanto, uma comple
que da filosofia árabe. Mas isto é bas xidade de significados que têm sido
tante controvertido. diversamente interpretados. Assim é que
Dante integra todas essas idéias numa se pode ver na Vida Nova o drama huma
síntese que expressa artisticamente a no da procura da verdade eterna e de um
concepção cristã medieval das coisas mundo platônico de puras idéias. A
divinas e humanas. Entretanto, a Divina amada Beatriz — que na Divina Comédia
Comédia — à parte o valor poético — per conduz o poeta ao paraíso — tem sido
manece também como expressão signifi interpretada como a própria teologia, da
cativa do pensamento original de Dante, qual a filosofia seria serva, de acordo
que antecipa as linhas fundamentais da com a concepção medieval.
filosofia humanista. Mas Dante não compôs apenas poesia
Ao mesmo tempo poética e filosófica, encerrando conteúdo filosófico; escreveu
a Vida Nova é a história do famoso amor também um tratado teórico sobre pro-
156
DANTE
157
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1265 — Dante Alighieri 1289 — Combate os gibeli- fácio VIII, Charles de Va-
nasce em Florença, em nos na batalha de Campal- lois vai pacificar Florença.
maio. dino. 1302 — Dante é acusado de
1266 — Nascimento de 1290 — Morte de Beatriz. “baralter ia” (práticas cor
Giotto. 1293 (?) — Dante escreve ruptas). É exilado.
1274 — Dante encontra Vida Nova. 1303 — Morre Bonifácio
Beatriz pela primeira vez. 1294 (?) — Morre Brunetto VIII.
Morte de Santo Tomás de Latini. Com a morte de Ce 1304 — Nasce Petrarca.
Aquino. lestino V, inicia-se o pontifi 1307 — Dante escreve o
1276 — Morre o poeta Gui- cado de Bonifácio VIII. Banquete.
do Guinizelli. 1295 — Dante torna se 1308 — Com a morte de
1277 — A doutrina tomista membro do conselho espe Alberto da Áustria, Henri
é condenada em Paris e cial do povo guelfo. que VII de Luxemburgo tor
Canterbury. 1298 — Dante viaja a San na-se imperador.
1278 — A ordem dominica Gimignano em missão di 1313 — Morre Henrique
na adota o tomismo como plomática. VII. Dante redige Sobre a
doutrina oficial. 1300 — Morre Guido Ca Monarquia.
1285 (?) — Dante casa-se valcanti. 1321 — Morre na noite de
com Gemma Donati. 1301 — A pedido de Boni 13 de setembro.
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Swing,T. K.: The FragileLeaves of the Sybil:Dante’s Master Plan, Westminster, 1962.
158
OS PENSADORES
160
DUNS SCOT E OCKHAM
Um franciscano rebelde
Os elementos de dissolução da esco-
lástica continental, contidos no pensa
mento de Duns Scot, seriam levados
muito mais adiante pelo seu discípulo
William de Ockham, nascido no condado
de Surrey, por volta de 1290. Desde
muito cedo, Ockham interessou-se pelos
estudos teológicos e ingressou na Ordem
dos Franciscanos. De 1315 a 1323
ministrou aulas em Oxford, fez-se ba
charel e preencheu os requisitos para o
doutorado, com uma série de conferên
cias sobre as Sentenças de Pedro Lom-
bardo (1095-1160). Não recebeu,
porém, o título porque as autoridades
papais consideraram demasiado hetero
doxas as suas teses. Iniciava-se, assim,
a história de sua oposição à ortodoxia
papal. Essa oposição, por um lado,
Duns Scot, o Doutor Sutil, opôs-se, como manifestava o próprio conflito político
os demais membros da Ordem dos entre o poder temporal dos reis ingleses
Franciscanos ingleses, às contra o poder espiritual dos papas; por
soluções tomistas para o problema outro lado exprimia a oposição das
das relações entre a razão e a fé. tendências empiristas da filosofia ingle
sa ao racionalismo universalizante do
pensamento europeu continental.
Ockham afirmava que “assim como
Cristo não veio ao mundo a fim de tomar
dos homens seus bens e direitos, o vigá
rio de Cristo (o papa), que lhe é inferior
e de modo algum o iguala em poder, não
tem autoridade ou poder para privar os
outros de seus bens e direitos”.
Por afirmações como essa e todas as
suas implicações, Ockham lançava os
fundamentos do espírito laico. Como
resultado, durante toda a vida esteve em
permanente conflito com as autoridades
da Igreja Romana. Em 1325, foi confi
nado no convento franciscano de Avi-
nhão, até 1326, esperando a conclusão
Tomando o partido do papa Bonifácio de um processo que condenou seus “he
VIII, em luta contra Filipe, o Belo, réticos e pestilentos comentários”. No
Scotfoi banido da França pelo rei. ano seguinte envolve-se em disputa
(Filipe, o Belo, recebe o delegado do sobre as ordens mendicantes e corre
papa Bonifácio; Bibl. Nac., Viena.) novo perigo de condenação. Alia-se
161
OS PENSADORES
então ao imperador Luís da Baviera, que universais são, portanto, apenas pala
tinha colocado um antipapa no trono vras (em latim, nome, donde a expressão
pontificai romano, opondo-se ao papa de “nominalismo” para a teoria de Ock
Avinhão. As disputas políticas de Ock ham). Sendo somente signos, servem
ham continuariam até sua morte, ocor para designar um conjunto de seme
rida por volta de 1349. lhanças ou identidade de caracteres,
O fundamento filosófico do seu com abstraídos das coisas individuais pelo
portamento rebelde encontra-se em sua intelecto humano.
doutrina sobre os universais. A teoria da O nominalismo trazia consigo conse
estidade, elaborada por Duns Scot, tinha qüências da maior importância para a
dado um passo para a negação da reali história das idéias. A primeira era a
dade dos universais; Ockham não titu transformação de toda ciência em conhe
beou em percorrer o novo caminho até cimento empírico dos indivíduos, posto
suas últimas conseqüências. Em última que, por um lado, só eles constituiríam a
instância, ele retira dos universais toda verdadeira realidade e, por outro, por
e qualquer realidade ontológica. Afirma que os indivíduos são conhecidos pri
que os universais não têm realidade mordialmente no plano da experiência.
objetiva, existindo apenas no intelecto Para Ockham, o conhecimento concei
humano e como algo produzido por ele; tuai ou abstrativo é confuso e indetermi
não têm realidade nem nas coisas indivi nado, pois apreende apenas os caracte
duais, nem mesmo na mente divina. Os res comuns a vários objetos e deixa
162
DUNS SCOT E OCKHAM
O palácio de Avinhão (hoje centro cultural) foi sede do papado durante quase
todo o século XIV, como resultado da interferência dos soberanos franceses
na Igreja. Ockham participou das lutas entre o poder temporal e o poder
espiritual, defendendo os reis contra os papas em várias de suas obras, como,
por exemplo, as Oito Questões sobre o Poder e a Autoridade dos Papas.
escapar o que eles têm de particular e
que os distingue dos demais.
Outra conseqüência do nominalismo
consistiu no abismo criado entre o
conhecimento científico (dos seres indi
viduais, concretos, encontrados na natu
reza) e os domínios do pensamento reli
gioso. A fé não poderia encontrar
qualquer apoio na razão, pois os dois
campos seriam indiferentes e alheios um
ao outro. A teologia não seria, portanto,
uma ciência racional e Deus não teria
qualquer interesse para a filosofia. Ciên
cia e religião eram duas vias paralelas,
“duas verdades” independentes.
A contraparte dessa separação radical
entre a fé e a razão, entre a teologia e a
filosofia, situa-se na oposição entre o
poder espiritual e o poder temporal,
entre o papa e o imperador.
O ocamismo foi, assim, nítida expres
são da dissolução do espírito medieval.
A filosofia escolástica — que centralizou
O papado transferiu-se para Avinhão sua atenção na tentativa de formular
depois das lutas entre Filipe, o Belo, uma visão universalizante do mundo —
e Bonifácio VIII, acima retratado em chegava ao seu fim. Anunciavam-se as
afresco atribuído ao pintor Giotto. inovações renascentistas e abria-se ca
(Basílica de São João Latrão, Roma.) minho ao espírito da modernidade.
163
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1266 (?) — John Duns Scot 1302 — Regressa a Paris. 1323 — Ockham é acusado
nasce em Maxton, condado 1303 — Bonifácio VIII ex de defender doutrinas heréti
de Roxburgh, Escócia. comunga Filipe, o Belo. cas.
1277 — Duns Scot entra Scot é banido da França em 1324 — Intimam-no a res
para o convento franciscano razão de sua oposição ao ponder às acusações. João
de Dumfries. rei. Morre Bonifácio VIII. XXII excomunga Luís da
1281 — Passa a pertencer à 1305 — Scot torna-se dou Baviera.
ordem dos menores. tor em teologia. Clemente 1325 — Ockhamfica confi
BRASIL.
1285 — Filipe IV, o Belo, torna-se papa. nado no convento francisca
torna-se rei da França. 1308 — Morre Scot. Fun no deAvinhão até 1326.
1290 — Fundação da Uni dação da Universidade de 1330 — Negociações entre
-
versidade de Lisboa. Coimbra. Luís da Baviera e João
SÃO PAULO
1290 (?) — William de 1313 — Nasce Boccaccio. XXII.
Ockham nasce no condado 1314 — Morte de Filipe, o 1333 — Ockham viaja em
de Surrey, Inglaterra. Belo. companhia do imperador
1291 — Scot ordena-se pa 1315 — Ockham leciona Luís da Baviera.
dre. Estuda em Paris até em Oxford até 1323. 1334 — Morre João XXII.
- E INDUSTRIAI.
1293. 1316 — Inicia-se o pontifi 1347 — Morre Luís da
1294 — Bonifácio VIII tor cado de João XXII. Baviera.
na-se papa. 1322 — Conflito entre João 1348 — Boccaccio começa
1300 — Scot começa a en XXII e os franciscanos so a escrever o Decamerão.
sinar teologia em Oxford. bre a pobreza apostólica. 1349 (?) — Morre Ockham.
MUNDIAL, 1973
1952.
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164
OS PENSADORES
166
MAQUIAVEL
MONDADORI
167
OS PENSADORES
ARBORIO MELLA
Os papas renascentistas desempenharam papel ativo na política italiana.
Alexandre VI (retrato de anônimo do séculoXV), pai de César Bórgia,
foi o inspirador de suas ações de conquista. Júlio II, da família dos Médicis
(retrato de Rafael), foi um guerreiro preocupado em expulsar os “bárbaros”
da península. (Pinacoteca Vaticana, Roma e Galleria degli Uffizi, Florença.)
tentes. Os condottieri adquirem impor poderio espanhol, francês e inglês. Na
tância crescente e alguns conquistam verdade, o capitalismo comercial já
principados para si e estabelecem alian tinha quase dois séculos na Itália quan
ças com reis, cardeais e papas. do surgiu nos demais países e funda
Esse panorama fluido e mutável, de mentou as monarquias absolutistas.
um país dividido em múltiplos Estados, Mas seu desenvolvimento na península
contrasta com a situação da maior parte foi diferente e a congelação do capita
da Europa ocidental, em que alguns lismo italiano parece ter resultado do
governos enfeixam todo o poder, e sofre próprio êxito econômico, expressado
as conseqiiências de um permanente sob a forma de uma expansão bem suce
intervencionismo. Os principados italia dida do capital mercantil e financeiro. A
nos apelam freqiien temente para as nascente economia comercial italiana, a
monarquias absolutas européias, a fim partir do século XI, articulava-se com o
de solucionar as disputas internas; com mundo feudal circundante, estreitando
isso a Itália torna-se vítima impotente. vínculos de dependência recíproca. A
Alguns pequenos Estados sofrem a sobe clientela era constituída pela Igreja,
rania do Império Germânico, e França e Estados feudais, grandes senhores de
Espanha disputam a posse de vários de terras, cortes aristocráticas e camadas
seus territórios. superiores da burguesia, assim como
É estranho que tudo isso acontecesse pelas coroas representativas dos interes
num país cuja economia tinha conhecido ses dos novos Estados nacionais euro
muito antes as formas responsáveis pelo peus. As necessidades de consumo desses
168
MAQUIAVEL
169
OS PENSADORES
TL PRÍNCIPE
DÍ NICOLO MACHIAVELLk
AL MAGNÍFICO LORENZO
Dl PIERO DE MEDICL
•/
LA V 1 T A
Dl CASTRVÓCIO CASTRACANI .
\ DA L V C C A.
ItMODOGHE.TE.NHE
1 IL DVC A VALENT1NO
PER AMMA12AR.E VlTELLÒZZO VlTEÍlI,
Oliverotto da Fermo, II Sicnór Pagoio,
ET IL DvcA Dl GRAVINA.
I R T T R AT T I
DELLE COSE' DELLA FR AN ÇJA'
ET D E 1É* At AM AGNA.
NL D. L.
170
MAQUIAVEL
171
OS PENSADORES
172
MAQUIAVEL
173
_rr^— ....... ,
OS PENSADORES
174
MAQUIAVEL
175
OS PENSADORES
Liberdade e determinismo
Isolada a situação particular em suas
múltiplas determinações, e feitas as pre
visões dos desdobramentos prováveis, a
ciência do fenômeno político cede lugar
à arte de bem governar. Assim, o saber
político triunfaria sobre a teoria da his
tória e a ação humana não estaria conde
nada a seguir um curso determinado
pelo destino, como nas tragédias gregas.
Embora a realidade determine os limites
da ação, as personalidades decididas e
empreendedoras interferiríam na histó
ria. A ciência política, enquanto prática,
“ . . . não seifalar de seda ou lã, supera então a concepção de um uni
benefícios ou perdas;preciso verso fechado e a de uma história cons
discorrer sobre as coisas ao Estado ou truída por periódicos e inexoráveis
fazer voto de silêncio. ” (Retrato retornos.
de Maquiavel, Rosso Fiorentino, O desdobramento cíclico permanece,
Casa de Maquiavel em San Casciano.) para Maquiavel, o quadro teórico básico
2 76
MAQUIAVEL
MONDADORI
criado pela fortuna, no qual a ação pode
rá funcionar com êxito. O estadista
sábio e prudente busca na história uma
situação semelhante e exemplar, da qual
saberia extrair o conhecimento dos
meios para a ação e a previsão dos efei Piero Soderini, gonfaloneiro da
tos. Para ser eficaz, a iniciativa política república florentina, apoiou Maquiavel
deve ajustar-se às circunstâncias. Na na criação das milícias. (Anônimo do
contabilidade de Maquiavel, os 50% séc. XVI, Palazzo Pitti, Florença.)
reservados ao arbítrio e à vontade huma
na teriarn seu círculo de operações possí
veis no espaço concreto de uma situação
determinada. A ação destinada ao êxito
seria então aquela que se exerce em
compatibilidade com le qualità de’
tempi, e os homens seriam felizes na me
dida em que soubessem combinar seu
modo de agir com as particularidades do
momento. O necessário é manter-se à
frente dos acontecimentos, procurando
imprimir-lhes rumo e alternativas, dado
que a fortuna é um rio impetuoso e os
homens devem prevenir-se com a edifi
cação de diques e barragens. A vontade
criadora não passa, assim, de um méto
do para a ação, pois o agir humano está
condicionado pela necessidade.
O carisma da virtu é próprio daquele
que se conforma à natureza de seu
tempo, apreende-lhe o sentido e se capa
cita a realizar praticamente a necessi
dade latente nas circunstâncias. No uso
do instrumental dos mecanismos de
poder, a neutralidade moral decorrería
ARBORIO MELLA
177
OS PENSADORES
Principados e repúblicas
Para Maquiavel, o essencial numa
nação é que os conflitos originados em
seu interior sejam controlados e regula
dos pelo Estado. Em função do modo
pelo qual os bens são compartilhados, as
sociedades concretas assumem diferen
tes formas. Assim, onde persista ou
possa persistir uma relativa igualdade
entre os cidadãos, o fundador de Estados
deve estabelecer uma república. Ocor
rendo o contrário, manda a prudência
que seja constituído um principado. Se
não proceder assim, o governante forma
rá um Estado desequilibrado e sem har
As técnicas militares constituíram monia, que não poderá subsistir por
preocupação constante de toda a vida de muito tempo.
Maquiavel. O autor de O Príncipe O núcleo da organização do Estado
trata do assunto com Cosimo Rucellai residiría na ordem, que pode manifes
e Fabrizzio Colonna. (Gravura de tar-se sob várias formas, mas que se
A. Focosi.) Abaixo, fragmento apresentaria basicamente como princi
do manuscrito da Arte da Guerra. pados ou como repúblicas. As repúblicas
(Biblioteca Nacional de Florença.) apresentariam três modalidades: a aris-
178
MAQUIAVEL
MUNDAOORI
Uma das muitas embaixadas de Maquiavel levou-o a parlamentar com Catarina
Sforza Riario, mulher muito hábil e exigente. Com Francesco delia
Casa, embaixador do rei da França, Luís XII, discutiu os problemas da guerra
contra Pisa. (Litografias de Alessandro Focosi para as Opere Complete di
Niccolò Machiavelli, Milão, 1858, Biblioteca Cívica de Bérgamo.)
tocrática, como Esparta, em que uma As observações levaram Maquiavel a
maioria de governados encontrava-se concluir também que os principados,
subordinada a uma minoria de gover quando hereditários, padecem de uma
nantes; a democracia restrita, na qual debilidade congênita, pois pode ocorrer
dá-se o contrário, como ocorreu em Ate neles que o poder estabelecido pelo fun
nas; e a democracia ampla, quando a dador seja usado ambiciosamente pelos
coletividade se autogoverna, fenômeno sucessores, sem a virtu do mesmo. Por
encontrado em Roma após a instituição outro lado, seria fraco o Estado que só
dos tribunos da plebe e a admissão do pode ser governado pela vontade de um
povo à magistratura. homem apenas; na falta deste, não há
Não existiria, contudo, uma ordem como triunfar sobre a desordem. O
ideal, com validade absoluta, indepen abuso de poder, por parte dos herdeiros
dente da organização social concreta do herói primordial, fomenta a discórdia
dos povos. O povo é, para Maquiavel, e alimenta conspirações, pondo em peri
uma matéria que aguarda sua forma e a go a ordem interna.
engenharia da ordem parte da análise da O reino da competição entre Estados
situação social, não resultando do arbí não seria controlável, segundo Maquia
trio do fundador de Estados, mas de sua vel, por instituições nem pela lei, e seria
capacidade para captar, num momento impossível que uma república conse
de gênio, aquela forma desejável e de guisse permanecer tranquila e gozar de
sua disposição para impô-la sem qual liberdade dentro de suas fronteiras. Se
quer vacilação. não molestar as demais, será molestada
179
OS PENSADORES
180
MAQUIAVEL
SNARK INTERNATIONAL
príncipe.
181
OS PENSADORES
182
MAQUIAVEL
FABBRI
“A todos repugna este bárbaro domínio. Pegue, então, a vossa ilustre casa
neste assunto, com aquele ânimo e aquela esperança com que se entra nas
empresas justas; a fim de que, sob sua bandeira, seja esta pátria honrada. ”
(Palavras finais de O Príncipe, endereçadas a Lourenço de Médicis, cujo túmulo,
esculpido por Michelangelo, encontra-se na Igreja de São Lourenço, Florença.)
183
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1453 — Tomada de Cons- 1502 — Casa-se com Ma- A Mandrágora, obra-prima
tantinopla pelos turcos. rietta Orsini; encontra-se do teatro italiano.
'1454 — A paz de Lodi com César Bórgia em Ro- 1519 — Carlos V torna-se
inaugura um período de magnana. imperador do Sacro Império
equilíbrio entre os Estados 1503 — Preocupa-se com o Romano Germânico. Falece
italianos. problema de substituir os Lourenço de Médicis.
1469 — Maquiavel nasce soldados mercenários por 1520 — Em Luca, trata dos
em Florença, no dia 3 de milícias nacionais. interesses mercantis de Flo
maio. 1504 — Os franceses pen rença. Escreve a Vida de
1473 — Botticelli pinta o dem Nápoles. Michelangelo Castruccio Castracani.
quadro São Sebastião. esculpe o David. 1521 — Publica A Arte da
1492 — Cristóvão Colom 1506 — Maquiavel é esco Guerra. Morre Leão X.
bo descobre a América. lhido para o cargo de secre 1523 — Júlio de Médicis
1494 — Cessa o poder dos tário dos Nove das Milícias. torna-se papa sob o nome de
Médicis em Florença. Car 1511 — Realiza embaixa Clementç VII.
los VIII, da França, ataca a das em Milão e na França. 1525 — Oferece ao pontífi
Itália. 1512 — Os Médicis retor ce os oito primeiros livros
1498 — Maquiavel torna-se nam a Florença. das Histórias Florentinas.
segundo chanceler da repú 15 13 — Maquiavel é exila^ Francisco Sforza é reconhe
blica florentina. Vasco da do em San Casciano, onde cido como duque de Milão.
Gama descobre o caminho começa a escrever as princi 1527 — Maquiavel é excluí
para as índias. pais obras: O Príncipe e os do da participação no go
SÃO PAULO
1500 — Viaja para a Fran Discursos sobre a Primeira verno instituído após nova
ça a fim de tratar do proble Década de Tito Lívio. queda dos Médicis. .Falece a
ma de Pisa junto a Luís XII. 1518 — Escreve a comédia 21 de junho.
- E INDUSTRIAL
BIBLIOGRAFIA
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184
OS PENSADORES
186
ERASMO
SNARK INTERNATIONAL
Originário dos Países Baixos, Erasmo teve o início de sua existência ligado
às cidaaes de Rotterdam e Goude. Mas procurou viver como um cidadão do mundo,
pairando acima das dissenções políticas e defendendo a tolerância religiosa.
(Rotterdam e Goude no tempo de Erasmo, anônimo, Biblioteca Nacional de Paris.)
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OS PENSADORES
188
ERASMO
mundo material não era necessariamente Sua mãe chamava-se Margared e era
residência do pecado e reino da contami filha de um médico de Zevenbeque. Seu
nação, e cuidar do bem-estar físico não pai, Roger Geert, homem culto e relacio
significava afastamento da bem-aventu- nado com representantes do humanismo
rança eterna. nos Países Baixos, era um padre com
Pior que o desconforto ou os jejuns, funções itinerantes em diversas paró
eram os sofrimentos pelos quais tinha quias da cidade de Goude, próxima a
que passar a inteligência diante do ensi Rotterdam. A ligação amorosa com
no escolástico, impregnado de sutilezas Margared não era lícita, mas as regras
insípidas, de exagerado formalismo e da vida cristã estavam enfraquecidas,
limitado a discutir temas irrelevantes. naqueles tempos, e os rigores da moral
O colégio Montaigu era, na verdade, agostiniana não eram mais obedecidos
uma verdadeira prisão espiritual, que com tanta severidade. Dessa ligação
poderia ter sido útil para Inácio de Lo- resultou um primeiro filho, chamado
yola (1491-1556), que ali suportou, Pieter. Poucos anos depois viria à luz
durante vinte anos, uma disciplina de Erasmo, num dia e mês conhecidos com
castigos corporais para educar a vonta certeza (passagem de 27 para 28 de
de. Mas era absolutamente repugnante outubro), mas num ano que não se sabe
para a natureza nervosa, independente e ao certo qual tenha sido: os biógrafos
moderna do jovem frade Erasmo. Ele era oscilam entre 1465 e 1469. É certo,
exemplo vivo de uma nova ordem de coi entretanto, ter o fato ocorrido em Rot
sas: da mentalidade renascentista, da terdam, para onde Margared fora envia
qual veio a se tomar um dos maiores da a fim de guardar a discrição neces
representantes. sária em tais ocasiões. Inicialmente a
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ERASMO
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Soldado e O Soldado e os Cartuxos qua publicar outra obra que marcaria época:
lifica sarcasticamente como loucos os as autoridades portuárias inglesas não
jovens atraídos pela carreira das armas. lhe permitiram carregar as economias
Ele mesmo, no entanto, nada tinha de em ouro e prata, acumuladas custosa
louco e sabia muito bem como fazer mente. Mais uma vez viu-se forçado a
para dar solução aos problemas de recomeçar de zero a luta pelo pão de
sobrevivência e resguardar sua indepen cada dia. Não teve dúvidas sobre como
dência pessoal. Em 1499, acompanhado fazê-lo e em pouco tempo redigiu uma
de lorde Mountjoy, um dos alunos ricos, antologia de citações latinas e provér
chega à Inglaterra, consegue hospeda bios, colocando nas mãos do grande pú
gem no Saint Mary,s College de Oxford e blico um imenso acervo de cultura, até
toma contato com uma universidade então privilégio de poucos. O livrinho
muito mais aberta a novas idéias do que teve sucesso imediato e foi o primeiro
a de Paris. Em Oxford, estudantes e exemplar de literatura de divulgação.
professores faziam juntos as refeições, Chamava-se Adágios e trouxe celebri
em meio a animados debates; eram ban- dade para o autor. À cata de patrocínio e
3uetes com companhia culta, boa comi- ao mesmo tempo cioso de sua indepen
a, não muito vinho e nobre palestra. dência pessoal, viaja pelos Países Bai
Erasmo sentiu-se em seu elemento, não xos e pela França, sem fixar-se em lugar
só por causa desses costumes cotidianos, algum. Acima de tudo procura não se
mas porque encontrou pessoas que parti comprometer com qualquer instituição
lhavam de seus interesses intelectuais. ou pessoa. Almeja apenas ao pouco que
Eram muitos os que pensavam lhe permita satisfazer as necessidades
como ele: o arcebispo William básicas, permanecendo livre para o tra
Warham (1450-1532) e John Fisher balho intelectual.
(1469-1535), os mestres universitários
William Grocyn (1446-1519), Thomas O Elogio da Loucura
Linacre (1460-1524) e Hugh Latimer
(1485(?)-1555), e sobretudo John Colet
(1467-1519) e o futuro chanceler de Continuando suas viagens, concretiza
Henrique VIII, Thomas More. Juntos, o velho sonho de estagiar na Itália, cen
conceberam o projeto de restaurar a teo tro do humanismo e de toda a renovação
logia através de novas edições dos tex intelectual renascentista que se estende
tos bíblicos e propunham-se a iniciar, pela Europa. Não só as bibliotecas ita
assim, uma revolução na hermenêutica e lianas, onde poderia encontrar preciosos
exegese dos livros sagrados. As conse- manuscritos, mas a tipografia de Aldo
qíiências foram as mais profundas e as Manunzio (1450-1515) excitam-no
novas traduções a partir dos textos ori enormemente, e passa horas e horas a
ginais revelaram um cristianismo muito trabalhar com belíssimos caracteres ti
diverso daquele que perdurara durante pográficos, sobretudo os mais miúdos. A
os séculos da Idade Média. imprensa é para ele mais do que uma
Logo ao chegar à Inglaterra, em simples técnica: é o instrumento maravi
1499, Erasmo não estava ainda dotado lhoso que abrirá todas as portas da cul
de todos os instrumentos necessários tura, inaugurando uma nova era.
para esse trabalho, pois faltava-lhe o Em 1509 a Coroa inglesa passa à ca
domínio do grego. Mas dedicou-se a beça de Henrique VIII (1491-1547), que
aprendê-lo com os colegas ingleses e Erasmo conhecera desde menino e com o
continuou os estudos durante alguns qual chegara a corresponder-se em
anos, até tomar-se apto a fazer a tradu latim. O monarca estava sempre imerso
ção, com comentários críticos, do Novo na leitura dos Adágios, segundo infor
Testamento, publicada em 1516, e que mação do ex-aluno Lorde Mountjoy, e os
veio a constituir um marco dentro da amigos insistem para que Erasmo volté
história da hermenêutica bíblica. à Inglaterra, pois poderia conseguir do
Antes, em 1500, Erasmo tentara dei novo soberano uma pensão permanente.
xar a Inglaterra, mas um incidente na Em 1509 deixa definitivamente a Itália
hora da partida obrigou-o a redigir e e hospeda-se em Londres, na casa de
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CRONOLOGIA
1465 (?) - Erasmo nasce em gleses. Leonardo da Vinci pinta Maquiavel redige O Príncipe.
Rotterdam, filho natural do A Ceia. 1517 - Edita a Questão da Paz,
padre Roger Geert e Margared. 1500 - Volta a Paris, edita os volta à Inglaterra e nos quatro
1469 - Bessarion publica Con Adágios e passa os cinco anos anos seguintes vive em várias
tra os Caluniadores de Platão e seguintes entre a França e os cidades do Brabante.
Marsilio Ficino a Teologia Pla Países Baixos. 1519 - Intervém em favor de
tônica. Nasce Maquiavel. 1505 - Outra vez em Londres. Lutero, mas, ao mesmo tempo,
1475 - Entra na Escola dos 1506 - Viaja pela Itália. Reu impede a publicação de seus
Irmãos da Vida em Comum, chlin publica Rudimentos da escritos por Frcben.
em Deventer. É editado o Vo Língua Hebraica. 1520 - É solicitado por Fran
cabulário escrito por Johannes 1507 - Trabalha com o editor e cisco I e Henrique VIII a dar
Reuchlin. tipógrafo Aldo Manunzio. parecer sobre o luteranismo.
1481 - É instaurada a Inquisi 1509 - Passeia por várias cida 1522 - É instado pelo papa
ção na Espanha. des italianas, principalmente Adriano IV a tomar partido
1484 - Falecem os pais; os Roma e Nápoles; retorna à contra Lutero. A Inquisição
tutores o enviam para Herto- Inglaterra, onde escreve O Elo chega aos Países Baixos.
genbosch. Marsilio Ficino tra gio da Loucura. 1524 - Publica Sobre o Livre
duz Plotino. Nasce Zwínglio. 1511 - Vai a Paris para publi Arbítrio.
1486 - Savonarola inicia sua car o Elogio e volta a fim de 1529 - Deixa Basiléia para
pregação em Florença. lecionar em Cambridge. viver em Friburgo.
1487 - Ingressa no convento de 1514 - Vive em Basiléia. 1530 - Edita Do que se Deve
Steyn. Pico delia Mirandola é 1515 - Holbein desenha ilustra Fazer para Restaurar a Con
condenado pelo papa. ções para o Elogio. Francisco I córdia da Igreja, o que suscita
1490 - Lefèvre dÜtaples publi ascende ao trono francês e a ira de Lutero. Escreve o últi
ca Introdução à Metafísica de guerreia na Itália. mo dos Colóquios.
Aristóteles. 1516 - Publica o Novo Testa 1535 - Fala-se de sua elevação
1492 - Ordenado padre, traba mento, com comentários e a ao cardinalato.
lha com o bispo de Cambrai. Educação do Príncipe Cristão. 1536 - Em 12 de fevereiro
1494 - Chega a Paris. Pomponazzi escreve Tratado Erasmo redige testamento e fa
1497 - Passa a viver em Ox da Imortalidade da Alma, lece na passagem de 11 para 12
ford, junto aos humanistas in- Ariosto, o Orlando Furioso e de julho.
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Zweig, Stefan : Erasmo de Roterdão, Livraria Civilização Editora, Porto, 1970.
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, CAPITULO15
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FABBRI
A inflexibilidade de.caráter e irremovíveis convicções religiosas levaram
Thomas More a enfrentar a autoridade do monarca inglês Henrique VIII e a
morrer em defesa de suas idéias. (“Thomas More e sua Família”, quadro
baseado em desenho de Holbein.) Na página anterior: retrato de Thomas More,
pintado por Holbein, Galleria degli Uffizzi, em Florença (Foto Scala).
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Humanismo e prazer
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respeito pelo que considerava verda com Ana Bolena. Foi então preso na
deiro e por causa de seu caráter inflexí Torre de Londres. Durante a prisão
vel, que não lhe permitia curvar-se dian escreveu o Diálogo de Consolo Contra a
te do poder. Opressão, no qual confortava todos
Quando Henrique VIII pretendeu se aqueles que, como ele, sofriam por causa
parar a Inglaterra da autoridade univer de princípios religiosos e de consciência,
sal do papa — e para isso criou o famoso e negava o direito de qualquer chefe de
problema do divórcio com Catarina de Estado ditar leis em matéria de crença.
Aragão —, More opôs-se à pretensão real Na sua crença manteve-se firme, até a
e foi destituído do cargo de chanceler. O condenação final à morte por decapita
processo contra ele não parou aí. Recu ção, em 6 de julho de 1535. Beatificado
sou-se a assinar o Ato de Sucessão, que em 29 de dezembro de 1886, foi canoni
declarava sem efeito o casamento do zado em 19 de maio de 1935, quatro sé
monarca com Catarina de Aragão, e ao culos depois de seu martírio em defesa
mesmo tempo validava o matrimônio da liberdade de pensamento.
CRONOLOGIA
1478 - Thomas More nasce em Inn. começa a Guerra anglo-es- 1521 - Torna-se Cavalheiro e
Milk Street, Londres. cocesa. Subtesoureiro do Rei; viaja
1483 - Morte do rei Eduardo 1500 - Revolta de Suffblk. para Calais e Países Baixos.
IV da Inglaterra; massacre de 1504 - Ingressa no parlamento. 1528 - Redige o Diálogo Sobre
seus filhos e consequente as 1505 - Casa-se com Jane Colt e as Heresias.
censão de Ricardo III. passa a viver em Buckersbury, 1529 - É escolhido para o
1485 - Ricardo III é assassi Londres. cargo de chanceler, em substi
nado por Henrique Tudor, que 1509 - Henrique VIII ascende tuição ao cardeal Wolsey. O
se torna rei sob o nome de Hen ao trono inglês. papa Clemente VII opõe-se ao
rique VII. 1511 - Com a morte da esposa, divórcio de Henrique VIII.
1490 - Revolta na Cornualha. casa-se uma segunda vez; ini 1532 - É demitido por não con
1491 - Obtém privilégio de cia intensa vida diplomática e cordar com a subordinação do
viver na casa do cardeal Mor- administrativa. clero ao monarca inglês.
ton, arcebispo de Canterbury. 1513 - Escreve uma História de 1533 Henrique VIII casa-se
1492 - Ingressa na universidade Ricardo III, posteriormente com Ana Bolena e nasce a futu
de Oxford, Henrique VII asse aproveitada por Shakespeare. ra rainha Elizabeth I.
dia Bolonha e Rodrigo Bórgia Invasão da Inglaterra pelos 1534 - Escreve o Diálogo de
torna-se papa sob o nome de escoceses. Consolo contra a Opressão.
Alexandre VI. 1516 - Publica o texto latino da 1535 - É processado e final
1496 - É admitido em Lincoln ’s Utopia, em Lovaina. mente condenado à morte.
BIBLIOGRAFIA
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obras de More, com textos em latim e inglês, dirigida por R.S.Sylvester.)
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Hogrege, Pearl: The Sir Thomas More Circle, Urbana, Illinois, 1959.
Marc’hadour, G.: L Dnivers de Thomas More, Paris, 1963.
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OS PENSADORES
“Quando jovem, eu gostava de adornos; não tinha outro meio de realçar-me e a coisa
não me assentava mal. ” Eprovável que Montaigne tenha participado dos
divertimentos cortesãos, representados por Antoine Caron (1520-1600) em
“Festa no Castelo de Fontainebleau”. (Gal. Nacional da Escócia, Edimburgo).
s Eyquem constituíam uma família das. Aos poucos a família elevava-se atra
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Leitor assíduo de Sêneca, Montaigne
regozija-se em encontrar nele os lugares- ví 'BOnDEAKS.
comuns da sabedoria antiga, apresen Par S. Millanges Impritneur ordinaire du Roy.
tados em estilo nervoso, conciso e colori iM.D.LXXX.
do. Toma-lhe de empréstimo as máximas, .AVEC PRIKILEGE DK ROT,
metáforas e antíteses e, como o estóico
romano, procura familiarizar-se com
aquele sentimento da morte, adquirido
nos tempos de licenciosidade “em meio às De início, os Ensaios foram escritos para
mulheres e divertimentos”. Admirador si mesmo, “sem pensar na posteridade",
incondicional dos Opúsculos de Plutarco, mas em 1580 o próprio autor cuidou
é encorajado por esse outro estóico a da publicação dos dois primeiros livros.
exprimir opiniões sem preocupar-se com
assunto e composição. Nele tinha encon
trado um autor pelo qual sentia simpatia Comte, em poder dos huguenotes (nome
fraterna e, portanto, nunca mais o aban que, na França, nos séculos XVI e XVII,
donou. os católicos davam aos protestantes, espe
cialmente aos calvinistas). Isso lhe propi
ciava muito prazer, permitindo-lhe viver
Diplomacia e arte militar em companhia de homens nobres, jovens e
ativos que o entusiasmavam, como o entu
Abandonado seria o retiro na torre do siasmava também “a contemplação de
castelo em 1574, depois de dois anos tantos espetáculos trágicos, a liberdade
dedicados à redação da parte essencial do de conversar sem artifícios e de viver uma
Livro 1 e dos seis primeiros capítulos do existência viril e sem cerimônia”. A har
Livro II dos Ensaios. NeSse ano volta às monia da música guerreira parecia dis
tarefas de nobre, pois não era “inimigo da trair e aquecer-lhe os ouvidos e a alma,
agitação das cortes” e tinha inclinação fazendo-o pensar que “a morte é mais
para “dar-se muito bem na alta socieda abjeta, mais doentia e penosa no leito do
de”, contanto que pudesse dedicar-se a que em combate”. Os Ensaios ficarão,
essas tarefas em momentos que lhe aprou- depois, repletos de reminiscências de sons
vessem. No Bas-Poitou juntou-se ao exér de armas e planos estratégicos.
cito encarregado de retomar Fontenay-le- No mesmo ano Montaigne exerce tam-
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Reconstruído em 1884, o castelo de Montaicpie atesta uma fortuna que não
preocupava seu possuidor, pois nunca se deu ao trabalho de verificar títulos de
propriedade que deveria conhecer . . . não por desprezo filosófico pelas coisas
deste mundo . . . mas tão-somente por preguiça e negligência inconfessáveis”.
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go, pois este sempre fora adepto do lants”. O monumento funerário, hoje na
monarca. Montaigne é preso e jogado na Faculdade de Letras de Bordeaux, repre
Bastilha por algumas horas. Da prisão só senta-o deitado, vestido com armadura de
foi libertado por intervenção da rainha- cavaleiro, e dois epitáfios em grego e
mãe, Catarina de Médicis. latim celebram-lhe a sabedoria, os costu
mes, a eloqüência e o espírito.
Montaigne viveu numa época extrema
Filosofar é aprender mente conturbada, da qual refletiu algu
mas características fundamentais, espe
a morrer cialmente as mais contraditórias.
A primeira dessas características si-
Apesar do episódio inglório, a estada tua-se no plano econômico, social e polí
em Paris teve aspectos positivos. Serena tico das transformações que levaram à
dos os ânimos, Montaigne acompanhou a destruição da economia feudal da Idade
corte até Chartres, Rouen e Blois e, nessa Média e sua substituição pelas atividades
viagem, encontrou Mademoiselle de Gour- manufatureiras e de comércio. A primeira
nay, única mulher a quem se ligou profun metade do século XVI na França foi mar
damente, amando-a como uma filha. Ela cada por esse processo, notando-se cada
tinha vinte e três anos e amava-o com vez maior participação do Estado nos
devoção, editando-lhe as obras depois de assuntos econômicos. A família de Mon
sua morte. taigne constitui um exemplo típico dessa
O fim da vida anunciava-se através das época em que a burguesia ascendeu ao
crises de cálculos biliares, provável he primeiro plano da história social, so
rança paterna. A despeito dos sofrimentos frendo uma evolução que não se faz sem
cada vez maiores e da freqüente imobili- conflitos profundos.
zação no leito, Montaigne levantava-se A segunda característica vincula-se à
para divertir-se e até mesmo cavalgar. primeira e é representada pela destruição
Detesta os médicos e pretende tratar-se das formas de pensamento vigentes na
por conta própria. A jovialidade e o Idade Média e pela transição'para estru
humor galhofeiro não se alteram. Detesta turas de pensar diametralmente opostas
o “espírito rabugento e triste, que des ao teocentrismo medieval. O homem bur
preza os prazeres da vida e se apega às guês necessitava de uma nova ciência da
desgraças e nelas se espoja”. Até a falta natureza e de uma nova teoria da essência
de memória contribui para o diverti humana que lhe permitissem criar um
mento: os lugares e livros que revê sempre relacionamento diferente com o mundo e
são vistos como sorrindo em fresca novi com os semelhantes. A fonte para alimen
dade. Alguns novos amigos o entretêm, tar essa necessidade intelectual encontra
especialmente Mlle. de Goumay e Pierre va-se nos autores gregos e romanos esque
Charron, discípulo* e posteriormente siste- cidos ou condenados pelo espírito
matizador da filosofia cética aprendida medieval. Os antigos valorizavam a natu
com o mestre. reza sensível, não a viam como residência
Já não é mais tempo de sonhar com de pecado e degradação. Além disso,
ambições mundanas e cargos políticos, freqüentemente colocavam o homem como
embora não lhe faltem oportunidades, centro e obietivo da indagação racional.
graças aos triunfos obtidos por Henrique O retomo aos modelos e às fontes da
de Navarra, ao qual esteve sempre ligado Antiguidade levou à constituição do hu
politicamente. Limita-se então a dar a fei manismo renascentista, principal ali
ção final aos Ensaios, que continuamente mento espiritual de Montaigne e de outros
revê e aos quais aerescenta novos pensa filósofos da época.
mentos. Casou a filha Leonor, em 1592, e Uma terceira característica, associada
esperava pacientemente pela morte, com a intimamente às anteriores — apesar de
qual já se acostumara através da medita conflitiva em muitos pontos —, foi o movi
ção e do sofrimento. Ela chega em meio de mento de reforma religiosa, iniciado por
uma missa celebrada em seu próprio Lutero e liderado na França por Calvin o.
quarto, a 13 de setembro de 1592. No dia Os reformadores protestantes insubordi-
seguinte é sepultado na igreja “des Feuil- naram-se contra o domínio dos papas
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O ceticismo antigo
Todas essas dúvidas aparecem em Mon
taigne, propondo um enigma difícil de ser
decifrado. Seu pensamento vai e vem, dá
voltas inesperadas, esconde-se atrás de
meias palavras e alusões, não expressa
tudo, temendo levantar suspeitas e gerar
perseguições. Montaigne retrata a própria
vida dá consciência: o que pode haver de
mais complexo e assistemático?
Contudo, é possível extrair dos Ensaios
alguns esquemas básicos e compor um
quadro mais ou menos coerente de idéias.
Para isso a coordenada intelectual mais
evidente que se propõe é o ceticismo, do
qual Montaigne foi, sem dúvida, o maior
representante renascentista.
Essa não era uma novidade na história
da filosofia. Pelo contrário, o ceticismo
foi formulado, em suas linhas essenciais,
pelos antigos pensadores gregos e roma
nos. Formulações céticas encontram-se no
pensamento dos sofistas do século V a. C.
e mesmo antes, como em Xenófanes de
Colofônio. O sofista Protágoras de Abde-
ra, ao afirmar que “o homem é a medida
de todas as coisas”, teria estabelecido —
segundo uma interpretação que remonta a
Platão — a relatividade de todo conheci
mento. Se é possível discutir o alcance do
seu relativismo, parece certo, todavia, que
ele negava a possibilidade de o conheci
mento atingir a natureza (physis) das coi Quando Montaigne começou a estudar leis
sas, permanecendo adstrito ao plano da em Toulouse, Henrique If tomou-se rei e
convenção (nomos) humana. Outro sofis teve que enfrentar uma onda crescente
ta, Górgias de Leontinos procurou mos do calvinismo. (François Clouet,
trar que a idéia de ser é pelo menos tão “Henrique II”, Palácio Pitti, Florença.)
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“Certas pessoas, referindo-se à minha ação como prefeito de Bordeaux, acham que
me conduzi como alguém que náo se apaixona bastante; não estão muito longe
da verdade . . . Dessa apatia não se deauza qualquer incapacidade e menos ainda
qualquer ingratidão para com esse povo. ” (Residência de Montaigne em Bordeaux.)
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“Casei com trinta e três anos, mas acho que deveriamos fazê-lo aos trinta e cinco,
como suqere Aristóteles", ou então como Tales, que “fixou ainda melhor os
limites da idade. Na mocidade, respondeu à mãe, que insistia para que se casasse,
que ainda não era tempo; mais tarde, já maduro, objetou que já não era mais
tempo." (“Os Esposos Protegidos pelos Anjos", tapeçariafrancesa do século XV.)
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tão, mas encontrou defeitos fundamentais nar tão leve quanto possível a autoridade
nessas construções, que lhe pareceram do Estado. Para ele, o melhor governo
artificiosas e incapazes de serem coloca seria o que menos se faz sentir e assegura
das em prática. Para ele, as instituições a ordem pública sem pôr em perigo a vida
estabeleceram-se aos poucos pelo uso. De privada e sem pretender orientar os espíri
uma maneira ou de outra, o equilíbrio tos. Um tal tipo de governo é o que con
acabou por impor-se entre as forças, inte vém a homens esclarecidos, conscientes de
resses e apetites em jogo na vida humana, seus direitos e deveres e obedientes às leis
e com esses materiais é que se teria for da pátria e do príncipe, homens que agem
mado a sociedade. Ajuntem-se alguns ho não por temor mas por vontade própria.
mens e eles se ordenarão “como esses Montaigne não escolheu as instituições
objetos heterogêneos que pomos no bolso sob as quais viveu, mas resolveu respeitá-
e acabam por se ajeitar sozinhos”, melhor las, a elas obedecendo fíelmente, como
do que se pretendéssemos colocar ordem achava correto num bom cidadão e súdito
neles. Ainda que sejam ladrões e assassi leal. Que não lhe pedissem mais do que o
nos, encontrarão um meio de formar um exigido pela razão e pela cqnsciência.
Estado e outorgar-se um governo. As leis, Escravo da razão, transmitiu essa ser
para Montaigne, nascem do acaso ou de vidão cheia de perigos à filosofia que lhe
causas que escapam à razão; cumpre sucedeu e marcou uma linha de desenvol
obedecê-las, pois asseguram a ordem, vimento do pensamento ocidental. Com
mas não se deve ficar iludido sobre seu ela destruiu verdades dogmáticas e mos
valor intrínseco. Elas mantêm-se não por trou que todas se contradizem, mas dei
que sejam justas mas porque são leis. xou aberta a possibilidade de se concluir
Nisso residiria o fundamento místico de que a própria contradição possa ser
sua autoridade e esse constitui o seu único verdadeira. Numa certa medida foi o que
fundamento. viria a acontecer com Descartes: a sus
Se as instituições são filhas do costume pensão pirrônica do juízo, encontrada no
e se a política é uma arte rudimentar, o autor dos Ensaios, transformou-se na dú
melhor governo para cada país é o que vida metódica cartesiana e a análise do Eu
serve agora e vem servindo desde sempre. possibilitou a Descartes concluir “penso,
Os homens observam os inconvenientes da logo existo”.
situação presente e aspiram a mudanças Por outro lado, Pascal viria a se irritar
por meio da repressão dos abusos. Mas com Montaigne, chamando-o pejorativa
assim fazendo arriscam-se a abalar o mente de pirrônico puro. Apesar disso,
corpo social como um todo. Seria admis Pascal abarcou em síntese todas as
sível corrigir algumas imperfeições evi suas contradições, pois “não é em Mon
dentes, mas pretender refundi-lo inteira taigne mas em mim mesmo que se acha o
mente seria “remediar os defeitos que nele vejo”. Tomou-lhe de empréstimo
particulares pela confusão geral e curar a a argumentação sobre o homem, para vol-
doença pela morte”. tar-se contra ela e inverter completamente
o sentido dos Ensaios.
O século XVIII aproveitou-se em larga
Escravo» da razão medida de Montaigne. Montesquieu
(1689-1755) classificou-o entre os poetas
Montaigne foi um conservador, mas da filosofia e Voltaire colocou-o no exér
nada teve de rígido ou estreito, muito cito dos que atacam “1’Infâme”, a Igreja:
menos de dogmático. Por temperamento e “Montaigne, esse autor encantador, / ora
razão foi bem o contrário de um revolu profundo, ora frívolo, / de tudo duvidava
cionário; certamente faltaram-lhe a fé e a impunemente / e zombava mui livremente
energia de um homem de ação, o idea / dos estúpidos tagarelas da Escola”.
lismo ardente e a vontade. Seu conserva Mais tarde, o poeta romântico Chateau-
dorismo pode ser visto, sob certos aspec briand (1768-1848) atacou-o porque
tos, como o que no século XIX viria a ser “zombava da boa fé do leitor”, mas ape
chamado de liberalismo. Em sua concep sar >disso os Ensaios ressoam sutilmente
ção política o indivíduo é deixado livre nas suas Memórias cTAlém Túmulo.
dentro do quadro das leis e se procura tor Stendhal (1783rl842) consultou os En-
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satos para escrever o tratado Do Amor e mente, o texto do ensaio sobre os canibais
Béranger lastimava humoristicamente: numa passagem da Tempestade e uma
“Quantas idéias me roubou esse homem!” extensa linhagem de “ensaístas” escreveu
Fora da França, os admiradores e os em língua inglesa. O ensaísta e poeta
detratores foram muitos, formando um Ralph Waldo Emerson (1803-1882)-, nos
rico cortejo. Alfieri (1749-1803), Foscolo Estados Unidos, encontrou em Montaigne
(1778-1827) e Leopardi (1798-1837), na um mestre de vida e os Ensaios pareciam
Itália. Na Inglaterra, Shakespeare ter sido escritos por ele mesmo numa exis
(1564-1616) aproveitou, quase integral tência anterior.
CRONOLOGIA
1533 — Nasce a 28 de feverei 1555 — Calvino reprime pelo maso Campanella e Cláudio
ro. Calvino adere à Reforma. terror uma tentativa de revolta Monteverdi.
Henrique VIII casa-se com em Genebra. 1569 — Traduz a Teologia
Ana Bolena. 1556 — Pomponazzi publica Natural de Raymond Sebond.
1536 — Carlos V, imperador De Naturalium. . . Causis. 1571 — Recebe o colar da
do Sacro Império, invade a 1557 — Espanha e Inglaterra Ordem de Saint Michel e o títu
Provença. Francisco I da Fran em guerra contra a França. lo de Cavaleiro da Câmara do
ça confisca Flandres, Artoise e Conhece Etienne de la Boétie. Rei.
Charolais. 1559 — Morte de Henrique II, 1577 — Palestrina e Zoilo
1539 — Inicia os estudos no ascensão de Francisco II ao encarregam-se da revisão do
Colégio de Guyenne, em Bor trono francês e consequentes cantochão. El Greco pinta o
deaux, completados em 1546. conflitos entre o parlamento e o Altar de São Domingos.
1541 — Nascimento de Pierre poder real. Amyot traduz as 1580 — Publica em Paris os
Charron, posteriormente discí Fidas Paralelas de Plutarco. dois primeiros volumes dos
pulo e sistematizador do ceti Acompanha o rei, viajando Ensaios. É publicada Jerusalém
cismo de Montaigne. para Rouen e Blois. Libertada de Torquato Tasso.
1543 — São publicados De 1562 — Ronsard publica os 1581 — Viaja pela Itália e é
Revolutionibus Orbis Terra- Discursos sobre as Misérias de eleito prefeito de Bordeaux.
rum de Copérnicoe De Corpo- Nosso Tempo. As lutas religio 1582 — Gregório XIII refor
ris Humani Fabrica, escrito por sas transformam se em guerra ma o calendário. Giordano
Vessálio. civil na França. Bruno publica o livro De Um-
1545 — Início do concilio de 1563 — Deixa-se abalar com a bris Idearum.
Trento e da Contra Reforma. morte de la Boétie. 1585 — Deixa a prefeitura de
1546 — Michelangelo começa 1564 — Nasce Galileu. Bordeaux.
a decoração da Basílica de São 1565 — Casa-se com Fran- 1591 — Shakespeare escreve
Pedro. Tintoretto pinta a Apre çoise de la Chassaigne. Henrique VI. Campanella pu
sentação no Templo. Nascem 1566— É publicado o Método blica Philosophia Sensibus De-
Tycho Brahe e Cervantes. para Conhecimento da História monstrata.
1547 — Estuda Direito em de Jean Bodin. 1592 — Falece a 13 de setem
Toulouse. 1568 — Torna-se proprietário bro no castelo de Montaigne.
1553 — Du Bellay publica da senhoria de Montaigne com 1595 —Surge a edição póstuma
Antiguidades de Roma. a morte do pai. Nascem Tho- dos Ensaios.
BIBLIOGRAFIA
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Bernard Groethuysen : Anthropologie Philosophique, Librairie Gallimard, Paris, 1952.
224
OS PENSADORES
SNARK INTERNATIONAL
A revolução na astronomia realizada por Nicolau Copémico pareceu a Giordano
Bruno apenas uma confirmação das doutrinas encontradas nos escritos do culto
a Hermes Trismegisto, que divinizava o Sol como centro do Universo
(O sistema copemiciano representado por gravador anônimo, Biblioteca
Nacional de Paris.) Na página anterior: retrato de Bruno. (Arborio Mella.)
226
BRUNO
227
OS PENSADORES
228
BRUNO
publicar outros escritos sobre Lúlio e deixa Helmstadt e dirige-se para Frank-
contra os aristotélicos. A atmosfera furt-am-Main, onde permanece até a pri
favorável, contudo, começa a mudar com mavera do ano seguinte. Nessa cidade
a preponderância progressiva dos calvi- recebe insistentes convites para retornar
nistas, que já tinham criado problemas à Itália, por parte de um veneziano, cha
para ele em Genebra. mado João Mocenigo, que deseja conhe
Dirige-se então a Praga, onde perma cer os segredos da mnemotécnica. Pelo
nece por pouco tempo e, em 1588, desejo de rever a terra natal e de reinte
muda-se para Helmstadt, onde fica grar-se no seio da Igreja, Bruno acaba
durante um ano e meio, produzindo por atender à solicitação. Em agosto de
fecundamente. Ao cqntrário das obras 1591, chega à cidade de Pádua, onde
redigidas na Inglaterra, em italiano, em reencontra um fiel discípulo, Bessler, a
Helmstadt escreve em latim sobre diver quem dita duas obras: Sobre as Forças
sos assuntos: imagens, signos e idéias, Atrativas em Geral e Sobre os Selos de
mnemotécnica, magia e metafísica. O Hermes e de Ptolomeu. Em seguida,
mais importante, contudo, são três gran muda-se para Veneza, hospeda-se na
des poemas latinos: Sobre o Tríplice Mí casa de Mocenigo e começa a ensinar-
nimo e a Tríplice Medida, A Mônada, o lhe a arte de memorizar. O aluno, contu
Número e a Figura e Sobre o Imenso e do, decepciona-se, pois esperava conse
Inumerável ou Sobre o Universo e os guir do mestre algum conhecimento
Mundos. secreto que lhe permitisse alcançar a
Em junho de 1590, Giordano Bruno sabedoria definitiva.
229
OS PENSADORES
230
BRUNO
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23
OS PENSADORES
232
BRUNO
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SCALA
Em janeiro do ano de 1600, ao ouvir a sentença que ordenava a queima de seus
livros e sua morte na fogueira, Giordano Bruno declarou altivamente aos
juizes do tribunal da Inquisição: “Tendes talvez mais medo de proferir a
sentença contra mim do que eu em recebê-la”. (Frontispicios do Candelabro e
Dos Heróicos Furores, de Bruno, editados em 1582 e 1585, respectivamente.)
mitado, como afirmou Lucrécio (c. 98 a. refa de ordem cognitiva, mas sobretudo
C. — 55 a. C.) no poema Da Natureza, uma obrigação moral e religiosa.
repetindo a tese dos antigos atomistas Essas idéias ele as sintetizou numa
gregos. A Terra não seria o centro privi metafísica estética, bem ao gosto da
legiado do Universo, como mostrou a Renascença italiana e proveniente de
astronomia de Copérnico, e existiríam diversas fontes. Conceitos fundamentais
inumeráveis mundos habitados, como chegaram a Bruno a partir de Heráclito
também se lê em Lucrécio. e dos materialistas gregos. Outros ele
O homem é visto por Bruno como um mentos são aqueles que o ligam ao
ser privilegiado que reflete em si a tota neoplatonismo de Marcilio Ficino
lidade do Universo e é capaz, portanto, (1433-1499) e Pico delia Mirandola
de penetrar-lhe todos os segredos. A (1463-1494). A influência predomi
mente humana seria idêntica à mente di nante, contudo, foi a da antiga religião
vina que compõe o cerne de todas as coi egípcia do culto ao deus Toth, escriba
sas. Exercer as faculdades de imagina dos deuses, inventor da escrita e patrono
ção e memória (esta entendida no de todas as artes e ciências. A Hermética
sentido amplo de receptáculo de toda a (do deus grego Hermes Trismegisto,
vida espiritual), permitiria ao homem identificado com Toth pelos neoplatô-
ascender à verdades ocultas do Univer nicos) desempenhou papel fundamental
so. Fazer isso não seria apenas uma ta no pensamento de Bruno, com a ampla
233
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1548 — Giordano Bruno 1564 — Morte de Calvino. Ceia das Cinzas; Sobre a
nasce em Nola, perto de Nascimento de Galileu. Causa, o Princípio e o Uno;
Nápoles. 1565 — Em junho, Bruno Sobre o Infinito, o Universo
1550 — São publicados o veste o hábito de clérigo. e os Mundos e Despacho da
Tratado dos Escândalos de 1566 — Jean Bodin publica Besta Triunfante.
Calvino e as Odes de Ron- o Método para o Fácil Co 1585 — Publica Cabala do
sard. nhecimento da História. Cavalo Pégaso, O Asno Ci-
1551 — Reabertura do con 1575 — Bruno torna-se lênico e Dos Heróicos Furo
cilio de Trento. doutor em teologia. res. Regressa à França.
1552 — Nascimento do 1578 — Bruno publica So 1586 (?) — Bruno deixa a
poeta inglês Edmund Spen- bre os Sinais dos Tempos, França, preocupado com
ser. pequena obra que se perdeu. eventuais perseguições. Ob
1554 — Casamento de Ma 1579 — Bruno vai para To- tém a cátedra em Witten-
ria Tudor e Filipe de Espa losa, onde recebe o título de berg.
nha. Invenção do processo doutor em artes. 1587 — Maria Stuart é
de amalgamação para ex 1582 — Bruno escreve epu executada.
trair a prata. blica As Sombras das 1591 — Bruno regressa à
1555 — Os franceses pi Idéias, O Canto de Circe e Itália.
lham Havana e tentam esta Arquitetura e Comentário 1592 — É encarcerado pelo
belecer-se no Brasil. Calvi da Arte Combinatória de Santo Ofício.
no reprime uma tentativa de Raimundo Lúlio. 1596 — Nascimento de
revolta em Genebra. 1583 — Deixa Paris com Descartes.
1562 — Bruno muda-se pa destino às Ilhas Britânicas. 1600 — Bruno é condenado
ra Nápolis. 1584 — Escreve e publica e executado.
BIBLIOGRAFIA
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Tocco, Felice: Le Fonti piu Recenti delia Filosofia dei Bruno, Accademia Lincei, Roma,
1892.
234
‘ GALILEU
OS PENSADORES
O limite da audácia
A oposição de Galileu Galilei ao espí
rito teológico e metafísico acompanha
va-o havia muito tempo. Nascido em
Pisa, no dia 15 de fevereiro de 1564,
Galileu matriculou-se na Escola de Artes
da cidade natal para estudar medicina,
em 1581. Quatro anos depois, abando
na-a para dedicar-se exclusivamente à
matemática e, em 1589, torna-se cate-
drático dessa disciplina na Universidade Criados pela Contra-Reforma católica,
de Pisa. Nessa época começa a fazer as os tribunais do Santo Ofício tinham
primeiras investigações em física, parti como finalidade reprimir todas as idéias
cularmente em mecânica, tentando des consideradas perigosas pela
crever os fenômenos em linguagem ma hierarquia da Igreja. (Pedro
temática. Isso suscita violenta oposição Berruguete: “Auto de Fé na Presença
da ciência oficial, representada por de S. Domingos de Gusmão”, Museu do
seguidores de Aristóteles, que discor Prado, Madri.) Na página anterior:
dam da aplicação da matemática aos Galileu, por Justus Sustermans,
domínios da física. Essa nova orientação Palácio Pitti, Florença. (Fabbri.)
236
GALILEU
dialogo
D I
GALILEO GAL1LEI LINCEO
MATEMÁTICO SOPRAORD1NARIO
DEI.I.O STVDIO Pi PISA.
E Filofofo, e primário dcl
SERENÍSSIMO
GR.DVCA DI TOSCANA-
Duuc nc i congrefli<li quattrogiornate H difcorrc
k pra i due
PLESSNER INTERNATIONAL
IN HOr.ENZA, Per Gio:Batifla Landini MDCXXXJl.
CO.V Á/cí.VZ.i DL' SPPEUjORl.
metodológica seria a maior contribuição ção segundo a qual o Sol, como os de
de Galileu para a história das idéias. mais astros, seria um corpo composto de
Em 1604. Galileu elabora a lei da um único elemento, o éter.
queda livre dos corpos, fundamental A descoberta das manchas solares foi
para todo o desenvolvimento posterior criticada violentamente pelos teólogos,
da mecânica racional. Seis anos depois, que viam na tese de Galileu uma destrui
começa a fazer observações astronô ção da perfeição do céu e uma negação
micas, passando a trabalhar em Floren dos textos bíblicos. Galileu escreve,
ça, junto a Cosimo II de Médici. Em então, uma carta para seu aluno Bene-
1612, publica o Discurso sobre as Goi- detto Castelli, afirmando que as passa
sas que Estão sobre a Agua, no qual ridi gens bíblicas não possuem qualquer
culariza a teoria aristotélica dos quatro autoridade no que diz respeito a contro
elementos sublunares e do éter — supos vérsias de cunho científico; a linguagem
to componente único dos corpos celestes da Bíblia deveria ser interpretada à luz
e responsável por sua “perfeição-” — e dos conhecimentos da ciência natural. A
adota a concepção de Demócrito, ato- carta começou a circular em inúmeras
mista, do universo material. Mais uma cópias manuscritas e a oposição ao
manifestação antiaristotélica viria, em autor cresceu progressivamente. As au
161 3, na História e Demonstração sobre toridades, contudo, limitavam-se a ins-
as Manchas Solares, onde apóia a teoria truí-lo para que não defendesse mais as
de Copérnico e mostra o erro da concep idéias copemicianas do movimento da
237
OS PENSADORES
FABBRl
Para Descartes, Galileu “intenta examinar as matérias físicas mediante razões
matemáticas, e nisso estouperfeitamente de acordo com ele e não acho outro
meio de encontrar a verdade”. (Casa de Galileu em Arcetri,perto de Florença.)
Terra e estabilidade do Sol, por serem tados de suas primeiras experiências e
contrárias às escrituras sagradas. Du acrescentando algumas reflexões sobre
rante alguns anos Galileu permanece em os princípios da mecânica, essa obra
silêncio. Mas, em 1623, depois de pole seria a mais madura de todas que escre
mizar com um jesuíta sobre a natureza veu. No mesmo ano Galileu perde a visão
dos cometas, volta a ridicularizar as e espera o fim de seus dias, que só iria
teorias aristotélicas no livro O Ensaia- acontecer quatro anos depois, no dia 18
dor e começa a redigir o Diálogo sobre de janeiro de 1642.
os Dois Maiores Sistemas. Neste livro
confronta as idéias de Ptolomeu — Como investigar
segundo o qual a Terra seria estática e o a natureza?
Sol giraria em torno dela — e de Copér-
nico, que afirmava exatamente o contrá Galileu tornou-se o criador da física
rio. Porque nenhum editor desejava cor moderna, quando enunciou as leis funda
rer maiores riscos, a obra só seria mentais do movimento; foi também um
publicada em 1632. Foi quando o perigo dos maiores astrônomos de todos os
se declarou: em outubro do mesmo ano, tempos, pelas observações pioneiras que
o autor é convocado para enfrentar um fez com o telescópio. Essas descobertas,
tribunal do Santo Ofício. contudo, foram resultado de uma nova
Condenado em junho de 1633, Galileu maneira de abordar os fenômenos da
é obrigado a abjurar suas teses, sob natureza e nisso reside sua importância
Íiena de ser queimado como herege. Pre- dentro da história da filosofia. No
ère viver e se retrata, mas não se ficou campo das idéias filosóficas, Galileu é
sabendo exatamente em que termos. mais importante pelas contribuições que
Sobre o acontecimento correram versões fez ao método científico do que propria
muito diferentes, às vezes contraditó mente pelas revelações físicas e astronô
rias. Seja como for, Galileu continuou a micas encontradas em suas obras.
viver e, em 1638, publica clandestina- O primeiro princípio do método gali-
mentê o Discurso a Respeito de Duas leano é a observação dos fenômenos, tais
Novas Ciências. Recapitulando os resul como eles ocorrem, sem que o cientista
238
GALILEU
SCALA
Galileu consiste na experimentação. Se
gundo esse princípio, nenhuma afirma
ção sobre fenômenos naturais, que se
pretenda científica, pode prescindir da
verificação de sua legitimidade através
da produção do fenômeno -em determi
nadas circunstâncias. Em obediência a
esse preceito, certa vez Galileu subiu à
torre de Pisa e deixou cair dois corpos
livremente, a fim de mostrar como era
incorreta a afirmação do senso comum
(endossada pelos aristotélicos) de que a
queda livre dos corpos depende de suas
massas e de que suas velocidades seriam
diferentes.
O terceiro e último princípio da meto
dologia galileana estabelece que o corre
to conhecimento da natureza exige que
se descubra sua regularidade matemá
tica. Foi o que Galileu fez, por exemplo,
ao revelar que a velocidade adquirida
por um corpo que cai livremente, a par
tir do repouso, é proporcional ao tempo
e que o espaço percorrido é proporcional
ao quadrado do tempo empregado em
percorrê-lo.
Formulando esses princípios, Galileu
estruturou todo o conhecimento cientí
fico da natureza e abalou os alicerces
que fundamentavam a concepção medie
val do mundo. Destruiu a idéia de que o
mundo possui uma estrutura finita, Alto-relevo de Andréa Pisano,
hierarquicamente ordenada e substi- representando a astronomia;
tuiu-a pela visão de um universo aberto, Museu Opera dei Duomo, Florença.
indefinido e até mesmo infinito. Em Instrumentos de Galileu, Museu de
lugar de conceber o múndo como divi- História da Ciência, Florença.
239
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1564 — Galileu Galilei nas 1607 — Galileu escreve a do para depor perante o car
ce em Pisa, a 15 de feverei Defesa contra as Calúnias e deal Belarmino. Um decreto
ro. Nasce Shakespeare. Imposturas de Baldessar da Sagrada Congregação do
1581 — Galileu ingressa na Capra. Index proíbe a obra de Co
Universidade de Pisa, para 1609 — Aperfeiçoa o teles pérnico. Galileu retorna a
estudar medicina. cópio. Florença, em junho.
1584 — Galileu inicia seus 1610 — Descobre os satéli 1623 — Galileu inicia o
estudos de matemática. tes de Júpiter. Escreve o Diálogo sobre os Dois
1585 — Abandona a uni Mensageiro Celeste. Maiores Sistemas.
versidade sem obter grau. 1612 — Publica o Discurso 1632 — O Diálogo é im
1589 — Galileu obtém a cá sobre as Coisas que Estão presso em fevereiro. Em ou
tedra de matemática em Pi sobre a Água e a História e tubro, Galileu recebe ordem
sa. Demonstrações sobre as de apresentar-se em Roma.
1592 — É nomeado para a Manchas Solares. O domini 1633 — Apresenta-se em
cátedra de matemática na cano Lorini denuncia a dou Roma, em abril. Em 22 de
Universidade de Pádua. trina de Copérnico como junho abjura e o processo se
1600 — Da união de Gali herética. encerra.
leu com Marina Gamba 1615 — Lorini aponta Gali 1638 — Galileu publica o
nasce Virgínia. É publicado leu ao Santo Ofício. Discurso sobre Duas Ciên
o Mysterium Cosmographi- 1616 — Galileu escreve o cias Novas.
cum de Kepler. Condenação Discurso sobre q Fluxo e 1642 — Morre a 18 de
e morte de Giordano Bruno. Refluxo do Mar. É convoca- janeiro.
BIBLIOGRAFIA
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1910.
240
OS PENSADORES
B
lu profecia ab Orca
verftü Occnfum, per lismo de Demócrito, bem como temas
manum Afyriorum, políticos. Entre outras, escreveu Sobre a
Medorum , Perfi- Monarquia dos Cristãos (1593), Sobre a
rtim , Gracorum & Romanorum , Hierarquia Eclesiástica (1593), Discur
(qui ab aquilâ Imperiali in triz sos aos Príncipes da Itália (1595) e Diá
capita partiti fuerunt,) pervenit logos Políticos Contra Luteranos, Calvi-
tandem ad Hifpanos : quibuí, poft nistas e Outros Heréticos (1595).
ditcturnam fervitutem & direm- Na Calábria, Campanella sensibili
ptionem <, fato univerfa concejft zou-se com a miséria da população e
cft, majori cum admiratione quam tornou-se líder intelectual de um complô
pricefforibm ejm, adqtiam illa et- político, que as autoridades acabaram
iam, ut eft rerum humanarum vi- por descobrir. Preso em 6 de setembro
A cifft- de 1599, era agora acusado não só de
heresia, mas também de sedição. Condu
zido a Nápoles, sofreu torturas para
“O século futuro nos julgará, porque confessar sua participação no movimen
o atual sempre crucifica os seus to, mas não se submeteu; conseguiu
benfeitores; mas depois ressuscitamos, simular loucura e, com isso, salvar-se da
ao terceiro dia ou ao terceiro pena de morte. Contudo, foi condenado à
século. ” (Retrato de Tommaso prisão perpétua, em 1602.
Campanella por Francesco Cozza e Nos primeiros tempos de prisão — na
página inicial de uma de suas obras qual permanecería durante 24 anos —
políticas, editada em 1640; Bibl. Gampanella procurou conciliar suas
Trivulziana, Milão.) Na página idéias com a autoridade da Igreja.
anterior: estátua de Campanella. Escreveu então A Cidade do Sol, em que
242
CAMPANELLA
descreve uma república ideal governada pensar verdadeiro. Ainda como precur
pela razáo. Além disso, compôs uma sor de Descartes, afirmou o princípio da
série de poemas, talvez os mais originais autoconsciência como base do conheci
da literatura italiana de sua época. mento e da certeza. Por outro lado,
Em 1609, redigiu uma obra sobre o muito antes dos filósofos idealistas,
paganismo, porém mais importante é a desenvolveu a doutrina segundo a qual
Metafísica, escrita, entre 1602 e 1603, identificam-se o conhecer e o ser. Em ou
da qual chegou aos dias de hoje uma tra tros termos, Campanella admite que se
dução latina publicada em 1638. Quan possa desvendar a estrutura das coisas e
do Galileu foi condenado, em 1616, a essência do Universo através da inspe
Campanella escreveu Apologia de Gali ção dos conteúdos da consciência.
leu, defendendo os direitos da ciência Para ele, essa inspeção revela, antes
frente à religião. Não parou aí, contudo, de mais nada, que o homem é um ser que
sua produção intelectual, apesar de existe, que é capaz de conhecimento e
encarcerado. Os trinta livros da Teolo que tem vontade. Assim, a existência, o
gia (1613-1614) reconsideram os dog conhecimento e a vontade seriam os atri
mas católicos à luz de sua metafísica e butos fundamentais de todo e qualquer
as conseqüências políticas dessas idéias ser. Esses atributos seriam encontrados
encontram-se em Por que a Terra Toda também no ser supremo, Deus, do qual
Pode Lembrar-se . . ., onde Campanella, derivariam todas as coisas que se encon
não obstante estivesse preso pela Igreja, tram na natureza.
defende a tese de que todas as nações No que diz respeito à moral, Campa
devem aceitar a religião cristã. No cár nella afirma que o supremo bem consiste
cere redigiu ainda vários escritos sobre na autopreservação, entendida não num
astrologia e memoriais ao papa para que sentido puramente egoístico, mas como
fosse libertado. conservação da existência do homem em
Isso só foi conseguido em 1626. Diri- Deus, na vida futura. Conseqüentemente,
ge-se então a Roma e é chamado pelo Campanella identifica o ser bom com o
papa para realizar práticas mágicas e ser simplesmente, da mesma forma como
astrológicas. Na ocasião, procura fazer identifica ser e conhecer. Para ele, Deus
com que suas idéias de unificação polí é o supremo ser e o supremo bem, em
tica de todo o mundo sob a égide da direção ao qual o homem deve dirigir
Igreja sejam aceitas. Não conseguindo, todos os seus atos.
viaja à França, onde tinha grandes ami As idéias políticas, no entanto, consti
zades entre filósofos como Gassendi e tuem a parte mais conhecida do pensa
Mersenne. Ê recebido cordialmente pelo mento de Campanella. Em diversas
cardeal Richelieu e pelo próprio Rei obras, advogou o estabelecimento de
Luís XIII. Cuida da publicação de suas uma monarquia universal, tendo o papa
obras e permanece em Paris até a morte, como supremo governante espiritual e
no dia 23 de março de 1639. temporal. A Cidade do Sol contém o
esquema de um Estado ideal, inspirado
A Cidade do Sol na República de Platão e na Utopia de
Thomas More. O povo de A Cidade do
Campanella escreveu grande número Sol organiza toda sua vida segundo a
de obras, nas quais misturam-se gramá ordem da natureza, divide comunitaria-
tica, política e filosofia com medicina, mente seus bens materiais e suas mulhe
magia e astronomia. De todo esse acer res. A administração seria feita por uma
vo, é possível retirar algumas idéias que rede de funcionários, encarregados de
permaneceram válidas e outras que organizar e transmitir o saber e as técni
constituíram antecipações importantes cas. Os funcionários seriam, ao mesmo
dentro da história da filosofia. tempo, sábios e sacerdotes, embora não
Destaque especial merece sua teoria fossem cristãos. Campanella afirma, no
do conhecimento. Adiantando-se a Des entanto, que A Cidaae do Sol está tão
cartes, Campanella foi o primeiro filó próxima do cristianismo que bastaria
sofo moderno a estabelecer a dúvida uni juntar-lhe os sacramentos para tomá-la
versal como ponto de partida de todo totalmente cristã.
243
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1568 — Tommaso Campa- 1593 — Campanella publi 1600 — É forçado, sob tor
nella nasce em Stilo, na Ca ca A Monarquia dos Cris tura, a confessar sua partici
lábria, a 5 de setembro. tãos e Sobre a Hierarquia pação na conspiração
Nascimento do compositor Eclesiástica. Molina publica 1602 — Campanella escre
Monteverdi. Da Justiça e do Direito. ve A Cidade do Sol.
1576 — Bodin publica A 1594 — O Parlamento de 1603 — Shakespeare publi
República. Nasce São Vi Paris bane os jesuítas. ca Hamlet. Henrique IV
cente de Paula. 1595 — Campanella publi reintroduz os jesuítas na
1583 — Campanella entra ca o Diálogo Político contra França.
para a ordem dominicana. Luteranos, Calvinistas e 1608 — Nascimento de
1584 — Morte de Ivã, o outros Heréticos e os Dis Milton e do padre Antônio
Terrível. cursos aos Príncipes da Itá Vieira.
1585 — Nascimento de lia. 1616 — Campanella escre
Jansênio. 1596 — Publicação do So ve Apologia de Galileu.
BRASIL
1587 — Criação da impren nho de uma Noite de Verão, 1621 — Nascimento de
sa vaticana. Maria Stuart é de Shakespeare. Jean de La Fontaine.
executada. 1598 — E publicado Arca- 1623 — Nascimento de
-
1589 — Campanella viaja dia do teatrólogo Lope de Pascal.
SÃO PAULO
para Nápoles. Vega. O holandês Van 1635 — Campanella publi
1591 — Publica Filosofia Noort inicia a volta ao mun ca Monarquia das Nações.
Demonstrada pelos Senti do, completada em 1600. 1636 — Edita o projeto de
dos. É editado o Henrique 1599 — Nasce Cromwell. uma Reformulação das
VI, de Shakespeare. Campanella torna-se o líder Ciências, em cinco tomos.
E INDUSTRIAL
1592 — Nascimento do fi de uma conspiração na Ca 1639 — Morre a 26 de
lósofo Pierre Gassendi. lábria. março.
BIBLIOGRAFIA
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mento, Florença, 1925.
Firpo, LuIGi: Appunti Campanelliani in Giomale Critico delia Filosofia Italiana, Roma,
-
1952.
244
OS PENSADORES
rancis Bacon foi chamado de “pri civilização ocidental. Bacon viveu numa
246
BACON
247
OS PENSADORES
com as leituras, o tipo de vida e as com os mais altos cargos do reino. Antes que
panhias do filho, mesmo quando este já isso acontecesse, viu-se subitamente sem
era adulto. O culto religioso familiar, fortuna. Logo depois de chegar à Fran
que ela estimulava e no qual a leitura ça, maus negócios feitos pelo pai obriga-
diária da Bíblia era ato obrigatório, dei ram-no a prover sozinho a própria
xou marcas profundas até no estilo lite subsistência. Retornou então à Ingla
rário de Bacon. Esses aspectos contradi terra e ingressou em Gray s Inn, espécie
tórios da formação de Francis Bacon de corporação que abrigava os advoga
permitiríam explicar, segundo vários dos londrinos e, ao mesmo tempo, escola
historiadores, aspectos fundamentais de de Direito. Concluiu o curso em 1 582 e
sua vida e de sua obra. passou a exercer a profissão. Dois anos
Em 1573, com a idade de 12 anos, depois, foi eleito deputado do Parla
Bacon ingressou no Trinity College da mento inglês e, em 1 589, voltou a Gray’s
Universidade de Cambridge, escola pre Inn, desta vez como professor.
ferida pela nova nobreza e pelos novos A carreira política continuou bri
funcionários do Estado. Em Cambridge, lhante e Bacon, em pouco tempo, rece
Bacon permaneceu até 157 5, adquirindo beu o título de conselheiro da Coroa. Em
sólidos conhecimentos de Filosofia anti 1 593, discursando na Câmara dos Co
ga e escolástica. No dizer de seu secretá muns, fez críticas mordazes acerca de
rio, capelão e biógrafo, William Rawley, impostos exigidos pela Rainha Eliza-
o futuro filósofo e chanceler “sentiu beth. Depois disso, a soberana recusou-
aversão pela filosofia de Aristóteles, não se a nomeá-lo para as funções de Assis
porque o autor carecesse de valor, uma tente de Procurador Geral da Coroa e
vez que sempre lhe reconheceu as maio Procurador da Coroa. Em compensação,
res qualidades, mas pela infecundidade o conde de Essex, seu protetor, faz-lhe
do método, sendo uma filosofia . . . apro doação de um belo solar e um parque em
priada para disputas e contendas, mas Twickenham, às margens do Tâmisa.
estéril para a produção de obras que Em Twickenham, Bacon dedicou-se
visem a beneficiar a vida do homem . . .” exclusivamente ao trabalho intelectual e
Ao mesmo tempo, Bacon dava-se redigiu os Ensaios, que o situam entre os
conta do incremento que se processava clássicos da literatura inglesa. A obra
desde os fins da Idade Média. Esse teve ampla difusão, revelando um espí
incremento ele conheceu através de vá rito jovial, perspicaz, ao mesmo tempo
rias obras, como a de mineralogia e mundano e cultivado em letras clássicas
metalurgia de Biringuccio (1480-1539), e assuntos bíblicos. Segundo a maior
Sobre a Pirotecnia, e jia de Rodolfo parte dos críticos, os Ensaios constituem
Agrícola (1494-1555), Sobre as Coisas o retrato mais real de Bacon. Encerram
Metálicas. Conheceu também os Discur um repositório de conhecimentos teóri
sos Admiráveis de Bernard Palissy cos das paixões e da natureza humana,
(1510-1589), sobre química, geologia, aproximando-se do maquiavelisino.
agricultura e outros assuntos. Posterior Esse maquiavelismo, que se esconde
mente, em sua principal obra, o Novum nas entrelinhas das opiniões dos En
Organum, Bacon expressará entusiasmo saios, foi uma constante na vida real do
pela técnica, afirmando que as desco autor. A estória de suas ligações com o
bertas da pólvora, da imprensa e da agu conde de Essex é significativa nesse sen
lha de marear (bússola) “mudaram o tido. Boa parte de sua ascensão política
aspecto das coisas em todo o mundo”. foi devida à proteção do conde, mas
Bacon não teve dúvidas em colaborar
O futuro chanceler ativamente para sua execução, quando o
antigo protetor caiu em desgraça junto à
Em 1577, dois anos depois de con Rainha Elizabeth e, por isso, tornou-se
cluir os estudos em Cambridge, o pai de inútil aos propósitos ambiciosos do ex-
Bacon enviou-o à França, para trabalhar protegido. O conde de Essex foi acusado
junto ao embaixador Sir Amyas Paulet. de traição e a soberana incumbiu Bacon
Começava, assim, a carreira política e de preparar a acusação legal. O autor
diplomática, na qual Bacon alcançaria dos Ensaios desenvolveu gestões junto a
248
BACON
Francis Bacon nasceu e iniciou sua vida política durante o governo da Rainha
Elizabeth I. Admirada pelo seu povo e pelo próprio papa, que a excomungou,
a soberana consolidou o absolutismo e no seu reinado floresceram o comércio
e a indústria. Na história da cultura, o período elisabetano é de especial
importância, pois viu o Renascimento italiano prolongar-se na Inglaterra.
249
]
OS PENSADORES
250
BACON
Saber é poder
Bacon terminou seus dias traba
lhando da maneira como sempre reco
mendou àqueles que quisessem saber
algo de verdadeiro a respeito da nature
za: pesquisando experimentalmente. ()
que projetara teoricamente na Grande
Instauração procurou realizar na práti
ca. Não chegou a descobrir qualquer
coisa nos domínios dos fenômenos natu
rais, mas deixou indicado, naquele pro
jeto formulado duas décadas antes da
sua morte, um novo caminho para o
conhecimento científico.
O plano da Grande Instauração com
preendia seis partes: a primeira era uma
classificação completa das ciências exis
tentes; a segunda, a apresentação dos
princípios de um novo método para con
duzir a busca da verdade; a terceira, a
Em vista dos mistérios que cercam a coleta de dados empíricos; a quarta,
vida de Shakespeare (tela da Galeria uma série de exemplos de aplicação do
Nacional de Retratos, Londres), houve método; a quinta, uma lista de generali
quem atribuísse suas obras a Bacon. zações de suficiente interesse para mos
(Gravura de uma edição de 1665.) trar o avanço permitido pelo novo méto-
251
OS PENSADORES
^Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o
conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostentação,
infligiram grande dano, tanto àfilosofia, quanto às ciências. Pois, fazendo
valer sua opinião, concorreram para interromper e extinguir as investigações. ”
(Burghley House, Northamptonsnire, exemplo da arquitetura da época de Bacon.)
252
BACON
EíTayes.
Religious Meditations.
Places ofperfwafion and
diíTwaíion.
At Lokdon,
Printed for Humfrey Hooper, and are
to be foi d at the blacke Bearc
in Chauncery Lane.
H 9 7-
254
BACON
2 55
OS PENSADORES
2 56
BACON
257
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258
BACON
Voltaire sobre Novum Organum: ‘7? o andaime com que se construiu a nova
filosofia; quando o edifício foi levantado . . . o andaime não serviu para mais
nada. Bacon ainda não conhecia a natureza, mas sabia todos os caminhos que
conduzem a ela”. (O cientista William Gilbert, contemporâneo de Bacon,
fazendo uma experiência diante da Bainha Elizabeth; tela de Acland Hunt.)
2 59
OS PENSADORES
mais importantes sâo as solitárias (cor ficado que se deve atribuir àquela pala
pos iguais em tudo, diferindo com rela vra. Em alguns textos, Bacon concorda
ção a somente uma característica); as com a idéia de Platão segundo a qual as
migrantes (casos em que a natureza se formas são os “verdadeiros objetos do
manifesta repentinamente; brancura da conhecimento”. Contudo, isso não quer
água espumosa, por exemplo); as osten dizer que o autor do Novum Organum
sivas (quando uma certa característica é aceite a existência de um plano trans
particularmente evidente, como o peso cendente de idéias puras. Toda a obra de
do mercúrio); as analógicas (um fenô Bacon é um atestado eloqíiente contra
meno pode esclarecer outro). Entre todas tal concepção. As formas baconianas
as instâncias prerrogativas, sobres- pertencem ao mundo empírico. Noutros
saem-se as cruciais, aqueles casos deci textos, ele fala da forma como ipsissima
sivos que obrigam o investigador a optar res, coisa real ou realidade por excelên
entre duas explicações diametralmente cia; outras vezes, como “fonte da qual
opostas, que são referentes a um mesmo uma certa coisa emana”; outras ainda,
fenômeno. como “leis de realidade absoluta que
Ao formular a teoria da indução, ou, governam e constituem qualquer natu
mais exatamente, ao descrever com reza simples”. Essa diversidade de acep
minúcia todos os cuidados, procedi ções, demasiado mescladas com a filoso
mentos e técnicas para a investigação fia escolástica, da qual Bacon nunca se
dos fenômenos naturais, Bacon, embora libertou completamente, tem feito de sua
não tenha criado a ciência moderna, foi teoria das formas um assunto especial
seu arauto, na opinião de Léon Brunsch- mente controvertido. Contudo, deixan
vicg. A indução não era desconhecida do-se de lado a terminologia escolástica
dos antigos, mas com Bacon ganha uma e situando-se dentro do conjunto mais
amplitude e eficácia muito maiores. amplo de sua vida e sua obra, pode-se
Aristóteles já tratara da indução, mas admitir como mais correta a interpre
se restringiu a seus aspectos puramente tação da forma como, sobretudo, lei e
formais. Para o pensador grego, aquele causa dos fenômenos naturais.
método consiste em, dada uma coleção Segundo Bacon, nos fenômenos natu
de fenômenos ou coisas particulares, rais há duas faces diversas. Por um lado,
extrair o que existe de geral em todos e eles possuem uma certa disposição,
emcadaum deles.Opõe-se,assim, à dedu conformação ou estrutura (esquema-
ção, entendida como o caminho metodo tismo latente, na terminologia baconia
lógico que permite descer do geral ao na). Por outro lado, possuem um aspecto
particular. Em outros termos, a indução dinâmico, que os faz apresentarem-se
aristotélica limita-se a uma coleção em permanente transformação (processo
controlável de inçjivídups. latente). Ambos os aspectos sâo conexos
Para Bacon, a indução torna-se ampli- e têm como princípio a “forma”, princi
ficadora, isto é, parte-se de uma coleção pio essencial de individuação e lei que
limitada de fatos e o que se descobre rege a geração, ou produção, e o movi
como válido para eles é estendido a mento dos fenômenos.
todos os análogos, ainda que não tenham Segundo vários intérpretes, Bacon
sido pesquisados um por um. A indução aproxima-se, assim, daquilo que outros
aristotélica apenas ordena o já conhe filósofos posteriores (Locke, por exem
cido e por isso é tautológica; a indução plo) chamariam propriedades primárias
baconiana amplia o conhecimento, avan da matéria, por oposição às qualidades
çando de fato o saber. secundárias. As propriedades primárias
seriam a extensão, a figura, o número e
Que são as formas? a impenetrabilidade. Bacon não chega a
formular tal teoria, mas fica bastante
O ponto final da indução é designado, claro em seus textos sobre as formas que
pelo próprio Bacon, pela palavra o autor pensara naquelas propriedades
“forma”. Toca-se aqui num dos pontos essenciais dos objetos, sem as quais eles
mais controvertidos de seu pensamento e deixariam de ser objetos.
os intérpretes divergem quanto ao signi Admitindo-se como válida essa apro-
260
BACON
O paraíso na terra
Nos últimos anos de vida, Bacon com
pôs uma pequena obra, editada postu
mamente, em 1627, por William Raw-
ley. Intitula-se Nova Atlântida, e essa
designação tem significado simbólico,
contrapondo-se à Atlântida mencionada
“Nosso método, contudo, é tão fácil na República de Platão, da mesma
de ser apresentado, quanto difícil de forma como o Novum Organum contra
aplicar." (Retrato de Bacon e põe-se ao Organon aristotélico.
frontispício do Novum Organum, ed. de A Nova Atlântida é algo muito diverso
1645, Bibl. Nac. Braidense, Milão.) da imaginada por Platão; é uma espécie
261
OS PENSADORES
262
BACON
roso pessoal técnico, as várias etapas do obra individual, mas coletiva, exigindo
trabalho científico. De grande interesse um verdadeiro exército de pesquisa
é a insistência de Bacon em descrever o dores que devem recolher material para
imenso aparato exigido pelo trabalho de os intérpretes; a ciência é investigação
pesquisa científica. Aparelhos de todo empírica, nascida do contato com o real
tipo, edifícios elevados e túneis estão à e não oriunda de teorias afirmadas a
disposição dos pesquisadores da Casa de priori; a ciência tem sentido eminente
Salomão e abrangem todas as varieda mente prático, aumentando a duração da
des de aspectos da realidade natural, vida, curando as doenças, fabricando
sob as mais diversas condições. máquinas de todos os tipos, inclusive
A instituição científica está vinculada engenhos para voar e percorrer as águas
diretamente a todas as demais institui submarinas.
ções da comunidade: ao hospital, à Além de seu interesse no gênero (como
usina energética, ao centro agrícola. A utopia), a Nova Atlântida de Bacon é um
Casa de Salomão é exemplo claro da clássico da língua inglesa, vasado no
ciência operativa, exposta no Novum mesmo estilo direto e simples, pouco
Organum. Na Nova Atlântida, a ciência mais tarde tornado exemplar em Daniel
não é apresentada como exercício de Defoe e Jonathan Swift. No dizer de
gabinete ou atividade contemplativa, Macaulay (1800-1859), a Nova Atlân
mas luta árdua e diária com a natureza. tida é obra de “sabedoria serena e
Os traços proféticos do pensamento de profunda”. Nela, Bacon realizou imagi-
Bacon ficam evidentes nas poucas pági nariamente aquilo com que sempre so
nas da Nova Atlântida: a ciência não é nhou mas não conseguiu concretizar.
263
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
BRASIL.
Inglaterra. Gray ’s Inn. chanceler e barão de Veru-
1573 — Bacon ingressa no 1596 — Nasce Descartes. lam.
Trinity College do Universi 1597 — Bacon publica os 1620 — Publica o Novum
-
dade de Cambridge. Ensaios. Organum.
SÃO PAULO
1575 — Abandona a Uni 1599 — Nasce Cromwell. 1622 —Publica a História
versidade em dezembro. 1600 — Condenação e exe Natural.
1576 — Ingressa na Grays cução de Giordano Bruno. 1623 — Surge Sobre a Dig
Inn, escola de Direito. É criada a Companhia In nidade e Desenvolvimento
1577 — Viaja para a Fran glesa das índias Orientais. das Ciências de Bacon. Nas
-
E INDUSTRIAL
ça. Drake inicia sua viagem 1603 — Morte de Elizabeth ce Pascal.
ao redor do mundo. I. Ascende ao trono Jaime I. 1626 — Bacon morre no
1579 — Bacon retorna à Bacon recebe o título de Ca dia 9 de abril.
Inglaterra. valeiro de Jaime I. 1627 — É publicada postu
1580 — Retoma seus estu 1605 — Publica Da Profi mamente Sylva Sylvarum de
dos na Gr ay ’s Inn. ciência e do Progresso do Bacon, contendo a Nova
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o COPYRIGHT
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