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Laboratório de composição de imagem-ritual

Estudo da fotografia a partir de uma perspectiva afrodiaspórica


Fotografias feitas por pessoas negras, com pessoas negras e para pessoas negras:
Por uma estética da penumbra

Para falarmos de uma escrita com a luz (foto= luz; grafia= escrita), nos afastaremos do
pensamento fotográfico europeu cujo estudo foi historicamente planejado para iluminar
pessoas de pele branca.
A lógica da iluminação ocidental funciona a partir de dois pontos:
O primeiro ponto: a história da iluminação no ocidente é sempre efetuado a partir de um
recorte feito com a luz branca, onde o/a protagonista branco/a recebe o foco de luz. Em
segundo plano ficam todas as outras figuras que recebem menos luz. A lógica da
iluminação ocidental funciona, portanto, a partir de re-cortes cujos bolsões de luz
arquiteturará um sistema de centro/periferia que dirá quem é o centro (bem iluminado) e
quem é a periferia (penumbra). Resumindo: nesse sistema, o que é importante é mais
iluminado.
Segunda ponto: é importante dizer que, nesse modo de iluminação pela luz branca, tudo
o que for mais claro refletirá mais luz e, logo, ficará melhor iluminado . Ou seja, quando
se trata de iluminar pessoas, o re-corte feito pelo sistema de iluminação ocidental
privilegiará sempre o tom de pele mais claro. A estética da iluminação repetirá a lógica
sócio-cultural onde o privilégio é das pessoas brancas.
Nos reposicionarmos diante da luz e, com parâmetros pautados nas tradições
afrodiaspóricas, pensaremos o valores de luminância da cena a partir do grau de
penumbra ou de luz negra, tensionando a equação quase inquestionável foco de
luz=centro da cena.

Sabemos que o investimento tecnológico que melhorou a qualidade das imagens de


pessoas negras retintas nas fotografias não aconteceu para favorecer a negritude. Os
estudos de Lorna Roth apontam que década de 1960 a empresa Kodac só passou a
produzir químicas que relevassem com melhor qualidade as fotos com tons mais escuros
a partir da exigência das indústrias de chocolate e das indústrias madeira (Questão de
pele –). As pessoas brancas, ricas e donas das indústrias de chocolate precisavam de
que o tom da barra de chocolate amargo aparecesse nas fotografias diferentemente do
tom da barra de chocolate ao leite. De igual forma, foram os brancos ricos donos das
madeireiras que pressionaram a indústria fotográfica a desenvolver tecnologia que
deixassem visíveis os contrastes entre os veios mais escuros e mais claros de suas
madeiras. A demanda de pessoas negras que desejavam maior qualidade nas suas
imagens não era ouvida.
A lógica com que a escrita com a luz (fotografia) está posta no ocidente é a lógica
sócio-política da branquitude. Desenvolvida nas anos de 1920, a iluminação
holliwoodiana se tornará norma mundial para pensar o modo de fotografar , inscrevendo
na história da fotografia uma prática na iluminação baseada em um princípio da
visibilidade. . A branquitude é a norma que direciona a inovação tecnológica em
diferentes momentos na história.

A fotografia ao longo da história do cinema serviu para ordenar o espaço dizendo o que
deve e o que não deve ser visto. A iluminação nas produções fotográficas no ocidente
funciona a partir de um regime de visibilidades que circunscreve a função da luz como
aquilo que vai dizer o que é e o que não é importante ser visto. A iluminação na
fotografia tornar-se-á responsável por uma verdadeira ordenação dos corpos no espaço
cujos pressupostos estão embasados numa cultura racista, pois trará implicitamente a
centralidade da pessoa de pele branca para seu desenvolvimento tecnológico

“Fotografar pele negra é difícil”.


Torna-se importante que através dela coloque-se em debate uma questão que fica
sempre à margem: de que se trata o “problema” de se fotografar pessoas negras? Quais
campos de forças são tensionados entre os dispositivos fotográficos, o fotógrafo e o
corpo negro fotografado?
Diante deste enunciado quase inquestionável “Fotografar pele negra é difícil”, de cunho
racista e que habita os ambientes fotográficos, é preciso colocar as questões primordiais:
a primeira é que não haveria dificuldades em fotografar pessoas negras se,
historicamente, a tecnologia fotográfica também fosse desenvolvida para atender as
particularidades que a pele negra performa diante da luz. Se fotografar da pele branca é
mais fácil é pelo motivo óbvio de que os estudos que desenvolvem essa tecnologia são
voltados para atender as pessoas brancas.
A segunda questão é efeito da primeira e se torna a mais crucial: a suposta
dificuldade em fotografar a pele negra está na exigência estética de uma
cena/enquadramento sempre muito claros onde é preciso que fique muito visível
tudo que importa à cena.

A branquitude que orienta e orientou o pensamento ocidental se caracteriza pela


particular preocupação com o visível: a vontade de ver. As produções em fotografia
estará de acordo com o pensamento ocidental: interessa o que é passível de ser
entendido, sabido, visto, controlado. A iluminação fotográfica confundiu por muito
tempo a clareza (no sentido de alcançar o público) nas narrativas com uma determinada
claridade da narrativa.

Da história da tecnologia da luz emerge, portanto, uma concepção importante: o


princípio diretor é o controle da visibilidade. Nesta concepção de iluminação ocidental,
o importante é assegurar-se de que um plano esteja claramente visível ao público.
Isso parece óbvio, mas não é. A iluminação pode possuir outra visada que não a
claridade na narrativa. Possuir uma clareza narrativa(no sentido de poder alcançar o
público) não depende de uma claridade na narrativa. Os manuais de fotografia possuíam
na maioria das vezes como tema a neutralização das sombras. Manuais cuja leitura se
consagra a evitar as sombras.

Neste contexto, sendo a fotografia uma escrita com a luz, sua narrativa se enquadra
numa lógica do evidente e do claro: a narrativa iluminará claramente tudo que for
pertinente à cena, o sentido da visão apaziguará, confortará e resolverá a escrita: a
poética estará sob o domínio dos olhos e, através da claridade, tudo que lhe interessar
estará muito visível. O que for desimportante estará na penumbra, no escuro. Os
recortes de luz serão muito certeiros em fazer do não conhecido, dos mistérios e do
invisível a não-história. Na lógica do claro e evidente, a história será contada à medida
que os elementos vão recebendo luz. Perder luz é sair do foco, é sair da história, é não
ter história para narrar: é a lógica do branco, do claro, do alvo, do evidente, do visível,
do saber, e, enfim, do escrever a partir do que se conhece. (A fotografia é cinza)
Para que o trabalho com a luz seja pautado no visível será preciso de um trabalho
arquitetônico onde as superfícies sejam claras, incluindo a cor da pele, para assegurar
uma boa luz refletida. O preto estará sempre presente nesta arquitetura, mas nunca como
o meio em que a história acontece. O preto, o escuro, o negro é um fundo de onde a
história precisa sair para ganhar a vida no claro, no branco
Partamos de um princípio físico simples, o de que a superfície negra - no nosso caso, a
pele negra- absorve mais luz, ela gosta de luz. A pele branca – as superfícies claras –
refletem mais luz. Notamos que, ao fotografar a pessoa negra, quanto mais escura for
sua pele, mais luz ela absorverá e, portanto, mais escura tenderá a ficar a cena. A
negritude é solar e vive melhor com maior luminosidade incidente. Isso quer dizer que
quando se trata de fotografia de pessoas negras, mesmo com muita luz incidente não
significa uma cena clara. A estética clara é própria de pessoas de pele branca. Direi o
óbvio, pois às vezes é preciso. A foto com pessoas negras será mais escura que uma foto
com pessoas brancas.
A cena/enquadramento com pessoas de pele retinta não precisa chegar ao grau de
luminosidade que uma foto teria só com pessoas brancas. Assumir uma
cena/enquadramento cuja estética é subexposta é uma escolha, um posicionamento
diante do mundo. Um quadro, uma cena ou uma foto clara serve a quem?
Nas fotografias comerciais, nas fotografias de marketing e propaganda existe uma
lógica do quadro bem iluminado,. Tudo é muito iluminado por uma luz que lava toda a
cena e nada que é importante fica (no) escuro. Com a iluminação a serviço da negritude
– e não o contrário- é preciso que se coloque uma questão: tudo que é importante
precisa ficar claro?
N mês de julho de 2019 fui a São Paulo para fotografar peças de obras de arte para a
exposição de um artista. As minhas fotografias comporiam o catálogo da exposição em
uma das maiores redes culturais da cidade. Ao verem o resultado, disseram que minha
fotografia é muito escura. Me pagaram absurdamente bem. Clareei todas as minhas
fotos para o catálogo.
Os estudos da luz para fotografia - tanto em stil quanto para fotografia de cinema e para
teatro – obedecem à lógica da branquitude: a luz faz os recortes da cena para que tudo
que é importante fique muito bem iluminado e tudo que não é importante esteja pouco
iluminado ou sem luz (“A luz do mundo- fotografia, cinema e branquitude”, de Richard
Dyer)
Chamo esse modo de fotografar de lógica da luz branca que aposta numa narrativa
onde tudo o que fica no escuro possui menos importânica. Obviamente, é a pele das
pessoas brancas que melhor funciona na lógica da luz branca. Se a poética da
iluminação pauta-se em recortes de clarões de luz , tudo que é mais claro receberá o
protagonismo. É uma lógica que coloca o escuro, o não visível, o não saber, o
desconhecido e a alteridade num determinado lugar: o lugar da desimportância.
A partir da ferramenta poética “Luz Negra” (blacklight), um dispositivo feminista
negro, a filósofa Denise Ferreira da Silva faz uma crítica ao modo de conhecer da
branquitude que lança luz a tudo que lhe é conveniente. Com essa ferramenta poética, a
filósofa explicita bem escuramente como a branquitude tornou invisível o racismo
estrutural.
A filósofa inverte a lógica ocidental da reflexão e da compreensão onde o conhecimento
(e a produção de conhecimento) se dá de forma clara e distinta. A ferramenta poética da
Luz negra ajuda-nos a pensarmos diferentemente os regimes de visibilidade.
Estudando e praticando a cena/enquadramento a partir de uma visão de mundo negro-
africana, chamo de estética da penumbra, sustentamos a escolha de deixar o
quadro/cena escurecidos. Conhecer não significa mais retirar a coisa da sombra.
Relacionar-se com a fotografia acontece pelos mistérios, pela experiência de esgarçar o
não saber. Entregar-se ao não totalmente visível é uma experiência que convoca o corpo
inteiro a estar presente. O negrume torna-se a chave e o convite para conhecermos a
partir do que é mais escuro, convocando a fotografia para uma abertura sensorial do
corpo onde a poética narrativa vai para além dos clarões de visibilidade que abriga o
protagonista e dos bolsões de negrumes que abafam o desimportante.

Referências Bibliográficas
A cena em Sombras – Leda Maria Martins
Pele negra, máscaras brancas – Franz Fanon
A luz do mundo- fotografia, cinema e branquidade – Richard Dyer
Luz Negra - Denise Ferreira da Silva
Questão de pele – Lorna Roth
O negro brasileiro e o cinema – João Carlos Rodrigues

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