Você está na página 1de 112

(Re)existir para (re)conhecer-se: mães negras frente aos

impactos do racismo estruturante

Andressa Farias Barrios

Prof. Dr. Marcio Caetano

Rio Grande, 2019.


ANDRESSA FARIAS BARRIOS

(Re) existir para (re) conhecer-se: mães negras frente aos impactos do
racismo estruturante

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação - PPGEDU da
Universidade Federal do Rio Grande - FURG,
como requisito à obtenção do título de Mestra
em Educação.

Linha de pesquisa: Culturas, identidades e


diferenças.

Orientador: Prof. Dr. Marcio Caetano

Rio Grande
2019
Ficha catalográfica

B276r Barrios, Andressa Farias.


(Re) existir para (re) conhecer-se: mães negras frente
aos impactos do racismo estruturante / Andressa Farias
Barrios. – 2019.
112 f.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do


Rio Grande – FURG, Programa de Pós-Graduação em
Educação, Rio Grande/RS, 2019.
Orientador: Dr. Marcio Caetano.

1. Racismo Estrutural 2. Mulheres Negras 3. Chefes de


Família
4. Decolonialidade 5. Narrativas Biográficas I. Caetano,
Marcio
II. Título.
Catalogação na Fonte: Bibliotecário José Paulo dos Santos CRB 10/2344
CDU 323.14-
055.26(=414)
ANDRESSA FARIAS BARRIOS
(Re) existir para (re) conhecer-se: mães negras frente aos impactos do
racismo estruturante

Banca Examinadora:
______________________________________________________
Prof. Dr. Marcio Caetano – (FURG)
Orientador

________________________________________________
Prof. ª Dr.ª Amanda Motta Castro - (FURG)
Membro interno

________________________________________________
Prof. ª Dr.ª Georgina Helena Nunes - (UFPEL)
Membro externo
AGRADECIMENTOS
Eu aprendi que se depende sempre de tanta, muita, diferente gente.
Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas
pessoas. E é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta
gente onde quer que a gente vá. E é tão bonito quando a gente sente
que nunca está sozinho por mais que pense estar. (Gonzaguinha)

Agradecer pressupõe reconhecer que não se caminha sozinho. Que as lutas


diárias e os obstáculos transpostos, são frutos de uma construção coletiva de várias
pessoas, forças e saberes, que juntos nos engrandecem, fortalecem e dignificam. Este
trabalho carrega em sua autoria meu nome, mas a verdade é que esse processo foi
construído por muitas pessoas, estimas, companheirismos e singularidades.
Agradecer é também reconhecer que o trajeto não se faz de forma linear, e é em
meio às curvas que se formam, que encontramos pessoas que nos amparam e nos
ajudam a seguir em frente.
À minha avó Nair, que compartilha generosamente comigo seus saberes e afetos,
À minha mãe Lucy Mara, por ter me ensinado tantas coisas, por ter doado tanto
de si para me ver bem e por incutir em mim a vontade incessante de crescer e ser uma
pessoa melhor a cada dia, e que nunca mediu esforços para garantir meus estudos.
À minha irmã Andreara, por torcer sempre pelo meu sucesso.
Ao meu companheiro, confidente e incentivador Jailson, por ser aquele que
sempre traz paz, calma e tranquilidade nos momentos mais difíceis. Obrigada por não
me deixar desistir frente às intempéries da caminhada, por estar comigo e oferecer
sempre uma palavra encorajadora a cada lamurio que ouvia de mim, vindo por
intermédio dos desafios de fazer pesquisa.
Ao meu orientador Marcio, por ter me mostrado que a academia pode e deve ser
um espaço baseado em relações humanas positivas, onde pessoas compartilham saberes
e crescem juntas, permeadas por vínculos profissionais e de afeto. A você, minha
profunda gratidão.
Ao meu amigo Marcel, pelos ouvidos pacientes quando precisei conversar
(muitas vezes tratando de assuntos que extrapolavam a universidade), pelos conselhos e
pela capacidade de se fazer presente, sempre disposto a contribuir, sem críticas e juízos
de valor.
À Tatiane, colega de mestrado e de orientação, com quem compartilhei
vivências em sala de aula nesses últimos dois anos.
Em especial, agradeço às mulheres negras que compartilharam comigo suas
memórias, e confiaram na minha pesquisa.
Todas essas pessoas são partícipes dessa trajetória e da conclusão deste ciclo
formativo. Aos demais amigos/as que compreenderam minhas falhas e ausências, e
estiveram comigo quando precisei aprender com eles/as. Comemoraram minhas
conquistas e me ampararam nos momentos difíceis. Contribuíram significativamente
nessa construção identitária, e hoje me orgulho da trajetória percorrida. Sou
profundamente grata à todas e todos. Esse caminho me ensinou que eu sou, porque nós
somos. Ubuntu.
À CAPES, pela tão importante bolsa de estudos que me permitiu uma maior
dedicação a este trabalho.
Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
Porque eu rio como quem possui
Ouros escondidos em mim.
Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.
Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
Porquê eu danço como se tivesse
Um diamante onde as coxas se juntam?
Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.
Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.
Ainda assim eu me levanto (Maya Angelou)
Resumo
A partir dos Estudos Decoloniais, a presente dissertação busca discutir o impacto do
racismo estruturante nos cotidianos de mulheres negras que ocupam a dupla função de
mães e chefes de família. Para tanto, buscamos nas narrativas biográficas as condições
adequadas para tomar as experiências dessas mulheres como o centro de interesse.
Acreditamos que os relatos se propõem, através de relatos particulares, a articulação de
dimensões mais amplas para o entendimento dos fenômenos sociais vivenciadas por
elas. A falta de recursos financeiros foi o principal ponto dificultador da mãe-chefe de
família, seguido do fato de assumirem sozinhas o direcionamento e as responsabilidades
do lar. A falta de uma pessoa para dividir as despesas financeiras e as tomadas de
decisão, bem como para auxiliar na educação dos/as filhos/as foi apontada pelas mães
como as maiores dificuldades da chefia familiar feminina.

Palavras-chaves: Racismo Estrutural; Mulheres Negras; Chefes de Família;


Decolonialidade; Narrativas biográficas.

Resumen
A partir de los Estudios Decoloniales, esta disertación busca discutir el impacto del
racismo estructurante en la vida cotidiana de las mujeres negras que ocupan el doble
papel de madres y jefas de hogar. Para tanto, buscamos en las narrativas biográficas las
condiciones apropiadas para tomar las experiencias de estas mujeres como el centro de
interés. Creemos que los relatos proponen, a través de relatos particulares, la
articulación de dimensiones más grandes para la comprensión de los fenómenos sociales
experimentados por ellas. La falta de recursos financieros fue el principal obstáculo para
las madres jefas de familia, seguido por el hecho de que asumen la dirección y las
responsabilidades del hogar solas. Las madres señalaron la falta de una persona para
compartir los gastos financieros y la toma de decisiones, así como para ayudar en la
educación de sus hijos e hijas, como las mayores dificultades para las jefas de familia.

Palabras-clave: Racismo Estructural; Mujeres Negras; Jefas de Hogares;


Decolonialidad; Narrativas biográficas.
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS

CRAS – Centro de Referência de Assistência Social


FURG – Universidade Federal do Rio Grande
PIBID - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
UCPEL – Universidade Católica de Pelotas
Sumário
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 12
1 PERSPECTIVAS DECOLONIAIS ............................. Error! Bookmark not defined.
1.1 FEMINISMO DECOLONIAL ................................................................................. 35
2 RACISMO ESTRUTURANTE .................................................................................. 41
2.1 RELAÇÕES DESIGUAIS ...................................................................................... 46
2.2 RACISMO INSTITUCIONAL ............................................................................... 52
3 ASPESCTOS METODOLÓGICOS .......................................................................... 59
4. TRAJETÓRIAS DE VIDA E RELAÇÕES DE GÊNERO ....................................... 63
4.1 “A VIDA DE CASADA É UMA VIDA DE MARTÍRIO”..................................... 67
4.2 “NÃO VIVO PARA MIM, EU VIVO PARA MEUS FILHOS ............................. 74
4.3 “EU SOU A MÃE, EU SOU A RESPONSÁVEL POR TUDO ............................. 79
5 CHEFIA FAMILIAR FEMININA ............................................................................. 82
5.1 CUIDADO E RESPONSABILIDADE ................................................................... 86
5.2 O FILHO É DA MÃE? ............................................................................................ 91
5.3 MATERNIDADE E AUTONOMIA ....................................................................... 94
5.4 TRABALHO E SOBREVIVÊNCIA ....................................................................... 99
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 106
7 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 109
8. ANEXO ....................................................................................................................112
12

INTRODUÇÃO

Quando eles falam, é científico;


Quando nós falamos, é não científico.
Quando eles falam, é universal;
Quando nós falamos, é específico.
Quando eles falam, é objetivo;
Quando nós falamos, é subjetivo.
Quando eles falam, é neutro;
Quando nós falamos, é pessoal.

Quando eles falam, é racional;


Quando nós falamos, é emocional.
Quando eles falam, é imparcial;
Quando nós falamos, é parcial.
Eles têm fatos, nós temos opiniões.
Eles têm conhecimentos, nós temos experiências.
Não estamos lidando com uma “coexistência pacífica de palavras”,
mas uma violenta hierarquia, que define quem pode falar,
e sobre o que nós podemos falar.
Grada Kilomba, Descolonizando o Conhecimento.

Apresentar os motivos pelos quais escolhi escrever a dissertação com este


assunto é, também falar do meu processo de identificação com a pesquisa, assim como
daqueles que se engajam na luta antirracista, com base em suas contribuições, discursos,
atos, enfim, daqueles e daquelas que lutam por uma sociedade mais digna.
Meu débito para/com aqueles e aquelas que abriram o caminho teórico e
forneceram dados de análise para a existência deste trabalho. Digo isto, porque hoje, é
essencial discutirmos lugares de fala, por tanto, é importante que o investigador saiba o
lugar social de onde fala, age, observa e escreve.
E, a partir disso, me coloco na construção desse texto falando do meu lócus
social enquanto indivíduo, mulher negra, pobre, feminista, alocada dentro do “modus
operandi1” acadêmico, latina, residente na cidade do Rio Grande, no extremo sul do Rio
Grande do Sul. Sob essa perspectiva, escolho explicitar elementos/conceitos que tecem
raízes profundas e pessoais com minhas escolhas acadêmicas, na condição de sujeita
que propõem a decolonização do pensamento.
Frantz Fanon (1952) escreve acerca da experiência de um negro no mundo
branco e é neste sentido que enxergo meu ingresso na universidade, como sendo uma
reedição desta experiência. Em sua obra, “Pele Negra, Máscaras Brancas”, Fanon revela
a colonização não apenas como uma condição material em que uma população domina a
1
Modus operandi designa a maneira de realizar determinada tarefa segundo um padrão pré-estabelecido
que dita as maneiras de como agir em determinados processos.
13

outra. Mas também como aquilo que subsidia caminhos pelos quais os indivíduos se
comunicam. Sendo a linguagem é um ponto central nesta relação: “Falar é estar em
condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua,
mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (FANON,
2008, p. 33).
Para Patricia Collins (2016), é necessário que a escrita acadêmica-intelectual
seja operada como uma ferramenta de resistência e de criatividade por mulheres negras,
indígenas, subalternizadas, contribuindo de modo incisivo para a insubmissão a imagens
pré-concebidas a respeito de suas realidades, corpos, subjetividades. Para fundamentar o
argumento, as escrevivências2 são possibilidades específicas e coletivas de oposição às
estruturas “invisíveis”, nos espaços universitários e intelectuais no Brasil, estruturas
estas que nunca foram invisíveis para nós mulheres negras.
Todavia, ainda que o desejo de pertencer a esse novo lugar que me foi
apresentado (universidade) persista, com o advir do tempo fui entendendo que, a
despeito dos movimentos que eu fizesse, de modo algum pertenceria de fato, a este
local. No entanto, é indubitável do fato de que estar na universidade me afeta, a tal
ponto de também me fazer não pertencer ao local de onde venho, trazendo a sensação de
ocupar um lugar híbrido. Hommi Bhabha (2001) destaca que as identidades se
constroem não mais nas singularidades como as de classe, gênero, etc., mas nas
fronteiras das diferentes realidades. Trata-se dos entre-lugares, este conceito está
relacionado à visão e ao modo como grupos subalternos se posicionam frente ao poder e
como realizam estratégias de protagonismo.
O que me submete a seguinte frase parte da letra de “Negro drama”, dos
Racionais Mc: “Você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você”, afinal, marcadores
sociais sempre marcarão o lugar de onde venho. Assim como dentro do “gueto”, o meu
status de acadêmica, irá demarcar que já não mais pertenço aquele espaço. Ramón
Grosfoguel (2010), ao falar de epistemologias decolonizadoras, possibilita fazer uma
distinção entre lugar epistêmico e lugar social para refletir acerca da importância da
localização do sujeito na produção do conhecimento. Assim como trouxe à mente
alguns versos proferidos por Mano Brown, líder do grupo de rap Racionais MCs, que
retratam de modo contundente esta realidade: Desde cedo a mãe da gente fala assim:

2
Palavra cunhada por Conceição Evaristo (2016), escritora brasileira, para designar a escrita como ação
que se expressa através de suas vivências diásporas enquanto mulher negra. Condensado das palavras
“escrita” e “vivência”, no português.
14

“Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor”. Aí
passado alguns anos eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se
você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história,
pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que
aconteceu? Duas vezes melhor como? Ou melhora, ou ser o melhor ou
o pior de uma vez. E sempre foi assim. Você vai escolher o que tiver
mais perto de você, o que tiver dentro da sua realidade. Você vai ser
duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra
que inventou isso aí? Acorda pra vida rapaz! (A Vida é Desafio -
Racionais MCs).

Para pensar epistemicamente a partir do lugar subalterno não basta estar situado
socialmente no lado daquelas/es que vivem situações de opressão das relações de poder.
Isto porque, o sistema mundo moderno/colonial se mantém e reproduz ao induzir
sujeitos situados nesse lado das relações a pensar epistemicamente como aquelas/es que
se encontram em posições dominantes. Para pensar a partir da perspectiva subalterna é
necessário assumir compromisso ético-político em elaborar um conhecimento contra
hegemônico. Conhecimento formulado tendo por referências experiências, concepções e
cosmovisões de subalternizados/as.
Em comunicação com o meu lugar de fala no caso, produzir conhecimento
formado pelas minhas experiências enquanto mulher negra, onde o racismo é entendido
como estrutura de dominação e exclusão que impacta em nossas vidas, reconfigurando
experiências a partir da intersecção com as opressões de gênero, classe, classe e
sexualidade. Nesse sentido, a prerrogativa epistêmica quando sustentada por
cosmovisão e saberes subalternos promove conhecimento decolonizador fonte de
agenciamento e de mobilizações de resistências.
Minha escrita, nasce marcada pela minha subjetividade de mulher negra na
sociedade brasileira, profundamente marcada pela vivência pessoal e coletiva. Evaristo
(2016) do termo escrevivência, explicando que quando ela cria, o pano de fundo é a
existência, a vida. Pode ser a vida do outro que a contaminou, ou o que ela própria
viveu diretamente ou indiretamente. A autora diz que sua literatura é contaminada pela
vida real e que deseja escrever ficção como se estivesse escrevendo a verdade, mesmo
porque entende que o seu lugar de enunciação é esse lugar da vida real que ela
experimenta de uma forma ou de outra, isto é, através da sua experiência ou da
experiência do outro.
Início apresentando parte de minha família materna, minha avó, dona Nair,
negra, 93 anos, cedo casou-se com um militar com quem teve sete filhos negros/as, seis
mulheres e um homem. As seis mulheres, todas negras nas diferentes gradações, quatro
15

permaneceram solteiras, embora tendo filhos, tornando-se mães solteiras, apenas duas
tiveram casamentos mais longos.
Cresci numa casa de mulheres negras que trabalhavam duro e criavam suas
filhas e filhos sem participação ativa masculina. Elas não contavam com muita
colaboração dos homens para quase nada, este foi um dos motivos que alimentou o meu
desejo em falar sobre mulheres negras nesta pesquisa. Com o tempo, olhando em
perspectiva a minha vida e a sociedade em que estou inserida, comecei a perceber que
aquela configuração de minha família era bastante comum em famílias negras
empobrecidas. A presença de um matriarcado, no qual a liderança se dava por uma
mulher negra mais velha que sustentava a família tanto emocionalmente quanto
financeiramente. Nunca houve reclamação com relação a isso, nem um reconhecimento
da existência da própria solidão.
Aos poucos, aprendi a reconhecer que aqueles traços não eram singularidades de
minha história, mas eram recorrentes nas famílias negras e mestiças do meu entorno,
talvez podendo ainda estender essa configuração em um cenário mais amplo.
Sou filha de Lucy Mara, mulher negra, que estudou até o 6° ano do Ensino
Fundamental, e irmã de Andreara, 7 anos mais velha. Nossa mãe, desde muito cedo,
sempre trabalhou em fábricas de peixe ou como doméstica. Através destes empregos ela
garantia nosso sustento. Quanto ao nosso pai, sempre foi ausente em nossas vidas. Com
ele tive contato somente até os 6 anos de idade, sua pensão alimentícia era sua única
participação em nossa criação. Desde então minha mãe teve que conduzir sua própria
vida e orientar as nossas sem o auxílio, a presença paterna. Minha infância foi cheia de
mudanças, de rupturas e de ausências. Meus pais não tinham um relacionamento muito
amigável e eu realmente não lembro dos detalhes do que acontecia entre eles. Eu ainda
tenho muitos lapsos de memória dessa época, e sei hoje que isso foi uma maneira de
lidar com toda essa situação traumática.
Minha mãe, eu e Andreara morávamos numa das periferias de Rio Grande, no
bairro Castelo Branco, em uma casa extremamente pobre. Lembro dela com muito
carinho apesar de suas 3 peças: quarto, uma peça que era sala cozinha e por fim, o
banheiro. Nesta casa ficamos até os meus 6 anos de idade, eu e minha irmã ficávamos a
maioria do tempo sozinhas, já que nossa mãe precisava trabalhar. Após esse período nos
mudamos para uma casa de madeira que minha mãe mandou construir no terreno cedido
por minha vó onde também viviam outros familiares. Não ficamos muito tempo nessa
16

casa, minha mãe não deu conta de pagar as prestações da casa pré-fabricada, então
fomos morar com minha vó Nair, com quem moro até hoje.
Eu, mulher negra e filha de mãe negra e trabalhadora doméstica, me sinto
profundamente sensibilizada pelas questões que serão discutidas ao longo do texto.
Mesmo tendo sido a raça e do racismo objetos de estudos de diferentes posições e
opostas interpretações, o debate do racismo estruturante no extremo sul do Rio Grande
do Sul, atravessado pelas questões de raça, produzem duplo desafio: me
construir/interrogar enquanto mulher negra e ao debater o racismo nas dimensões dessa
construção está adenta as formas com que o sexismo nos atravessa.
Ser mulher e negra é mesmo uma sensação de asfixia social como disse Sueli
Carneiro. Desde criança existia uma pressão muito grande por parte da minha mãe para
que eu me dedicasse aos estudos, dentro do grupo social em que eu estava inserida isto
era designado como ato de resistência, em decorrência da educação oferecida para
população empobrecida e negra ser fruto de escolas públicas com ensino precário.
Construir uma trajetória profissional enquanto mulher negra é um exercício que exige
de cada uma de nós porções gigantescas de resiliência, perseverança e resistência.
Exemplificando isso, minha vó, uma mulher negra de noventa e um anos,
autodidata, aprendeu a ler e escrever, vendo as irmãs mais velhas se alfabetizarem em
casa. Nunca esteve em escola, aprender não foi uma opção, aprender era resistir.
Resistir ao lugar de margem, à margem de todo o reconhecimento e dignidade, inclusive
financeira, demarcado pelo sistema racista desde o pós-abolição.
Sabemos que o racismo institucional barra nossa presença em espaços de poder
como universidades, e também em postos de trabalho de maior valorização e
remuneração. Sendo assim, muitas de nós temos uma dificuldade maior ainda para não
só ingressar como permanecer na Universidade. O modelo profissional que permeia o
imaginário do mundo do trabalho ainda é branco e masculino.
A presença da população negra nas universidades está abaixo do esperado em
comparação com a população branca. Muitas de nós enfrentamos diversas barreiras para
ingressar no universo acadêmico e concluir a graduação, desde dificuldades financeiras
até dificuldades de aceitação no campo acadêmico que segue excludente, elitista, racista
e fechado em si mesmo, tendo pouca atuação, de fato, na sociedade.
Atribuo nossa resistência à memória ancestral porque nossa história não é
contada nas páginas dos livros acadêmicos nosso aprendizado vem do olhar e ouvir, a
oralidade é o fio condutor que tem repassado as lições de resistência por séculos, nosso
17

feminismo se fez no fundo da cozinha, naquele sábado que nunca terminava trançando
os cabelos enquanto ouvia as inúmeras histórias sobre acontecimentos/situações
vivenciadas pelas mulheres da família.
Lembro bem de uma tia minha contar sobre uma experiência ao ir trabalhar
como empregada doméstica no Rio de Janeiro junto de uma prima, lá elas trabalhavam
de segunda à segunda, recebendo folga apenas no domingo à tarde, era quando elas
podiam ir até a frente do prédio ficar sentada olhando o movimento, quando elas
perceberam a situação de cárcere, quiseram fugir mas não conheciam a cidade, havia
uma tia que morava na periferia do Rio de Janeiro mas elas não tinham como entrar em
contato, tinham o endereço anotado mas não tinham como chegar até lá. Numa dessas
folgas aos domingos, conheceram um rapaz negro, contaram para ele toda a situação
vivenciada, o rapaz marcou um encontro com elas no domingo seguinte, naquele mesmo
local e ajuda-las à chegar até a casa da tia que morava no RJ, por sorte foi oque
aconteceu, essa é apenas uma das diversas histórias que cresci ouvindo, tudo era
contado com tanta naturalidade, minha tia conta essa história até hoje dando risada, já
eu sempre fico impactada.
Durante todo o percurso histórico de muitas famílias negras, assim como na
minha, a condição de empregadas domésticas perpassou gerações de mulheres que não
tiveram oportunidades de exercer outras funções, nos dias atuais ainda vemos crianças
brancas sendo cuidadas por babás negras, ainda vemos jovens negras limpando vidraças
e chão, varrendo calçadas, ainda vemos nossas mais velhas cozinhando para suas
patroas.
Meu primeiro emprego aos treze anos foi de babá, cuidava de duas meninas
brancas, certo dia a mãe das crianças foi até a residência onde eu morava falar com
minha mãe, elogiou meu trabalho, mas disse que o marido dela havia comentado que eu
era “bem bonitinha” motivo pelo qual ela ia me dispensar. Ao chegar em casa e saber do
ocorrido, meu sentimento foi de indignação, ela não se deu nem ao trabalho de falar
comigo, foi falar com minha mãe, que inclusive disse que isso era muito comum, e já
havia acontecido com ela quando era jovem também.
Depois tive outras experiências profissionais, também fui a jovem negra que
limpou as vidraças da loja em que trabalhava, limpava o chão, varria a calçada, boa
parte do meu ensino médio eu trabalhava de dia e estudava no turno da noite, até os
dezoito anos quando ingressei na universidade. Lembro que ao anunciar minha saída do
emprego para me dedicar aos estudos, já que o curso em que iria ingressar era diurno, eu
18

havia juntado uma pequena quantia em dinheiro para arcar com os custos de passagens,
materiais e entre outras necessidades básicas para me manter até que eu conseguisse
uma bolsa/estágio, recordo-me que a dona da loja de chocolates em que eu trabalhava
achava inaceitável eu largar o trabalho para cursar artes visuais.
Porém, para nós mulheres negras, a arte mostra que somos mais que um corpo,
mostra que temos potenciais e dignidade. Fortalece-nos para que possamos quebrar os
estereótipos que nos foram impostos. A arte é provedora de uma qualidade de extrema
importância, nos leva ao autoquestionamento: a partir da experiência de outras eu passo
a perceber melhor meu mundo, quem eu sou. Autoconhecimento é fundamental para
que possamos lutar contra o machismo e o racismo.
Faço parte da primeira geração da minha família a ingressar na universidade,
esta foi um meio no meu empoderamento enquanto mulher negra, e a luta foi sem
sombra de dúvida o fim/recomeço dessa libertação. Desde que entrei na FURG adentrei
espaços de ativismo, o primeiro contato foi com o Coletivo Macanudos, um coletivo de
negras e negros da universidade. Ali encontrei um espaço de diálogo e reflexão
referentes as questões raciais, também foi a partir das inserções com docentes e
discentes de escolas periféricas, que comecei a realizar oficinas de turbantes junto ao
coletivo nos espaços escolares, onde levantávamos questões acerca da estética, debates
raciais e corporalidades enquanto mulheres negras.
Foi aí que surgiu minha prática pedagógica acerca da educação étnico-racial,
embora ela tenha começado anteriormente com o PIBID, que proporcionou uma
importante experiência, dando embasamento teórico e prático para os desafios que
permeiam o contexto escolar. Outro espaço dentro da universidade que me ajudou foi o
NEABI3, espaço no qual se realizam atividades, estudos, pesquisas, produção de
materiais dentro da temática das relações étnicos raciais, onde atualmente coordeno
junto com a professora Cassiane Paixão um grupo de estudos sobre feminismo negro.
Não lembro de nenhum momento da vida em que não soubesse que sou negra e
as implicações que isso tem. Conservo memórias dos primeiros anos de infância em que
ouvia minha mãe contando suas experiências com o racismo. Ouvi essas histórias
repetidas vezes, mas só muito recentemente percebi o quanto elas foram determinantes
na minha vida.

3
NEABI: Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas.
19

Para além do coletivo de 2014 à 2016, continuei minha prática com oficinas de
turbantes ministradas em escolas no município de Rio Grande. A proposta era de tentar
trabalhar com a autoestima dos alunos, levar conhecimento e fazer com que eles se
identifiquem com o conteúdo. Visto que, o turbante traz consigo múltiplos significados,
principalmente a ancestralidade. Atualmente é usado como um resgate histórico,
gerando uma representatividade da identidade negra, resultando numa forma de ato
político pela a estética.
A estética assume os papéis de resistência, manutenção de identidades e a
criação de outras identidades não necessariamente africanas, mas afro-brasileiras. A
estética reproduz o papel de memória e autêntica a história de povos e civilizações
africanas. Os penteados, a joias, os panos, as maquiagens corporais, fazem uma
revitalização nacional na construção da identidade brasileira. Essas questões trazem à
tona a lembrança de uma fotografia carnavalesca de minha mãe ainda jovem.

Acervo pessoal.
A roupa foi feita a mão pela minha avó, os colares, pulseiras, foi minha mãe e
minhas tias que fizeram, a trança era feita de corda. Esse registro vem ao encontro da
potência da indumentária no processo de afirmação da estética afro-brasileira e do seu
diálogo com o corpo feminino como forma de poder e reconhecimento. No entanto, se
auto afirmar como mulher negra, foi um processo, árduo e doloroso, tendo em vista que
minha mãe abandonou os estudos no 6° ano do Ensino Fundamental por conta dos
inúmeros ataques racistas que sofria no ambiente escolar.
Fui educada que a minha roupa deveria estar sempre limpa, passada, o meu
cabelo arrumado, as unhas limpas e de preferência pintadas, isto nos garantiria um
20

tratamento menos racista por parte do mundo. O privilégio de andar pelos espaços,
inclusive na universidade, de chinelo, roupas estilo alternativo, cabelo desgrenhado e
ainda ser respeitado/a e tratado/a com seriedade é branco. Minha aparência e como a
trato está profundamente relacionada às minhas estratégias de sobrevivência.
Durante a construção dessa pesquisa, revi todas as minhas teorizações, a
resistência à imagem de mulher negra forte, capaz de suportar o peso de toda a pirâmide
social, aquela que aguenta tudo sozinha e suporta qualquer coisa, essa imagem que me
acompanhou a vida toda e é reproduzida o tempo inteiro pela mídia. Até a dose de
anestesia no parto pelo SUS é menor quando a mãe tem pele escura. Por que não
podemos assumir nossa fraqueza? Nós temos o direito de nos sentirmos cansadas
quando nossas vozes são silenciadas.
A população negra tem sido profundamente ferida como diz bell hoocks “feridas até o
coração”, no texto Vivendo de amor, esse texto me tocou profundamente, essa ferida
emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir, visto que a escravidão
condicionou os negros a conterem e reprimirem suas emoções.

O desgaste psicológico de ser uma mulher negra forte afeta a mente e o corpo
questões de raça, pobreza e saúde mental estão intimamente ligadas. O sofrimento
psíquico causado por questões financeiras como causador primário do alcoolismo é um
dos temas que mais tem afetado meu histórico familiar, minha mãe é alcoólatra, o hábito
de beber começou bem cedo, na juventude, não sei exatamente quando mas sei que a o
quadro se agravou com separação do meu pai, isso provocou um estigma ainda pior: a
solidão existencial, acredito que o álcool surge a partir da necessidade de fugir desse
quadro social. Quando eu olho para minha mãe, vejo uma pessoa tão ferida, que é pura
dor, e não quero nem olhar para ela porque não sei o que fazer com essa dor, então
evito.
No caso das mulheres o estigmada colocado sobre pessoas com dependência
alcoólica é muito mais proeminente, o julgamento é maior, o vício não é visto como
uma doença, mas como uma falha moral. Os homens que estão se tratando muitas vezes
têm apoio das mulheres, da mãe e do pai, parentes e filhos. As mulheres, em sua
maioria, estão sozinhas enfrentando suas doenças.
O alcoolismo é uma doença que mais destrói vidas, pois não só o alcoólatra é
lesado em sua dignidade humana e sim todos em sua volta principalmente as crianças e
adolescentes que tem suas vidas marcadas de forma dolorosa. Confesso que ao escrever
sobre isso, sinto que preciso de tempo para digerir minhas memórias, principalmente
21

sobre algo que ainda é tão latente. Em vista disso, muitas mulheres negras têm adoecido
mentalmente por conta de sua solidão, solidão essa que não significa apenas a falta de
um companheiro, seja ele negro ou branco, mas a exclusão de um lugar em que possam
se sentir verdadeiramente amadas e respeitadas, enfim, em que possam se sentir
humanas.
Na minha família, lembro que ainda pequena era importante reprimir as
emoções, expressar os sentimentos poderia significar uma punição ainda maior, minha
mãe sempre dizia “é sem choro, não quero ouvir um piu” e se eu chorava ela ameaçava
“se tu não parar, vou te dar uma razão pra chorar.” Essa repressão de sentimentos tem
perpassado gerações de famílias negras, fico pensando que esse tipo de comportamento
se assemelha muito ao do senhor de engenho que espancava seus escravos e escravas
sem permitir que ele/ela externasse a dor.
Quando criança percebia que a luta pela sobrevivência era mais importante do
que o amor, geralmente passavam a impressão de que o amor era perda de tempo, um
sentimento ou um ato que os impedia de lidar com coisas mais importantes. Muitas
vezes eu questionei e lamentei a falta de afeto que eu recebia da minha mãe, então eu
pensava: Será que a afetividade dela não foi também usurpada? Só recentemente passei
a entender que as mães negras precisam ser cuidadas. Eu não lembro a última vez que
eu ouvi dela “eu te amo”, mas consigo reconhecer que toda vez que ela cozinha meu
prato predileto é uma das formas mais verdadeiras e bonitas de demonstrar amor.
Li num artigo publicado por Shirley de Souza uma análise do romance Sula, de
Toni Morrison, na perspectiva de uma genealogia feminina. Me identifiquei com um
trecho no qual Hannah, uma mulher negra já adulta, pergunta a sua mãe, Eva: “Em
algum momento você nos amou?” E Eva responde bruscamente: “Como é que você tem
coragem de me fazer essa pergunta? Você não tá aí cheia de saúde? Como não consegue
enxergar?” Hannah não se satisfaz com a resposta, pois sabe que a mãe sempre
procurou suprir suas necessidades materiais. Porém ela está interessada num outro nível
de cuidado, de carinho e atenção. A resposta de Eva mostra que a luta pela
sobrevivência não significava somente a forma mais importante de carinho, mas estava
acima de tudo. Muitos negros ainda pensam assim. Suprir as necessidades materiais é
sinônimo de amar.
É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na
garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente.
Constantemente enfatizam nossa capacidade de sobreviver apesar das circunstâncias
22

difíceis, mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se
preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente.
Eu poderia simplesmente omitir esta discussão do meu trabalho, pois, confesso,
ela mexe diretamente com o meu interior. Porém, se faz necessário assumir a
necessidade de amor em nossas vidas é uma forma de ir contra a um movimento
hegemônico. Diante disso é preciso, primeiro, iniciar o processo de amor interior. Digo
“amor interior” e não “amor próprio” porque, assim como hooks propõe, a palavra
“próprio” é geralmente usada para definir nossa posição em relação aos outros. Numa
sociedade racista e machista, a mulher negra não aprende a reconhecer que sua vida
interior é importante.
Nós mulheres, em especial as negras e pobres, fomos criadas para aprender a ser
mãe, ou seja, para concretizar, ou melhor, reforçar o paradigma da mãe preta. Na minha
família as tarefas domésticas sempre vieram em primeiro lugar, a tarefa do pensar se
tornou menor, porque primeiro era preciso cuidar da casa. Isso reflete muito dificuldade
que encontro em estudar em sua casa. O trabalho intelectual exige um distanciamento,
um isolamento. Escrever é uma atividade solitária, e para nós, que fomos criadas em
meio a um grupo que valoriza o trabalho braçal em detrimento do trabalho intelectual, é
extremante difícil. hooks afirma que muitas alunas negras estadunidenses abandonam os
cursos de graduação no momento em que, para concluir, é preciso escrever suas teses.
Se os estudos sobre as dimensões do sexismo nas experiências vividas por
mulheres negras ainda são inexpressivas, a raça da população brasileira por séculos tem
sido alvo de interpretações e estudos, o que demonstra que o pensamento racial está
arraigado na estrutura social e cultural e na constituição dos sujeitos em nossa sociedade
A raça, como categoria sociológica e demarcadora culturalmente, é fundamental
para a compreensão das relações sociais cotidianas, não só no que diz respeito à
experiência local, mas também, nacional e global. A ideia de raça está presente em
diferentes experiências da vida social: nas distribuições do poder e no acesso aos
recursos naturais ou de bens de consumo, nas experiências subjetivas, nas identidades
individuais e coletivas, nas formas como são orientadas as construções culturais e nos
sistemas de significação.
A raça é uma construção da dominação colonial e, desde então, permeia as
dimensões mais importantes do poder mundial. Ou seja, essa história em que as pessoas
foram classificadas segundo uma ideia de raça significou uma maneira de legitimar
relações de superioridade/inferioridade entre dominados e dominantes.
23

A autora Nigeriana Chimamanda Ngozi4 faz uma reflexão sobre o risco de


escutarmos por repetidas vezes uma única versão da história, essa se reitera nas mídias,
nos livros, nas redes sociais e entre tantos outros meios de comunicação. Porém a
predominância de uma história em particular responde quase sempre às estruturas
mundiais de poder.
Historicamente o colonialismo retifica as identidades, dado que os relatos
dominantes vigentes foram conformados durante a época da colonização pelo homem
branco proprietário. Por intermédio desses discursos, foram construídos e
impulsionados estereótipos e preconceito com base na classificação da população
mundial sobre a ideia de raça: brancos, índios e negros.
Sobretudo, é preciso enfrentar e denunciar o sistema capitalista e a lógica
colonial, ambos estruturalmente racista. O modelo econômico atual joga implicitamente
sua destruição, sua contaminação, sua ocupação e sua violência sobre as populações
negras e indígenas, com o objetivo de seguir explorando, produzindo e, assim,
acumulando.
Neste difícil objetivo de refletir sobre o racismo como processo de opressão na
vida de mulheres negras chefas de família, reconhecemos e nos solidarizamos também
com as muitas resistências que o enfrentam. Apesar de tudo, a população negra,
sobretudo as mulheres, segue resistindo e traçando redes de estratégias, as vezes
unificadas, contando as muitas histórias para construir um mundo onde caibam muitos
mundos.
A presente pesquisa ao centrar-se nas narrativas (auto)biográficas de vida de
mães negras buscará interrogar as colonialidades que governam os modos político-
culturais no Rio Grande do Sul e retroalimentam o racismo estruturante no Brasil. Para
tanto, se vale, sobretudo, dos questionamentos decoloniais feministas apresentados
pelas mulheres negras.
Ao trazer entrelaçamentos de narrativas (auto)biografias as penso como
fragmentos que nos apresentarão a vida a partir do ponto de vista de mães-negras chefas
de famílias na cidade do Rio Grande – RS. Suas narrativas possibilitarão a configuração
de experiências, criações, tramas e dramas de sociabilidades e de resistências e acordos
frente ao racismo sexista. Creio que as análises das narrativas me possibilitarão o duplo

4
Chimamanda Ngozi Adichie, “The danger of a single story”,
https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=en (vídeo com
legenda em português)
24

papel de refletir o processo de sua produção e a interpretação dos fatos vividos por essas
mães.
No sentido de expor os caminhos e problemáticas suscitadas com a pesquisa,
pretendo que a dissertação seja estruturada da seguinte maneira: no primeiro momento,
serão apresentadas as perspectivas teórico-metodológicas que orientarão a reflexão
sobre os fragmentos de narrativas selecionados. Este delineará as desigualdades da
diáspora tecidas no contexto estruturante da colonização, afim de compreender a lógica
colonizadora do ser e do saber com base na obra Aníbal Quijano, colonialidade do
poder.
Para o entendimento sobre o processo de construção das mulheres negras
colonizadas, utilizaremos a discussão de colonialidade de gênero, de María Lugones,
atrelada a colonialidade do poder, isto propiciará o entendimento de como o gênero foi
construído racializadamente, junto ao pensamento de Lélia Gonzalez inserido no
contexto da decolonização da produção de conhecimento feminista, bem como o
processo de resistência das mulheres negras e o conceito de amefricanidade.
Em seguidas, apresentaremos o primeiro capítulo que buscará refletir o racismo
estruturante dando ênfase as implicações da branquitude nos apagamentos político-
culturais assumidas da população negra. Esse capítulo buscará localizar os capítulos
seguintes que estarão centradas nos dados produzidos com as narrativas das mães que
integrarão esta pesquisa.
Através das narrativas das histórias de vidas e da realização das entrevistas,
busco discutir alguns aspectos-chave que norteiam a investigação, tais como: Quais as
diferentes circunstâncias sociais e pessoais que levaram estas mulheres à condição de
responsáveis por seus domicílios? Como os seus marcadores sociais de gênero, classe,
raça e idade/geração e as possíveis intersecções vem conformando suas trajetórias e
delineando suas experiências de vida? Até que ponto ser “chefe de família” permite a
estas mulheres mais autonomia e a vivência de novas experiências via a ampliação de
seu status dentro do grupo doméstico e na sociedade? Ou seria mais um elemento
catalisador de uma série de desvantagens estruturantes? Como se articulam práticas e
representações face à condição de chefia familiar, essa condição é vivida em termos de
mais poder e autonomia ou de mais responsabilidade e subordinação? De que maneira
essas trajetórias e experiências e suas interseccionalidades vêm conformando as
identidades/subjetividades destas sujeitas?
25

O capítulo visa resgatar as trajetórias das entrevistadas, via análise de suas


histórias de vida no intuito de identificar os pontos de convergência e a diversidade,
buscando entender como foram tecidas, na trama da vida das sujeitas os percursos
familiares, afetivos, educacionais e profissionais, que constitui cada trajetória, sempre
atrelada ao contexto social.
O último capítulo, se propõe a discutir as experiências das mulheres
entrevistadas, a maternidade face à condição de chefia dos seus núcleos doméstico-
familiares, analisando assim como essa experiência vem sendo conformada a partir do
entrelace de hierarquias sociais estruturantes. Tem como um dos eixos a reflexão em
torno do questionamento acerca da existência de uma especificidade do ser mulher
negra, maternidade e chefia de família. Por fim, as considerações finais, visando
retomar de forma mais conclusiva, pontos-chaves da discussão e apresentar questões
que possam fazer avançar novas investigações.

1. PERSPECTIVAS DECOLONIAIS

À África
Às vezes te sinto como avó,
outras vezes te sinto como mãe.
Quando te sinto como neto
me sinto como sou.
Quanto te sinto como filho
26

não estou me sentindo bem eu,


estou me sentindo aquele
que arrancaram de dentro de ti.
(Oliveira Silveira)

O colonialismo revela um período histórico caracterizado pelo domínio direto, a


partir de um modelo administrativo, político e econômico, de algumas nações sobre
outras, iniciado no século XV e consolidado no século XIX. O modelo de dominação e
exploração imposto implicou no desenho de uma cartografia global do poder, na
concentração mundial de recursos, no racismo e na hierarquização étnico-racial dos
povos, na hierarquização das relações de gênero, a partir de uma lógica patriarcal, e na
afirmação, no campo da sexualidade, da heteronormatividade.
Historicamente as experiências coloniais são estruturadas pelo desenvolvimento
inicial daquilo que irá se concretizar no capitalismo e na globalização, com o intuito de
universalizar a visão de mundo por meio de enfadonhas perspectivas e referenciais
europeus, em espaços de produção e circulação de informações, estas práticas se
reverberam minuciosa e explicitamente até os dias de hoje, bem como por meio da
educação formal, lócus privilegiados de perpetuação dos projetos de hegemonia que
cruzam temporalidades.
A decolonialidade é, nesse sentido, indissociadamente um movimento teórico,
ético e político ao questionar as pretensões de objetividade do conhecimento dito
científico dos últimos séculos e, no que nos diz respeito diretamente, das ciências
sociais.
Entre as várias abordagens sobre a resiliência do colonialismo na organização
das estruturas sociais atuais, destaco a colonialidade do poder, comecemos a partir do
trabalho do sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005), segundo quem a colonialidade é
uma estrutura de dominação e exploração que se inicia com o colonialismo, mas se
atualiza e se mantém até o presente, mesmo após o fim das administrações coloniais.
Colonialidade se refere às situações coloniais da atualidade e, conjuntamente com a
modernidade, vem a constituir os dois eixos ao redor dos quais está organizado o poder
capitalista, eurocentrado e global.
O conceito de colonialidade do poder tem estado em voga nos últimos tempos
principalmente no que tange a teoria social contemporânea da América Latina.
A América constitui-se como o principal espaço/tempo de um padrão
de poder de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a
primeira id-entidade da modernidade. Dois processos históricos
convergiram e se associaram na produção do referido espaço/tempo e
27

estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de


poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistador e
conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta
estrutura biológica que situava a uns em situação natural de
inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assumida pelos
conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional
das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases,
consequentemente, foi classificada a população da América, e mais
tarde, do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a
articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de
seus recursos e de seus produtos, em tono capital e do mercado
mundial. (QUIJANO, 2005).

De acordo com o autor, a centralidade da ideia de raça, principalmente no que


tange à formação das estruturas de poder, foi empregado, justamente, para dar forma a
tais estruturas. Neste aspecto, Quijano aponta a importância de se pensar a relação entre
raça e o sistema liberal capitalista contemporâneo. Esse sistema, se deu por meio da
empreitada colonial nas Américas, a começar do marco de Colombo, constituindo-se
então o capitalismo moderno eurocentrado como o novo padrão de poder mundial.
O engajamento do conceito de raça se explicita, neste contexto, pois o eixo
fundamental de tal padrão de poder é a classificação social da população do mundo de
acordo com a ideia de raça, fato que implica em um elemento de colonialidade neste
padrão de domínio hegemônico (QUIJANO, 2005). Ainda nesse debate, o professor
Carlos Moore complementa:
“Raça é um conceito, uma construção, que tem sido às vezes definida
segundo critérios biológicos. Os avanços da ciência nos últimos
cinqüenta anos do século XX clarificaram um grave equívoco oriundo
do século XIX, que fundamenta o conceito de “raça” na biologia.
Porém, raça existe: ela é uma construção sociopolítica, o que não é o
caso do racismo. Racismo é um fenômeno eminentemente não
conceitual; ele deriva de fatos históricos concretos ligados a conflitos
reais ocorridos na História dos povos” (MOORE, 2007, p.23).

Contudo, contemporaneamente o conceito de raça como categoria biológica, não


possui mais utilidade, em geral as características de algumas doenças, que teoricamente
são comuns a um grupo racial, seriam mais corretamente apontadas como enfermidades
próprias a um mesmo grupo ancestral, uma vez que a diferença genética entre dois
europeus pode ser maior do que a diferença genética entre esse mesmo europeu e um
africano.
Por meio da constatação, de que biologicamente as raças não existem, surgiu um
novo ideário “anti-racista” que de acordo com Antônio Sérgio Guimarães (1999),
através da recusa total e incondicional da ideia de raças. Contudo, esta categoria
28

continua sendo relevante para a Antropologia, Sociologia e Direito, pois viabiliza


legitimar a existência de ideários que informam condutas diferenças, fundadas na
valoração das pessoas em função da cor da pele e dos traços fenotípicos, valoração esta
que gera consequências concretas nas interações cotidianas das pessoas no dia-a-dia
Um pensando que tem sido uma referência importante na análise dos efeitos do
colonialismo é Aimé Cesaire, nos anos trinta, iniciador do movimento negro, sustentou
sua proposta política com a análise do colonialismo e o racismo como vetores
fundamentais do capitalismo e da modernidade ocidental.
Seguindo este pensamento, vê-se que outro elemento constitutivo das relações
frente a este padrão colonial, além da separação da população mundial frente ao
parâmetro de raça, segundo Quijano (2005), foi a articulação e controle do trabalho em
torno do capital e do mercado mundial.
Deste modo, mesmo que a classificação racial e o estabelecimento do modo de
produção (com suas devidas relações de produção) sejam fatores sistemáticos, porém
distintos, é graças à instauração do padrão de poder colonial que tais elementos se
relacionam, havendo assim uma divisão racial do trabalho. Conforme novas identidades
foram sendo produzidas, a partir da conotação racial (negros, índios, europeus), estas
foram sendo associadas a um tipo de relação de produção.
Desta forma, mais do que apenas expressar raça, a identidade indígena, por
exemplo, implicava em uma “mão de obra descartável” (QUIJANO, 2005), não
assalariada, abaixo na pirâmide da burocracia colonial. A ideia de raça, neste aspecto,
em seu conceito específico, foi engajada de modo a “outorgar legitimidade” à imposição
da conquista colonial, a partir da formação de um discurso, na qual o binarismo
inferior/superior, se relacionava, respectivamente, à dicotomia colonizado/colonizador.
A construção da ideia de raça e sua diferenciação serviram para naturalizar o que
era propagado por este discurso colonial. Além disso, conforme a expansão colonial foi
ocorrendo, a perspectiva eurocêntrica do conhecimento foi se moldando, assim, mais do
que referente à produção do discurso de poder, a ideia de raça foi teorizada pelos
europeus frente aos povos conquistados.
É neste sentido que o autor Sankaran Krishna afirma que as abstrações, referente
aos termos utilizados pelas relações internacionais, não são inocentes das concepções de
poder. Porquanto, a tradição teórica dos estudos internacionalistas apenas demonstra a
fugacidade perante a necessidade de historização, de termos, como estado, propriedade,
soberania e também raça.
29

Posto que, no conjunto metodológico e epistêmico, tais conceitos não estão


dispostos aleatoriamente das relações internacionais, mas foram construídos perante
certos contextos que expressam a dimensão do poder e o caráter eurocêntrico da
racionalidade que envolve a disciplina.
Deste modo, ampliando a perspectiva eurocêntrica sobre a ideia de raça e se
elaborando com isto a dicotomia entre inferioridade e superioridade, a diferenciação
racial se mostrou o mais eficaz meio universal de dominação social (QUIJANO, 2005),
e isto em todos os campos: desde o controle do trabalho, até o controle das formas
culturais de intersubjetividade e noções de conhecimento.
Nos estudos de Achille Mbembe observa-se que o discurso da universalização
dos conhecimentos europeus é um componente datado entre os séculos XIX e XX, esses
corpos brancos e masculinos asseguram a politização e hierarquização dos saberes que
ainda marcam a contemporaneidade como únicos produtores do conhecimento e
detentores da razão. Em nome desta dita ciência, os estudos epistemológicos,
cosmovisões e múltiplas formas de conhecimento foram aniquiladas pelas potências
europeias, mascarados pela bandeira da razão e do progresso.
A “África”, como continente, nasce como produto inventivo das enfabulações
europeias. Seria o reduto do vazio humano e dos obscurantismos, selvagerias e
brutalidades como assinalou o pensador congolês V. Y Mudimbe (2013). No entanto, ao
diligenciar o apagamento das identidades, histórias e conhecimentos, estes fatores
ocasionaram delirantes narrativas de superioridades culturais e sociais que permeiam os
projetos de hegemonia das sociedades ocidentais.
Sendo a raça, o critério de distribuição da população mundial na estrutura de
poder da nova sociedade capitalista, foi possível perceber, com isso, a associação da
branquitude às relações de trabalho assalariada, ao usufruto de privilégios e até mesmo a
posse de capacidades cognitivas, tal como racionalidade e linguagem formal. Neste
aspecto, vislumbra-se Robbie Schilliam (2013), quando este aborda, de forma a
relacionar a visão colonial, à dicotomia cartesiana entre mente e corpo. No movimento
colonial, de relacionar o colonizador à figura de racionalidade, isso fez legitimar a ação
da empreitada colonial e a introdução do racismo para sua neutralização. Neste sentido,
nos informa Grosfoguel, 2016:
O que conecta o “conquisto, logo existo” (Ego conquiro) com o
idolátrico “penso, logo existo” (Ego cogito) é o racismo/sexismo
epistêmico produzido pelo “extermino, logo existo” (Ego extermino).
É a lógica conjunta do genocídio/epistemicídio que serve de mediação
30

entre o “conquisto” e o racismo/sexismo epistêmico do “penso” como


novo fundamento do conhecimento do mundo moderno e colonial. O
Ego extermino é a condição sócio-histórica estrutural que faz possível
a conexão entre o Ego coquiro e o Ego cogito. (GROSFOGUEL,
2016)

Pela abordagem iluminista, estaria o homem moderno relacionado ao âmbito da


mente, a racionalidade. Contudo a modernidade, dentro do discurso do poder colonial,
se refere à Europa colonizadora, frente às regiões colonizadas, que fazem alusão ao
passado, atraso. Assim, o branco europeu se coloca no lugar de regência frente os
conceitos que são postos, ocupando um lugar de privilégio epistêmico (SHILLIAM,
2013).
Criando-se novas identidades frente ao novo padrão de poder colonial, há o
exercício da homogeneização das categorias identitárias frente a três elementos: a
colonialidade do poder, o capitalismo e o eurocentrismo. Isso implica em um conjunto
de práticas sociais da esfera intersubjetiva comum a todas as áreas do globo, com até
mesmo esferas valorativas, da onde surgem instituições comuns tal como o Estado
Nação, a família e a burguesia. (QUIJANO, 2005).
Mudando-se, então, toda a esfera das relações sociais, este padrão de poder
altera, também, a relação espaço/tempo, principalmente a espera de mudanças
históricas. Logo, este conceito não se limita ao período de colonização, mas implica na
continuidade de formas coloniais de dominação após o fim da colonização. Em outras
palavras, a reflexão decolonial não se limita ao período histórico da colônia, mas faz
remissão ao incessante eixo entre passado e presente (GOMES, 2013:102).
A colonialidade opera por meios materiais e subjetivos da existência social
cotidiana e da escala social (QUIJANO, 2010: 84), dando suporte ao racismo estrutural
enraizado no Brasil, por vezes escamoteado pelo mito da democracia racial, mas
eficazmente perverso. Nesse sentido, adotamos como referencial a decolonialidade, que,
conforme afirmam Costa e Grosfoguel (2016: 17) consiste numa prática de oposição aos
poderes coloniais. Ao reconhecermos a colonialidade como dispositivo de poder e
dominação, inclusive na produção do conhecimento, vemos que o caminho a ser
trilhado é o da descolonização. Daremos, então, visibilidade ao conhecimento produzido
a partir de uma perspectiva subalternizada, isto é, de uma perspectiva negra.
Conforme afirma Quijano (2002: 1), a colonialidade fundamenta a ideia de raça
como padrão universal de classificação e de dominação social, constituindo-se, assim,
como um modelo de poder que regula as mais diversas dimensões da vida em
31

sociedade. No plano prático, as hierarquizações sociais, que têm como um de seus


principais elementos constitutivos a raça, se traduzem em oportunidades desiguais nas
esferas econômica, educacional, trabalhista/ocupacional, cultural, identitária e outras.
Desse modo, as elites preservam seus privilégios em virtude da dominação
capitalista e colonial, cuja estrutura é racista. Em outros termos, diferentemente do
colonialismo histórico, que foi suprimido pela independência ou descolonização (no
âmbito territorial) a colonialidade constitui-se como persistência das formas coloniais de
dominação. Como afirma Quijano (2010: 84), o colonialismo é mais antigo, no entanto,
a colonialidade é mais profunda e duradoura. Contudo se pela racialização das relações
sociais e de trabalho se expõe a legitimação da dicotomia inferior e superior, a história,
assim, também será pautada, sendo que seu ponto máximo, afetado pela perspectiva
eurocêntrica, será a transformação das áreas colonizadas em “Europa” (evidenciando
assim, caminhos da Teoria da Modernização).
Desta forma, paradoxalmente caminham junto, segundo Quijano (2005), a noção
do evolucionismo e do dualismo: Como pode algo que é considerado o estágio passado
da Europa, ser também o antônimo, o outro, da mesma? Dentro deste paradoxo, os
povos da América, Ásia e África foram reduzidos a uma identidade colonial
inferiorizada.
O altericídio5 (MBEMBE, 2013), isto é, o desejo da destruição da diferença, é
parte estruturante da colônia e a questão da narrativa, das memórias, isto é, das formas
como os grupos representam a si mesmo e o outro é um lócus para pensar as
possibilidades de enfrentamento ao racismo e de conquistar/expressar soberania
intelectual.
Esta percepção não apenas fez elucidar a outra face deste espelho (a Europa
moderna e civilizada), mas também a concepção de que o poder colonial afastou os
povos colonizados de suas singularidades e de sua participação na produção cultural
histórica. Shilliam irá afirmar que os conceitos de liberdade, igualdade e justiça, por
exemplo, não englobam a percepção dos escravos sobre os mesmos. Estes conceitos
foram pensados por intelectuais que ajudaram a construir as bases dos Estados
escravizadores.
Quando se pensa na participação dos escravos na construção destes conceitos em
seus próprios termos, se fala em conceitos forjados, que são encontrados na conexão

5
Altericídio: Estratégia discursiva de esconder ou cancelar consciente ou inconscientemente a identidade
do outro a fim de aumentar o grau de homogeneidade sociocultural
32

com o passado negro, via música, oralidade, história, arte, entre outros meios .O mesmo
autor irá afirmar que a narrativa da abolição enxerga estes caminhos como formas
inviáveis, pois do mesmo modo que os senhores de escravos vêm à libertação dos
negros por meio da condolência branca, os abolicionistas também assim a fazem.
Shilliam(2013) irá, então, defender, uma nova hermenêutica da visão abolicionista, que
coloca o negro como protagonista da sua própria libertação, via redenção.
A universalidade dos termos, algo que segundo Abdias do Nascimento (1980)
fere a emancipação negra, frente às categorias epistêmicas, tal como o Estado Nação,
faz com que não se veja a construção dialética destes conceitos e das identidades que se
formam ao redor deles. Aníbal Quijano (2005) ao formular seu pensamento sobre a
criação do Estado Nação da América Latina, tenta elucidar estas questões ao perceber o
paradoxo de Estados independentes, mas enraizados politicamente nas estruturas
coloniais.
O exemplo mais prático desta ação pode ser revelado na práxis do Quilombismo,
explorada por Abdias do Nascimento (1980). No âmbito da luta social, anti-imperialista
o quilombismo coloca-se como uma ação libertadora através da reorganização da
sociedade pelo regate da memória e empoderamento dos atores, antes oprimidos.
Vê-se que a raça, estando na centralidade da estrutura de poder que compõe a
ordem capitalista mundial moderna, possibilita a formação do discurso colonial em
binarismos, na qual restringe a história e sua construção à uma Europa moderna,
civilizada “universal”. Com isso, se é colonizado não só as estruturas materiais da
sociedade, mas também a concepção dos saberes.
Desta forma, por mais que seja possível pontuar o fim formal do colonialismo,
os elementos de colonialidade ainda se fazem enraizados na estrutura de poder, sobre as
quais os atores das relações Internacionais pautam suas ações e, não obstante, a raça
continua ser um elemento categorizador da sociedade. Isto pode ser vislumbrado na
ação do Estado Brasileiro, para com o continente africano ao mobilizar tal artefato
discursivo a fim de traçar pontes estratégicas.
Frantz Fanon é um importante pensador considerado um dos precursores do
argumento pós-colonial, os trabalhos de Fanon apresentam elementos fundamentais que
nos permitem pensar a base de um pensamento epistêmico decolonial, articulando a
crítica ao colonialismo. O autor elabora um deslocamento em termo de
temporalidade/historicidade, ao denunciar o colonialismo europeu existente na África e
33

Ásia até a metade do século XX, assume uma posição contrária a esta estrutura de poder
e emprega a luta pela descolonização do ser e do saber.
Em “Os Condenados Da Terra”, expressa o autor que a vida é um combate
interminável (FANON, 2009). É deste modo que ele concede as condições necessárias
para a luta pela decolonização e argumenta que, se queremos pensar, refletir ou teorizar
sobre a colonialidade do ser, faz-se necessário que haja, precisamente, a existência e a
manutenção de um contato afetivo ativo ou, por assim dizer, uma experiência concreta
com o ser colonizado.
Em Crítica da Razão Negra, Mbembe aponta a ligação estrutural entre o conceito
da modernidade e o da colonialidade, em que caracteriza a negrificação do mundo.
Segundo o autor, essa concepção extravasa as identidades biológicas e sociológicas dos
sujeitos, a fim de que, seria o negro deserdado do mundo como todos os colonizados
eram “Os condenados da terra”.
O autor argumenta que o colonialismo não é, em nenhuma instância, uma
máquina de pensar ou um corpo dotado de razão. Ao contrário, ele é a violência em
estado de natureza e, assim sendo, não pode inclinar-se, senão, diante de uma violência
ainda maior.
Diante da violência sofrida pelos colonizados, estes se veem destinados a sofrer
até o momento da independência. Também no que se refere à importância da Igreja
católica para a consolidação do projeto colonial, cujo inicio de criação e
desenvolvimento deu-se com a descoberta do novo mundo.
Trata-se de uma denúncia quanto ao papel que a Igreja ocupou nesta estrutura de
poder colonial e, consequentemente, o seu papel no que diz respeito à legitimação da
ideia de raça e a naturalização do sistema de hierarquias dos colonizadores em relação
aos colonizados. Fanon (2008) fornece uma reflexão sólida acerca das consequências
psicológicas do racismo no ser colonizado. Sólida, sobretudo, porque parte de sua
experiência pessoal:
No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldade na
elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é
unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em
terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera de densas
incertezas (FANON,2008; p. 104)

Neste sentido, a maneira com a qual descreve a própria experiência vivida


enquanto vítima do racismo e o descobrir-se negro, a sua negritude, torna-se
34

significativa para compreendermos a dimensão que assume a ideia raça no contexto da


colonialidade do poder.
Diante dos olhares racistas deste mundo de brancos, como explicita Fanon, as
pessoas, ao notarem sua presença nos espaços públicos, expressavam, através de gestos
e atitudes, o incomodo que o mesmo lhes causava. Escreve ele:
Eu existia em triplo. Ocupava determinado lugar. Ia ao encontro do
outro... e o outro, evanescente, hostil, mas não opaco, transparente,
ausente, desaparecia. A náusea... Eu era, ao mesmo tempo,
responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus
ancestrais. Lancei sobre mim um olhar objetivo e descobri a minha
negridão, minhas características étnicas e, então, detonaram o meu
tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, o fetichismo, as
taras raciais, os negreiros. (FANON. 2008; p. 106)

Trata-se aqui, de um universo de questões relacionadas à ideia de raça, sendo


assim, questões essencialmente ligadas à cultura e a identidade.
As sociedades pós-coloniais, aqui entendidas como aquelas que histórica e
juridicamente haviam “superado” a colônia, ainda não responderam o que Mbembe cita
como a questão filosófico-moral fundamental: “como renegociar um laço social
corrompido por relações comerciais (venda de seres humanos), pela violência das
guerras sem fim e pelas catastróficas consequências do modo pelo qual o poder era
exercido?” (MBEMBE, 2001).
A partir do que expõe Walter Mignolo (2007), destaque para o fenômeno das
teorias científicas racialistas, que, até o final do século XIX eram, não só aceitas, mas
também, resultavam em fundamentadoras e legitimadoras de determinadas políticas de
Estado. A “mestiçagem” será, então, evocada nos discursos da democracia racial como
aquela capaz de legitimar a homogeneidade pretendida pelos Estados Nações.
As consequências seguiram sendo perversas e profundas para a imensa
população de recém-libertos dos regimes de escravidão. Nas palavras de Florestan
(1965, 114), em sua análise sobre a situação do negro na sociedade de classes , pontua
que “estes ex-cativos tiveram que viver por si e para si”, posto que as autoridades
governamentais, ou seja, o poder público e a legislação mantiveram-se “indiferentes e
inertes” para com a situação das populações negras.
1.1 Feminismo Decolonial

Sabemos que o racismo é, hoje, um dos grandes problemas que marcam


profundamente as relações sociais em todo o contexto latino americano. Como pontua
Quijano, ainda que o racismo não seja a única manifestação da colonialidade do poder
35

ele é, sem dúvidas, a mais perceptível e onipresente. (QUIJANO, 2000). Desta forma
como nos sublinha Ochy Curiel:
Estos dos autores, entre otros, nos ofrecen un profundo análisis del
colonialismo desde lo que hoy se denomina “posiciones subalternas”.
Como intelectuales negros desafiaron el eurocentrismo del
pensamiento y de los análisis políticos, dejándonos un legado
importante para la comprensión de la realidad latinoamericana. Pero a
pesar de estos grandes aportes, ni Fanon ni Cesaire abordaron
categorías como sexo y sexualidad. Tampoco lo hacen los
contemporáneos latinoamericanos que escriben sobre estos temas
(Mignolo, Quijano, Dussel). Si bien sitúan la raza como criterio de
clasificación de poblaciones que determina posiciones en la división
sexual del trabajo, solo mencionan de paso su relación con el sexo y la
sexualidad, además de no referirse a los aportes de muchas feministas
en la creación de este pensamiento. (CURIEL, 2001; p.93)

Para a autora, o contemporâneo cânone acadêmico em torno da noção de


“colonialidade do poder”, situando intelectuais aclamados mundialmente como
Mignolo, Quijano, Dussel etc que ganham o status de precursores de um conceito já
vivenciado e promovido por intelectuais como Aimé Cesaire nos anos 1930, Franz
Fanon nos anos 1950, historicamente invisibilizados nos círculos acadêmicos.
Ampliando a história, localiza as lutas por direitos civis em África e Estados Unidos no
contexto do apartheid e o que ela chama de “feminismos feitos por mulheres
racializadas” afrodescendentes e indígenas atuantes já desde a década de 1970 que vêm
rompendo com a lógica colonizada e racista do pensamento acadêmico.
Posto que, como sugere María Lugones:
Gênero como categoria também foi construída pelo colonialismo,
desse modo, as categorias homem e mulher recebem significados
diferentes em corpos colonizados e não colonizados. E por isso
precisam ser questionadas, fazendo-se necessário descolonizar o
gênero (LUGONES, 2008, 201).

Como proposta, Lugones apresenta a “colonialidade de gênero” diretamente


relacionada com a “colonialidade do poder”, uma vez que a classificação racial da
população mundial é condição necessária para a sua constituição. Pensa a colonialidade
de gênero como híbrido entre dois marcos analíticos, colonialidade do poder e
interseccionalidade, que têm demonstrado a exclusão histórica e teórico-prática das
mulheres negras. A imposição das opressões de gênero racializada e capitalista constitui
a colonialidade de gênero a autora procura visibilizar as mulheres negras e a
brutalização e a desumanização que a colonialidade de gênero lhes impõe.
36

Uma vez que, o pensamento decolonial exige, antes de tudo, um esforço de


descontrução, desnaturalização do caráter universal que pressupõe a história da
humanidade como linear, universal e sempre direcionada para o progresso. Depreende-
se, então, que toda qualquer busca por alternativas requer, necessariamente, que sejam
questionadas o conjunto de saberes que foram produzidos à custa da imposição de uma
ideia de superioridade que, ademais de completamente e etnocêntrica, assumiu também
características hostis e perversas.
O conceito de “sistema moderno/colonial de gênero” procura elucidar como,
historicamente, determinadas construções de gênero operaram produzindo diferentes
realidades e, consequentemente, diferentes formas de violências para as mulheres. Por
exemplo, as construções relativas à sua fragilidade, de rainha do lar, de circunscrita ao
espaço privado da casa, esposa, etc. são específicas para as mulheres brancas e percebê-
las como universais invisibiliza a violência imposta àquelas que estão fora destas
normas de gênero. De acordo com Sueli Carneiro:
As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada
que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem
reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa
que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade
feminina das mulheres negras. Quando falamos do mito da fragilidade
feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos
homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós,
mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres,
provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas
esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte
de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como
escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras,
prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas
disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar!
Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de
objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de
engenho tarados. São suficientemente conhecidas as condições
históricas nas Américas que construíram a relação de coisificação dos
negros em geral e das mulheres negras em particular (CARNEIRO,
2001, p. 1).

Tais afirmações, em absoluto desqualificam as ações daquelas mulheres para


adentrarem o mundo do trabalho, tampouco tornam seus feminismos menos
legítimos/importantes. Somente mostram que se faz necessário a investigação do que
está subjacente à categoria mulher e às relações de gênero geradas por ela, na medida
em que aquelas que estão à margem do modelo hegemônico são interpeladas por mais
de uma fonte de opressão.
37

O enfrentamento da estrutura colonial produziu lutas concretas de mulheres e


homens colonizados contra as metrópoles nas Américas, na África e na Ásia, e é esta
tradição de resistência que faz com que se aposte em mudanças produzidas por outras
perspectivas políticas e epistêmicas provenientes da radicalidade do lado subalterno da
diferença colonial para a elaboração de novas utopias não capitalistas, capazes de
infligir redefinição/derrota ao colonialismo persistente e a sua lógica implantada pelo
“homem heterossexual/branco/patriarcal/ cristão/militar/capitalista/europeu, com as suas
várias hierarquias globais enredadas e coexistentes no espaço e no tempo”
(GROSFOGUEL, 2010, p. 463).
Na América Latina, por sua vez, a presença da dimensão racial, ou melhor, da
fissura racial, fez com que a comunidade nacional se identificasse com a comunidade
das elites brancas, enquanto os segmentos não brancos, de cor, apareceram, ao fim do
processo, como a exterioridade do recém-formado Estado-nação, como margem, como
(não)sujeitos sem direitos, sem cidadania.
Esse purismo de casta, essa endogenia das elites brancas, que levaram a cabo a
independência política das antigas colônias, resultou numa completa indiferença ao
problema da colonialidade/ racialidade no processo de transição e formação dos Estados
latino-americanos. A nacionalização foi realizada sem descolonização/decolonialidade.
As exceções do Cone Sul são explicadas por Quijano sobretudo pela quase total
eliminação da sua população não branca.
Por fim, há ampla produção teórica sobre racismo no Brasil das últimas décadas,
contra toda evidência e todas as vozes das vítimas que se levantam contra seus
agressores, há uma reorganização estruturante da branquidade na academia brasileira.
Além das dificuldades de reconhecimento enfrentadas por grupos excluídos,
sempre que se apresenta um discurso que denuncia o racismo, intenta-se demarcar
distinções “locais”, capazes de impedir ou dificultar a compreensão dessa importância.
A estratégia discursiva consiste em, ao se demarcar uma diferença “nacional”, afastar a
apropriação tanto de perspectivas brasileiras quanto estrangeiras que considerem o
racismo como elemento estrutural das práticas e discursos no país. O raciocínio não é
novo – a abolição foi retardada no Brasil sob o fundamento de que a escravidão aqui era
diferente.
As “diferenças nacionais” são, de fato, resultado de um longo processo histórico
em que o medo da presença do “outro”, no espaço da política e do direito, produziu uma
tradição acadêmica capaz de negar uma memória coletiva de lutas sociais. Insistimos,
38

porém, com a hipótese de que a ideia e a prática da “raça” organizam os lugares de


exclusão e o controle social. Nomear o racismo nas práticas de controle social não é
criar o racismo onde não há, ao invés disso, é descumprir o pacto da branquidade que
consiste em silenciar as vozes negras.
É importante ressaltar que, assim como outros autores da perspectiva
afrocêntrica, antes mesmo da construção da expressão mais conhecida do projeto
decolonial - colonialidade do poder, cunhada por Aníbal Quijano no início da década de
1990, Gonzalez já localizava o racismo como o eixo estruturante do sistema capitalista e
suas investidas coloniais e imperiais.
O racismo, portanto, desencadeador das “feridas coloniais”, será a própria
contingência do que autora cunhou como amefricanidade6. Ela ainda distingue duas
“faces” do racismo, que a despeito de se diferenciarem enquanto “táticas” têm o mesmo
objetivo: a “exploração/opressão”. O primeiro tipo, o racismo aberto, seria característico
das colonizações protagonizadas por sociedades de origem anglo-saxônica, germânica
ou holandesa, cuja articulação ideológica aloca o signo “negro” à ascendência, ou seja,
“negra é a pessoa que tem sangue negro nas veias” (GONZALEZ, 1988, p. 72).
Essa face do racismo não tolera a miscigenação, apesar de, como bem lembra a
autora, o estupro e a exploração sexual da mulher negra terem sido sempre um fato. No
entanto, a expressão desse racismo ganha uma institucionalidade objetiva, segregadora
dos grupos não-brancos, como foi a doutrina do “apartheid”, na África do Sul.
Já as colonizações protagonizadas por sociedades de origem latina, notadamente
as luso-espanholas, originaram um tipo de racismo por denegação ou disfarçado,
sustentado pela ideologia produtora das “teorias da miscigenação, da assimilação e da
democracia racial”.
Assim, ao propor categorias próprias para pensar a história das(os)
afroameríndias(os), aposta no desprendimento do conhecimento europeu e aponta para a
descolonização do pensamento através da desconstrução das estruturas de poder que
mantêm a colonialidade do saber, usando categorias fundadas a partir da cultura negra.

6
No pensamento de Lélia, o núcleo da amefricanidade é constituído pela cultura negra que, informando
toda a cultura brasileira, se expressa “na cotidianidade de nossos falares, gestos, movimentos e modos de
ser que atuam de tal maneira que deles nem temos consciência. É isso que caracteriza a cultura viva de
um povo.” Entretanto, a cultura negra “não é apenas o samba, o pagode, ou o funk. Mas ela também é o
rock, o reggae, o jazz. Ela não é apenas a Umbanda ou o Candomblé, mas é também o transe das igrejas
carismáticas, católicas e protestantes. Ela não é apenas o ´nós vai´ e o ´nós come´. Mas a musicalidade e
as pontuações discursivas que nos diferenciam dos falares portugueses e africanos.” (Discurso de posse de
Hilton Cobra do Centro Cultural José Bonifácio, Rio de Janeiro, escrito por Lélia em maio de 1993.
39

Desenvolveu inúmeros escritos acerca da situação de exclusão e discriminação a que


estavam submetidas as mulheres negras, tanto no contexto brasileiro quanto no cenário
latinoamericano, defendendo “a articulação entre as categorias de raça, classe, sexo e
poder” para desmascarar “as estruturas de dominação de uma sociedade” (1988, p. 138).
Embora não tenha aprofundado o tema, Gonzalez chamou a atenção para a
importância de se entender os efeitos resultantes da articulação dessas estruturas de
poder na definição do lugar social dos sujeitos na sociedade, principalmente das
mulheres, pois tal articulação faz com que as não brancas ”sejam as mulheres mais
oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente”
(1988, p. 137). Neste sentido, diz, o racismo articulado com o sexismo produz efeitos
violentos sobre a mulher negra em particular.
Para analisar as representações das mulheres negras costumeiramente veiculadas
na sociedade, Gonzalez (1983) parte de três noções, todas atribuições de um mesmo
sujeito: a mulata, a doméstica e a mãe preta. As mulheres negras, de modo geral, são
enquadradas em uma dessas categorias. A mulata, a mucama, a mãe preta, a empregada
doméstica são representações racializadas resultantes de construções racializadas de
gênero. Diante disso, necessita-se de leituras acerca da construção de estereótipos
atentas à raça, gênero e sexualidade, capazes de permitir a investigação dos elementos
que a colonialidade organiza para engendrar os estereótipos acerca das mulheres negras
e desvendar o que está escondido pelo lado escuro/oculto do sistema moderno/colonial
de gênero. Em outras palavras, investigar a constituição das representações racializadas
de gênero.
Esse é o padrão que prevalece na América Latina e, ao olhar de Lélia Gonzalez,
se constitui na forma mais sofisticada de alienação dos sujeitos racializados. Esse olhar
histórico é necessário uma vez que a compreensão estrutural do racismo entende que os
fatos históricos não justificam a intervenção nos dias atuais, mas explicam como
surgiram e permaneceram os mecanismos de exclusão que surgiram no passado e
produzem-se com naturalidade nas interações cotidianas até os dias atuais. A
contribuição dos autores do paradigma crítico constitui uma importante ruptura teórica e
metodológica na análise do problema racial no Brasil em especial sua lógica
estruturante.
Neste difícil objetivo de refletir sobre o racismo como processo de opressão na
vida de mulheres negras chefas de família, reconhecemos e nos solidarizamos também
com as muitas resistências que o enfrentam. Apesar de tudo, a população negra,
40

sobretudo as mulheres, segue resistindo e traçando redes de estratégias, as vezes


unificadas, contando as muitas histórias para construir um mundo onde caibam muitos
mundos.
A presente pesquisa ao centrar-se nas narrativas (auto)biográficas de vida de
mães negras buscará interrogar as colonialidades que governam os modos político-
culturais no Rio Grande do Sul e retroalimentam o racismo estruturante no Brasil. Para
tanto, se vale, sobretudo, dos questionamentos decoloniais feministas apresentados
pelas mulheres negras.
Ao trazer os entrelaçamentos de narrativas (auto)biografias as penso como
fragmentos que nos apresentarão a vida a partir do ponto de vista de mães negras chefes
de famílias na cidade do Rio Grande – RS. Suas narrativas possibilitarão a configuração
de experiências, criações, tramas e dramas de sociabilidades e de resistências e acordos
frente ao racismo sexista. Creio que as análises das narrativas me possibilitarão o duplo
papel de refletir o processo de sua produção e a interpretação dos fatos vividos por essas
mães.
No sentido de expor os caminhos e problemáticas suscitadas com a pesquisa,
pretendo que a dissertação seja estruturada da seguinte maneira: no primeiro momento,
serão apresentadas as perspectivas teórico-metodológicas que orientarão a reflexão
sobre os fragmentos de narrativas selecionados. Em seguidas, apresentaremos o
primeiro capítulo que buscará refletir o cenário rio-grandense dando ênfase as
implicações da branquitude nos apagamentos político-culturais assumidas da população
negra. Esse capítulo buscará localizar os capítulos seguintes que estarão centradas nos
dados produzidos com as narrativas das mães que integrarão esta pesquisa.
2. RACISMO ESTRUTURANTE
O racismo estruturante está inscrito no tecido social brasileiro, sobre os corpos
daqueles que compõe sociedades que foram colonizadas. Estes sujeitos e sujeitas
negras, negros e indígenas são desde muito cedo submetidos a marginalização,
inferioridade, exotismo, subserviência, pobreza e dentre tantas outras formas de
violência. De modo que, pessoas brancas e brancos, acessam referências que compõe
seu repertório imagético de superioridade, beleza, poder, dinheiro, liderança, vitória,
cuidados.
Trata-se de um dos resquícios do colonialismo que continua a marcar as
sociedades que foram colonizadas, institucionalizando, internalizando e naturalizando as
41

violências físicas, psíquicas, simbólicas. Fanon (2008) compreende estes elementos


como “neuroses” que marcaram os sujeitos colonizados.
Como todos os processos sociais duradouro, é necessário para o entendimento da
questão racial no Brasil, pautar o diálogo por meio de uma teoria crítica, numa
perspectiva histórica que seja reveladora de como se constituiu a formação econômica,
social, política e cultural e a ação política dos sujeitos com suas condições específicas
nesse país, do que representou o escravismo, a abolição inacabada e o que foi reeditado
na formação social em termos de produção econômica e reprodução da cultura, das
subjetividades e do pertencimento racial.
Nesse sentido, racismo estrutural pode ser explicado a partir de uma racialização
do mundo como um fenômeno associado ao desenvolvimento capitalista, que se
legitima graças à ideologia racista e se reproduz devido à atuação de mecanismos de
discriminação racial. Tanto a ideologia quanto os mecanismos se apresentam de maneira
distinta, conforme o contexto social, político e econômico do país, estas categorias
viabilizaram a coisificação dos humanos, sobretudo a condição mercantil de escravos.
Por esta razão há a necessidade de realizar uma periodização dos diferentes
regimes de acumulação que viveu o país desde a abolição da escravatura para melhor
compreender a forma histórica que assumem a opressão racial e a reação política
organizada à ordem racial estabelecida no caso o movimento negro, uma vez que,
dominação e desigualdade suscitam resistência.
Com o advento da república e a proibição do tráfico de escravos embrenha-se na
sociedade brasileira outros modos de reestruturação social e econômica. A escravidão
era um artifício importante não apenas para a garantia e vigência de uma determinada
estrutura capitalista colonial no período, como também colocava em prática a
estratificação social, demarcando o lugar social entre negros e brancos, afim de manter a
hierarquização das raças.
De maneira gradual e regulamentada por meio de legislação específica, em 1850,
fora vedado o tráfico transatlântico de escravos africanos, dando início a uma abolição
lenta, gradual que resultou num processo brutal de exclusão e genocídio contra os
negros e seus descendentes. Em 1871, lei do Ventre Livre e em 1885, lei dos
Sexagenários, ao contrário do que poderia se supor, esses dois arranjos compuseram e
permearam toda a história republicana do país: o descaso com as crianças e com os
idosos. A Lei do Ventre Livre que libertava os filhos de escravos nascidos a partir
42

daquela data foi, na prática, uma forma de tirar a responsabilidade dos senhores de
escravos sobre as crianças que nasciam na senzala.
Soma-se a isto a inexistência de políticas sociais que atendesse as demandas
daquelas crianças. Provém daí a marginalização de crianças e adolescentes negros que
hoje são chamados de “menores”. O mesmo sucedeu a lei dos Sexagenários, que
libertava os escravos com mais de 60 anos de idade, mas também sem nenhuma garantia
de assistência social. Uma lei quase inócua, raros em os escravos que chegavam àquela
idade. Até hoje se manifestam as consequências sociais e culturais da longevidade e do
alcance da escravatura no Brasil. Somente em 1888, sem nenhum tipo de reparação
social, promulgou-se a lei geral de liberação dos escravizados.
Após a abolição da escravidão, as relações sociais e políticas entre bancos e
negros são marcadas por três processos principais, Teun A. van Dijk nos incita a pensar
sobre os limites impostos dentro dessa lógica colonial, destacados a seguir:
a) O país não adotou legislação de segregação étnico-racial (diferentemente dos
EUA e da África do Sul), não tendo ocorrido, portanto, definição legal de
pertença racial;
b) O país não desenvolveu política específica de integração dos negros recém-
libertos à sociedade envolvente, o que fortaleceu as bases do histórico
processo de desigualdades sociais entre brancos e negros que perdura até os
dias atuais;
c) O país incentivou a imigração europeia branca em acordo com a política de
Estado (passagem do século XIX para o XX) de branqueamento da
população em consonância com as políticas racistas eugenistas
desenvolvidas na Europa do século XIX;
No final do século XIX o Brasil era apontado pelos viajantes europeus como um
caso de extrema miscigenação racial, a fim de escapar ao destino menosprezado pela
Europa de país mestiço, optou pelo incentivo a imigração europeia, conferindo-lhes
vantagens para que europeus pudessem se estabelecer em território brasileiros,
preponderantemente nas regiões Sul e Sudeste.
Durante a mudança do Império para República, o Brasil continua sendo um país
agroexportador, latifundiário e monocultor, ou seja, a estrutura de poder sofre pouco
alteração. Em vista disso, o racismo não se concentra apenas em questões econômicas,
não se pretende aqui ignorar uma questão tão emblemática na nossa sociedade.
43

Contudo, as disparidades sociais não podem ser explicadas apenas pelos fatores
econômicos e sociais.
Desde o pós-abolição para garantir a supremacia racial de uma etnia, a sociedade
foi estruturada de forma racializada por meio de mecanismos estatais para efetivação e
manutenção dessa estrutura. Como coloca Silvio Humberto Cunha (2004):
Os teóricos têm deixado em segundo plano uma outra questão
importante na explicação do atraso econômico, qual seja, a sua relação
com a forma como as sociedades herdeiras da escravidão resolveu seu
passado escravista, o que envolve o destino dado ao contingente de
ex-escravos e seus descendentes, uma população numerosa mesmo
antes da abolição. (CUNHA, 2004, p. 10).

Podemos perceber que as funções sociais da negação do racismo estão


intimamente relacionadas com as funções políticas, já que a imigração, emprego,
educação e políticas sociais precisam estar fundamentadas em ideologias que tenham
como base valores humanitários.
Segundo dados das Nações Unidas no Brasil, sete em cada dez pessoas
assassinadas são negras. Na faixa etária de 15 a 29 anos, são cinco vidas perdidas para a
violência a cada duas horas. De 2005 a 2015, enquanto a taxa de homicídios por 100 mil
habitantes teve queda de 12% para os não-negros, entre os negros houve aumento de
18,2%. A letalidade das pessoas negras vem aumentando e isto exige políticas com foco
na superação das desigualdades raciais.
Uma pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR) e pelo Senado Federal, 56% da população brasileira
concorda com a afirmação de que “a morte violenta de um jovem negro choca menos a
sociedade do que a morte de um jovem branco”. O dado revela como os brasileiros têm
sido indiferentes a um problema que deveria ser de todos.
O país também abriga a quarta maior população prisional no mundo, atrás
apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Tratam-se de 622 mil brasileiros
privados de liberdade, mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes. Mais da metade
(61,6%) são pretos e pardos, revela o Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (INFOPEN).
Na contramão dos demais países, porém, a taxa de aprisionamento no Brasil não
está diminuindo. Entre 2004 e 2014, o índice cresceu 67%. A taxa de superlotação por
aqui também é maior: 147% no Brasil, ante 102% nos Estados Unidos e 82% na Rússia.
O desemprego atinge com mais força a população negra brasileira: eles são 63,7% dos
44

desocupados, o que corresponde a 8,3 milhões de pessoas. Com isso, a taxa de


desocupação de pretos e pardos ficou em 14,6% - entre os trabalhadores brancos, o
índice é menor: 9,9%7.
Nesse sentido, a compreensão do modelo de sistema punitivo e, no caso,
entender também seus reflexos na construção social do criminoso e na identidade do
preso e de seus familiares, necessita, conforme Luciano Góes, obrigatoriamente, tocar
no racismo estrutural e estruturante, tanto da nossa sociedade, quanto da criminologia
enquanto ciência.
A presença do racismo em nosso solo é uma constante, suas raízes
estão tão fortemente arraigadas em nossa sociedade que ele é quase
imperceptível dada a sua naturalização e negação que continua a ecoar
em coro, como um mantra que deve ser sempre repetido mantendo-o
velado, na esperança que desapareça, sem nunca ter sido enfrentado de
fato (GÓES, 2014, p. 452)
Esses dados são fundamentais para que possamos entender a configuração do
padrão das relações raciais no Brasil, a partir de um processo histórico, atualizado pelo
racismo estruturante, este sustentado por meio de um sofisticado sistema de
classificação racial com base na aparência, resultante da apreensão simultânea de traços
físicos configurados pela cor da pele, traços da face, cabelos, acoplados a condição
socioeconômica e região de residência.
Não obstante as desvantagens da população negra, estudos apontam que as diferenças
do passado não são suficientes para explicar as desigualdades atuais. As diferenças de
oportunidades de ascensão social são operantes para manter e acentuar estas
desigualdades. Diversos indicadores sociais brasileiros revelam um país com alto índice
de disparidades entre brancos e negros, que perpassam as classes sociais.
Diante das variadas possibilidades de se analisar a essência do racismo no Brasil,
uma das configurações apresentadas por essa forma de opressão corresponde ao racismo
estrutural, ou seja, um sistema de opressão cuja ação perpassa o arranjo das instituições,
eis que transpõe desde a apreensão estética até todo e qualquer espaço nos âmbitos
público e privado, haja vista ser estruturante das relações sociais e, portanto, estar na
configuração da sociedade, sendo por ela naturalizado.
Assim, por corresponder a uma estrutura, o racismo não está apenas no plano da
consciência a estrutura é intrínseca ao inconsciente. O racismo age como um agente

7
Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
45

invisível que vai determinando futuros de jovens, perspectivas de ascensão social para
trabalhadores, longevidade para adultos e graus de dificuldade para projetos pessoais.
Ele transcende o âmbito institucional, pois está na essência da sociedade e, assim, é
apropriado para manter, reproduzir e recriar desigualdades e privilégios, revelando-se
como mecanismo colocado para perpetuar o atual estado das coisas. Sobre o racismo
estar no inconsciente Clovis Moura afirma que:
Foge a uma configuração dialética e totalizadora pois, acreditamos, o
ex-escravo é aquele elemento que inicialmente e de forma
racionalizada, era visto pela sociedade global, especialmente no
mercado de trabalho, como incapacitado para exercer uma série de
atividades que eram resguardadas para o trabalhador branco,
especialmente imigrante no caso de São Paulo. Desta forma, quando
nos referimos a ex-escravo temos em vista uma definição mais
abrangente que engloba tanto aquelas limitações subjetivas,
destacadas muito bem por Otávio Ianni - o trauma da escravidão –,
decorrentes da herança que o negro adquiriu do cativeiro, como a
contrapartida, vinda de fora para dentro, ou seja, a imagem que a
sociedade tinha dele e que era, antes de mais nada, a de um incapaz
para o trabalho qualificado no mercado livre... Essa ideologia
determina sua marginalização muito mais do que uma suposta herança
escravista em nível psicológico que o autobarrava (Moura, 1977, p.
20-21).

Esta posição do autor é muito importante pois preconceito de cor, para ele, nada
mais é que eufemismo para racismo e, por sua vez, é antes nas estruturas racistas do que
no negro que se deve procurar os fatores que explicam a sua marginalização (as
condições de vida do negro, nas áreas degradadas dos centros urbanos, na qual a
violência cotidiana do estado e dos grupos de extermínio são uma constante).
Trata-se de um elemento estrutural no Brasil porque formatado desde a vigência
do escravismo colonial como modo de produção (GORENDER, 2010), sistematizado
por Clóvis Moura mediante as expressões escravismos pleno e tardio (MOURA, 2014).
Ainda hoje, em grande parte dos debates o racismo é tratado como patologia e não como
estrutural e estruturante, como defendido por muitos estudiosos. O argumento de
pesquisadores é sustentado pela ideia de que relações são constituídas em um padrão de
normalidade. Segundo Silvio Almeida, podemos definir o racismo estrutural em três
dimensões: econômica, política e subjetiva, das quais a pessoa negra, principalmente
mulheres, encontram-se na base da pirâmide social.
2.1 Relações Desiguais

Assumindo que existe uma estrutura histórica social que prejudica


cotidianamente um determinado grupo de pessoas, não apenas no sentido da
46

generalização e da segregação, em razão do seu pertencimento racial, a outra face desta


realidade é a situação de pessoas que não são prejudicas cotidianamente, em razão do
seu pertencimento racial, dentro da mesma sociedade onde se mantém uma zona de não-
direito, de não-fala, de não-pensamento a qual uma parte dos humanos tem sido
historicamente relegada. Esse grupo, não prejudicado, podemos afirmar, goza de um
privilégio, o privilégio de não ser violentado, agredido, submetido a interações sociais
informadas por estereótipos e outras mais formas de manifestação.
Achille Mbembe (2014) escreve que a raça é uma tecnologia de governo que
organiza populações, define possibilidades de circulação espacial de sujeitos, justifica
processos de exploração e sujeição de saberes. Esses estudos sempre enfatizaram a
noção de que práticas excludentes procuram manter uma ordem social baseada na
estratificação entre diferentes grupos. Tendo em vista tal postulado, os pesquisadores
procuraram entender o funcionamento de mecanismos discriminatórios.
Uma mudança significativa ocorreu ao longo das últimas décadas nesse campo
de pesquisa. Afirmava-se até então que práticas discriminatórias envolvem
necessariamente as noções de arbitrariedade e intencionalidade, uma premissa que
levava os tribunais a impor àqueles que procuram remédios para violações de direitos a
obrigação de provar a intenção de discriminar. Esse postulado, entretanto, começou a
ser questionado à medida que os desenvolvimentos teóricos dessa área mostraram que
muitos tipos de discriminação não implicam necessariamente a existência de motivação
pessoal.
A subordinação pode ocorrer em razão da convergência de desvantagens atuais
com outras já existentes, de normas que não fazem referências a características pessoais,
mas que causam um efeito negativo sobre um grupo que já enfrenta algum tipo de
desvantagem, de estereótipos inconscientes que motivam as escolhas de pessoas
acreditando estar agindo sem preconceitos, além de poder ser produto da simples
preferência por indivíduos de um mesmo grupo. Tendo em vista esses fatos,
pesquisadores começaram a examinar outros possíveis mecanismos responsáveis pela
reprodução da opressão dentro da sociedade. Alguns deles observaram que a
discriminação fomenta desigualdades de status cultural e também desigualdades
materiais. Enquanto certas classes de pessoas gozam de estima social, outras são
tratadas de forma inferior.
Para a definição de racismo sistêmico, ou racismo estrutural o próprio
sistema de desigualdades raciais se encarregaria de reproduzir as
47

inferioridades sociais de fato, bastando que determinada pessoa


nascesse e se socializasse em uma família típica de sua situação racial
(GUIMARÃES, 1999, p.19).

Essa diferença na valoração dos indivíduos acaba funcionando como um critério


para distribuição de oportunidades. Algo então fica claro: o tratamento discriminatório
de uma pessoa tem origem em estigmas sociais sobre membros do grupo ao qual ela
pertence; isso impede que ela tenha acesso a oportunidades sociais. Elas serão então
destinadas aos membros de grupos majoritários, indivíduos sobre os quais não pesam
estereótipos negativos.
Assim, pessoas brancas sempre recebem uma vantagem indevida quando
pessoas negras são discriminadas. Por esse motivo, ser negro ou ser branco não designa
apenas uma identidade racial. Esses termos também indicam posições sociais que
significam exclusão ou privilégio. A eles são garantidas várias vantagens apenas em
razão do status que possuem, embora muitos deles frequentemente afirmem ocupar o
lugar que ocupam por mérito pessoal. A literatura sobre esse tema afirma que o
privilégio é uma vantagem especial atribuída a um número limitado de pessoas que
vivem em uma sociedade estruturada a partir de diversas diferenças de status.
Essas vantagens beneficiam aqueles aos quais elas são destinadas e oprimem
aquelas que não têm acesso a elas. Privilégios sociais são direitos, sanções, imunidades,
poderes e vantagens que um grupo majoritário atribui a uma pessoa simplesmente por
fazer parte dele. Os privilégios de certas categorias de pessoas estão diretamente
relacionados com a opressão de minorias porque a condição na qual tais pessoas vivem
provoca a contínua privação de oportunidades sociais, abordarei mais do assunto no
próximo capítulo em que será pautada a branquitude.
A opressão acontece porque grupos majoritários têm o poder de impor a outros
rótulos e condições que legitimam uma organização social na qual as pessoas ocupam
lugares específicos. Mais problemático ainda é que a situação de subordinação de
grupos minoritários passa a ser explicada a partir de supostas características desses
indivíduos, o que contribui para a invisibilidade dos sistemas de privilégios.
Os elementos já mencionados apontam para um aspecto importante, mas
frequentemente ignorado nos estudos sobre os processos de exclusão social: eles não
implicam necessariamente motivação individual, mas, sim, ações coletivas que
procuram manter ou criar vantagens competitivas para os membros de grupos
majoritários. Por exemplo, aquelas instituições controladas por pessoas brancas atuam
48

como verdadeiros cartéis raciais por reproduzirem formas de discriminação que


permitem a concentração de benefícios nas mãos desses indivíduos. Assim, da mesma
maneira que cartéis econômicos dominam o mercado por meio do controle dos preços e
da oferta, cartéis raciais garantem privilégios sociais ao manter minorias raciais fora de
oportunidades que poderiam garantir o mesmo status que pessoas brancas possuem. Isso
impede que negros possam competir por oportunidades nos mesmos termos.
Embora muitos argumentem que a discriminação possui um custo significativo,
já que o mercado recompensa os mais competentes, o controle sobre o funcionamento
das diversas instituições sociais permite que privilégios raciais sejam mantidos porque
toda a estrutura social funciona de acordo com os interesses do grupo majoritário.
Práticas discriminatórias ou meras preferências na contratação fazem com que
trabalhadores brancos tenham acesso aos melhores salários.
Esse poder de consumo superior permitirá que eles garantam melhor educação
para os filhos, os quais não sofrerão exclusão dentro de escolas frequentadas por elites
brancas. Nesses lugares os filhos construirão redes de relacionamentos com pessoas
brancas, cujas famílias ocupam posições de destaque dentro da sociedade, e estes
estarão dispostos a dar aqueles tratamentos preferenciais em processos de seleção,
vantagens que serão passadas para a próxima. Alguns pesquisadores observaram que a
discriminação fomenta desigualdades de status cultural e também desigualdades
materiais. Isso também permite a formação de uma epistemologia social que torna o
privilégio invisível aos olhos dos membros dos grupos majoritários.
Pessoas brancas não classificam a si mesmas em termos raciais porque a raça
serve apenas para descrever minorias. Isso significa que a vasta maioria delas não
consegue perceber um aspecto importante do sistema de dominação social: ser branco
significa estar em uma posição na qual não há necessidade de construção de uma
consciência racial. Um dos aspectos centrais dessa epistemologia é a transparência: a
raça não tem significação na vida dessa parcela da população porque não é um critério
objetivo de construção da identidade pessoal ou de determinação do futuro pessoal.
O grupo racial majoritário tem o poder simbólico de universalizar seus traços
culturais e interesses setoriais e, em razão disso, as pessoas que fazem parte dele podem
viver sem se preocupar com a raça porque representam a regra universal. Essas
representações atuam tanto no plano cultural quanto no plano inconsciente,
determinando o comportamento daqueles que controlam o acesso a bens e
oportunidades.
49

O problema com o fenômeno da transparência decorre do fato de que a


branquitude é um sistema de dominação, uma vez que a estrutura de privilégios raciais é
construída tomando-o como uma referência cultural universal. Não podemos classificar
o privilégio apenas como uma vantagem indevida. Ele possui outras dimensões
importantes. Ele se reproduz dentro da sociedade em razão da sua invisibilidade, o que
permite a garantia de oportunidades aos membros de grupos majoritários sem que isso
possa ser visto como inadequado.
Sua operação se torna ainda mais imperceptível em razão da prevalência da
defesa da igualdade formal como forma de justiça racial, um elemento central da
percepção social de atores públicos e privados. Podemos afirmar que o discurso liberal
dos direitos tem papel central na formação da apreensão do mundo. Essa doutrina
estabelece a proteção das liberdades individuais como o objetivo fundamental do
Estado; cria-se a percepção de que todas as pessoas estão em uma situação de igualdade,
e que o sistema jurídico impossibilita a reprodução de hierarquias sociais. Mas muitos
afirmam que o liberalismo é uma forma de epistemologia que impede o conhecimento
adequado das dinâmicas sociais.
Assim, como a moralidade pública característica das sociedades liberais condena
práticas discriminatórias, o comportamento racista apenas expressa a atitude de alguns
indivíduos que se afastam do ideal social do tratamento igualitário. Observamos no
Brasil a longa presença de uma ideologia que poderíamos considerar como um
liberalismo racial, discurso que aparece em diversos contextos, notoriamente no debate
sobre a constitucionalidade de ações afirmativas. Neste contexto, Góes afirma que:
Na margem brasileira, onde o racismo é estruturante, estrutural e
condicionante, a questão racial, nos finais do século XIX e início dos
XX, ganha status protagônicos dentre a elite nacional, pois o futuro e a
ruptura com o passado da nação passam indiscutivelmente por ela, e
no caldo heterogêneo que se amalgamavam as teorias raciais centrais
nossos cientistas iriam buscar a legitimidade para manter intacta a
estrutura racialmente estabelecida sob a bandeira do liberalismo tardio
(GÓES, 2016, p. 144).

O liberalismo racial brasileiro é uma forma de epistemologia social


fundamentada no pressuposto de que nossa suposta homogeneidade racial exige o
tratamento simétrico entre negros e brancos. Sendo a raça uma categoria que não possui
significação social, ela não pode ser um parâmetro para políticas públicas, pois
comprometeria uma moralidade institucional calcada no tratamento igualitário entre
pessoas com as mais diversas colorações de pele.
50

O Brasil teria criado uma cultura com características claramente humanistas:


nosso amalgamento racial e cultural possibilitou a construção de referências culturais
universais para a formação de identidades individuais e coletivas. Se esse liberalismo
racial estava anteriormente fundamentado na valoração da miscigenação como
expressão de tolerância racial, hoje ele encontra uma formulação mais complexa.
Certos autores mencionam estudos genéticos que demonstram a multiplicidade
de origens dos brasileiros para argumentar que todos nós somos produtos de uma
combinação genética única, o que afirma a necessidade de tratar todos como indivíduos.
Segundo eles, a ciência fornece fundamentos precisos para a discussão de problemas
sociais, uma referência importante para avaliar a necessidade e adequação das políticas
públicas.
Esses estudos genéticos têm sido apontados como um novo paradigma para a
construção de relações sociais baseado no reconhecimento do legado comum de
todos os indivíduos. Por esse motivo, as instituições estatais deveriam implementar
medidas de caráter universal, uma exigência em um estado centrado em premissas
liberais. Obviamente, esse discurso conflita diretamente com uma realidade social
inteiramente fundada na opressão negra. A prevalência dessa forma de epistemologia no
modo como atores sociais interpretam a realidade impede que eles percebam o papel do
privilégio nos processos de estratificação racial no Brasil.
Essa compreensão da realidade tem ainda outro ponto de grande relevância: ao
negar a existência da raça como uma categoria socialmente relevante, eles criam um
discurso baseado na articulação entre homogeneidade racial e igualdade formal, o que é
apresentado como algo necessário para o funcionamento adequado de certas classes de
pessoas que gozam de estima social, outras são tratadas de forma inferior. Essa
diferença na valoração dos indivíduos acaba funcionando como um critério para
distribuição de oportunidades uma democracia liberal.
Os opositores de ações afirmativas argumentam que elas são inerentemente
problemáticas por causa da miscigenação do povo brasileiro, um claro empecilho à
identificação de seus beneficiários. Segundo esses atores sociais, nosso amalgamento
racial e cultural permitiu a construção de uma moralidade pública responsável pela
formação de relações harmônicas entre negros e brancos. A decisão do Supremo
Tribunal Federal que afirmou a legalidade de cotas raciais estabelece que ações
afirmativas são cabíveis porque o grupo que controla quase todas as instituições
públicas e privadas brasileiras é racialmente homogêneo.
51

Tal fato é produto de processos sistemáticos de exclusão social que afetam


brasileiros cujos fenótipos denotam origem africana ou ameríndia, a mesma razão pela
qual oportunidades profissionais estão concentradas nas mãos dos membros do grupo
racial dominante. O ministro relator utilizou o conceito substantivo de diversidade para
advogar a miscigenação dos círculos do poder por meio de ações afirmativas. Pensamos
que isso deve ser visto como requisito essencial para a quebra de um sistema de
privilégios que frequentemente cria vantagens apenas em função da cor da pele dos
indivíduos.
Essa visão da igualdade tem como ponto de partida a afirmação de que o sistema
jurídico pode ser um mecanismo de emancipação social, entendimento que oferece
parâmetros para a justificação de ações afirmativas nas instituições de ensino superior e
no serviço público. Os que advogam essa perspectiva afirmam que a raça é uma
construção social que tem consequências concretas na vida das pessoas: ela legitima
diversas formas de exclusão que atuam conjuntamente para promover a estratificação
racial, pois serve como parâmetro para a ação arbitrária de agentes públicos e privados.
As consequências do racismo presentes nas relações sociais se estendem por
várias gerações porque são fruto de práticas institucionais que afetam a vida de minorias
raciais ao longo do tempo.
O resultado dos esforços de reconceitualizar o significado de racismo nas
sociedades contemporâneas que criminalizam essas práticas e o fenômeno do
tokenismo8 não impedem a manutenção das desigualdades de acesso a direitos
fundamentais destes grupos permanece. Em razão deste contexto, surge o conceito de
racismo estrutural ou racismo sistêmico. O uso desse conceito por teóricos americanos
busca, na verdade, dar visibilidade ao esforço de explicar as razões pelas quais as
desigualdades raciais permanecem, mesmo com a aplicação de políticas de ações
afirmativas e com o surgimento de representantes Afrodescendentes em inúmeros
espaços de poder, e entender por que a raça continua a ser um forte condicionador dos
índices de bem-estar. A ideia de racismo estrutural baseia-se na premissa de que uma
análise estrutural deve fazer parte de qualquer trabalho com a finalidade de igualdade
para que este seja bem-sucedido.
2.2 Racismo Institucional

8
Tokenismo é um termo que vem do inglês 'token' (símbolo) e consiste na prática de fazer pequenas
concessões a um grupo minoritário para evitar eventuais acusações de preconceito ou discriminação.
52

A abordagem institucional foca nos procedimentos e práticas dentro das


instituições enquanto uma abordagem estrutural busca centrar sua atenção nos arranjos e
interações interinstitucionais. Essa concepção surgiu de experiências históricas
demonstrando que, a não ser que a temática de raça e racismo seja levantada e pontuada
sempre de forma intencional e consciente em todos os espaços produtores de políticas
públicas com a finalidade de inclusão, essa temática, da desigualdade racial, tende a ser
ignorada mesmo entre os ativistas sociais mais progressistas; a cegueira racial torna-se o
único consenso, implicando em manutenção das desigualdades constatadas.
Todas as sociedades possuem arranjos institucionais que ajudam a distribuir e
arranjar os benefícios sociais. Essas estruturas não são neutras, e entender o
funcionamento delas, e os mecanismos que levam a resultados injustos socialmente
falando é muito difícil levando-se em conta apenas uma instituição. Quando afirmamos
que existe injustiça estrutural, afirmamos precisamente que pelo menos algumas das
condições prévias de ação consideradas normais e aceitas não são moralmente
aceitáveis.
A maioria de nós contribui em algum maior ou menor grau para a produção e
reprodução de injustiças estruturais porque seguimos as regras e convenções aceitas e
esperadas das comunidades e instituições em que atuamos. Geralmente nós aplicamos
estas convenções e práticas de uma forma habitual, sem reflexão explícita e deliberação
sobre o que estamos fazendo, mantendo no primeiro plano da nossa consciência as
intenções e objetivos imediatos que queremos alcançar e as pessoas específicas com
quem precisamos interagir para alcançá-los.
Essa é a premissa de compreensão estrutural do racismo que busca criticar a
percepção individual e institucional do racismo não as afirmando como irrelevantes para
entender a desigualdade racial, cultural e econômica. mas pontuando a sua insuficiência
para explicá-lo em sua complexidade. Esse não é um debate semântico, mas a
apresentação de diferentes percepções de produção da desigualdade racial moderna;
cada um identifica diferentes causas e pontua diferentes respostas para essa
desigualdade.
O exemplo mais visível de como o racismo estrutural se manifesta é com a
observação da experiência de implementação de políticas de acesso ao ensino superior
de pretos e pardos no Brasil. As políticas inicialmente implementadas lançaram um
olhar detido apenas ao processo de ingresso nas instituições de ensino superior, focando
nas políticas de cotas em vestibulares.
53

Com o decorrer do tempo foi possível notar que o número de alunos negros que
se graduavam nas instituições não mudou significativamente. Isto ocorreu, conforme a
análise mais detida do fenômeno de discriminação indireta e de racismo estrutural
(observado pelos dados estatísticos de estudantes negros ingressos e egressos no ensino
superior naquele período) permitiu notar, porque práticas de discriminação institucional
diversas expulsavam estes alunos incluídos no sistema.
Percebeu-se que o fenômeno de exclusão do ensino superior público no Brasil
não era relacionado a apenas uma instituição, o vestibular, mas relacionava-se a diversas
outras que existiam antes do ingresso, durante o ingresso e após o ingresso conforme se
percebeu. Acredito que é a ausência de uma proposta complexa de observação das
injustiças sociais, incluindo o racismo, que enfatiza e potencializa o impacto das
dinâmicas interinstitucionais, desigualdade de recursos e legados históricos, nas
desigualdades raciais constatadas pelos dados atuais, mesmo em face de políticas
estatais de promoção de igualdade e combate a discriminação pois estas mostram-se
incompletas e insuficientes para combater a forma estrutural com que o racismo se
manifesta no Brasil, principalmente por buscar mitigar ao extremo a responsabilidade
individual, presente nas dinâmicas institucionais e estruturais.
A proposta de compreensão do racismo como um fenômeno estrutural passível
de intervenções institucionais, conforme sugeriu John Rawls, busca trazer a percepção
de que as desigualdades são resultantes do efeito cumulativo de diversos obstáculos
comunicantes, resultantes de uma ideologia formadora de sociedades multiculturais que
têm o racismo como ideologia de base fundante das suas instituições.
Na obra Racism Without racists, Eduardo Bonilla (2006) aponta o racismo como
lógica estruturante a partir de quatro enquadramentos:
a) Abstração liberal, decorre de desajustes normativos que podem ser
enfrentados com mudanças jurídicas.
b) A naturalização do racismo como fenômeno que não pode ser superado
socialmente (em vista disso, observamos o retorno de pensamentos
racialistas biologizantes).
c) A culturalização do racismo, evocando diferencias culturais como marcas ou
clivagens que explicam as hierarquias.
d) A minimização do racismo como problema central, colocando-o sempre na
periferia da agenda.
54

Em face destas transformações políticas, apontamentos demonstram que o


enfrentamento ao racismo estruturante vai além da pressão pontual pelas suas
manifestações. Ele se desenvolve como uma lógica sistêmica articulada com o padrão
de acumulação de riquezas do capitalismo.
Mesmo nos governos Lula (2003-2011) e Dilma (2011-2016) e com as políticas
de ações afirmativas e órgãos de gestão específicos implantados em nível federal, estes
não encontraram respostas efetivas. Em decorrência do Brasil ser estruturalmente
dependente e situacionalmente periférico como nação, as classes desejam se igualar,
pela cor de pele à dos antigos colonizadores ou à dos países que lideram atualmente o
neocolonialismo, tendo em vista se nivelarem aqueles que exploram.
O tipo de sociedade que se construiu ao longo dos anos é uma sociedade que
exclui sistematicamente parcela significativa da população, parcela descendente dos
africanos escravizados no período colonial e que, em nenhum momento da história,
contou com políticas públicas de inserção no estatuto da cidadania. Pelo contrário,
conforme já vimos, o projeto republicano das elites concebia que o lugar de classe
trabalhadora organizada como tal no capitalismo caberia ao imigrante europeu.
Moura defende que não é a condição de ex-escravo que impede a integração
deste na sociedade competitiva de classes. Para o autor, de forma combinada, o limite
histórico da luta dos escravos contra o sistema escravista, o controle pelas classes
dominantes dos instrumentos econômicos e, por último, a política imigrantista do estado
brasileiro, é que resultaram na marginalização do negro do processo produtivo.
Com a chegada do trabalho livre no Brasil, Moura (1994) aponta cinco medidas
modulares foram estabelecidas:
a) A Tarifa Alves Branco (1844), que tinha um caráter protecionista ao início
da industrialização, porém sua idealização foi projetada para absorção da
mão-de-obra estrangeira assalariada, associada a política de desvalorização
do trabalhador nacional negro e não branco.
b) ) A Lei da Terra (1850), na qual a terra se tornou uma mercadoria de
aquisição comercializada pelo Estado, que antes era seu proprietário as
doava aos seus beneficiários. Politicamente, essa lei visava inviabilizar a
possibilidade futura do ex-escravo integrar-se a sociedade produtiva via
doação de terras aos egressos das senzalas e possibilitava que o trabalhador
assalariado se transformasse em um pequeno proprietário.
55

c) ) A Lei Eusébio de Queiroz (1850), que determinava a proibição do tráfico


internacional de africanos e estancava a dinâmica demográfica que mantinha
a escravidão.
d) ) A Guerra do Paraguai (1865-1870), que contou com um exército formado
por um grande número de negros, que lutaram no lugar de seus senhores ou
foram vendidos ao governo brasileiro para participarem compulsoriamente
da linha de frente, o paradoxo era que tal exército lutava contra um país
aonde não existia a escravidão.
e) ) A política imigrantista, que visava resolver o problema da mão-de obra do
trabalho livre com a importação de imigrantes conservando os ex-escravos
como uma massa marginalizada tornando-os reserva de segunda categoria
no mercado de trabalho industrial. A abolição da escravidão, em 13 de maio
de 1888, não constituiu uma mudança qualitativa na estrutura social do
Brasil. Os senhores de escravos foram substituídos pelos fazendeiros de
café, que eram seus herdeiros diretos. E apesar da substituição do trabalho
escravo pelo trabalho livre, o antigo escravo não teve acesso pleno ao
mercado de trabalho.
Ainda hoje, preserva-se a ideia da incapacidade do povo brasileiro em se auto-
organizar e definir rumos próprios para a sua nação que foi fundamentada com base no
racismo. O mesmo racismo que legitimou e justificou socialmente a brutalidade da
escravidão serviu para legitimar e justificar o autoritarismo das elites brasileiras na
sociedade republicana e de mão de obra assalariada.
Historicamente grupos revezam-se no poder, na ocupação de cargos e nas
negociatas com dinheiro público. Os mecanismos institucionais de controle não
funcionam. Por isto, no desequilíbrio entre os três poderes republicanos, o Poder
Executivo sobressai-se em detrimento do Judiciário e do Legislativo, uma vez que este
último é o que mais se aproxima de um espaço público por ter nele representadas as
diversas correntes de pensamento, apesar de também estar corroído pelos vícios do
autoritarismo e práticas políticas corruptivas que dominam o cenário nacional.
A questão de como o racismo se reproduz na sociedade e, mais especificamente,
no mundo do trabalho, fazendo com que persistam as desigualdades raciais no país. No
paradigma crítico que analisamos aqui, procura-se evidenciar que o racismo se perpetua
devido à existência. Tais mecanismos parecem pertencer a duas categorias distintas,
referindo-se à esfera não-econômica de um lado, e, de outro lado, à esfera econômica.
56

Deixemos de lado, pelo momento, a manifestação econômica de tais mecanismos, para


resumir rapidamente seu funcionamento nas outras esferas da sociedade.
Os mecanismos de discriminação não-econômica funcionam fora da esfera do
mundo do trabalho, e se subdividem em cinco áreas principais de incidência: a justiça, a
educação, a política, a habitação e a vida social. Com relação à justiça, alguns estudos
têm mostrado o tratamento diferenciado que recebem os negros nos controles policiais,
bem como durante os julgamentos. Gorender ressalta este desequilíbrio no tratamento
do estado, ao sugerir que os negros têm uma probabilidade muito maior de serem
mortos pela polícia no Brasil.
A política segue sendo uma esfera onde o negro e as minorias étnicas brasileiras
encontram pouca representação. Nos contatos sociais, persistem práticas
discriminatórias contra não-brancos em clubes sociais, restaurantes, comércio, onde
chega-se a recusar o atendimento ao consumidor negro. Outra forma complexa e bem
documentada da atuação dos mecanismos de discriminação não-econômica se dá através
da segregação residencial nos grandes centros urbanos do país, onde sistematicamente a
população não-branca tende a concentrar-se nas regiões periféricas, dificultando-lhes
assim o acesso aos serviços públicos de qualidade.
Em face destas transformações, este foi o resultado da passagem de um sistema
econômico sustentado pelo escravismo para um capitalista, porém, dependente e voltado
para o atendimento das demandas externas. Neste sentido, este capitalismo dependente
reforçou uma posição já ocupada pelo país quando colônia e sustentado pelo sistema
escravista. Dados apontam a herança da escravidão como principal fator de
marginalização do negro, aponta que as desigualdades raciais, na verdade, refletem
principalmente a operação contínua de princípios racistas de seleção social e práticas
discriminatórias que operam por meio de mecanismos sociais que obstruem a
mobilidade ascendente dos sujeitos/as negros/as.
É importante ressaltar que esta herança do escravismo e do período colonial e
imperial não encontrou no projeto republicano das elites nenhuma resposta que
corrigisse os rumos do capitalismo brasileiro. Por esta razão, ao cristalizar estes
resquícios do período escravista, o capitalismo no Brasil nasce com uma face
extremamente conservadora e retrógrada que encontra na associação de forma
dependente ao capitalismo mundial a única via de “desenvolvimento” enquanto sistema.
Por isto, dependência, crise social, autoritarismo, racismo e acumulação predatória são
pilares de sustentação de um sistema econômico que já nasce atrasado no país.
57

Desta forma, a crise social no país assume um caráter estrutural. A sua resolução
passa, necessariamente, pela mudança radical de orientação do desenvolvimento
econômico do país. Mas perpetuou-se a forma de acumulação de riquezas pela via da
superexploração do trabalho, a acumulação predatória. A operacionalidade dos
mecanismos seria assim detalhada por Hasenbalg (1979): a raça, como traço fenotípico
historicamente elaborado, é um dos critérios mais relevantes que regulam os
mecanismos de recrutamento para ocupar posições na estrutura de classes e no sistema
de estratificação social.
Resultou nisto um país uma das piores distribuições de renda da América Latina,
comparável a nações mais miseráveis do planeta. Teses como a do ex-ministro da
Fazenda no regime militar, Delfim Neto, de que “é preciso primeiro fazer o bolo crescer
para depois dividi-lo” se foram duramente criticadas, explicam a esmagadora maioria
dos planos econômicos tocados por sucessivos governos. Ao lado disto, tem-se uma
criminalização constante do movimento social popular, tratando qualquer manifestação
reivindicatória como baderna merecedora de repressão policial.
Mas onde entra o racismo nisto tudo? O racismo foi o mecanismo ideológico que
serviu para legitimar socialmente esta ascensão da burguesia ao poder de forma
conservadora. Aí que entra uma característica particular da formação do capitalismo
brasileiro: a classe que ascende ao poder, a burguesia, se legitima socialmente utilizando
um mesmo mecanismo ideológico que legitimava o sistema social anterior, o
escravismo, e o poder da classe aristocrática. Por isto que a “revolução burguesa”
brasileira foi conservadora, manteve diversas estruturas sociais do sistema escravista e
consubstanciou-se de forma transitória e não por uma ruptura com o modelo antigo.
Clóvis Moura (1988) descreve o período de transição da mão de obra escrava
para a mão de obra assalariada como a fase do “escravismo tardio”. Segundo ele:
“Chamamos de escravismo tardio, o período em que relações capitalistas
desenvolveram-se no seio da sociedade escravista, pondo em cheque o regime anterior e
criando bases para um novo modo de produção”. Foi justamente neste período, que se
inicia em 1850, que se criam bases para a acumulação de riquezas no país transformasse
em capital. A Lei Eusébio de Queiroz, promulgada neste ano, proibiu o tráfico de
escravos. Os recursos que eram utilizados no tráfico foram redirecionados para outros
investimentos, entre eles, a criação de uma infraestrutura no país que permitisse certo
desenvolvimento econômico.
58

Apesar de suas diferentes formas (através do tempo e espaço), o racismo


caracteriza todas as sociedades capitalistas multi-raciais contemporâneas. Como
ideologia e como conjunto de práticas cuja eficácia estrutural manifesta-se numa divisão
racial do trabalho, o racismo é mais do que um reflexo da estrutura econômica ou um
instrumento conspiratório usado pelas classes dominantes para dividir os trabalhadores.
Nesse sentido não se pode considerar que porque nós negros estamos mais bem
representados que ontem, as relações de poder tenham se alterado de fato, pois isso não
acontece. Percebemos melhoras substanciais, mas não reais e estruturais. Pode-se
observar que a mobilidade social do negro ainda é baixa, e a mudança de “status quo”
praticamente inexistente de mecanismos de discriminação racial, presentes em
diferentes esferas da sociedade, e que consistem em ações concretas resultando em
barreiras à ascensão do negro/a.
Nesse sentido explica Batista:
[...] a estrutura social é racista pois, conforme apontado, em todos os
espaços tem-se negros em condição subalternada, ora por violência
estrutural (ausência de direitos), ora por violência cultural (suposta
incapacidade ou incivilidade) e ora por força institucional (controle
policial). As justificativas (ou, de modo mais apropriado, as
desculpas) para manutenção do elemento raça como fator de
inferiorização dos negros apenas são modificadas, mas, até o
momento, nunca eliminadas. (BATISTA, 2018, p. 7)
Assim, ao incorporar as noções de tempo histórico, contexto, processo, essa
abordagem dá atenção à dimensão macro das estruturas e processos sociais/raciais, e
também as influências de grupos mais próximos como a escola e família, definidas por
mudanças que ocorrem na sociedade no tempo e no espaço, por exemplo, no caso da
idade, há uma diversidade de “tempos” de entrar ou deixar a escola ou o mercado de
trabalho ou mesmo se casar.
Considero que essa perspectiva de análise vai mostrar que não apenas as
trajetórias das sujeitas estão relacionadas ao contexto social e a fatores históricos, mas
também sugere que o pertencimento de classe, idade/geração, gênero, raça, são
fundamentais para a compreensão das possibilidades de construção/definição dos
diferentes cursos de vida entre as sujeitas entrevistadas.
3. ASPECTOS METODOLÓGICOS

A narrativa (auto)biográfica se constitui como uma metodologia de trabalho que


toma o indivíduo como centro de interesse. Ela propõe que, através de relatos
particulares, se possa articular outras dimensões mais amplas para o entendimento dos
59

fenômenos sociais. A opção por trabalhar com narrativas (auto)biográficas surge como
uma alternativa de pesquisa que nos permite potencializar as vozes “excluídas” das
narrativas oficiais.
Nas narrativas, como nas memórias, o passado se reconstrói discursivamente de
maneira alinear com idas e vindas, com superposições de tempo, com reflexão e
espontaneidade buscando uma coerência e justificativa para o existir. Neste movimento
é importante demarcar que entendemos que o que retorna não é simplesmente um
registro literal do passado, mas a leitura de imagens e experiências guardadas na
memória e estimuladas sob determinadas circunstâncias. Em outras palavras, não é o
passado linear que é reconstituído na narrativa. Mas, o que é privilegiado na experiência
que marca nossos corpos e auxilia na forma como nos colocamos no mundo
(CAETANO, 2016).
As memórias pessoais de nossas personagens são marcadas pelo afeto e recorro
a elas para entender as viagens que tiveram que realizar para ocupar os espaços em
determinadas configurações sociais e históricas. Ao narrar os fragmentos de suas
memórias, visito um determinado passado na tentativa de encontrar o presente em que
as histórias se configuraram. Nesse caminho proponho-me a tecer cruzamentos e fios
que ficaram momentaneamente “apagados” no e com o tempo. O que busco no
mestrado em curso não é somente trazer informações sobre as histórias desses sujeitos,
mas, sim, estimular em todos e todas que dela se sentem personagem, o surgimento de
outras narrativas para que se produzam sentidos, cruzamentos e tecidos históricos.
Nesse momento, busco nas narrativas do passado o sentido para as
configurações do presente das personagens dessa dissertação. Penso que este exercício
seja fundante para realizar a viagem, que agora, preocupo-me em fazer. Este percurso
será orientado pelas narrativas de mães negras, mas é preciso ter claro que ao fazê-lo
trago corpos constituídos de experiências, de contradições, de configurações
identitárias, de relações e de leituras do mundo que foram percorridos com inúmeros
outros sujeitos.
Sei que a memória está vinculada a escolhas pessoais, mas relaciona-se e está
armazenada em diversas fontes que estão a seu serviço. Preocupo-me em descrever um
caminho, que me possibilite no texto uma reflexão sobre as relações tal qual se
apresentam para mim. Diante dessas escolhas, lanço inicialmente uma pergunta
importante para aqueles e aquelas que reconhecendo a descentração e/ou deslocamento
do sujeito/a elege as narrativas biográficas como caminho metodológico de uma
60

pesquisa. A questão origina-se com a história e/ou trajetória de vida, uma vez que, em
princípio, esta aposta em um sujeito individualizado em informações de sua narrativa.
A decisão foi orientada pelas interpelações que Hall (2003) me provocou. Para o
autor, todo saber será sempre parcial, a realidade é uma construção e a identidade é
sempre um estado em processo. Tenho como objetivo a leitura de determinadas
narrativas que produzem discussões sobre corpos e identidades circunscritos aos
tempos/espaços de sua trajetória. As personagens que dela fazem parte assumem
feições, transgridem fronteiras, reconfiguram desejos e corpos e quando se pensa fechar
o discurso sobre a identidade, inauguram novas posições.
As narrativas nesse texto operam para além do descentramento dos sujeitos, elas
preocupam-se com as condições de suas emergências, mas não deixam de observar
como o entendimento de determinado discurso operou como verdade provocando
mudanças nos corpos de nossas sujeitas. Penso que elas, configuram o que Hall (2003)
afirmou sobre a identidade. Segundo o autor o sujeito assume inúmeras identidades em
diferentes momentos de sua existência. Neste sentido, as identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” sempre coerente e fixo, no interior do sujeito existem
identidades e posições contraditórias que acabam por empurrá-lo em diferentes
direções, de tal modo que suas identificações estão sendo continuamente deslocadas,
portanto, mobilizadas.
Na busca de dar conta da maternidade, essas mulheres negras sustentaram em
seus corpos os comportamentos entendidos e reconhecidos por elas para a sua posição.
São nesses comportamentos que seus corpos buscaram a confirmação, através do olhar
do outro, daquilo que elas desejavam como verdade sobre a maternidade, a negritude e o
feminino. Esses dispositivos/verdades modelaram as formam como pensavam e
conheciam os seus formatos corporais, atuando como mecanismos de controles e
disciplinamentos constantes. Larrosa (1996) argumenta que o sentido daquilo que
somos depende das histórias que contamos aos outros e a nós mesmos, em especial, nas
(auto)narrativas. Quando narramos nos construímos e nosso texto ou as interpretações
que damos, estão sempre relacionados aos acontecimentos.
O ato de narrar sua própria história, mais do que contar sobre si, é um ato de
conhecimento. Através da narrativa, o sujeito constrói uma cadeia de significantes que
estrutura formas cognitivas de representar o mundo e compartilhar a realidade social, ao
mesmo tempo em que engendra sonhos, desejos e utopias. Minha opção pelas trajetórias
61

de vida de nossas personagens emergiu por considerar a metodologia adequada para


articular as dimensões individuais aos fenômenos sociais de caráter mais amplo.
Avalio que seja importante destacar que penso a vida não somente como um
conjunto de ocorrências, mas como experiências vividas em um determinado tempo e
lugar e acima de tudo sob algumas circunstâncias. Evaristo (2012) “a nossa
escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande”, e sim
para incomodá-los em seus sonos injustos”. A experiência vivida narrada pela arte de
contar histórias é precisamente o que constitui a natureza da autobiografia.
A trajetória de vida como a concebo vai para além da narrativa (auto)biográfica
do indivíduo. Ao focalizar o sujeito que é narrado penso ser possível dimensioná-lo no
contexto mais amplo. Destacando que não estou preocupado com o sentido romântico –
presente nas concepções humanistas, as quais transforma o personagem em herói –
insisto que me preocupo com os discursos que interpelam as subjetividades e que
operam dando sentido nas configurações das identidades. Se entendo que toda
constituição da identidade é relacional, a narrativa (auto)biográfica das mães negras
serão conectadas com a narrações de outras vidas, numa dinâmica que supõe ir além da
sucessão cronológica individual ou a constituição de nossas personagens pela trajetória
de vida. O que se precisa é reconstruir durações de vida em que as emoções, os afetos,
as reflexões que se irradiam, se cruzem em determinados momentos num espaço sócio-
histórico-cultural de determinadas relações. Adotar a trajetória de vida aliada à
perspectiva decolonial feminista é acima de tudo conceber a linguagem como
constituinte da realidade. É compreender as narrativas como resultado de experiências,
nas quais por sua vez podem e são históricas, arqueológicas e denunciam as formas
como o racismo, o sexismo e a maternidade se interseccionaram na vida dessas
mulheres.
A viagem que vivencio é realizada nas fronteiras identitárias e dos sentidos que
elas assumem nos espaços compartilhados pelas personagens dessa dissertação. Meu
trânsito e as perguntas que faço, levarão-me às trilhas conhecidas e desconhecidas, em
encontros que possibilitarão, espero, problematizar minha formação e a reformação
daqueles e daquelas que me formaram. Como uma viajante que ainda não sabe o destino
certo, ponho-me a problematizar o que considero minhas verdades, a duvidar das
certezas que me alicerçam no mundo e, parafraseando Karl Marx, desmanchar no ar o
que me parece sólido. Assim, a escrita desta dissertação se constituirá como uma longa
viagem, as vezes escandalosa e em outros momentos silenciosa, mas sua elaboração me
62

será, sem dúvida, íntima. Se a viagem é sempre constituída de viajantes, essa escrita
será constituída de personagens que se elaboram e se constituíram na difícil tarefa de
resistir ao racismo e ao sexismo.
No que diz respeito a decolonialidade, Linda Alcoff (2016) aposta na dimensão
política como chave para a leitura da mudança proposta por essa perspectiva. Ela
informa que uma epistemologia política necessariamente considera as condições que
estruturam os papéis epistêmicos, revelando como a autoridade e a presunção de
credibilidade são às vezes arbitrariamente distribuídas. Isto é, considerar o componente
político da epistemologia permite ter acesso aos modos como a produção de
conhecimento legitima um saber em detrimento de outros saberes, como estratégia para
a manutenção dos apagamentos epistemológicos por meio da construção de um ator do
conhecimento genérico, mas que vai corresponder aos aspectos identitários coloniais.
Além disso, a autora propõe que se possa mudar a geografia da razão, por meio
de um esforço para a reconstrução da epistemologia, tornando-a mais próxima da
complexidade da realidade política experimentada e, dessa forma, superando o chamado
obstáculo epistemológico. Por conseguinte, reconhecer que outras posicionalidades
também remetem a certa dimensão de realidade e de verdade tanto quanto a perspectiva
hegemônica, sem a intenção de valorar ou hierarquizar conhecimentos, oferecendo uma
versão plural da história, permite a eclosão de uma virada epistêmica e o rompimento
com a assimetria entre os lugares de enunciação.
Ainda, atentar para o processo em que algumas epistemologias são
desautorizadas e sistematicamente excluídas pelo colonialismo, considerando que existe
um fortalecimento de outras, em um processo de disputa dos espaços de legitimidade,
significa também a retomada do conceito de identidade, colocado em segundo plano por
perspectivas pós-modernas/pós-estruturalistas. Não obstante, trata-se de entender a
identidade como uma estabilização de um processo múltiplo e dinâmico, supondo que
experiências em diferentes localizações são distintas e que a localização importa para o
conhecimento (ALCOFF, 2016).
A Decolonialidade, portanto, oferece uma perspectiva fundamental aos objetivos
desse trabalho, ao recorrer a formas de produzir conhecimento situadas no contexto do
próprio campo de pesquisa: as ferramentas metodológicas, que serão apresentadas na
seção seguinte, apontam para a própria produção epistêmica desenvolvida nos contextos
em que foram estudadas.
63

4. TRAJETÓRIAS DE VIDA E RELAÇÕES DE GÊNERO

Como exercício, pretendo realizar minha narrativa biográfica buscando na


leitura de minhas experiências os conhecimentos preliminares para orientar o diálogo
com as mães. No encontro não pretendo utilizar um roteiro pré-definido para orientar a
conversa, avalio, através de minhas experiências, que a existência de um roteiro, mesmo
aberto a alterações, me criará uma limitação ao diálogo. Em outras palavras, meu desejo
é que as narrativas possam emergir de modo que as minhas perguntas sejam elaboradas
a partir das experiências que são privilegiadas pelas mulheres. Um aspecto fundamental
que esse sentido de experiência não é apenas vivido e pensado, mas também sentido.
Outro motivo que me leva a abrir mão de um roteiro estruturado e físico é a
possibilidade de manter meu corpo e, sobretudo, o olhar voltado à entrevistada,
estabelecendo com elas uma relação íntima e menos semelhantes aos modelos clássicos
de entrevista. Pretendo que o ponto de partida do diálogo seja sempre a apresentação da
investigação de mestrado, as filiações institucionais da pesquisa, a concordância e
assinatura do termo de consentimento (anexo 1). Realizada a parte introdutória, o
diálogo, em princípio, será disparado pela primeira pergunta que será referenciava por
meio de minha experiência de filha de mãe negra-chefa de família. Os diálogos serão
transcritos e acrescidos de novas perguntas e comentários e repassados às entrevistadas.
O primeiro passo metodológico foi realizar encontros em grupo no CRAS
Cidade da Àgueda, em horário que as mesmas julgaram o mais oportuno. Fui até o
CRAS conversar com uma assistente social para falar sobre a pesquisa que estava
realizando e o desejo de realizar os encontros naquele espaço pelo fato de estar
localizado dentro de um bairro, facilitando o acesso para que as mulheres que
desejassem participar do grupo pudessem ir até lá, me foi concedido o espaço e nesse
mapeamento me passaram o telefone de algumas possíveis candidatas dentro do perfil
de mulher negra, mãe-chefe de família. Liguei para essas mulheres ao fazer o convite eu
explicava sobre o que tratava a pesquisa, quais os objetivos e a motivação para o
convite.
Os encontros eram destinados a que as mulheres contassem sua própria história,
ao rememorarem os acontecimentos, as lembranças do passado, elas já estavam de certa
forma narrando o presente pois já estavam indicando seu ponto de vista, sua atual forma
de ver o mundo e seus valores. Os assuntos foram abordados de acordo com o interesse
das entrevistadas, não seguindo uma ordem rígida. Suas narrativas relacionadas à
64

própria vida revelam um paradigma dos momentos mais honrosos ou dos momentos
mais sofridos e significativos da vida. A dor lembrada, a dor narrada é parte
fundamental de suas histórias. As entrevistas foram gravadas, com a prévia autorização
das sujeitas da pesquisa, que assinaram um termo de autorização expressando o
consentimento de utilizar seus depoimentos na pesquisa. Em seguida, as falas foram
transcritas para a análise do conteúdo.
Meu objetivo era compreender como essas mulheres sem luta organizada, sem
uma causa social publicamente reconhecida, sem uma compreensão sistematizada das
causas da opressão social, sem um conhecimento do feminismo afirmam-se como
sujeitas de direitos e deveres.
Fiquei impressionada com a satisfação e disponibilidade com que
compartilhavam as histórias com o grupo, parecia lhes fazer muito bem, muitas vezes
nós tínhamos vivências em comum, semelhantes. Foram quatro encontros, três foram
destinados para as entrevistas coletivas e um foi para uma oficina de turbantes a pedido
das entrevistadas, os encontros duravam em média duas horas, uma rede de
cumplicidade formou-se entre nós. Durante as entrevistas eu gravava as falas.
Os encontros tinham características diferentes, a depender dos sentimentos que
eram projetados nos diálogos, alguns mais descontraídos, outros mais sérios. Ao final de
cada entrevista, os encontros iam tomando importante espaço na rotina das entrevistas e
para a coletividade entre as mulheres. Tudo isso faz com que as entrevistas narrativas
sejam encantadoras, pois elas nos colocam diante da outra e de nós mesmas, não há
como negar as implicações de nossas experiências na construção da identidade que está
a todo momento em transformação, demonstrando que estamos socialmente marcadas
por questões de gênero, raça, etnia, classe, geração, sexualidade, entre outras.
Consciente dessas afetações, o próximo tópico se destina a falar dos sentimentos que
realizar essa pesquisa trouxe.
Recordo os primeiros encontros de orientação tanto individual quanto em grupo
em que eu queria muitas coisas, mas, ao mesmo tempo me sentia perdida nas infinitas
possibilidades sobre o tema de pesquisa. Durante conversas com meu orientador
surgiram várias ideias, e “por que não?”, dizia ele, até que me encontrei num tema que
me atravessava, mulheres negras, porém ainda assim havia infinitas possibilidades ao
falar sobre mulheres negras, atravessando, gênero, classe e raça. A reposta eu busquei
na minha jornada, na minha mãe, nas minhas tias, e nas outras tantas mulheres negras
que são mãe e chefiam lares, visto que eu também faço parte desse lugar. No decorrer
65

das orientações, leituras e investigações, meu olhar sobre o trabalho foi se


transformando, sempre soube que minha vivência seria parte disso, mas, essa pesquisa
foi além, ela me colocou diante de mulheres e memórias que se aproximavam de minhas
experiências, como em um dos relatos que ouvi de uma das participantes ao se reportar
à situações da infância que diziam, reiteradamente, “O negro tem que estar sempre bem
apresentado”. Eu também cresci ouvindo isso e, por muito tempo, foi uma frase que
condicionou minha aparência.
Nos momentos em que estive com as entrevistadas, após as entrevistas
tomávamos café juntas, eu sempre levava bolo, às vezes fazia pão caseiro, algumas
delas também levavam para partilhar com o grupo bolo de laranja, broa de milho... era
um momento reconfortante depois de duas horas em que sentimentos, memórias e lutas
eram narradas.
Não obstante, essa escrita também está atravessada pelas trajetórias das mulheres
participantes, pois ao longo dos encontros e conversas surgiram novas indagações e
inquietações sobre o modo como questões políticas, sociais e culturais influenciam no
modo como as mulheres vivem, sentem e ocupam os espaços na sociedade, até mesmo,
aquelas que porventura não percebem que são influenciadas por isso, mas, que a
pesquisa se propõe a problematizar. Neste caminho, também me vi atravessada por
essas histórias, não apenas como pesquisadora, mas, como mulher negra.
Gostaria de complementar que a transcrição das narrações não é totalmente
literal. A fala das entrevistadas é influenciada pelo meu jeito de escrever, porém, na
medida do possível conservei as expressões que utilizaram para partilhar a riqueza do
diálogo que usaram para expressar suas emoções.
Evitei inserir histórias que se referiam a outros membros da família que
naturalmente surgiam conforme contavam suas histórias, ainda que consciente da
relevância desse entrelaçamento de histórias. Redijo as diferentes histórias na primeira
pessoa, assim como as fizeram. As entrevistas receberam nomes fictícios, a fim de
preservar a identidade e resguardar sua intimidade.
O sentido deste trabalho consiste na tessitura das palavras de cinco mulheres que
serão tratadas aqui não apenas como participantes da pesquisa (ainda que muitas vezes
me reporte dessa forma), mas, como vozes co-autoras deste trabalho, apresentando
semelhanças e distanciamentos, experiências e concepções de vida que ora divergem ora
dialogam, mas, que possuem algo em comum: raça, gênero, classe social e status de
chefe de família. Assim, para conhecer estas histórias, as entrevistas estão divididas em
66

quatro categorias de análises: aquilo que eu planejei e aquilo que eu estou vivendo , a
família que eu nasci e a família que eu constitui, a questão sobrevivência e por fim os
sonhos, aquilo que eu penso para mim e para aqueles que botei no mundo.
Desse modo, a pesquisa foi constituída por cinco mulheres chefes de família.
Nessa pesquisa, procurou-se explorar a realidade vivenciada pela família, sobre o ponto
de vista da mulher chefe de família. As mulheres negras, chefes de famílias,
entrevistadas foram: Luísa - 28 anos; Carolina – 30 anos; Ruth – 32 anos; Glória – 42
anos; Sueli – 73 anos. Aqui, relataram a sua história, deixando penetrar no universo da
mãe-mulher-trabalhadora-chefe de família. Cada história, demonstra particularidades e
peculiaridades, porém, todas apresentam uma experiência comum: a de serem
responsáveis pelas decisões e pela manutenção de suas unidades domésticas.
Ademais, eu poderia adicionar, a familiaridade de uma mulher negra falando
com outra mulher negra evoca laços consanguíneos. Quantas histórias de filhas, irmãs,
sobrinhas me foram contadas! É bem verdade que algumas histórias eram sobre a
precariedade vivida por essas mulheres, jovens como eu, que, segundo as narradoras,
demonstravam absolutas habilidades e desenvoltura para lidar com os obstáculos,
principalmente quando envolviam crianças. Mulheres fortes, capazes de articular
estratégias, avaliar contextos, negociar e administrar crises familiares.
Para apresentar as colaboradoras da pesquisa optamos por deixá-las falar por si
mesmas, considerando a indicação de Lélia Gonzalez (1984), que destaca a importância
dos/das sujeitos/as subalternizados/as assumirem a própria fala. As frases que nomeiam
os subtítulos foram pronunciadas pelas colaboradoras.
4.1 “A vida de casada é uma vida de martírio”

“As mulheres negras têm mais dificuldade pra tudo na vida, até no serviço, eu
mesma fui largar currículo e mal olharam pra minha cara, se fosse uma mulher branca
tinham contratado na hora, isso é o negócio do preconceito”. (Carolina)
“Ou eles vão pela roupa, se a roupa está mais ou menos ou se está muito
simples eles já não aceitam, e às vezes a pessoa não tem uma coisa melhor pra vestir”.
(Luísa)
“O negro tem que estar sempre bem apresentado, se não aí já viu”. (Carolina)
“Eu fico pensando assim, que nós mulheres negras ficou registrado na história
aquela coisa da mulher negra escrava, então até hoje a própria negra se diminui não é
verdade?! a própria mulher negra se contrai, eu não vou lá por que só tem branco, só
67

tem isso, aquilo e aquilo e outro, não mesmo, se nós colocasse a cara e fosse lá e
falasse: eu sou humana eu também vou enfrentar, seria diferente, a gente quebrava o
tabu, é um problema de autoestima, por que a gente vem de uma raça que foi muito
escravizada, não tinha liberdade de nada e aquilo ficou como uma cicatriz, eu sempre
digo que quem está pagando por tudo isso até hoje somos nós ou os nossos filhos,
muitos dizem que as famílias estão melhorando até na raça já que negro com negro não
quer casar então se misturam, eu sei porque tenho amigas minha que dizem eu não
quero que os meus filhos sofram o que eu sofri, eu digo: a eu também, a mesma coisa, o
meu guri mesmo é bem claro, claro mesmo de pele branca só tem os cabelos mais
crespos, a gente que quer melhorar a raça quer isso porque não quer ver os filhos
sofrer, nós que estamos aqui já estamos pra lá do beleléu, mas os mais novos ainda tem
muito o que enfrentar, numa faculdade mesmo, sendo negro tu te sente menos. O cabelo
crespo eu acho muito bonito, eu sempre digo pra minha guria não alisa, deixa assim,
então agora ela não quer mais, o negócio é o seguinte nós não devemos nunca baixar a
cabeça por causa de outros, não podemos pensar que não temos valor porque eu sou
negra, mete a cara e vai em frente, conhece a jornalista Maju né? É um bom exemplo,
sabe, quando chamaram ela de macaca e não sei lá mais o quê, ela deu a volta por
cima, quanto mais tu baixar a cabeça até mesmo aqueles que por serem mais claros
acham que são melhor do que os outros mais escuros, por mais claro que ele seja ele
não vai deixar de ser negro, se ele vem de mãe negra, vó negra né, pode até ter mistura
com o branco mas qual é o lado que mais prevalece?! É o lado do negro, então ele
sempre vai ser aquele mestiço ele nunca vai ser considerado branco, o meu guri eu
sempre dizia isso porque ele não queria beijar pessoas muito pretas e eu dizia: vai lá e
beija! Vai beijar e abraçar. Eu sou negra eu sou tua mãe eu te criei, e ele não queria de
jeito nenhum”. (Sueli)
“Eu também quando comecei a namorar não queria preto de jeito nenhum,
nunca fiquei com preto gurias, não gosto, não adianta é uma coisa da gente mesmo”.
(Carolina)
“Oque nós não podemos fazer é achar que eles são melhor só porque nós
somos negras e eles não é isso que nós não deixar, isso é o antirracismo, porque se não
for assim nós nunca vamos combater”. (Sueli)
“Eu já gosto de um negro bem pretinho”. (Luísa)
“Quando existe amor a cor não importa porque eu vejo tantas amigas minhas
brancas loiras casadas com negros”. (Sueli)
68

“Eu tenho muitos problemas no colégio, a minha filha é bem mais escura que eu
então nós tivemos problemas na escola com o racismo da professora, minha filha
queria trocar a cor da pele, ela falava em casa que queria ser branca. Ela não gosta do
cabelo dela que é bem afro, tem bastante volume eu acho lindo, mas ela não, ela pede
pra alisar, ela sofre com isso porque o que ela passa no colégio que eu não sei?! ele
pede: mãe quando tiver um dinheirinho sobrando alisa meu cabelo, o pai dela é mais
escuro e ela saiu que nem ele, já eu sou mais clara e ela diz: mãe eu quero ter a tua
cor, e eu digo pra ela: eu que quero ter a tua cor, eu qualquer picadinha já fico toda
empipocada vermelha, já a pele mais escura não e custa mais pra envelhecer, antes
mesmo de começar as aulas ela já dizia: ai meu deus será que a minha professora vai
ser branca? E eu dizia tomara que esse ano tu tenhas uma professora negra, da nossa
raça, e graças a deus esse ano ela pegou uma professora negra, porém tem um dia na
semana que é outra professora que fica com a turma e ela é branca e se encarna na
minha filha, ela chega na aula e ela não quer ficar de jeito nenhum, ela chega a chorar,
até hoje ela não me diz o que a professora faz com ela, a minha é a mais pretinha da
aula, me dói porque eu sou mãe, eu vou lá faço queixa mas não adianta, infelizmente a
gente passa por isso”. (Luísa)
“O meu neto é bem branquinho se eu sair com ela na rua vão achar que eu sou
a babá do guri e não vó”. (Sueli)
“É que nem eu, eu nasci numa família de 7 irmãos a mais escura sou eu, os
restantes são mais claros e as pessoas dizem que não sabiam que sou irmã, isso porque
minha mãe é negra e meu pai alemão, aí claro eu puxei a mãe e o resto todo o meu
pai”. (Carolina)
“A pessoa negra quer se defender do racismo de qualquer forma, ela quer cair
fora disso aí”. (Sueli)
“Uma vez eu fui comprar um guarda roupa pra mim eu e uma amiga minha,
hoje ela já não é minha amiga mais, e ela era branca, cheguei na loja pra ver o guarda
roupa, e a atendente nem olhava na minha cara só falava com a minha amiga, mas
quem queria comprar era eu, então essa minha amiga virou e falou: moça não sou eu
quem vou comprar o guarda roupa, é ela (apontando para mim) quem está com o
dinheiro é ela, então tens que mostrar para ela, a vendedora fez uma cara... eu não me
animei a dizer nada, mas aquilo com certeza era racismo. Fui fazer uma faxina esse
ano no cassino, minha irmã arrumou para mim, cheguei na casa a mulher olhou para
mim de cima à baixo e falou que já tinha arrumado outra pessoa, eu falei: mas como?!
69

Se a senhora ligou para minha irmã ainda hoje de manhã pedindo faxina, detalhe
minha irmã é mais clara, eu que sou mais escura levei uma porta na cara. Eu já
trabalhei numa casa em que a mulher só me deu pra comer arroz e tomate, peguei o
serviço cedo e só me deram almoço 13:45 eu já estava tremendo de fome tinha
trabalhado horrores e tive que comer só aquele arroz e tomate, enquanto ela comeu
peito de frango, ovo... se pelo menos ela tivesse me dado um arroz, tomate e ovo que é
sustância, naquele dia eu cheguei chorando em casa, já passei por muitas, eu tenho
uma filha de 15 anos que mora com o pai, ele só quis fazer filho e depois não ficar
comigo porque ele disse que eu era preta e fez tudo pra tirar a guria de mim, ele mesmo
disse quando eu tive ela: eu não te quero eu quero a minha filha”. (Carolina)
“Infelizmente é assim o negro é sempre colocado a baixo, sempre menos, são
coisas que deixam marcas, esses dias uma conhecida disse assim: a para, agora tudo
que se fala do negro é racismo, é mimimi. Eu disse: não é que tudo é racismo a pessoa
sente quando é, é uma coisa que eu acho que a gente vai morrer e não vai conseguir
combater o racismo, a gente vai tentar ao menos melhorar e sempre que a gente for
tentar fazer alguma coisa não podemos nos diminuir, não tenho faculdade, sou pobre,
negra, mas eu penso assim um dia vamos todos para o mesmo buraco, 7 palmos do
chão onde não vai ter cor, não vai ter dinheiro, então não adianta nada, a mãe sempre
arrumava a gente porque a pobreza o capricho é uma coisa o relaxamento é outra
coisa”. (Sueli)
“Minha mãe é um exemplo tem 79 anos, meus pais são analfabetos, meu pai já
faleceu, a mãe não sabe ler então ela se virava de outra maneira, ela é muito esperta
ela faz tudo, hoje em dia ela faz ginástica, ela faz hidro, ela sai sozinha sem saber ler e
escrever ela trabalhou muito tempo de doméstica, já que é o serviço que a gente tem
provavelmente, teve um casa que ela trabalhou mais de 20 anos e ai ela ficou como
governanta dessa casa e são umas pessoas maravilhosas, então agora ela vai pra lá
pois sabe cozinhar muito bem, e vai para lá cozinhar e ficar de companhia, eles pagam
ela, ela faz comida, congela e tal. Ela se diverte, agora final de semana ela disse:
Glória, esse final de semana eu vou para estância com o pessoal. Eles tratam ela super
bem, a mãe teve 11 filhos eu tenho 8 irmãos 2 já faleceram, então é uma família
imensa, da família ela foi a que teve mais filhos porque ela foi pra fora e não tinha
como se cuidar já que naquela época não existia anticoncepcional e foi tendo filhos, as
pessoas diziam que os filhos da Guilhermina iam ter uma porção de filhos que nem ela
principalmente as mulheres e foi o contrário, eles nos criaram assim: vocês tem que
70

estudar, o que nós podemos oferecer à vocês é o estudo. Das 5 mulheres quem filhos
sou que tenho um e a minha irmã mais velha tem um, as outras minhas irmãs não tem
filhos, até por esse medo da sofrer tanto porque era muito sofrimento, era tanta coisa, o
Eduardo não foi planejado porque eu estava namorando o meu ex marido, ai parou a
minha menstruação eu fui fazer o teste e deu positivo o resultado, achei que estava
grávida e eu não estava grávida, parei de tomar anticoncepcional de acabei
engravidando de verdade, ai o Eduardo fez um ano e eu falei bom agora vou ter que
estudar o dobro, trabalhar o dobro, aí fui pra faculdade comecei a estudar pra me
formar e fazer concurso, mas o que que a gente tira disso tudo?! eu sempre digo pro
Eduardo assim: o que a gente consegue com esforço tem mais sabor, apesar de todas as
dificuldades não me arrependo de nada, mas realmente a cor da pele pesa sempre, a
gente tem que estar sempre provando que sabemos fazer e não deixar ninguém passar
por cima”. (Glória)
“Não podemos servir de tapete para ninguém, não é pelo fato de sermos negros
que vamos continuar servindo de tapete para eles. É uma coisa muito medíocre porque
nós somos seres humanos e somos todos diferentes, como é que a uma pessoa vai tratar
a outra diferente por causa da cor da pele, é uma coisa inconcebível, as cotas por
exemplo não é só o negro que se beneficia de cotas é todo mundo, as pessoas falam
para mim: a mas tu fez uma faculdade particular, mas elas não sabe como eu fiz uma,
eu fazia a mesma que uma colega branca a mesma universidade é diferente eu não
tinha acesso para comprar livros, eu não tinha horário para estudar a minha colega
tinha dinheiro para comprar livros e tinha horário para estudar então é diferente o
jeito que eu consegui para me formar foi trabalhando de manhã, de tarde fazendo
estagio indo pra faculdade de noite eu trabalhava de doméstica num apartamento e
fazia faxina em outra pra poder pagar e as pessoas não se dão de conta que é diferente,
tu vai pra aula cansada com sono mas tu vai, mas mesmo assim foi tranquilo não posso
me queixar”. (Glória)
“Eu e uma amiga minha branca, fizemos entrevistas juntas para trabalhar num
supermercado e chamaram ela e eu não, eles olham primeiro a cor da pele, te digo isso
porque fui bem mais arrumada do que ela”. (Carolina)
“Não podemos desistir quem enfrentou o racismo e as dificuldades até aqui vai
até o fim”. (Sueli)
“Eu sai de casa com 9 anos para trabalhar, hoje em dia isso seria trabalho
infantil na época meus pais moravam para fora eu fui morar um uma senhora que era
71

amiga da mãe que tinha um casarão imenso e eu trabalhava pra ela, estudava num
turno e no outro trabalhava e podia sair só domingo, então sábado eu tinha que limpar
a casa e eu não falava para mãe que eu fazia tudo aquilo, que eu trabalhava por que
senão ela ia querer me tirar de lá e se ela me tirasse eu não ia consegui estudar muito,
então eu ia e eu fui até uns 13 pra 14 anos, ai chega aquela época que tu gosta de sair,
que tu gosta de namorar e como ela era um solteirona e eu tinha uma amiga, a gente
saía, mas não é como é sair hoje a gente ficava na praça até 20h/21h da noite e ela
achou que aquilo estava demais e ela falou pra mãe e disse que não queria mais que eu
estava já saindo, que eu estava namorando aquela coisa toda, ai a mãe foi me tirar da
escola e a minha professora não quis que ela me tirasse da escola e ela me convidou
para morar com ela. eu cuidava os filhos dela e morava com ela, então eu fui pra casa
da minha professora para morar, então é muita coisa, uma história muito longa não é
fácil tem que ser muito forte”. (Glória)
“A minha mãe sempre foi uma mulher muito guerreira, o pai plantava arroz e a
mãe trabalhava na roça, dirigia os tratores, e a gente criança, 6h da manhã a mãe já
estava em pé fazendo comida, e a gente trabalhava plantando milho, eu não lembro
com tristeza eu lembro com alegria”. (Sueli)
“O pai trabalhava para uma estância, o pai era campeiro, então era
assalariado então eu lembro que todo salário do pai ia na venda, era uma daquelas
vendas que se comprava fiado no caderno e todos os finais de mês ele ia lá e dava todo
dinheiro, ai pegava mais alimentos. Nunca passamos fome, mas era muito sacrifício,
quando chegava natal e ano novo a gente dava graças a deus porque era comida
diferente. Eu digo sempre pro Eduardo: tu é negro e tu és lindo, tens mais é que te
orgulhar disso, e são outros tempos então pra ele é mais tranquilo, para homem é mais
tranquilo, para mulher pesa mais. (Glória)
Ano passado meu filho de 14 anos arrumou uma namoradinha e ele disse: mãe
ela não me dá bola porque eu sou negro, daí eu disse: meu filho não dá bola é porque
não era a menina certa, estuda primeiro tem tempo”. (Carolina)
“A vida de casada é uma vida de martírio, as pessoas dizem: Sueli tu ainda é
nova mas tu não quer arrumar ninguém? eu digo não muito obrigado, não quero deus
me livre”. (Sueli)
“O meu ex marido, pai do meu filho sempre me deu muita liberdade, sempre me
ajudou muito tanto é que eu me formei em 2003/ 2004, meu filho tinha uns 7 ou 8 anos,
eu fui morar em Rosário do Sul sozinha atrás de trabalho, eu sempre digo a gente
72

consegue, se tu quer tu consegue, eu peguei o endereço de todas as prefeituras liguei


para todas, tinha um contrato lá em Rosário do Sul lá fui eu, morei lá 6 meses, vivia na
estrada para lá e para cá, trabalhei em Bagé, São Gabriel, isso tudo com o Eduardo
pequeno, claro que minha mãe me ajudou e tal. Tinha uma boa estrutura, mas sempre
assim, ele sempre me apoiou e a separação foi porque não deu mais certo, mas
continuamos amigos até hoje. A mãe tem 79 anos, e a mãe tem namorado, ela sai ela
namora, e deixa eu lhe contar, acho que ela tem mais de um namorado, ela vai passear
no laranjal, vai a baile, vive. A mãe teve uma vida muito difícil, imagina 11 filhos. O
meu pai foi bem complicado isso eu não quero comentar, talvez um dia até comente,
mas o pai era muito ciumento. tinha ciúmes do padre do meu irmão mais velho era uma
doença então antes de ter problemas financeiros o pai era uma pessoa muito difícil
então ela viveu espremida e aí quando o pai faleceu ela começou a se organizar a viver.
Hoje ela vive, ela adora cozinhar, na juventude ela aproveitou mas no casamento ela
viveu uma prisão agora ela se libertou de novo, então ela faz de tudo, a gente nem trata
ela como idosa porque ela não se mostra assim, as vezes ela vai lá para casa, ela adora
planta, ela tem paixão por planta, tudo que ela planta fica super bem”.(Glória)
“Eu acho que para relacionamento eu sou um pouco egoísta, porque tudo que é
meu é meu, eu não quero ninguém na volta, eu faço o que eu quero, eu deito a hora que
eu quero, eu vou onde eu quero, levanto a hora que eu quero, como o que eu quero, não
faço nada pra ninguém, só para minha filha, mas eu e ela é diferente, o meu guri que
agora está separado, está morando lá em casa, eu digo: vai arrumar um jeito de ter tua
casa, era tão bom quando era só nós as duas, agora tem que fazer comida pra ele”.
(Sueli)
“Eu fui casada 15 anos, só que tiveram muitas separações e eu não conseguia
deixar dele, ele sempre voltava, eu fui a baile e tudo, mas não adiantava, as minhas
separações foram por ciúmes que era demais, tem ciúmes até dos filhos comigo, gurias
eu era tão vaidosa até uns 4 anos atrás, agora eu não faço nem minha sobrancelha,
uma unha, eu botei essas tranças, sabe o que ele disse quando ele viu? que ia cortar
tudinho, nem trabalhar ele deixa eu não sei que tanto ciúmes é esse. Ano passado,
quando a gente se separou ele ficou com a minha amiga, eu não acredito mais em: eu te
amo, peguei raiva dessa palavra, é muito fácil dizer, o difícil é provar”. (Carolina)
“E o engraçado é que a gente não consegue sair, o pai dos meus filhos era
muito ciumento, onze anos, já pra mais que nós estávamos juntos, e esses dias dentro de
casa ele quase me matou de novo, é que eu não consigo sair dessa situação porque ele
73

vai lá em casa pra ver as crianças, começa a sondar, fica lá um dia, fica no outro, meu
pai diz para eu largar dele de vez, que vai me ajudar com dinheiro. O meu gurizinho é
revoltado, ele bate nos outros porque ele é o nosso espelho né, vê né o pai batendo na
mãe, e eu também bato nele, porque eu me avanço nele, ai é uma vida bem difícil, só
que eu não consigo sair disso sai, separa e volta toda hora. Agora eu estou separada, o
meu gurizinho é muito agitado, aí eu não aguento e ligo para pai dele levar ele um
pouco e assim começa, porque ele começa indo lá no portão, daqui a pouco já entra,
vai lá no outro dia levar uma fralda, e a gente acaba junto de novo, eu estava
trabalhando de noite cuidando de uma senhora, e ele ficava lá em casa de noite para
cuidar das crianças, mas ai ele começou a implicar dizendo que eu andava de caso com
o meu patrão, e começou o quebra pau dentro de casa de novo, larguei o serviço me
separei dele e agora estou na mesma situação de novo, sem serviço, sozinha com as
crianças. O meu pai me ajuda para não ter que pedir nada para ele, porque se eu vou
pedir uma caixinha de leite, ele me bate. Só a gente sabe o que vive entre 4 paredes,
nem para igreja ele deixava eu ir, eu choro, eu fico com pena e volto, porque bate a
saudade, eu me acostumei com ele”. (Luísa)
4.2 “Não vivo para mim, eu vivo para meus filhos”

“Não sou muito de falar, é muito problema para uma cabeça só”. (Ruth)
“Quando a gente é nova e está naquela fase da juventude eu sonhava em muitas
coisas, uma coisa que eu sonhei e não realizei foi ser administradora de empresa, eu
sonhava em ser administradora não fiz, e ai sabe como é, a mente de quando a gente é
jovem com o tempo muda muito, eu tinha aquele desejo de ter minha casa, meus filhos,
meu marido, minha vida e realmente hoje não tenho marido, mas tenho minha casa,
meus filhos que são meus, meu rapaz está com 35 a minha guria com 28, meu neto
maravilhoso, então eu sonhei muitas coisas mas não realizei tudo aquilo que eu queria,
ainda tem muitas coisas para serem realizadas mas também já estou com idade meio
avançada então tenho ir mais devagar, não dá para avançar muito, enquanto há vida
há esperança. Todo dia a gente aprende um pouquinho mesmo já tendo idade, aprendo
com os jovens, com os idosos, então a vida gente é um aprendizado. A minha profissão
é costureira, é meu ganha pão ainda não consegui me aposentar se a gente for viver só
com o LOAS da minha filha a gente passaria fome, então eu sempre faço alguma coisa,
não é aquela coisa que eu sei quanto vou ganhar no final do mês, já aconteceu de eu
não conseguir tirar quase nada no mês, não tirar nem 200 reais, agora mesmo está
74

difícil, a época melhorzinha foi no período do polo naval, que aí eu ganhava um pouco
mais e conseguia conciliar as minha dividas, agora está mais difícil, estou costurando
pouco e além de tudo ando meio ruim do braço é uma dor que incomoda muito, mais
nova também fui cabelereira foi um dos primeiros cursos que fiz, trabalhei em salão de
beleza”. (Sueli)
“A vida vai passando é tanta coisa e a gente até se perde nos sonhos, umas das
coisas que eu sonhei foi em fazer direito era a minha paixão, quando eu ganhei o
Eduardo eu não trabalhava, não era formada, fazia química bem diferente do serviço
social fiz a metade do curso de química quando eu fiquei gravida, não dava pra
continuar fazendo química e ai eu disse: não agora eu tenho que fazer alguma coisa
que me profissionalize, alguma coisa pra trabalhar, como meu ex-marido trabalhava na
UCPEL e tinha a possibilidade de eu conseguir bolsa, então eu consegui fiz serviço
social, a princípio porque era um dos cursos mais baratos, tinha de noite, estudar na
federal de dia é pra quem tem condições, então foi por aí, então escolhi aleatoriamente
o serviço social e gostei, é uma das minha realizações, de uns tempos pra cá eu queria
fazer psicologia, mas ainda não sei”. (Glória)
“Nem sei o que eu sonhei pra minha vida, tudo o que eu sonho da tudo errado,
mas eu não lembro o que eu queria ser, mas hoje se eu pudesse realizar eu queria
ajudar as pessoas de rua, eu não lembro muito mas eu gostava de dançar, então acho
que eu queria ser dançarina, eu acho que era isso. Quando a gente é pequena a gente
tem tantos sonhos, depois que a gente fica grande tudo se perde”. (Ruth)
“Eu tenho vontade cantar na igreja, mas tenho muita vergonha, teve um dia que
o pastor falou que ia me chamar e eu só de pensar já comecei a me tremer todinha. A
minha família é muito complicada, morava com minha mãe mais cinco irmãos, tinha
meu padrasto que batia na minha mãe e ela era muito de beber, eu entrei no colégio
graças a minha avó, se não fosse ela eu acho que não ia sabe o que é um colégio, hoje
em dia minha mãe mora comigo”. (Ruth)
“A minha família não era nem normal nem anormal, tinha pai e mãe, o pai
graças a deus era uma pessoa muito boa em casa muito farto, ajudava muita gente, de
filhos erámos sei mulheres e cinco homens. Um dos meus irmãos mora no mesmo
terreno que eu até hoje, e minha mãe mora lá fora, era costureira, o pai plantava arroz,
depois deu uma fracassada na plantação e ele foi trabalhar de alambrador, fazia linhas
de arame. A minha família sou só eu e meus filhos, nunca me preocupei se o pai ia
ajudar ou não ia, até tentei mas vi que a justiça não ia dar jeito, deixei de mão e fui
75

trabalhar para sustentar eles, a minha filha nunca teve nada do pai dela nem uma
fraldinha, o meu filho ainda ganhou algumas coisas do pai dele, até onde eu moro hoje
foi ele que comprou. O sacrifício maior foi quando eles eram pequenos que eu
precisava mais, mas não tive ajuda dos pais deles, eu sempre pensando que em
primeiro lugar sempre serão os meus filhos, até hoje sou sozinha e eles estão aí
grandes tudo criado”. (Sueli)
“Minha família são minhas duas filhas, uma de dez e outra de quinze, tem o meu
irmão e a minha mãe que moram comigo hoje, já passei muita dificuldade já tive
envolvimento com drogas, minhas filhas não moravam comigo, fazem 5 meses que elas
vieram morar comigo de volta. Criei minha filha mais velha até os sete anos, ai corri
atrás da guarda delas de volta, mas primeiro tive que me curar, me limpar tudo, o que
eu mais queria era ter minhas filhas de volta”. (Ruth)
“Eu tenho a impressão que eu já nasci com a tesoura e a agulha na mão, eu
com oito anos já aprendi a costurar, eu era a costureira das bonecas das minhas irmãs,
minha mãe viu que eu tinha jeito e me colocou no curso de corte e costura, foi mais de
um ano de curso e aprendi, no final do curso tinha uma prova de costurar um vestido e
eu tirei uma nota muito boa, também trabalhei em casa de família por um bom temp,o
foi quando eu vi que não poderia ser doméstica a vida inteira e então fiz um curso de
cabelereira, ai comecei a trabalhar como cabelereira, mas foi por pouco tempo,
quando a minha filha nasceu tive que parar um pouco porque ela necessitava muito de
mim e a assistente social em cima, o conselho tutelar em cima de mim, foi quando a
assistente me disse para procurar os direitos da minha filha que ela tinha direito a
receber um salário para que eu pudesse cuidar dela e para os custos de vida, só que foi
ai que eu atrasei minha aposentadoria, porque ela era menor eu precisava do benefício
para poder acompanhar ela, agora estou pagando como autônoma para tentar me
aposentar, mas com esse presidente agora nem sei o que vai ser mim, mas fazer o que
né, assusta, porque a gente está ficando velha e sem saber o que será de nós no
futuro’’. (Sueli)
“Eu sempre trabalhei cuidando de criança, de limpeza e nunca descontei
porque nunca pensei no futuro, agora é que eu penso o que vai ser da minha velhice,
quando estava gravida da minha segunda filha eu ganhava 180 reais para cuidar duas
crianças, cuidar cachorro e limpar a casa inteira em 8 peças grandes, a patroa nunca
assinou a minha carteira. Trabalhei de ajudante de cozinha em um restaurante, também
nunca assinei carteira eles diziam que era para eu ganhar experiencia primeiro.
76

Recentemente eu trabalhava em outro restaurante no centro da cidade para ajudar na


cozinha, mas além disso eu limpava, fazia tudo, e ganhava 70 pila e quando passou o
tempo da experiência e ainda não tinham assinado minha carteira o patrão me mandou
embora sem me dar um centavo a mais, eles se aproveitam de pessoas que não tem
estudo que nem eu, às vezes não sei o que vai ser de mim e das minhas filhas. Recém
agora em fevereiro que consegui ganhar o bolsa família, é o que vai me ajudar mais um
pouco porque se não.. se eu adoeço já pensou? agora botei o pai das minhas filhas na
justiça, ele nunca deu nada para elas. Eu não penso tanto em mim, eu penso é nelas,
elas falam que eu sou chata, eu digo para elas: estudem porque olha a mãe de vocês
não pôde estudar, não tem um futuro pela frente”. (Ruth)
Meu sonho seria se meus filhos se formassem e fossem alguém na vida,
trabalhando para não ter que passar trabalho porque hoje em dia sem estudo a gente
não é ninguém, a maior herança que uma pessoa pode deixar para outra pessoa é os
estudos, o meu guri não estudou muito mas terminou o ensino médio e fez alguns cursos
por aí, só que não era o que eu queria para ele, mas ele não quer estudar mais, a minha
guria nem se fala, é só falar em estudar para ela que e ela já fica bem doida, se
alfabetizou mas não quis estudar mais, eu queria que ela fizesse algo para que ela
pudesse trabalhar, o fato dela ser cega não quer dizer que não possa trabalhar, na
FURG tem vários cegos estudando, se formando, só que essa daqui é muito malandra,
ela diz que eu incomodo ela, mas eu digo que: mãe não incomoda mãe quer ver o bem
dos filhos, a gente se torna chata porque a gente quer o bem deles, eu digo: bom depois
não diz que eu não avisei. Já que ela não quer eu digo: tu vais ser sempre dependente
do governo, sempre escrava do governo, é esse dinheirinho e deu, se ela não quer
enxergar mais alto eu não posso obriga-la né, a gente que é mãe a gente alerta, a gente
fala a experiência de vida que tem”. (Sueli)
“Tudo o que eu não pude ter e fazer eu quero para elas, que elas possam
estudar, que elas possam ter um futuro e elas escolham o que elas querem ser, agora
tem curso pré-enem de graça para os jovens e eu quero que elas façam, as minhas
filhas cada hora dizem que querem ser uma coisa diferente a mais velha quer fazer
dança. Toda pessoa quer realizar um sonho na vida, não tenho muito, mas o que eu
puder fazer por elas eu faço. O momento mais feliz que eu lembro de ter tido foi
quando tive minha filha a primeira, a segunda também fiquei feliz mas é que passei
mais trabalho, fiquei muito dolorida ganhei ela casa, uma vizinha que me ajudou
porque as pessoas entravam lá em casa e eu com as pernas abertas e diziam que não
77

sabiam o que fazer e eu morta de dor, a minha vizinha teve que me rasgar pra sair a
criança e a tesoura não tinha fio pra cortar o cordão umbilical, tive que ir pro hospital
enrolada em um cobertor e segurando a minha filha porque não conseguiram cortar,
nasceu com 7 meses”. (Ruth)
“Minha filha nasceu de 6 meses e meio, ficou mais de 40 dias no hospital, antes
dela completar 2kg eu tirei ela do hospital, me falaram para tirar ela de lá porque ia
dar problema na visão e dito e feito já tinha acontecido, mas eu não sabia ali eu era
marinheira de primeira viagem. Ela nasceu com a cabeça bem pequenininha e eu na
correria de hospital todos os dias, durante o parto deixaram um pedaço de borracha
dentro da minha bexiga, eu estava com aquela sonda e arrebentou tudinho e ficou esse
pedaço 78 dias dentro de mim sofri, não morri porque deus não quis, podia ter dado
uma infecção generalizada, deus está sempre na vida da gente, eu tinha dor, e dor, e
dor, acredite se quiser hoje eu sou adventista sou pro lado do evangelho, mas na época
eu era mais espírita, fui num senhor que se chamava Darci, falei pra ele dessa dor que
eu sentia nenhum médico sabia o que eu tinha, e ele diss:e minha filha não se preocupe
que eu vou lhe dar esse remédio, tu vai tomar de hora em hora um colher e tu vai botar
para fora em 7 dias isso aí, e não é que em 7 dias botei pra fora mesmo. Saiu na uretra
me lembro do desespero de dor que eu estava, só que eu já estava com aquilo 78 dias,
antes eu fui no médico e voltei na mesma situação, pensei vou procurar em outros lados
a cura, tenho até hoje guardado esse pedaço de borracha, isso dava até um processo.
Minha filha no hospital e eu para cima e pra baixo andando indo em hospital com dor,
morria e não sabia o que era, foi uma luta para mim”. (Sueli)
“Se a minha filha nascesse com nove meses ela ia me matar, porque com sete
meses ela nasceu com quase 3kg, eu quase morri eu acho que quando ela nasceu
desmaiei porque eu não vi mais nada, passei trabalho. Um dia antes dela nascer, eu fui
pro hospital com dor de bicicleta, na época eu estava com o pai delas e ele me levou
pedalando, cheguei lá falaram que eu estava só com 3 dedos de dilatação e me
mandaram de volta pra casa, na volta de bicicleta, caiu um temporal, a gente pedia
ajuda para as pessoas acho que achavam que a gente ia assaltar e fugiam da gente, a
primeira filha eu tinha 17 anos foi bem mais tranquilo, eu só sentia um dor nas
cadeiras, fui pro hospital rindo cheguei lá e pareci que cuspi ela de tão rápido que foi,
só que com 3 meses ela teve pneumonia, mas a segunda com 22 anos...” (Ruth)
“O momento mais difícil da minha vida foi quando soube que a minha guria não
tinha visão, ali tiraram o meu tapete, o meu chão. eu não sabia o que fazer eu sozinha,
78

o pai dela nunca deu uma ajuda, nunca comprou nada, mas eu tive muitos amigos que
me ajudaram, porque nem o pessoal da família ajudou para levar os exames dela para
Porto Alegre, depois levar pra Cuba os exames dela, eu não fui para Cuba, só iria se o
problema dela tivesse solução, mas não teve, então não pude ir, mas o rapaz que foi
levou pra mim todos os exames dela porque ele estava fazendo tratamento de cegueira
lá, ai quando eu soube que não tinha solução eu fiquei sem saber o que fazer, sem
rumo, me senti um trapo, mas graças a deus depois fui me recuperando”. (Sueli)
“Um dos momentos mais difíceis foi quando a minha filha mais velha tinha
meses e deram uma pipoca pra ela comer, eu achei que ia perder minha filha, não sei o
que foi que ela começou a vomitar, acho que fez mal no estomago dela, era um bebê,
ela começou a vomitar, vomitar, ficou sem ar, pensei que ia perder ela, cheguei a levar
ela direto para UTI, depois a caçula de 3 meses com pneumonia e eu sozinha, passei
natal, ano novo tudo no hospital e ninguém ia lá, sabe o que é nenhum parente?
ninguém ajudava”. (Ruth)
Na infância passei muito trabalho na mão da minha mãe, cuidando meus
irmãos. Eu quando era nova era muito baile, de segunda a segunda. Agora minha mãe
está calma, mas ela era muito da bebida, era muito sofrimento, agora ela está morando
comigo eu brigo com ela porque a gente vai no posto de saúde pegar receita médica
para ela, corro compro os remédios que ela precisa ela tomar, e chega final de semana
e bebe cachaça, todo fim de semana ela sai para os bailes, e bebe, ela é alcoólatra, ela
bebe e fuma desde os nove anos, antes ela bebida todos os dias, agora morando comigo
é só quando ela sai final de semana, menos mal, a última vez eu discuti com ela foi
porque ela tem um namorado e chegou em casa com 1litro de vinho dentro de casa, eu
fui tirar dela e ela arrancou da minha mão a garrafa, eu falei pra ela: quer beber?
bebe, mas não aqui dentro de casa. Uma lembrança que marcou que eu tenho da minha
mãe foi um bolo que eu ganhei de aniversário. Eu nunca conheci meu pai ele morreu
num acidente de carro, parece que ele foi buscar leite e um caminhão atropelou ele. O
pai das minhas filhas eu conheci na época de baile, era todos os fins de semana, na
época das parelhas eu sempre ficava com ele. É que nem eu falo, eu tenho minhas
filhas, amo minhas filhas, mas eu nunca amei o pai das minhas filhas, eu gostava assim
de ficar com ele, mas amar... Eu não vivo para mim, eu vivo para meus filhos, eu não
tenho muito, mas o que eu posso dar eu dou pra elas e não pra mim. Se eu pudesse
mudar uma coisa no meu passado seria o meu envolvimento com drogas. Hoje eu sou
da igreja evangélica. A vida é corrida, em casa eu não tomo café, só chimarrão, levanto
79

7h da manhã, café eu só tomo aqui nos nossos encontros, em casa às vezes vou
almoçar 17h da tarde, porque estando em casa sempre tem o que fazer.” (Ruth)
“Antes de vim para cá uma vizinha deixou lá um casaco para eu desmanchar,
mas eu pensei: não, vou lá no grupo de mulheres negras, é importante a gente tirar um
tempo para gente”. (Sueli)
4.3 “Eu sou a mãe, eu sou a responsável por tudo”

“A minha primeira gravidez foi muito boa, tudo normal fiz cesárea ,foi legal, ai
quando chegou na minha guria, a situação ficou russa porque eu tive aborto, ai eu tive
segurar ela até os 6 meses, ai ficou puxado para mim, eu trabalhava em casa, sempre
fui eu que cuidei o meu guri, o pai nunca deu bola e nem o pai dela também. Ser mãe eu
acho uma coisa muito boa, é uma coisa gostosa saber que a gente gera dentro da gente
um serzinho e que daqui a pouco ele estará maior que eu. Eu ficaria triste se a minha
família tivesse parado em mim, eu gostaria de ter pelo menos um filho e veio dois,
mesmo quando a gente não planeja a gente tem que arcar. No dia a dia, a gente vê
algumas coisa que as pessoas até te tratam bem mas no fundo tem um preconceito
enraizado, o meu guri quando nasceu as roupas eram bem branquinhas, no tempo da
fralda de pano, então tinha a família branca do pai do guri e uma vez uma tia dele disse
assim: ai eu vejo essas roupas tão branquinhas na corda de quem será? Eu disse
aquelas roupas na corda são do meu guri, e elas disse tuas? Eu é, porque tu acha que
só porque eu sou negra a roupa também tem que ser escura?! Ela disse não, ficou toda
sem graça, porque eu entendi assim da forma como ela falou aquilo, até porque o
capricho não depende de cor.
Como eu morava lá para fora a gente demorou a ir para o colégio, foi lá por 12/13
anos, estudei até a 6° série depois tive que trabalhar e não deu mais, a matéria que eu
mais gostava era matemática.
Eu conheci o pai do meu guri eu tinha 26 anos, ele me cuidava ai a gente foi se
conhecendo ficamos, eu fiquei grávida ai ele já tinha um caso com outra, era um caso
antigo já e ele está com ela até hoje. Na época eu nãos sabia quem me disse foi a mãe
dele, ai a essa alturas eu já estava grávida do guri, eu disse para ele: o meu filho não
vai ter o teu nome, tu não vai morar comigo nem nada., hoje a gente não tem contato
mais. Com o pai da minha guria foi diferente, a gente namorou, teve um caso e eu
engravidei. Nunca cheguei a casar, quando era mais nova até tive um noivo, foram 5
anos de noivado, eu não sei o que aconteceu, a gente estava noivo com tudo pronto
80

para casar, faltavam 24 dias para o casamento e do nada acabou, dizem que isso foi
coisa feita e eu acredito porque isso existe, a aliança dele sumiu e a gente nunca mais
conseguiu se encontrar, hoje eu sou evangélica, mas eu acredito sim que foi coisa que
fizeram.
Eu já fui de muitas religiões, agora me encontrei nessa igreja adventista, então eu
acredito que religare é algo que a gente precisa ter o contato espiritual, eu fui
mudando, mudando e eu gosto me sinto bem onde estou agora.
Depois quando eu estava sozinha e achei que não queria mais ninguém, conheci um
senhor ele era pernambucano, ele era desquitado e tudo, a gente se conheceu em um
baile e eu até estava pensando em ficar com esse homem, só que eu achava ele muito
boêmio, ai eu comecei a dizer não é isso que eu quero para minha vida, não vou dividir
marido com ninguém, se é comigo é comigo, eu achei melhor eu viver sozinha e também
quando a gente começa a conhecer a palavra de deus a gente começa realmente a
mudar, eu já estou sozinha já fazem 24 anos que eu não tenho ninguém, nem pra xaxo,
eu não tenho aquela vontade de encontrar alguém.
Eu descobri que ia ser mãe porque eu estava com muito enjoo, achei que fosse
problema de estomago mas ao mesmo tempo o coração já estava acelerado,
preocupada achando que pudesse ser gravidez, mas ai já estava, ai comecei a sentir
aquela alegria de estar gerando uma criança, a gravidez da minha filha já foi mais
difícil, eu já tinha o guri sozinha pra criar e eu não queria mais filhos e ela não era
sozinha eram duas, só que uma eu abortei ela eram duas placentas quando eu fiquei
grávida de novo, novamente eu achei que era problema de estomago o doutor deu uns
remédios fortíssimos eu tomei tudo aquilo e depois abortei uma, ai vi que estava
gravida fui no médico e o doutor não fez os exames, meses depois fui no doutor de
novo e ele disse que eu deveria estar grávida de 5 meses, eu falei: mas doutor não pode
ser eu abortei, e ai a minha filha nasceu de 6 meses, eu não tinha barriga.
Pelo fato de a gente ser sozinha tudo é a gente que tem que resolver eu que tenho que
botar o sim ou não, eu sou a mãe, eu sou a responsável por tudo. Até hoje só gostei de
verdade foi do meu ex noivo, a gente já estava com tudo prontinho para casar, tudo
preparado, tudo pronto pra casar e ai cadê as alianças? Pra mim ele era o homem
perfeito para viver e quando eu perdi aquele homem, me desiludi e ai desde ali eu
preferi ter só um cacho, pra mim deu chega de casamento e sozinha graças a deus estou
aqui, não me arrependo da vida”. (Sueli)
81

Realizar esta pesquisa me permitiu transitar, conhecer e atravessar a vida de algumas


mulheres. Os relatos que acabamos de ler nos envolvem na vida cotidiana das
entrevistadas, na sua ânsia quase instintiva por sobrevivência e dignidade. Embora as
personagens sejam diferentes, as histórias se cruzam, se repetem, assemelham-se de
diferentes formas. Sabe-se mais ou menos o desfecho das histórias pessoais: muito
sofrimento, algumas conquistas, poucos prazeres e muita luta pela frente. A “vida
melhor” é seu horizonte de busca, convencidas que “mais adiante” a vida poderá ser
melhor. Saem com “fé em deus”, apostando que ele é o único com o qual se pode
contar. Deixam uma situação difícil e caem em outra mais difícil ainda e assim
sucessivamente.
Durante a entrevista e nas conversas informais que mantive com elas, fiquei
impressionada com a dificuldade que a maioria tem para falar das situações de justiça,
de igualdade, de tranquilidade vividas. Todas as vezes que eu perguntava sobre as
coisas boas ou justas da vida, demoravam muito tempo para nomear uma. É
infinitamente mais fácil falar dos “aperreios”, dos aborrecimentos e sofrimentos. Os
casos de sofrimento fluem numa abundância impressionante em oposição às situações
de gozo e alegria. No fundo, vivem num estafo de agressão e ameaça contínuas e isso é
claro na narração de suas vidas.
As circunstâncias difíceis da vida são apenas “tormentos”, “pesares”,
“desgraças”. Nenhuma mulher à primeira vista identifica essa situação penosa com as
estruturas de violência de nossa sociedade. Do mesmo modo, essas situações não são
qualificadas como infligida pelas estruturas sociais e econômicas excludentes, mas
como uma espécie de “fardo”, de “destino”, no qual se esta não se sabe bem o por quê.
Percebem que a carência de estudo na família, contribuem para que elas tenham poucos
meios para sair das situações difíceis. De qualquer, forma para todas, não se pode
aceitar o sofrimento passivamente. Não se pode estar nesta situação espinhosa sem
buscar saídas.
Possuem uma crença implícita e espontânea de que a vida sempre poderia ser
melhor. Apostam no amanhã como nova possibilidade para organizar a existência. A
instabilidade material e emocional está sempre presente. Não há segurança, mas apenas
apostas, desejos, expectativas de uma vida melhor. O momento presente é sempre o
mais importante, embora se pense no futuro.
5. CHEFIA FAMILIAR FEMININA
82

A chefia familiar era normalmente utilizada para nomear o membro familiar


(geralmente o homem mais velho) que exercia maior poder sobre os outros familiares.
Esse conceito pressupunha a dependência econômica das mulheres e filhos ao chefe do
domicílio e a existência da família nuclear (pai, mãe e filhos). Porém, com o surgimento
de outras configurações familiares, esse termo sofreu modificações. A denominação
chefia familiar feminina pode ser utilizada para explicitar duas situações. A primeira
delas é designar famílias onde não há a presença masculina no domicílio (figura paterna
ou homem adulto). Nessa condição, encontramos mulheres, que moram com seus filhos
e que em relação ao seu estado civil são: mães solteiras, separadas, divorciadas e viúvas.
A outra situação é para nomear famílias cujas mulheres são as provedoras econômicas,
independentemente da presença do cônjuge ou companheiro. Essa concepção abarca as
mulheres que ganham maiores salários que seus companheiros, sendo elas as maiores
responsáveis pela manutenção da casa e pela sobrevivência familiar e, também, as
mulheres que na ausência do cônjuge são as mantenedoras do lar.
A América Latina sofreu influência do padrão europeu de seus colonizadores,
baseado na autoridade masculina. Tal influência favoreceu “o enfraquecimento da
mulher em exigir e contar com a participação masculina nos custos da manutenção dos
filhos contribuindo, conseqüentemente, para o aumento das famílias mantidas por
mulheres” (CARVALHO, 1998, p. 81). Fatores demográficos como a predominância da
população feminina sobre a masculina acentuada pela migração, o gradativo aumento da
gravidez fora do casamento, taxas de fertilidade e faixa etária da população apresentam
significativa influência na população latino americana. São vários fatores associados
que induzem `a constituição de famílias chefiadas por mulheres.
Condicionantes históricos têm relativa influência no aumento da chefia familiar
feminina. À exemplo disso, no Brasil, a escravidão, influenciando o padrão familiar e a
reprodutividade da população negra do país, ocasionando o nascimento de filhos
ilegítimos de escravas negras, mestiças e índias. A separação das famílias escravas,
através da venda de seus membros, fragmentando-as e desrespeitando os vínculos
existentes, e a migração da figura masculina dos lares em busca de trabalho, ou por
outros motivos (serviço, entre outros) e sem retorno, foram outros fatores contribuidores
para a formação de famílias de chefia femininas.
Em uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Demografia Histórica da
América Latina da Universidade de São Paulo - (CEDHAL), encontraram - se registros
de famílias brasileiras chefiadas por mulheres nas zonas urbanas, no início do século
83

XIX. Dados de 1804, em Vila Rica de Ouro Preto, MG, mostram que 45% dos
domicílios eram sustentados por mulheres. Dados levantados em outras regiões do
Brasil mostram a mesma tendência. Em São Paulo, em 1836, por exemplo, 30% das
famílias eram chefiadas pelas mulheres. No Ceará, em 1887, a média era de 30%
(CEDHAL). Durante muitos anos, e até recentemente, as famílias que eram gerenciadas
por mulheres sofriam um ´estranhamento` por parte da sociedade, pois contrariavam as
normas de um contexto social em que pautava a subordinação do sexo feminino ao
masculino.
Desse modo, as famílias monoparentais9 femininas tinham que superar vários
obstáculos, relativos a condições econômicas, convenções sociais e `a inserção no
mercado de trabalho. Somente a partir de 1980, o Censo Demográfico do país incluiu a
categoria chefe, que significa o adulto responsável pela unidade familiar ou pela
residência, em seus levantamentos censitários, sendo que por responsável entende-se a
pessoa que possui a maior remuneração na residência.
Alguns fatores podem ser apontados como condicionantes do crescimento das
famílias monoparentais femininas, entre eles citam-se o aumento da expectativa de vida
da mulher brasileira, o que pode ocasionar um maior número de viuvez feminina; o
crescimento do número de divórcios e separações, sendo que em grande parte dessas
situações a guarda dos filhos permanece com a mãe; e as mudanças de valores
tradicionais em relação ao casamento e aos valores sexuais.
O alastramento da pobreza e as dificuldades de sobrevivência nas cidades têm
contribuído para a formação de diversos arranjos familiares, colocando em relevância a
figura feminina como sustentáculo da casa e da criação dos filhos. Porém, grande parte
das mulheres pobres não possui qualificação, recebem baixa remuneração e ainda são
sobrecarregadas com a dupla jornada de trabalho em suas casas. “A noção de
monoparentalidade tem ficado associada não só a questão de gênero, mas também à
pobreza e raça. Ao gênero, porque a maior parte das famílias monoparentais possuem
como adulto responsável a mulher. E a pobreza porque as mulheres recebem os menores
salários são negras.

9
Famílias monoparentais são compostas por um/a adulto/a – pai ou mãe – que tem sob sua
responsabilidade, uma/um ou várias/os crianças/filhos e encontra-se sem cônjuge ou companheiro/a. O
termo “famílias monoparentais” começou a ser utilizado por sociólogas feministas em meados dos anos
70 na França (VITALE, 2002) e tem assumido relevância em vários estudos, particularmente, no âmbito
das análises de gênero pelas ciências sociais e pelo movimento feminista.
84

Convém ainda ressaltar que a associação entre famílias chefiadas por mulheres e
pobreza aponta claramente estes segmentos como foco de critério para programas
sociais. Na última década, estudiosos da família, na perspectiva demográfica, como é o
caso de Goldani (1994), já chamavam a atenção, a partir dos dados dos censos
anteriores, para esta prioridade. Os possíveis programas dirigidos para as famílias
pobres monoparentais femininas deverão contribuir para sua maior autonomia e não
para estigmatizá-las como sem condições de oferecer cuidados e proteção aos seus
membros (VITALE, 2002).
Na família monoparental feminina, a fonte de renda provém geralmente do
trabalho da mulher, sendo que a renda é insuficiente para garantir o provimento das
necessidades básicas de alimentação, moradia, vestuário e higiene. Além da questão da
renda, a ausência do homem adulto no lar, aliada `a condição da mulher da família
monoparental residir somente com seus filhos, impõe a esta uma grande carga de
responsabilidade, a mulher tem que desempenhar vários papéis e se dividir entre
emprego, tarefas domésticas e cuidados com as crianças, encontrando desta forma,
obstáculos particularmente grandes para sua inserção no mercado regular de trabalho,
com exigência da participação em tempo integral.
A expressão pai ausente contempla diversos significados, podendo ser relativa
ao pai que é falecido, ou ao que abandonou a família por determinado motivo, não
possuindo mais relacionamento ou contato com a mesma; ao genitor que mesmo após a
separação raramente convive com seus filhos, ou, ainda, para denominar o pai que está
presente fisicamente no seio familiar, porém é totalmente periférico nas relações intra-
familiares. O distanciamento do pai do universo familiar pode ser encontrado nos
padrões familiares que moldaram essa instituição no Brasil. No modelo da família
patriarcal, tem-se a figura masculina investida de poder e de autoridade e despida de
afetividade. O pai não participava da educação e da criação dos filhos, sendo essas
tarefas especificamente femininas. O homem era destinado aos negócios e interesses
externos.
Assim, pode-se perceber que os indivíduos não nascem com a determinação de
serem pais ou mães, ou sabendo exercer a maternidade ou a paternidade. Essa
construção é socialmente produzida através da convivência social, da observação dos
modelos familiares, das relações entre pais e filhos e das heranças culturais. Essa malha
invisível de relações naturaliza, cristaliza e condiciona determinados comportamentos
sociais, como se os mesmos fizessem parte da essência do ser humano.
85

Nessa perspectiva, a condição da maternidade feminina surge como um atributo


indispensável `a mulher, está na sua natureza, na sua genética, como se fosse
biologicamente determinado. Porém, não se pode olvidar que a paternidade e a
maternidade não são inerentes ao ser humano. São representações simbólicas,
historicamente construídas numa dada cultura e sociedade, não sendo, portanto,
atributos naturais dos seres humanos. O imaginário coletivo concebe que a
responsabilidade principal pelos cuidados com os filhos cabe `a mãe. A ausência
paterna das relações familiares é mais tolerada socialmente, do que a ausência materna,
sendo esta última carregada de preconceitos, estereótipos e culpas.
Tal reflexão faz-se imprescindível para libertar das determinações sociais
cristalizadas e questionar-se os arcaicos modelos de pai-patrão, mãe-protetora,
auxiliando a construir parâmetros mais flexíveis que atendam `a real necessidade psico-
social-emocional e espiritual dos seres humanos.
Em seu livro, Nolasco resgata a paternidade vista sobre diversas vertentes:
sociológica, mitológica, psicanalítica e sociopolítica; chegando `a conclusão de que
todas essas correntes “concordam em um aspecto: a ausência do pai desestabiliza o
desenvolvimento e a forma de engajamento social do filho” (NOLASCO, 1995, p.159).
Nesse ponto, é preciso esclarecer que a intenção não é supervalorizar a presença do pai
num ambiente familiar. Sabe-se que a figura materna sempre foi valorizada, e a sua
ausência no contexto familiar quase incabível. À paternidade sempre foi reservado um
espaço pequeno quando comparada com a grandiosidade da maternidade e da influência
materna no âmbito doméstico. Pretende-se, demonstrar que estudos retiram o anonimato
paterno das relações familiares, reservando-lhe um local de importância na dinâmica
familiar e suas interrelações.
No Código Civil, artigo 231, inciso III, está expresso o dever de sustento aos
filhos menores, como dever dos pais. Desse modo, as crianças e adolescentes, até que
atinjam a sua maioridade, ou sejam emancipados, têm direito a uma pensão alimentícia,
sendo que entre pais e filhos e entre cônjuges não existe propriamente obrigação
alimentar, mas dever familiar, respectivamente de sustento e de mútua assistência”
(GONÇALVES, 1998, p.133).
O depoimento de Ruth, demonstra que ela procurou o órgão judiciário para
regularizar a situação de suas filhas, cujo pai é totalmente ausente, e percebe-se que
utiliza o meio legal como modo de pressioná-lo a prestar auxílio à suas filhas.
86

No âmbito jurídico e legislativo é objeto de lei a garantia aos filhos dos direitos
em relação aos seus genitores. Direito de saber quem é o pai, e que o nome deste conste
na Certidão de Nascimento, direito `a pensão alimentícia, recebimento de herança, entre
outros. Mas, o que vai suprir a falta e o vazio que a ausência paterna e o abandono ou
rejeição do genitor ocasionam na criança? O meio jurídico apresenta formas de
reconhecer a paternidade, porém não ensina como lidar com a ausência do pai na vida
das crianças.
5.1 CUIDADO E RESPONSABILIDADES

Uma mulher chefe da família, atua sozinha, a partir de diversificados papéis


(mãe e pai, criar e cuidar dos filhos, colocando os filhos na escola, provendo a
educação, o sustento e o amor que necessitam. Assim, tais mulheres provedoras e mães,
muitas vezes, suplantam seus desejos e sua autorrealização para cuidar somente da
família. Perdem a expectativa de reconstituir suas vidas, mutilando seus sonhos,
tornando-se, no decorrer de suas vidas, o arrimo e o porto seguro dos familiares. Dessa
forma, olha-se atentamente à realidade dessas mulheres chefes de família, que entre
limites e possibilidades buscam superar a condição de vulnerabilidade social, tanto pelo
próprio esforço quanto pela via de políticas sociais públicas, numa sociedade que
estabelece direitos e deveres a todos.
A preocupação de todas é sempre: educação e segurança. Cada depoimento
aponta suas especificidades. Se uma sente maior dificuldade na hora de reformar a casa
pela inexperiência de compras com material de construção, a outra reclama de trabalhar
para prover a família e deixar o filho à mercê da própria sorte, na rua após o horário da
escola até seu retorno ao lar. São dificuldades diferentes, mas nenhuma se preocupou
consigo mesma, não falou de sua sexualidade, do seu ser mulher. A dupla jornada só as
incomoda por não poderem estar totalmente presente na vida dos filhos. Todas afirmam
manter um bom relacionamento com os filhos, nenhuma delas se diz arrependida por ter
filhos
Para um grande número de mães sozinhas, as dificuldades começam a aparecer
nesse ponto. Quando a manutenção da casa e dos filhos depende exclusivamente da
mulher, é comum que precise sacrificar o tempo dedicado aos filhos em benefício do
trabalho. Ou, inversamente, optar por uma opção menos absorvente e menos rendosa
para poder ficar o maior tempo possível junto dos filhos/filhas, como foi o caso da
Sueli, que relatou ter abandonado o emprego de cabelereira em um salão de beleza para
87

trabalhar de costureira em casa e assim poder passar mais tempos com os filhos/as.
“Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus
ou prostituta.” (GONZALEZ, 1984, p. 226). Esta frase de Lélia Gonzalez nos diz
muita coisa sobre a naturalização do papel da mulher negra de servir, que nos
países que sofreram com a escravidão foi instituído pelo estereótipo da mucama,
aquela destituída de vida privada, criada para atender aos desejos dos senhores
(sejam quais forem os desejos) e isentar suas sinhás dos afazeres e cuidados do lar e da
família em troca de moradia, alimentação e “proteção”, sem nenhum direito
garantido. Isso nos lembra a realidade das domésticas até algumas décadas atrás e
que é vivenciada por muitas, ainda nesta década, em algumas localidades
brasileiras mais afastadas dos grandes centros. Segundo a autora: “Quanto à doméstica,
ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja,
o burro de carga que carrega suas famílias e a dos outros nas costas” (GONZALES,
1984, p. 230).
A imagem da mulher negra que cuida, serve e alimenta é muito bem aceita
socialmente, afinal, está encaixada no que “nasceu para fazer”, no estereótipo de mãe-
preta. percebemos, então, que a imagem servil da mulher negra vai muito além da
categoria empregatícia que ocupa, mas está diretamente ligada à sua cor e ao seu
gênero, ou seja, vai muito além da opressão de classe.
A vida afetiva e sexual é muitas vezes condicionada à busca de figuras
masculinas que lhes garantam uma certa confiança social mesmo que provisórias. Com
um homem para ficar, é mais fácil encontrar um lugar para ficar, é mais fácil ser
respeitada pelos vizinhos e familiares. A cultura lhes impõe uma identidade e um valor
ligados ao homem.
Depois de iniciado o processo de mobilidade libertária, nem sempre continuam
buscando sua identidade ligada à figura masculina. Algumas vezes, preferem estar sem
homem “fixo” ou mesmo sem homem. Tudo depende das pessoas, de suas histórias e
contextos.
A dominação masculina sobre mulheres se expressa particularmente a partir da
dominação do pai, do marido ou do companheiro. São eles, por meio das instituições
sociais e culturais, que impõem as leis familiares muitas vezes insuportáveis para as
mulheres. São eles que a ameaçam, punem, violentam e não se responsabilizam por
muitas ações cometidas de forma desastrosa.
88

Segundo Carneiro (2003), a violação colonial no Brasil e América Latina, dos


homens brancos com as mulheres negras e indígenas é o que estrutura as hierarquias
sobre gênero e raça, visto que as violências são naturalizadas desde o período colonial e
os casos de violências sexuais romantizadas. A violação colonial e a miscigenação
originam as construções da identidade nacional e da nossa falsa igualdade/democracia
racial. Carneiro (2003, p.1) afirma que as mulheres negras “tiveram uma experiência
histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem
reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da
opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina”.
Ao analisar os significados atribuídos à maternidade entre mulheres argentinas,
Valeria Llobet e Nara Milanich (2014), as premissas apontam que “mãe” não está
atrelado apenas ao campo familiar ou privado, mas se expressa em espaços públicos e
em relações sociais extrafamiliares. Refere-se à um ambíguo papel cultiva meios de
submissão e opressão mediante o trabalho reprodutivo e restritas formas de decisão e
negociação no âmbito familiar, bem como provê oportunidades para a criação de redes e
afinidades.
Nesse sentido, as autoras seguem afirmando que as práticas que estabelecem a
prioridade dos direitos da maternidade e da infância não são apenas resultado de
processos políticos, históricos e contingentes, de arranjos de proteção, mas que se
tratam de práticas intrínsecas às formas de regulação estatal. Demonstrar ser uma boa
mãe, por meio de um conjunto de técnicas performativas específicas, que vão desde os
parâmetros legais no que se refere ao cuidado e bem-estar da criança, até as escolhas
morais específicas da sua posicionalidade, legitimam o exercício satisfatório da
maternagem.
Tais pressupostos indicam que, enquanto uma mãe situada na classe média é
compelida a retornar ao trabalho para o bom desenvolvimento do vínculo com o seu
bebê, inclusive se utilizando do arcabouço da psicologia sobre desenvolvimento infantil,
vínculo mãe-bebê, entre outras mulheres espera-se que priorizarem e dediquem-se
integralmente aos seus filhos ou filhas, principalmente na primeira infância, para que
performem a boa mãe ou a mãe responsável.
No que se refere a regulação da maternagem pelo Estado, Lisandra Moreira &
Henrique Nardi (2009) postulam, ainda, que a racionalidade neoliberal se relaciona com
a maternidade através da ideia de que cada indivíduo é responsável pelas suas escolhas e
de que essas devem estar direcionadas sempre para seu aperfeiçoamento, que, nessa
89

racionalidade, está acessível a todos. Nesse sentido, salienta-se a ênfase na lógica de


responsável familiar, que geralmente é a mãe, como aquela que garantirá o bom
desenvolvimento dos filhos, mas também deverá responder por violações ou práticas
consideradas desprotetivas para os filhos.
Llobet e Marich (2014) apresentam a descrição da “mãe devota”, que se
configura como aquela mulher que assimila noções de progresso e sacrifício ao redor da
provisão de necessidades materiais não supérfluas. Essa definição hierarquiza as formas
de ser mãe, classificando outras experiências de maternidade como inferiores: no
contexto argentino estudado pelas autoras, as mães que estão envolvidas com
movimentos sociais (como as cartoneras e as piqueteras) são vistas como moral e
materialmente inferiores às mães devotas. No contexto brasileiro, as mães que circulam
pela cidade, com ou sem os seus filhos, principalmente se eles se encontram em estado
de má higiene ou mal alimentados, são violentamente criticadas, independentemente do
contexto de vida. Em diversos momentos da entrevista no CRAS, as colaboradoras
falam sobre a necessidade de estar sempre com aparência limpa.
Claudia Fonseca (2000), ao refletir sobre os estudos com famílias pobres, refere
que numa primeira tentativa de evitar conotações pejorativas, surgiram, na década de
70, estudos que pautavam as práticas particulares de populações pobres como
estratégias de sobrevivência, isto é, como respostas por adaptação às condições de
extrema pobreza. Fonseca questiona essa perspectiva e também se apoia em de Certeau
para pensar tais práticas como estratégias criativas, inventivas. Assim, para além de
viabilizar a sobrevivência, as estratégias que descrevo neste item visam qualificar e
proteger a família de ações específicas do Estado, com o requinte de quem consegue
reconhecer, em seu contexto de vida, modos de se posicionar diante das demandas
sociais. Pode-se dizer, ainda, que, no caso dessas mulheres negras e pobres, muitas
vezes a articulação em coletividade remete a arranjos particulares da ancestralidade, nos
quais a obrigação moral para com os seus se dava na ordem da constituição dos sujeitos.
Não raras vezes, percebemos usuárias do CRAS com filhos e netos com idades
próximas, onde se estabelece um contínuo de maternidade a avóternidade, na qual a
relação entre filhas/os e mães se horizontaliza na presença da avó. Fonseca (2000, p.68)
sinaliza que, entre as mulheres pobres, elas começam cedo e terminam tarde a sua
carreira de mãe‖, uma vez que é comum que a avó assuma, parcial ou integralmente, o
cuidado de netas/os, no interior dos laços de solidariedade, como veremos na seção
seguinte.
90

Mulheres que são donas de casa ou que são autônomas (podendo, portanto,
organizar o seu horário de trabalho), costumam contribuir em atividades que tenham a
ver com a alimentação e com o reparar as crianças‖, isto é, organizá-las e/ou levá-las à
escola/atividade de turno inverso e acolhê-las em suas casas até que haja responsável
para que possam retornar para suas casas. Embora não tenha sido dito explicitamente,
essa relação não parece ser mediada pelo pagamento em dinheiro: a moeda de troca é a
reciprocidade, um compromisso moral de retribuir o auxílio à essa familiar em um
momento de necessidade.
Em suma, percebo que a estratégia de articulação entre as mulheres descrita até
aqui configura-se, por um lado, como uma reação à ação do Estado, que cria barreiras
estruturais para a população pobre, sobremaneira para as mulheres negras. Por outro
lado, evidencia a agência de tais mulheres para resistir aos avanços das práticas
regulatórias que procuram inscrevê-las na dependência do poder público. Na seção
seguinte, perceberemos como esses laços de solidariedade agem no contexto específico
da política pública, por meio das caminhadas.
Um dos marcadores sociais da diferença subsumidos na discussão da Assistência
Social diz respeito à sexualidade. Além das práticas cisheteronormativas, isto é, a
reiteração das vivências heterossexuais e cisgênero como normais, universais e
ahistóricas, percebe-se que a conduta dos/das técnicos/as sociais e demais
trabalhadores/as evidencia os modelos binários de gênero e de sexualidade, em
detrimento de outras formas de articulação desses marcadores, como a
homossexualidade, a transgeneridade, a travestilidade, entre outros aspectos da
diversidade relacionada às expressões do gênero e da sexualidade.
Além disso, o olhar sobre a mulher negra no que se refere aos aspectos afetivos e
sexuais remete, em muitas situações, a lugares de subalternidade ou de exotismo, como
demonstra Carolina, ao relatar que ao longo da vida só se relacionou com homens
brancos, e que o pai de sua filha mais velha quando soube que ela estava grávida disse
não ter interesse em ter em assumir um compromisso com ela pelo fato dela ser negra.
Ainda que diferentes marcadores sociais perpassem a materialidade do corpo, o
marcador da raça parece depender de uma concretude do mesmo, ligada a elementos
visíveis, como a intensidade da cor da pele, o tipo de cabelo, o formato do nariz e dos
lábios, entre outros, para se potencializar na articulação com os demais marcadores.
5.2 O FILHO É DA MÃE?
91

Se pensarmos a partir da categoria gênero, fica claro que a divisão social do


trabalho numa sociedade patriarcal deixa sempre às mulheres a responsabilidade da
criação direta dos filhos e filhas. Nem sempre encontram vagas nas escolas e creches.
Não podem carregar os filhos para o local de trabalho. Não tem ajuda de outros
familiares para o sustento dos filhos e filhas. Tudo é mais difícil e pesado para elas.
A maioria das mulheres dificilmente renuncia ao papel materno de cuidado dos
filhos e filhas. É preciso dizer que, ao mesmo tempo que sentem o peso da
responsabilidade familiar, sentem um certo orgulho por não terem desamparado os
filhos. É como experimentassem pessoalmente uma superioridade ética na relação a
comportamento masculino, muito embora essa superioridade não tivesse
reconhecimento social. É como se quisessem provar para elas mesmas o valor por meio
do cuidado dado aos filhos e filhas.
As mulheres, por um lado, passam a reforçar o papel que a sociedade patriarcal
lhes designou e, por outro lado, não tem outra saída a não ser a de assumir a
reponsabilidade familiar. É nessa espécie de “sina feminina” que as opressões parecem
reproduzir-se, quase de mãe para filha, à espera de uma geração que rompa a cadeia da
dependência e faça a história girar em torno de outros parâmetros.
Mesmo se algumas vezes reclama de abandono ou do peso da responsabilidade
não partilhada, fica claro que o lugar materno pode ser também um lugar de poder
social. Uma mãe de poucos ou muitos filhos têm sua identidade garantida. Tem
igualmente o reconhecimento de filhos e filhas, e esse fato lhe dá uma identidade social
reconhecida. Em geral, as mães do meio popular têm muito poder e ascendência sobre
os filhos e filhas.
A autoridade das mães é exercida com a sabedoria adquirida com o acúmulo de
vivências, que as levam a compreender, até mesmo prever algumas circunstâncias que
poderiam ameaçar a integridade física e emocional dos filhos/as. Ensinam modos e
hábitos, legitimam processos de fortalecimento de identidades, instruem para o
desenvolvimento do pensamento e da ação autônoma daqueles que colocou no mundo.
Essas sujeitas demonstram que a baixa escolaridade não as impossibilita de
construírem sabedoria para orientarem e idealizarem os caminhos de seus filhos/as. Para
tanto, muitas vezes, necessitam mudar os rumos de suas próprias vidas, a ponto de se
separar do marido que não concordava com suas concepções de educação sobre os
filhos/as. Assumindo o papel de provedora do lar, aquela que é responsável pela
manutenção, sobrevivência da família.
92

Antes mesmo de os filhos/as nascerem muitas mães já planejam seu futuro “eu
quero que eles possam ser alguém na vida”, as mães almejam que seus filhos/as
estudem, tenham uma profissão e independência financeira, demonstram isso por meio
de gestos, palavras, conselhos, enfrentamentos a todo tempo em suas trajetórias de vida.
Especialmente porque carregam o sentimento de responsabilidade sobre o presente e
futuro de sua prole.
As mulheres mais velhas, mães, avós, apesar das complexidades dos
enfrentamentos de contra o racismo, sexismo, pobreza e a negação de direitos humanos,
se organizam, orientam seus descendentes para que tenham no futuro uma vida bem
melhor do que foram as suas. Pode-se dizer que suas histórias são marcadas por atenção
e solidariedade. Apendem e ensinam, observando os contextos em que estão inseridas
compartilhando conhecimentos e saberes. Educam-se educando outras pessoas em
tempo real, agem incansavelmente para garantir o bem daqueles que gerou.
Os trabalhos mais comuns são ligados ao mundo doméstico: cuidar dos filhos
dos outros, ser empregada doméstica, costurar para fora. Poucas conseguiram estudar e
sair um pouco do círculo doméstico da vida. O espaço da mulher esteve por muito
tempo associado, prioritariamente, aos cuidados com lar, a família e a reprodução.
Diferentemente do homem, este que sempre esteve atrelado ao espaço público e ao
processo de produção intelectual, econômico e científico, adquirindo assim, desde cedo,
privilégio no ambiente escolar.
Além disso, como o Estado não garante a educação das crianças, não prevê a
criação de creches e escolas em número suficiente nos meios populares, as mulheres
vêem-se obrigadas a continuar no mundo doméstico, carregando o pesado fardo de
serem as responsáveis pela educação e saúde da prole em condições bastante precárias.
O cuidado não é apenas uma atitude de atenção, é um trabalho que abrange um
conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em oferecer uma resposta
concreta às necessidades dos outros. Assim, podemos defini-lo como uma relação de
serviço, apoio e assistência, remunerada ou não, que implica um sentido de
responsabilidade em relação à vida e ao bem-estar de outra pessoa.
Marcondes (2013) salienta que o cuidado de pessoas é elemento estrutural sob o
qual construiu socialmente como trabalho feminino. Conforme a autora, seja em casa,
nos hospitais ou nas escolas, as mulheres cuidam das pessoas. Desde a infância até se
tornarem idosas, as mulheres cuidam de crianças, idosos, deficientes e, até mesmo, de
homens adultos. A existência social feminina, de acordo com a autora, ficaria restrita a
93

realizar-se à medida que elas cuidam das pessoas. E, apesar de ser uma atividade
essencial para a sustentabilidade da vida humana, quem cuida é desvalorizado.
Segundo Kofes (2001), a palavra escravidão é constante no discurso das
empregadas domésticas, seja se referindo à explicação de sua própria existência como
empregada doméstica em um sentido histórico propriamente dito (antes era escrava,
agora é empregada doméstica); ou se referindo à situação presente, expressando a
ausência de tempo e espaço livres, e de liberdade, causado, principalmente, pela alta
carga de trabalho (“trabalho de escravo”). Nesse último sentido, a alusão à escravidão
também é encontrada no discurso das patroas para se referir ao trabalho doméstico.
Pensar a vida dessas mulheres é perceber, também, como a opressão de gênero e raça
estão intrinsecamente ligadas à exploração do sistema capitalista. A relação entre
público e privado, entre político social e o político doméstico entre a violência estrutural
e as violências domésticas não eram visíveis para mim que as entrevistava.
A partir das falas das entrevistadas, pode-se dizer que a religião cumpre dois
papéis contraditórios. Por um lado, sustenta a fraqueza a partir de suas promessas e por
outro lado, mantém a dependência dos poderes de cima. Desenvolve a convicção de que
há poderes que sabem mais e podem mais. Acentua uma espécie de hierarquia social e
religiosa, dificultando às vezes o desenvolvimento de uma concepção mais democrática
e participativa do poder.
Um outro exemplo vivido pelas mulheres é em relação à gravidez e aos direitos
reprodutivos. Quase sempre a gravidez é apenas refletida a partir a mulher, a partir de
sua própria responsabilidade. É como se ela tivesse ficado grávida por um ato solitário.
Da mesma forma, dos direitos reprodutivos. Fala-se muito mais de controle da
natalidade a partir das mulheres e bem pouco sobre a vasectomia ou outras formas de
controle masculino. Vasectomia é quase um tabu nos meios populares. As mulheres
sabem dessa injustiça mantida pelo discurso da diferença, mas não conseguem ainda
modificar essa situação. Esse discurso desenvolvido pela cultura patriarcal acaba
colocando sobre os seus ombros a responsabilidade não só da reprodução humana, mas
da educação da prole.
5.3 MATERNIDADE E AUTONOMIA

As mulheres negras são inseridas em lugares de subalternidade, representando os


indicadores mais baixos na saúde, educação, habitação e no trabalho. As mulheres
entrevistadas sonham em melhorar seu mundo a partir das necessidades básicas de
94

sobrevivência, sonhos pequenos, sonhos simples de dignidade cotidiana. A realização


desses sonhos é condição essencial para a possibilidade de sonhar com algo maior.
É impressionante notar como a maioria dos sonhos das mulheres que têm filhos
e filhas tem a ver com eles e elas. Há uma espécie de coletividade nos sonhos. Sonho
para meus filhos, ou sonho para mim e para meus filhos, ou sonho para mim, mas,
pensando na família, nos futuros filhos e filhas. Trata-se de sonhos possíveis, de
esperanças em torno a sobrevivência cotidiana, que são tornados muitas vezes
impossíveis pelas estruturas sociais que impedem a realização desse sonho mínimo de
dignidade.
Assim, pode-se dizer que os sonhos das mulheres pobres são na sua grande
maioria sonhos em torno do mundo da família. É como se a vida dos filhos e filhas
fosse o prolongamento de suas próprias vidas. É como se a sociedade patriarcal tivesse
colocado fronteiras para os seus sonhos. E de farto colocou. O próprio direito de sonhar
na linha da aquisição de direitos democráticos mais amplos lhes é vetado. Só rico pode
sonhar e ostentar seu sonho de grandeza. A injustiça social torna-se presente até na
capacidade humana de sonhar e esperar.
As entrevistadas, ao se referirem aos nossos encontros em grupo evidenciaram
como e o quanto as vivências com elas compartilhadas foram significantes para que se
autoconhecessem, apurassem o olhar sobre a vida e algumas relações pessoais,
profissionais e étnico-raciais. As participantes desta pesquisa reconhecem e têm
consciência da grande e complexa negatividade que representa o racismo. Relatam que
desde crianças já enfrentavam o racismo estrutural. Compartilharam alguns relatos
sobre casos de discriminação racial.
Para Carneiro (2011) o racismo, por exemplo, reflete em várias dimensões da
sociedade, como por exemplo, no mercado de trabalho, no âmbito escolar e no modo
como os negros e negras são tratados pelos aparatos repressivos do Estado. Há uma
cultura enraizada que criminaliza o negro em todas as dimensões sociais, ele está
sempre sujeito a sofrer uma violência física, psicológica ou moral por causa da sua cor.
O fato das mulheres negras ocuparem os níveis de pobreza mais altos do país
está diretamente relacionado com as oportunidades que são oferecidas a essas mulheres,
sabe-se que o acesso à educação é extremamente precarizado e pouco incentivado e
várias mulheres têm que abandonar a escola para ajudar ou até mesmo manter o sustento
da família e além disso as oportunidades de empregos destinado as mulheres negras são
os de cargos considerados menos importantes na sociedade.
95

Problemas que afetam principalmente as mulheres chefes de família são: acesso


ao mercado de trabalho e luta contra a discriminação salarial, dificuldade de acesso à
moradia, saneamento básico, água, encanamento de esgoto, educação – escola e creche,
saúde e segurança.
A figura paterna, de um modo geral, foi retratada como ausente ou negativa. A
visão que essas mulheres possuíam sobre a paternidade está embasada em suas histórias
de vida, em vivências constituídas nas relações estabelecidas e acumuladas ao longo da
sua história, em um contexto social, histórico e cultural. A distinção dos papéis de pai e
mãe foi observada através de construções sociais de gênero elaboradas a partir das
diferenças atribuídas às diferenças sexuais. As construções de gênero, baseadas no
modelo patriarcal, ficaram evidentes, relacionando a maternidade à sensibilidade e à
submissão, e a paternidade à força.
No entanto, a capacidade de criar os filhos e de ter controle sobre o dinheiro,
relacionadas com a atribuição de dona de casa e chefe de família, reforça a força
feminina. O espaço doméstico apresenta-se no imaginário dessas mulheres ainda como
um território predominantemente feminino. As mulheres assumem posição ativa na
esfera da família. Ao tomarem para si o comando de suas famílias enquanto "chefes",
tendem a quebrar a divisão de "papéis" onde o homem é o provedor, e a mulher,
dependente e submissa.
Cumprir o papel masculino de provedor não configurou um problema para as
entrevistadas. Embora o fardo seja pesado, todas estavam acostumadas a trabalhar desde
muito cedo. O trabalho adquire um sentido de afirmação de si enquanto mulher e
enquanto provedora de seus lares. Nesse aspecto, a relação trabalho e cuidado com a
família fortalecem a construção da identidade feminina, um jeito especial de ser mulher.
Para as mulheres, o trabalho significa mais do que a sobrevivência material, até porque
seus parcos rendimentos mal cobrem as necessidades imediatas da família.
A múltipla jornada de trabalho resulta, geralmente, em abdicar de sua
feminilidade, de cuidados com sua saúde e de sua sexualidade pelo estresse cotidiano
desencadeado na luta pela sobrevivência. Referiram não ter tempo para cuidar de si. A
disposição para o trabalho pode ser considerada uma força positiva que recompensa o
estado de pobreza e vulnerabilidade. O trabalho assume também uma condição de
autoafirmação como mulheres provedoras e, assim, elas constroem sua autonomia
diante do poder masculino.
96

As mulheres colocaram uma centralidade na relação mãe-filho, evidenciada nas


narrativas das entrevistadas pelo valor atribuído por todas elas à maternidade. O amor
materno, compartilhado por todas as mulheres, demarca a identidade feminina no
espaço do lar. Para algumas delas, principalmente as mais velhas, essa capacidade
transforma a mulher muito mais em mãe do que em mulher, tornando o sentimento da
maternidade uma recompensa em suas vidas. De alguma forma diferenciam seus papéis
femininos, legitimados socialmente, a partir da relação mãe-filhos.
Em seus sonhos e projetos de futuro a moradia tem sempre lugar de destaque. A
casa própria aparece com uma representação de liberdade, de conforto e recompensa
pelo trabalho. Como residem em habitações coletivas, muitas vezes em apenas um
cômodo de cortiço, uma moradia mais digna representa melhorar de vida.
Famílias chefiadas por mulheres são em grande parte decorrentes de uma
gravidez precoce ou indesejada, instabilidade familiar e abandono. Não raro essas
mulheres foram ou ainda são vítimas de violência doméstica em suas mais variadas
vertentes, incluindo-se a "invisível", aquela que não deixa marcas exteriores, mas
sequelas profundas em relação à sua autoestima e à busca ou reconstrução de sua
identidade como mulher, como cidadã e aos preconceitos decorrentes da relação de
gênero.
O preconceito e a atitude tradicional de que uma família sem a presença do
homem (marido ou pai) se torna uma família sem autoridade e respeito, marca a
experiência dessas mulheres. Esse preconceito as remete a uma concepção de mulheres
sem precedentes e desmoralizadas, diminuindo seu potencial para lutar contra a
sobrecarga dessa função de chefe de família.
Paradoxalmente, a pesquisa aponta também para uma abdicação de sua
feminilidade, de cuidados com sua saúde e de sua sexualidade em decorrência do
estresse cotidiano pela sobrevivência. A centralidade da vida dessas mulheres está na
relação mãe-filho. Seria esse posicionamento uma maneira de não enfrentamento de
limitações e frustrações vividas ao longo de suas histórias, em que seu valor como
mulher se concentra apenas na maternidade?
A maternidade gera um sentido de vida, uma identidade no lar, sobressaindo seu
papel de mãe ao papel de mulher. Azeredo (2010) afirma que um dos marcadores mais
importantes da identidade feminina é a maternidade. A condição de mulher, associada
ao papel de mãe, cuja responsabilidade no cuidado com os filhos aparece como uma
imposição da ordem natural, pode limitar as oportunidades de construção de outros
97

aspectos identitários. As consequências possíveis diante dessa limitação são: muitas


dessas mulheres não insistem em relações conjugais ou trabalham apenas para
sobrevivência e não como uma possibilidade de realização pessoal.
Um agravante na criação desses filhos também é a falta de participação paterna.
É muito frequente nessas famílias a ausência do pai, que aparece como um obstáculo a
ser superado pela família de chefia feminina. Essa falta se caracteriza de maneira mais
acentuada quando há simultaneamente a ausência financeira e presencial/afetiva do pai
na vida dos filhos. Essa ausência pode constituir um sentido negativo da figura paterna e
masculina na subjetividade dos filhos, especialmente quando mãe e pai vivenciaram
experiências de violência ou gravidez indesejada.
Para muitas mulheres chefes de família, substituir a paternidade é um aspecto de
orgulho e motivação, apesar de ser um agravante na criação dos filhos. Para elas isso
evidencia força, superação e completude, e se constitui em fator de proteção e
fortalecimento. Entretanto, muitas vezes, o pai de seus filhos representa um momento
ruim da vida delas, o que fragiliza ainda mais a figura paterna e masculina para seus
filhos. Muitos casos demonstram a concepção de que a autoridade masculina é inerente
apenas, ou principalmente, à responsabilidade econômica. Aqui se visualiza um fator de
risco para a constituição subjetiva desses filhos, a limitação de processos
identificatórios favoráveis quanto à figura paterna.
Nessa dinâmica de colaboração da rede de solidariedade, os filhos podem
constituir tanto uma condição de risco quanto de proteção. Como fator de proteção, as
crianças e os adolescentes participam muitas vezes no auxílio ao trabalho informal e
contribuem para minimizar os agravos financeiros, assim como partilham dos serviços
domésticos e da colaboração no cuidado dos irmãos menores. Enquanto fator de risco,
os filhos se inserem no trabalho precocemente, para auxiliar nas necessidades
financeiras do lar e, consequentemente, vivenciam prejuízos escolares ou até mesmo
abandonam os estudos. Esse fator favorece a perpetuação da condição de pobreza e
vulnerabilidade.
No Brasil, não havia para os escravos condições para firmarem matrimonio
legal, pois este não era estimulado pela igreja e não era de interesse dos senhores.
Ademais, a forte mobilidade espacial dos escravos no território nacional forçava a
ruptura dos laços afetivos entre eles. Dificultando a formação de família formada por
pai, mães e filhos.
98

Nessa dinâmica de colaboração da rede de solidariedade, os filhos podem


constituir tanto uma condição de risco quanto de proteção. Como fator de proteção, as
crianças e os adolescentes participam muitas vezes no auxílio ao trabalho informal e
contribuem para minimizar os agravos financeiros, assim como partilham dos serviços
domésticos e da colaboração no cuidado dos irmãos menores. Enquanto fator de risco,
os filhos se inserem no trabalho precocemente, para auxiliar nas necessidades
financeiras do lar e, consequentemente, vivenciam prejuízos escolares ou até mesmo
abandonam os estudos. Esse fator favorece a perpetuação da condição de pobreza e
vulnerabilidade.
A minha motivação pelas vivências das mulheres negras, chefes de família e
pobres, vem do fato de que pertenço à uma família dentro deste perfil. São mulheres que
enfrentam batalhas cotidianas em busca da sobrevivência dos membros da família. O
recorte temporal deste trabalho é definido como “tempo presente” tendo em vista que as
memórias e histórias conhecida por meio da oralidade se referem as reminiscências das
mulheres entrevistada em diferentes períodos das suas vidas, o que proporcionou o
conhecimento das relações familiares.
As entrevistas orais, realizadas de acordo com a metodologia da história oral a
partir da gravação de áudios e posterior transcrição, foram realizadas em grupo com a
participação de cinco mulheres negras, chefes de família, no CRAS localizado no bairro
Cidade de Àgueda. As entrevistas desenrolaram de acordo com as memórias das
entrevistadas, que tinham entre 28 e 73 anos, dessa forma foi possível perceber
diferentes gerações entre elas, o que possibilitou conhecer experiências e visões
diferencias sobre relações de gênero, família, trabalho, educação e etc. Um exemplo
disso está relacionado aos relacionamentos conjugais, enquanto as mulheres na faixa
dos 30 anos assumem relacionamentos instáveis e trocam mais constantemente de
parceiros, a entrevistada acima dos 60 anos procura manter-se em relações estáveis ou o
desejo de viver só.
Investigar o impacto do racismo estruturante atrelado as relações de gênero e as
sociabilidades de mulheres negras chefes de família, a partir de suas memórias, implica
reconhecer suas subjetividades.
A importância dos filhos e filhas no depoimento das mulheres chefes de família
verifica-se ao definirem chefia familiar feminina. Nessas ocasiões, em que grande parte
delas afirmava que ser chefe de família é ser mãe e ser pai, ou seja, assumir o papel de
99

cuidadora e provedora, percebe-se que a grande maioria das mulheres atribui maior
importância ao cuidado dos filhos do que à provisão.
Nos seus depoimentos, a tarefa que consideravam mais difícil foi aquela
culturalmente reservada às mulheres, ou seja, educar e responsabilizar-se pelo dia-a-dia
família. Obviamente, a provisão da família, isto é, o fato de ter que se preocupar todos
os dias com o que os filhos irão comer, o que irão vestir, onde irão morar, torna a vida
dessas mulheres ainda mais difícil. Além da responsabilidade de todas as entrevistadas
pelo sustento dos filhos, uma delas tem como dependente a mãe e irmão.
5.4 TRABALHO E SOBREVIVÊNCIA

A maior parte das entrevistadas exerce a atividade de doméstica em residências


familiares. Atividade que exige uma baixa qualificação e apresenta pouca remuneração.
O trabalho apresenta-se muitas vezes como fruto das condições sócio-históricas que não
lhes apontaram outras possibilidades de obter sustento.
Analisando os depoimentos, verifica-se que o trabalho para essas famílias
significa principalmente um meio de sobrevivência, a forma de obter o dinheiro para
manter a família e suprir as necessidades básicas. O trabalho é a principal fonte de renda
dessas mães. O trabalho não regulamentado é o predominante. O vínculo empregatício
da maioria das entrevistadas não apresenta estabilidade. Há uma preocupação iminente
em se obter um trabalho regulamentado, pois a maior preocupação consiste em
conseguir futuramente o benefício da aposentadoria para a manutenção familiar, ou seja,
é ter um salário.
Nos discursos pronunciados sobre o trabalho não se detectou uma satisfação
pessoal na realização do mesmo. É notório que o trabalho é quase uma obrigação, uma
necessidade primária para o sustento familiar. Percebe-se, ainda, que o trabalho se
apresenta com um fazer contínuo e repetitivo, que vai se revelando em um sofrimento
físico e psíquico. Não há satisfação naquilo que se realiza, e nem o reconhecimento
desse trabalho, existe principalmente a necessidade de garantir a subsistência. A maioria
das entrevistadas afirma que a renda proveniente do trabalho é insuficiente para manter
as despesas e o orçamento doméstico.
Essas premissas apontam que, embora haja um reconhecido avanço da
população negra no que diz respeito aos aspectos econômicos, educacionais,
intelectuais, políticos, etc., promovidos pela ampliação de políticas públicas que
considerem aspectos relativos aos marcadores sociais de diferenças, eles são
100

insuficientes para um adequado combate à desigualdade social, racial e de gênero,


perceptíveis na ínfima participação de pessoas negras nas camadas mais abastadas da
população. A autora afirma que as estruturas raciais da sociedade brasileira somente
seriam destruídas quando a massa negra pudesse concorrer institucionalmente em
condições de igualdade com o branco e sem nenhuma discriminação de qualquer
espécie, o que implicaria participação racial igualitária nas estruturas de poder da
comunidade política nacional.
Através do estudo histórico do racismo estruturante no Brasil, percebemos que a
mulher era a principal responsável pelos cuidados com os filhos, no tocante à educação
e demais responsabilidades, permanecendo o homem apenas com o papel de provedor.
Perpetuou no imaginário coletivo, esse papel delegado historicamente `a mulher: de
mãe, protetora, amorosa e cuidadora.
Desse modo, percebe-se a ideologia reinante de que os cuidados dos filhos
cabem primordialmente `as mães, sendo mais tolerado socialmente um mau pai do que
uma má mãe, visto que a mulher, através das determinações sociais, já se apresenta
como quase naturalizado o seu papel de mãe. Nas famílias chefiadas por mulheres,
percebe-se que a mãe assume a global responsabilidade sobre os filhos, reproduzindo o
seu papel histórico, sendo a promotora dos cuidados de alimentação, vestuário,
educação, entre outros, e a figura paterna, agora ausente da configuração familiar, faz
jus ao lugar do pai distante.
A figura do pai apresenta-se distante da interação familiar por várias motivos,
dentre os quais podemos citar: a influência histórica dos padrões familiares patriarcal e
burguês, a falta de interesse do pai pelos filhos, a dificuldade de entendimento entre os
genitores, porém deseja-se ressaltar a existência da falta de percepção da importância da
participação da figura paterna na formação do cotidiano dos filhos.
Na ausência do cônjuge, na estrutura familiar feminina, geralmente, é a mãe a
responsável para tomar todas as decisões relativas a questões socioeconômicas e
educacionais de seus filhos/as. Com o companheiro ausente, às vezes não há com quem
dialogar, com quem compartilhar alegrias, tristezas, preocupações, trocar ideias sobre a
educação e direcionamento futuro dos filhos. Isto, para as mães apresentam como uma
carga pesada, que seria amenizada se houvesse a participação do pai nesta interação
familiar. À mulher é imposta uma gama de atribuições cotidianas e responsabilidades
sociais. Permanece ao seu encargo solucionar as questões e situações diárias que
ocorrem na família.
101

A educação apresenta como um dos pontos centrais nos discursos das mães a
seus filhos. O estudo se define, como o sinalizador de uma ´vida mais fácil`, pois seria
viabilizador de um emprego mais qualificado e mais bem remunerado. Ao estudo está
relacionada a possibilidade de ascensão social, de conseguir maiores recursos
monetários como condição de vida melhor.
É comum em entrevistas de emprego, mulheres serem questionadas sobre sua
vida pessoal e afetiva. Há uma preocupação em saber se são casadas e se têm ou
pretendem ter filhos. Depois, desejam saber como essas mulheres farão com seus filhos
para dar conta do trabalho. O mesmo tipo de preocupação é bastante comum nas
universidades, no que tange o acesso às vagas nos cursos de formação acadêmica,
mestrado e doutorado. O que há por trás desses discursos, dessas preocupações e
questionamentos? Na maioria das vezes não há o mesmo interesse e preocupação em
questionar os homens sobre sua vida particular, afetiva e sobre as responsabilidades que
eles têm, ou deveriam ter, com os filhos. Portanto, fica posto a naturalização total da
responsabilização das mulheres sobre os filhos e a vida doméstica tal como os
“transtornos” possíveis que causarão, caso saiam deste ambiente para os demais.
Percebeu-se que as mulheres assumem a total responsabilidade pelos cuidados
com os filhos, sendo as mães-chefes de família a principal provedora econômica e a
promotora da educação e socialização dos filhos. A participação da família, quando
ocorre, se realiza principalmente em situações de maior necessidade. O trabalho é
encarado como um ´meio de se ganhar a vida`. Meio necessário e vital para se conseguir
obter o sustento familiar. É através do trabalho que se obtém a principal fonte de renda,
sendo necessário muitas das vezes a realização de serviços extras para complementar o
orçamento familiar.
A falta de recursos financeiros é o principal ponto dificultador da mãe-chefe de
família, seguido do fato de assumirem sozinhas o direcionamento e as responsabilidades
do lar. A falta de uma pessoa para dividir as despesas financeiras e as tomadas de
decisão, bem como para auxiliar na educação dos filhos/as é apontada pelas mães como
as maiores dificuldades da chefia familiar feminina.
Dentre a transmissão de valores aos filhos/as, destacou-se a importância do
estudo, sendo este condicionado a conquista de uma melhor condição de vida, e de
acesso a um emprego mais bem remunerado. Tal fato reflete a influência dos impactos
das políticas públicas e dos direcionamentos governamentais na esfera familiar. A
acirrada concorrência pelos postos de trabalho, condiciona a necessidade de uma
102

qualificação constante para conquistar um lugar no mercado de trabalho. Nesse


contexto, a educação e a escolarização, na concepção destas mulheres, aparecem como
única possibilidade de acesso a um emprego melhor e uma maior remuneração. Espera-
se ter contribuído com esta investigação para uma melhor visualização da realidade
vivenciada pelas famílias monoparentais femininas pobres, clarificando o cotidiano, as
particularidades e as necessidades dos lares chefiados por mulheres, e de ter colaborado
para a construção de um novo olhar sobre as famílias monoparentais femininas, visto
que uma das dificuldades encontradas neste estudo foi a obtenção de material que
aborda sobre esse universo. Tem-se como intenção também, que as considerações finais,
possam ser a semente de novos questionamentos, novas frentes de investigação e
abordagens, no rico universo desta temática.
A situação dessas mulheres sem seus companheiros as condiciona a um contexto
mais fragilizado devido à diminuição da renda e, como dito anteriormente, suas relações
de trabalho são subalternizadas e inferiores aos homens, não dando oportunidades iguais
de mobilidade social. As mulheres negras, objeto central desta pesquisa, são um
exemplo claro de resistência, pois, mesmo diante de uma estrutura que as oprime
severamente, já que se constituem no grupo social mais desfavorecido, por sofrerem as
consequências de um somatório de elementos excludentes.
Na mesma linha de raciocínio, Benitez Martins (2018, p. 296) assevera:
Com as mulheres esta tendência não é diferente, ainda que se expresse
com nitidez apenas no último período. Se há um fenômeno de
pauperização e maior desigualdade e injustiça social atrelado ao
aprofundamento da realidade neoliberal, que empurra mulheres para a
mais intensa conciliação do trabalho produtivo e reprodutivo, para as
jornadas mais extenuantes, para os trabalhos mais precários, inclusive
os ilícitos, esta realidade é ainda mais pulsante para as mulheres
negras, pois o racismo estruturante do capitalismo permeia todas as
suas instituições sociais e torna as vidas dessas mulheres ainda mais
desafiadoras e permeadas de obstáculos sociais. (MARTINS, 2018, p.
296)

A emergência do feminismo negro está relacionada ao debate em torno da


racialização do feminismo e da generificação do movimento negro. As mulheres negras,
em meados da década de 1970, ratificaram denúncias já seculares (haja vista o discurso
de Sojourner Truth, ―Ain‘t I a Woman?", em 1851) de que não sentiam nossas
demandas contempladas pelos esforços teóricos e políticos tanto do movimento
feminista quanto do movimento negro. Era necessária uma perspectiva teórico-
metodológica que expandisse as concepções referentes à inter-relação raça e gênero,
103

para além de uma sobreposição de marcadores ou da soma de violências.


Posteriormente, Kimberlé Crenshaw (2002) utilizou o termo Interseccionalidade para
conceituar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais
eixos da subordinação‖. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como Ações e
políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002,).
Essa discussão, realizada entre as feministas negras desde a década de 1960,
permite acessar elementos sutis contidos nos marcadores e que, nas análises
tradicionais, são percebidos como homogêneos (por exemplo, dentro da raça, a questão
do colorismo; dentro do gênero, a performatividade de feminilidade/masculinidade). A
autora utiliza como exemplo a pobreza, a responsabilidade do cuidado dos filhos e a
falta de capacitação profissional como a sobrecarga que acomete as mulheres de cor
norteamericanas, isto é, mulheres de origem africana, latino-americana e sul-asiáticas.
Ela reflete que essas sobrecargas, consequências da opressão de gênero e de classe, são
então compostas por emprego e práticas domésticas racialmente discriminatórias que
mulheres de cor costumam enfrentar, assim como o desproporcionalmente alto
desemprego entre as pessoas de cor (CRENSHAW, 1991).
A autora aponta, então, que a subordinação interseccional não necessita ser
intencionalmente produzida; de fato, ela é frequentemente a consequência de
imposições de uma sobrecarga que interage com vulnerabilidades preexistentes, criando
uma nova dimensão (CRENSHAW, 1991). Dessa forma, ela expõe o caráter simbólico
e culturalmente produzido das opressões, expresso nas práticas de reiteração de
condições de vida precarizadas, nas quais há uma explícita desassistência que recai
sobre os sujeitos socialmente mais frágeis.
Assim, a proposta de Crenshaw é utilizar o conceito de interseccionalidade para
demonstrar, a partir da experiência de mulheres negras, que as intersecções entre
racismo e sexismo somente poderão ser compreendidas completamente por meio de um
olhar em que as dimensões de raça e de gênero não sejam tomadas como experiências
separadas. Essa se constitui como a estratégia para que as demandas particulares das
mulheres negras não fiquem subsumidas em discussões genéricas, tanto do Feminismo
quanto do Movimento Negro.
104

Em outras correntes teóricas, a noção de Interseccionalidade foi retrabalhada e


apresentada em termos de categorias de articulação‖. Nessa apreensão, o foco está no
modo como se articulam diferentes marcadores sociais de diferença, entendendo que
cada um deles tem sua experiência alterada por meio, justamente, das práticas
articulatórias. Destaca-se Avtar Brah como representante dessa corrente, que afirma:
estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas como
variáveis independente porque a opressão de cada uma está inscrita dentro da outra é
constituída pela outra e é constitutiva dela (BRAH, 2006).
A assertiva sinaliza a dimensão referente às opressões sofridas nos sistemas
imperialistas, nas quais as dimensões políticas e econômicas estão e são constituídas
pelas relações patriarcais. Essa perspectiva considera a distinção entre categorias de
diferenciação e sistemas de discriminação, entre diferença e desigualdade. Permite,
assim, pensar a Interseccionalidade em termos de subjetividade e de
identidade/experiência coletiva, ao possibilitar análises em outras densidades a respeito
das diversidades, incrementando a margem de agência dos sujeitos, se comparada à
primeira perspectiva. Conforme Avtar Brah, a experiência não reflete uma realidade já
dada, mas sim o efeito discursivo dos processos que constroem o que chamamos de
realidade (BRAH, 1996).
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao buscarmos respaldo na produção teórica de estudiosos vinculados à corrente


de pensamento da decolonialidade, tendo como um dos principais referenciais o
conceito de colonialidade do poder, disseminado pelo sociólogo peruano Aníbal
Quijano, padrão de poder concebido com o capitalismo moderno/colonial/eurocentrado
iniciado com a conquista da América, em 1492, fundamentado na ideia de raça como
princípio e instrumento de dominação, foi possível compreender, de modo mais amplo,
a forma como a construção de categorias raciais e o racismo permeiam todas as esferas
do poder, ainda hoje. Como afirma Grosfoguel (2018): “Na perspectiva decolonial, o
racismo organiza as relações de dominação da modernidade, mantendo a existência de
cada hierarquia de dominação sem reduzir uma às outras, porém, ao mesmo tempo, sem
poder entender uma sem as outras”.
O colonialismo engendrou em nossa mentalidade a ideia de superioridade
europeia e inferioridade indígena, africana e de seus respectivos descendentes. O
racismo como um fenômeno complexo que assume diferentes configurações conforme o
105

contexto, do biológico ao cultural, e que coexiste numa mesma conjuntura em níveis


estruturais/institucionais e nas relações interpessoais cotidiana se mantém como
instrumento-chave na estrutura de dominação dos grupos dominantes. No Brasil,
constituiu-se uma forma de racismo estruturante que, não obstante aos seus efeitos
devastadores, em todas as esferas da vida em sociedade, se sustentam pela sua negação,
isto é, ancorado numa falsa ideia de democracia racial. A colonialidade atinge todos os
grupos étnico-raciais numa sociedade capitalista.
O racismo, todavia, atinge violentamente os grupos considerados inferiores,
sobretudo os negros/as. Trata-se de um fenômeno complexo, multifacetado e
multidimensional estudado sob diversas abordagens, campos de conhecimento,
enfoques, vieses e mesmo assim não se esgota. O Brasil possui especificidades no que
diz respeito à constituição e formatação do racismo e das desigualdades raciais, por isso
as análises sobre a condição social do negro precisam ser contextualizadas, com
pesquisas aprofundadas. É importante rememorar que os africanos foram trazidos para o
Brasil para serem escravizados e não colonizados, uma vez que a colonização,
compreendida como a instauração de uma soberania estrangeira num território invadido
já estava instaurada.
Nessa conjuntura, a raça negra, considerada inferior, não deveria ser fisicamente
exterminada, como ocorreu com os judeus durante o nazismo. Na ótica colonialista, os
inferiormente racializados precisavam ser preservados para servir como mercadoria
humana, mão-de-obra gratuita dos tidos como superiores. Após a abolição, todavia, a
vida dos negros foi considerada dispensável. Não houve qualquer política com vistas à
integração do negro na sociedade de classes, restando-lhe a segregação, exclusão,
miséria, marginalização e o ciclo cumulativo de desvantagens que alcançam os dias
atuais.
Partindo da ideia de que o colonialismo persiste estruturalmente na forma de
colonialidade, estabelecendo hierarquias sociais e mantendo entranhado na estrutura
social o racismo, como instrumento fundamental de dominação dos grupos detentores
do poder, o ponto que defendemos é de que a condição de mulheres negras, mães-chefes
de família não se configura como mero reflexo da concentração desse grupo social na
base da estrutura de classes, mas sim como uma dimensão do racismo estrutural
brasileiro.
Este, por sua vez, encontra importante suporte na colonialidade, padrão de poder
no qual a raça é cerne como princípio e instrumento de dominação. O impacto do
106

racismo estruturante é, portanto, símbolo da continuidade das racionalidades


colonialistas, racistas, sexistas que preserva praticamente intactas hierarquias raciais
estabelecidas no sistema escravocrata.
Conforme discutido nos capítulos anteriores, o racismo estrutural, tal como
constituído no Brasil, e a colonialidade do poder que o sustenta, preservando hierarquias
raciais estabelecidas desde o sistema escravocrata, atuam condicionando e fazendo
perdurar a posição de subalternidade do negro, independentemente de sua própria
percepção. Todavia, ao considerarmos também os impactos do racismo no âmbito das
relações interpessoais, deflagrador de experiências dolorosas que podem impactar, por
exemplo, a saúde psíquica, o desencadeamento de traumas, depressão, crises de
ansiedade, entre tantos outros problemas, compreendemos que estes que também
cerceiam, e muito, suas possibilidades de desenvolvimento.
Esses exemplos nos ajudam a compreender que dimensões estruturais e
vivências cotidianas, aspectos objetivos e subjetivos, se conectam intensificando
opressões. Mulheres negras, moradoras de territórios pobres e estigmatizados são
também mais vulneráveis à violência, em seus diversos modos de manifestação, estas
permeiam as trajetórias de todos os entrevistados. Diversas são as narrativas que
explicitam elevado grau de sofrimento acumulado no decorrer da existência, como: a) a
violência do próprio Estado, que os segrega e as invisibiliza.
Ademais, mencionamos algumas especificidades da trajetória de mulheres
negras entrevistadas: maior vulnerabilidade à gravidez precoce, que faz parte do
contexto no qual elas estão inseridas; abandono pelo companheiro durante a gravidez;
violência doméstica; envolvimento com drogas, geralmente induzidas pelos próprios
companheiros, entre outras formas de violência.
Tal quadro demonstra que as racionalidades inerentes à branquitude e a
masculinidade colocam as mulheres negras numa posição inferior em relação a todos os
outros grupos (homens brancos, mulheres brancas e homens negros). Como pôde ser
observado, cada sujeito percebe e responde de uma maneira peculiar às discriminações e
às violências que perpassam suas trajetórias. Nesse sentido, há diferenciações em
relação a perspectivas, expectativas e atitudes.
O enfrentamento dessas agruras pode se dar de diversas formas, como: através
da busca de apoio na família ou devido ao amor pela família; aproveitamento de
oportunidades e direcionamentos obtidos por meio de políticas e projetos sociais,
obtenção de conhecimento e ressignificação da própria trajetória; escolarização, cursos
107

técnicos, faculdade, e busca por melhoria nas condições de vida através do trabalho.
Para essas que buscam ser bem-sucedidas, observa-se amplo empenho para superar as
discriminações e estigmatizações, além de um esforço quase heroico para conquistar
aquilo que deveria ser direito de toda gente.
Há também aquelas que, diante de tantas barreiras, sofrimentos, violências,
experiências discriminatórias e estigmatizantes, interiorizam concepções depreciativas
sobre si e assumem o papel que lhe é atribuído pela sociedade, em geral. São elas: os
que tiveram suas trajetórias depreciadas no que se refere à escolarização,
consequentemente, ocupam postos de trabalho de baixo prestígio e remuneração; os que
adentraram ao mundo das drogas; ou, ainda, aquelas que se encontram imersos na falta
de perspectivas em relação à possibilidade de melhoria nas condições de vida, o que
contribui para a perduração do ciclo vicioso da pobreza e dos diversos problemas dela
decorrentes, além de todas as agruras provocadas pelo racismo.
A análise de todas essas trajetórias, que se configuram como uma pequena
amostra de uma realidade social muito mais complexa. Independentemente da leitura
que se possa fazer sobre cada trajetória explicitada nesta dissertação, das quais algumas
podem ser interpretadas como trajetórias de sucesso e outras de desventuras, convêm
sublinhar que, num país edificado sobre uma estrutura eminentemente racista, no qual a
cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, manterem-se vivas é, por si só, uma
tarefa de grande envergadura.
Por fim, no último capítulo nossa atenção se voltou à dimensão subjetiva das
sobrevivências das mulheres negras, alicerçada nos estigmas patriarcais e nas
subjetividades das sujeitas, pautadas em suas percepções sobre as discriminações
referentes à raça e ao território ocupado. Ao demonstrar o modo como as colaboradoras
resistem frente ao racismo, machismo pode impactar pessoas negras no que diz respeito
às suas subjetividades, evidenciamos que as articulações entre o racismo e os estigmas
territoriais as tornam mais vulneráveis às violências, que atravessam suas trajetórias das
mais variadas formas, além de influenciar suas perspectivas, expectativas e atitudes,
que, não raramente, reforçam suas posições de subalternidade.
Considero que alguns aspectos, mesmo tendo emergido durante o trabalho de
campo, não puderam ser devidamente contemplados por este estudo, de modo que
podem ser explorados em trabalhos posteriores, uma vez que se constituem como
contextos relacionados à atualidade. As perspectivas centradas nas vozes subalternas
108

possibilitaram maior alcance quanto a práticas e discursos de militâncias contra


hegemônicas.
Os depoimentos das sujeitas negras, mães-chefes de família acabaram
assumindo um caráter de denúncia, que requer a atenção de pesquisadores
comprometidos com as lutas sociais, de governantes, de movimentos sociais e da
sociedade civil. A implementação de políticas públicas específicas é imprescindível
para que haja melhorias nas condições de vida de indivíduos e grupos que,
historicamente, enfrentam as adversidades decorrentes de longos processos de
marginalização social. Das desigualdades e injustiças sociais institucionalizadas, ao
sofrimento no âmbito individual, a trajetória da população negra no Brasil é permeada
por vulnerabilidades, violências, iniquidades e injustiças nas mais diversas esferas da
vida social. Mas é, acima de tudo, uma trajetória marcada por lutas e resistências, e é
esse o sentido que atribuímos às “trajetórias mas mães negras”.

REFERÊNCIAS
AUGUSTO. R. Oliveira Silveira: Obra Reunida, Rio Grande do Sul, IEL, 2012
BONILLA SILVA, E. Racism without racists: color-blind racism and the
persistence of racial inequality in the United States. Nova York, Routledge, 2006.
BRAH, A. Cartografias de la diáspora: Identidades em cuestión. Madrid:
Traficantes de Sueños, 1996.
___________. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu. n. 26, 2006.
CAETANO, M. Performatividades reguladas: narrativas, heteronormatividade e
educação. Curitiba: Appris, 2016.
CARNEIRO, A. S. A Construção do Outro como Não-Ser como Fundamento do
ser. Tese de Doutorado Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de
São Paulo, 2005.
CONCEIÇÃO, Í. A. Racismo estrutural no Brasil e penas alternativas: os limites
dos direitos humanos acríticos. Curitiba: Juruá, 2010.
Collins, P. H. Aprendendo com a Outsider Within: a significação sociológica do
pensamento feminista negro. Estado e Sociedade, v. 31, n.1, 2016.
CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da
discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas. v. 10. n. 1, 2002.
CURIEL, O. Crítica pós-colonial desde las prácticas políticas del feminismo
antirracista. Nómadas (26), 2001.
EVARISTO, C. “Nossa EscreVivência”. Disponível em: <
http://nossaescrevivencia.blogspot.com/2012/08/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-
dos.html> Acesso em 12 de julho de 2017.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.
109

FONSECA, C. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência


em grupos populares. 2000. 1ed. 246p. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS.
GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro:
Editora 34, 2001.
Gonzales, L. A Categoria político-cultural de amefricanidade. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileira, 1998.
GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos
póscoloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.
In: SOUSA SANTOS, Boaventura de; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do
Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
______. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos paradigmas da esquerda
ocidentalizada. In: MALDONADO-TORRES, N.; BERNARDINO-COSTA, J.
GROSFOGUEL, R. (Orgs.). Decolonialidade e Pensamento Afrodiaspórico, Editôra
Autêntica, 2018.
GUIMARÃES, A. S. A. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.34,
1999.
GUIMARÃES, A. S. A. Raça e os Estudos de Relações Raciais no Brasil. Novos
Estudos CEBRAP, n54, julho 1999. P.147-156.
HASENBALG, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, Graal, Rio de
Janeiro, 1979.
HOOKS, B. “Intelectuais Negras”. Estudos Feministas, V. 3, n. 2, 1995.
LLOBET, V.; MILANICH, N. La maternidade y las mujeres de sectores populares um
las Transferencias Condicionadas de Ingresos. Um aporte al debate sobre el cuidado y
las relaciones de género. Zona Franca - Revista del Centro de Estudios
Interdisciplinario sobre Mujeres. N 23. p. 58-69, 2014.
LUGONES, M. Colonialid y Genero. Tabula Rasa. Bogotá, Colombia, n.9: 73-101,
julio-diciembre 2008.
______. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas. Florianópolis, 22(3):
320, setembro-dezembro 2014.
MARCONDES, Mariana Mazzini. O cuidado na perspectiva da divisão sexual do
trabalho: contribuições para os estudos sobre a feminização do mundo do trabalho. In.:
_____. et al (org.). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres
negras no Brasil. Brasilia: IPEA, 2013.
MIGNOLO, W. Histórias locais, projetos globais: colonialidade, saberes
subalternizados e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
MOORE, C. Prefácio. Discurso sobre a Negritude. Belo Horizante: Nandyala, p,7–38,
2010.
MUNANGA, K.; GOMES, N. L. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global
Editora: Ação Educativa, 2006.
_____ Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2008.
MOURA, C. Dialética Radical Do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.
110

______. A sociologia posta em questão. São Paulo: Livraria Editora Ciências


Humanas, 1978.
______. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Editora Perspectiva,
2017.
OLIVEIRA, D. de. Racismo no Brasil: estratégias políticas de combate ao racismo na
sociedade capitalista contemporânea. São Paulo: Unegro, 2000.
QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In:
Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
latinoamericanas. LANDE, E. (Org). Colecíon Sur Sur, CLACSO, Ciudad autônoma de
Buenos Aires, Argentina. 2005.
SANSONE, L. Negritude sem etnicidade. Salvador EDUFBA; Rio de Janeiro: Pallas,
2003.
VITALE, M. Famílias monoparentais: indagações. Revista Serviço Social e Sociedade.
n. 71.a. XXIII. São Paulo: Cortez, set. 2002.

WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:


SILVA, T. T. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis: Vozes, 2000.

YOUNG, I. M. Taking the Basic Structure Seriously. In Perspectives on Politics,


4:1:91-97 Cambridge Journal University Press, 2006.
111
112

Anexo:

TERMO DE CONSENTIMENTO
Eu, ,
portador(a) do RG e CPF , declaro,
por meio deste termo:
- Participar de forma voluntária na produção de dados, a partir de entrevistas na
pesquisa _________________, realizada no ano de 2019, por __________________,
mestranda em Educação da ______________________, sob orientação da Prof. Dr.
______________________.
- Reconhecer que o objetivo desta pesquisa é investigar __________________.
- Ter sido informado(a) de que os dados produzidos durante as entrevistas serão
utilizados somente em situações acadêmicas e que as falas sempre serão identificados
por nome fictício.
- Autorizar que minhas falas sejam gravadas durante participação na pesquisa, desde
que somente o pesquisador e sua orientadora tenham acesso às gravações integrais.
Autorizo, também, a reprodução de excertos de minhas falas no corpo do texto da
dissertação, desde que identificadas por nome fictício.
- Estar ciente que, em caso de dúvidas, poderei contatar o orientador pelo e-mail e/ou
a pesquisadora, pelo e-mail . Fui informado(a) de que poderei cancelar minha
participação na pesquisa a qualquer momento, mediante a comunicação prévia à
publicação do material.

Rio Grande, de de 2019.


Assinatura do pesquisador.
Assinatura do(a) entrevistado(a).

Você também pode gostar