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(Re) Existir para (Re) Conhecer-Se - Mães Negras Frente Aos Impactos Do Racismo Estruturante
(Re) Existir para (Re) Conhecer-Se - Mães Negras Frente Aos Impactos Do Racismo Estruturante
(Re) existir para (re) conhecer-se: mães negras frente aos impactos do
racismo estruturante
Rio Grande
2019
Ficha catalográfica
Banca Examinadora:
______________________________________________________
Prof. Dr. Marcio Caetano – (FURG)
Orientador
________________________________________________
Prof. ª Dr.ª Amanda Motta Castro - (FURG)
Membro interno
________________________________________________
Prof. ª Dr.ª Georgina Helena Nunes - (UFPEL)
Membro externo
AGRADECIMENTOS
Eu aprendi que se depende sempre de tanta, muita, diferente gente.
Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas
pessoas. E é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta
gente onde quer que a gente vá. E é tão bonito quando a gente sente
que nunca está sozinho por mais que pense estar. (Gonzaguinha)
Resumen
A partir de los Estudios Decoloniales, esta disertación busca discutir el impacto del
racismo estructurante en la vida cotidiana de las mujeres negras que ocupan el doble
papel de madres y jefas de hogar. Para tanto, buscamos en las narrativas biográficas las
condiciones apropiadas para tomar las experiencias de estas mujeres como el centro de
interés. Creemos que los relatos proponen, a través de relatos particulares, la
articulación de dimensiones más grandes para la comprensión de los fenómenos sociales
experimentados por ellas. La falta de recursos financieros fue el principal obstáculo para
las madres jefas de familia, seguido por el hecho de que asumen la dirección y las
responsabilidades del hogar solas. Las madres señalaron la falta de una persona para
compartir los gastos financieros y la toma de decisiones, así como para ayudar en la
educación de sus hijos e hijas, como las mayores dificultades para las jefas de familia.
INTRODUÇÃO
outra. Mas também como aquilo que subsidia caminhos pelos quais os indivíduos se
comunicam. Sendo a linguagem é um ponto central nesta relação: “Falar é estar em
condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua,
mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (FANON,
2008, p. 33).
Para Patricia Collins (2016), é necessário que a escrita acadêmica-intelectual
seja operada como uma ferramenta de resistência e de criatividade por mulheres negras,
indígenas, subalternizadas, contribuindo de modo incisivo para a insubmissão a imagens
pré-concebidas a respeito de suas realidades, corpos, subjetividades. Para fundamentar o
argumento, as escrevivências2 são possibilidades específicas e coletivas de oposição às
estruturas “invisíveis”, nos espaços universitários e intelectuais no Brasil, estruturas
estas que nunca foram invisíveis para nós mulheres negras.
Todavia, ainda que o desejo de pertencer a esse novo lugar que me foi
apresentado (universidade) persista, com o advir do tempo fui entendendo que, a
despeito dos movimentos que eu fizesse, de modo algum pertenceria de fato, a este
local. No entanto, é indubitável do fato de que estar na universidade me afeta, a tal
ponto de também me fazer não pertencer ao local de onde venho, trazendo a sensação de
ocupar um lugar híbrido. Hommi Bhabha (2001) destaca que as identidades se
constroem não mais nas singularidades como as de classe, gênero, etc., mas nas
fronteiras das diferentes realidades. Trata-se dos entre-lugares, este conceito está
relacionado à visão e ao modo como grupos subalternos se posicionam frente ao poder e
como realizam estratégias de protagonismo.
O que me submete a seguinte frase parte da letra de “Negro drama”, dos
Racionais Mc: “Você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você”, afinal, marcadores
sociais sempre marcarão o lugar de onde venho. Assim como dentro do “gueto”, o meu
status de acadêmica, irá demarcar que já não mais pertenço aquele espaço. Ramón
Grosfoguel (2010), ao falar de epistemologias decolonizadoras, possibilita fazer uma
distinção entre lugar epistêmico e lugar social para refletir acerca da importância da
localização do sujeito na produção do conhecimento. Assim como trouxe à mente
alguns versos proferidos por Mano Brown, líder do grupo de rap Racionais MCs, que
retratam de modo contundente esta realidade: Desde cedo a mãe da gente fala assim:
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Palavra cunhada por Conceição Evaristo (2016), escritora brasileira, para designar a escrita como ação
que se expressa através de suas vivências diásporas enquanto mulher negra. Condensado das palavras
“escrita” e “vivência”, no português.
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“Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor”. Aí
passado alguns anos eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se
você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história,
pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que
aconteceu? Duas vezes melhor como? Ou melhora, ou ser o melhor ou
o pior de uma vez. E sempre foi assim. Você vai escolher o que tiver
mais perto de você, o que tiver dentro da sua realidade. Você vai ser
duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra
que inventou isso aí? Acorda pra vida rapaz! (A Vida é Desafio -
Racionais MCs).
Para pensar epistemicamente a partir do lugar subalterno não basta estar situado
socialmente no lado daquelas/es que vivem situações de opressão das relações de poder.
Isto porque, o sistema mundo moderno/colonial se mantém e reproduz ao induzir
sujeitos situados nesse lado das relações a pensar epistemicamente como aquelas/es que
se encontram em posições dominantes. Para pensar a partir da perspectiva subalterna é
necessário assumir compromisso ético-político em elaborar um conhecimento contra
hegemônico. Conhecimento formulado tendo por referências experiências, concepções e
cosmovisões de subalternizados/as.
Em comunicação com o meu lugar de fala no caso, produzir conhecimento
formado pelas minhas experiências enquanto mulher negra, onde o racismo é entendido
como estrutura de dominação e exclusão que impacta em nossas vidas, reconfigurando
experiências a partir da intersecção com as opressões de gênero, classe, classe e
sexualidade. Nesse sentido, a prerrogativa epistêmica quando sustentada por
cosmovisão e saberes subalternos promove conhecimento decolonizador fonte de
agenciamento e de mobilizações de resistências.
Minha escrita, nasce marcada pela minha subjetividade de mulher negra na
sociedade brasileira, profundamente marcada pela vivência pessoal e coletiva. Evaristo
(2016) do termo escrevivência, explicando que quando ela cria, o pano de fundo é a
existência, a vida. Pode ser a vida do outro que a contaminou, ou o que ela própria
viveu diretamente ou indiretamente. A autora diz que sua literatura é contaminada pela
vida real e que deseja escrever ficção como se estivesse escrevendo a verdade, mesmo
porque entende que o seu lugar de enunciação é esse lugar da vida real que ela
experimenta de uma forma ou de outra, isto é, através da sua experiência ou da
experiência do outro.
Início apresentando parte de minha família materna, minha avó, dona Nair,
negra, 93 anos, cedo casou-se com um militar com quem teve sete filhos negros/as, seis
mulheres e um homem. As seis mulheres, todas negras nas diferentes gradações, quatro
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permaneceram solteiras, embora tendo filhos, tornando-se mães solteiras, apenas duas
tiveram casamentos mais longos.
Cresci numa casa de mulheres negras que trabalhavam duro e criavam suas
filhas e filhos sem participação ativa masculina. Elas não contavam com muita
colaboração dos homens para quase nada, este foi um dos motivos que alimentou o meu
desejo em falar sobre mulheres negras nesta pesquisa. Com o tempo, olhando em
perspectiva a minha vida e a sociedade em que estou inserida, comecei a perceber que
aquela configuração de minha família era bastante comum em famílias negras
empobrecidas. A presença de um matriarcado, no qual a liderança se dava por uma
mulher negra mais velha que sustentava a família tanto emocionalmente quanto
financeiramente. Nunca houve reclamação com relação a isso, nem um reconhecimento
da existência da própria solidão.
Aos poucos, aprendi a reconhecer que aqueles traços não eram singularidades de
minha história, mas eram recorrentes nas famílias negras e mestiças do meu entorno,
talvez podendo ainda estender essa configuração em um cenário mais amplo.
Sou filha de Lucy Mara, mulher negra, que estudou até o 6° ano do Ensino
Fundamental, e irmã de Andreara, 7 anos mais velha. Nossa mãe, desde muito cedo,
sempre trabalhou em fábricas de peixe ou como doméstica. Através destes empregos ela
garantia nosso sustento. Quanto ao nosso pai, sempre foi ausente em nossas vidas. Com
ele tive contato somente até os 6 anos de idade, sua pensão alimentícia era sua única
participação em nossa criação. Desde então minha mãe teve que conduzir sua própria
vida e orientar as nossas sem o auxílio, a presença paterna. Minha infância foi cheia de
mudanças, de rupturas e de ausências. Meus pais não tinham um relacionamento muito
amigável e eu realmente não lembro dos detalhes do que acontecia entre eles. Eu ainda
tenho muitos lapsos de memória dessa época, e sei hoje que isso foi uma maneira de
lidar com toda essa situação traumática.
Minha mãe, eu e Andreara morávamos numa das periferias de Rio Grande, no
bairro Castelo Branco, em uma casa extremamente pobre. Lembro dela com muito
carinho apesar de suas 3 peças: quarto, uma peça que era sala cozinha e por fim, o
banheiro. Nesta casa ficamos até os meus 6 anos de idade, eu e minha irmã ficávamos a
maioria do tempo sozinhas, já que nossa mãe precisava trabalhar. Após esse período nos
mudamos para uma casa de madeira que minha mãe mandou construir no terreno cedido
por minha vó onde também viviam outros familiares. Não ficamos muito tempo nessa
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casa, minha mãe não deu conta de pagar as prestações da casa pré-fabricada, então
fomos morar com minha vó Nair, com quem moro até hoje.
Eu, mulher negra e filha de mãe negra e trabalhadora doméstica, me sinto
profundamente sensibilizada pelas questões que serão discutidas ao longo do texto.
Mesmo tendo sido a raça e do racismo objetos de estudos de diferentes posições e
opostas interpretações, o debate do racismo estruturante no extremo sul do Rio Grande
do Sul, atravessado pelas questões de raça, produzem duplo desafio: me
construir/interrogar enquanto mulher negra e ao debater o racismo nas dimensões dessa
construção está adenta as formas com que o sexismo nos atravessa.
Ser mulher e negra é mesmo uma sensação de asfixia social como disse Sueli
Carneiro. Desde criança existia uma pressão muito grande por parte da minha mãe para
que eu me dedicasse aos estudos, dentro do grupo social em que eu estava inserida isto
era designado como ato de resistência, em decorrência da educação oferecida para
população empobrecida e negra ser fruto de escolas públicas com ensino precário.
Construir uma trajetória profissional enquanto mulher negra é um exercício que exige
de cada uma de nós porções gigantescas de resiliência, perseverança e resistência.
Exemplificando isso, minha vó, uma mulher negra de noventa e um anos,
autodidata, aprendeu a ler e escrever, vendo as irmãs mais velhas se alfabetizarem em
casa. Nunca esteve em escola, aprender não foi uma opção, aprender era resistir.
Resistir ao lugar de margem, à margem de todo o reconhecimento e dignidade, inclusive
financeira, demarcado pelo sistema racista desde o pós-abolição.
Sabemos que o racismo institucional barra nossa presença em espaços de poder
como universidades, e também em postos de trabalho de maior valorização e
remuneração. Sendo assim, muitas de nós temos uma dificuldade maior ainda para não
só ingressar como permanecer na Universidade. O modelo profissional que permeia o
imaginário do mundo do trabalho ainda é branco e masculino.
A presença da população negra nas universidades está abaixo do esperado em
comparação com a população branca. Muitas de nós enfrentamos diversas barreiras para
ingressar no universo acadêmico e concluir a graduação, desde dificuldades financeiras
até dificuldades de aceitação no campo acadêmico que segue excludente, elitista, racista
e fechado em si mesmo, tendo pouca atuação, de fato, na sociedade.
Atribuo nossa resistência à memória ancestral porque nossa história não é
contada nas páginas dos livros acadêmicos nosso aprendizado vem do olhar e ouvir, a
oralidade é o fio condutor que tem repassado as lições de resistência por séculos, nosso
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feminismo se fez no fundo da cozinha, naquele sábado que nunca terminava trançando
os cabelos enquanto ouvia as inúmeras histórias sobre acontecimentos/situações
vivenciadas pelas mulheres da família.
Lembro bem de uma tia minha contar sobre uma experiência ao ir trabalhar
como empregada doméstica no Rio de Janeiro junto de uma prima, lá elas trabalhavam
de segunda à segunda, recebendo folga apenas no domingo à tarde, era quando elas
podiam ir até a frente do prédio ficar sentada olhando o movimento, quando elas
perceberam a situação de cárcere, quiseram fugir mas não conheciam a cidade, havia
uma tia que morava na periferia do Rio de Janeiro mas elas não tinham como entrar em
contato, tinham o endereço anotado mas não tinham como chegar até lá. Numa dessas
folgas aos domingos, conheceram um rapaz negro, contaram para ele toda a situação
vivenciada, o rapaz marcou um encontro com elas no domingo seguinte, naquele mesmo
local e ajuda-las à chegar até a casa da tia que morava no RJ, por sorte foi oque
aconteceu, essa é apenas uma das diversas histórias que cresci ouvindo, tudo era
contado com tanta naturalidade, minha tia conta essa história até hoje dando risada, já
eu sempre fico impactada.
Durante todo o percurso histórico de muitas famílias negras, assim como na
minha, a condição de empregadas domésticas perpassou gerações de mulheres que não
tiveram oportunidades de exercer outras funções, nos dias atuais ainda vemos crianças
brancas sendo cuidadas por babás negras, ainda vemos jovens negras limpando vidraças
e chão, varrendo calçadas, ainda vemos nossas mais velhas cozinhando para suas
patroas.
Meu primeiro emprego aos treze anos foi de babá, cuidava de duas meninas
brancas, certo dia a mãe das crianças foi até a residência onde eu morava falar com
minha mãe, elogiou meu trabalho, mas disse que o marido dela havia comentado que eu
era “bem bonitinha” motivo pelo qual ela ia me dispensar. Ao chegar em casa e saber do
ocorrido, meu sentimento foi de indignação, ela não se deu nem ao trabalho de falar
comigo, foi falar com minha mãe, que inclusive disse que isso era muito comum, e já
havia acontecido com ela quando era jovem também.
Depois tive outras experiências profissionais, também fui a jovem negra que
limpou as vidraças da loja em que trabalhava, limpava o chão, varria a calçada, boa
parte do meu ensino médio eu trabalhava de dia e estudava no turno da noite, até os
dezoito anos quando ingressei na universidade. Lembro que ao anunciar minha saída do
emprego para me dedicar aos estudos, já que o curso em que iria ingressar era diurno, eu
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havia juntado uma pequena quantia em dinheiro para arcar com os custos de passagens,
materiais e entre outras necessidades básicas para me manter até que eu conseguisse
uma bolsa/estágio, recordo-me que a dona da loja de chocolates em que eu trabalhava
achava inaceitável eu largar o trabalho para cursar artes visuais.
Porém, para nós mulheres negras, a arte mostra que somos mais que um corpo,
mostra que temos potenciais e dignidade. Fortalece-nos para que possamos quebrar os
estereótipos que nos foram impostos. A arte é provedora de uma qualidade de extrema
importância, nos leva ao autoquestionamento: a partir da experiência de outras eu passo
a perceber melhor meu mundo, quem eu sou. Autoconhecimento é fundamental para
que possamos lutar contra o machismo e o racismo.
Faço parte da primeira geração da minha família a ingressar na universidade,
esta foi um meio no meu empoderamento enquanto mulher negra, e a luta foi sem
sombra de dúvida o fim/recomeço dessa libertação. Desde que entrei na FURG adentrei
espaços de ativismo, o primeiro contato foi com o Coletivo Macanudos, um coletivo de
negras e negros da universidade. Ali encontrei um espaço de diálogo e reflexão
referentes as questões raciais, também foi a partir das inserções com docentes e
discentes de escolas periféricas, que comecei a realizar oficinas de turbantes junto ao
coletivo nos espaços escolares, onde levantávamos questões acerca da estética, debates
raciais e corporalidades enquanto mulheres negras.
Foi aí que surgiu minha prática pedagógica acerca da educação étnico-racial,
embora ela tenha começado anteriormente com o PIBID, que proporcionou uma
importante experiência, dando embasamento teórico e prático para os desafios que
permeiam o contexto escolar. Outro espaço dentro da universidade que me ajudou foi o
NEABI3, espaço no qual se realizam atividades, estudos, pesquisas, produção de
materiais dentro da temática das relações étnicos raciais, onde atualmente coordeno
junto com a professora Cassiane Paixão um grupo de estudos sobre feminismo negro.
Não lembro de nenhum momento da vida em que não soubesse que sou negra e
as implicações que isso tem. Conservo memórias dos primeiros anos de infância em que
ouvia minha mãe contando suas experiências com o racismo. Ouvi essas histórias
repetidas vezes, mas só muito recentemente percebi o quanto elas foram determinantes
na minha vida.
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NEABI: Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas.
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Para além do coletivo de 2014 à 2016, continuei minha prática com oficinas de
turbantes ministradas em escolas no município de Rio Grande. A proposta era de tentar
trabalhar com a autoestima dos alunos, levar conhecimento e fazer com que eles se
identifiquem com o conteúdo. Visto que, o turbante traz consigo múltiplos significados,
principalmente a ancestralidade. Atualmente é usado como um resgate histórico,
gerando uma representatividade da identidade negra, resultando numa forma de ato
político pela a estética.
A estética assume os papéis de resistência, manutenção de identidades e a
criação de outras identidades não necessariamente africanas, mas afro-brasileiras. A
estética reproduz o papel de memória e autêntica a história de povos e civilizações
africanas. Os penteados, a joias, os panos, as maquiagens corporais, fazem uma
revitalização nacional na construção da identidade brasileira. Essas questões trazem à
tona a lembrança de uma fotografia carnavalesca de minha mãe ainda jovem.
Acervo pessoal.
A roupa foi feita a mão pela minha avó, os colares, pulseiras, foi minha mãe e
minhas tias que fizeram, a trança era feita de corda. Esse registro vem ao encontro da
potência da indumentária no processo de afirmação da estética afro-brasileira e do seu
diálogo com o corpo feminino como forma de poder e reconhecimento. No entanto, se
auto afirmar como mulher negra, foi um processo, árduo e doloroso, tendo em vista que
minha mãe abandonou os estudos no 6° ano do Ensino Fundamental por conta dos
inúmeros ataques racistas que sofria no ambiente escolar.
Fui educada que a minha roupa deveria estar sempre limpa, passada, o meu
cabelo arrumado, as unhas limpas e de preferência pintadas, isto nos garantiria um
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tratamento menos racista por parte do mundo. O privilégio de andar pelos espaços,
inclusive na universidade, de chinelo, roupas estilo alternativo, cabelo desgrenhado e
ainda ser respeitado/a e tratado/a com seriedade é branco. Minha aparência e como a
trato está profundamente relacionada às minhas estratégias de sobrevivência.
Durante a construção dessa pesquisa, revi todas as minhas teorizações, a
resistência à imagem de mulher negra forte, capaz de suportar o peso de toda a pirâmide
social, aquela que aguenta tudo sozinha e suporta qualquer coisa, essa imagem que me
acompanhou a vida toda e é reproduzida o tempo inteiro pela mídia. Até a dose de
anestesia no parto pelo SUS é menor quando a mãe tem pele escura. Por que não
podemos assumir nossa fraqueza? Nós temos o direito de nos sentirmos cansadas
quando nossas vozes são silenciadas.
A população negra tem sido profundamente ferida como diz bell hoocks “feridas até o
coração”, no texto Vivendo de amor, esse texto me tocou profundamente, essa ferida
emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir, visto que a escravidão
condicionou os negros a conterem e reprimirem suas emoções.
O desgaste psicológico de ser uma mulher negra forte afeta a mente e o corpo
questões de raça, pobreza e saúde mental estão intimamente ligadas. O sofrimento
psíquico causado por questões financeiras como causador primário do alcoolismo é um
dos temas que mais tem afetado meu histórico familiar, minha mãe é alcoólatra, o hábito
de beber começou bem cedo, na juventude, não sei exatamente quando mas sei que a o
quadro se agravou com separação do meu pai, isso provocou um estigma ainda pior: a
solidão existencial, acredito que o álcool surge a partir da necessidade de fugir desse
quadro social. Quando eu olho para minha mãe, vejo uma pessoa tão ferida, que é pura
dor, e não quero nem olhar para ela porque não sei o que fazer com essa dor, então
evito.
No caso das mulheres o estigmada colocado sobre pessoas com dependência
alcoólica é muito mais proeminente, o julgamento é maior, o vício não é visto como
uma doença, mas como uma falha moral. Os homens que estão se tratando muitas vezes
têm apoio das mulheres, da mãe e do pai, parentes e filhos. As mulheres, em sua
maioria, estão sozinhas enfrentando suas doenças.
O alcoolismo é uma doença que mais destrói vidas, pois não só o alcoólatra é
lesado em sua dignidade humana e sim todos em sua volta principalmente as crianças e
adolescentes que tem suas vidas marcadas de forma dolorosa. Confesso que ao escrever
sobre isso, sinto que preciso de tempo para digerir minhas memórias, principalmente
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sobre algo que ainda é tão latente. Em vista disso, muitas mulheres negras têm adoecido
mentalmente por conta de sua solidão, solidão essa que não significa apenas a falta de
um companheiro, seja ele negro ou branco, mas a exclusão de um lugar em que possam
se sentir verdadeiramente amadas e respeitadas, enfim, em que possam se sentir
humanas.
Na minha família, lembro que ainda pequena era importante reprimir as
emoções, expressar os sentimentos poderia significar uma punição ainda maior, minha
mãe sempre dizia “é sem choro, não quero ouvir um piu” e se eu chorava ela ameaçava
“se tu não parar, vou te dar uma razão pra chorar.” Essa repressão de sentimentos tem
perpassado gerações de famílias negras, fico pensando que esse tipo de comportamento
se assemelha muito ao do senhor de engenho que espancava seus escravos e escravas
sem permitir que ele/ela externasse a dor.
Quando criança percebia que a luta pela sobrevivência era mais importante do
que o amor, geralmente passavam a impressão de que o amor era perda de tempo, um
sentimento ou um ato que os impedia de lidar com coisas mais importantes. Muitas
vezes eu questionei e lamentei a falta de afeto que eu recebia da minha mãe, então eu
pensava: Será que a afetividade dela não foi também usurpada? Só recentemente passei
a entender que as mães negras precisam ser cuidadas. Eu não lembro a última vez que
eu ouvi dela “eu te amo”, mas consigo reconhecer que toda vez que ela cozinha meu
prato predileto é uma das formas mais verdadeiras e bonitas de demonstrar amor.
Li num artigo publicado por Shirley de Souza uma análise do romance Sula, de
Toni Morrison, na perspectiva de uma genealogia feminina. Me identifiquei com um
trecho no qual Hannah, uma mulher negra já adulta, pergunta a sua mãe, Eva: “Em
algum momento você nos amou?” E Eva responde bruscamente: “Como é que você tem
coragem de me fazer essa pergunta? Você não tá aí cheia de saúde? Como não consegue
enxergar?” Hannah não se satisfaz com a resposta, pois sabe que a mãe sempre
procurou suprir suas necessidades materiais. Porém ela está interessada num outro nível
de cuidado, de carinho e atenção. A resposta de Eva mostra que a luta pela
sobrevivência não significava somente a forma mais importante de carinho, mas estava
acima de tudo. Muitos negros ainda pensam assim. Suprir as necessidades materiais é
sinônimo de amar.
É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na
garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente.
Constantemente enfatizam nossa capacidade de sobreviver apesar das circunstâncias
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difíceis, mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se
preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente.
Eu poderia simplesmente omitir esta discussão do meu trabalho, pois, confesso,
ela mexe diretamente com o meu interior. Porém, se faz necessário assumir a
necessidade de amor em nossas vidas é uma forma de ir contra a um movimento
hegemônico. Diante disso é preciso, primeiro, iniciar o processo de amor interior. Digo
“amor interior” e não “amor próprio” porque, assim como hooks propõe, a palavra
“próprio” é geralmente usada para definir nossa posição em relação aos outros. Numa
sociedade racista e machista, a mulher negra não aprende a reconhecer que sua vida
interior é importante.
Nós mulheres, em especial as negras e pobres, fomos criadas para aprender a ser
mãe, ou seja, para concretizar, ou melhor, reforçar o paradigma da mãe preta. Na minha
família as tarefas domésticas sempre vieram em primeiro lugar, a tarefa do pensar se
tornou menor, porque primeiro era preciso cuidar da casa. Isso reflete muito dificuldade
que encontro em estudar em sua casa. O trabalho intelectual exige um distanciamento,
um isolamento. Escrever é uma atividade solitária, e para nós, que fomos criadas em
meio a um grupo que valoriza o trabalho braçal em detrimento do trabalho intelectual, é
extremante difícil. hooks afirma que muitas alunas negras estadunidenses abandonam os
cursos de graduação no momento em que, para concluir, é preciso escrever suas teses.
Se os estudos sobre as dimensões do sexismo nas experiências vividas por
mulheres negras ainda são inexpressivas, a raça da população brasileira por séculos tem
sido alvo de interpretações e estudos, o que demonstra que o pensamento racial está
arraigado na estrutura social e cultural e na constituição dos sujeitos em nossa sociedade
A raça, como categoria sociológica e demarcadora culturalmente, é fundamental
para a compreensão das relações sociais cotidianas, não só no que diz respeito à
experiência local, mas também, nacional e global. A ideia de raça está presente em
diferentes experiências da vida social: nas distribuições do poder e no acesso aos
recursos naturais ou de bens de consumo, nas experiências subjetivas, nas identidades
individuais e coletivas, nas formas como são orientadas as construções culturais e nos
sistemas de significação.
A raça é uma construção da dominação colonial e, desde então, permeia as
dimensões mais importantes do poder mundial. Ou seja, essa história em que as pessoas
foram classificadas segundo uma ideia de raça significou uma maneira de legitimar
relações de superioridade/inferioridade entre dominados e dominantes.
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4
Chimamanda Ngozi Adichie, “The danger of a single story”,
https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=en (vídeo com
legenda em português)
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papel de refletir o processo de sua produção e a interpretação dos fatos vividos por essas
mães.
No sentido de expor os caminhos e problemáticas suscitadas com a pesquisa,
pretendo que a dissertação seja estruturada da seguinte maneira: no primeiro momento,
serão apresentadas as perspectivas teórico-metodológicas que orientarão a reflexão
sobre os fragmentos de narrativas selecionados. Este delineará as desigualdades da
diáspora tecidas no contexto estruturante da colonização, afim de compreender a lógica
colonizadora do ser e do saber com base na obra Aníbal Quijano, colonialidade do
poder.
Para o entendimento sobre o processo de construção das mulheres negras
colonizadas, utilizaremos a discussão de colonialidade de gênero, de María Lugones,
atrelada a colonialidade do poder, isto propiciará o entendimento de como o gênero foi
construído racializadamente, junto ao pensamento de Lélia Gonzalez inserido no
contexto da decolonização da produção de conhecimento feminista, bem como o
processo de resistência das mulheres negras e o conceito de amefricanidade.
Em seguidas, apresentaremos o primeiro capítulo que buscará refletir o racismo
estruturante dando ênfase as implicações da branquitude nos apagamentos político-
culturais assumidas da população negra. Esse capítulo buscará localizar os capítulos
seguintes que estarão centradas nos dados produzidos com as narrativas das mães que
integrarão esta pesquisa.
Através das narrativas das histórias de vidas e da realização das entrevistas,
busco discutir alguns aspectos-chave que norteiam a investigação, tais como: Quais as
diferentes circunstâncias sociais e pessoais que levaram estas mulheres à condição de
responsáveis por seus domicílios? Como os seus marcadores sociais de gênero, classe,
raça e idade/geração e as possíveis intersecções vem conformando suas trajetórias e
delineando suas experiências de vida? Até que ponto ser “chefe de família” permite a
estas mulheres mais autonomia e a vivência de novas experiências via a ampliação de
seu status dentro do grupo doméstico e na sociedade? Ou seria mais um elemento
catalisador de uma série de desvantagens estruturantes? Como se articulam práticas e
representações face à condição de chefia familiar, essa condição é vivida em termos de
mais poder e autonomia ou de mais responsabilidade e subordinação? De que maneira
essas trajetórias e experiências e suas interseccionalidades vêm conformando as
identidades/subjetividades destas sujeitas?
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1. PERSPECTIVAS DECOLONIAIS
À África
Às vezes te sinto como avó,
outras vezes te sinto como mãe.
Quando te sinto como neto
me sinto como sou.
Quanto te sinto como filho
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5
Altericídio: Estratégia discursiva de esconder ou cancelar consciente ou inconscientemente a identidade
do outro a fim de aumentar o grau de homogeneidade sociocultural
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com o passado negro, via música, oralidade, história, arte, entre outros meios .O mesmo
autor irá afirmar que a narrativa da abolição enxerga estes caminhos como formas
inviáveis, pois do mesmo modo que os senhores de escravos vêm à libertação dos
negros por meio da condolência branca, os abolicionistas também assim a fazem.
Shilliam(2013) irá, então, defender, uma nova hermenêutica da visão abolicionista, que
coloca o negro como protagonista da sua própria libertação, via redenção.
A universalidade dos termos, algo que segundo Abdias do Nascimento (1980)
fere a emancipação negra, frente às categorias epistêmicas, tal como o Estado Nação,
faz com que não se veja a construção dialética destes conceitos e das identidades que se
formam ao redor deles. Aníbal Quijano (2005) ao formular seu pensamento sobre a
criação do Estado Nação da América Latina, tenta elucidar estas questões ao perceber o
paradoxo de Estados independentes, mas enraizados politicamente nas estruturas
coloniais.
O exemplo mais prático desta ação pode ser revelado na práxis do Quilombismo,
explorada por Abdias do Nascimento (1980). No âmbito da luta social, anti-imperialista
o quilombismo coloca-se como uma ação libertadora através da reorganização da
sociedade pelo regate da memória e empoderamento dos atores, antes oprimidos.
Vê-se que a raça, estando na centralidade da estrutura de poder que compõe a
ordem capitalista mundial moderna, possibilita a formação do discurso colonial em
binarismos, na qual restringe a história e sua construção à uma Europa moderna,
civilizada “universal”. Com isso, se é colonizado não só as estruturas materiais da
sociedade, mas também a concepção dos saberes.
Desta forma, por mais que seja possível pontuar o fim formal do colonialismo,
os elementos de colonialidade ainda se fazem enraizados na estrutura de poder, sobre as
quais os atores das relações Internacionais pautam suas ações e, não obstante, a raça
continua ser um elemento categorizador da sociedade. Isto pode ser vislumbrado na
ação do Estado Brasileiro, para com o continente africano ao mobilizar tal artefato
discursivo a fim de traçar pontes estratégicas.
Frantz Fanon é um importante pensador considerado um dos precursores do
argumento pós-colonial, os trabalhos de Fanon apresentam elementos fundamentais que
nos permitem pensar a base de um pensamento epistêmico decolonial, articulando a
crítica ao colonialismo. O autor elabora um deslocamento em termo de
temporalidade/historicidade, ao denunciar o colonialismo europeu existente na África e
33
Ásia até a metade do século XX, assume uma posição contrária a esta estrutura de poder
e emprega a luta pela descolonização do ser e do saber.
Em “Os Condenados Da Terra”, expressa o autor que a vida é um combate
interminável (FANON, 2009). É deste modo que ele concede as condições necessárias
para a luta pela decolonização e argumenta que, se queremos pensar, refletir ou teorizar
sobre a colonialidade do ser, faz-se necessário que haja, precisamente, a existência e a
manutenção de um contato afetivo ativo ou, por assim dizer, uma experiência concreta
com o ser colonizado.
Em Crítica da Razão Negra, Mbembe aponta a ligação estrutural entre o conceito
da modernidade e o da colonialidade, em que caracteriza a negrificação do mundo.
Segundo o autor, essa concepção extravasa as identidades biológicas e sociológicas dos
sujeitos, a fim de que, seria o negro deserdado do mundo como todos os colonizados
eram “Os condenados da terra”.
O autor argumenta que o colonialismo não é, em nenhuma instância, uma
máquina de pensar ou um corpo dotado de razão. Ao contrário, ele é a violência em
estado de natureza e, assim sendo, não pode inclinar-se, senão, diante de uma violência
ainda maior.
Diante da violência sofrida pelos colonizados, estes se veem destinados a sofrer
até o momento da independência. Também no que se refere à importância da Igreja
católica para a consolidação do projeto colonial, cujo inicio de criação e
desenvolvimento deu-se com a descoberta do novo mundo.
Trata-se de uma denúncia quanto ao papel que a Igreja ocupou nesta estrutura de
poder colonial e, consequentemente, o seu papel no que diz respeito à legitimação da
ideia de raça e a naturalização do sistema de hierarquias dos colonizadores em relação
aos colonizados. Fanon (2008) fornece uma reflexão sólida acerca das consequências
psicológicas do racismo no ser colonizado. Sólida, sobretudo, porque parte de sua
experiência pessoal:
No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldade na
elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é
unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em
terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera de densas
incertezas (FANON,2008; p. 104)
ele é, sem dúvidas, a mais perceptível e onipresente. (QUIJANO, 2000). Desta forma
como nos sublinha Ochy Curiel:
Estos dos autores, entre otros, nos ofrecen un profundo análisis del
colonialismo desde lo que hoy se denomina “posiciones subalternas”.
Como intelectuales negros desafiaron el eurocentrismo del
pensamiento y de los análisis políticos, dejándonos un legado
importante para la comprensión de la realidad latinoamericana. Pero a
pesar de estos grandes aportes, ni Fanon ni Cesaire abordaron
categorías como sexo y sexualidad. Tampoco lo hacen los
contemporáneos latinoamericanos que escriben sobre estos temas
(Mignolo, Quijano, Dussel). Si bien sitúan la raza como criterio de
clasificación de poblaciones que determina posiciones en la división
sexual del trabajo, solo mencionan de paso su relación con el sexo y la
sexualidad, además de no referirse a los aportes de muchas feministas
en la creación de este pensamiento. (CURIEL, 2001; p.93)
6
No pensamento de Lélia, o núcleo da amefricanidade é constituído pela cultura negra que, informando
toda a cultura brasileira, se expressa “na cotidianidade de nossos falares, gestos, movimentos e modos de
ser que atuam de tal maneira que deles nem temos consciência. É isso que caracteriza a cultura viva de
um povo.” Entretanto, a cultura negra “não é apenas o samba, o pagode, ou o funk. Mas ela também é o
rock, o reggae, o jazz. Ela não é apenas a Umbanda ou o Candomblé, mas é também o transe das igrejas
carismáticas, católicas e protestantes. Ela não é apenas o ´nós vai´ e o ´nós come´. Mas a musicalidade e
as pontuações discursivas que nos diferenciam dos falares portugueses e africanos.” (Discurso de posse de
Hilton Cobra do Centro Cultural José Bonifácio, Rio de Janeiro, escrito por Lélia em maio de 1993.
39
daquela data foi, na prática, uma forma de tirar a responsabilidade dos senhores de
escravos sobre as crianças que nasciam na senzala.
Soma-se a isto a inexistência de políticas sociais que atendesse as demandas
daquelas crianças. Provém daí a marginalização de crianças e adolescentes negros que
hoje são chamados de “menores”. O mesmo sucedeu a lei dos Sexagenários, que
libertava os escravos com mais de 60 anos de idade, mas também sem nenhuma garantia
de assistência social. Uma lei quase inócua, raros em os escravos que chegavam àquela
idade. Até hoje se manifestam as consequências sociais e culturais da longevidade e do
alcance da escravatura no Brasil. Somente em 1888, sem nenhum tipo de reparação
social, promulgou-se a lei geral de liberação dos escravizados.
Após a abolição da escravidão, as relações sociais e políticas entre bancos e
negros são marcadas por três processos principais, Teun A. van Dijk nos incita a pensar
sobre os limites impostos dentro dessa lógica colonial, destacados a seguir:
a) O país não adotou legislação de segregação étnico-racial (diferentemente dos
EUA e da África do Sul), não tendo ocorrido, portanto, definição legal de
pertença racial;
b) O país não desenvolveu política específica de integração dos negros recém-
libertos à sociedade envolvente, o que fortaleceu as bases do histórico
processo de desigualdades sociais entre brancos e negros que perdura até os
dias atuais;
c) O país incentivou a imigração europeia branca em acordo com a política de
Estado (passagem do século XIX para o XX) de branqueamento da
população em consonância com as políticas racistas eugenistas
desenvolvidas na Europa do século XIX;
No final do século XIX o Brasil era apontado pelos viajantes europeus como um
caso de extrema miscigenação racial, a fim de escapar ao destino menosprezado pela
Europa de país mestiço, optou pelo incentivo a imigração europeia, conferindo-lhes
vantagens para que europeus pudessem se estabelecer em território brasileiros,
preponderantemente nas regiões Sul e Sudeste.
Durante a mudança do Império para República, o Brasil continua sendo um país
agroexportador, latifundiário e monocultor, ou seja, a estrutura de poder sofre pouco
alteração. Em vista disso, o racismo não se concentra apenas em questões econômicas,
não se pretende aqui ignorar uma questão tão emblemática na nossa sociedade.
43
Contudo, as disparidades sociais não podem ser explicadas apenas pelos fatores
econômicos e sociais.
Desde o pós-abolição para garantir a supremacia racial de uma etnia, a sociedade
foi estruturada de forma racializada por meio de mecanismos estatais para efetivação e
manutenção dessa estrutura. Como coloca Silvio Humberto Cunha (2004):
Os teóricos têm deixado em segundo plano uma outra questão
importante na explicação do atraso econômico, qual seja, a sua relação
com a forma como as sociedades herdeiras da escravidão resolveu seu
passado escravista, o que envolve o destino dado ao contingente de
ex-escravos e seus descendentes, uma população numerosa mesmo
antes da abolição. (CUNHA, 2004, p. 10).
7
Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
45
invisível que vai determinando futuros de jovens, perspectivas de ascensão social para
trabalhadores, longevidade para adultos e graus de dificuldade para projetos pessoais.
Ele transcende o âmbito institucional, pois está na essência da sociedade e, assim, é
apropriado para manter, reproduzir e recriar desigualdades e privilégios, revelando-se
como mecanismo colocado para perpetuar o atual estado das coisas. Sobre o racismo
estar no inconsciente Clovis Moura afirma que:
Foge a uma configuração dialética e totalizadora pois, acreditamos, o
ex-escravo é aquele elemento que inicialmente e de forma
racionalizada, era visto pela sociedade global, especialmente no
mercado de trabalho, como incapacitado para exercer uma série de
atividades que eram resguardadas para o trabalhador branco,
especialmente imigrante no caso de São Paulo. Desta forma, quando
nos referimos a ex-escravo temos em vista uma definição mais
abrangente que engloba tanto aquelas limitações subjetivas,
destacadas muito bem por Otávio Ianni - o trauma da escravidão –,
decorrentes da herança que o negro adquiriu do cativeiro, como a
contrapartida, vinda de fora para dentro, ou seja, a imagem que a
sociedade tinha dele e que era, antes de mais nada, a de um incapaz
para o trabalho qualificado no mercado livre... Essa ideologia
determina sua marginalização muito mais do que uma suposta herança
escravista em nível psicológico que o autobarrava (Moura, 1977, p.
20-21).
Esta posição do autor é muito importante pois preconceito de cor, para ele, nada
mais é que eufemismo para racismo e, por sua vez, é antes nas estruturas racistas do que
no negro que se deve procurar os fatores que explicam a sua marginalização (as
condições de vida do negro, nas áreas degradadas dos centros urbanos, na qual a
violência cotidiana do estado e dos grupos de extermínio são uma constante).
Trata-se de um elemento estrutural no Brasil porque formatado desde a vigência
do escravismo colonial como modo de produção (GORENDER, 2010), sistematizado
por Clóvis Moura mediante as expressões escravismos pleno e tardio (MOURA, 2014).
Ainda hoje, em grande parte dos debates o racismo é tratado como patologia e não como
estrutural e estruturante, como defendido por muitos estudiosos. O argumento de
pesquisadores é sustentado pela ideia de que relações são constituídas em um padrão de
normalidade. Segundo Silvio Almeida, podemos definir o racismo estrutural em três
dimensões: econômica, política e subjetiva, das quais a pessoa negra, principalmente
mulheres, encontram-se na base da pirâmide social.
2.1 Relações Desiguais
8
Tokenismo é um termo que vem do inglês 'token' (símbolo) e consiste na prática de fazer pequenas
concessões a um grupo minoritário para evitar eventuais acusações de preconceito ou discriminação.
52
Com o decorrer do tempo foi possível notar que o número de alunos negros que
se graduavam nas instituições não mudou significativamente. Isto ocorreu, conforme a
análise mais detida do fenômeno de discriminação indireta e de racismo estrutural
(observado pelos dados estatísticos de estudantes negros ingressos e egressos no ensino
superior naquele período) permitiu notar, porque práticas de discriminação institucional
diversas expulsavam estes alunos incluídos no sistema.
Percebeu-se que o fenômeno de exclusão do ensino superior público no Brasil
não era relacionado a apenas uma instituição, o vestibular, mas relacionava-se a diversas
outras que existiam antes do ingresso, durante o ingresso e após o ingresso conforme se
percebeu. Acredito que é a ausência de uma proposta complexa de observação das
injustiças sociais, incluindo o racismo, que enfatiza e potencializa o impacto das
dinâmicas interinstitucionais, desigualdade de recursos e legados históricos, nas
desigualdades raciais constatadas pelos dados atuais, mesmo em face de políticas
estatais de promoção de igualdade e combate a discriminação pois estas mostram-se
incompletas e insuficientes para combater a forma estrutural com que o racismo se
manifesta no Brasil, principalmente por buscar mitigar ao extremo a responsabilidade
individual, presente nas dinâmicas institucionais e estruturais.
A proposta de compreensão do racismo como um fenômeno estrutural passível
de intervenções institucionais, conforme sugeriu John Rawls, busca trazer a percepção
de que as desigualdades são resultantes do efeito cumulativo de diversos obstáculos
comunicantes, resultantes de uma ideologia formadora de sociedades multiculturais que
têm o racismo como ideologia de base fundante das suas instituições.
Na obra Racism Without racists, Eduardo Bonilla (2006) aponta o racismo como
lógica estruturante a partir de quatro enquadramentos:
a) Abstração liberal, decorre de desajustes normativos que podem ser
enfrentados com mudanças jurídicas.
b) A naturalização do racismo como fenômeno que não pode ser superado
socialmente (em vista disso, observamos o retorno de pensamentos
racialistas biologizantes).
c) A culturalização do racismo, evocando diferencias culturais como marcas ou
clivagens que explicam as hierarquias.
d) A minimização do racismo como problema central, colocando-o sempre na
periferia da agenda.
54
Desta forma, a crise social no país assume um caráter estrutural. A sua resolução
passa, necessariamente, pela mudança radical de orientação do desenvolvimento
econômico do país. Mas perpetuou-se a forma de acumulação de riquezas pela via da
superexploração do trabalho, a acumulação predatória. A operacionalidade dos
mecanismos seria assim detalhada por Hasenbalg (1979): a raça, como traço fenotípico
historicamente elaborado, é um dos critérios mais relevantes que regulam os
mecanismos de recrutamento para ocupar posições na estrutura de classes e no sistema
de estratificação social.
Resultou nisto um país uma das piores distribuições de renda da América Latina,
comparável a nações mais miseráveis do planeta. Teses como a do ex-ministro da
Fazenda no regime militar, Delfim Neto, de que “é preciso primeiro fazer o bolo crescer
para depois dividi-lo” se foram duramente criticadas, explicam a esmagadora maioria
dos planos econômicos tocados por sucessivos governos. Ao lado disto, tem-se uma
criminalização constante do movimento social popular, tratando qualquer manifestação
reivindicatória como baderna merecedora de repressão policial.
Mas onde entra o racismo nisto tudo? O racismo foi o mecanismo ideológico que
serviu para legitimar socialmente esta ascensão da burguesia ao poder de forma
conservadora. Aí que entra uma característica particular da formação do capitalismo
brasileiro: a classe que ascende ao poder, a burguesia, se legitima socialmente utilizando
um mesmo mecanismo ideológico que legitimava o sistema social anterior, o
escravismo, e o poder da classe aristocrática. Por isto que a “revolução burguesa”
brasileira foi conservadora, manteve diversas estruturas sociais do sistema escravista e
consubstanciou-se de forma transitória e não por uma ruptura com o modelo antigo.
Clóvis Moura (1988) descreve o período de transição da mão de obra escrava
para a mão de obra assalariada como a fase do “escravismo tardio”. Segundo ele:
“Chamamos de escravismo tardio, o período em que relações capitalistas
desenvolveram-se no seio da sociedade escravista, pondo em cheque o regime anterior e
criando bases para um novo modo de produção”. Foi justamente neste período, que se
inicia em 1850, que se criam bases para a acumulação de riquezas no país transformasse
em capital. A Lei Eusébio de Queiroz, promulgada neste ano, proibiu o tráfico de
escravos. Os recursos que eram utilizados no tráfico foram redirecionados para outros
investimentos, entre eles, a criação de uma infraestrutura no país que permitisse certo
desenvolvimento econômico.
58
fenômenos sociais. A opção por trabalhar com narrativas (auto)biográficas surge como
uma alternativa de pesquisa que nos permite potencializar as vozes “excluídas” das
narrativas oficiais.
Nas narrativas, como nas memórias, o passado se reconstrói discursivamente de
maneira alinear com idas e vindas, com superposições de tempo, com reflexão e
espontaneidade buscando uma coerência e justificativa para o existir. Neste movimento
é importante demarcar que entendemos que o que retorna não é simplesmente um
registro literal do passado, mas a leitura de imagens e experiências guardadas na
memória e estimuladas sob determinadas circunstâncias. Em outras palavras, não é o
passado linear que é reconstituído na narrativa. Mas, o que é privilegiado na experiência
que marca nossos corpos e auxilia na forma como nos colocamos no mundo
(CAETANO, 2016).
As memórias pessoais de nossas personagens são marcadas pelo afeto e recorro
a elas para entender as viagens que tiveram que realizar para ocupar os espaços em
determinadas configurações sociais e históricas. Ao narrar os fragmentos de suas
memórias, visito um determinado passado na tentativa de encontrar o presente em que
as histórias se configuraram. Nesse caminho proponho-me a tecer cruzamentos e fios
que ficaram momentaneamente “apagados” no e com o tempo. O que busco no
mestrado em curso não é somente trazer informações sobre as histórias desses sujeitos,
mas, sim, estimular em todos e todas que dela se sentem personagem, o surgimento de
outras narrativas para que se produzam sentidos, cruzamentos e tecidos históricos.
Nesse momento, busco nas narrativas do passado o sentido para as
configurações do presente das personagens dessa dissertação. Penso que este exercício
seja fundante para realizar a viagem, que agora, preocupo-me em fazer. Este percurso
será orientado pelas narrativas de mães negras, mas é preciso ter claro que ao fazê-lo
trago corpos constituídos de experiências, de contradições, de configurações
identitárias, de relações e de leituras do mundo que foram percorridos com inúmeros
outros sujeitos.
Sei que a memória está vinculada a escolhas pessoais, mas relaciona-se e está
armazenada em diversas fontes que estão a seu serviço. Preocupo-me em descrever um
caminho, que me possibilite no texto uma reflexão sobre as relações tal qual se
apresentam para mim. Diante dessas escolhas, lanço inicialmente uma pergunta
importante para aqueles e aquelas que reconhecendo a descentração e/ou deslocamento
do sujeito/a elege as narrativas biográficas como caminho metodológico de uma
60
pesquisa. A questão origina-se com a história e/ou trajetória de vida, uma vez que, em
princípio, esta aposta em um sujeito individualizado em informações de sua narrativa.
A decisão foi orientada pelas interpelações que Hall (2003) me provocou. Para o
autor, todo saber será sempre parcial, a realidade é uma construção e a identidade é
sempre um estado em processo. Tenho como objetivo a leitura de determinadas
narrativas que produzem discussões sobre corpos e identidades circunscritos aos
tempos/espaços de sua trajetória. As personagens que dela fazem parte assumem
feições, transgridem fronteiras, reconfiguram desejos e corpos e quando se pensa fechar
o discurso sobre a identidade, inauguram novas posições.
As narrativas nesse texto operam para além do descentramento dos sujeitos, elas
preocupam-se com as condições de suas emergências, mas não deixam de observar
como o entendimento de determinado discurso operou como verdade provocando
mudanças nos corpos de nossas sujeitas. Penso que elas, configuram o que Hall (2003)
afirmou sobre a identidade. Segundo o autor o sujeito assume inúmeras identidades em
diferentes momentos de sua existência. Neste sentido, as identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” sempre coerente e fixo, no interior do sujeito existem
identidades e posições contraditórias que acabam por empurrá-lo em diferentes
direções, de tal modo que suas identificações estão sendo continuamente deslocadas,
portanto, mobilizadas.
Na busca de dar conta da maternidade, essas mulheres negras sustentaram em
seus corpos os comportamentos entendidos e reconhecidos por elas para a sua posição.
São nesses comportamentos que seus corpos buscaram a confirmação, através do olhar
do outro, daquilo que elas desejavam como verdade sobre a maternidade, a negritude e o
feminino. Esses dispositivos/verdades modelaram as formam como pensavam e
conheciam os seus formatos corporais, atuando como mecanismos de controles e
disciplinamentos constantes. Larrosa (1996) argumenta que o sentido daquilo que
somos depende das histórias que contamos aos outros e a nós mesmos, em especial, nas
(auto)narrativas. Quando narramos nos construímos e nosso texto ou as interpretações
que damos, estão sempre relacionados aos acontecimentos.
O ato de narrar sua própria história, mais do que contar sobre si, é um ato de
conhecimento. Através da narrativa, o sujeito constrói uma cadeia de significantes que
estrutura formas cognitivas de representar o mundo e compartilhar a realidade social, ao
mesmo tempo em que engendra sonhos, desejos e utopias. Minha opção pelas trajetórias
61
será, sem dúvida, íntima. Se a viagem é sempre constituída de viajantes, essa escrita
será constituída de personagens que se elaboram e se constituíram na difícil tarefa de
resistir ao racismo e ao sexismo.
No que diz respeito a decolonialidade, Linda Alcoff (2016) aposta na dimensão
política como chave para a leitura da mudança proposta por essa perspectiva. Ela
informa que uma epistemologia política necessariamente considera as condições que
estruturam os papéis epistêmicos, revelando como a autoridade e a presunção de
credibilidade são às vezes arbitrariamente distribuídas. Isto é, considerar o componente
político da epistemologia permite ter acesso aos modos como a produção de
conhecimento legitima um saber em detrimento de outros saberes, como estratégia para
a manutenção dos apagamentos epistemológicos por meio da construção de um ator do
conhecimento genérico, mas que vai corresponder aos aspectos identitários coloniais.
Além disso, a autora propõe que se possa mudar a geografia da razão, por meio
de um esforço para a reconstrução da epistemologia, tornando-a mais próxima da
complexidade da realidade política experimentada e, dessa forma, superando o chamado
obstáculo epistemológico. Por conseguinte, reconhecer que outras posicionalidades
também remetem a certa dimensão de realidade e de verdade tanto quanto a perspectiva
hegemônica, sem a intenção de valorar ou hierarquizar conhecimentos, oferecendo uma
versão plural da história, permite a eclosão de uma virada epistêmica e o rompimento
com a assimetria entre os lugares de enunciação.
Ainda, atentar para o processo em que algumas epistemologias são
desautorizadas e sistematicamente excluídas pelo colonialismo, considerando que existe
um fortalecimento de outras, em um processo de disputa dos espaços de legitimidade,
significa também a retomada do conceito de identidade, colocado em segundo plano por
perspectivas pós-modernas/pós-estruturalistas. Não obstante, trata-se de entender a
identidade como uma estabilização de um processo múltiplo e dinâmico, supondo que
experiências em diferentes localizações são distintas e que a localização importa para o
conhecimento (ALCOFF, 2016).
A Decolonialidade, portanto, oferece uma perspectiva fundamental aos objetivos
desse trabalho, ao recorrer a formas de produzir conhecimento situadas no contexto do
próprio campo de pesquisa: as ferramentas metodológicas, que serão apresentadas na
seção seguinte, apontam para a própria produção epistêmica desenvolvida nos contextos
em que foram estudadas.
63
própria vida revelam um paradigma dos momentos mais honrosos ou dos momentos
mais sofridos e significativos da vida. A dor lembrada, a dor narrada é parte
fundamental de suas histórias. As entrevistas foram gravadas, com a prévia autorização
das sujeitas da pesquisa, que assinaram um termo de autorização expressando o
consentimento de utilizar seus depoimentos na pesquisa. Em seguida, as falas foram
transcritas para a análise do conteúdo.
Meu objetivo era compreender como essas mulheres sem luta organizada, sem
uma causa social publicamente reconhecida, sem uma compreensão sistematizada das
causas da opressão social, sem um conhecimento do feminismo afirmam-se como
sujeitas de direitos e deveres.
Fiquei impressionada com a satisfação e disponibilidade com que
compartilhavam as histórias com o grupo, parecia lhes fazer muito bem, muitas vezes
nós tínhamos vivências em comum, semelhantes. Foram quatro encontros, três foram
destinados para as entrevistas coletivas e um foi para uma oficina de turbantes a pedido
das entrevistadas, os encontros duravam em média duas horas, uma rede de
cumplicidade formou-se entre nós. Durante as entrevistas eu gravava as falas.
Os encontros tinham características diferentes, a depender dos sentimentos que
eram projetados nos diálogos, alguns mais descontraídos, outros mais sérios. Ao final de
cada entrevista, os encontros iam tomando importante espaço na rotina das entrevistas e
para a coletividade entre as mulheres. Tudo isso faz com que as entrevistas narrativas
sejam encantadoras, pois elas nos colocam diante da outra e de nós mesmas, não há
como negar as implicações de nossas experiências na construção da identidade que está
a todo momento em transformação, demonstrando que estamos socialmente marcadas
por questões de gênero, raça, etnia, classe, geração, sexualidade, entre outras.
Consciente dessas afetações, o próximo tópico se destina a falar dos sentimentos que
realizar essa pesquisa trouxe.
Recordo os primeiros encontros de orientação tanto individual quanto em grupo
em que eu queria muitas coisas, mas, ao mesmo tempo me sentia perdida nas infinitas
possibilidades sobre o tema de pesquisa. Durante conversas com meu orientador
surgiram várias ideias, e “por que não?”, dizia ele, até que me encontrei num tema que
me atravessava, mulheres negras, porém ainda assim havia infinitas possibilidades ao
falar sobre mulheres negras, atravessando, gênero, classe e raça. A reposta eu busquei
na minha jornada, na minha mãe, nas minhas tias, e nas outras tantas mulheres negras
que são mãe e chefiam lares, visto que eu também faço parte desse lugar. No decorrer
65
quatro categorias de análises: aquilo que eu planejei e aquilo que eu estou vivendo , a
família que eu nasci e a família que eu constitui, a questão sobrevivência e por fim os
sonhos, aquilo que eu penso para mim e para aqueles que botei no mundo.
Desse modo, a pesquisa foi constituída por cinco mulheres chefes de família.
Nessa pesquisa, procurou-se explorar a realidade vivenciada pela família, sobre o ponto
de vista da mulher chefe de família. As mulheres negras, chefes de famílias,
entrevistadas foram: Luísa - 28 anos; Carolina – 30 anos; Ruth – 32 anos; Glória – 42
anos; Sueli – 73 anos. Aqui, relataram a sua história, deixando penetrar no universo da
mãe-mulher-trabalhadora-chefe de família. Cada história, demonstra particularidades e
peculiaridades, porém, todas apresentam uma experiência comum: a de serem
responsáveis pelas decisões e pela manutenção de suas unidades domésticas.
Ademais, eu poderia adicionar, a familiaridade de uma mulher negra falando
com outra mulher negra evoca laços consanguíneos. Quantas histórias de filhas, irmãs,
sobrinhas me foram contadas! É bem verdade que algumas histórias eram sobre a
precariedade vivida por essas mulheres, jovens como eu, que, segundo as narradoras,
demonstravam absolutas habilidades e desenvoltura para lidar com os obstáculos,
principalmente quando envolviam crianças. Mulheres fortes, capazes de articular
estratégias, avaliar contextos, negociar e administrar crises familiares.
Para apresentar as colaboradoras da pesquisa optamos por deixá-las falar por si
mesmas, considerando a indicação de Lélia Gonzalez (1984), que destaca a importância
dos/das sujeitos/as subalternizados/as assumirem a própria fala. As frases que nomeiam
os subtítulos foram pronunciadas pelas colaboradoras.
4.1 “A vida de casada é uma vida de martírio”
“As mulheres negras têm mais dificuldade pra tudo na vida, até no serviço, eu
mesma fui largar currículo e mal olharam pra minha cara, se fosse uma mulher branca
tinham contratado na hora, isso é o negócio do preconceito”. (Carolina)
“Ou eles vão pela roupa, se a roupa está mais ou menos ou se está muito
simples eles já não aceitam, e às vezes a pessoa não tem uma coisa melhor pra vestir”.
(Luísa)
“O negro tem que estar sempre bem apresentado, se não aí já viu”. (Carolina)
“Eu fico pensando assim, que nós mulheres negras ficou registrado na história
aquela coisa da mulher negra escrava, então até hoje a própria negra se diminui não é
verdade?! a própria mulher negra se contrai, eu não vou lá por que só tem branco, só
67
tem isso, aquilo e aquilo e outro, não mesmo, se nós colocasse a cara e fosse lá e
falasse: eu sou humana eu também vou enfrentar, seria diferente, a gente quebrava o
tabu, é um problema de autoestima, por que a gente vem de uma raça que foi muito
escravizada, não tinha liberdade de nada e aquilo ficou como uma cicatriz, eu sempre
digo que quem está pagando por tudo isso até hoje somos nós ou os nossos filhos,
muitos dizem que as famílias estão melhorando até na raça já que negro com negro não
quer casar então se misturam, eu sei porque tenho amigas minha que dizem eu não
quero que os meus filhos sofram o que eu sofri, eu digo: a eu também, a mesma coisa, o
meu guri mesmo é bem claro, claro mesmo de pele branca só tem os cabelos mais
crespos, a gente que quer melhorar a raça quer isso porque não quer ver os filhos
sofrer, nós que estamos aqui já estamos pra lá do beleléu, mas os mais novos ainda tem
muito o que enfrentar, numa faculdade mesmo, sendo negro tu te sente menos. O cabelo
crespo eu acho muito bonito, eu sempre digo pra minha guria não alisa, deixa assim,
então agora ela não quer mais, o negócio é o seguinte nós não devemos nunca baixar a
cabeça por causa de outros, não podemos pensar que não temos valor porque eu sou
negra, mete a cara e vai em frente, conhece a jornalista Maju né? É um bom exemplo,
sabe, quando chamaram ela de macaca e não sei lá mais o quê, ela deu a volta por
cima, quanto mais tu baixar a cabeça até mesmo aqueles que por serem mais claros
acham que são melhor do que os outros mais escuros, por mais claro que ele seja ele
não vai deixar de ser negro, se ele vem de mãe negra, vó negra né, pode até ter mistura
com o branco mas qual é o lado que mais prevalece?! É o lado do negro, então ele
sempre vai ser aquele mestiço ele nunca vai ser considerado branco, o meu guri eu
sempre dizia isso porque ele não queria beijar pessoas muito pretas e eu dizia: vai lá e
beija! Vai beijar e abraçar. Eu sou negra eu sou tua mãe eu te criei, e ele não queria de
jeito nenhum”. (Sueli)
“Eu também quando comecei a namorar não queria preto de jeito nenhum,
nunca fiquei com preto gurias, não gosto, não adianta é uma coisa da gente mesmo”.
(Carolina)
“Oque nós não podemos fazer é achar que eles são melhor só porque nós
somos negras e eles não é isso que nós não deixar, isso é o antirracismo, porque se não
for assim nós nunca vamos combater”. (Sueli)
“Eu já gosto de um negro bem pretinho”. (Luísa)
“Quando existe amor a cor não importa porque eu vejo tantas amigas minhas
brancas loiras casadas com negros”. (Sueli)
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“Eu tenho muitos problemas no colégio, a minha filha é bem mais escura que eu
então nós tivemos problemas na escola com o racismo da professora, minha filha
queria trocar a cor da pele, ela falava em casa que queria ser branca. Ela não gosta do
cabelo dela que é bem afro, tem bastante volume eu acho lindo, mas ela não, ela pede
pra alisar, ela sofre com isso porque o que ela passa no colégio que eu não sei?! ele
pede: mãe quando tiver um dinheirinho sobrando alisa meu cabelo, o pai dela é mais
escuro e ela saiu que nem ele, já eu sou mais clara e ela diz: mãe eu quero ter a tua
cor, e eu digo pra ela: eu que quero ter a tua cor, eu qualquer picadinha já fico toda
empipocada vermelha, já a pele mais escura não e custa mais pra envelhecer, antes
mesmo de começar as aulas ela já dizia: ai meu deus será que a minha professora vai
ser branca? E eu dizia tomara que esse ano tu tenhas uma professora negra, da nossa
raça, e graças a deus esse ano ela pegou uma professora negra, porém tem um dia na
semana que é outra professora que fica com a turma e ela é branca e se encarna na
minha filha, ela chega na aula e ela não quer ficar de jeito nenhum, ela chega a chorar,
até hoje ela não me diz o que a professora faz com ela, a minha é a mais pretinha da
aula, me dói porque eu sou mãe, eu vou lá faço queixa mas não adianta, infelizmente a
gente passa por isso”. (Luísa)
“O meu neto é bem branquinho se eu sair com ela na rua vão achar que eu sou
a babá do guri e não vó”. (Sueli)
“É que nem eu, eu nasci numa família de 7 irmãos a mais escura sou eu, os
restantes são mais claros e as pessoas dizem que não sabiam que sou irmã, isso porque
minha mãe é negra e meu pai alemão, aí claro eu puxei a mãe e o resto todo o meu
pai”. (Carolina)
“A pessoa negra quer se defender do racismo de qualquer forma, ela quer cair
fora disso aí”. (Sueli)
“Uma vez eu fui comprar um guarda roupa pra mim eu e uma amiga minha,
hoje ela já não é minha amiga mais, e ela era branca, cheguei na loja pra ver o guarda
roupa, e a atendente nem olhava na minha cara só falava com a minha amiga, mas
quem queria comprar era eu, então essa minha amiga virou e falou: moça não sou eu
quem vou comprar o guarda roupa, é ela (apontando para mim) quem está com o
dinheiro é ela, então tens que mostrar para ela, a vendedora fez uma cara... eu não me
animei a dizer nada, mas aquilo com certeza era racismo. Fui fazer uma faxina esse
ano no cassino, minha irmã arrumou para mim, cheguei na casa a mulher olhou para
mim de cima à baixo e falou que já tinha arrumado outra pessoa, eu falei: mas como?!
69
Se a senhora ligou para minha irmã ainda hoje de manhã pedindo faxina, detalhe
minha irmã é mais clara, eu que sou mais escura levei uma porta na cara. Eu já
trabalhei numa casa em que a mulher só me deu pra comer arroz e tomate, peguei o
serviço cedo e só me deram almoço 13:45 eu já estava tremendo de fome tinha
trabalhado horrores e tive que comer só aquele arroz e tomate, enquanto ela comeu
peito de frango, ovo... se pelo menos ela tivesse me dado um arroz, tomate e ovo que é
sustância, naquele dia eu cheguei chorando em casa, já passei por muitas, eu tenho
uma filha de 15 anos que mora com o pai, ele só quis fazer filho e depois não ficar
comigo porque ele disse que eu era preta e fez tudo pra tirar a guria de mim, ele mesmo
disse quando eu tive ela: eu não te quero eu quero a minha filha”. (Carolina)
“Infelizmente é assim o negro é sempre colocado a baixo, sempre menos, são
coisas que deixam marcas, esses dias uma conhecida disse assim: a para, agora tudo
que se fala do negro é racismo, é mimimi. Eu disse: não é que tudo é racismo a pessoa
sente quando é, é uma coisa que eu acho que a gente vai morrer e não vai conseguir
combater o racismo, a gente vai tentar ao menos melhorar e sempre que a gente for
tentar fazer alguma coisa não podemos nos diminuir, não tenho faculdade, sou pobre,
negra, mas eu penso assim um dia vamos todos para o mesmo buraco, 7 palmos do
chão onde não vai ter cor, não vai ter dinheiro, então não adianta nada, a mãe sempre
arrumava a gente porque a pobreza o capricho é uma coisa o relaxamento é outra
coisa”. (Sueli)
“Minha mãe é um exemplo tem 79 anos, meus pais são analfabetos, meu pai já
faleceu, a mãe não sabe ler então ela se virava de outra maneira, ela é muito esperta
ela faz tudo, hoje em dia ela faz ginástica, ela faz hidro, ela sai sozinha sem saber ler e
escrever ela trabalhou muito tempo de doméstica, já que é o serviço que a gente tem
provavelmente, teve um casa que ela trabalhou mais de 20 anos e ai ela ficou como
governanta dessa casa e são umas pessoas maravilhosas, então agora ela vai pra lá
pois sabe cozinhar muito bem, e vai para lá cozinhar e ficar de companhia, eles pagam
ela, ela faz comida, congela e tal. Ela se diverte, agora final de semana ela disse:
Glória, esse final de semana eu vou para estância com o pessoal. Eles tratam ela super
bem, a mãe teve 11 filhos eu tenho 8 irmãos 2 já faleceram, então é uma família
imensa, da família ela foi a que teve mais filhos porque ela foi pra fora e não tinha
como se cuidar já que naquela época não existia anticoncepcional e foi tendo filhos, as
pessoas diziam que os filhos da Guilhermina iam ter uma porção de filhos que nem ela
principalmente as mulheres e foi o contrário, eles nos criaram assim: vocês tem que
70
estudar, o que nós podemos oferecer à vocês é o estudo. Das 5 mulheres quem filhos
sou que tenho um e a minha irmã mais velha tem um, as outras minhas irmãs não tem
filhos, até por esse medo da sofrer tanto porque era muito sofrimento, era tanta coisa, o
Eduardo não foi planejado porque eu estava namorando o meu ex marido, ai parou a
minha menstruação eu fui fazer o teste e deu positivo o resultado, achei que estava
grávida e eu não estava grávida, parei de tomar anticoncepcional de acabei
engravidando de verdade, ai o Eduardo fez um ano e eu falei bom agora vou ter que
estudar o dobro, trabalhar o dobro, aí fui pra faculdade comecei a estudar pra me
formar e fazer concurso, mas o que que a gente tira disso tudo?! eu sempre digo pro
Eduardo assim: o que a gente consegue com esforço tem mais sabor, apesar de todas as
dificuldades não me arrependo de nada, mas realmente a cor da pele pesa sempre, a
gente tem que estar sempre provando que sabemos fazer e não deixar ninguém passar
por cima”. (Glória)
“Não podemos servir de tapete para ninguém, não é pelo fato de sermos negros
que vamos continuar servindo de tapete para eles. É uma coisa muito medíocre porque
nós somos seres humanos e somos todos diferentes, como é que a uma pessoa vai tratar
a outra diferente por causa da cor da pele, é uma coisa inconcebível, as cotas por
exemplo não é só o negro que se beneficia de cotas é todo mundo, as pessoas falam
para mim: a mas tu fez uma faculdade particular, mas elas não sabe como eu fiz uma,
eu fazia a mesma que uma colega branca a mesma universidade é diferente eu não
tinha acesso para comprar livros, eu não tinha horário para estudar a minha colega
tinha dinheiro para comprar livros e tinha horário para estudar então é diferente o
jeito que eu consegui para me formar foi trabalhando de manhã, de tarde fazendo
estagio indo pra faculdade de noite eu trabalhava de doméstica num apartamento e
fazia faxina em outra pra poder pagar e as pessoas não se dão de conta que é diferente,
tu vai pra aula cansada com sono mas tu vai, mas mesmo assim foi tranquilo não posso
me queixar”. (Glória)
“Eu e uma amiga minha branca, fizemos entrevistas juntas para trabalhar num
supermercado e chamaram ela e eu não, eles olham primeiro a cor da pele, te digo isso
porque fui bem mais arrumada do que ela”. (Carolina)
“Não podemos desistir quem enfrentou o racismo e as dificuldades até aqui vai
até o fim”. (Sueli)
“Eu sai de casa com 9 anos para trabalhar, hoje em dia isso seria trabalho
infantil na época meus pais moravam para fora eu fui morar um uma senhora que era
71
amiga da mãe que tinha um casarão imenso e eu trabalhava pra ela, estudava num
turno e no outro trabalhava e podia sair só domingo, então sábado eu tinha que limpar
a casa e eu não falava para mãe que eu fazia tudo aquilo, que eu trabalhava por que
senão ela ia querer me tirar de lá e se ela me tirasse eu não ia consegui estudar muito,
então eu ia e eu fui até uns 13 pra 14 anos, ai chega aquela época que tu gosta de sair,
que tu gosta de namorar e como ela era um solteirona e eu tinha uma amiga, a gente
saía, mas não é como é sair hoje a gente ficava na praça até 20h/21h da noite e ela
achou que aquilo estava demais e ela falou pra mãe e disse que não queria mais que eu
estava já saindo, que eu estava namorando aquela coisa toda, ai a mãe foi me tirar da
escola e a minha professora não quis que ela me tirasse da escola e ela me convidou
para morar com ela. eu cuidava os filhos dela e morava com ela, então eu fui pra casa
da minha professora para morar, então é muita coisa, uma história muito longa não é
fácil tem que ser muito forte”. (Glória)
“A minha mãe sempre foi uma mulher muito guerreira, o pai plantava arroz e a
mãe trabalhava na roça, dirigia os tratores, e a gente criança, 6h da manhã a mãe já
estava em pé fazendo comida, e a gente trabalhava plantando milho, eu não lembro
com tristeza eu lembro com alegria”. (Sueli)
“O pai trabalhava para uma estância, o pai era campeiro, então era
assalariado então eu lembro que todo salário do pai ia na venda, era uma daquelas
vendas que se comprava fiado no caderno e todos os finais de mês ele ia lá e dava todo
dinheiro, ai pegava mais alimentos. Nunca passamos fome, mas era muito sacrifício,
quando chegava natal e ano novo a gente dava graças a deus porque era comida
diferente. Eu digo sempre pro Eduardo: tu é negro e tu és lindo, tens mais é que te
orgulhar disso, e são outros tempos então pra ele é mais tranquilo, para homem é mais
tranquilo, para mulher pesa mais. (Glória)
Ano passado meu filho de 14 anos arrumou uma namoradinha e ele disse: mãe
ela não me dá bola porque eu sou negro, daí eu disse: meu filho não dá bola é porque
não era a menina certa, estuda primeiro tem tempo”. (Carolina)
“A vida de casada é uma vida de martírio, as pessoas dizem: Sueli tu ainda é
nova mas tu não quer arrumar ninguém? eu digo não muito obrigado, não quero deus
me livre”. (Sueli)
“O meu ex marido, pai do meu filho sempre me deu muita liberdade, sempre me
ajudou muito tanto é que eu me formei em 2003/ 2004, meu filho tinha uns 7 ou 8 anos,
eu fui morar em Rosário do Sul sozinha atrás de trabalho, eu sempre digo a gente
72
vai lá em casa pra ver as crianças, começa a sondar, fica lá um dia, fica no outro, meu
pai diz para eu largar dele de vez, que vai me ajudar com dinheiro. O meu gurizinho é
revoltado, ele bate nos outros porque ele é o nosso espelho né, vê né o pai batendo na
mãe, e eu também bato nele, porque eu me avanço nele, ai é uma vida bem difícil, só
que eu não consigo sair disso sai, separa e volta toda hora. Agora eu estou separada, o
meu gurizinho é muito agitado, aí eu não aguento e ligo para pai dele levar ele um
pouco e assim começa, porque ele começa indo lá no portão, daqui a pouco já entra,
vai lá no outro dia levar uma fralda, e a gente acaba junto de novo, eu estava
trabalhando de noite cuidando de uma senhora, e ele ficava lá em casa de noite para
cuidar das crianças, mas ai ele começou a implicar dizendo que eu andava de caso com
o meu patrão, e começou o quebra pau dentro de casa de novo, larguei o serviço me
separei dele e agora estou na mesma situação de novo, sem serviço, sozinha com as
crianças. O meu pai me ajuda para não ter que pedir nada para ele, porque se eu vou
pedir uma caixinha de leite, ele me bate. Só a gente sabe o que vive entre 4 paredes,
nem para igreja ele deixava eu ir, eu choro, eu fico com pena e volto, porque bate a
saudade, eu me acostumei com ele”. (Luísa)
4.2 “Não vivo para mim, eu vivo para meus filhos”
“Não sou muito de falar, é muito problema para uma cabeça só”. (Ruth)
“Quando a gente é nova e está naquela fase da juventude eu sonhava em muitas
coisas, uma coisa que eu sonhei e não realizei foi ser administradora de empresa, eu
sonhava em ser administradora não fiz, e ai sabe como é, a mente de quando a gente é
jovem com o tempo muda muito, eu tinha aquele desejo de ter minha casa, meus filhos,
meu marido, minha vida e realmente hoje não tenho marido, mas tenho minha casa,
meus filhos que são meus, meu rapaz está com 35 a minha guria com 28, meu neto
maravilhoso, então eu sonhei muitas coisas mas não realizei tudo aquilo que eu queria,
ainda tem muitas coisas para serem realizadas mas também já estou com idade meio
avançada então tenho ir mais devagar, não dá para avançar muito, enquanto há vida
há esperança. Todo dia a gente aprende um pouquinho mesmo já tendo idade, aprendo
com os jovens, com os idosos, então a vida gente é um aprendizado. A minha profissão
é costureira, é meu ganha pão ainda não consegui me aposentar se a gente for viver só
com o LOAS da minha filha a gente passaria fome, então eu sempre faço alguma coisa,
não é aquela coisa que eu sei quanto vou ganhar no final do mês, já aconteceu de eu
não conseguir tirar quase nada no mês, não tirar nem 200 reais, agora mesmo está
74
difícil, a época melhorzinha foi no período do polo naval, que aí eu ganhava um pouco
mais e conseguia conciliar as minha dividas, agora está mais difícil, estou costurando
pouco e além de tudo ando meio ruim do braço é uma dor que incomoda muito, mais
nova também fui cabelereira foi um dos primeiros cursos que fiz, trabalhei em salão de
beleza”. (Sueli)
“A vida vai passando é tanta coisa e a gente até se perde nos sonhos, umas das
coisas que eu sonhei foi em fazer direito era a minha paixão, quando eu ganhei o
Eduardo eu não trabalhava, não era formada, fazia química bem diferente do serviço
social fiz a metade do curso de química quando eu fiquei gravida, não dava pra
continuar fazendo química e ai eu disse: não agora eu tenho que fazer alguma coisa
que me profissionalize, alguma coisa pra trabalhar, como meu ex-marido trabalhava na
UCPEL e tinha a possibilidade de eu conseguir bolsa, então eu consegui fiz serviço
social, a princípio porque era um dos cursos mais baratos, tinha de noite, estudar na
federal de dia é pra quem tem condições, então foi por aí, então escolhi aleatoriamente
o serviço social e gostei, é uma das minha realizações, de uns tempos pra cá eu queria
fazer psicologia, mas ainda não sei”. (Glória)
“Nem sei o que eu sonhei pra minha vida, tudo o que eu sonho da tudo errado,
mas eu não lembro o que eu queria ser, mas hoje se eu pudesse realizar eu queria
ajudar as pessoas de rua, eu não lembro muito mas eu gostava de dançar, então acho
que eu queria ser dançarina, eu acho que era isso. Quando a gente é pequena a gente
tem tantos sonhos, depois que a gente fica grande tudo se perde”. (Ruth)
“Eu tenho vontade cantar na igreja, mas tenho muita vergonha, teve um dia que
o pastor falou que ia me chamar e eu só de pensar já comecei a me tremer todinha. A
minha família é muito complicada, morava com minha mãe mais cinco irmãos, tinha
meu padrasto que batia na minha mãe e ela era muito de beber, eu entrei no colégio
graças a minha avó, se não fosse ela eu acho que não ia sabe o que é um colégio, hoje
em dia minha mãe mora comigo”. (Ruth)
“A minha família não era nem normal nem anormal, tinha pai e mãe, o pai
graças a deus era uma pessoa muito boa em casa muito farto, ajudava muita gente, de
filhos erámos sei mulheres e cinco homens. Um dos meus irmãos mora no mesmo
terreno que eu até hoje, e minha mãe mora lá fora, era costureira, o pai plantava arroz,
depois deu uma fracassada na plantação e ele foi trabalhar de alambrador, fazia linhas
de arame. A minha família sou só eu e meus filhos, nunca me preocupei se o pai ia
ajudar ou não ia, até tentei mas vi que a justiça não ia dar jeito, deixei de mão e fui
75
trabalhar para sustentar eles, a minha filha nunca teve nada do pai dela nem uma
fraldinha, o meu filho ainda ganhou algumas coisas do pai dele, até onde eu moro hoje
foi ele que comprou. O sacrifício maior foi quando eles eram pequenos que eu
precisava mais, mas não tive ajuda dos pais deles, eu sempre pensando que em
primeiro lugar sempre serão os meus filhos, até hoje sou sozinha e eles estão aí
grandes tudo criado”. (Sueli)
“Minha família são minhas duas filhas, uma de dez e outra de quinze, tem o meu
irmão e a minha mãe que moram comigo hoje, já passei muita dificuldade já tive
envolvimento com drogas, minhas filhas não moravam comigo, fazem 5 meses que elas
vieram morar comigo de volta. Criei minha filha mais velha até os sete anos, ai corri
atrás da guarda delas de volta, mas primeiro tive que me curar, me limpar tudo, o que
eu mais queria era ter minhas filhas de volta”. (Ruth)
“Eu tenho a impressão que eu já nasci com a tesoura e a agulha na mão, eu
com oito anos já aprendi a costurar, eu era a costureira das bonecas das minhas irmãs,
minha mãe viu que eu tinha jeito e me colocou no curso de corte e costura, foi mais de
um ano de curso e aprendi, no final do curso tinha uma prova de costurar um vestido e
eu tirei uma nota muito boa, também trabalhei em casa de família por um bom temp,o
foi quando eu vi que não poderia ser doméstica a vida inteira e então fiz um curso de
cabelereira, ai comecei a trabalhar como cabelereira, mas foi por pouco tempo,
quando a minha filha nasceu tive que parar um pouco porque ela necessitava muito de
mim e a assistente social em cima, o conselho tutelar em cima de mim, foi quando a
assistente me disse para procurar os direitos da minha filha que ela tinha direito a
receber um salário para que eu pudesse cuidar dela e para os custos de vida, só que foi
ai que eu atrasei minha aposentadoria, porque ela era menor eu precisava do benefício
para poder acompanhar ela, agora estou pagando como autônoma para tentar me
aposentar, mas com esse presidente agora nem sei o que vai ser mim, mas fazer o que
né, assusta, porque a gente está ficando velha e sem saber o que será de nós no
futuro’’. (Sueli)
“Eu sempre trabalhei cuidando de criança, de limpeza e nunca descontei
porque nunca pensei no futuro, agora é que eu penso o que vai ser da minha velhice,
quando estava gravida da minha segunda filha eu ganhava 180 reais para cuidar duas
crianças, cuidar cachorro e limpar a casa inteira em 8 peças grandes, a patroa nunca
assinou a minha carteira. Trabalhei de ajudante de cozinha em um restaurante, também
nunca assinei carteira eles diziam que era para eu ganhar experiencia primeiro.
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sabiam o que fazer e eu morta de dor, a minha vizinha teve que me rasgar pra sair a
criança e a tesoura não tinha fio pra cortar o cordão umbilical, tive que ir pro hospital
enrolada em um cobertor e segurando a minha filha porque não conseguiram cortar,
nasceu com 7 meses”. (Ruth)
“Minha filha nasceu de 6 meses e meio, ficou mais de 40 dias no hospital, antes
dela completar 2kg eu tirei ela do hospital, me falaram para tirar ela de lá porque ia
dar problema na visão e dito e feito já tinha acontecido, mas eu não sabia ali eu era
marinheira de primeira viagem. Ela nasceu com a cabeça bem pequenininha e eu na
correria de hospital todos os dias, durante o parto deixaram um pedaço de borracha
dentro da minha bexiga, eu estava com aquela sonda e arrebentou tudinho e ficou esse
pedaço 78 dias dentro de mim sofri, não morri porque deus não quis, podia ter dado
uma infecção generalizada, deus está sempre na vida da gente, eu tinha dor, e dor, e
dor, acredite se quiser hoje eu sou adventista sou pro lado do evangelho, mas na época
eu era mais espírita, fui num senhor que se chamava Darci, falei pra ele dessa dor que
eu sentia nenhum médico sabia o que eu tinha, e ele diss:e minha filha não se preocupe
que eu vou lhe dar esse remédio, tu vai tomar de hora em hora um colher e tu vai botar
para fora em 7 dias isso aí, e não é que em 7 dias botei pra fora mesmo. Saiu na uretra
me lembro do desespero de dor que eu estava, só que eu já estava com aquilo 78 dias,
antes eu fui no médico e voltei na mesma situação, pensei vou procurar em outros lados
a cura, tenho até hoje guardado esse pedaço de borracha, isso dava até um processo.
Minha filha no hospital e eu para cima e pra baixo andando indo em hospital com dor,
morria e não sabia o que era, foi uma luta para mim”. (Sueli)
“Se a minha filha nascesse com nove meses ela ia me matar, porque com sete
meses ela nasceu com quase 3kg, eu quase morri eu acho que quando ela nasceu
desmaiei porque eu não vi mais nada, passei trabalho. Um dia antes dela nascer, eu fui
pro hospital com dor de bicicleta, na época eu estava com o pai delas e ele me levou
pedalando, cheguei lá falaram que eu estava só com 3 dedos de dilatação e me
mandaram de volta pra casa, na volta de bicicleta, caiu um temporal, a gente pedia
ajuda para as pessoas acho que achavam que a gente ia assaltar e fugiam da gente, a
primeira filha eu tinha 17 anos foi bem mais tranquilo, eu só sentia um dor nas
cadeiras, fui pro hospital rindo cheguei lá e pareci que cuspi ela de tão rápido que foi,
só que com 3 meses ela teve pneumonia, mas a segunda com 22 anos...” (Ruth)
“O momento mais difícil da minha vida foi quando soube que a minha guria não
tinha visão, ali tiraram o meu tapete, o meu chão. eu não sabia o que fazer eu sozinha,
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o pai dela nunca deu uma ajuda, nunca comprou nada, mas eu tive muitos amigos que
me ajudaram, porque nem o pessoal da família ajudou para levar os exames dela para
Porto Alegre, depois levar pra Cuba os exames dela, eu não fui para Cuba, só iria se o
problema dela tivesse solução, mas não teve, então não pude ir, mas o rapaz que foi
levou pra mim todos os exames dela porque ele estava fazendo tratamento de cegueira
lá, ai quando eu soube que não tinha solução eu fiquei sem saber o que fazer, sem
rumo, me senti um trapo, mas graças a deus depois fui me recuperando”. (Sueli)
“Um dos momentos mais difíceis foi quando a minha filha mais velha tinha
meses e deram uma pipoca pra ela comer, eu achei que ia perder minha filha, não sei o
que foi que ela começou a vomitar, acho que fez mal no estomago dela, era um bebê,
ela começou a vomitar, vomitar, ficou sem ar, pensei que ia perder ela, cheguei a levar
ela direto para UTI, depois a caçula de 3 meses com pneumonia e eu sozinha, passei
natal, ano novo tudo no hospital e ninguém ia lá, sabe o que é nenhum parente?
ninguém ajudava”. (Ruth)
Na infância passei muito trabalho na mão da minha mãe, cuidando meus
irmãos. Eu quando era nova era muito baile, de segunda a segunda. Agora minha mãe
está calma, mas ela era muito da bebida, era muito sofrimento, agora ela está morando
comigo eu brigo com ela porque a gente vai no posto de saúde pegar receita médica
para ela, corro compro os remédios que ela precisa ela tomar, e chega final de semana
e bebe cachaça, todo fim de semana ela sai para os bailes, e bebe, ela é alcoólatra, ela
bebe e fuma desde os nove anos, antes ela bebida todos os dias, agora morando comigo
é só quando ela sai final de semana, menos mal, a última vez eu discuti com ela foi
porque ela tem um namorado e chegou em casa com 1litro de vinho dentro de casa, eu
fui tirar dela e ela arrancou da minha mão a garrafa, eu falei pra ela: quer beber?
bebe, mas não aqui dentro de casa. Uma lembrança que marcou que eu tenho da minha
mãe foi um bolo que eu ganhei de aniversário. Eu nunca conheci meu pai ele morreu
num acidente de carro, parece que ele foi buscar leite e um caminhão atropelou ele. O
pai das minhas filhas eu conheci na época de baile, era todos os fins de semana, na
época das parelhas eu sempre ficava com ele. É que nem eu falo, eu tenho minhas
filhas, amo minhas filhas, mas eu nunca amei o pai das minhas filhas, eu gostava assim
de ficar com ele, mas amar... Eu não vivo para mim, eu vivo para meus filhos, eu não
tenho muito, mas o que eu posso dar eu dou pra elas e não pra mim. Se eu pudesse
mudar uma coisa no meu passado seria o meu envolvimento com drogas. Hoje eu sou
da igreja evangélica. A vida é corrida, em casa eu não tomo café, só chimarrão, levanto
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7h da manhã, café eu só tomo aqui nos nossos encontros, em casa às vezes vou
almoçar 17h da tarde, porque estando em casa sempre tem o que fazer.” (Ruth)
“Antes de vim para cá uma vizinha deixou lá um casaco para eu desmanchar,
mas eu pensei: não, vou lá no grupo de mulheres negras, é importante a gente tirar um
tempo para gente”. (Sueli)
4.3 “Eu sou a mãe, eu sou a responsável por tudo”
“A minha primeira gravidez foi muito boa, tudo normal fiz cesárea ,foi legal, ai
quando chegou na minha guria, a situação ficou russa porque eu tive aborto, ai eu tive
segurar ela até os 6 meses, ai ficou puxado para mim, eu trabalhava em casa, sempre
fui eu que cuidei o meu guri, o pai nunca deu bola e nem o pai dela também. Ser mãe eu
acho uma coisa muito boa, é uma coisa gostosa saber que a gente gera dentro da gente
um serzinho e que daqui a pouco ele estará maior que eu. Eu ficaria triste se a minha
família tivesse parado em mim, eu gostaria de ter pelo menos um filho e veio dois,
mesmo quando a gente não planeja a gente tem que arcar. No dia a dia, a gente vê
algumas coisa que as pessoas até te tratam bem mas no fundo tem um preconceito
enraizado, o meu guri quando nasceu as roupas eram bem branquinhas, no tempo da
fralda de pano, então tinha a família branca do pai do guri e uma vez uma tia dele disse
assim: ai eu vejo essas roupas tão branquinhas na corda de quem será? Eu disse
aquelas roupas na corda são do meu guri, e elas disse tuas? Eu é, porque tu acha que
só porque eu sou negra a roupa também tem que ser escura?! Ela disse não, ficou toda
sem graça, porque eu entendi assim da forma como ela falou aquilo, até porque o
capricho não depende de cor.
Como eu morava lá para fora a gente demorou a ir para o colégio, foi lá por 12/13
anos, estudei até a 6° série depois tive que trabalhar e não deu mais, a matéria que eu
mais gostava era matemática.
Eu conheci o pai do meu guri eu tinha 26 anos, ele me cuidava ai a gente foi se
conhecendo ficamos, eu fiquei grávida ai ele já tinha um caso com outra, era um caso
antigo já e ele está com ela até hoje. Na época eu nãos sabia quem me disse foi a mãe
dele, ai a essa alturas eu já estava grávida do guri, eu disse para ele: o meu filho não
vai ter o teu nome, tu não vai morar comigo nem nada., hoje a gente não tem contato
mais. Com o pai da minha guria foi diferente, a gente namorou, teve um caso e eu
engravidei. Nunca cheguei a casar, quando era mais nova até tive um noivo, foram 5
anos de noivado, eu não sei o que aconteceu, a gente estava noivo com tudo pronto
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para casar, faltavam 24 dias para o casamento e do nada acabou, dizem que isso foi
coisa feita e eu acredito porque isso existe, a aliança dele sumiu e a gente nunca mais
conseguiu se encontrar, hoje eu sou evangélica, mas eu acredito sim que foi coisa que
fizeram.
Eu já fui de muitas religiões, agora me encontrei nessa igreja adventista, então eu
acredito que religare é algo que a gente precisa ter o contato espiritual, eu fui
mudando, mudando e eu gosto me sinto bem onde estou agora.
Depois quando eu estava sozinha e achei que não queria mais ninguém, conheci um
senhor ele era pernambucano, ele era desquitado e tudo, a gente se conheceu em um
baile e eu até estava pensando em ficar com esse homem, só que eu achava ele muito
boêmio, ai eu comecei a dizer não é isso que eu quero para minha vida, não vou dividir
marido com ninguém, se é comigo é comigo, eu achei melhor eu viver sozinha e também
quando a gente começa a conhecer a palavra de deus a gente começa realmente a
mudar, eu já estou sozinha já fazem 24 anos que eu não tenho ninguém, nem pra xaxo,
eu não tenho aquela vontade de encontrar alguém.
Eu descobri que ia ser mãe porque eu estava com muito enjoo, achei que fosse
problema de estomago mas ao mesmo tempo o coração já estava acelerado,
preocupada achando que pudesse ser gravidez, mas ai já estava, ai comecei a sentir
aquela alegria de estar gerando uma criança, a gravidez da minha filha já foi mais
difícil, eu já tinha o guri sozinha pra criar e eu não queria mais filhos e ela não era
sozinha eram duas, só que uma eu abortei ela eram duas placentas quando eu fiquei
grávida de novo, novamente eu achei que era problema de estomago o doutor deu uns
remédios fortíssimos eu tomei tudo aquilo e depois abortei uma, ai vi que estava
gravida fui no médico e o doutor não fez os exames, meses depois fui no doutor de
novo e ele disse que eu deveria estar grávida de 5 meses, eu falei: mas doutor não pode
ser eu abortei, e ai a minha filha nasceu de 6 meses, eu não tinha barriga.
Pelo fato de a gente ser sozinha tudo é a gente que tem que resolver eu que tenho que
botar o sim ou não, eu sou a mãe, eu sou a responsável por tudo. Até hoje só gostei de
verdade foi do meu ex noivo, a gente já estava com tudo prontinho para casar, tudo
preparado, tudo pronto pra casar e ai cadê as alianças? Pra mim ele era o homem
perfeito para viver e quando eu perdi aquele homem, me desiludi e ai desde ali eu
preferi ter só um cacho, pra mim deu chega de casamento e sozinha graças a deus estou
aqui, não me arrependo da vida”. (Sueli)
81
XIX. Dados de 1804, em Vila Rica de Ouro Preto, MG, mostram que 45% dos
domicílios eram sustentados por mulheres. Dados levantados em outras regiões do
Brasil mostram a mesma tendência. Em São Paulo, em 1836, por exemplo, 30% das
famílias eram chefiadas pelas mulheres. No Ceará, em 1887, a média era de 30%
(CEDHAL). Durante muitos anos, e até recentemente, as famílias que eram gerenciadas
por mulheres sofriam um ´estranhamento` por parte da sociedade, pois contrariavam as
normas de um contexto social em que pautava a subordinação do sexo feminino ao
masculino.
Desse modo, as famílias monoparentais9 femininas tinham que superar vários
obstáculos, relativos a condições econômicas, convenções sociais e `a inserção no
mercado de trabalho. Somente a partir de 1980, o Censo Demográfico do país incluiu a
categoria chefe, que significa o adulto responsável pela unidade familiar ou pela
residência, em seus levantamentos censitários, sendo que por responsável entende-se a
pessoa que possui a maior remuneração na residência.
Alguns fatores podem ser apontados como condicionantes do crescimento das
famílias monoparentais femininas, entre eles citam-se o aumento da expectativa de vida
da mulher brasileira, o que pode ocasionar um maior número de viuvez feminina; o
crescimento do número de divórcios e separações, sendo que em grande parte dessas
situações a guarda dos filhos permanece com a mãe; e as mudanças de valores
tradicionais em relação ao casamento e aos valores sexuais.
O alastramento da pobreza e as dificuldades de sobrevivência nas cidades têm
contribuído para a formação de diversos arranjos familiares, colocando em relevância a
figura feminina como sustentáculo da casa e da criação dos filhos. Porém, grande parte
das mulheres pobres não possui qualificação, recebem baixa remuneração e ainda são
sobrecarregadas com a dupla jornada de trabalho em suas casas. “A noção de
monoparentalidade tem ficado associada não só a questão de gênero, mas também à
pobreza e raça. Ao gênero, porque a maior parte das famílias monoparentais possuem
como adulto responsável a mulher. E a pobreza porque as mulheres recebem os menores
salários são negras.
9
Famílias monoparentais são compostas por um/a adulto/a – pai ou mãe – que tem sob sua
responsabilidade, uma/um ou várias/os crianças/filhos e encontra-se sem cônjuge ou companheiro/a. O
termo “famílias monoparentais” começou a ser utilizado por sociólogas feministas em meados dos anos
70 na França (VITALE, 2002) e tem assumido relevância em vários estudos, particularmente, no âmbito
das análises de gênero pelas ciências sociais e pelo movimento feminista.
84
Convém ainda ressaltar que a associação entre famílias chefiadas por mulheres e
pobreza aponta claramente estes segmentos como foco de critério para programas
sociais. Na última década, estudiosos da família, na perspectiva demográfica, como é o
caso de Goldani (1994), já chamavam a atenção, a partir dos dados dos censos
anteriores, para esta prioridade. Os possíveis programas dirigidos para as famílias
pobres monoparentais femininas deverão contribuir para sua maior autonomia e não
para estigmatizá-las como sem condições de oferecer cuidados e proteção aos seus
membros (VITALE, 2002).
Na família monoparental feminina, a fonte de renda provém geralmente do
trabalho da mulher, sendo que a renda é insuficiente para garantir o provimento das
necessidades básicas de alimentação, moradia, vestuário e higiene. Além da questão da
renda, a ausência do homem adulto no lar, aliada `a condição da mulher da família
monoparental residir somente com seus filhos, impõe a esta uma grande carga de
responsabilidade, a mulher tem que desempenhar vários papéis e se dividir entre
emprego, tarefas domésticas e cuidados com as crianças, encontrando desta forma,
obstáculos particularmente grandes para sua inserção no mercado regular de trabalho,
com exigência da participação em tempo integral.
A expressão pai ausente contempla diversos significados, podendo ser relativa
ao pai que é falecido, ou ao que abandonou a família por determinado motivo, não
possuindo mais relacionamento ou contato com a mesma; ao genitor que mesmo após a
separação raramente convive com seus filhos, ou, ainda, para denominar o pai que está
presente fisicamente no seio familiar, porém é totalmente periférico nas relações intra-
familiares. O distanciamento do pai do universo familiar pode ser encontrado nos
padrões familiares que moldaram essa instituição no Brasil. No modelo da família
patriarcal, tem-se a figura masculina investida de poder e de autoridade e despida de
afetividade. O pai não participava da educação e da criação dos filhos, sendo essas
tarefas especificamente femininas. O homem era destinado aos negócios e interesses
externos.
Assim, pode-se perceber que os indivíduos não nascem com a determinação de
serem pais ou mães, ou sabendo exercer a maternidade ou a paternidade. Essa
construção é socialmente produzida através da convivência social, da observação dos
modelos familiares, das relações entre pais e filhos e das heranças culturais. Essa malha
invisível de relações naturaliza, cristaliza e condiciona determinados comportamentos
sociais, como se os mesmos fizessem parte da essência do ser humano.
85
No âmbito jurídico e legislativo é objeto de lei a garantia aos filhos dos direitos
em relação aos seus genitores. Direito de saber quem é o pai, e que o nome deste conste
na Certidão de Nascimento, direito `a pensão alimentícia, recebimento de herança, entre
outros. Mas, o que vai suprir a falta e o vazio que a ausência paterna e o abandono ou
rejeição do genitor ocasionam na criança? O meio jurídico apresenta formas de
reconhecer a paternidade, porém não ensina como lidar com a ausência do pai na vida
das crianças.
5.1 CUIDADO E RESPONSABILIDADES
trabalhar de costureira em casa e assim poder passar mais tempos com os filhos/as.
“Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus
ou prostituta.” (GONZALEZ, 1984, p. 226). Esta frase de Lélia Gonzalez nos diz
muita coisa sobre a naturalização do papel da mulher negra de servir, que nos
países que sofreram com a escravidão foi instituído pelo estereótipo da mucama,
aquela destituída de vida privada, criada para atender aos desejos dos senhores
(sejam quais forem os desejos) e isentar suas sinhás dos afazeres e cuidados do lar e da
família em troca de moradia, alimentação e “proteção”, sem nenhum direito
garantido. Isso nos lembra a realidade das domésticas até algumas décadas atrás e
que é vivenciada por muitas, ainda nesta década, em algumas localidades
brasileiras mais afastadas dos grandes centros. Segundo a autora: “Quanto à doméstica,
ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja,
o burro de carga que carrega suas famílias e a dos outros nas costas” (GONZALES,
1984, p. 230).
A imagem da mulher negra que cuida, serve e alimenta é muito bem aceita
socialmente, afinal, está encaixada no que “nasceu para fazer”, no estereótipo de mãe-
preta. percebemos, então, que a imagem servil da mulher negra vai muito além da
categoria empregatícia que ocupa, mas está diretamente ligada à sua cor e ao seu
gênero, ou seja, vai muito além da opressão de classe.
A vida afetiva e sexual é muitas vezes condicionada à busca de figuras
masculinas que lhes garantam uma certa confiança social mesmo que provisórias. Com
um homem para ficar, é mais fácil encontrar um lugar para ficar, é mais fácil ser
respeitada pelos vizinhos e familiares. A cultura lhes impõe uma identidade e um valor
ligados ao homem.
Depois de iniciado o processo de mobilidade libertária, nem sempre continuam
buscando sua identidade ligada à figura masculina. Algumas vezes, preferem estar sem
homem “fixo” ou mesmo sem homem. Tudo depende das pessoas, de suas histórias e
contextos.
A dominação masculina sobre mulheres se expressa particularmente a partir da
dominação do pai, do marido ou do companheiro. São eles, por meio das instituições
sociais e culturais, que impõem as leis familiares muitas vezes insuportáveis para as
mulheres. São eles que a ameaçam, punem, violentam e não se responsabilizam por
muitas ações cometidas de forma desastrosa.
88
Mulheres que são donas de casa ou que são autônomas (podendo, portanto,
organizar o seu horário de trabalho), costumam contribuir em atividades que tenham a
ver com a alimentação e com o reparar as crianças‖, isto é, organizá-las e/ou levá-las à
escola/atividade de turno inverso e acolhê-las em suas casas até que haja responsável
para que possam retornar para suas casas. Embora não tenha sido dito explicitamente,
essa relação não parece ser mediada pelo pagamento em dinheiro: a moeda de troca é a
reciprocidade, um compromisso moral de retribuir o auxílio à essa familiar em um
momento de necessidade.
Em suma, percebo que a estratégia de articulação entre as mulheres descrita até
aqui configura-se, por um lado, como uma reação à ação do Estado, que cria barreiras
estruturais para a população pobre, sobremaneira para as mulheres negras. Por outro
lado, evidencia a agência de tais mulheres para resistir aos avanços das práticas
regulatórias que procuram inscrevê-las na dependência do poder público. Na seção
seguinte, perceberemos como esses laços de solidariedade agem no contexto específico
da política pública, por meio das caminhadas.
Um dos marcadores sociais da diferença subsumidos na discussão da Assistência
Social diz respeito à sexualidade. Além das práticas cisheteronormativas, isto é, a
reiteração das vivências heterossexuais e cisgênero como normais, universais e
ahistóricas, percebe-se que a conduta dos/das técnicos/as sociais e demais
trabalhadores/as evidencia os modelos binários de gênero e de sexualidade, em
detrimento de outras formas de articulação desses marcadores, como a
homossexualidade, a transgeneridade, a travestilidade, entre outros aspectos da
diversidade relacionada às expressões do gênero e da sexualidade.
Além disso, o olhar sobre a mulher negra no que se refere aos aspectos afetivos e
sexuais remete, em muitas situações, a lugares de subalternidade ou de exotismo, como
demonstra Carolina, ao relatar que ao longo da vida só se relacionou com homens
brancos, e que o pai de sua filha mais velha quando soube que ela estava grávida disse
não ter interesse em ter em assumir um compromisso com ela pelo fato dela ser negra.
Ainda que diferentes marcadores sociais perpassem a materialidade do corpo, o
marcador da raça parece depender de uma concretude do mesmo, ligada a elementos
visíveis, como a intensidade da cor da pele, o tipo de cabelo, o formato do nariz e dos
lábios, entre outros, para se potencializar na articulação com os demais marcadores.
5.2 O FILHO É DA MÃE?
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Antes mesmo de os filhos/as nascerem muitas mães já planejam seu futuro “eu
quero que eles possam ser alguém na vida”, as mães almejam que seus filhos/as
estudem, tenham uma profissão e independência financeira, demonstram isso por meio
de gestos, palavras, conselhos, enfrentamentos a todo tempo em suas trajetórias de vida.
Especialmente porque carregam o sentimento de responsabilidade sobre o presente e
futuro de sua prole.
As mulheres mais velhas, mães, avós, apesar das complexidades dos
enfrentamentos de contra o racismo, sexismo, pobreza e a negação de direitos humanos,
se organizam, orientam seus descendentes para que tenham no futuro uma vida bem
melhor do que foram as suas. Pode-se dizer que suas histórias são marcadas por atenção
e solidariedade. Apendem e ensinam, observando os contextos em que estão inseridas
compartilhando conhecimentos e saberes. Educam-se educando outras pessoas em
tempo real, agem incansavelmente para garantir o bem daqueles que gerou.
Os trabalhos mais comuns são ligados ao mundo doméstico: cuidar dos filhos
dos outros, ser empregada doméstica, costurar para fora. Poucas conseguiram estudar e
sair um pouco do círculo doméstico da vida. O espaço da mulher esteve por muito
tempo associado, prioritariamente, aos cuidados com lar, a família e a reprodução.
Diferentemente do homem, este que sempre esteve atrelado ao espaço público e ao
processo de produção intelectual, econômico e científico, adquirindo assim, desde cedo,
privilégio no ambiente escolar.
Além disso, como o Estado não garante a educação das crianças, não prevê a
criação de creches e escolas em número suficiente nos meios populares, as mulheres
vêem-se obrigadas a continuar no mundo doméstico, carregando o pesado fardo de
serem as responsáveis pela educação e saúde da prole em condições bastante precárias.
O cuidado não é apenas uma atitude de atenção, é um trabalho que abrange um
conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em oferecer uma resposta
concreta às necessidades dos outros. Assim, podemos defini-lo como uma relação de
serviço, apoio e assistência, remunerada ou não, que implica um sentido de
responsabilidade em relação à vida e ao bem-estar de outra pessoa.
Marcondes (2013) salienta que o cuidado de pessoas é elemento estrutural sob o
qual construiu socialmente como trabalho feminino. Conforme a autora, seja em casa,
nos hospitais ou nas escolas, as mulheres cuidam das pessoas. Desde a infância até se
tornarem idosas, as mulheres cuidam de crianças, idosos, deficientes e, até mesmo, de
homens adultos. A existência social feminina, de acordo com a autora, ficaria restrita a
93
realizar-se à medida que elas cuidam das pessoas. E, apesar de ser uma atividade
essencial para a sustentabilidade da vida humana, quem cuida é desvalorizado.
Segundo Kofes (2001), a palavra escravidão é constante no discurso das
empregadas domésticas, seja se referindo à explicação de sua própria existência como
empregada doméstica em um sentido histórico propriamente dito (antes era escrava,
agora é empregada doméstica); ou se referindo à situação presente, expressando a
ausência de tempo e espaço livres, e de liberdade, causado, principalmente, pela alta
carga de trabalho (“trabalho de escravo”). Nesse último sentido, a alusão à escravidão
também é encontrada no discurso das patroas para se referir ao trabalho doméstico.
Pensar a vida dessas mulheres é perceber, também, como a opressão de gênero e raça
estão intrinsecamente ligadas à exploração do sistema capitalista. A relação entre
público e privado, entre político social e o político doméstico entre a violência estrutural
e as violências domésticas não eram visíveis para mim que as entrevistava.
A partir das falas das entrevistadas, pode-se dizer que a religião cumpre dois
papéis contraditórios. Por um lado, sustenta a fraqueza a partir de suas promessas e por
outro lado, mantém a dependência dos poderes de cima. Desenvolve a convicção de que
há poderes que sabem mais e podem mais. Acentua uma espécie de hierarquia social e
religiosa, dificultando às vezes o desenvolvimento de uma concepção mais democrática
e participativa do poder.
Um outro exemplo vivido pelas mulheres é em relação à gravidez e aos direitos
reprodutivos. Quase sempre a gravidez é apenas refletida a partir a mulher, a partir de
sua própria responsabilidade. É como se ela tivesse ficado grávida por um ato solitário.
Da mesma forma, dos direitos reprodutivos. Fala-se muito mais de controle da
natalidade a partir das mulheres e bem pouco sobre a vasectomia ou outras formas de
controle masculino. Vasectomia é quase um tabu nos meios populares. As mulheres
sabem dessa injustiça mantida pelo discurso da diferença, mas não conseguem ainda
modificar essa situação. Esse discurso desenvolvido pela cultura patriarcal acaba
colocando sobre os seus ombros a responsabilidade não só da reprodução humana, mas
da educação da prole.
5.3 MATERNIDADE E AUTONOMIA
cuidadora e provedora, percebe-se que a grande maioria das mulheres atribui maior
importância ao cuidado dos filhos do que à provisão.
Nos seus depoimentos, a tarefa que consideravam mais difícil foi aquela
culturalmente reservada às mulheres, ou seja, educar e responsabilizar-se pelo dia-a-dia
família. Obviamente, a provisão da família, isto é, o fato de ter que se preocupar todos
os dias com o que os filhos irão comer, o que irão vestir, onde irão morar, torna a vida
dessas mulheres ainda mais difícil. Além da responsabilidade de todas as entrevistadas
pelo sustento dos filhos, uma delas tem como dependente a mãe e irmão.
5.4 TRABALHO E SOBREVIVÊNCIA
A educação apresenta como um dos pontos centrais nos discursos das mães a
seus filhos. O estudo se define, como o sinalizador de uma ´vida mais fácil`, pois seria
viabilizador de um emprego mais qualificado e mais bem remunerado. Ao estudo está
relacionada a possibilidade de ascensão social, de conseguir maiores recursos
monetários como condição de vida melhor.
É comum em entrevistas de emprego, mulheres serem questionadas sobre sua
vida pessoal e afetiva. Há uma preocupação em saber se são casadas e se têm ou
pretendem ter filhos. Depois, desejam saber como essas mulheres farão com seus filhos
para dar conta do trabalho. O mesmo tipo de preocupação é bastante comum nas
universidades, no que tange o acesso às vagas nos cursos de formação acadêmica,
mestrado e doutorado. O que há por trás desses discursos, dessas preocupações e
questionamentos? Na maioria das vezes não há o mesmo interesse e preocupação em
questionar os homens sobre sua vida particular, afetiva e sobre as responsabilidades que
eles têm, ou deveriam ter, com os filhos. Portanto, fica posto a naturalização total da
responsabilização das mulheres sobre os filhos e a vida doméstica tal como os
“transtornos” possíveis que causarão, caso saiam deste ambiente para os demais.
Percebeu-se que as mulheres assumem a total responsabilidade pelos cuidados
com os filhos, sendo as mães-chefes de família a principal provedora econômica e a
promotora da educação e socialização dos filhos. A participação da família, quando
ocorre, se realiza principalmente em situações de maior necessidade. O trabalho é
encarado como um ´meio de se ganhar a vida`. Meio necessário e vital para se conseguir
obter o sustento familiar. É através do trabalho que se obtém a principal fonte de renda,
sendo necessário muitas das vezes a realização de serviços extras para complementar o
orçamento familiar.
A falta de recursos financeiros é o principal ponto dificultador da mãe-chefe de
família, seguido do fato de assumirem sozinhas o direcionamento e as responsabilidades
do lar. A falta de uma pessoa para dividir as despesas financeiras e as tomadas de
decisão, bem como para auxiliar na educação dos filhos/as é apontada pelas mães como
as maiores dificuldades da chefia familiar feminina.
Dentre a transmissão de valores aos filhos/as, destacou-se a importância do
estudo, sendo este condicionado a conquista de uma melhor condição de vida, e de
acesso a um emprego mais bem remunerado. Tal fato reflete a influência dos impactos
das políticas públicas e dos direcionamentos governamentais na esfera familiar. A
acirrada concorrência pelos postos de trabalho, condiciona a necessidade de uma
102
técnicos, faculdade, e busca por melhoria nas condições de vida através do trabalho.
Para essas que buscam ser bem-sucedidas, observa-se amplo empenho para superar as
discriminações e estigmatizações, além de um esforço quase heroico para conquistar
aquilo que deveria ser direito de toda gente.
Há também aquelas que, diante de tantas barreiras, sofrimentos, violências,
experiências discriminatórias e estigmatizantes, interiorizam concepções depreciativas
sobre si e assumem o papel que lhe é atribuído pela sociedade, em geral. São elas: os
que tiveram suas trajetórias depreciadas no que se refere à escolarização,
consequentemente, ocupam postos de trabalho de baixo prestígio e remuneração; os que
adentraram ao mundo das drogas; ou, ainda, aquelas que se encontram imersos na falta
de perspectivas em relação à possibilidade de melhoria nas condições de vida, o que
contribui para a perduração do ciclo vicioso da pobreza e dos diversos problemas dela
decorrentes, além de todas as agruras provocadas pelo racismo.
A análise de todas essas trajetórias, que se configuram como uma pequena
amostra de uma realidade social muito mais complexa. Independentemente da leitura
que se possa fazer sobre cada trajetória explicitada nesta dissertação, das quais algumas
podem ser interpretadas como trajetórias de sucesso e outras de desventuras, convêm
sublinhar que, num país edificado sobre uma estrutura eminentemente racista, no qual a
cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, manterem-se vivas é, por si só, uma
tarefa de grande envergadura.
Por fim, no último capítulo nossa atenção se voltou à dimensão subjetiva das
sobrevivências das mulheres negras, alicerçada nos estigmas patriarcais e nas
subjetividades das sujeitas, pautadas em suas percepções sobre as discriminações
referentes à raça e ao território ocupado. Ao demonstrar o modo como as colaboradoras
resistem frente ao racismo, machismo pode impactar pessoas negras no que diz respeito
às suas subjetividades, evidenciamos que as articulações entre o racismo e os estigmas
territoriais as tornam mais vulneráveis às violências, que atravessam suas trajetórias das
mais variadas formas, além de influenciar suas perspectivas, expectativas e atitudes,
que, não raramente, reforçam suas posições de subalternidade.
Considero que alguns aspectos, mesmo tendo emergido durante o trabalho de
campo, não puderam ser devidamente contemplados por este estudo, de modo que
podem ser explorados em trabalhos posteriores, uma vez que se constituem como
contextos relacionados à atualidade. As perspectivas centradas nas vozes subalternas
108
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FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.
109
Anexo:
TERMO DE CONSENTIMENTO
Eu, ,
portador(a) do RG e CPF , declaro,
por meio deste termo:
- Participar de forma voluntária na produção de dados, a partir de entrevistas na
pesquisa _________________, realizada no ano de 2019, por __________________,
mestranda em Educação da ______________________, sob orientação da Prof. Dr.
______________________.
- Reconhecer que o objetivo desta pesquisa é investigar __________________.
- Ter sido informado(a) de que os dados produzidos durante as entrevistas serão
utilizados somente em situações acadêmicas e que as falas sempre serão identificados
por nome fictício.
- Autorizar que minhas falas sejam gravadas durante participação na pesquisa, desde
que somente o pesquisador e sua orientadora tenham acesso às gravações integrais.
Autorizo, também, a reprodução de excertos de minhas falas no corpo do texto da
dissertação, desde que identificadas por nome fictício.
- Estar ciente que, em caso de dúvidas, poderei contatar o orientador pelo e-mail e/ou
a pesquisadora, pelo e-mail . Fui informado(a) de que poderei cancelar minha
participação na pesquisa a qualquer momento, mediante a comunicação prévia à
publicação do material.