Crônicas Martha Medeiros

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Crônica de um amor anunciado

Toda pessoa apaixonada é um publicitário em potencial. Não anuncia cigarros,


hidratantes ou máquinas de lavar, mas anuncia seu amor, como se vivê-lo em segredo
diminuísse sua intensidade.

O hábito começa na escola. O caderno abarrotado de regras gramaticais, fórmulas


matemáticas e lições de geografia, e lá, na última página, centenas de corações
desenhados com caneta vermelha. Parece aula de ciências, mas é introdução à
publicidade. Em breve se estará desenhando corações em árvores, escrevendo atrás
da porta do banheiro e grafitando a parede do corredor: Suzana ama João.

A partir de uma certa idade, a veia publicitária vai tornando-se mais discreta. Já não
anunciamos nossa paixão em muros e bancos de jardim. Dispensa-se a mídia de
massa e parte-se para o telemarketing. Contamos por telefone mesmo, para um
público selecionado, as últimas notícias da nossa vida afetiva. Mas alguns não
resistem em seguir propagando com alarde o seu amor. Colocam anúncios de verdade
no jornal, geralmente nos classificados: Kika, te amo. Beto, volta pra mim. Everaldo,
não me deixe por essa loira de farmácia. Joana, foi bom pra você também?

O grau máximo de profissionalismo é atingido quando o apaixonado manda colocar


sua mensagem num outdoor em frente a casa da pessoa amada. O recado é para ela,
mas a cidade inteira fica sabendo que alguém está tentando recuperar seu amor. Em
grau menor de assiduidade, há casos em que apaixonados mandam despejar de um
helicóptero pétalas de rosas no endereço do namorado, ou gastam uma fortuna para
que a fumaça de um avião desenhe as iniciais do casal no céu. A criatividade dos
amantes é infinita.

O amor é uma coisa íntima, mas todos nós temos a necessidade de torná-lo público. É
a nossa vitória contra a solidão. Assim como as torcidas de futebol comemoram seus
títulos com buzinaços, foguetório e cantorias, queremos também alardear nossa
conquista pessoal, dividir a alegria de ter alguém que faz nosso coração bater mais
forte. É por isso que, mesmo não sendo adepta do estardalhaço, me consterno por
aqueles que amam escondido, amam em silêncio, amam clandestinamente. Mesmo
que funcione como fetiche, priva o prazer de ter um amor compartilhado.
Martha Medeiros
Crônica do Amor

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário, os honestos,
simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta.
O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor
acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.
Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano.
Isso são só referenciais.
Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que
provoca.
Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se
revela quando menos se espera.
Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu,
você deu flores que ela deixou a seco.
Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você
abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam. Então?
Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais
viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso
tem nome.
Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que
encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro,
e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda
assim você não consegue despachá-lo.
Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na
boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama este cara?
Não pergunte para mim; você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes
dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica
também tem seu valor.
É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo
tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta
de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.
Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo
desse, criatura, por que está sem um amor?
Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma
equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.
Não funciona assim.
Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo
que o amor tem de indefinível.
Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons
pais de família, tá assim, ó!
Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a
maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa.
Martha Medeiros
Nota: Adaptado da crônica "As razões que o amor desconhece", presente no livro
"Trem-Bala", de Martha Medeiros.
A DOR QUE DÓI MAIS

Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo
dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói
morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade.
Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância.
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já
morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade.
Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos.
Doem essas saudades todas.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do
cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia
ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o
aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo,
ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao
outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.

Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não
saber mais se ela continua clareando o cabelo. Não saber se ele ainda usa a camisa
que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu.
Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de
inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois
carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele
continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela
continua lhe amando.

Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais
compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não
saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de
um silêncio que nada preenche.

Saudade é não querer saber. Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz,
se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais querer saber de
quem se ama, e ainda assim, doer.
Martha Medeiros
A dor que dói mais in Trem-Bala. L&PM Editores. 1999

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