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Dossiê

Epistemologias do Sul e descolonização da saúde:


por uma ecologia de cuidados na saúde coletiva
Epistemologies of the South and decolonization of health:
for an ecology of care in collective health

João Arriscado Nunesa Resumo


https://orcid.org/0000-0003-0109-8268
E-mail: jan@ces.uc.pt Este ensaio aborda a importância da descolonização
Marília Louvison b da saúde, fundamentada no referencial teórico das
https://orcid.org/0000-0003-1630-3463 epistemologias do Sul de Boaventura de Sousa
E-mail: mariliacpl@gmail.com Santos, e aponta para uma ecologia de cuidados a ser
produzida no campo da saúde coletiva, abordando
a
Universidade de Coimbra. Centro de Estudos Sociais e saúde e doença, sofrimento e cura, agravo e cuidado
Faculdade de Economia. Coimbra, Portugal.
por formas de luta que emergem no enfrentamento
b
Universidade de São Paulo. Faculdade de Saúde Pública.
das dinâmicas capitalista, colonialista e patriarcal.
São Paulo, SP, Brasil.
O processo de biomedicalização tem se produzido
na emergência de uma monocultura de concepções
dominantes do saber biomédico que define as
condições de validade do conhecimento e das
intervenções sobre saúde, doença, cuidado e
cura. Esta análise aponta para a importância de
pesquisas colaborativas e não extrativistas que
partem do reconhecimento dessa diversidade de
saberes, práticas e experiências, da sua copresença
e dos seus encontros, das lutas pela justiça social e
cognitiva e das múltiplas e diversicadas lutas pelo
acesso à saúde e aos cuidados de saúde. As relações
entre a saúde coletiva e os saberes e práticas do
cuidado e da cura que fazem parte da experiência
e do mundo dos povos indígenas aparecem como
um exemplo importante para o aprendizado de um
pensamento e de um agir ecológico em saúde.
Palavras-chave: Saúde Coletiva; Descolonização da
Saúde; Biomedicalização; Epistemologias do Sul.

Correspondência
Marília Louvison
Universidade de São Paulo. Faculdade de Saúde Pública.
Av. Dr. Arnaldo, 715. São Paulo, SP, Brasil. CEP 01246-904.

DOI 10.1590/S0104-12902020200563 Saúde Soc. São Paulo, v.29, n.3, e200563, 2020 1
Abstract Introdução
This essay focuses on the importance of A medicina moderna ocidental constitui-se como
decolonizing health care, based on the theoretical um domínio de saberes e de práticas com uma relação
framework of the epistemologies of the South privilegiada com o conhecimento biológico e sujeito a
proposed by Boaventura de Sousa Santos, and uma intervenção humana especializada, podendo ser
points to an ecology of care to be produced in the separado e autonomizado quanto a outros aspectos
field of public healthcare, approaching health da vida social. Mesmo as denições “ampliadas” de
and illness, suffering and healing, disorder and saúde adotadas na Declaração Universal dos Direitos
care through struggles that emerge in facing Humanos (ONU, 1948) e pela Organização Mundial
capitalist, colonialist and patriarchal dynamics. da Saúde (OMS, 1946) – posteriormente inscritas
The process of biomedicalization emerges within nas constituições de vários países, incluindo a do
a monoculture of dominant conceptions of Brasil (1988) – partem da centralidade das denições
biomedical knowledge that dene the terms o de doença, saúde e bem-estar em que se baseia a
validity of knowledge and interventions on health, medicina ocidental. As concepções dominantes do
illness, care and healing. This analysis points to the direito à saúde e do acesso a ela e a um ambiente
importance of collaborative and non-extractivist e condições de vida que a protejam e promovam
research projects based on the recognition of the liam-se numa monocultura da doença, da saúde,
diversity of knowledges, practices and experiences, do cuidado e da cura que tem no seu centro a
of their copresence and their encounters, of the conguração de saberes, práticas e instituições que,
struggles for social and cognitive justice and of desde o período posterior à Segunda Guerra Mundial,
the multiple and diverse struggles for health and tem sido designada “biomedicina”, tornando-se a
access to medical care. The relations between versão hegemônica do conhecimento e das práticas
collective health and the knowledge, care, and sobre saúde e doença.
healing practices that are part of the experience Por todo o mundo, contudo, os distúrbios, as
and of the world of the indigenous peoples emerge doenças ou afições que aetam a vida humana são
as an important example of how to learn to think descritos e entendidos recorrendo a diferentes
and act ecologically in the eld o health. vocabulários, modos de conhecer e ontologias.
Keywords:CollectiveHealth;HealthDecolonization; As práticas de cura enquanto resposta a formas
Biomedicalization; Epistemologies of the South. diversas de sofrimento encontram-se em todas as
sociedades, mas são geralmente ligadas a forças,
processos e entidades que não podem simplesmente
ser divididos entre orgânicos, psíquicos e sociais,
naturais ou decorrentes da ação humana. As maneiras
de descrever e dividir o mundo podem ser muito
diferentes quando se considera a imensa diversidade
de sociedades, comunidades e coletivos.
A visão naturalista em que assenta a medicina
ocidental moderna foi introduzida na maioria das
sociedades pelos mesmos canais que trouxeram o
colonialismo, trazendo em sua esteira um rastro
de desqualicação, supressão, invisibilização ou
apropriação de outros conhecimentos e práticas,
chegando mesmo à eliminação física daqueles
e daquelas que protagonizavam esses saberes
e experiências. No Sul global, a biomedicina –
resultado da fusão entre conhecimento biológico e

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saberes e práticas médicas – e a concepção de saúde Epistemologias do Sul, descolonização
como um domínio separado de conhecimentos, da ciência e justiça cognitiva
práticas, prossões e instituições expandiu-se sob
a forma da medicina tropical e, nos nossos dias, As epistemologias do Sul constituem atualmente
da saúde global. um programa de pesquisa materializado numa
A diversidade dos “idiomas da afição” (Nichter, diversidade de projetos e intervenções em
1981) e dos vocabulários e expressões do sofrimento, diferentes regiões do mundo, inspirado na obra de
ainda que não esgote o que está em causa quando Boaventura de Sousa Santos. Segundo esse autor,
se trata de concepções e experiências da vida e da “as epistemologias do Sul reerem-se à produção
morte, da violência e do sofrimento, da doença e da e validação de conhecimentos ancorados nas
cura, oferece um ponto de entrada conveniente para experiências de resistência de todos os grupos
o envolvimento e diálogo com compreensões não sociais que têm sido sistematicamente vítimas
eurocêntricas do que conta como “saúde”, “transtorno” da injustiça, opressão e destruição causadas pelo
e “doença” e para a exploração das dinâmicas capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado”
emergenciais de ecologias de saberes e práticas sobre (Santos, 2018, p. 19). O Sul refere-se aqui ao conjunto
o cuidado e a cura (Meneses, 2004). Esse diálogo não muito amplo e diversicado dessas experiências
implica rejeitar os saberes e práticas da biomedicina, que, em diferentes contextos e regiões do mundo,
mas analisar rigorosamente tanto suas importantes tanto no Sul como no Norte geográcos, nascem de
e incontornáveis contribuições para o conhecimento e lutas e ações de resistência à dominação imperial.
enfrentamento da doença como o seu caráter parcial, Noutra formulação, o mesmo autor descreve o Sul
que justica a exigência de se reconhecer a diversidade como o nome do sofrimento injusto e desnecessário
de experiências, saberes e práticas que procuram que existe no mundo, e as resistências e lutas contra
lidar com o sofrimento e a doença, o cuidado e a cura. esse sofrimento, nas suas múltiplas formas (Santos,
Garantir o acesso aos recursos da biomedicina e às 2014, 2018; Santos; Meneses, 2010).
condições de produção dos seus conhecimentos é um As epistemologias do Sul abordam a saúde e a
dos lados da luta pela justiça cognitiva global e pelo doença, o sofrimento e a cura, o agravo e as formas
direito à saúde; o outro lado é o reconhecimento dessa de cuidar por meio das formas de luta que emergem
diversidade, que nasceu e nasce das lutas de povos, no enfrentamento das dinâmicas capitalista,
comunidades, movimentos sociais e diferentes grupos colonialista e patriarcal. Estas potencializam-se
que criam formas próprias de experimentar e validar mutuamente para criar formas de dominação,
conhecimentos e práticas de cura. opressão e exclusão, gerando e perpetuando zonas
Nas seções seguintes, apresenta-se um conjunto de não ser e de predação, de destruição ecológica
de proposições para um programa de pesquisa e de modos de existência, e de exclusão abissal de
colaborativa e não extrativista que parte do uma parte crescente da população mundial. A justiça
reconhecimento dessa diversidade, da sua copresença cognitiva, indissociável da justiça social e da justiça
e dos seus encontros, das lutas pela justiça social e ecológica, alimenta as respostas que emergem dessas
cognitiva e das múltiplas lutas pelo acesso à saúde lutas, exigindo o acesso aos saberes, meios e práticas
e aos cuidados de saúde, pelo reconhecimento das da biomedicina, mas também o reconhecimento
variadas concepções de saúde e dos conhecimentos e da diversidade de saberes e práticas de cura e de
práticas do cuidado e da cura, e pelo direito à proteção cuidado que existem no mundo. A descolonização
dos modos de vida e das ecologias inseparáveis dessas dos saberes hegemônicos produzidos pela ciência
experiências, saberes e práticas. As relações entre a moderna – incluindo a biomedicina – é um momento
saúde coletiva e os saberes e práticas do cuidado e da decisivo dessa luta pela justiça cognitiva.
cura que fazem parte da experiência e do mundo dos Essa descolonização da ciência moderna e
povos indígenas apresentam-se como um exemplo dos seus conhecimentos não implica em uma
importante para o aprendizado de um pensamento descontinuidade radical com a ciência moderna
e de um agir ecológico em saúde. ou a sua rejeição. Procura-se, antes, identicar e

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promover condições para o reconhecimento mútuo e o os silêncios, as supressões, invisibilizações e
diálogo entre os conhecimentos e saberes existentes desqualicações que negam a existência de outros
no mundo, incluindo os da ciência moderna, sem saberes ou os convertem em formas de ignorância,
desqualificações ou supressões, com particular oposta ao conhecimento alegadamente verdadeiro e
atenção aos saberes e práticas que emergem das rigoroso da ciência. Dessa forma, os saberes validados
experiências e lutas pela dignidade e pela vida contra pela ciência ou pelos conhecimentos reconhecidos
as diferentes formas de opressão e de exclusão. como tal por instituições ou autoridades credenciadas
Os encontros entre diferentes conhecimentos (conhecimentos académicos ou prossionais, por
por meio de abordagens participativas e não exemplo, ou sancionados por autoridades religiosas
extrativistas abrem caminho para ecologias de como teologia) adquirem a condição de monoculturas.
saberes apoiadas nos conhecimentos e práticas Santos (2018) chama atenção para três condições que
nascidas daquelas experiências e lutas. devem ser identicadas neste processo, constituindo
Os idiomas utilizados para nomear o Sul o que designa “hermenêutica descolonizadora”.
são múltiplos e frequentemente têm origem na A primeira é a atenção à parcialidade de todo
autonomeação por aqueles e aquelas que sofrem conhecimento: todas as formas de conhecimento
as diferentes formas de opressão e dominação, têm como seu reverso formas correspondentes
mas também nas descrições e conceptualizações de ignorância; desconsiderar essa condição de
de intelectuais comprometidos com as suas lutas: parcialidade corresponde a desconsiderar aquilo
“condenados da terra” (Frantz Fanon), “oprimidos” que uma dada forma de conhecimento não é capaz
(Paulo Freire), “subalternos” (Antonio Gramsci, de reconhecer, relegando aquilo que não se conhece
Ranajit Guha, Gayatri Spivak), “pobres” (Paul Farmer), à condição de inexistente ou de obstáculo ao avanço
“classes populares” (Victor Valla). As epistemologias do verdadeiro conhecimento.
do Sul dão especial atenção ao fenômeno da exclusão, A segunda condição é a natureza abissal da
distinguindo a exclusão não abissal, associada parcialidade: “Juntamente com o direito, a ciência
às desigualdades nas zonas de sociabilidade moderna tornou-se […] o principal produtor de
metropolitana caracterizada pela tensão entre ausências, criando ativamente realidades invisíveis,
regulação e emancipação, e a exclusão abissal, irrelevantes, esquecidas e inexistentes” (Santos,
própria das zonas de sociabilidade colonial, 2018, p. 232). A destruição, declaração de inexistência
dominadas pela relação entre violência e apropriação ou apropriação predadora de outros conhecimentos
(Santos, 2014). O nexo entre a autonomeação está ligada indissociavelmente a essa produção
e a conceitualização pode variar conforme as ativa da linha abissal que separa sociabilidade
orientações e proposições epistemológicas e teóricas metropolitana e sociabilidade colonial.
e as formas de relacionamento entre a produção A terceira condição é a tensão entre autonomia
de conhecimento e as experiências e lutas de e confiança, a que voltaremos mais adiante.
povos, comunidades, movimentos sociais e grupos A afirmação da autonomia e objetividade do
marginalizados e perseguidos. O reconhecimento conhecimento cientíco pode transormar-se em
dessa relação é importante para entender os justicativa para a supressão de outros saberes
diferentes modos de relacionamento entre saberes, e experiências, servindo de pretexto a uma
práticas, experiências, coletivos e modos de reivindicação de autoridade que exige conança
intervenção que encontramos associados a versões incondicional no saber cientíco e nos seus porta-
emancipatórias da saúde e do direito à saúde. vozes, mas permitindo igualmente desenvolvimentos
A descolonização do conhecimento hegemônico e apropriações desse conhecimento com vista a
tem dois momentos, associados a procedimentos projetos de dominação e opressão.
distintos mas interligados. O primeiro momento é A sociologia das ausências não se limita a
designado “sociologia das ausências”; o segundo, identificar essas lacunas e as condições que
“sociologia das emergências” (Santos, 2014, 2018). permitem que uma dada forma de conhecimento as
A sociologia das ausências procura identificar produza ativamente e transforme essa produção em

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premissa da existência e armação continuada da A experiência do sofrimento associada à doença
sua condição de monocultura. Ela “opera através ou ao transtorno e a compreensão dos processos
da substituição de monoculturas por ecologias” que estão na sua origem é assim fragmentada,
(Santos, 2014, p. 175), a qual passa por uma denição reafirmando as segmentações e divisões do
do que se entende, nesta perspectiva, por “ecologia”. mundo resultantes da organização disciplinar do
Damos a palavra, de novo, a Boaventura de Sousa conhecimento cientíco, da sua parcialidade e da
Santos (2014, p. 175): natureza abissal desta, como já foi referido. A ciência
conhece mediante procedimentos que separam,
Entendo por ecologia a diversidade sustentável fragmentam e reduzem aquilo que estuda. Mesmo
baseada numa racionalidade complexa. Trata-se, quando reconhece a relevância de processos que
assim, de um conceito normativo baseado nas se situam fora do seu espaço delimitado de saber,
seguintes ideias: O valor da diversidade, complexidade disciplinas e especialidades tratam-nos, em geral,
e relacionalidade deve ser reconhecido: nada existe como fatores externos, que podem condicionar ou
por si mesmo; algo ou alguém existe porque existem infuenciar processos, como o adoecimento, e que são
outras coisas ou pessoas. A diversidade relacional descritos e explicados nos termos da disciplina ou
e complexa signica que os critérios que denem a especialidade em causa. Em certos casos, esses fatores
diversidade são eles próprios diversos. A escolha entre considerados externos podem ser internalizados e
esses critérios é uma escolha política e, para que se convertidos em elementos da descrição e explicação do
respeite a diversidade, deve ser baseada em processos processo de adoecimento – como mostra a história do
democráticos radicais e interculturais. A robustez conceito e prática da prevenção na medicina ocidental
das relações depende do cuidar da diversidade e do moderna (Arouca, 2003).
exercíciodavigilânciacontratentaçõesmonoculturais É importante, porém, reconhecer as diferenças
que vêm tanto de dentro como de fora, mesmo que a entre as versões do conhecimento cientíco que
distinção entre o que está dentro e o que está fora seja emergem do pluralismo interno das ciências, a partir
intrinsecamente problemática. dos debates e experiências que envolvem os seus
praticantes, e as que se forjam nas relações entre
A palavra “ecologia” designa inseparavelmente, essas versões e os saberes e práticas emergentes de
nesta perspectiva, uma maneira de pensar/organizar o experiências e lutas contra formas de dominação
mundoeumadescriçãodeintervençãonomundo.Oque e opressão que se manifestam no sofrimento, na
a caracteriza é a ênfase na relação, na interdependência doença, na violência em suas diferentes formas
e na sustentabilidade, mas sempre com atenção à e na precariedade da existência, mas também no
heterogeneidade e diversidade e à incerteza. O conceito seu enfrentamento por meio de saberes e práticas
de ecologia está vinculado de maneira indissociável a da solidariedade, do cuidado e da cura. Importa,
formas de política ontológica – de ações que contribuem por isso, dar especial atenção às condições em
para criar versões do mundo – distintas das que se que se constituem versões do pluralismo interno
baseiam em visões não ecológicas, como, por exemplo, abertas à interlocução e ao diálogo com essas
formas de compreensão e de enfrentamento de doenças outras experiências e saberes (Nunes, 2019; Santos;
infecciosas ou do transtorno mental vinculadas a Meneses; Nunes, 2004).
noções de causalidade linear: a causa da tuberculose A sociologia das emergências, por sua vez, postula a
é um bacilo, o distúrbio mental é causado por um identicaçãodeexperiências,conhecimentosepráticas
desequilíbrio na química do cérebro. Em ambos os nascidas das lutas e resistências contra as diversas
casos, a complexidade relacional e processual do formas de opressão e dominação, especialmente as
adoecimento ou do aparecimento e evolução do que decorrem da dominação capitalista, colonial e
transtorno é ignorada ou secundarizada perante a patriarcal. Uma luta é uma armação de liberdade
identicação da doença ou do transtorno com uma que, em certas condições, pode se transformar em ação
entidade ou processo reconhecível pelas nosologias coletiva de libertação. As práticas de sobrevivência
das especialidades médicas respetivas. cotidiana dos grupos, comunidades e pessoas

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abissalmente excluídos constituem formas de luta, ela própria geradora de eeitos patogénicos (Foucault,
tal como os movimentos sociais e experiências de 1976; Illich, 1975; Tesser, 2017) – é assim entendida
ação coletiva, muitas vezes resgatando, recriando não como expressão da dupla condição de pharmakón
ou reinventando experiências e histórias de lutas e (o termo grego para designar aquilo que pode ser
resistências passadas (Santos, 2018). remédio ou veneno, consoante a dose e o uso) que o
Na seção seguinte propomos uma sociologia das conhecimento médico partilha com outros saberes do
ausências que identica as principais características cuidadoedacura,mascomoumatensãoqueencontrará
do que designamos uma monocultura de saberes resposta no próprio progresso da biomedicalização.
e práticas da saúde medicalizada, procurando Esta situação em escala global e nos diferentes
discernir as formas de pluralismo ou dissenso contextos em que se manifestam essas carências –
interno que abrem espaço para o diálogo. como se tornou claro nas emergências sanitárias
recentes, como a epidemia de ébola na África
Saúde e (bio)medicalização Ocidental em 2014 ou a atual pandemia de
covid-19 – obriga a reconsiderar o que se entende
A medicina ocidental apresenta várias por direito à saúde (Nunes, 2009). Não é possível
particularidades que a diferenciam de outros reduzir esse direito ao acesso a cuidados de saúde.
sistemas médicos e de saberes e práticas relacionados Na história recente da saúde global, esse acesso
com doença e saúde. Primeiro, sua constituição foi frequentemente delimitado e reduzido, seja à
em domínio separado e autônomo em relação resposta a problemas considerados urgentes, seja
a outras práticas sociais – como a religião, por a iniciativas de prevenção e educação. Invocando
exemplo –, reivindicando o direito de governar-se argumentos que reproduzem ou requentam velhas
e regular-se segundo os seus próprios critérios de teses colonialistas sobre os obstáculos culturais,
distinção entre o verdadeiro e o falso. Na história a ignorância ou a superstição dos “nativos” do Sul
da medicina, esta reivindicação e afirmação global, estes foram e continuam a ser privados
de autonomia tem coexistido – e serviu para de acesso a tratamentos de doenças evitáveis ou
legitimar – com a medicalização de problemas curáveis e de condições crónicas ou cronicadas –
de diferentes domínios da vida social, ou seja, a como a aids –, sem que sejam garantidos o acesso a
sua caracterização como questões que podem ser atenção básica e a cuidados de maior complexidade,
identicadas, diagnosticadas e solucionadas pela as condições para a ormação de prossionais, o
sua redenição como enômenos patológicos ou acesso e a produção de conhecimento e de recursos
por intervenções modeladas pela medicina ou saúde para a saúde e o reconhecimento e diálogo com a
pública. Esta autonomização do domínio dos saberes diversidade de saberes, práticas e experiências
da doença e da cura caracteriza-se pela reivindicação que têm permitido, em condições de grande
de um exclusivismo epistemológico, à custa da vulnerabilização, responder a eventos extremos de
invisibilização, desqualicação ou destruição de emergência sanitária.
modos de cuidar que não assumem essa autonomia, Tem por isso razão Petryna (2013) em evidenciar
as divisões corpo/espírito-alma-mente ou a ontologia o fato de que a garantia do direito à saúde não
naturalista próprias da ciência moderna. pode ser apenas do direito ao acesso à atenção ou
Em segundo lugar, a tensão entre a capacidade de a medicamentos, mas também o que ela chama
curar mas também de causar dano. Essa capacidade, de “direito à recuperação”. Sem este, a condição
reconhecida aos curadores em todas as formas de iatrogenizadora da biomedicina potencializa
saberes e práticas de cura, é reformulada como a do colonialismo e do capitalismo neoliberal
obrigação inscrita no juramento hipocrático: acima (Wallace et al., 2015). Essa realização, no entanto,
de tudo, não causar dano ao paciente, sendo que, caso pode encontrar múltiplas formas de limitação,
este ocorra, ele será atribuído seja a erro médico ou à como acontece com a cidadania farmacêutica
violação, voluntária ou involuntária, desse preceito. instaurada no Brasil pelo programa de distribuição
A dimensão iatrogénica da biomedicalização – gratuita e universal de antirretrovirais a pessoas

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soropositivas ou com aids sem que o atendimento práticas interescalares na clínica; ampliação
no sistema de saúde seja garantido. A saúde como da ideia de prevenção para incluir efeitos
direito deve ser entendida como realização da iatrogénicos dos procedimentos médicos;
justiça cognitiva, enquanto condição da justiça persistência de divisões de especialidade
sanitária e da justiça social. em tensão com uma maior fragmentação
Após a Segunda Guerra Mundial, o campo temática da pesquisa, implicando formas
da medicina passou por um processo de de interlocução e articulação entre saberes
reconstrução/redefinição e transformação pela disciplinares e de especialidade; pluralismo
convergência/imbricação dos saberes e práticas interno, mas sujeito a validação pelas
das ciências da vida e da medicina, especialmente normas da monocultura;
da medicina clínica e da epidemiologia. Essa • criação ou transformação das instituições de
convergência e reconstrução dos saberes da cuidado, pesquisa, ormação e certicação
área coexiste com divisões disciplinares e com em saúde, sociedades cientícas e médicas,
a fragmentação do saber médico, ampliando a publicações, reuniões e encontros cientícos;
tendência para a especialização. Este processo, • ampliação do que conta como saúde, ligando
designado nas ciências socias em saúde de o passado, o presente e o futuro mediante o
“biomedicalização da saúde”, transorma de maneira conceito central de risco e de novas formas
signicativa as ormas de ampliação da jurisdição de vigilância permitidas pelos recursos
dos saberes da medicina (Nunes, 2012). tecnocientíficos (genética, genómica,
As características principais desse processo imagiologia);
de biomedicalização podem ser resumidas do • privatização tendencial do setor da saúde
seguinte modo: e da prestação de cuidados; emergência de
um setor capitalista na saúde, incluindo
• emergência de uma monocultura do (novo) seguros de saúde, parcerias público-privadas,
saber biomédico, que define a validade unidades de saúde e organizações de
do conhecimento e das intervenções pesquisa clínica privadas e outras;
sobre a doença para a sua prevenção, • importância crescente do biocapital e
diagnóstico, tratamento, prognóstico e de formas extrativistas-predatórias de
cura; dependência de uma tecnocultura que territórios, corpos, biodiversidade, saberes e
implica fortes investimentos em pesquisa práticas ditas tradicionais e locais como base
e desenvolvimento; denição de um novo de novas formas de acumulação de biocapital;
regime de verdade, assente na pesquisa alianças com setor nanceiro, de seguros
laboratorial e no ensaio clínico aleatório e indústria farmacêutica e biotecnológica;
e com controle, na medicina baseada em • emergência de novas prossões ligadas à
evidências e sua extensão para a saúde expansão da saúde e à sua transformação
pública como procedimentos de produção em imperativo;
e validação de conhecimento que gera • criação de novos sujeitos da saúde e de
uma bateria de métricas de aplicação novas formas de cidadania (biológica,
alegadamente universal (Adams, 2016); farmacêutica, sanitária, biossocial etc.);
reafirmação da centralidade do hospital emergência de movimentos sociais ligados
como espaço de plataformas que articulam à condição de portador(a) de doença ou
biologia e patologia, os saberes da clínica distúrbio, ou pelo reconhecimento destes
e os saberes do laboratório; domesticação (Nunes, 2009);
da incerteza pelo conceito de risco e da • criação de uma infraestrutura de âmbito
ignorância por via da noção de efeito placebo; tendencialmente global e com pretensão de
privilégio da escala celular e molecular universalidade, por meio da saúde global e
na explicação da doença, coexistindo com das novas instituições globais, fundações

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e outras, com correspondente redução do como se pode vericar no caso da monocultura
papel e do poder da Organização Mundial das espécies vegetais e animais, mas também
da Saúde e a modificação na definição das monoculturas do saber, como a da saúde
de prioridades de pesquisa e intervenção biomedicalizada, que se sustenta em trocas,
e do seu financiamento; conceção do apropriações e circulações de conhecimentos,
mundo como laboratório, atualizando práticas, instrumentos e competências expressas na
uma tradição que vem do pasteurismo e própria caracterização da medicina contemporânea
passa pela medicina colonial e a medicina como encontro entre a patologia e a biologia,
tropical; orientação crescente para doenças os saberes da doença e os saberes da vida.
“emergentes” ou “reemergentes” que A celebração e legitimação da multidisciplinaridade
ameaçam o Norte, redenição de condições e da interdisciplinaridade – e, ocasionalmente, da
endémicas nos países do Sul e entre setores transdisciplinaridade – coexiste com uma prática
de populações excluídas do Norte como seletiva de relação entre saberes e práticas, a que
doenças negligenciadas ou de populações voltaremos mais adiante.
negligenciadas; articulação entre dois No domínio da saúde, a noção de ecologia
regimes, biossegurança/vigilância global e convida, por exemplo, a considerar a diversidade
medicina humanitária (Lakoff, 2017). de entidades, forças e relações que constituem as
ecologias – como vírus, bactérias, fungos, líquens –,
Para uma ecologia de saberes e os processos metabólicos que tornam possível a
práticas na saúde vida e que problematizam a noção de organismo,
ou as novas conceções da imunidade e do sistema
O pluralismo interno atravessa a história da imunitário. Mas ela pode abrir também para um olhar
medicina moderna desde a sua consolidação no mais complexo e amplo a partir do momento em que
século XIX, como mostrou Rudol Virchow (apud entram relações que têm a ver com as intervenções
Farmer, 2005), que oi não apenas um dos pioneiros humanas, como é o caso das intervenções em
do uso de práticas laboratoriais, mas também da saúde ou em políticas ambientais ou com impacto
medicina social e da ideia da natureza da medicina ambiental e na saúde. O que está dentro e fora da
como política por outros meios. ecologia torna-se, assim, uma denição decorrente
Os debates e as controvérsias que marcam a de uma política ontológica (Levins, 1998).
história da área incluem não só o enfrentamento A leitura ecológica permite mostrar os limites
interno de posições na medicina e na epidemiologia, da leitura monocultural da saúde biomedicalizada
mas também diálogos com correntes críticas e, simultaneamente, mobilizar os recursos do saber
ou heterodoxas noutras disciplinas e áreas do cientíco para a procura das conexões parciais que
saber, como, por exemplo, a biologia ecológica do abrem esse espaço para as ecologias dos saberes
desenvolvimento (Gilbert; Epel, 2015) ou as correntes da/na saúde e para ecologias do cuidado.
da imunologia que postulam uma compreensão Como abrir um espaço de interlocução entre
ecológica desta (Tauber, 2017). Estas correntes as versões das ciências da vida e da saúde que
colocam sob escrutínio a ideia da individualidade das exploram e, em certos casos, colocam desaos
espécies/organismos e da sua evolução, propondo em aos limites da sua concepção monocultural e
seu lugar conceitos como holobionte, que considera outros saberes da saúde e da doença, do cuidado
um organismo como um consórcio de organismos e da cura, como os saberes dos povos indígenas?
diversos existindo em relações de cooperação Esta interlocução torna-se indispensável perante
(Gilbert; Sapp; Tauber, 2012). as novas formas de infecção que proliferam e
Dessa forma, é sublinhada a condição que parecem exigir o recurso à biomedicina para
generalizada de interdependência que torna possível poderem ser enfrentadas. Mas há um ponto em que
a vida. A própria existência de monoculturas não é essa interlocução pode apoiar-se: o reconhecimento
concebível sem essas teias de interdependências, pelas cosmovisões indígenas de entidades e de

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forças invisíveis ou irreconhecíveis por outras de intelectuais engajados como Paulo Freire e
epistemologias/ontologias, e a possibilidade Orlando Fals Borda, entre outros, que nos legaram
de encontro dos diferentes existentes através uma vasta experiência e elenco de procedimentos
das próprias histórias que essas cosmovisões participativos e não extrativistas e de práticas da
constroem e que abrem para a construção “sobre” educação popular hoje reapropriadas e renovadas
a diferença de respostas dirigidas a problemas pelo diálogo e pelas artesanias de práticas nascidas
urgentes, como os surtos infecciosos ou as ameaças das lutas e resistências pela dignidade humana, seja
ao equilíbrio ecológico. esta expressa na linguagem dos direitos humanos
Para este diálogo, a abordagem ecológica, ou noutras linguagens. Contra a separação moderna
entendida como descrição de fenômenos mas entre razão e afeto, as metodologias colaborativas
também como modo de criar relações entre saberes e não extrativistas armam uma razão quente, um
e práticas baseadas na tradução intercultural, sentirpensar, como lhe chamou Fals Borda (2009),
deve ter em conta, nessas duas perspectivas, que não separa a validação do conhecimento da sua
questões como as escalas e relações entre escalas, capacidade de responder ao sofrimento humano e de
as temporalidades, o que é relevante e não é para o reconhecer a pertença dos seres humanos a um mundo
problema em causa, os modos de decidir qual forma que partilham com outras espécies, entidades e forças.
de saber ou de conguração de saberes permite Assim se torna possível trabalhar para o conhecimento
responder mais adequadamente ao problema. mútuo e tradução intercultural entre universos de
A partir das situações de copresença radical e das experiência, pensamento e linguagem e explorar
formas de tradução intercultural que possibilitam a as possibilidades de respostas apoiadas no diálogo
criação de espaços de interlocução que respeitem a entre experiências e saberes artesanais e os saberes
diferença de saberes e de culturas, podem emergir os cientícos e técnicos produzidos em relação com lutas
conjuntosdesemelhanças/proximidades(Santos,2018) ou que são apropriáveis para essas lutas (Santos, 2018).
que permitem as ecologias de saberes e de práticas, Como abrir um espaço de interlocução entre
as ecologias do cuidado, no sentido amplo recordado as ciências da vida nas suas novas versões e, por
por Puig de la Bellacasa (2017): tudo o que fazemos exemplo, os saberes indígenas? Esta interlocução
para manter, continuar e reparar o mundo em que aparece não apenas como desejável, mas como
procuramos a melhor vida possível, como parte de uma necessária e urgente perante novas ameaças à vida
teia complexa e interdependente, em que tecemos as e à própria existência de um planeta capaz de a
relações que sustentam a vida e a existência. sustentar e alimentar, como a poluição ambiental e
Neste processo, é fundamental reconhecer contaminação decorrentes de intervenção humana
e articular as formas de conexão parcial entre associada a tecnologias ou formas capitalistas e
biomedicina e outras formas de saberes e práticas do predatórias de produção. As condições desse novo
cuidado e da cura, da forma que for mais adequada diálogo passarão pelo reconhecimento de entidades
e ecaz para responder à situação. e de forças invisíveis para a epistemologia/ontologia
A apresentação e discussão das invenções ocidental/moderna, por meio das próprias histórias
metodológicas que nascem das diferentes resistências que culturas e epistemologias/ontologias indígenas
e lutas na saúde e dos desaos que elas enrentam, constroem, permitindo elaborar “sobre” a dierença
dada a centralidade da metodologia na armação formas adequadas de resposta a problemas urgentes,
do conhecimento hegemônico e da sua autoridade como os surtos infecciosos ou as várias formas de
epistémica, terá de ser deixada para outra ocasião. destruição e degradação ecológica . E o que trazem
Alguns desses desaos, colocados a várias experiências esses saberes e práticas “outros” sobre a maneira
na saúde coletiva ou no diálogo com esta, começaram de responder? As experiências dos encontros dos
a ser discutidos noutros lugares – por exemplo, por povos indígenas do Brasil com a biomedicina e
Fasanello, Nunes e Porto (2018), Siqueira-Silva e com a saúde coletiva podem ajudar a compreender
Nunes (2018) e Vieira (2019). Para responder a esses as possibilidades e diculdades da emergência de
desafios, é importante resgatar as experiências novas congurações de saberes e de práticas.

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Epistemologias do Sul, saúde coletiva Santos (2018) chama “conjuntos de semelhanças/
e saúde indígena: rumo a ecologias proximidades”, que permitem o reconhecimento
de preocupações e o trabalho conjunto de criação
da vigilância e do cuidado de respostas a problemas denidos como comuns.
Essas respostas se assentam, simultaneamente,
A saúde coletiva tem sido caracterizada como no reconhecimento e respeito das diferenças e
um campo de saberes e de práticas (Paim; Almeida na procura dos pontos de convergência e acordo
Filho, 2000) ou, tendencialmente, como um espaço para a ação comum. Elas emergem de lutas contra
de saberes e de práticas que se organiza como um diferentes formas de opressão, de exclusão e de
campo, no sentido apontado por Bourdieu (Vieira-da- violência. Neste processo, os saberes e práticas
Silva, 2018). Na sua origem está o encontro entre a associados ao referido dissenso interno da saúde
medicina social e as ciências sociais, em particular biomedicalizada são levados a reconhecer os seus
a sociologia (Vieira-da-Silva, 2018). Atualmente, limites e as possibilidades de diálogo com outros
são identicadas como matriciais para o campo saberes e práticas.
da saúde coletiva três grandes áreas de saberes e A experiência da saúde coletiva mostra que o
práticas: a epidemiologia, o planejamento e gestão dissenso interno não garante as condições que
de políticas de saúde e as ciências sociais e humanas. possibilitam a emergência de ecologias de saberes e
Não é possível, no espaço deste artigo, recapitular a de práticas, mas que ele é um momento signicativo
história da saúde coletiva, da sua constituição como de abertura ao reconhecimento dos limites e das
campo e das suas transformações, mas é importante ormas especícas de ignorância que caracterizam
apontar algumas questões que sobressaem quando todos os saberes. A possibilidade de emergência
se procura interrogar a relação entre a saúde da ecologias de saberes depende da relação que os
coletiva e a diversidade de saberes e práticas saberes e práticas da saúde coletiva consigam forjar
da saúde e da doença, do cuidado e da cura que com lutas que produzam outros saberes e práticas.
existem na sociedade brasileira e que são uma parte Há vários momentos na história da saúde coletiva
fundamental da heterogeneidade e da diversidade em que esses conjuntos de semelhanças alimentaram
social, cultural e territorial do país, assim como das diálogos fecundos e processos de mobilização e
múltiplas manifestações do sofrimento humano transormação movidos pela armação da dignidade,
e da exclusão, abissal e não abissal, que afetam a da justiça social e da justiça cognitiva.
maioria da sua população. O movimento da Reforma Sanitária constituiu-
A história da saúde coletiva tem sido marcada se como um projeto civilizatório de defesa da saúde
por uma atenção prioritária ao pluralismo interno como direito que produz mobilização perante
da saúde biomedicalizada e, em particular, às as desigualdades e a mercantilização da saúde,
manifestações do que, retomando uma expressão impactando a constituição de um sistema universal
de Donna Haraway e María Puig de la Bellacasa, de saúde no Brasil, o Sistema Único de Saúde (Arouca,
podemos chamar as formas de dissenso interno 2003). A Reforma Psiquiátrica brasileira mostrou
que a atravessam (Puig de la Bellacasa, 2017). como o desao à opressão e ao sorimento ligados à
Segundo estas autoras, esse dissenso abre um instituição manicomial implicou uma crítica radical
espaço que permite pensar formas do que designam ao saber psiquiátrico e à sua hegemonia no campo da
de ontologia relacional. saúde mental, assim como a exploração, com usuários,
O conceito de ecologia de saberes, proposto ativistas e profissionais, de novas respostas ao
no quadro das epistemologias do Sul, amplia e sorimento e a armação da dignidade e dos direitos
complexica essa abertura, a partir da ideia de a quem viu negada a sua humanidade em nome da
copresença radical de pluriversos com os seus defesa de uma razão excludente (Amarante, 1998;
saberes e práticas. A possibilidade de emergência Nunes; Siqueira-Silva, 2016; Oliveira; Pitta; Amarante,
de ecologias de saberes depende da capacidade 2015). A condição de “não existência” social atribuída à
de identificação do que Boaventura de Sousa loucura passa ao reconhecimento da diferença a partir

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de práticas de criação estética e de saberes e práticas parcial do conhecimento cientíco – como de todas
coletivas e solidárias, produzidas como ecologias de as formas de conhecimento –; as exclusões e os
saberes que deslocam o saber hegêmonico (Nunes; silenciamentos associados a essa parcialidade,
Siqueira-Silva, 2016). especialmente através de alegações de validade e
Outras experiências, como a da luta contra os autoridade que subalternizam ou desqualicam
agrotóxicos e em defesa da agroecologia, pela saúde liminarmente outros saberes; e a tensão entre
de povos indígenas, quilombolas, comunidades confiança e autonomia que define os espaços
periféricas urbanas, populações do campo, em defesa próprios do conhecimento cientíco em contextos
de águas e forestas, as iniciativas de educação de luta (Santos, 2018).
popular e saúde, os diálogos com as práticas No segundo caso, as posições dissidentes ou
integrativas e complementares ou as propostas críticas referem-se a e ancoram-se em epistemologias
de vigilância popular em saúde são exemplos, e ontologias que se assentam em postulados distintos
entre outros, de como a capacidade de ligação da daqueles que são próprios da ciência moderna. Para
saúde coletiva às diferentes lutas pela saúde e pela entender as possibilidades de encontro criativo e
dignidade potencializa a capacidade libertadora dos de diálogo entre umas e outras dessas posições, é
diálogos entre saberes e experiências e das formas importante regressar à proposição central de pensar
de tradução intercultural e artesanias de práticas e agir a partir da noção de ecologia, em oposição às
que transformam essa capacidade em ação coletiva monoculturas.
para a libertação. O modo de pensar/agir ecológico que atravessa
Mas o reconhecimento e a validação dos saberes as epistemologias do Sul convida a que no próprio
nascidos dessas experiências e dessas lutas passa campo da saúde coletiva a noção de ecologia
pelos ltros disciplinares ou interdisciplinares dos possa ampliar e complexificar algumas das
saberes reconhecidos como cientícos que embasam contribuições decisivas do campo à compreensão
a saúde coletiva como campo. Importa salientar, da saúde, da doença e do cuidado, como o conceito
por isso, o que distingue a diferença resultante de processo saúde-doença-atenção ou a passagem
do dissenso interno numa monocultura – como a da ideia de determinantes da saúde e da doença
da ciência moderna e, no caso que nos ocupa, a da à da determinação como processo dinâmico. Essa
biomedicina – da que resulta dos encontros de saberes ampliação e complexicação pode ser alimentada
distintos associados a epistemologias/ontologias a partir de duas fontes principais. A primeira é a da
diferentes. No primeiro caso, o dissenso opera pela diversidade de cosmovisões, linguagens, histórias,
referênciaapostuladoshegemônicosdamonocultura– formas de expressão, modos de vida e de relação com
por exemplo, o naturalismo ou o excepcionalismo o território e os dierentes “existentes” – humanos
humano, no caso da biomedicina –, mesmo quando e não humanos, vivos e não vivos (Povinelli, 2016).
os critica ou procura alternativas às formulações A segunda vem do debate atual sobre a necessidade
hegemônicas ou convencionais desses saberes. Como de pensar uma saúde única, que seja capaz de colocar
observa Santos (2018), os conhecimentos produzidos em relação e em diálogo a saúde humana, a saúde
em condições de dissenso interno podem emergir animal e a saúde dos ecossistemas, conhecida como
em contextos de luta e responder a problemas one health (Wallace et al., 2015). Este debate tem
ou condições suscitadas pelas próprias lutas. mostrado a importância decisiva da diversidade de
A alavancagem crítica da produção de conhecimento saberes na procura de respostas aos atuais desaos
resulta em geral do encontro entre o desao colocado à saúde, como a pandemia da covid-19, mas também
pelas lutas e pela solidariedade pragmática (Farmer, a todos os que há muito tempo têm afetado a parte
2005), por um lado, e pela crítica interna às posições mais vulnerabilizada da população mundial.
hegemônicas no campo ou área cientíca em causa. A defesa dos povos indígenas do Brasil, da
Em qualquer uma destas versões de um integridade dos seus territórios, ecologias e modos
conhecimento cientíco resultante do dissenso de vida, alimentada por uma memória dos desastres
interno, é importante ter em conta o caráter ligados às doenças trazidas pela colonização, ao

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mesmo tempo que exige as medidas de proteção FALS BORDA, O. Una sociología sentipensante
que só o Estado pode garantir, mostra como o atual para América Latina. Bogotá: Siglo del Hombre:
estado de exceção convoca para a rearmação da Clacso, 2009.
vida. A luta pela terra e a produção de existência
FARMER, P. Pathologies of power: health, human
cam cada vez mais ameaçadas pela opressão dos
rights, and the new war on the poor. Berkeley:
saberes e poderes hegemônicos. Essa diversidade de
saberes negados ou destruídos pelas monoculturas University of California Press, 2005.
do saber e do cuidado e a urgência de um pensar/agir FASANELLO, M. T.; NUNES, J. A.; PORTO, M. S. F.
ecológico encontram nas epistemologias/ontologias Metodologias colaborativas não extrativistas e
dos povos indígenas uma afirmação exemplar. comunicação: articulando criativamente saberes
Deixamos por isso a última palavra a Krenak (apud e sentidos para a emancipação social. Reciis:
Vieira, 2019, p. 210): Revista Eletrônica de Comunicação, Informação
e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4,
Eu acho que uma boa parte do povo das aldeias p. 396-414, 2018.
consegue tratar o subsistema da saúde como
um complexo complementar. Quando pajé não FOUCAULT, M. La crisis de la medicina o la crisis
cura, quando os rituais não curam, quando as de la antimedicina. Educación Médica y Salud,
terapêuticas indígenas não curam, você tira uma Washington, DC, v. 10, n. 2, p. 152-169, 1976.
pessoa e deixa… deixa os médicos brancos cuidar.
GILBERT, S. F.; EPEL, D. Ecological developmental
Quando alcança esse grau de autonomia, eu acho
biology. 2. ed. Sunderland: Sinauer, 2015.
que é um avanço […]. Que, pelo menos, a gente
ainda tenha alguma infraestrutura, que a gente GILBERT, S. F.; SAPP, J.; TAUBER, A. I. A
conseguiu esboçar e que se essa infraestrutura symbiotic view of life: we have never been
não se perder de tudo, a gente continua tendo uma individuals. Quarterly Review of Biology, Chicago,
base sobre a qual construir novos paradigmas v. 87, n. 4, p. 325-341, 2012.
pra […] interação medicamentosa daqui de fora,
ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da
das farmácias, do remédio, das interações com
medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
as diferentes terapêuticas que as nossas aldeias
ainda têm, são capazes de seguir reproduzindo de LAKOFF, A. Unprepared: global health in a time
maneira criativa, integrado alguns conceitos do of emergency. Berkeley: University of California
diagnóstico e coisas dos brancos. Press, 2017.
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