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COMEÇO, MEIO E FIM

DE FREI BETTO

Adaptação dramatúrgica: Giovani Bruno


Músicas: Jaqueline Oliveira

2024
Menina:
Minha avó tinha uma cara estranha naquele domingo de maio. Muito
estranha. Não era nem cara de avó nem cara de domingo. Sabemos todos
que cara de avó é sempre boa. Sobretudo no domingo. Minha avô no
domingo costuma mostrar uma cara toda sorrisos. Domingo é dia de
brincar mais, de curtir a família, de visitar parentes, de passear e... comer
bem! Domingo é o dia mais preguiçoso e divertido da semana!

La em casa o almoço de domingo é sempre melhor que o de terça ou


quinta-feira. Às vezes, no domingo meus pais vão juntos para a cozinha.
Eles preparam juntos o almoço. Então no domingo meu pai inventa fazer
feijoada ou minha mãe uma deliciosa sobremesa: mungunzá. Ou quando
temos dinheiro saímos para comer fora, em um restaurante que serve um
delicioso vatapá, caruru e acarajé com camarões!
Ah, esqueci de dizer: meu pai tem cara de maçã coberta de chocolate,
redonda e careca, mas muito doce; e minha mãe tem cara de jiló com
óculos e quando brava fica amarga, mas também tem cara de chocolate
suflair, de tão fofinha que é. toda bonita e elegante.

Mesmo quando chove, o domingo tem cara de algodão-doce. Não preciso ir


à escola, meus pais não saem pra trabalhar, a rua fica com menos carros e
visitamos meus avôs.
Foi em uma visita de domingo que encontrei minha avó sem sua habitual
cara boa, tão boa que até parece bolo de chocolate. O chocolate tinha
desaparecido. Ela estava com cara de farinha crua. Sem brilho nos olhos,
sem brilho nos cabelos, sem brilho nos gestos. Sei que nem toda avó
costuma ter cara de bolo de chocolate quando está cheia de brilho. Tem avó
que lembra sorvete de creme. A avó da Jana minha colega de escola, tem
cara de amoras frescas. E cabelo de miojo. Enfim, toda avó é gente boa
porque avó é a mãe que já não precisa criar filhos. Agora só curte os netos.
Avó é aquela segunda mãe que quase sempre diz sim. Mãe é diferente de
avó. Mãe fala muito "não". A minha diz não quando quero ver televisão na
hora de comer; diz não quando quero ir dormir sem tomar banho; diz não
quando prefiro tomar refrigerante e não suco de frutas. Com vovó é
diferente. Quando peço alguma coisa, ela quase sempre responde: pode
sim.

Domingo sim, domingo não, minha família almoça na casa de meus avós.
Comida de avó, não sei por quê, tem gosto de cobertor quentinho em noite
de frio. A gente fica agasalhada por dentro. Naquele domingo de maio,
fomos almoçar na casa dos pais do meu pai. São os meus únicos avós.
Os pais de minha mãe morreram quando ela tinha dezessete anos. Foi na
estrada. Viajavam de carro. Veio outro carro na direção contrária à do meu
avô e entrou na contramão. O motorista estava bêbado. Bebida e volante
são como fósforo e gasolina: não combinam. Mas o rapaz tinha bebido
muito e perdeu o controle da direção. Bateu de frente no carro dos meus
avôs. Na sala da minha casa tem fotos de meus avós falecidos no acidente,
nem parecem avós. Não têm cara de bolo de chocolate, de sorvete de creme
nem de pêssego em calda. A cara deles é de pudim de pão, cara jovem, sem
rugas e nem um fio de cabelo branco. Meus avós paternos têm rugas e fios
de cabelos brancos misturados com os pretos. Vovô tem mais cabelo
branco que a vovó. Acho que uma pessoa que tem menos de trinta ou
quarenta fios de cabelo branco na cabeça não deveria ser chamada de avô
ou avô.

Naquele domingo de Maio vovó nos recebeu de cara triste. Meus pais
também não estavam com cara boa a cara deles era mais de segunda- feira
que de domingo. Não era a cara alegre dos domingos. Parecia a cara
preocupada dos dias de trabalho. Estranhei duas coisas ao chegar na casa de
meus avós: vovô não veio nos receber na porta, e vovó não se agachou, não
abriu os braços e nem disse: “Vem cá, minha netinha querida, dê um beijo
e um abraço na sua preta avó!” Ela apenas se curvou e me deu um beijo no
rosto enquanto eu beijava o rosto dela. Vovô tinha uma cara abatida
naquele domingo. O rosto não era mais cor de café com leite. A cor do café
tinha sumido da pele. Ficou só a cor do leite. E o jeito de falar era um
pouco arrastado. Faltava alegria e ternura nas palavras.

Logo fiquei sabendo por que minha avó não estava com a cara alegre de
sempre: meu avô tinha ficado doente. Não sei dizer que tipo de doença
obrigou o vovô a ficar de cama. Os adultos não gostam de contar para as
crianças as doenças que têm. Acham que nós, crianças, somos ignorantes e
nada sabemos de doenças. Ora, ninguém nasce sabendo nem sabido! Nem a
minha professora, que sabe quase tudo, nasceu sabendo. Foi ela mesma
quem disse na aula que tudo se aprende nesta vida se um adulto conhece a
doença que tem é porque um dia aprendeu com o médico, com um amigo
ou leu em uma revista ou livro. Tudo que a gente sabe foi aprendido na
família, na escola ou através do rádio, da TV, do jornal ou da internet.
Como diz a Jana, minha colega: “Ninguém nasce sabão.” Falei pra Jana:
“Não é sabão, é Sabidão!”
Se ninguém conta qual é a doença do adulto, a criança continuará sem
saber nada sobre a doença. E quando a gente não sabe uma coisa, fica
imaginando mil outras coisas sobre essa coisa.

Naquele domingo ninguém quis me contar a doença que vovô tinha. Só


lembro que a vovó falava bem baixinho. Meus pais também começaram a
falar em tom de segredo. Tentei escutar o que sussurravam, mas meus
ouvidos não deram conta de alcançar. Depois, vovó me chamou e me
ofereceu um suco de tamarindo, enquanto meus pais foram para o quarto
dos meus avós. Bebi o suco sem achar graça nenhuma naquele clima de
segredinhos.

Logo mamãe veio até o quintal me buscar e me levou para ver o vovô.
Entrei no quarto toda desconfiada. Imaginei que encontraria o vovô muito
mal, vomitando, tendo tremores, gritando de dor. Nada disso. Ele estava
deitado e me pareceu de bem com a vida, tinha cara de iogurte de frutas.
Nem dava a impressão de estar doente. A cara dele era de quem, no
domingo fica com preguiça de levantar e passa o dia inteiro de pijama na
cama.
Vovô me pediu um beijo e segurou as minhas mãos. Perguntei a ele:
- Vô, o senhor está doente?
- Sim, minha querida, estou adoentado. O médico me aconselhou a ficar de
repouso.
⁃ O que o senhor tem? Sarampo?
Perguntei isso porque a Jana minha amiga, tinha ficado de cama quando
teve sarampo.
Meu avô deu um sorriso e disse:
- Tenho é velhice, minha filha.
- Mas... velhice é doença, vovô?
- Ế não. Mas mata do mesmo jeito.
- Ah, vô, então não quero ficar velha. Não quero morrer.
Vovô sorriu, me puxou pra junto dele e beijou minha bochecha:
⁃ Preste bem atenção, minha filha. Disse ele. – Você diz que não quer
morrer. E tem razão. Ninguém quer morrer, principalmente as crianças que,
como você, têm a vida toda pela frente.
Interrompi o que o vovô dizia e falei:
- Eu acho, vô, que todos os dias nascem muitos bebês no mundo e todos os
dias morrem muitos doentes e velhos. Por que Oxalá não faz assim: a partir
de hoje, ninguém nasce e ninguém morre? Todos nós que já estamos vivos
poderemos viver para sempre.
Vovô se recostou no travesseiro, para a cabeça ficar um pouco mais alta, e
disse:
⁃ Acho que Oxalá não iria aprovar a sua sugestão. Sabe por quê? Porque
em pouco tempo, teríamos um mundo só de velhos, sem jovens e crianças.
Já pensou o mundo virar um imenso asilo cheio de velhinhos e velhinhas?!
Deixe-me explicar uma coisa, minha querida: tudo tem. Começo, meio e
fim. Cadê os tênis que dei a você há dois anos?
⁃ Acabou, vô. Usei tanto que gastou e rasgou.
- Pois é - disse ele. - Tudo é como aquele par de tênis: começa novo, depois
é gasto pelo tempo e pelo uso e, mais tarde, envelhece ou estraga. Então vai
pro lixo. Gente não vai pro lixo. Gente morre e vai para o cemitério ou para
o crematório.
- Crematório?! Que coisa é essa, vô?
- É o lugar em que o corpo de quem morreu ê queimado. No cemitério, o
corpo do morto é enterrado. No crematório, o defunto é cremado, ou seja, é
queimado num forno tão quente, mas tão quente, que o corpo vira cinzas ou
um monte de pedrinhas. Depois a família espalha as cinzas ou as pedrinhas
em algum lugar onde se lembrem da pessoa que morreu.
Mamãe entrou na conversa:
- Meus pais, filha, foram cremados. Quando faleceram no desastre de carro.
As cinzas deles foram jogadas no mar porque gostavam muito de ir à praia.
Hoje, toda vez que vejo o mar, as ondas e o brilho da água me trazem a
lembrança de meus pais.
⁃ Cadê aquela camiseta de malha verde que sua avô te deu no Natal?
Perguntou vovô.
- Ah, vô, eu cresci mais um pouco e ela ficou curta. Mamãe doou para
minha prima mais nova.
- Viu só?! Sua camiseta também teve começo (o Natal), meio (você usou) e
fim (ficou curta e foi doada). Tudo na vida é assim, filha. Você não gosta
de ouvir histórias como a da Princesa e o sapo? Todas as histórias têm
começo, meio e fim. Não gosta de ver desenho animado na TV? Desenho
também tem começo, meio e fim. Não gosta de tomar sorvete? Sorvete
também tem começo, meio e fim.
⁃ Que pena, vô. Eu queria um sorvete de chocolate que nunca tivesse fim!
⁃ Até o mundo tem começo, meio e fim.
Disse meu pai.
- O mundo?! 0 mundo um dia vai acabar?
Meu avô observou:
- Sim, minha querida, este nosso mundo, chamado planeta Terra, teve
começo, agora tem meio e um dia terá fim. E o mesmo acontece com os
outros planetas e com todas as estrelas que brilham no céu. Um dia, o
Universo nasceu e um dia vai morrer – comentou papai.
Fiquei preocupada e perguntei:
- O Sol também vai acabar, a Lua vai acabar?
- Sim!
Confirmou vovô.
- Tudo vai acabar, até essa nossa conversa aqui no quarto.
- Quer dizer que papai e mamãe um dia também vão morrer?
- Vão, minha filha.
Disse o vovô.
- E você também. Você vai crescer ficar adulta, depois vai envelhecer e
morrer. Espero que morra bem velhinha, com uma idade muito avançada,
depois de ter tido uma vida super feliz, assim como eu tive.
Fiquei encucada. Eu já tinha pensado que iria crescer, estudar, viajar o
mundo com minha amiga Jana, ser uma fotógrafa, porque amo guarda o
momento numa fotografia. E talvez ter filhos. Mas nunca tinha passado
pela minha cabeça que eu ficaria que nem o vovô e a vovó e teria netos.
- E quando a gente morre, o que acontece?
Perguntei.
- Ninguém sabe com certeza.
Disse vovô.
– Só as religiões têm resposta para a sua pergunta. Elas afirmam que a vida
jamais acaba. Morrer é renascer para a vida que não tem fim, a vida eterna.
- E onde fica essa outra vida? Quer dizer que a vovó e o vovô que
morreram no acidente de carro estão vivos?
Perguntei.
- Ế o que afirmam as religiões. -Explicou o vovô. - Assim como o bebê que
está na barriga da mãe nasce para viver entre nós, as pessoas que estão no
mundo, ao morrer, renascem para viver junto de Deus. E junto de Deus
ninguém morre. Mas existem pessoas que não acreditam nisso. Acham que
a morte é o fim de tudo e que, depois dela, nada existe, nem vida, nem céu,
nem Deus.
- E você, vố, o que acha? - Perguntei.
- Tenho fé, minha filha – disse vovó. – Assim como hoje de manhã você e
seus pais saíram de casa e vieram para cá, ao morrer vamos todos sair deste
mundo e ir para a casa de Deus.
- E você sabe o endereço da casa de Deus, vó? Ou o telefone dele? Deus
tem celular?
⁃ Não é um lugar como a sua casa ou a minha casa ou a cidade em que
moramos. Você não vive cercada de carinho e amor de seus pais? Se o seu
amigo Chico perguntar a você onde estão o carinho e o amor de seus pais, o
que você responderia?
- Ora, eu diria para o Chico que isso não é uma coisa que vejo, é uma coisa
que sinto.
⁃ Pois eu digo o mesmo pra você: a vida após a morte é algo que não
podemos dizer onde nem como é. Mas que vamos sentir e desfrutar no
amor de Deus por toda a eternidade.
Fiquei sabendo depois que vovô estava com câncer. Ele morreu no ano
seguinte. Todos ficamos muito tristes, com cara de limonada sem açúcar:
minha avô, meus pais e eu.
Mas vovô continua vivo em meu coração e em minhas lembranças nunca
me esqueço dele: o rosto, o jeito, a voz, o modo afetuoso como me tratava.
Vovô morreu e agora vive dentro de mim. Já não vejo o corpo dele, que foi
cremado (as cinzas foram jogadas no jardim da casa da vovó), mas sinto a
presença dele em mim. Desconfio que o céu, o paraíso, a casa de Deus
ficam, sim, num lugar que a gente pode localizar e apontar - o coração da
gente.

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