Você está na página 1de 24

EDUCAÇÃO EM LINGUA MATERNA

A Sociolingüística na Sala de Aula

Stella Maris Bortoni-Ricardo


Stellamb@zaz.com.br

2004
Para entendermos a variação no português
brasileiro, vamos propor a Você que imagine três
linhas, a que vamos chamar de contínuos, e que
são:

• contínuo de urbanização

• contínuo de oralidade-letramento

• contínuo de monitoração estilística


Contínuo de urbanização: Em uma das pontas dessa linha nós
imaginamos que estão situados os falares rurais mais isolados; na
outra ponta estão os falares urbanos que, ao longo do processo
sócio-histórico, foram sofrendo a influência de codificação lingüística,
tais como a definição do padrão correto de escrita, também chamado
ortografia do padrão correto de pronúncia, também chamado ortoepia,
da composição de dicionários e gramáticas. Enquanto os falares
rurais ficavam muito isolados pela dificuldades geográficas de
acesso, como rios e montanhas, as comunidades urbanas sofriam a
influência de agências padronizadoras da língua, como a imprensa, as
obras literárias e, principalmente, a escola.

O contínuo de urbanização pode ser representado assim:

variedades rurais isoladas área rurbana variedades urbanas padronizadas

Usamos o contínuo de urbanização para situar os falantes de acordo


com seus antecedentes e seus atributos.
Ou nós
acabamos
com as
formigas...
Vamos agora usar outro contínuo ao longo do qual vamos
dispor os eventos de comunicação, conforme sejam eles
eventos mediados pela língua escrita, que chamaremos de
eventos de letramento, ou eventos de oralidade, em que não há
influência direta da língua escrita.

Veja os exemplos:
EXEMPLO 1:
[O professor está conduzindo um exercício de interpretação de texto da segunda série]
• (P. vai ao quadro e começa a escrever o exercício. Os alunos copiam em silêncio; retoma a
palavra quando conclui a escrita.)
• P. Quem sabe fazê aqui agora? Pest'enção aqui, ó. Depois cês copia aí, tá? Tá escrito
aqui.(lendo do quadro) Responda. Com quem se parecia o ? (pára de ler) Como é o nome
da leitura lá? Pega a leitura lá que cê sabe. Pega lá no livro, tá? É o quê? O palhacinho.
Como é o nome da leitura lá? Diga aí.
• A. O palhacinho.
• P O palhacinho, né? Vamu trabalhá exatamente. O trabalho é a leitura lá. Nós vamu vê se
nóis entendemos o não o que tá escrito lá. Então vamu, tá? Tá escrito aqui, ó. (Lendo) Com
que se parecia o palhacinho? (Pára de ler.) Cê vai voltá lá naquela leitura lá. Vai olhá. O
palhacinho se parecia com um negócio lá. Com quê? Com um boneco. Então cê vai dizê.
Parecia com um boneco, né? (Lendo) Por que todos gostavam dele? (Pára de ler) tá? Por
que todos gostavam dele? Depois (lendo) Qual era a maior felicidade do palhacinho? Como
costumavam chamá-lo ? (Pára de ler) Tá? As crianças chamavam ele é (...) de um nome, sei
lá. Um apelido lá, né? Qual era esse apelido dele, tá? (Lendo) Um dia o palhacinho chorou.
Por que ele chorou? (Pára de ler) Tá? Aí cê vai dizê qu'ele chorou por isso, por isso, isso,
isso, isso, assim, assim, tá? Isto tá escrito lá no livro. (Lendo) Quantas crianças haviam
mais o menos no palco? (Pára de ler). Ele entrô lá pra fazê a brincadeira com as crianças.
Quantas crianças tinha mais o menos lá, tá bom? Então cê vai respondê lá, olhanu no livro
e responde, tá?
• (O P. volta-se para outros alunos e inicia outra atividade.)
EXEMPLO 2:

• A1 [lendo o que escrevera] e ele deixou nós irmos rap/ e ele deixou
nós irmos. Rapidamente arrumamos nossas malas e saímos, e fomos.
• A2ih :: aí cê tá (xxx) [ lendo ] e saímos e fomos. [falando] é claro que
se nóis saiu nós fomos. NãO [lendo ] e fomos , e fomos , rap/ e e ele
deixou nós irmos rapidamente arrumamos nossas malas e fomos.
[falando] apaga esse ponto aí e põe 'e fomos'.
• A3[falando] e falamos tchau e fomos
• A1não, e fomos, e a história tá grande demais
• A2[lendo] e nós despedimos
• A1[falando] nóis num vai terminá hoje não
• A2[falando] tem que escrevê muito uai, pra gente ganhá nota.
(Ilse de Oliveira)
O terceiro contínuo que estamos propondo para
facilitar nossa análise do português brasileiro é o de
monitoração estilística. Nesse contínuo situamos
desde as interações totalmente espontâneas até
aquelas que são previamente planejadas e que
exigem muita atenção do falante.

Vejam o exemplo:
EXEMPLO 1:
• Gerente: Gerência do Banco XXX . Em que eu posso ajudá-lo?
• Cliente: Estou interessado em financiamento para compra de
veículo. Gostaria de saber quais as modalidades de crédito que o
banco oferece.
• Gerente: Nós dispomos de várias modalidades. O Senhor é nosso
cliente? Com quem eu estou falando, por favor.?
• Cliente: Eu sou o Júlio César Fontoura, também sou funcionário do
banco.
• Gerente: Julinho, é você, cara? Aqui é Helena! Cê tá em Brasília.?
Pensei que você ainda estivesse na agência de Uberlândia! Passa
aqui pra gente conversá com calma. E vamu vê seu financiamento
A escola é, por excelência, o locus - ou espaço – em
que os educandos vão adquirir, de forma sistemática,
recursos comunicativos que lhes permitam
desempenhar-se competentemente em práticas sociais
especializadas.

Quando falamos em recurso comunicativos, é bom


recordarmos três parâmetros que estão associados à
questão da ampliação desses recursos, que são:
• Grau de dependência contextual
• Grau de complexidade no tema abordado
• Familiaridade com a tarefa comunicativa
Veja esse diálogo hipotético entre dois irmãos que estão
brincando com o bloquinhos de encaixe tipo Lego, tentando
formar peças como casinha, barquinho, castelo etc.

Diálogo A:
- Essa é minha! Você pegou a minha!
- A sua é essa outra! Essa que tá aí.
- Não é não! A minha é essa. Eu quero a minha!
- Essa eu não te dou, só te dou essa.

Diálogo B:
- Esse triângulo azul é meu! Você o pegou do meu castelo.
- A peça que estava em seu castelo não é o triângulo. É esse
paralelogramo que está ao lado da sua mão direita.
- Não é não! Eu quero o triângulo azul que você usou para fazer a
proa de seu navio.
ATIVIDADE
Grave o diálogo entre dois ou mais alunos envolvidos em uma
atividade manual. Transcreva, depois, o diálogo e discuta com
um colega ou com sua monitora a dependência contextual
desse discurso. Faça o mesmo com um diálogo gravado entre
dois professores igualmente envolvidos em uma tarefa manual
comum. Leve a questão da dependência contextual - ou
implicitude - das interações face a face para discussão em seu
grupo. Esta é uma questão teórica muito relevante porque a
implicitude - ou indexicalidade - ou, se Você preferir, o grau de
contextualização é uma das principais características que
distinguem a linguagem oral da linguagem escrita e, também, a
linguagem monitorada da não-monitorada.
Vamos sintetizar:
1) Todo falante nativo de uma língua, por volta de sete, oito
anos, já internalizou as regras do sistema da língua que lhe
permitem produzir sentenças bem formadas naquela língua,
o que não acontece com um falante estrangeiro que produz
sentenças agramaticais, isto é, que não estão perfeitamente
de acordo com o sistema da língua estrangeira.

2) Como a língua é um fenômeno social, cujo uso é regido por


normas culturais, além de ter domínio das regras da língua,
os falantes têm de usá-la de forma adequada à situação de
fala.

3) No desempenho dos papéis sociais, os indivíduos transitam


por espaços sociolingüísticos em que têm de dominar certos
usos especializados da língua.

4) O falante tem de dispor em seu repertório de recursos


comunicativos que lhe permitam desempenhar-se com
adequação e segurança nas mais diversas situações.
5) Grande parte dos recursos comunicativos que compõem o
seu repertório é adquirido espontaneamente no convívio
social; mas para o desempenho de certas tarefas
especializadas, especialmente as relacionadas às práticas
sociais de letramento, o falante necessita desenvolver
recursos comunicativos, de forma sistemática, por meio do
aprendizagem escolar.

6) A tarefa educativa da escola, em relação à língua materna, é


justamente a de criar condições para que o educando
desenvolva sua competência comunicativa e possa usar,
com segurança, os recursos comunicativos que forem
necessários para desempenhar-se bem nos contextos
sociais em que interage.
Em pesquisas de sala de aula que conduzimos ou orientamos,
identificamos alguns padrões principais na conduta do professor
perante a realização de uma regra lingüística não-padrão pelos
alunos:

• o professor identifica "erros de leitura", isto é, erros na


decodificação do material que está sendo lido, mas não faz
distinção entre diferenças dialetais e erros de decodificação na
leitura, tratando-os todos da mesma forma;

• o professor não percebe uso de regras não-padrão. Isto se dá por


duas razões: ou o professor não está atento ou o professor não
identifica naquela regra uma transgressão porque ele próprio a
tem em seu repertório. A regra é, pois, "invisível" para ele;

• a professora percebe o uso de regras não-padrão e prefere não


intervir para não constranger o aluno;

• o professor percebe o uso de regras não-padrão, não intervém, e


apresenta, logo em seguida, o modelo da variante padrão.
EXEMPLO 1:
• A. (lendo) A onça resolveu atraí-la a sua furna fazendo corrê notícia
de que tinha morrido e deitando-se no chão da caverna fingiu-se
de cadáver. Todos ós bichos vinheru olhá a defunta
contentíssamos.
• P. Contentíssimos. ó, psi, depois de contentíssimos tem ponto, tá?
Todos os animais, né, vinheru olhá a defunta contentíssimos.

EXEMPLO 2:
• A (lendo) Conhecia aquele choro. Aquele aquele modo novo da
mãe sófre.
• P. Da mãe o quê?
• A. Da mãe sófre.
• P. sofrê, rapaiz.
• A (lendo) O pai também não entendeu e virou para o filho cres
crescendo sabê
• P. querendo
• A. querendo sabê.
EXEMPLO 3:

• P: Reinaldo + por que você num vei ontem?


• A: num deu tempo.
• P: num deu tempo por quê?
• A: tava trabaianu.
• P: O Reinaldo estava trabalhando ontem e por isso não veio à
aula. Vejam esta palavrinha ‘trabalhando’. Ela é uma daquelas
palavrinhas que podemos usar de dois jeitos. Quando falamos
com nossos amigos podemos dizer ‘trabaianu’; quando
falamos com pessoas que não conhecemos bem, empregamos
a Palavrinha como a escrevemos, assim: ‘trabalhando’.
Redação: A fessora
A fessora fica di pé o dia intero i manda a gente ficá
sentado.
A fessora fica falando o dia intero i manda a gente ficá
quieto.
A fessora fica iscrivinhando na losa o dia intero i
manda a gente num riscá a parede.
A fessora dá bronca na gente i manda num bronquiá
cos otro.
Eu acho que a fessora num qué ninguém fazendo o
qui ela faiz.
Chico Bento
BIBLIOGRAFIA:

Bortoni-Ricardo, S. M. EDUCAÇÃO EM LINGUA MATERNA -


Sociolingüística na Sala de Aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

Você também pode gostar