caracterizado por um sentimento de oposição à Idade Média” (QUEIRÓZ, 1995, p. 12) teria sido uma invenção dos historiadores do século XIX. Vasari, pintor, arquiteto, biógrafo de vários artistas, e contemporâneo de Rafael, Leonardo e Michelangelo, refere-se uma vez ao período como Rinascita, mas não de forma conceitual ou sistemática. A recente e imensa bibliografia que se encontra sobre o tema nos revela estarmos trabalhando não com uma ideia fechada, mas, como tudo que é belo nas ciências humanas, com um conceito sempre em construção. A arte renascentista teve espaço em vários países de formas diferentes, mas há, entre eles, alguns elementos em comum. Costuma-se apontar a redescoberta da arte clássica da Antiguidade greco-romana e o estudo científico do corpo humano e do mundo natural como características marcantes do período. Da mesma forma, temos diversas inovações técnicas na pintura que proporcionam uma arte muito diversa da arte do período medieval. Veja-se, por exemplo, a utilização da tinta a óleo sobre tela: técnica renascentista por excelência, aumentou a possibilidade de cores, bastante limitada na arte medieval. Poucas das inovações que passaram para a história como invenções ou influências do Renascimento, no entanto, foram compartilhadas pelos primeiros renascentistas, daquele momento chamado de Primeira Renascença, que teve espaço essencialmente na Florença do século XV. Ao contrário, por exemplo, do uso da pintura a óleo, os primeiros renascentistas utilizavam a desconfortável técnica da têmpera, em que os pigmentos são misturados a um “colante”, uma mistura de água e gemas de ovo, em que a pintura de gradações se vê bastante prejudicada pela secagem rápida da amálgama. A NOÇÃO DE RENASCIMENTO O termo “Renascimento”, enquanto categoria historiográfica é instável. A historiografia registra inúmeras querelas em torno das diversas periodizações, não raro opostas, que se tem proposto de tempos em tempos. Aliado á obscuridade acadêmica que envolve o tema, encontra-se a dispersão cultural do termo o qual é facilmente encontrado em manuais escolares, sendo reproduzido pela literatura sempre com uma aura mítica. Rotineiramente criticadas por sua parcialidade e anacronismo, as definições deste período vão se sucedendo no tempo, embora o termo parece ter se fixado tanto no imaginário comum, quanto no vocabulário especializado. Na história do direito, todavia, percebe-se a ausência de um tratamento sistematizado deste período que tende a ser subsumido na magnitude do fim do Medievo e de sua contribuição para o direito ocidental. A História do Direito, por influência de medievalistas convencidos da importância do período para a formação do direito ocidental, privilegia uma periodização que trata como Medievo Tardio ou Baixa Idade Média o período compreendido entre os séculos XIII e XIV. O presente artigo pretende problematizar esta periodização, não sem antes destacar as mutações pelas quais a noção de Renascimento passou no desenrolar da historiografia. A INVENÇÃO DO RENASCIMENTO A origem do termo “Renascimento” remonta à conhecida obra de Giorgio Vasari “Vidas de Artistas”, na qual é empregado o termo rinascità: “Mas deixando de lado esta parte, demasiado incerta pela sua antiguidade, passemos à coisas mais claras, sua perfeição e ruína e restauração e, melhor dizendo, renascimento: dos quais com muito melhor fundamento podemos raciocinar.” Falando a partir da perspectiva de sua época, vislumbra a partir da arte de Giotto uma retomada (rinascità) dos padrões artísticos que foram supostamente interrompidos pela arte medieval. Vasari foi o primeiro a falar da rinascità, o renascimento da arte. Contudo, não pretendia significar com isso uma redescoberta da Antiguidade, mas sim a rinascità da “boa arte”, em seu entender algo sinônimo de renúncia à arte da Idade Média, com seu vocabulário formal retirado da natureza e, em particular, ao austero estilo linear decorrente da arte bizantina, que designou por maniera greca. Ao menos em Vasari, não se pode deixar de notar que a identificação de uma ruptura entre os séculos XIII e XIV nasce de observações estilísticas. A alegada imperfeição das artes e, consequentemente, das instituições, no entender deste autor, decorreria de uma imperfeição mais geral imputada à época como um todo. Esta presunção pode ser observada em outros discursos biográficos mais ou menos próximos da época a partir da qual Vasari nos fala. Muitos séculos mais tarde, o Iluminismo retomará a concepção de Vasari para expandi-la. Sinteticamente falando, para os iluministas, o Renascimento é o período de um humanismo inabalável e de um racionalismo civilizatório, no qual há uma ruptura heroica e definitiva para com o irracionalismo medieval. As definições elaboradas durante o século das Luzes, entretanto, por mais ricas que se mostrem no revelar o espírito do século XVIII, muito pouco nos dizem acerca do próprio Renascimento. O discurso iluminista falseia a Renascença por projetar no período os valores mais caros ao século XVIII, na tentativa de justificar o seu próprio tempo: Voltaire e d’Alembert, de fato, propõem o Renascimento como fonte geral da idade moderna: é a primeira fase de um processo cultural, também e sobretudo filosófico e científico, que leva diretamente ao século das Luzes, sobretudo pelos seus aspectos de cosmopolitismo e racionalismo. Esta redução da ruptura entre os séculos XIII e XIV a um período de racionalismo inabalável, só é possível diante do sacrifício deliberado de toda uma tradição hermética e ocultista particular ao pensamento da época. Ao fazer do Renascimento mero jogo de sombra e luz que prenunciaria o despontar glorioso da Razão no século XVIII, o Iluminismo planifica, de modo empobrecedor, quatro séculos de tensão criativa. Apesar de duramente questionada pelo Romantismo que se recusou a ver o Medievo como época de retrocessos e estagnações, a concepção iluminista, vislumbrando no Renascimento a origem da Modernidade, influenciará Michelet e, de certa forma, Burckhardt. Michelet, a quem se atribui a criação do termo “Renaissance”, é o responsável pela fetichização acadêmica do período. Após a publicação do décimo segundo volume de sua monumental “Histoire de France” a historiografia experimentará uma profusão de estudos sobre o período. A importância de Michelet não está apenas na proposta do termo mesmo de Renascimento [...] que pela primeira vez aparece no título de uma obra histórica, mas sobretudo, no empreendimento de sua reconstrução, que supera definitivamente a antiga perimetração do Renascimento como humanística “instauratio studiorum” em favor de uma interpretação global de longa duração – e sua escala europeia, que assume no seu quadro de referências igualmente a Reforma religiosa e o experimentalismo científico, para constituir-se como uma fase de formação da modernidade. O Renascimento, em Michelet, harmoniza-se com a Reforma (XV-XVI) e a Revolução Científica (XVI- XVIII) para compor um movimento único de fundação da Modernidade. É por isso que o autor não encontra dificuldades em colocar lado a lado personagens tão díspares quanto Lutero e Rabelais em prol de uma organicidade superior: Lutero e Calvino, não obstante, viram-se irmãos de Rabelais e Copérnico, dois ramos de uma mesma árvore. Do mesmo tronco floresce a Reforma e a Renascença, avós das liberdades modernas. Aqui se encontra a unidade moderna do século XVI. Apropriando-se do discurso do Iluminismo e exaltando o já suposto vínculo entre este e o Renascimento, Burckhardt publica em 1860 “A cultura do Renascimento na Itália”. A obra interessa- nos particularmente, pois, tendo conhecido um rápido sucesso, influenciou não só as interpretações e investigações acadêmicas posteriores, como contribuiu para a construção da imagem do Renascimento no imaginário popular. Em Burckhardt, o mito do renascimento encontra, portanto, sua sistematização final: a descoberta da natureza, a valorização da componente individualística do homem, a perturbação do dogmatismo religioso, o advento de um novo cânone de beleza fundado na recuperação do classicismo, vão formar um único desenho articulado, na base do qual se reconhece a necessidade de individualizar os motivos fundadores da Idade Moderna, ainda em contraposição ao Medievo. O estilo ensaístico e quase literário da obra contribuiu para sua rápida difusão. Logo na introdução o autor afirma ser a “civilização” do Renascimento, “mãe imediata da nossa”: “Os contornos espirituais de toda uma época cultural dão caso para cada visão individual uma imagem distinta, e muito mais isto há de acontecer e hão de mesclar-se o juízo e o sentimento subjetivos, tanto no leitor quanto no historiador, tratando-se de uma civilização que, como mãe imediata da nossa, faz ainda sentir seu influxo” Esta afirmação, a despeito de sua beleza, contém em si a peculiaridade que arruinará seu estudo, é que o autor confia cegamente nos testemunhos da época, trabalhando as fontes de modo acrítico e admitindo os discursos do passado como portadores de uma verdade inerente que deveria, apenas, ser desvelada pelo historiador. Além disso, observa-se uma acentuada atenção concedida à Florença, em detrimento das demais cidades toscanas e em detrimento de regiões inteiras da Itália embrionária, o que leva o autor a projetar, involuntariamente, aspectos particulares da história florentina sobre a Toscana e sobre a Itália, o que resulta, por óbvio, em uma generalização excessiva, em detrimento das particularidades regionais. A despeito da ausência de rigor no tratamento das fontes, toda controvérsia posterior, acerca da oposição entre Renascimento e Medievo, discutirá, direta ou indiretamente, o trabalho de Burckhard. A fratura radical entre as duas épocas identificada pelo autor será o elemento polarizador das discussões futuras, de modo que, para contestar que o Humanismo tivesse inaugurado uma idade nova, muitos estudiosos se empenharam em documentar todos os elementos de continuidade entre Idade Média e Renascimento, para fazer retroceder ao ano mil o nascimento do mundo moderno, que não se considera, absolutamente, Renascimento. Apesar da censura feita ao trabalho de Burckhardt – demasiado negligente em relação à crítica das fontes –, é preciso notar o esforço do autor em redigir uma história interdisciplinar na qual a cultura é compreendida como a conjugação entre política (Estado) e arte. Tal interdisciplinaridade, infelizmente, é raramente encontrada nas pesquisas em história do período. O HUMANISMO Como se vê, não podemos falar no Renascimento como se falássemos de um período uniforme. Há, no entanto, uma questão que, se não é exatamente comum a todo o período, perpassa a criação dos primeiros renascentistas e se mantém na mente dos mestres da Alta Renascença. Referimo-nos ao movimento chamado de Humanismo. O termo Humanismo liga-se à expressão litterae humanae (literatura humana) em oposição a literae divinae (literatura divina: bíblia, teologia). Humanistas se diziam, já nos séculos XIV e XV, os cultores de gramática, retórica, poesia, história e filosofia moral; os cultores, portanto, das humanidades, pois essas disciplinas se julgavam as mais aptas a formar o ser humano. Os autores gregos e latinos, a partir da segunda metade do século XIV, passaram a ser olhados como modelos insuperáveis em literatura e mestres exímios de humanidade. O movimento foi, pois, nos inícios, essencialmente literário e se casou perfeitamente com todo o afã de renovação cultural que tomou conta da Itália e, depois, de outros países europeus, caracterizando-se por uma enfatização dos valores humanos, frente à mentalidade medieval, centrada em valores religiosos (divinos). O termo humanismo, contudo, não existiu na época. Foi forjado no século XIX para indicar formação clássica em oposição à científica. Passou, depois, a aplicar-se ao movimento dos séculos XV e XVI. Humanismo e Renascimento A evolução do Renascimento coincidiu com o desenvolvimento do Humanismo que estudava e traduzia textos filosóficos da Antiguidade clássica. Na Florença do século XV, viveram os filósofos mais conhecidos e importantes do Renascimento, entre eles Marsílio Ficino e Pico Della Mirandola: o primeiro, responsável pela academia neoplatônica, onde traduz e divulga as obras de Platão; o segundo, autor do texto conhecido como manifesto humanista, a De hominis dignitate oratio, ou Discurso sobre a dignidade do homem. Ambos os filósofos desfrutavam da amizade da família Médici, os verdadeiros governadores de Florença, e conviviam com Lippi, Botticelli e outros. Vejamos então, resumidamente, em que consiste essa filosofia. Na Oratio, de Pico Della Mirandola (2001, p. 53), encontramos afirmações do tipo: Nada é grande na terra, a não ser o homem. Nada é grande no homem, a não ser a mente e a alma. [...] A ti, ó Adão, não te temos dado nem uma sede determinada, nem um aspecto peculiar [...] Eu te coloquei no centro do mundo, a fim de poderes inspecionar, daí, de todos os lados, da maneira mais cômoda, tudo que existe. Não te fizemos nem celeste, nem terreno, mortal ou imortal, de modo que assim, tu, por ti mesmo, qual modelador e escultor da própria imagem, segundo tua preferência e, por conseguinte, para tua glória, possas retratar a forma que gostarias de ostentar. Poderás descer ao nível dos seres embrutecidos; poderás, ao invés, por livre escolha de tua alma, subir aos patamares superiores que são divinos. Como se vê, segundo o autor, o homem tem, por meio de seu livre-arbítrio, a liberdade de escolher seu verdadeiro destino. De raiz platônica, a filosofia do autor nos informa que, por meio do conhecimento, do estudo e da filosofia, o homem pode conhecer a divindade na Terra. Em seu dicionário de Filosofia, N. Abagnano definiu em três pontos a filosofia humanista: 1. Reconhecimento do valor humano, o que significava ser necessária a educação do homem. As artes não tinham valor de fim, mas sim valor de meio, para a formação de uma mente realmente humana, aberta em todas as direções, por meio da consciência histórico-crítica da tradição cultural; 2. Reconhecimento da totalidade do homem, como ser constituído de alma e corpo. Nega-se, assim, a superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa. Exalta-se a liberdade e a dignidade do homem, reconhecendo seu lugar central na natureza e seu destino de dominador dessa; 3. Reconhecimento da historicidade do homem, ou seja, da ligação do homem com seu passado. O humanista se investirá da tarefa de descobrir a verdadeira face da Antiguidade clássica. AS REVOLUÇÕES RELIGIOSAS
O comprometimento do clero cristão com a ordem
sócio-política medieval, a par das vantagens de poder que trouxe para a Igreja, foi responsável por uma série de desgastes morais. Enfraqueceu-se, sobremaneira, o específico da função da Igreja: sua pregação, sua vivência e sua disciplina religiosas. É por isso que, desde o século XIII, senão antes, freqüentes vozes se levantaram em prol de reformas, exigidas cada vez mais com insistência e com mais radicalidade. Bastaria recordar, aqui, João Wiclif (1320-1384) e João Huss (1368-1415), na Inglaterra e na Boêmia, respectivamente, mas foi na Alemanha que a revolução explodiu, com êxito, na voz de Martinho Lutero (1483-1546). Em 1517, afixou ele, na porta da catedral de Wittemberg, suas teses contestadoras. Era o estopim para a explosão que acabou com a unidade religiosa da Europa. Em pouco tempo, várias eram as confissões cristãs, que divergiam e, até, lutavam entre si. CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS DO HUMANISMO
Os séculos do humanismo renascentista se
caracterizaram por uma espécie de curiosidade quase infantil; por uma sensação de ruptura de horizontes, que eram sentidos como limitadores; por um esforço em abrir caminhos novos, variados e, numa perspectiva à distância, julgados contraditórios. As direções por onde se ensaiavam novas perspectivas culturais foram, pois, diversificadas: ressurgiram as várias escolas filosóficas gregas; mistérios e teosofia tiveram sua vez; nova imagem do homem e da sociedade se impôs; fez-se profissão de ignorância e de dúvida; esforçou-se por renovar a escolástica. As revoluções religiosas
O comprometimento do clero cristão com a ordem
sócio-política medieval, a par das vantagens de poder que trouxe para a Igreja, foi responsável por uma série de desgastes morais. Enfraqueceu-se, sobremaneira, o específico da função da Igreja: sua pregação, sua vivência e sua disciplina religiosas. É por isso que, desde o século XIII, senão antes, freqüentes vozes se levantaram em prol de reformas, exigidas cada vez mais com insistência e com mais radicalidade. Bastaria recordar, aqui, João Wiclif (1320-1384) e João Huss (1368-1415), na Inglaterra e na Boêmia, respectivamente, mas foi na Alemanha que a revolução explodiu, com êxito, na voz de Martinho Lutero (1483- 1546). Em 1517, afixou ele, na porta da catedral de Wittemberg, suas teses contestadoras. Era o estopim para a explosão que acabou com a unidade religiosa da Europa. Em pouco tempo, várias eram as confissões cristãs, que divergiam e, até, lutavam entre si. Em busca da Fama
“O homem é o modelo do mundo”. A frase é de
Leonardo da Vinci, que é quase o sinônimo de Renascimento e de suas realizações. A valorização do indivíduo manifesta-se na busca da fama, uma noção antiga e diametralmente oposta ao ideal medieval do homem anônimo que, despojando-se das vaidades pessoais, coloca-se a serviço de Deus Na escultura ou na arquitetura do Renascimento, muitas das obras servem para exaltar a fama conquistada pelas personalidades. Na literatura, prolifera o gênero biográfico e autobiográfico, enquanto na pintura, florescem o retrato e o auto- retrato, com a identificação das pessoas representadas. O hábito de os artistas assinarem a sua obra também surge no Renascimento. O artista, de certo modo, encarna o próprio ideal de homem que o Renascimento descobre. Desprezado desde a Antiguidade como executores do trabalho braçal – atividade própria dos escravos e das camadas inferiorizadas –, o artista, no Renascimento, torna-se o modelo da capacidade inventiva do homem de iniciativa. Audacioso, não se conformando com as circunstâncias em que se vê submetido, ele é aquele que forja o próprio mundo. Nessa medida, a sua figura equivale à do homem de virtú, ativo, criativo e empreendedor, e contrapõe-se à dos “especuladores” escolásticos, que, aos olhos do Renascimento, pensam mas nada fazem. Mais do que isso, o mundo que o artista cria ultrapassa a condição mortal e efêmera do seu criador: como obra, a sua produção tende à eternidade. Não é à toa que os artistas renascentistas tenham preferido materiais – como o óleo, na pintura, e o mármore, na escultura – menos corrosíveis à ação do tempo e, portanto, mais propícios à fama. Mas o artista não se limita ao seu ofício que o caracteriza: se fosse um mero “fazedor de arte”, seria apenas artesão, isto é, trabalhador braçal, que continua desprezado. Ele é, antes de ser executor de uma obra, o seu idealizador. Isto significa que deve dominar, além das técnicas próprias ao seu ofício, todo o conjunto de conhecimentos; deve por isso procurar ser um homem universal, que tudo sabe e que tudo faz. Da Vinci é mais uma vez o exemplo dessa ideal, a respeito de quem se dizia não sem um certo exagero: “nunca tinha havido no mundo um homem tão sábio, não apenas em escultura, pintura e arquitetura, mas, principalmente, como grande filósofo”. A INVENÇÃO DA ANTIGUIDADE
Associado a toda essa nova imagem do homem, o
humanismo apresenta um outro significado, de caráter mais técnico: o estudo das “humanidades”. Studia humanitatis, na tradição que remonta a Cícero, indicam os estudos de valores considerados como essencialmente humanos – a “humanidade”, no sentido adotado pelo pensamento helenístico. Nessa medida, referem-se à história, à poesia, à retórica, à gramática e à filosofia moral, que no ensino escolástico, eram relegadas ao segundo plano. O próprio termo “renascimento” aplica-se inicialmente a essa revalorização daquilo que o classicismo grego e romano havia exaltado. O grande promotor desse humanismo no sentido técnico é Francesco Petrarca (1304-1374), responsável pela criação da noção de “tempos obscuros” para caracterizar a Idade Média, que, a seu ver, era sinônimo de mundo bárbaro. Trata-se então de retornar ao brilho da civilização antiga, a começar pela purificação da língua – o latim –, tão corrompida por influência de idiomas bárbaros. O mesmo propósito é buscado em relação ao grego e ao hebraico, que, somados ao latim, formam o ideal de homo trilinguis, o homem trilíngue ou poliglota. O humanismo, no sentido técnico, é então basicamente a gramática e a filologia de línguas antigas, para depois imitar a literatura e as artes da Antiguidade. Isto, porém, não significa que o humanismo tenha sido fiel a esse programa. O próprio latim de Petrarca não é o de Cícero ou o de Virgílio; muitos eruditos atribuem à Antiguidade vários escritos que se revelariam ser de épocas mais recentes; o que o humanista faz é, na realidade, idealizar uma Antiguidade, inventá-la, criando, num certo sentido, o modelo que depois trataria de imitar, principalmente quanto à forma e ao estilo. Por isso, os humanistas são menos atenciosos para o que dizem os textos antigos do que para o modo como dizem. A polêmica suscitada em torno de uma nova tradução de Ética a Nicômano, de Aristóteles, é esclarecedora. Publicada pelo chanceler de Florença, Leonardo Bruni (1370-1444), essa tradução logo foi criticada pelo cardeal Alonso Garcia, professor da Universidade de Salamanca: para ele, o antigo tradutor “não se limitou a traduzir os livros de Aristóteles do grego para o latim, mas interpretou-o com tanto rigor quanto possível e não lhe teriam faltado a maior elegância ou os mais belos ornamentos se tivesse querido utilizá-los. (...) Mas o antigo intérprete, que se preocupou sobretudo com a verdade filosófica, não quis ornamentos excessivos a fim de evitar os erros em que este [novo tradutor] caiu”. Por trás dessa aparente divergência técnica sobre uma tradução, há um fosso que separa o mundo medieval do renascentista, e que se manifesta em concepções conflitantes a respeito da educação, a começar pelo local de ensino: se a escolástica tinha como sede a universidade, o núcleo das humanidades são os colégios. Destinados inicialmente a fornecer uma instrução preparatória – exatamente as humanidades – a jovens carentes, os colégios, que proliferam no final da Idade Média, passam a atrair cada vez mais estudantes de famílias ricas. A estes não interessava um conhecimento especializado, como o que as universidades fornecem. O que se requer é a aquisição de um estilo: saber conversar, ser cortês, polido e elegante, ter bons modos e, claro, apresentar uma boa formação cultural – requisitos indispensáveis para que o jovem seja admitido na corte de ricas e poderosas famílias. Um dos manuais mais adotados nesse ensino é de Baldassare Castiglione e chama-se O Cortesão. Tal ensino, aparentemente fútil e frívolo, corresponde aos anseios da burguesia que, uma vez consolidado o seu domínio econômico, quer ser admitida nos círculos aristocráticos, mesmo que seja mediante a compra de títulos de nobreza. Por isso, opõe-se às universidades, cujo “pedantismo” e “intelectualismo”, destinados a formar teólogos e outros especialistas, de nada servem a esse desejo de promoção social. “Nem todos são chamados a ser legistas, físicos ou filósofos (...). (...) Mas todos, tais como somos, fomos criados para viver em sociedade e para os deveres que esta vida implica” – escreve no século XV o educador humanista Vittorino da Feltre. Promover o homem como modelo do mundo é, por tudo isso, a promoção desse novo homem, burguês, que busca moldar o mundo à sua imagem e semelhança, como um empreendimento seu. Mas isso é também uma experiência dolorosa. O homem renascentista, que descobre a sua individualidade frente à ordem do mundo, não se conforta mais com a certeza medieval de uma vida que tenha o princípio e o fim em Deus. O humanista continua a acreditar em Deus, mas Ele parece cada vez mais indiferente ao mundo: o homem está só. Orgulhoso de si, mas abandonado à sua própria sorte, esse homem procura então reatar a ordem do mundo. Para isso, retoma as noções antigas de macrocosmos e de microcosmos, que serviam para relacionar o homem ao mundo. Na Idade Média, o homem era concebido como um pequeno mundo (microcosmos) que, como criatura de Deus, espelhava em si toda a Criação feita como macrocosmos, sendo a astrologia, embora condenada pela Igreja, um instrumento para desvendar esse jogo de espelhos. No Renascimento, com o afrouxamento das restrições da Igreja, a astrologia conhece larga difusão, ainda mais porque o humanismo absorve elementos pagãos que identificam os astros às divindades. Acredita-se que cada parte do mundo e do homem seja governada por um astro-deus, e nada se faz sem antes consultar a posição dos corpos celestes. Mas, por outro lado, se um homem é bem-sucedido, é porque agiu num momento de conjunção propícia dos astros. Isto significa que o homem pode se aproveitar das influências astrais: numa ocasião favorável ele pode convocar para si as forças da natureza, valendo-se da magia. Nessa medida, a astrologia e a magia tornam-se uma espécie de álibi da liberdade humana. Elas representam esse momento em que o homem, tornando-se senhor do mundo e de seu destino, ainda se sente inseguro de sua própria liberdade. O pensamento renascentista irá nutrir-se dessa condição ambígua do homem.