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RENASCIMENTO E

HUMANISMO
RENASCIMENTO E HUMANISMO

O conceito de Renascimento como “período


caracterizado por um sentimento de oposição à Idade
Média” (QUEIRÓZ, 1995, p. 12) teria sido uma
invenção dos historiadores do século XIX. Vasari, pintor,
arquiteto, biógrafo de vários artistas, e contemporâneo de
Rafael, Leonardo e Michelangelo, refere-se uma vez ao
período como Rinascita, mas não de forma conceitual ou
sistemática.
A recente e imensa bibliografia que se encontra
sobre o tema nos revela estarmos trabalhando não
com uma ideia fechada, mas, como tudo que é
belo nas ciências humanas, com um conceito
sempre em construção.
A arte renascentista teve espaço em vários países de
formas diferentes, mas há, entre eles, alguns elementos
em comum. Costuma-se apontar a redescoberta da arte
clássica da Antiguidade greco-romana e o estudo
científico do corpo humano e do mundo natural como
características marcantes do período. Da mesma forma,
temos diversas inovações técnicas na pintura que
proporcionam uma arte muito diversa da arte do período
medieval. Veja-se, por exemplo, a utilização da tinta a
óleo sobre tela: técnica renascentista por excelência,
aumentou a possibilidade de cores, bastante limitada na
arte medieval.
Poucas das inovações que passaram para a história
como invenções ou influências do Renascimento, no
entanto, foram compartilhadas pelos primeiros
renascentistas, daquele momento chamado de
Primeira Renascença, que teve espaço essencialmente
na Florença do século XV.
Ao contrário, por exemplo, do uso da pintura a óleo,
os primeiros renascentistas utilizavam a
desconfortável técnica da têmpera, em que os
pigmentos são misturados a um “colante”, uma
mistura de água e gemas de ovo, em que a pintura
de gradações se vê bastante prejudicada pela
secagem rápida da amálgama.
A NOÇÃO DE RENASCIMENTO
O termo “Renascimento”, enquanto categoria
historiográfica é instável. A historiografia registra
inúmeras querelas em torno das diversas periodizações,
não raro opostas, que se tem proposto de tempos em
tempos. Aliado á obscuridade acadêmica que envolve o
tema, encontra-se a dispersão cultural do termo o qual é
facilmente encontrado em manuais escolares, sendo
reproduzido pela literatura sempre com uma aura mítica.
Rotineiramente criticadas por sua parcialidade e
anacronismo, as definições deste período vão se
sucedendo no tempo, embora o termo parece ter se
fixado tanto no imaginário comum, quanto no
vocabulário especializado. Na história do direito,
todavia, percebe-se a ausência de um tratamento
sistematizado deste período que tende a ser
subsumido na magnitude do fim do Medievo e de sua
contribuição para o direito ocidental.
A História do Direito, por influência de medievalistas
convencidos da importância do período para a
formação do direito ocidental, privilegia uma
periodização que trata como Medievo Tardio ou Baixa
Idade Média o período compreendido entre os séculos
XIII e XIV. O presente artigo pretende problematizar
esta periodização, não sem antes destacar as mutações
pelas quais a noção de Renascimento passou no
desenrolar da historiografia.
A INVENÇÃO
DO RENASCIMENTO
A origem do termo “Renascimento” remonta à
conhecida obra de Giorgio Vasari “Vidas de
Artistas”, na qual é empregado o termo rinascità:
“Mas deixando de lado esta parte, demasiado incerta
pela sua antiguidade, passemos à coisas mais claras,
sua perfeição e ruína e restauração e, melhor dizendo,
renascimento: dos quais com muito melhor
fundamento podemos raciocinar.”
Falando a partir da perspectiva de sua época, vislumbra a
partir da arte de Giotto uma retomada (rinascità) dos
padrões artísticos que foram supostamente interrompidos
pela arte medieval. Vasari foi o primeiro a falar da
rinascità, o renascimento da arte. Contudo, não pretendia
significar com isso uma redescoberta da Antiguidade, mas
sim a rinascità da “boa arte”, em seu entender algo
sinônimo de renúncia à arte da Idade Média, com seu
vocabulário formal retirado da natureza e, em particular,
ao austero estilo linear decorrente da arte bizantina, que
designou por maniera greca.
Ao menos em Vasari, não se pode deixar de notar que a
identificação de uma ruptura entre os séculos XIII e
XIV nasce de observações estilísticas. A alegada
imperfeição das artes e, consequentemente, das
instituições, no entender deste autor, decorreria de uma
imperfeição mais geral imputada à época como um
todo. Esta presunção pode ser observada em outros
discursos biográficos mais ou menos próximos da
época a partir da qual Vasari nos fala.
Muitos séculos mais tarde, o Iluminismo
retomará a concepção de Vasari para expandi-la.
Sinteticamente falando, para os iluministas, o
Renascimento é o período de um humanismo
inabalável e de um racionalismo civilizatório, no
qual há uma ruptura heroica e definitiva para
com o irracionalismo medieval.
As definições elaboradas durante o século das Luzes,
entretanto, por mais ricas que se mostrem no revelar o
espírito do século XVIII, muito pouco nos dizem
acerca do próprio Renascimento. O discurso
iluminista falseia a Renascença por projetar no
período os valores mais caros ao século XVIII, na
tentativa de justificar o seu próprio tempo:
Voltaire e d’Alembert, de fato, propõem o
Renascimento como fonte geral da idade moderna:
é a primeira fase de um processo cultural, também e
sobretudo filosófico e científico, que leva
diretamente ao século das Luzes, sobretudo pelos
seus aspectos de cosmopolitismo e racionalismo.
Esta redução da ruptura entre os séculos XIII e XIV
a um período de racionalismo inabalável, só é
possível diante do sacrifício deliberado de toda uma
tradição hermética e ocultista particular ao
pensamento da época. Ao fazer do Renascimento
mero jogo de sombra e luz que prenunciaria o
despontar glorioso da Razão no século XVIII, o
Iluminismo planifica, de modo empobrecedor,
quatro séculos de tensão criativa.
Apesar de duramente questionada pelo Romantismo
que se recusou a ver o Medievo como época de
retrocessos e estagnações, a concepção iluminista,
vislumbrando no Renascimento a origem da
Modernidade, influenciará Michelet e, de certa
forma, Burckhardt.
Michelet, a quem se atribui a criação do termo
“Renaissance”, é o responsável pela fetichização
acadêmica do período. Após a publicação do décimo
segundo volume de sua monumental “Histoire de
France” a historiografia experimentará uma profusão
de estudos sobre o período.
A importância de Michelet não está apenas na proposta
do termo mesmo de Renascimento [...] que pela primeira
vez aparece no título de uma obra histórica, mas
sobretudo, no empreendimento de sua reconstrução, que
supera definitivamente a antiga perimetração do
Renascimento como humanística “instauratio
studiorum” em favor de uma interpretação global de
longa duração – e sua escala europeia, que assume no seu
quadro de referências igualmente a Reforma religiosa e o
experimentalismo científico, para constituir-se como
uma fase de formação da modernidade.
O Renascimento, em Michelet, harmoniza-se com a
Reforma (XV-XVI) e a Revolução Científica (XVI-
XVIII) para compor um movimento único de
fundação da Modernidade. É por isso que o autor não
encontra dificuldades em colocar lado a lado
personagens tão díspares quanto Lutero e Rabelais
em prol de uma organicidade superior:
Lutero e Calvino, não obstante, viram-se
irmãos de Rabelais e Copérnico, dois ramos de
uma mesma árvore. Do mesmo tronco floresce
a Reforma e a Renascença, avós das liberdades
modernas. Aqui se encontra a unidade
moderna do século XVI.
Apropriando-se do discurso do Iluminismo e
exaltando o já suposto vínculo entre este e o
Renascimento, Burckhardt publica em 1860 “A
cultura do Renascimento na Itália”. A obra interessa-
nos particularmente, pois, tendo conhecido um rápido
sucesso, influenciou não só as interpretações e
investigações acadêmicas posteriores, como
contribuiu para a construção da imagem do
Renascimento no imaginário popular.
Em Burckhardt, o mito do renascimento encontra,
portanto, sua sistematização final: a descoberta da
natureza, a valorização da componente
individualística do homem, a perturbação do
dogmatismo religioso, o advento de um novo cânone
de beleza fundado na recuperação do classicismo, vão
formar um único desenho articulado, na base do qual
se reconhece a necessidade de individualizar os
motivos fundadores da Idade Moderna, ainda em
contraposição ao Medievo.
O estilo ensaístico e quase literário da obra
contribuiu para sua rápida difusão. Logo na
introdução o autor afirma ser a “civilização” do
Renascimento, “mãe imediata da nossa”:
“Os contornos espirituais de toda uma época
cultural dão caso para cada visão individual uma
imagem distinta, e muito mais isto há de
acontecer e hão de mesclar-se o juízo e o
sentimento subjetivos, tanto no leitor quanto no
historiador, tratando-se de uma civilização que,
como mãe imediata da nossa, faz ainda sentir seu
influxo”
Esta afirmação, a despeito de sua beleza, contém
em si a peculiaridade que arruinará seu estudo, é
que o autor confia cegamente nos testemunhos da
época, trabalhando as fontes de modo acrítico e
admitindo os discursos do passado como
portadores de uma verdade inerente que deveria,
apenas, ser desvelada pelo historiador.
Além disso, observa-se uma acentuada atenção
concedida à Florença, em detrimento das demais
cidades toscanas e em detrimento de regiões
inteiras da Itália embrionária, o que leva o autor a
projetar, involuntariamente, aspectos particulares
da história florentina sobre a Toscana e sobre a
Itália, o que resulta, por óbvio, em uma
generalização excessiva, em detrimento das
particularidades regionais.
A despeito da ausência de rigor no tratamento das
fontes, toda controvérsia posterior, acerca da oposição
entre Renascimento e Medievo, discutirá, direta ou
indiretamente, o trabalho de Burckhard. A fratura
radical entre as duas épocas identificada pelo autor
será o elemento polarizador das discussões futuras, de
modo que,
para contestar que o Humanismo tivesse
inaugurado uma idade nova, muitos estudiosos se
empenharam em documentar todos os elementos
de continuidade entre Idade Média e
Renascimento, para fazer retroceder ao ano mil o
nascimento do mundo moderno, que não se
considera, absolutamente, Renascimento.
Apesar da censura feita ao trabalho de Burckhardt –
demasiado negligente em relação à crítica das fontes
–, é preciso notar o esforço do autor em redigir uma
história interdisciplinar na qual a cultura é
compreendida como a conjugação entre política
(Estado) e arte. Tal interdisciplinaridade,
infelizmente, é raramente encontrada nas pesquisas
em história do período.
O HUMANISMO
Como se vê, não podemos falar no Renascimento
como se falássemos de um período uniforme. Há, no
entanto, uma questão que, se não é exatamente
comum a todo o período, perpassa a criação dos
primeiros renascentistas e se mantém na mente dos
mestres da Alta Renascença. Referimo-nos ao
movimento chamado de Humanismo.
O termo Humanismo liga-se à expressão litterae
humanae (literatura humana) em oposição a literae
divinae (literatura divina: bíblia, teologia). Humanistas
se diziam, já nos séculos XIV e XV, os cultores de
gramática, retórica, poesia, história e filosofia moral;
os cultores, portanto, das humanidades, pois essas
disciplinas se julgavam as mais aptas a formar o ser
humano. Os autores gregos e latinos, a partir da
segunda metade do século XIV, passaram a ser olhados
como modelos insuperáveis em literatura e mestres
exímios de humanidade.
O movimento foi, pois, nos inícios, essencialmente
literário e se casou perfeitamente com todo o afã de
renovação cultural que tomou conta da Itália e, depois,
de outros países europeus, caracterizando-se por uma
enfatização dos valores humanos, frente à mentalidade
medieval, centrada em valores religiosos (divinos). O
termo humanismo, contudo, não existiu na época. Foi
forjado no século XIX para indicar formação clássica em
oposição à científica. Passou, depois, a aplicar-se ao
movimento dos séculos XV e XVI.
Humanismo
e
Renascimento
A evolução do Renascimento coincidiu com o
desenvolvimento do Humanismo que estudava e
traduzia textos filosóficos da Antiguidade clássica.
Na Florença do século XV, viveram os filósofos
mais conhecidos e importantes do Renascimento,
entre eles Marsílio Ficino e Pico Della Mirandola: o
primeiro, responsável pela academia neoplatônica,
onde traduz e divulga as obras de Platão;
o segundo, autor do texto conhecido como manifesto
humanista, a De hominis dignitate oratio, ou Discurso
sobre a dignidade do homem. Ambos os filósofos
desfrutavam da amizade da família Médici, os
verdadeiros governadores de Florença, e conviviam com
Lippi, Botticelli e outros.
Vejamos então, resumidamente, em que consiste essa
filosofia. Na Oratio, de Pico Della Mirandola (2001, p.
53), encontramos afirmações do tipo:
Nada é grande na terra, a não ser o homem. Nada é
grande no homem, a não ser a mente e a alma. [...]
A ti, ó Adão, não te temos dado nem uma sede
determinada, nem um aspecto peculiar [...] Eu te
coloquei no centro do mundo, a fim de poderes
inspecionar, daí, de todos os lados, da maneira mais
cômoda, tudo que existe.
Não te fizemos nem celeste, nem terreno, mortal ou
imortal, de modo que assim, tu, por ti mesmo, qual
modelador e escultor da própria imagem, segundo
tua preferência e, por conseguinte, para tua glória,
possas retratar a forma que gostarias de ostentar.
Poderás descer ao nível dos seres embrutecidos;
poderás, ao invés, por livre escolha de tua alma,
subir aos patamares superiores que são divinos.
Como se vê, segundo o autor, o homem tem, por
meio de seu livre-arbítrio, a liberdade de escolher
seu verdadeiro destino. De raiz platônica, a filosofia
do autor nos informa que, por meio do
conhecimento, do estudo e da filosofia, o homem
pode conhecer a divindade na Terra.
Em seu dicionário de Filosofia, N. Abagnano definiu
em três pontos a filosofia humanista:
1. Reconhecimento do valor humano, o que
significava ser necessária a educação do homem. As
artes não tinham valor de fim, mas sim valor de meio,
para a formação de uma mente realmente humana,
aberta em todas as direções, por meio da consciência
histórico-crítica da tradição cultural;
2. Reconhecimento da totalidade do homem, como ser
constituído de alma e corpo. Nega-se, assim, a
superioridade da vida contemplativa sobre a vida
ativa. Exalta-se a liberdade e a dignidade do homem,
reconhecendo seu lugar central na natureza e seu
destino de dominador dessa;
3. Reconhecimento da historicidade do homem, ou
seja, da ligação do homem com seu passado. O
humanista se investirá da tarefa de descobrir a
verdadeira face da Antiguidade clássica.
AS REVOLUÇÕES RELIGIOSAS

O comprometimento do clero cristão com a ordem


sócio-política medieval, a par das vantagens de poder
que trouxe para a Igreja, foi responsável por uma série
de desgastes morais. Enfraqueceu-se, sobremaneira, o
específico da função da Igreja: sua pregação, sua
vivência e sua disciplina religiosas.
É por isso que, desde o século XIII, senão antes,
freqüentes vozes se levantaram em prol de
reformas, exigidas cada vez mais com insistência e
com mais radicalidade. Bastaria recordar, aqui,
João Wiclif (1320-1384) e João Huss (1368-1415),
na Inglaterra e na Boêmia, respectivamente, mas foi
na Alemanha que a revolução explodiu, com êxito,
na voz de Martinho Lutero (1483-1546).
Em 1517, afixou ele, na porta da catedral de
Wittemberg, suas teses contestadoras. Era o estopim
para a explosão que acabou com a unidade religiosa da
Europa. Em pouco tempo, várias eram as confissões
cristãs, que divergiam e, até, lutavam entre si.
CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS DO
HUMANISMO

Os séculos do humanismo renascentista se


caracterizaram por uma espécie de curiosidade
quase infantil; por uma sensação de ruptura de
horizontes, que eram sentidos como limitadores;
por um esforço em abrir caminhos novos, variados
e, numa perspectiva à distância, julgados
contraditórios.
As direções por onde se ensaiavam novas
perspectivas culturais foram, pois, diversificadas:
ressurgiram as várias escolas filosóficas gregas;
mistérios e teosofia tiveram sua vez; nova imagem
do homem e da sociedade se impôs; fez-se profissão
de ignorância e de dúvida; esforçou-se por renovar a
escolástica.
As revoluções religiosas

O comprometimento do clero cristão com a ordem


sócio-política medieval, a par das vantagens de poder
que trouxe para a Igreja, foi responsável por uma série
de desgastes morais. Enfraqueceu-se, sobremaneira, o
específico da função da Igreja: sua pregação, sua
vivência e sua disciplina religiosas. É por isso que,
desde o século XIII, senão antes, freqüentes vozes se
levantaram em prol de reformas, exigidas cada vez mais
com insistência e com mais radicalidade.
Bastaria recordar, aqui, João Wiclif (1320-1384) e João
Huss (1368-1415), na Inglaterra e na Boêmia,
respectivamente, mas foi na Alemanha que a revolução
explodiu, com êxito, na voz de Martinho Lutero (1483-
1546). Em 1517, afixou ele, na porta da catedral de
Wittemberg, suas teses contestadoras. Era o estopim
para a explosão que acabou com a unidade religiosa da
Europa. Em pouco tempo, várias eram as confissões
cristãs, que divergiam e, até, lutavam entre si.
Em busca da Fama

“O homem é o modelo do mundo”. A frase é de


Leonardo da Vinci, que é quase o sinônimo de
Renascimento e de suas realizações. A valorização
do indivíduo manifesta-se na busca da fama, uma
noção antiga e diametralmente oposta ao ideal
medieval do homem anônimo que, despojando-se
das vaidades pessoais, coloca-se a serviço de Deus
Na escultura ou na arquitetura do Renascimento,
muitas das obras servem para exaltar a fama
conquistada pelas personalidades. Na literatura,
prolifera o gênero biográfico e autobiográfico,
enquanto na pintura, florescem o retrato e o auto-
retrato, com a identificação das pessoas
representadas. O hábito de os artistas assinarem a
sua obra também surge no Renascimento.
O artista, de certo modo, encarna o próprio ideal de
homem que o Renascimento descobre. Desprezado
desde a Antiguidade como executores do trabalho
braçal – atividade própria dos escravos e das camadas
inferiorizadas –, o artista, no Renascimento, torna-se
o modelo da capacidade inventiva do homem de
iniciativa.
Audacioso, não se conformando com as
circunstâncias em que se vê submetido, ele é aquele
que forja o próprio mundo. Nessa medida, a sua
figura equivale à do homem de virtú, ativo, criativo
e empreendedor, e contrapõe-se à dos
“especuladores” escolásticos, que, aos olhos do
Renascimento, pensam mas nada fazem.
Mais do que isso, o mundo que o artista cria
ultrapassa a condição mortal e efêmera do seu
criador: como obra, a sua produção tende à
eternidade. Não é à toa que os artistas
renascentistas tenham preferido materiais – como o
óleo, na pintura, e o mármore, na escultura –
menos corrosíveis à ação do tempo e, portanto,
mais propícios à fama.
Mas o artista não se limita ao seu ofício que o
caracteriza: se fosse um mero “fazedor de arte”,
seria apenas artesão, isto é, trabalhador braçal, que
continua desprezado. Ele é, antes de ser executor
de uma obra, o seu idealizador.
Isto significa que deve dominar, além das técnicas
próprias ao seu ofício, todo o conjunto de
conhecimentos; deve por isso procurar ser um
homem universal, que tudo sabe e que tudo faz. Da
Vinci é mais uma vez o exemplo dessa ideal, a
respeito de quem se dizia não sem um certo exagero:
“nunca tinha havido no mundo um homem tão sábio,
não apenas em escultura, pintura e arquitetura, mas,
principalmente, como grande filósofo”.
A INVENÇÃO DA ANTIGUIDADE

Associado a toda essa nova imagem do homem, o


humanismo apresenta um outro significado, de
caráter mais técnico: o estudo das “humanidades”.
Studia humanitatis, na tradição que remonta a
Cícero, indicam os estudos de valores considerados
como essencialmente humanos – a “humanidade”,
no sentido adotado pelo pensamento helenístico.
Nessa medida, referem-se à história, à poesia, à
retórica, à gramática e à filosofia moral, que no ensino
escolástico, eram relegadas ao segundo plano. O
próprio termo “renascimento” aplica-se inicialmente a
essa revalorização daquilo que o classicismo grego e
romano havia exaltado. O grande promotor desse
humanismo no sentido técnico é Francesco Petrarca
(1304-1374), responsável pela criação da noção de
“tempos obscuros” para caracterizar a Idade Média,
que, a seu ver, era sinônimo de mundo bárbaro.
Trata-se então de retornar ao brilho da civilização
antiga, a começar pela purificação da língua – o
latim –, tão corrompida por influência de idiomas
bárbaros. O mesmo propósito é buscado em relação
ao grego e ao hebraico, que, somados ao latim,
formam o ideal de homo trilinguis, o homem
trilíngue ou poliglota.
O humanismo, no sentido técnico, é então basicamente
a gramática e a filologia de línguas antigas, para depois
imitar a literatura e as artes da Antiguidade. Isto, porém,
não significa que o humanismo tenha sido fiel a esse
programa. O próprio latim de Petrarca não é o de Cícero
ou o de Virgílio; muitos eruditos atribuem à
Antiguidade vários escritos que se revelariam ser de
épocas mais recentes; o que o humanista faz é, na
realidade, idealizar uma Antiguidade, inventá-la,
criando, num certo sentido, o modelo que depois trataria
de imitar, principalmente quanto à forma e ao estilo.
Por isso, os humanistas são menos atenciosos para o
que dizem os textos antigos do que para o modo
como dizem. A polêmica suscitada em torno de uma
nova tradução de Ética a Nicômano, de Aristóteles, é
esclarecedora. Publicada pelo chanceler de Florença,
Leonardo Bruni (1370-1444), essa tradução logo foi
criticada pelo cardeal Alonso Garcia, professor da
Universidade de Salamanca:
para ele, o antigo tradutor “não se limitou a traduzir
os livros de Aristóteles do grego para o latim, mas
interpretou-o com tanto rigor quanto possível e não
lhe teriam faltado a maior elegância ou os mais belos
ornamentos se tivesse querido utilizá-los. (...) Mas o
antigo intérprete, que se preocupou sobretudo com a
verdade filosófica, não quis ornamentos excessivos a
fim de evitar os erros em que este [novo tradutor]
caiu”.
Por trás dessa aparente divergência técnica sobre uma
tradução, há um fosso que separa o mundo medieval
do renascentista, e que se manifesta em concepções
conflitantes a respeito da educação, a começar pelo
local de ensino: se a escolástica tinha como sede a
universidade, o núcleo das humanidades são os
colégios.
Destinados inicialmente a fornecer uma instrução
preparatória – exatamente as humanidades – a
jovens carentes, os colégios, que proliferam no
final da Idade Média, passam a atrair cada vez
mais estudantes de famílias ricas. A estes não
interessava um conhecimento especializado, como
o que as universidades fornecem.
O que se requer é a aquisição de um estilo: saber
conversar, ser cortês, polido e elegante, ter bons
modos e, claro, apresentar uma boa formação
cultural – requisitos indispensáveis para que o
jovem seja admitido na corte de ricas e poderosas
famílias. Um dos manuais mais adotados nesse
ensino é de Baldassare Castiglione e chama-se O
Cortesão.
Tal ensino, aparentemente fútil e frívolo,
corresponde aos anseios da burguesia que, uma
vez consolidado o seu domínio econômico, quer
ser admitida nos círculos aristocráticos, mesmo
que seja mediante a compra de títulos de
nobreza.
Por isso, opõe-se às universidades, cujo
“pedantismo” e “intelectualismo”, destinados a
formar teólogos e outros especialistas, de nada
servem a esse desejo de promoção social. “Nem
todos são chamados a ser legistas, físicos ou filósofos
(...). (...) Mas todos, tais como somos, fomos criados
para viver em sociedade e para os deveres que esta
vida implica” – escreve no século XV o educador
humanista Vittorino da Feltre.
Promover o homem como modelo do mundo é, por
tudo isso, a promoção desse novo homem, burguês,
que busca moldar o mundo à sua imagem e
semelhança, como um empreendimento seu. Mas
isso é também uma experiência dolorosa.
O homem renascentista, que descobre a sua
individualidade frente à ordem do mundo, não se
conforta mais com a certeza medieval de uma vida
que tenha o princípio e o fim em Deus. O
humanista continua a acreditar em Deus, mas Ele
parece cada vez mais indiferente ao mundo: o
homem está só.
Orgulhoso de si, mas abandonado à sua própria sorte,
esse homem procura então reatar a ordem do mundo.
Para isso, retoma as noções antigas de macrocosmos e
de microcosmos, que serviam para relacionar o
homem ao mundo. Na Idade Média, o homem era
concebido como um pequeno mundo (microcosmos)
que, como criatura de Deus, espelhava em si toda a
Criação feita como macrocosmos, sendo a astrologia,
embora condenada pela Igreja, um instrumento para
desvendar esse jogo de espelhos.
No Renascimento, com o afrouxamento das
restrições da Igreja, a astrologia conhece larga
difusão, ainda mais porque o humanismo absorve
elementos pagãos que identificam os astros às
divindades. Acredita-se que cada parte do mundo e
do homem seja governada por um astro-deus, e nada
se faz sem antes consultar a posição dos corpos
celestes.
Mas, por outro lado, se um homem é bem-sucedido,
é porque agiu num momento de conjunção propícia
dos astros. Isto significa que o homem pode se
aproveitar das influências astrais: numa ocasião
favorável ele pode convocar para si as forças da
natureza, valendo-se da magia.
Nessa medida, a astrologia e a magia tornam-se uma
espécie de álibi da liberdade humana. Elas
representam esse momento em que o homem,
tornando-se senhor do mundo e de seu destino, ainda
se sente inseguro de sua própria liberdade. O
pensamento renascentista irá nutrir-se dessa condição
ambígua do homem.

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