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O ABC DE ZECA DIABO: UMA PROPOSTA DE

ABORDAGEM DA VIOLÊNCIA NO BRASIL EM


SALA DE AULA POR MEIO DA NOVELA “O BEM
AMADO” (1973)

Prof. Thales Biguinatti Carias – Relatório de


atividade produzido como material avaliativo
para o curso de extensão Ensinar história entre o
pensar e o fazer: práticas, linguagens e culturas
(UFFS/Arquivo histórico de Erechim-RS).
Escola Estadual Governador Júlio
Strubing Muller – bairro Cristo Rei,
Várzea Grande-MT.
Instituição escolar que oferta apenas a
modalidade do ensino médio nos 3 turnos
Apresentação de funcionamento.
da instituição: Projeto desenvolvido com alunos de
segundos anos.

Atividades desenvolvidas com os alunos


entre outubro de novembro de 2021.
Tema em voga no bimestre: - Colonização do Brasil.

Problema de fundo: Sob quais aspectos o processo de colonização do


Brasil constituiu nossa identidade cultural e nacional? Como pensar a
colonização como motriz de uma nacionalidade e quais problemas
sociais podem ser abordados a partir dessa leitura?
Discussão anterior: O bandeirantismo e a empresa colonial como

Introdução: formadoras da cultura caipira paulista – inspirados pela obra “Os


Parceiros do Rio Bonito”, de Antonio Candido.

Discussão vigente no momento de aplicação: A cultura sertaneja como


subsidiária da colonização no nordeste – inspirados pela obra “O Povo
Brasileiro”, de Darcy Ribeiro.

Proposta do projeto: Da discussão da cultura sertaneja e de suas


manifestações, buscamos pautar o tema da violência no Brasil. Esse tema
foi mote para abordarmos a personagem de Zeca Diabo, na novela “O
Bem Amado”, de Dias Gomes.
Novela de Dias Gomes.

Adaptação de texto teatral homônimo, de autoria


do mesmo.
O Bem
Amado: Vai ao ar no ano de 1973, pela Rede Globo
(Primeira novela brasileira a cores).

Para o nosso projeto, o foco se deu na relação das


personagens Zeca Diabo (Lima Duarte) e
Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo).
■ Dia 13 de outubro de 2021: 1º dia de apresentação da novela (Episódio
55, quando Zeca Diabo chega na cidade e é apresentado ao público).
■ Dia 20 de outubro de 2021: 2º dia de apresentação da novela (pausa na
Dinâmica de trama para assistirmos a uma entrevista de Lima Duarte em que expunha as
soluções pensadas por ele para executar o papel de um cangaceiro que não

aplicação:
mata – entrevista dada ao Fantástico no ano de 2012 como parte do quadro
“O que vi da vida”).
■ Dia 27 de outubro de 2021: 3º dia de apresentação da novela (Episódio
114, quando Odorico monta um cerco policial a Zeca Diabo que tem voz de
prisão decretada, mas se põe a reagir)
■ Dia 29 de outubro de 2021: 4º dia de apresentação da novela (Episódios
115 e 116, quando, depois de muita resistência, Zeca Diabo é finalmente
preso).
■ Dias 03 e 05 de novembro de 2021: Aulas expositivas com base na
tentativa de construir uma relação entre o tema da violência na novela e o
projeto de colonização que se desdobra na cultura sertaneja.
■ Dias 10, 12 e 17 de novembro de 2021: Leitura coletiva do texto “O
Brasil Sertanejo”, capítulo do livro “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro.
■ Dias 24 e 26 de novembro de 2021: Produção de redação com base nas
discussões abordadas.
A personagem de Zeca Diado: Um cangaceiro que não mata
■ Lima Duarte, em entrevista, conta como foi a concepção artística de uma personagem
com essa peculiaridade:
■ Terno de matador; Chapéu de matador; Bigode e olhar de matador. Cheguei no bar, a
minha primeira fala era: “me dá uma cachacinha, por favor”. Cheguei lá e disse
assim: “me dá uma cachacinha, por favor” (fazendo com a voz fina e estridente). O
espectador falava: “O que é isso? É viado? Ué, mas o que é isso? Fala fino?” Daí, o
povo pega o fio da meada e desfia... É viado? Não é homem? Tem a voz fina? Não é
um matador. É uma vítima de uma estrutura social viciada.
■ Temas geradores: Violência, masculinidade e mazelas sociais.
■ Ponto de partida: Como pensar essa personagem de Lima Duarte numa perspectiva
histórica tendo em vista que se trata de um cangaceiro numa novela da década de
1970? Quais os temas mobilizados no presente da novela que nos tocam no nosso
presente? Como a novela constrói uma imagem do passado para discutir os
problemas de seu tempo?
A relação Odorico X Zeca Diabo e a onipotência das elites econômicas:

■ Modelo de colonização do Brasil: latifúndio agrário/exportador.

■ Necessidade de grandes capitais e muita mão de obra. Sociedade marcada


por profunda desigualdade e pela marca perseverante da escravidão.

■ Nessa realidade, o poder público está subordinado ao poder privado. A


vontade de quem detém o poder econômico passa a ser o parâmetro da vida
pública.

■ Concentração de terras e de poder (O coronelismo e o cangaço como marcas


de uma disputa histórica).
Os trabalhadores e a “cidadania em negativo”:

■ Colonização sem perspectiva de construção de cidadania (José Murilo de Carvalho).


■ A concentração de terras e de poder criou um quadro social de extrema miséria para o
trabalhador (seja o escravo ou o livre).
■ Sem muitas opções, algumas manifestações culturais brasileiras lidaram com essa
falta de perspectiva (o caipira isolado, o sertanejo resignado, mas criativo e fervoroso;
o cangaceiro, rebelde e bandido).
■ A violência é um elemento resultante da falta de perspectiva cidadã da sociedade
colonial.
■ Na novela, Zeca Diabo é uma personagem que busca se regenerar, mas que não tem
uma oportunidade concreta para isso. A violência se apresenta para ele como
resultado de um processo social. Está muito além da individualidade da personagem.
Como trazer a novela para o debate histórico em sala de aula?

■ Zeca Diabo e Odorico Paraguaçu representam a persistência de um passado


colonialista.

■ Prova disso é o momento em que Zeca Diabo questiona a orientação que


chega pelas ondas de rádio: “Depois o rádio diz que é pra gente se
alfabetizar. Mas me diz, como?”

■ Odorico Paraguaçu, nesse caso, é responsável direto pela impossibilidade de


Zeca Diabo se alfabetizar. A realidade de negação da cidadania gestada na
colonização permanece viva por meio de Odorico. E isso acontece tanto na
ficção como na vida.
Referencial teórico:
■ A novela como produto cultural capaz de mobilizar debates públicos:

■ A novela é uma obra audiovisual que resulta de um multiálogo e faz a


mediação da relação entre produtores e receptores, incorporando uma
gama de significados possíveis, nem sempre intencionais.
Telespectadores podem compreender certos produtos de diferentes
maneiras. Profissionais especializados em comentar televisão na própria
tevê, no rádio, ou na mídia impressa, figurinistas, músicos que compõem
trilhas sonoras, fás, pesquisadores de mercado e outros profissionais
podem ser considerados “mediadores” nesse processo de produção de
significados”. (HAMBURGER, 2005, p. 20)
■ A pluralidade semiótica da novela como instrumento profícuo para a abordagem de
“Temas sensíveis”:
■ O aspecto ético se refere, justamente, aos efeitos esperados do ensino, na medida em
que o ato de ensinar faz um recorte no passado, e este se dá em função das demandas
do presente (Jenkins, 2001). Os objetivos de docência estão implicados num processo
de representação que tem efeitos no modo como as novas gerações olharão para si
mesmas, para o seu mundo e para os outros. O caráter ético do ensino de história está
justamente no processo de construção de si mesmo como sujeito de um olhar, como
subjetividade marcada por se permitir realizar uma determinada interpretação do
passado e, ao mesmo tempo, do seu lugar no presente. Estudar os passados sensíveis
não significa apresentar ao aluno um conteúdo disciplinado e frio (White, 1995), mas
colocá-lo diante de algo que desperta indignação frente à injustiça e a violação dos
direitos humanos. A escrita da história sobre esses passados e seu ensino não são
atitudes desinteressadas, mas voltadas ao futuro – um futuro de tolerância, de
reconciliação com a justiça e com os direitos. (PEREIRA; SEFFNER, 2018, p. 17)
Expectativas antes da execução:
■ Receptividade dos alunos – Novela em sala de aula é algo legítimo? Como lidar
com um certo senso comum dos alunos a respeito de produções audiovisuais em
sala de aula? Uma novela da década de 1970 teria capacidade de despertar a
curiosidade e atenção dos alunos?

■ Execução do projeto – Como pensar numa produção tão extensa quanto uma
novela sendo passada em sala de aula? Quais os recortes possíveis? Quanto tempo
de aula seria admissível ser gasto apenas assistindo a novela?

■ Construção do debate – Pensar em “O Bem Amado” como obra de referência da


cultura nacional. Mostrar aos alunos obras audiovisuais que fujam do padrão com o
qual eles estão acostumados, geralmente associados aos streamings. Destacar a
capacidade de construção de nacionalidades a partir da telenovela e como tais
nacionalidades também nos tocam como indivíduos.
Impressões pós execução:

■ O tema da violência como gerador de debate (“a novela tá falando de briga


de gangues, professor?”). A inteligibilidade por meio da experiência.

■ A dramaticidade como forma de empatia por Zeca Diabo.

■ A discussão sobre cidadania e a construção da ideia da colonização


enquanto obstáculo permanente ao exercício pleno dos direitos.

■ A narrativa televisiva como construtora de historicidades em sala de aula e a


proposta de redação como apelo à capacidade de síntese e de imaginação
histórica dos alunos.
Resultados finais:
■ Algumas redações e as discussões que podemos delas levantar:
■ A novela “O Bem Amado” nos apresenta uma relação manipuladora de Odorico
Paraguaçu sobre o cangaceiro Zeca Diabo, relação a qual reflete o modelo de
colonização do Brasil. É evidente que Zeca não é naturalmente mau, é apenas uma
vítima que foi “obrigada” a ser inserido no cangaço pela estrutura social dali. Na
sociedade colonial brasileira, os engenhos nordestinos construíram uma cultura
subsidiária pobre e dependente diretamente ligada à atividade pastoril, o sertanejo.
Em meio desse povo havia a importante figura do coronél, um fazendeiro que, por
deter um elevado poder de fogo e da principal atividade econômica, o gado, se via na
condição de estar acima da lei. Podia-se dizer que os direitos acabavam nas porteiras
das grandes fazendas. Então as opções de seus subordinados eram ou aguentar a
autoridade do coronel ou se revoltarem e iniciarem uma vida no cangaço.As atitudes
de Odorico Paraguaçu como figura máxima de poder da cidade, mesmo que não fosse
deliberadamente um coronel, mostram como a marginalização do Zeca Diabo foi
apenas um meio necessário para atingir seus objetivos mesquinhos. (Ana Luísa – 2E)
■ A violência na novela: "O bem amado" é extremamente explícita, o
ambiente onde o personagem Zeca diabo vive é sempre bem
agressivo cheio de confrontos entre os rivais. Vendo a vida deste
personagem percebemos o como a morte se torna frequente, ter
sangue em suas mãos é algo rotineiro até quando o cangaceiro
desiste e se arrepende de seu passado tomado por óbitos, todos se
viram contra ele e uma tremenda troca de tiros se inicia. Podemos
identificar que na novela a violência se apresenta descontrolada e
exagerada, ela acontece por vingança ou brigas. Ter armas em casa é
acessível e tê-la realmente pode ser essencial para se defender de
ladrões, uma situação sem quase nenhum controle. (Andréia – 2º C)
■ A VIOLÊNCIA DA POLÍTICA BRASILEIRA
■ A violência sempre esteve presente em grande parte das nossas vidas. Tanto verbal como física, a
cada dia que se passa as pessoas estão ficando mais violentas, fazendo coisas para se auto
promover e realizar seus gostos e vontades que satisfaça seu ego. Na novela Bem Amado vemos
claramente um exemplo disso, onde o prefeito da cidade retratada na novela Odorico, faz de tudo
para que Zeca diabo(antes uma pessoa considerada como margem da sociedade da época) não
conseguisse se regenerar, ou seja, voltar a vida de cidadão de bem. É triste a realidade que
acontece no Brasil desde os primórdios. Os governantes sempre pensam em si próprio, nos
parceiros da política e alguns dos seus familiares enquanto sociedade, os cidadões que compõe a
maior parte da população brasileira, vive à mercê da alta corte, com péssimas qualidades de vida;
quando digo isso generalizo para a área da saúde, área educacional etc. Um exemplo de
violência envolvendo a "adorada política" bem recente, foi o ataque contra a senadora Simone
Tebet(MDB-MS) onde o ambiente é inteiramente dominado por homens, tudo pelo único fato
dela ser uma mulher dentro desse local. A partir desse exemplo citado, já dá para entender que a
violência não só ocorre com os meros cidadões; mas também com mulheres e homens que
discorda da opinião que satisfaça uma pequena minoria, como na época dos grandes fazendeiros
e senhores de engenho. Espero que algum dia, isso tudo melhore, coisa difícil de acontecer;
mas lutar para que as minhas esperanças não acabe se esvaindo com o tempo, para que assim
tenhamos uma "vida melhor". (Bernardo – 2º B)
(HENRIQUE
– 2E)
Considerações finais:
■ Novela como produto cultural mobilizador de temas sensíveis (mesmo uma novela
tão recuada no tempo foi capaz de mobilizar e gerar reflexões pertinentes).

■ Capacidade do professor em construir hipóteses de trabalho a partir de temas.

■ Atenção para a percepção dos alunos sobre os temas por meio das redações.

■ Estímulo à leitura e à fruição artística em sala de aula como motes para a aula de
história.

■ Abordagem histórica das relações de poder como forma de compreender fenômenos


do presente.

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