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Elisângela Santos de Sá
Ribeirópolis – SE
Maio/2004
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Elisângela Santos de Sá
Monografia apresentada ao
curso de Especialização em
Língua, lingüística e
Literatura, como requisito
para a sua conclusão.
Ribeirópolis – SE
Maio/2004
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Sumário
Página
1. Introdução................................................................................................... 06
2. A origem do cordel..................................................................................... 07
3. Cordel no Brasil, no Nordeste e em Sergipe............................................... 09
4. João Firmino Cabral e a Literatura de Cordel ........................................... 11
5. Características do Cordel ............................................................................ 13
6. Os contos de encantamento em prosa e verso............................................. 14
7. O fantástico.................................................................................................. 18
8. O Maravilhoso............................................................................................. 25
9.Conclusão..................................................................................................... 34
Anexos............................................................................................................ 37
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Resumo
O Monstro sem Alma é um dos 50 folhetos escritos pelo poeta popular sergipano João
Firmino Cabral. Esse tipo de manifestação cultural é também chamada de Literatura de
Cordel, por serem expostos à venda, pendurados em cordel ou barbante, em feiras, mercados e
praças.
Essa poesia popular, narrativa, impressa provém de Portugal e fincou-se,
marcadamente, no Nordeste, com temáticas diversas. Dentre elas, podemos destacar os
cordéis de encantamento, em que são possíveis encontrar o Maravilhoso e o Fantástico. O
Monstro sem Alma insere-se nessa classificação, por apresentar em seu enredo, um herói, que
habita em tempo imemorial, em reinos distantes, com o desafio de enfrentar um monstro
invencível e poderoso, para resgatar princesas encantadas.
No cordel de encantamento O Monstro sem Alma, foram enfocados o Maravilhoso e o
Fantástico, com exemplos do próprio folheto. O primeiro, por compreender a interferência de
seres sobrenaturais na narrativa, como o monstro sem alma e os príncipes, cunhados do herói
Gilmar, que pelo dia são animais e pela noite, humanos; e o segundo, por referir-se ao que é
criado pela imaginação, o que não existe na realidade, como a alma do mostro que se encontra
no fundo do mar, dentro de uma pedra, trancada com sete chaves. Dentro dela há outra pedra
menor, com uma caixa dentro da outra, onde há uma vela acesa num ovo no interior de uma
pomba. As forças do monstro estão nessa vela acesa que o herói precisa apagá-la para vencer
o temível ser.
O folheto do cordelista João Firmino mantém vivo o imaginário popular, a nossa
cultura, pois a narrativa, foi ouvida pelo poeta, com algumas modificações, quando ele ainda
era menino.
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1. Introdução
A Literatura de Cordel é assim chamada pela forma como são vendidos os folhetos
dependurados em cordões, nas feiras, mercados e praças, principalmente das cidades do
interior. Mais do que uma espécie de poema, o cordel representa a cultura de um povo, seus
costumes, ritmos e gostos. O poeta é o representante popular, o repórter dos acontecimentos
da vida no Nordeste do Brasil. Com raízes lusitanas, esse tipo de manifestação artística se
mantém viva em Sergipe, graças ao poeta João Firmino Cabral.
O capítulo 2 falará, com mais detalhes, da origem do cordel, o terceiro, sobre essa
literatura popular no Brasil, no Nordeste e em Sergipe. O quarto abordará a contribuição de
João Firmino como divulgador e autor de cordéis. São mais de 45 anos dedicados a essa
poesia narrativa, popular, impressa, contabilizando, mais de 50 cordéis produzidos e mais de
12 milhões de exemplares vendidos, entre os seus e de outros cordelistas, deste e de outros
estados.
O capítulo 5 trará as características principais do Cordel. A questão do Fantástico e do
Maravilhoso começa a ser introduzido a partir do capítulo 6 – Os contos de encantamento em
prosa e verso, em que é possível fazer relações pertinentes entre uma versão em prosa e outra
em verso, com o mesmo monstro que dá título ao cordel O Monstro sem alma.
Em prosa, foi coletada pelo pesquisador, crítico e ensaísta Silvio Romero, numa
versão de Sergipe. Em forma de poema, foi elaborada pelo poeta João Firmino Cabral.
Por se tratar de um romance de cordel de encantamento, será enfocado em O Monstro
sem Alma, o Maravilhoso e o Fantástico, que engloba as histórias baseadas em contos de
fadas, as quais, quase sempre, apresentam um herói, que vive em um tempo imemorial, em
reinos distantes, onde terá que vencer desafios extraordinários para resgatar princesas
encantadas. (Suassuna apud Menezes, 1988) O desafio do herói, no cordel, é destruir o
monstro que encantou as princesas (irmãs do herói Gilmar) e os príncipes (cunhados).
A questão do Fantástico e do Maravilhoso será analisada nos capítulos 8 e 9,
respectivamente, sempre identificando esses fenômenos no cordel O Monstro sem Alma de
João Firmino Cabral.
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2. A origem do Cordel
A literatura de Cordel, expressão popular mnemônica, tem esse nome por influências
de Portugal e de Espanha. Lá, os folhetos eram colocados sobre barbantes (cordéis)
estendidos em feiras e lugares públicos, como roupa em varal. (Luyten,1983)
Apesar de ser difundido e nomeado pelos estudos acadêmicos, na década de 70, como
Literatura de cordel, no Brasil, é denominada também de “folheto”, “livrinho de feira”, “livro
de histórias matutas”, “romance”, “folhinhas”, “livrinhos”, “livrozinho ou livrinho veio”,
“livro de história antiga”, “livro de poesias matutas”, “foieto antigo”, “folheto de história de
matuto”, “poesias matutas”, “histórias de João Grilo”, “leitura e literatura de cordel”, “história
de João Martins de Athayde” ou simplesmente “livro” (Galvão, 2001, p.27).
Em relação à origem, a literatura popular aparece no Ocidente em duas etapas. A
primeira delas acontece a partir do séc. XII, manifestando-se como leiga e não dependente do
sistema de comunicação eclesiástico. Nessa primeira etapa, exprime-se por uma linguagem
regional, apesar de o latim ser a linguagem oficial de toda a Europa cristã. Paulatinamente,
histórias em versos eram contadas pelas pessoas do povo, de forma primitiva. Essa incipiência
se deve ao fato de eles não estarem acostumados a narrar poeticamente em uma linguagem
não-oficial. Além disso, o erudito e o religioso eram os assuntos abordados em latim. Sair dos
feudos, seus lugares de origem, só era possível em duas ocasiões: em época de guerra ou em
peregrinação. Esta última contribuirá positivamente para a primórdio da literatura popular.
Na Europa medieval havia três núcleos de peregrinação famosos: Roma – a Santa Sé –
Jerusalém – a Terra Santa – e Santiago de Compostela que era a mais prestigiada. As
constantes movimentações populares contribuíram para o surgimento de três focos de
convergência humana. A Provence, no sul da França, onde se aglomeravam as pessoas antes
de atravessarem o mar Mediterrâneo, tendo a Palestina como destino. A Lombardia, no norte
da Itália, era o caminho obrigatório para chegar a Roma. E o terceiro, a Galícia, que além de
abrigar o santuário de Santiago, era o único lugar da península ibérica não dominado pelos
sarracenos.
Muito freqüentado pelos poetas nômades, verdadeiros jornalistas que contavam as
novidades e cantavam poemas de aventuras e de bravezas, estes três lugares – Provence,
Lombardia e Galícia – serão o berço da literatura popular. Essa manifestação, em época
medieval, faz oposição à literatura oficial da igreja católica, mas irá se fortalecer, com o
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passar dos anos, dando abertura para focos de línguas nacionais como o italiano, o francês
provençal e o português – galaico.
Três categorias de poetas andarilhos – menestréis, trovadores e jograis – serão os
responsáveis pela expansão dessa literatura pelo resto da Europa (Luyten, 1983).
Nesse continente, as pessoas que antes só se distanciavam de seus feudos em razões da
guerra e das peregrinações, passaram a ter maior interesse pelos lugares longínquos a partir
das cruzadas. Em Portugal, as viagens e as próprias formas de divulgação das façanhas dos
viajantes, favoreceram a criação de fantasias, na qual os monstros passaram a reger o
imaginário medieval. Este imaginário era mantido através do hábito antigo de se reproduzirem
histórias. Como grande parte da população era analfabeta, constituía-se o costume de dar
forma às imagens que se queriam lembrar. Esse mundo das maravilhas era oralizado, cantado
e também escrito em formato de folhetos.
Em Portugal, a partir do séc. XVII, a Literatura de Cordel era conhecida por “folhas
volantes” ou “folhas soltas”.
“Houve um período, nas terras portuguesas, em que era tido por literatura de
cego, em decorrência de uma lei, promulgada por D. João V, no ano de 1789,
que cedia à Irmandade dos Homens Cegos de Lisboa o direito de comercializar
tais folhetos. O cego madeirense Baltasar Dias, beneficiado por essa lei, foi um
dos grandes poetas portugueses da literatura de cordel, cujos livros circularam
pelo Brasil. As formas fixas da poesia tradicional portuguesa usadas por
Camões e Gil Vicente aparecem nos versos dos cordelistas de lá e passam a
compor nosso repertório poético a partir da chegada dos colonizadores”
(Amorim, 2003, 21 –22).
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Esse costume proveio de uma longa tradição ibérica, dos romanceros, das
histórias de Carlos Magno de Doze Pares de França e outros grandes livros
populares. Originou-se também de contos maravilhosos de ‘varinha de
condão’, de bichos falantes, de bois – sobretudo na região nordestina, onde se
desenvolveu o ciclo do gado”, e, ainda de histórias do folclore universal e
africano – estas trazidas pelos escravos, acostumados à narrativa oral em suas
terras de origem.
As histórias eram veiculadas por cantadores ambulantes, que iam de
fazenda em fazenda, de feira em feira, transmitindo notícias de um lugar para
outro, aproximando as pessoas. Reproduziam histórias, inventando casos,
improvisos, repentes, desafios e pelejas entre cantadores. (Meyer apud Galvão,
2001)
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Cabral, que ainda vende seus e outros folhetos numa banca do Mercado Municipal de
Aracaju.
João Firmino Cabral aprendeu suas primeiras letras com os ‘livrinhos de história’,
como eram conhecidos na época. Sua irmã Angelita, já letrada, lia os versos para Firmino.
Admirado, pediu para ela ensiná-lo. Aprendeu suas primeiras letras aos 11 anos, cantando os
versos. Em 1951, como eram raros televisão e rádio, foi convidado para ler os cordéis,
cantando nas casas dos vizinhos, em São Cristóvão.
Natural de Itabaiana, Sergipe, começou a vender os folhetos, em meados dos anos 50,
com a proteção do já consagrado poeta popular Manoel d’Almeida Filho.
João Firmino mudou-se ainda jovem para a cidade de São Cristóvão. Passou a vir com
freqüência a Aracaju pela facilidade de deslocamento nos trens urbanos e pela proximidade
com a capital. Numa dessas vindas, aos 14 anos, conheceu o poeta cordelista Manoel
d’Almeida Filho. Este veio da Paraíba em 1940 e morava na rua Santa Rosa, ao lado do
Mercado, pois era ali que ele vendia seus livros. Utilizava um sistema de som e cantava para
vender os folhetos. João o observava constantemente, até que um certo dia, Manoel o
convidou a levar suas malas com os folhetos e um alto-falante ao edifício onde morava.
Tornaram-se amigos.
Em janeiro de 1945, Manoel forneceu os primeiros 300 folhetos de cordel para o ainda
garoto João Firmino. Teria como destino as feiras do interior de Sergipe. João vendia com
facilidade, pois também costumava cantar os versos dos folhetos, atraindo, assim, muitos
compradores. Fortaleceram a amizade e Manoel o convidou a morar em sua casa, em Aracaju.
João aceitou. Após três anos vendendo cordéis e ampliando a distribuição para o interior da
Bahia, Firmino já comprava também os folhetos em agências de Salvador e Recife. O
constante contato com os cordéis despertou, em João Firmino, um poeta promissor
As Aventuras de Miguel, um Valente Sem Igual foi seu primeiro folheto, o qual foi
produzido em 1957, em Alagoinhas, Bahia. Após o êxito do primeiro exemplar, lança um
segundo, A profecia de Padre Cícero Romão que acaba superando a vendagem do primeiro. A
história sobre ‘O Padim Ciço’ vende 2000 exemplares.
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produziu A Lenda do Boi em Janeiro que fala do Boi do Reisado. Além da prefeitura de
Aracaju, já foi homenageado pelo Teatro Atheneu, por manter viva a tradição do cordel.
Ministra palestras em escolas, em universidades de Sergipe e em eventos culturais pelo
Estado.
A partir de 2003, dá nome à Cordelteca, um ambiente localizado na biblioteca pública
de Aracaju, Clodomir Silva, destinado à Literatura de Cordel do estado. Seu nome foi
escolhido, por se dedicar, há mais de 45 anos, ao cordel, mantendo-o vivo, através da
divulgação e da constante produção literária.
A Cordelteca é o primeiro espaço do Brasil onde é possível encontrar o acervo, a
biografia com foto dos poetas populares do estado de Sergipe e dos radicados aqui, como
Manoel D’Almeida Filho, Pedro Amado do Nascimento e Poeta Miranda. Podem ser
encontrados, dos mais antigos aos mais atuais cordelistas, além de livros em prosa que contam
a história da literatura de cordel, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado
sobre o tema.
João Firmino Cabral possui o dom da criação poética popular. Grande cordelista, ainda
inspira outros poetas como Zé Antônio e Gilmar Santana, o qual pôde contar com a ajuda do
mestre para fazer a revisão poética de seu primeiro folheto São Francisco, O Santo Rio do
Brasil – História e importância.
A literatura de cordel, como é popular, trata dos assuntos que interessam ao povo. A
forma mais comum de ela se apresentar é em sextilha, estrofes de seis versos com sete sílabas
cada. As rimas costumam ser iguais no segundo, quarto e sexto versos. São as rimas xaxaxa,
em que o x representa as rimas órfãs ou perdidas e o a, as determinadas. O cordel estudado
nesta pesquisa é exemplo vivo.
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elemento este que, além de fraco e, falível, permite uma certa dose de invenção por parte dos
transmissores. As falhas de um relato alterado são preenchidas com elementos próximos e
sensíveis, com novos apoios mnemônicos e novos efeitos tirados da paisagem e da prática
viva. (Londres, 1983)
Na última estrofe do cordel O Monstro sem Alma, o cordelista João Firmino Cabral
deixa claro que a história do monstro que encantava príncipes e princesas já tinha sido
contada. Essa narrativa maravilhosa, ou Trancoso foi repassada de geração à geração. Nela, os
personagens possuem poderes mágicos e solucionam questões racionais por meios de jogos
simbólicos peculiares a seres encantados. O extraordinário é visto de forma natural e
aceitável.
O próprio poeta João Firmino diz ter criado os versos do folheto O Monstro sem Alma
baseado em três histórias de Trancoso. A avó dele contava a história de Cravo, Rosa e
Jasmim; a mãe, O Monstro sem Alma e a tia, O rei dos peixes, dos carneiros e dos gaviões.
Segundo, o próprio autor, foi o cordel mais trabalhoso. O enredo do produto final é muito
parecido com o conto O Bicho Manjaléu. Este, de origem européia, foi coletado pelo
pesquisador, crítico e ensaísta Sílvio Romero (1954) na coletânea de contos populares do
Brasil. Nesse livro, o conto foi transcrito na versão sergipana com algumas variações.
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O conto está, na íntegra, no anexo.
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pois o elemento da alma exterior ou da vida exterior do Bicho Manjaléu é um dos motivos
universais na novelística popular, aparecendo até em contos egípcios, há trinta e dois séculos.
Comparando a versão sergipana em conto com a versejada pelo itabaianense João
Firmino Cabral, há algumas mudanças.
No cordel, as princesas Gerusa, Regina e Marisa foram encantadas ao cheirar as flores
– jasmim, rosa e cravo, respectivamente, desaparecendo sem que soubesse o mistério. No
conto, as três mulheres eram pobres, filhas de um velho, vendedor de gamelas, que, ameaçado
de morte por três cavaleiros formosos e abastados, vendeu seus próprios rebentos. A família
do ex – fazedor e vendedor de gamelas tornou-se rica após a saída das filhas.
Na versão em verso, o herói Gilmar ficou sabendo do sumiço das irmãs depois de
vencer um príncipe. Enraivecido por perder, o derrotado contou o segredo omitido por todos
no reino. O príncipe Gilmar soube do encantamento sofrido pelas princesas quando já estava
cursando faculdade. Na narrativa em prosa, o filho do senhor, agora rico, soube do passado,
ainda menino, através de um colega de escola.
As reações dos heróis nas duas narrativas foram diferentes também. Na versão
prosaica, o herói ficou calado ao saber da verdade e só se pronunciou rapaz. Nessa fase,
ameaçou de morte, com um alfange, a mãe e o pai caso não lhe contassem a história real. Em
verso, Gilmar ameaça de morte o delator e não, os pais.
Além dos três elementos mágicos – pena, lã e escama, o conto O bicho Manjaléu
possui três outros – bota, carapuça e chave, adquiridos pelo herói por muito dinheiro. O
primeiro objeto poderia levá-lo a qualquer lugar pretendido; a carapuça deixava-o invisível e a
chave abria qualquer porta.
Na narrativa em prosa, o príncipe casa-se com a rainha de Castela antes de se
encontrar com o bicho, o qual se encontrava aprisionado no palácio do rei de Castela. Ela,
curiosa por vê-lo, abre com a chave encantada o quarto onde se encontra o bicho Manjaléu.
Depois de pular de dentro da prisão, leva a esposa do príncipe para as brenhas. Na narrativa
poética, o príncipe Gilmar só se casa com ela depois de destruir o monstro.
Todos os personagens do cordel são nomeados, enquanto, no conto, nenhum possui
nome próprio.
Segundo o próprio João Firmino, seu cordel não se baseou em fonte escrita, apenas na
oral. “Foi uma estudiosa de cordel, a Vilma Quintela, quem me disse que o meu folheto
apresentava o mesmo monstro do conto do livro de Silvio Romero. Era o bicho Manjaléu.”
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Não há como fazer uma abordagem profunda acerca das transformações sofridas pelo
cordel, porque o enredo da narrativa foi formulado a partir de três histórias de trancoso e não
de uma apenas, como do conto O Bicho Manjaléu.
Apesar disso, a história do cordel O Monstro sem Alma chega ao final sem sofrer
modificações realistas de cunho regional. Também os diálogos guardam o tom apropriado ao
resto da narrativa, que em nenhum momento inclui dados brasileiros. Portanto, não há
presença acultural do cordel.
Segundo Londres (1983), os contos de encantamento que vieram da Europa para o
Brasil chegaram, de regra, em processo de transformação adiantado. As formas derivadas, no
entanto, comportam-se dentro do sistema regular de modificação e não traem a estrutura do
conto.
No Nordeste, é comum na versão em verso, a explicação racional das motivações das
ações, junto à exposição minuciosa de cada ocorrência e seus pormenores. Apesar disso, não é
tão importante saber se estas ampliações provêm do texto original europeu, ou se são criação
do poeta brasileiro. As mutações, de um modo ou de outro, fazem parte de um processo
natural. ( Londres, 1983)
7. O fantástico
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A princesa festejada;
Nisso cheirou um jasmim
Rapidamente encantou-se,
Para todos levou fim.
Foi a flor quem provocou o seu sumiço? Por quê? Como? Para quê? São questões sem
resposta.
o se explica Oo fantástico
porquê doexige
seu fim.
que três condições sejam preenchidas. Primeiro, é preciso que
o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo
de pessoas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação
sobrenatural dos acontecimentos evocados. Em seguida, essa hesitação deve ser
igualmente sentida por uma personagem; desse modo o papel do leitor é, por
assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação se acha
representada e se torna um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o
leitor real se identifica com a personagem. Enfim, é importante que o leitor
adote uma certa atitude com relação ao texto: ele recusará tanto a interpretação
alegórica quanto a interpretação “poética”. O gênero fantástico é pois definido
essencialmente por categorias que dizem respeito às visões na narrativa; e, em
parte, por seus temas. (Todorov, 1979, 151 – 152).
A definição desse autor russo, acerca do gênero fantástico é feita de forma didática,
mas apresenta conflitos quando o subdivide em estranho puro; fantástico – estranho;
fantástico – maravilhoso e maravilhoso puro. Isso porque o limite entre eles é muito tênue,
chegam até a se misturarem. Importante mesmo é notar a diferença entre o fantástico, o
estranho e o maravilhoso, que já foi abordado, nos primeiros parágrafos desse capítulo.
Todorov (1975) chama essas subdivisões de subgêneros transitórios, a saber:
O fantástico-estranho envolve os acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo
de toda a história, mas há no desfecho uma explicação racional.
No estranho puro, os fatos são explicados pelas leis da razão com feições incríveis,
extraordinárias, chocantes, singulares, inquietantes, insólitas, provocando na personagem e no
leitor, reações de medo.
No fantástico-maravilhoso, a narrativa se apresenta como fantástica, mas termina
aceitando o sobrenatural. Esse subgênero está mais próximo do fantástico puro, por este
permanecer sem explicação, não racionalizado, sugerindo realmente a existência do
sobrenatural. O limite entre os dois é incerto, embora a presença ou a ausência de certos
detalhes permita sempre decidir.
O maravilhoso puro, assim como o estranho, não possuem limites claros. No
maravilhoso, então, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem
nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos
narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos.
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Monstro sem alma possui esse caráter de literatura fantástica. Além do encantamento das
princesas Gerusa, Regina e Marisa, há o dos seus maridos Ramon, Amon e Miron,
respectivamente. O primeiro é o rei dos Gaviões; Amon, dos Carneiros e o terceiro, dos
Peixes.
O gavião é um príncipe
Que fica desencantado
Na hora em que o sol se põe
A noite passa ao meu lado
De manhã, quando o sol nasce.
É novamente encantado.
Depois que o príncipe Gilmar consegue encontrar todas as irmãs, descobre por
intermédio de um cunhado, o motivo de tantos feitiços. O monstro, feiticeiro, chamado de o
bruxo da vela apaixona-se pela princesa Estela, irmã dos príncipes Ramon, Amon e Miron.
Rodrigues (1988) diverge o fantástico lato sensu do stricto sensu. O primeiro, com
sentido amplo, envolve os textos que fogem do realismo estrito e são explicados pelo
Realismo e pelo Naturalismo. Enquanto o segundo agracia o sentido estrito, que se elabora a
partir do século XVIII, tem continuidade no séc. XIX, transformando-se no séc. XX. Este será
o preferido pela autora que aponta a contribuição de Barine por ter afirmado a importância de
Hoffmann no tocante à renovação na fórmula do gênero fantástico. Até a Idade Média não
havia se operado a separação do fantástico com o maravilhoso. É Hoffmann quem fará isso. É
mister saber que o fantástico stricto sensu separa-se do maravilhoso, cuja origem (o
maravilhoso pagão ou cristão) supunha a interferência de seres sobrenaturais, como deuses,
no destino do homem (ibid, 1988).
O fantástico, no sentido estrito, se elabora a partir do repúdio do Século das Luzes ao
pensamento teológico medieval e de toda a metafísica. Operando, assim, uma laicização
nunca vista no pensamento ocidental. O indivíduo passa a pensar o mundo sem a ajuda da
religião ou de explicação metafísicas, essa é a grande proposta do século XVIII.
O fantástico, numa sociedade que rejeita a metafísica, se desenvolve, segundo Bessière,
exatamente pela “fratura dessa racionalidade”, que tendo procurado objetivamente dar a
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No cordel, o príncipe Gilmar, já adulto, passa a saber do sumiço das três irmãs. O
delator, por ter perdido uma luta com o nobre, revela o grande segredo e relaciona o
desaparecimento ao Diabo.
– Você me venceu
Porque Deus o renegou,
Sei que as tuas três irmãs
Uma a uma se encantou;
todo mundo diz que o Diabo
Para o inferno as levou.
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das princesas que eram amadas, não só pelos pais, como pelos súditos. Além disso, a justiça, a
sinceridade e a honra qualificavam o monarca, idolatrado por todos.
Acompanhada e feliz,
Passeava no jardim
A princesa festejada;
Nisso cheirou um jasmim,
Rapidamente encantou-se,
Para todos levou fim.
Não há explicação para o sumiço das princesas. Os súditos dizem que elas foram
levadas pelo diabo.
Se todos sabiam de seu fim, por que o herói Gilmar não procura por suas irmãs nas
profundezas do inferno? Gilmar jura encontrá-las nem que seja no fim do mundo. O rei julga
impossível reavê-las, pois “elas foram arrebatadas/ por um mistério invisível” A dúvida
instaura-se na narrativa, abrindo brechas para o fantástico. Onde e como elas estão? Quem as
levou?
Todorov (1975) no livro Introdução à Literatura Fantástica, relata tanto a fé absoluta
como a incredulidade total levam para fora do fantástico. É a hesitação que lhe dá vida. Além
dela, é possível identificar uma unidade estrutural do fantástico que se realiza graças a três
propriedades: a primeira depende do enunciado, a segunda, da enunciação e a última, do
sistema sintático.
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Ao se deparar com o Monstro, o herói Gilmar trava uma luta em que seu rival, mesmo
acometido de tantos golpes de espada, não é ferido.
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pelo autor, ora enfatizando um lado, ora outro de seus aspectos: quando concerne ao narrador,
o discurso se acha aquém da prova da verdade; quando à personagem, deve se submeter à
prova. O cordel O Monstro Sem alma não se inclui nesta segunda propriedade por ser do tipo
narrador observador.
A terceira propriedade está relacionada à composição. A estrutura da narrativa
fantástica ideal pode ser representada como uma linha ascendente, que leva ao ponto
culminante, ou seja, que conduz à aparição do ser causador da surpresa final. No caso do
cordel, o monstro é apresentado ao leitor com traços sobrenaturais. Cria-se uma expectativa
no desfecho: Quem vencerá a luta entre um humano mortal e um ser invensível,
poderosíssimo?
D’Onofrio (2002) considera o fantástico como sendo todo texto literário cujo
conteúdo fabular, além de não ter acontecido no plano histórico, não tem sequer a virtualidade
de poder acontecer, porque infringe as leis físicas da realidade em que vivemos e os padrões
normais de nossa razão. O fantástico é, portanto, o extraordinário incrível.
8. O Maravilhoso
Pela descrição, nota-se um ser impregnado do mundo irreal, do faz de conta. É a ficção
mais radical. No Maravilhoso, a verossimilhança não é questionada.
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Há, também, na narrativa do cordelista João Firmino Cabral, a presença de outros três
seres sobrenaturais. São os príncipes irmãos Ramon, Amon e Miron, que durante à noite são
humanos, mas pelo dia, até o pôr do sol, são animais. São o Rei dos Gaviões, o Rei dos
Carneiros e o Rei dos Peixes, respectivamente. A metamorfose é fruto de um encantamento. O
Monstro enfeitiça os três príncipes do reino de Cantarela porque se apaixona pela princesa
Estela e tem receio de ser importunado por eles.
Para Todorov (1975), no Maravilhoso, nem os personagens, nem o leitor implícito são
surpreendidos pelos elementos sobrenaturais. É o que ele chama de maravilhoso puro.
Esse autor russo ainda nos fala da presença do sobrenatural no maravilhoso
hiperbólico, maravilhoso exótico, maravilhoso instrumental e maravilhoso científico.
No maravilhoso hiperbólico, o sobrenatural não violenta excessivamente a razão,
enquanto no maravilhoso exótico, os fatos sobrenaturais não são apresentados como tais. O
leitor não encontra motivos para duvidar dos acontecimentos, até mesmo porque desconhece
seus pormenores.
Outro tipo de maravilhoso é o instrumental. Nele há a presença de objetos com
detalhes técnicos irrealizáveis na época descrita, mas perfeitamente possíveis. Os
instrumentos são parecidos com os criados pelo homem. Possuem origem mágica e servem de
comunicação entre outros mundos.
Conhecido hoje por science-fiction, no maravilhoso científico o sobrenatural é
explicado de uma maneira racional, mas a partir de leis que a ciência contemporânea não
reconhece. Nesse subgênero do maravilhoso, nota-se a presença do magnetismo que explica
“cientificamente” os acontecimentos sobrenaturais, porém, o próprio magnetismo pertence ao
sobrenatural.
Chiampi (1980), estudiosa da literatura hispano-americana, utiliza o termo realismo
maravilhoso ao se referir à nova modalidade da narrativa realista daqueles países quando
ligados ao Maravilhoso. Embora este último nome seja consagrado pela Poética de
Aristóteles e pelos estudos crítico-literários em geral, a denominação “realismo mágico” é
freqüente entre os críticos hispano-americanos. O Maravilhoso se presta à relação estrutural
com outros tipos de discursos (o fantástico, o realista). Já o Mágico é um termo impregnado
de questões culturais que, se ligado ao realismo, implicava ora uma teorização de ordem
fenomenológica (a “atitude do narrador”), ora de ordem conteudística (a magia como tema).
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Propp apud D’Ónofrio (2002), preocupado com uma abordagem interna ou estrutural
do texto literário, individualiza os elementos comuns e invariáveis próprios de um gênero,
separando-os dos elementos particulares a uma espécie. Ao analisar o corpus de cem contos
maravilhosos, salienta 31 sintagmas narrativos, constantes na generalidade dos contos, que
condensa em lexemas metalingüísticos, chamados por Propp de funções, que estão ligados
entre si pelo mecanismo da causalidade, contituindo o arcabouço da fábula de uma narrativa.
(...)
Enfrentando feras bravas,
Tigres e leões valentes,
Dias inteiros lutando
Com monstruosas serpentes,
Ele atravessou montanhas,
. 27
28
. 28
29
. 29
30
Concretizando a tristeza
Nem um nem outro falava;
Todo coberto de luto
O palácio se fechava.
. 30
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17. Marca: o herói recebe uma marca por ferimento ou outro tipo de sinal para seu
reconhecimento futuro (um anel, um lenço etc).
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Depois de reconhecidos,
Foram todos embarcados
E no reino de dom Jorge
Com um mês eram chegados,
Recebidos com carinho,
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As funções de 21 a 30 fazem parte das propostas de Propp, serão explicitadas, mas não
acontecem na narrativa do cordel.
21. Perseguição: uma personagem, que geralmente é um ajudante do agressor
derrotado, persegue o herói.
22. Socorro: o herói é salvo de seus perseguidores ou por mérito próprio ou com a
ajuda de outra personagem.
23. Chegada incógnita: o herói regressa ao lar, às vezes disfarçado, pois a longa
ausência tornara seu local de origem inseguro.
24. Pretensões falsas: outra personagem usurpa o papel de herói, atribuindo
falsamente a si as ações gloriosas.
25. Tarefa difícil: para dirimir a dúvida sobre a identidade, o herói é submetido a uma
prova (de mestria, de força etc)
26. Tarefa cumprida: o herói supera a prova.
27. Reconhecimento: graças à tarefa, à marca recebida durante a luta contra o agressor,
ao anel ou a outro sinal, o herói é reconhecido como tal.
28. Desmascaramento: o falso herói é reconhecido como um impostor.
29. Transfiguração: o herói recebe uma aparência que certifica sua glória.
30. Punição: o falso herói ou o agressor é punido.
31. Casamento: o herói casa-se com a princesa e ascende ao trono.
No cordel, há quatro casamentos, mas nenhum dos príncipes viram reis de seus reinos.
As princesas do reino Lírio Dourado se enlaçam com os príncipes do reino de Cantarela.
Gilmar esposa Estela, irmã dos príncipes e ex mulher do monstro.
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9. Conclusão
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Referência Bibliográfica
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Coleção Primeiros passos nº 98
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