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O PÁSSARO AZUL MITIL - E aquilo tudo ali, enchendo a mesa?


(Maurice Maeterlinck) TILTIL - Doces, frutas, tortas de creme.
MITIL - Será que vão comer tudo? Vão dar um
PRIMEIRO QUADRO- NA CHOUPANA DO pedaço?
LENHADOR TILTIL - Para quem?
MITIL - Para nós.
O palco figura o interior de uma choupana de TILTIL - Eles não nos conhecem.
lenhador, simples, porém não miserável. Lareira de MITIL - E se a gente pedisse?
capote, onde bruxuleia o fogo de lenha. Utensílios de TILTIL - Isso não se faz.
cozinha, armário, arca de pão, relógio de pêndulo, MITIL - Olha os meninos dançando!
roca , lavatório, etc. Sobre a mesa, um lampião TILTIL - Pois então vamos dançar também!
aceso. Junto ao armário, de cada lado, dormem
enrodilhados de focinho sobre o rabo o Cão e a Gata. Pulam de alegria, sobre o banquinho.
Entre os dois, um grande pão de açúcar, azul e MITIL - Ah, que bom!
branco. Dentro da gaiola redonda, pendurada à
parede, uma rolinha. Duas janelas ao fundo, com os Batem à porta da cabana.
postigos interiores fechados. Próximo a uma das
janelas, um banquinho. A esquerda, porta de entrada TILTIL (perdendo de repente a excitação, e
da casa, provida de tranqueta. A direita, outra porta. assustado) - Quem será?
Escada em direção ao celeiro. Também a direita, MITIL (apavorada) - Papai!
duas caminhas de criança: à cabeceira, sobre duas
cadeiras, roupas cuidadosamente dobradas. Como demoram a abrir, a tranqueta se move sozinha,
tangendo; entreabre- se a porta, e dá passagem a
TILTIL - Mitil? uma velhinha de verde, capuz vermelho à cabeça. É
MITIL - Tiltil? corcunda, capenga e zarolha; o nariz encosta-se no
TILTIL -Você está dormindo? queixo, vem curvada, apoiando-se num bordão. Sem
MITIL - E você? a menor dúvida, é uma fada.
TILTIL - Se eu estou falando com você, é porque
estou acordado. FADA - Vocês têm aí o Pássaro Azul?
MITIL - Já é Natal ? MITIL - Tiltil tem um pássaro.
TILTIL - Ainda não; amanhã. Mas Papai Noel não vai TILTIL - Mas esse eu não posso dar.
trazer nada este ano. FADA - Por quê?
MITIL - Por quê? TILTIL - Porque é meu.
TILTIL - Ouvi mamãe dizer que não podia ir à cidade FADA - É uma razão, sem dúvida. Onde está o
para avisar a ele. Virá no ano que vem. pássaro?
Vamos nos levantar? TILTIL (mostra a gaiola) - Na gaiola.
MITIL - É proibido. FADA (bota os óculos para examinar o passarinho) -
TILTIL - Mas se não há ninguém aí ... Está vendo o Esse eu não quero; não é bem azul. Você vai procurar
postigo? aquele que eu quero.
MITIL - Chi, que claridade TILTIL - Mas eu não sei onde ele está.
TILTIL - São as luzes da festa. FADA - Nem eu. Por isso mesmo é preciso procurar.
MITIL - Que festa ? Tenho absoluta necessidade do Pássaro Azul. É para
TILTIL - Lá em frente, na casa dos meninos ricos. É a minha filha, que está muito doente.
árvore de Natal. Vamos abrir o postigo. TIL'I'IL - Que é que ela tem?
FADA - Ninguém sabe ao certo. Ela gostaria de ser
Os dois se levantam, correm para uma das janelas, feliz.
sobem no banquinho e empurram os postigos. Intensa TILTIL - Hein?
claridade penetra no quarto. Os meninos olham FADA - Vocês sabem quem eu sou?
avidamente para fora. TILTIL - A senhora se parece um pouco com a nossa
vizinha, Dona Berlingot.
TILTIL - Olha a árvore! FADA (subitamente irritada) - Absolutamente! Não
MITIL - Que árvore? há a menor relação. Que horror! Sou a Fada Beriluna.
TILTIL - A árvore de natal, ora essa! Você está TILTIL - Ah, muito bem.
olhando para a parede! Quantas luzes! Que porção! FADA - É preciso ir! Imediatamente.
MILTIL - Que barulho é esse que estão fazendo? TILTIL - A senhora nos acompanha?
TILTIL - É música. FADA - É de todo impossível, porque hoje de manhã
MITIL - Estão zangados? botei um cozido no fogo, e ele começa a entornar
TILTIL - Não, mas cansa muito. quando eu me afasto mais de uma hora. (Indica
MITIL - Que é aquilo ali, de ouro, pendurado nos sucessivamente o teto, a lareira, e a janela.) Vocês
ramos? preferem sair por aqui, por ali ou por ali?
TILTIL - São brinquedos, oras bolas! Espadas, fuzis, TILTIL (timidamente, mostrando a porta) - Eu
soldados, canhões. gostaria mais de sair por ali.
MITIL - E bonecas, será que eles botaram? FADA (de novo se aborrece repentinamente) - É
TILTIL - Bonecas? Que bobagem. Não acham graça absolutamente impossível. Mas que costume idiota!
nisso. (Indica a janela.) Vamos sair é por ali. Muito bem.
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Que é que estão esperando? Vistam-se depressa! (Os comigo o que é necessário para reanimar os olhos
meninos obedecem, vestindo-se rapidamente.) Vou mortiços. Que é que eu estou tirando do saco?
ajudar Mitil. TILTIL - Ah, que lindo chapeuzinho verde! Que é
TILTIL - Nós não temos sapatos. isso brilhante assim, na roseta?
FADA - Não tem importância. Vou dar a vocês um FADA - É o Diamante Grande, que faz a gente ver.
chapeuzinho mágico. Onde estão seus pais? TILTIL - AH!
TILTIL (mostrando a porta á direita) - Estão lá, FADA - Pois é. Você bota o chapéu na cabeça e mexe
dormindo. um pouco com o Diamante; da direita para a
FADA - E vovó e vovó? esquerda, por exemplo - olhe, assim, está vendo?
TILTIL - Morreram. Então ele calca uma saliência do crânio, que ninguém
FADA - E irmãozinhos e irmãzinhas? Vocês não têm? conhece, e que faz abrir os olhos.
TILTIL - Temos, sim. Três irmãozinhos. TILTIL - Não tem perigo?
MITIL - E quatro irmãzinhas. Mas também morreram. FADA - Pelo contrário, ele também é uma fada. A
FADA - Vocês querem vê-los de novo? gente vê no mesmo instante o que há nas coisas. Por
TILTIL - Queremos sim! Agora! Mostre para nós! exemplo: a alma do pão, a do vinho, da pimenta. Está
FADA - Eles não estão no meu bolso. Vocês irão vê- aqui o que eu trouxe para ajudá-los na busca do
los ao passarem pelo País da Saudade. Que estavam Pássaro Azul. Se você pegar nele assim, está vendo? E
fazendo quando eu bati? der outra voltinha, torrará a ver o Passado. Mais outra
TILTIL - Brincando de comer doce. voltinha, e verá o Futuro. É curioso, prático, e não faz
FADA - Vocês têm doces? Onde estão? barulho. Ninguém pode vê-lo enquanto estiver na sua
TILTIL - No palácio dos meninos ricos. Venha ver, é cabeça. Quer experimentar? (Põe o Chapeuzinho
tão bonito! Verde na cabeça de Tiltil.) Agora, vire o Diamante.
Uma volta, e depois ...
Conduz a Fada à Janela.
Apenas faz girar o Diamante, súbita e prodigiosa
FADA - Não é mais bonita do que a casa de vocês. mudança opera-se em todas as coisas. A velha fada
TILTIL - Oh! Aqui em casa é mais escuro, menor, transformasse de repente em bela, maravilhosa
não tem doce. princesa; iluminam-se as pedras que formam as
FADA - É exatamente igual. Você é que não vê. paredes da choupana, azulecem como safiras,
TILTIL - Eu vejo, sim, veio muito bem, tenho uma tornam-se transparentes, cintilam e deslumbram como
vista esplêndida. Vejo até a hora no relógio da igreja, as pedras mais preciosas. Os trastes humildes se
que papai não enxerga. animam e resplandecem. A mesa de pinho se
FADA (zangando- se subitamente) - Pois eu digo que apresenta com a nobreza e a gravidade das mesas de
você não vê coisíssima nenhuma! Como é que você mármore; o mostrador do relógio pisca o olho e sorri
me vê? Como é que eu sou feita? (Silêncio jovialmente, enquanto o tampo de vidro por trás do
constrangido de Tiltil.) Então, não responde? qual oscila o pêndulo, se entreabre e deixa escapar as
(Silêncio cada vez mais embaraçado.) Não quer Horas; dando-se as mãos, às gargalhadas, elas se
responder? Sou moça ou velhinha? Cor-de-rosa ou põem a bailar ao som de deliciosa melodia. Espanto
amarela? Tenho corcunda? justificado de TILTIL, que exclama, apontando para
TILTIL (benévolo) - Bom, não é lá muito grande. as Horas:
FADA - Pois pelo jeito que você fez, parece que é
enorme. Meu nariz é adunco, meu olho esquerdo é TILTIL - Quem são essas moças lindas?
vazado? FADA - Não tenha medo. São as horas de sua vida,
TILTIL- Não estou dizendo isso. Quem foi que felizes por estarem soltas e visíveis durante um
vazou? momento.
FADA (cada vez mais irritada) - Não é vazado!
Atrevido! Ordinário! É até mais bonito do que o Enquanto assim conversam, prossegue e completa-se
outro; maior, mais claro, azul que nem o céu. E meus a encantação. As almas dos Pães-de-Meio-quilo, em
cabelos, está vendo? São louros feito trigo. Até forma de homenzinhos vestidos de malha cor de pão,
parece ouro puro. E tenho tanto cabelo, tanto, que assustados e enfarinhados, se desprendem da arca e
chega a me pesar na cabeça. Espalha-se por todos os pulam em redor da mesa, onde vai ter com eles o
lados. Está vendo em minhas mãos? (Ostenta duas Fogo que, saindo da lareira, vestido de malha cor de
mechas valas, de cabelos grisalhos.) enxofre e vermelhão, os persegue, às gargalhadas.
TILTIL - É, estou vendo alguns.
FADA (Irritada) - Alguns? Feixes! Braçadas! Tufos! TILTIL - Quem são esses homenzinhos feios?
Ondas de ouro! Sei perfeitamente que certas pessoas FADA - Não se assuste. São as almas dos Pães-de-
fingem não ver, mas você não é desses cegos de mau meio-quilo. Aproveitaram o reino da verdade para
caráter, ao que suponho. saírem da arca, onde viviam muito apertadas.
TILTIL - Não, não, estou vendo perfeitamente os que TILTIL - E Esse diabo grande e vermelho, que cheira
não estão escondidos. mal?
FADA - Mas é preciso ver os outros com a mesma FADA - Psiu, não fale tão alto. É o Fogo. Tem mau
coragem. Os homens são engraçados, depois que as gênio.
fadas começaram a morrer, eles não vêem mais nada,
não desconfiam de nada. Felizmente, carrego sempre Este diálogo não interrompeu a mágica. O Cão e a
Gata, enrodilhados junto ao armário, dão
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simultaneamente um grito agudo e desaparecem num branco, metade azul, e que, sorrindo beatificamente,
alçapão. No lugar deles, surgem duas figuras caminha na direção de Mitil.
humanas, uma com máscara de buldogue, outra com
focinho de gata. O homenzinho de máscara de MITIL (inquieta) - Que é que ele quer?
buldogue - que daqui por diante se chamará Cão - FADA - É a alma do Açúcar.
atira-se logo sobre Tiltil, beijando-o violentamente e MITIL (tranqüilizada) - Será que ele tem pirulitos?
sufocando-o com barulhentas e impetuosas carícias, FADA - Não tem outra coisa no bolso. Seus dedos são
enquanto a mulherzinha de máscara felina - que se feitos disso.
chamará simplesmente Gata - se penteia, lambe as
mãos e alisa os bigodes antes de aproximar-se de O lampião cai da mesa; uma vez no chão, sua chama
Mitil, se levanta e se transforma numa virgem luminosa de
incomparável beleza. Envolta em longos véus
CÂO (late, pula, esbarra em tudo, insuportável) - transparentes e deslumbrantes, mantém-se imóvel,
Meu dono, bom dia! Bom dia. Finalmente chegou o como em êxtase.
dia de falar! Eu tinha tantas coisas para dizer! Por
mais que eu latisse e mexesse com o rabo, você não TILTIL - É a Rainha!
compreendia. Mas agora, bom dia! Eu gosto muito, MITIL - É Nossa Senhora!
muito de você! Quer que eu faça uma coisa FADA - Não, meus filhos, é a Luz.
extraordinária? Que eu ande com as patas da frente ou
que dance na corda? Enquanto isso, nas prateleiras, as carolas rodam
TILTIL (à Fada) - Quem é esse senhor com cara de como piorras; o armário de roupa bate com as portas,
cachorro? e começa um magnífico desfile de tecidos cor de lua e
FADA - Não está reconhecendo? É a alma de Tilô, de sol, a que se misturam, não menos esplêndidos,
que você libertou. retalhos e andrajos que descem pela escada do
celeiro. Eis, porém, que soam três pancadas bem
GATA (aproxima-se de Mitil e estende-lhe a mão, fortes na porta da direita.
cerimoniosa e circunspecta) - Bom dia, senhorita.
Como está linda, hoje! TILTIL (assustado) - É papai! Ele escutou!
MITIL - Bom dia, minha senhora. (A Fada.) Quem é? FADA - Dê uma volta no Diamante, da esquerda para
FADA - Tão fácil. É a alma de Tilete, que está a direita! (Tiltil faz rodar vivamente o Diamante.)
cumprimentando. Dê-lhe um beijo. Assim depressa, não! Meu Deus, agora é tarde! Eles
CÃO (empurra a Gata) - Eu também vou beijar meu não poderão voltar a seus lugares e nós teremos
dono! Vou beijar a menininha! Beijo todo mundo! muitos aborrecimentos. (A fada volta a ser uma velha,
Esplêndido! Como a gente vai se divertir! Vou fazer extinguem-se os esplendores nas paredes da
medo a Tilete: Au! Au! Au! choupana, as Horas entram no relógo, a roca
GATA - Não o conheço, cavalheiro ... imobiliza-se, etc. . Na pressa e na confusão geral,
FADA (ameaça o Cão com sua varinha) - Você aí, porém, enquanto o Fogo dispara loucamente em
vai ficar bem quietinho, senão voltará ao silêncio, por redor do quarto, procurando a lareira, um dos Pães-
toda a eternidade! de-meio-quilo, que não encontrou lugar na arca,
principia a soluçar e solta gritos de terror.) Que há?
Enquanto isso, a mágica prossegue em seu curso. A
um canto, a roca entra a girar vertiginosamente, PÃO (todo lacrimoso) - Não há mais lugar na arca!
tecendo magníficos raios de luz; a torneira , no outro FADA - (inclina-se sobre a arca) - Há, sim. (Empurra
ângulo, começa a cantar em tom agudíssimo e, os outros pães, que retomam seus lugares primitivos.)
transformando-se em fonte luminosa, enche a pia de Vamos, depressa, acomodem-se.
espadanas de pérolas e esmeraldas, por entre as quais
se ergue a alma da Água, semelhante a uma jovem Batem outra vez à porta.
gotejante, desgrenhada e lamurienta, que vai
imediatamente brigar com o Fogo. PÃO - (afobado, esforça-se em vão por entrar na
arca) – Não há jeito! Ele vai me comer em primeiro
TILTIL - E essa senhora molhada? lugar!
FADA - Não tenha medo, é a Água que sai da CÃO (pulando em redor de Tiltil) - Ainda estou aqui,
torneira. meu dono! Ainda posso falar! Ainda posso beijar
você! Ainda! Que bom! Que bom!
A jarra de leite rola e cai da mesa, partindo-se no FADA - Como, você também? Ainda está aí?
chão, do leite espalhado, ergue-se uma grande forma CÃO - Tive sorte. Não pude voltar ao silêncio. O
alvinitente e casta, que parece ter medo de tudo. alçapão se fechou depressa demais.
GATA - O meu também. Que vai acontecer? Há
TILTIL - E o vulto de camisolão, com ar de medo? perigo?
FADA - É o Leite, que quebrou a jarra. FADA - Meu deus, tenho de lhes falar verdade: todos
que acompanharem os dois meninos morrerão no fim
O pão de açúcar, colocado junto ao armário, cresce e da viagem.
rompe o invólucro de papel, de onde emerge um ser GATA - E os que não acompanharem?
melífluo, dissimulado, envolto em guarda-pó metade FADA - Viverão mais alguns minutos.
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CATA (ao Cão) - Venha, vamos voltar para o SEGUNDO QUADRO


alçapão.
CÃO - Não, não. Não quero. Quero acompanhar meu NO PALÁCIO DA FADA
dono, quero falar com ele o tempo todo.
GATA - Imbecil! Magnífico Vestíbulo, no palácio da Fada Beriluna,
Colunas de mármore claro, com capitéis de ouro e
Batem mais uma vez à porta. prata, escadarias, pórticos, balaustradas, etc.

PÃO (debulhado em lágrimas) - Não quero morrer no Entram pelo fundo, à direita, suntuosamente
fim da viagem! Quero voltar imediatamente para a vestidos, a Gata, o Açúcar e o Fogo. Saem de um
minha arca! aposento do qual brotam raios de luz: o quarto-de-
FOGO (percorre vertiginosamente o quarto, soltando vestir da Fada. A Gata recobriu com uma qaze leve a
assobios angustiosos) - Não encontro mais minha malha de seda preta, o Açúcar envolveu-se num traje
lareira! de seda, metade branco metade azul-claro; o Fogo
ÁGUA (tenta em vão entrar na torneira) - Não posso tem à cabeça plumas multicores e usa longo manto
mais entrar na torneira! carmesim, forrado de ouro. Atravessam a sala de
AÇUCAR (Agita-se ao redor do saco de papel) - ponta a ponta, e chegam ao primeiro plano, à direita,
Rasguei meu saco de embalagem! onde a Gata os reúne sob o pórtico.
LEITE (enfático e pudico) - Quebraram minha
jarrinha! GATA - Por aqui. Vamos conversar sobre a situação
FADA - Que idiotas, meu Deus! Idiotas e poltrões! que nos criaram. Todos estão presentes?
Então vocês preferem continuar a viver em suas AÇÚCAR - Ali está o Cão, que veio do quarto-de-
miseráveis caixinhas, seus alçapões, suas torneiras, a vestir da Fada.
acompanhar os meninos que vão procurar o Pássaro? FOGO - Que roupa mais esquisita ele foi arranjar?!
TODOS (menos o Cão e a Luz) - Preferimos, sim! GATA - Pegou a roupa de um dos guardas da
Depressa! Minha torneira! Minha arca! Minha lareira! Cinderela. Ele tem alma de criado, mesmo. Tenho
Meu alçapão! uma desconfiança esquisita dele. É melhor que não
FADA (à luz, que contempla ensimesmada os cacos escute o que vou dizer a vocês.
do Lampião) - E você Luz, que me diz? AÇÚCAR - Não adianta. Já nos descobriu. Olhe, ali
LUZ - Eu acompanho os meninos. está a água. Meu Deus, que beleza!
CÃO (late de alegria) - Eu também! Eu também!
FADA - Vocês são os melhores. Aliás, já é muito O Cão e a Água juntam-se ao primeiro grupo.
tarde para recuar. Não podem mais escolher, todos
seguirão conosco. Mas você, Fogo, não se aproxime CÃO (aos pulos) - Vejam! Vejam só! Não estamos
de ninguém; você, Cão, não atormente a Gata; e você lindos? Olhem estas rendas, estes bordados! Ouro
aí, Água, ande direitinho, procure não escorrer por puro!
toda parte.
Entra o Pão, no seguinte traje: um costume turco,
Ouvem-se novas pancadas violentas, na porta da recamado de jóias, cimitarra e turbante. A túnica de
direita. seda cai penosamente sobre a barriga. Com uma das
mãos, segura o cabo da cimitarra presa à cintura e
TILTIL (escutando) - É papai outra vez! Agora se com a outra, a gaiola destinada ao pássaro azul.)
levantou , estou ouvindo os passos dele.
FADA - Vamos sair pela janela. Irão todos para a PÃO (gingando vaidosamente) - Então? Como é que
minha casa, onde vestirei corretamente os animais e vocês me acham?
os fenômenos (Ao Pão) Pão segure esta gaiola em que CÃO (pulando ao redor do Pão) - Que bonito! Que
levaremos o Pássaro Azul. Fica por sua conta. boboca! Que bonito! Que bonito!
Depressa, depressa, não percamos tempo. GATA (ao Pão) - Os garotos estão prontos?
PÃO - Estão. O problema foi vestir a Luz.
Bruscamente, a janela se alonga como porta. Saem GATA - Por quê?
todos, e a janela volta à forma primitiva, fechando-se PÃO - A Fada achou que era uma pena vesti-la, de tão
com inocência. O quarto volta a escurecer, as duas bonita que é.
caminhas mergulham na sombra. Entreabre-se a GATA - Vamos, chega de conversa, o tempo urge.
porta da direita, e no vão aparecem as cabeças de Trata-se de nosso futuro. Vocês escutaram o que a
Papai e Mamãe Til. Fada acabou de dizer: o fim desta viagem será
também o fim de nossa vida. Portanto, é preciso
PAPAI TIL - Não era nada. É o Grilo cantando. esticá-la o mais possível, de todos os modos.
MAMÃE TIL - Está vendo os dois? PÃO - Muito bem! Bravo! A Gata está com a razão!
PAPAI TIL - Perfeitamente. Dormem tranqüilos. GATA - Escutem. Todos aqui presentes, animais,
MAMÃE TIL - Estou ouvindo a respiração deles ... coisas e elementos, possuímos uma alma que o
homem não conhece ainda. É por isso que
Fecha-se a porta. conservamos um resto de independência. Mas se ele
achar o Pássaro Azul, saberá tudo, verá tudo, e
PANO ficaremos completamente à sua mercê. Eis o que
acaba de me participar minha velha amiga a NOITE,
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que é ao mesmo tempo guarda dos mistérios da Vida. FADA (ao Pão) - Desabotoe essa roupa turca e dê-lhe
Portanto, é do nosso interesse impedir a todo custo um pedaço de sua barriguinha.
que esse pássaro seja encontrado, mesmo que se torne
imperativo ameaçar a própria vida desses garotos. O Pão desabotoa a roupa, tira a cimitarra e corta
CÃO (indignado) - Que é que essa coisa ai está duas fatias de sua própria gorda barriga, oferecendo-
dizendo? Repita, para eu escutar bem! as às crianças.
PÃO - Silêncio! O senhor não está com a palavra.
Sou eu quem preside a assembléia. TILTIL - Nossos avós estão aqui?
FOGO - Quem foi que o nomeou presidente? FADA - Irão vê-los daqui a um momento.
ÁGUA (ao Fogo) - Silêncio! É da sua conta? TILTIL - Como é que vamos vê-los, se já morreram?
FOGO - É da minha conta o que me interessa. Não FADA - Morreram como, se estão vivos na lembrança
tenho que lhe dar satisfações. de vocês?
AÇÚCAR (Conciliador) - Com licença: não vamos TILTIL - A Luz vem conosco?
brigar. A hora é grave. Antes de tudo, precisamos nos LUZ - Não, e melhor que tudo se passe em família.
entender sobre as medidas a tomar. TILTIL - Por onde é que nós vamos?
PÃO - Participo inteiramente da opinião do Açúcar e FADA - Por aqui. Estão no limiar do País da Saudade.
da Gata. Logo que virar o Diamante, você verá a árvore, com
CÃO - Tolice! O que há é o Homem, e nada mais! um letreiro, indicando a chegada. Estejam de volta às
Temos de obedecer a ele, fazer tudo que ele quiser. oito e quarenta e cinco. Tudo estará perdido se
PÃO - Participo inteiramente da opinião do Cão. atrasarem. Até já. (Chamando a Gata, o Cão, a Luz,
GATA (ao Cão) - Mas estamos dando nossas razões. etc.) Por aqui. Os pequenos, por ali.
CÃO - Não há razões! Eu gosto do Homem, e basta.
Se fizerem alguma coisa contra ele, primeiro eu Sai pela direita, com a Luz, os animais, etc., enquanto
estrangulo vocês, e depois vou contar tudo a ele! os meninos saem pela esquerda.
AÇÚCAR (intervindo com doçura) - Com licença ...
Não azedemos a discussão. De certo ponto de vista, PANO
todos dois estão certos. Há prós e contras.
PÃO - Participo inteiramente da opinião do Açúcar! TERCEIRO QUADRO
GATA - Atenção! Disfarcemos. A Fada e a Luz se No país da saudade
aproximam. A Luz tomou o partido do Homem, é a
nossa pior inimiga. Aí estão elas. Nevoeiro espesso, do qual emerge, à direita, bem no
primeiro plano, o tronco do grande carvalho, com um
Entram pela direita a Fada e a Luz, seguidas por letreiro. Claridade látea, difusa, impenetrável.
Tiltil e Mitil.
Tiltil e Mitil estão junto ao carvalho.
FADA - Então, que é isso? Que fazem aí nesse
canto? Parecem estar conspirando. Já é tempo de Realmente, a bruma começa a mover-se; vai tênue,
começar a viagem. Esta noite, os meninos irão visitar clareia, dispersa-se, evaporasse. Dentro em pouco,
seus avós que morreram. Vocês, por discrição, não os na claridade cada vez mais transparente, sob um
acompanhem. Eles passarão a noite com a família dossel de folhagem, surge alegre casinha de
desaparecida. Enquanto isso, vocês preparem tudo que camponês, coberta de trepadeiras. Porta e janelas
é necessário para a caminhada de amanhã, que vai ser abertas. Cornélias sob o telheiro, vasos de flores no
comprida. Vamos, de pé! A caminho, cada um no seu peitoril das janelas, a gaiola com um melro
posto! adormecido, etc. .junto à porta, sentados no banco,
GATA (com hipocrisia) - Exatamente o que eu estava dormem profundamente um velho camponês e sua
dizendo a eles, Dona Fada. Eu os exortava a mulher - o avó e a avó de Tiltil.
cumprirem o dever conscienciosa e corajosamente;
pena é que o Cão não parasse de me interromper. TILTIL (reconhece-os de repente) - Vovô e vovó!
CÃO - Que é que ela está dizendo? Espere um pouco! MITIL (bate palmas) - É mesmo, são eles! São eles!
VOVÓ TIL - É ele! É ela! São eles!
Vai saltar sobre a Gata, mas Tiltil, que previu o seu (Avós e meninos beijam-se efusivamente)
impulso, o detém com um gesto ameaçador.
VOVÓ TIL - Você está gordo, forte, meu Tiltil!
TILTIL - Quieto, Tilô! Cuidado. Se fizer isso mais VOVÔ TIL (acaricia os cabelos de Mitil) - E Mitil!
uma vez ... Olhe só que cabelos, que maravilha de olhos! E como
CÃO - Meu dono, você não sabe, foi ela que... está cheirosa!
TILTIL (ameaçando-o) - Cale a boca! VOVÓ TIL - Quero mais beijos. Venham para o meu
FADA - Bem, acabamos com isso. Esta noite, o Pão colo.
dará a gaiola a Tiltil. O Pássaro Azul talvez esteja VOVÔ TIL - Não, não. Primeiro, eu. Como vão
escondido no Passado, em casa dos avózinhos. papai e mamãe Til?
Sairemos por ali, os meninos por aqui. TILTIL - Muito bem, vovô. Estavam dormindo
TILTIL (um tanto preocupado) - Vamos sair quando saímos.
sozinhos? VOVÔ TIL - Por que não vêm nos visitar sempre?
MITIL - Estou com fome. Ficamos tão satisfeitos.
TILTIL - Eu também.
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TILTIL - Não podíamos vir. Foi por gentileza da TILTIL - Olhe ali, é Pedrinho! (Aqarram- se pelos
Fada que hoje... cabelos.) Ah, vamos brigar outra vez, como
VOVÔ TIL - Estamos sempre aqui, à espera de uma antigamente! E Roberto! Bom dia, João! Onde está
visitinha dos que vivem! São tão raras! sua piorra? Madalena, Pierrete, Paulina, Riquette!
TILTIL - Não estão mortos de verdade, então? MITIL - Ah, Riquette, Riquette! Continua
VOVÔ TIL (sobressaltando-se) - Que é que você está engatinhando. .
dizendo? Que é que ele diz? Será algum termo novo,
alguma invenção? O relógio da casa dá oito horas.
TILTIL - A palavra "morto"?
VOVÔ TIL - É, sim. Que quer dizer? VOVÓ TIL (estupefata) - Que é isso?!
TILTIL - Quer dizer pessoa que não vive mais. VOVÔ TIL - Palavra que não sei. Deve ser o relógio.
VOVÔ TIL - São bem idiotas, lá em cima! Alguém pensou na hora?
VOVÓ TIL - Lembra-se, Tiltil? Da última vez, eu fiz TILTIL - Fui eu. Que horas são?
uma linda torta de maçãs. Você comeu tanto, tanto, VOVÔ TIL - Deve ser o que, lá em cima, eles
que adoeceu. chamam de oito horas.
TILTIL - Eu não como torta de maçãs desde o ano TILTIL - A luz me espera as oito e quarenta e cinco.
passado. Este ano não houve maçã. Negócio da Fada. É muito importante. Vou-me
TILTIL (olha alternadamente para o Avô e a Avó) - embora.
Você não mudou nada, vovô, absolutamente nada. VOVÓ TIL - Não vão nos deixar assim à hora da ceia.
Vovó também não mudou nem um tiquinho. Estão até Depressa, depressa, vamos servir a mesa em frente à
mais bonitos... porta. Logo hoje, que há uma ótima sopa de couve e
VOVÔ TIL -. Vocês é que cresceram, hein? É, estão uma linda torta de ameixas ...
subindo de verdade.
TILTIL (olha em redor, enlevado) - Como tudo está Trazem a mesa, preparam-na em frente à porta,
direitinho, nos seus lugares! E tudo mais bonito! Olhe carregam travessas , pratos, etc. Todos ajudam.
o relógio com o ponteiro grande, que eu quebrei.
VOVÔ TIL - E ali está a ameixeira em que você TILTIL - Bem, uma vez que tenho o Pássaro Azul... E
gostava de subir, na minha ausência. Continua a dar depois, há tanto tempo que não provo sopa de couve!
ameixas vermelhas, tão bonitas. Desde que comecei a viajar. Não há disso nos hotéis.
TILTIL - Agora são muito mais bonitas! VOVÓ TIL - Eis aí. Tudo pronto. À mesa, meninos!
MITIL - E este é o velho melro. Será que ele ainda Se estão com pressa, não vamos perder tempo!
canta?
Acende-se o lampião e serve-se a sopa. Avós e
(O melro acordou e começa a cantar com toda a meninos sentam-se em volta para a refeição noturna,
força) entre empurrões, xingamentos, gritos e risadas.

VOVÓ TIL- Está vendo? Basta pensar nele. TILTIL - Que gostosa, meu deus, que gostosa! Quero
TILTIL (nota, estupefato, que o melro é todo azul) - mais! Mais!
Ele é azul! É o Pássaro Azul, que eu tenho de levar
para a Fada! E vocês não me disseram que ele estava O relógio dá oito horas e meia.
aqui! (Suplicante.) Vovô, vovó, posso ficar com ele?
VOVÓ TIL - Claro que pode. Para que serve ele aqui? TILTIL (sobressaltado) - Oito e meia! (Atira a
Vive dormindo, não canta nunca. colher.) Mitil, estamos em cima da hora!
TILTIL - Vou botá-lo na gaiola. (Corre até a árvore, VOVÓ TIL - Ora, mais alguns minutos! A casa
apanha a gaiola e coloca o melro dentro.) lh, como a pegou fogo? A gente se vê tão pouco...
Fada vai ficar satisfeita ! E a Luz, então! TILTIL - Não, não é possível. A Luz é tão
VOVÔ TIL - Tenho medo de que ele não se acostume camarada. . . E eu prometi a ela. Vamos, Mitil,
com a vida agitada lá de cima, e aproveite o primeiro vamos.
ventinho propício para voltar. Minhas irmãzinhas que VOVÔ TIL - Santo Deus, como os vivos são
morreram também estão aqui? aborrecidos, com seus negócios, suas agitações!
MITIL - E meus três irmãozinhos enterrados, onde TILTIL - (pegando a gaiola, beija todo mundo,
estão? apressado, em torno da mesa) Adeus, vovó! Adeus,
Vovô! Adeus, irmãos e irmãs. Sinto que não podemos
A essas palavras, sete criancinhas de tamanhos continuar aqui. Não chore, Vovô, nós voltaremos
diferentes, em escadinha, saem da casa, uma por muitas vezes.
uma. VOVÓ TIL - Voltem todos os dias!
VOVÔ TIL - É a nossa única alegria. Que festa,
VOVÓ TIL - Estão aqui; estão aqui. Basta a gente quando o pensamento de vocês nos visita!
pensar, basta falar neles, aparecem os diabinhos! TILTIL - Depressa, depressa! Minha gaiola! Meu
passarinho!
Tiltil e Mitil correm ao encontro das criancinhas. TILTIL - Adeus! Adeus!
Esbarram uns nos outros, beijam-se, dançam, IRMÃOS e IRMÃS TIL - Adeus, Tiltil! Adeus,
rodopiam, gritam de felicidade. Mitil! Não se esqueçam do pirulito! Adeus! Voltem!
Voltem!
7

Todos agitam lenços, enquanto Tiltil e Mitil se Entram timidamente, pela direita, no primeiro plano,
afastam lentamente. Já durante as últimas falas, Tiltil, Mitil, o Pão, o Açúcar e o Cão.
porém, o nevoeiro do começo voltou gradualmente a
formar-se e o som das vozes foi enfraquecendo, de GATA (corre em direção de Tiltil) - Por aqui, por
maneira que, ao findar a cena, tudo desapareceu na aqui, meu senhorzinho. A Noite ficou encantada com
bruma e, ao cair o pano, de novo se vêem apenas a sua visita.
Tiltil e Mitil junto ao grande carvalho. TILTIL - Bom dia, Dona Noite.
NOITE (ofendida) - Bom dia? Não sei o que é isso.
TILTIL - Por aqui, Mitil. Poderia perfeitamente dizer: boa noite, ou pelo
MITIL - Quedê a Luz? menos: boa tarde.
TILTIL - Não sei. (Fita o pássaro na gaiola.) Olhe, TILTIL (desapontado) - Perdão, minha senhora ... Eu
O Pássaro não está mais azul! Ficou preto! não sabia. (Aponta para os dois meninos
MITIL - Me dê a mão, irmãozinho. Estou com muito NOITE - A Gata me disse agora mesmo que você vem
medo e sinto tanto frio. à procura do Pássaro Azul?...
TILTIL - Sim, se a senhora permitir. Quer me dizer
PANO onde ele está?
NOITE –Aqui ele não está.
QUARTO QUADRO TILTIL - Pois está. A Luz me disse que está, e ela
NO PALÁCIO DA NOITE sabe o que diz. Quer me emprestar as chaves?
NOITE - Isso não, filhinho. Você compreende que
Vasta e prodigiosa sala, de magnificência austera, não posso dar assim minhas chaves ao primeiro que
rígida, metálica e sepulcral, dando impressão de chegar. Ainda mais a uma criança.
templo, grego ou egípcio, cujas colunas, arquitraves, TILTIL - A senhora não tem direito de recusá-las ao
lajes e ornamentos fossem de mármore preto, de ouro Homem, que está pedindo. Eu sei.
e de ébano. Sala em forma de trapézio. Degraus de CÃO - Quer que eu tome as chaves à força, meu
basalto, que lhe ocupam quase toda a largura, dono?
dividem-na em três planos sucessivos, que se elevam TILTIL - Cale a boca, fique quieto e procure ser bem-
gradualmente para o fundo. À direita e à esquerda, educado. (A Noite.) Vamos, minha senhora, me dê as
entre colunas, portas de bronze escuro. Ao fundo, chaves, por obséquio.
portão monumental de bronze. Apenas uma claridade NOITE - Você tem o sinal, pelo menos? Onde está?
difusa, que parece emanar da própria natureza do TILTIL (toca no chapéu) - Aqui está o Diamante.
mármore e do ébano, ilumina o palácio. NOITE (resigna-se ao inevitável) - Sendo assim. . .
Esta é a chave que abre todas as portas do salão. Se
Ao levantar-se o pano, a Noite, sob a aparência de lhe acontecer alguma desgraça, a culpa é sua.
mulher lindíssima, coberta de longas vestes negras, PÃO (preocupadíssimo) - É perigoso?
está sentada nos degraus do segundo plano, entre NOITE - Perigoso? Quando algumas dessas portas se
dois meninos; um destes seminu, como o Amor, dorme abrirem, sairão todos os males, todos os flagelos,
profundamente e sorri, enquanto o outro se mantém todas as doenças, todos os terrores, todas as
de pé, imóvel e coberto dos pés à cabeça. A Gata catástrofes, todos os mistérios que atormentam a vida
entra pela direita, no primeiro plano. desde o começo do mundo.
PÃO - Dona Noite, peço licença para lhe fazer uma
GATA – Mamãe Noite, Tiltil vem aí para lhe tomar o pergunta.
Pássaro Azul. A Luz disse que ele está aqui, NOITE - Faça.
escondido entre os pássaros azuis dos sonhos, que se PÃO - Em caso de perigo, por onde é que a gente
alimentam de raios de lua e morrem ao nascer do sol. foge?
NOITE - Oh, Senhor! Ohl Senhor! Em que tempo NOITE - Não há meio de fugir,
nós vivemos! Não tenho mais um minuto de TILTIL (toma a chave e sobe os primeiros degraus) -
descanso. Aonde o Homem quer chegar? Que Vamos começar por aqui. Que há por trás desta
necessidade tem de saber tudo? Já descobriu a terça porta?
parte dos meus Mistérios, todos os meus pavores NOITE - Creio que são os Fantasmas. Da última vez
andam apavorados e não têm mais coragem de sair, que eu a abri, há muito tempo, eles não saíram.
meus Fantasmas fugiram, a maior parte de minhas TILTIL (introduz a chave na fechadura) - Vou ver.
Doenças não está se sentindo bem. (Ao Pão.) Você está com a gaiola do Pássaro Azul?
GATA - Como eles são garotos, é preciso lhes meter PÃO (batendo os dentes) - Não é que eu tenha medo,
um medo tamanho que não tenham coragem de mas não acha que seria preferível deixar como está, e
insistir nem de abrir o portão do fundo, atrás do qual olhar pelo buraco da fechadura?
estão os pássaros da Lua! TILTIL - Não pedi sua opinião.
NOITE (presta ouvidos a um rumor de fora) - Que MITIL (começa de súbito a chorar) - Estou com
barulho é esse? São muitos, então? medo! Onde está o Açúcar? Quero voltar para casa!
GATA - Não é nada. São nossos amigos Pão e AÇÚCAR (solícito, obsequioso) - Aqui, senhorita,
Açúcar. A Água está indisposta e o Fogo não pode estou aqui. Não chore. Vou cortar o dedo para lhe
vir, porque é parente da Luz. Só o Cão é que não está oferecer um pirulito.
conosco, mas não há jeito de afastá-lo. TILTIL - Vamos acabar com isso.
8

Faz girar a chave e entreabre cautelosamente a NOITE - Pois então abra, se quiser. Nada disso é lá
porta. Logo fogem cinco ou seis Espectros de formas muito ruim.
diversas e estranhas, espalhando-se por todos os
lados. O Pão, aterrorizado, atira a gaiola e vai Tíltil escancara a porta. Logo as estrelas, sob a
esconder-se no fundo do salão, enquanto a Noite, forma de lindas moças, envoltas em clarões
perseguindo os Espectros, grita para Tiltil: versicolores, fogem da prisão, espalham-se na sala e
formam, nos degraus e em redor das colunas
NOITE - Depressa, depressa! Feche a porta! Vão graciosas rondas, envoltas numa sorte de penumbra
fugir todos, e não podemos pegá-los! Vivem luminosa. Juntam-se a elas os Perfumes Noturnos,
caceteados lá dentro, depois que o Homem deixou de quase invisíveis, os Fogos-Fátuos, os Pirilampos e o
levá-los a sério ...(Persegue os Espectros, com um Orvalho Transparente; por sua vez, o Canto dos
chicote de serpentes, tentando reconduzi-los à porta Rouxinóis, ao sair em ondas da caverna, inunda o
da prisão.) Me ajudem! Por aqui! Por aqui! Palácio da Noite.
TILTIL (ao Cão) - Vamos, ajude, Tilô! MITIL (fascinada, batendo palmas) - Ah, que moças
CÃO (saltando e latindo) - Já vou! já vou! lindas!
TILTIL - E o Pão, onde está? TILTIL - Como dançam bem!
PÃO (no fundo do salão) - Aqui. Estou junto da MITIL - Que cheirinho gostoso!
porta, para impedir que eles saiam. TILTIL - Que delícia de canto!
MITIL - E aqueles ali, que a gente quase não vê?
Ao ver um dos Espectros avançar para esse lado, ele NOITE - São os perfumes da minha sombra.
foge desabaladamente, soltando gritos de pavor. TILTIL - E lá adiante, aqueles, de fios de vidro?
NOITE - São o Orvalho das Florestas e o das
NOITE (a três Espectros, agarrando-os pelo pescoço) Planícies. Chega. Não acabaria mais. É difícil como o
- Por aqui, vocês! (A Tiltil) Abra um pouquinho a diabo obrigá-los a voltar, depois que entraram na
porta, (Solta os Espectros na caverna.) Lá dentro, dança. (Bate palmas.) Vamos, depressa, Estrelas!
tudo vai bem. (O Cão traz outros dois.) Esses Não é hora de dançar. O céu está coberto, há nuvens
também. Vamos, depressa, arranjem-se! Sabem pesadas. Rápido, vamos, entrem todos, senão, vou
perfeitamente que só sairão daqui no Dia de Todos os procurar um raio de sol!
Santos.
Fuga assustada de Estrelas, Perfumes, etc.,
Fecha a porta. precipitando-se na caverna, que volta a fechar-se
sobre eles. Ao mesmo tempo, emudece o Canto dos
TILTIL (ruma para a porta vizinha) - Agora, vamos Rouxinóis.
ver esta. Que será?
NOITE - Cuidado. São as Guerras, mais terríveis e TILTIL (indo para a porta do fundo) - Aqui está o
poderosas do que nunca. Mas vamos todos ficar portão do meio.
preparados para empurrar a porta, enquanto você dá NOITE (gravemente) - Não abra.
uma olhadela rápida na caverna. TILTIL - Por quê?
NOITE - É proibido.
Com mil precauções, Tiltil entreabre a porta, de TILTIL - Então é ai que se esconde o Pássaro Azul.
maneira sue haja só uma pequenina fresta por onde A Luz me disse...
ele possa enxergar. Logo se retira, gritando: NOITE (maternal) - Escute, meu filho. Fui boa e
complacente. Fiz por você o que não fizera antes por
TILTIL - Depressa! Empurrem depressa! Elas me ninguém. Confiei-lhe todos os meus segredos. Gosto
viram! Estão vindo todas! Estão abrindo a portal muito de você, enterneço-me com sua meninice e sua
NOITE - Vamos, todos! Empurrem com força! Que é inocência, e estou lhe falando como se fosse sua mãe.
isso, Pão, que está fazendo? Empurrem todos! Elas Escute e acredite em mim, meu filho, desista. Não vá
têm uma força! Ah, aí está! Pronto, recuaram, já, era mais adiante, não provoque o Destino, não abra esta
tempo. Você viu? porta ...
TILTIL - Vi, sim. São enormes, medonhas! Acho que TILTIL (meio abalado) - Mas por quê?
o Pássaro Azul não está lá. NOITE - Porque não quero que você se perca .
NOITE - Claro que não. Ele seria comido na mesma Nenhum daqueles, está ouvindo? nenhum daqueles
hora. Então, ficou satisfeito? Viu que não há nada a que entreabriram esta porta, regressou vivo à luz do
fazer? dia. Se você teimar por o dedo nesta porta, eu
TILTIL - Preciso ver tudo. A Luz me disse. mesma, eu mesma lhe pedirei que espere um pouco,
NOITE - A Luz disse? Dizer é fácil, quando a gente é até que eu me esconda. Agora você é quem sabe; é
medrosa e fica em casa. sua hora de refletir.
TILTIL - Vamos à seguinte. Qual é?
NOITE - Esta tem um pouco de tudo. Guardo aí as Mitil, debulhada em lágrimas, solta gritos
Estrelas desocupadas, meus perfumes pessoais, alguns inarticulados de terror, procurando afastar Tiltil. .
clarões que me pertencem, como fogos-fátuos, vaga- PÃO (bate os dentes) - Não faça isso, meu
lumes, pirilampos. Também estão encerrados ai o senhorzinho! (Ajoelha-se.) Não vê que a Noite tem
Orvalho, o Canto dos Rouxinóis, etc. razão.
TILTIL - Justamente: Estrelas, Canto dos GATA - É a vida de todos nós que você vai sacrificar.
Rouxinóis ... Deve ser nessa. TILTIL - Tenho de abrir.
9

MITIL (Sapateando, entre soluços) - Não quero! Não GATA - Não. Está ali naquele raio de lua. Não
quero! puderam alcançar, era muito alto.
TILTIL - O Açúcar e o Pão dêem a mão a Mitil e
saiam com ela. Eu vou abrir. Cai o pano. Logo depois, à frente do pano descido,
NOITE - Salve-se quem puder! Venham depressa! entram simultaneamente, à esquerda a Luz, à direita
Está na hora! (Foge). Tiltil, Mitil e o Cão, todos carregados de pássaros
PÃO (foge às carreiras) - Esperem ao menos que nós que acabam de capturar. Estes, porém, já inertes, de
chequemos à ponta do salão! cabeça pendente e de asas partidas, são apenas
GATA (foge do mesmo jeito) - Esperem! Esperem! despojos inanimados em suas mãos.

Escondem-se por trás das colunas, no outro extremo LUZ - Então, conseguiram pegar?
do salão. Tiltil fica sozinho com o Cão, junto à porta TILTIL - Pegamos, sim. Quantos a gente quis.
monumental. Milhares! Estão aqui. Viu? (Olha os pássaros, e, ao
apresentá-los à Luz, percebe que morreram.) Que é
CÃO (arquejante, entre soluços de pavor contido) - isso, não vivem mais? Que foi que lhes fizeram? Os
Eu vou ficar... Eu fico... Não tenho medo... Eu fico... seus também, Mitil? Os de Tilô também!
Fico perto do meu dono... Fico! Fico. (Atira fora, com raiva, os pássaros mortos.) Ah, não,
TILTIL (acaricia o Cão) - Muito bem, Tilô, muito é tão feio! Quem foi que matou? Me sinto tão
bem. Me dê um beijo. Nós somos dois. Agora, infeliz! ...
cuidado! (Põe a chave na fechadura. Um grito de
horror parte do outro extremo da sala, onde se Soluça, escondendo a cabeça sob o braço.
refugiaram os medrosos. Mal a chave tocou na porta,
os altos batentes se abrem pelo meio, deslizam LUZ (aperta-o nos braços, maternalmente) - Não
lateralmente e desaparecem, à direita e à esquerda, chore, meu filho... Você não apanhou aquele que pode
na espessura das paredes, desvendando de surpresa - viver em pleno dia. Ele foi para outro lugar.
irreal, infinito, inefável o mais inesperado jardim de Havemos de encontrá-lo.
sonho e de luz noturna, onde entre estrelas e planetas, CÃO (olha os pássaros mortos) - Será que se pode
clareando tudo aquilo em que tocam, voando comer?
continua mente de pedraria em pedraria, de raio de
lua em raio de lua, feéricos pássaros azuis circulam Ficam todos à esquerda.
constante e harmoniosamente até os confins do
horizonte, tão numerosos que se diria serem o hálito,
a atmosfera azulínea, a própria substância do jardim SEXTO QUADRO
maravilhoso. - Tiltil, fascinado, tonto, erguido na luz A FRENTE DO PANO
do jardim) Ah! O céu! ... (Voltando-se para os que
fugiram. ) Venham depressa! Estão aqui! São eles, são Entram Tiltil, Mitil, a Luz, o Cão, o Fogo, o Açúcar,
eles! Finalmente, vamos pegá-los! Milhares de a Água e o Leite.
pássaros azuis! Milhões! Bilhões! Demais! Venha,
Mitil! Venha, Tilô! Venham todos, me ajudem! LUZ - Recebi um recado da Fada Beriluna, dizendo
(Atira-se aos pássaros.) Pode-se pegar aos montes! que o Pássaro Azul provavelmente está por aqui.
Não são selvagens, não têm medo de nós! Por aqui, TILTIL - Onde?
por aqui! (Mitil e os outros acorrem. Entram no LUZ - Aí, no cemitério, atrás deste muro. Parece que
jardim deslumbrante, menos a Noite e a Gata.) Estão um dos mortos o escondeu na sepultura. Resta saber
vendo? São muitos e pousam ,nas minhas mãos. qual deles. Temos de revistar todos.
Olhem só, estão comendo raios de luar! Mitil, onde TILTIL - Revistar? Como é que vamos fazer?
está você? Há tantas asas azuis, tantas plumas caindo, LUZ - É simples. A meia- noite, para não importuná-
que a gente não vê absolutamente nada! Tilô, não vá los muito, você vira o Diamante. Veremos quando
morder, não faça mal a eles! Peque com toda a saírem da terra. E os que não saírem, a gente vê no
delicadeza! fundo das covas.
MITIL (cercada de pássaros azuis) - Já pequei sete!
Ah, como batem asas! Não posso segurar! SÉTIMO QUADRO
TILTIL - Eu também não posso, peguei demais! Estão No cemitério
fugindo! Estão voltando! Tilô também pegou urna
porção! Vão nos arrastar, nos levar para o céu! Ande, Noite. Luar. Cemitério campestre. Numerosos
vamos sair por aqui! A Luz está nos esperando, e vai túmulos, montinhos de relva, cruzes de madeira,
ficar satisfeitíssima! Por aqui, por aqui! lápides funerárias, etc.

Fogem do jardim, com as mãos cheias de pássaros Tiltil e Mitil e os outros de pé, junto a uma coluna
que se debatem, atravessando o salão em meio ao funerária.
louco palpitar de asas azulíneas. Sequem-se o Pão e o
Açúcar, que não apanharam pássaros. Ficando só, a MITIL - Estou com medo!
Noite e a Gata caminham para o fundo e miram TILTIL (Bastante intranqüilo) - Eu, não. Nunca tive
ansiosamente o jardim. medo.
MITIL - Me diga uma coisa, os mortos são maus?
NOITE - Pegaram? TILTIL - Não. Pois se eles não vivem!
10

MITIL - Você já viu algum? pouco, todas as coisas, transformando o Cemitério


TILTIL - Vi uma vez, há muito tempo, quando eu era numa espécie de jardim nupcial e feérico, sobre o
pequeno. qual não tardam a erguer-se os primeiros raios da
MITIL - Como é? Conte. aurora. Cintila o orvalho, flores desabrocham, o
TILTIL - Completamente branco, muito sossegado, vento murmura nas falhas, abelhas zumbem, pássaros
muito frio, não fala. . despertam e inundam o espaço com os primeiros
MITIL - A gente vai ver alguns? êxtases de seus hinos ao sol e à vida, Estupefatos,
TILTIL - Claro. A Luz prometeu. deslumbrados, Tiltil e Mitil de mãos dadas, ensaiam
MITIL - Onde é que os mortos estão? alguns passos entre as flores, procurando traços de
TILTIL – Aqui, debaixo da relva ou debaixo dessas sepultura.
pedras grandes.
MITIL - Estão aqui o ano inteiro? MITIL (procura na grama) - Os mortos onde estão?
TILTIL - Estão. TILTIL (procura também) - Não existem mortos...
MITIL (mostra as lápides) - São as portas das casas
deles? PANO
TILTIL - São.
MITIL - Saem quando o dia está bonito? OITAVO QUADRO
TILTIL - Só podem sair de noite.
MITIL - Por quê? À FRENTE DA CORTINA, QUE REPRESENTA
TILTIL - Porque estão de camisola. BELA PAISAGEM DE NUVENS
MITIL - Saem também quando chove? Entram Tiltil, Mitil, a Luz, o Cão, a Água, o Pão, o
TILTIL - Quando chove, ficam em casa. Fogo, o Açúcar , a Gata e o Leite.
MITIL - É bonita a casa deles?
TILTIL - Dizem que é muito apertada, LUZ - Acho que desta apanhamos o Pássaro Azul. Eu
MITIL - Têm filhinhos? devia ter pensado nisso desde o começo. Estamos à
TILTIL - Claro. Têm todos os que morreram. porta do jardim encantado onde se acham reunidas
MITIL - E de que é que vivem? todas as Alegrias e Felicidades do Homem.
TILTIL - Comem raízes. TILTIL - São muitas? Vamos pegá-las? São
MITIL - A gente vai vê-los, mesmo? pequeninas?
TILTIL- Claro. A gente vê tudo, quando vira o LUZ - Há pequenas e grandes, gordas e delicadas.
Diamante. Umas belíssimas, outras menos agradáveis. Em geral,
MITIL - E que é que vão dizer? as Felicidades são muito boas. Algumas, porém, são
TILTIL - Não vão dizer nada. Não falam. mais perigosas e pérfidas do que as grandes
MITIL - Por que não falam? Infelicidades.
TILTIL - Porque não têm nada para dizer. PÃO - Tenho uma idéia. Se são perigosas e pérfidas,
MITIL - Por que não têm nada para dizer?. não seria preferível que nós todos ficássemos
TILTIL - Não amole! esperando na porta, para ajudar as crianças, caso elas
Silêncio. sejam obrigadas a fugir?
CÃO - Absolutamente, Absolutamente! Quero ir a
MITIL - Quando você vai virar o Diamante? toda parte com os meus pequenos donos. Quem
TILTIL - Você sabe muito bem que a Luz mandou estiver com medo fique na porta. Não precisamos
esperar até meia-noite, porque então a gente (Olhando o Pão) de medrosos, (olhando a Gata) nem
incomoda menos. de traidores.
FOGO - Eu vou. Parece que é divertido. Vive-se
Soam as doze pancadas da meia- noite. dançando por lá.
PÃO - E come-se, também?
MITIL - Quero ir embora! ÁGUA (Gemendo) - Nunca vi na minha vida a menor
TILTIL - Não é hora disso. Vou virar o Diamante. Felicidadezinha. Faço questão de ver!
MITIL - Não, não! Não faça isso! Quero ir embora! LUZ - Calem-se. Ninguém pediu a opinião de vocês.
Estou com tanto medo, meu irmãozinhol Um medo Resolvi o seguinte: o Cão, o Pão e o Açúcar
terrível! acompanham as crianças. A Água não entra, porque é
TILTIL - Está na hora. O tempo vai passando! muito fria, nem o Fogo, que é muito briguento. Peço
ao Leite, com empenho, que se conserve a porta,
Tiltil vira o Diamante. Terrífico minuto de silêncio e porque é muito impressionável. A Gata fará o que
imobilidade; depois, lentamente, as cruzes oscilam, os quiser.
montinhos se entreabrem, as lápides se levantam. CÃO - Ela está com medo.
GATA - De passagem, vou cumprimentar algumas
MITIL (aconchega se ao peito de Tiltil) - Estão Infelicidades minhas velhas amigas; que moram perto
saindo! Estão aí! das Felicidades.
TILTIL - Você não vem, Luz?
Então, de todas as covas escancaradas, sobe LUZ - Não posso entrar assim em casa das
gradualmente uma floração a princípio mofina e Felicidades. A maioria não me suporta ... Mas eu
tímida como vapor de água, depois branca e virgínea, trouxe o véu espesso que uso para visitar pessoas
cada vez mais densa e mais alta, profusa e felizes. (Desdobra um longo véu e envolve-se nele,
maravilhosa, a invadir irresistivelmente, pouco a cuidadosamente.) Não vá um raio de minha alma
11

assustá-las; há muitas Felicidades medrosas, que não segurando os ventres, em direção ao grupo das
são felizes ... Eis aí: desta maneira, as menos bonitas e crianças.
até as mais gordas não precisam recear coisa alguma.
LUZ - Não tenha medo, são muito acolhedoras.
Abre-se a cortina para o nono quadro. Provavelmente vão convidá-lo para jantar. Não
aceite. Não aceite nada, para não se esquecer de sua
NONO QUADRO missão.
NO JARDIM DAS FELICIDADES TILTIL - O quê? Nem um docinho? Eles têm um ar
tão gostoso, tão fresco!
Ao abrir-se a cortina, desvendasse, no primeiro plano LUZ - São perigosos e afrouxariam sua vontade.
do jardim, uma espécie de sala formada por altas Recuse delicadamente, mas com firmeza. Aqui estão.
colunas de mármore, entre as quais, dissimulando FELICIDADE GORDA (estende a mão a Tiltil) -
todo o fundo, se estendem pesadas cortinas de Bom dia, Tiltil.
púrpura, pendentes de cordões de ouro. A TILTIL (espantado) - A senhora me conhece? Quem
arquitetura lembra os momentos mais sensuais e é a senhora?
suntuosos da Renascença veneziana ou flamenga FELICIDADE GORDA - Sou a mais gorda entre as
( Veronese e Rubens). Guirlandas, cornucópias, Felicidades, a Felicidade-de-ser-rico. Em nome de
torsos, vasos, estátuas, dourados enxameiam por toda minhas irmãs, peço a você e a sua família que venham
parte. - Ao meio, maciça e feérica mesa de jaspe e honrar o nosso jantar infinito. Ficarão no meio do que
prata dourada, repleta de tochas, cristais, baixelas de há de melhor entre as verdadeiras e grandes
ouro e prata, e atulhada de manjares fabulosos. - Em Felicidades deste mundo. Permitam que lhes
redor da mesa, comem, bebem, urram, cantam, apresente as principais dentre nós. Aqui está minha
agitam-se, espojam-se ou adormecem entre pratos de nora, a Felicidade-da-vaidade-satisfeita, cujo rosto é
caça, frutas fantásticas, ânforas e gomis derrubados, tão graciosamente balofo. (A Felicidade-da-vaidade-
as maiores Felicidades da Terra. São enormes, satisfeita cumprimenta com ar protetor.) Aqui estão a
incrivelmente obesas e rubicundas, cobertas de Felicidade-de-beber-quando-não-se-tem-mais-sede, e
veludos e brocados, coroadas de ouro, pérolas e a Felicidade-de-comer-quando-não-se-tem-mais-fome,
pedrarias. Belas escravas trazem continuamente que tem pernas de macarrão. (Cumprimentam,
pratos enfeitados e bebidas espumantes. - Música cambaleantes.) Aqui, a Felicidade-de-ignorar-tudo,
vulgar, hilariante e grosseira, em que dominam os surda como uma porta, e a Felicidade-de-não-
metais. Luz pesada, vermelha, banha a cena. compreender-nada, cega como uma toupeira. Esta é a
Felicidade-de-não-fazer-nada, e a outra, a Felicidade-
Tiltil, Mitil, o Cão, o Pão e o Açúcar, a princípio de-dormir-mais-do-que-o-necessário; tem mãos de
bastante intimidados, comprimem-se à direita, no miolo de pão, e olhos de geléia de pêssego. Aqui,
primeiro plano, em redor da Luz. Sem nada dizer, a finalmente, a Risada Espessa, aberta até as orelhas, e
Gata dirige-se para o fundo, também à direita, à qual ninguém pode resistir ...
soergue uma cortina e desaparece.
Risada Espessa cumprimenta, retorcendo-se toda.
TILTIL - Quem são essas senhoras gordas que se
divertem e comem tantas coisas boas? TILTIL (aponta para uma Felicidade Gorda, que se
LUZ - São as maiores Felicidades da Terra, aquelas mantém um pouco afastada) - E aquela ali, que não
que a gente pode ver a olho nu. É possível, embora tem coragem de se aproximar, e virou as costas?
pouco provável, que o Pássaro Azul se tenha perdido FELICIDADE GORDA - Não insista, aquela está um
por um instante no meio delas. Assim, não vire ainda pouco constrangida. Não pode ser apresentada a
o Diamante. Por formalidade, vamos primeiro crianças... (Segura as mãos de Tiltil.) Venham. A
explorar esta parte do salão. festa vai recomeçar.(Dá o braço às crianças.) Com
TILTIL - Pode-se chegar perto? licença, vou conduzi-los aos dois lugares de honra.
LUZ - Certamente. Não são más, embora vulgares, e TILTIL - Muito obrigado, Dona Felicidade Gorda.
geralmente mal-educadas. Lamento mas agora não posso. Estamos com muita
TILTIL - Que doces bonitos! pressa, procuramos o Pássaro Azul. Não sabe, por
CÃO - E caça! Salsichas! Pernil de carneiro e fígado acaso, onde ele está escondidos
de vitela! (Declamatório.) Nada no mundo é melhor, FELICIDADE GORDA - Pássaro Azul? Espere um
mais bonito e mais precioso do que fígado de vitela! pouco. Sim, sim, recordo-me. Falaram- me sobre ele
PÃO - Exceto os pães de meio quilo, preparados com há tempos. Não comestível. Em todo caso, ele nunca
a fina flor do frumento! E há ali uns admiráveis! Que apareceu em nossa mesa. Mas temos tantas coisas
beleza! Que beleza! Maiores do que eu! melhores. Vocês vão participar de nossa vida, verão
AÇÚCAR - Perdão, perdão, mil perdões. Com tudo que fazemos.
licença, sim? Com licença. Eu não desejaria magoar TILTIL - Fazem o quê?
ninguém, mas não se esqueçam de que as gulodices FELICIDADE GORDA - Ora, estamos sempre
que são a glória desta mesa! ocupadas em não fazer nada. Não há um minuto de
TILTIL - Parecem tão satisfeitas, tão felizes! Como descanso. É preciso beber, é preciso comer, é preciso
gritam! E riem! E cantam! Acho que já nos viram. dormir. Absorve muito.
TILTIL - É divertido?
De fato, umas doze Felicidades, das maiores, se FELICIDADE GORDA - Claro. Se é necessário, e
levantaram da mesa e caminham penosamente, não há outra coisa neste mundo...
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LUZ - A senhora acha? sombra no jardim deslumbrante. Por isso, em


FELICIDADE GORDA (apontando a Luz, baixo, a desespero, a maioria resolve transpor a cortina
Tiltil ) - Quem é essa dona mal-educada? ameaçadora que, à direita, em um ângulo, fecha a
abóbada da caverna das Infelicidades. Cada vez que
Durante a conversa, uma chusma de felicidades uma delas, em meio ao pânico, levanta uma dobra de
gordas de segunda categoria, cerca o Pão, o Açúcar cortina, sobe da cavidade do antro uma tempestade
e o Cão, arrastando-os para a orgia. De uma hora de injúrias, imprecações e maldições. O Cão, o Pão e
para outra, Tiltil os vê reunidos fraternalmente à o Açúcar, de orelhas murchas, vão juntar-se ao
mesa, comendo, bebendo e agitam-se com frenesi. grupo das crianças e, envergonhadíssimos, escondem-
se atrás delas.
TILTIL - Venha aqui, Luz! Eles foram para a mesa!
LUZ - Chame-os, senão vai acabar mal! TILTIL (vendo fugir as Felicidades Gordas) - Como
TILTIL - Tilô! Tilô! Aqui! Venha imediatamente são feias, meu Deus! Para onde vão?
está ouvindo? E você, Açúcar e Pão, quem lhes deu LUZ - Palavra de honra, acho que perderam a cabeça.
licença para me deixar? Que fazem aí, sem Vão se refugiar em casa das Infelicidades, e receio
autorização? muito que fiquem lá para sempre.

PÃO (de boca cheia) - Você não podia falar conosco O jardim começa a povoar-se com formas
mais delicadamente? angelicais, que parecem sair de longo sono e
TILTIL - O quê? É o Pão que me trata com essa falta deslizam harmoniosamente entre as árvores. Trajam
de cerimônia? Que foi que você viu? E você, Tilô, é vestes luminosas, de matizes suaves e sutis:
assim que obedece? Vamos, venha cá e fique de desabrochar de rosa, sorriso de água, azul de autora,
joelhos, ouviu? De joelhos! Depressa! orvalho de âmbar, etc.
CÃO (a meia voz, na extremidade da mesa) - Eu,
quando como, não estou para ninguém, e não escuto LUZ - Estão se aproximando algumas Felicidades
coisa alguma. amáveis e curiosas, que nos darão informações.
AÇÚCAR (Melífluo) - Desculpem. Nós não podíamos TILTIL - São suas conhecidas?
deixar assim hospedeiros tão amáveis... Ficariam LUZ - São. Conheço todas. Vou muitas vezes à casa
melindrados. delas, porém não sabem quem sou.
FELICIDADE GORDA - Estão vendo? Eles dão o TILTIL - São tantas, tantas! Saem de todos os lados!
exemplo. Venham, estamos à espera de vocês. Não LUZ - Antigamente, o número era maior ainda, Mas
admitimos recusa. Vamos fazer uma doce violência ... as Felicidades Gordas foram muito más para elas.
Ei, Felicidades, me ajudem! Vamos levá-los a força TILTIL - Não tem importância. Sobraram tantas.
para a mesa. Eles têm de ser felizes, mesmo contra a LUZ - Você verá muitas outras, à medida que a
vontade! influência do Diamante se espalhar pelo jardim. Há
na Terra muito mais Felicidades do que se imagina. A
As Felicidades Gordas, entre gritos de alegria, e aos maioria dos Homens é que não sabe descobri-las.
pulos, arrastam as crianças, que se debatem,
enquanto a Risada Espessa agarra violentamente a Entra um grupo de felicidades infantis, que irrompe
LUZ pela cintura. no jardim cantando, com toda força! "Estão aqui!
Estão aqui! Já nos viram! Já nos viram! " e dança em
LUZ - Vire o Diamante, enquanto é tempo! redor dos meninos uma alegre farândola; no fim, a
criança que parece chefiar o grupinho dirige-se para
Tiltil obedece à Luz, e logo o palco se banha de Tiltil, estendendo-lha e a mão.
claridade inefavelmente pura, divinamente rósea,
harmoniosa e ligeira. Os pesados ornamentos do FELICIDADE - Bom dia, Tiltil!
primeiro plano e as espessas tapeçarias vermelhas se TILTIL - Mais outra que me conhece. (A Luz.) Estou
desprendem e desaparecem, desvendando um começando a ficar conhecido em toda parte. . . Quem
fabuloso e suave jardim de paz ligeira e de é você?
serenidade, espécie de palácio de verdura. A mesa da FELICIDADE- Não está me reconhecendo? Aposto
orgia desfaz-se sem deixar sinal; os veludos, brocados que não reconhece nenhuma das que estão aqui.
e coroas das Felicidades Gordas, ao sopro luminoso TILTIL (um tanto embaraçado) – Eu não sei. . . Não
que invade o palco, soerguem- se, rasgam-se e caem, me lembro de ter visto vocês.
como as máscaras hilariantes, aos pés dos convivas FELICIDADE - Ouviram? Eu tinha certeza. Ele
aturdidos. Estes se afinam a olhos vistos, como nunca nos viu! (As outras felicidades do grupo caem
bexigas furadas, piscando entre raios desconhecidos na gargalhada.) Meu caro Tiltil! Sou a chefe das
que os ofuscam. Vendo-se enfim tais quais são em Felicidades-de-nossa-casa; e essas todas aí são as
verdade, isto é, nus, horríveis, flácidos e lamentáveis, Felicidades que moram lá. Em primeiro lugar, esta
põem-se a soltar urros de vergonha e terror, sua servidora, a Felicidade-de-ter-saúde. Esta aqui, a
distinguindo-se nitidamente os da Risada Espessa, Felicidade-do-ar-puro , é quase transparente. Aqui
que dominam todos os demais. Só a Felicidade-de- está a Felicidade-de-amar-os-pais, vestida de cinzento
não-comprernder-nada continua perfeitamente calma, e sempre um pouco triste, pois nunca se repara nela.
enquanto suas colegas se agitam como loucas, Eis a Felicidade-do-céu-azul, que naturalmente se
procuram fugir e esconder-se nos cantos que lhes veste de azul; a Felicidade-da-floresta, que não menos
parecem mais sombrios. Contudo, não há mais naturalmente se veste de verde, e que você verá
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sempre que se debruçar à janela. Eis aqui ainda a boa ano. Lá em casa isto não se vê, mas aqui se vê tudo, e
Felicidade-das-horas-de-sol, que é cor de diamante, e é verdade.
a Primavera, cor de esmeralda maluca. TILTIL - Engraçado, eu nunca podia imaginar que
TILTIL - Vocês são bonitas assim, todos os dias? você fosse tão rica. Mas onde é que escondia este
FELICIDADE - Claro. Todo dia é domingo, em todas vestido? No armário de que papai tem a chave?
as casas, quando a gente está de olhos abertos. Mas Nossa, seus olhos estão cheios de estrelas- A voz
eis que chegam as Grandes alegrias! também é a sua, mas você fala muito melhor do que
lá em casa.
Com efeito, altas e belas figuras angélicas, luminosas, AMOR MATERNO - Agora que já me viu, será que
aproximam-se lentamente, vai me reconhecer com o meu vestido rasgado,
quando voltar para casa amanhã?
TILTIL - Que bonitas! Por que não riem? São TILTIL - Não quero voltar. Já que você está aqui,
infelizes? quero ficar aqui também enquanto você estiver.
LUZ - Não é quando rimos que somos mais felizes. AMOR MATERNO - Mas é a mesma coisa, é lá que
TILTIL - Sabe como se chamam? eu estou, é lá que nós estamos. Mas, como você fez
FELICIDADE - Naturalmente. Brincamos sempre para chegar aqui e descobrir um caminho que os
juntas. Aqui está, primeiro, a frente das outras, a Homens têm procurado desde que apareceram na
Grande Aleqria-de-ser-Justo , que sorri cada vez que Terra?
uma injustiça é reparada, eu sou muito moça, ainda TILTIL (mostra a Luz que, por discrição, se afastou
não a vi sorrir. Atrás dela, veja a Alegria-de-ser- bom, um pouco) - Foi ela que me conduziu.
que é a mais feliz, porém a mais triste. É muito difícil AMOR MATERNO - Quem?
impedir que ela vá procurar as Infelicidades para TILTIL - A Luz.
consolá-las. A direita, a Alegria-do-trabalho- AMOR MATERNO - Eu nunca a vi. Disseram-me
concluído, ao lado da Alegria-de-pensar. que ela gostava muito de você, e que era muito boa.
TILTIL - E aquela, bem longe, entre nuvens de ouro, Por que se esconde? Nunca mostra o rosto?
que mesmo eu ficando na ponta dos pés mal consigo TILTIL - Mostra, sim. Mis tem medo das Felicidades
ver? terem medo se virem tudo claro demais.
FELICIDADE- É a grande Alegria-de-amar. Por mais AMOR MATERNO - Então não sabe que vivemos
que se esforce, você ainda é muito pequenino para vê- esperando por ela? (Chama as outras Grandes
la inteiramente. Alegrias.) Venham, venham, irmãs. Venham, corram
TILTIL - E lá adiante, bem no fundo, aquelas que todas, é a Luz que veio finalmente nos visitar!
estão encobertas e não se aproximam?
FELICIDADE - São as Alegrias que os Homens ainda Frêmito entre as Grandes Alegrias, que se
não conhecem. aproximam. Gritos: "A Luz está aqui. A luz está
TILTIL - Que é que as outras estão querendo? Por aqui!” Todas a beijam!
que se afastam?
FELICIDADE - Porque uma Alegria nova está LUZ (aconchega mais o véu) - Irmãs, belas irmãs! Eu
chegando, talvez a mais pura de todas. obedeço ao meu senhor! Ainda não chegou a hora,
TILTIL - Qual é? que um dia talvez soará. Então, voltarei sem temores
FELICIDADE - Não a reconheceu ainda? Repare bem e sem sombras. Adeus. Levantem-se. Vamos nos
Ela já viu você, já viu! Está correndo e lhe estende os beijar mais uma vez, como irmãs que se encontram, à
braços! É a Alegria de sua mãe, a Alegria- espera do dia que vai clarear daqui a pouco.
incomparável-do-amor-materno. AMOR MATERNO (Beijando a Luz) - Você foi boa
para meus queridos.
Depois de aclamá-la, as outras Alegrias, vindas de LUZ - Serei sempre boa para aqueles que se amam.
toda parte, afastam-se em silêncio, diante da Alegria-
do-amor-materno. Beijam-se longamente e, ao se separarem e erguerem
as cabeças, têm lágrimas nos olhos.
AMOR MATERNO - Tiltil! Mitil! São vocês? São
vocês mesmo que estou vendo aqui? Eu não esperava! TILTIL (espantado) - Por que estão chorando?
Estava tão sozinha em casa, e de repente vocês dois (Repara nas outras Aleqrias.) Ué, vocês também. Por
sobem ao céu, onde as almas das mães cintilam que é que todo mundo está com lágrimas nos olhos?
alegremente. Mas, antes de tudo, quero beijos, uma LUZ - Silêncio, meu filho.
porção enorme de beijos. Todos dois em meus
braços: não há nada no mundo que dê mais felicidade. PANO
Tiltil, você não ri? Nem você também, Mitil? Não
conhecem o amor de mamãe? Reparem em mim: não QUINTO ATO
são meus olhos, meus lábios, meus braços? DÉCIMO QUADRO
TILTIL - Claro que estou reconhecendo, mas eu não
sabia... Você se parece com mamãe, mas é muito mais NO REINO DO FUTURO
bonita.
AMOR MATERNO - Mas é evidente: eu não Salas imensas, no Palácio do Azul, onde esperam as
envelheço mais. E cada dia que passa me dá força, crianças que vão nascer. - Infinitas perspectivas de
juventude, felicidade. Cada sorriso seu me remoça um colunas de safira, sustentando abóbadas de turquesa.
Tudo, desde a luz e as lajes de lápis-lázuli até as
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pulverulências do fundo, onde se perdem os últimos TILTIL - Quando a gente fica tremendo assim...
arcos, até os menores objetos, é de um azul irreal, MENINO - É frio na Terra?
intenso, feérico. Somente os capitéis e os socos das TILTIL - As vezes. Você é rico? Que idade tem?
colunas, as chaves de abóbadas e alguns bancos MENINO- Vou nascer daqui a pouco. Dentro de doze
circulares são de mármore branco ou de alabastro. A anos. È bom nascer?
direita, entre colunas, grandes portas opalinas, cujas TILTIL - Ah, é. Tão divertido!
folhas, ao findar a cena, serão fechadas pelo Tempo, MENINO - Na Terra choram muito?
e que se abrem sobre a Vida Atual e o cais do TILTIL - Os meninos, não: as meninas. Aqui
Amanhecer. Por toda parte, e encher ninguém chora?
harmoniosamente a sala, chusma de crianças MENINO - Acho que não.
trajando longas vestes azuladas. Estas brincam, TILTIL - Que é isso com que você está brincando,
aquelas passeiam, outras conversam ou devaneiam; essas asas brancas, enormes?
muitas dormem, outras tantas trabalham, entre MENINO - Isso? É a invenção que vou levar para a
colunatas, nas invenções futuras; os utensílios, Terra.
instrumentos e aparelhos que constróem, as plantas, TILTIL - Invenção? Você é inventor?
flores e frutos que cultivam ou colhem, têm o mesmo MENINO - Claro, pois você não sabe? Quando eu
azul sobrenatural e luminoso da atmosfera geral do estiver na Terra hei de inventar a Coisa-que-faz-a-
Palácio. - Entre as crianças, revestidas de azul mais gente-feliz. Trabalho nela todo dia. Está quase pronta.
pálido e mais diáfano, desfilam e tornam a desfilar OUTRO MENINO-AZUL (aproximasse de Tiltil e
algumas figuras de porte elevado, de uma beleza puxa-o pela manga) - Quer ver a minha, quer?
soberana e silenciosa, semelhantes a anjos. TILTIL- Quero, sim. Que é?
SEGUNDO MENINO - Trinta e três remédios para
Entram, à esquerda, como furtivamente, esgueirando- prolongar a vida. Ali, naqueles frascos azuis.
se por entre as colunas do primeiro plano, Tiltil, Mitil
e a Luz. A chegada provoca certo movimento entre os Os Meninos-Azuis se acotovelam em redor de Tiltil e
meninos-Azuis, que logo acorrem de todos os lados e Mitil, gritando todos ao mesmo tempo: "Não, não,
se agrupam em redor dos insólitos visitantes, venha ver a minha! Não, a minha é mais bonita! A
contemplando-os curiosamente. minha é espantosa! A minha é toda de açúcar! A
dele não tem nada demais! Ele roubou a minha
TILTIL - Onde é que estamos? idéia.”
LUZ - No Reino do Futuro, entre as crianças que
ainda não nasceram. Provavelmente encontraremos UM MENINO-AZUL - Está vendo aquele menino ali?
aqui o Pássaro Azul. TILTIL - Qual?
TILTIL - Claro que encontraremos, pois aqui tudo é MENINO - Aquele que dorme perto da coluna
azul (Olha em redor.) Que beleza tudo isso, meu TILTIL - E então?
Deus! MENINO - Vai levar a alegria pura à face da Terra.
LUZ - Olhe os meninos chegando. TILTIL - Como?
TILTIL - Zangados? MENINO - Por meio de idéias que ninguém teve
LUZ - Não. Repare que estão sorrindo, embora ainda.
espantados. TILTIL - E aquele outro, aquele gordinho que meteu
MENINOS-AZUIS (acorrem cada vez mais o dedo no nariz, que vai fazer?
numerosos) Meninos Vivos! Venham ver Meninos MENINO - Vai encontrar o fogo para aquecer a Terra,
Vivos! quando o Sol esfriar.
TILTIL - Por que é que nos chamam de Meninos TILTIL - E aqueles dois de mãos dadas, que vivem se
Vivos? beijando? Irmão e irmã?
LUZ - Porque eles ainda não vivem. MENINO - Não, são engraçadíssimos. .. São os
TILTIL - Então, que é que eles fazem? Namorados.
LUZ - Esperam a hora de nascer. Há muitos outros TILTIL - Que é isso?
ainda. MENINO - Não sei. O Tempo é que diz assim, para
TILTIL - E aqueles vultos grandes, azuis? Quem caçoar deles. Ficam o dia inteiro de olhos
são? mergulhados nos olhos, se beijando, se dizendo adeus.
LUZ - Supõe-se que sejam Anjos da Guarda. TILTIL UM MENINO (que acaba de chegar, beijando Tíltil e
- E os outros, pequenos, posso falar com eles? Mitil com efusão) - Bom dia! Tudo bem? Me dê um
LUZ - Pode, ali está um mais curioso do que os beijo, vamos. Você também, Mitil. Não se espante de
outros. Chegue perto e fale com ele. eu saber seu nome, pois vou ser seu irmão. Acabaram
TILTIL - (aproxima-se do menino Azul e estende-lhe de me dizer que você estava aqui. Eu estava ali no
a mão) Bom dia! (tocando com o dedo a roupa azul canto da sala, empacotando minhas idéias. Diga a
do menino) Que é isso? Mamãe que estou pronto.
MENINO (tocando com o dedo, gravemente, o TILTIL - Como? Você quer ir lá para casa?
chapéu de Tiltil) - E isso? MENINO - Claro, vou chegar no Domingo de Ramos.
TILTIL - Isso? Meu chapéu. Você não tem? Ah, e diga a Papai para consertar o berço, para não
MENINO - Não. Para que? ficar de última hora!
TILTIL - Para dar bom dia. Além disso, quando faz
frio... Nesse momento, eleva-se e espalha-se uma espécie de
MENINO - Que é fazer frio? vibração prolongada, intensa e cristalina, que parece
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emanar das colunas e das portas de opala, banhadas MENINA (estende passionalmente os braços para o
por uma claridade mais viva. menino, que é levado à força) - Um sinal! Só um
sinal! Diga como é que vou reconhecer você!
'I'ILTIL - Que é isso? MENINO - Hei de amar você a vida inteira!
UM MENINO - É o Tempo. Vai abrir as portas. MENINA - Vou ser a menina mais triste! Você me
reconhecerá!
Logo se propaga um vasto rebuliço na multidão dos
Meninos-Azuis. A maior parte larga suas máquinas e Cai e fica estendida no chão.
trabalhos; muitos que dormiam, acordaram e outros
volvem os olhos para as portas de opala, e delas se TEMPO - Seria melhor vocês esperarem. E agora,
aproximam. pronto. (Corsulta a ampulheta.) Faltam só 63
segundos.
LUZ (indo para perto de Tiltil) - Vamos nos esconder
atrás das colunas. Não convém que o Tempo nos Última e intensa agitação entre as crianças que
descubra. embarcam e as que ficam. Trocam-se adeuses
apressados: ",4deus, Pedro! - Adeus, João! - Está
As grandes porta se abrem e entra o Tempo, velho levando tudo que é necessário? Anuncie meu
alto de barba esvoaçante, munido de foice e pensamento!- meu pensamentos - Não esqueceu
ampulheta. nada? - Procure me reconhecer! - Hei de encontrar
você! - Não perdeu suas idéias? - Não se debruce
TEMPO (no limiar)- Os de hora marcada estão demais no Espaço! - Mande notícias! – Dizem que é
prontos? impossível.. - Mande, experimente de qualquer modo.
MENINOS-AZUIS (rompem a multidão e correm de Mande dizer se é bonito! Irei ao seu encontro - Vou
todos os lados) - Estamos aqui! Estamos aqui! nascer no trono" etc., etc.
Estamos aqui! ]
TEMPO - Um a um! Outra vez aparecem muitos TEMPO (agita as chaves e a foice) - Basta! Basta! A
além dos chamados. Sempre a mesma coisa! A mim âncora já foi levantada!
não me enganam. (Repele uma criança) Não é sua
vez. Volte amanhã. Você também não: vá para trás e Passam e desaparecem as velas da galera. Vão
volte daqui a dez anos. Mais médicos? Eles já são enfraquecendo os gritos infantis lá dentro: "Terra! A
tantos, na Terra , que já estão reclamando. Precisamos Terra! Já estou vendo! É bonita! É clara! É
de um homem de bem, um só, a Título de Fenômeno. grande! ..! Depois, como a sair do fundo do abismo,
Afinal, onde está este homem de bem? É você? ( o canto extremamente longínquo, de alegria e
menino diz sim com a cabeça) Parece tão fraquinho... esperança.
Não vai viver muito tempo. E você, que traz? Nada?
De mãos vazias? Então não pode passar. Prepare TILTIL - Que é? Eles não cantam mais, parece que as
alguma coisa, um crime sensacional, uma doença, se vozes mudaram...
quiser... Para mim tanto faz... mas corram! Restam LUZ - Sim, é o canto das Mães que vêm ao encontro
apenas 612 segundos! A barca da Aurora já içou as deles.
velas para mostrar que está esperando. Vocês vão
chegar muito tarde e não nascerão mais. (passa em Enquanto isso, o Tempo fecha as portas opalinas.
revista as crianças) falta um. Não adianta se esconder, Volta- se para lançar um último olhar ao salão, e
daqui o vejo na multidão. A mim não enganam. subitamente percebe Tíltil, Mitil e a Luz.
Vamos, você aí, Namorado, diga adeus à sua pequena.
TEMPO (estupefato, furioso) - Que negócio é esse?
As duas crianças que têm o nome de Namorados, Que estão fazendo aqui? Quem são vocês? Por que
abraçadas ternamente, e com desespero nos olhos, não são azuis? Por onde entraram? (Avança,
dirigem-se ao Tempo e ajoelham-se a seus pés. ameaçando- os com a foice.)
LUZ (a Tiltil) - Não responda! Apanhei o Pássaro
MENINA - Seu Tempo, me deixe seguir com ele! Azul ... Está escondido no meu capote. Vamos
MENINO - Seu Tempo, me deixe ficar com ela! embora. Vire o Diamante, e ele perderá o nosso
TEMPO - Impossível! Faltam apenas 394 segundos. rumo.
MENINO - Prefiro não nascer.
TEMPO -.A escolha não depende de vocês. Fogem pela esquerda, entre as colunas do primeiro
MENINA - Seu tempo, vou chegar tarde demais. plano.
MENINO - Não estarei mais lá quando ela nascer!
MENINA - Nunca mais o verei! PANO
MENINO - Vamos ficar sozinhos no mundo!
TEMPO - Não tenho nada com isso. Reclamem com a SEXTO ATO
Vida. Eu uno e separo como me mandaram (segura o
menino) Venha. DÉCIMO PRIMEIRO QUADRO
MENINO - Não, não, não! Ela também! ADEUS
MENINA - Solte! Solte! O cenário representa um muro, com pequeno portão.
TEMPO - Que é isso, não é para morrer, é para viver! Amanhece.
(arrasta o Menino) Venha cá!
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Entram Tiltil, Mitil, a Luz, o Pão, o Açúcar, o Fogo e contrárias ao meu temperamento, e me fazem bastante
o Leite. mal quando molham meus pés.
PÃO - Jesuíta!
LUZ - Você não é capaz de adivinhar onde estamos. FOGO (em falsete) - Pirulitos! Balas! Caramelos!
TILTIL - Claro que não, Luz . Não sei. TILTIL - Afinal, para onde foram Tilete e Tilô? Que
LUZ - Não reconhece este muro e este portãozinho? estão fazendo?
TILTIL - È um muro vermelho, com Portãozinho
Verde. No mesmo instante, ouvem- se gritos agudos, da Gata
LUZ - Como as pessoas são engraçadas no sonho!
TILTIL - Quem está sonhando, eu? MITIL (alarmada) - Tilete está chorando! Foi
LUZ - Talvez seja eu. . . Quem sabe? É ela, sim, é a maltratada!
casa gostosa de seus pais.
TILTIL (aproxima-se da porta) - Mamãe está aqui A Gata entra correndo, eriçada, despenteada, vestes
perto? Quero entrar depressa, para beijar Mamãe! rôtas, de lenço no focinho, como se estivesse com dor
LUZ - Um momento. Estão dormindo a sono solto; de dente. Solta miados furiosos, perseguida de perto
não convém que eles acordem sobressaltados. Bem, pelo Cão, que a enche de cabeçadas, socos e
estou um pouco triste, mas é hora de deixá-los. pontapés.
TILTIL - Nos deixar?
LUZ - É preciso. Não tenho mais nada a fazer aqui. CÃO (bate lia Gata) - Tome! Apanhou bastante?
Acabou o ano, a Fada vai voltar e pedir o Pássaro Quer mais? Tomei Tome!
Azul. LUZ, TILTIL e MITIL (correm a separá-los) - Está
TILTIL - Mas eu não tenho o Pássaro Azul! A Fada maluco, Tilô? Ora essa, pare com isso! Vamos
vai se zangar? Que é que ela vai dizer? acabar com isso! Onde já se viu? Espere, Espere!
LUZ - Fizemos o possível. Parece que o Pássaro Azul
não existe, ou então muda de cor quando entra na São separados à força.
gaiola.
TILTIL - E a gaiola, onde está? LUZ - Que é isso? Que aconteceu?
PÃO - Aqui, senhor. Bem, em nome de todos, e com GATA (lamurienta, enxugando os olhos) - Foi ele,
emoção contida mas sincera e profunda, eu me Dona Luz ... Me injuriou, botou pregos na minha
despeço de duas crianças predestinadas, cuja alta sopa, me puxou pelo rabo, me moeu de pancada. E eu
missão termina hoje. Ao dizer-lhes adeus com toda a não tinha feito nada, absolutamente nada, nada!
emoção, toda a ternura que a mútua estima... CÃO (imita-a) - Nada, nada, absolutamente nada! (À
TILTIL - Como? Está dizendo adeus? Então você meia voz, zombeteiro.) Tanto faz, você já levou uma
também vai nos deixar? boa e levará mais ainda.
PÃO - Ai de mim! É preciso. .. Vou deixá-los, é MITIL (apertando a Gata nos braços) - Pobrezinha da
verdade, mas a separação será apenas aparente. Tilete, me conte onde é que está o dodói...
Vocês não me ouvirão mais falar. LUZ (ao Cão, severamente) - Sua conduta é tanto
FOGO - Não se perde muito com isso. mais indigna quanto você escolheu para nos dar esse
ÁGUA - Silêncio! triste espetáculo no momento em que vamos nos
PÃO (muito digno) - Isso não me atinge. Eu, o mais separar desses garotos.
velho amigo do homem, estarei sempre lá, na arca, na CÃO (volta subitamente a si) - Nos separar dos
prateleira, na mesa, ao lado da sopa. garotos? (atira-se às crianças, enchendo-as de
LUZ - Vamos, os minutos correm, está quase na hora carícias violentas e tumultuosas) Não, não! Não
que nos fará voltar ao silêncio. Beijem depressa as quero! Não quero! Hei de falar sempre! Você vai me
crianças. compreender agora, não é, meu dono? Eu vou ter
FOGO (precipita-se) - Primeiro eu, primeiro eu! muito juízo... Vou aprender a ler, a escrever, a jogar
(Beija violentamente os meninos.) Adeus, Tiltil, Mitil! dominó! Vou andar sempre limpinho! Não furto mais
Lembrem-se de mim se algum dia precisarem de nada na cozinha! Quer que eu faça alguma coisa
alguém para tocar fogo em. alguma parte. extraordinária? Quer que eu beije a Gata?
MITIL - Ai! Ai! Está me queimando! MITIL (à Gata) - E você, Tilete? Não tem nada para
TILTIL - Ai! Ai! Torrou meu nariz! nos dizer?
LUZ - Que é isso, Fogo? Modere suas efusões. Você GATA (afetada, enigmática) - Eu gosto de vocês dois,
não está lidando com a lareira. tanto quanto merecem.
ÁGUA - Idiota! LUZ - Agora, meus filhos, é a minha vez de dar o
PÃO - Mal educado! último beijo em vocês.
ÁGUA (aproxima-se das crianças) - Vou beijar vocês TILTIL e MITIL (agarram-se às vestes da Luz) -
sem lhes fazer mal, meus filhos. Ternamente. Não, Luz, não! Fique conosco!
FOGO - Cuidado, que ela molha! TILTIL - Para onde você vai, sozinha?
ÁGUA - Sou doce e amorosa. Sou boa para as LUZ - Não é para longe. Lembrem-se de mim em
criaturas humanas. cada raio de luar, em cada estrela, em cada aurora,
AÇÚCAR (naturalmente hipócrita e dulçoroso) - Se em cada pensamento bom de suas almas. (Batem oito
sobrar um lugarzinho na lembrança, recordem-se de horas atrás do muro.) Entrem, entrem!
que às vezes minha presença foi doce para vocês...
Não posso dizer mais nada. As lágrimas são As crianças entram , os outros saem.
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DECIMO SEGUNDO QUADRO MAMÃE TIL - Ouviu? Vá depressa chamar o doutor!


PAPAI TIL - Não, não. Ainda não morreram...
DESPERTAR Espere, vamos ver (Batem à porta da casa.) Entre!

Mesmo interior do primeiro quadro, porém tudo, Entra a Vizinha, velha parecida com a Fada do I ato,
paredes e atmosfera, se diria incomparável e caminha apoiada ao bordão.
feéricamcnte mais fresco, mais risonho, mais feliz. A
luz do dia filtra-se, jovial, pelas frestas das janelas VIZINHA - Muito bom dia, boas-festas para todos!
fechadas. TILTIL - É a Fada Beriluna!
VIZINHA - Vim pedir um pouco de lenha para o meu
A direita, ao fundo do quarto, em suas caminhas, caldeirão de Natal. Bom dia, meninos, tudo bem?
Tiltil e Mitil dormem profundamente. - A Gata, o Cão TILTIL - Dona Fada Beriluna, eu não achei o Pássaro
e os Objetos estão nos lugares que ocupavam no Azul.
Primeiro quadro, antes de chegar a Fada - Entra VIZINHA - Que é que ele está dizendo?
Mamãe Til, MAMÃE TIL - Não queira saber, senhora Berlingot.
Devem ter comido alguma coisa indigesta.
MAMÃE TIL (com alegre fingimento de zanga, na VIZINHA- Então, Tiltil, não está reconhecendo a tia
voz) - Vamos, de pé, seus pequenos preguiçosos! Não Berlingot, sua vizinha, senhora Berlingot?
têm vergonha? Já deu oito horas, o sol está em cima TILTIL- Estou, sim. A senhora é a Fada Beriluna.
da florestal Como dormem, santo Deus, como Não está zangada?
dormem! (Inclina-se e beija as crianças. (Sacode VIZINHA - Beri ... o quê?
suavemente Tiltil.) Vamos, vamos, Tiltil. TILTIL - Beriluna.
TILTIL (acordando) - O quê? Onde está a Luz? VIZINHA - Berlingot, você quer dizer Berlingot.
Não, não vá embora... TILTIL - Beriluna, Berlingot, como a senhora quiser,
o fato é que Mitil, que sabe perfeitamente...
MAMÃE TIL - A Luz? Ué, está aí, não é de hoje. A MAMÃE TIL - Que coisa, até Mitil!
claridade é tanta que parece meio-dia. PAPAI TIL - Ora, ora. Isso passa. Vou dar umas
TILTIL (esfrega os olhos) - Mamãe, mamãe! É você? palmadas neles
Eu viajei com Mitil, a Fada, a Luz ... como a Luz é VIZINHA - Deixem, não vale a pena. Minha filhinha,
boa! que anda bem doente, às vezes também fica assim.
MAMÃE TIL - Que história é essa que você está MAMÃE TIL - A propósito, como vai sua filhinha?
contando? Vejo que está doente, ou senão, ainda não VIZINHA - Assim, assim. Não pode se levantar. O
acordou direito. (Dá-lhe uma palmada amistosa) doutor disse que é dos nervos. De qualquer modo, sei
Vamos, acorde. Agora está melhor? muito bem o remédio de que ela precisa. Ainda agora
TILTIL - Posso garantir. Mamãe. Você é que ainda de manhã me pediu isso como presente de Natal. É
está dormindo. Pergunte a Mitil se não é verdade, uma idéia que não tira da cabeça.
Puxa, que aventuras nós vivemos! Ela estava comigo. MAMÃE TIL - Eu sei, ainda é o pássaro de Tiltil, não
Vimos vovó e vovó. Eles estão mortos, mas passam é? Afinal, Tiltil, quando é que você vai oferecê- lo à
bem. Vovó fez para nós uma torta de ameixas muito coitadinha?
gostosa. Vimos nossos irmãozinhos TILTIL - O que, Mamãe?
MITIL - Vimos você também, ontem à noite. MAMÃE TIL - O pássaro. Você não precisa dele.
MAMÃE TIL - Ontem à noite? Não há nada demais: Nem olha para ele! E ela está doida de vontade, há
fui eu que deitei você na cama. tanto tempo.
'I'ILTIL - Não, não, foi no Jardim das Felicidides. TILTIL - Ah, é verdade, o meu pássaro... Onde está
Você era muito mais bonita, mas estava parecida. . ele? Ah, aqui está a gaiola. Mitil! É o Pássaro Azul
MAMÃE TIL (enternecida, porém muito preocupada) que procurávamos! Fomos tão longe, e ele estava
- Meu Deus, que é que eles têm?! Vou perdê-los, aqui... Que dirá a Luz? Vou tirar a gaiola. (Sobe a
como perdi os outros! (Grita, subitamente uma cadeira e tira a gaiola, que entrega à Vizinha.)
aterrorizada.) Papai Til! Papai Till Venha cá! Os Tome, Dona Berlingot. Ainda não está
meninos estão doentes! completamente Azul; mas vai ficar, a senhora verá.
Leve depressa para sua filhinha.
Entra Papai Til, muito calmo, de machado na mão. VIZINHA – Hein? De verdade? Você está me dando
mesmo, de graça? Meu Deus, ela vai ficar tão feliz!
PAPAI TIL - Que há?. (Beija Tiltil.) Quero beijar você! Vou-me embora!
TILTIL e MITIL (correm alegremente para beijar o Vou-me embora! Volto para contar a vocês o que ela
pai) - Papai! É Papai! Bom dia, Papai! Trabalhou disse!
muito durante o ano? Sai.
PAPAI TIL - Hein? Que é isso? Não estão com ar de TILTIL (depois de olhar demoradamente em redor) -
doença, estão com muito boa cara. Papai, Mamãe, que foi que vocês fizeram com a casa?
MAMÃE TIL (lacrimejante) - Não sei o que eles têm. É a mesma de antes, mas está muito mais bonita.
Nem sabem mais o que dizem; falam em viagem. . . PAPAI TIL - Mais bonita, como?
Viram a Luz, vovô, vovó, que estão mortos mas TILTIL - Mais bonita, ora! Tudo pintado de novo,
passando bem. reformado, Brilhante, limpinho. Não era assim no
TILTIL - Vovô continua com a perna de pau. ano passado.
MITIL - E vovó com reumatismo. PAPAI TIL - No ano passado?
18

TILTIL (vai à janela) - Como a gente é feliz aqui! MENINA - Ainda não. Que é que ele come?
(Vai abrir a arca.) Onde está o Pão? Ué, estão bem TILTIL - Tudo: trigo, pão, milho, cigarra.
sossegados. E esse aqui é Tilô. Bom dia, Tilô, bom MENINA - E como é que ele come?
dia! TILTIL - Bicando. Você vai ver, eu vou mostrar.
MITIL - E Tilete? Ela me reconhece perfeitamente,
mas não fala mais. Vai tomar o pássaro das mãos da menina;
TILTIL - "Seu" Pão. .. (Apalpa a cabeça.) Ah! o instintivamente ela resiste; aproveitando-se da
Fogo! Ele é camarada! Está crepitando, rindo, para hesitação do gesto, a rolinha se desprende e voa.
irritar a Água. (Corre à torneira.) - E a Água? Bom
dia, Água! Que é que diz? Continua falando, eu é MENINA (grita, desesperada) - Ele fugiu, mamãe!
que não compreendo mais como antes.
MITIL - Não estou vendo o Açúcar. Soluça doridamente.
TILTIL - Ai, meu Deus, me sinto tão feliz! Muito!
Demais! TILTIL - Não é nada, não chore. Eu pego de novo.
MITIL - Eu também, eu também! (Encaminha-se para a frente do palco e diz ao
MAMÃE TIL - Por que estão rodando assim?. público.) - Se algum de vocês encontrar o Pássaro
PAPAI TIL - Deixe, não se preocupe. Brincam de ser Azul, queira ter a bondade de trazê-lo aqui em casa.
felizes. Precisamos dele para sermos felizes, quando formos
TILTIL - Eu por mim, gostava mais era da Luz. Onde grandes. . .
está o lampião dela? (Olha ainda em redor) Meu
Deus, tudo é tão bonito, e estou tão satisfeito da vida! PANO

Batem à porta da rua.

PAPAI TIL - Entre!

Entra a Vizinha, dando a mão a uma menina de


beleza maravilhosamente loura, que segura o pássaro
de Tiltíl.

VIZINHA - Estão vendo o milagre?


MAMÃE TIL - Não é possível! Está andando?
VIZINHA - Está, ou por outra, corre, dança, voa!
Quando viu o pássaro, deu um salto assim para a
janela., para ver na luz se era mesmo o pássaro de
Tiltil. Depois, pluft! saiu para a rua, voando feito um
anjo. . . Eu mal podia acompanhar.
TILTIL (aproxima-se, maravilhado) - ah, parece tanto
com a Luz.
MITIL - É bem menor.
TILTIL - Claro. Mas vai crescer.
VIZINHA - Que é que eles estão dizendo? Pioraram?
MAMÃE TIL - Estão melhor. Isso passa, Depois do
almoço, nem se nota mais.
VIZINHA (impele a menina para os braços de Tiltil)
- Vamos, filhinha, vá agradecer a Tiltil.

Tiltil, subitamente intimidado, dá um passo para trás.

MAMÃE TIL - Que é isso, Tiltil, que é que você tem?


Está com medo da menina? Você, que em geral é tão
desembaraçado! Mais outro. Mas que é que você
tem? Parece que vai chorar...

Depois de beijar desajeitadamente a menina, Tiltil


para um momento diante dela, e os dois se olham em
silêncio; a seguir, ele acaricia a cabeça do pássaro.

TILTIL - Será mesmo bem azul?


MENINA - É sim. Estou contente. . .
TILTIL - já vi outros mais azuis. Acontece que os
completamente azuis, sabe? por mais que a gente
faça, não apanha nenhum.
MENINA - Não faz mal, este é bem bonito.
TILTIL - Êle já comeu?

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