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ainda não percebi esta mentalidade de "aqui é que se trabalha", desde que vim para o norte, há uns

doze anos. essa hipertrofiada afectação do orgulho que valoriza tão inflacionadamente o "trabalho"
(e fiz o gesto com os dedos, a pôr aspas, antes de escrever a palavra), é bizarra e turva. já concluí
que ao falar-se de "trabalho" (e peço que façam o gesto com os dedos, a pôr aspas, quando lerem a
palavra), não se está a falar de coisas que dêem trabalho. por exemplo, trabalho voluntário (sem
aspas, note-se). ser voluntário dá muito trabalho. ou tirar um curso, de noite. ou cuidar de um
familiar enfermo. dá trabalho e não salário. a expressão supostamente cómica e mordaz "o que tu
queres é emprego, e não trabalho", só vem baralhar em vez de ajudar a esclarecer. porque eu
compreendia se, ao dizer-se "lá no sul não se trabalha", se quisesse dizer "lá no sul as pessoas não
dão valor ao emprego que têm", ou "lá no sul as pessoas baldam-se às responsabilidade do seu
emprego". mas pelos vistos não é isso. já que emprego e trabalho são conceitos tão complementares
como a água e o azeite. e quanto a pessoas como eu, que têm outras actividades, fora do expediente,
que dão muito trabalho? somos ainda mais malandros porque gastamos tempo em coisas que não o
emprego?

também seria compreensível (e bastante assertivo) se "no norte é que se trabalha" quisesse dizer "no
norte é que se produz". é que, num país com índices de produtividade tão cronicamente baixos,
valorizar a produtividade seria louvável. mas não. já aqui em Braga, comecei a ouvir com
frequência um outro dichote, que surge quando, entre colegas de trabalho, se ouvem queixas sobre
ser mal pago ou ter pouco dinheiro: "eu dinheiro tenho, não tenho é tempo para o gastar".
curiosamente, a sagacidade da expressão está em, ao contrário do que seria mais óbvio, não ser um
lamento mas uma gabarolice. ao dizer-se que se tem pouco tempo para gastar o dinheiro que se tem
(mais ou menos abundantemente) o que se quer transmitir é que se tem dinheiro, sim senhor, mas
porque se trabalha tanto que não se tem tempo para outras coisas, menos nobres, tipo, sei lá... viver.
essa expressão é uma fórmula complexa e maliciosa que, noves fora nada, quer dizer, de novo,
"trabalho muito" ou, em versão não censurada, "trabalho de carailho".

e, pergunto-me de testa enrugada e expressão pertinaz, o que há assim de tão imprescindível e


recomendável no trabalho (principalmente no trabalho em grande volume e dispêndio de tempo)
que nos deva inspirar tão elevada e obsequiosa devoção? o que há de tão inspirador e comovente em
alguém que passe a maior parte da vida adulta no seu emprego/trabalho (os especialistas que
risquem a palavra errada, como ao preencher um impresso), que use a maioria das horas em que
está acordado para, acima de tudo, ganhar dinheiro? o que devemos invejar numa pessoa que não
tem tempo para estar com a família, cuidar do seu espírito e mimar a sua alma, aprender e ensinar
coisas novas? porque devo ter como modelo as pessoas que produzem muito (ou que,
portuguesmente, gastam muito tempo e suor para produzir pouco)? a vida é fundamentalmente
produto? ou é usufruto? é merecimento ou é dom? é lucro ou é dádiva?

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