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A SOBERANIA

DE DEUS

A. W. Pink
Iglesia Bautista de la Gracia AR
INDEPENDIENTE Y PARTICULAR
Calle Álamos Nº 351
Colonia Ampliación Vicente Villada CD.
Netzahualcóyotl, Estado de México

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1 Corintios 1:23: Mas nós pregamos a Cristo crucificado...

Este livro foi traduzido de uma versão abreviada em inglês intitulada "Quem está no controle?",
publicado por Grace Publications Trust, e em sua versão original em inglês por Baker Book House.
O título da versão original em inglês é: "A soberania de Deus".
Agradecemos a permissão e a ajuda brindada por Grace Baptist Mission (139 Grosvenor Ave.
London N52NH England) para traducir e imprimir este livro ao español.

Tradução ao español realizada por Omar Ibáñez Negrete y Thomas R. Montgomery.


IMPRESSO EM MÉXICO, 1995.

Tradução do espanhol para o português realizada por Daniela Raffo, 2007.

Obtido na Internet em: esnips


Sábado, 11 de agosto de 2007, 10:52:30

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INTRODUÇÃO
QUEM TEM O CONTROLE?

Quero fazê-lhe uma pergunta: Quem está no controle de tudo quanto se passa no mundo? Deus
ou Satanás? Muita gente pensa que Deus é somente rei no céu, porém não pensa que Ele é o
criador do mundo e também não acreditam que o controle todas as coisas que acontecem nele.
Algumas pessoas acham que o mundo funciona como uma máquina, obedecendo as leis da
natureza. Outros consideram que o homem pode controlar o que lhe acontece usando seu próprio
livre arbítrio.
Mas me deixe fazê-lhe novamente a pergunta: Quem está no controle de tudo quanto se passa
no mundo? É Deus ou Satanás? Quando olhamos para o que se passa no mundo, facilmente
poderíamos concluir que Satanás está no controle, isso devido a que existe tanta confusão e
pecado. Vemos que as coisas vão de mal em pior; continuamente ouvimos falar em guerras e
revoluções; sabemos que há uma grande inquietude e temor no mundo. A maioria das pessoas
permanecem na ignorância a respeito da verdade de Jesus Cristo, e muitos pensam que
cristianismo é um fracasso. Ainda alguns que se identificam como crentes, têm sugerido que,
embora Deus queira salvar às pessoas, não pode fazê-lo, porque essas mesmas pessoas não O
deixam! Todo pareceria indicar que Satanás tem mais controle do que Deus tem.
Os crentes, mais do que ninguém, não deveriam pensar desta maneira.
Os crentes não devem interpretar o que acontece só pelo que seus olhos vêm, senão que devem
interpretar as coisas através da fé. ("Porque andamos por fé, e não por vista", 2 Co 5:7). Os
crentes acreditam o que Deus tem falado na Bíblia, e a Bíblia sempre tem advertido que o que está
acontecendo no mundo é o que devia suceder (porque assim foi determinado por Deus desde o
princípio). A Bíblia diz que a gente inconversa sempre estará em rebelião contra a autoridade e a
lei de Deus. Assim sendo, não deveria surpreender-nos quando a gente despreza a Deus mesmo,
porque Ele é a autoridade suprema e o doador da lei. A Bíblia anuncia que é Deus e não Satanás
quem está controlando o que ocorre no mundo. A Bíblia nos ensina que Deus criou todas as coisas,
e que Ele exerce um controle completo e soberano sobre tudo o que fez. A vontade de Deus não
pode ser mudada. Ele é o Rei soberano sobre todas as coisas e nunca pode ser surpreendido por
nada do que acontece. Ele reina sobre tudo, fazendo com que todas as coisas operem juntas para
o bem de todos aqueles que O amam e que têm sido chamados por Ele para ser Seu povo.
Embora estas coisas sejam verdadeiras, somente podemos entendê-las e desfrutá-las se somos
crentes em Deus. Temos que encher as nossas mentes com conceitos verdadeiros acerca de Deus,
a Sua natureza e o Seu caráter. Só então poderemos aceitar com submissão e confiança todo
quanto nos aconteça, sejam decepções, dificuldades ou tristezas, porque sabemos que todas as
coisas, incluso estas, são controladas por um Deus tão sábio que não pode errar, e
demasiadamente amoroso para ser cruel.
A gente precisa ouvir estas verdades acerca de Deus; a predicação superficial e vaga não basta.
Então, permita-me observar novamente: Deus ainda vive; Ele vê tudo o que acontece e está em
completo controle.
Quando pensamos acerca do que está acontecendo no mundo, não deveríamos começar a
explicá-lo desde uma perspectiva meramente humana, porque se assim o fazemos, jamais
compreenderemos esta vida. Existem muitas coisas na vida que achamos estranhas e difíceis de
entender, porém através da Bíblia Deus nos dá entendimento. A Bíblia é a Palavra de Deus, a
revelação divina para nós. Então, se queremos entender o que acontece no mundo, devemos
começar aprendendo o que a Bíblia diz acerca de Deus. Este é o lugar correto para começar.
Se tentamos explicar as coisas partindo do estado atual do mundo e depois tentamos conectá-lo
com Deus, concluiremos que Deus tem muito pouco a fazer com o mundo tal e como nós o
conhecemos hoje.
Porém se começamos com Deus e depois O relacionamos com o mundo, começaremos a
compreender o motivo pelo qual as coisas estão assim agora. Deus é santo e julga aqueles que
pecam contra Ele. Deus cumpre a sua Palavra e castiga a maldade, assim como tem prometido
fazer na Bíblia. Deus pode fazer tudo, e nada pode resisti-Lhe ou vencê-Lo. Deus conhece tudo e
ninguém sabe mais do que Ele. Nada é impossível para Deus. Assim então, quando olhamos para o
que está acontecendo no mundo, podemos concluir que Deus tem iniciado seu juízo contra a
maldade e o pecado em nosso mundo moderno, tal e como o fez no passado.
Existem duas maneiras de responder a minha pergunta acerca de quem está no controle. A
pessoa que não acredita em Deus considera tudo desde o seu próprio ponto de vista humano,
começa com o homem e é por isso que não pode entender como Deus pode estar no controle.
Doutro lado, a Bíblia nos diz que os pensamentos de Deus não são os nossos, e que os caminhos
de Deus não são como os nossos. A pessoa que não crê em Deus sempre pensará que é idiota
dizer que Deus controla tudo. Porém, o crente sabe que Deus está no controle porque assim o tem

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falado Deus na Bíblia. O cristão começa com Deus. Embora haja muito pecado e sofrimento no
mundo, o que causa tristeza no crente, ainda assim ele não diz "Se eu fosse Deus, não o
permitiria". O cristão acredita que os caminhos de Deus são inescrutáveis e incompreensíveis.
Deus tem ocultado muitas coisas de nós com o propósito de provar a nossa fé, para fortalecer a
nossa confiança em Sua sabedoria e para ajudar-nos e aceitar a sua vontade. O cristão confia em
Deus e tenta interpretar todas as coisas desde o ponto de vista de Deus. O crente confia em Deus
e aceita o que acontece, porque sabe que provém dEle. E porque confia em Deus, seu coração
pode ficar tranqüilo em meio da tempestade. Confiando em Deus, regozija-se porque sabe que no
fim de tudo verá a glória de Deus.
No seguinte capítulo aprenderemos mais do que a Bíblia quer dizer, quando afirma que Deus
está no controle de todas as coisas.

CAPÍTULO 1
DEUS TEM O CONTROLE DE TUDO!

"Tua é, SENHOR, a magnificência, e o poder, e a honra, e a vitória, e a majestade; porque teu é


tudo quanto há nos céus e na terra; teu é, SENHOR, o reino, e tu te exaltaste por cabeça sobre
todos."
1 Crônicas 29:11

Você compreende o que implicam as palavras "Soberania de Deus"? Na introdução vimos que,
embora exista muita maldade no mundo, a bíblica afirma que Deus está em completo controle de
tudo. Isto é o que implicam as palavras "Soberania de Deus". Quando dizemos que ES é soberano,
queremos dizer que Deus tem poder absoluto sobre tudo. Ele é o Supremo, o Grande Rei; Ele é
Deus. Ele faz a sua vontade no céu e na terra, e não existe mas ninguém que possa deter a sua
mão e Lhe dizer: "O que fazes?". Quando dizemos que Deus é soberano, queremos dizer que Ele é
o Deus Todo Poderoso, que possui todo poder no céu e na terra e que ninguém pode resistir a sua
vontade. Este é o Deus da Bíblia.
Freqüentemente, o ensino moderno nos dá um conceito muito diferente acerca de Deus. a
miúdo apresenta um "deus" impotente e ineficaz, um "deus" de aflição mais do que um Deus digno
de ser temido. A maioria do ensino moderno diz que Deus "o Pai" quer salvar a todo mundo, e que
"o Filho" morreu para salvar a "todos", e que Deus o Espírito Santo está tentando agora ganhar a
todos os homens no mundo. Mas, não resulta obvio que muitas pessoas estão morrendo sem ter
sido salvas por Cristo, e sem esperança alguma? Então, se muitos morrem sendo perdidos e se
acreditamos que Deus queria salvá-los a todos, com certeza o Pai deve estar desapontado, o Filho
deve sentir-se insatisfeito e o Espírito Santo tem sido derrotado.
Não podemos dizer que Deus tenha sido surpreendido pelo pecado humano, porque isto deixaria
a Deus no nível dos seres humanos que são falíveis e cheios de erros. Também não podemos dizer
que Deus fique impotente diante do sofrimento e do pecado no mundo, porque então estaríamos
passando por alto o que a Bíblia diz: que Deus controla até os maus atos que os homens cometem.
Em verdade, se negamos a soberania de Deus, pronto já não teremos espaço para Deus em nossos
pensamentos.
Deus é completamente soberano. Ele possui o direito de governar tudo tal como Ele quer. Deus
é como o oleiro que tem o controle completo sobre o barro. Deus é soberano na forma em que usa
o seu poder. Ele o usa como, quando e onde deseja. Todo o testemunho da Bíblia afirma esta
verdade. Quando o Faraó, rei do Egito, tentou deter os israelitas para que não fossem adorar a
Deus no deserto, Deus usou o seu poder e os israelitas foram salvos, enquanto que os egípcios
foram vencidos.
Depois, quando os israelitas entraram na terra de Canaã e acharam que a cidade de Jericó era
um obstáculo, Deus usou seu poder e os muros da cidade forram derrubados. O poder de Deus
salvou Davi de Golias.
Deus fechou as bocas dos leões para que não ferissem Daniel. Ainda assim, em ocasiões Deus
não mostra o seu poder por um longo tempo, e então repentinamente o manifesta e todos podem
vê-lo.
O poder de Deus nem sempre resgata seu povo dos perigos. Em Hebreus 11:36-37, nos diz
como alguns que creram em Deus foram apedrejados e ainda mortos, e outros andaram errantes
cobertos com peles de animais e suportando muito sofrimento. Por que não foram resgatadas
estas pessoas pelo poder de Deus como as outras? A única resposta é que Deus é soberano na
maneira em que usa o seu poder. Ele faz o que sabe que é melhor.
Deus é soberano também na maneira em que outorga o seu poder a outros. Concedeu poder a
Matusalém para que vivesse muito mais tempo que ninguém. Deus concede a alguns a capacidade

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de ganhar muito dinheiro, porém não faz a todos ricos. Isto se deve a que Deus exerce sua
soberania ao conceder o seu poder às pessoas. Ele não dá o mesmo poder a todos.
Deus é soberano também no outorgamento de sua misericórdia. Quando Jesus foi ao tanque de
Betesda em Jerusalém, havia muitos doentes ali e entre eles estava um homem que tinha estado
enfermo por trinta e oito anos. João capítulo 5 nos fala que Jesus disse a este homem: "Levanta-
te, toma o teu leito, e anda" (versículo 8). Imediatamente o homem foi sarado; levantou seu leito
e se foi. Então, por que foi curado este homem em particular?
Não nos diz que fosse devido a que merecesse ser sarado. Ou seja, a misericórdia de Deus
manifestou-se nele de uma maneira soberana, porque Jesus poderia ter sarado a toda a multidão
tão facilmente como o fez com este homem. Porém Jesus usou seu poder divino para curar um
único homem.
Deus é soberano na maneira em que outorga a sua misericórdia. Ele mostra sua misericórdia
como a Ele apraz.
Deus é soberano na forma em que mostra a sua graça. A graça é o favor divino mostrado
àqueles que não a merecem (senão que, ao contrário, merecem ser enviados para o inferno). A
graça é o oposto à justiça, já que a justiça nos dá só o que merecemos. A graça é a bondade de
Deus para as pessoas que não a merecem, uma vez que ela tem odiado e desobedecido a Deus e
Sua lei. A graça é um dom (um presente) de Deus, de maneira tal que ninguém pode exigi-la como
se fosse um direito, pois então deixaria de ser graça. Deus não deve graça a ninguém, senão que a
concede aos que Ele quer pela sua própria soberana vontade. Podemos regozijar-nos nisso, porque
os pecadores são salvos pela graça.
Isto significa que a pessoa mais pecaminosa pode ser alcançada por esta graça. A graça exclui
toda arrogância humana e dá a Deus toda a glória da salvação.
Quase cd página da Bíblia nos lembra que Deus é soberano no outorgamento de sua graça.
Quando Jesus nasceu, as boas novas não foram anunciadas a todo mundo, senão que foram dadas
aos pastores de Belém e aos homens sábios do Oriente. Deus poderia tê-lo dito a todos, porém
não o fez, porque Ele é soberano na forma em que exerce a sua graça.
Percebe você que Deus tem outorgado a sua graça a pessoas com poucas probabilidades de
serem alcançadas? Ele a mostrou aos pastores e a homens que nem sequer eram judeus.
Freqüentemente, desde aquele momento até o dia de hoje, Deus tem feito exatamente o mesmo,
mostrando a sua graça às pessoas mais desprezíveis e indignas. Tem Ele mostrado a sua graça
para você?
Temos visto que tudo na Bíblia nos diz que Deus é soberano. No próximo capítulo veremos que
todas as coisas que Deus tem criado também nos mostram que Ele é o Deus soberano.
TEXTOS BÍBLICOS:
Daniel 11:32: "E aos violadores da aliança ele com lisonjas perverterá, mas o povo que conhece
ao seu Deus se tornará forte e fará proezas."
Isaias 55:8-9: "Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos
caminhos os meus caminhos, diz o SENHOR. Porque assim como os céus são mais altos do que a
terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos
mais altos do que os vossos pensamentos."
Romanos 11:33: "O profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus!
Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!".
Efésios 1:1: "Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, aos santos que estão em
Éfeso, e fiéis em Cristo Jesus."
Romanos 11:36: "Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele
eternamente. Amém."
1 Crônicas 29:10-11: "Por isso Davi louvou ao SENHOR na presença de toda a congregação; e
disse Davi: Bendito és tu, SENHOR Deus de Israel, nosso pai, de eternidade em eternidade. Tua é,
SENHOR, a magnificência, e o poder, e a honra, e a vitória, e a majestade; porque teu é tudo
quanto há nos céus e na terra; teu é, SENHOR, o reino, e tu te exaltaste por cabeça sobre todos."
1 Tm 6:15: "A qual a seu tempo mostrará o bem-aventurado, e único poderoso Senhor, Rei dos
reis e Senhor dos senhores."

CAPÍTULO 2
DEUS CONTROLA A NATUREZA

"Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder; porque tu criaste todas as coisas, e por
tua vontade são e foram criadas."
Apocalipse 4:11

No Capítulo 1 vimos que a Bíblia ensina que Deus é soberano.

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Ele é soberano no uso de seu poder e na doação de sua graça e misericórdia. Neste capítulo
vamos descobrir mais evidências de Sua soberania.
Todo quanto Deus tem feito mostra que Ele é soberano e que tem o controle completo sobre a
Sua criação. Trate de pensar acerca do tempo antes de que Deus criasse o mundo. Desde então
Ele era soberano, e foi inteiramente uma decisão de Sua vontade criar alguma coisa ou não criar
nada.
Também foi completamente coisa dEle, o fato de como o fez. Poderia ter feito um mundo tão
pequeno que ninguém pudesse vê-lo. Quando Deus criou o universo, não pediu a ajuda nem o
conselho de ninguém.
Então, pense acerca do mundo que Deus fez. Por que deveria haver mais água que terra seca?
Por que deveria existir tanta terra inútil para uso humano e outros lugares tão úteis? Por que
existem lugares bons para se viver e outros ruins? Por que alguns países estão sujeitos a tantos
desastres naturais (terremotos, furacões, tornados, secas, etc.), e outros não? A resposta a tantas
perguntas é porque assim o tem decidido Deus, porque assim se cumprem os seus propósitos.
Pense agora nas diferenças que existem entre os animais: cordeiros e ursos, elefantes e ratos.
Alguns animais, como por exemplo os cães, parecem inteligentes, enquanto outros parecem
tontos. As mulas e os burros suportam pesadas cargas, porém os leões e os tigres estão soltos
para correrem livremente. Considere as aves no céu, os animais na terra e os peixes no mar. Por
que existem tantas diferenças entre eles? A resposta é: porque Deus se agradou em fazê-los
assim.
Considere também as plantas. Algumas dão um bonito aroma, mas outras não. Algumas árvores
produzem um fruto saboroso, porém outras dão fruto venenoso. Por que é assim? Porque Deus fez
o que Lhe apraz no céu, na terra e no mar.
Agora pense nos anjos. Eles não são todos iguais, alguns são mais importantes que outros, uns
são mais poderosos que outros, alguns estão mais perto de Deus que outros. Por que existem
estas diferenças entre os anjos? Todo o que podemos dizer é que o Deus soberano, que habita no
céu, tem realizado tudo quanto quis.
Todo o que Deus tem feito nos mostra a sua soberania, porque Ele faz tudo como melhor lhe
parece. Então, não deveríamos estar surpreendidos de que também existam diferenças entre os
seres humanos. Algumas pessoas são muito inteligentes e outras não. Algumas desfrutam de
saúde, enquanto outras vivem muito doentes. Todas as pessoas têm um temperamento diferente:
umas são aptas para dirigir e governar, e outras o são para serem seguidoras e servos. Não
deveriam surpreender-nos estas diferenças entre as pessoas, porque Deus faz a cada pessoa
distinta das outras. Por que?
Porque assim lê parece melhor ao Deus soberano.
Deus, quem fez todas as coisas, é absolutamente soberano. Ele faz o que Lhe apraz e efetua a
Sua própria vontade. Ele fez todas as coisas para Si mesmo, e possui também o direito de fazê-lo
assim, porque Ele é o Deus Todo Poderoso.
Porém Deus não só fez todas as coisas pelo seu próprio poder soberano, senão que também
governa tudo. Imagine somente, o que aconteceria se Deus não controlasse o que Ele criou?
Suponha que Deus tenha feito o mundo, e depois o abandonasse para que fosse governado pelas
assim chamadas "leis da natureza".
Se Deus agisse assim, então não teríamos certeza de que o mundo não poderia ser destruído.
Se tão somente as leis da natureza controlassem o mundo, então um poderoso tornado poderia
estragar tudo, ou um grande furacão poderia inundar tudo, ou um grande terremoto poderia
acabar com tudo.
Então, como poderíamos estar seguros de que essas são as coisas e não poderiam acontecer?
Se ousarmos dizer que Deus não está controlando o mundo, então perderíamos toda a certeza de
estabilidade. Se Deus não está controlando tudo, então todo acontece por pura casualidade.
Imagine o que aconteceria se Deus não colocasse limites às coisas más que realizam os
homens. Imagine como seria o mundo se a gente fosse completamente livre para fazer o que
quisesse. Então toda a bondade no mundo desapareceria e a maldade e a confusão reinariam. Isto
deixa manifesto a necessidade de que Deus governe o mundo, e Ele Tm o faz a fim de que
nenhuma coisa se saia de controle e não aconteça o caos.
Deus está controlando ainda aquelas coisas que não têm vida como o clima, o vento e o mar.
Quando Deus disse "Seja feita a luz", a luz foi feita. Quando Deus disse que enviaria um dilúvio
sobre o mundo antigo devido à depravação dos seus habitantes, então o dilúvio veio. Quando Deus
trouxe as pragas sobre o Egito, a luz tornou-se obscuridade, as águas converteram-se em sangue
e grandes pedras de saraiva caíram. Deus estava controlando todos esses eventos. Existem muitos
exemplos na Bíblia de como Deus tem controlado todas aquelas coisas que não têm vida. O forno
do rei Nabucodonosor foi esquentado sete vezes a mais do costume, e três dos filhos de Deus
foram arrojados dentro dele, e o fogo nem sequer queimou as suas vestes, embora sim tivesse

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matado os homens que os lançaram no forno. Quando os discípulos iam com o Senhor Jesus
Cristo numa pequena barca e a tormenta atemorizou-os, Jesus disse à tempestade: "Seja a paz", e
então o vento cessou e o mar acalmou-se. Deus controla o clima, porque Ele envia o gelo, a neve e
o vento. Tm Ele envia e detém a chuva. Todas estas coisas inanimadas obedecem a voz de Deus e
assim executam a Sua soberana vontade. Quando nos queixamos do clima, em verdade estamos
queixando-nos da vontade de Deus!
Deus fez o mundo e continua controlando-o. Ele é também soberano sobre os animais, os
homens e os anjos, como veremos no próximo capítulo.

CAPÍTULO 3
DEUS CONTROLA O HOMEM

"O SENHOR tem estabelecido o seu trono nos céus, e o seu reino domina sobre tudo."
Salmo 103:19

No Capítulo 2 vimos que Deus governa todas as coisas inanimadas no mundo, tais como a terra,
o ar, o fogo e a água. Ele também governa os animais, os homens e os anjos.
Em primeiro lugar, Deus controla os animais. Isto é claramente ensinado na Bíblia. Em Gênesis
6:20 lemos que antes que Deus enviasse o dilúvio sobre a terra, Ele fez que dois animais de cada
espécie entrassem na arca de Noé. Estes animais foram controlados por Deus. Em Êxodo capítulo 8
temos uma descrição das pragas que Deus enviou sobre a terra de Egito. Lemos acerca de como as
rãs saíram do rio Nilo e entraram no palácio do rei e nas casas dos seus servos. Deus inclusive fez
com que as rãs entrassem nos leitos dos egípcios, e ainda dentro de seus fornos (lugares onde
comumente as rãs não entram). Muitas moscas invadiram também a terra de Egito, porém não se
aproximaram de nenhum dos lugares onde o povo de Deus se achava. Seguidamente, Deus fez
com que o gado dos egípcios adoecesse, mas nada do gado pertencente ao povo de Deus
enfermou. Vemos que Deus teve o controle destes animais o tempo todo. Em 1 Reis 17:2-4 lemos
que Deus disse ao seu profeta Elias que fosse viver perto de um ribeiro, onde uns corvos o
alimentariam. Há muitas outras histórias como estas na Bíblia, que demonstram que Deus controla
os animais. Por exemplo, Deus fechou a boca dos leões quando seu servo Daniel foi colocado no
fosso dos leões; Deus fez com que o grande peixe engolisse seu servo Jonas, e depois, quando
Deus quis, este peixe o vomitou em terra seca. Assim, sem lugar a dúvidas, é verdade que Deus
controla os animais. Eles fazem exatamente o que Ele lhes manda fazer.
Em segundo lugar, Deus controla não só os animais, senão também os homens. Ainda que isto
seja muito difícil de aceitar, desejo que compreendam que essa é a verdade. Porque só existem
duas alternativas, ou Deus tem o controle o alguém mais o controla a Ele. Do mesmo modo, é a
vontade de Deus a que sempre se cumpre, ou é a vontade dos homens.
Agora, qual destas alternativas é a certa? É verdade que muitas pessoas odeiam a Deus, mas
isto não significa que Ele não possa usá-los como seus instrumentos quando Ele assim o deseje.
Não é suficiente dizer que Deus pode deter os efeitos maus do que as pessoas más fazem.
Também não basta simplesmente dizer que algum dia Deus castigará os maus pelos seus pecados.
Deus é tão grande que cada coisa que as pessoas mais malvadas realizam está inteiramente sob o
Seu controle. De fato, as pessoas más em realidade fazem o que Deus tem dito de antemão que
eles fariam, ainda que a pessoa má não perceba isso. Isto é exatamente o que aconteceu com
Judas, o homem que entregou a Jesus Cristo nas mãos de aqueles que o adiavam. Poderia alguém
ser mais malvado do que foi Judas? Assim sendo, se Judas estava fazendo aquilo que Deus tinha
decidido que fizesse, então não é difícil crer que todas as pessoas más estão igualmente realizando
o que Deus falou que haveria de acontecer.
Não queremos argumentar sobre este assunto, só desejamos ver o que a Bíblia diz. Em Atos
17:28 lemos que em Deus vivemos e nos movemos e somos. Isto foi expresso pelos poetas gregos
que não eram crentes e cujos discípulos zoaram da idéia de que Jesus ressuscitasse da morte. Mas
parece a ainda o realizado por estas pessoas estava sob o controle de Deus. De Provérbios 16:9
aprendemos que a gente faz seus próprios planos para a sua vida, mas são os planos de Deus os
que em realidade se cumprem: "O coração do homem planeja o seu caminho, mas o SENHOR lhe
dirige os passos". A história do rico insensato no Novo Testamento (Lucas 12:16-21) mostra quão
certa é esta afirmação. Nos fala de como um homem planejava construir grandes celeiros onde
guardaria toda a colheita que levantara. Ele planejava desfrutar de sua vida, porém Deus tinha
determinado algo diferente, e foi o plano de Deus o que se cumpriu. Deus declarou que aquele
homem néscio morreria essa mesma noite, e assim aconteceu.
Nunca é correto dizer que as pessoas podem atuar em contra da vontade de Deus. Tão somente
pense nas seguintes passagens da Bíblia: Jó 23:13 diz: "Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem

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então o desviará? O que a sua alma quiser, isso fará." Provérbios 21:30 diz: "Não há sabedoria,
nem inteligência, nem conselho contra o SENHOR." Isaias 14:27 ensina que aquilo que Deus tem
determinado, não pode ser alterado por ninguém: "Porque o SENHOR dos Exércitos o determinou;
quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem pois a fará voltar atrás?"
A Bíblia ensina claramente que as ações de cada pessoa, sejam boas ou más, são controladas
pelo Deus soberano. Os homens podem pensar que eles são mais fortes que Deus, rebelando-se
talvez contra Ele, porém Deus ri de sua debilidade e do néscio que resultam. Ele é tão poderoso
que pode destruí-los no momento em que assim o deseje.
Terceiro, Deus controla também os anjos. Eles são mensageiros de Deus. Escutam o que Deus
diz e fazem o que Ele lhes ordena. Ainda os anjos maus obedecem a Deus. Satanás mesmo está
completamente sob o controle de Deus. Até que Deus lhe permitiu agir, Satanás foi incapaz de
tocar em Jó. Em Mateus 4:11 lemos que Jesus disse a Satanás que fosse embora e este
imediatamente o deixou. No fim do mundo, Satanás será lançado no lago de fogo que tem sido
preparado para ele e seus anjos.
Deus reina. Ele controla tudo, as coisas inanimadas, os animais, as pessoas e os anjos, incluindo
Satanás mesmo. Não pode suceder nada em todo o universo a menos que Deus tenha determinado
que aconteça.
Aqueles que confiam num Deus tão grande têm paz em seus corações.
Confiar num Deus soberano dá um sentido de segurança que fortalece a fé. Não é a
casualidade, nem o "azar", nem um homem, nem Satanás quem governam o mundo. É o Deus
Todo Poderoso quem governa pela Sua boa vontade e para a Sua própria e eterna glória.
TEXTOS BÍBLICOS:
Salmo 135:5-6: "Porque eu conheço que o SENHOR é grande e que o nosso Senhor está acima
de todos os deuses. Tudo o que o SENHOR quis, fez, nos céus e na terra, nos mares e em todos os
abismos".
Apocalipse 4:11: "Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder; porque tu criaste todas
as coisas, e por tua vontade são e foram criadas".
João 1:3: "Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez".
Salmo 115:3,15: " Mas o nosso Deus está nos céus; fez tudo o que lhe agradou. (...)Sois
benditos do SENHOR, que fez os céus e a terra".
Hebreus 1:10: "E: Tu, Senhor, no princípio fundaste a terra, E os céus são obra de tuas mãos".
Romanos 11:36: "Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele
eternamente. Amém".

CAPÍTULO 4
DEUS FAZ COM QUE AS PESSOAS ACREDITEM

"Do SENHOR vem a salvação."


Jonas 2:9

Talvez esteja você maravilhado de que, se Deus é soberano, por que não salva todo mundo de
seus pecados? Sabemos que Deus salva algumas pessoas, mas por que não salva também a
outras? Não podemos dizer que algumas pessoas sejam demasiadamente más como para que
Deus as salve, porque Paulo, o servo do Senhor, escreveu em 1 Timóteo 5:15 que ele foi o maior
dos pecadores. Pelo que, se Deus pode salvar o primeiro dos pecadores, então ninguém é
demasiadamente mau como para não poder ser salvo. É então Deus incapaz de salvar alguns
simplesmente porque eles não desejam serem salvos?
Antes de responder esta pergunta, pensemos acerca da experiência de pessoas que têm
chegado a ser cristãs. Antes de chegar a serem crentes, elas não desejavam conhecer a Deus. Elas
caminhavam pelos seus próprios caminhos e não pelos de Deus. Então, qual foi a mudança neles
que as fez acreditar e se converter nas pessoas que são hoje? Um crente responderia nas palavras
de 1 Coríntios 15:10: "pela graça de Deus sou o que sou". Contudo, todos os verdadeiros crentes
dirão que, embora fossem responsáveis pelas suas próprias ações, pela Sua graça Deus foi capaz
de controlar e dirigir as suas vontades. Isto significa que eles estiveram dispostos a receber a
Cristo como Salvador, mas foi Deus quem primeiro lhes deu a disposição de crer. É só uma parte
da verdade dizer que a gente não é convertida porque não quer acreditar. Não é toda a verdade.
Por que então a gente não crê? A resposta é porque não têm fé. A fé é o dom de Deus, e Deus a
concede às pessoas que Ele tem escolhido. Lemos em Atos 13:48 que todos aqueles que estavam
ordenados para vida eterna acreditaram.
Assim sendo, a razão do por que Deus não salvou todo mundo é que Deus o Pai é soberano na
salvação. Ele outorga o dom da fé salvadora só a quem Lhe apraz. Existem muitos textos na Bíblia

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que mostram que desde o Pai é soberano na salvação dos homens. Vamos a mencionar alguns
exemplos. Em primeiro lugar, em Romanos 9:21-23 nos diz que Deus é como um oleiro e nós,
como o barro. As pessoas a quem Deus tem escolhido e as que não tem escolhido são inteiramente
iguais em si mesmas. Se Deus não salvara aqueles que tem escolhido, então todo mundo se
perderia; ou seja, todos iriam pro inferno. Mas Deus faz uma diferença entre as pessoas, assim
como o oleiro faz da mesma massa diferentes classes de objetos, alguns para enfeitar e outros
para usos ordinários.
Deus pode fazer o que quer com o que é dEle, ou seja, com a gente que Ele criou. O Juiz de
toda a terra fará o que é justo. A Bíblia, como já temos visto em Atos 13:48, diz que todos os que
foram escolhidos para a vida eterna acreditarão. Este versículo mostra claramente que o crer é o
resultado da eleição de Deus. Também mostra que só certas pessoas têm sido escolhidas para a
vida eterna, o qual significa que eles serão salvos de seus pecados. Este versículo ensina que todos
aqueles que são escolhidos por Deus, sem lugar a dúvidas chegarão a acreditar no Senhor Jesus
Cristo.
Em segundo lugar, Romanos 11:5 nos diz que existem pessoas no mundo que têm sido
escolhidas pela graça de Deus. Também nos diz por que estas pessoas têm sido escolhidas para
salvação. Não foram eleitas porque Deus visse de antemão que eram boas pessoas. Foram eleitas
simplesmente pela bondade de Deus para com aqueles que não a merecem.
Em terceiro lugar, 1 Coríntios 1:26-29 nos diz que Deus não tem escolhido a muitos sábios,
nem poderosos, nem muitos nobres para que acreditem nEle. Ao contrário, tem elegido a alguns
dos mais vis e fracos para que sejam Seu povo. Isto nos mostra que é Deus definitivamente quem
escolhe às pessoas para que sejam salvas, porque a eleição de gente débil e simples é prova de
que a salvação não tem nada a ver com as qualidades das pessoas mesmas. A eleição é
inteiramente pela bondade de Deus e não devido a nenhuma outra razão.
Em quarto lugar, em Efésios 1:3-5 lemos que Deus escolheu seu povo antes da fundação do
mundo. Em amor os escolheu, para que viessem a serem santos e sem mácula, seus filhos e suas
filhas. Isto mostra que o povo de Deus foi eleito antes da queda de Adão, e nos ensina também o
motivo pelo que Deus os escolheu. Como o texto o indica, os indicou para serem adotados como
filhos Seus, para louvor de Sua glória e de Sua graça (veja os versículos 5, 6 e 12). Também nos
diz que foram escolhidos conforme a Seu propósito soberano e Seu beneplácito (veja os versículos
9-11). Em quinto lugar, em 2 Tessalonicenses 2:13, o apóstolo Paulo agradece a Deus que tenha
escolhido os Tessalonicenses para salvação, mediante a santificação pelo Espírito e a fé na
verdade. Isto ensina que todo o povo de Deus é eleito para ser salvo e que é o Espírito Santo
quem assegura que creiam a verdade.
Em sexto lugar, 2 Timóteo 1:9 declara que Deus chama e salva seu povo, não pelo que tenham
feito, senão pela sua bondade e amor e Ele quis demonstrar aos Seus. Também ensina que isto foi
determinado pelo conselho eterno da Trindade, antes que o mundo existisse.
Finalmente, a Bíblia nos diz claramente, em muitos outros textos, que Deus tem escolhido um
povo para que seja salvo (veja os textos na nota no final deste capítulo). E já que foram eleitos por
Deus, eles buscam a Deus. assim sendo, não há necessidade de temer que Deus não tenha
escolhido você; se você O está procurando sinceramente, com certeza é porque Deus escolheu
você. Por natureza ninguém busca a salvação de Deus, porque todos estão espiritualmente mortos
e separados de Deus. então, se tu desejas a salvação que Deus dá, esse desejo é evidência de que
Deus te ama e está operando em você. Esta é uma das verdades mais alentadoras que se
encontram na Bíblia; não duvide, a fé é o dom de Deus. Assim que, se você acredita, Deus tem lhe
dado essa fé, porque é o Seu desejo que você a tenha. Esta é uma verdade maravilhosa, não é?
TEXTOS BÍBLICOS:
Os seguintes textos afirmam que Deus tem escolhido um povo para salvação:
Efésios 1:4-5: "Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos
santos e irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou para filhos de adoção por Jesus
Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade".
Efésios 1:11: "Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados,
conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade".
Atos 13:48: "E os gentios, ouvindo isto, alegraram-se, e glorificavam a palavra do Senhor; e
creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna".
Marcos 13:20: "E, se o Senhor não abreviasse aqueles dias, nenhuma carne se salvaria; mas,
por causa dos eleitos que escolheu, abreviou aqueles dias".
Romanos 9:11-26: "Porque, não tendo eles ainda nascido, nem tendo feito bem ou mal (para
que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por
aquele que chama), foi-lhe dito a ela: O maior servirá o menor. Como está escrito: Amei a Jacó, e
odiei a Esaú. Que diremos, pois? que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma. Pois diz
a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver

9
misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se
compadece. Porque diz a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei; para em ti mostrar o meu
poder, e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra. Logo, pois, compadece-se de
quem quer, e endurece a quem quer. Dir-me-ás então: Por que se queixa ele ainda? Porquanto,
quem tem resistido à sua vontade? Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a
coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o
barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se
Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os
vasos da ira, preparados para a perdição; para que também desse a conhecer as riquezas da sua
glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, os quais somos nós, a quem
também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? Como também diz em
Oséias: Chamarei meu povo ao que não era meu povo; E amada à que não era amada. E sucederá
que no lugar em que lhes foi dito: Vós não sois meu povo; Aí serão chamados filhos do Deus vivo".
Romanos 11:5-7: "Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente, segundo a
eleição da graça. Mas se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é
graça. Se, porém, é pelas obras, já não é mais graça; de outra maneira a obra já não é obra. Pois
quê? O que Israel buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram, e os outros foram
endurecidos".
João 15:16: "Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós, e vos nomeei, para que
vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça; a fim de que tudo quanto em meu nome pedirdes
ao Pai ele vo-lo conceda".
Mateus 20:16: "Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros; porque
muitos são chamados, mas poucos escolhidos".
Mateus 22:14: "Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos".
2 Timóteo 1:9: "Que nos salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas
obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos
tempos dos séculos".
2 Timóteo 2:10: "Portanto, tudo sofro por amor dos escolhidos, para que também eles alcancem
a salvação que está em Cristo Jesus com glória eterna".
1 Tessalonicenses 1:4-5: "Sabendo, amados irmãos, que a vossa eleição é de Deus; porque o
nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo,
e em muita certeza, como bem sabeis quais fomos entre vós, por amor de vós".
1 Pedro 1:1-2: "Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos estrangeiros dispersos no Ponto, Galácia,
Capadócia, Ásia e Bitínia; eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito,
para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: Graça e paz vos sejam multiplicadas".
Romanos 8:28-30: "E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem
daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porque os que
dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de
que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também chamou; e
aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou".

CAPÍTULO 5
POR QUEM MORREU CRISTO?

"Conhecidas são a Deus, desde o princípio do mundo, todas as suas obras."


Atos 15:18

No Capítulo 4 vimos que Deus o Pai é soberano na salvação.


Ele concede o dom da fé para que as pessoas possam crer. Deus dá esta fé só àqueles que Ele
tem escolhido e sem dúvidas tem o direito de atuar como e quando quer neste assunto.
Agora, neste capítulo mostraremos que Deus o Filho é também soberano na salvação. Há quem
predicam que Cristo morreu para fazer que a salvação do pecado fora possível para todo mundo.
Porém, isto não pode ser verdade porque Jesus mesmo disse que Ele daria vida eterna só àqueles
que lhe foram "dados" pelo Pai. Atente para as palavras de Jesus em João 17:2: "Assim como lhe
deste poder sobre toda a carne, para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste".
Muitas passagens na Bíblia ensinam que Cristo morreu somente por aqueles que Deus escolheu.
Vejamos algumas destas passagens. Temos visto que antes da fundação do mundo Deus escolheu
um povo para ser salvo. A Bíblia ensina que Cristo veio ao mundo para fazer a vontade do Pai. Em
João 6:38 lemos as seguintes palavras de Jesus: "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha
vontade, mas a vontade daquele que me enviou". Também Jesus falou do povo que Deus lhe havia
dado em João 17:6, dizendo: "Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste; eram

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teus, e tu mos deste...". Fica claro então que Deus tem escolhido certas pessoas para serem
salvas, e que Jesus, realizando a vontade de Deus, morreu para executar a salvação deles.
Outro ponto que devemos considerar é o seguinte: quando Jesus morreu, ele tomou o lugar dos
pecadores culpados e sofreu em lugar deles, a fim de que eles não tivessem que sofrer o castigo
pelos seus pecados. Se Jesus tivesse sofrido e morrido em lugar de todos, então ninguém teria que
sofrer pelos seus pecados. Ou seja, Deus, sendo justo, não poderia exigir dois pagamentos pelos
mesmos pecados, vendo-Se obrigado a deixar livres a todos.
No entanto a Bíblia fala de pessoas que morrem em seus pecados e a eles Jesus diz: "Apartai-
vos de mim, malditos, para o fogo eterno..." (Mateus 25:41). Resulta claro então que Jesus não
morreu por todos, porque existem algumas pessoas que receberão a maldição de Deus e terão de
sofrer pelos seus pecados.
(NOTA: também devemos ter em conta o fato de que muitas pessoas já estavam no inferno
antes que Cristo viesse e morresse. Resulta evidente que Cristo não fez nada para salvar àqueles
que já estavam perdidos antes de sua vinda).
Vemos em Hebreus 9:24 que Cristo Jesus "entrou (...) no mesmo céu, para agora comparecer
por nós perante a face de Deus". Também em Hebreus 7:25 diz: "Portanto, pode também salvar
perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles".
Perceba que Jesus não está intercedendo a favor de todos (como também nos fala Romanos 8:34:
"Quem é que condena? Pois é Cristo quem morreu, ou, antes, quem ressuscitou dentre os mortos,
o qual está à direita de Deus, e também intercede por nós."), que Cristo intercede só a favor dos
eleitos. Cristo afirma isto mesmo quando diz em João 17:9: "Eu rogo por eles; não rogo pelo
mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus". No Antigo Testamento, o sumo
sacerdote intercedia diante de Deus em favor deste mesmo povo. Numa forma semelhante, Cristo
tem realizado o sacrifício de si mesmo pelos pecados de todos aqueles que o Pai tem escolhido, e
agora, como sumo sacerdote, ele intercede por eles no céu. Assim sendo, já que cristão só
intercede a favor do povo eleito de Deus, isto quer dizer que morreu só por eles.
Em João 6:44 Cristo diz: "Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu
o ressuscitarei no último dia". Também diz o mesmo em 6:65: "E dizia: Por isso eu vos disse que
ninguém pode vir a mim, se por meu Pai não lhe for concedido". Isto ensina que é o poder divino o
que faz com que o pecador esteja disposto a acudir a Cristo e que, por natureza, todos estão
indispostos para vir. Sabemos que algumas pessoas nunca virão a Jesus. Por que não vêm? Alguns
respondem que Jesus nunca constrange ninguém para recebê-Lo como Salvador. Em certo sentido,
isto é verdade, mas em outro sentido está completamente errado. Cristo tem o poder para fazer
com que a gente venha a Ele, porque Ele é Deus mesmo, o Todo Poderoso. Uma razão pela qual
muitas pessoas não vêm a Jesus é porque Cristo não teve o propósito de salvá-las. Cristo teve a
intenção de salvar só àqueles que Deus tinha eleito. Ele usa seu divino poder para fazer que estas
pessoas em particular estejam dispostas a recebê-Lo como Senhor e Salvador.
Cristo afirmava este ensino em muitos textos. Por exemplo, ele diz em João 6:37: "Todo o que
o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora". Em João 10:26
diz: "Mas vós não credes porque não sois das minhas ovelhas, como já vo-lo tenho dito".
Em João 5:21 diz que "...assim como o Pai ressuscita os mortos, e os vivifica, assim também o
Filho vivifica aqueles que quer." Em Mateus 11:27 Cristo diz que "...ninguém conhece o Pai, senão
o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar."
Em Mateus 1:21 diz: "...e chamarás o seu nome JESUS; porque ele salvará o seu povo dos
seus pecados". Jesus mesmo disse em Mateus 20:28 que veio dar sua vida em resgate por
"muitos". Perceba que não diz que veio dar sua vida em resgate por "todos". Mateus 26:28
declara: "...isto é o meu sangue; o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para
remissão dos pecados".
Em João 10:11, Cristo afirma que dará sua vida "pelas ovelhas". Efésios 5:25 afirma que Cristo
entregou-se a si mesmo pela "Sua Igreja". Hebreus 9:28 declara que "...Cristo, oferecendo-se uma
vez para tirar os pecados de muitos...". Também vemos o mesmo no Antigo Testamento, na
profecia de Isaias 53:12: "...ele levou sobre si o pecado de muitos...", e "pela transgressão do meu
povo ele foi atingido" (versículo 8), e "...com o seu conhecimento o meu servo, o justo, justificará
a muitos; porque as iniqüidades deles levará sobre si" (versículo 11).
Finalmente, vamos prestar atenção em alguns textos da Bíblia que parecem ensinar que Jesus
morreu por todos os homens sem exceção. Ao ler cuidadosamente estes textos perceberemos que
realmente não ensinam tal coisa. Em 2 Coríntios 5:14 diz que Jesus morreu "por todos". No
entanto, se lemos o versículo 15, podemos apreciar que "todos" refere-se a "todos os crentes".
Ao dizer "um morreu por todos" indica que Cristo morreu por todos os Seus. Em 1 Timóteo 2:6
diz que Cristo "se deu a si mesmo em preço de redenção por todos". mas a Bíblia usa esta palavra
"todos" em várias maneiras: às vezes significa "alguns de cada classe", outras vezes a palavra
"todos" pode significar "cada um de uma espécie em particular" ou "toda classe de pessoas".

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Nesta passagem significa que Jesus morreu por toda classe de pessoas, ricos e pobres,
poderosos e fracos. Já temos visto outras passagens que ensinam claramente que Cristo morreu
por todos os eleitos de Deus. Outro versículo em Hebreus 2:9 nos diz que "pela graça de Deus,
provasse a morte por todos". Mas em seguida declara que "todos" são somente os filhos de Deus.
(O versículo 10 refere-se a muitos filhos, o versículo 11 os chama de "irmãos", o versículo 13 fala
de "os filhos que Deus me deu", o versículo 16 os chama "a semente" de Abraão e o versículo 17
diz que Ele morreu "para expiar os pecados do povo").
Então, já vimos que a Bíblia mostra claramente que o Senhor Jesus morreu por aqueles que o
Pai escolheu para salvação. Não há limite nem no valor nem no poder da salvação de Deus, porém
em sua soberania Cristo tem assegurado que esta redenção seja aplicada somente ao povo que
Deus escolheu. Portanto, posso fazê-lhe uma pergunta muito importante?
É você uma das pessoas eleitas por Deus? Você foi salvo por Jesus?
NOTA DO TRADUTOR: alguns opõem-se à idéia de que Cristo morreu só pelos crentes, se
baseando nos textos que usam a palavra "mundo" ou a frase "todo mundo". Um estudo profundo
do uso da palavra "mundo" no Novo Testamento revela que essa palavra (grego= "kosmos"), é
usada nas seguintes formas:
1. Para se referir ao universo inteiro, veja Atos 17:24, Efésios 1:4, etc.
2. Para se referir à terra, veja João 13.1
3. Para se referir à maioria dos homens, veja Romanos 1:8.
4. Para se referir ao Império Romano, veja Lucas 2:1.
5. Para se referir aos homens maus (os descrentes), ou seja, o "mundo" dos incrédulos, veja
João 14:17, 1 João 5:19, etc.
6. Para se referir aos crentes (o "mundo" dos crentes), veja João 6:33, 2 Coríntios 5:19, etc.
7. Para se referir ao mundo como um sistema corrupto, veja 1 João 2:15-17.
8. Para se referir aos gentis em contraste com os judeus, veja Romanos 11:11-12.
Então, não devemos cair no erro de pensar que o mero uso da palavra "mundo" signifique que
Cristo morreu por todos e cada um dos homens do mundo.

CAPÍTULO 6
O ESPÍRITO SANTO CHAMA OS ESCOLHIDOS DE DEUS

"Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis
são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!"
Romanos 11:33

Já temos visto que Deus o Pai é soberano em escolher certas pessoas para que sejam salvas do
pecado, e também temos visto que Deus o Filho é soberano em morrer para salvar os escolhidos.
Neste capítulo veremos que Deus o Espírito Santo é soberano na salvação. Ele chama eficazmente
àqueles que Deus tem escolhido e aplica-lhes os benefícios da morte de Cristo.
Do que já temos aprendido, era de se esperar que fosse assim. Se Deus o Pai escolheu certas
pessoas e Deus o Filho morreu por elas, o Espírito Santo deveria aplicá-lhes os benefícios da morte
de Cristo. E isto é exatamente o que a Bíblia ensina.
Em João 3:8 lemos que o vento "assopra onde quer". Nós ouvimos seu som, mas não podemos
dizer de onde vem e aonde vai.
Assim é com todo aquele nascido do Espírito. Neste versículo a ação do Espírito Santo é
comparada com o vento. Tal como o vento assopra "onde quer", assim o Espírito Santo obra onde
lhe apraz. Assim como nós não podemos dizer de onde vem o vento e aonde vai, assim também
não podemos ver como e onde operará o Espírito Santo. O vento assopra quando, onde e como a
ele lhe apraz, ou pelo menos assim nos parece a nós.
Desde a nossa perspectiva humana, o vento é soberano no que faz. Assim também o Espírito
Santo é soberano no que faz. Em ocasiões, o vento assopra suavemente e em outras,
barulhentamente. Também o Espírito Santo às vezes opera suavemente, de maneiras que não
podemos discernir, e em outras, opera poderosamente, de formas que todos podem ver. O Espírito
Santo faz o que lhe apraz. Neste capítulo queremos mostrar que o Espírito Santo é soberano em
trazer os escolhidos ao novo nascimento.
Primeiro, sabemos que as pessoas mortas em pecado não podem vivificar-se a si mesmas
espiritualmente. Nós não fizemos nada a respeito de nosso nascimento físico, e do mesmo modo
não podemos fazer nada em relação com o nosso nascimento espiritual. Segundo João 5:24, este
nascimento novo significa "passar de morte para a vida". Uma pessoa espiritualmente morta não
pode vivificar-se a si mesma, tal como uma pessoa fisicamente morta também não pode
ressuscitar-se. João 6:63 diz: "O Espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita". (Outros

12
textos que afirmam o mesmo ponto são: João 1:13; 5:21; 3:5-6; Tiago 1:18; 1 Pedro 1:23;
Efésios 2:5, etc.). porém, fica claro que o Espírito Santo não dá a nova vida a todos.
Por que não? A resposta comum a esta pergunta é que nem todos confiam em Cristo. Muitos
dirão que o Espírito Santo só dá a vida espiritual às pessoas que acreditam primeiro em Cristo. Mas
esta resposta coloca as coisas numa ordem errada. Não é a fé a que conduz à vida espiritual, mas
a nova vida espiritual que nos é concedida traz com ela a fé. A fé salvadora não é algo que temos
por natureza. 2 Tessalonicenses 3:2 diz que nem todos os homens têm fé. Efésios 2:1 diz que por
natureza estamos mortos em nossos delitos e pecados. Então, se estamos espiritualmente mortos,
não podemos ter fé, porque a gente morta não pode crer em nada.
Segundo, a Bíblia ensina claramente que a obra do Espírito Santo de dar vida espiritual acontece
antes que tenhamos fé em Cristo. (Ou seja, que a regeneração precede à fé ou, em outras
palavras, a fé vem como resultado do novo nascimento). Em 2 Tessalonicenses 2:13 diz: "...por
vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da
verdade". Aqui nos fala que os Tessalonicenses tinham sido eleitos e foram "apartados" ou
"separados" pelo Espírito Santo antes que cressem na verdade. A palavra santificação neste
versículo tem o significado de "separar" ou "pôr aparte para os usos de Deus". então, que significa
aqui ser "apartado" pelo Espírito Santo? Imagine que 100 pessoas escutam o evangelho da
salvação pela fé em Cristo; mas só uma pessoa crê. Esta pessoa tem nascido de novo
espiritualmente e agora tem nova vida. Tem sido "apartada" ou "separada" das outras 99 que não
acreditaram. Assim, 2 Tessalonicenses 2:13 nos explica que as pessoas que Deus tem escolhido
são afastadas pelo Espírito Santo a fim de que creiam a verdade.
(NOTA DO TRADUTOR: Esta obra do Espírito Santo de colocar aparte é comumente denominada
"o chamamento eficaz", porque é um chamamento especial que o Espírito Santo realiza nos
escolhidos, assegurando que se arrependam e acreditem em Cristo). A ordem das coisas é muito
importante. primeiro, Deus escolhe; segundo, ocorre o chamamento do Espírito Santo ao "chamar"
ou "separar" (santificar) os escolhidos; e por último, vem a fé na verdade. Esta é a mesma ordem
assinalada em 1 Pedro 1:2, que diz assim: "Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em
santificação do Espírito, para a obediência..." (Ou seja, para a obediência do evangelho). Antes que
cheguemos a crer em Cristo, tem que suceder primeiro a obra do Espírito afastando-nos, e ainda
antes disso é a eleição de Deus.
Assim sendo, podemos ver que a obra do Espírito Santo é uma parte necessária do plano de
Deus para o seu povo. Se Deus somente tivesse dado a Cristo para morrer pelos pecadores,
nenhum pecador teria sido salvo. A obra do Espírito Santo é vital. O Espírito tem que obrar
primeiro no coração antes que qualquer pecador possa ver a sua necessidade de ser salvo do
pecado. Os pecados necessitam ser renascidos e capacitados com uma disposição nova para poder
receber a Cristo. Ou seja, sem esta obra do Espírito Santo ninguém acreditaria. Embora o
evangelho da salvação fosse predicado repetidas vezes, ninguém acreditaria em Cristo sem a obra
do Espírito Santo em seus corações. Por que é assim? Devido a que por natureza toda pessoa
odeia a Deus e não está disposta a se arrepender nem a acreditar em Cristo.
Portanto, é devido a que o Espírito Santo opera no coração dos escolhidos que estes crêem.
Tem começado Deus o Espírito Santo a trabalhar em seu coração? É você um crente em Cristo
Jesus? Deseja ser um crente? Ouça! Se você deseja crer em Jesus Cristo, algo o tem feito diferente
de todos aqueles que rejeitam vir a Cristo. O fato de que você procura a salvação em Cristo Jesus
é uma evidência de que o Espírito Santo está chamando você.
Não significa isto então que você é uma das pessoas pelas quais Cristo morreu?
Pense nisso!
TEXTOS BÍBLICOS:
Filipenses 2:12-13: "De sorte que, meus amados, assim como sempre obedecestes, não só na
minha presença, mas muito mais agora na minha ausência, assim também operai a vossa salvação
com temor e tremor; porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a
sua boa vontade".
2 Tessalonicenses 2:13: "Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do
Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e
fé da verdade"
Lucas 10:21-22: "Naquela mesma hora se alegrou Jesus no Espírito Santo, e disse: Graças te
dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as
revelaste às criancinhas; assim é, ó Pai, porque assim te aprouve. Tudo por meu Pai me foi
entregue; e ninguém conhece quem é o Filho senão o Pai, nem quem é o Pai senão o Filho, e
aquele a quem o Filho o quiser revelar".
João 6:37: "Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o
lançarei fora".

13
2 Timóteo 1:9: "Que nos salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas
obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos
tempos dos séculos".

CAPÍTULO 7
DEUS CONTROLA A HISTÓRIA

"Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém."
Romanos 11:36

Até agora temos visto que Deus controla tudo, incluindo a salvação das pessoas que Ele tem
escolhido. Deus o Pai escolheu certas pessoas para serem salvas; Deus o Filho morreu para salvá-
las, e Deus o Espírito Santo lhes outorga a vida espiritual. Mas, está Deus controlando tudo
conforme um plano determinado ou está continuamente mudando este plano? Neste capítulo
veremos que Deus está controlando tudo de acordo a um plano fixo e predeterminado.
Muita gente ficaria de acordo com que Deus sabe de antemão o que acontecerá no futuro. Assim
sendo, se Deus sabe o que sucederá, isto só pode significar que no passado Ele decidiu o que devia
acontecer; já que se Deus não tivesse decidido o que sucederia, não poderia ter conhecido com
plena certeza o que haveria de acontecer. A presciência (pré-conhecimento) de Deus não faz que
as coisas aconteçam,; elas acontecem devido a que Ele já tinha decidido que sucedessem. Em Atos
15:18 diz que Deus conhecia o que ia acontecer desde antes que o mundo começasse:
"Conhecidas são a Deus, desde o princípio do mundo, todas as suas obras". Isto significa que Deus
tem um plano fixo e que não o muda.
(NOTA DO TRADUTOR: quando a Bíblia fala de que Deus se arrepende, por exemplo, em
Gênesis 6:6, não devemos entender a palavra "arrependimento" como se tivesse acontecido uma
mudança em Deus. Também não devemos concluir que isso signifique o surgimento de algo não
previsto por Deus em seu pano eterno. Temos que interpretar o arrependimento de Deus à luz de
outras escrituras e à luz da natureza e dos atributos do próprio Deus. Por exemplo, temos que
levar em conta os seguintes versículos para poder entender o que significa o arrependimento de
Deus: 1 Samuel 15:29 declara o seguinte: "E também aquele que é a Força de Israel não mente
nem se arrepende; porquanto não é um homem para que se arrependa". Tiago 1:17 afirma que
"Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não
há mudança nem sombra de variação." ["variação" significa "mudança"]. O salmista disse: "Mas o
nosso Deus está nos céus; fez tudo o que lhe agradou" (Salmo 115:3). Isaias proclamou: "Porque
o SENHOR dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão está estendida; quem,
pois, a fará voltar atrás?" (Isaias 14:27). Nabucodonosor, ao voltar a si, afirmou: "E todos os
moradores da terra são reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do
céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?"
(Daniel 4:35). Jeová diz por boca de Isaias: "Lembrai-vos das coisas passadas desde a
antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Que anuncio
o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O
meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" (Isaias 46:9-10). Outra vez o salmista
escreve: "O conselho do SENHOR permanece para sempre; os intentos do seu coração de geração
em geração" (Salmo 33:11). Por fim, o apóstolo Paulo no Novo Testamento: "Porque dele e por
ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém" (Romanos 11:36).
Estes versículos nos conduzem a afirmar que a única interpretação correta do arrependimento de
Deus é que se trata do uso de um antropomorfismo. Ou seja, que Deus digna-se falar-nos como se
fosse um homem, utilizando uma linguajem humana, como se Deus experimentasse uma
mudança. Mas em realidade a mudança está nos homens e na maneira como Ele trata com eles, e
não na natureza de Deus.)
Vejamos qual foi o plano de Deus quando fez o mundo e todas as pessoas que o habitam. A
Bíblia nos diz em Provérbios 16:4 que Deus fez todas as coisas para Si mesmo. Em Apocalipse
4:11 diz que Deus criou todas as coisas para Seu próprio prazer. Quando criou o mundo e
especialmente quando criou o homem, tinha a intenção de manifestar sua própria glória. No
obstante, Deus sabia perfeitamente, antes de criar o homem, que ele cairia. Portanto, antes que o
mundo fosse feito, Deus decidiu salvar a muitas pessoas por meio do Senhor Jesus Cristo. Assim
sendo, a salvação de muitos pecadores através de Cristo Jesus fez parte do plano de Deus antes
que o mundo fosse feito. Deus planejou manifestar a sua bondade através da salvação de muitas
pessoas pecadoras. E sendo que Deus sempre tem controlado o mundo desde a criação, Ele é
perfeitamente capaz de executar seu plano de salvar a muitos pecadores dos seus pecados.

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Num capítulo anterior vimos que Deus controla as coisas inanimadas e os animais. Também
vimos que Deus tem usado tanto as coisas inanimadas como os animais para proteger, cuidar e
ainda advertir o seu povo escolhido. Assim sendo, tanto as coisas inanimadas como os animais são
utilizados por Deus em seu plano. Mas, como controla Deus os homens para efetuar seu plano de
salvar seu povo de seus pecados? Primeiro consideraremos como Deus opera na vida dos seus,
aqueles que têm sido escolhidos para serem salvos.
Em primeiro lugar, Deus vivifica espiritualmente seu povo escolhido.
Em si mesmas, estas pessoas não são diferentes das outras; ou seja, não desejam obedecer a
Deus, assim como os outros também não o desejam. Porém Deus muda a natureza das pessoas
que Ele tem escolhido a fim de que eles desejem realmente ser santos e obedecê-Lo. Esta
mudança é tão grande que a Bíblia a define como "um novo nascimento". Ser vivificados
espiritualmente não é meramente uma mudança temporal de opinião, senão um câmbio completo,
o qual alcança a pessoa completa (sua mente, suas emoções e sua vontade). Esta mudança dura
para sempre e é operada em conformidade com o plano de Deus.
Em segundo lugar, Deus dá fortaleza e poder a seu povo. Mediante este poder os crentes são
capacitados para realizar o que Ele lhes ordena. Eles são capacitados para mostrar em suas vidas
os frutos do Espírito: o amor, o gozo, a paz, a paciência, a fé, a mansidão e a temperança.
Em terceiro lugar, Deus guia as pessoas escolhidas a fim de que voluntariamente realizem as
coisas que Lhe agradam.
Em quarto lugar, Deus cuida de seu povo para que nesta vida possam continuar amando-O e
servindo-O, cumprindo assim o Seu plano.
Em todas estas formas Deus efetua seu propósito de salvar a muitas pessoas de seus pecados.
Mas também Deus efetua seus propósitos controlando a muitas pessoas malvadas. Vejamos como
é Seu controle sobre este tipo de pessoas.
Em primeiro lugar, às vezes Deus evita que a gente má realize coisas malvadas. Em Números
23 a Bíblia nos fala de um homem chamado Balaão, quem tinha sido contratado para amaldiçoar o
povo de Deus (os israelitas). Balaão mesmo queria amaldiçoá-los, porém Deus o deteve. Em vez
de amaldiçoá-los, Deus fez com que ele os abençoasse. Assim, pois, Deus às vezes detém as
pessoas malvadas de realizarem coisas perversas.
Em segundo lugar, às vezes Deus muda o pensamento das pessoas más a fim de que façam a
Sua vontade. Por exemplo, quando os israelitas, o povo de Deus, foi cativo dos persas, Deus fez
que o rei da Pérsia (Ciro) emitisse um decreto para a reconstrução do templo em Jerusalém.
O rei Ciro era um homem muito malvado, mas a sua mente foi mudada de modo que ele
fizesse a vontade de Deus.
Em terceiro lugar, às vezes Deus faz com que surja o bem das más ações das pessoas
perversas. Isto se manifesta especialmente na crucifixão do Senhor Jesus Cristo. Apesar de que os
homens maus simplesmente queriam matá-lo, foi por meio de Sua morte na cruz que Cristo salvou
de seus pecados a todo seu povo escolhido.
Em quarto lugar, às vezes Deus faz que as pessoas más se tornem piores. (Assim o diz
Romanos 9:18: "…e endurece a quem quer"). Deus faz com que sejam incapazes de ver o bom e o
verdadeiro. Assim aconteceu com Faraó, o rei dos egípcios, de tal maneira que ele chegou a ser
cada vez mais cruel com os israelitas. Para nós é difícil compreender por que Deus realiza tais
coisas, mas podemos estar seguros de que o Juiz Justo de toda a terra não pode cometer injustiça,
e que Ele manifesta a Sua grandeza e Sua soberania quando age assim.
Então, Deus tem um propósito definido ao controlar o mundo e os seus habitantes. (Isto
significa que Deus controla a história e seus acontecimentos). O plano de Deus é salvar a uma
grande multidão de pessoas dos seus pecados. Ele dá ao seu povo eleito vida espiritual, poder,
guia e proteção. Ele também impede, debilita, dirige ou incomoda o que a gente má faz. Assim
sendo, todas as coisas são controladas por Deus e Ele efetua perfeitamente seu plano de salvar
seu povo dos seus pecados. Que maravilhosa sabedoria e glória pertencem a Deus! não deve
maravilhar-nos que os crentes O louvem pelo que Ele é e pelo que Ele tem feito.
TEXTOS BÍBLICOS:
Salmo 147:15-18: "O que envia o seu mandamento à terra; a sua palavra corre velozmente. O
que dá a neve como lã; esparge a geada como cinza; o que lança o seu gelo em pedaços; quem
pode resistir ao seu frio? Manda a sua palavra, e os faz derreter; faz soprar o vento, e correm as
águas".
Isaias 14:27: "Porque o SENHOR dos Exércitos o determinou; quem o invalidará? E a sua mão
está estendida; quem, pois, a fará voltar atrás?"
Isaias 46:9-10: "Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou Deus, e não
há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a
antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda
a minha vontade".

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Provérbios 21:1: "Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR, que o
inclina a todo o seu querer".
Provérbios 19:21: "Muitos propósitos há no coração do homem, porém o conselho do SENHOR
permanecerá".

CAPÍTULO 8
A NOSSA VONTADE NÃO É REALMENTE LIVRE

"Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade."
Filipenses 2:13

Muitas pessoas dizem que o homem tem "livre arbítrio". Elas dizem que podemos escolher por
nós mesmos acreditar ou não no Senhor Jesus. Nos dizem que temos em nós mesmos a
capacidade para aceitar ou rejeitar a Cristo.
Porém a Bíblia não ensina isso. Rm 3:11 diz que ninguém deseja buscar a Deus. é verdade que
a Bíblia diz que quem quiser pode vir a Cristo, mas isto não significa que os homens possuam a
capacidade de vir.
De fato, a Bíblia diz claramente que ninguém tem a capacidade de vir a Cristo. (Veja, por
exemplo, João 6:44, 65). Romanos 8:7 nos diz que a nossa natureza caída está em inimizade
contra Deus. João 15:18 diz que o mundo odeia em forma natural a Deus. leia estes versículos por
si mesmo e veja que isto é bíblico.
Fica claro então que a Bíblia diz que as nossas vontades não são realmente livres. Não somos
livres para escolher se vamos receber a Cristo como nosso Salvador ou não. Em realidade, longe
de sermos livres ou neutrais, a nossa vontade é escrava de outras coisas.
Mas, o que é a nossa vontade? A vontade é a capacidade de escolher entre uma coisa e outra,
ou entre mais alternativas. Mas algo sempre influi na eleição, que nos faz decidir em prol de uma
ou em contra de outra alternativa. Isto significa que a nossa vontade é como uma serva daquelas
coisas que influem em sua decisão. Portanto, a nossa vontade não pode ser livre.
Quais são as coisas que influem em nossa vontade para que escolha entre uma coisa ou outra?
Isso depende de que tipo de pessoas sejamos; ou seja, depende de nossa natureza e caráter. Em
algumas pessoas esta influência pode ser a razão, e em outras poderia ser a consciência ou as
emoções, ou poderia ser Satanás ou o Espírito Santo. Qualquer destas coisas que tenha mais
influência sobre a pessoa é o que em verdade controla a sua vontade. Então, enquanto muitos
dizem que é a vontade do homem o que o governa, a Bíblia ensina que é a sua natureza interna a
que o controla. A Bíblia chama esta natureza interior "o coração". É o nosso coração (nossa
natureza interior) o que influencia a nossa vontade.
Portanto, quando alguém realiza uma eleição, fará o que agrada a seu coração. Se um pecador
tem que escolher entre uma vida de bondade e de santidade e uma vida de pecado e egoísmo,
escolherá a vida de pecado. Por que? Porque isso é o que agrada a seu coração. Seu coração (seu
"eu" interior) é pecaminoso. Lembre-se, a vontade do homem (sua capacidade de escolha) está
controlada pelo seu coração pecaminoso.
A Bíblia ensina que os nossos corações são por natureza pecaminosos e que por natureza
odiamos a Deus. Devido a isso, as nossas vontades inclinam-se naturalmente para a maldade, já
que as nossas vontades são controladas pelos nossos corações pecaminosos. E já que nunca
somos forçados a pecar em contra de nossa vontade, existe um sentido em que podemos dizer que
as nossas vontades são "livres". Como pessoas somos livres de fazer o que nos dá prazer, mas
porque somos pecadores, gostamos sempre é de pecar. Isto é semelhante a um homem que
sustém um livro em sua mão e depois o deixa cair. O livro é agora livre, mas naturalmente cai no
chão. O homem que o soltou não o tem forçado a cair no chão: aí caiu. Do mesmo modo, ninguém
força o pecador a pecar; ele peca naturalmente porque a sua natureza pecaminosa controla a sua
vontade.
Ele escolhe pecar livre e deliberadamente, mas sempre escolhe pecar porque a sua natureza é
pecaminosa.
O pecado tem afetado cada parte da natureza do homem, ou seja: a sua mente, suas emoções
e sua vontade. O homem é totalmente depravado e isso não é difícil de provar. Não temos que
discutir acerca da natureza pecaminosa do homem, já que nenhuma pessoa pode guardar as
normas que ela impõe a si mesma. Também não pode fazer as coisas boas que deseja realizar,
nem muito menos as coisas que agradam a Deus (é por isso que a Escritura declara: "Não há um
justo, nem um sequer" (Romanos 3:10). Isto mostra claramente que o homem não é livre, senão
que está controlado pelo pecado e por Satanás. O pecado tem penetrado em cada parte de nossa
natureza humana. Por natureza não queremos realizar a vontade de Deus, e também não

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desejamos amá-Lo. O pecado tem entrada em cada parte de nós, incluindo as nossas vontades.
Nossas vontades não são livres.
De igual maneira como as outras partes de nosso ser, a vontade é governada pelo pecado e
está em oposição a Deus. Sendo assim, não é correto dizer que o homem é capaz de escolher
amar e obedecer a Deus, porque em realidade a vontade não deseja obedecer a Deus em absoluto.
Também não é correto dizer que os homens têm que fazer "a sua parte" na salvação de si
mesmos. Um homem morto não pode fazer nada para salvar a si mesmo, e a Bíblia nos diz que os
homens estão mortos a causa de sua desobediência e pecado. Somente Deus pode mudar a nossa
natureza pecaminosa de modo que cheguemos a amá-Lo e obedecê-Lo.
(Veja os seguintes versículos para confirmar esta verdade: Romanos 8:7-8; 1 Coríntios 2:14;
João 6:44, 65; João 3:1-9; Efésios 4:17-19; Efésios 2:1-10; João 8:34, 44; Gênesis 6:5;
Eclesiastes 9:3; Jeremias 17:9; Marcos 7:21-23; Isaias 53:6 y 64:6; Jó 14:4; Jeremias 13:23,
etc.).
Temos aprendido que Deus tem o controle de todas as coisas. Deus o Pai escolheu salvar a
certas pessoas de seus pecados. Jesus Cristo morreu para salvá-los e o Espírito Santo lhes dá vida
espiritual. Na salvação de seu povo e em seu controle de todas as coisas, Deus opera de acordo
com Seu propósito determinado. Nenhuma pessoa pode escolher se será salva ou não, porque a
sua vontade é por natureza má e não deseja o que é bom. Ou seja, se Deus deixara liberados a
todos nós aos desejos de nossa própria natureza, então nenhum seria salvo, mas todos perdidos.
Só Deus pode realizar que uma pessoa deseje ser salva de seus pecados.
Muitas pessoas desejam escapar das conseqüências de seus pecados, mas ninguém por
natureza quer deixar o pecado, nem ser salvo de seu controle e domínio. É por isso que a Bíblia
ensina que o arrependimento e a fé são dons que Deus concede só aos seus escolhidos. (Veja por
exemplo: 2 Timóteo 2:24-26; Atos 5:31 y Atos 13:48; Filipenses 1:29 y 2:13-14; Tiago 1:18; 1
Coríntios 3:5; Romanos 12:3; Atos 16:14).

CAPÍTULO 9
A SOBERANIA DE Deus E A RESPONSABILIDADE HUMANA

"Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade."
Filipenses 2:13

No capítulo anterior consideramos a questão da vontade humana.


Temos visto que a vontade do homem natural não é soberana nem também não livre, senão
antes bem serva de sua natureza caída e do pecado.
Não é possível sustentar a doutrina bíblica da depravação humana a menos que sustentemos
também o conceito bíblico da escravatura da vontade humana. Até que seja ensinado por Deus, o
homem natural negará que o pecado tem escravizado tanto a sua mente como as suas emoções e
a sua vontade. O homem caído vangloria-se de seu "livre arbítrio", quando em realidade está em
servidão ao pecado e é levado cativo à vontade de Satanás. (Veja 2 Timóteo 2:26). Mas se a
vontade do homem natural não é livre, significa então que não é responsável pelos seus atos?
Acaso Deus não pode inculpá-lo pelo seu orgulho, rebelião e incredulidade?
As Escrituras falam continuamente da corrupção moral e da ruína espiritual do homem. Também
declaram que o homem é incapaz de fazer o bem espiritual, mas isto não significa que as
Escrituras neguem que seja responsável. Antes bem, falam continuamente dos seus deveres para
Deus e para o seu próximo, e exigem uma obediência perfeita aos mandamentos de Deus. Então, o
assunto mais difícil é definir a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana.
Muitos, em seu empenho por manter a verdade da responsabilidade humana, acabam negando
de uma ou outra forma a soberania de Deus. Estas pessoas dizem que se Deus fosse a exercer um
controle direto sobre a vontade humana, o homem ficaria reduzido a um fantoche. Portanto,
afirmam que Deus não pode fazer mais do que advertir e exortar o h.; pois se Deus fizesse algo
mais direto, isto acabaria com a liberdade humana. Outros têm caído no erro do fatalismo; ou seja,
tratam de usar a soberania de Deus para justificar a sua desobediência e pecado, como se Deus
tivesse a culpa.
Podemos resumir o ensino bíblico sobre este assunto com o seguinte:
1. Deus é inteiramente soberano, em todo sentido, sobre todas as coisas, incluso sobre a
vontade humana. Mas a soberania de Deus não tira nem diminui em forma alguma a
responsabilidade humana.
2. Os homens são completamente responsáveis; são responsáveis pelos seus atos, são
responsáveis de obedecer, de crer, de fazer a vontade de Deus, responsáveis por tudo quanto
fazem. Mas em sentido nenhum a responsabilidade humana tira ou diminui a soberania de Deus.

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3. Não existe contradição alguma entre estas duas verdades. Paulo em Romanos 9:11-24 dá
uma exposição das duas coisas. O leitor deveria realizar um cuidadoso estudo dos argumentos
apresentados pelo apóstolo em Romanos 9 em defesa desta verdade. Também muitos outros
versículos declaram juntamente estas duas verdades. Veja por exemplo Atos 2:23, Lucas 22:22,
Atos 4:24-28, Atos 13:45-48 y 2 Tessalonicenses 2:8-14.
Neste capítulo trataremos com as seguintes perguntas:
1. Como pode Deus deter a alguns homens de realizarem o que eles desejam e impulsionar a
outros a fazer o que não querem, e ao mesmo tempo preservar a sua responsabilidade? (Ou seja,
considerá-los responsáveis).
2. Como pode o pecador ser responsável de fazer o que por natureza é incapaz de fazer? Como
pode ser condenado por não fazer o que é incapaz de fazer?
3. Como pode Deus decretar que os homens façam certos pecados e depois responsabilizá-los
por cometê-los?
4. Como pode o pecador ser responsável de receber a Cristo e ser responsável por rejeitá-lo,
quando Deus não o tem escolhido para ser salvo?
Primeiro: Como pode Deus deter a alguns homens de realizarem o que eles desejam e
impulsionar a outros a fazer o que não querem, e ao mesmo tempo preservar a sua
responsabilidade?
Em Gênesis 20:6 lemos: "E disse-lhe Deus em sonhos: Bem sei eu que na sinceridade do teu
coração fizeste isto; e também eu te tenho impedido de pecar contra mim; por isso não te permiti
tocá-la". Aqui temos um caso claro onde Deus deteve Abimeleque de pecar, impedindo que fizesse
o que por si mesmo teria feito. (Veja também os caps 22 al 24 de Números e 2 Crônicas 17:10,
como exemplos de vezes em que Deus deteve o pecado).
Se Deus pode fazer isso, muita gente pergunta, por que então não impediu Adão de pecar? Por
que não deteve a Satanás? Ou, como o expressam muitos na atualidade, por que permite que
ocorra tanto sofrimento e maldade no mundo? Alguns respondem dizendo que Deus quer detê-lo,
mas não pode porque não pode violar o "livre arbítrio" humano sem reduzir o homem a um robô.
Tal resposta é absurda e indigna de Deus. Quem é o homem para dizer que o Todo Poderoso Deus
quer mas não pode fazer? A resposta bíblica apropriada é que tanto o pecado como a queda de
Adão são usados para manifestar melhor a sabedoria e os bons propósitos de Deus. Entre outras
coisas, o pecado provê ocasião para que o amor e a superabundante graça de Deus sejam
manifestados.
Como é possível que Deus impeça os homens de pecar sem interferir com a sua liberdade e com
a sua responsabilidade? A resposta encontra-se numa compreensão da seguinte pergunta: Em que
consiste a verdadeira liberdade moral? A resposta é que a liberdade moral consiste na liberação da
escravatura do pecado. Isto é o que Cristo expressou em João 8:36: "Se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres". Quer dizer, quanto mais seja a pessoa liberada do controle do
pecado, mais livre será. Os homens têm uma definição falsa da liberdade, porque acreditam que a
liberdade consista em serem livres para pecar. A Bíblia afirma que o pecado não é liberdade, mas
escravidão. Isto é o que Cristo disse em João 8:34: "Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em
verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado".
O homem natural supõe que a única liberdade encontra-se no fato de não estar sob nenhuma
autoridade, nem sob o controle de ninguém salvo ele mesmo, cumprindo os desejos de seu próprio
coração. No obstante, este tipo de "liberdade" em realidade resulta ser a pior escravidão e miséria
possíveis.
A Escritura nos diz que Deus não pode ser tentado pelos maus (Tiago 1:14), que Deus não pode
mentir, nem cometer injustiça. Acaso significa que Deus não é livre porque não pode fazer o que é
mau? Certamente não. Portanto, quando Deus intervém e impede os pecadores, isto também não
diminui a sua verdadeira liberdade. O homem já estava em escravidão e então Deus não tem
tirado nada do homem, senão que tem aumentado a sua verdadeira liberdade. Entre mais o
homem seja impedido de pecar e liberado da escravatura do pecado, mais liberdade tem.
Segundo: Como pode o pecador ser responsável de fazer o que por natureza é incapaz
de fazer? Como pode ser condenado por não fazer o que é incapaz de fazer?
Alguns têm concluído erroneamente que a queda do homem e sua incapacidade espiritual têm
terminado com sua responsabilidade moral. Dizem que não é possível que o homem seja tanto
incapaz como responsável; dizem que isto é uma contradição. A Bíblia responde que a pesar da
depravação e a pesar de sua incapacidade, o homem é inteiramente responsável: responsável de
buscar a Deus, responsável de obedecer ao evangelho, responsável de arrepender-se e confiar em
Cristo, responsável de deixar seus ídolos e submeter-se a Deus.
O fato de que Deus exija ao homem coisas que ele é incapaz de fazer é uma realidade; por
exemplo, lemos na Bíblia: "amarás a Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a
tua mente", "sede vós perfeitos como vosso Pai nos céus é perfeito", "arrependei-vos e crede no

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evangelho". O homem não regenerado é incapaz de fazer todas estas coisas, mas isto não muda
sua responsabilidade e dever de fazê-las. Deus não pode exigir menos que a santidade e a justiça.
Embora o homem tenha perdido a sua capacidade, isto não tem anulado nem acabado com sua
obrigação.
(As seguintes ilustrações [tomadas de várias fontes pelo tradutor] servirão para confirmar este
ponto: a) um bêbado que atropela e mata uma pessoa ao estar dirigindo seu carro não é
considerado inocente [ou não responsável], ainda que não fosse capaz de controlar seu veiculo; b)
o ladrão que é controlado pela concupiscência e a avareza, não pode deixar de roubar. Mas o fato
de que não possa deixar de fazê-lo não o inocenta [não tira a sua responsabilidade]; c) a segunda
carta de Pedro nos fala de aqueles que "Tendo os olhos cheios de adultério, e não cessando de
pecar". Mas isto não diminui em maneira alguma sua culpa e sua responsabilidade; d) o
argumento proposto pelos homossexuais na atualidade é que são pervertidos por natureza e
nasceram assim. Portanto dizem que não é possível que deixem seu pecado. Contudo, Romanos
1:26-28 diz que recebem em si mesmos a retribuição devida a seu extravio; e) a escusa daqueles
que dizem: "Sou assim e não posso mudar" não serve senão para condená-los; f) a pessoa que
tem uma dívida que não pode pagar. A lei não a escusa, por este fato, de sua responsabilidade de
pagar. Em forma semelhante, Deus não tem perdido seu direito de exigir o pagamento, embora os
homens tenham perdido sua capacidade de pagar. A impotência humana não cancela a obrigação
nem a responsabilidade; g) o fato de que o coração humano é depravado, o fato de que ame o
pecado e não possa deixá-lo, não faz de modo algum que alguém seja menos responsável dos seus
pecados. Se não fosse assim, então entre mais depravado e mais endurecido que alguém chegasse
a ser, menos responsabilidade teria. Nesse caso, Deus não poderia julgar ninguém).
É simplesmente um argumento filosófico o que diz que a responsabilidade humana é limitada
pela incapacidade. Este argumento conduz a uma absurda conclusão de que, quanto mais
pecaminoso seja alguém, menos responsabilidade teria. O diabo é um bom exemplo disto.
Ninguém duvida da depravação total do diabo. Não há dúvida alguma de que aborrece a Deus, de
que é incapaz de fazer o bem e ainda incapaz de arrepender-se. Mas nenhuma destas coisas o
desculpa em nada; ao contrario, aumentam sua culpabilidade e sua condenação.
Agora é necessário fazer alguns comentários sobre a natureza da incapacidade humana:
a) O homem caído não só é incapaz de fazer o bem espiritual, senão também é culpável de sua
própria incapacidade.
b) O homem é culpável porque tem continuado na mesma rebelião de Adão. Este caiu
voluntariamente e nós nele (Veja Romanos 5:12). Mas, como uma raça, temos continuado em
rebelião até o dia de hoje. Cada ser humano tem participado voluntariamente da mesma rebelião
de Adão. O fato de que nenhuma pessoa liberada a si mesma queira arrepender-se e voltar-se a
Deus é a prova de sua rebelião.
c) É necessário entender a distinção entre a incapacidade física (natural) e a incapacidade moral
(espiritual). Por exemplo, existe uma diferença entre a cegueira de Bartimeu e a cegueira daqueles
que fecham seus olhos para não ver. Existe uma diferença entre os que são surdos de nascimento
e aqueles que cobrem seus ouvidos para não ouvir a verdade. A capacidade natural (física) tem a
ver com as faculdades que recebemos como seres humanos, por exemplo: a capacidade de pensar,
de falar, de ver, de ouvir e sobre tudo, de escolher. Os homens têm mente e vontade e a
capacidade de escolher o que desejam. Qual é, então, o problema? O problema radica em seus
"desejos". Por natureza os homens não têm o desejo de serem salvos; não querem vir a Cristo.
Isto é o que Cristo assinalava quando dizia: "Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o
não trouxer (...) Por isso eu vos disse que ninguém pode vir a mim, se por meu Pai não lhe for
concedido" (João 6:44,65). Quando a Bíblia diz que os homens não pode vir, significa que a
incapacidade é espiritual e moral. Não podem porque não querem. Assim o disse Cristo em João
5:40: "E não quereis vir a mim para terdes vida". Os homens não podem porque aborrecem a
Deus e amam seus pecados (veja João 3:19-20 e Romanos 8:5-8). Esta incapacidade é moral e
espiritual e nela encontra-se a raiz da depravação humana.
Terceiro: Como pode Deus decretar que os homens façam certos pecados e depois
responsabilizá-los por cometê-los?
Para responder esta pergunta vamos considerar a traição e a crucifixão de Cristo. O Antigo
Testamento profetizou que Cristo seria traído (Zacarias 11:12) e morto (Isaias 53). Em Atos 2:23
se declara: "A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus,
prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de injustos". Note que os homens são inculpados
por aquilo que foi predeterminado por Deus. Também Atos 4:27-28 diz: "Porque verdadeiramente
contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram não só Herodes, mas Pôncio Pilatos,
com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham
anteriormente determinado que se havia de fazer."

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Foi o propósito de Deus que Cristo morre-se crucificado. Ainda assim, o propósito dos homens
de trair e crucificar a Cristo não foi para obedecer a Deus, senão antes bem uma manifestação de
seu ódio e rebelião contra Ele. Judas mesmo confessou suas malvadas intenções em Mateus 27:4:
"Pequei, traindo o sangue inocente". Por este motivo Judas foi condenado por Deus. A traição de
Judas formou uma parte do plano eterno de Deus, mas isto não o livrou de sua responsabilidade.
Cristo mesmo afirmou este ponto em Lucas 22:22, dizendo: "E, na verdade, o Filho do homem vai
segundo o que está determinado; mas ai daquele homem por quem é traído!"
Deus não colocou no coração de Judas, nem também não dos judeus, o desejo de trair a Cristo.
Deus não aprova o pecado nem também não é o seu autor.
Os motivos e os propósitos malvados dos homens nascem de seu próprio coração (veja Tiago
1:13-14), e portanto são responsáveis perante Deus. o coração perverso dos homens produz as
más obras, mas Deus refreia e dirige esta maldade para cumprir através dela seus propósitos. Os
seguintes textos afirmam esta verdade: "O coração do homem planeja o seu caminho, mas o
SENHOR lhe dirige os passos." (Provérbios 16:9); "Certamente a cólera do homem redundará em
teu louvor; o restante da cólera tu o restringirás." (Salmo 76:10).
Portanto os decretos de Deus não são a causa dos pecados humanos, antes bem seus decretos
limitam e dirigem os atos malvados dos homens para cumprir seu plano eterno. Deus não forçou
Judas a realizar a maldade que ele fez, senão que Deus usou a maldade de Judas para cumprir o
plano da redenção.
Quarto: Como pode o pecador ser responsável de receber a Cristo e ser responsável
por rejeitá-lo, quando Deus não o tem escolhido para ser salvo?
Em primeiro lugar, temos que compreender que ninguém pode saber com plena certeza que não
é um dos escolhidos de Deus. Este conhecimento pertence ao conselho secreto de Deus, ao qual
nenhum ser humano tem acesso (Deuteronômio 29:29). A vontade revelada de Deus é a norma da
responsabilidade humana. Deus tem revelado em sua Palavra que todas as pessoas devem
arrepender-se a crer no evangelho (Atos 17:30 e 1 João 3:23). As mesmas Escrituras dizem que
todos aqueles que se arrependam e acreditem serão salvos. Todos os homens são responsáveis de
esquadrinhar as Escrituras, "que podem fazer-te sábio para a salvação" (2 Timóteo 3:15). Já que a
fé vem pelo ouvir a Palavra de Deus (Romanos 10:17), então é o dever de cada pecador
esquadrinhar as Escrituras, rogando a Deus que lhe conceda entendimento para a salvação de sua
alma. Façamos o que Deus tem nos ordenado e deixemos o resto em suas mãos.
Como já mostramos, é um fato que o homem não quer se voltar a Deus, nem obedecê-Lo, nem
amá-Lo, o que é a fonte de sua incapacidade.
Isto é o que origina a necessidade da graça eletiva de Deus. Se não fosse por esta graça,
ninguém seria salvo (Isaias 1:9). Já que o homem é incapaz de cumprir com as exigências de
Deus, então, que deveria fazer? Primeiro, deveria humilhar-se e reconhecer a sua incapacidade.
Segundo, deveria clamar a Deus e pedi-Lhe a graça para superar sua incapacidade. Cada crente
verdadeiro reconhece sua incapacidade e depravação, e roga a Deus fervorosamente por
sabedoria, graça e poder para conseguir realizar o que é agradável perante Ele.
Da mesma maneira, cada pecador é responsável de invocar o Senhor reconhecendo que a
Palavra de Deus diz a verdade quando descreve sua condição depravada, e reconhecendo que o
juízo de Deus é justo. Seu dever então é clamar a Deus e Lhe pedir o poder de Seu Espírito Santo
para conduzir seu coração à obediência e submissão a Cristo. Se o pecador faz isto sinceramente,
então Deus responderá a seu clamor, porque a Escritura diz: "Todo aquele que invocar o nome do
Senhor será salvo" (Romanos 10:13). Tal como um homem que esteja morrendo sem forças nem
habilidade para salvar a si mesmo deveria clamar por ajuda, assim também o pecador incapaz de
salvar a si mesmo deve clamar a Deus a fim de que Ele faça o que ele é incapaz de realizar.
Porém, se o pecador está decidido a perecer e recusa vir a Cristo, então não pode inculpar a
ninguém, salvo a si mesmo.
Se o pecador pode ou não entender como harmonizar a soberania de Deus e a responsabilidade
humana, de todas maneiras permanece como responsável de invocar a Cristo para salvação do
pecado e da ira de Deus.
Talvez enquanto leia estes caps, tenham surgido algumas perguntas.
Quiçá tenha se perguntado: por que os crentes incomodam-se em predicar o evangelho aos
inconversos se em verdade os homens não têm a capacidade de receber a Cristo como seu
Salvador? Ou a pergunta seja: por que os crentes devem preocupar-se por orar se Deus já tem
decidido o que vai acontecer? Ou, então: por que devem realizar um esforço os crentes para
chegar a ser melhores pessoas, se Deus mesmo está controlando as suas vidas? Talvez esteja
pensando que é uma injustiça e um agravo de Deus escolher só certas pessoas para serem salvas.
No próximo capítulo tentaremos responder estas perguntas.

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CAPÍTULO 10
A SOBERANIA DE Deus E AS NOSSAS ORAÇÕES

"E esta é a confiança que temos nele, que, se pedirmos alguma coisa, segundo a sua vontade,
ele nos ouve."
1 João 5:14

Existem algumas perguntas que surgem na mente das pessoas quando pensam acerca da
soberania de Deus.
Já dissemos que as pessoas são incapazes de escolher ser salvos de seus pecados a menos que
Deus mesmo mude sua natureza pecaminosa.
Então, a primeira pergunta que responderemos é esta: sem Deus realiza o câmbio na natureza
das pessoas, por que devem esforçar-se os crentes em predicar o evangelho a todos? temos
aprendido que por natureza os homens são pecaminosos, que por si mesmos não podem escolher
crer em Cristo. Por que, então, os crentes devem urgir às pessoas a acreditar? A resposta é esta:
aos crentes lhes é ordenado por Deus predicar o evangelho a todos.
Não predicamos o evangelho pensando que os ouvintes inconversos tenham em si mesmos a
capacidade para receber a Cristo como seu Senhor. Predicamos porque sabemos que isto é o que
Deus tem nos comissionado fazer.
Sabemos que quando o evangelho é predicado, Deus mesmo fala eficazmente a alguns daqueles
que escutam. Àquelas pessoas que Deus tem escolhido, lhes é dada a disposição para acreditar.
Crer que Deus está no controle de tudo é de grande ajuda e estímulo para a predicação evangélica.
Os crentes sabem que as pessoas escolhidas por Deus se arrependerão dos seus pecados quando
escutem acerca de Jesus Cristo o Salvador.
De fato, esta convicção de que Deus está realizando seus propósitos mediante a predicação, é a
base da verdadeira predicação evangélica. Veja Isaias 55:10-11, 2 Coríntios 2:14-17, Romanos
10:14-15 e 1 Pedro 1:23.
Em segundo lugar, outra pergunta que pode surgir é esta: se Deus tem determinado o que vai
acontecer, e se também tem o controle sobre tudo o que acontece, então, existe alguma razão
para orar? Se Deus já tem tomado todas as decisões, seguramente a oração não tem valor algum.
Nós não podemos mudar a vontade de Deus. A nossa resposta é a seguinte: devemos entender o
significado verdadeiro da oração. Alguns dizem que a oração é a forma em que Deus permite que
as nossas vontades tenham influência no que acontece. Mas a Bíblia ensina claramente que é Deus
quem faz com que as coisas sucedam. Portanto, a idéia de que as nossas orações fazem que as
coisas aconteçam é errada. Outras pessoas dizem que a oração é uma forma de conseguir que
Deus mude a Sua vontade. Mas, como já vimos, Deus já tem decidido exatamente o que vai
acontecer. A oração não é algo que possamos usar para mudar as coisas; a nossa oração não
muda a vontade de Deus.
A oração é a maneira assinalada por Deus para honrá-Lo. A oração é um meio de adoração a
Deus. a oração é o reconhecimento de que dependemos totalmente de Deus, por todo o que somos
e o que temos. A oração é o método divino para pedir a bênção de Deus.
A oração faz com que percebamos quão pequenos e fracos somos, e quão grande é Deus. a
oração é um dom de Deus para seu povo, a fim de que eles Lhe peçam as coisas que Deus tem
determinado. As orações dos crentes formam parte do plano de Deus para efetuar os Seus
propósitos eternos. (Veja os seguintes textos que afirmam esta verdade: Mateus 5:10; 1 João
5:14; Romanos 8:26-27).
Alem disso, Deus tem determinado que a oração seja um meio para efetuar sua vontade, tal
como a predicação do evangelho é o meio utilizado por Deus para salvar os pecadores. As orações
dos crentes formam parte do plano de Deus para executar Sus propósitos eternos.
Assim sendo, quando os crentes oram não o fazem para mudar o plano de Deus, senão para
que o pano de Deus seja executado. Os crentes podem orar por certas coisas com confiança
porque sabem que estão incluídas no plano de Deus. quando dizemos a Deus as nossas
necessidades, estamos encomendando-nos ao Seu cuidado, e Lhe suplicamos que trate com elas
de conformidade com Seu plano. Então, pode perceber-se que a oração é basicamente uma
atitude, uma atitude de dependência total de Deus. A oração é o oposto de dizer a Deus o que Ele
tem que fazer, porque a oração pede para que a vontade de Deus seja feita. Assim, isto responde
a nossa pergunta acerca da razão para orar. Os crentes oram por coisas que concordam com o
plano que Deus tem pré-determinado, ou seja, coisas que são parte do mesmo plano de Deus. Os
crentes oram, não para mudar o plano de Deus, senão para aceitá-lo e achar a bênção de Deus
através desse plano.
Em terceiro lugar, talvez a seguinte pergunta tenha chegado a inquietar você: Se Deus tem
decidido todo o que sucede, então por que devem preocupar-se os crentes em serem bons? Se

21
Deus tem planejado que os crentes serão bons, então, por que devem preocupar-se de sê-lo eles
mesmos?
Mais uma vez, a resposta básica é que os crentes fazem bem, porque Deus tem lhes mandado
fazer o que é bom. Em realidade, o conhecimento de que Deus controla todas as coisas ajuda os
crentes a realizar o que é bom.
Os crentes confiam em que Deus pode lhes dar a capacidade de realizar coisas boas. Os
verdadeiros crentes sabem que em si mesmos não têm o poder de fazer o que Deus tem lhes
ordenado. É portanto que confiam em que Deus pode lhes dar a fortaleza que necessitam para
obedecer a Sua vontade.
Por último, quiçá você tenha pensado que é injusto e cruel de parte de Deus escolher só certas
pessoas para serem salvas. Porém, lembre-se do seguinte: se Deus não tivesse escolhido e salvo
alguns, então ninguém teria sido salvo do pecado. Se Deus não tivesse escolhido ninguém, então
todos nós teríamos morrido em nossos pecados. Deus não é injusto ao escolher salvar alguns e
outros não, porque ninguém tem o direito de ser salvo, quer dizer, Deus não "deve" a salvação
para ninguém. A salvação é inteiramente um assunto da bondade de Deus para as pessoas que
não a merecem. Deus tem mostrado sua bondade a certas pessoas, segundo melhor Lhe pareceu a
Ele (veja Mateus 11:25-27).
Nós poderíamos pensar que teria sido melhor que Deus salvasse todos, mas não estamos
capacitados para decidir isto. Não somos capazes de ver e compreender todo o que Deus vê e
compreende. Os caminhos de Deus não são como os nossos caminhos, e nós não podemos
compreendê-los integramente (Veja Isaias 55:8-9 e Romanos 11:33-36). Todo quanto podemos
dizer é que Deus tem demonstrado seu amor na eleição e salvação de gente que não merece sua
bondade. Então, permita-me fazê-lhe uma última pergunta: É você uma das pessoas que Deus
tem escolhido para salvação? Existe algum desejo em seu coração de ser uma das pessoas que
pertencem a Deus?
TEXTOS BÍBLICOS:
João 17:6, 9: "Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste; eram teus, e tu mos
deste, e guardaram a tua palavra. (...) Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles
que me deste, porque são teus".
2 Pedro 1:3: "Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade,
pelo conhecimento daquele que nos chamou pela sua glória e virtude".
Efésios 2:10: "Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais
Deus preparou para que andássemos nelas".
1 Pedro 1:5: "Que mediante a fé estais guardados na virtude de Deus para a salvação, já
prestes para se revelar no último tempo".
1 Samuel 3:18: "Então Samuel lhe contou todas aquelas palavras, e nada lhe encobriu. E disse
ele: Ele é o SENHOR; faça o que bem parecer aos seus olhos".
Jó 1:20-21: "Então Jó se levantou, e rasgou o seu manto, e rapou a sua cabeça, e se lançou em
terra, e adorou. E disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o SENHOR o deu, e
o SENHOR o tomou: bendito seja o nome do SENHOR".

CAPÍTULO 11
OS BENEFÍCIOS DA SOBERANIA DE Deus

"Sim, ó Pai, porque assim te aprouve."


Mateus 11:26

Permita-me lembrar você do que temos aprendido até agora. Deus tem o controle de tudo e em
forma soberana controla todas as coisas no mundo. Deus controla tanto as coisas inanimadas
como as coisas vivas: os animais, os homens e os anjos. Deus o Pai escolhe seu povo de cada
época da história e de cada nação e de toda raça. Jesus Cristo morreu para salvar este povo de
seus pecados e o Espírito Santo lhes da a nova vida espiritual.
Na salvação de Seu povo e em tudo o que Ele faz, Deus opera de acordo ao Seu plano
predestinado. Também temos aprendido que a vontade humana é por natureza má e não escolhe o
que é bom. Somente Deus pode fazer que uma pessoa deseje a salvação do pecado. Deus é
soberano, Ele é o grande rei, Ele é o único Deus.
Mas talvez você se pergunte por que nós pensamos que estas doutrinas são tão importantes.
Em que forma nos afetam? Que diferença há na prática se Deus está ou não no controle de todas
as coisas?
Primeiro que nada, se acreditamos que Deus é soberano, então temos uma melhor idéia do que
Deus é, quer dizer, de sua verdadeira natureza e caráter. Percebemos que o Deus que fez todas as

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coisas tem um poder completo sobre sua criação. Também compreendemos que sempre devemos
obedecê-Lhe e submeter-nos a Ele. Ainda que não possamos compreender todo o que Deus faz,
sabemos que ninguém pode resistir sua vontade.
Sabemos também que Deus tem demonstrado sua bondade a uma grande multidão de pessoas
que não o mereciam. Então, quando pensamos no plano divino da salvação percebemos quão
grande e poderoso é Deus.
Em segundo lugar, acreditando que Deus tem o controle completo de tudo, entendemos que a
nossa religião é viva e prática. Não podemos ter uma fé verdadeiramente viva até que não
percebamos quão grande e poderoso é Deus. Quando compreendemos o poder de Deus vemos a
nossa necessidade de obedecê-Lo o submeter-nos a Ele em cada aspecto de nossas vidas.
Somente percebendo a grandeza de Deus surge o desejo de aprender mais acerca dEle. Somente
aqueles que têm visto a grandeza de Deus desejam orar conforme a Sua vontade e fazer tudo para
a Sua glória.
Em terceiro lugar, a crença de que Deus é soberano sobre todas as coisas nos ensina que não
podemos realizar nada para salvar-nos a nós mesmos. A salvação não é como alguns falam, que
Deus tem feito o que Ele podia e agora está esperando que nós façamos o que devemos.
A verdade é que não podemos fazer nada para salvar-nos a nós mesmos.
A nossa vontade humana deseja por natureza fazer o que é mau.
Não desejamos completamente voltar-nos a Deus. Somente Deus, quem tem o controle
completo sobre tudo, pode dar-nos a disposição de voltar-nos para Ele.
O fato de que não podemos salvar-nos a nós mesmos deveria nos fazer sentir temor do perigo
de nunca chegar a sermos salvos. Este temor pode ser algo bom, se nos conduz a entender que só
Deus pode nos salvar. Então, pode nos levar à disposição de pedi-Lhe que nos salve.
Em quarto lugar, a crença de que Deus tem o controle de tudo nos mostra quanto dependemos
de Ele para todo. Também percebemos quão fracos, vãos e pequenos somos; e por outra parte,
percebemos quão forte, sábio e grande é Deus. Vivemos num mundo onde a gente sempre está
louvando e engrandecendo os logros humanos. As pessoas se orgulham das coisas que os homens
tem melhorado. Mas quando cremos na soberania de Deus, começamos a ver todo desde outra
perspectiva. Vemos que só Deus é capaz de salvar seu povo dos seus pecados. Vemos que os
homens não podem fazer nada para ajudar a Deus a salvá-los.
Como resultado, louvamos a Deus por tudo o que tem feito para salvar seu povo escolhido.
Em quinto lugar, crer na soberania de Deus nos dá um sentimento de plena segurança. Porque
ao confiar num Deus que controla tudo, já não temos nada a temer. Ainda em tempos de tristeza
sabemos que Deus está aí, e que está cheio de poder, sabedoria e bondade. Deus é demasiado
sábio como para cometer um erro. Deus é demasiado bondoso para causar-nos alguma dor que
não seja, no fim, para o nosso bem. Ainda em meio a dor, estamos completamente seguros se
estamos confiando num Deus soberano.
Em sexto lugar, se cremos que Deus é soberano estaremos contentes com qualquer coisa que
Deus nos envie. Isto não significa que aceitemos as coisas difíceis com um espírito estóico ou
fatalista. Se confiamos em Deus, perceberemos que o que Ele nos envia é para o nosso bem (ainda
quando não compreendamos como é que tudo redundará para o nosso bem-estar).
A sétima coisa é que, crendo na soberania de Deus, somos conduzidos a louvá-Lo. Se Deus tem
nos escolhido, tem nos salvado e guardado em cada momento de nossa vida pela sua bondade,
então desejaremos louvá-Lo por tudo o que Ele é e por tudo o que Ele tem feito por nós.
Em oitavo lugar, crer na soberania de Deus nos dá a segurança de que, num dia futuro, o bem
triunfará sobre o mal. Agora sentimos que a maldade é mais forte do que o bem. Porém, se
acreditamos que Deus é soberano, sabemos que um dia Satanás será derrotado. Num dia futuro,
será completamente claro que Deus é maior que todos os poderes da maldade. Num dia futuro,
todos verão com clareza que Deus é soberano.
Finalmente, a crença de que Deus controla tudo no dá paz em nossos corações. Todos os
crentes verdadeiros sabem que o Deus soberano controla toda a criação, é o mesmo Deus que
governa em seus corações; como resultado disso, têm perfeita paz. Devido a Sua soberania, Deus
é digno de toda confiança. Ele é demasiado sábio para errar, demasiado poderoso para ser vencido
e demasiado bondoso para fazer algo mau. Se este Deus é o seu Deus, então você pode estar
completamente seguro.

CAPÍTULO 12
COMO DEVEMOS PROCEDER AGORA

"E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará."


João 8:32

23
Deus é soberano e opera de acordo com seu plano eterno na salvação do seu povo. A vontade
dos homens não escolhe naturalmente a Deus porque está inclinada para o mal. Somente Deus
pode fazer que uma pessoa deseje ser salva dos seus pecados. Ele é o Deus soberano, Ele é o
grande Rei. Se acreditamos nisso, como devemos então reagir?
Primeiro, já que Deus é soberano, devemos temê-Lo. Temer a Deus significa lembrar quão
grande, santo e poderoso é Deus. Significa também lembrar quão pequenos, pecaminosos e fracos
somos nós. Significa fazer a Sua vontade e crer tudo o que Ele nos diz em Sua Palavra.
Significa obedecer a Deus porque dependemos totalmente dEle. Deus nos dá tudo o que
precisamos e por isso, o menos que podemos fazer é obedecê-Lo no que Ele diz na Bíblia e Lhe dar
o primeiro lugar em tudo.
Segundo, como Deus é soberano devemos aceitar com gosto todo o que nos acontece. Podemos
queixar-nos quando não temos o que desejamos, o podemos sentir que merecemos alguma
bênção em particular.
Talvez sintamos que merecemos o êxito ou a felicidade. Mas se somos crentes verdadeiros,
sabemos que Deus não nos dá o castigo que os nossos pecados merecem. Os crentes verdadeiros
percebem que, em vez de punir-nos, Deus tem sido muito bondoso para conosco em todos os
aspectos, quando merecíamos o contrário. E se realmente acreditamos que Deus é soberano em
tudo, então devemos reconhecer que Ele tem o direito de fazer o que Lhe apraz com o que é dEle,
inclusive conosco.
Portanto, se Deus faz com que nos aconteçam coisas de que não gostamos, devemos aceitá-las
sabendo que provêm de sua mão, e que Ele procura somente o nosso bem.
Terceiro, já que Deus é soberano, sempre devemos estar agradecidos a Ele. Nos sentimos
agradecidos quais as coisas vão de acordo ao que desejamos, mas também deveríamos louvá-Lo e
Lhe dar graças quando nos parece que tudo vai mal. Deveríamos ser gratos ainda em tempos
difíceis, porque se somos crentes verdadeiros, acreditamos que Deus nos tem escolhido, que nos
ama e que está controlando todo o que nos acontece.
Se realmente somos crentes, devemos seguir o exemplo de nosso Senhor Jesus Cristo. Você
percebeu quão temeroso era Jesus de desde o Pai, aceitando Sua vontade e dando-Lhe graças em
todo momento? No Novo Testamento vemos que quando Satanás o tentou, Jesus lhe disse que
somente Deus devia ser adorado. Ao longo do Novo Testamento vemos a obediência de Cristo, até
que sua obediência culminou em sua morte em favor do povo escolhido de Deus. Jesus aceitou a
vontade do Pai ainda e quando pediu que, se possível, o Pai eliminasse os seus sofrimentos.
Ele também disse: "Não seja feita a minha vontade, senão a Tua". Também vemos como Cristo
dava graças ao Pai. Ainda quando a gente que tinha visto os seus milagres não se arrependeu nem
acreditou nEle, Jesus todavia dava graças a Deus. como Lucas disse: "Naquela mesma hora se
alegrou Jesus no Espírito Santo, e disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que
escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste às criancinhas; assim é, ó Pai,
porque assim te aprouve" (Lucas 10:21).
Seguramente, se nós somos crentes verdadeiros em Cristo Jesus faremos o mesmo.
Finalmente, já que Deus é soberano, devemos adorá-Lo. Ele usa seu poder sabiamente e para
benefício de seu povo. Devido a que Deus é completamente sábio, não pode cometer nenhum
erro; porque Ele é santo, também não fará mal nenhum. Se não conhecêssemos mais sobre Deus,
exceto que a Sua vontade é soberana, então somente teríamos medo dEle. Porém, podemos
regozijar-nos porque sabemos que a poderosa e imutável vontade de Deus é também inteiramente
boa.
O propósito divino de controlar tudo é mostrar a Sua própria santidade, bondade e verdade. A
pesar de quanto vejamos no mundo, Deus ainda está executando os seus propósitos. E para
realizar isso, em algumas ocasiões usa até os homens malvados e a Satanás. Ninguém pode
alterar o propósito de Deus. Para Sua própria glória, Deus controla todo porque quer mostrar-nos
Sua bondade, santidade e verdade. Para Sua própria glória, Deus o Pai escolheu uma grande
número de pessoas para serem salvos de seus pecados.
Jesus Cristo morreu por estas pessoas e o Espírito Santo lhes dá a vida espiritual.
Para mostrar Sua glória, Deus muda a natureza malvada das pessoas escolhidas para salvação,
a fim de que se voltem para Ele e aprendam a amá-Lo.
Esta obra maravilhosa de Deus está acontecendo atualmente em todas partes do mundo. Muitos
dos que lerão estas palavras são aqueles que Deus têm chamado para que sejam Seu povo. Ele os
mudou, e tem lhes dado vida espiritual a fim de que chegassem a ser Seu povo. Se você deseja
que este Deus seja o seu Deus, então busque-O em oração. Ele tem prometido e não lançará fora
a ninguém que venha até Ele. Naturalmente que não os lançará fora, porque é a mesma obra dEle
em seus corações a que lhes faz desejar acudir a Ele.

24
Todas as coisas foram feitas por Deus, todas as coisas são controladas por Ele. Todas as coisas
operam de acordo ao seu plano. Todas as coisas servem para a glória de Deus, e quando todas as
coisas cheguem ao seu fim, este Deus soberano permanecerá por sempre sendo adorado e louvado
em toda a Sua bondade, santidade e glória. Vamos então a louvar e adorar o nosso soberano e
Todo Poderoso Deus, aqui e agora.

Grande Deus! Quão infinito és Tu,


Quão débeis e indignos vermes somos nós!
Prostre-se toda criatura e busque a salvação de ti.
A eternidade com todos seus anos
Permanece sempre presente a Tua vista,
Para Ti não existe nada velho, Grande Deus!
Não pode haver nada novo para Ti.
As nossas vidas são movidas de um lado a outro,
E angustiadas por coisas que não têm importância;
Enquanto Teu eterno pensamento segue adiante,
Segundo o Teu imutável e inalterável plano.

Isaac Watts (1674-1748)

25
E-book digitalizado e doado por: Temente
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ANTES DE LER

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comprar.
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avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os livros.

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nos ajudar fazendo a revisão do mesmo e nos enviando.”
Precisamos de seu auxílio para esta obra. Boa leitura!

E-books Evangélicos
Título Original:
The Attributes of God

Editora:
Bible Truth Depot

Tradução do Inglês:
Odayr Olivetti

Primeira Edição em Português:1985

Reimpressão: 1990

Capa:
Ailton Oliveira Lopes

Composição:
Intertexto Linotipadora S/C Ltda.

Impressão:
Imprensa da Fé
ÍNDICE

PREFÁCIO

1. A SOLIDÃO DE DEUS

2. OS DECRETOS DE DEUS

3. A ONISCIÊNCIA DE DEUS

4. A PRESCIÊNCIA DE DEUS

5. A SUPREMACIA DE DEUS

6. A SOBERANIA DE DEUS

7. A IMUTABILIDADE DE DEUS

8. A SANTIDADE DE DEUS

9. O PODER DE DEUS

10. A FIDELIDADE DE DEUS

11 . A BONDADE DE DEUS

12. A PACIÊNCIA DE DEUS

13. A GRAÇA DE DEUS

14. A MISERICÓRDIA DE DEUS

15. O AMOR DE DEUS

16. A IRA DE DEUS

17. CONTEMPLANDO A DEUS


PREFÁCIO
"Une-te pois a ele, e tem paz, e assim te sobrevirá o bem” (Jó 22:21).
"Assim diz o Senhor: Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem se glorie o
forte na sua força; não se glorie o rico nas suas riquezas. Mas o que se gloriar
glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor..." (Jeremias 9:23-
24). Um conhecimento salvador e espiritual de Deus é a maior de todas as
necessidades de cada criatura humana.
O fundamento de todo conhecimento verdadeiro de Deus só pode ser a
clara compreensão mental de Suas perfeições, segundo revelam as Escrituras
Sagradas. Não nos é possível servir nem adorar a um Deus desconhecido, nem
depositar nEle a nossa confiança. Neste breve livro fez-se um esforço para
apresentar algumas das principais perfeições do caráter, divino. Para que o
leitor se beneficie realmente com a leitura das páginas que se seguem, ele
precisa suplicar a Deus com seriedade e determinação que as abençoe para seu
proveito, que aplique Sua verdade à consciência e ao coração, a fim de que a
sua vida seja transformada.
Necessitamos algo mais que um conhecimento teórico de Deus. Só
conhecemos verdadeiramente a Deus em nossa alma, quando nos rendemos a
Ele, quando nos submetemos à Sua autoridade e quando os Seus preceitos e
mandamentos regulam todos os pormenores da nossa vida. "Conheçamos, e
prossigamos em conhecer ao Senhor..." (Oséias 6:3), "Se alguém quiser fazer a
vontade dele... conhecerá" (João 7:17). "... o povo que conhece ao seu Deus se
esforçará e fará proezas" (Daniel 11:32).
Os capítulos que se seguem apareceram pela primeira vez na revista
mensal "Studies in the Scriptures" (Estudos nas Escrituras), publicada pelo
autor e totalmente dedicada à exposição da Palavra de Deus e à provisão de
alimento espiritual para almas famintas. Estes artigos foram reeditados em sua
presente forma graças à generosidade de um amigo cristão que financiou o
custo total de sua publicação. Se Deus o permitir, o produto da venda deste
livro será empregado na publicação de outros, de natureza similar. Seja sobre
ele a bênção de Deus.

ARTHUR W. PINK
1

A SOLIDÃO DE DEUS
O título deste capítulo talvez não seja suficientemente claro para indicar o
seu tema. Isto se deve, em parte, ao fato de que hoje em dia bem poucas
pessoas estão acostumadas a meditar nas perfeições pessoais de Deus. Dos que
lêem ocasionalmente a Bíblia, bem poucos sabem da grandeza do caráter
divino, que inspira temor e concita à adoração. Que Deus é grande em sabedo-
ria, maravilhoso em poder, não obstante, cheio de misericórdia, muitos acham
que pertence ao conhecimento comum; contudo, chegar-se a um conhecimento
adequado do Seu Ser, Sua natureza, Seus atributos, como estão revelados nas
Escrituras Sagradas, é coisa que pouquíssimas pessoas têm alcançado nestes
tempos degenerados. Deus é único na excelência do Seu Ser. "Ó Senhor, quem
é como Tu entre os deuses? Quem é como Tu glorificado em santidade, terrível
em louvores, operando maravilhas?" (Êxodo 15:11).
"No princípio... Deus..." (Gênesis 1:1). Houve tempo, se é que se lhe pode
chamar "tempo", em que Deus, na unidade de Sua natureza, habitava só
(embora subsistindo igualmente em três pessoas divinas). "No princípio...
Deus...". Não existia o céu, onde agora se manifesta particularmente a Sua
glória. Não existia a terra, que Lhe ocupasse a atenção, Não existiam os anjos,
que Lhe entoassem louvores, nem o universo, para ser sustentado pela palavra
do Seu poder. Não havia nada, nem ninguém, senão Deus; e isso, não durante
um dia, um ano ou uma época, mas "desde sempre". Durante uma eternidade
passada, Deus esteve só: completo, suficiente, satisfeito em Si mesmo, de nada
necessitando.
Se um universo, ou anjos, ou seres humanos Lhe fossem necessários de
algum modo, teriam sido chamados à existência desde toda a eternidade. Ao
serem criados, nada acrescentaram a Deus essencialmente. Ele não muda
(Malaquias 3:6), pelo que, essencialmente, a Sua glória não pode ser
aumentada nem diminuída.
Deus não estava sob coação, nem obrigação, nem necessidade alguma de
criar. Resolver fazê-lo foi um ato puramente soberano de Sua parte, não
produzido por nada alheio a Si próprio; não determinado por nada, senão o Seu
próprio beneplácito, já que Ele "faz todas as coisas, segundo o conselho da sua
vontade" (Efésios 1:11). O fato de criar foi simplesmente para a manifestação da
Sua glória. Será que algum dos nossos leitores imagina que fomos além do que
nos autorizam as Escrituras? Então, o nosso apelo será para a Lei e o
Testemunho: "... levantai-vos, bendizei ao Senhor vosso Deus de eternidade em
eternidade; ora bendigam o nome da tua glória, que está levantado sobre toda a
bênção e louvor" (Neemias 9:5). Deus não ganha nada, nem sequer com a nossa
adoração. Ele não precisava dessa glória externa de Sua graça, procedente de
Seus redimidos, porquanto é suficientemente glorioso em Si mesmo sem ela.
Que foi que O moveu a predestinar Seus eleitos para o louvor da glória de Sua
graça? Foi, como nos diz Efésios 1:5, ".... o beneplácito de sua vontade".
Sabemos que o elevado terreno que estamos pisando é novo e estranho
para quase todos os nossos leitores; por esta razão faremos bem em andarmos
devagar. Recorramos de novo às Escrituras. No final de Romanos capítulo 11,
onde o apóstolo conclui sua longa argumentação sobre a salvação pela pura e
soberana graça, pergunta ele: "Por que quem compreendeu o intento do
Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para
que lhe seja recompensado?" (vers. 34-35). A importância disto é que é
impossível submeter o Todo-poderoso a quaisquer obrigações para com a
criatura; Deus nada ganha da nossa parte. "Se fores justo, que lhe darás, ou
que receberá da tua mão? A tua impiedade faria mal a outro tal como tu; e a
tua justiça aproveitaria a um filho do homem" (Jó 35:7-8), mas certamente não
pode afetar a Deus, que é bem-aventurado em Si mesmo. "...quando fizerdes
tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos
somente o que devíamos fazer" (Lucas 17:10) — nossa obediência não dá
nenhum proveito a Deus.
De mais a mais, vamos além: nosso Senhor Jesus Cristo não acrescentou
nada a Deus em Seu Ser essencial e à glória essencial do Seu Ser, nem pelo que
fez, nem pelo que sofreu. É certo, bendita e gloriosamente certo, que Ele nos
manifestou a glória de Deus, porém nada acrescentou a Deus. Ele próprio o
declara expressamente, e não há apelação quanto às Suas palavra.; "... não
tenho outro bem além de ti" (Salmo 16:2; na versão usada pelo autor,
literalmente: "... a minha bondade não chega a Ti"). Em toda a sua extensão,
este é um Salmo sobre Cristo. A bondade e a justiça de Cristo alcançou os Seus
santos na terra (Salmo 16:3), mas Deus estava acima e além disso tudo, pois
unicamente Deus é "o Bendito" (Marcos 14:61, no grego).
É absolutamente certo que Deus é honrado e desonrado pelos homens;
não em Seu Ser essencial, mas em Seu caráter oficial. É igualmente certo que
Deus tem sido "glorificado" pela criação, pela providência e pela redenção. Não
contestamos isso, e não ousamos fazê-lo nem por um momento. Mas isso tudo
tem que ver com a Sua glória declarativa e com o nosso reconhecimento dela.
Todavia, se assim Lhe aprouvesse, Deus poderia ter continuado só, por toda a
eternidade, sem dar a conhecer a Sua glória a qualquer criatura. Que o fizesse
ou não, foi determinado unicamente por Sua própria vontade. Ele era
perfeitamente bem-aventurado em Si mesmo antes de ser chamada à existência
a primeira criatura. E, que são para Ele todas as Suas criaturas, mesmo
agora? Deixemos outra vez que as Escrituras dêem a resposta: "Eis que as
nações são consideradas por ele como a gola dum balde, e como o pó miúdo das
balanças: eis que lança por ai as ilhas como a uma coisa pequeníssima. Nem
todo o Líbano basta para o fogo, nem os seus animais bastam para holocaustos.
Todas as nações são como nada perante ele; ele as considera menos do que
nada e como uma coisa vã. A quem pois fareis semelhante a Deus: ou com que
o comparareis?" (Isaías 40:15-18). Esse é o Deus das Escrituras; infelizmente
Ele continua sendo o "Deus desconhecido" (Atos 17:23) para as multidões
desatentas. "Ele é o que está assentado sobre o globo da terra, cujos moradores
são para ele como gafanhotos; ele é o que estende os céus como cortina, e os
desenrola como tenda para neles habitar; o que faz voltar ao nada os príncipes
e torna coisa vã os juízes da terra" (Isaías 40.22-23). Quão imensamente diverso
é o Deus das Escrituras do "deus" do púlpito comum!
O testemunho do Novo Testamento não tem nenhuma diferença do que
vemos no Velho Testamento; como poderia ser, uma vez que ambos têm o
mesmo Autor! Ali também lemos: "A qual a seu tempo mostrará o bem-
aventurado, o único poderoso Senhor, Rei dos reis e Senhor dos senhores;
aquele que tem, ele só, a imortalidade, e habita na luz inacessível; a quem
nenhum dos homens viu nem pode ver: ao qual seja honra e poder sempiterno.
Amém" (1 Timóteo 6:15-16). O Ser que aí é descrito deve ser reverenciado,
cultuado, adorado. Ele é solitário em Sua majestade, único em Sua excelência,
incomparável em Suas perfeições. Ele tudo sustenta, mas Ele mesmo é
independente de tudo e de todos. Ele dá bens a todos, mas não é enriquecido
por ninguém.
Um Deus tal não pode ser encontrado mediante investigação; só pode ser
conhecido como e quando revelado ao coração Espírito Santo, por meio da
Palavra. É verdade que a criação manifesta um Criador, e isso com tanta
clareza, que os homens ficam "inescusáveis" (Romanos 1:20); contudo, ainda
temos que dizer com Jó: "Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos; e
quão pouco é o que temos ouvido dele! Quem pois entenderia o trovão do seu
poder?" (Jó 26:14). Cremos que o argumento baseado no desígnio, assim
chamado, argumento apresentado por "apologetas" bem intencionados, tem
causado mais dano que benefício, pois tenta baixar o grande Deus ao nível do
entendimento finito e, com isso, perde de vista a Sua singular excelência.
Tem-se feito uma analogia com o selvagem que achou um relógio e que.
depois de um detido exame, inferiu a existência de um relojoeiro. Até aqui,
tudo bem. Tentemos ir mais longe, porém. Suponhamos que o selvagem
procure formar uma concepção pessoal desse relojoeiro, de seus afetos
pessoais, de suas maneira, de sua disposição, conhecimentos e caráter
moral — de tudo aquilo que se junta para compor uma personalidade. Poderia
ele chegar a imaginar ou pensar num homem real ___ o homem que fabricou o
relógio — de modo que pudesse dizer: "Eu o conheço"? Fazer perguntas como
esta parece fútil, mas estará o eterno e infinito Deus tanto mais ao alcance da
razão humana? Realmente, não. O Deus das Escrituras só pode ser conhecido
por aqueles a quem Ele próprio Se dá a conhecer.
Tampouco o intelecto pode conhecer a Deus. "Deus é espírito..." (João
4:24) e, portanto, só pode ser conhecido espiritualmente. Mas o homem decaído
não é espiritual; é carnal, Está morto para tudo que é espiritual. A menos que
nasça de novo, que seja trazido sobrenaturalmente da morte para a vida,
miraculosamente transferido das trevas para a luz, não pode sequer ver as
coisas de Deus (João 3:3), e muito menos entendê-las (1 Coríntios 2:14. E
mister que o Espírito Santo brilhe em nossos corações (não no intelecto) para
dar-nos o "... conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo" (2
Coríntios 4:6). E até mesmo esse conhecimento espiritual é apenas
fragmentário. A alma regenerada terá de crescer na graça e no conhecimento do
Senhor Jesus (2 Pedro 3:18).
A nossa principal oração e finalidade como cristãos deve ser que
possamos "... andar dignamente diante do Senhor, agradando-lhe em tudo,
frutificando em toda a boa obra, e crescendo no conhecimento de Deus"
(Colossenses 1:10).
2

OS DECRETOS DE DEUS
O decreto de Deus é Seu propósito ou determinação com respeito às
coisas futuras. Usamos o singular, como o fazem as Escrituras (Romanos 8:28;
Efésios 3:11), porque houve somente um ato de Sua mente infinita acerca das
coisas futuras. Entretanto, nós falamos como se houvesse muitos, porque as
nossas mentes só conseguem pensar em ciclos sucessivos, conforme surgem os
pensamentos e as ocasiões, ou com referência a vários objetos do Seu decreto,
os quais, sendo muitos, parecem-nos requerer um propósito diferente para cada
um deles. O entendimento infinito de Deus não avança passo a passo, ou de
etapa a etapa. "Conhecidas por Deus são todas as Suas obras desde a
eternidade" (Atos 15:18 versão autorizada KJ, 1611).
As Escrituras fazem menção dos decretos de Deus em muitas passagens,
empregando vários termos. A palavra "decreto" acha-se no Salmo 2:7, etc. Em
Efésios 3:11 lemos a respeito do Seu "eterno propósito". Em Atos 2:23, do "...
determinado conselho e presciência de Deus... ". Em Efésios 1:9, do "... mistério
da sua vontade... ". Em Romanos 8:29 lemos que Ele também "predestinou".
Em Efésios 1:9, sobre "o seu beneplácito". Os decretos de Deus são
denominados Seu "conselho" para significar que são consumadamente sábios.
São chamados Sua "vontade" para mostrar que Ele não estava sob nenhum
outro domínio, mas agiu de acordo com o Seu beneplácito. Quando a norma de
conduta de uma pessoa é a sua vontade, geralmente é caprichosa e irrazoável.
Mas nos procedimentos divinos a sabedoria está sempre associada com a
"vontade" e, por conseguinte, os decretos de Deus são descritos como
sendo "o conselho da sua vontade" (Efésios 1:11).
Os decretos de Deus se relacionam com todas as coisas futuras, sem
exceção: o que quer que seja feito no tempo, foi pré-ordenado antes de iniciar-se
o tempo. O propósito de Deus dizia respeito a todas as coisas, grandes e
pequenas, boas e más, conquanto, com referência a estas, devemos ter o
cuidado de afirmar que, se bem que Deus é o Ordenador e Controlador do
pecado, não é o seu Autor do mesmo modo como é o Autor do bem. O pecado
não poderia proceder de um Deus santo por criação direta e positiva, mas
somente por permissão decretatória e ação negativa. O decreto de Deus é tão
abrangente como o Seu governo, estendendo-se a todas as criaturas e a todos
os eventos.
Relaciona-se com a nossa vida e com a nossa morte, com o nosso estado
no tempo, bem como na eternidade. Como Deus faz todas as coisas segundo o
conselho da Sua vontade, ficamos sabendo por Suas obras em que consiste (ou
consistiu) o Seu conselho, assim como julgamos a planta de um arquiteto
inspecionando o edifício que foi construído sob sua direção.
Deus não decretou meramente criar o homem, colocá-lo na terra, e depois
deixá-lo entregue à sua própria direção descontrolada; antes, fixou todas as
circunstâncias do destino dos indivíduos, e todas as particularidades que a
história da raça humana compreende, desde o seu início até o seu fim. Ele não
decretou simplesmente o estabelecimento de leis gerais para o governo do
mundo, mas dispôs a aplicação dessas leis a todos os casos particulares. Os
nossos dias estão contados, como contados estão os cabelos das nossas
cabeças. Podemos entender a extensão dos decretos divinos pelas distribuições
providenciais, mediante as quais eles são executados. Os cuidados de Deus
alcançam as criaturas, mais insignificantes e os mais diminutos eventos, como
a morte de um pardal e a queda de um fio de cabelo.
Consideremos agora algumas das propriedades dos decretos divinos. Em
primeiro lugar, são eternos. Supor que sequer um deles foi ditado dentro do
tempo, é supor que ocorreu algum novo acontecimento, surgiu algum evento
imprevisto ou alguma combinação imprevista de circunstâncias, que induziu o
Altíssimo a idealizar uma nova resolução. Isto favoreceria a idéia de que o
conhecimento de Deus é limitado e que Ele vai ficando mais sábio conforme o
tempo avança — o que seria uma horrível blasfêmia. Ninguém que creia que o
entendimento divino, é infinito, abrangendo o passado, o presente e o futuro,
jamais admitirá a errônea doutrina de decretos temporais. Deus não ignora os
eventos futuros que serão executados por volições humanos; Ele os predisse em
inúmeros casos, e a profecia não é nada menos do que a manifestação da Sua
presciência eterna. As Escrituras afirmam que os crentes foram escolhidos em
Cristo antes da fundação do mundo (Efésios 1:4), sim, que foi então que a
“graça” lhes foi dada (2 Timóteo 1:9).
Em segundo lugar, os decretos de Deus são sábios? A sabedoria é
evidenciada na seleção dos melhores fins possíveis e dos meios mais
apropriados para cumpri-los. Pelo que conhecemos dos decretos de Deus, é
evidente que lhes pertence esta característica. Eles se nos revelam por sua
execução, e toda evidência de sabedoria nas obras de Deus é prova da sabedoria
do plano segundo o qual eles são realizados. Como declara o salmista, "O
Senhor, quão variadas são as tuas obras! Todas as cousas fizeste com
sabedoria..." (Salmo 104:24), Na verdade, só podemos observar uma
pequeníssima parte delas, mas devemos proceder aqui como fazemos noutros
casos, e julgar o todo pela amostra, o desconhecido pelo conhecido. Aquele que
percebe o funcionamento admiravelmente engenhoso das partes de uma
máquina que teve oportunidade de examinar, será naturalmente levado a crer
que as outras partes são de igual modo admiráveis. Da mesma maneira,
devemos persuadir nossas mentes quanto às obras de Deus quando nos
invadem dúvidas, e repelir as objeções acaso sugeridas por alguma coisa que
não podemos conciliar com as nossas noções do que é bom e sábio. Quando
alcançarmos os limites do finito e contemplarmos os misteriosos domínios do
infinito, exclamemos: "Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como
da ciência de Deus..." (Romanos 11:33).
Em terceiro lugar, são livres. "Quem guiou o Espírito do Senhor? E que
conselheiro o ensinou? Com quem tomou conselho, para que lhe desse
entendimento, e lhe mostrasse as veredas do juízo e lhe ensinasse sabedoria, e
lhe fizesse notório o caminho — da ciência?" (Isaías 40:13-14). Deus estava
sozinho quando elaborou os Seus decretos, e as Suas determinações não foram
influenciadas por nenhuma causa externa. Ele era livre para decretar ou não, e
para decretar uma coisa e não outra. É preciso atribuir esta liberdade Àquele
que é supremo, independente e soberano em tudo que faz.
Em quarto lugar, são absolutos e incondicionais. Sua execução não
depende de qualquer condição que se pode ou não cumprir. Em cada caso em
que Deus tenha decretado um fim, decretou também todos os meios para esse
fim. Aquele que decretou a salvação dos Seus eleitos, também decretou
produzir fé neles, (2 Tessalonicenses 2:13). "...O meu conselho será firme, e
farei toda a minha vontade" (Isaías 46:10); mas não poderia ser assim, se o Seu
conselho dependesse de uma condição que não pudesse ser cumprida. No
entanto Deus "...faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade"
(Efésios 1:11).
Lado a lado com a imutabilidade e invencibilidade dos decretos de Deus,
as Escrituras ensinam claramente que o homem é uma criatura responsável e
que tem que responder por suas ações E se as nossas idéias se formam com
base na Palavra de Deus a defesa de um daqueles ensinos não levará à
negação do r outro (Reconhecemos sem reserva que há real dificuldade
em definir onde um termina e o outro começa) Sempre acontece isto quando há
uma conjunção do divino e do humano. A verdadeira-, oração é ditada pelo
Espírito e, não obstante, é também o clamor do coração humano. As Escrituras
são a Palavra de Deus inspirada mas foram escritas por homens que eram
algo mais que máquinas nas mãos do Espírito. Cristo é Deus e homem. Ele e
onisciente, mas crescia em sabedoria (Lucas 2:52). É todo-poderoso porém "...
foi crucificado por fraqueza..." (2 Coríntios 13:4). É o Príncipe da vida e,
contudo, morreu. Mistérios profundos são estes, mas a fé os recebe sem
contestação.
Tem-se assinalado muitas vezes no passado que toda objeção contra os
decretos eternos de Deus aplica-se com igual intensidade contra a Sua eterna
presciência. "Se Deus decretou ou não todas as coisas que acontecem, aqueles
que admitem a existência de Deus reconhecem que Ele sabe de antemão todas
as coisas. Pois bem é evidente que se Ele conhece de antemão todas as coisas,
Ele as aprova ou não as aprova, isto é, ou quer que se realizem, ou não quer.
Mas querer que se realizem é decretá-las (Jonathan Edwards).
Finalmente, procure-se supor e depois contemplar o oposto. Negar os
decretos divinos seria proclamar um mundo, e tudo que se relaciona com ele,
regulado somente por acaso ou por destino cego. Então, que paz, que
segurança, que consolo haveria para os nossos pobres corações e mentes? Que
refúgio haveria para onde fugir na hora da necessidade e da provação? Nada
disso haveria. Não haveria nada menos que as densas trevas e o abjeto horror
do ateísmo. Oh meu leitor, quão agradecidos devemos estar porque tudo está
determinado pela infinita sabedoria e bondade de Deus! Quanto louvor e
gratidão devemos a Ele por Seus decretos! Graças a estes "... sabemos que
todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a
Deus, daqueles que são chamados por seu decreto" (Romanos 8.28). Podemos
muito bem exclamar: "...glória pois a ele eternamente. Amém" (Romanos
11:36).
3

A ONISCIÊNCIA DE DEUS
Deus é onisciente. Ele sabe todas as coisas — todas as coisas possíveis,
todas as coisas reais, todos os eventos, conhece todas as criaturas, todo o
passado, presente e futuro. Conhece perfeitamente todos os pormenores da vida
de todos os seres que há no céu, na terra e no inferno. "... conhece o que está
em trevas..." (Daniel 2:22). Nada escapa à Sua atenção, nada pode ser
escondido dEle, não há nada que Ele esqueça! Bem podemos dizer com o
salmista: "Tal ciência é para mim maravilhosíssima; tão alta que não a posso
atingir" (Salmo 139:6). Seu conhecimento é perfeito. Ele jamais erra, nem
muda, nem passa por alto coisa alguma. "E não há criatura alguma encoberta
diante dele: antes todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com
quem temos de tratar" (Hebreus 4:13). Sim, tal é o Deus a quem temos de
prestar contas!
"Tu conheces o meu assentar e o meu levantar: de longe entendes o meu
pensamento. Cercas o meu andar, e o meu deitar; e conheces todos os meus
caminhos. Sem que haja uma palavra na minha língua, eis que, ó Senhor, tudo
conheces" (Salmo 139:2-4), Que maravilhoso Ser é o Deus das Escrituras! Cada
um dos Seus gloriosos atributos deveria torná-lo honorável à nossa apreciação.
A compreensão da Sua onisciência deveria inclinai-nos diante dEle em
adoração. Contudo, quão pouco meditamos nesta perfeição divina! Será por que
o só pensar nela nos enche de inquietação?
Quão solene é este fato: nada se pode esconder de Deus! :... quanto às
cousas que vos sobem ao espírito, eu as conheço" (Ezequiel 11:5). Embora
sendo Ele invisível para nós, não o somos para Ele. Nem as trevas da noite,
nem as mais espessas cortinas, nem o calabouço mais profundo podem ocultar
o pecador dos olhos do Onisciente. As árvores do jardim não puderam ocultar
os nossos primeiros pais. Nenhum olho humano viu Caim assassinar seu
irmão, mas o seu Criador testemunhou o crime. Sara pôde rir zombeteira,
oculta em sua tenda, mas foi ouvida por Jeová. Acã roubou uma cunha de ouro
e a escondeu cuidadosamente no solo, mas Deus a trouxe à luz. Davi escondeu
a sua iniqüidade a duras penas, mas pouco depois o Deus que tudo vê enviou-
lhe um dos Seus servos para dizer-lhe: "Tu és o homem!" E tanto ao escritor
como ao leitor se diz: "... sabei que o vosso pecado vos há de achar" (Números
32:23).
Os homens despojariam a Deidade da Sua onisciência, se pudessem —
prova de que "... a inclinação da carne é inimizade contra Deus... " (Romanos
8:7). Os ímpios odeiam esta perfeição divina com a mesma naturalidade com
que são compelidos a reconhecê-la. Gostariam que não houvesse nenhuma
Testemunha dos seus pecados, nenhum Examinador dos seus corações,
nenhum Juiz dos seus feitos. Procuram banir tal Deus dos seus pensamentos:
"E não dizem no seu coração que eu me lembro de toda a sua maldade..."
(Oséias 7:2). Como é solene o Salmo 90:8! Boa razão tem todo o que rejeita a
Cristo para tremer diante destas palavras: "Diante de ti puseste as nossas
iniqüidades: os nossos pecados ocultos à luz do teu rosto".
Mas a onisciência de Deus é uma verdade cheia de consolação para o
crente. Em tempos de aflição, ele diz com Jó: "Mas ele sabe o meu caminho..."
(23:10). Pode ser profundamente misterioso para mim, inteiramente
incompreensível para os meus amigos, mas "Ele sabe"! Em tempos de fadiga e
fraqueza, os crentes podem assegurar-se de que Deus " ... conhece a nossa
estrutura; lembra-se de que somos pó" (Salmo 103:14). Em tempos de dúvida e
vacilação, eles apelam para este atributo, dizendo: "Sonda-me, ó Deus, e
conhece o meu coração: prova-me, e conhece os meus pensamentos. E vê se ha
em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno" (Salmo 139:23-
24). Em tempos de triste fracasso, quando os nossos corações foram traídos por
nossos atos; quando os nossos feitos repudiaram a nossa devoção, e nos é feita
a penetrante pergunta, "Amas-me?", dizemos, como o fez Pedro: "... Senhor, tu
sabes tudo; tu sabes que eu te amo..." (João 21:17).
Aí temos estímulo para orar. Não há motivo para temer que as petições do
justo não serão ouvidas, ou que os seus suspiros e lágrimas não serão notados
por Deus, visto que Ele conhece os pensamentos e as intenções do coração. Não
há perigo de que um santo seja passado por alto no meio da multidão de
suplicantes que todo dia e toda hora apresentam as suas variadas petições,
pois a Mente infinita é capaz de prestar a mesma atenção a multidões como se
apenas um indivíduo estivesse procurando obter a Sua atenção. Assim também
a falta de linguagem apropriada, a incapacidade de dar expressão ao anseio
mais profundo da nossa alma, não comprometerá as nossas orações, pois, "...
será que antes que clamem, eu responderei: estando eles ainda falando, eu os
ouvirei" (Isaías 65:24).
"Grande é o nosso Senhor, e de grande poder; o seu entendimento é
infinito" (Salmo 147:5). Deus não somente sabe tudo que aconteceu no passado
em todos os rincões dos Seus vastos domínios, e não apenas conhece por
completo tudo o que agora está ocorrendo no universo inteiro, mas também é
perfeito conhecedor de todos os acontecimentos, do menor ao maior deles, que
haverão de suceder nas eras vindouras. O conhecimento que Deus tem do
futuro é tão completo como o Seu conhecimento do passado e do presente, e
isso porque o futuro depende totalmente dEle próprio. Se fosse possível ocorrer
alguma coisa sem a ação direta de Deus ou sem a Sua permissão, então aquilo
seria independente dEle, e Ele deixaria, de pronto, de ser Supremo.
Ora, o conhecimento divino do futuro não é mera abstração, mas é algo
inteiramente ligado ao Seu propósito, o qual o acompanha. Deus mesmo
planejou tudo que há de ser, e o que Ele planejou terá que ser efetuado. Como a
Sua Palavra infalível afirma, "... segundo a sua vontade ele opera com o exército
do céu e os moradores da terra: não há quem possa estorvar a sua mão e lhe
diga: Que fazes?" (Daniel 4:35). E de novo: "Muitos propósitos há no coração do
homem, mas o conselho do Senhor permanecerá" (Provérbios 19:21). Como a
sabedoria e o poder de Deus são igualmente infinitos, tudo que Deus projetou
está absolutamente garantido. (Que os conselhos divinos deixem de cumprir-se,
é tão impossível como seria para Deus, três vezes santo, mentir.
Quanto à realização dos conselhos de Deus relativos ao futuro, nada é
incerto. Nenhum dos Seus decretos é deixado na dependência das criaturas,
nem das causas secundárias. Não há evento futuro que seja apenas uma
possibilidade, isto é, coisa que pode ou não vir a acontecer. "Conhecidas por
Deus são todas as suas obras desde a eternidade" (Atos 15:18). O que quer que
Deus tenha decretado é inexoravelmente certo, pois nEle "... não há mudança
nem sombra de variação" (Tiago 1:17). Portanto, "logo no início do livro que nos
desvenda tantas coisas do futuro, são nos ditas "... as coisas que brevemente
devem acontecer..." (Apocalipse 1:1).
O perfeito conhecimento de Deus é exemplificado e ilustrado em todas as
profecias registradas em Sua Palavra. No Velho Testamento acham-se vintenas
de predições concernentes à história de Israel, as quais se cumpriram até o
mínimo pormenor, séculos depois de terem sido feitas. Há também vintenas
doutras mais, predizendo a carreira de Cristo na terra, e também se cumpriram
literal e perfeitamente. Tais profecias só poderiam ter sido dadas por Alguém
que conhecesse o fim desde o princípio, e cujo conhecimento repousasse na
incondicional certeza da realização de tudo quanto fosse predito..De modo
semelhante, o Velho e o Novo Testamento contêm muitos outros anúncios ainda
futuros, e estes também "tem que cumprir-se" (Lucas 24:44, na versão usada
pelo autor), tem que cumprir-se porque preditos por Aquele que os decretou.
Contudo, deve-se assinalar que, nem o conhecimento de Deus, nem a Sua
cognição do futuro, considerados simplesmente em si mesmos, são causativos.
Nada jamais aconteceu, nem acontecerá, apenas porque Deus o sabia. A causa
de todas as coisas é a vontade de Deus. O homem que realmente crê nas
Escrituras sabe de antemão que as estações do ano continuarão a seguir-se
sucessivamente com infalível regularidade até o fim da história da terra
(Gênesis 8:22); todavia, não é o seu conhecimento a causa da referida sucessão
de eventos. Assim, o conhecimento de Deus não nasce das coisas porque elas
existem ou existirão, mas porque Ele ordenou que existissem. Deus sabia da
crucificação do Seu Filho e a predisse muitas centenas de anos antes que
Ele Se encarnasse, e isto, porque, segundo o propósito divino, Ele era um
Cordeiro morto desde a fundação do mundo. Portanto, lemos que Ele "... foi
entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus..." (Atos 2:23).
Uma ou duas palavras, à guisa de aplicação. O conhecimento infinito de
Deus deveria encher-nos de assombro. Quão exaltado é o Senhor, acima do
mais sábio dos homens! Nenhum de nós sabe o que o dia nos trará, mas todo o
futuro está aberto ao Seu olhar onisciente. O conhecimento infinito de Deus
deveria encher-nos de santa reverência. Nada do que fazemos, dizemos ou
mesmo pensamos, escapa à percepção dAquele a quem teremos que prestar
contas: "Os olhos do Senhor estão em todo o lugar, contemplando os maus e os
bons" (Provérbios 15:3). Que freio seria para nós, se meditássemos nisso mais
freqüentemente! Em vez de agir descuidadamente, diríamos com Hagar: "Tu, ó
Deus, me vês" (Gênesis 16:13) — segundo a versão utilizada pelo autor, A
capacidade de compreensão que o conhecimento infinito de Deus tem deveria
encher o cristão de adoração. Minha vida A inteira esteve aberta ante os Seus
olhos desde o princípio! Ele previu todas as minhas quedas, todos os meus
pecados, todas as minhas reincidências; todavia, fixou em mim o Seu coração.
Como a percepção disto deveria fazer-me prostrar em admiração e adoração
diante dEle!
4

A PRESCIÊNCIA DE DEUS
Que controvérsias têm sido engendradas por este assunto no passado!
Mas que verdade das Escrituras Sagradas existe que não se tenha tornado em
ocasião para batalhas teológicas e eclesiásticas? A deidade de Cristo, Seu
nascimento virginal, Sua morte expiatória, Seu segundo advento; a justificação
do crente, sua santificação, sua segurança; a Igreja, sua organização, oficiais e
disciplina; o batismo, a ceia do Senhor, e uma porção doutras preciosas
verdades que poderiam ser mencionadas. Contudo, as controvérsias
sustentadas não fecharam a boca dos fiéis servos de Deus; então, por que
deveríamos evitar a disputada questão da presciência de Deus porque, com
efeito, há alguns que nos acusarão de fomentar contendas? Que outros se
envolvam em contendas, se quiserem; nosso dever é dar testemunho segundo a
luz a nós concedida.
Há duas coisas referentes à presciência de Deus que muitos ignoram: o
significado do termo e o seu escopo bíblico. Visto que esta ignorância é tão
amplamente generalizada, é fácil aos prega dores e mestres impingir perversões
deste assunto, até mesmo ao povo de Deus. Só há uma salvaguarda contra o
erro: estar firme na fé. Para isso, é preciso fazer devoto e diligente estudo, e
receber com singeleza a Palavra de Deus infundida. Só então ficamos
fortalecidos contra as investidas dos que nos atacam. Hoje em dia existem os
que fazem mau uso desta verdade, com o fim de desacreditar e negar a absoluta
soberania de Deus na salvação dos pecadores. Assim como os seguidores da
alta crítica repudiam a divina inspiração das Escrituras e os evolucionistas a
obra de Deus na criação, alguns mestres pseudo-bíblicos andam pervertendo
a presciência de Deus com o fim de pôr de lado a Sua incondicional eleição para
a vida eterna.
Quando se expõe o solene e bendito tema da pré-ordenação divina, e o da
eterna escolha feita por Deus de algumas pessoas para serem amoldadas à
imagem do Seu Filho, o diabo envia alguém para argumentar que a eleição se
baseia na presciência de Deus, e esta "presciência" é interpretada no sentido de
que Deus previu que alguns seriam mais dóceis que outros, que responderiam
mais prontamente aos esforços do Espírito e que, visto que Deus sabia que eles
creriam, por conseguinte, predestinou-os para a salvação. Mas tal declaração é
radicalmente errônea. Repudia a verdade da depravação total, pois defende que
há algo bom em alguns homens. Tira a independência de Deus, pois faz com
que seus decretos se apóiem naquilo que Ele descobre na criatura. Vira
completamente ao avesso as coisas, porquanto ao dizer que Deus previu que
certos pecadores creriam em Cristo e, por isso, predestinou-os para a salvação,
é o inverso da verdade. As Escrituras afirmam que Deus, em Sua soberania,
escolheu alguns para serem recipientes de Seus distinguidos favores (Atos
13:48) e portanto, determinou conferir-lhes o dom da fé. A falsa teologia faz do
conhecimento prévio que Deus tem da nossa fé a causa da eleição para a
salvação, ao passo que a eleição de Deus é a causa, e a nossa fé em Cristo, o
efeito.
Antes de continuar discorrendo sobre este tema, tão errôneamente
interpretado, façamos uma pausa para definir os nossos termos. Que se quer
dizer por "presciência"? "Conhecer de antemão”, é a pronta resposta de muitos.
Mas não devemos tirar conclusões precipitadas, nem tampouco apelar para o
dicionário do vernáculo como o supremo tribunal de recursos, pois não se trata
de uma questão de etimologia do termo empregado. O que é preciso é descobrir
como a palavra é empregada nas Escrituras. O emprego que o Espírito Santo
faz de uma expressão sempre define. " seu significado e escopo. Deixar de
aplicar esta regra simples tem causado muita confusão e erro. Muitíssimas
pessoas presumem que já sabem o sentido de certa palavra empregada nas
Escrituras, pelo que negligenciam provar as suas pressuposições por meio de
uma concordância. Ampliemos este ponto.
Tomemos a palavra “carne”. Seu significado parece tão óbvio, que muitos
achariam perda de tempo examinar as suas várias significações nas Escrituras.
Depressa se presume que a palavra é sinônima de corpo físico e, assim, não se
faz pesquisa nenhuma. Mas, de fato, nas Escrituras "carne" muitas vezes inclui
muito mais que a idéia de corpo. Tudo que o termo abrange, só pode ser
verificado por uma diligente comparação de cada passagem em que ocorre e
pelo estudo de cada contexto, separadamente.
Tomemos a palavra “mundo”. O leitor comum da Bíblia imagina que esta
palavra equivale a "raça humana" e, conseqüentemente, muitas passagens que
contêm o termo são interpretadas erroneamente. Tomemos a palavra
“imortalidade”. Certamente esta não requer estudo! É óbvio que se refere à
indestrutibilidade da alma. Ah, meu leitor, é uma tolice e um erro fazer
qualquer suposição, quando se trata da Palavra de Deus. Se o leitor se der ao
trabalho de examinar cuidadosamente cada passagem em que se acham
“mortal” e “imortal”, verá que estas palavras nunca são aplicadas à alma, porém
sempre ao corpo.
Pois bem, o que acabamos de dizer sobre "carne", "mundo", e
"imortalidade", aplicasse com igual força aos termos "conhecer" e "pré-
conhecer". Em vez de imaginar que estas palavras não significam mais que
simples cognição, é preciso ver que as diferentes passagens em que elas
ocorrem exigem ponderado e cuidadoso exame. A palavra "presciência" (pré-
conhecimento) não se acha no Velho Testamento. Mas "conhecer" (ou "saber")
ocorre ali muitas vezes. Quando esse termo é empregado com referência a
Deus, com freqüência significa considerar com favor, denotando não mera
cognição, mas sim afeição pelo objeto em vista. "... te conheço por nome" (Êxodo
33:17). "Rebeldes fostes contra o Senhor desde o dia em que vos conheci"
(Deuteronômio 9:24). "Antes que te formasse no ventre te conheci..." (Jeremias
1:5). "... constituíram príncipes, mas eu não o soube..." (Oséias 8:4). "De todas
as famílias da terra a vós somente conheci..." (Amós 3:2). Nestas passagens,
"conheci" significa amei ou designei.
Assim também a palavra "conhecer" é empregada muitas vezes no Novo
Testamento no mesmo sentido do Velho Testamento. "E então lhes direi
abertamente: Nunca vos conheci..." (Mateus 7:23). "Eu sou o bom Pastor, e
conheço as minhas ovelhas, e das minhas sou conhecido" (João 10:14). "Mas, se
alguém ama a Deus, esse é conhecido dele" (1 Coríntios 8:3). "... o Senhor
conhece os que são seus..." (2 Timóteo 2:19).
Pois bem, a palavra "presciência", como é empregada no Novo Testamento,
é menos ambígua que a sua forma simples, "conhecer". Se cada passagem em
que ela ocorre for estudada cuidadosamente, ver-se-á que é discutível se
alguma vez se refere apenas à percepção de eventos que ainda estão por
acontecer. O fato é que "presciência" nunca é empregada nas Escrituras em
relação a eventos ou ações; em lugar disso, sempre se refere a pessoas. Pessoas
é que Deus declara que "de antemão conheceu" (pré-conheceu), não as ações
dessas pessoas. Para provar isto, citaremos agora cada uma das passagens em
que se acha esta expressão ou sua equivalente.
A primeira é Atos 2:23. Lemos ali: "A este que vos foi entregue pelo
determinado conselho e presciência de Deus, tomando-o vós, o crucificastes e
matastes pelas mãos de injustos". Se se der cuidadosa atenção à terminologia
deste versículo, ver-se-á que o apóstolo não estava falando do conhecimento
..antecipado que Deus tinha do ato da crucificação, mas sim da Pessoa
crucificada: "A este (Cristo) que vos foi entregue", etc.
A segunda é Romanos 8:29-30. "Porque os que dantes conheceu também
os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho; a fim de que ele
seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou a estes também
chamou", etc. Considere-se bem o pronome aqui empregado. Não se refere a
algo, mas a pessoas, que ele conheceu de antemão. O que se tem em vista não é
a submissão da vontade, nem a fé .do coração, mas as pessoas mesmas.
"Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu..." (Romanos 11:2).
Uma vez mais a clara referência é a pessoas, e somente a pessoas.
A última citação é de 1 Pedro 1:2: "Eleitos segundo a presciência de Deus
Pai..." Quem são "eleitos segundo a presciência de Deus Pai"? O versículo
anterior nô-lo diz: a referência é aos "estrangeiros dispersos", isto é, a Diáspora,
a Dispersão, os judeus crentes. Portanto, aqui também a referência é a
pessoas, e não aos seus atos previstos.
Ora, em vista destas passagens (e não há outras mais), que base bíblica
há para alguém dizer que Deus "pré-conheceu” os atos de certas pessoas, a
saber, o seu "arrependimento e fé” e que devido a esses atos Ele as elegeu para
a salvação? A resposta é: absolutamente nenhuma. As Escrituras nunca
falam de arrependimento e fé como tendo sido previsto ou pré-conhecido por
Deus. Na verdade, Ele sabia desde toda a eternidade que certas pessoas se
arrependeriam e creriam; entretanto, não é a isto que as Escrituras se referem
como objeto da "presciência” de Deus. Esta palavra se refere uniformemente ao
pré-conhecimento de pessoas; portanto, conservemos "...o modelo das sãs
palavras.. ." (2 Timóteo 1:13).
Outra coisa para a qual desejamos chamar particularmente a atenção é
que as duas primeiras passagens acima citadas mostram com clareza e
ensinam implicitamente que a "presciência” de Deus não é causativa, pelo
contrário, alguma outra realidade está por trás dela e a precede, e essa
realidade é o Seu decreto soberano Cristo "... foi entregue pelo (1)
determinado conselho e (2) presciência de Deus" (Atos 2:23). Seu "conselho" ou
decreto foi a base da Sua presciência. Assim também em Romanos 8-29.
Esse versículo começa com a palavra "porque", conjunção que nos leva a
examinar o que o precede Imediatamente. E o que diz o versículo anterior? "...
todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles... que são
chamados por seu decreto". Assim é que a "presciência" de Deus baseia-se em
seu decreto (ver Salmo 2:7).
Deus conhece de antemão o que será porque Ele decretou o que há de
ser. Portanto, afirmar que Deus elege pessoas porque as pré-conhece é inverter
a ordem das Escrituras, é pôr o carro na frente dos bois. A verdade é esta: Ele
as “pré-conhece” porque as elegeu. Isto retira da criatura a base ou causa da
eleição, e a coloca na soberana vontade de Deus. Deus Se propôs eleger certas
pessoas, não por haver nelas ou por proceder delas alguma coisa boa, quer
concretizada quer prevista, mas unicamente por Seu beneplácito. Quanto ao
por que Ele escolheu os que escolheu, não sabemos, e só podemos dizer: “Sim,
ó Pai, porque assim te aprouve” (Mateus 11:26). A verdade patente em Romanos
8:29 é que Deus, antes da fundação do mundo, elegeu certos pecadores e os
destinou para a salvação (2 Tessalonicenses 2:13). Isto se vê com clareza nas
palavras finais do versículo: “... os predestinou para serem conformes à imagem
de seu Filho”, etc. Deus não predestinou aqueles que “dantes conheceu”
sabendo que eram “conformes”, mas. Ao contrário, aqueles que Ele “dantes
conheceu” (isto é, que Ele amou e elegeu), “predestinou para serem conformes”.
Sua conformidade a Cristo não é a causa, mas o efeito da presciência e
predestinação divina.
Deus não elegeu nenhum pecador porque previu que creria, pela razão
simples, mas suficiente, de que nenhum pecador jamais crê enquanto Deus não
lhe dá fé; exatamente como nenhum homem pode ver antes que Deus lhe dê a
vista. A vista é dom de Deus, e ver é a conseqüência do uso do Seu dom. Assim
também a fé é dom de Deus (Efésios 2:8-9), e crer é a conseqüência do uso
deste Seu dom. Se fosse verdade que Deus elegeu alguns para serem salvos
porque no devido tempo eles creriam, isso tornaria o ato de crer num ato
meritório e, nesse caso, o pecador salvo teria motivo para gloriar-se, o que as
Escrituras negam enfaticamente: Efésios 2:9.
Certamente a Palavra de Deus é bastante clara ao ensinar que crer não é
um ato meritório. Afirma ela que os cristãos vieram a crer “pela graça” (Atos
18:27). Se, pois, eles vieram a crer “pela graça”, absolutamente não há nada de
meritório em “crer”, e, se não há nada de meritório nisso, não poderia ser o
motivo ou causa que levou Deus a escolhê-los. Não; a escolha feita por Deus
não procede de coisa nenhuma existente em nós, ou que de nós provenha, mas
unicamente da Sua soberana boa vontade. Mais uma vez, em Romanos 11:5
lemos sobre “... um resto, segundo a eleição”. Eis aí, suficientemente claro; a
eleição mesma é “da graça”, e da graça é favor imerecido, coisa a que não
tínhamos direito nenhum diante de Deus.
Vê-se, pois, como é importante para nós, termos idéias claras e bíblicas
sobre a “presciência” de Deus. Os conceitos errôneos sobre ela, inevitavelmente
levam a idéias que desonram em extremo a Deus. A noção popular da
presciência divina é inteiramente inadequada. Deus não somente conheceu o
fim desde o princípio, mas planejou, fixou, predestinou tudo desde o princípio.
E, como a causa está ligada ao efeito, assim o propósito de Deus é o
fundamento da Sua presciência. Se, pois, o leitor é um cristão verdadeiro, é
porque Deus o escolheu em Cristo antes da fundação do mundo (Efésios 1:4), e
o fez não porque previu que você creria, mas simplesmente porque Lhe agradou
fazê-lo; você foi escolhido apesar da tua incredulidade natural. Sendo assim,
toda a glória e louvor pertence a Deus somente. Você não tem base nenhuma
para arrogar-se crédito algum. Você creu “pela graça” (Atos 18:27), e isso
porque a tua própria eleição foi “da graça” (Romanos 11:5)
5

A SUPREMACIA DE DEUS
Numa de suas cartas a Erasmo, disse Lutero: "As tuas idéias sobre Deus
são demasiado humanas". Provavelmente o renomado erudito se ofendeu com
aquela censura, ainda mais que vinha do filho de um mineiro; não obstante, foi
mais que merecida.
Nós também, embora não ocupando nenhuma posição entre os líderes
religiosos desta era degenerada, proferimos a mesma acusação contra a maioria
dos pregadores dos nossos dias, e contra aqueles que, em vez de examinarem
pessoalmente as Escrituras, preguiçosamente aceitam o ensino de outros.
Atualmente se sustentam, em quase toda parte, os mais desonrosos e degra-
dantes conceitos do governo e do reino do Todo-poderoso. Para incontáveis
milhares, mesmo entre cristãos professos, o Deus das Escrituras é
completamente desconhecido.
Na antigüidade, Deus queixou-se a um Israel apóstata: "... pensavas que
(eu) era como tu..." (Salmo 50:21). Semelhante a essa terá que ser a Sua
acusação contra uma cristandade apóstata. Os homens imaginam que o que
move a Deus são os sentimentos, e não os princípios. Supõe que a Sua
onipotência é uma ociosa ficção, a tal ponto que Satanás desbarata os Seus
desígnios por todos os lados. Acham que, se Ele formulou algum plano ou
propósito, deve ser como o deles, constantemente sujeito a mudança. Declaram
abertamente que, seja qual for o poder que Ele possui, terá que ser restringido,
para que não invada a cidadela do "lívre-arbítrio" humano, e o reduza a uma
"máquina”. Rebaixam a toda eficaz expiação, a qual de fato redimiu a todos
aqueles pelos quais foi feita, fazendo dela um mero "remédio" que as almas
enfermas pelo pecado podem usar se se sentem dispostas a fazê-lo; e
enfraquecem a invencível obra do Espírito Santos, reduzindo-a a um
"oferecimento" do evangelho que os pecadores podem aceitar ou rejeitar a seu
bel-prazer.
O Deus deste século vinte não se assemelha mais ao Soberano Supremo
das Escrituras Sagradas do que a bruxuleante e fosca chama de uma vela se
assemelha à glória do sol do meio-dia. O Deus de que se fala atualmente no
púlpito comum, comentado na escola dominical em geral, mencionado na maior
parte da literatura religiosa da atualidade e pregado em muitas das conferên-
cias bíblicas, assim chamadas, é uma ficção engendrada pelo homem, uma
invenção do sentimentalismo piegas. Os idolatras do lado de fora da
cristandade fazem "deuses" de madeira e de pedra, enquanto que os milhões de
idolatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas
mentes carnais. Na realidade, não passam de ateus, pois não existe alternativa
possível senão a de um Deus absolutamente supremo, ou nenhum deus. Um
Deus cuja vontade é impedida, cujos desígnios são frustrados, cujo propósito é
derrotado, nada tem que se lhe permita chamar Deidade, e, longe de ser digno
objeto de culto, só merece desprezo.
A distância infinita que separa do todo-poderoso Criador as mais
poderosas criaturas é um argumento em favor da supremacia do Deus vivo e
verdadeiro. Ele é o Oleiro, elas são em Suas mãos apenas o barro que pode ser
modelado para formar vasos de honra, ou pode ser esmiuçado (Salmo 2:9),
como Lhe apraz. Se todos os habitantes do céu e todos os moradores da terra se
juntassem numa rebelião contra Ele, não Lhe causariam perturbação e isso
teria ainda menor efeito sobre o Seu trono eterno e inexpugnável do que o efeito
da espuma das ondas do Mediterrâneo sobre o alto rochedo de Gibraltar. Tão
pueril e impotente .é a criatura para afetar o Altíssimo, que as próprias
Escrituras nos dizem que quando os príncipes gentílicos se unirem com Israel
apóstata para desafiar a Jeová e Seu Ungido, "aquele que habita nos céus se
rirá; o Senhor zombará deles" (Salmo 2:4).
Muitas passagens das Escrituras afirmam clara e positivamente a
absoluta e universal supremacia de Deus. "Tua é, Senhor, a magnificência, e o
poder, e a honra, e a vitória, e a majestade; porque teu é tudo quanto há nos
céus e na terra; teu é Senhor, o reino, e tu te exaltaste sobre todos corno chefe
... e tu dominas sobre tudo..." (1 Crônicas 29:11-12). Observe-se, diz "dominas"
agora, e não diz "dominarás no milênio". "Ah! Senhor, Deus de nossos pais,
porventura não és tu Deus nos céus? Pois tu és Dominador sobre todos os
reinos das gentes, e na tua mão há força e poder, e não há quem te possa
resistir" (nem o próprio diabo) (2 Crônicas 20:6). Perante Ele, presidentes e
papas, reis e imperadores, são menos que gafanhotos. "Mas, se ele está contra
alguém, quem então o desviará? O que a sua alma quiser isso fará" (Jó 23:13).
Ah, meu leitor, o Deus das Escrituras não é um falso monarca, nem um mero
soberano imaginário, mas Rei dos reis e Senhor dos senhores. "Sei que tudo
podes, e nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido (Jó 42:2, ou,
segundo outro tradutor, "nenhum dos teus propósitos pode ser frustrado". Tudo
que designou fazer, Ele o faz. Realiza tudo quanto decretou. "Mas o nosso Deus
está nos céus: faz tudo o que lhe apraz" (Salmo 115:3). Por que? Porque "não há
sabedoria nem inteligência, nem conselho contra o Senhor” (Provérbios 21:30).
As Escrituras retratam vividamente a supremacia de Deus sobre as obras
de Suas mãos. Toda matéria inanimada e todas as criaturas irracionais
executam as ordens do seu Criador. Por Sua vontade dividiu-se o Mar Vermelho
e suas águas se levantaram e ficaram eretas como paredes (Êxodo 14); e a terra
abriu suas fauces e os rebeldes carregados de culpa foram tragados vivos pelo
abismo (Números 14). À Sua ordem o sol se deteve (Josué 10), e, noutra
ocasião, voltou atrás dez graus do relógio de Acaz (Isaías 38:8). Para
exemplificar Sua supremacia, mandou corvos levarem alimento a Elias (1 Reis
17), fez o ferro flutuar (2 Reis 6:5), manteve mansos os leões quando Daniel foi
lançado na cova dessas feras, fez que o fogo não queimasse os três hebreus que
foram arrojados às chamas da fornalha. Assim, "Tudo o que o Senhor quis, ele
o fez nos céus e na terra, nos mares e em todos os abismos" (Salmo 135:6).
O perfeito domínio de Deus sobre a vontade dos homens também
demonstra a Sua supremacia, Pondere o leitor cuidadosamente sobre Êxodo
34:24, Exigia-se que todos os varões de Israel saíssem de casa e fossem a
Jerusalém, três vezes por ano. Viviam entre gente hostil, que os odiava por se
terem apropriado das suas terras. Então, o que é que impedia aos cananeus
aproveitarem a oportunidade e, durante a ausência dos homens, matarem as
mulheres e as crianças e se apossarem de suas fazendas? Se a mão do
Onipotente não estivesse até mesmo sobre a vontade dos ímpios, como poderia
Ele ter feito esta promessa, de que ninguém sequer cobiçaria suas terras? Ah,
"Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei na mão do Senhor; a tudo
quanto quer o inclina" (Provérbios 21:1). Mas, poder-se-ia objetar, não lemos
uma e outra vez nas Escrituras sobre como os homens desafiavam a Deus, re-
sistiam à Sua vontade, transgrediam os Seus mandamentos, menosprezavam
as Suas advertências e faziam ouvidos moucos a todas as Suas exortações?
Certamente que sim; B isto anula tudo que dissemos acima? Se anula, então é
evidente que a Bíblia se contradiz, Mas isso não pode ser. A objeção se refere
simplesmente à iniqüidade do homem em rebelião contra a Palavra de Deus,
escrita ao passo que mencionamos acima o que Deus se propôs em Si mesmo. A
regra de conduta que Ele nos dá para seguirmos não é cumprida perfeitamente
por nenhum de nós; os Seus "conselhos" eternos são realizados nos mínimos
detalhes.
O Novo Testamento afirma com igual clareza e firmeza a absoluta e
universal supremacia de Deus. Ali se nos diz que Deus "... faz todas as
coisas, segundo o conselho da sua vontade" (Efésios 1:11). A palavra grega
traduzida por "faz" significa "fazer eficazmente". Por esta razão, lemos:
"Porque dele por ele, e para ele, são todas as coisas; glória pois a ele
eternamente. Amém" (Romanos 11:56). Os homens podem jactar-se: de que são
agentes livres, com vontade própria, e de que têm liberdade de fazer o que
querem, mas as Escrituras dizem aos que se jactam: ".... vós que dizeis: hoje,
ou amanhã, iremos a tal cidade, e lá passaremos um ano, e contrataremos, e
ganharemos... em lugar do que devíeis dizer: Se o Senhor quiser (Tiago,
5:13-15),
Há aqui, pois, um lugar de repouso para o coração. A nossa vida não é,
nem produto do destino cego, nem resultado do acaso caprichoso, mas todas as
suas minudências foram prescritas desde toda a eternidade e agora são
ordenadas por Deus que vive e reina. Nem um fio de cabelo de nossa cabeça
pode ser tocado, sem a Sua permissão. "O coração do homem considera o seu
caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos" (Provérbios 16:9). Que segurança,
que poder, que consolo isso deveria dar ao cristão real! "Os meus tempos estão
nas tuas mãos..." (Salmo 31:15). Portanto digo a mim mesmo: "Descansa no
Senhor, e espera nele..." (Salmo 37:7).
6

A SOBERANIA DE DEUS
Pode-se definir a soberania de Deus como o exercício de Sua supremacia,
estudada no capítulo anterior. Sendo infinitamente elevado acima da mais
elevada criatura, Ele é o Altíssimo, o Senhor dos céus e da terra. Não sujeito a
ninguém, não influenciado por nada, absolutamente independente: Deus age
como Lhe apraz, somente como Lhe apraz, sempre como Lhe apraz. Ninguém
consegue frustrá-lo nem impedi-Lo. Assim, Sua Palavra declara expressamente:
"... o meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade (Isaías 46:10). "...
segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores da terra:
não há quem possa estorvar a sua mão..." (Daniel 4:35). O sentido da soberania
divina é que Deus é Deus de fato, bem como o é de nome, que Ele ocupa o trono
do universo dirigindo todas as coisas, fazendo todas as coisas "... segundo o
conselho da sua vontade" (Efésios 1:11).
Acertadamente disse o senhor Spurgeon em seu sermão sobre Mateus
20:15; "Não há atributo mais consolador para os Seus filhos do que o da
soberania de Deus, Sob as circunstâncias mais adversas, em meio às mais
duras provações, eles crêem que Deus na Sua soberania ordenou as suas
aflições, que Ele as dirige soberanamente, e que na Sua soberania santificará
todas elas? Para os filhos de Deus não deveria haver nada por que lutar mais
zelosamente do que a doutrina de que o seu Senhor domina toda a criação —
do reinado de Deus sobre todas as obras de Suas mãos — do trono de Deus e
Seu direito de ocupar esse trono. Por outro lado, não há doutrina mais odiada
pelos mundanos, nenhuma verdade de que tenham feito joguete a tal ponto
como a grandiosa, estupenda, porém certíssima doutrina da soberania do
infinito Jeová. Os homens se dispõem a permitir que Deus esteja em toda parte,
menos no Seu trono. Dispõem-se a deixá-lo em Sua oficina formando mundos e
criando estrelas. Deixarão que esteja em Seu dispensário a distribuir esmolas e
a conceder benefícios. Permitirão que fique sustentando a terra e mantendo
firmes as suas colunas, que acenda os luzeiros do céu e governe as irrequietas
ondas do oceano; mas quando Deus sobe ao Seu trono. Suas criaturas rangem
os dentes, e quando nós proclamamos um Deus entronizado, e Seu direito de
fazer o que quiser com o que lhe pertence, como também de dispor de Suas
criaturas como Ele achar melhor, sem consultá-las sobre a questão, então os
homens nos vaiam, nos amaldiçoam e se fazem de surdos para não nos ouvir,
porquanto Deus no Seu trono não é o Deus que eles amam. Mas é Deus no Seu
trono que muito nos agrada pregar. É em Deus no Seu trono que confiamos".
“Tudo que o Senhor quis, ele o fez, nos céus e na terra, nos mares e em
todos os abismos' (Salmo 135:6). Sim, dileto leitor, tal é o imperial Potentado
revelado nas Escrituras Sagradas. Sem rival em majestade, ilimitado em poder,
imune de tudo quanto Lhe é alheio. Mas estamos vivendo dias em que até
mesmo os mais "ortodoxos" parecem ter medo de admitir em termos próprios a
deidade de Deus. Dizem que acentuar a soberania de Deus exclui a
responsabilidade humana quando, na verdade, a responsabilidade humana
baseia-se na soberania divina e desta é resultado.
"Mas o nosso Deus está nos céus: faz tudo o que lhe apraz" (Salmo 115:3).
Ele escolheu soberanamente colocar cada uma de Suas criaturas na condição
que pareceu bem aos seus olhos. Deus criou anjos: a alguns, colocou num
estado condicional; a outros, deu uma posição imutável diante dEle (I Timóteo
5:21), estabelecendo Cristo como sua cabeça (Colossenses 2:10). Não passemos
por alto o fato de que tanto os anjos que pecaram (2 Pedro 2:5) como os que não
pecaram, eram Suas criaturas. Contudo, Deus previu que aqueles cairiam; não
obstante, colocou-os num estado condicional, próprio das criaturas mutáveis, e
permitiu que caíssem, embora não sendo o Autor do pecado deles.
Assim também Deus colocou soberanamente Adão no jardim do Éden
num estado condicional, Se Lhe aprouvesse, tê-lo-ia colocado num estado
incondicional; poderia tê-lo colocado numa posição tão firme como a dos anjos
que não caíram, posição tão segura e imutável como a dos santos em Cristo.
Em vez disso, porém, preferiu colocá-lo no Éden sobre a base da responsabili-
dade como criatura, de modo que permanecesse ou caísse conforme
correspondesse ou não à sua responsabilidade — de obediência ao seu Criador.
Adão foi feito responsável a Deus pela lei que o Criador lhe deu.
Responsabilidade existia aí no jardim, responsabilidade intacta, submetida à
prova sob as mais favoráveis condições.
Ora, Deus não colocou Adão num estado condicional e de criatura
responsável porque fazê-lo era justo. Não, era justo porque Deus o fez.
Tampouco Deus deu existência às criaturas porque era justo que o fizesse, isto
é, porque estava obrigado a criar; mas sim era justo porque Ele o fez. Deus é
soberano. Sua vontade é suprema. Longe de estar sujeito a qualquer lei sobre
"direito", Deus é lei para Si próprio, de modo que tudo quanto Ele faz é justo. E
ai do rebelde que levante questão sobre a Sua soberania! — "Ai daquele que
contende com o seu Criador! O caco entre outros cacos de barro! Porventura
dirá o barro ao que o formou: Que fazes?...” (Isaías 45:9).
Ainda mais, o Senhor Deus colocou soberanamente Israel numa posição
condicional. Os capítulos 19, 20 e 24 de Êxodo dão provas abundantes e claras
disto. Israel estava sob um pacto de obras. Deus lhe deu certas leis e fez que as
bênçãos para a nação dependessem da sua observância dos estatutos divinos.
Mas Israel era duro de cerviz e incircunciso de coração. Rebelou-se contra
Jeová, abandonou Sua Lei, voltou-se para os falsos deuses, apostatou. Em
conseqüência, o juízo divino caiu sobre Israel e este foi entregue às mãos dos
seus inimigos, foi disperso por toda a terra, e até hoje permanece sob a pesada
severidade do desfavor de Deus.
Foi Deus que, no exercício de Sua sublime soberania, colocou Satanás e
seus anjos, Adão e Israel em suas respectivas posições de responsabilidade.
Entretanto, longe de acontecer que a Sua soberania retirasse das criaturas a
sua responsabilidade, foi pelo exercício da mesma que Ele as colocou em estado
condicional j sob as responsabilidades que julgou apropriadas; em virtude de
cuja soberania, vê-se que Ele é Deus sobre todos. Assim, há perfeita harmonia
entre a soberania de Deus e a responsabilidade da criatura. Muitos têm dito
tolamente que é de todo impossível mostrar onde termina a soberania divina e
começa a responsabilidade da criatura. A responsabilidade da criatura começa
aqui: na ordenação soberana do Criador. Quanto à Sua soberania, não há e
nunca haverá nenhum "fim" para ela!
Vamos dar algumas provas de que a responsabilidade da criatura baseia-
se na soberania de Deus. Quantas coisas estão registradas nas Escrituras e que
eram justas porque Deus as ordenou, e não seriam justas se Ele não as tivesse
ordenado! Que direito tinha Adão de "comer" das árvores do jardim? Sem a
permissão do seu Criador (Gênesis 2:16), Adão teria sido um ladrão! Que direito
Israel tinha de pedir prata, ouro e vestes aos egípcios (Êxodo 12:35)? Nenhum,
se Jeová não o tivesse autorizado (Êxodo 3:22). Que direito possuía Israel de
matar tantos cordeiros para sacrifício? Nenhum, a não ser pelo fato de que
Deus ordenou isso. Que direito Israel tinha de eliminar todos os cananeus?
Nenhum, salvo porque Jeová mandou. Que direito tem o marido de exigir
submissão da esposa? Nenhum, se Deus não o tivesse estipulado. E
poderíamos prosseguir nisso mais e mais. A responsabilidade humana está
baseada na soberania divina.
Mais um exemplo do exercício da absoluta soberania de Deus. Deus
colocou os Seus eleitos num estado diferente do de Adão ou Israel. Colocou-os
num estado incondicional. No pacto eterno Cristo foi designado a Cabeça deles,
levou sobre Si as suas responsabilidades e cumpriu por eles uma justiça
perfeita, irrevogável e eterna. Cristo foi colocado num estado condicional, pois
Ele estava "debaixo da lei, para ganhar os que estavam debaixo da lei", só que
com esta diferença infinita: os outros falharam: Ele não falhou e não podia
falhar. E quem foi que colocou Cristo naquele estado condicional? O Trino
Deus. A vontade soberana O designou, o amor soberano O enviou, e a
autoridade soberana determinou a Sua obra.
Certas condições foram postas diante do Mediador. Ele teria que ser feito
em semelhança da carne do pecado; teria que engrandecer, e dignificar a lei;
teria que levar em Seu corpo no madeiro todos os pecados do povo de Deus;
teria que fazer plena expiação por eles; teria que suportar o derramamento da
ira de Deus; e teria que morrer e ser sepultado. Pelo cumprimento dessas
condições, era-Lhe oferecida uma recompensa: Isaías 53:10-12. Ele haveria de
ser o Primogênito entre muitos irmãos; haveria de ter um povo que participaria
de Sua glória. Bendito seja o Seu nome para sempre, pois Ele cumpriu essas
condições e, uma vez que as cumpriu, o Pai está comprometido, com juramento
solene, a preservar sempre e abençoar por toda a eternidade cada um daqueles
pelos quais o Seu Filho encarnado fez mediação. Desde que Ele tomou o lugar
deles» agora eles participam do dEle. Sua justiça é deles, Sua posição diante de
Deus é deles. Sua vida é deles. Não lhes resta sequer uma condição para
cumprir, nem uma só responsabilidade da qual desincumbir-se para
alcançarem a bem-aventurança eterna. “... com uma só oblação aperfeiçoou
para sempre os que são santificados" (Hebreus 10:14).
Eis aí, pois, a soberania de Deus exposta abertamente diante de todos nas
diferentes formas pelas quais Ele se relaciona com as Suas criaturas. Alguns
dos anjos, Adão e Israel foram colocados numa posição condicional, na qual a
continuidade da bênção dependia da sua obediência e fidelidade a Deus. Porém,
em marcante contraste com eles, o "pequeno rebanho" (Lucas 12:32)
recebeu uma posição incondicional e imutável no pacto de Deus. nos Seus
conselhos e em Seu Filho; a bênção dele depende do que Cristo fez por ele, "... o
fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: o Senhor conhece os que são
seus..." (2 Timóteo 2:19), O fundamento sobre o qual estão os eleitos de Deus é
perfeito; nada se lhe pode acrescentar, e nada se lhe pode tirar (Eclesiastes
3:14). Eis aqui, pois, a maior e mais elevada demonstração da absoluta
soberania de Deus. Verdadeiramente, Ele "... compadece-se de quem quer, e
endurece a quem quer" (Romanos 9:18).
7

A IMUTABILÍDADE DE DEUS
Esta é uma das perfeições divinas não suficientemente examinadas. É
uma das excelências do Criador que O distinguem de todas as Suas criaturas.
Deus é perpetuamente o mesmo: não sujeito a mudança nenhuma em Seu ser,
em Seus atributos e em Suas determinações. Daí, Deus é comparado a uma
rocha (Deuteronômio 32:4, etc.) que permanece inamovível quando todo o
oceano circundante está numa condição de contínua oscilação, exatamente
assim, conquanto sendo sujeitas a mudança todas as criaturas, Deus é
imutável. Visto que Deus não tem princípio nem fim, não pode experimentar
mudança. Ele é eternamente o "... Pai das luzes, em quem não há mudança
nem sombra de variação" (Tiago 1:17).
Primeiro, Deus é imutável em Sua essência. Sua natureza e Seu ser são
infinitos e, assim, são sujeitos a mutação alguma, jamais houve tempo
quando Ele não era; jamais virá tempo quando Ele deixará de ser. Deus não
evoluiu, nem cresceu, nem melhorou. Tudo que Ele é hoje, sempre foi e sempre
será. "...eu, o Senhor, não mudo...” (Malaquias 3:6) é a Sua afirmação
categórica. Ele não pode mudar para melhor, pois já é perfeito; e, sendo
perfeito, não pode mudar para pior. Completamente imune de tudo quanto Lhe
é alheio, é impossível melhoramento ou deterioração. Ele é perpetuamente o
mesmo. Somente Ele pode dizei "...EU SOU O QUE SOU..." (Êxodo 3:14). Ele é
absolutamente livre da influência do curso do tempo. Não há um vinco sequer
nos sobrolhos da eternidade. Portanto, o Seu poder jamais pode diminuir, nem
Sua glória desvanecer-se.
Segundo, Deus é imutável em Seus atributos. Tudo que atributos de Deus
eram antes do universo ser chamado à existência, são precisamente o mesmo
agora, e permanecerão assim para sempre. E isto necessariamente, pois eles
são as próprias perfeições, as qualidades essenciais do Seu ser, Semper idem
(sempre o mesmo) está escrito em cada um deles. Seu poder é imbatível, Sua
sabedoria não sofre diminuição. Sua santidade é imaculada. Os atributos de
Deus não podem sofrer mudança mais do que a Deidade pode deixar de existir.
Sua veracidade é imutável, pois a Sua Palavra "...permanece no céu” (Salmo
119:89). Seu amor é eterno: "...com amor eterno te amei...” (Jeremias 31:3)
e "...como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até o fim"
(João 13:1). Sua misericórdia não cessa, pois, é "eterna" (Salmo 100:5).
Terceiro, Deus é imutável em Seu conselho. Sua vontade nunca muda.
Talvez alguns estejam prestes a objetar que lemos, "Então arrependeu-se o
Senhor de haver feito o homem.. . " (Gênesis 6;6). Nossa primeira resposta é:
então as Escrituras se contradizem? Não, isso não pode ser. Números 23:19. é
suficientemente claro; "Deus não é homem, para que minta: nem filho do
homem, para que se arrependa. .." (Números 23:19). Assim também em 1
Samuel 15:29: "... a Força de Israel não mente nem se arrepende: porquanto
não é um homem para que se arrependa". A explicação é deveras simples.
Quando fala de si mesmo, Deus freqüentemente acomoda a Sua linguagem às
nossas capacidades limitadas. Ele Se descreve a Si mesmo como revestido de
membros corporais como olhos, ouvidos, mãos, etc. Fala de Si como tendo
despertado (Salmo 78:65) e como "madrugando" (Jeremias 7:13), apesar de que
Ele não cochila nem dorme. Quando Ele estabelece uma mudança em Seu
procedimento para com os homens, descreve a Sua linha de conduta em termos
de arrepender-se.
Sim, Deus é imutável em Seu conselho. "Os dons e a vocação de Deus são
sem arrependimento" (Romanos 11:29). Só pode ser assim, pois, "... se ele está
contra alguém, quem então o desviará? Q que a sua alma quiser isso fará" (To
23:13). "Mudança e declínio vemos em tudo ao redor; 6 Aquele que não muda,
permaneça contigo onde quer que for". O propósito de Deus nunca se altera.
Uma destas duas coisas faz com que um homem mude de opinião e inverta os
seus planos: falta de previsão para antecipar tudo, ou ausência de poder para
executar o que planeja. Mas visto que Deus é onisciente assim como é
onipotente, nunca Lhe é necessário rever Seus decretos. Não, "O conselho do
Senhor permanece para sempre: os intentos do seu coração de geração em
geração" (Salmo 33:11). Portanto, podemos ler sobre "... a imutabilidade do seu
conselho..." (Hebreus 6:17).
Aqui podemos perceber a distância infinita que separa do Criador a
criatura mais elevada. Mutabilidade e criatura são termos correlatos, Se a
criatura não fosse mutável por natureza, não seria criatura; seria Deus. Por
natureza tendemos para o nada, como do nada viemos. Nada detém a nossa
aniquilação, exceto a vontade e o poder sustentador de Deus. Ninguém pode
manter-se nem por um momento. Dependemos do Criador para cada sorvo de
ar que aspiramos. Alegremente concordamos com o salmista em que o Senhor
sustenta ".. . com vida a nossa alma..." (Salmo 66:9). A compreensão disto
deveria fazer com que nos prostrássemos sob o senso da nossa nulidade na
presença dAquele em quem “...vivemos, e nos movemos, e existimos...'' (Atos
17:28).
Como criaturas decaídas, não somente somos mutáveis, mas tudo em nós
é oposto a Deus. Como tais, somos “... estrelas errantes. . , " (Judas 15), fora da
nossa órbita. "... os ímpios são como o mar agitado que não se pode aquietar"
(Isaías 57:20). O homem decaído é inconstante. As palavras de Jacó referentes
a Rubem aplicam-se com força total a todos os descendentes de Adão;
"Inconstante como a água..." (Gênesis 49:4), Desta maneira, não é apenas sinal
de vida piedosa, mas também elemento de sabedoria, dar ouvido à injunção:
"Deixai-vos pois do homem..."' (Isaías 2:22), Não se deve ficar na dependência de
nenhum ser humano. "Não confieis em príncipes nem em filhos de homens, em
quem não há salvação" (Salmo 146:5). Se desobedeço a Deus, mereço ser
enganado por meus companheiros de i existência e decepcionar-me com eles.
Pessoas que gostam de você hoje, poderão odiá-lo amanhã. A multidão que
clamou "Hosana: bendito o rei de Israel que vem em nome do Senhor", depressa
passou a bradar: "... tira, tira, crucifica-o (João 12:13; 19:15).
Aqui há firme consolação. Não se pode confiar na natureza humana, mas
em Deus sim! Por mais inconstante que eu seja7 por mais volúveis que os meus
amigos se mostrem, Deus não muda. Se Ele mudasse como nós, se quisesse
uma coisa hoje e outra amanhã, e se fosse controlado por capricho, quem
poderia confiar nEle? Mas, todo o louvor ao Seu glorioso nome, Ele é_ sempre o
mesmo. Seu propósito é firme, Sua vontade estável, Sua palavra segura. Aqui,
pois, está uma Rocha em que podemos firmar os nossos pés, enquanto a
poderosa torrente leva tudo de arrasto ao nosso redor. A permanência do
caráter de Deus garante o cumprimento de Suas promessas; "Porque as
montanhas se desviarão e os outeiros tremerão; mas a minha benignidade não
se desviará de ti, e o concerto da minha paz não mudará, diz o Senhor, que se
compadece de ti" (Isaías 54:10).
Aqui há incentivo para a oração, "Que consolo haveria em orar a um deus
que, como o camaleão, mudasse de cor a cada momento? Quem elevaria uma
petição a um príncipe terreno que fosse tão mutável que atenderia a um pedido
um dia e o negaria no dia seguinte?" (S. Charnock, 1670), Se alguém perguntar:
"Mas que utilidade hã em orar a um Ser. cuja vontade já foi fixada?
Respondemos: Porque Ele o exige. Que bênçãos Deus prometeu sem que nós as
busquemos? ".., se pedirmos alguma coisa, segundo a sua vontade, ele nos
ouve" (1 João 5:14), e Ele sempre quis tudo que é para o bem dos Seus filhos.
Aqui há terror para os ímpios. Os que O desafiam, transgridem Suas leis,
não têm interesse em Sua glória, mas vivem como se Ele não existisse, não
devem imaginar que, quando no dia final clamarem a Ele por misericórdia, Ele
mudará a Sua vontade, revogará a Sua Palavra e rescindirá as suas ameaças
terríveis. Não. Ele declarou: "Pelo que também eu procederei com furor; o meu
olho não poupará, nem terei piedade: ainda que me gritem aos ouvidos com
grande voz, eu não os ouvirei" (Ezequiel 8:18). Deus não Se negará a Si próprio
para gratificar a luxúria deles. Deus é santo, imutavelmente santo. Portanto,
Deus odeia o pecado; eternamente odeia o pecado. Daí a eternidade do castigo
de todos quantos morrem em seus pecados.
"A imutabilidade divina, como a nuvem que se interpunha entre os
israelitas e o exército egípcio, tem um lado escuro, bem como um lado claro. Ela
assegura a execução das Suas ameaças, como também a concretização das
Suas promessas; e destrói a esperança, carinhosamente acalentada pelos
culpados, de que Deus será todo brandura para as Suas frágeis e errantes
criaturas, e de que serão tratados de modo muito mais leve do que as declara-
ções da Sua Palavra nos levam a esperar. Contrapomos a estas especulações
enganosas e presunçosas a solene verdade de que Deus é imutável em Sua
veracidade e propósito, em Sua fidelidade e justiça" (J, Dick, 1850).
8

A SANTIDADE DE DEUS
"Quem te não temerá, ó Senhor e não magnificará o teu nome? Porque só
tu és santo..." (Apocalipse 15:4). Somente Ele é independente, infinita e
imutavelmente santo. Muitas vezes Ele é intitulado "O Santo* nas Escrituras.
Sim, porque se acha nEle a soma total de todas as excelências morais, Ele é
pureza absoluta, que nem mesmo a sombra do pecado mancha. "...Deus é
luz...” (1 João 1:5). A santidade é a excelência propriamente dita da natureza
divina: o grande Deus é "... glorificado em santidade...” (Êxodo 15:11). Daí
lermos: “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a vexação não
podes contemplar..." (Habacuque 1:15). Como o poder de Deus é o oposto da
fraqueza inata da criatura, como a Sua sabedoria está em contraste com o
menor defeito de entendimento ou com a menor insensatez, assim a Sua
santidade é a própria antítese de toda mancha ou corrupção moral. No passado
Deus designou cantores em Israel para "que louvassem a Majestade santa", ou,
na versão utilizada pelo autor, "que louvassem a beleza da santidade" (2
Crônicas 20:21). "O poder á a mão ou o braço de, Jesus, a onisciência os Seus
olhos, a misericórdia as Suas entranhas, a eternidade a Sua duração, mas a
santidade é a Sua beleza" (S. Charnock). É isto Que, acima de tudo. torna-O
amorável aos que foram libertos do domínio do pecador.
Grande ênfase é dada a esta perfeição de Deus. "Deus é com mais
freqüência intitulado Santo do que Onipotente, e é mais exposto por esta parte
da Sua dignidade do que por qualquer outra. É fixada ao Seu nome como um
(epitéto) mais do que qualquer outra, Você jamais o vê expresso,"Seu poderoso
nome" ou "Seu sábio nome", mas Seu grande nome e, acima de tudo, Seu santo
nome. Este é o maior título de honrar neste último transparecem a majestade e
a venerabilidade do Seu nome?; (S. Charnock). Como nenhuma outra, esta
perfeição é celebrada diante do trono do céu, bradando os serafins: "... Santo,
Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos..." (Isaías 6:3), Deus mesmo coloca em
distinção esta perfeição: "Uma vez jurei por minha santidade que não mentirei a
Davi" (Salmo 89:35). Deus jura por Sua "santidade porque esta é uma
expressão do Seu ser, expressão mais completa que qualquer outra coisa. Eis
porque somos exortados: "Cantai ao Senhor, vós que sois seus santos, e
celebrai a memória da sua santidade" (Salmo 30:4). "Pode-se dizer que este
atributo é transcendental e que, por assim dizer, permeia os demais e lhes dá
brilho, É o atributo dos atributos" (J. Howe, 1670). Assim, lemos sobre "... a
formosura do Senhor. ,." (Salmo 27:4), que não é outra que "... a beleza da
santidade.. ." (Salmo 110:3),
"Visto que esta excelência parece se colocar acima dê todas as outras
perfeições de Deus, assim ela constitui a glória destas; como é a glória da
Deidade, assim é a glória de cada uma das perfeições da Deidade; como o poder
de Deus é a energia das Suas perfeições, a Sua santidade é a beleza delas:
como todas seriam fracas sem a onipotência divina para sustentá-las, seriam
todas desgraciosas sem a santidade para adorná-las. Se esta se maculasse,
todas as demais perderiam a sua honra; seria como se o sol perdesse a sua luz
— no mesmo instante perderia seu calor» seu poder, sua virtude geradora e
vivificante. Como no cristão a sinceridade é o brilho de todas as graças, em
Deus a pureza é o esplendor de todos os Seus atributos, Sua justiça é santa.
Sua sabedoria é santa. Seu braço poderoso é um "braço santo" (Salmo 98:1),
Sua verdade ou palavra é uma "santa palavra" (Salmo 105:42). Seu nome, que
expressa todos os Seus atributos juntos, é "santo" (Salmo 103:1)" (S.
Charnock).
A santidade de Deus se manifesta em Suas obras. "Justo é o Senhor em
todos os seus caminhos, e santo em todas as suas obras" (Salmo 145:17), Nada
senão o que é excelente pode proceder d Ele. A santidade é o padrão de todas as
Suas ações. No princípio Ele declarou que tudo o que tinha feito '"era muito
bom" (Gênesis 1:31), e não poderia ter feito o que fez se nisso houvesse algo
imperfeito ou impuro. O homem foi feito "reto" (Eclesiastes 7:29), à imagem e
semelhança do seu Criador. Os anjos que caíram foram criados santos, pois se
nos diz que "... não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria
habitação..." (Judas 6). Sobre Satanás está escrito: "Perfeito eras nos teus
caminhos, desde o dia em, que foste criado, até que se achou iniqüidade em ti"
(Ezequiel 28:15).
A santidade de Deus se manifesta em Sua lei. Essa lei proíbe o pecado em
todas as suas variantes -— nas suas modalidades mais refinadas, e nas mais
grosseiras, os intentos da mente, como a contaminação do corpo, o desejo
secreto como o ato abertamente praticado. Pelo que lemos: "...a lei é santa, e o
mandamento santo, justo e bom" (Romanos 7:12). Sim, "... o mandamento do
Senhor é puro, e alumia os olhos. O temor do Senhor é limpo e permanece
eternamente, os juízos do Senhor são verdadeiros e justos juntamente" (Salmo
19:8-9).
A santidade de Deus se manifesta na cruz. De maneira espantosa, e,
contudo, a mais solene, a expiação demonstra a santidade infinita de Deus e
Seu ódio ao pecado. Quão odioso para Deus" há de ser o pecado, a ponto de
castigá-lo até ao limite extremo do seu merecimento, quando o imputou ao Seu
Filho! "Nem todos os vasos do juízo já derramados ou por derramar sobre o
mundo ímpio, nem a chama ardente da consciência do pecador, i nem a
sentença irrevogável pronunciada contra os demônios rebeldes, nem o gemido
das criaturas condenadas demonstram o ódio de Deus ao pecado, como o
demonstra a ira de Deus derramada sobre o Seu Filho. Nunca a santidade
divina parece mais bela e mais amorável do que na hora em que o semblante do
Salvador ficou por demais desfigurado em meio aos estertores da Sua agonia
mortal. Ele próprio o reconhece no Salmo 22. Quando o Senhor afastou dEle o
Seu risonho rosto e Lhe fincou no coração aguda faca, provocando Seu terrível
brado, "Deus meu, Deu meu, por que me abandonaste?" (vers. 1). Ele adora
esta perfeição — "Tu és santo" (vers. 3) S. Charnock.
Desde que Deus é santo, Ele odeia todo e qualquer pecado. Ele ama tudo
quanto está em conformidade com as Suas leis, e detesta tudo que lhes é
contrário. Sua Palavra declara expressamente: "... o perverso é abominação
para o Senhor...” (Provérbios 3:32), E ainda: "Abomináveis são para o Senhor os
pensamentos do mau., .." (Provérbios 15:26). Segue-se, pois, que Ele
necessariamente tem que punir o pecado. Do mesmo modo como o pecado
requer a punição por Deus, exige também o Seu ódio. Deus perdoa muitas
vezes o pecador; nunca, porém, perdoa o pecado; e o pecador só é perdoado
com base no fato de que Outro levou sobre Si o castigo que lhe era devido; sim,
pois; “... sem derramamento de sangue não há remissão (Hebreus 9:22). Razão
pela qual se nos diz: "...o Senhor toma vingança contra os seus adversários, e
guarda a ira contra os seus inimigos" (Naum 1:2). Por um pecado Deus
expulsou do Éden os nossos primeiros pais. Por um pecado toda a posteridade
de Cão caiu sob maldição que permanece sobre ela até o dia de hoje. Por um
pecado Moisés foi impedido de entrar em Canaã, o servo de Eliseu foi castigado
com lepra, Ananias e Safira foram eliminados da terra dos viventes.
Temos aqui prova da divina inspiração das Escrituras. Os não
regenerados não crêem realmente na santidade de Deus. O conceito que eles
têm do caráter de Deus é inteiramente unilateral. Eles esperam de coração que
a Sua misericórdia sobrepuje tudo mais. "... pensavas que era como tu..."
(Salmo 50:21) é a acusação que Deus lhes faz. Eles pensam somente num
"deus" segundo o padrão dos seus corações maus. Daí permanecerem eles no
caminho de uma exacerbada insensatez. A santidade atribuída pelas Escrituras
à natureza e ao caráter de Deus é tal, que demonstra com clareza a sua origem
super-humana. O caráter atribuído aos deuses dos antigos e do, paganismo
moderno é justamente o inverso daquela imaculada pureza que pertence ao
Deus verdadeiro. Um Deus inefavelmente santo, que tem a mais intensa
aversão a todo pecado, jamais foi inventado por um dos decaídos descendentes
de Adão. O fato é que nada torna mais manifesta a. terrível depravação do
coração do homem e a sua inimizade contra o Deus vivo, do que expor diante
dele Aquele Ser único que é infinita e imutavelmente santo. A idéia que o
homem faz de pecado limita-se praticamente ao que o mundo chama de
"crime''. Tudo que fica aquém disso pode ser abrandado como "defeitos",
"'enganos", "'fraquezas” etc. E mesmo quando se admite a existência do pecado*
apresentam-se escusas e atenuantes.
"O "deus" que a imensa maioria dos cristãos professos "ama1' é visto como
alguém muito parecido com um ancião indulgente, que pessoalmente não tem
prazer nas loucuras, mas tolerantemente fecha os olhos para as "indiscrições"
da mocidade. Mas a Palavra diz: “... aborreces a iodos os que praticam a
maldade” (Salmo 5:5). E mais: "Deus é um juiz justo, um Deus que se ira todos
os dias" (Salmo 7:11). Mas os homens se recusam a dar crédito a este Deus e
rangem os dentes quando o Seu ódio ao pecado lhes é enfática e fielmente
apresentado. Não, como o homem preso ao pecado jamais teria criado o lago de
fogo no qual seria atormentado para todo o sempre, muito menos haveria a
probabilidade dele inventar um Deus santo.
Sendo que Deus é santo, a aceitação da parte dEle, com base nas ações
das criaturas, é completamente impossível. Uma criatura caída pode mais
facilmente criar um mundo, do que produzir algo capaz de receber aprovação
dAquele que é pureza infinita. Podem as trevas morar com a luz? Pode o Ser
imaculado sentir prazer com o "trapo da imundícia"? (Isaías 64:6) O melhor que
o homem pecador pode produzir vem manchado. Uma árvore contaminada não
pode dar bom fruto. Deus se negaria a Si próprio, envileceria as Suas
perfeições, se tivesse por justo e santo aquilo que não o é em si mesmo; e nada
é santo, desde que tenha a mínima mancha do que seja contrário à natureza de
Deus. Mas, bendito seja o Seu nome, pois, aquilo que a Sua santidade exigiu, a
Sua graça supriu em Cristo Jesus,nosso Senhor! Todo pobre pecador que
correu para Ele em busca de "refúgio, foi e permanece aceito "no Amado"
(Efésios 1:6). Aleluia!
Posto que Deus é santo requer-se de nós que nos aproximemos dEle com
a máxima reverência. "Deus deve ser em extremo tremendo na assembléia dos
santos, e grandemente reverenciado por todos os que o cercam'" (Salmo 89:7),
Portanto, "Exaltai ao Senhor nosso Deus, e prostrai-vos diante do escabelo de
seus pés, porque ele ê santo" (Salmo 99:5). Sim, “diante do escabelo dos seus
pés", na postura da mais profunda humildade, prostrai-vos. Quando Moisés ia
aproximar-se da sarça ardente, disse Deus: "., . tira os teus sapatos de
teus pés... " (Êxodo 3:5), É preciso servi-lO "com temor" (Salmo 2:11). A
exigência que Deus fez a Israel foi: "... serei santificado naqueles que se
cheguem a mim, e serei glorificado diante de todo o povo...” (Levítico 10:3),
Quanto mais tomados de temor ficarmos por Sua inefável santidade, mais
aceitável será o nosso acesso a Ele.
Visto que Deus é santo, devemos querer amoldar-nos a Ele. Seu
mandamento é: “...sede santos, porque eu sou santo" (1 Pedro 1:16). Não
somos obrigados a ser onipotentes ou oniscientes como Deus ê, mas temos que
ser santos, e isto em toda a nossa "... maneira de viver" (1 Pedro 1:15). "Esta é
a maneira primordial de honrar a Deus. Glorificamos a Deus pelas atitudes de
elevada admiração, pelas expressões eloqüentes, pelos pomposos serviços de
adoração, mas não tanto como quando aspiramos a conversar com Ele com
espírito livre de mácula, e a viver para Ele vivendo como Ele vive" (S. Charnock).
Então, como só Deus é a origem e a fonte da santidade, busquemos zelosamente
dEIe a santidade; seja a nossa oração diária no sentido de que Ele nos "...
santifique em tudo ... "; e todo o nosso "espírito, e alma, e corpo, sejam
plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo" (I Tessalonicenses 5:23),
9

O PODER DE DEUS
Não poderemos ter correto conceito de Deus, se não pensarmos nEle como
onipotente, igualmente como Onisciente. Quem não pode fazer o que quer e não
pode realizar o que lhe agrada, não pode ser Deus. Como Deus tem uma
vontade para decidir o que julga bom, assim tem poder para executar a Sua
vontade. "O poder de Deus é aquela capacidade e força pela qual Ele pode
realizar tudo que Lhe agrade, tudo que a Sua sabedoria dirija, e tudo que a
infinita pureza da Sua vontade resolva. "... como a santidade é a beleza de todos
os atributos de Deus, assim o poder é aquilo que dá vida e movimento a todas
as perfeições da natureza divina. Como seriam vãos os conselhos eternos, se o
poder não interviesse para executá-los! Sem o poder, a Sua misericórdia seria
apenas uma débil piedade, as Suas promessas um som vazio, as Sua ameaças
mero espantalho. O poder de Deus é como Ele mesmo: infinito, eterno,
incompreensível; não" pode ser refreado, nem restringido, nem frustrado pela
criatura” (S. Charnock).
“Uma coisa disse Deus, duas vezes a ouvi: que o poder pertence a Deus"
(Salmo 62:11). "Uma coisa disse Deus", ou segundo a versão autorizada, KJ,
1611, "Uma vez falou Deus": nada mais é necessário! Passarão os céus e a
terra, porém a Sua palavra permanece para sempre. "Uma vez falou Deus":
como Lhe fica bem a Sua majestade divina! Nós, pobres mortais, podemos falar
muitas vezes e, contudo, sem sermos ouvidos. Ele fala somente uma vez, e o
trovão do Seu poder é ouvido em mil montanhas. “E o Senhor trovejou nos
céus, o Altíssimo levantou a sua voz; e havia saraiva e brasas de fogo. Despediu
as suas setas, e os espalhou: multiplicou ratos, e os perturbou, Então foram
vistas as profundezas das águas, e foram descobertos os fundamentos do
mundo; pela tua repreensão, Senhor, ao soprar das tuas narinas" (Salmo
18:13-15).
"Uma vez falou Deus": vede a Sua imutável autoridade. “Pois quem no céu
se pode igualar ao Senhor? Quem é semelhante ao Senhor entre os filhos dos
poderosos?" (Salmo 89:6). "E todos os moradores da terra são reputados em
nada; e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores
da terra: não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?" (Daniel
4:35), Esta realidade foi amplamente descortinada quando Deus Se encarnou e
tabernaculou entre os homens. Ao leproso Ele disse: “...sê limpo. E logo ficou
purificado da lepra" (Mateus 8:3). A um que jazia no túmulo já fazia quatro
dias, Ele bradou: "... Lázaro, sai para fora. E o defunto saiu..." (João 11:43-44).
Os ventos tempestuosos e as ondas bravias se aquietaram a uma só palavra
dEle, Uma legião de demônios não pôde resistir à Sua ordem repassada de
autoridade.
"O poder pertence a Deus", e somente a Ele. Nem uma só criatura, no
universo inteiro, tem sequer um átomo de poder, salvo o que é delegado por
Deus. Mas o poder de Deus não é adquirido, nem depende do reconhecimento
de nenhuma outra autoridade. Pertence a Ele inerentemente. "O poder de Deus
é como Ele mesmo, auto-existente, auto-sustentado. O mais poderoso dos
homens não pode acrescentar sequer uma sombra de poder ao Onipotente. Ele
não se firma sobre nenhum trono reforçado; nem se apóia em nenhum braço
ajudador. Sua corte não é mantida por Seus cortesãos, nem toma Ele
emprestado das Suas criaturas o Seu esplendor. Ele próprio é a grande fonte
central e o originador de toda energia" (C. H. Spurgeon). Toda a criação dá
testemunho, não só do grande poder de Deus, mas também da Sua inteira
independência de todas as coisas criadas. Ouça o Seu próprio desafio: "Onde
estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência,
Quem lhe pôs as medidas, se tu o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel?
Sobre que estão fundadas as suas bases, ou quem assentou a sua pedra de es-
quina?” (Jó 38:4-6). Quão completamente o orgulho do homem é lançado ao pô!
"Poder é usado também como um nome de Deus, "...o Filho do homem
assentado à direita do poder de Deus, e vindo sobre as nuvens do céu*' (Marcos
14:62), isto é, à destra de. Deus. Deus e poder são tão inseparáveis que são
recíprocos. Como a Sua essência é imensa, não pode ser confinada a um lugar;
como é eterna, não pode ser medida no tempo; assim a Sua essência é todo-
poderosa, não sofrendo limite para a ação" (S. Charnock). "Eis que isto são
apenas as orlas dos seus caminhos; e quão pouco é o que temos ouvido dele!
Quem pois entenderia o trovão do seu poder?" (Jó 26:14). Quem é capaz de
contar todos os monumentos do Seu poder? Mesmo aquilo que é demonstrado
do Seu poder na criação visível está inteiramente fora da nossa capacidade de
compreensão, e menos ainda podemos conceber da onipotência propriamente
dita. Há infinitamente mais poder abrigado na natureza de Deus do que o
expresso em todas as Suas obras.
"Partes dos Seus caminhos" contemplamos na criação, na providência, na
redenção, mas apenas uma "pequena parte" do Seu poder se vê nessas obras.
Isto nos é exposto extraordinariamente em Habacuque 3:4: "... e ali estava o
esconderijo da sua força". Dificilmente se pode imaginar algo mais
grandiloqüente do que as figuras deste capítulo todo, no entanto nele nada
supera a nobreza desta declaração. O profeta (numa visão) viu o poderoso Deus
espalhando os outeiros e abatendo os montes, o que se julgaria espantosa
demonstração de força. Nada disso, diz o nosso versículo; isso é mais o
ocultamento do que a exibição do Seu poder. Que se quer dizer? Isto: é tão
inconcebível» tão imenso, tão incontrolável o poder da Deidade, que as terríveis
convulsões que Ele opera na natureza escondem mais do que revelam do Seu
poder infinito!
É coisa bela juntar as seguintes passagens: "O que só estende os céus, e
anda sobre os altos do mar" (Jó 9:8), que expressa o indomável poder de Deus.
"...Ele passeia pelo circuito dos céus” (Jó 22:14), que fala da imensidade da Sua
presença. "...anda sobre as asas do vento" (Salmo 104:3), que expressa a
espantosa rapidez das Suas operações. Esta última expressão é deveras
notável, Não é que "Ele voa” ou'"corre", mas que Ele “anda", e isso, nas "asas do
vento" — sobre o mais impetuoso dos elementos, impelido com o máximo furor,
e varrendo tudo com quase inconcebível velocidade, todavia sob os Seus pés,
debaixo do Seu controle perfeito!
Consideremos agora o poder de Deus na criação. "Teus são os céus, e tua
é a terra; o mundo e a sua plenitude tu os fundaste. O norte e o sul tu os
criaste..." (Salmo 89:11-12). Antes de poder trabalhar, o homem precisa ter
ferramentas e material, mas Deus começou com nada, e só por Sua palavra fez
do nada todas as coisas. O intelecto não pode captar isto. Deus "... falou, e tudo
se fez, mandou, e logo tudo apareceu" (Salmo 33:9). A matéria primeva ouviu a
Sua voz. "Disse Deus: Haja... e assim foi" (Gênesis 1). Bem podemos exclamar:
"Tu tens um braço poderoso; forte é a tua mão, e elevada a tua destra" (Salmo
89:13).
Quem, que olha para cima, para o céu da meia-noite e, com os olhos da
razão, contempla as suas maravilhas em movimento; quem pode abster-se de
indagar: do que foram feitos estes poderosos astros? Ê espantoso dizê-lo, foram
produzidos sem material nenhum. Brotaram do vazio. A majestosa estrutura da
natureza universal emergiu do nada. Que instrumentos foram usados pelo
supremo Arquiteto para modelar as partes com tio refinada elegância e aplicar
tão belo polimento ao todo? Como terá sido feita a junção de tudo numa
estrutura primorosamente proporcionada e com tão magnífico acabamento? Um
puro e simples fiat realizou tudo. Haja estas coisas, disse Deus. Nada
acrescentou; e logo o edifício maravilhoso se ergueu, adornado com todo tipo de
beleza, pondo à mostra inumeráveis perfeições, e proclamando em meio a
extasiados serafins o louvor do seu grande Criador. "Pela palavra do Senhor
foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da sua boca" (Salmo
33:6)" (James Hervey, 1789),
Considere-se o poder de Deus na preservação. Nenhuma criatura tem
poder para preservar-se a si mesma. "Porventura sobe o junco sem lodo? Ou
cresce a espadana sem água?" (Jo 8:11). Tanto o homem como o animal
pereceriam, se não houvesse erva para alimento, e a erva murcharia e morreria,
se o solo não fosse refrescado com chuvas frutíferas. Portanto, Deus é
denominado o Preservador dos "homens e os animais" (Salmo 36:6), Ele sus-
tenta "... todas as coisas, pela palavra do seu poder..." (Hebreus 1:3). Que
maravilha de poder divino é a vida pré-natal de todo ser humano! Que uma
criança possa sequer viver, e por tantos meses, num alojamento apertado e
estranho assim, é inexplicável sem o poder de Deus. Verdadeiramente, Ele "...
sustenta com vida a nossa alma..." (Salmo 65:9).
A preservação da terra, guardando-a da violência dos mares é outro claro
exemplo do poder de Deus. Como é que aqueles elementos em fúria ficaram
encerrados dentro daqueles limites em que primeiro se alojaram, permanecendo
em suas baías e canais sem inundar a terra e sem fazer em pedaços a parte
mais baixa da criação? A condição natural da água é ficar acima da terra, por
ser mais leve, e imediatamente abaixo do ar, por ser mais pesada. Quem põe
restrições à qualidade natural da água? O homem certamente que não, e não
tem poderes para tanto. Ê unicamente o fiat do Criador da água que a refreia.
"E disse: Até aqui virás, e não mais adiante, e aqui se quebrarão as tuas ondas
empoladas" (Jó 38:11). Que altaneiro monumento ao poder de Deus é a
preservação do mundo!
Considere-se o poder de Deus no governo. Tome-se a restrição que Ele
impõe à ruindade de Satanás, " .., o diabo, vosso adversário, anda em derredor,
bramando como leão, buscando a quem possa tragar" (1 Pedro 5:8). Satanás
está cheio de ódio a Deus, e de diabólica inimizade contra os homens,
particularmente contra os santos. Aquele que invejou a Adão no paraíso, não
quer que sintamos o prazer de usufruirmos nenhuma das bênçãos de Deus. Se
ele pudesse fazer o que deseja, trataria todos os homens como tratou Jó:
enviaria fogo do céu sobre os frutos da terra, destruindo o gado» faria vendavais
derribarem nossas casas, e cobriria de chagas os nossos corpos. Mas, embora
mal percebido pelos homens, Deus o refreia em grande medida, impede-o de
levar a cabo os seus maus desígnios, e lhe impõe limites dentro das Suas
ordenações.
Assim também Deus restringe a corrupção natural dos homens. Ele
suporta suficientes erupções do pecado para mostrar que terríveis estragos têm
sido causados pela apostasia do homem, que rompeu com o seu Criador, mas
quem pode conceber a que medonho extremo os homens iriam se Deus
retirasse a Sua mão repressora? A boca dos ímpios "... está cheia de maldição e
amargura. Os seus pés são ligeiros para derramar sangue" (Romanos 3:14-15).
Esta é a natureza de cada um dos descendentes de Adão. Então, que
desenfreada licenciosidade e obstinada loucura triunfariam no mundo, se o
poder de Deus não se interpusesse para fechar as comportas do mal! Ver Salmo
93:3-4.
Considere o poder de Deus no juízo. Quando Ele fere, ninguém Lhe pode
resistir: ver Ezequiel 22:14, Quão terrivelmente isso foi exemplificado no
Dilúvio! Deus abriu as janelas do céu e rompeu as grandes fontes do abismo, e
(excetuando-se os que estavam na arca) a raça humana inteira, impotente
diante do furor da Sua ira, foi tragada. Uma chuva de fogo e enxofre caiu do
céu, e as cidades da planície foram exterminadas. O Faraó e todos os seus
exércitos nada puderam, quando Deus soprou sobre eles no Mar Vermelho. Que
palavra terrificante, a de Romanos 9:22: "E que direis se Deus, querendo
mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência
os vasos da ira, preparados para a perdição". Deus manifestará o Seu tremendo
poder sobre os reprovados, não apenas encarcerando-os na Geena, mas
preservando sobrenaturalmente os seus corpos como também as suas almas
em meio às chamas eternas do Lago de Fogo,
Bem que deveriam tremer todos, diante de um Deus tal! Tratar
desconsideradamente Aquele que pode esmagar-nos mais facilmente do que nós
a uma traça, é suicídio. Desafiar abertamente Aquele que esta revestido de
onipotência, que pode rasgar-nos em pedaços ou lançar-nos no inferno na hora
que quiser, é o cúmulo da insanidade. Para reduzi-lo ao seu plano mínimo, é
simplesmente parte da sabedoria dar ouvidos à Sua ordem: "Beijai o Filho, para
que se não ire, e pereçais no caminho, quando em breve se inflamar a sua ira..."
(Salmo 2:12),
Bem que a alma iluminada deve adorar um Deus tal! As estupendas e
infinitas perfeições de um Ser como Deus requerem fervoroso culto. Se homens
de poder e renome reclamam a admiração do mundo, quanto mais deve o poder
do Onipotente encher-nos de assombro e mover-nos a prestar-Lhe homenagem.
"O Senhor, quem é como tu entre os deuses? Quem é como tu glorificado em
santidade, terrível em louvores, obrando maravilhas?" (Êxodo 15:11).
Bem que o santo pode confiar num Deus tal! Ele é digno de implícita
confiança. Nada Lhe é demasiado difícil, Se Deus fosse limitado em poder e
força, aí sim, poderíamos ficar desesperados.
Mas, vendo que Ele Se reveste de onipotência, nenhuma oração ê tão
difícil que Ele não possa responder, nenhuma necessidade é tão grande que Ele
não possa suprir, nenhuma cólera é tão forte que Ele não possa subjugar,
nenhuma tentação é tão poderosa que Ele não nos possa livrar dela, nenhuma
miséria é tão profunda que Ele não possa aliviar, “... o Senhor é a força da
minha vida; de quem me recearei?" (Salmo 27:1). "Ora, àquele que é poderoso
para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou
pensamos, segundo o poder que em nós opera, a esse glória na igreja, por Jesus
Cristo, em todas as gerações, para todo o sempre. Amém" (Efésios 3:20-21),
10

A FIDELIDADE DE DEUS
A infidelidade é um dos pecados mais proeminente nestes maus dias.
Com raríssimas exceções, a palavra de um homem não é mais a sua fiança, nos
negócios deste mundo. No mundo social, a infidelidade conjugai ocorre por todo
lado, sendo que os laços matrimoniais são desfeitos com a mesma facilidade
com que uma roupa velha é rejeitada. Na esfera eclesiástica, milhares que se
comprometeram solenemente a pregar a verdade, sem nenhum escrúpulo a
negam e a atacam. Nem o autor, como tampouco o leitor, podem arrogar-se
completa imunidade deste pecado terrível: de quantas maneiras temos sido
infiéis a Cristo, e à luz e aos privilégios que Deus nos confiou1. Como é
animador então, que indizível benção é erguer os olhos acima desta ruinosa
cena e contemplar Aquele que, só Ele, é fiel, fiel em tudo, fiel o tempo todo.
"Saberás, pois, que o Senhor teu Deus é Deus, o Deus fiel..."
{Deuteronômio 7:9). Esta qualidade é essencial ao Seu ser; sem ela Ele não
seria Deus. Pois, ser Deus infiel seria agir contrariamente à Sua natureza, o que
é impossível. "Se formos infiéis, ele permanece fiel: não pode negar-se a si
mesmo" (2 Timóteo 2:15). A fidelidade ê uma das gloriosas perfeições do Seu
ser, É como se Ele estivesse vestido com esta perfeição; "0 Senhor, Deus dos
Exércitos, quem é forte como tu, Senhor, com a tua fidelidade ao redor de ri?!"
(Salmo 89;8). Assim também, quando Deus Se encarnou, foi dito: "E a justiça
será o cinto dos seus lombos, e a verdade o cinto dos seus rins" (Isaías 11:5).
Que palavra, a do Salmo 36:5 — "A tua misericórdia, Senhor, está nos
céus, e a tua fidelidade chega até às mais excelsas nuvens". Muito acima de
toda compreensão finita está a imutável fidelidade de Deus. Tudo que há acerca
de Deus é grande, vasto, incomparável. Ele nunca esquece, nunca falha, nunca
vacila, nunca deixa de cumprir a Sua palavra, O Senhor Se mantém estrita-
mente apegado a cada declaração de promessa ou profecia, faz valer cada
compromisso de aliança ou de ameaça, pois "Deus não é homem, para que
minta; nem filho do homem, para que se arrependa: porventura diria ele, e não
o faria? Ou falaria, e não o confirmaria? (Números 23:19). Daí o crente exclama;
"...as suas misericórdias não têm fim, Novas são cada manhã; grande é a tua
fidelidade" (Lamentações 3:22-23).
Há nas Escrituras numerosas ilustrações da fidelidade de Deus. Hã mais
de quatro mil anos Ele disse: "Enquanto a terra durar, sementeira e sega, e frio
e calor, e verão e inverno, e dia e noite, não cessarão" (Gênesis 8;22). Cada novo
ano dá-nos um novo testemunho de que Deus cumpre esta promessa. Em
Gênesis 15 vemos que Jeová declarou a Abraão; "...peregrina será a tua
semente em terra que não será tua, e servi-los-ão ... E a quarta geração tornara
para cá" (versículos 13-16). Os séculos percorreram o seu curso fatigante. Os
descendentes de Abraão gemiam entre os fornos de tijolos do Egito. Deus
esquecera a Sua promessa? Certamente que não. Leia Êxodo 12:41: "E
aconteceu que, passados os quatrocentos e trinta anos, naquele mesmo dia,
todos os exércitos do Senhor saíram da terra do Egito". Por meio de Isaías o
Senhor declarou: “...eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será
o seu nome Emanuel" (7:14). De novo séculos se passaram, mas, "vindo a
plenitude dos tempos,
Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei" (Gaiatas
4:4).
Deus é verdadeiro. Sua Palavra de promessa ê certa. Em todas as Suas
relações com o Seu povo, Deus é fieL Pode-se confiar nEle, com segurança,
Nunca houve alguém que tivesse confiado nEle em vão. Vemos esta preciosa
verdade expressa em quase toda parte nas Escrituras, pois o Seu povo precisa
saber que a fidelidade é uma parte essencial do caráter divino. Esta é a base da
nossa confiança nEle, Mas, uma coisa é aceitar a fidelidade de Deus como uma
verdade divina, e outra coisa, muito diferente, é agir com base nisso. Deus "nos
tem dado grandíssimas e preciosas promessas", mas nós contamos realmente
com o seu cumprimento por Deus? Esperamos de fato que Ele vai fazer por nós
tudo que disse que fará? Descansamos com implícita segurança nestas
palavras: " ... fiel é o que prometeu" (Hebreus 10:23)?
Há ocasiões na vida de todos em que não é fácil, nem mesmo para 05
cristãos, crer que Deus é fiel. Nossa fé é provada dolorosamente, nossos olhos
ficam toldados pelas lágrimas, e não conseguimos mais encontrar o rumo dos
baluartes do Seu amor. Os nossos ouvidos se distraem com os ruídos do
mundo, arruinados pelos sussurros ateísticos de Satanás e não conseguimos
mais ouvir a doce entonação da voz mansa e delicada do Senhor. Sonhos
alimentados foram frustrados, amigos em quem confiávamos falharam conosco,
um falso irmão ou irmã em Cristo nos traiu. Vacilamos. Procuramos ser fiéis a
Deus, e agora uma trevosa nuvem O esconde de nós. Achamos difícil,
impossível mesmo, à razão carnal harmonizar a Sua sombria providência com
as promessas da Sua graça, Ah, alma titubeante, companheiro de peregrinação
provado com tanto rigor, procure graça para ouvir Isaías 50:10; "Quem há entre
vós que tema. a,Jeová, e ouça a voz do seu servo? Quando andar em trevas, e
não tiver luz nenhuma, confie no nome do Senhor, e firme-se sobre o seu Deus".
Quando você for tentado a duvidar da fidelidade de Deus, brade: "Para
trás de mim, Satanás". Ainda que você não possa harmonizar os misteriosos
procedimentos de Deus com as Suas declarações de amor, confie nEIe e
aguarde mais luz, Na hora dEIe, certa e boa, Ele fará com que você o veja com
clareza, “...o que eu faço não o sabes tu agora, mas tu o saberás depois" (João
13:7). A seqüência dos fatos demonstrará que Deus não abandonou nem
enganou Seu filho. "Por isso o Senhor esperará, para ter misericórdia de vós; e
por isso será exalçado, para se compadecer de vós, porque o Senhor é um Deus
de eqüidade: bem-aventurados todos os que nele esperam (Isaías 30:18).

"Não julgues o Senhor por tua mente,


porém, confia nEIe por Sua graça.
Por trás de uma severa providência
Ele oculta um semblante sorridente.
Animai-vos, ó santos temerosos!
As nuvens que temíveis vos parecem,
ricas são de mercês, e irromperão
em bênçãos derramadas sobre vós."

"Os teus testemunhos que ordenaste são retos e muito fiéis" (Salmo
119:138). Deus não nos falou apenas o melhor, mas também não retirou o pior.
Ele descreveu fielmente a ruína efetuada pela Queda. Ele diagnosticou
fielmente o terrível estado produzido pelo pecado. Fielmente fez conhecido o Seu
inveterado ódio ao mal, e que ê preciso que Ele o puna. Advertiu-nos fielmente
de que Ele é "fogo consumidor" (Hebreus 12:29). Sua Palavra não contém
somente numerosas ilustrações de Sua fidelidade no cumprimento de Suas
promessas, mas também registra numerosos exemplos de Sua fidelidade em
fazer valer as Suas ameaças. Cada estágio da história de Israel exemplifica esse
fato solene. Foi assim com indivíduos: Faraó, Core, Acã e uma multidão de
outros mais, são outras tantas provas. E será assim com você, meu leitor, a
menos que você tenha buscado ou busque refúgio em Cristo, as chamas
eternas do Lago de Fogo serão a tua porção certa e segura. Deus é fiel.
Deus é fiel na preservação do Seu povo. "Fiel é Deus, pelo qual fostes
chamados para a comunhão de seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor'" (l
Coríntios 1:9). No versículo anterior foi feita a promessa de que Deus
confirmará o Seu povo até o fim. A confiança do apóstolo na absoluta segurança
dos crentes estava baseada não na força das resoluções deles ou em sua
capacidade para perseverar, mas sim na veracidade dAquele que não pode
mentir. Visto que Deus prometeu ao Seu Filho um certo povo como Sua
herança, livrá-lo do pecado e da condenação e fazê-lo participante da vida
eterna na glória, é certo que Ele não permitira que nenhum dos pertencentes a
esse povo pereça.
Deus é fiel na disciplina ministrada ao Seu povo. Ele não é menos fiel
naquilo que retira, do que naquilo que dá. É fiel quando envia tristeza como
quando outorga alegria. A fidelidade de Deus é uma verdade que devemos
confessar não somente quando a tranqüilidade nos bafeja, mas também quando
nos afligirmos sob o castigo mais áspero. Tampouco esta confissão deve ser
apenas de boca, mas também de coração, Quando Deus nos fere com a vara da
punição, é a fidelidade que a maneja. Reconhecer isso significa que nos
humilhamos diante dEle, confessamos que merecemos totalmente a Sua
correção e, em vez de murmurar, damos-Lhe graças por isso. Deus nunca nos
aflige sem algum motivo: "Por causa disto, há entre vós muitos fracos e
doentes..." (1 Coríntios 11:30), ilustra este princípio. Quando a Sua vara cair
sobre nós, digamos com Daniel; "A ti, ó Senhor, pertence a justiça, mas a nós a
confusão de rosto..." (9:7).
"Bem sei eu, ó Senhor, que os teus juízos são justos, e que em tua
fidelidade me afligiste" (Salmo 119:75), Problemas e aflições não são apenas
coerentes com o amor de Deus empenhado na aliança eterna, mas são partes
da sua administração. Deus é fiel não só quando afasta as aflições, mas
também é fiel quando no-las envia. '" Então visitarei com vara a sua
transgressão, e a sua iniqüidade com açoites, Mas não retirarei totalmente dele
a minha benignidade, nem faltarei à minha fidelidade" (Salmo 89:32-33), O
castigo não é apenas conciliável com a benignidade amorosa de Deus, mas
também é seu efeito e expressão. A mente dos servos de Deus se tranqüilizaria
muito se eles se lembrassem de que a aliança de Deus O obriga a aplicar-lhes
correção oportuna. As aflições são-nos necessárias: "...estando eles
angustiados, de madrugada me buscarão" (Oséias 5:15).
Deus é fiel na glorificação do Seu povo, "Fiel é o que vos chama, o qual
também o fará" (1 Tessalonicenses 5:24), A referência imediata aqui é aos
santos serem "preservados inculpáveis para a vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo". Deus nos trata, não com base em nossos méritos (pois não temos
nenhum), mas por amor do Seu grande nome. Deus é constante para consigo
mesmo e segundo o propósito da Sua graça, "... aos que chamou ... a estes
também glorificou" (Romanos 8:30). Deus dá plena demonstração da constância
de Sua bondade eterna para com os Seus eleitos, chamando-os eficazmente das
trevas para a Sua maravilhosa luz, e isto deveria torná-los seguros da certeza
da sua continuidade. "... o fundamento de Deus fica firme..." (2 Timóteo 2; 19),
Paulo estava firmado na fidelidade de Deus quando disse: ". . , eu sei em quem
tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até
àquele dia" (2 Timóteo 1:12).
A percepção desta bendita verdade nos protegera da preocupação. Estar
cheio de preocupações, ver a nossa situação com prenúncios sombrios,
antecipar o amanhã com ansiedade, é ofender a fidelidade de Deus. Aquele que
vem cuidando do Seu filho através dos anos, não o abandonará quando o filho
envelhecer. Aquele que ouviu as orações que você fez no passado, não se negará
a suprir suas necessidades na presente emergência. Descanse em Jó 5:19: “Em
seis angústias te livrará; e na sétima o mal te não tocará".
A percepção desta bendita verdade catará as nossas murmurações. O
Senhor sabe o que é melhor para cada um de nós, e um efeito da confiança
nesta verdade será o silenciar das nossas petulantes reclamações. Deus é
grandemente honrado quando, sob provação e castigo, temos bons
pensamentos sobre Ele, vindicamos a Sua sabedoria e justiça, e reconhecemos
o Seu amor mesmo em Suas repreensões.
A percepção desta bendita verdade gera crescente confiança em Deus.
"Portanto também os que padecem segundo a vontade de Deus encomendem-
lhe as suas almas como ao fiel Criador, fazendo o bem” (1 Pedro 4:19). Quando
confiantemente nos resignarmos e deixarmos todos os nossos interesses nas
mãos de Deus, plenamente persuadidos do Seu amor e fidelidade, tanto mais
depressa ficaremos satisfeitos com as Suas providências e compreenderemos
que "ele tudo faz bem”.
11

A BONDADE DE DEUS
"A bondade de Deus permanece continuamente" (Salmo 52:1). A
"bondade" de Deus tem que ver com a perfeição da Sua natureza: "... Deus é
luz, e não há nele trevas nenhumas” (1 João 1:5). Hã uma tão absoluta
perfeição na natureza e no ser de Deus que nada Lhe falta, nada nEle é
defeituoso, e nada se Lhe pode acrescentar para melhorá-lO. "Ele é
essencialmente bom, bom em Si próprio, o que nada mais é; pois todas as cria-
turas só são boas pela participação e comunicação da parte de Deus. Ele é
essencialmente bom; não somente bom, mas é a própria bondade: na criatura,
a bondade é uma qualidade acrescentada; em Deus, é Sua essência. Ele é
infinitamente bom; na criatura a bondade é uma gota apenas, mas em Deus há
um oceano infinito ou um infinito ajuntamento de bondade. Ele é eterna e
imutavelmente bom, porquanto Ele não pode ser menos bom do que é; como
não se pode fazer nenhum acréscimo a Ele, assim também não se Lhe pode
fazer nenhuma subtração" (Thomas Manton). Deus é summum bonum, o Sumo
Bem.
O significado saxônico original do vocábulo inglês. "God" (Deus) é "The
Good" (O Bom ou O Bem). Deus não é somente o maior de todos os seres, mas
o melhor. Toda a bondade existente em qualquer criatura foi-lhe infundida pelo
Criador, mas a bondade de Deus não é derivada, pois é a essência da Sua natu-
reza eterna. Como Deus é infinito em poder desde toda a eternidade, desde
antes de ter havido alguma demonstração desse poder, ou antes de ter sido
executado algum ato de onipotência, assim Ele era eternamente bom, antes de
haver qualquer comunicação da Sua generosidade, ou antes de haver qualquer
criatura à qual essa generosidade pudesse ser infundida ou exercida. Portanto,
a primeira manifestação desta perfeição divina consistiu em dar existência a
todas as coisas. "Tu és bom e abençoador...", ou, na versão utilizada pelo autor:
"Tu és bom, e fazes o bem...” (Salmo 119:68). Deus tem em Si mesmo um
infinito e inexaurível tesouro de todas as bênçãos, capaz de encher todas as
coisas.
Tudo que provém de Deus — os Seus decretos, a Sua criação» as Suas
leis» as Suas providências — só pode ser bom, como está escrito: "E viu Deus
tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom..." (Gênesis 1:31). Assim, vê-se
a bondade de Deus primeiro na criação. Quanto mais de perto se estuda a
criatura, mais visível se torna a benignidade do seu Criador, Tome a mais
elevada criatura da terra, o homem. Abundantes motivos tem ele para dizer
com o salmista: "Eu te louvarei, porque de um modo terrível e tão maravilhoso
fui formado; maravilhosas são as tuas obras, e a minha alma o sabe muito
bem" (Salmo 139:14). Tudo acerca da estrutura dos nossos corpos atesta a
bondade do seu Criador. Que mãos apropriadas para realizar a obra a elas
confiada! Que bondade do Senhor, determinar o sono para restaurar o corpo
cansado! Que benévola a Sua provisão, dar aos olhos cílios e sobrancelhas para
protegê-los! E assim poderíamos prosseguir indefinidamente.
E a bondade de Deus não se limita ao homem; é exercida em favor de
todas as Suas criaturas. "Os olhos de todos esperam em ti, e tu lhes dás o seu
mantimento a seu tempo. Abres a tua mão, e satisfazes os desejos de todos os
viventes" (Salmo 145:15-16). Volumes inteiros poderiam ser escritos, na
verdade têm sido, para discorrer sobre este fato. Sejam as aves do espaço, os
animais das matas ou os peixes no mar, foi feita abundante provisão para
suprir todas as suas necessidades. Deus "... dá mantimento a toda a carne;
porque a sua benignidade é para sempre" (Salmo 136:25). Verdadeiramente, "...
a terra está cheia da bondade do Senhor" (Salmo 33:5).
Vê-se a bondade de Deus na variedade de prazeres naturais que Ele
providenciou para as Suas criaturas. Deus poderia ter-Se satisfeito em saciar a
nossa fome sem que os alimentos fossem agradáveis ao nosso paladar — como
Sua benignidade transparece-nos diversos sabores de que Ele revestiu os
diferentes tipos de carne, vegetais e frutas! Deus não nos deu somente os
sentidos, mas também nos deu aquilo que os agrada; e isso também revela a
Sua bondade. A terra poderia ser tão fértil como é, sem a sua superfície ser tão
deleitavelmente variegada, A nossa vida física poderia ser mantida sem as
lindas flores para encantarem os nossos olhos e para exalarem suaves
perfumes. Poderíamos andar pelos campos, sem que os nossos ouvidos fossem
saudados pela música dos pássaros. Donde, pois, esta beleza, este encanto, tão
livremente difundido pela face da natureza? Verdadeiramente, "O Senhor é bom
para todos, e as suas ternas misericórdias são sobre todas as suas obras"
(Salmo 145:9).
Vê-se a bondade de Deus em que, quando o homem transgrediu a lei do
seu Criador, não começou de imediato uma dispensação de ira sem
contemplação. Bem poderia Deus ter privado as Suas criaturas decaídas de
todas as bênçãos, de todos os confortos e de todos os prazeres. Em vez disso,
Ele introduziu um regime de natureza mista, de misericórdia e juízo.
Devidamente considerado, isso é por demais maravilhoso, e quanto mais com-
pletamente se examine esse regime, mais transparecerá que " ... a misericórdia
triunfa do juízo** (Tiago 2:13). Não obstante os males todos que acompanham o
nosso estado decaído, o prato do bem predomina grandemente na balança. Com
relativamente ratas exceções, os homens e as mulheres experimentam muito
maior numero de dias de boa saúde, do que de enfermidade e dor. Há no
mundo muito mais felicidade própria das criaturas do que infelicidade
igualmente própria delas. Mesmo as nossas tristezas admitem considerável
alívio, e Deus conferiu à mente humana uma versatilidade que lhe possibilita
adaptar-se às circunstâncias e tirar delas o melhor proveito possível.
Não se pode com justiça pôr em questão a benignidade de Deus pelo fato
de haver sofrimento e tristeza no mundo. Se o homem peca contra a bondade
de Deus, se ele despreza "as riquezas da sua benignidade, e paciência e
longanimidade" e, seguindo a dureza e a impenitência do seu coração entesoura
para si mesmo ira para o dia da ira (Romanos 2:4-5), a quem deve culpar,
senão a si próprio? Deus seria bom, se não punisse os que usam mal as Suas
bênçãos, abusam da Sua benevolência e pisoteiam as Suas misericórdias? Não
haverá a menor censura quanto à bondade de Deus, mas, ao contrário, a mais
brilhante e modelar demonstração dela, quando Deus eliminar da terra os que
quebrantara as Suas leis, desafiam a Sua autoridade, zombam dos Seus
mensageiros, escarnecem do Seu Filho e perseguem aqueles pelos quais Ele
morreu.
A bondade de Deus foi mais ilustremente visível quando Ele enviou o Seu
Filho, "... nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que estavam
debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos" (Gaiatas 4:4-5). Foi
então que uma multidão dos exércitos celestiais louvou seu Criador e disse:
"Glória a Deus nas alturas, paz na terra, boa vontade para com os homens"
(Lucas 2:14). Sim, no evangelho “a graça (em grego, a benevolência ou bondade)
de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens” (Tito 2:11).
Não se pode pôr em dúvida a benignidade de Deus pelo fato de não ter feito Ele
a todas as criaturas pecadoras objetos da Sua graça redentora. Não o fez com
os anjos decaídos. Se Ele tivesse deixado que todos perecessem, não haveria
censura à Sua bondade, A quem quer que desafiasse esta afirmação faríamos
lembrar a soberana prerrogativa de nosso Senhor: "Ou não me é lícito fazer o
que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom?" (Mateus
20:15),
"Louvem ao Senhor pela sua bondade, e pelas suas maravilhas para com
os filhos dos homens" (Salmo 107:8). Gratidão é o justo retorno exigido dos
objetos da Sua benignidade; contudo, muitas vezes é negada ao grande
Benfeitor, simplesmente porque a Sua bondade é tão constante e tão
abundante. A bondade de Deus é apreciada superficialmente porque é exercida
para conosco no curso comum dos eventos. Não a percebemos bem porque a
experimentamos diariamente. "Ou desprezas tu as riquezas da sua
begnidade?..." (Romanos 2:4). A Sua bondade é “desprezada" quando não é
utilizada como um meio para levar os homens ao arrependimento, mas, ao
contrário, serve para endurecê-los a partir da suposição de que fecha os olhos
para o pecado deles.
A bondade de Deus é o sustentáculo da confiança do crente, É esta
excelência de Deus que exerce mais atração sobre os nossos corações. Visto que
a Sua bondade dura para sempre, jamais deveríamos ficar desanimados-. "O
Senhor é bom, uma fortaleza no dia da angústia, e conhece os que confiam
nele" (Naum 1:7). "Quando outros nos maltratam, isso deveria somente
estimular-nos a dar graças mais calorosamente ao Senhor, porque Ele é bom; e
quando nós mesmos nos damos conta de que estamos longe de sermos bons,
somente deveríamos bendizem com maior reverência Aquele que é bom jamais
deveríamos tolerar um instante de descrença na bondade, do Senhor; seja o que
for que possa ser questionado, isto é absolutamente certo, que o Senhor é bom;
as Suas dispensações podem variar, mas a Sua natureza é sempre a mesma”
(C. H. Spurgeon).
12

A PACIÊNCIA DE DEUS
Tem-se escrito muito menos sobre esta excelência do caráter divino do
que sobre as demais. Não poucos dos que têm se estendido largamente sobre os
atributos divinos, deixaram de lado, sem nenhum comentário, a paciência de
Deus. Não é fácil opinar sobre a razão disto, pois certamente a paciência de
Deus é igualmente uma das perfeições divinas, como a Sua sabedoria, poder ou
santidade, e igualmente digna de ser admirada e reverenciada por nós. É
verdade que esse vocábulo não se acha numa concordância tantas vezes como
os outros, mas a glória desta graça refulge em quase todas as páginas das
Escrituras. O certo é que perdemos muito, se não meditamos com freqüência
na paciência de Deus e se não oramos fervorosamente, rogando que os nossos
corações a ela se disponham mais completamente.
O mais provável é que a principal razão pela qual tantos escritores
deixaram de dar-nos algo, separadamente, sobre a paciência de Deus, é a
dificuldade em distinguir este atributo da bondade e da misericórdia divinas,
particularmente desta última A longaminidade de Deus é mencionada
repetidamente era conjunto com a Sua graça e misericórdia, como se pode
verificar consultando Êxodo 34:6; Números 14:18; Salmo 86:15 etc Não se
pode negar que a paciência de Deus é realmente uma demonstração da Sua
misericórdia, na verdade um modo pelo qual esta se manifesta freqüentemente;
não se pode conceder, porém que ambas sejam urna só e a mesma excelência
e que não se possa separar uma da outra. Embora não seja fácil distinguir
entre elas as Escrituras nos autorizam plenamente a afirmar sobre uma delas
algumas coisas que não podemos afirmar sobre a outra.
Stephen Charnock, o puritano, define em parte a paciência de Deus
assim: "É uma parte da bondade e da misericórdia divinas e, contudo, difere de
ambas. Sendo Deus a maior bondade tem a maior brandura; a brandura é
sempre companheira da bondade e, quanto maior a bondade, maior a
brandura. Quem houve tão santo como Cristo, e tão gentil? A lentidão de Deus
para a ira é um aspecto da Sua misericórdia: "... o Senhor (é) sofredor e de
grande misericórdia" (Salmo 145:8; Atualizada, semelhante à versão da citação:
"... o Senhor (é) tardio em irar-se e de grande clemência"). A paciência difere da
misericórdia na consideração formal do objeto: a misericórdia considera a
criatura como infeliz, a paciência considera a criatura como criminosa; a
misericórdia tem pena do ser humano em sua infelicidade a paciência tolera o
pecado que gerou a infelicidade e deu nascimento a mais infelicidade ainda".
Pessoalmente, definimos a paciência divina como aquele poder de controle
que Deus exerce sobre Si mesmo, levando-0 a tolerar os maus e a demorar-Se
a castigá-los. Em Naum 1:3 lemos: “O Senhor e tardio em irar-se, mas grande
em força...", sobre o qual disse o senhor Charnock: "Os homens que são
grandes no mundo sofrem rápido impulso da paixão, e não se dispõem a
perdoar logo, ou a tolerar um ofensor, como alguém de nível inferior. É a falta
de poder sobre o próprio ego que os leva a fazer coisas impróprias sob
provocação. Um príncipe capaz de sujeitar as suas paixões é um rei sobre si
mesmo, bem como sobre os seus súditos. Deus é tardio em irar-Se porque é
grande em força, Ele não tem menos poder sobre Si mesmo do que sobre as
Suas criaturas'.
É na questão acima, pensamos nós, que a paciência de Deus se distingue
mais claramente da Sua misericórdia. Embora a criatura seja beneficiada por
ela, a paciência de Deus diz respeito principalmente a Si próprio, como uma
restrição imposta por Sua vontade aos Seus atos, ao passo que a Sua
misericórdia esgota-se totalmente na criatura. A paciência de Deus é aquela
excelência que O leva a suportar grandes ofensas sem vingar-Se imediatamente.
Ele tem um poder de paciência, como também um poder de justiça. Assim, a
palavra hebraica para "longânimo" é traduzida por '"tardio em irar-se" em
Neemias 9:17, Joel 2:13, etc. Não que haja quaisquer paixões na natureza
divina, mas que à sabedoria e à vontade de Deus apraz agir com aquela
dignidade e sobriedade que vem a ser a Sua exaltada majestade.
Em apoio de nossa definição acima, permita-me assinalar que foi para
esta excelência do caráter divino que Moisés apelou, quando Israel pecou tão
afrontosamente era Cades-Barnéia, e ali provocou ao Senhor tão
dolorosamente. Ao Seu servo disse o Senhor: "Com pestilência o ferirei, e o
rejeitarei..." (Números 14:12). Então foi que o mediador tipológico intercedeu:
"Agora, pois, rogo-te que a força do meu Senhor se engrandeça; como tens
falado, dizendo: O Senhor é Longânimo" (versículos 17 e 18). Portanto, a Sua
"longanimidade"" ou paciência é a Sua "força" ou o Seu poder de auto-restrição.
Ainda em Romanos 9:22 lemos: "E que direis se Deus, querendo mostrar
a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos
da ira, preparados para perdição". Se Deus imediatamente fizesse em pedaços
estes vasos reprovados, o Seu poder de auto-controle não apareceria tão
eminentemente; tolerando a iniqüidade deles e lhes sobre-levando
demoradamente o castigo, o poder da Sua paciência fica demonstrado
gloriosamente. É verdade que os ímpios interpretam a paciência de Deus de
maneira muito diferente -— "Visto como se não executa logo o juízo sobre a má
obra, por isso o coração dos filhos dos homens está inteiramente disposto para
praticar o mal" (Eclesiastes 8:11) — mas o olhar ungido adora o que eles
insultam.
"O Deus de paciência" (Romanos 15:5) é um dos títulos divinos. A Deidade
é assim denominada, primeiro, porque Deus é tanto o Autor como o Objeto da
graça da paciência na criatura. Segundo, porque é isto que Ele é em Si mesmo:
a paciência é uma das Suas perfeições. Terceiro, como um padrão para nós:
"Revesti-vos pois, como eleitos de Deus, santos, e amados, de entranhas de
misericórdia, de benignidade, mansidão, longanimidade" (Colossenses 3:12). E
ainda: "Sede pois imitadores de Deus como filhos amados" (Efésios 5:1).
Quando tentado a aborrecer-se com a lerdeza doutrem, ou a vingar-se de
alguém que o ultrajou, lembre-se da infinita paciência e longanimidade de Deus
para com você.
A paciência de Deus se manifesta em Sua maneira de tratar os pecadores.
Quão surpreendentemente foi demonstrada para com os antediluvianos.
Quando a humanidade estava universalmente degenerada, e toda a carne havia
corrompido os seus caminhos, Deus não a destruiu sem antes adverti-la. "... a
longanimidade de Deus esperava..." (1 Pedro 3:20), Deus esperou não menos de
cento e vinte anos (Gênesis 6:3), tempo durante o qual Noé foi "... pregoeiro da
justiça... " (2 Pedro 2:5). Assim, mais tarde, quando os gentios não só
cultuavam e serviam mais a criatura do que ao Criador, mas também cometiam
as mais vis abominações contrárias até mesmo aos .ditames da natureza (Ro-
manos 1:19-26), e com isso encheram a medida da sua iniqüidade; todavia, em
vez de desembainhar a Sua espada para o extermínio desses rebeldes, Deus "...
deixou andar todas as gentes em seus próprios caminhos..." e lhes deu "...
chuvas e tempos frutíferos..." (Atos 14:16-17).
A paciência de Deus foi maravilhosamente exercida e manifestada para
com Israel. Primeiro, Ele "...suportou os seus costumes no deserto por
espaço de quase quarenta anos (Atos 13.18) Posteriormente, quando os
israelitas entraram em Canaã, mas seguiam os maus costumes das nações ao
seu redor e pendiam para a idolatria, conquanto Deus os castigasse
dolorosamente não os destruiu por completo, mas sim em sua
angustia, levantava libertadores para eles. Quando a sua iniqüidade subiu a tal
ponto que ninguém, senão um Deus de infinita paciência, poderia suportá-los,
Ele, não obstante, poupou-os durante muitos anos antes de deixar que
fossem levados para a Babilônia. Finalmente quando a sua rebelião contra
Ele atingiu o clímax pela crucificação de Seu Filho, Deus esperou quarenta
anos, antes de enviar os romanos contra eles, e isso, só depois deles Julgarem
que não eram "...dignos da vida eterna... (Atos 13:46)
Quão maravilhosa é a paciência de Deus com o mundo hoje! Por toda
parte as pessoas pecam a peito aberto. A lei divina e pisoteada e o próprio Deus
é desprezado abertamente. É deveras espantoso que Ele não elimine de vez
aqueles que tão descaradamente O desafiam. Por que Ele não corta da face
da terra o infiel insolente e o escarnecedor verboso, como fez com Ananias e
Safira? Por que não faz a terra abrir a boca e devorar os perseguidores do
Seu povo para que, à semelhança de Data e Abirão fossem vivos para o
Abismo? E que dizer da cristandade apóstata, em que todas as formas de
pecado possíveis são agora toleradas e praticadas sob a capa do santo nome
de_ Cristo? Por que a justa ira do Céu não põe fim a tais abominações?
Somente uma resposta é possível: porque Deus tolera com muita paciência os
vasos da ira, preparados para perdição (Romanos 9:22).
E que dizer do autor e do leitor? Façamos uma revisão em nossas vidas.
Não transcorreu muito tempo desde quando nós seguíamos a multidão na
prática do mal, não nos interessávamos nem um pouco pela glória de Deus e só
vivíamos para gratificar o nosso ego. Quão pacientemente Ele tolerou a nossa
conduta vil! E agora que a graça nos tirou como tições do fogo, dando-nos um
lugar na família de Deus, e nos gerou para uma herança eterna na glória, quão
miseravelmente Lhe retribuímos! Quão superficial a nossa gratidão, quão tardia
a nossa obediência e quão freqüentes as nossas apostasias! Uma razão pela
qual Deus tolera que o crente permaneça carnal é que Ele possa demonstrar a
Sua longanimidade para conosco (2 Pedro 3:9). Desde que este atributo divino
só se manifesta neste mundo, Deus se empenha mais em mostrá-lo para com
"os Seus".
Oxalá a nossa meditação nesta excelência divina abrande os nossos
corações, enterneça as nossas consciências, e possamos aprender na escola da
santa experiência a "paciência dos santos'1, a saber, a submissão à vontade
divina e a perseverança na prática do bem. Busquemos fervorosamente a graça
que nos capacite a imitar esta excelência divina. "Sede vós pois perfeitos, como
é perfeito o vosso Pai que está nos céus'" (Mateus 5:48); no contexto imediato
Cristo nos exorta a amar os nossos inimigos, a bendizer os que nos maldizem, a
fazer o bem aos que nos odeiam. Deus tolera bastante os ímpios, apesar da
multidão dos seus pecados; e nós, haveremos de querer vingar-nos por causa
de uma única ofensa?
13

A GRAÇA DE DEUS
Esta perfeição do caráter divino só é exercida em favor dos eleitos. Nem no
Velho Testamento nem no Novo jamais se menciona a graça de Deus em
conexão com a humanidade em geral, e muito menos com as ordens inferiores
das Suas criaturas. Nisto a graça se distingue da "misericórdia", pois a
misericórdia é "... sobre todas as suas obras1' (Salmo 145:9). A graça é a única
fonte da qual fluem a boa vontade, o amor e a salvação de Deus para o Seu
povo escolhido. Este atributo do caráter divino foi definido por Abraham Booth
em seu proveitoso livro, The Reign of Grace — O Reino da Graça, assim: "É o
livre, absoluto e eterno favor de Deus, manifesto na concessão de bênçãos
espirituais e eternas a culpados e indignos.
A graça divina é o soberano e salvador favor de Deus exercido na dádiva
de bênçãos a pessoas que não têm em si mérito nenhum, e pelas quais não se
exige delas nenhuma compensação. Não apenas isso, é ainda mais; é o favor de
Deus demonstrado a pessoas que, não só não possuem merecimentos próprios,
mas são totalmente merecedoras do inferno. É completamente imerecida, não é
procurada de modo nenhum e não é atraída por nada que haja nos objetos aos
quais é dada, por nada que deles provenha, e tampouco pelos próprios objetos.
A graça não pode ser comprada, nem obtida, nem conquistada pela criatura. Se
pudesse, deixaria de ser graça. Quando dizemos que uma coisa é "de graça",
queremos dizer que seu recebedor não tem direitos sobre ela, que de maneira
nenhuma ela lhe era devida. Chega-lhe como pura caridade e, a princípio, não
solicitada nem desejada.
A mais completa exposição da maravilhosa graça de Deus acha-se nas
epístolas do apóstolo Paulo. Em seus escritos "graça" está em direta oposição a
obras e merecimento, todas as obras e todo merecimento, de qualquer espécie
ou grau. Vê-se isto com muita clareza em Romanos 11:6, na versão utilizada
pelo autor: "E se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já
não é graça. Se é por obras, já não é pela graça; de outra maneira, as obras já
não são obras". É tão impossível unir a graça e as obras, como o é unir um
ácido e um álcali. "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem
de vós; é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie (Efésios
2:8-9). O absoluto favor de Deus não pode harmonizar-se com o mérito
humano, mais do que o óleo e a água fundir-se num só elemento. Ver também
Romanos 4:4-5.
São três às principais características da graça divina: primeira, é eterna. A
graça foi planejada antes de ser exercida, e fez parte do propósito divino antes
de ser infundida: "Que nos salvou, e chamou com uma santa vocação; não
segundo as nossas obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos
foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos" (2 Timóteo 1:9).
Segunda, é livre, ou gratuita, pois ninguém a pôde comprar jamais: “Sendo
justificados gratuitamente pela sua graça..." (Romanos 3:24. Terceira, ê
soberana, porque Deus a exerce em favor daqueles a quem Lhe apraz, e a estes
a concede: "Para que... também a graça reinasse..." (Romanos 5:21). Se a graça
"reina", ocupa um trono, e o ocupante do trono é soberano. Daí o "... trono da
graça..." (Hebreus 4:16).
Exatamente porque a graça é um favor imerecido, exerce-se
necessariamente de maneira soberana. Portanto, o Senhor declara: "Terei
misericórdia" (ou graça) "...de quem eu tiver misericórdia,..'" (Êxodo 33:19). Se
Deus mostrasse graça a todos os descendentes de Adão, os homens logo
concluiriam que Ele, sendo justo, estava compelido a levá-los para o céu como
uma razoável compensação por ter deixado a raça humana cair em pecado. Mas
o grande Deus não está sob nenhuma obrigação para com nenhuma de Suas
criaturas, menos ainda para com os que são rebeldes contra Ele.
A vida eterna é um dom e, portanto, não pode ser obtida pelas boas obras,
nem reivindicada como um direito. Vendo que a salvação é um "dom", quem
tem direito de dizer a Deus a quem Ele deve doá-lo? Não é que o Doador recusa
este dom a qualquer que o busque de todo coração e de acordo com as regras
que Ele prescreveu. Não; Ele não o recusa a ninguém que O busca de mãos
vazias e da maneira determinada por Ele. Mas, se de um mundo impenitente e
incrédulo Deus está resolvido a exercer o Seu direito soberano escolhendo um
número limitado de pessoas para serem salvas, quem sai prejudicado? Estará
Deus obrigado a impor o Seu dom aos que não lhe dão valor? Estará Deus
compelido a salvar os que estão determinados a seguir o seu próprio caminho!
Nada, porém, enraivece mais o homem natural e mais contribui para
trazer à tona a sua inata e inveterada inimizade contra Deus, do que insistir
com ele sobre a eternidade, a gratuidade e a absoluta soberania da graça
divina. Dizer que Deus formou Seu propósito desde a eternidade, sem nenhuma
consulta à criatura, é demasiadamente humilhante para o coração não
quebrantado Dizer que a graça não pode ser adquirida ou conquistada pelos
esforços do homem, esvazia demais o ego dos que confiam em sua justiça
própria. E o fato de que a graça separa os que ela quer para serem os objetos do
seu favor, provoca acalorados protestos dos rebeldes arrogantes. O barro se
levanta contra o Oleiro e pergunta: "Por que Tu me fizeste assim?' Um
rebelde infrator da lei atreve-se a questionar a justiça da soberania divina. Vê-
se a distintiva graça de Deus no ato de salvar aqueles que Ele separou
soberanamente para serem os Seus favoritos. Com "distintiva" queremos
dizer que a graça discrimina, faz diferenças escolhe alguns e deixa de lado
outros. Foi a distintiva graça de Deus que separou Abraão dentre os seus
vizinhos idolatras e fez dele "o amigo de Deus". Foi a distintiva graça que salvou
"publicanos e pecadores", mas disse acerca dos fariseus: Deixai-os" (Mateus
15:14). Em parte nenhuma a glória da livre e soberana graça de Deus fulge
mais conspicuamente do que na indignidade e diversidade dos que a recebem.
Esta verdade foi belamente ilustrada por James Hervey (1751):
"Onde o pecado abundou, diz a proclamação do tribunal do céu
superabundou a graça. Manasses foi um monstro cruel, pois fez passar seus
próprios filhos pelo fogo, e encheu Jerusalém de sangue inocente. Manasses foi-
perito em iniqüidade, pois, não só multiplicou, chegando a extremos
extravagantes, as suas impiedades sacrílegas, como também envenenou os
princípios e perverteu os costumes dos seus súditos, fazendo-os agir pior do
que os pagãos idolatras mais detestáveis. Veja 2 Crônicas 33. Contudo, através
desta super abundante graça, ele se humilhou, mudou de vida, e se tornou um
filho do amor que perdoa e um herdeiro da glória imortal.
"Vede Saulo, aquele perseguidor cruel e sanguinário, quando, respirando
ameaças e disposto à matança, atormentava as ovelhas de Jesus e levava à
morte os Seus discípulos. A devastação que causara e as famílias inofensivas
que arruinara, não eram suficientes para mitigar o seu espírito vingativo. Eram
apenas uma amostra para o paladar que, em vez de saciar a sede de sangue,
fizeram-no seguir mais de perto a presa e ansiar mais ardentemente pela
destruição. Continuava sedento de violência e morte. Tão ávida e insaciável era
sua sede, que chegava a respirar ameaças e mortes (Atos 9:1). Suas palavras
eram verdadeiras lanças e flechas, e a sua língua, uma espada afiada. Para ele,
ameaçar os cristãos era tão natural como respirar. Nos propósitos do seu
coração rancoroso, eles não paravam de sangrar. Só devido à falta de poder é
que cada sílaba que proferia e cada sopro da sua respiração não espalhavam
mais mortes nem faziam cair mais discípulos inocentes. Quem, segundo os
princípios da justiça humana, não o teria pronunciado vaso da ira, destinado a
inevitável condenação? E mais, quem não estaria pronto a concluir que, se
houvesse cadeias mais pesadas e masmorra mais triste no mundo das torturas,
certamente se reservariam para tão implacável inimigo da verdadeira
religiosidade? Entretanto, admirai e adorai os inexauríveis tesouros da graça —
este Saulo é admitido na santa comunhão dos profetas, é enumerado com o
nobre exército de mártires e faz distinguida figura no glorioso colégio dos
apóstolos.
"Era proverbial a maldade dos coríntios. Alguns deles chafurdavam em tão
abomináveis libertinagens, e estavam habituados a tão ultrajantes atos de
injustiça que eram uma infâmia até para a natureza humana. Contudo, até
mesmo esses filhos da violência e escravos do sensualismo foram lavados,
santificados, justificados (1 Coríntios 6:9-11). "Lavados" no sangue precioso do
Redentor que deu Sua vida; "santificados" pelas poderosas operações do
bendito Espírito; "justificados" através das misericórdias infinitamente ternas
do Deus da graça. Os que outrora foram um aflitivo fardo para a terra, vieram a
ser o júbilo do céu, o encanto dos anjos".
Agora, a graça de Deus se manifesta no Senhor Jesus Cristo, por Ele e
através dEle.-"Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por
Jesus Cristo (João 1:17). Isto não significa que Deus nunca exercera a Sua
graça em favor de alguém antes de encarnar-Se o Seu Filho, Gênesis 6:8; Êxodo
33:19; etc; mostram que a verdade é outra. Mas a graça e a verdade foram
plenamente reveladas e perfeitamente exemplificadas quando o Redentor veio a
esta terra e morreu na cruz por Seu povo. Ê somente através de Cristo, o
Mediador, que a graça de Deus flui para os Seus eleitos. "Muito mais a graça de
Deus e o dom pela graça, que é dum só homem (ou "por um SÔ homem"), Jesus
Cristo... muito mais os que recebem a abundância da graça, e o dom da justiça,
reinarão em vida por um só — Jesus Cristo ... para que ... também a graça
reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor" (Roma-
nos 5:15, 17, 21).
A graça de Deus é proclamada no evangelho (Atos 20:24), o qual é para o
judeu confiante em sua justiça própria um "escândalo" (ou "pedra de tropeço"),
e para o grego presunçoso e filósofo "loucura". Por quê? Porque não há nada
no evangelho que se preste para gratificar o orgulho do homem. Ele anuncia
que se não formos salvos pela graça, não seremos salvos de modo nenhum. Ele
declara que, fora de Cristo - o Dom inefável da graça de Deus — o estado de
todos os homens é desesperador, irremediável, sem esperança. O evangelho
trata os homens como criminosos culpados, condenados e mortos. Declara que
o moralista mais puro está na mesma condição terrível em que se acha o
libertino mais voluptuoso; que o religioso confesso e zeloso, com todas as suas
práticas religiosas, não é melhor do que o mais profano infiel.
O evangelho considera a todo descendente de Adão como pecador decaído,
corrupto, merecedor do inferno e desvalido. A graça que o evangelho divulga é a
sua única esperança. Todos permanecem diante de Deus como réus
sentenciados, transgressores da Sua santa lei, como criminosos culpados e
condenados, não a espera de alguma sentença, mas esperando a execução da
sentença já passada sobre eles (João 3:18; Romanos 3:19). Queixar-se da
parcialidade da graça é suicídio. Se o pecador insiste em que se lhe faça a pura
justiça, então o "lago de fogo" terá que ser o seu quinhão eterno. Sua única
esperança está em render-se a sentença que a justiça divina lhe passou,
apropriar-se da retidão absoluta que a caracteriza, lançar-se à misericórdia de
Deus, e estender mãos vazias para servir-se da graça de Deus, que agora
chegou a conhecer por meio do evangelho.
A terceira pessoa da Deidade é o comunicador da graça pelo que e
denominado "... o Espírito de graça... " (Zacarias 12-10) Deus, o Pai, é a fonte de
toda graça, pois Ele em Si mesmo determinou a aliança eterna da redenção.
Deus, o Filho, é o único canal da graça. O evangelho é o divulgador da graça. O
Espírito é o doador. Ele aplica o evangelho com poder salvador à alma
vivificando os eleitos enquanto ainda mortos, dominando as suas vontades
rebeldes, amolecendo os seus duros corações, abrindo-lhes os olhos da sua
cegueira, limpando-os da lepra do pecado Podemos assim dizer com G. S.
Bishop (já falecido): «A graça é uma provisão para homens que se acham tão
decaídos que não podem erguer o machado da justiça, tão corruptos que não
podem mudar as suas próprias naturezas, tão contrários a Deus que não
podem voltar para Ele, tão cegos que não podem vê-10, tão surdos que não
podem ouvi-1O, e tão mortos que Ele mesmo precisa abrir os seus túmulos e
levantá-los para a ressurreição".
14

A MISERICÓRDIA DE DEUS
"Louvai ao Senhor, porque ele é bom; porque a sua begnidade (ou
misericórdia) dura para sempre" (Salmo 136-1) Deus deve ser grandemente
louvado por esta perfeição do Seu caráter. Por três vezes, em três versículos, o
salmista convida os santos a louvarem ao Senhor por este atributo adorável. E
certamente é o mínimo que se pode pedir aos que tão copiosamente se
beneficiaram dele. Quando ponderamos as características desta excelência
divina, não podemos senão bendizer a Deus por ela A Sua misericórdia (ou
benignidade), é "grande" (1 Reis 3-6- 1 Pedro 1:3), "abundante" (Salmo 86:5),
"terna" (Lucas 1-78 'na versão utilizada pelo autor); "... de eternidade a
eternidade sobre aqueles que o temem..." (Salmo 103:17). Bem podemos dizer
com o salmista: "... louvarei com alegria a tua misericórdia ... (Salmo 59:16).
"... eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti e apregoarei o
nome do Senhor diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia,
e me compadecerei de quem me compadecer" (Êxodo 33:19). Em que a
misericórdia de Deus difere da Sua "graça"? A misericórdia de Deus tem sua
origem na bondade divina. O primeiro fruto da bondade de Deus é Sua benigni-
dade ou generosidade, pela qual Ele dá liberalmente a Suas criaturas como
criaturas; assim deu Ele o ser e a vida a todas as coisas. O segundo fruto da
bondade de Deus é Sua misericórdia, que denota a pronta inclinação de Deus
para aliviar a miséria das criaturas caídas. Assim, "misericórdia" pressupõe
pecado.
Embora não seja fácil, à primeira consideração, perceber uma real
diferença entre a graça e a misericórdia de Deus, podemos compreendê-la se
ponderarmos cuidadosamente os Seus procedimentos para com os anjos que
não caíram. Ele nunca exerceu misericórdia para com eles, pois jamais tiveram
qualquer necessidade dela, pois não pecaram, nem ficaram debaixo dos efeitos
da maldição. Todavia, eles são objetos da livre e soberana graça de Deus.
Primeiro, porque Deus os elegeu do seio de toda a raça angélica (1 Timóteo
5:21), Segundo, e em conseqüência da sua eleição, porque foram preservados
da apostasia, quando Satanás se rebelou e arrastou consigo um terço das
hostes celestiais (Apocalipse 12:4), Terceiro, tornando Cristo a Cabeça deles
(Colossenses 2:10; 1 Pedro 3:22), meio pelo qual eles permanecem eternamente
seguros na santa condição em que foram criados. Quarto, devido à exaltada
posição que lhes foi atribuída: viver na presença imediata de Deus (Daniel 7:10),
servi-1O constantemente em Seu templo celestial, receber dEle honrosas
missões (Hebreus 1:14). Isso é graça abundante para com eles, mas
"misericórdia" não é.
No empenho em estudar a misericórdia de Deus como exposta nas
Escrituras, é preciso fazer uma tríplice distinção, se é que a Palavra da Verdade
há de ser "bem manejada" nesse ponto. Primeiro, há uma misericórdia geral de
Deus, que se estende não somente a todos os homens, crentes e descrentes
igualmente, mas também à criação inteira: "...as suas misericórdias são sobre
todas as suas obras" (Salmo 145:9); "... de mesmo é quem dá a todos a vida, e a
respiração, e todas as coisas" (Atos 17:25). Deus tem compaixão da criação
animal em suas necessidades, e a supre de provisão adequada. Segundo, há
uma misericórdia especial de Deus, exercida para com os filhos dos homens,
ajudando-os e socorrendo-os, apesar dos seus pecados. Também a estes Deus
supre todas as necessidades da vida: "... porque faz que o seu sol se levante
sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos" (Mateus 5:45).
Terceiro, há uma misericórdia soberana, reservada para os herdeiros da
salvação, comunicada a estes por meio de uma aliança, através do Mediador.
Acompanhando um pouco mais a diferença entre o segundo e o terceiro
pontos distintivos acima expostos, é importante notar que as misericórdias que
Deus concede aos ímpios são exclusivamente de natureza temporal; quer dizer,
limitam-se estritamente a presente vida. Não haverá misericórdia que se
estenda a eles além-tumulo: "... este povo não é povo de entendimento- por isso
aquele que o fez não se compadecera dele, e aquele que o formou não lhe
mostrará nenhum favor" (Isaías 27:11) Neste ponto, porém, pode oferecer-se
uma dificuldade a algum dos nossos leitores, a saber: não afirmam as
Escrituras que a misericórdia de Deus, “...a sua benignidade dura para
sempre"? (Salmo 13b: 1)7 E preciso assinalar duas coisas neste contexto.
Deus nunca deixa de ser misericordioso, pois isto constitui uma qualidade da
essência divina (Salmo 116:5); mas o exercício da Sua misericórdia e regulado
por Sua vontade soberana. Tem que ser assim, pois não ha fora dEle coisa
nenhuma que O obrigue a agir; se houvesse, essa "coisa" seria suprema e Deus
deixaria de ser Deus. É somente a pura graça soberana que determina o
exercício da misericórdia divina. Deus afirma expressamente este fato em
Romanos 9:15: "Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem compadecer, e
terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Não e a desgraça da criatura
que O leva a mostrar misericórdia, pois Deus não é influenciado por coisas
alheias a Si mesmo, como nós somos. Se Deus fosse influenciado pela miséria
abjeta dos pecadores leprosos, Ele os limparia e os salvaria a todos. Mas não o
faz. Por quê? Simplesmente porque não é do Seu agrado e do Seu propósito agir
assim. Menos ainda são os méritos da criatura que O levam a conceder-lhes
misericórdias, pois é uma contradição de termos falar em merecer "miseri-
córdia”. "Não petas obras de justiça que houvéssemos feito, mas segundo a sua
misericórdia, nos salvou..." (Tito 3:5) — aquelas estando em direta antítese a
esta. Tampouco são os méritos de Cristo que movem Deus a conceder
misericórdias aos Seus eleitos; isto seria tomar o efeito pela causa. É "através"
ou por causa da misericórdia de Deus que Cristo foi enviado ao mundo, ao Seu
povo (Lucas 1:78). Os méritos de Cristo tornaram possível a Deus conceder
justamente misericórdias espirituais aos Seus eleitos, tendo sido satisfeita
plenamente a justiça pelo Fiador! Não, a misericórdia provém unicamente da
vontade soberana de Deus.
Ademais, conquanto seja verdade, bendita e gloriosa verdade, que a
misericórdia de Deus "dura para sempre", devemos observar cuidadosamente os
objetos a quem Deus mostra misericórdia. Até o lançamento dos reprovados no
"lago de fogo" é um ato de misericórdia. O castigo dos ímpios deve ser
considerado de um tríplice ponto de vista. Do lado de Deus, é um ato de justiça,
vindicando a Sua honra, A misericórdia de Deus nunca se mostra cm
detrimento da Sua santidade e justiça. Do lado dos ímpios, é um ato de
eqüidade, dado que são postos a sofrer a merecida recompensa das suas
iniqüidades. Mas do ponto de vista dos redimidos, o castigo dos ímpios é um
ato de indescritível misericórdia. Quão terrível seria se a presente ordem de
coisas continuasse para sempre, quando os filhos de Deus são forçados a viver
no meio dos filhos do diabo! O céu logo deixaria de ser céu, se os ouvidos dos
santos ainda ouvissem a Linguagem blasfema e corrompida dos reprovados.
Que misericórdia, o fato de que na Nova Jerusalém não entrará “ ... coisa
alguma que contamine, e cometa abominação... " (Apocalipse 21:27)!
Para que o leitor não pense que no último parágrafo acima estivemos
laborando sobre a nossa imaginação, apelemos para as Escrituras Sagradas em
apoio do que foi dito. No Salmo 143:12 vemos Davi orando: "E por tua
misericórdia desarraiga os meus inimigos, e destrói a todos os que angustiam a
minha alma: pois sou teu servo". Ainda, no Salmo 136:15 lemos que Deus
"derribou a Faraó com o seu exército no Mar Vermelho; porque a sua
benignidade (ou misericórdia) dura para sempre". Foi um ato de castigo a Faraó
e aos seus exércitos, mas foi um ato de "misericórdia" para os israelitas. Mais
ainda, em Apocalipse 19:1-3 lemos: "... ouvi no céu como que uma grande voz
de uma grande multidão, que dizia: Aleluia; Salvação, e glória, e honra, e poder
pertencem ao Senhor nosso Deus; porque verdadeiros e justos são os seus
juízos, pois julgou a grande prostituta, que havia corrompido a terra com a sua
prostituição, e das mãos dela vingou o sangue dos seus servos. E outra vez
disseram: Aleluia. E o fumo dela sobe para todo o sempre".
Do que se acaba de ver diante de nós, notemos como é vã a presunçosa
esperança dos ímpios que, apesar do seu continuado desafio a Deus, mesmo
assim contam com uma atitude misericordiosa de Deus em favor deles.
Quantos há que dizem: não acredito que Deus me lançará no inferno; Ele é
muito misericordioso. Essa esperança é uma víbora que, se for acalentada no
colo deles, irá feri-los com picada morta!. Deus é Deus de justiça, como de
misericórdia, e Ele declarou expressamente que "... ao culpado não tem por
inocente..." (Êxodo 34:7). Sim, Ele disse: "Os ímpios serão lançados no inferno e
todas as gentes que se esquecem de Deus" (Salmo 9:17). Também poderiam
raciocinar os homens: se se deixasse acumular o lixo, e os esgotos ficassem
estagnados, e as pessoas ficassem privadas de ar renovado, não acredito que
um Deus misericordioso as deixaria cair presas de uma febre mortal. O fato é
que aqueles que negligenciam as leis da saúde são tomados pela doença, apesar
da misericórdia de Deus. Igualmente verdade é que os que negligenciam as leis
da saúde espiritual sofrerão para sempre a ''segunda morte".
É indizivelmente grave ver tantos abusando desta perfeição divina.
Continuam desprezando a autoridade de Deus, pisoteando Suas leis;
continuam em pecado, e ainda se vangloriam apoiados na Sua misericórdia.
Mas Deus não será injusto para Consigo mesmo. Deus mostra misericórdia
para o penitente sincero, não porém para o impenitente (Lucas 13:3). É
diabólico continuar em pecado e ainda contar com a misericórdia de Deus para
a proscrição do castigo. Equivale a dizer: "Façamos males, para que venham
bens". Dos que falam assim, está escrito: "... A condenação desses é justa'
(Romanos 3:8). Com toda a certeza, essa presunção se verá frustrada; leia
cuidadosamente Deuteronômio 29:18-20. Cristo é a propiciação espiritual, e
todos quantos desprezarem e rejeitarem o Seu senhorio, perecerão "... no
caminho, quando em breve se inflamar a sua ira" (Salmo 2:12).
O nosso pensamento final será sobre as misericórdias espirituais de Deus
para com o Seu povo. "... a tua misericórdia é grande até aos céus..." (Salmo
57:10). As riquezas da misericórdia transcendem os nossos mais elevados
pensamentos. "Pois quanto o céu está elevado acima da terra, assim é grande a
sua misericórdia para com os que o temem" (Salmo 103:11). Ninguém pode
medi-la. Os eleitos são designados "... vasos de misericórdia..." (Romanos 9:23).
Foi a misericórdia que os vivi-ficou quando estavam mortos em pecado (Efésios
2:4-5). A misericórdia os salvou (Tito 3:5). Sua abundante misericórdia os
regenerou para uma herança eterna (1 Pedro 1:3). E nos faltaria tempo para
falar da misericórdia de Deus que preserva, sustenta, perdoa e supre os Seus.
Para eles Deus é "... Pai das misericórdias..." (2 Coríntios 1:3).

Quando em elevação minha alma sonda


as Tuas misericórdias, ó meu Deus,
a visão me arrebata, e então me absorvo em encanto,
em amor e em louvor.
15

O AMOR DE DEUS
As Escrituras nos dizem três coisas a respeito da natureza de Deus.
Primeira, "Deus é espírito" (João 4:24). No grego não há artigo indefinido. Dizer
"Deus é um espírito" é sumamente repreensível, pois O coloca na mesma
classificação de outros seres. Deus é "espírito" no sentido mais elevado. Como é
"espírito", é incorpóreo, não tem substância visível. Tivesse Deus um corpo
tangível, não seria onipresente, estaria limitado a um lugar; sendo "espírito",
enche os céus e a terra. Segunda, "Deus é luz" (1 João 1:5), o que é oposto às
trevas. Nas Escrituras as "trevas" representam o pecado, o mal, a morte; a "luz"
representa a santidade, a bondade, a vida. "Deus é luz" significa que Ele é a
soma de todas as excelências. Terceira, "Deus é amor" (1 João 4:8). Não é
simplesmente que Deus ama, porém que ê amor mesmo. O amor não é
meramente um dos Seus atributos, mas sim Sua própria natureza,
Muitos hoje falam do amor de Deus, mas são completamente alheios ao
Deus de amor. Comumente se considera o amor divino como uma espécie de
fraqueza amável, uma certa indulgência boazinha; fica reduzido a um
sentimento enfermiço, modelado nas emoções humanas. Pois bem, a verdade é
que nisto, como em tudo mais, os nossos pensamentos precisam ser
formulados e regulados por aquilo que é revelado nas Escrituras Sagradas. Que
há urgente necessidade disto transparece não só na ignorância que geralmente
prevalece, mas também no baixo nível de espiritualidade atual que
lamentavelmente se evidencia entre os cristãos professos. Quão pouco amor
genuíno a Deus existe! Uma das principais razões disso é que os nossos
corações pouco se ocupam com o Seu maravilhoso amor por Seu povo. Quanto
melhor conheçamos o Seu amor — sua natureza, sua plenitude, sua bem-
aventurança — mais os nossos corações serão impelidos a amá-1O.
1. O amor de Deus é imune de influência alheia. Queremos dizer com isso
que não há nada nos objetos do Seu amor que possa colocá-lo em ação, e não
há- nada na criatura que possa atraí-lo ou impulsioná-lo. O amor que uma
criatura tem por outra deve-se a algo existente nelas; mas o amor de Deus é
gratuito espontâneo e não causado por nada nem por ninguém. A única razão
pela qual Deus ama alguém acha-se em Sua vontade soberana: "O Senhor não
tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do
que a de todos os outros povos, pois vos éreis menos em número do que todos
os povos: mas porque o Senhor vos amava" {Deuteronômio 7:7-8), Deus amou o
Seu povo desde a eternidade e, portanto, a criatura nada tem que possa ser a
causa daquilo que se acha em Deus desde a eternidade. Seu amor provém dEle
próprio: "... segundo o seu próprio propósito..." (2 Timóteo 1:9).
"Nós o amamos a ele porque ele nos amou primeiro" (1 João 4:19). Deus
não nos amou porque nós O amávamos, mas nos amou antes de nós termos
uma só partícula de amor por Ele. Se Deus nos tivesse amado em resposta ao
nosso amor, então o Seu amor não seria espontâneo; mas visto que Ele nos
amou quando nós não O amávamos, é claro que o Seu amor não foi
influenciado. Para que se honre a Deus, e se firme o coração do Seu Filho, é
altamente importante que entendamos com absoluta clareza esta verdade
preciosa. O amor de Deus por mim e por todos e cada um dos que são "Seus"
não foi movido nem motivado por coisa nenhuma em nós. Que havia em mim
que atraiu o coração de Deus? Absolutamente nada. Ao contrário, porém, havia
tudo para O repelir, tudo na medida para levá-lO a detestar-me — sendo eu
pecador, depravado, corrupto, sem "nenhum bem" em mim.

"O que existia em mim que merecesse estima


ou desse algum prazer ao Criador?
Fosse assim mesmo, ó Pai, eu sempre cantaria
por veres algo bom em mim, Senhor."

2. É eterno. Necessariamente, Deus é eterno, e Deus é amor; portanto,


como Deus não teve princípio, Seu amor também não teve. Mesmo concedendo
que esse conceito transcende o alcance das nossas frágeis mentes, contudo,
quando não podemos compreender, podemos inclinar-nos em adoração. Como é
claro o testemunho de Jeremias 31:3: "... com amor eterno te amei, também
com amorável benignidade te atraí"! Que bem-aventurança saber que o
grandioso e santo Deus amava o Seu povo antes do céu e a terra terem sido
chamados à existência, que Ele pusera o Seu coração neles desde toda a
eternidade! Esta é uma prova clara de que o Seu amor é espontâneo, pois Ele os
amou eras sem fim, antes de sequer existirem!
A mesma verdade preciosa é exposta em Efésios 1:4-5: "Como também
nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e
irrepreensíveis diante dele em caridade; e nos predestinou..." (ou, na versão
empregada pelo autor, "Havendo-nos predestinado em amor"). Que de louvores
isto deveria evocar de cada um dos Seus filhos! Que tranqüilidade para o
coração saber que, uma vez que o amor de Deus por mim não teve começo,
certamente não terá fim! Se é certo que "de eternidade a eternidade" Ele é Deus,
e é "amor", então é igualmente certo que "de eternidade a eternidade" Ele ama a
Seu povo.
3. É soberano. Isso também é evidente em si mesmo. Deus é soberano,
não deve obrigação a ninguém; Ele é Sua própria lei e age sempre de acordo
com a Sua vontade dominadora. Assim, pois, se Deus é soberano e é amor,
infere-se necessariamente que o Seu amor é soberano. Porque Deus é Deus, faz
o que Lhe agrada; porque é amor, ama a quem Lhe apraz. Eis a Sua própria
afirmação expressa: "... amei Jacó e aborreci Esaú" (Romanos 9:13). Em Jacó
não havia mais razão do que em Esaú para ser objeto do amor divino. Ambos
tinham os mesmos pais e, gêmeos que eram, nasceram na mesma hora.
Contudo, Deus amou um e aborreceu o outro. Por que? Porque assim Lhe
aprouve.
A soberania do amor de Deus infere-se necessariamente do fato de que
nada do que há na criatura o influencia. Portanto, afirmar que a causa do Seu
amor está em Deus é outro modo de dizer que Ele ama a quem Lhe apraz. Por
um momento, suponha o oposto. Suponha que o amor de Deus fosse governado
por outra coisa que a Sua vontade, caso em que Ele amaria seguindo alguma
norma e, amando por alguma norma, Ele estaria subordinado a uma lei do
amor e, então, longe de ser livre, Deus seria governado por uma lei. "Em amor
nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo,
segundo" — o quê? Alguma virtude que previu neles? Não. O que, então? — "...
segundo o beneplácito de sua vontade" (Efésios 1:4-5).
4. É infinito. Em Deus tudo é infinito. Sua essência enche os céus e a
terra. Sua sabedoria não sofre nenhuma limitação, porquanto Ele conhece
todas as coisas, do passado, do presente e do futuro. Seu poder é ilimitado, pois
não há nada difícil demais para Ele. Assim, o Seu amor é sem limite. Há nele
uma profundidade que ninguém consegue sondar; há nele uma altitude que
ninguém consegue escalar; há nele uma largura e um comprimento que
desdenhosamente desafiam a medição feita por todo e qualquer padrão
humano. É declarado belamente em Efésios 2:4: "Mas Deus, que é riquíssimo
em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou". A palavra "muito"
aqui faz paralelo com a expressão "... Deus amou... de tal maneira..." (João
3:16), Diz-nos que o amor de Deus é tão transcendental que não pode ser
avaliado.
"Nenhuma língua pode expressar plenamente a infinidade do amor de
Deus, e nenhum intelecto pode compreendê-lo: "... excede todo o
entendimento..." (Efésios 5:19). As idéias mais amplas que nossa mente finita
possa conceber acerca do amor divino, estão infinitamente abaixo da sua
verdadeira natureza. O céu não se acha tão distante da terra como a bondade
de Deus está além das mais elevadas concepções que somos capazes de
formular dela. A bondade divina é um oceano que se avoluma e se torna mais
alto do que todas as montanhas de oposição nos que são objetos dela. E uma
fonte da qual dimana todo o bem necessário aos que a ela estão ligados" (John
Brine, 1743).
5. E imutável. Como em Deus "... não há mudança nem sombra de
variação" (Tiago 1:17), assim o Seu amor não conhece mudança nem
diminuição. O verme Jacó dá-nos enfático exemplo disto: "Amei Jacó", declarou
Jeová, e, a despeito de toda a sua incredulidade e obstinação, Ele nunca deixou
de amá-lo. João 13:1 oferece-nos outra bela ilustração. Precisamente naquele
noite um dos apóstolos diria "... mostra-nos o Pai. .."; outro O negaria soltando
maldições; todos se escandalizariam por causa dEle e O abandonariam.
Todavia, "... como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até
ao fim". O amor divino não se rende às vicissitudes. O amor divino é "... forte
como a morte ... as muitas águas não poderiam apagar este amor..." (Cantares
de Salomão 8:6-7). Nada nos pode separar dele: Romanos 8:35-39.

"Seu amor não se mede e não conhece fim,


nada pode mudá-lo, nem seu curso.
Eternamente o mesmo, sem cessar dimana
do manancial eterno."

6. É santo. O amor de Deus não é regulado por capricho, paixão ou


sentimento, mas por princípio. Exatamente como a Sua graça reina, não às
suas expensas, mas "pela justiça" (Romanos 5:21), assim o Seu amor nunca
entra em conflito com a Sua santidade. Que "Deus é luz" (1 João 1:5) se
menciona antes de dizer-se que "Deus é amor" (1 João 4:8). O amor de Deus
não é mera fraqueza boazinha, nem brandura efeminada. As Escrituras
declaram: "... o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por
filho" (Hebreus 12:6). Deus não tolerará o pecado, mesmo em Seu povo. O Seu
amor é puro, e não se mistura com nenhum sentimentalismo piegas.
7. É pleno de graça. O amor e o favor de Deus são inseparáveis. Esta
verdade é exposta claramente em Romanos 8:32-39. O que é esse amor, do
qual,nada nos pode -separar, percebe-se facilmente pelo propósito e alcance do
contexto imediato: é aquela boa vontade ou beneplácito e graça de Deus que O
determinou a dar Seu Filho pelos pecadores. Esse amor foi o poder impulsivo
da encarnação de Cristo: "... Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito..." (João 3:16). Cristo morreu, não para fazer com que Deus nos
amasse, mas porque Ele amava o Seu povo. O Calvário é a suprema
demonstração do amor divino. Leitor cristão, sempre que você for tentado a
duvidar do amor de Deus, volte ao Calvário.
Há aqui, pois, farta causa para confiança e paciência sob a aflição debaixo
da mão de Deus. Cristo era amado pelo Pai, porém Ele não foi eximido de
pobreza, humilhação e perseguição. Cristo teve fome e sede. Assim, quando
Cristo permitiu que os homens cuspissem nEle e O golpeassem, isso não foi
incompatível com o amor de Deus por Ele. Portanto, que nenhum cristão ques-
tione o amor de Deus quando passar por aflições e provações. Deus não
enriqueceu a Cristo na terra com prosperidade temporal, pois Ele não tinha "...
onde reclinar a cabeça" (Mateus 8:20). Mas Deus Lhe deu o Espírito sem
medida {João 3:34). Aprenda o cristão, pois, que as bênçãos espirituais são os
principais dons do amor divino. Que bênção saber que, ao passo que o mundo
nos odeia, Deus nos ama!
16

A IRA DE DEUS
É triste ver tantos cristãos professos que parecem considerar a ira de
Deus como uma coisa pela qual eles precisam pedir desculpas, ou, pelo menos,
parece que gostariam que não existisse tal coisa. Conquanto alguns não fossem
longe o bastante para admitir abertamente que a consideram uma mancha no
caráter divino, contudo, estão longe de vê-la com bons olhos, não gostam de
pensar nisso e dificilmente a ouvem mencionada sem que surja em seus
corações um ressentimento contra essa idéia. Mesmo dentre os mais sóbrios em
sua maneira de julgar, não poucos parecem imaginar que há na questão da ira
de Deus uma severidade terrificante demais para propiciar um tema para
consideração proveitosa. Outros dão abrigo ao erro de pensar que a ira de Deus
não é coerente com a Sua bondade, e assim procuram bani-la dos seus
pensamentos.
Sim, muitos há que fogem de visualizar a ira de Deus, como se fossem
intimados a ver alguma nódoa no caráter divino, ou algum defeito no governo
divino. Mas, o que dizem as Escrituras? Quando a procuramos nelas, vemos
que Deus não fez tentativa alguma para ocultar a realidade da Sua ira. Ele não
se envergonha de dar a conhecer que a vingança e a cólera Lhe pertencem. Eis
o Seu desafio: "Vede agora que eu, eu o sou, e mais nenhum Deus comigo; eu
mato, e eu faço viver; eu firo, e eu saro; e ninguém há que escape da minha
mão. Porque levantarei a minha mão aos céus, e direi: Eu vivo para sempre. Se
eu afiar a minha espada reluzente, e travar do juízo a minha mão, farei tornar a
vingança sobre os meus adversários, e recompensarei aos meus aborrecedores"
(Deuteronômio 32:39-41). Um estudo na concordância mostrará que há mais
referências nas Escrituras à indignação, à cólera e à ira de Deus, do que ao Seu
amor e ternura. Porque Deus é santo, Ele odeia todo pecado; e porque Ele odeia
todo pecado, a Sua ira inflama-se contra o pecador Salmo 7:11.
Pois bem, a ira de Deus é uma perfeição divina tanto como a Sua
fidelidade, o Seu poder ou a Sua misericórdia. Só pode ser assim, pois não há
mácula alguma, nem o mais ligeiro defeito no caráter de Deus, porém, haveria,
se nEle não houvesse "ira"! A indiferença para com o pecado é uma nódoa
moral, e aquele que não o odeia é um leproso moral. Como poderia Aquele que é
a soma de todas as excelências olhar com igual satisfação para a virtude e o
vício, para a sabedoria e a estultícia? Como poderia Aquele que é infinitamente
santo ficar indiferente ao pecado e negar-Se a manifestar a Sua "severidade"
(Romanos 11:22) para com ele? Como poderia Aquele que só tem prazer no que
é puro e nobre, deixar de detestar e de odiar o que é impuro e vil? A própria
natureza de Deus faz do inferno uma necessidade tão real, um requisito tão
imperativo e eterno como o céu o é. Não somente não há imperfeição nenhuma
em Deus, mas também não há nEle perfeição que seja menos perfeita do que
outra.
A ira de Deus é a Sua eterna ojeriza por toda injustiça. É o desprazer e a
indignação da divina eqüidade contra o mal. É a santidade de Deus posta em
ação contra o pecado. É a causa motora daquela sentença justa que Ele lavra
sobre os malfeitores. Deus está irado contra o pecado porque este é rebelião
contra a Sua autoridade, um ultraje à Sua soberania inviolável. Os insurgentes
contra o governo de Deus saberão um dia que Deus é o Senhor. Serão levados a
sentir quão grandiosa é aquela Majestade que eles desprezaram, e como é
terrível aquela ira de que foram ameaçados e a que não deram a mínima
importância. Não que a ira de Deus seja uma retaliação maldosa e mal
intencionada, infligindo agravo só pelo prazer de infligi-lo, ou devolver a ofensa
recebida. Não; embora seja verdade que Deus vindicará o domínio como
Governador do universo, Ele não será revanchista.
Evidencia-se que a ira divina é uma das perfeições de Deus, não somente
pelas considerações acima apresentadas, mas também fica estabelecido
claramente pelas declarações expressas da Sua Palavra. "Porque do céu se
manifesta a ira de Deus..." (Romanos 1:18). "Manifestou-se quando foi
pronunciada a primeira sentença de morte, quando a terra foi amaldiçoada e o
homem foi expulso do paraíso terrestre; e depois, mediante castigos exemplares
como o dilúvio e a destruição das cidades da planície com fogo do céu, mas,
especialmente pelo reinado da morte no mundo todo. Foi proclamada na
maldição da lei para cada transgressão, e foi imposta na instituição do
sacrifício. No capítulo 8 de Romanos, o apóstolo Paulo chama a atenção dos
crentes para o fato de que a criação inteira ficou sujeita à vaidade, e geme e tem
dores de parto. A mesma criação que declara que existe um Deus, e publica a
Sua glória, também proclama que Ele é o inimigo do pecado e o vingador dos
crimes dos homens. Acima de tudo, porém, do céu se manifestou a ira de Deus
quando o Filho de Deus veio a este mundo para revelar o caráter divino, e
quando essa ira foi demonstrada nos Seus sofrimentos é morte, de maneira
mais terrível do que por todas as provas que Deus antes dera da Sua aversão
pelo pecado. Além disso, o castigo futuro e eterno dos ímpios agora é declarado
em termos mais solenes e explícitos do que antes. Sob a nova dispensação há
duas revelações dadas do céu, uma da ira, a outra da graça" (Robert Haldane).
Mais: que a ira de Deus é uma perfeição divina está demonstrado
claramente pelo que lemos no Salmo 95:11: "Por isso jurei na minha ira que
não entrarão no meu repouso". Duas são as ocasiões em que Deus "jura":
quando faz promessas (Gênesis 22:16), e quando faz ameaças (Deuteronômio
1:34). Na primeira, jura com misericórdia dos Seus filhos; na segunda, jura
para aterrorizar os ímpios. Um juramento é feito para confirmação: Hebreus
6:16. Em Gênesis 22:16 disse Deus: "Por mim mesmo, jurei", No Salmo 89:35
Ele declara; "Uma vez jurei por minha santidade". Enquanto que no Salmo
95:11 Ele afirma: "Jurei na minha ira". Assim é que o grande Jeová
pessoalmente recorre à Sua "ira" como a uma perfeição igual à Sua "santidade":
tanto jura por uma como pela outra! Ainda: como em Cristo "... habita
corporalmente toda a plenitude da divindade" (Colossenses 2:9), e como todas
as perfeições divinas são notavelmente manifestadas por Ele (João 1:18), por
isso lemos sobre "... a ira do Cordeiro" (Apocalipse 6:16).
A ira de Deus é uma perfeição do caráter divino sobre a qual precisamos
meditar com freqüência. Primeiro, para que os nossos corações fiquem
devidamente impressionados com a ojeriza de Deus pelo pecado, Estamos
sempre inclinados a uma consideração superficial do pecado, a encobrir a sua
fealdade, a desculpá-lo com excusas várias, Mas, quanto mais estudarmos e
ponderarmos a aversão de Deus pelo pecado e a maneira terrível como se vinga
dele, mais probabilidade teremos de compreender quão horrível é o pecado.
Segundo, para produzir em nossas almas um verdadeiro temor de Deus: "...
retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus agradavelmente com reverência
e piedade ("santo temor"); porque o nosso Deus é um fogo consumidor"
(Hebreus 12:28-29). Não poderemos servi-1O "agradavelmente" sem a devida
"reverência" ante a Sua tremenda Majestade e sem o devido "santo temor" de
Sua justa ira, e promoveremos melhor estas coisas trazendo freqüentemente à
memória o fato de que "o nosso Deus é um fogo consumidor". Terceiro, para
induzir nossas almas a fervoroso louvor a Deus por ter-nos livrado "... da ira
futura" (1 Tessalonicenses 1:10).
A nossa prontidão ou a nossa relutância em meditar na ira de Deus é um
teste seguro de até que ponto os nossos corações reagem à Sua influência. Se
não nos regozijamos verdadeiramente em Deus, pelo que Ele é em Si mesmo, e
por todas as perfeições que nEle há eternamente, como poderá permanecer em
nós o amor de Deus? Cada um de nós precisa vigiar o mais possível em oração
contra o perigo de criar em nossa mente uma imagem de Deus segundo o
modelo das nossas inclinações pecaminosas. Desde há muito o Senhor
lamentou: "...pensavas que (eu) era como tu" (Salmo 50:21). Se não nos
alegramos "...em memória da sua santidade" (Salmo 97:12), se não nos
alegramos por saber que num dia que logo vem, Deus fará uma demonstração
sumamente gloriosa da Sua ira, tomando vingança em todos os que agora se
opõem a Ele, é prova positiva de que os nossos corações não estão sujeitos a
Ele, que ainda permanecemos em nossos pecados, rumo às chamas eternas.
"Jubilai, ó nações (gentios), com o seu povo, porque vingará o sangue dos
seus servos, e sobre os seus adversários fará tornar a vingança..."
(Deuteronômio 32:43). E ainda lemos: "E, depois destas coisas, ouvi no céu
como "que uma grande voz de uma grande multidão, que dizia: Aleluia;
Salvação, e glória, e honra, e poder pertencem ao Senhor nosso Deus; Porque
verdadeiros e justos são os seus juízos, pois julgou a grande prostituta, que
havia corrompido a terra com a sua prostituição, e das mãos dela vingou o
sangue dos seus servos. E outra vez disseram: Aleluia..." (Apocalipse 19:1 -3).
Grande será o regozijo dos santos naquele dia em que o Senhor irá vindicar a
Sua majestade, exercer o Seu domínio formidável, magnificar a Sua justiça, e
derribar os orgulhosos rebeldes que ousaram desafiá-lO.
"Se tu, Senhor, observares (imputares) as iniqüidades, Senhor, quem
subsistirá?" (Salmo 130:3). Cada um de nós pode muito bem fazer esta
pergunta, pois está escrito que "...os ímpios não subsistirão no juízo..." (Salmo
1:5). Quão dolorosamente a alma de Cristo padeceu ao pensar na ação de Deus
observando as iniqüidades do Seu povo quando estas pesaram sobre
Ele! Ele "... começou a ter pavor, e a angustiar-se" (Marcos 14:33). Sua
agonia terrível, Seu suor de sangue, Seu grande clamor e súplicas (Hebreus
5:7), Suas reiteradas orações, "Se é possível, passe de mim este cálice", Seu
último e tremendo brado, "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" —
tudo manifesta que pavorosas apreensões Ele teve quanto ao que era para Deus
"observar iniqüidades1'. Bem que nós, pobres pecadores, podemos clamar:
Senhor, quem subsistirá, se o próprio Filho de Deus tremeu tanto sob o peso
da Tua ira? Se tu, meu leitor, ainda não correste em busca do refúgio em
Cristo, o único Salvador, "... que farás na enchente do Jordão?" (Jeremias 12:5).
"Quando considero como a bondade de Deus sofre abusos da maior parte da
humanidade, não posso senão apoiar quem disse; "O maior milagre do mundo é
a paciência e generosidade de Deus para com o mundo ingrato. Se um príncipe
tem inimigos metidos numa de suas cidades, não lhes envia provisões, mas
mantém sitiado o local e faz o que pode para vencê-los pela fome. Mas o grande
Deus, que poderia levar todos os Seus inimigos à destruição num piscar de
olhos, tolera-os e se empenha diariamente para sustentá-los. Aquele que faz o
bem aos maus e ingratos, pode muito bem ordenar-nos que bendigamos os que
nos maldizem. Não penseis, porém, que escapareis assim, pecadores; o moinho
de Deus mói devagar, mas mói fino; quanto mais admirável é agora a Sua
paciência e generosidade, mais terrível e insuportável será a fúria resultante
dos abusos feitos à Sua bondade. Nada é mais brando do que o mar; contudo,
quando se agita e forma temporal, nada se enfurece mais. Nada é tão suave
como a paciência e bondade de Deus, e nada tão terrível como a Sua ira quando
se inflama" (William Gurnall, 1660). "Fuja", pois, meu leitor, fuja para Cristo;
fuja "...da ira futura" (Mateus 3:7), antes que seja tarde demais. Nós lhe
rogamos com todo o empenho, não pense que esta mensagem tem em vista
outra pessoa. É para você1. Não fique satisfeito em pensar que você já fugiu
para Cristo. Obtenha certeza disso! Rogue ao Senhor que sonde o teu coração e
te revele o que tu és.

Uma palavra aos pregadores. Irmãos, em nosso ministério temos pregado


sobre este solene assunto tanto como devíamos? Os profetas do Velho
Testamento muitas vezes diziam aos seus ouvintes que as suas vidas ímpias
provocavam o Santo de Israel, e que estavam entesourando para si mesmos irá
para o dia da ira. E as condições do mundo hoje não são melhores do que eram
então! Nada se presta mais para despertar os indiferentes e fazer com que os
crentes carnais sondem os seus corações, do que alongar-nos sobre o fato de
que Deus "...se ira todos os dias" com os ímpios (Salmo 7:11). O precursor de
Cristo exortava os seus ouvintes a fugirem "...da ira futura" (Mateus 3:7). O Sal-
vador ordenava a quantos O ouviam: "Temei aquele que, depois de matar, tem
poder para lançar no inferno, sim, vos digo, a esse temei" (Lucas 12:5). O
apóstolo Paulo dizia: "... sabendo o temor que se deve ao Senhor, persuadimos
os homens..." (2 Coríntios 5: li). A fidelidade exige que falemos tão claramente
do inferno como do céu.
17

CONTEMPLANDO A DEUS
Nos capítulos anteriores passamos em revista algumas das maravilhosas
e belas perfeições do caráter divino. Dessa débil e defeituosa contemplação dos
Seus atributos, deve ter ficado evidente para nós que Deus é, primeiramente,
um Ser incompreensível, e, encantados e absortos ante a Sua grandeza infinita,
vemo-nos constrangidos a adotar as palavras de Sofar: "Porventura alcançarás
os caminhos de Deus ou chegarás à perfeição do Todo-poderoso? Como as
alturas dos céus é a sua sabedoria; que poderás tu fazer? Mais profunda é ela
do que o inferno; que poderás tu saber? Mais comprida é a sua medida do que a
terra, e mais larga do que o mar" (Jó 11:7-9). Quando volvemos os nossos
pensamentos para a eternidade de Deus,^ Sua imaterialidade, Sua
onipresença, Sua onipotência, vemos que todas elas transcendem nossas
mentes.
Mas a incompreensibilidade da natureza divina não é razão para
desistirmos da pesquisa reverente e da luta em oração para apreender o que Ele
de Si mesmo revelou por Sua graça em Sua Palavra. Dado que somos incapazes
de adquirir conhecimento perfeito, seria insensato dizer que, portanto, não
faremos nenhum esforço para conseguir qualquer proporção dEle. Com acerto
se tem dito que "nada alargará tanto o intelecto, nada engrandecerá tanto a
alma do homem, como uma investigação devota, zelosa e continuada do grande
tema da Deidade. O mais excelente estudo para a expansão da alma é a ciência
de Cristo, e Este crucificado, e o conhecimento do Ser divino na Trindade
gloriosa" (C. H. Spurgeon). Para citar um pouco mais o príncipe dos pregadores:
"O estudo próprio do cristão é o da Deidade. A mais alta ciência, a mais
elevada especulação, a mais vigorosa filosofia, com o poder de empolgar a
atenção de um filho de Deus, é o nome, a natureza, a pessoa, os feitos e a
existência do grande Deus, a Quem ele chama seu Pai. Na contemplação da
Deidade há algo capaz de comunicar sumo progresso à mente. É um assunto
tão vasto que todos os nossos pensamentos se perdem em sua imensidade; tão
profundo que o nosso orgulho se submerge em sua infinidade. Outros assuntos
podemos compreender e tentar assimilar; neles sentimos uma espécie de
satisfação própria, e seguimos nosso caminho pensando: "Vejam como sou
sábio!11 Mas quando chegamos a este assunto magistral, vendo que a nossa
sonda não consegue sondar a sua profundidade e que o nosso olho de águia
não consegue ver a sua altura, vamos embora pensando: "Eu sou de ontem
apenas, e nada sei" (Sermão sobre Malaquias 3:6).
Sim, a incompreensibilidade da natureza divina deveria ensinar-nos
humildade, cautela e reverência. Após todas as nossas pesquisas e meditações,
temos que dizer com Jó: "Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos; e
quão pouco é o que temos ouvido dele!..." (Jó 26:14). Quando Moisés implorou
ao Senhor por uma visão da Sua glória, Ele respondeu-lhe: ". . . apregoarei o
nome do Senhor diante de ti..." (Êxodo 33:19), e, como já se disse, "o nome é a
coleção dos Seus atributos". Acertadamente o puritano John Howe declarou:
"Portanto, a noção que podemos formar da Sua glória é apenas como a que
podemos ter de uma obra volumosa comparada com uma breve sinopse, ou de
uma espaçosa região comparada com uma pequena vista panorâmica. Ele nos
dá aqui um fiel relato de Si mesmo, mas não completo; o bastante para garantir
— graças à orientação que por ele nos vem — que a nossa compreensão fique
livre de erro, mas não de ignorância. Podemos aplicar as nossas mentes à
contemplação das diversas perfeições pelas quais o Deus bendito nos revela o
Seu ser, e em nossos pensamentos podemos atribuí-las todas a Ele, apesar de
só termos ainda fraca e defeituosa concepção de cada uma delas. Todavia, na
medida em que a nossa compreensão corresponda à revelação que Ele nos dá
das Suas várias excelências, temos uma apropriada visão da Sua glória".
Como é realmente grande a diferença entre o conhecimento de Deus que
os Seus santos têm nesta vida e aquele que eles terão no céu! Contudo, como o
primeiro não deve ser menosprezado por ser imperfeito, o último não deve ser
engrandecido acima da realidade. Certo, as Escrituras declaram que então
veremos "face a face" e conheceremos como somos conhecidos (1 Coríntios
13:12), mas inferir disto que conheceremos então a Deus tão completamente
como Ele nos conhece é deixar-nos iludir pelos simples sons das palavras e não
atentar para a restrição delas, restrição que o assunto exige necessariamente.
Há uma imensa diferença entre serem glorificados os santos e serem eles
divinizados. No seu estado glorificado, os cristãos continuarão sendo criaturas
finitas, e, portanto, nunca serão capazes de compreender plenamente o Deus
infinito.
"Os santos no céu verão a Deus com os olhos da mente, pois Ele sempre
será invisível aos olhos do corpo; e O verão mais claramente do que poderiam
vendo-O pela razão e pela fé, e mais extensamente que tudo que as Suas obras
e dispensações dEle revelaram até então; mas as suas mentes não serão
aumentadas a ponto de poderem contemplar de uma vez, ou minuciosamente, a
excelência completa da Sua natureza. Para compreenderem a perfeição infinita,
eles próprios teriam que se tornar infinitos.
Mesmo no céu, o seu conhecimento será parcial, mas ao mesmo tempo a
sua felicidade será completa, porque o seu conhecimento será perfeito neste
sentido: será adequado à capacidade do sujeito, sem todavia exaurir a plenitude
do objeto. Cremos que será progressivo e que, à medida que se lhes amplie a
visão, sua bem-aventurança aumentará; nunca, porém, chegará a um
limite além do qual não haja mais nada para ser descoberto; e depois de se
terem passado eras e mais eras, Ele continuará sendo o Deus incompreensível"
(John Dick, 1840).
Segundo, um exame das perfeições de Deus mostrará que Ele é um Ser
absolutamente suficiente. É-o em Si e para Si mesmo. Como o primeiro dos
seres, Ele não precisa receber nada de outrem, nem pode ser limitado pelo
poder de ninguém. Sendo infinito, possui todas as perfeições possíveis. Quando
o Deus triúno existia totalmente só, Ele era tudo para Si próprio. Seu
entendimento, Seu amor, Suas energias encontravam nEle mesmo um objeto
adequado. Se tivesse necessidade de alguma coisa externa, não seria
independente e, portanto, não seria Deus. Ele criou todas as coisas, e isso "para
ele" (Colossenses 1:16); todavia, não para preencher alguma lacuna, mas para
poder comunicar vida e felicidade a anjos e homens e permitir-lhes a visão da
Sua glória. Ê certo que Ele exige a lealdade e os serviços de Suas criaturas
dotadas de inteligência, mas não extrai benefício algum das suas funções; toda
a vantagem redunda em favor delas mesmas: Jó 22:2-3. Ele faz uso de meios e
instrumentos para realizar os Seus fins; não, porém, por deficiência de poder,
mas muitas vezes para demonstrar mais extraordinariamente o Seu poder atra-
vés da fragilidade dos instrumentos.
A absoluta suficiência de Deus faz dEle o objeto supremo, que sempre se
há de buscar. A verdadeira felicidade consiste unicamente em fruir a Deus. Seu
favor é vida, e Sua amorável bondade é mais que a vida. "A minha porção é o
Senhor, diz a minha alma; portanto esperarei nele" (Lamentações 3:24). As
nossas percepções do Seu amor, da Sua graça, da Sua glória, são os principais
objetos do desejo dos santos e os mananciais da sua mais elevada satisfação.
"Muitos dizem: quem nos mostrará o bem? Senhor, exalta sobre nós a luz do
teu rosto. Puseste alegria. no meu coração, mais do que no tempo em que se
multiplicaram o seu trigo e o seu vinho" (Salmo 4:6-7). Sim, o cristão, quando
em são juízo, pode dizer: "Porquanto, ainda que a figueira não floresça, nem
haja fruto na vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam
mantimento; as ovelhas da malhada sejam arrebatadas, e nos currais não haja
vacas: todavia eu me alegrarei no Senhor; exultarei no Deus da minha salvação"
(Habacuque 3:17-18).
Terceiro, ao se fazer um exame das perfeições de Deus, vê-se que Ele é o
Soberano Supremo do universo. Tem-se dito com acerto que, "Nenhum domínio
é tão absoluto como o que se funda na criação. Aquele que bem podia não ter
feito coisa alguma, tinha o direito de fazer todas as coisas de acordo com o Seu
beneplácito. No exercício do Seu poder indomável, Ele fez algumas partes da
criação simples matéria inanimada, de textura mais grosseira ou mais refinada,
e distinguida por qualidades diferentes, mas sempre matéria inerte e
inconsciente. Ele deu organização a outras partes, e as fez suscetíveis de
crescimento e expansão, mas ainda destituídas de vida no sentido próprio do
termo. A outras não só deu organização, mas também vida consciente, os
órgãos dos sentidos, e energia para auto-motivação. A estas Ele acrescentou, no
homem, o dom da razão e um espírito imortal, pelos quais o homem se junta a
uma ordem mais elevada de seres localizados nas regiões superiores. Sobre o
mundo que criou, Ele empunha o cetro da onipotência. "... eu bendisse o
Altíssimo, e louvei, e glorifiquei ao que vive para sempre, cujo domínio é um
domínio sempiterno, e cujo reino é de geração em geração. E todos os
moradores da terra são reputados em nada; e segundo a sua vontade ele opera
com o exército do céu e os moradores da terra: não há quem possa estorvar a
sua mão e lhe diga: Que fazes? — Daniel 4:34-35" (John Dick).
Uma criatura, como tal considerada, não tem direitos. Nada pode exigir do
seu Criador; e, seja qual for a maneira como é tratada, não lhe compete
queixar-se. Contudo, quando pensamos no absoluto domínio de Deus sobre
todas as coisas e sobre todos os seres, não devemos perder de vista as Suas
perfeições morais. Deus é justo e bom, e sempre faz o que é reto. Não obstante,
Ele exerce o Seu domínio de acordo com o beneplácito da Sua vontade soberana
e justa. Atribui a cada criatura o lugar que aos Seus olhos parece bom. Ordena
as diferentes circunstâncias relacionadas com cada criatura de acordo com os
Seus conselhos.
Modela cada vaso segundo a Sua determinação independente de toda e
qualquer influência. Tem misericórdia de quem Ele quer ter misericórdia, e
endurece a quem Lhe apraz. Onde quer que estejamos, Seus olhos estão sobre
nós. Quem quer que sejamos, nossa vida e tudo mais está à disposição dEle.
Para o cristão, Ele é um Pai amoroso e gentil; para o pecador rebelde, Ele
continuará sendo fogo consumidor. "Ora ao Rei dos séculos, imortal, invisível,
ao único Deus seja honra e glória para todo o sempre. Amém" (1 Timóteo 1:17).
OS SETE
BRADOS DO
SALVADOR
SOBRE A CRUZ
ARTHUR W PINK

MONERGISMO.COM

"Ao Senhor Pertence a Salvação" (Jonas 2:9)

www.monergismo.comTraduzido do original em inglês

The Seven Sayings of the Saviour on the Cross (1919)

Tradução: Vanderson Moura da Silva

Biografia de Arthur W. Pink: Vanderson Moura da Silva Edição, Revisão e Projeto Gráfico:
Felipe Sabino de Araújo Neto Primeira edição em português: 2006

As citações escriturísticas utilizadas neste livro são da Edição Revista e Corrigida de Almeida,
da Imprensa Bíblica do Brasil, exceto quando uma outra versão é indicada.
SUMÁRIO

NOTA DE AGRADECIMENTO ... .4


INTRODUÇÃO... .5
1. A PALAVRA DE PERDÃO ... .8
2. A PALAVRA DE SALVAÇÃO ... ..18
3. A PALAVRA DE AFEIÇÃO... .32
4. A PALAVRA DE ANGÚSTIA ... .42
5. A PALAVRA DE SOFRIMENTO ... ..56
7. A PALAVRA DE CONTENTAMENTO ... ...78
UMA BREVE BIOGRAFIA ... ...87

NOTA DE AGRADECIMENTO

A presente obra, disponível agora no portal Monergismo.com, é o terceiro fruto do "Projeto


de Tradução", lançado no ano passado. Diferentemente dos outros, traduzidos voluntariamente,
esse livro foi traduzido com a generosa doação de um pastor brasileiro que mora em Portugal.
Esperamos que a sua iniciativa em ajudar na divulgação da Palavra de Deus incentive a muitos
outros. Caso queira fazer uma doação ou colaborar como um tradutor voluntário, por favor,
entre em contato pelo seguinte e-mail: traducao@monergismo.com.

Aproveitamos esta oportunidade para reiterar o convite a todos os irmãos que se sentem
especialmente capacitados a trabalhar com literatura cristã sadia a fim de que se unam a este
projeto para a disponibilização gratuita em nossa língua, tão carente da sã teologia e da mais
edificante doutrina, de outras obras de extremo valor.

Soli Deo gloria!


Felipe Sabino de Araújo Neto Cuiabá-MT, 21 de maio de 2006
INTRODUÇÃO

A MORTE DO SENHOR JESUS CRISTO é um assunto de interesse inexaurível para todos os


que estudam em oração a escritura da verdade. Tal é assim não somente porque tudo do crente
— tanto no tempo como na eternidade — dela dependa, mas também devido à sua
singularidade transcendente. Quatro palavras parecem resumir as características salientes desse
mistério dos mistérios: a morte de Cristo foi natural, não-natural, preter-natural e sobrenatural.
Uns poucos comentários parecem ser necessários à guisa de definição e amplificação.

Primeiro: a morte de Cristo foi natural. Com isso queremos dizer que ela foi uma morte real.
É porque estamos tão familiarizados com o fato dela que a declaração acima parece simples,
corriqueira; todavia, o que abordamos aqui é um dos principais elementos de admiração para a
mente espiritual. Aquele que foi "tomado, e pelas mãos de injustos" crucificado e assassinado
não era outro senão o "Companheiro" de Jeová. O sangue que foi derramado sobre o madeiro
maldito era divino — "A igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue" (Atos 20:28).
Como diz o apóstolo: "Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo" (2 Coríntios
5:19).

Mas como o "Companheiro" de Jeová poderia sofrer? Como o eterno poderia morrer? Ah,
aquele que no princípio era o Verbo, que estava com Deus, e que era Deus, "se fez carne".
Aquele que era em forma de Deus tomou sobre si a forma de um servo e foi feito semelhante
aos homens; "e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à
morte e morte de cruz" (Fp 2.8). Dessa forma, tendo se encarnado, o Senhor da glória foi capaz
de sofrer a morte, e assim foi que ele "provou" a própria morte. Em suas palavras, "Pai, nas
tuas mãos entrego o meu espírito", vemos quão natural foi sua morte, e a realidade dela se
torna ainda mais aparente quando ele foi posto na sepultura, onde permaneceu por três dias.

Segundo: a morte de Cristo foi não-natural. Por isso queremos dizer que ela foi anormal.
Acima dissemos que, ao se encarnar, o Filho de Deus tornou-se capaz de sofrer a morte,
todavia, não deve ser inferido daí que a morte tinha, portanto, um direito a reclamar sobre ele;
longe disso, o contrário mesmo era a verdade. A morte é o salário do pecado , e ele não tinha
nenhum. Antes de seu nascimento foi dito a Maria: "[que] o ente santo que há de nascer será
chamado Filho de Deus" (Lucas 1:35, ARA). Não somente o Senhor Jesus entrou neste mundo
sem contrair a contaminação da natureza humana caída, mas ele "não cometeu pecado"
(1Pedro 2:22), "não [tinha] pecado" (1João 3:5) e "não conheceu pecado" (2Coríntios 5:21).
Em sua pessoa e em sua conduta ele foi o Santo de Deus "imaculado e incontaminado" (1Pedro
1:19). Como tal, a morte não tinha nenhum direito a reclamar sobre ele. Até mesmo Pilatos
teve que reconhecer que não pôde encontrar "nenhuma culpa" nele. Por conseguinte, dizemos
que o Santo de Deus morrer foi não-natural.

Terceiro: a morte de Cristo foi preternatural. Por meio disso queremos dizer que ela foi
marcada e determinada para ele de antemão. Ele era o Cordeiro morto antes da
fundação do mundo (Apocalipse 13.8). Antes que Adão fosse criado, a Queda foi
antecipada. Antes de o pecado entrar no mundo, a salvação dele havia sido planejada
por Deus. Nos eternos conselhos da Deidade, foi ordenado de antemão que haveria um
Salvador para os pecadores, um Salvador que sofreria, o justo pelos injustos , um
Salvador que morreria para que pudéssemos viver. E "porque não havia nenhum outro
suficientemente bom para pagar o preço do pecado", o Unigênito do Pai se ofereceu
como o resgate.

O caráter preternatural da morte de Cristo leva o bom termo de o "sustentáculo da


Cruz". Foi em vista da aproximação dessa morte que Deus "justamente ignorou os
pecados anteriormente cometidos" (Rm 3.25). Não tivesse sido Cristo, no conceito de
Deus, o Cordeiro morto desde antes da fundação do mundo, toda pessoa pecadora nos
tempos do Antigo Testamento teria sido lançada no abismo no momento em que ela
pecasse!

Quarto: a morte de Cristo foi sobrenatural. Por isso queremos dizer que ela foi diferente de
qualquer outra morte. Em todas as coisas ele tem a preeminência. Seu nascimento foi diferente
de todos os outros nascimentos. Sua vida foi diferente de todas as outras vidas. E sua morte foi
diferente de todas as outras mortes. Isso foi claramente anunciado em sua própria declaração
sobre o assunto: "Por isso, o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la.
Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar e poder para
tornar a tomá-la. Esse mandamento recebi de meu Pai" (João 10:17, 18). Um estudo cuidadoso
das narrativas evangélicas que descrevem sua morte fornece uma prova sétupla e a verificação
de sua asseveração.

(1) Que nosso Senhor "deu a sua vida", que ele não estava impotente nas mãos de seus
inimigos, revela-se claramente em João 18, onde temos o registro de sua prisão. Um bando de
oficiais da parte dos principais sacerdotes e dos fariseus, guiados por Judas, o procuraram no
Getsêmani. Adiantando-se para encontrá-los, o Senhor Jesus pergunta: "A quem buscais?". A
resposta foi: "Jesus de Nazaré"; e então nosso Senhor expressou o inefável título de deidade,
aquele pelo qual Jeová se revelou nos tempos antigos a Moisés na sarça ardente: "Eu Sou". O
efeito foi impressionante. Esses oficiais ficaram apavorados. Eles estavam na presença da
deidade encarnada, e foram sobrepujados por uma breve consciência da majestade divina. Quão
claro é então que, se assim o tivesse agradado, nosso bendito Salvador poderia ter se afastado
calmamente, deixando aqueles que vieram lhe prender prostrados no chão! Ao invés disso, ele
se entregou nas mãos deles e foi levado (não compelido) como um cordeiro ao matadouro.

(2) Voltemo-nos agora para Mateus 27:46 — o versículo mais solene em toda a Bíblia — "E,
perto da hora nona, exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni, isto é, Deus
meu, Deus meu, por que me desamparaste?". As palavras que pedimos ao leitor que observe
cuidadosamente estão colocadas aqui em itálico. Por que é que o Espírito Santo nos conta que o
Salvador pronunciou esse terrível clamor "em alta voz"? Com muita certeza que há uma razão
para tal. Isso se torna ainda mais aparente quando notamos que ele as repetiu quatro versículos
abaixo no mesmo capítulo

— "E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito" (Mateus 27.50) . O que
então essas palavras indicam? Não corroboram elas o que foi dito nos parágrafos acima? Não
nos dizem elas que o Salvador não estava exausto pelo que ele tinha passado? Não nos dão elas
a entender que suas forças não o tinham deixado? Que ele ainda era senhor de si mesmo, que
ao invés de ser conquistado pela morte, ele estava apenas se entregando para ela? Elas não nos
mostram que Deus tinha posto "ajuda sobre um poderoso" (Salmos 89.19, Tradução do Novo
Mundo)?

(3) Podemos chamar a atenção para a sua próxima expressão sobre a Cruz — "Tenho
sede". Essa palavra, à luz do seu contexto, fornece uma evidência maravilhosa do
autocontrole completo do nosso Senhor. O versículo inteiro diz o seguinte: "Depois,
sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se
cumprisse, disse: Tenho sede" (João 19.28). Desde os tempos antigos tinha sido predito
que eles deveriam dar vinagre misturado com fel para o Salvador beber. E para que essa
profecia pudesse ser cumprida, ele exclamou: "Tenho sede". Como isso evidencia o fato
de que ele estava em plena posse de suas faculdades mentais, que sua mente estava
desanuviada, que seus terríveis sofrimentos não a tinham transtornado nem perturbado!
Enquanto permanecia pendurado na cruz, no final da hora sexta, sua mente reviveu o
escopo inteiro da palavra profética, e verificou cada uma daquelas predições que faziam
alusão à sua paixão. Excetuando as profecias que seriam cumpridas após sua morte, só
restava uma ainda não cumprida, a saber: "Deram-me fel por mantimento, e na minha
sede me deram a beber vinagre" (Salmo 69:21), e isso não foi negligenciado pelo
bendito sofredor. "Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a
Escritura (não ‘Escrituras’, sendo a referência ao Salmo 69.21) se cumprisse, disse:
Tenho sede". Novamente, dizemos, que prova é fornecida aqui de que ele entregou sua
vida de si mesmo!

(4) A próxima verificação que o Espírito Santo fornece das palavras do nosso Senhor
em João 10.18 é encontrada em João 19.30: "E, quando Jesus tomou o vinagre, disse:
Está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito". O que se pretende que
aprendamos dessas palavras? O que é que se quer dizer aqui através desse ato do
Salvador? Seguramente, a resposta não está longe. A implicação é clara. Antes disso a
cabeça do nosso Senhor tinha estado erigida. Não era um sofredor impotente que pendia
ali desmaiado. Tivesse esse sido o caso, sua cabeça teria se recostado sobre o peito, e
seria impossível para ele "arqueá-la". E observe atentamente o verbo usado aqui: não foi
sua cabeça que "caiu", mas ele, conscientemente, calmamente, reverentemente, inclinou
sua cabeça. Quão sublime foi sua atitude mesmo sobre o madeiro! Que compostura
esplêndida ele evidenciou. Não foi sua majestosa atitude sobre a cruz que, entre outras
coisas, fez com que o centurião clamasse: "Verdadeiramente, este era o Filho de Deus"
(Mateus 27.54)?
1. A PALAVRA DE PERDÃO
"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem"
Lucas 23:34

O HOMEM HAVIA FEITO O SEU PIOR. Aquele por quem o mundo foi feito veio ao mundo, mas
o mundo não o conheceu. O Senhor da glória tinha tabernaculado entre os homens, mas não foi
desejado. Os olhos que o pecado tinha cegado não viram nele nenhuma beleza alguma pela qual
ele pudesse ser desejado . Em seu nascimento não havia nenhum quarto na hospedaria, o que
prenunciava o tratamento que receberia das mãos dos homens. Pouco tempo após seu
nascimento, Herodes procurou matá-lo, e isso sugeria a hostilidade que sua pessoa evocava e
predizia a cruz como o clímax da inimizade do homem. Repetidas vezes seus inimigos tentaram
sua destruição. E agora os vis desejos deles fora-lhes concedidos. O Filho de Deus tinha se
rendido nas mãos deles. Um arremedo de julgamento havia acontecido e, embora seus juízes
não tenham encontrado nenhuma falta nele, todavia, eles se rederam ao clamor insistente
daqueles que o odiavam à medida que eles repetidamente clamavam: "Crucifica-o".

Uma ação bárbara tinha sido feita. Nenhuma morte ordinária satisfaria seus inimigos
implacáveis. Foi decidida uma morte de sofrimento e vergonha intensas. Uma cruz tinha sido
assegurada: o Salvador seria pregado nela. E ali ele foi pendurado — em silêncio. Mas nesse
instante seus lábios pálidos são vistos se mexendo — ele está clamando por piedade? Não. O
que então? Ele está pronunciado maldição sobre aqueles que estão lhe crucificando? Não. Ele
está orando, orando pelos seus inimigos — "E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o
que fazem" (Lucas 23.34).

Essa primeira das sete palavras na cruz do nosso Senhor o apresenta em atitude de oração.
Quão significante! Quão instrutivo! Seu ministério público tinha sido aberto com oração (Lucas
3.21), e aqui vemos ele sendo fechado com oração. Certamente ele nos deixou um exemplo!
Não mais aquelas mãos ministrariam ao doente, pois estavam pregadas no madeiro cruel; não
mais aqueles pés poderiam levá-lo nas tarefas de misericórdia, pois estavam presas no madeiro
cruel; não mais ele poderia se ocupar na instrução dos apóstolos, pois eles tinham-no esquecido
e fugido. Como então ele se ocupou? No ministério da oração! Que lição para nós.

Talvez essas linhas possam ser lidas por alguém que, por razão da idade e doença, não é
mais capaz de trabalhar ativamente na vinha do Senhor. Possivelmente nos dias de outrora
você era um professor, um pregador, um professor de escola dominical, um distribuidor de
panfletos: mas agora você está de cama. Sim, mas você ainda está aqui na terra! Quem sabe
Deus não está deixando você aqui mais uns poucos dias para te engajar no ministério da oração
— e talvez realizar mais através disso que por todo seu ministério passado ativo. Se você for
tentado a depreciar tal ministério, lembre-se do seu Salvador. Ele orou, orou por outros, orou
por pecadores, até mesmo em suas últimas horas.

Ao orar por seus inimigos, Cristo não somente colocou diante de nós um exemplo perfeito de
como devemos tratar aqueles que nos prejudicam e nos odeiam, mas ele também nos ensinou a
nunca considerar algo como além do alcance da oração. Se Cristo orou por seus assassinos,
então certamente temos encorajamento para orar agora pelo maior de todos os pecadores!
Leitor cristão, nunca perca a esperança. Parece para você um desperdício de tempo continuar
orando por aquele homem, por aquela mulher, por aquele seu filho obstinado? O caso deles
parece se tornar mais sem esperança a cada dia? Parece como se eles estivem além do alcance
da misericórdia divina? Talvez alguém por quem você tem orado por tanto tempo foi enlaçado
por uma das seitas satânicas de hoje, ou ele pode ser agora um infiel declarado e desbragado;
em resumo, um inimigo aberto de Cristo. Lembre-se então da cruz. Cristo orou por seus
inimigos. Aprenda então a não olhar para nada como estando além do alcance da oração.

Um outro pensamento concernente a essa oração de Cristo. Devemos mostrar aqui a


eficácia da oração. Essa intercessão de Cristo na cruz por seus inimigos recebeu uma
resposta marcada e definida. A resposta é vista na conversão das três mil amas no dia de
Pentecoste. Eu baseio essa conclusão em Atos 3.17, onde o apostolo Pedro diz: "E
agora, irmãos, eu sei que o fizestes por ignorância, como também os vossos príncipes".
Deve ser notado que Pedro usa a palavra "ignorância", que corresponde ao "não sabem
o que fazem" do nosso Senhor. Eis aí a explicação divina dos 3.000 conversos com um
simples sermão. Não foi a eloqüência de Pedro a causa, mas a oração do Senhor. E,
leitor cristão, o mesmo é verdadeiro para nós. Cristo orou por você e por mim antes de
crermos nele. Volte-se para João 17.20 para conferir. "Eu não rogo somente por estes
(os apóstolos), mas também por aqueles que, pela sua palavra, hão de crer em mim"
(João 17.20). Uma vez mais beneficiemo-nos do exemplo perfeito. Façamos intercessão
também pelos inimigos de Deus e, se orarmos com fé, também será eficaz para a
salvação dos pecadores perdidos.

Para ir diretamente ao nosso texto agora:

"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".
1. Aqui vemos o cumprimento da palavra profética.

Quanto Deus fez conhecido de antemão do que deveria suceder naquele dia dos dias! Que
retrato completo o Espírito Santo fornece da Paixão do nosso Senhor com todas as
circunstâncias que a acompanharam! Entre outras coisas, foi predito que o Salvador deveria
"interceder pelos transgressores" (Isaías 53:12, Tradução do Novo Mundo). Isso não tem
referência com o ministério presente de Cristo à direita de Deus. É verdade que ele "pode
também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder
por eles" (Hebreus 7.25), mas isso fala do que ele está fazendo agora por aqueles que crêem
nele, enquanto Isaías 53.12 faz referência ao seu ato gracioso no momento da sua crucificação.
Observe que sua intercessão pelos transgressores está conectada com "e foi contado com os
transgressores; mas ele levou sobre si o pecado de muitos e fez intercessão pelos
transgressores".

Que Cristo deveria fazer intercessão pelos seus inimigos era um dos itens da maravilhosa
profecia encontrada em Isaías 53. Esse capítulo nos diz pelo menos dez coisas sobre a
humilhação e o sofrimento do Redentor. Lá, é declarado que ele deveria ser desprezado e
rejeitado pelos homens; que deveria ser um homem de dores e que sabia o que era sofrer; que
ele deveria ser ferido, moído e castigado; que deveria ser levado, sem resistência, ao
matadouro; que deveria permanecer mudo perante os seus tosquiadores; que deveria não
somente sofrer nas mãos de homens, mas também ser moído pelo Senhor; que deveria
derramar sua alma na morte; que deveria ser enterrado na sepultura de um homem rico; e
então foi adicionado que deveria ser contado com os transgressores; e finalmente, que deveria
fazer intercessão por esses. Aqui então estava a profecia - "e fez intercessão pelos
transgressores"; houve o cumprimento dela - "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que
fazem". Ele pensou nos seus assassinos. Ele implorou por aqueles que lhe crucificaram; ele fez
intercessão pelo perdão deles.

"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".

2. Aqui vemos Cristo identificado com o seu povo.

"Pai, perdoa-lhes". Em nenhuma ocasião anterior Cristo fez tal pedido ao Pai. Nunca antes ele
tinha invocado o perdão dos outros ao Pai. Até aqui ele mesmo perdoou. Ao homem paralítico,
ele disse: "Filho, tem bom ânimo; perdoados te são os teus pecados" (Mt 9.2). À mulher que
lavou seus pés com suas lágrimas, na casa de Simão, ele disse: "Os teus pecados te são
perdoados" (Lc 7.48). Por que, então, ele agora pediu ao Pai para perdoar, ao invés dele mesmo
pronunciar diretamente o perdão?

Perdão de pecado é uma prerrogativa divina. Os escribas judeus estavam certos quando
arrazoaram: "Quem pode perdoar pecados, senão Deus?" (Mc 2.7). Mas dirá você: Cristo era
Deus. Com toda certeza; mas homem também - o Deus-homem. Ele era o Filho de Deus que
tinha se tornado o Filho do Homem com o expresso propósito de oferecer a si mesmo como
sacrifício pelo pecado. E quando o Senhor Jesus clamou "Pai, perdoa-lhes", ele estava sobre a
cruz, e ali ele não poderia exercer suas prerrogativas divinas. Repare cuidadosamente suas
palavras, e então contemple a exatidão maravilhosa da Escritura. Ele tinha dito: "O Filho do
Homem tem na terra autoridade para perdoar pecados" (Mt 9.6). Mas ele não estava mais sobre
a terra! Ele tinha sido "levantado da terra" (Jo 12.32)! Além do mais, na cruz ele estava agindo
como nosso substituto; o justo estava para morrer pelos injustos. Por conseguinte, ao ser
suspenso como nosso representante, ele não estava mais no lugar de autoridade onde poderia
exercer suas prerrogativas divinas, e, portanto, toma a posição de um suplicante perante o Pai.
Assim, dizemos que quando o bendito Senhor Jesus clamou, "Pai, perdoa-lhes", o vemos
absolutamente identificado com o seu povo. Não estava mais na posição de autoridade sobre a
"terra", onde ele tinha o "poder" ou "direito" de perdoar pecados; ao invés disso, ele intercede
pelos pecadores - como nós devemos fazer.

"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".

3. Aqui vemos a avaliação divina do pecado e sua culpa conseqüente.

Sob a economia levítica, Deus exigiu que a expiação devesse ser feita pelos pecados
praticados por ignorância.

"Quando alguma pessoa cometer uma transgressão e pecar por ignorância nas coisas
sagradas do SENHOR, então, trará ao SENHOR, por expiação, um carneiro sem
mancha do rebanho, conforme a tua estimação em siclos de prata, segundo o siclo do
santuário, para expiação da culpa. Assim, restituirá o que ele tirou das coisas sagradas, e
ainda de mais acrescentará o seu quinto, e o dará ao sacerdote; assim, o sacerdote, com
o carneiro da expiação, fará expiação por ela, e ser-lhe-á perdoado o pecado". (Lv 5.15,
16).

E lemos novamente:

"Quando errardes e não cumprirdes todos estes mandamentos que o SENHOR falou a Moisés,
sim, tudo quanto o SENHOR vos tem mandado por Moisés, desde o dia em que o SENHOR
ordenou e daí em diante, nas vossas gerações, será que, quando se fizer alguma coisa por
ignorância e for encoberta aos olhos da congregação, toda a congregação oferecerá um novilho,
para holocausto de aroma agradável ao SENHOR, com a sua oferta de manjares e libação,
segundo o rito, e um bode, para oferta pelo pecado. O sacerdote fará expiação por toda a
congregação dos filhos de Israel, e lhes será perdoado, porquanto foi erro, e trouxeram a sua
oferta, oferta queimada ao SENHOR, e a sua oferta pelo pecado perante o SENHOR, por causa
do seu erro". (Nm 15. 22-25, ARA).

É em vista de passagens tais como essas que encontramos Davi orando: "Expurga-me tu dos
[erros] que me são ocultos" (Sl 19.12).

O pecado é sempre pecado aos olhos divinos, quer estejamos consciente dele ou não.
Pecados cometidos por ignorância precisam de expiação tanto quanto os conscientes. Deus é
santo, e ele não rebaixará seu padrão de justiça ao nível da nossa ignorância. Ignorância não é
inocência. Na verdade, ignorância é mais culpada agora do que na época de Moisés. Nós não
temos desculpas pela nossa ignorância. Deus tem revelado clara e plenamente sua vontade. A
Bíblia está em nossas mãos, e não podemos alegar ignorância de seu conteúdo, exceto para
condenar-nos por nossa preguiça. Ele tem falado, e por sua palavra seremos julgados.

E, todavia, permanece o fato de que somos ignorantes de muitas coisas, e o erro e a


culpa são nossos. E isso não minimiza a enormidade do nosso delito. Pecados cometidos
por ignorância precisam do perdão divino, assim como a oração do Senhor nos mostra
claramente aqui. Aprenda, então, quão alto é o padrão de Deus, quão grande é a nossa
necessidade, e louve-o por uma expiação de suficiência infinita, que limpa de todo
pecado.

"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".

4. Aqui vemos a cegueira do coração humano.

"Porque não sabem o que fazem". Isso não significa que os inimigos de Cristo eram
ignorantes do fato de sua crucificação. Eles sabiam perfeitamente que tinham clamado:
"Crucifica-o". Eles sabiam perfeitamente que o seu vil pedido lhes tinha sido concedido por
Pilatos. Eles sabiam perfeitamente que ele tinha sido pregado na cruz, pois eram testemunhas
oculares do crime. O que, então, o Senhor quis dizer quando disse: "Porque não sabem o que
fazem"? Ele quis dizer que eles eram ignorantes da grandeza do seu crime. Eles não sabiam que
era o Senhor da glória que eles estavam crucificando. A ênfase não é sobre "porque não
sabem", mas sobre "porque não sabem o que fazem".
E, todavia, eles deveriam ter sabido. A cegueira deles era inescusável. As profecias do
Antigo Testamento que tinham recebido seu cumprimento nele eram suficientemente
claras para identificá-lo como o Santo de Deus. Seu ensino era singular, pois seus
próprios críticos foram forçados a admitir: "Nunca homem algum falou assim como este
homem" (Jo 7.46). E o que dizer da sua vida perfeita? Ele viveu diante dos homens uma
vida que nunca tinha sido vivida sobre a terra antes. Ele não agradava a si mesmo. Ele
se ocupava de fazer o bem. Ele estava sempre à disposição dos outros. Não havia
egoísmo nele. Sua vida foi de auto-sacrifício do princípio ao fim. Sua vida foi sempre
vivida para a glória de Deus. Sobre sua vida estava estampada a aprovação do céu, pois
a voz do Pai testificou audivelmente: "Este é o meu Filho amado, em quem me
comprazo". Não, não havia escusa alguma para a ignorância deles. Isso apenas
demonstrava a cegueira dos seus corações. A rejeição do Filho de Deus por parte deles
trouxe pleno testemunho, de uma vez por todas, de que a mente carnal é "inimizade
contra Deus" (Rm 8.7).

Quão triste é pensar que essa terrível tragédia ainda está sendo repetida! Pecador, você faz
pouca idéia do que está fazendo ao negligenciar a grande salvação de Deus. Você faz pouca
idéia de quão terrível é o pecado de menosprezar o Cristo de Deus e repelir os convites de sua
misericórdia. Você faz pouca idéia da profunda culpa que está unida ao seu ato de recusar
receber o único que pode te salvar dos seus pecados. Você faz pouca idéia de quão medonho é
o crime de dizer: "Não queremos que este reine sobre nós". Você faz pouca idéia do que faz.
Você considera essa questão vital com indiferença total. A questão se apresenta hoje da mesma
forma como dantes: "Que farei, então, de Jesus, chamado Cristo?". Pois você tem que fazer
algo com ele: ou o despreza e rejeita, ou o recebe como o Salvador de sua alma e o Senhor da
sua vida. Mas, digo novamente, isso lhe parece um assunto de diminuta urgência, de pequena
importância. Por anos você tem resistido aos esforços do seu Espírito. Por anos você tem posto
de lado essa importantíssima consideração. Por anos você tem endurecido seu coração contra
ele, tampado seus ouvidos aos seus apelos, e fechado seus olhos à sua excelsa beleza. Ah! você
não sabe O QUE faz. Você está cego em sua loucura. Cego para o seu terrível pecado. Todavia,
você não está sem escusa. Você pode ser salvo agora se quiser.

"Crê no Senhor Jesus Cristo e [tu] serás salvo". Ó, venha ao Salvador agora e diga com
alguém de outrora, "Mestre, que eu tenha vista".

"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".

5. Aqui vemos uma exemplificação amorosa do seu próprio ensino.

No Sermão do Monte nosso Senhor ensinou aos seus discípulos: "Amai a vossos inimigos,
bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e
vos perseguem" (Mt 5.44). Acima de todos os outros, Cristo praticou o que ele pregou. A graça
e a verdade vieram através de Jesus Cristo. Ele não somente ensinou a verdade, mas ele
mesmo era a verdade encarnada. Ele disse: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (Jo 14.6).
Assim, aqui sobre a cruz ele exemplificou perfeitamente seu ensino do monte. Em todas as
coisas ele nos deixou um exemplo.

Observe que Cristo não perdoou pessoalmente seus inimigos. Assim, em Mt 5.44 ele não
exortou seus discípulos a perdoarem seus inimigos, mas os exortou a "orar" por eles. Mas nós
não devemos perdoar aqueles que nos maltratam? Isso nos leva a um ponto com respeito ao
qual é necessária muita instrução hoje em dia.

A escritura ensina que sob todas as circunstâncias devemos perdoar sempre? Eu


respondo enfaticamente: não, ela não ensina. A palavra de Deus diz: "Se teu irmão
pecar contra ti, repreende-o; e, se ele se arrepender, perdoa-lhe; e, se pecar contra ti sete
vezes no dia e sete vezes no dia vier ter contigo, dizendo: Arrependo-me, perdoa-lhe"
(Lc 17.3,4). Aqui somos claramente ensinados que uma condição deve ser satisfeita
pelo ofensor antes que possamos pronunciar o perdão. Aquele que nos ofendeu deve
primeiramente "se arrepender", isto é, julgar a si mesmo por seu erro e dar evidência de
sua tristeza por causa dele. Mas, suponha que o ofensor não se arrependa? Então eu não
preciso perdoá-lo.

Mas que não haja má compreensão do que queremos dizer aqui. Mesmo que alguém que
nos ofendeu não se arrependa, todavia, eu não devo abrigar sentimentos ruins contra ele.
Não deve haver nenhum ódio ou malícia cultivada no coração. Todavia, por outro lado,
eu não devo tratar o ofensor como se ele não tivesse cometido nenhum erro. Isso seria
fechar os olhos à ofensa, e, portanto, eu estaria falhando em manter as exigências da
justiça, e isso é o que o crente deve fazer sempre. Deus alguma vez perdoa onde não há
arrependimento? Não, pois a escritura declara: "Se confessarmos os nossos pecados, ele
é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça" (1Jo 1.9).
Mais uma coisa. Se alguém me prejudicar e não se arrepender, embora eu não possa lhe
perdoar e tratá-lo como se ele não tivesse me ofendido, todavia, eu não apenas não devo
abrigar nenhuma malícia em meu coração contra ele, mas devo também orar por ele.
Aqui está o valor do exemplo perfeito de Cristo. Se não podemos perdoar, podemos orar
a Deus para perdoá-lo.

"E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".

6. Aqui vemos a grande e primária necessidade do homem.

A primeira lição importante que todos precisam aprender é que somos pecadores, e
como tais, inaptos para a presença de um Deus Santo. É em vão que escolhemos nobres
ideais, adotamos boas resoluções, e aceitamos excelentes regras pelas quais viver, até
que a questão do pecado tenha sido resolvida. Não é de proveito algum tentar
desenvolver um belo caráter e ter por objetivo obter a aprovação de Deus, enquanto há
pecado entre ele e as nossas almas. Qual a utilidade dos sapatos, se os nossos pés estão
paralisados? De que utilidade são os óculos, se somos cegos? A questão do perdão dos
meus pecados é básica, fundamental e vital. Não importa se sou altamente respeitado
por um círculo amplo de amigos, se ainda estou em meus pecados. Não importa se eu
sou honesto em meu negócio, se ainda sou um transgressor não perdoado aos olhos de
Deus. O que importará na hora da morte será: Os meus pecados foram expurgados pelo
sangue de Cristo?

A segunda lição importantíssima que precisamos aprender é como o perdão dos pecados
pode ser obtido. Qual é fundamento sobre o qual um Deus santo perdoará pecados? E
aqui é importante observar que há uma diferença vital entre o perdão divino e muito do
perdão humano. Como regra geral, o perdão humano é uma questão de complacência,
frequentemente de frouxidão. Queremos dizer que o perdão é mostrado à custa da
justiça e da retidão. Na corte humana da lei, o juiz tem que escolher entre duas
alternativas: quando se prova que alguém no banco dos réus é culpado, o juiz deve
aplicar a penalidade da lei, ou deve negligenciar os requerimentos da lei - uma é
justiça, a outra é misericórdia. A única forma possível na qual o juiz pode tanto aplicar
os requerimentos da lei e ainda mostrar misericórdia ao ofensor, é uma terceira parte
oferecer sofrer em sua própria pessoa a penalidade que o condenado merece. Assim
aconteceu no conselho divino. Deus não exerceria misericórdia à custa da justiça. Ele,
como o juiz de toda a terra, não colocaria de lado as demandas da sua santa lei. Todavia,
Deus mostraria misericórdia. Como? Através de um que satisfaria plenamente sua lei
violada. Por intermédio de seu próprio Filho, tomando o lugar de todos aqueles que
crêem nele e carregando seus pecados em seu próprio corpo no madeiro. Deus poderia
ser justo e ainda misericordioso, misericordioso e ainda justo. Foi assim para que a
"graça reinasse pela justiça".

Um fundamento justo tinha sido fornecido sobre o qual Deus poderia ser justo e ainda o
justificador de todo aquele que crê. Por conseguinte, somos informados:

"E disse-lhes: Assim está escrito, e assim convinha que o Cristo padecesse e, ao terceiro dia,
ressuscitasse dos mortos; e, em seu nome, se pregasse o arrependimento e a remissão
(perdão) dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém" (Lc 24.46,47).

E novamente:

"Seja-vos, pois, notório, varões irmãos, que por este se vos anuncia a remissão dos pecados.
E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por ele é justificado todo
aquele que crê" (At 13.38, 39).
Foi em virtude do sangue que ele estava derramando que o Salvador clamou: "Pai, perdoa-
lhes". Foi em virtude do sacrifício expiatório que ele estava oferecendo que pôde ser dito que
"sem derramamento de sangue não há remissão".

Ao orar pelo perdão dos seus inimigos, Cristo foi diretamente na raiz da necessidade deles. E
a necessidade deles é a necessidade de todo filho de Adão. Leitor, você tem os seus pecados
perdoados, isto é, remidos ou levados embora? Você é, pela graça, um daqueles de quem é
dito: "Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados" (Cl 1.14)?

"Então disse Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem".

7. Aqui vemos o triunfo do amor redentor.

Note atentamente a palavra com a qual nosso texto começa. "Então". O versículo que
imediatamente o precede é lido assim: "E, quando chegaram ao lugar chamado a Caveira, ali o
crucificaram e aos malfeitores, um, à direita, e outro, à esquerda". Então, disse Jesus, Pai,
perdoa-lhes. "Então" - quando o homem tinha feito o seu pior. "Então" - quando a vileza do
coração humano foi demonstrada em maldade diabólica e climatérica. "Então" - quando com
mãos ímpias a criatura ousou crucificar o Senhor da glória. Ele poderia ter expressado maldições
terríveis sobre eles. Ele poderia ter lançado os raios da justa ira e os matado. Ele poderia ter
feito a terra abrir a sua boca, de forma que eles caíssem vivos no abismo. Mas não. Embora
sujeito à vergonha indizível, embora sofrendo dor excruciante, embora desprezado, rejeitado,
odiado; todavia, ele clamou: "Pai, perdoa-lhes". Esse era o triunfo do amor redentor. "O amor é
paciente, é benigno... tudo sofre... tudo suporta" (1Co 13, ARA). Assim foi demonstrado na
cruz.

Quando Sansão chegou na hora da sua morte, ele usou a grande força do seu corpo para
abarcar a destruição de seus antagonistas; mas aquele que era perfeito exibiu a força de
seu amor orando pelo perdão dos seus inimigos. Graça inigualável! "Inigualável",
dizemos, pois nem mesmo Estevão conseguiu seguir plenamente o exemplo bendito
dado pelo Salvador. Se o leitor se voltar para Atos 7, descobrirá que o primeiro
pensamento de Estevão foi sobre si mesmo, e depois foi que orou pelos seus inimigos -
"E apedrejaram a Estêvão, que em invocação dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito.
E, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz: Senhor, não lhes imputes este pecado.
E, tendo dito isto, adormeceu" (At 7.59,60). Mas com Cristo a ordem foi inversa: ele
orou primeiro pelos seus adversários, e no final por si mesmo. Em todas as coisas ele
tem a preeminência.

E agora, concluindo com uma palavra de aplicação e exortação. Se esse capítulo estiver
sendo lido por uma pessoa não-salva, pedir-lhe-emos seriamente ponderar bem a
próxima sentença - Quão terrível deve ser se opor a Cristo e à sua verdade
conscientemente! Aqueles que crucificaram o Salvador não sabiam o que estavam
fazendo. Mas, meu leitor, há um sentido muito real e solene no qual isso é verdade com
respeito a você também. Você sabe que deve receber a Cristo como seu Salvador, que
deve coroá-lo como Senhor de sua vida, que deve tornar a sua primeira e última
preocupação agradá-lo e glorificá-lo. Fique então avisado; seu perigo é grande. Se você
deliberadamente dá as costas a ele, dá as costas ao único que pode salvá-lo dos seus
pecados, e está escrito: "Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos
recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas
uma certa expectação horrível de juízo e ardor de fogo, que há de devorar os
adversários" (Hb 10.26,27).

Resta-nos apenas adicionar uma palavra sobre a bendita inteireza do perdão divino.
Muitos dentre o povo de Deus ficam intranqüilos e perturbados sobre esse ponto. Eles
entendem como é que todos os pecados que cometeram antes de receberem a Cristo
como seu Salvador foram perdoados, mas amiúde não estão livres de dúvidas com
respeito aos pecados que cometem após terem nascido de novo. Muitos supõem que é
possível para eles pecar de uma forma que lhes coloque além do perdão que Deus lhes
concedeu. Supõem que o sangue de Cristo trata somente com o passado deles, e que até
onde diz respeito ao presente e ao futuro, eles tem que se cuidar por si mesmos. Mas de
que valor seria um perdão que pode ser tirado de mim a qualquer momento? Certamente
não pode haver nenhuma paz estabelecida quando minha aceitação para com Deus e a
minha ida ao céu é feita dependente do meu agarrar-se a Cristo, ou da minha obediência
e fidelidade.

Bendito seja Deus, o perdão que ele concede cobre todos os pecados - passados,
presentes e futuros. Amigo crente, Cristo não carregou os "seus" pecados em seu
próprio corpo no madeiro? E os seus pecados não eram todos futuros, quando ele
morreu? Certamente, pois naquele tempo você não tinha nascido, e não tinha cometido
nenhum pecado sequer. Muito bem então: Cristo verdadeiramente levou os seus
pecados "futuros" tanto quanto os seus pecados passados. O que a palavra de Deus
ensina é que a alma incrédula é tirada do lugar sem perdão para onde esse está ligado.
Os cristãos são um povo perdoado. Diz o Espírito Santo: "Bem-aventurado o homem a
quem o Senhor não imputa o pecado" (Rm 4.8). O crente está em Cristo, e ali o pecado
nunca nos será imputado novamente. Esse é o nosso lugar ou posição diante de Deus.
Em Cristo é onde ele nos contempla. E porque estou em Cristo, estou completa e
eternamente perdoado; tão perdoado que o pecado nunca será mais será posto sobre
mim como acusação no que toca à minha salvação, mesmo que eu permanecesse na
terra por mais cem anos. Eu estou fora do alcance para sempre. Ouça o testemunho da
escritura: "E, quando vós estáveis mortos nos pecados e na incircuncisão da vossa
carne, (Deus) vos vivificou juntamente com ele (Cristo), perdoando-vos todas as
ofensas" (Cl 2.13). Observe as duas coisas que são aqui unidas (e o que Deus ajuntou,
não o separe o homem!) - minha união com um Cristo ressurreto é conectada com o
meu perdão! Se então minha vida está "oculta com Cristo em Deus" (Cl 3.3), então eu
estou fora para sempre do lugar onde a imputação do pecado é aplicada. Por
conseguinte, está escrito: "Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão
em Cristo Jesus" (Rm 8.1) - como poderia existir, se "todas as ofensas" foram perdoadas?
Ninguém pode lançar nenhuma acusação contra os eleitos de Deus (Rm 8.33). Leitor cristão,
junte-se ao escritor em louvor a Deus, pois nós somos eternamente perdoados de tudo. *

*Deveria ser adicionado, à guisa de explicação, que é o aspecto judicial que temos tratado
aqui. O perdão restaurador - que é o trazer de volta, novamente à comunhão, um crente que
pecou - tratado em 1João 1.9 - é outra questão totalmente distinta.

2. A PALAVRA DE SALVAÇÃO

"E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino. E disse-lhe
Jesus: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso."

Lucas 23. 42,43

A SEGUNDA DECLARAÇÃO DE CRISTO na cruz foi feita em resposta ao pedido do ladrão à


beira da morte. Antes de considerarmos as palavras do Salvador ponderaremos primeiro sobre o
que as ocasionou.

Não foi acidente algum o fato de o Senhor da glória ter sido crucificado entre dois ladrões.
Nada ocorre por acidente em um mundo que é governado por Deus. Muito menos poderia ter
havido qualquer acidente naquele dia dos dias, ou em conexão com aquele evento dos eventos
— um dia e um evento que estão situados no próprio centro da história do mundo. Não, Deus
estava presidindo sobre aquela cena. Desde a eternidade toda ele havia decretado quando e
onde e como e com quem seu Filho deveria morrer. Nada foi deixado ao acaso ou ao capricho
do homem. Tudo que Deus tinha decretado veio a suceder exatamente como ele havia
ordenado, e nada aconteceu que não tivesse ele eternamente intentado. Tudo quanto o homem
fez foi simplesmente o que a mão e o conselho divinos "tinham anteriormente determinado" (At
4.28).

Quando Pilatos deu ordens para que o Senhor Jesus fosse crucificado entre os dois
malfeitores, estava pondo em execução o decreto eterno de Deus e cumprindo sua palavra
profética, coisas que lhe eram totalmente desconhecidas. Setecentos anos antes que esse
dignitário romano desse sua ordem, Deus tinha declarado mediante Isaías que seu Filho deveria
ser "contado com os transgressores" (Is 53.12). Quão totalmente improvável parecia isso, que o
Santo de Deus devesse ser contado com os ímpios; que aquele mesmo cujo dedo havia inscrito
nas tábuas de pedra da Lei do Sinai devesse ter um lugar designado entre os sem lei; que o
Filho de Deus devesse ser executado com os criminosos — tal parecia completamente
inconcebível. Todavia, na realidade, foi o que veio a ocorrer. Nem uma só palavra divina pode-
se deixar escapar. "Para sempre, ó Senhor, a tua palavra permanece no céu" (Sl 119.89). Assim
como Deus havia ordenado, e assim como havia anunciado, assim aconteceu.

Porque ele ordenou que seu Filho devesse ser crucificado entre dois criminosos?
Certamente que Deus tinha uma razão para tal; uma boa, uma múltipla razão, quer
possamos discerni-la ou não. Ele nunca procede arbitrariamente. Ele tem um bom
propósito para tudo o que faz, pois todas as suas obras estão ordenadas pela sabedoria
infinita. Nesse exemplo particular, várias respostas se insinuam à nossa inquirição. Não
foi nosso bendito Senhor crucificado com os dois ladrões para demonstrar plenamente
as insondáveis profundezas da vergonha em que havia descido? Em seu nascimento ele
estava rodeado pelas bestas do campo e, agora, em sua morte, é contado com a escória
da humanidade.

Outra vez, não foi o Salvador contado com os transgressores para nos mostrar a posição que
ele ocupou como nosso substituto? Ele havia ocupado o lugar que era nosso, e o que era senão
o lugar de vergonha, o lugar dos transgressores, o lugar dos criminosos condenados à morte!

Outra vez, não foi ele deliberadamente humilhado daquele modo por Pilatos para mostrar a
avaliação pelo homem daquele inigualável — "desprezado" tanto quanto rejeitado!

Outra vez, não foi ele crucificado com os dois ladrões, de modo que naquelas três cruzes e
nos que nelas estavam dependurados, pudéssemos ter a representação vívida e concreta do
drama da salvação e da resposta do homem a isso — a redenção do Salvador; o pecador que se
arrepende e crê; e o que insulta e rejeita?

Uma outra importante lição que podemos aprender da crucificação de Cristo entre os
dois ladrões, e o fato de que um o recebeu e o outro o rejeitou, é a da soberania divina.
Os dois malfeitores foram crucificados juntos. Estavam à mesma proximidade de Cristo.
Ambos viram e ouviram tudo o que se tornou conhecido durante aquelas seis fatídicas
horas. Ambos eram notoriamente perversos; ambos estavam sofrendo agudamente;
ambos estavam morrendo, e ambos necessitavam urgentemente de perdão. Todavia, um
morreu em seus pecados, morreu como tinha vivido — endurecido e impenitente; ao
passo que o outro se arrependeu de sua maldade, creu em Cristo, recorreu a ele para
obter misericórdia e entrou no Paraíso. Como explicar isso, senão pela soberania de
Deus!

Vemos precisamente que a mesma coisa continua hoje. Sob exatamente as mesmas
circunstâncias e condições, um é enternecido e outro permanece inalterado. Sob o mesmo
sermão, um homem ouvirá com indiferença, enquanto outro terá seus olhos abertos para ver
sua necessidade e sua vontade movida para perto da oferta da misericórdia divina. Para um, o
evangelho é revelado, para outro, "oculto". Por quê? Tudo o que podemos dizer é: "Sim, ó Pai,
porque assim te aprouve". E, contudo, a soberania divina nunca quer dizer destruir a
responsabilidade humana. Ambas são claramente ensinadas na Bíblia, e é nosso dever crer e
pregar as duas, quer possamos harmonizá-las ou compreendê-las quer não. Ao pregarmos
ambas pode parecer a nossos ouvintes que nos contradizemos, mas que importa?

Disse o falecido C. H. Spurgeon, quando pregava em 1Timóteo 2.3,4: "Ali no texto se


acha, e creio que é do desejo de meu Pai, que ‘todos os homens se salvem, e venham ao
conhecimento da verdade’. Mas eu sei, também, que ele não o quer, de modo que
salvará a qualquer um daqueles, apenas se crerem em seu Filho; pois ele no-lo disse
repetidas vezes. Ele não salvará homem algum, a menos que esse abandone seus
pecados, e se volte para ele com pleno propósito de coração: isso eu também sei. E sei,
ainda, que ele tem um povo a quem salvará, a quem, por seu eterno amor, elegeu e a
quem, por seu eterno poder, ele libertará. Eu não sei como aquilo se ajusta com isso,
que é mais uma das coisas que não sei." E disse esse príncipe dos pregadores: "Eu
permanecerei exatamente no que sempre hei de pregar e sempre tenho pregado, e tomo
a palavra de Deus como está, possa eu reconciliá-la com uma outra parte da palavra
divina ou não."

Dizemos novamente, a soberania de Deus nunca significa destruir a responsabilidade do


homem. Devemos fazer uso diligente de todos os meios que ele designou para a
salvação das almas. Somos ordenados a pregar o evangelho a "toda criatura" . A graça
é livre: o convite é amplo o bastante para "quem crer" o aceitar. Cristo não despede
ninguém que venha a ele. Todavia, após havermos feito tudo, após havermos plantado
e aguado, é Deus quem dá o crescimento, e o faz de modo a melhor satisfazer sua
soberana vontade.

Na salvação do ladrão agonizante temos uma visão clara da graça vitoriosa, como não
encontrada em nenhum outro lugar na Bíblia. Deus é o Deus de toda graça, e a salvação é
inteiramente por meio dessa. "Pela graça sois salvos" (Ef 2.8), e é "pela graça" do começo ao
fim. A graça planejou a salvação, a graça proveu a salvação, e a graça assim opera sobre e em
seus eleitos para sobrepujar a dureza de seus corações, a obstinação de suas vontades, e a
inimizade de suas mentes, e assim os torna propensos a receber a salvação. A graça inicia, a
graça continua, e a graça consuma a nossa salvação.

A salvação pela graça — soberana, irresistível, livre graça — é ilustrada no Novo Testamento
tanto por exemplo quanto por preceito. Talvez os dois casos mais contundentes de todos sejam
os de Saulo de Tarso e do Ladrão Agonizante. E esse último é até mais digno de nota que o
primeiro. No caso de Saulo, que posteriormente tornou-se Paulo, apóstolo dos gentios, havia um
caráter moral exemplar, para começo de conversa. Escrevendo anos depois sobre sua condição
antes da conversão, o apóstolo declarou que, no tocante à justiça da lei, ele era "irrepreensível"
(Fp 3.6). Ele era um "fariseu dos fariseus": meticuloso em seus hábitos, correto em seu
procedimento. Moralmente, seu caráter era imaculado. Após a conversão, sua vida foi de justiça
no padrão evangélico. Constrangido pelo amor de Cristo, consumiu-se na pregação do
Evangelho aos pecadores e no labor da edificação dos santos. Sem dúvida, nossos leitores
concordarão conosco quando dizemos que provavelmente Paulo estivesse mais perto de atingir
os ideais da vida cristã, e que ele seguiu após seu Mestre mais perto do que qualquer outro
santo desde então.

Mas com o ladrão salvo foi, de longe, de outra forma. Ele não tinha vida moral alguma antes
de sua conversão e nenhuma de serviço ativo depois. Antes dela ele não respeitava nem a lei de
Deus nem a dos homens. Após sua conversão, ele morreu sem ter oportunidade de se ocupar
no serviço de Cristo. Enfatizarei isso, porque essas são as duas coisas que são consideradas por
tantos como fatores que contribuem para nossa salvação. Supõe-se que devemos primeiro nos
adequar, desenvolvendo um caráter nobre diante de Deus, que nos receberá como seus filhos, e
que depois dele haver nos recebido, para sermos experimentados, somos meramente postos à
prova, e que, a menos que produzamos uma certa qualidade e quantidade de boas obras,
"cairemos da graça e ficaremos perdidos". Mas o ladrão agonizante não teve boa obra alguma,
seja antes ou depois da conversão. Em conseqüência, somos levados à conclusão que, se ele foi
salvo em absoluto, certamente o foi pela soberana graça.

A salvação do ladrão agonizante também arranja um outro apoio para que o legalismo da
mente carnal se interponha para roubar de Deus a glória devida à sua graça. Em vez de atribuir
a salvação dos pecadores perdidos à inigualável graça divina, muitos cristãos professos
procuram explicá-las pelas influências humanas, instrumentalidades e
circunstâncias. Seja o pregador, sejam circunstâncias providenciais ou propícias, sejam
as orações dos crentes, tudo isso é visto como a causa principal. Que não sejamos mal
entendidos aqui. É verdade que Deus com freqüência se agrada de usar meios para a
conversão dos pecadores; que amiúde condescende em abençoar nossas orações e
esforços para levar pecadores a Cristo; que, muitas vezes, ele faz com que suas
providências despertem e sacudam os ímpios para a percepção de seus estados. Mas
Deus não está preso a essas coisas. Ele não está limitado às instrumentalidades
humanas. Sua graça é toda poderosa e, quando lhe agrada, ela é capaz de salvar apesar
da falta daquelas, e a despeito das circunstâncias desfavoráveis. Assim foi no caso do
ladrão salvo.

Considere:
Sua conversão ocorreu numa época quando, exteriormente, parecia que Cristo havia
perdido todo o poder para salvar, seja a si mesmo ou a outros. Esse ladrão havia
marchado ao lado do Salvador através das ruas de Jerusalém e o tinha visto sucumbir
sob o peso da cruz! É altamente provável que, como sua ocupação fosse a de ladrão e
assaltante, esse fosse o primeiro dia que em que ele punha seus olhos no Senhor Jesus e,
agora que o via, era sob toda a circunstância de fraqueza e desgraça. Seus inimigos
estavam triunfando sobre ele. A maior parte de seus amigos o havia abandonado. A
opinião pública estava unanimemente contra ele. Sua própria crucificação foi
considerada como totalmente inconsistente com sua messianidade. Sua condição
humilde foi uma pedra de tropeço aos judeus desde mesmo o início, e as circunstâncias
de sua morte devem ter intensificado isso, especialmente a alguém que nunca o havia
visto senão em tal condição. Mesmo aqueles que tinham crido nele foram levados à
dúvida por causa de sua crucificação. Não havia ninguém na multidão que estivesse ali
com o dedo apontando para ele e gritando: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado
do mundo!". E, todavia, não obstante tais obstáculos e dificuldades no caminho de
sua fé, o ladrão apreendeu a condição de Salvador e o Senhorio de Cristo. Como
podemos explicar tal fé e tal compreensão espiritual em alguém em circunstâncias tais
como a que se encontrava? Como podemos explicar o fato de que esse ladrão
agonizante tomou um homem em sofrimento, sangrando e crucificado por seu Deus!
Não pode ser explicado senão por intervenção divina e operação sobrenatural. Sua fé em
Cristo foi um milagre da graça!

É para ser notado ainda que a conversão do ladrão ocorreu antes dos fenômenos
sobrenaturais daquele dia. Ele exclamou: "Senhor, lembra-te de mim" antes das horas de
trevas, antes do brado triunfante, "Está consumado", antes do véu do templo se rasgar, antes
do tremor de terra e do despedaçar das rochas, antes da confissão do centurião: "Na verdade,
este era Filho de Deus". Deus intencionalmente colocou sua conversão antes de tais coisas de
modo que sua soberana graça pudesse ser engrandecida e seu soberano poder reconhecido. Ele
calculadamente escolheu salvar esse ladrão sob as circunstâncias mais desfavoráveis para que
nenhuma carne se glorie em sua presença. Ele deliberadamente dispôs essa combinação de
condições e ambiente não propícios para nos ensinar que "a salvação é do Senhor"; para nos
ensinar a não engrandecer a instrumentalidade humana acima da ação divina; para nos ensinar
que toda conversão genuína é o produto direto da operação sobrenatural do Espírito Santo.

Consideraremos agora o ladrão em si mesmo, suas várias declarações, seu pedido ao


Salvador, e a resposta de nosso Senhor.

"E disse a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino. E disselhe Jesus:
Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso" (Lucas
23.42,43).

1. Vemos aqui um pecador representativo.

Nunca chegaremos ao centro desse incidente até considerarmos a conversão desse


homem como um caso representativo, e o próprio ladrão como um caráter
representativo. Há aqueles que procuram mostrar que o caráter original do ladrão
penitente era mais nobre e digno do que o do outro que não se arrependeu. Mas isso não
somente não corresponde à verdade dos fatos nesse caso, como serve para apagar a
glória peculiar dessa conversão e remover dele a maravilha da graça divina. É de grande
importância reparar que, antes do tempo em que um se arrependeu e creu não havia
diferença essencial alguma entre os dois. Na natureza, na história, nas circunstâncias
eram um. O Espírito Santo foi cuidadoso em nos contar que ambos insultaram o
padecente Salvador:

"E da mesma maneira também os príncipes dos sacerdotes, com os escribas, e anciãos, e
fariseus, escarnecendo, diziam: Salvou os outros, e a si mesmo não pode salvar-se. Se é o Rei
de Israel, desça agora da cruz, e crê-lo-emos. Confiou em Deus; livre-o agora, se o ama;
porque disse: Sou Filho de Deus. E o mesmo lhe lançaram também em rosto os salteadores que
com ele estavam crucificados" (Mateus 27.41-44).

Realmente terríveis eram a condição e a ação desse assaltante. À beira de adentrar a


eternidade ele se une aos inimigos de Cristo no terrível pecado de escarnecer dele. Era de uma
torpeza sem paralelo. Pense nisso — um homem na hora em que se aproximava sua morte
ridicularizando o Salvador padecente! Ó que demonstração de depravação humana e de
inimizade natural da mente carnal contra Deus. E, leitor, por natureza há a mesma depravação
herdada dentro de você, e a menos que um milagre da divina graça seja operado dentro de
você, existe a mesma inimizade contra Deus e seu Cristo presente em seu coração. Você pode
não pensar assim, pode não sentir assim, pode não crer assim. Mas isso não altera o fato. A
palavra dele que não pode mentir declara: "Enganoso é o coração, acima de todas as coisas, e
desesperadamente perverso" (Jr 17.9). Essa é uma declaração de aplicação universal. Ela
descreve o que todo coração humano é por nascimento natural. E outra vez a mesma escritura
da verdade declara:

"...porque a mentalidade da carne significa inimizade com Deus, visto que não está em
sujeição à lei de Deus; de fato, nem pode estar" (Romanos 8.7, Tradução do Novo
Mundo). Isso, também, diagnostica o estado de todo descendente de Adão. "Porque não
há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" (Rm 3.22,23).

Inefavelmente solene é isso: todavia, necessita que nele se insista. Não é senão quando
percebemos nossa desesperadora condição que descobrimos a necessidade de um Salvador
divino. Não é senão quando somos levados a perceber nossa total corrupção e fraqueza que nos
apressamos ao grande médico. Não é senão quando encontramos nesse ladrão agonizante um
retrato de nós mesmos que o acompanharemos dizendo: "Senhor, lembra-te de mim".

Temos que ser humilhados antes de sermos exaltados. Temos de ser despidos dos trapos
imundos de nossa justiça própria antes que estejamos prontos para os trajes de salvação.
Temos de vir a Deus como mendigos, de mãos vazias, antes que possamos receber o
dom da vida eterna. Temos de tomar o lugar de pecadores perdidos perante ele se
quisermos ser salvos. Sim, temos que reconhecer a nós mesmos como ladrões antes que
possamos ter um lugar na família de Deus. "Mas", dirá você, "eu não sou nenhum
ladrão! Reconheço que não sou tudo que devo ser. Não sou perfeito. Na verdade, vou ao
ponto de admitir a mim mesmo como pecador. Mas não posso consentir que esse ladrão
represente meu estado e condição." Ah, amigo, seu caso é, de longe, pior do que você
supõe. Você é um ladrão, e ladrão da pior espécie. Você rouba a Deus! Suponha que
uma firma no Leste designasse um agente para representá-la no Oeste, e que
mensalmente lhe enviasse seu salário. Mas suponha também que, no fim do ano, os
empregadores descobrissem que, ainda que o agente estivesse descontando os cheques a
ele remetidos, ele tivesse servido uma outra firma durante o tempo todo. Não seria
aquele agente um ladrão? Todavia, tal é precisamente a situação e o estado de cada
pecador. Ele foi enviado a esse mundo por Deus, que o dotou de talentos e da
capacidade de usá-los e valorizá-los. Deus o abençoa com saúde e vigor; supre cada
necessidade sua, e fornece inúmeras oportunidades para servi-lo e glorificá-lo. Mas com
que resultado? As próprias coisas que Deus lhe dá são mal empregadas. O pecador serve
a um outro senhor, precisamente Satanás. Ele dissipa seu vigor e desperdiça seu tempo
nos prazeres pecaminosos. Ele rouba a Deus. Leitor não salvo, na perspectiva do Céu,
sua condição é desesperadora e seu coração, mau como o daquele ladrão. Veja nele uma
figura de si mesmo.

2. Aqui nós vemos que o homem tem que ir ao fim de si próprio antes que possa ser salvo.

Contemplamos acima esse ladrão agonizante como um pecador representativo, um


espécime que é amostra do que todos os homens são por natureza e prática — por
natureza, em inimizade contra Deus e seu Cristo; por prática, ladrões de Deus,
utilizando mal o que ele nos deu e não conseguindo retribuir-lhe o que é devido.
Devemos ver agora que esse ladrão crucificado foi também um caso representativo em
sua conversão. E nesse ponto deter-nos-emos unicamente em sua situação de
desamparo.

Ver a nós mesmos como pecadores perdidos não basta. Aprender que somos corruptos e
depravados por natureza e transgressores pecaminosos pelas nossas práticas é a primeira lição
importante. A próxima é aprender que estamos totalmente arruinados, e que não podemos
fazer nada que seja para ajudar a nós mesmos. Descobrir que nossa condição é tão
desesperadora que está inteiramente além da possibilidade de conserto humano, é o segundo
passo rumo a salvação — olhando-a pelo lado humano. Porém, se o homem é lento para
aprender que é um pecador perdido e inapto para estar na presença de um Deus santo, ele o é
ainda mais para reconhecer que nada pode fazer para sua salvação, e que é incapaz de operar
qualquer melhoria em si próprio para se adequar para Deus. Todavia, não é senão até que nos
demos conta de que estamos "fracos" (Rm 5.6), que somos "impotentes" (Jo 5.3), que não é
pelas obras de justiça que façamos, mas pela misericórdia divina que somos salvos (Tt 3.5), que
não é senão até que nos desesperemos de nós mesmos, e olhemos para fora de nós mesmos
para um que pode nos salvar.

O grande tipo escriturístico do pecado é a lepra, e para a lepra o homem não pode inventar
cura alguma. Somente Deus pode lidar com essa pavorosa doença. Assim o é com o pecado.
Mas, como dissemos, o homem é lento para aprender essa lição. É como o filho pródigo, o qual,
quando dissipara sua fazenda na terra longínqua, vivendo dissolutamente, e começou "a
padecer necessidades", em vez de imediatamente retornar ao seu pai, "foi, e chegou-se a um
dos cidadãos daquela terra", e foi para os campos a apascentar porcos; em outras palavras, ele
foi ao trabalho . Igualmente, o pecador que é despertado para a sua necessidade, em vez de ir
imediatamente a Cristo, tenta trabalhar por si mesmo para obter o favor divino. Mas ele não
conseguirá coisa melhor que o pródigo — as bolotas dos porcos serão sua única porção. Ou
então, como a mulher prostrada pela enfermidade por muitos anos. Ela tentou muitos médicos
antes de procurar o grande médico: assim o pecador despertado procura alívio e paz primeiro
numa coisa e depois em outra, até completar o fatigante ciclo das ações religiosas, e terminar
"sem nenhum resultado, mas cada vez piorando mais" (Mc 5.26, Bíblia de Jerusalém). Não, não
é senão quando já tinha "gasto tudo o que possuía" que ela procurou Cristo; e não é senão
quando o pecador chega ao fim de seus próprios recursos que recorrerá ao Salvador.

Antes que qualquer pecador possa ser salvo, deve ele ir ao lugar da fraqueza reconhecida.
Isso é o que a conversão do ladrão agonizante nos mostra. O que ele podia fazer? Não podia
caminhar pelas sendas da justiça, pois havia um prego atravessando cada um dos seus pés. Não
podia executar nenhuma boa obra, pois havia um prego atravessando cada uma das mãos. Não
podia começar vida nova e viver melhor, pois =ue estava morrendo. E, meu leitor, aquelas suas
mãos que tão prontamente agem para justiça própria, e aqueles seus pés que tão rapidamente
correm no caminho da obediência legal, devem ser pregados na cruz. O pecador teve de ser
interrompido em suas próprias obras e feito desejoso de ser salvo por Cristo. Uma percepção de
sua própria condição pecaminosa, de sua condição perdida, de sua condição de desamparo, não
é nada mais, nada menos, do que o velho ensino da convicção de pecado, e tal é o único pré-
requisito para vir a Cristo para salvação, pois Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores.

3. Aqui vemos o sentido do arrependimento e da fé

O arrependimento pode ser considerado sob vários aspectos. Ele inclui em seu significado e
escopo uma mudança da mente acerca de, um desgosto por e um abandono do pecado.
Todavia, há mais do que isso. Realmente, o arrependimento é a percepção de nossa condição
perdida, é a descoberta de nossa ruína, é o julgamento de nós mesmos, é a confissão de nossa
situação perdida. Não é tanto um processo intelectual, mas a consciência ativa na presença de
Deus. E isso é exatamente o que achamos aqui no caso do ladrão. Primeiro ele diz ao seu
companheiro: "Tu nem ainda temes a Deus, estando na mesma condenação?" (Lucas 23.40).
Pouco tempo antes sua voz estivera confundida com a daqueles que estavam vilipendiando o
Salvador. Mas o Espírito Santo estivera em ação sobre ele e, agora, sua consciência fica ativa na
presença de Deus. Não disse ele: "Tu nem ainda temes o castigo", mas: "Tu nem ainda temes a
Deus?" Ele compreende Deus como sendo juiz.

E então, em segundo lugar, ele acrescenta: "E nós, na verdade, com justiça, porque
recebemos o que os nossos feitos mereciam" (Lucas 23.41). Aqui vemo-lo reconhecendo sua
culpa e a justiça de sua condenação. Ele pronuncia sentença contra si mesmo. Ele não se
desculpa e não tenta atenuar nada. Ele reconheceu que era um transgressor, e que, enquanto
tal, ele merecia plenamente a punição por seus pecados, sim, que a morte lhe era devida. Você
teve essa posição diante de Deus, meu leitor? Confessou abertamente a ele seus pecados? Já
sentenciou a si mesmo e a seus caminhos? Está pronto para reconhecer que a morte é o que
você merece? Suavize você o seu pecado ou prevarique acerca dele, estará impedindo a sua
própria entrada a Cristo. Ele veio ao mundo para salvar pecadores — pecadores confessos,
pecadores que realmente tomaram o lugar de pecadores diante de Deus, pecadores que estão
cônscios de que estão perdidos e arruinados.

O "arrependimento para com Deus" do ladrão foi acompanhado da "fé em nosso Senhor Jesus".
Ao contemplar sua fé notamos primeiro que ela foi uma fé de cabeça inteligente. Nos
parágrafos iniciais do presente capítulo chamamos a atenção para a soberania de Deus e sua
graça irresistível e vitoriosa que foram exibidas na conversão desse ladrão. Agora nos
voltaremos a um outro lado da verdade, igualmente necessário de nele se insistir, um lado que
não é contraditório com o que dissemos anteriormente, mas antes complementar e
suplementar. A Escritura não ensina que, se Deus elegeu uma certa alma para ser salva, tal
pessoa será salva independente dela vir a crer ou não. Essa é uma conclusão falsa tirada por
aqueles que rejeitam a verdade. Não, a escritura ensina que o mesmo Deus que predestinou o
fim também predestinou os meios. O Deus que decretou a salvação do ladrão agonizante
cumpriu seu decreto dando a ele fé com a qual crer. Isso é o claro ensinamento de 2
Tessalonicenses 2.13 (e de outras escrituras): "Deus vos escolheu desde o princípio para a
santificação do espírito e a fé na verdade".

É justamente isso que vemos aqui em conexão com esse ladrão. Ele teve "fé na verdade".
Sua fé se apossou da palavra de Deus. Sobre a cruz estava a inscrição: "Este é Jesus, o Rei dos
Judeus". Pilatos a havia colocado ali por mofa. Porém, ainda assim era a verdade, e após ele tê-
la escrito, Deus não permitiria a ele que a alterasse. A tabuleta que portava essa inscrição havia
sido carregada na frente de Cristo pelas ruas de Jerusalém e no lugar da crucificação, e o ladrão
a lera, e a graça e o poder divinos tinham abertos os olhos de seu entendimento para ver que
ela era verdadeira. Sua fé apanhou o sentido do reinado de Cristo, daí mencionar "quando
entrares no teu reino". A fé repousa sempre na palavra escrita de Deus.

Antes que um homem creia que Jesus é o Cristo, deve ter o testemunho diante dele de que
ele é o Cristo. A distinção é freqüentemente feita entre a fé da cabeça e a fé do coração, e isso
com propriedade, pois a distinção é real, e vital. Algumas vezes a fé da cabeça é desvalorizada,
mas isso é tolice. Deve haver essa antes que possa haver aquela. Temos de crer
intelectualmente antes que possamos crer salvificamente no Senhor Jesus. Prova disso é vista
em conexão com os pagãos: eles não têm fé alguma de cabeça e, por conseguinte, não têm fé
nenhuma de coração. Prontamente admitimos que a fé de cabeça não salvará a menos que seja
acompanhada pela fé do coração, mas insistimos que não há nada da segunda a menos que
antes tenha havido a primeira. Como podem crer naquele a respeito de quem não ouviram?
Verdade, pode-se crer acerca dele sem crer nele, mas não se pode crer nele sem primeiro crer
acerca dele. Assim o foi com o ladrão agonizante. Com toda probabilidade ele nunca vira Cristo
antes do dia da sua morte, mas vira a inscrição testificando o seu reinado e o Espírito Santo
usou isso como a base de sua fé. Dizemos então que essa foi uma fé inteligente: primeiro, uma
de tipo intelectual, o crer no testemunho escrito apresentado a ele; segundo, uma fé de
coração, o descansar confiadamente em Cristo mesmo como o Salvador dos pecadores.

Sim, esse ladrão que agonizava exerceu uma fé de coração que descansou salvificamente em
Cristo. Tentaremos ser muito simples aqui. Um homem pode ter fé de cabeça no Senhor Jesus e
estar perdido. Um homem pode crer acerca do Cristo histórico e não estar nada melhor por
causa disso, tal como não o está por crer acerca do Napoleão histórico. Leitor, você pode crer
tudo acerca do Salvador — sua vida perfeita, sua morte sacrifical, sua ressurreição vitoriosa,
sua ascensão gloriosa, seu retorno prometido — mas deve fazer mais do que isso. A fé
evangélica é uma fé confiante. A fé salvífica é mais que uma opinião correta ou uma linha de
raciocínio. A fé salvífica transcende a toda razão. Veja o ladrão agonizante! Era razoável que
Cristo o notasse? Um assaltante crucificado, um criminoso confesso, alguém que há poucos
minutos atrás o estivera insultando! Era razoável que o Salvador devesse reparar de qualquer
forma nele? Era razoável esperar que ele fosse ser transportado da beira do inferno mesmo para
o Paraíso? Ah, meu leitor, a cabeça raciocina, mas o coração não. E a petição desse homem veio
do coração. Ele não tinha como usar suas mãos e pés (e não eram eles necessários à salvação:
antes, a impediam), mas tinha o uso de seu coração e língua. Esses estavam livres para crer e
confessar: "Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a
salvação" (Rm 10.10).

Podemos reparar também que a sua fé era uma fé humilde. Ele orou com conveniente
modéstia. Não foi "Senhor, honra-me", nem "Senhor, exalta-me", mas Senhor, se tu
quiseres, pense em mim! Se tu somente contemplasses a mim — "Senhor, lembra-te de
mim". E, todavia, aquela palavra "lembra-te" era maravilhosamente perfeita e
apropriada. Ele poderia ter dito: Perdoa-me, Salva-me, Abençoa-me; mas "lembra-te"
incluía todas essas. Um interesse no coração de Cristo incluirá um interesse em todos
os seus benefícios! Além disso, tal palavra era bem adequada à condição de quem a
expressou. Ele foi um proscrito da sociedade — quem se lembraria dele! O público não
pensaria mais nada a respeito dele. Seus amigos ficariam contentes por esquecer dele
por haver desgraçado sua família. Mas há um a quem ele ousa confiar essa petição —
"Senhor, lembra-te de mim".

Finalmente, podemos notar que a sua fé era uma fé corajosa. Talvez não pareça à primeira
vista, mas uma pequena consideração tornará isso claro. Aquele que estava pendurado na cruz
do centro era um de quem todos viravam a cara para não olhar e para quem toda a vil zombaria
de uma turba vulgar era direcionada. Toda facção daquele povo se juntou para escarnecer do
Salvador. Mateus nos diz que "os que passavam blasfemavam dele" e que "da mesma maneira
também os príncipes dos sacerdotes, com os escribas, e anciãos". Enquanto Lucas nos informa
que "também os soldados o escarneciam" (23.36). Portanto, é fácil entender por que os ladrões
também se juntaram ao alarido de sarcasmos. Não há dúvidas de que os sacerdotes e escribas
sorrissem benignamente sobre eles enquanto assim agiam. Mas, subitamente, houve uma
mudança. O ladrão penitente, em vez de continuar a troçar e ridicularizar Cristo, voltase para o
seu companheiro e abertamente o censura, nos ouvidos dos espectadores ajuntados em redor
das cruzes, clamando: "este nenhum mal fez". Desse modo, ele condenou toda a nação judaica!
Mais ainda; não somente testemunhou da inocência de Cristo, mas também confessou o reinado
dele. E assim, de um só golpe, ele se retira do favor de seu companheiro e da multidão
também! Falamos hoje da coragem necessária para abertamente testemunhar de Cristo, mas
tal coragem nesses dias se desbota em expressa insignificância perante àquela mostrada
naquele dia pelo ladrão agonizante.

4.Vemos aqui um maravilhoso caso de iluminação espiritual.

É perfeitamente maravilhoso o progresso feito por esse homem naquelas poucas horas de
agonia. Seu crescimento na graça e no conhecimento de seu Senhor foi espetacular. Do breve
registro das palavras que saíram de seus lábios podemos descobrir sete coisas as quais ele
havia aprendido sob a instrução do Espírito Santo.

Primeiro, ele expressa sua crença em uma vida futura onde a retribuição seria dada por
um Deus justo e que vinga o pecado. Prova-o a frase "Tu nem ainda temes a Deus". Ele
passa uma severa reprimenda em seu companheiro, como quem diz, Como ousa você ter
a temeridade de insultar a esse homem inocente? Lembre-se de que brevemente você
terá de aparecer diante de Deus e encarar um tribunal infinitamente mais solene do que
aquele que o sentenciou para ser crucificado. Deus é para ser temido, portanto, fique
quieto.

Segundo, como tenho visto, ele viu sua própria pecaminosidade — "Tu... [não estás] na
mesma condenação? E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos
mereciam" (Lc 23.40,41). Ele reconheceu que era um transgressor. Ele viu que o pecado
merecia punição, que a "condenação" era justa. Ele admitiu que a morte era o que ele merecia.
Isso foi algo que seu companheiro não confessou nem reconheceu.

Terceiro, ele testemunhou da impecabilidade de Cristo — "este nenhum mal fez" (Lc 23.41).
E aqui podemos observar que Deus se deu ao trabalho de preservar o caráter imaculado de seu
Filho. Isso é especialmente visto perto do fim. Judas foi levado a dizer, "[Traí] o sangue
inocente". Pilatos testificou, "nenhum crime acho nele". A esposa desse disse: "Não entres na
questão desse justo". E agora que ele pendia na cruz, Deus abre os olhos desse assaltante para
ver a perfeição de seu Filho amado, e abre seus lábios para que ele testemunhe de sua
excelência.

Quarto, ele não apenas testemunhou da humanidade impecável de Cristo, mas também
confessou sua Divindade — "Senhor, lembra-te de mim", disse. Maravilhosa palavra, essa. O
Salvador pregado ao madeiro, o objeto da aversão dos judeus e alvo de zombaria do populacho
ordinário. Esse ladrão ouvira o insolente desafio dos sacerdotes: "Se és Filho de Deus, desce da
cruz", e resposta alguma fora dada. Mas, movido por fé e não por vista, reconhece e confessa a
deidade do sofredor que estava ao centro.

Quinto, ele creu na condição de salvador do Senhor Jesus. Tinha ouvido a oração de Cristo
por seus inimigos, "Pai, perdoa-lhes..." e àquele cujo coração o Senhor tinha aberto, essa curta
frase tornou-se um sermão de salvação. Seu próprio clamor, "Senhor, lembra-te de mim", trazia
dentro de si seu escopo, "Senhor, salva-me", o que, por conseguinte, faz supor sua fé no
Senhor Jesus como Salvador. Na verdade, ele deve ter crido que Jesus era um Salvador para o
principal dos pecadores ou então, como poderia ter crido que Cristo lembrar-se-ia de alguém tal
como ele!

Sexto, ele demonstrou sua fé no reinado de Cristo — "quando entrares no teu reino". Isso
também foi uma palavra maravilhosa. As circunstâncias externas todas pareciam desmentir seu
reinado. Em vez de estar sentado num trono, ele estava pendurado numa cruz. Em vez de estar
usando um diadema real, sua fronte estava rodeada de espinhos. Em vez de estar
acompanhado por um séqüito de servos, ele estava contado com os transgressores. Entretanto,
ele era rei — Rei dos Judeus (Mt 2.2).
Finalmente, ele ansiou pela segunda vinda de Cristo — "quando entrares". Ele olhou para
longe do presente e para o futuro. Ele viu além dos "sofrimentos", a "glória". Sobre a cruz o
olho da fé detectou a coroa. E nisso ele se antecipou aos apóstolos, pois a incredulidade fechara
os olhos deles. Sim, ele olhou para além do primeiro advento em vergonha para o segundo, em
poder e majestade.

E como podemos explicar a inteligência espiritual desse ladrão agonizante? Onde ele recebeu
tal insight das coisas de Cristo? Como foi que esse bebê em Cristo fez tão estupendo progresso
na escola de Deus? Somente pode ser explicado pela influência divina. O Espírito Santo foi seu
professor! A carne e o sangue não lhe haviam revelado tais coisas mas o Pai no céu. Que
ilustração de que as coisas divinas estão escondidas "dos sábios e entendidos" e reveladas aos
"pequeninos"!

5.Aqui vemos a condição de Cristo como Salvador.

As cruzes estavam separadas por apenas uns poucos decímetros e não demorou a que o
Salvador ouvisse o clamor do ladrão penitente. Qual foi sua resposta a isso? Ele poderia ter dito,
Você merece esse destino: é um assaltante malvado e é digno de morte. Ou, poderia ter
replicado, Você deixou isso tarde mais; você deveria ter me procurado antes. Ah! mas não
prometera ele que "o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora"? Isso ele provou
aqui.

Aos vitupérios que foram lançados sobre ele pela multidão, o Senhor Jesus não prestou
atenção. Ao desafio insolente dos sacerdotes para que descesse da cruz, ele não deu resposta
alguma. Mas à oração desse ladrão contrito e confiante atentou. Nessa hora ele estava em luta
contra os poderes das trevas e suportando a terrível carga da culpa de seu povo, e deveríamos
ter pensado que ele poderia se escusar a atender a petições individuais. Ah! mas um pecador
nunca virá a Cristo em tempo não aceitável. Ele sem demora lhe dá uma resposta de paz.

A salvação do ladrão penitente e crente ilustra não somente a prontidão de Cristo, mas
também seu poder para salvar pecadores. O Senhor Jesus não é um Salvador débil. Bendito
seja Deus que é capaz de "salvar perfeitamente" aqueles que vem a ele através daquele. E
nunca isso foi tão destacadamente mostrado como na cruz. Essa foi a hora da "fraqueza" do
Redentor (2Co 13.4). Quando o ladrão clamou, "Senhor, lembrate de mim", o Salvador estava
em agonia no madeiro maldito. Todavia, mesmo então, mesmo ali, ele teve poder para redimir
essa alma da morte e lhe abrir os portais do Paraíso! Nunca duvide, portanto, ou questione a
suficiência infinita do Salvador. Se um Salvador agonizante pôde salvar, muito mais depois que
ressurgiu em triunfo da sepultura, para nunca mais morrer! Ao salvar esse ladrão, Cristo deu
uma mostra de seu poder na hora mesma em que esse estava quase obscurecido.

A salvação do ladrão agonizante demonstra que o Senhor tem o desejo e é apto para salvar
todos os que vêm até ele. Se Cristo recebeu esse ladrão penitente e crente, então ninguém
precisa se desesperar de não ser bem recebido se tão-somente vier a ele. Se esse assaltante
em agonia não estava além do alcance da misericórdia divina, então ninguém que solicite a
graça divina ficará sem resposta. O Filho do Homem veio "buscar e salvar o que se havia
perdido" (Lc 19.10), e ninguém pode estar numa condição pior do que essa. O evangelho de
Cristo é o poder de Deus "para todo aquele que crê" (Rm 1.16). Ó, não limite a graça divina!
Um Salvador é fornecido até para o "principal" dos pecadores (1Tm 1.15), se tão-somente ele
crer. Mesmo aqueles que chegam à hora da morte ainda em seus pecados não ficam sem
esperança.

Pessoalmente creio que muito, muito poucos sejam salvos num leito de morte, e são as raias
da loucura qualquer homem postergar sua salvação até lá, pois não há garantia nenhuma de
que terá ele um leito de morte. Muitos são cortados subitamente, sem qualquer oportunidade de
deitar e morrer. Todavia, mesmo alguém naquele lugar não está além do alcance da
misericórdia divina. Como disse um puritano, "há um caso tal registrado para que ninguém
precise se desesperar, mas apenas um, na escritura, para que ninguém possa abusar".

Sim, aqui vemos a condição de Cristo como Salvador. Ele veio a este mundo para salvar
pecadores, e o deixou e foi ao Paraíso acompanhado por um criminoso salvo — o primeiro troféu
de seu sangue redentor!
6. Aqui vemos o destino dos salvos na morte.

Em seu esplêndido livro, The Seven Sayings of Christ on the Cross, Dr. Anderson-Berry
assinala que a palavra "Hoje" não está corretamente colocada na tradução de nossas versões
tradicionais, e que a designada correspondência entre o pedido do ladrão e a resposta de Cristo
requer uma construção diferente no último. A forma da réplica de Cristo tem o evidente desígnio
de fazer a correspondência em sua ordem de pensamento à petição do assaltante. Tal será visto
se dispormos as duas em quadros paralelos, como segue:
E disse a Jesus
E disse-lhe Jesus

Senhor

Em verdade te digo
Lembra-te de mim
Estarás comigo
Quando entrares
Hoje
No teu reino
No Paraíso.

Ao ordenarmos assim as palavras, descobrimos a ênfase correta. "Hoje" é a palavra enfática.


Na graciosa resposta de nosso Senhor ao pedido do ladrão temos uma ilustração contundente
de como a graça divina excede as expectativas humanas. O ladrão rogou para que o Senhor se
lembrasse dele em seu reino vindouro, mas Cristo lhe assegura que antes que aquele dia
mesmo tivesse passado ele estaria com o Salvador. O ladrão pede para ser lembrado em um
reino terreno, mas Cristo assegura a ele um lugar no Paraíso. O ladrão simplesmente pede para
ser lembrado, mas o Salvador declarou que deveria estar com ele. Assim Deus faz
abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos.

Não somente a resposta de Cristo significa a sobrevivência da alma após a morte do corpo,
mas nos diz que o crente está com ele durante o intervalo que faz a divisão entre a morte e a
ressurreição. Para tornar isso mais enfático, Cristo precedeu sua promessa com as solenes mas
seguras palavras "Em verdade te digo". Foi essa perspectiva de ir para Cristo depois da morte
que animou o mártir Estevão em sua última hora e, em conseqüência, ele de fato bradou,
"Senhor Jesus, recebe o meu espírito" (At 7.59). Foi essa bendita expectativa que levou o
apóstolo Paulo a dizer, tenho o "desejo de partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito
melhor" (Fp 1.23). Não em um estado de ausência de consciência no túmulo, mas com Cristo no
Paraíso é o que aguarda todo crente após a morte. Digo, todo "crente", pois as almas dos
incrédulos, ao invés de irem para lá, vão para o lugar de tormentos, como está claro no ensino
de nosso Senhor em Lucas 16. Leitor, para onde irá a sua alma, se estiver morrendo nesse
momento?

Quão arduamente Satanás luta para ocultar essa abençoada esperança dos santos de Deus!
Por um lado ele propaga o infeliz dogma do sono da alma, o ensino de que os crentes ficam em
um estado de inconsciência entre a morte e a ressurreição; e, por outro, ele inventa um horrível
purgatório, para aterrorizá-los com o pensamento de que, ao morrerem, passam pelo fogo,
necessário para purificá-los e adequá-los para o céu. Quão inteiramente a palavra de Cristo ao
ladrão liquida essas ilusões que desonram a Deus! O ladrão foi da cruz direto para o Paraíso! O
momento em que um pecador crê, é o momento em que ele é tornado idôneo "para participar
da herança dos santos na luz" (Cl 1.12). "Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre
os que são santificados" (Hb 10.14). Nossa aptidão para a presença de Cristo, tanto quanto
nosso título, repousa unicamente em seu sangue derramado.

7. Aqui vemos o anelo do Salvador por comunhão.

Na comunhão alcançamos o clímax da graça e a essência do privilégio cristão. Mais alto que
essa comunhão não podemos chegar. Deus nos chamou "para a comunhão de seu Filho" (1Co
1.9). Freqüentemente se nos diz que somos "salvos para servir", e isso é verdade, mas é
somente parte dessa, e de modo nenhum a mais maravilhosa e abençoada. Somos salvos para
a comunhão. Deus tinha inumeráveis "servos" antes que Cristo viesse aqui para morrer — os
anjos sempre cumpriram suas ordens. Ele veio primeiramente, não para se assegurar de servos,
mas daqueles que deveriam entrar em comunhão com ele.
O que torna o céu superlativamente atraente ao coração do santo não é o fato de ser um
lugar onde seremos libertos de toda tristeza e sofrimento, de ser onde encontraremos outra vez
aqueles que amamos no Senhor, nem por suas ruas de ouro, portas de pérolas e muros de
jaspe — não, benditas coisas são essas, mas o céu sem Cristo não seria céu. É Cristo que o
coração do crente anseia e almeja — "Quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há
quem eu deseje além de ti" (Sl 73.25). E a mais surpreendente coisa é que o céu não será céu
para Cristo no sentido mais elevado até que seus remidos estejam reunidos em torno dele. É
por seus santos que seu coração deseja ardentemente. Vir outra vez e "receber-nos para si
mesmo" é a jubilosa expectativa posta perante ele. Não até que veja o trabalho de sua alma e
fique totalmente satisfeito.

Esses são os pensamentos sugeridos e confirmados pelas palavras do Senhor Jesus ao ladrão
agonizante. "Senhor, lembra-te de mim" fora seu clamor. E qual foi a resposta? Repare
cuidadosamente nela. Houvesse Cristo simplesmente dito, "Em verdade te digo que hoje estarás
no Paraíso", isso teria cessado os temores do ladrão. Sim, mas isso não satisfez ao Salvador.
Aquilo sobre o qual seu coração estava firmado era o fato de que naquele mesmo dia uma alma
salva por seu precioso sangue deveria estar com ele no Paraíso! Dizemos outra vez, esse é o
clímax da graça e a essência da bênção cristã. Disse o apóstolo que tinha o "desejo de partir, e
estar com Cristo" (Fp 1.23). E novamente ele escreveu: "Ausentes deste corpo" — livres de toda
dor e cuidado? Não. "Ausentes do corpo" — trasladados à glória? Não. "Ausentes deste corpo...
presentes com o Senhor" (2Co 5.8, ARA). Assim também com Cristo. Disse ele: "Na casa de
meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito; vou preparar-vos lugar";
todavia, ao acrescentar "virei outra vez", não diz "E conduzir-vos-ei à casa do Pai", ou "levar-
vos-ei ao lugar que tenho preparado a vós", mas "virei outra vez, e vos tomarei para mim
mesmo" (Jo 14.2,3). Estar "para sempre com o Senhor" (1Ts 4.17) é a meta de todas as nossas
esperanças; ter-nos para sempre consigo é o que ele anseia com ardente e alegre expectativa.
Estarás comigo no Paraíso!

3. A PALAVRA DE AFEIÇÃO

E junto à cruz de Jesus estava sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria de Cleofas, e Maria
Madalena. Ora Jesus, vendo ali sua mãe, e que o discípulo a quem ele amava estava presente,
disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho.

João 19. 25,26

"E JUNTO à cruz de Jesus estava sua mãe" (Jo 19.25). Como seu Filho, Maria estava
familiarizada com o sofrimento. Desde o princípio somos informados: "E, entrando o anjo onde
ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres. E,
vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras e considerava que saudação seria esta" (Lc
1.28,29). Isso foi apenas o prenúncio de muitas perturbações: Gabriel tinha vindo lhe anunciar
o fato da concepção milagrosa, e um momento de reflexão nos mostrará que não foi coisa fácil
para Maria o se tornar a mãe do nosso Senhor dessa forma misteriosa e sem precedentes. Sem
dúvida, isso trouxe, mais tarde, grande honra, mas também não pouco perigo no presente para
a reputação de Maria, e não pouca prova para a sua fé. É belo observar sua quieta submissão à
vontade divina: "Disse, então, Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a
tua palavra" (Lc 1.38), foi a sua resposta. Isso foi resignação amorosa. Todavia, ela ficou
"perturbada" com a Anunciação e, como dissemos, foi apenas o precursor das muitas provas e
aflições.

Que aflição deve ter lhe causado quando, por não haver nenhum quarto na pousada, ela teve
que deitar o seu bebê recém-nascido numa manjedoura! Que angústia deve ter sido a sua
quando soube do intento de Herodes de matar a vida do seu infante! Que transtorno lhe deu ser
forçada, por conta dele, a fugir para um país estrangeiro e residir por vários anos na terra do
Egito! Que golpes penetrantes na sua alma devem ter sido ao ver seu Filho desprezado e
rejeitado pelos homens! Que aperto no coração causava a tristeza de contemplá-lo como odiado
e perseguido pela sua própria nação! E quem pode estimar o que ela experimentou enquanto
permanecia ali ao pé da cruz? Se Cristo foi o homem de dores, não foi ela a mulher de dores?

"E junto à cruz de Jesus estava sua mãe" Jo 19.25


1. Aqui vemos o cumprimento da profecia de Simeão.

De acordo com as exigências da lei de Moisés, os pais do menino Jesus trouxeram-no ao


templo para apresentá-lo ao Senhor. Então, aconteceu que o velho Simeão, que esperava pela
Consolação de Israel, o tomou em seus braços e bendisse a Deus. Depois de dizer:

Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra, pois já os meus
olhos viram a tua salvação, a qual tu preparaste perante a face de todos os povos, luz para
alumiar as nações e para glória de teu povo Israel" (Lucas 2.29-32), ele se voltou para Maria e
disse:

"Eis que este é posto para queda e elevação de muitos em Israel e para sinal que é
contraditado (e uma espada traspassará também a tua própria alma), para que se manifestem
os pensamentos de muitos corações" (Lucas 2.34, 35).

Que estranha palavra, essa! Poderia ser que dela, o maior de todos os privilégios fosse trazer
a maior de todas as tristezas? Parecia a coisa mais improvável quando Simeão falou. Todavia,
quão verdadeira e tragicamente veio a acontecer! Aqui na cruz essa profecia de Simeão foi
cumprida.

"E junto à cruz de Jesus estava sua mãe" (Jo 19.25). Após os dias de sua infância e
adolescência, e durante todo o ministério público de Cristo, vemos e ouvimos muito pouco de
Maria. Sua vida foi vivida na obscuridade, entre as sombras. Mas agora, quando a hora suprema
lhe golpeava com a agonia do seu Filho, quando o mundo rejeitava o filho do seu ventre, ela
permaneceu ali, junto à cruz! Quem pode retratar adequadamente tal figura? Maria estava mais
perto do madeiro cruel! Despojada de fé e esperança, frustrada e paralisada pela estranha cena,
todavia, ligada com a corrente dourada de amor àquele que estava agonizando, ali ela
permanece! Experimente e leia os pensamentos e as emoções do coração daquela mãe. Ó, que
espada foi aquela que perfurou a sua alma então! Felicidade tal como nunca em um nascimento
humano, tristeza tal como nunca em uma morte desumana.

Aqui vemos demonstrado o coração de mãe. Ela é a mãe daquele homem moribundo.
Aquele que agonizava ali sobre a cruz era o seu filho. Ela foi a primeira a beijar aquela
testa agora coroada de espinhos. Ela foi a primeira a guiar aquelas mãos e pés nos seus
movimentos quando bebê. Nenhuma mãe jamais sofreu como ela. Seus discípulos
podem desertá-lo, seus amigos podem esquecê-lo, sua nação pode desprezá-lo, mas sua
mãe permanece ali ao pé da sua cruz. Oh, quem pode sondar ou analisar o coração da
Mãe?

Quem pode mensurar aquelas horas de tristeza e sofrimento à medida que a espada
atravessava lentamente a alma de Maria? Não houve nenhum pranto histérico ou efusivo. Não
houve nenhuma demonstração de fraqueza feminina; nenhum clamor violento vindo de uma
angústia incontrolável; nenhum desmaio. Palavra alguma de seus lábios ficou registrada por
nenhum dos quatro evangelistas: ela aparentemente sofreu em vigoroso silêncio. Todavia, sua
tristeza não foi menos real e aguda. Águas silenciosas penetram fundo. Ela viu aquela testa
perfurada com espinhos cruéis, mas não pôde alisá-la com seu terno toque. Ela viu suas mãos
perfuradas e seus pés ficarem dormentes e pálidos, mas ela não podia esfregá-los. Ela notou
sua necessidade de água, mas não lhe foi permitido saciar sua sede. Ela sofreu em profunda
desolação de espírito.

"E junto à cruz de Jesus estava sua mãe" (Jo 19.25). A multidão estava zombando; os
ladrões, insultando; os sacerdotes, escarnecendo; os soldados, endurecidos e indiferentes; o
Salvador, sangrando e morrendo - e ali está sua mãe contemplando a horrível zombaria. Quem
ficaria maravilhado se ela desmaiasse diante de uma tal visão! Quem ficaria maravilhado se ela
se afastasse de um tal espetáculo! Quem ficaria maravilhado se ela fugisse de uma tal cena!

Mas não! Ali estava ela: não se encolhe, não desmaia, e nem mesmo desaba ao chão em sua
dor - ela permaneceu de pé. Sua ação e atitude são singulares. Em todos os anais da história da
nossa raça não há nenhum paralelo. Que coragem transcendente! Ela permaneceu junto à cruz
de Jesus - que vigor maravilhoso! Ela reprimiu sua dor, e permaneceu ali quieta. Não foi a
reverência pelo Senhor que a guardou de perturbá-lo em seus últimos momentos?
"Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse à
sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela
hora o discípulo a recebeu em sua casa" Jo 19.26, 27

2. Aqui vemos o homem perfeito colocando um exemplo para os filhos honrarem os seus
pais.

O Senhor Jesus evidenciou sua perfeição na maneira com que cumpriu plenamente as
obrigações de toda relação que ele manteve, quer para com Deus, quer para com os homens.
Na cruz nós contemplamos seu terno cuidado e solicitude para com sua mãe, e nisto temos o
padrão de Jesus Cristo apresentado a todos os filhos para que eles o imitem, ensinando-lhes
como se portarem para com os seus pais de acordo com as leis da natureza e da graça.

As palavras que o dedo divino gravou nas duas tábuas de pedra, e que foram dadas a Moisés
no Monte Sinai, nunca foram anuladas. Elas ainda estão em vigor enquanto a terra perdurar.
Cada uma delas está incorporada no ensino didático do Novo Testamento. As palavras de Êxodo
20.2 são reiteradas em Efésios 6.1-3: "Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor,
porque isto é justo. Honra a teu pai e a tua mãe, que é o primeiro mandamento com promessa,
para que te vá bem, e vivas muito tempo sobre a terra".

O mandamento para os filhos honrarem os seus pais vai muito além de uma mera obediência
a essa vontade expressa, embora, certamente, inclua essa. Ele envolve amor e afeição, gratidão
e respeito. Com freqüência se pensa que esse quinto mandamento é dirigido aos jovens
somente. Nada pode estar mais longe da verdade. Inquestionavelmente ele se dirige a eles em
primeiro lugar, pois na ordem da natureza os filhos são sempre primeiramente jovens. Mas
concluir que tal mandamento perca força quando a infância é deixada para trás é não entender
pelo menos metade do seu significado profundo. Como sugerido, a palavra "honra" vai além de
obediência, embora essa seja seu sentido principal. No curso do tempo os filhos crescem até
alcançar a virilidade, que é a idade de plena responsabilidade pessoal, a idade quando eles não
mais estão debaixo do controle dos seus pais, todavia, as suas obrigações não cessaram. Eles
devem aos seus pais um débito que eles nunca podem se desobrigar plenamente. O mínimo dos
mínimos que podem fazer é manter os seus pais em alta estima, colocá-los no lugar de
superioridade e reverenciá-los. No Exemplo perfeito encontramos tanto obediência como estima
manifestadas.

O fato de que o último Adão não veio a este mundo como o primeiro Adão - em plena posse
das glórias distintivas da humanidade: totalmente desenvolvido em corpo e mente - mas como
um bebê, tendo que passar por todo o período da infância, é um fato de tremenda importância e
valor pela luz que ele lança sobre o quinto mandamento. Durante seus primeiros anos, o menino
Jesus estava sob o controle de Maria, sua mãe, e de José, seu pai legal. Isso é belamente
demonstrado no segundo capítulo de Lucas.

Quando chegou aos doze anos, Jesus foi levado por eles até Jerusalém para a festa da
Páscoa. O retrato apresentado é profundamente sugestivo se a devida atenção lhe for dada. No
final da festa, José e Maria partem para Nazaré, acompanhados pelos seus amigos e supondo
que Jesus estivesse com eles. Mas, pelo contrário, ele tinha permanecido na cidade real. Após
um dia de jornada sua ausência foi descoberta. Imediatamente eles voltaram para Jerusalém, e
ali o encontraram no templo. Sua mãe o interroga assim: "Quando os pais viram o menino,
também ficaram admirados. E a sua mãe lhe disse: —Meu filho, por que foi que você fez isso
conosco? O seu pai e eu estávamos muito aflitos procurando você" (Lc 2.48, ARA). O fato de
que ela o buscara "aflita" implica fortemente que ele quase nunca havia estado fora da esfera
imediata da influência dela. Não encontrá-lo por perto foi para ela uma nova e estranha
experiência, e o fato de que ela, assistida por José, o buscou "aflita" revela a bela relação
existente entre eles no lar em Nazaré! A resposta que Jesus deu à sua pergunta, quando
corretamente entendida, também revela a honra que tinha por sua mãe. Estamos bem de
acordo com o Dr. Campbell Morgan de que Cristo não a repreendeu aqui. Em grande medida,
trata-se de uma questão de achar a ênfase correta: "Não sabeis?". Como o expositor
anteriormente mencionado bem o diz: "É como se ele tivesse dito: ‘Mãe, certamente você me
conhece bem o suficiente para saber que nada pode me deter, senão os negócios do Pai". A
seqüência é igualmente bela, pois lemos "E desceu com eles, e foi para Nazaré, e era-lhes
sujeito" (Lc 2.51). E assim, por todo o tempo o Cristo de Deus deu o exemplo para os filhos
obedecerem aos seus pais.
Mas há mais. Aconteceu com Cristo o mesmo que nos sucede: os anos de obediência à Maria
e José terminaram, mas não os anos de "honra". Nas últimas e terríveis horas de sua vida
humana, no meio dos sofrimentos infinitos da cruz, o Senhor Jesus pensou naquela que o
amava e a quem ele amava; ele pensou na sua necessidade presente e proveu para a sua
necessidade futura encomendando-a aos cuidados daquele discípulo que mais profundamente
entendeu o seu amor. Seu pensamento em Maria naquela hora e a honra que ele lhe deu foi
uma das manifestações de sua vitória sobre a dor.

Talvez se requeira uma palavra com relação à forma com que nosso Senhor se dirige à
sua mãe - "Mulher". Até onde os registros dos quatro evangelhos vão, nunca ele a
chamou de sua "Mãe". Para nós que vivemos hoje, a razão para isso não é difícil de ser
discernida. Olhando para os séculos vindouros com previsão onisciente, e vendo o
horrível sistema de Mariolatria tão logo sendo erigido, ele se refreou de usar uma
palavra que de alguma forma sustentasse essa idolatria - a idolatria de prestar à Maria a
veneração que só a seu Filho é devida; a idolatria de adorá-la como sendo "A Mãe de
Deus".

Por duas vezes nos registros dos evangelhos, encontramos sim nosso Senhor se dirigindo a
Maria como "Mulher", e é mais digno de nota que ambas se encontram no de João, o qual, como
bem sabido, apresenta a deidade de nosso Salvador. Os sinóticos o expõe em suas relações
humanas; tal não se dá com o quarto evangelho. O de João apresenta Cristo como o Filho de
Deus, e como tal, acima de todas as relações humanas, e daí a perfeita consonância de mostrar
o Senhor Jesus aqui se dirigindo a Maria como "Mulher".

O ato de nosso Senhor na cruz, encomendando-a aos cuidados de seu amado apóstolo, é
mais bem entendido à luz da viuvez de sua mãe. Ainda que os evangelhos não registrem
especificamente a sua morte, há poucas dúvidas de que José morrera antes do tempo em que o
Senhor Jesus começou seu ministério público. Nada é informado sobre o marido dela após o
incidente relatado em Lucas 2, quando Jesus era um menino de doze anos. Em João 2 Maria é
vista nas bodas de Caná, mas não se fala nada sobre se José estava presente. Foi em vista da
viuvez de Maria, portanto, e também do fato de que o tempo agora chegara, quando não mais
seria um conforto para ela com sua presença corporal, que seu amoroso cuidado é manifestado.

Permita-me apenas uma breve palavra de exortação. Provavelmente tais linhas poderão
ser lidas por várias pessoas adultas que ainda têm pais e mães vivos. Como você está
tratando deles? Está verdadeiramente "honrando-os"? Esse exemplo de Cristo na cruz
não o deixa envergonhado? Pode ser que você seja jovem e vigoroso, e seus pais, de
cabelos grisalhos e doentes; mas diz o Espírito Santo: "não desprezes a tua mãe, quando
vier a envelhecer" (Pv 23.22). Pode ser que você seja rico, e eles, pobres; então não
deixe de prover por eles. Pode ser que eles vivam em um estado ou uma terra distante,
então não seja negligente, deixando de escrever-lhes palavras de apreço e alegria que
darão brilho ao término de seus dias. São obrigações sagradas: "Honra a teu pai e a tua
mãe".

3. Aqui vemos que João retornara ao lado do Salvador.

Com exceção, naturalmente, do sofrimento de Cristo na mão de Deus, talvez a escória mais
amarga de todas no copo em que ele bebeu fosse o seu abandono por parte dos apóstolos. Foi
ruim o bastante e triste o bastante o fato de seu próprio povo, os judeus, desprezarem e
rejeitarem-no; porém, de longe pior foi os Onze, que o haviam acompanhado por tanto tempo,
desertarem de seu Senhor na hora da crise. Alguém pensaria que sua fé e seu amor fossem
iguais mesmo nos sobressaltos. Mas não foram. "Todos... deixando-o, fugiram" (Mt 26.56), é o
que traz a narrativa sacra. Indizivelmente trágico isso. Seu fracasso em "vigiar" com ele por
uma hora no Jardim bem que quase paralisa nossas mentes, mas o afastar-se dele na hora de
sua prisão quase desconcerta a nossa compreensão. Quase, dizemo-lo, pois se não tivermos
aprendido por amarga experiência o engano que há em nossos corações, quão débil é a nossa
fé, quão lamentavelmente fracos nós somos na hora da provação e do teste! Mas, pela graça
divina, a menor das ninharias é suficiente para nos vencer. Tirado o poder retentor e
sustentador de Deus, por quanto tempo nós agüentaríamos?

O Senhor Jesus havia solenemente avisado esses discípulos de sua covardia próxima: "Então
Jesus lhes disse: Todos vós esta noite vos escandalizareis em mim; porque está escrito: Ferirei
o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão" (Mt 26.31). E não apenas Pedro, mas todos
os apóstolos afirmaram sua determinação de ficar ao lado dele:

"Disse-lhe Pedro: Ainda que me seja mister morrer contigo, não te negarei. E todos os
discípulos disseram o mesmo" (Mt 26.35). Entretanto, sua palavra se provou verdadeira, e eles
todos desertaram dele de modo desprezível. E como isso refletia sobre sua glória! Pela fuga
pecaminosa, eles expuseram o Senhor Jesus ao desprezo e troças dos seus inimigos. É por
causa disso que lemos: "O sumo-sacerdote interrogou Jesus acerca dos seus discípulos" (Jo
18.19). Nem é preciso complementar a frase. Sem dúvida, Caifás o inquiriu sobre quantos
discípulos ele tivera, e o que era feito deles agora? E qual foi a razão por que abandonaram seu
Mestre, e o deixaram se arranjar sozinho quando surgiu o perigo? Mas observe que, para essa
questão, o Salvador não deu resposta alguma. Ele não os acusaria ao inimigo comum ainda que
eles tivessem desertado dele.

Eles o abandonaram porque ficaram "ofendidos" por causa dele: "Todos vós ficareis ofendidos
por causa de mim esta noite" (Mt 26.31, KJV): a palavra grega aqui traduzida por "ofendido"
pode bem ser vertida "escandalizado". Ficaram com vergonha de serem achados em sua
companhia. Eles julgaram não ser mais seguro permanecer com ele. Como ele se entregou,
consideraram aconselhável se prevenir o quanto pudessem, e em algum lugar ou outro se
refugiarem da presente tempestade que se abatera sobre ele. Isso forma o lado humano.

Da parte divina, o abandono de Cristo por eles era devido à suspensão da graça preservadora
e sustentadora de Deus. Eles não estavam acostumados a abandoná-lo. Nunca o fariam mais
tarde. Jamais teriam agido assim nesse momento se tivesse havido influências de poder, zelo e
amor vindas do céu sobre eles. Mas então como poderia Cristo ter carregado o fardo e a cólera
daquele dia? Como deveria ele ter pisado o lagar sozinho? Como deveriam suas dores ter ficado
sem lenitivo se eles houvessem aderido fielmente a ele? Não, não, não o deve ser. Cristo não
deve ter o menor alívio ou conforto de qualquer criatura e, por essa razão, para que ele pudesse
ser deixado sozinho com a ira de Deus e do homem, o Senhor por um tempo retém suas
influências revigorantes deles; e então, como Sansão, quando teve cortado os cachos de sua
cabeleira, ficaram tão fracos como os outros homens. "Fortalecei-vos no Senhor e na força do
seu poder", diz o apóstolo — se tal é retido, nossos desígnios e resoluções se derretem diante
da tentação como a neve diante do sol.

Todavia, observe que a covardia e a infidelidade dos apóstolos foi apenas temporária. Mais
tarde, eles o buscaram no lugar assinalado na Galiléia (Mt 28.16). Mas não é motivo de regozijo
saber que um dos onze procurou sim a ele antes de sua ressurreição triunfante do túmulo? Sim,
foi procurado enquanto ainda pendia na cruz de vergonha! E quem se poderia supor que fosse?
Qual do pequeno grupo dos apóstolos deve demonstrar a superioridade de seu amor? Mesmo se
a narrativa sagrada houvesse ocultado sua identidade, não teria sido algo difícil fornecer seu
nome. O fato ora considerado na escritura mostra-nos João ao pé da cruz, e é uma testemunha
silenciosa porém suficiente da divina inspiração da Bíblia. É uma daquelas harmonias
nãointencionadas da palavra que atesta a origem sobre-humana das escrituras. Não há

indicação alguma que qualquer outro dos onze estivesse ao redor da cruz, mas o leitor atento
esperaria achar ali "o discípulo a quem Jesus amava". E lá estava ele. João retornara ao lado do
Salvador, e ali recebe dele uma bendita comissão. Quão natural e quão perfeita é a silenciosa
harmonia da escritura!

E agora, mais uma vez, uma breve palavra de exortação. Há alguém que lê estas linhas que
esteja se apartando do lado do Salvador, que não mais esteja desfrutando da doce comunhão
com ele; que, em uma palavra, esteja desviado? Talvez na hora da prova você o tenha negado.
Talvez na hora do teste você falhou. Você pensa mais nos seus próprios interesses que nos dele.
A honra do nome dele, que você porta, foi perdida de vista. Ó, que a flecha da convicção agora
entre em sua consciência. Possa a divina graça enternecer o seu coração. Possa o poder de
Deus trazê-lo de volta a Cristo, onde somente sua alma pode encontrar satisfação e paz. Aqui
há encorajamento para você. Cristo não repreendeu João por retornar; antes, sua maravilhosa
graça concedeu-lhe um inefável privilégio. Cesse então de suas perambulações e volte
imediatamente a Cristo, e ele o saudará com uma palavra de boas-vindas e de alegria; e quem
sabe se ele não tem uma honrosa comissão aguardando por você!

4. Aqui descobrimos uma ilustração da prudência de Cristo.


Já vimos como o ato de Cristo em encomendar Maria às mãos de seu discípulo foi uma
expressão de seu terno amor e de sua presciência. Pois João se encarregar da mãe viúva do
Salvador foi uma abençoada comissão e, contudo, um legado precioso. Quando Cristo lhe disse,
"Eis aí tua mãe", foi como se tivesse dito, Seja ela para ti como tua própria mãe: Seja teu amor
por mim agora manifestado em teu terno cuidado por ela. Porém, havia muito mais do que isso
por trás desse ato de Cristo.

Outrora já fora predito que o Senhor Jesus deveria agir sábia e discretamente. Por meio
de Isaías, Deus dissera: "Eis que o meu servo operará com prudência" (52.13). Ao
encomendar sua mãe aos cuidados de seu amado apóstolo, o Salvador mostrou sábia
discriminação em sua escolha daquele que a partir de então seria o guardião dela.
Talvez não houvesse ninguém que compreendesse o Senhor Jesus tão bem quanto sua
mãe, e é quase certo que ninguém apreendera seu amor tão profundamente quanto João.
Vemos portanto como seriam eles companhias apropriadas um para o outro, visto que
havia um laço íntimo de simpatia comum que os unia juntamente e os ligava a Cristo!
Desse modo, não havia ninguém tão adequado para cuidar de Maria, ninguém cuja
companhia ele acharia tão afim e, por outro lado, não existia ninguém cuja companhia
João pudesse desfrutar mais.

Além disso, deve-se ter na mente que uma obra maravilhosa e honrosa estava esperando por
João. Anos mais tarde, o Senhor Jesus foi revelar a si próprio ao apóstolo no glorioso
apocalipse. Como, então, ele melhor poderia se habilitar para tal senão estando constantemente
com ela, que vivera em estreita intimidade e comunicação com o Salvador durante os trinta
anos que ele tinha esperado para dar início ao seu trabalho! Podemos, portanto, ver como era
de significativa propriedade que esses dois — Maria e João — fossem trazidos para junto um do
outro. Admire então a prudência da eleição por Cristo de um lar para Maria, e ao mesmo tempo
provendo uma companhia para o discípulo a quem ele amava, que poderia ter uma bendita
companhia espiritual.

Antes de passarmos para o nosso próximo ponto, podemos fazer uma observação de que
esse recolhimento de Maria à casa de João traz luz a um incidente registrado no próximo
capítulo do evangelho escrito por ele. Em João 20 se nos informa da visita de Pedro e João ao
sepulcro vazio. João ultrapassou seu companheiro e chegou primeiro ao túmulo, mas não
entrou. Pedro, como era de sua característica, adentra o sepulcro, e nota a ordenada disposição
das roupas. Então entra João e vê e "crê", pois até esse tempo a fé deles não tinha apanhado o
sentido das promessas da ressurreição de Cristo. Conseqüente com a crença de João, lemos: "E
os discípulos voltaram assim para os seus lares" (Jo 20.10, Tradução do Novo Mundo). Não nos
é dito o porquê deles assim agirem, mas, à vista de João 19.27, a explicação fica óbvia. Ali se
nos conta que "desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa", e agora que fica sabendo
que o Salvador ressurgira dentre os mortos, e se apressa para "casa" para dizer a ela as boas
novas! Quem mais do que ela regozijar-se-ia ante essas notícias alvissareiras! Esse é um outro
exemplo da harmonia silenciosa e escondida da escritura.

5. Aqui vemos que as relações espirituais não devem ignorar as responsabilidades naturais.

O Senhor Jesus estava morrendo como o Salvador para os pecadores. Ele estava
comprometido com a mais importante e estupenda incumbência que esta terra jamais
testemunhou ou testemunhará. Ele estava a ponto de oferecer satisfação à justiça divina
ultrajada. Ele estava para fazer aquela obra pela qual o mundo fora feito, pela qual a
raça humana fora criada, pela qual todas as eras aguardaram, e pela qual ele, o Verbo
eterno, se encarnara. Entretanto, ele não passou por cima das responsabilidades dos
laços naturais; ele não deixou de fazer provisão àquela que, de acordo com a carne, era
sua mãe.

Há aqui uma lição a qual muitos precisam levar a sério nos dias correntes. Nenhuma
obrigação, nenhuma obra, por importante que seja, pode nos servir de escusa para deixarmos
as obrigações de natureza, de cuidar daqueles por quem temos deveres de sangue. Aqueles que
partem como missionários para labutar em terras pagãs, e que deixam para trás seus filhos, ou
que os enviam de volta à terra natal para serem cuidados por estranhos, não estão seguindo os
passos do Salvador. Aquelas mulheres que passam a maior parte de seu tempo em reuniões
públicas, ainda que sejam de cunho religioso, ou que descem às favelas para ministrar aos
pobres e necessitados, negligenciando sua própria família em casa, só estão trazendo vitupério
ao nome e à causa de Cristo. Tais homens, mesmo que estejam à frente da obra de Cristo, que
estão tão ocupados pregando e ensinando que não têm tempo algum para cumprir as
obrigações por ele devidas às suas próprias esposas e filhos, precisam estudar e praticar o
princípio exemplificado aqui por Cristo na cruz.

. Aqui vemos uma necessidade universal exemplificada.

Quão diferente é a Maria da escritura da Maria da superstição! Ela não era nenhuma Madona
altiva, mas um membro da raça caída como cada um de nós, uma pecadora tanto por natureza
quanto por prática. Antes do nascimento de Cristo ela declarou: "A minha alma engrandece ao
Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador" (Lc 1.46,47). E agora, na morte do
Senhor Jesus ela é encontrada perante a cruz. A palavra de Deus não apresenta a mãe de Jesus
como a rainha dos anjos adornada com diadema, mas como alguém que se deleitava em um
Salvador. É verdade que ela é "bendita entre (não ‘acima de’) as mulheres", e isso em virtude
da elevada honra de ser a mãe do Redentor; todavia, ela era humana, um membro real de
nossa raça caída, uma pecadora que precisava de um Salvador.

Ela permaneceu junto à cruz. E quando ali estava, o Salvador exclamou, "Mulher, eis aí o teu
filho!" (Jo 19.26). Ali, resumida numa simples palavra, é expressa a necessidade de todo
descendente de Adão — voltar os olhos do mundo, para fora do eu, e olhar por fé para o
Salvador que morreu pelos pecadores. Ali está o divino epítome do Caminho da Salvação.
Libertação da ira vindoura, perdão dos pecados, aceitação por parte de Deus, tudo isso é obtido,
não por feito meritório, não por boas obras, não por ordenanças religiosas; não, a salvação vem
por contemplar — "Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo". Assim como os
israelitas mordidos pelas serpentes no deserto foram curados por um olhar, por um olhar para o
que Jeová designou que fosse o objeto da fé deles, também hoje a redenção da culpa e do
poder do pecado, a libertação da maldição da lei quebrada e do cativeiro de Satanás, deve ser
encontrada somente pela fé em Cristo. "E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim
importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna" (João 3.14,15). Há vida em um olhar. Leitor, você já contemplou
desse modo aquele divino Sofredor? Você o viu morrendo na cruz, o justo pelo injusto, para que
pudesse nos trazer para Deus? Maria, mãe de Cristo, precisava "contemplá-lo", e assim é com
você. Olhe então, olhe para Cristo e serás salvo.

7. Aqui vemos a maravilhosa combinação das perfeições de Cristo.

Essa é uma das maiores maravilhas de sua pessoa — a combinação da mais perfeita afeição
humana com sua glória divina. O próprio evangelho que o mostra sobretudo como Deus é aqui
cuidadoso par provar que ele era homem — o Verbo que se fez carne. Comprometido que
estava na divina transação, fazendo expiação por todos os pecados de seu povo, lutando contra
os poderes das trevas, todavia, em meio a isso tudo, ele ainda tinha a mesma ternura humana,
que mostra a perfeição do homem Jesus Cristo.

Esse cuidado por sua mãe na hora da morte era característico de toda a sua conduta. Tudo
era natural e perfeito. A simplicidade não estudada dele é mais notada. Não havia nada
pomposo ou faustoso. Muitas das suas mais poderosas obras foram feitas no caminho, na
cabana ou entre um pequeno grupo de sofredores. Muitas de suas palavras,

que ainda hoje são insondáveis e inexauríveis em sua riqueza de significação, foram
proferidas quase que casualmente enquanto caminhava com alguns amigos. Assim o foi
na cruz. Ele estava executando aquela mais poderosa obra de toda a história. Ele estava
comprometido em realizar aquela que faz com que, em comparação, a criação do mundo
se esmaeça em total insignificância, porém, não esquece de fazer provisão para sua mãe
— provisão essa que ele pôde fazer bastante quando estiveram juntos na casa em
Nazaré. Corretamente foi dito outrora: "Seu nome será Maravilhoso" (Is 9.6).
Maravilhoso o foi em tudo que fez. Maravilhoso o foi em todo relacionamento que ele
manteve. Maravilhoso o foi em sua pessoa, e maravilhoso o foi em sua obra.
Maravilhoso o foi em vida, e maravilhoso o era na morte. Que nos maravilhemos e
adoremos.

4 A PALAVRA DE ANGÚSTIA

"E perto da hora nona exclamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lama sabactani;
isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

Mateus 27.46
"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

ESSAS SÃO PALAVRAS DE CHOCANTE IMPORTÂNCIA. A crucificação do Senhor da glória foi o


mais extraordinário evento que já aconteceu na terra, e esse brado do padecente foi a mais
extraordinária expressão daquela aterradora cena. Que um inocente fosse condenado, que o
sem culpa fosse perseguido, que um benfeitor fosse cruelmente sentenciado à morte, não era
nenhum acontecimento novo na história. Do assassínio do justo Abel àquele de Zacarias houve
uma longa lista de martírios. Mas aquele que pendurado estava na cruz do centro não era
nenhum homem comum, era o Filho do Homem, aquele no qual todas as excelências se
encontravam — o Perfeito. Seu caráter era como sua túnica, "tecida toda de alto a baixo, [e]
não tinha costura".

No caso dos outros maltratados havia deméritos e manchas que poderiam proporcionar aos
seus assassinos algo com que culpá-los. Mas desse o juiz falou: "Não acho nele crime algum".

E mais. Esse Sofredor não era apenas um homem perfeito, mas o Filho de Deus. Todavia,
não era estranho que o homem quisesse destruir Deus. "Disse o néscio no seu coração: Não há
Deus" (Sl 14.1), tal é o seu desejo. Mas é estranho que aquele que era Deus manifestado na
carne devesse permitir a si mesmo ser assim tratado por seus inimigos. É extremamente
estranho que o Pai que se deleitava nele, cuja própria voz declarara dos céus abertos, "Este é o
meu Filho amado, em quem me comprazo", devesse entregá-lo a uma morte tão vexaminosa.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

Essas são palavras de estarrecedora miséria. A própria palavra "desamparaste" é uma das
mais trágicas em todas as línguas humanas. O escritor jamais se esquecerá da sensação que
teve ao passar uma vez por uma cidade deserta, sem habitante algum — uma cidade
desamparada. Que calamidades são conjuradas por tal palavra — um homem desamparado de
seus amigos, uma esposa desamparada de seu marido, uma criança desamparada por seus
pais! Mas uma criatura desamparada por seu Criador, um homem desamparado de Deus — Ó,
isso é o mais horrendo de tudo. Esse é o mal dos males. Isso é a calamidade climatérica.
Verdade, os homens caídos, em sua condição não renovada, não o acham. Mas aquele que, pelo
menos em certa medida, aprendeu que Deus é a essência de toda perfeição, a fonte e a meta
de toda excelência, cujo clamor é "Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim
suspira a minha alma por ti, ó Deus!" (Sl 42.1), prontamente endossará o que acaba de ser
dito. O clamor dos santos em todas as eras tem sido, "Não nos desampare, ó Deus". Pois o
Senhor esconder sua face de nós por um momento que seja é insuportável. Se isso é verdade
quanto aos pecadores regenerados, quão infinitamente mais o é quanto ao Filho amado
do Pai!

Aquele que estava pendurado no madeiro maldito tinha sido desde toda eternidade o
objeto do amor do Pai. Empregando a linguagem de Provérbios 8, o Salvador padecente
era aquele que "estava com ele e era seu aluno", que estava "cada dia as suas delícias".
Seu próprio gozo fora contemplar a face do Pai. A presença do Pai fora seu lar, o seio
do Pai o lugar de sua habitação, a glória do Pai ele compartilhara antes que houvesse o
mundo. Durante os trinta e três anos que o Filho estivera na terra ele desfrutara de
comunhão ininterrupta com o Pai. Nunca um pensamento que estivesse fora da
harmonia com a mente do Pai, nunca uma volição que não fosse originária da vontade
do Pai, nunca um momento que fosse passado fora de sua presença consciente. O que
então deve ter significado estar por ora "desamparado" por Deus! Ah, o ocultamento
da face divina dele foi o mais amargo ingrediente daquele copo que o Pai tinha dado ao
Redentor para beber:

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

Essas são palavras de inigualável sentimento. Elas marcam o clímax de seus sofrimentos. Os
soldados haviam cruelmente zombado dele: enfeitaram-no com a coroa de espinhos, tinham-no
açoitado e esbofeteado, tinham até chegado a ponto de cuspir nele e arrancar seus cabelos.
Despojaram-no de seus vestidos e o expuseram a uma vergonha explícita. Todavia, sofreu tudo
isso em silêncio. Perfuraram suas mãos e seus pés, porém suportou a cruz, a despeito da
ignomínia. A multidão vulgar escarnecia dele, e os ladrões com ele crucificados lhe lançavam em
rosto os mesmos insultos; todavia, não abriu sua boca. Em resposta a tudo que sofria das mãos
dos homens, nenhum clamor escapou de seus lábios. Mas agora, quando a ira concentrada do
céu desce sobre si, ele exclama: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"
Seguramente, esse era um clamor que deveria enternecer o mais duro coração!

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

Essas são palavras do mais profundo mistério. Outrora o Senhor Jeová não abandonava
seu povo. Repetidamente ele foi seu refúgio na tribulação. Quando Israel esteve em
cruel servidão clamou a Deus, e ele o ouviu. Quando ficou impotente diante do Mar
Vermelho, ele veio em seu auxílio e o livrou de seus inimigos. Quando os três hebreus
foram lançados dentro da fornalha de fogo, o Senhor esteve com eles. Mas daqui, da
cruz, sobe um clamor mais dorido e agonizante do que jamais subira da terra do Egito,
entretanto, não ouve resposta alguma! Eis aí uma situação de longe mais alarmante do
que a crise do Mar Vermelho: inimigos mais implacáveis cercaram esse, e no entanto
não houve livramento algum! Eis aí um fogo que ardia infinitamente mais do que o da
fornalha de Nabucodonosor, mas sem ninguém ao seu lado para confortar! Ele é
abandonado por Deus!

Não obstante, esse clamor do Salvador padecente é profundamente misterioso. De início


clamou, "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem", e isso podemos compreender, pois
está em boa conformidade com seu coração compassivo. Outra vez abrira ele sua boca, para
dizer ao ladrão penitente, "Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso", e isso
também podemos entender bem, pois está totalmente de acordo com sua graça para com os
pecadores. Uma vez mais seus lábios se moveram — para sua mãe, "Mulher, eis aí o teu filho";
para o amado João, "Eis aí tua mãe" — e isso também podemos apreciar. Porém, na próxima
vez em que ele abre sua boca, um brado nos faz ficar sobressaltados e desconcertados. Outrora
disse Davi, "Nunca vi desamparado o justo", mas aqui vemos o Justo desamparado.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

Essas são palavras da mais profunda solenidade. Esse foi um clamor que fez a própria
terra estremecer, e que reverberou por todo o universo. Ah, que mente é suficiente para
contemplar essa maravilha das maravilhas! Que mente é capaz de analisar o sentido
desse estupendo clamor que rasgou as trevas medonhas! "Por que me desamparaste?"
são palavras que nos conduzem para dentro do Santo dos Santos. Aqui, se é que não o é
assim também em todo lugar, é supremamente conveniente que removamos os sapatos
da curiosidade carnal. As especulações são profanas; podemos apenas nos maravilhar e
adorar.

Mas, embora tais palavras sejam de importância chocante, de assustadora miséria, do mais
profundo mistério, de singular sentimento, e de profunda solenidade, entretanto, não somos
deixados em ignorância quanto ao significado. Verdade, tal clamor foi profundamente
misterioso, todavia, é capaz da mais abençoada solução. As Escrituras Sagradas não deixam
margem para dúvidas de que tais palavras de inigualável tristeza foram tanto a mais completa
manifestação do amor divino e da mostra mais inspiradora de terror da inflexível justiça divina.
Possa todo pensamento ser agora trazido cativo a Cristo e nossos corações ficarem devidamente
graves enquanto analisamos mais de perto esse quarto pronunciamento do Salvador
agonizante.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

1. Aqui vemos a enormidade do pecado e o caráter de seu salário.

O Senhor Jesus foi crucificado ao meio-dia, e na luz do Calvário tudo foi revelado em seu
verdadeiro caráter. Ali, a própria natureza das coisas foi plena e finalmente exibida. A
depravação do coração humano — seu ódio por Deus, sua ingratidão abjeta, seu amor às trevas
no lugar da luz, sua preferência por um assassino no lugar do Príncipe da vida — foi
horrivelmente mostrada. O terrível caráter do diabo — sua hostilidade contra Deus, sua
insaciável inimizade contra Cristo, seu poder de pôr no coração do homem a traição ao Salvador
— foi plenamente exposta. Assim, também, as perfeições da natureza divina — a inefável
santidade de Deus, sua justiça inflexível, sua ira terrível, sua graça sem par — foi de todo
conhecida. E ali também foi que o pecado — sua vileza, sua torpeza, sua não sujeição a leis —
foi claramente exibido. Aqui nós vemos a horrenda extensão a que o pecado chegará. Em sua
primeira manifestação ele tomou a forma de suicídio, pois Adão destruiu sua própria vida
espiritual; em seguida o vemos em forma de fratricídio — Caim matando seu próprio irmão;
mas na cruz o clímax é atingido, com o deicídio — o homem crucificando o Filho de Deus.

Porém, não apenas vemos a hediondez do pecado na cruz, mas ali também descobrimos o
caráter de seu horrível pecado. "O salário do pecado é a morte" (Rm 6.23). A morte é a herança
do pecado. "Por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também
a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram" (Rm 5.12). Não houvesse
pecado nenhum, não haveria morte alguma. Mas o que é "morte"? É aquele pavoroso silêncio
que reina supremo após se dar o último fôlego e o corpo ficar sem movimentos? É aquela
cadavérica palidez que vem sobre a face quando o sangue cessa de circular e os olhos ficam
sem expressão? Sim, é isso, mas muito mais. Algo de longe mais patético e trágico do que a
dissolução física está contido no termo.

O salário do pecado é a morte espiritual. O pecado separa de Deus, que é a fonte de toda
vida. Isso foi manifestado no Éden. Antes da Queda, Adão desfrutava de bendita
companhia com seu Criador, mas na própria véspera daquele dia que marcou a entrada
do pecado em nosso mundo, enquanto o Senhor Deus entrava no Jardim e sua voz era
ouvida por nossos primeiros pais, o par culpado escondeu-se entre as árvores do lugar.
Não mais poderiam eles gozar de comunhão com ele que é sempre Luz, antes, ficaram
alienados dele. Assim, também, se deu com Caim: quando interrogado pelo Senhor ele
disse: "Da tua face me esconderei" (Gn 4.14). O pecado exclui da presença de Deus.
Essa foi a grande lição ensinada a Israel. O trono de Jeová estava no meio deles, todavia
não era mais acessível. Ele habitava entre os querubins no santo dos santos e a esse
ninguém poderia chegar, com exceção do sumo sacerdote, e ele, apenas um dia por ano,
levando sangue consigo. O véu pendurado tanto no tabernáculo quanto no templo,
vedando o acesso ao trono divino, testemunhava o solene fato de que o pecado separa
dele.

O salário do pecado é a morte, não somente física, mas espiritual; não meramente natural
mas, essencialmente, morte penal. O que é morte física? É a separação da alma e do espírito do
corpo. Assim, a morte penal é a separação da alma e do espírito de Deus. A palavra da verdade
fala daquela que vive em prazer como "embora viva, está morta" (1Tm 5.6, ARA). Repare,
ainda, como a maravilhosa parábola do filho pródigo ilustra a força do termo "morte". Após o
retorno do pródigo o pai disse: "Este meu filho estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi
achado" (Lc 15.24). Enquanto ele estava na "terra longínqua", não havia cessado de existir;
não, ele não estava morto fisicamente, mas espiritualmente — estava alienado e separado de
seu pai!

Agora, na cruz, o Senhor Jesus estava recebendo o salário que era devido por seu povo. Ele
não tinha pecado algum que fosse seu, pois era o Santo de Deus. Mas estava levando nossos
pecados em seu próprio corpo no madeiro (1Pd 2.24). Ele tinha tomado o nosso lugar e estava
padecendo o Justo pelo injusto. Ele estava carregando o castigo que nos traz a paz; e o salário
de nossos pecados, o sofrimento e castigo que era devido a nós, era "morte". Não meramente
física, mas penal; e, como dissemos, isso significava separação de Deus, e daí o Salvador ter
clamado: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

Assim, também, será com aquele que for impenitente até o fim. O pavoroso destino que
aguarda o perdido é, dessa forma, exposto: "os quais sofrerão, como castigo, a perdição
eterna, banidos da face do senhor e da glória do seu poder" (2Ts 1.9, ARA). Separação
eterna daquele que é a fonte de todo bem e a origem de toda bênção. Ao ímpio, Cristo
dirá: "Apartai-vos de mim, malditos" — banimento de sua presença, um eterno exílio
de Deus, é o que espera o condenado eternamente. Essa é a razão por que o Lago de
Fogo — a eterna morada daqueles cujos nomes não estão escritos no livro da vida — é
designada "A Segunda Morte" (Ap 20.14). Não que haverá extinção do ser, mas
separação eterna do Senhor da Vida, uma separação a qual Cristo sofreu por três horas
enquanto estava pendurado no lugar do pecador. Na cruz, então, Cristo recebeu o salário
do pecado.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"


2. Aqui vemos a absoluta santidade e a inflexível justiça de Deus.

A tragédia do Calvário deve ser vista de pelo menos quatro pontos de vista. Na cruz o
homem fez uma obra: ele mostrou sua depravação ao pegar o Perfeito e com "mãos iníquas"
pregando-o no madeiro. Na cruz Satanás fez uma obra: ele manifestou sua insaciável inimizade
contra a semente da mulher ferindo o calcanhar dele. Na cruz o Senhor Jesus fez uma obra:
morreu o Justo pelos injustos para pudesse nos trazer a Deus. Na cruz Deus fez uma obra: ele
exibiu sua santidade e satisfez sua justiça derramando sua ira sobre aquele que foi feito pecado
por nós.

Que pena humana é capaz ou apropriada para escrever acerca da imaculada santidade
divina! Tão santo é Deus que o mortal não pode vê-lo em seu ser essencial, e viver. Tão santo é
Deus que os próprios céus não são puros aos seus olhos. Tão santo é Deus que até os serafins
cobriam suas faces com véus diante dele. Tão santo é Deus que, quando Abraão ficou de pé
perante ele, clamou, "Sou pó e cinza" (Gn 18.27). Tão santo é Deus que, quando Jó entrou em
sua presença, disse: "Por isso me abomino" (Jó 42.6). Tão santo é Deus que, quando Isaías
teve uma visão de sua glória, exclamou: "Ai de mim, que vou perecendo porque... os meus
olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos" (Is 6.5). Tão santo é Deus que, quando Daniel o
contemplou numa manifestação teofânica, declarou: "Não ficou força em mim; desfigurou-se a
feição do meu rosto" (Dn 10.8). Tão santo é Deus que nos é dito: "Tu és tão puro de olhos que
não podes ver o mal, e que não podes contemplar a perversidade" (Hc 1.13). E foi porque o
Salvador estava levando nossos pecados que o trinamente santo Deus não o contemplou, virou
sua face dele, abandonou-o. O Senhor fez que se encontrasse em Jesus as iniqüidades de nós
todos: e nossos pecados estando sobre ele como nosso substituto, a ira divina contra as nossas
ofensas devesse passar sobre nossa oferta de pecado.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" Essa era uma questão que nenhum
daqueles ao redor da cruz podia ter respondido; era uma questão que, ao mesmo tempo,
nenhum dos apóstolos podia ter respondido; sim, era uma questão que havia confundido

os anjos no céu, deixando-os sem resposta. Mas o Senhor Jesus havia respondido sua própria
questão, e sua resposta é achada no Salmo 22. Esse salmo fornecia a mais maravilhosa
predição profética de seus sofrimentos. Ele abre com as próprias palavras da quarta elocução de
nosso Salvador sobre a cruz, e é seguido por mais soluços de agonia no mesmo tom até que, no
versículo 3, achamo-lo dizendo — "Tu és Santo". Ele se queixa, não da injustiça, antes
reconhece a retidão de Deus — tu és santo e justo em cobrar de minhas mãos toda a dívida
para a qual me fiz fiador; tenho de responder pela totalidade dos pecados de todo meu povo e,
por conseguinte, ó Deus, és parte legítima em me golpear com tua espada desperta. Tu és
santo; tu és puro quando julgas.

Na cruz, então, como em nenhum outro lugar, vemos a infinita malignidade do pecado e da
justiça divina na punição desse. Não foi o mundo antigo coberto pelas águas? Não foram
Sodoma e Gomorra destruídas por uma tempestade de fogo e enxofre? Não foram as pragas
enviadas sobre o Egito e Faraó e seus exércitos afogados no Mar Vermelho? Nesses casos, o
demérito do pecado e o ódio de Deus por ele puderam ser vistos; mas muito mais o é aqui, em
que Cristo é desamparado por ele. Vá ao Gólgota e veja o Homem que é Companheiro de Jeová
bebendo do copo da indignação do Pai, castigado pela espada da justiça divina, ferido pelo
próprio Senhor, sofrendo até a morte, pois Deus "não poupou seu próprio Filho" quando o
pendurou no lugar do pecador.

Eis como a própria natureza antecipara a terrível tragédia — o próprio contorno do chão se
assemelha a um crânio. Eis a terra tremendo sob a poderosa carga da ira despejada. Eis os céus
e o sol fugirem de uma tal cena, e a terra ser coberta de trevas. Aqui podemos ver a pavorosa
cólera de um Deus que vinga o pecado. Nem todos os relâmpagos do julgamento divino que
foram liberados nos tempos do Antigo Testamento, nem todas as taças da ira que serão
despejadas sobre uma Cristandade apóstata durante os tempos sem paralelos da Grande
Tribulação, nem todo choro e lamento e ranger de dentes dos condenados para sempre no Lago
de Fogo jamais deram ou mesmo darão uma tal demonstração da inflexível justiça de Deus e de
sua inefável santidade, de seu infinito ódio ao pecado, como o fez a ira divina que ardeu contra
seu próprio Filho na cruz. Porque estava sofrendo o horripilante julgamento do pecado, foi
desamparado por Deus. Aquele que era o Santo, cuja própria repulsa ao pecado era infinita, que
era a pureza encarnada (1Jo 3.3), [Deus] "o fez pecado por nós" (2Co 5.21); portanto, ele se
curvou mesmo perante a tempestade de ira, na qual foi mostrado o desprazer divino contra os
incontáveis pecados de uma grande multidão que homem algum pode numerar. Essa, então, é a
verdadeira explicação do Calvário. O santo caráter de Deus não podia fazer nada senão julgar o
pecado, mesmo que fosse achado no próprio Cristo. Na cruz, pois, a justiça divina foi satisfeita e
sua santidade reivindicada.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

3. Vemos aqui a explicação do Getsêmane.

À medida que nosso bendito Senhor se aproximava da cruz o horizonte para ele se escurecia
mais e mais. Desde a mais tenra infância ele havia sofrido por causa do homem; desde o
princípio de seu ministério público ele havia sofrido por causa de Satanás; porém, na cruz ele
devia sofrer na mão de Deus. O próprio Jeová devia ferir o Salvador, e era isso que obscurecia
tudo o mais. No Getsêmane ele adentrou na escuridão das três horas de trevas na cruz. Eis o
porquê de ele deixar os três discípulos nas imediações do jardim, pois ele devia pisar o lagar
sozinho. "A minha alma está profundamente triste", ele clamou. Isso não era recuar,
horrorizado, antecipando uma morte cruel. Não era o pensamento da traição por seu próprio
amigo com quem estava familiarizado, nem da deserção por seus estimados discípulos na hora
da crise, nem da expectativa das zombarias e ultrajes, dos açoites e dos pregos, que oprimia
sua alma. Não, toda essa angústia da mais severa ao seu espírito sensível, nada era se
comparada com a que ele teve de suportar como Portador do Pecado.

"Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmane, e disse aos seus discípulos:
Assentai-vos aqui, enquanto vou além orar. E levando consigo Pedro e os dois filhos de
Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está
cheia de tristeza até à morte; ficai aqui, e velai comigo. E, indo um pouco mais para diante,
prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível, passe de mim este
cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres." (Mt 26.36-39).

Aqui ele observa as negras nuvens surgindo, vê a terrível tempestade chegando, ele
premeditava o inexprimível horror daquelas três horas de trevas e tudo o que elas continham.
"A minha alma está profundamente triste", ele clama. O grego é mais enfático. Ele estava
cercado de tristeza. Ele estava completamente imerso na ira divina. Todas as faculdades e
poderes de sua alma estavam esmagados pela angústia. S. Marcos emprega uma outra forma
de expressão — "Ele começou a ficar extremamente atônito" (14.33, KJV). O original traz o
significado de a maior extremidade do pavor, como a que faz com que alguém ficar de cabelo
em pé e o corpo arrepiado. E, acrescenta Marcos, "e a ficar muito triste", o que denota que
havia um total abatimento de espírito; seu coração estava derretido como cera à vista do
terrível cálice.

Mas o evangelista Lucas, dentre todos, é o que usa os termos mais fortes: "E, posto em
agonia, orava mais intensamente. E o seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que
corriam até o chão" (Lc 22.44). A palavra grega para "agonia" aqui, quer dizer estar envolvido
em um combate. Antes, ele combatera as oposições dos homens e as do diabo, mas agora ele
encara o cálice que Deus lhe dá a beber. Era o que continha a ira não diluída do ódio divino para
com o pecado. Isso explica o porquê dele dizer: "Se queres, passa de mim este cálice". O
"cálice" é o símbolo de comunhão, e não poderia haver comunhão alguma em sua ira, mas
somente em seu amor. Entretanto, ainda que isso significasse ser cortado daquela, ele adiciona:
"Todavia, não se faça a minha vontade, mas a tua". Todavia, tão grande foi sua agonia que "seu
suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão".

Pensamos que não pode haver a menor dúvida de que o Salvador verteu gotas de sangue de
verdade. Seria diminuir aí o significado dizer que seu suor parecia sangue, mas não o era
realmente. Parece-nos que a ênfase está posta na palavra "sangue". Ele verteu sangue —
exatamente como grandes gotas de água comumente. E vemos aqui a adequação do lugar
escolhido para ser a cena desse terrível mas preliminar sofrimento. Getsêmane — ah, teu nome
te denuncia! Tem o sentido de prensa de azeite. Era o lugar onde o sangue vital das olivas era
extraído por pressão gota a gota! O lugar escolhido foi bem nomeado, pois. Era de fato um
apropriado escabelo para a cruz, um escabelo de agonia inexprimível e sem paralelos. Na cruz,
então, Cristo tomou todo o cálice que lhe foi apresentado no Getsêmane.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"


4. Aqui vemos a inabalável fidelidade a Deus do Salvador.

O abandono do Redentor por Deus era um fato solene, e uma experiência que nada lhe
deixava senão apoiar-se em sua fé. A posição de nosso Salvador na cruz foi
absolutamente singular. Isso pode ser prontamente visto ao se contrastar suas próprias
palavras faladas durante seu ministério público com aquelas proferidas na própria cruz.
Antes dizia ele: "Eu bem sei que sempre me ouves" (Jo 11.42); agora ele clama, "Deus
meu, eu clamo de dia, e tu não me ouves" (Sl 22.2)! Antes dizia ele: "E aquele que me
enviou está comigo; o Pai não me tem deixado só" (Jo 8.29); agora ele clama, "Deus
meu, Deus meu, por que me DESAMPARASTE?" Ele não tinha absolutamente nada
agora em que descansar senão o pacto e a promessa de seu Pai; e em seu clamor de
angústia, sua fé se torna manifesta. Foi um brado de aflição, mas não de desconfiança.
Deus havia se retirado dele, mas note como sua alma ainda se apega a ele. Sua fé
triunfou segurando-se em Deus mesmo em meio às trevas. "Deus meu", diz, "Deus
meu", tu com quem está a infinita e perpétua força; tu que apoiaste até aqui minha
humanidade e, conforme tua promessa, sustentaste teu servo — Ó, não fiques longe de
mim agora. Deus meu, eu me apóio em ti. Quando todos os confortos visíveis e
sensíveis haviam desaparecido, da invisível proteção e refúgio de sua fé o Salvador se
vale.

No salmo de número vinte e dois a inabalável fidelidade do Salvador a Deus fica mais
aparente. Nesse precioso texto fala-se das profundezas de seu coração. Ouça-o:

Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e tu os livraste. A ti clamaram e escaparam; em ti


confiaram, e não foram confundidos. Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e
desprezado do povo. Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os beiços e meneiam a
cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer. Mas tu és o que
me tiraste do ventre, o que me preservaste estando ainda aos seios de minha mãe. Sobre ti fui
lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe. (Sl 22.4-10).

O próprio ponto em que seus inimigos procuraram levantar contra ele foi a sua fé em
Deus. Escarneceram dele por sua confiança em Jeová — se ele realmente confiava no
Senhor, o Senhor livrá-lo-ia. Porém, o Salvador continuava confiando ainda que não
houvesse livramento algum, confiava ainda que desamparado por um período! Foi
lançado sobre Deus desde o ventre e ainda é lançado sobre ele na hora de sua morte. Ele
prossegue:

Não te alongues de mim, pois a angústia está perto, e não há quem ajude. Muitos touros me
cercaram; fortes touros de Basã me rodearam. Abriram contra mim suas bocas, como um leão
que despedaça e que ruge. Como água me derramei, e todos os meus ossos se
desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas. A
minha força se secou como um caco, e a língua se me pega ao paladar, e me puseste no pó da
morte. Pois me rodearam cães; o ajuntamento dos malfeitores me cercou, transpassaram-se as
minhas mãos e os pés. Poderia contar todos os meus ossos; eles vêem e me contemplam.
Repartem entre si os meus vestidos, e lançam sortes sobre a minha túnica. Mas tu, Senhor, não
te alongues de mim; força minha, apressa-te em socorrer-me. Livra a minha alma da espada, e
a minha predileta da força do cão (Sl 22.11-20).

Jó tinha dito de Deus "Ainda que ele me mate, nele esperarei" e, embora a ira divina contra o
pecado repousasse sobre Cristo, ele ainda confiava. Sim, sua fé fez mais do que confiar, ela
triunfou — "Salva-me da boca do leão, sim, ouve-me, desde as pontas dos unicórnios" (Sl
22.21).

Ó, que exemplo o Salvador deixou para o seu povo! É relativamente fácil confiar em Deus
quando brilha o sol, o teste chega quando tudo está em escuridão. Mas uma fé que não confia
em Deus na adversidade tanto quanto na prosperidade não é a fé dos seus eleitos. Devemos ter
fé por que vivermos — fé de verdade — se a tivermos para por ela morrer. O Salvador fora
lançado sobre Deus desde a madre, fora lançado sobre Deus momento a momento durante
todos aqueles trinta e três anos, o que não é de se maravilhar, então, que na hora da morte
seja encontrado ainda lançado sobre Deus. Seus companheiros cristãos podem estar tristes
contigo, podes não mais contemplar a luz da face divina. A Providência parece olhar com
desdém para ti, entretanto, ainda dizes, Eli, Eli, Deus meu, Deus meu.
"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

5. Aqui podemos ver a base da nossa salvação.

Deus é santo e, por conseguinte, não aceita ver pecado. Ele é justo e, portanto, julga o
pecado em qualquer lugar onde seja encontrado. Mas Deus também é amor: Ele se deleita na
misericórdia e, em conseqüência, a infinita sabedoria ideou um meio pelo qual a justiça pudesse
ser satisfeita e a misericórdia liberada para fluir aos culpados pecadores. Esse meio foi o da
substituição, o justo padecendo pelo injusto. O próprio Filho de Deus foi o selecionado para ser
o substituto, pois nenhum outro satisfaria. Através de Naum, a questão fora feita: "Quem pode
manter-se diante do seu furor? e quem pode subsistir diante do ardor da sua ira?" (1.6, ARA).
Essa questão recebeu sua resposta na adorável pessoa de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo. Só ele podia "manter-se". Somente um podia levar a maldição e ainda ressurgir como
um vitorioso sobre ela. Somente um podia suportar toda a ira vingativa e, todavia, glorificar a
lei e torná-la digna de honra. Somente um podia suportar que seu calcanhar fosse ferido por
Satanás e contudo naquela ferida destruir a ele, que tinha o poder da morte. Deus sustentou
um que era "poderoso" (Sl 89.19, ARA). Um que era ninguém menos que o Companheiro de
Jeová, o resplendor da sua glória, a expressa imagem de sua pessoa.

Desse modo, vemos que o amor ilimitado, a justiça inflexível e o poder onipotente
combinaram-se todos para tornar possível a salvação daqueles que crêem.

Na cruz, todas as nossas iniqüidades foram postas sobre Cristo e, portanto, o julgamento
divino recaiu sobre ele. Não havia nenhum meio de transferência de pecado sem também
transferir sua pena. Tanto o pecado quanto sua punição foram transferidos para o Senhor Jesus.
Na cruz ele estava fazendo propiciação, e propiciação é apenas para com Deus. Era uma
questão de ir de encontro aos reclames divinos de santidade; era uma questão de satisfazer as
exigências de sua justiça. Não só foi o sangue de Cristo vertido por nós, mas também vertido
para Deus: ele "se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro
suave" (Ef 5.2). Dessa forma, isso foi prefigurado na memorável noite da Páscoa no Egito: o
sangue do cordeiro deve estar onde o olho de Deus o possa ver — "Vendo eu sangue, passarei
por cima de vós".

A morte de Cristo na cruz foi uma morte maldita: "Cristo nos resgatou da maldição da lei,
fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no
madeiro" (Gl 3.13). A "maldição" é alienação de Deus. Isso fica evidente pelas palavras que
Cristo ainda dirá àqueles que estarão à sua esquerda no dia de seu poder — "Apartai-vos de
mim, malditos", ele dirá (Mt 25.41). A maldição é desterro da presença e glória divinas.

Isso explica o sentido de vários tipos do Antigo Testamento. O boi que era morto anualmente
no Dia da Expiação, após seu sangue ter sido espargido sobre e diante do propiciatório, era
removido para um lugar "fora (exterior) do arraial" (Lv 16.27) e ali seu cadáver era queimado
por inteiro. Era no centro do acampamento que Deus tinha sua residência, e a exclusão do
acampamento significava banimento de sua presença. Assim também com o leproso. "Todos os
dias em que a praga estiver nele, será imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será
fora do arraial" (Lv 13.46) — isso porque aquele era o tipo encarnado do pecador. Aqui, ainda,
está o antítipo da "serpente de bronze". Por que Deus instruiu Moisés a colocar uma "serpente"
sobre uma haste, e ordenou aos israelitas mordidos para olhar para ela? Imagine uma serpente
como tipo de Cristo, o Santo de Deus! Sim, mas ela representava-o como "[feito] maldição por
nós", pois a serpente era a lembrança da maldição. Na cruz, então, Cristo estava cumprindo
esses símbolos do Antigo Testamento. Ele estava "fora do arraial" (compare Hebreus 13.12) —
separado da presença de Deus. Ele era o "leproso" — feito pecado por nós. Ele era como a
"serpente de bronze" — feito maldição por nós. Daí, também, o profundo significado da coroa de
espinhos — o símbolo da maldição! Levantado, coroado de espinhos, para mostrar que estava
levando a maldição em nosso lugar.

Aqui, também, está a significação das três horas de trevas que cobriram a terra como uma
mortalha de morte. Era uma escuridão sobrenatural. Não era noite, pois o sol estava em seu
zênite. Como bem o disse o Sr. Spurgeon, "Fez-se meia-noite ao meio-dia". Não foi eclipse
algum. Os astrônomos competentes nos dizem que ao tempo da crucificação a lua estava à sua
maior distância do sol. Mas esse brado de Cristo dá o sentido das trevas, enquanto que essas
nos dão o significado daquele amargo brado. Somente uma coisa pode explicar tal escuridão,
visto que uma coisa apenas pode interpretar tal clamor — que Cristo havia tomado o lugar dos
culpados e perdidos, que ele se pôs no lugar para levar os pecados, que ele estava sofrendo o
julgamento devido por seu povo, que ele que não conheceu pecado "[Deus] o fez pecado" por
nós. Aquele brado foi proferido para que a nós fosse concedido saber do que se passava ali. Era
a manifestação da expiação, por assim dizer, pois três (três horas) é sempre o número de
manifestação. Deus é luz e as "trevas" é o sinal natural de sua repulsa. O Redentor foi deixado
sozinho com o pecado do pecador: tal era a explicação das três horas de escuridão. Assim como
repousará sobre o condenado eternamente uma dupla miséria no lago de fogo, a saber, a dor do
sentido e a dor da perda; do mesmo modo, Cristo, em correspondência, sofreu a ira de Deus
derramada sobre si e também o afastamento de sua presença e comunhão.
Para o crente a cruz é interpretada em Gálatas 2.20: "Estou crucificado com Cristo". Ele
foi o meu substituto; Deus considera-me um com o Salvador. Sua morte foi a minha.
Ele foi ferido por minhas transgressões e ferido por minhas iniqüidades. O pecado não
foi afastado, mas descartado. Como disse alguém: "Porque Deus julgou o pecado sobre
o Filho, ele agora aceita o pecador crente no Filho". Nossa vida está escondida com
Cristo em Deus (Cl 3.3). Eu estou encerrado em Cristo porque Cristo foi excluído de
Deus.

Ele sofreu em nosso lugar, ele salvou seu povo assim; A maldição que caiu sobre sua cabeça,
era por direito devida por nós. A tempestade que curvou sua bendita cabeça, é apaziguada para
sempre agora E o descanso divino é meu no lugar, enquanto ele está coroado de glória.
Aqui então está a base da nossa salvação. Nossos pecados foram levados. As reivindicações
divinas contra nós foram plenamente satisfeitas. Cristo foi desamparado por Deus por um tempo
para que pudéssemos desfrutar da sua presença para sempre. "Deus meu, Deus meu, por que
me desamparaste?" Que toda alma crente dê a resposta: ele adentrou as terríveis trevas para
que eu pudesse andar na luz; ele bebeu o cálice de angústia para que eu pudesse beber o cálice
de gozo; ele foi abandonado para que eu pudesse ser perdoado!

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

6. Aqui vemos a suprema evidência do amor de Cristo por nós.

"Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos seus amigos" (Jo
15.13). Mas a grandeza do amor de Cristo pode ser estimada somente quando estamos
aptos a mensurar o que estava envolvido nesse "dar" a sua vida. Como vimos,
significava muito mais do que a morte física, mesmo que essa fosse de indizível
vergonha, e indescritível sofrimento. Significava que ele tinha de tomar o nosso lugar e
ser feito "pecado" por nós, e o que isso envolvia só pode ser julgado à luz de sua
pessoa.

Imagine uma mulher perfeitamente honrada e virtuosa forçada a suportar, por algum tempo,
a associação com o que há de mais vil e impuro. Imagine-a encerrada num antro de iniqüidade,
rodeada pelos mais grosseiros dentre os homens e as mulheres, e sem nenhum meio de escape.
Você pode avaliar sua repulsa às blasfêmias de suas bocas sujas, à farra de embriaguez, à
obscenidade dos arredores? Você pode formar uma

opinião do que uma mulher pura sofreria em sua alma em meio a tal impureza? Mas a
ilustração é, de longe, falha, pois não há nenhuma mulher absolutamente pura. Honrada,
virtuosa, moralmente pura, sim, porém, pura no sentido de ser sem pecado, espiritualmente
pura, não. Mas Cristo era puro; absolutamente puro. Ele era o Santo. Ele tinha uma infinita
aversão ao pecado. Ele o aborrecia. Sua alma santa se esquivava dele. Mas, na cruz, nossas
iniqüidades foram todas postas sobre ele, e o pecado — essa coisa vil — envolvia-se em torno
dele como uma horrível serpente enrolada. E, contudo, ele de bom grado sofreu por nós! Por
quê? Porque nos amou: "Como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao
fim" (Jo 13.1).

Mas mais ainda: a grandeza do amor de Cristo por nós pode ser avaliada apenas quando
somos capazes de medir a ira divina que foi derramada sobre ele. Era disso que sua alma se
esquivava. O que isso significou para ele, o que custou a ele, pode se saber em parte por um
minucioso exame dos salmos nos quais se nos permite ouvir algo de seus patéticos solilóquios e
petições a Deus. Falando com antecipação, o próprio Senhor Jesus pelo Espírito clamou através
de Davi:
"Livra-me, ó Deus, pois as águas entraram até à minha alma. Atolei-me em profundo
lamaçal, onde se não pode estar em pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me
leva. Estou cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem esperando
o meu Deus.

Tira-me do lamaçal, e não me deixes atolar; seja eu livre dos que me aborrecem, e das
profundezas das águas. Não me leve a corrente das águas e não me sorva o abismo, nem o
poço cerre a sua boca sobre mim.

E não escondas o teu rosto do teu servo, porque estou angustiado; ouve-me depressa.
Aproxima-te da minha alma, e resgata-a; livra-me por causa dos meus inimigos. Bem conheces
a minha afronta, e a minha vergonha, e a minha confusão; diante de ti estão todos os meus
adversários. Afrontas me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo. Esperei por alguém que
tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por consoladores, mas não os achei." (Sl 69.1-3,
14, 15, 17-20)

E outra vez: "Um abismo chama outro abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as
tuas ondas e vagas têm passado sobre mim" (Sl 42.7). A aversão divina ao pecado
sobreveio impetuosa e rebentou sobre o Portador do Pecado. Aguardando de modo
expectante a terrível angústia da cruz, ele clamou através de Jeremias: "Não vos comove
isto a todos vós que passais pelo caminho? Atendei, e vede, se há dor como a minha
dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira"
(Lm 1.12). Essas são algumas das passagens que nos sugerem e pelas quais podemos
julgar o indizível horror com que o Santo contemplava aquelas três horas na cruz, horas
nas quais estava condensado o equivalente a uma eternidade no inferno. O amado do Pai
deve ter a luz da face de Deus ocultada dele; ele deve ser deixado sozinho nas trevas
exteriores.

Aqui tinha amor incomparável e imensurável. "Se queres, passa de mim este cálice", ele
clamou. Mas não era possível que seu povo fosse salvo a menos que ele bebesse até a última
gota daquele copo de desgraça e ira; e, porque não havia nenhum outro que podia bebê-lo, ele
o fez. Bendito seja seu nome! Onde o pecado havia trazido o homem, o amor trouxe o Salvador.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

7. Aqui vemos a destruição da "esperança maior".

Esse clamor do Salvador prenuncia a condição final de toda alma perdida — abando
ameaças de sua palavra. Exatamente como a antiga serpente argumentou com Eva. Deus tinha
dito: "No dia em que dela comeres, certamente morrerás". A serpente disse: "Certamente não
morrereis". Mas qual palavra evidenciou ser verdadeira? Não a do diabo, pois ele é mentiroso
desde o princípio. A ameaça divina foi cumprida, e nossos primeiros pais morreram
espiritualmente no dia em que desobedeceram à sua ordem. Isso se provará também num dia
vindouro.

Deus é misericordioso; o fato dele ter provido um Salvador, leitor, demonstra-o. O fato de
que ele convida você para receber a Cristo como seu Salvador evidencia sua misericórdia. O fato
de que ele é tão longânime com você, que suporta a sua obstinada rebelião até agora, que
prolongou o seu dia de graça até o presente momento, prova-o. Mas há um limite para a sua
misericórdia. O dia da misericórdia em breve findará. A porta de esperança em breve será
trancada. A morte pode rapidamente ceifar a ti, e após essa vem "o juízo". E no Dia do Juízo
Deus vai tratar com justiça e não com misericórdia. Ele vingará a misericórdia da qual você
desdenhou. Ele executará a sentença de condenação já passada sobre você: "Quem não crer
será condenado" (Mc 16.16).

Não repetiremos novamente o que já dissemos em detalhes; basta por ora lembrar o leitor
mais uma vez como esse brado de Cristo testemunha do ódio divino ao pecado. Porque é justo e
santo, Deus deve julgar o pecado onde quer que ele seja encontrado. Se então ele não poupou
o Senhor Jesus quando o pecado foi achado sobre ele, que esperança pode haver, leitor não
salvo, de que ele poupará a ti quando estiveres diante dele no grande trono branco com pecado
sobre ti? Se Deus derramou sua ira em Cristo enquanto pendurado como fiador de seu povo,
fique certo de que ele, com a mais absoluta certeza, derrama-la-á sobre você, se morrer em
seus pecados. A palavra da verdade é explícita: "Aquele que não crê no Filho não verá a vida,
mas a ira de Deus sobre ele permanece" (Jo 3.36). Deus "não poupou" seu próprio Filho quando
tomou o lugar do pecador, e não poupará a quem rejeita o Salvador. Cristo ficou separado de
Deus por três horas, e se você finalmente rejeitá-lo como seu Salvador, também o será, para
sempre — "os quais sofrerão, como castigo, a perdição eterna, banidos da face do senhor" (2Ts
1.9, ARA).

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"

Eis aqui um Brado de Desolação —

Leitor, possa você nunca ecoá-lo.


Eis aqui um Brado de Separação —
Leitor, possa você jamais experimentá-lo.
Eis aqui um Brado de Expiação —
Leitor, possa você apropriar-se de suas virtudes salvíficas.

5. A PALAVRA DE SOFRIMENTO

"Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se
cumprisse, disse: Tenho sede"

João 19.28

"TENHO SEDE". Tais palavras foram faladas pelo Salvador padecente um pouco antes de ele
curvar sua cabeça e render o espírito. Somente são registradas pelo evangelista João e, como
podemos ver, é conveniente que elas devam ter lugar em seu evangelho, pois não apenas
demonstram sua humanidade, mas também salientam sua glória divina.

"Tenho sede". Que texto para um sermão! Um sermão curto e verdadeiro, e contudo quão
abrangente, quão expressivo, e quão trágico! O Criador dos céus e da terra com os lábios
ressecados! O Senhor da glória precisando de um gole de água! O Amado do Pai clamando,
"Tenho sede!" Que cena! Que palavra, essa! Claramente, nenhuma pena não inspirada traçou
um quadro desses.

Outrora o Espírito de Deus moveu Davi a dizer a respeito do Messias vindouro: "Deram-me
fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre" (Sl 69.21). Quão
maravilhosamente completa foi a previsão da profecia! Nenhum item essencial lhe estava
faltando. Todo detalhe importante da grande tragédia fora escrito de antemão. A traição por um
amigo íntimo (Sl 41.9), a deserção dos discípulos por ficarem escandalizados com ele (Sl
31.11), a acusação falsa (Sl 35.11), o silêncio perante seus juízes (Is 53.7), sua ausência de
culpa provada (Is 53.9), o ser contado entre os transgressores (Is 53.12), o ser crucificado (Sl
22.16), a zombaria dos espectadores (Sl 109.25), o escárnio pelo não-livramento (Sl 22.7, 8), o
sorteio de suas vestes (Sl 22.18), a oração por seus inimigos (Is 53.12), o ser desamparado por
Deus (Sl 22.1), a sede (Sl 69.21), o render de seu espírito nas mãos do Pai (Sl 31.5), os ossos
não quebrados (Sl 34.20), o sepultamento na tumba de um rico (Is 53.9); tudo claramente
predito séculos antes de se suceder. Que evidência convincente da inspiração divina das
escrituras! Quão firme fundamento vós, santos do Senhor, está posto para sua fé, na sua
palavra excelente!

"Tenho sede". O fato que está aqui registrado como uma das sete elocuções de nosso
Senhor na cruz sugere que seja uma palavra de precioso significado, uma palavra para
ser entesourada em nossos corações, uma palavra merecedora de prolongada meditação.
Temos visto que cada um dos ditos anteriores do Salvador padecente tem muito a nos
ensinar e, certamente, esse não pode ser uma exceção. O que então podemos deduzir
dele? Quais são as lições que essa quinta palavra da série nos ensina? Possa o Espírito
da verdade iluminar nosso entendimento à medida que nos esforçamos para fixar nela
nossa atenção.

"Tenho sede"

1. Temos aqui uma prova da humanidade de Cristo.


O Senhor Jesus era Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, mas também foi homem verdadeiro
vindo de homem verdadeiro. Isso é algo para ser crido e não para que a orgulhosa razão sobre
ele especule. A pessoa de nosso adorável Salvador não é um objeto adequado para a diagnose
intelectual; antes, devemos nos curvar diante dele em adoração. Ele mesmo nos avisou:
"Ninguém conhece o Filho, senão o Pai" (Mt 11.27). E outra vez o Espírito de Deus, através do
apóstolo Paulo, declara: "E evidentemente é grande o mistério da piedade com que Deus se
manifestou em carne" (1Tm 3.16, Vulgata). Enquanto pois há muita coisa acerca da pessoa de
Cristo que nos é insondável ao próprio entendimento, todavia, tudo que há sobre ele é para se
admirar e prestar adoração: em primeiro lugar, sua deidade e humanidade, e a perfeita união
dessas duas em uma única pessoa. O Senhor Jesus não foi um homem divino, nem um Deus
humanizado; foi o Deus-homem. Para sempre Deus, e agora para sempre homem.

Quando o Amado do Pai encarnou-se, não cessou de ser Deus, nem pôs de lado nenhum de
seus atributos divinos, ainda que tenha se despojado da glória que tinha com o Pai antes de
haver o mundo. Mas na encarnação, o Verbo se fez carne e tabernaculou entre os homens. Ele
não deixou de ser tudo o que era anteriormente, mas tomou para si o que não tinha antes —
humanidade perfeita.

A deidade e a humanidade do Salvador foram, cada uma delas, contempladas na predição


messiânica. A profecia representava aquele que havia de vir, ora como divino, ora como
humano. Ele era o "Renovo do Senhor" (Is 4.2). Ele era o Maravilhoso, o Conselheiro, o Deus
forte, o Pai dos séculos (Hebreus), o "Príncipe da paz" (Is 9.6). Aquele que haveria de sair de
Belém e ser rei em Israel, era aquele cujas saídas são desde os dias da eternidade (Mq 5.2). Ele
era ninguém menos do que o próprio Jeová que apareceria de repente no templo (Ml 3.1).
Todavia, por outro lado, ele era a "semente" da mulher (Gn 3.15); um profeta como Moisés (Dt
18.18); um descendente da linhagem de Davi (2Sm 7.12,13). Ele era o "servo" de Jeová (Is
42.1). Ele era o "homem de dores" (Is 53.3). E é no Novo Testamento que nós vemos esses
dois diferentes grupos de profecias harmonizados.

Aquele nascido em Belém era o Verbo divino. A Encarnação não significa que Deus se
manifestou como um homem. O Verbo se fez carne; tornou-se o que não era antes,
ainda que nunca cessasse de ser tudo o que fora anteriormente. Aquele que era em
forma de Deus e que não teve por usurpação ser igual a Deus "aniquilou-se a si mesmo,
tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens" (Fp 2.6,7). O bebê de
Belém era Emanuel — Deus conosco —, era mais do que uma manifestação de Deus,
ele era Deus manifestado em carne. Era tanto Filho de Deus como Filho do Homem.
Não duas personalidades separadas, mas uma pessoa possuindo as duas naturezas — a
divina e a humana.

Enquanto aqui na terra, o Senhor Jesus deu provas completas de sua divindade. Ele falava
com sabedoria divina, ele agia em santidade divina, ele exibia poder divino, e ele mostrava
amor divino. Ele lia as mentes dos homens, movia seus corações e compeliaos em suas
vontades. Quando a ele agradava exercer seu poder, toda a natureza ficava sujeita ao seu
mando. Uma palavra dele e a enfermidade saía, uma tempestade era acalmada, o demônio
partia, o morto retornava à vida. Tão verdadeiramente era ele Deus manifesto em carne, que
podia dizer: "Quem vê a mim vê o Pai".

Assim, também, quando tabernaculava entre os homens, o Senhor Jesus dava total prova de
sua humanidade — humanidade sem pecado. Ele adentrou a esse mundo como bebê e estava
envolto em panos (Lc 2.7). Quando criança, é-nos dito, ele "crescia... em sabedoria, e em
estatura" (Lc 2.52). Quando menino, encontramo-lo "interrogando" os doutores (Lc 2.46).
Quando homem, seu corpo esteve "cansado" (Jo 4.6). Ele "teve fome" (Mt 4.2). Ele dormiu (Mc
4.38). Ele ficou "admirado" (Mc 6.6). Ele "chorou" (Jo 11.35). Ele "orava" (Mc 1.35). Ele "se
alegrou" (Lc 10.21). Ele "gemeu internamente" (Jo 11.33, Vulgata). E aqui em nosso texto ele
clamou: "Tenho sede". Isso demonstrava sua humanidade. Deus não tem sede. Os anjos
também não. Não a teremos na glória: "Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede" (Ap
7.16). Mas temos sede agora, porque somos humanos e estamos vivendo num mundo de dor. E
Cristo ficou sedento porque era homem: "Pelo que convinha que em tudo fosse semelhante aos
irmãos" (Hb 2.17).

"Tenho sede"

2. Vemos aqui a intensidade dos sofrimentos de Cristo.


Vamos primeiro considerar esse brado do Salvador como uma expressão de seu
sofrimento corporal. Para perceber algo do que há por trás de tais palavras devemos
relembrar e rever o que as precede. Após instituir a Ceia no cenáculo, seguida pelo
longo discurso pascal a seus apóstolos, o Redentor transferiu-se para o Getsêmane e ali,
por uma hora, passou pela mais excruciante agonia. Sua alma estava extremamente
triste. Enquanto ele contemplava o terrível cálice dele escorria, não suor, mas grandes
gotas de sangue.

Sua luta no Jardim foi finda com o aparecimento do traidor acompanhado pelo bando que
viera prendê-lo. Ele foi trazido perante Caifás e, ainda que fosse metade da noite, foi examinado
e condenado. O Salvador foi retido até de manhã cedo, e após as fatigantes horas de espera
haverem terminado, foi levado para diante de Pilatos. Seguindo um longo julgamento, ordens
foram dadas para que se o açoitassem. Em seguida, foi conduzido, talvez atravessando direto
pela cidade, à corte de julgamento de Herodes e, depois de uma breve aparição perante esse
prelado romano, foi entregue às mãos dos brutais soldados. Novamente foi ele escarnecido e
chicoteado, e outra vez foi levado através da cidade, de volta a Pilatos. Mais uma vez houve a
enfadonha demora, as formalidades de um julgamento, se é que uma tal farsa seja merecedora
desse nome, seguida pela sentença de morte dada.

Então, com as costas sangrando, carregando sua cruz sob o calor do sol do já quase meio-
dia, ele caminhou até às escarpadas alturas do Gólgota. Atingindo o lugar designado da
execução, suas mãos e pés foram pregados ao madeiro. Por três horas ele ficou ali pendurado
com os inclementes raios solares incidindo sobre sua cabeça coroada de espinhos. Isso foi
seguido pelas três horas de trevas que agora o cobria.

Aquela noite e aquele dia foram horas nas quais uma eternidade foi condensada. Todavia,
durante toda ela, nem uma só palavra de murmuração passou em seus lábios. Não havia queixa
alguma, nenhum rogo por misericórdia. Todos os seus sofrimentos foram suportados em
augusto silêncio. Como uma ovelha muda perante seus tosquiadores, ele não abriu a sua boca.
Mas agora, no fim, seu corpo arruinado, dorido, sua boca ressecada, ele clama, "Tenho sede".
Não foi um apelo por compaixão, nem um pedido pela mitigação de seus sofrimentos; ele
expressou a intensidade das agonias por que estava passando.

"Tenho sede". Isso era mais do que a sede comum. Era algo mais profundo do que os
sofrimentos físicos por detrás dela. Uma comparação cuidadosa de nosso texto com o de Mateus
27.48 mostra tais palavras "Tenho sede" seguidas imediatamente após a quarta elocução de
nosso Salvador na cruz — "Eli, Eli, lama sabactâni" — pois enquanto o soldado estava
pressionando a esponja embebida em vinagre nos lábios do padecente, alguns dos espectadores
gritaram: "Deixa, vejamos se Elias vem livrá-lo". Todos sabemos que as provações internas da
alma reagem no corpo, destruindo os nervos e afetando o vigor — "O espírito abatido virá a
secar os ossos" (Pv 17.22); "Enquanto eu me calei, envelheceram os meus ossos pelo meu
bramido em todo o dia. Porque de dia e de noite a tua mão pesava sobre mim; o meu humor se
tornou em sequidão de estio" (Sl 32.3,4).

O corpo e a alma são solidários um com o outro. Lembremo-nos de que o Salvador havia
acabado de emergir das três horas de trevas, durante as quais a face de Deus havia se retirado
dele enquanto sofria a fúria de sua ira derramada. Esse grito de sofrimento do corpo diz-nos,
então, da severidade do conflito espiritual que ele tinha acabado de passar! Falando com
antecedência pela boca de Jeremias dessa hora mesma, ele disse: "Não vos comove isto a todos
vós que passais pelo caminho? atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre
mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira. Desde o alto enviou fogo a
meus ossos, o qual se assenhoreou deles; estendeu uma rede aos meus pés, fez-me voltar para
trás, fez-me assolada e enferma todo o dia" (Lm 1.12,13).

Sua "sede" foi o efeito da agonia de sua alma no feroz calor da ira divina. Falava da seca da
terra onde o Deus vivo não está. Mais ainda: claramente expressava seu anelo por comunhão
novamente com ele, de quem ficara separado por três horas. Não foi o próprio Cristo quem
disse, pelo espírito de profecia, e o faz agora, assim que emergiu das trevas: "Como o cervo
brama pelas correntes de águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus! A minha alma tem
sede de Deus, do Deus vivo: quando entrarei e me apresentarei ante a face de Deus?" Não
identificam as palavras seguintes quem fala e não revelam elas o tempo em que aquele anelo e
"suspiro" foram expressos? "As minhas lágrimas servem-me de mantimento de dia e de noite,
porquanto me dizem constantemente: Onde está o teu Deus?" (Sl 42.1-3).

"Tenho sede"

3. Aqui vemos a profunda reverência de nosso Senhor pelas escrituras.

Quão constantemente a mente do Salvador se voltava aos oráculos sagrados! Ele de fato
vivia de toda a palavra que sai da boca de Deus. Era o "Bem-aventurado Homem" que meditava
na lei de Deus "de dia e de noite" (Sl 1). A palavra escrita era o que formava seus
pensamentos, preenchia o seu coração, e regulava os seus caminhos. As escrituras são a
vontade do Pai transcrita, e essa foi sempre o seu deleite. Na tentação, aqueles escritos foram
sua defesa. Em seu ensino os estatutos do Senhor foram sua autoridade. Em suas controvérsias
com os escribas e fariseus, sempre apelou à lei e ao testemunho. E agora, na hora da morte,
sua mente permanecia na palavra da verdade.

A fim de alcançar a força principal dessa quinta elocução do Salvador na cruz, devemos
reparar em seu contexto: "Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que
a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede" (Jo 19.28). A referência é ao Salmo 69 — mais um
dos salmos messiânicos que descrevem tão vividamente sua paixão. No espírito de profecia,
havia declarado: "Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre"
(v. 21). Isso ainda estava sem ser concluído. As predições dos versículos precedentes já tinham
recebido seu cumprimento. Ele já havia atolado no "profundo lamaçal" (v. 2); ele havia sido
aborrecido "sem causa" (v. 4); ele havia "suportado afrontas" e confusão (v. 7); ele havia se
"tornado como um estranho" para os seus irmãos (v. 8); ele havia se tornado "um provérbio"
para os seus injuriadores, e "a canção dos bebedores de bebida forte" (vv. 11,12); ele havia
"clamado a Deus" em sua angústia (vv. 17-20) — e agora nada mais faltava senão oferecer a
ele a bebida de vinagre e fel, e a fim de cumprir isso foi que ele bradou: "Tenho sede".

"Sabendo Jesus que já TODAS as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se
cumprisse, disse: Tenho sede". Quão completamente calmo estava o Salvador! Ele estava
pendurado naquela cruz por seis horas e havia passado por sofrimento sem paralelo, e contudo
sua mente está clara e sua memória intacta. Tinha diante de si, com perfeita distinção, toda a
palavra divina. Ele revisava o escopo todo da predição messiânica. Ele lembra-se de que há uma
profecia escriturística que não foi levada a cabo. Ele não passou por cima de nada. Que prova
essa de que ele era divinamente superior a todas as circunstâncias!

Antes de prosseguirmos devemos brevemente indicar uma aplicação para nós mesmos.
Temos observado como o Salvador se curvou à autoridade da escritura tanto na vida quanto na
morte; leitor cristão, como isso se dá contigo? O livro divino é a corte final de apelação a você?
Você descobre nela uma revelação da mente e da vontade de Deus concernente a você? Ela é
uma lâmpada para os seus pés? Ou seja, você está andando em sua luz? Os seus mandamentos
são obrigatórios para você?

Você está realmente obedecendo-a? Você pode dizer com Davi, "Escolhi o caminho da
verdade; propus-me seguir os teus juízos. Apego-me aos teus testemunhos... Considerei os
meus caminhos, e voltei os meus pés para os teus testemunhos. Apressei-me, e não me detive,
a observar os teus mandamentos" (Sl 119.30,31,59,60)? Você, como o Salvador, está ansioso
por cumprir as escrituras? Ó, possam o escritor e o leitor buscar graça para orar de coração:
"Faze-me andar na vereda dos teus mandamentos, porque nela tenho prazer. Inclina o meu
coração a teus testemunhos... Ordena os meus passos na tua palavra, e não se apodere de mim
iniqüidade alguma" (Sl 119.35,36,133).

"Tenho sede"

4. Vemos aqui a submissão do Salvador à vontade do Pai.

O Salvador estava com sede, e aquele que tinha tal sede, lembremos, possuía todo o poder
no céu e na terra. Houvesse ele escolhido exercitar sua onipotência, poderia prontamente ter
satisfeita a sua necessidade. Aquele que outrora fizera a água fluir da rocha ferida para saciar
Israel no deserto, tinha os mesmos recursos infinitos à sua disposição agora. Aquele que tornara
a água em vinho com uma palavra, poderia ter dito a palavra de poder aqui, e satisfazer a sua
necessidade. Mas ele, em nenhuma vez, operou um milagre para seu próprio benefício ou
conforto. Quando tentado por Satanás para assim agir, recusou. Por que agora ele declina de
atender a sua premente necessidade? Por que pendia na cruz com os lábios ressecados? Porque
no princípio do livro que expressava a vontade divina, estava escrito que ele devia ter sede, e
que, sedento, devia lhe ser "dado" vinagre para beber. E ele aqui veio para fazer aquela
vontade e, por isso, se submete.

Na morte, como na vida, a escritura foi para o Senhor Jesus a palavra autorizada do Deus
vivo. Na tentação, recusara-se a ministrar à sua necessidade à parte daquela palavra pela qual
ele vivia e assim, agora, ele faz conhecida sua necessidade, não para que se pudesse ministrar
a ela, mas para que a escritura pudesse ser cumprida. Note que ele mesmo não a cumpriu, a
Deus pode ser confiado que cuide disso; mas ele dá expressão à sua angústia de modo a
fornecer ocasião para o seu cumprimento. Como alguém disse: "A terrível sede da crucificação
está sobre ele, mas que não é suficiente para forçar seus lábios ressecados para falar; mas está
escrito: Na minha sede me deram a beber vinagre — isso abre os seus lábios" (F. W. Grant).
Aqui, então, como sempre, ele mostra a si mesmo em ativa obediência à vontade de Deus, a
qual ele veio para executar. Ele simplesmente diz, "Tenho sede"; o vinagre é oferecido, e a
profecia é cumprida. Que perfeita absorção na vontade do Pai!

Novamente damos uma pausa para a aplicação a nós mesmos — uma aplicação dupla.
Primeiro, o Senhor Jesus se deleitava na vontade do Pai mesmo quando envolvia o sofrimento
da sede. Nós fazemos esse tipo de renúncia para ele? Temos nós buscado graça para dizer:
"Não se faça a minha vontade, mas a tua"? Podemos nós exclamar, "Sim, ó Pai, porque assim te
aprouve"? Temos nós aprendido em qualquer estado que seja a "viver contente" (Fp 4.11)?

Mas agora, observe um contraste. Ao Filho de Deus foi negado um copo de água fria para
aliviar seu sofrimento — quão diferente conosco! Deus nos tem dado uma variedade de alívios
para nós, todavia, quão freqüentemente somos mal-agradecidos! Temos coisas melhores para
nos deliciar do que um copo d’água quando estamos sedentos, entretanto, amiúde não somos
gratos. Ó, se esse brado de Cristo fosse com mais credulamente considerado, levar-nos-ia a
bendizer a Deus pelo que nós agora quase desprezamos, e geraria contentamento em nós pela
mais comum das misericórdias. O Senhor da glória clamou, "Tenho sede" e nada teve à sua
volta para confortá-lo, e tu, que tens mil vezes perdido todo direito às misericórdias tanto
temporais quanto espirituais, menosprezas as bondades comuns da providência! Quê!
murmuras de um copo de água, tu que mereces senão um copo de ira. Ó, ponha isso no
coração e aprenda a se contentar com o que tens, ainda que seja mesmo as necessidades mais
simples da vida. Não se queixe se você mora apenas em uma humilde cabana, pois seu
Salvador não tinha onde reclinar a cabeça! Não se queixe se você não tem nada senão pão para
comer, pois a seu Salvador faltou isso por quarenta dias! Não se queixe se você tem apenas
água para beber, pois a seu Salvador ela foi negada até na hora da morte!

"Tenho sede"

5. Vemos aqui como Cristo pode se solidarizar com seu povo sofredor.

O problema do sofrimento sempre foi um que causou perplexidade. Por que o sofrimento
deve ser necessário em um mundo que é governado por um Deus perfeito? Um Deus que não
apenas tem poder para impedir o mal, mas que é amor. Por que deve haver dor e desgraça,
doença e morte? À medida que olhamos o mundo e tomamos conhecimento de suas incontáveis
pessoas que sofrem, ficamos desconcertados. Esse mundo não é senão um vale de lágrimas.
Uma fina aparência de alegria raramente tem êxito em esconder os tristes fatos da vida.
Filosofar sobre o problema do sofrimento traz arco alívio. Após todos os nossos raciocínios,
perguntamos, Deus vê? Há conhecimento no Altíssimo? Ele realmente se importa? Como todas
as questões, essas devem ser levadas à cruz. Enquanto não acham elas uma resposta completa,
entretanto elas encontram sim aquela que satisfaz o coração ansioso. Enquanto o problema do
sofrimento não é plenamente resolvido aqui, todavia a cruz lança sim luz suficiente sobre ele
para aliviar a tensão. A cruz mostra-nos que Deus não ignora nossas dores, pois na pessoa de
seu Filho ele mesmo "tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores" (Is 53.4,
ARA)! A cruz nos mostra que Deus não está desatento às nossa tristeza e angústia, pois, ao se
encarnar, ele próprio sofreu! A cruz diz-nos que Deus não é indiferente à dor, pois no Salvador
ele a experimentou!

Qual então o valor de tais fatos? Este: "Porque não temos um sumo sacerdote que não pode
compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem
pecado" (Hb 4.15). Nosso Redentor não é alguém tão afastado de nós que seja incapaz de
entrar, solidariamente, em nossas tristezas, pois ele mesmo foi o

"Homem de Dores". Aqui então está o conforto para o coração dorido. Não importa quão
desalentado possa estar você, não importa quão escarpada a sua senda e triste o seu quinhão,
você é convidado a pô-lo todo diante do Senhor Jesus e lançar todo seu cuidado sobre ele,
sabendo que "tem cuidado de vós" (1Pd 5.7). O seu corpo está arruinado pela dor? Assim
estava o dele! Você é mal interpretado, julgado injustamente, deturpado? Assim era ele!
Aqueles que lhe são mais próximos e mais queridos deram às costas a você? Fizeram isso com
ele! Você está em trevas? Ele esteve assim por três horas! "Pelo que convinha que em tudo
fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote" (Hb 2.17).

"Tenho sede"

6. Vemos aqui a expressão de uma necessidade universal.

Quer o homem natural, o mundano, articule-o ou não, seu clamor é, "Tenho sede".
Porque esse desejo consumidor para adquirir bens? Por que esse desejo ardente pelas
honras e aplausos do mundo? Por que essa corrida louca por prazer, indo de uma forma
a outra dele com diligência persistente e incansável? Por que essa busca ávida por
sabedoria — essa investigação científica, esse empenho da filosofia, esse saque aos
manuscritos dos antigos, e essa experimentação incessante dos homens modernos? Por
que essa loucura por aquilo que é novo? Por quê? Porque há uma voz de dor na alma.
Porque há algo remanescente no homem natural que não está satisfeito. Isso é
verdadeiro tanto para o milionário quanto para o camponês do interior que nunca esteve
fora dos limites de sua terra: viajando de um extremo a outro da terra e fazendo-o outra
vez, não consegue descobrir o segredo da paz. Sobre tudo o que as cisternas deste
mundo fornecem está escrito nas letras da verdade inefável: "Qualquer que beber desta
água tornará a ter sede" (Jo 4.13). Assim se dá com o homem ou a mulher religiosos:
queremos dizer, os religiosos sem Cristo. Quantos há que vão pelo fatigante ciclo das
ações religiosas, e nada encontram que satisfaça suas profundas necessidades! Eles são
membros de uma denominação evangélica, freqüentam a igreja com regularidade,
contribuem com seus recursos para o sustento do pastor, lêem suas Bíblias
ocasionalmente, e algumas vezes oram, ou, se usam um "livro de orações", dizem-nas
toda noite. E contudo, afinal de contas, se eles são honestos, seu clamor ainda é, "Tenho
sede".

A sede é uma sede espiritual; eis o porquê das coisas naturais não poder matá-la.
Desconhecido deles mesmos, sua alma "tem sede de Deus" (Sl 42.2). Deus nos fez, e só ele
pode nos satisfazer. Disse o Senhor Jesus: "Aquele que beber da água que eu lhe der nunca
terá sede" (Jo 4.14). Apenas Cristo pode saciar a nossa sede. Apenas ele pode satisfazer a
profunda necessidade dos nossos corações. Apenas ele pode comunicar aquela paz de que o
mundo nada sabe e nem a pode conceder ou tirar. Ó leitor, uma vez mais eu me dirijo a tua
consciência. Como está ela contigo? Descobriste que tudo debaixo do sol é somente vaidade e
aflição de espírito? Descobriste que as coisas terrenas são incapazes de satisfazer a seu
coração? É o brado de sua alma, "Tenho sede"? Então, não são boas notícias ouvir que há
alguém que pode satisfazer a ti? Dissemos alguém, não um credo, não uma forma de religião,
mas uma pessoa — uma pessoa viva, divina. Ele é o que diz: "Vinde a mim, todos os que estais
cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei" (Mt 11.28). Atente então a esse doce convite. Venha a
ele agora, assim como estás. Venha em fé, crendo que ele te receberá, e então cantarás:

Vim a Jesus como estava,


Farto, cansado, e triste;
Nele encontrei um lugar de descanso,
E ele me tornou alegre.

Ó, venha a Cristo. Não se detenha. Você tem "sede"? Então você é aquele que está
buscando: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos" (Mt
5.6).

Leitor não salvo, não rejeite o Salvador, pois se você morrer em seus pecados seu clamor
para todo o sempre será, "Tenho sede". Esse é o lamento do condenado eternamente. No lago
de fogo o perdido sofrerá entre as chamas da ira divina por toda a eternidade. Se Cristo clamou
"Tenho sede" quando padecia da ira de Deus só por três horas, qual o estado daqueles que
terão de suportá-la eternamente! Quando milhões de anos tiverem se passado, mais dez
milhões haverá à frente. Há uma sede perene no inferno, que não admite alívio algum. Lembre-
se das pavorosas palavras do homem rico: "E, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de
mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua,
porque estou atormentado nesta chama" (Lc 16.24). Ó, meu leitor, pense. Se a sede física
extrema é insuportável mesmo quando suportada por algumas poucas horas, como será aquela
sede que está infinitamente além de qualquer sede do presente, e que nunca será saciada! Não
diga que é cruel da parte de Deus lidar desse modo com suas criaturas que erram. Lembre ao
que ele expôs seu querido Filho, quando o pecado lhe foi imputado — seguramente, aquele que
despreza a Cristo é merecedor do mais quente lugar no inferno! Dizemo-lo outra vez, Receba-o
agora como seu. Receba-o como seu Salvador, e submeta-se a ele como seu Senhor.

"Tenho sede"

7. Aqui vemos a declaração de um princípio permanente.

Há um sentido, um sentido real, em que Cristo ainda tem sede. Ele está sedento pelo amor e
pela devoção dos seus. Ele anseia pela companhia do povo que comprou com seu sangue. Eis
aqui uma das grandes maravilhas da graça — um pecador redimido pode oferecer aquilo que
satisfaz o coração de Cristo! Posso compreender como devo apreciar seu amor, mas quão
maravilhoso que ele — o todo-suficiente — deva apreciar o meu! Eu aprendi quão abençoada é
para minha alma a comunhão com ele, mas quem suporia que minha comunhão fosse bendita
para Cristo! Todavia o é. Por isso ele ainda "tem sede". A graça nos capacita a oferecer aquilo
que o refrigera. Maravilhoso pensamento!

Você já reparou em João 4 que, embora Cristo dissesse à mulher que veio ao poço, "Dáme de
beber" — pois ele assentou-se ali "cansado" da viagem e do calor — que ele nunca tomou um
gole de água? Na salvação e na fé daquela mulher samaritana ele achou aquilo que refrescou
seu coração! O amor nunca fica satisfeito até que haja uma resposta e amor em troca! Assim o
é com Cristo. Aqui está a chave para Apocalipse 3.20: "Eis que estou à porta, e bato: se alguém
ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo".

Isso é amiúde aplicado ao não salvo, mas sua referência principal é à Igreja. Descreve
se Cristo buscando a companhia dos seus. Ele fala de "cear", e na escritura isso sempre
simboliza comunhão, da mesma forma que a Ceia do Senhor é uma oportunidade
especial de comunhão entre o Salvador e o salvo. E observe nessa passagem que Cristo
fala de uma dupla ceia — "entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo". Não
somente é nosso inefável privilégio cear e comungar com ele, deleitarmo-nos nele, mas
ele "ceia" conosco. Ele encontra em nossa comunhão algo com que alimentar seu
coração, algo que o alivia, e esse algo é a nossa devoção e o nosso amor. Sim, o Cristo
de Deus ainda "tem sede", sede pela afeição dos seus. Ó, não oferecerá você algo que a
ele satisfaça? Responda então ao apelo dele: "Põe-me como selo sobre o teu coração"
(Ct 8.6).

6. A PALAVRA DE VITÓRIA
"E, quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado"
João 19.30

NOSSOS DOIS ÚLTIMOS ESTUDOS se ocuparam com a tragédia da cruz; porém, voltamo-nos
agora para o seu triunfo. Nestas palavras, "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"
ouvimos o brado de desolação do Salvador; em "Tenho sede", escutamos seu clamor de
lamentação; agora, chega aos nossos ouvidos seu brado de júbilo — "Está consumado". Das
palavras da vítima voltamo-nos agora às palavras do conquistador. Um provérbio diz que toda
nuvem tem seu interior prateado: deu-se assim com a mais escura de todas as nuvens. A cruz
de Cristo tem dois grandes lados: ela mostrou a grande profundidade de sua humilhação, mas
também assinalou o objetivo da Encarnação, e mais, falou da consumação de sua missão, e
forma ela a base de nossa salvação.

"Está consumado". Os antigos gregos orgulhavam-se de serem capazes de dizer muita


coisa falando pouco — "dar um mar de assunto em uma gota de linguagem" era tido
como a perfeição em oratória. O que eles buscavam é encontrado aqui. "Está
consumado", no original, é apenas uma palavra, todavia, nessa palavra está contido o
evangelho de Deus; nessa palavra está contido o fundamento da segurança do crente;
nessa palavra é descoberta a essência de todo gozo, bem como o próprio espírito de toda
consolação divina.

"Está consumado". Isso não foi o grito de desespero de um mártir desamparado; não foi uma
expressão de satisfação pelo término de seus sofrimentos haver então chegado; não foi o último
suspiro de uma vida que se findava. Não, antes foi a declaração da parte do divino Redentor de
que tudo pelo qual ele viera do céu à terra para fazer, estava agora feito; que tudo que era
necessário para revelar o completo caráter de Deus agora se tinha concluído; que tudo que era
requerido pela lei antes que os pecadores pudessem ser salvos tinha agora sido realizado: que o
preço da nossa escravidão foi pago para a nossa redenção.

"Está consumado". O grande propósito divino na história do homem era agora efetuado —
efetuado de jure tanto quanto ainda o será de facto. Desde o princípio, a intenção de Deus foi
sempre uma e indivisível. Foi declarada aos homens de várias maneiras: em símbolo e tipo, por
misteriosos sinais e por claras sugestões, mediante predição messiânica e mediante declaração
didática. Esse seu propósito pode ser assim resumido: mostrar sua graça e engrandecer seu
Filho criando filhos a sua própria imagem e glória. E na cruz o fundamento que foi posto era
para que isso se tornasse possível e real.

"Está consumado". O que está consumado? A resposta a tal questão é uma resposta mui
abundante de significado, ainda que vários excelentes expositores procurem limitar o escopo de
tais palavras e confiná-las estritamente a uma única aplicação. É-nos dito que foram
consumadas as profecias que diziam respeito aos sofrimentos do Salvador, e que ele se referia
apenas a isso. Admite-se de pronto que a referência imediata era às predições messiânicas,
todavia, pensamos que há razões boas e suficientes para não confinar as palavras de nosso
Senhor a elas. Sim, para nós parece certo que Cristo se referia especialmente à sua obra
sacrificial, pois toda escritura acerca de seu sofrimento e vergonha não estava cumprida. Ainda
restava entregar seu espírito nas mãos do Pai (Sl 31.5); ainda restava o "traspassar" com a
lança (Zc 12.10: e repare que a palavra utilizada para o traspassar de suas mãos e pés — o ato
de crucificação — no Sl 22.16 é diferente); ainda restava serem seus ossos preservados sem
quebra (Sl 34.20), e o enterro no sepulcro do homem rico (Is 53.9).

"Está consumado". O que estava consumado? Respondemos, sua obra sacrificial. É verdade
que havia ainda o ato da própria morte, que era necessária para fazer a expiação. Porém, como
se dá freqüentemente no Evangelho de João — onde se encontra nosso texto — (cf. Jo
12.23,31; 13.31; 16.5; 17.4), o Senhor fala aqui antecipadamente da conclusão de sua obra.
Além disso, deve ser lembrado que as três horas de trevas já haviam passado, o terrível cálice
já havia sido sorvido até à última gota, seu precioso sangue já tinha sido vertido, a ira divina
derramada já havia sido suportada; e esses são os principais elementos para se fazer a
propiciação. A obra sacrificial do Salvador, então, estava completada, com exceção apenas do
ato de morte que se seguiu imediatamente. Mas, como veremos, a consumação daquela obra
pôs fim a várias coisas, e a elas voltaremos a nossa atenção.

"Está consumado"

1. Aqui vemos efetuado o cumprimento de todas as profecias que foram escritas sobre ele
antes que viesse a morrer.

Esse é o pensamento imediato do contexto: "Quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está
consumado" (Jo 19.30). Séculos antes, os profetas de Deus tinham descrito passo a passo a
humilhação e o sofrimento por que o Salvador vindouro deveria passar. Uma por uma das
profecias haviam sido cumpridas, maravilhosamente cumpridas, cumpridas ao pé da letra. Havia
profecia que declarava que ele deveria vir da "semente da mulher" (Gn 3.15): então, ele veio
"nascido de mulher" (Gl 4.4). Havia profecia que anunciava que sua mãe seria uma "virgem" (Is
7.14): então foi ela literalmente cumprida (Mt 1.18). Havia profecia que revelava que ele
deveria ser da semente de Abraão (Gn 22.18): então, observe seu cumprimento (Mt 1.1). Havia
profecia que fazia saber que ele deveria ser da linhagem de Davi (2Sm 7.12,13): então tal se
deu em realidade (Rm 1.3). Havia profecia que dizia que ele receberia seu nome antes de
nascer (Is 49.1): então assim se sucedeu (Lc 1.30,31).

Havia profecia que previa que ele deveria nascer em Belém de Judá (Mq 5.2): observe então
como essa aldeia mesma foi de fato sua terra natal. Havia profecia que alertava de antemão que
seu nascimento acarretaria desgosto para outros (Jr 31.15): então, contemple seu trágico
cumprimento (Mt 2.16-18). Havia profecia que mostrava com antecedência que o Messias
deveria aparecer antes que o cetro da ascendência de Judá sobre as demais tribos tivesse dela
partido (Gn 49.10); então assim foi, pois ainda que as dez tribos estivessem cativas, Judá ainda
estava na terra na época de seu advento. Havia profecia que aludia à fuga para o Egito e ao
subseqüente retorno para a Palestina (Os 11.1 e cf. Is 49.3,6): então, assim aconteceu (Mt
2.14,15).

Havia profecia que fazia menção de um que viria antes de Cristo para aprontar seu caminho
(Ml 3.1): então, veja seu cumprimento na pessoa de João Batista. Havia profecia que dava a
conhecer que no aparecimento do Messias "os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos
surdos se abrirão. Então os coxos saltarão como cervos, e a língua dos mudos cantará" (Is
35.5,6): então, leia de uma ponta a outra os quatro evangelhos e veja de quão bendita maneira
isso se provou verdadeiro. Havia profecia que falava dele como "pobre e necessitado" (Sl 40.17
— vide início do salmo): então, contemple-o não tendo onde reclinar a cabeça. Havia profecia
que sugeria que ele falaria em "parábolas" (Sl 78.2): então tal foi amiúde seu método de
ensino. Havia profecia que o representava acalmando a tempestade (Sl 107.29): então, isso foi
exatamente o que ele fez. Havia profecia que proclamava sua "entrada triunfal" em Jerusalém
(Zc 9.9): então assim se sucedeu.

Havia profecia que anunciava que sua pessoa deveria ser desprezada (Is 53.3); que ele
deveria ser rejeitado pelos judeus (Is 8.14); que ele deveria ser aborrecido "sem causa" (Sl
69.4): então, é triste dizê-lo, tal foi precisamente o caso. Havia profecia que pintava o quadro
inteiro de sua degradação e crucificação — então, foi ele vividamente reproduzido. Houvera a
traição por um amigo íntimo, a deserção por seus queridos discípulos, o ser levado ao
matadouro, o ser levado a julgamento, o aparecimento de falsas testemunhas contra si, a
recusa de sua parte de se defender, a demonstração de sua inocência, a condenação injusta, a
pena de morte sentenciada sobre si, o traspassamento literal de suas mãos e pés, o ser contado
entre os transgressores, a zombaria da multidão, o lançar sortes sobre suas vestes — tudo
predito séculos antes, e tudo cumprido ao pé da letra. A última profecia de todas que ainda
restava antes de encomendar seu espírito às mãos do Pai tinha agora sido cumprida. Ele
clamou, "Tenho sede", e após o oferecimento de vinagre e fel tudo estava agora "concluído"; e,
quando o Senhor Jesus reviu o inteiro escopo da palavra profética e viu sua completa realização,
ele bradou, "Está consumado"!

Somente nos resta assinalar que, enquanto houve um grupo todo de profecias que tinha de
se dar no primeiro advento do Salvador, assim também há um outro que tem de acontecer em
seu segundo advento — o último, tão definido, pessoal e completo em seu escopo quanto o
primeiro. Assim como vemos o real cumprimento daquelas que tinham de ocorrer em sua
primeira vinda à terra, também podemos aguardar com absoluta confiança e segurança o
cumprimento daquelas que terão lugar em sua segunda vinda. E, como vimos que o primeiro
grupo de profecias foi cumprido literal, real e pessoalmente, também devemos esperar que o
último o seja. Admitir o cumprimento literal do primeiro, e então procurar espiritualizar e
simbolizar o último, é não apenas grosseiramente inconsistente e ilógico, mas altamente
pernicioso para nós e profundamente desonroso a Deus e à sua palavra.

"Está consumado"

2. Vemos aqui o término de seus sofrimentos.

E qual língua ou pena pode descrever os sofrimentos do Salvador? Ó, que angústia


inexprimível, física, mental e espiritual que ele suportou! Apropriadamente foi ele designado "o
Homem de Dores". Sofrimentos nas mãos dos homens, nas mãos de Satanás e nas mãos de
Deus. Dor infligida tanto pelos inimigos quanto pelos amigos. Desde o início ele caminhou entre
as sombras que a cruz lançava de través sobre seus passos. Ouça seu lamento: "Estou aflito e
prestes a morrer desde a minha mocidade" (Sl 88.15). Que luz isso lança sobre seus primeiros
anos! Quem pode dizer quanto está contido nessas palavras? Para nós, um véu impenetrável
está lançado sobre o futuro; nenhum de nós sabe o que um dia pode causar. Mas o Salvador
conhecia o fim desde o começo!

Alguém apenas precisa ler os evangelhos para saber como a terrível cruz esteve sempre
perante ele. Nas bodas de Cana, onde tudo era alegria e divertimento, ele faz solene
referência à sua "hora" que ainda não viera. Quando Nicodemos o entrevistou à
noite, o Salvador aludiu ao levantamento do Filho do homem. Quando Tiago e João
vieram lhe pedir dois lugares de honra em seu reino vindouro, ele fez menção ao
"cálice" que ele tinha de tomar e ao "batismo" com que deveria ele ser batizado.
Quando Pedro confessou que ele era o Cristo, o Filho do Deus vivo, ele voltou-se para
os seus discípulos e começou a lhes mostrar "que convinha ir a Jerusalém, e padecer
muito dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e
ressuscitar ao terceiro dia" (Mt 16.21). Quando Moisés e Elias ficaram diante dele no
monte da transfiguração, foi para falar "da sua morte, a qual havia de cumprir-se em
Jerusalém".

Se é verdade que somos bem incapazes de avaliar os sofrimentos de Cristo devido à


antecipação da cruz, menos ainda podemos sondar a pavorosa realidade da própria. Os
sofrimentos físicos foram excruciantes, mas mesmo isso foi como nada se comparado com sua
angústia de alma. Para uma consideração de tais sofrimentos já dedicamos vários parágrafos
nos capítulos anteriores, todavia não nos desculpamos em nada em retornar a eles novamente.
Não é demasiado de nossa parte poder contemplar com freqüência o que o Salvador suportou a
fim de assegurar a salvação para nós. Quanto mais estivermos familiarizados com seus
sofrimentos, e quanto mais amiúde meditarmos neles, mais caloroso será nosso amor e mais
profunda a nossa gratidão.

Finalmente as últimas horas chegaram. Tinha havido a terrível experiência no Getsêmane


seguida pelos comparecimentos perante Caifás, perante Pilatos, perante Herodes e novamente
perante Pilatos. Tinha havido o açoitamento e o escárnio por parte dos soldados brutais; a
jornada ao Calvário; a fixação de suas mãos e pés por pregos ao cruel madeiro. Tinha havido a
injúria dos sacerdotes, do povo e dos dois ladrões com ele crucificados. Tinha havido a total
indiferença de uma turba vulgar, dentre a qual ninguém houve que "tivesse compaixão" e que
dissesse uma palavra de consolo (Sl 69.20). Tinha havido a apavorante escuridão que lhe
ocultou a face do Pai, que arrancou dele o amargo clamor, "Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?" Tinha havido os lábios ressecados que tiraram dele a exclamação, "Tenho
sede". Tinha havido o horrendo conflito com o poder das trevas enquanto a serpente "feria" seu
calcanhar. Bem podia o padecente perguntar, "Não vos comove isto a todos vós que passais
pelo caminho? atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que me
entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira" (Lm 1.12).

Mas agora o sofrimento está findo. Aquilo a que sua santa alma recuava está acabado. O
Senhor o tinha ferido; o homem e o diabo tinham feito o pior que podiam fazer. O cálice foi
completamente bebido. A terrível tempestade da ira de Deus tinha acabado de passar. As trevas
estão terminadas. A espada da justiça divina está embainhada. O salário do pecado tinha sido
pago. As profecias acerca de seu sofrimento estavam todas cumpridas. A cruz tinha sido
"suportada". A santidade divina tinha sido plenamente satisfeita. Com um brado de triunfo —
um forte brado, um brado que reverberou de uma extremidade a outra do universo — o
Salvador exclama, "Está consumado". A ignomínia e a vergonha, o sofrimento e a agonia são
passado. Nunca mais ele experimentará dor. Nunca mais ele suportará a contradição de
pecadores contra si mesmo. Nunca mais estará ele nas mãos de Satanás. Nunca mais a luz do
semblante de Deus ficará ocultada dele. Bendito seja Deus, tudo está terminado!

A cabeça que antes estava coroada de espinhos, está agora coroada de glória;
Um diadema real adorna a testa do poderoso Conquistador.
O mais alto lugar do Céu é Seu, é Seu por direito,
O Rei dos reis e Senhor dos senhores, e a eterna Luz do Céu.
O gozo de todos os que habitam encima, o Gozo de todos embaixo,
Àqueles a que ele manifesta seu amor, e concede que conheçam seu nome.

"Está consumado"

3. Vemos aqui que o objetivo da Encarnação é alcançado.

A Escritura indica que há uma obra especial peculiar a cada uma das pessoas divinas, ainda
que, como as pessoas mesmas, não é sempre fácil distinguir entre suas respectivas obras. Deus
Pai está especialmente envolvido no governo do mundo. Ele governa sobre todas as obras de
suas mãos. Deus Filho está especialmente envolvido na obra redentora: ele foi quem veio aqui
para morrer pelos pecadores. Deus Espírito está especialmente envolvido com as escrituras: ele
foi quem moveu os santos homens de outrora para falarem as mensagens de Deus, assim como
é quem agora dá iluminação espiritual e entendimento, e guia na verdade. Mas é com a obra de
Deus Filho que estamos aqui particularmente interessados.

109 Nota do tradutor: No original: The Head that once was crowned with thorns/ Is crowned
with glory now;/ A royal diadem adorns/ The mighty Victor's brow./ The highest place that
heaven affords/ Is His, is His by right,/ The King of kings and Lord of lords,/ And heaven's
eternal Light;/ The Joy of all who dwell above,/ The Joy of all below/ To whom He manifests His
love/ And grants His name to know. Trecho de um hino de Thomas Kelly (1769-1854),
composto em 1820 e parte integrante de The Handbook to the Lutheran Hymnal (hinário dos
luteranos de língua inglesa), # 219 ("The Head That Once was Crowned with Thorns").

110Nota do tradutor: Cf. 2Pd 1.21.

111Nota do tradutor: Cf. Jo 14.26; 2Tm 3.16 ("divinamente inspirada": literalmente,


"sopradas por Deus".

Em grego, o verbo "soprar" é da mesma raiz do substantivo "espírito").

112 Nota do tradutor: Cf. Jo 16.13.

Antes que o Senhor Jesus viesse a essa terra uma obra definida foi confiada a ele. No
princípio do livro isso foi escrito por ele, e ele veio a fazer a vontade registrada de Deus.

Mesmo quando garoto de doze anos, os "negócios" do Pai estavam diante de seu coração e
ocupavam a sua atenção. Outra vez, em João 5.36, encontramo-lo dizendo: "Mas eu tenho
maior testemunho do que o de João; porque as obras que o Pai me deu para realizar, as
mesmas obras que eu faço". E, na última noite antes de sua morte, naquela maravilhosa oração
sacerdotal, descobrimo-lo falando: "Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me
deste a fazer" (Jo 17.4).

Em seu livro sobre os sete ditos de Cristo na cruz, o Dr. Anderson-Berry lança mão de uma
ilustração da história a qual, por sua contundente antítese, revela o sentido e a glória da obra
completa de Cristo. Isabel, Rainha da Inglaterra, o ídolo da sociedade e a líder da alta sociedade
européia, quando em seu leito de morte, voltou-se para a sua dama de companhia e disse: "Ó,
meu Deus! Está acabado. Chego ao fim disso — o fim, o fim. Ter somente uma vida e acabado
com ela! Ter vivido, e amado, e triunfado; e agora saber que está terminado. Pode-se desafiar
tudo o mais, menos isso". E, enquanto a ouvinte assistia a isso sentada, poucos momentos
depois, a face cujo sorriso mais leve trouxera seus cortesãos aos seus pés, tornava-se numa
máscara de argila sem vida, e retribuía a ansiosa contemplação de sua serva com nada mais do
que um fixo olhar vazio. Tal foi o fim de alguém cuja meteórica carreira fora invejada por
metade do mundo. Não podia ser dito que ela "consumara" alguma coisa, pois consigo tudo foi
"vaidade e aflição de espírito". Quão diferente foi o fim do Salvador — "Eu glorifiqueite na terra,
tendo consumado a obra que me deste a fazer".

A missão na qual Deus enviou seu Filho ao mundo estava agora acabada. Na realidade, não
foi terminada até que desse seu último suspiro, mas a morte viria em instantes e, antecipando-
se a isso, ele brada, "Está consumado". A difícil obra está feita. A tarefa divinamente dada a ele
está executada. Uma obra mais digna de honra e mais importante do que qualquer outra jamais
confiada ao homem ou aos anjos estava completada. Aquilo por que deixara a glória celeste,
aquilo pelo qual ele tomara sobre si a forma de servo, aquilo pelo qual ele havia permanecido na
terra por trinta e três anos para fazer, estava agora consumado. Nada mais tinha para ser
adicionado. A meta da Encarnação é atingida. Com que jubiloso triunfo ele aqui deve ter visto a
árdua e custosa obra que lhe foi entregue agora aperfeiçoada!

"Está consumado". A missão na qual Deus enviara seu Filho ao mundo estava acabada.
Aquilo que fora tencionado na eternidade viera a suceder. O plano de Deus fora plenamente
levado a cabo. É verdade que o Salvador fora morto e crucificado "por mãos de iníquos",
todavia, foi "entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus" (At 2.23, ARA). É
verdade que os reis da terra se levantaram, e os príncipes se ajuntaram contra o Senhor, e
contra o seu Cristo; entretanto, não foi senão para fazer o que a mão e o conselho de Deus
"tinham anteriormente determinado que se havia de fazer" (At 4.28). Por que ele é o Altíssimo,
não se pode frustrar a secreta vontade de Deus. Por que ele é supremo, o conselho de Deus
deve ficar de pé. Por que ele é o TodoPoderoso, o propósito de Deus não pode ser malogrado.
Repetidas vezes as escrituras

insistem na irresistibilidade do desejo do Senhor Deus. Por que sua verdade é agora tão
geralmente posta em discussão, acrescentamos sete passagens que a afirmam:

Mas, se ele resolveu alguma cousa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará (Jó
23.13, ARA).

Bem sei eu que tudo podes, e nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido (Jó
42.2).

Mas o nosso Deus está nos céus; faz tudo o que lhe apraz (Sl 115.3). Não há sabedoria, nem
inteligência, nem conselho contra o Senhor (Pv 21.30).

Porque o Senhor dos Exércitos o determinou; quem pois o invalidará? E a sua mão estendida
está; quem pois a fará voltar atrás? (Is 14.27).

Lembrai-vos das coisas passadas desde a antigüidade; que eu sou Deus, e não há outro
Deus, não há outro semelhante a mim; que anuncio o fim desde o princípio, e, desde a
antigüidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei
toda a minha vontade (Is 46. 9,10).

E todos os moradores da terra são reputados em nada; e segundo a sua vontade ele opera
com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe
diga: Que fazes? (Dn 4.35).

E, no brado triunfante do Salvador — "Está consumado" — temos uma profecia e um penhor


da execução definitiva do plano de Deus de modo completo e irresistível. No fim dos tempos,
quando tudo estiver terminado, e o propósito divino for plenamente consumado, quando tudo
que ele predeterminou que devesse ser feito estiver cumprido, então será dito novamente:
"Está consumado".

"Está consumado"

4. Vemos aqui a realização da expiação.

Falamos acima de Cristo alcançando a meta da Encarnação, e da consumação de sua missão


na terra; o que foram tal meta e tal missão, a escritura claramente revela. O Filho do Homem
veio aqui "para buscar e salvar o que se havia perdido" (Lc 19.10). Cristo Jesus entrou no
mundo "para salvar os pecadores" (1Tm 1.15). Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, "para
remir os que estavam debaixo da lei" (Gl 4.4). Ele foi manifestado "para tirar os nossos
pecados" (1Jo 3.5). E tudo isso envolvia a cruz. O "perdido" que ele veio buscar só podia ser
encontrado lá — no lugar de morte e sob a condenação divina. Os pecadores podiam ser
"salvos" somente por alguém tomando seu lugar e levando suas iniqüidades. Aqueles que
estavam sob a lei apenas podiam ser "remidos" por um outro que cumprisse suas exigências e
sofresse sua maldição. Nossos pecados somente podiam ser "tirados" sendo apagados pelo
precioso sangue de Cristo. As demandas da justiça têm que ser satisfeitas: as exigências da
santidade divina têm que ser atendidas: o terrível débito em que incorremos tem que ser pago.
E na cruz isso foi feito; feito por ninguém menos que o Filho de Deus; feito com perfeição; feito
de uma vez por todas.

"Está consumado". Aquilo para o qual tantos tipos apontavam, aquilo para o qual tanta coisa
do tabernáculo e de seu ritual prefigurava, aquilo do qual tantos dos profetas de Deus tinham
falado, estava agora realizado. Uma cobertura para o pecado e sua vergonha — tipificada pelas
túnicas de peles com as quais o Senhor Deus vestiu nossos primeiros pais — foi agora fornecida.
O mais excelente sacrifício — tipificado pelo cordeiro de Abel — fora agora oferecido. Um abrigo
para a tempestade do julgamento divino — tipificado pela arca de Noé — era agora
providenciado. O Filho unigênito e mui amado — tipificado pelo oferecimento de Isaque por
Abraão — já havia sido posto sobre o altar. Uma proteção contra o anjo vingador — tipificada
pelo sangue derramado do cordeiro pascal — era agora suprida. Uma cura para a mordida da
serpente — tipificada pela serpente de bronze sobre a haste — era agora aprontada para os
pecadores. A provisão de uma fonte que dá vida — tipificada pelo golpear de Moisés na rocha —
era agora efetuada.

"Está consumado". A palavra grega aqui, teleo, é vertida de várias formas no Novo
Testamento. Uma olhada em algumas das diferentes traduções em outras passagens nos
habilitará a discernir a plenitude e a finalidade do termo usado pelo Salvador. Em Mateus 11.1,
teleo é traduzida como segue: "E aconteceu que, acabando Jesus de dar instruções aos seus
doze discípulos, partiu dali". Em Mateus 17.24, é assim traduzida: "Aproximaram-se de Pedro os
que cobravam as didracmas, e disseram: O vosso mestre não paga as didracmas?" Em Lucas
2.39 é traduzida: ""E, quando acabaram de cumprir tudo segundo a lei do Senhor, voltaram à
Galiléia". Em Lucas 18.31, temos: "E se cumprirá no Filho do homem tudo o que pelos profetas
foi escrito". Ajuntando tudo, aprendemos o escopo da sexta elocução do Salvador na cruz, "Está
consumado". Ele clamou: está "posto um fim a"; está "pago"; está "realizado"; está "acabado".
A que se pôs um fim? Aos nossos pecados e sua culpa. O que foi pago? O preço de nossa
redenção. O que foi realizado? Os mais extremos requerimentos da lei. O que foi acabado? A
obra que o Pai lhe dera a fazer. O que foi findado? O fazer expiações.

Deus fornece ao menos quatro provas de que Cristo terminou sim sua obra a qual lhe foi
dada para fazer. Primeiro, no rasgar do véu, que mostrava que o caminho para Deus estava
agora aberto. Segundo, no ressurgir de Cristo dentre os mortos, que provou que Deus aceitara
seu sacrifício. Terceiro, na exaltação de Cristo a sua própria destra, o que demonstrou o valor
da sua obra e o deleite do Pai em sua pessoa. Quarto, no envio à terra do Espírito Santo para
aplicar as virtudes e benefícios da morte expiatória de Cristo.

"Está consumado". O que estava consumado? A obra da expiação. Qual o seu valor para
nós? Este: ao pecador, é uma mensagem de boas novas. Tudo que um santo Deus requer foi
feito. Nada é deixado para o pecador acrescentar. Obra nenhuma de nós é exigida como preço
de nossa salvação. Tudo que é necessário ao pecador é descansar agora pela fé sobre o que
Cristo fez: "O dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor" (Rm 6.23).
Para o crente, o conhecimento de que a obra expiatória de Cristo está acabada traz um doce
alívio contra todos os defeitos e imperfeições de seus serviços. Há muito de pecado e vaidade
no melhor mesmo de nossos esforços, mas o grande consolo é que estamos "perfeitos" em
Cristo (Cl 2.10)! Cristo e sua obra acabada é o fundamento de todas as nossas esperanças.

Sobre uma Vida que não vivi,


Sobre uma Morte que não morri,
Sobre a morte de um outro, sobre a vida de um outro
Eu lanço minh’alma eternamente
Com ousadia ficarei de pé naquele grande dia, Pois quem pode lançar sobre mim alguma
acusação?
Completamente absolvido por Cristo estou,
Da tremenda maldição do pecado e da culpa.

"Está consumado"

5. Vemos aqui o fim de nossos pecados.

Os pecados do crente — todos os seus — foram transferidos ao Salvador. Como diz a


escritura: "O Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos" (Is 53.6). Se Deus pois lançou
minhas iniqüidades sobre Cristo, não mais estão elas sobre mim. Há pecado em mim, pois a
velha natureza adâmica permanece no crente até a morte ou até o retorno de Cristo, caso ele
venha antes que eu morra, porém, não há mais pecado algum sobre mim. Tal distinção entre
pecado EM e pecado SOBRE é uma distinção vital, e deve haver pouca dificuldade em sua
apreensão. Se eu dissesse que o juiz deu a sentença sobre um criminoso, e que esse está agora
sob sentença de morte, todos entenderiam o que eu quis dizer. Da mesma forma, todos fora de
Cristo tem a sentença da condenação divina que repousa sobre si. Porém, quando um pecador
crê no Senhor, recebe-o como seu Senhor e Mestre, ele não mais está "sob condenação" — o
pecado não mais está sobre si, ou seja, a culpa, a condenação, a pena do pecado, não mais está
sobre ele. E por quê? Porque Cristo levou nossos pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro
(1Pd 2.24). A culpa, a condenação e a pena de nossos pecados foram transferidas ao nosso
substituto. Em conseqüência, porque meus pecados foram transferidos a Cristo, eles não mais
estão sobre mim.

Essa preciosa verdade foi contundentemente ilustrada nos tempos do Antigo Testamento em
conexão com o Dia Anual da Expiação em Israel. Naquele dia, Arão, o sumo-sacerdote (um tipo
de Cristo), dava satisfação a Deus pelos pecados que Israel cometera durante o ano anterior. A
maneira como isso era feito está descrita em

Levítico 16. Dois bodes eram tomados e apresentados diante de Deus à porta do
tabernáculo: isso era antes que qualquer coisa fosse feita com eles: isso representava
Cristo apresentando-se a Deus, oferecendo para entrar neste mundo, e ser o Salvador
dos pecadores. Um dos bodes era então escolhido e morto, e seu sangue era levado para
dentro do tabernáculo, no interior do véu, no Santo dos Santos e, ali, era espargido
perante e sobre o propiciatório — prefigurando a Cristo oferecendo-se como um
sacrifício a Deus, para satisfazer às exigências de sua justiça e aos requerimentos de sua
santidade.

Lemos então que Arão saía do tabernáculo e punha ambas as mãos sobre a cabeça do
segundo bode (vivo) — significando um ato de identificação pelo qual ele, o representante de
toda a nação, identificava o povo com o animal, reconhecendo que seu destino era o que seus
pecados mereciam, e que, hoje, corresponde às mãos da fé, segurando Cristo e identificando a
nós mesmos consigo em sua morte. Tendo posto suas mãos na cabeça do bode vivo, Arão agora
confessava sobre ele "todas as iniqüidades dos filhos de Israel, e todas as suas transgressões,
segundo todos os seus pecados, e os porá sobre a cabeça do bode" (Lv 16.21). Desse modo, os
pecados de Israel eram transferidos ao seu substituto. Finalmente se nos diz: "Assim aquele
bode levará sobre si todas as iniqüidades deles à terra solitária; e enviará o bode ao deserto"
(Lv 16.22). O bode que carregava os pecados de Israel era introduzido num ermo inabitado, e o
povo de Deus não mais via, nem ele nem seus pecados! Tipificando, isso era Cristo introduzindo
nossos pecados em uma terra desolada onde Deus não estava, e ali dando um fim a eles. A cruz
de Cristo, pois, é o túmulo de nossos pecados!

"Está consumado"

6. Aqui vemos o cumprimento das exigências da lei.

"A lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom" (Rm 7.12). Como poderia ela ser menos
que isso, já que o próprio Jeová a tinha ideado e dado! A culpa não estava na lei, mas no
homem que, sendo depravado e pecador, não a podia guardar. Todavia, aquela lei tem que ser
guardada, e guardada por um homem, de modo que a lei pudesse ser honrada e exaltada, e
justificado aquele que a deu. Por conseguinte, lemos: "Porquanto o que era impossível à lei,
visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do
pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se cumprisse em
(não "por") nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o espírito" (Rm 8.3,4). A
"enfermidade" aqui é aquela do homem caído. O envio do Filho de Deus na semelhança da carne
do pecado (grego, corretamente traduzido pela versão Almeida Revista e Corrigida) refere-se à
Encarnação: como lemos em uma outra escritura, "Deus enviou seu Filho, nascido de mulher,
nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei" (Gl 4.4,5 ARA). Sim, o Salvador
nasceu "sob a lei", nasceu sob ela para que pudesse guardá-la perfeitamente em pensamento,
palavra e obras. "Não cuideis que vim destruir a lei, ou os profetas: não vim abrogar, mas
cumprir" (Mt 5.17); essa foi sua pretensão.

Mas não apenas o Salvador guardou os preceitos da lei, ele também sofreu sua pena e
suportou sua maldição. Nós a tínhamos quebrado e, tomando nosso lugar, ele deve receber sua
justa sentença. Tendo recebido sua pena e sofrido sua maldição, as exigências da lei são
completamente atendidas e a justiça é satisfeita. Por conseguinte, está escrito a respeito dos
crentes: "Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós" (Gl 3.13). E
outra vez: "Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê" (Rm 10.4). E outra
vez ainda: "Pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça" (Rm 6.14).

"Livres da lei, Ó feliz condição! Jesus abençoa e há remissão.

Amaldiçoados pela lei e mortos pela queda, A graça nos redimiu de uma vez por todas.

"Está consumado"

7. Aqui vemos a destruição do poder de Satanás.


Veja-o pela fé. A cruz foi o presságio de morte do poder do diabo. Às aparências humanas
parecia o momento de seu maior triunfo, todavia, na realidade foi a hora de sua derrota
definitiva. Em virtude da cruz (vide contexto) o Salvador declarou, "Agora é o juízo deste
mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo" (Jo 12.31). É verdade que Satanás não foi
ainda acorrentado e lançado no abismo, entretanto, a sentença foi dada (ainda que não
executada); seu fim é certo; e seu poder já está quebrado no que diz respeito aos crentes.

Para o cristão, o diabo é um inimigo vencido. Ele foi derrotado por Cristo na cruz — "para que
pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo" (Hb 2.14). Os crentes já
foram tirados "da potestade das trevas" e transportados para o reino do Filho do amor de Deus
(Cl 1.13). Satanás, então, deve ser tratado como um inimigo derrotado. Ele não mais tem
qualquer reivindicação legítima sobre nós. Outrora éramos seus "cativos" por lei, mas Cristo nos
livrou. Outrora andávamos "segundo o príncipe das potestades do ar"; mas agora temos de
seguir o exemplo que Cristo nos deixou. Outrora Satanás "operava em nós"; mas agora Deus é
quem opera em nós tanto o querer quanto o efetuar, segundo sua boa vontade. Tudo o que
temos de fazer é "resistir ao diabo", e a promessa é que "ele fugirá de vós" (Tg 4.7).

"Está consumado". Aqui estava a resposta triunfante à cólera do homem e à inimizade


de Satanás. Ela conta a perfeita obra que vai de encontro ao pecado no lugar do
julgamento. Tudo estava completado exatamente como Deus queria tê-lo, como os
profetas haviam predito, como o cerimonial do Antigo Testamento prefigurava, como a
santidade divina requeria, e como os pecadores necessitavam. Quão contundentemente
apropriado é que esse sexto brado do Salvador na cruz seja encontrado no evangelho de
João — o evangelho que mostra a glória da deidade de Cristo! Ele aqui não encomenda
sua obra à aprovação divina, mas sela-a com o seu próprio imprimatur, atestando-a
como completa, e dando-lhe a todo-suficiente sanção de sua própria aprovação.
Nenhum outro além do Filho de Deus diz "ESTÁ consumado" — quem pois ousa
duvidar ou questionar?

"Está consumado". Leitor, você crê nisso? ou está tentando adicionar algo de si mesmo
à obra completa de Cristo para assegurar o favor de Deus? Tudo o que você tem que
fazer é aceitar o perdão que ele adquiriu. Deus está satisfeito com a obra de Cristo, por
que você não está? Pecador, no momento em que você crer no testemunho de Deus
sobre seu Filho amado, nesse momento todo pecado que você cometeu é apagado, e
você fica em posição aceitável em Cristo! Ó, não gostaria você de possuir a certeza de
que não há nada entre sua alma e Deus? Não gostaria você de saber que todo pecado foi
expiado e posto de lado? Então, creia no que a palavra de Deus acerca da morte de
Cristo. Não descanse em seus sentimentos e experiências, mas na palavra escrita. Há
apenas um caminho para se encontrar paz, e isso é mediante a fé no sangue derramado
do Cordeiro de Deus.

"Está consumado". Você realmente crê nisso? Ou está se esforçando para acrescentar algo
seu mesmo a ele e assim merecer o favor divino? Há alguns anos atrás, um fazendeiro cristão
estava profundamente preocupado com um carpinteiro não salvo. Ele procurou pôr diante de
seu vizinho o evangelho da graça de Deus, e explicar como que a obra completa de Cristo foi
suficiente para sua alma nela descansar. Porém, o carpinteiro persistia na crença de que ele
mesmo tem que fazer algo. Um dia, o fazendeiro pediu a esse para lhe fazer um portão, e
quando o portão estava pronto ele o transportou para a sua carroça. Ele ordenou ao carpinteiro
que o visitasse no dia seguinte de manhã e visse o portão quando levantado no campo. Na hora
marcada o carpinteiro chegou e ficou surpreso ao descobrir o fazendeiro lá perto com um afiado
machado em sua mão. "O que você vai fazer?", ele perguntou. "Vou fazer alguns cortes e dar
uns golpes em sua obra", foi a resposta. "Mas não há necessidade alguma disso", respondeu o
carpinteiro, "o portão está todo certo assim. Fiz tudo que era necessário". O fazendeiro não
prestou atenção a isso mas, erguendo seu machado, deu talhos e cortes no portão até ficar
completamente inutilizado. "Veja o que você fez!", gritou o carpinteiro. "Você arruinou meu
trabalho!" "Sim", disse o fazendeiro, "e isso é exatamente o que você está tentando fazer. Você
está procurando anular a obra completa de Cristo com seus miseráveis acréscimos a ela!" Deus
utilizou essa lição com o vigoroso objeto para mostrar ao carpinteiro seu engano, e esse foi
levado a se lançar em fé sobre o que Cristo tem feito pelos pecadores. Leitor, você quer fazer o
mesmo?
7. A PALAVRA DE CONTENTAMENTO

"E, clamando Jesus com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.
E, havendo dito isto, expirou"

Lucas 23.46

"E, CLAMANDO JESUS com grande voz, disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E,
havendo dito isto, expirou" (Lc 23.46). Essas palavras postas diante de nós foram o último ato
do Salvador antes de expirar. Foi um ato de contentamento, de fé, de confiança e amor. A
pessoa a quem ele confiou o precioso tesouro de seu espírito foi seu próprio Pai. Pai é um título
que traz encorajamento e segurança: um filho, desde que seja querido, bem pode confiar
qualquer preocupação nas mãos de um pai, em especial um tal Filho nas mãos de um tal Pai.
Aquilo que foi entregue nas mãos do Pai foi o seu "espírito", que estava preste a se separar do
corpo.

A Escritura mostra o homem como sendo um ser tricotômico: "espírito, e alma, e corpo" (1Ts
5.23). Há uma diferença entre a alma e o espírito, ainda que não seja fácil afirmar onde não são
eles similares entre si. O espírito parece ser o mais elevado panorama de nosso ser complexo. É
isso que particularmente distingue o homem das bestas, e que o liga a Deus. O espírito é aquilo
que Deus forma dentro de nós (Zc 12.1); portanto, é ele chamado o "Deus dos espíritos de toda
a carne" (Nm 16.22). Na morte, o espírito volta a Deus, que o deu (Ec 12.7).

O ato pelo qual o Salvador pôs seu espírito nas mãos do Pai foi um ato de fé —"[eu]
entrego". Foi um bendito ato com a intenção de ser um precedente para todo seu povo. O
último ponto observável é a maneira na qual Cristo executou seu ato: ele expressou tais
palavras "com grande voz". Ele falou para que todos pudessem ouvir, e para que seus inimigos,
que o julgavam destituído e desamparado por Deus pudessem saber que ele não mais o estava,
antes, que ainda era amado por seu Pai, e podia pôr seu espírito confiantemente em suas mãos.

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito". Foi a última coisa que o Salvador disse antes de
expirar. Enquanto pendurado na cruz, por sete vezes seus lábios moveram-se para falar. Sete é
o número da inteireza ou perfeição. No Calvário, então, como em todo lugar, as perfeições do
Bem-Aventurado foram mostradas. Sete é também o número de descanso em uma obra
encerrada: em seis dias Deus fez céu e terra e, no sétimo, descansou, contemplando com
satisfação aquilo sobre o que pronunciara ser "muito bom". Assim também aqui com Cristo:
uma obra fora-lhe dada para fazer, e tal obra estava agora feita. Exatamente como o sexto dia
levou à conclusão a obra de criação e reconstrução, assim a sexta declaração do Salvador foi
"Está consumado". E, exatamente como o sétimo dia foi o dia de repouso e satisfação, assim a
sétima elocução do Salvador trá-lo ao lugar de descanso — as mãos do Pai.

Por sete vezes o Salvador agonizante falou. Três dessas elocuções diziam respeito aos
homens: a um deu a promessa de que deveria estar com ele naquele dia no Paraíso; a um outro
confiou sua mãe; à massa de expectadores fez menção de estar com sede. Três

dessas elocuções foram dirigidas a Deus: ao Pai ele orou por seus assassinos; a Deus ele
expressou seu triste lamento; e agora, nas mãos do Pai, ele entrega seu espírito. Ao ouvido de
Deus e dos homens, dos anjos e do diabo, ele bradara em triunfo: "Está consumado".

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito". É digno de nota que esse brado final do
Salvador tenha sido pronunciado pelo espírito de profecia muitos séculos antes da Encarnação.
No salmo de número trinta e um ouvimos o Filho de Davi e o Senhor dizendo, antecipadamente:

"Em ti, Senhor, confio; nunca me deixes confundido; livra-me pela tua justiça. Inclina para
mim os teus ouvidos, livra-me depressa; sê a minha firme rocha, uma casa fortíssima que me
salve. Porque tu és a minha rocha e a minha fortaleza; pelo que, por amor do teu nome, guia-
me e encaminha-me. Tira-me da rede que para mim esconderam, pois tu és a minha força. Nas
tuas mãos encomendo o meu espírito; tu me remiste, Senhor Deus da verdade" (vv. 1-5)!

Em conexão com cada uma das elocuções de nosso Salvador na cruz uma profecia foi
cumprida. Na primeira vez, ele clamou, "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem", e
isso cumpriu Isaías 53.12 — "pelos transgressores intercedeu" [ARA]. Na segunda, ele
prometeu ao ladrão: "Hoje estarás comigo no Paraíso", e isso foi um cumprimento da profecia
do anjo a José — "chamarás o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus
pecados" (Mt 1.21). Na terceira, disse à sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho", e isso cumpriu a
profecia de Simeão — "uma espada traspassará também a tua própria alma" (Lc 2.35). Na
quarta, ele havia perguntado: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" e tais
palavras foram idênticas àquelas do Salmo 22.1. Na quinta, ele exclamou: "Tenho sede", e isso
foi um cumprimento do Salmo 69.21 — "na minha sede me deram a beber vinagre". Na sexta,
ele bradou triunfantemente: "Está consumado", e essas são quase as mesmas palavras que
servem de conclusão àquele maravilhoso salmo vinte e dois: "ele o fez", ou, como se poderia
muito bem verter do hebraico: "ele consumou", com o contexto mostrando que ele tinha
feito, a saber, a obra de expiação. Por fim, ele orou: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito", e, como mostramos de antemão, ele tão-somente estava citando o que dele
fora escrito de antemão no Salmo 31. Ó, as maravilhas da cruz! Nunca chegaremos ao
fim delas.

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito"

1. Vemos aqui o Salvador outra vez de volta à comunhão com o Pai.

Isso é sobremaneira precioso. Por um instante aquela comunhão foi quebrada —


quebrada exteriormente — quando a luz da santa face de Deus foi ocultada dAquele que
levava nossos pecados, mas agora as trevas haviam passado e eram findas para sempre.
Até à cruz tinha havido comunhão perfeita e ininterrupta entre o Pai e o Filho. É
extraordinariamente belo observar como o terrível "Cálice" mesmo fora aceito das mãos
do Pai:

"Não beberei eu o cálice que o Pai me deu?" (Jo 18.11). Na cruz, no início, o Senhor Jesus
ainda é encontrado em comunhão com o Pai, pois senão não teria clamado, "Pai, perdoa-lhes"!
A sua primeira declaração na cruz, então, foi "Pai, perdoa-lhes", e agora sua última palavra é:
"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito". Porém, entre aquelas elocuções ele tinha ficado ali
pendurado por seis horas: três delas passadas em sofrimento nas mãos do homem e de
Satanás; as três outras, na mão de Deus, quando a espada da justiça divina foi "despertada"
para ferir o Companheiro de Jeová. Durante aquelas três últimas horas, Deus se tinha retirado
do Salvador, o que evoca aquele terrível clamor: "Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?" Mas agora está tudo feito. O cálice é bebido até à última gota: a tempestade da
ira se tinha passado: as trevas são idas, e o Salvador é visto mais uma vez em comunhão com
o Pai — comunhão nunca mais quebrada.

"Pai". Quão amiúde essa palavra estava nos lábios do Salvador! A primeira vez em que
foi registrada: "Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?" No que foi
provavelmente seu primeiro discurso formal — o "sermão da montanha" — ele fala do
"Pai" dezessete vezes. Quando em seu discurso final aos discípulos, o "discurso pascal"
encontrado em João 14-16, a palavra "Pai" é achada não menos do que quarenta e cinco
vezes! No capítulo seguinte, João 17, que contém o que é conhecido como a grande
oração sacerdotal de Cristo, ele fala ao e do Pai por mais seis vezes. E agora, pela última
vez antes de renunciar à própria vida, diz novamente: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito".

E quão abençoado é que seu Pai seja nosso Pai! Nosso porque seu. Quão maravilhoso isso é!
Quão inefavelmente precioso que eu possa erguer meus olhos ao grande Deus vivente e falar,
"Pai", meu Pai! Que conforto está contido nesse título! Que segurança é comunicada! Deus é
meu Pai, então ele me ama, ama-me como ao próprio Cristo (Jo 17.23)! Deus é meu Pai e me
ama, então ele se importa comigo. Deus é meu Pai e cuida de mim, então suprirá todas as
minhas necessidades (Fp 4.19). Deus é meu Pai, então ele fará com que nenhum mal aconteça
a mim, sim, que todas as coisas serão feitas para trabalharem juntos para o meu bem. Ó, que
seus filhos adentrem mais profunda e praticamente na bênção de tal relacionamento, e então,
alegremente exclamem com o apóstolo: "Vede quão grande caridade nos tem concedido o Pai:
que fôssemos chamados filhos de Deus" (1Jo 3.1)!

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito"

2. Vemos aqui um calculado contraste.

Por mais de doze horas Cristo estivera nas mãos dos homens. Disso falara aos seus
discípulos quando os avisou de antemão que "o Filho do homem será entregue nas mãos dos
homens:e matá-lo-ão (Mt 17.22,23). Disso fizera menção no meio da terrível gravidade do
Getsêmane: "Então chegou junto dos seus discípulos, e disse-lhes: Dormi agora, e repousai; eis
que é chegada a hora, e o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores" (Mt 26.45).
A isso os anjos fizeram referência na manhã da ressurreição, dizendo às mulheres: "Não está
aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos como vos falou, estando ainda na Galiléia, dizendo: Convém
que o Filho do homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, e seja crucificado, e ao
terceiro dia ressuscite" (Lc 24.6,7). Isso recebeu seu cumprimento quando o Senhor Jesus se
entregou àqueles que vieram prendê-lo no Jardim. Como vimos em um capítulo anterior, Cristo
podia facilmente ter evitado a prisão. Tudo que tinha que fazer era deixar os oficiais dos
sacerdotes prostrados no chão, e ir embora tranqüilamente. Mas ele não agiu assim. A hora
marcada havia chegado. O tempo em que ele submeter-se-ia para ser levado como um cordeiro
ao matadouro chegara. E ele entregou-se nas "mãos dos pecadores". Como eles o trataram é
bem sabido; eles se aproveitaram completamente da oportunidade. Eles deram plena vazão ao
ódio do coração carnal por Deus. Com "mãos ímpias" (At 2.23, KJV) o crucificaram. Mas agora
tudo está acabado. O homem fizera o seu pior. A cruz fora suportada; a obra designada é
terminada.

Voluntariamente tinha o Salvador se entregado às mãos dos pecadores, e agora,


voluntariamente, ele entrega seu espírito nas mãos do Pai. Que bendito contraste! Nunca mais
ele estará de novo nas "mãos dos homens". Nunca mais estará ele à mercê do ímpio. Nunca
mais sofrerá vergonha. Nas mãos do Pai ele se entrega, e o Pai agora tomará conta de seus
interesses. Não precisamos nos deter em detalhes na bendita conseqüência. Três dias depois o
Pai o ressuscitava dos mortos. Quarenta dias depois disso, o Pai o exaltava acima de todo o
principado, e poder, e de todo o nome que se nomeia, e o pôs à sua própria direita nos céus. E
lá agora ele se assenta no trono do Pai (Ap 3.21), esperando até que seus inimigos sejam feitos
escabelo de seus pés. Por um dia, ainda que demorado, as posições serão invertidas. O Pai
enviará aquele a quem o mundo rejeitou: ele o fará outra vez, mas em poder e glória: para
governar e reinar sobre toda a terra com vara de ferro. Então a situação será inversa. Quando
aqui esteve anteriormente os homens se atreveram a acusá-lo publicamente, mas então ele
assentar-se-á para julgá-los. Outrora esteve nas mãos deles, então eles estarão nas suas.
Outrora gritaram: "Tira[-o]", então ele dirá: "Apartai-vos de mim". E, no meio tempo, ele está
nas mãos do Pai, sentado em seu trono, esperando seu deleite!

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isto, expirou."

3. Vemos aqui a perfeita entrega de Cristo a Deus.

Quão abençoadamente ele provou isso em toda a sua caminhada! Quando sua mãe o
procurou em Jerusalém quando era um menino de doze anos, ele disse: "Não sabeis que me
convém tratar dos negócios de meu Pai?" Quando esteve faminto no deserto após um jejum de
quarenta dias e o diabo o instou a fazer pão das pedras, ele respondeu dizendo que vivia de
toda palavra de Deus. Quando as poderosas obras que ele tinha feito e a mensagem que tinha
entregado não conseguiram comover seus ouvintes, ele se submeteu àquele que o enviara,
dizendo: "Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios
e entendidos, e as revelaste aos pequeninos" (Mt 11.25). Quando as irmãs de Lázaro mandaram
informar ao Salvador da enfermidade de seu irmão, em vez de apressadamente ir a Betânia, ele
ficou ainda dois dias no lugar onde estava, dizendo: "Esta enfermidade não é para morte, mas
para glória de Deus".

Não era a afeição natural que o movia a agir, mas a glória de Deus! Sua comida era
fazer a vontade daquele que o enviou. Em tudo ele se submetia ao Pai. Veja-o de
manhã, "levantando-se de manhã muito cedo" (Mc 1.35), a fim de poder estar na
presença do Pai. Veja-o antecipando-se a toda grande crise e se preparando para ela
derramando seu coração em súplicas. Veja-o passando mesmo a última hora antes de
sua prisão com sua face perante Deus. Quão adequadamente podia ele dizer: "Tomai
sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração". E
da mesma forma que viveu, morreu — entregando-se nas mãos do Pai. Esse foi o último
ato do Salvador agonizante. E quão extraordinariamente belo. Quão totalmente de
conformidade com toda a sua vida! Ela manifestava sua perfeita confiança no Pai. Ela
revelava a bendita intimidade que havia entre eles. Ela mostrava sua absoluta
dependência de Deus.
Verdadeiramente, em tudo ele nos deixou um exemplo. O Salvador entregou seu espírito nas
mãos de seu Pai na morte, porque ele tinha estado nas mãos dele por toda a sua vida! Isso é
verdade quanto a você, leitor meu? Como pecador, você entregou seu espírito nas mãos
divinas? Nesse caso, está salvaguardado. Você pode dizer com o apóstolo: "Eu sei em quem
tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia" (2Tm
1.12)? E você, como cristão, rendeu-se plenamente a Deus? Você presta atenção àquela
palavra: "Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional" (Rm 12.1)? Está vivendo
para a glória dele que amou e se deu por você? Está caminhando em dependência diária dele,
sabendo que sem ele não pode fazer nada (Jo 15.5), mas aprendendo que pode fazer todas as
coisas por Cristo, que fortalece você (Fp 4.13)? Se sua vida inteira está entregue a Deus, e a
morte o apanhar antes que o Salvador retorne para receber seu povo para si mesmo, então
será fácil e natural para você dizer: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito". Balaão disse:
"A minha alma morra a morte dos justos" (Nm 23.10). Ah, mas para morrer a morte dos justos,
você tem de viver a vida dos justos, e essa consiste em absoluta submissão e dependência de
Deus.

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito"

4. Vemos aqui a absoluta singularidade do Salvador.

O Senhor Jesus morreu como nenhum outro jamais morreu. Essa foi a sua afirmação: "Por
isto o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim,
mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la" (Jo
10.17,18). As várias provas de que a vida de Cristo não foi tirada dele foram expostas diante do
leitor na Introdução deste livro. A mais convincente demonstração de todas foi vista na entrega
de seu espírito nas mãos do Pai. O Senhor Jesus mesmo disse: "Pai, nas tuas mãos entrego o
meu espírito", mas o Espírito Santo, ao descrever a verdadeira renúncia da sua vida, emprega
três diferentes expressões que dão a conhecer mui convincentemente o fato que nós estamos
ora considerando, e as várias palavras empregadas pelo Espírito são mais apropriadas aos
respectivos evangelhos em que são encontradas.

Lemos em Mateus 27.50: "E Jesus, clamando outra vez com grande voz, rendeu o espírito".
Mas tal tradução não consegue salientar a força própria do original: o sentido no grego é o de
que ele "despachou seu espírito". Essa expressão é a mais apropriada em Mateus, que é o
evangelho do rei, apresentando nosso Senhor como "O Filho de Davi; o Rei dos judeus". Um tal
termo é lindamente adequado ao evangelho real, pois o ato do Senhor tem conotação de
autoridade, como de um rei mandando embora um servo. A palavra usada em Marcos — que
apresenta nosso Senhor como o servo perfeito — é a mesma de nosso texto — tomada de
Lucas, o evangelho da perfeita humanidade de Cristo — e significa, ele "soprou para fora seu
espírito". Foi sua passiva tolerância da morte. Em João, que é o evangelho da glória divina de
Cristo, uma outra palavra é empregada pelo Espírito Santo: "Inclinando a cabeça, entregou o
espírito" (Jo 19.30), ou liberou, talvez fosse mais exato. Aqui, o Salvador não "encomenda" seu
espírito ao Pai como no evangelho de sua humanidade, mas, de acordo com sua glória divina,
como alguém que tem completo poder sobre ele, "libera" seu espírito!

Duas coisas eram necessárias para se fazer propiciação: primeiro, uma satisfação completa
deve ser oferecida à santidade de Deus ultrajada e à sua justiça ofendida, e isso, no caso de
nosso substituto, somente podia ser por ele sofrendo a ira divina derramada. E isso tinha sido
suportado. Agora ali restava apenas a segunda coisa, e essa era para o Salvador provar o gosto
da morte. "Aos homens está ordenado morrerem uma vez vindo depois disso o juízo" (Hb 9.27).
Com o pecador é, primeiro, a morte, depois o julgamento; com o Salvador a ordem,
naturalmente, foi invertida. Ele suportou o juízo de Deus contra os nossos pecados e depois
morreu.

O fim agora era chegado. Perfeito senhor de si mesmo, não subjugado pela morte, ele brada
com uma grande voz de vigor não exaurido, e entrega seu espírito nas mãos do Pai, e nisso sua
singularidade foi manifestada. Ninguém mais jamais agiu ou morreu assim. Seu nascimento foi
singular. Sua vida foi singular. Sua morte foi singular. Ao "dar" a sua vida, sua morte foi
diferenciada de todas as outras mortes. Ele morreu por um ato de sua própria volição! Quem, a
não ser uma pessoa divina, poderia ter feito isso? A um mero homem teria sido suicídio; mas,
para ele, era uma prova de sua perfeição e singularidade. Ele morreu como o Príncipe da Vida!
"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito"

5. Vemos aqui o lugar de segurança eterna.

Repetidas vezes o Salvador falou de um povo que lhe fora "dado" (Jo 6.37 etc.), e na hora de
sua prisão ele disse: "Dos que me deste nenhum deles perdi" (Jo 18.9). Então, não é deleitoso
ver que na hora da morte o bendito Salvador entrega-os agora à salvaguarda do Pai? Na cruz,
Cristo pendurado como o representante de seu povo e, por conseguinte, vemos seu último ato
como um ato representativo. Quando o Senhor Jesus entregou seu espírito nas mãos de seu Pai,
ele também apresentou nossos espíritos junto com o seu, para a aceitação do Pai. Jesus Cristo
nunca viveu nem morreu por si próprio, mas pelos crentes: o que ele fez em seu último ato
reportava-se a eles tanto quanto a si mesmo. Devemos, pois, olhar Cristo aqui unindo
juntamente todas as almas dos eleitos, e fazendo uma oferta solene delas, com seu próprio
espírito, a Deus.

A mão do Pai é o lugar da segurança eterna. Naquela mão o Salvador encomendou seu povo,
e ali eles estão para sempre seguros. Disse Cristo, referindo-se aos eleitos: "Meu Pai, que mas
deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai" (Jo 10.29). Aqui
então está o fundamento da confiança do crente. Aqui está a base de nossa segurança. Assim
como nada podia prejudicar Noé quando a mão de Jeová havia trancado a porta da arca,
também nada pode tocar o espírito do santo pego pela mão de onipotência. Ninguém pode
arrancá-los de lá. Fracos somos em nós mesmos, porém "guardados pelo poder de Deus", é a
declaração segura da escritura sagrada: "guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para
salvação preparada para revelar-se no último tempo" (1Pd 1.5, ARA). Os adeptos formais que
parecem correr bem por um tempo podem ficar fatigados e abandonar a corrida. Aqueles que
são movidos pela excitação carnal de um "encontro de reavivamento" agüentam somente por
um tempo, pois "não têm raiz em si mesmos". Aqueles que confiam no poder de suas próprias
vontades e resoluções, que abandonam maus hábitos e prometem agir melhor, amiúde
fracassam, e seu último estado é pior que o primeiro. Muitos que são persuadidos pelos bem
intencionados, mas ignorantes, aconselhadores para "juntar-se à igreja" e "viverem a vida
cristã" com freqüência apostatam da verdade. Mas todo espírito que nasceu de novo está
eternamente a salvo na mão do Pai.

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito"

6. Vemos aqui a bênção da comunhão com Deus.

O que estamos aludindo particularmente aqui é ao fato de que a comunhão com Deus
pode ser desfrutada independentemente do lugar ou das circunstâncias. O Salvador
estava na cruz, rodeado por uma multidão escarnecedora, seu corpo sofrendo intensa
agonia, entretanto, ele estava em comunhão com o Pai! Essa é uma das mais doces
verdades destacadas pelo nosso texto. É privilégio nosso gozar da comunhão com Deus
em todo tempo, independente de circunstâncias ou condições externas. Tal comunhão é
por fé, e a fé não é afetada pelas coisas da vista. Não importa quão desagradável seu
quinhão possa ser, leitor meu, é seu inefável privilégio desfrutar de comunhão com
Deus. Tal como os três hebreus a desfrutaram com o Senhor no meio do forno de fogo
ardente, como Daniel na cova dos leões, como Paulo e Silas no cárcere de Filipos, como
o Salvador na cruz, assim também você, seja em que lugar for! A cabeça de Cristo
estava circundada com uma coroa de espinhos em cima, mas embaixo estavam as mãos
do Pai!

Não ensina nosso texto mui explicitamente a bendita verdade e o bendito fato da comunhão
com o Pai na hora da morte? Então por que se apavorar, companheiro cristão? Se Davi, sob a
dispensação do Antigo Testamento, podia dizer: "Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da
morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo" (Sl 23.4), por que devem os crentes
agora temer, depois de Cristo haver arrancado o aguilhão da morte! A morte pode ser a "Rainha
dos terrores" para o não salvo, mas para o cristão, ela é simplesmente a porta que dá acesso à
presença do Bem-Amado. As moções de nossas almas na morte, tanto quanto na vida, voltam-
se instintivamente para Deus. "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" será nosso brado,
caso estejamos conscientes. Enquanto tabernaculamos aqui não temos descanso algum senão
no seio do Pai; e quando saímos daqui, nossa expectativa e nossos desejos ardentes são o de
estar com ele. Lançamos muitos olhares desejosos em direção ao céu, mas quando a alma do
salvo se aproxima da bifurcação dos caminhos, então ela se atira nos braços de amor, da
mesma forma que um rio após muitos volteios e curvas se derrama no oceano. Nada além de
Deus pode satisfazer aos nossos espíritos neste mundo, e nada senão ele pode nos satisfazer
quando formos embora daqui.

Contudo, leitor, apenas os crentes estão garantidos e são encorajados a assim encomendar
seus espíritos nas mãos de Deus à hora da morte; quão triste é o estado de todos os incrédulos
que estão à morte. Seus espíritos, ainda, cairão nas mãos dele, mas será isso a miséria deles,
não o privilégio. Os tais acharão que é uma "horrenda coisa cair nas mãos do Deus vivo" (Hb
10.31). Sim, porque, em vez de caírem nos braços de amor, cairão nas mãos de justiça.

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito"

7. Vemos aqui o verdadeiro refúgio do coração.

Se a elocução final do Salvador expressa a oração dos cristãos às portas da morte, ela
mostra que grande valor eles colocam em seus espíritos. O espírito interior é o tesouro
precioso, e nossa principal solicitude e nosso maior cuidado é vê-lo guardado em mãos
seguras. "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito". Tais palavras então podem ser
tomadas para expressar a atenção dada pelo crente à sua alma, para que ela possa estar
segura, o que sempre acontece com o corpo. O santo de Deus que se aproxima da morte
exercita poucos pensamentos acerca de seu corpo, onde ele será posto, ou como o
disporão dele; ele confia-o às mãos de seus amigos. Porém, como seu cuidado desde o
começo é com sua alma, assim ele pensa então nela, e com seu último suspiro a entrega
à custódia divina. Não é: "Senhor Jesus, receba meu corpo, cuide do meu pó"; mas:
"Senhor Jesus, receba meu espírito" — Senhor, proteja a jóia quando o cofre estiver
quebrado.

E agora uma breve palavra de apelo para concluir. Meu amigo, você está em um mundo que
é cheio de problemas. Você não é capaz de cuidar de si mesmo em vida, muito menos o será na
morte. A vida tem muitas provações e tentações. Sua alma é ameaçada dos dois lados. Em toda
direção há perigos e armadilhas. O mundo, a carne e o diabo entraram em combinação contra
você. Aqui está então o farol de luz em meio às trevas. Aqui está o porto de abrigo em todas as
tempestades. Aqui está o bendito pálio que protege de todos os dardos inflamados do maligno.
Graças a Deus que há um refúgio para os vendavais da vida e para os terrores da morte — a
mão do Pai — o verdadeiro céu do coração.
UMA BREVE BIOGRAFIA

Arthur Walkington Pink (1886-1952)

Evangelista e erudito bíblico nascido em Nottingham, Inglaterra, A. W. Pink foi


dedicado a Cristo por sua mãe antes de nascer. Porém, quando jovem, afastou-se da fé
de seus piedosos pais e aderiu à Teosofia (o movimento Nova Era de sua época).
Entretanto, em 1908, passa por uma contundente experiência de conversão ao
Evangelho e, simultaneamente, sente-se chamado para o ministério. Assim, em 1910,
aos vinte e quatro anos de idade, cruza o Atlântico para entrar no Instituto Bíblico
Moody, em Chicago, mas sai de lá após dois meses, para assumir uma igreja, a primeira
de uma série de esforços fracassados no ministério pastoral. Em 1916, casou-se com
Vera E. Russell.

Nos anos seguintes ao abandono do curso, veio a adotar uma posição teológica ardente e
estritamente calvinista, após aplicar-se ao estudo do pensamento puritano. Logo estaria
manejando uma prolífica pena, tornando-se professor itinerante da Bíblia em 1919, devotando,
a partir de então, sua vida ao estudo e exposição do Livro Santo, que viria a ler mais de
cinqüenta vezes e num ritmo de até dez capítulos por dia (!). Em 1922, deu início a uma revista
mensal com o título de Studies in Scriptures, voltada à exposição das Escrituras e cujos artigos
viriam a ser a fonte da maioria de seus trabalhos, que circulou entre cristãos de língua inglesa
espalhados pelo mundo e que nunca chegou a atingir uma tiragem de mil exemplares, e que
circulou até à época de sua morte; foi, sem dúvida, seu maior monumento. De 1925 a 1928,
atuou na Austrália, pregando, escrevendo e pastoreando duas congregações entre 1926 e 1928,
quando retornou à Inglaterra. No ano seguinte, retornava aos Estados Unidos para mais oito
anos de pastoreios mal-sucedidos no Colorado, em Kentucky e na Carolina do Sul. Para alguns,
a razão da fraca acolhida de seu ministério nesse campo deveu-se à personalidade excêntrica
(de fato, Pink não se encaixava em qualquer lugar).

Em 1934, retornou em definitivo à sua pátria natal, fazendo residência na Ilha de Lewis
(Escócia) em 1940, onde permanece em isolamento praticamente até sua morte, sem nenhuma
ligação formal com qualquer denominação — posição que não deve ser defendida nem
justificada. A partir de então, seu serviço no Reino de Deus passou a ser escrever dúzias de
livros e mais de dois mil artigos, todavia, sem sucesso editorial.

Em sua época, Arthur Pink era praticamente desconhecido e, certamente, não era apreciado.
O estudo por conta própria da Bíblia firmou-lhe a convicção de que muito do moderno
evangelismo era defeituoso. Fez frente à crescente aceitação do arminianismo mesmo em
tradicionais redutos calvinistas, como as igrejas batistas, levando adiante, com zelo incansável,
os princípios da então abandonada literatura reformada. Para ele, o declínio espiritual da Grã-
Bretanha era resultante de um "evangelho" que nem feria (com convicção de pecado) nem
curava (pela regeneração).

Após o seu falecimento em 1952, porém, ele veio a ter significativa influência. Tendo suas
obras republicadas por The Banner of Truth Trust, veio a alcançar um público muito maior como
conseqüência (quase 178 mil exemplares vendidos apenas de The Sovereignty of God, por
exemplo). Seu biógrafo Iain Murray observou: "A difundida circulação de seus escritos após sua
morte tornou-o um dos mais influentes autores evangélicos da segunda metade do século XX".
Familiarizado com toda a gama da verdade, Pink raramente se desviou dos grandes temas:
graça, justificação e santificação. A nossa geração tem com ele uma grande dívida, pela
permanência da luz que ele lançou, pela divina graça, sobre a verdade da Bíblia Sagrada. Seus
escritos lançaram a faísca que deu início ao reavivamento da pregação bíblica e levaram muitos
leitores a focalizarem o coração na vida de acordo com a Palavra de Deus.

Algumas frases de A. W. Pink:

• "A tendência da moderna teologia — se se pode chamá-la de teologia — é sempre rumo à


deificação da criatura ao invés da glorificação do Criador".

• "Não perguntamos: ‘Cristo é seu Salvador’, mas: ‘É Ele, real e verdadeiramente, seu
Senhor?’ Se Ele não for seu Senhor, então, com a mais absoluta certeza, Ele não é seu
Salvador".
• "O fundamento de todo verdadeiro conhecimento de Deus deve ser uma clara apreensão
mental de Suas perfeições como reveladas nas Escrituras. Não se pode confiar, adorar ou servir
a um Deus desconhecido".

• "O Deus deste século vinte não se assemelha mais ao Soberano Supremo das Escrituras
Sagradas do que a bruxuleante e fosca chama de uma vela se assemelha à glória do sol do
meio-dia. O Deus de que se fala atualmente no púlpito comum, comentado na escola dominical
em geral, mencionado na maior parte da literatura religiosa da atualidade e pregado em muitas
das conferências bíblicas, assim chamadas, é uma ficção engendrada pelo homem, uma
invenção do sentimentalismo piegas. Os idólatras do lado de fora da cristandade fazem "deuses"
de madeira e de pedra, enquanto que os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade
fabricam um Deus extraído de suas mentes carnais. Na realidade, não passam de ateus, pois
não existe alternativa possível senão a de um Deus absolutamente supremo, ou nenhum deus.
Um Deus cuja vontade é impedida, cujos desígnios são frustrados, cujo propósito é derrotado,
nada tem que se lhe permita chamar Deidade, e, longe de ser digno objeto de culto, só merece
desprezo".

Livros traduzidos no Brasil:

Attributes of God (Os Atributos de Deus, Editora PES)

Profiting from the Word of God (Enriquecendo-se com a Bíblia, Editora Fiel)
Studies on Saving Faith (Estudo sobre a Fé Salvífica, Site Monergismo.com)
The Doctrine of Justification (A Doutrina da Justificação, Site Monergismo.com)

The Seven Sayings of the Saviour on the Cross (Os Sete Brados do Salvador sobre a Cruz,
Site Monergismo.com)

The Sovereignty of God (Deus é Soberano, Editora Fiel)

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