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Pequeno Tratado das Grandes Virtudes

De André Comte-Sponville
Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999
Tradução de Eduardo Brandão

Preâmbulo
Se a virtude pode ser ensinada, como creio, é mais pelo exemplo do que pelos livros.
Então, para que um tratado das virtudes? Para isto, talvez: tentar compreender o que
deveríamos fazer, ou ser, ou viver, e medir com isso, pelo menos intelectualmente, o
caminho que daí nos separa. Tarefa modesta, tarefa insuficiente, mas necessária. Os
filósofos são alunos (só os sábios são mestres), e alunos precisam de livros; é por isso
que eles às vezes escrevem livros, quando os que têm à mão não os satisfazem ou
sufocam. Ora, que livro é mais urgente, para cada um de nós, do que um tratado de
moral? E o que é mais digno de interesse, na moral, do que as virtudes? Assim como
Spinoza, não creio haver utilidade em denunciar os vícios, o mal, o pecado. Para que
sempre acusar, sempre denunciar? É a moral dos tristes, e uma triste moral. Quanto ao
bem, ele só existe na pluralidade irredutível das boas ações, que excedem todos os
livros, e das boas disposições, também elas plurais, mas sem dúvida menos numerosas,
que a tradição designa pelo nome de virtudes, isto é (este é o sentido em grego da
palavra arete, que os latinos traduziram por virtus), de excelências.
O que é uma virtude? É uma força que age, ou que pode agir. Assim a virtude de uma
planta e de um remédio, que é tratar, de uma faca, que é cortar, ou de um homem, que é
querer e agir humanamente. Esses exemplos, que vêm dos gregos, dizem
suficientemente o essencial: virtude é poder, mas poder específico. A virtude do heléboro
não é a da cicuta, a virtude da faca não é a da enxada, a virtude do homem não é a do
tigre ou da cobra. A virtude de um ser é o que constitui seu valor, em outras palavras,
sua excelência própria: a boa faca é a que corta bem, o bom remédio é o que cura bem,
o bom veneno é o que mata bem...
Note o leitor que, nesse primeiro sentido, que é o mais geral, as virtudes são
independentes do uso que delas se faz, como do fim a que visam ou servem. A faca não
tem menos virtude na mão do assassino do que na do cozinheiro, nem a planta que salva
mais virtude do que a que envenena. Não, claro, que esse sentido seja privado de todo e
qualquer alcance normativo: qualquer que seja a mão e na maioria dos usos, a melhor
faca será a que melhor corta. Sua capacidade específica também comanda sua excelência
própria. Mas essa normatividade permanece objetiva ou moralmente indiferente. À faca
basta cumprir sua função, sem a julgar, e é nisso, certamente, que sua virtude não é a
nossa. Uma faca excelente nas mãos de um homem mau não é menos excelente por
isso. Virtude é poder, e o poder basta à virtude.
Mas ao homem não. Mas à moral não. Se todo ser possui seu poder específico, em que
excele ou pode exceler (assim, uma faca excelente, um remédio excelente...),
perguntemo-nos qual é a excelência própria do homem. Aristóteles respondia que é o
que o distingue dos animais, ou seja, a vida racional. Mas a razão não basta: também é
necessário o desejo, a educação, o hábito, a memória... O desejo de um homem não é o
de um cavalo, nem os desejos de um homem educado são os de um selvagem ou de um
ignorante. Toda virtude é, pois, histórica, como toda a humanidade, e ambas, no homem
virtuoso, sempre coincidem: a virtude de um homem é o que o faz humano, ou antes, é
o poder específico que tem o homem de afirmar sua excelência própria, isto é, sua
humanidade (no sentido normativo da palavra). Humano, nunca humano demais... A
virtude é uma maneira de ser, explicava Aristóteles, mas adquirida e duradoura, é o que
somos (logo o que podemos fazer), porque assim nos tornamos. Mas como, sem os
outros homens? A virtude ocorre, assim, no cruzamento da hominização (como fato
biológico) e da humanização (como exigência cultural); é nossa maneira de ser e de agir
humanamente, isto é (já que a humanidade, nesse sentido, é um valor), nossa
capacidade de agir bem. “Não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir
bem e devidamente”, dizia Montaigne. É a própria virtude.
Isso, que os gregos nos ensinaram, que Montaigne nos ensinou, também pode ser lido
em Spinoza: “Por virtude e poder entendo a mesma coisa, isto é, a virtude, enquanto se
refere ao homem, é a própria essência ou a natureza do homem enquanto ele tem o
poder de fazer certas coisas que se podem conhecer apenas pelas leis de sua natureza”;
ou, eu acrescentaria, de sua história (mas esta, para Spinoza, faz parte daquela).
Virtude, no sentido geral, é poder; no sentido particular, poder humano ou poder de
humanidade. É o que também chamamos as virtudes morais, que fazem um homem
parecer mais humano ou mais excelente, como dizia Montaigne, do que outro, e sem as
quais, como dizia Spinoza, seríamos a justo título qualificados de inumanos. Isso supõe
um desejo de humanidade, desejo evidentemente histórico (não há virtude natural), sem
o qual qualquer moral seria impossível. Trata-se de não ser indigno do que a humanidade
fez de si, e de nós.
A virtude, repete-se desde Aristóteles, é uma disposição adquirida de fazer o bem. É
preciso dizer mais, porém: ela é o próprio bem, em espírito e em verdade. Não o Bem
absoluto, não o Bem em si, que bastaria conhecer ou aplicar. O bem não é para se
contemplar, é para se fazer. Assim é a virtude: é o esforço para se portar bem, que
define o bem nesse próprio esforço. Isso levanta certo número de problemas teóricos,
que tratei em outra parte. Este livro pretende ser, inteiro, de moral prática, isto é, de
moral. A virtude ou, antes, as virtudes (pois há várias, visto que não se poderia reduzir
todas elas a uma só, nem se contentar com uma delas) são nossos valores morais, se
quiserem, mas encarnados, tanto quanto quisermos, mas vividos, mas em ato. Sempre
singulares, como cada um de nós, sempre plurais, como as fraquezas que elas combatem
ou corrigem. São essas virtudes que tomei aqui como objeto. Se bem que minha
intenção não fosse evocar todas elas, nem esgotar qualquer uma delas. Quis apenas
indicar, para as que me pareciam as mais importantes, o que elas são, ou o que
deveriam ser, e o que as torna sempre necessárias e sempre difíceis. Daí esse tratado, de
que o título bem indica a ambição, quanto a seu objeto, e os limites, quanto a seu
conteúdo.
Como procedi? Perguntei-me quais eram as disposições de coração, natureza ou caráter
cuja presença, num indivíduo, aumentava a estima moral que eu tinha por ele e cuja
ausência, ao contrário, a diminuía. Isso proporcionou uma lista de cerca de trinta
virtudes. Eliminei as que poderiam ser redundantes em relação a alguma outra (por
exemplo, bondade e generosidade, ou honestidade e justiça) e, em geral, todas as que
não me pareceu indispensável tratar. Restaram dezoito, isto é, muito mais do que eu
pensara de início, mas não consegui suprimir mais. Tive, por isso, de ser mais breve em
relação a cada uma, e essa necessidade, que fazia parte de meu projeto, não cessou de
governar sua realização. Este livro se dirige ao grande público. Os filósofos profissionais
podem lê-lo, contanto que não busquem nele nem erudição, nem exaustividade.
O fato de este conjunto começar pela polidez, que ainda não é moral, e terminar pelo
amor, que não o é mais, obviamente é deliberado. Quanto ao resto, a ordem escolhida,
sem ser absolutamente contingente, deve mais a uma espécie de intuição ou exigência,
ora pedagógica, ora ética ou estética, do que a alguma vontade dedutiva ou
hierarquizante. Um tratado das virtudes, sobretudo pequeno como este, não é um
sistema da moral, é moral aplicada, mais do que teórica, e viva, na medida do possível,
mais do que especulativa. Mas o que há de mais importante na moral do que a aplicação
e a vida?
Citei muito, como sempre, e demais. É que eu queria fazer uma obra útil, mais do que
elegante. A mesma razão me obrigava a dar todas as referências, ainda que para tanto
tivesse de multiplicar as notas de rodapé. Ninguém é obrigado a lê-las – aliás, a princípio
é melhor mesmo não se preocupar com elas. São feitas não para a leitura, mas para o
estudo, não para os leitores, mas para os estudantes, quaisquer que sejam sua idade e
sua profissão. Quanto ao fundamento, não quis fingir inventar o que a tradição me
oferecia, quando eu não fazia mais que retomá-lo. Não que eu não tenha dito nada de
meu neste livro, ao contrário! Mas só possuímos o que recebemos e transformamos, o
que nos tornamos, graças a outros ou contra eles. Um tratado das virtudes não poderia,
sem cair no ridículo, procurar a originalidade ou a novidade. De resto, há mais coragem e
mais mérito em confrontar-se com os mestres, no terreno deles, do que em fugir de
qualquer comparação por não sei que vontade de ineditismo. Há dois mil e quinhentos
anos, para não dizer mais, os melhores espíritos refletem sobre as virtudes; quis apenas
continuar seus esforços, a meu modo, com meus meios e apoiando-me neles tanto
quanto necessário.
Alguns julgarão essa empresa presunçosa ou ingênua. A segunda crítica é, para mim, um
elogio. Quanto à primeira, temo que seja um contra-senso. Escrever sobre as virtudes
seria, antes, para quem se arrisca a fazê-lo, uma perpétua ferida narcísica, porque
sempre remete, e vivamente, à própria mediocridade. Toda virtude é um ápice, entre
dois vícios, uma cumeada entre dois abismos: assim a coragem, entre covardia e
temeridade, a dignidade, entre complacência e egoísmo, ou a doçura, entre cólera e
apatia... Mas quem pode viver sempre no ápice? Pensar as virtudes é medir a distância
que nos separa delas. Pensar sua excelência é pensar nossas insuficiências ou nossa
miséria. É um primeiro passo, e talvez o único que se possa exigir de um livro. O resto é
para ser vivido, e como um livro poderia substituir o viver? Isso não significa que ele seja
sempre inútil, ou moralmente sem alcance. A reflexão sobre as virtudes não torna
ninguém virtuoso; em todo caso é evidente que não poderia bastar para tanto. Todavia
há às vezes uma virtude que ela desenvolve: a humildade, tanto intelectual, diante da
riqueza da matéria e da tradição, quanto propriamente moral, diante da evidência de que
essas virtudes nos fazem falta, quase todas, quase sempre, e de que, entretanto, não
poderíamos nos resignar à sua ausência nem nos isentar de sua fraqueza, que é a nossa.
Este tratado das virtudes só será útil para os que não as têm, e isso, que lhe dá um
público vastíssimo, deve desculpar o autor por ser ousado – não apesar de sua
indignidade, mas por causa dela – empreendê-lo. O prazer que tive, e que foi intenso,
pareceu-me uma justificativa suficiente. Quanto ao prazer dos leitores, ele só poderá vir,
se vier, por acréscimo: já não é trabalho, mas graça. A eles, pois, minha gratidão.

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