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72 M ARC O ZIN G A NO

gem é um conhecimento: a sabedoria dos bens e males futu-


ros a temer. Em um sentido, a coragem é uma parte da sabe-
doria, como o análogo da espécie com relação ao gênero; mas,
em outro sentido, a sabedoria também é dita uma parte, pois
é o análogo do gênero para suas espécies, e o gêner_o se diz 3
também uma parte de suas espécies, segundo o último senti-
do de parte mencionado por Aristóteles, embora, em uma
outra acepção, o sentido mais fundamental, a sabedoria seja EUDAIMONIA E BEM SUPREMO
a virtude inteira.
EM ARISTÓTELES

Gostaria aqui de revisitar uma conhecida noção da ética


aristotélica: a noção de eudaimonia. Meu objetivo é bem mo-
desto: quero tão-somente pôr em relevo alguns pontos que,
creio eu, devem ser levados em consideração por rodo intér-
prete que quiser apresentar um tratamento de maior fôlego
desta noção em Aristóteles. Tem-se discutido muito para sa-
ber se se deve interpretar o bem supremo como um bem "in-
clusivo" ou "dominante". Proporei uma tese forte do bem su-
premo tomado como inclusivo (sem no entanto sustentar a
versão maximalista: do ponto de vista quantitativo, defende-
rei uma versão modesta do bem supremo). Para tanto, sugiro
na seção li uma nova interpretação para EN I 6 1098a16-18:
trata-se de ler o critério formal da perfeição a título de um
modo particular de ser das virtudes. Ao fazer isto, tecerei al-
gumas considerações sobre a relação entre os livros I e X da
Ethica Nicomachea. Embora estes livros estejam intimamente
ligados, não pretendo aqui analisar a argumentação a respeito
da contemplação no último livro da EN. Limitar-me-ei a su-
gerir uma interpretação que, quer-me parecer, faz justiça a
ambos os livros, tornando-os consistentes um com o outro.
74 MARCO ZIN G ANO EUDAIM O NI A E BEM SUPREMO EM AR ISTÓTELES 75

I incompatível com outros fins, e que, portanto, uma vida na


qual ele se realiza pode também incluir certos outros fins, a
W E R. Hardie, num artigo bastante conhecido', pro- saber, ou bem aqueles que favoreçam a contemplação ou bem,
pôs o que me parece ser a boa interpretação desta noção aris- pelo menos, aqueles que não impeçam ou causem obstáculos
totélica, a saber, que eudaimonia é um fim de segunda ordem. à atividade contemplativa. Se isto de certa forma mitiga o
Desejar a eudaimonia como último fim não significa desejar caráter exclusivista do bem supremo, ele não deixa contudo
um certo fim em detrimento de outros, mas sim desejar uma de ser um bem dominante e, nesta medida, opõe-se à tese
harmonia entre nossos fms; a eudaimonia é, assim, a realiza- pelo menos sugerida por Aristóteles no livro I da EN de que
ção completa e harmoniosa de fins primários, fins primários o bem supremo não é um bem (acompanhado- ou não-
sendo aqueles fms em vista dos quais todas as outras coisas por outros bens que não o entravam), mas a harmonia entre
são feitas. Nossas ações dirigem-se todas à realização de fins os bens: mesmo sendo um sucedâneo prático aceitável, é
primários; a eudaimonia é a harmonia destes fms primários logicamente incompatível com o bem supremo a título de
num todo coerente. A eudaimonia é, então, um fim de se- fim de segunda ordem.
gunda ordem; e Hardie falou conseqüentemente da eudaimo- Hardie distingue, assim, duas concepções que se con-
nia como um fim inclusivo, cuja característica é precisamente fundem na exposição que Aristóteles faz da doutrina do bem
a incluir outros fins de um certo modo (modo harmonioso). supremo: a concepção do bem inclusivo e a do bem domi-
A eudaimonia é um fim de segunda ordem; ou melhor, nante. Tal confusão parece explicar muito do que os comen-
deveria ser. Isto é, para Hardie, o que Aristóteles deveria ter tadores consideraram como insatisfatório na ética aristotéli-
dito e o que em certos momentos pelo menos Aristóteles in- ca. Ela, porém, não é, para Hardie, a única: esta confusão está
sinuou; não é porém o que Aristóteles acabou por escrever. estreitamente conectada com uma outra dificuldade, a tesa
Ao contrário, para Hardie, Aristóteles explicitamente susten- aristotélica sobre a deliberação. Aristóteles sustenta que só
ta que o bem supremo é unicamente uma certa atividade, a deliberamos sobre meios, nunca sobre fms. Ora, para Hardie,
vita contemplativa. É o que Aristóteles teria feito notavelmen- o fracasso de Aristóteles em ver que a razão prática não se li-
te na Ethica Nicomachea X 7-8; ao invés de defender uma tese mita a somente encontrar meios está vinculado ao seu fracas-
do bem supremo a título de fim de segunda ordem, Aristóte- so em esclarecer satisfatoriamente a noção de bem inclusivo;
les passa a defender a tese de que o bem supremo é exclusiva- se o tivesse feito, teria visto que a razão é necessária para esta-
mente uma atividade, a atividade contemplativa. Pode-se, é belecer quais fins devem fazer parte de um tal fim inclusivo.
claro, mostrar que este bem supremo, a contemplação, não é Não tendo feito tal esclarecimento, foi levado a uma análise
incompleta da deliberação.
Não quero analisar agora esta segunda tese de Hardie.
1 Hardie, W The finaL good in Aristotie's Ethics, publicado originalmente
Para falar sucintamente, não me parece convincente. Meu
em PhiLosophy, XL (1965), p. 277-95; ver também seu Aristotie's EthicaL ponto, no entanto, é outro. Hardie cita uma passagem do
Theory (1968 e 1980), p. 12-27. primeiro livro da Ethica Nicomachea que parece sustentar for-
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temente uma doutrina do fim supremo como dominante, a Hardie não deixa de assinalar que a virtude mais per-
despeito das insinuações presentes neste mesmo livro em de- feita deve ser o saber teórico. Embora isso não fique claro em
fesa de uma doutrina do frm supremo inclusivo. A passagem EN I, a defesa de tal tese parece ocorrer em EN X 7:
não é a única2, mas, por assim dizer, é o lugar especial no qual
se torna evidente a confusão entre fim inclusivo e dominan- Se a felicidade é atividade segundo virtude, está
te. Aristóteles escreve em EN I 6: correto dizer que é segundo a virtude mais forte. Esta
será a virtude da melhor parte. Seja esta parte o inte-
O bem humano é uma atividade da alma segun- lecto ou outra coisa que por natureza parece domi-
do uma virtude; havendo várias virtudes, segundo a nar, comandar e conhecer as coisas belas e divinas,
melhor e mais perfeita3. seja algo ele mesmo divino ou o que é mais divino
em nós, a sua atividade segundo a virtude específica
será a felicidade perfeita. Que é a atividade contem-
2
plativa, isto já foi dito4•
Uma outra passagem citada por Hardie (e outros comentadores) que
evidenciaria tal confusão é Ethica Eudemia I 2 1214b6-14. Nela Aristó-
teles nos diz que todo ser capaz de viver segundo uma escolha deübera- Esta passagem apresenta diversos problemas que não
da fixa um objetivo e ordena todas as suas ações para a obtenção deste posso analisar aqui- por exemplo, por que Aristóteles escre-
fim, sendo um sinal de estultícia não o fazer (uma segunda mão acres- ve "intelecto ou uma outra coisa", ou mesmo para que texto
centou um "deve" no ms. Vaticano 1342, transformando o "fixa" em nos remete se não há passagem na Ethica Nicomachea em que
"deve fixar"). Embora haja um singular que parece reforçar o caráter já tenha dito que a atividade em questão .é a contemplação.
único do fim supremo (1214b12: Év TLVL TWV ~llETÉpwv TO (~v EU),
Minha preocupação não é com os detalhes do texto, mas com
esta passagem limita-se a mostrar a estreita relação de análise existente
entre (i) um flm primário em relação ao qual as outras coisas são feiras e
o que é sugerido nesta passagem. Lendo as duas passagens em
(ü) o bem supremo em vista do qual os bens primários são perseguidos, seqüência, parece inevitável supor que "a melhor e mais per-
sem por isso prejulgar a natureza da relação (ü). Em EE I 2 Aristóteles
não sustenta nenhuma tese a respeito de (ii); ele mostra tão-somente a
importância de uma investigação sobre (ü) a partir de (i). pleto) , mas, em 1021b30, procura reduzi-los aos dois sentidos básicos;
3 EN I 6 1098a16-18: To àv9pwmvov àya9ov l(Juxfjs ÉvÉpyELa ver a este respeito C. Kirwan, Metaphysics G, D, andE (Oxford, 2nd
y(vnat KaT' àpET~v, EL ô€ TIÀELous al àpna(, KaTà TTJV ed. 1993), p. 167-168.
4
àp(unw Kal TEÀEtOTáTTIV. A respeito de TÉÀElOV, ver Mer. 6. 16; EN X 7 1177a12-18: El ô' ÉuTl.v ~ Ev 8aqwv(a KaT' àpni}v
há, para Aristóteles, dois sentidos básicos, a saber, o de completude ÉvÉpyELa, EUÀoyov KaTà Tijv KpaTtUTTiv· avTTI ô' àv ELTI TOU
(quantitativo), segundo o qual algo é TÉÀElOV porque tem todas as suas àptUTOU. ELTE 8Tj vaus TOUTO ELTE aÀÀO Tl, 8 ôi} KaTà <j:>Úutv
partes, e o de perfeição (qualitativo), segundo o qual algo é TÉÀELOV ÔOKEL ãpxEtv Kal ~yE'Lu9at Kal EvvOLav EXELV TIEpl KaÀwv Kal
quando representa o máximo em sua espécie. Aristóteles pode passar de 9Etwv, ELTE 9E'Lov ov Kal aÚTo ELTE Twv Év ~~v To 9ELÓTaTov,
f I ) I \ \ ) I ) t\ 'I 1
um para outro sentido muito facilmente, usando sempre o mesmo ter- TI TOUTOU EVEP'YELa KaTa TTIV OLKELav apETTIV ELTI TI TEÀELa
mo. De faro, Aristóteles distingue três sentidos (inteiro, perfeito e com- EÚÔaqlOv(a. Õn 8' ÉuTl 9EWPTITL~, ELPTITat.
78 MARC O ZINGANO EUDA IMONIA E BEM S UPREMO EM ARIST Ó TELES 79

feita virtude" de EN I é a mesma "virtude mais forte" de EN mente insinuado que o valor moral está do lado do uso prá-
X, a saber, a contemplação. Isto parece plausível. Ao falar de tico, a sabedoria teórica versando sobre assuntos que não são
"muitas virtudes" em EN I, Aristóteles estaria propondo uma objeto de deliberação ou decisão prática. Isto parece vir ao
lista do tipo "coragem, temperança, magnanimidade e todas encontro da observação - verificada com inaudito horror em
as outras virtudes morais particulares, mais prudência-con- nosso século - de que cientistas podem ser sumamente pérfi-
templação", esta última sendo a virtude perfeita. Desta lista, dos. Tudo isso sugere que, embora claramente interligados,
supõe-se que Aristóteles esteja nos convidando a escolher uma os argumentos apresentados em EN I e X têm escopos dife-
virtude - a contemplação - em detrimento das outras; a ati- rentes e precisam de mediações para poderem finalmente fa-
vidade segundo esta virtude seria a felicidade 5• zer parte de uma mesma demonstração.
Tudo isto parece muito plausível. Ocorre contudo que
não é evidente esta fusão entre prudência e contemplação em
proveito desta última. Esta dificuldade obrigou Gauthier, por 11
exemplo, em seu grande comentário à Ethica Nicomachea, a
supor que o texto referido por "já foi dito" é o Protrepticus, Assim, convém verificar se a relação entre estas duas
obra justamente na qual, por forte influência platônica, Aris- passagens não se revela menos direta do que se supunha à pri-
tóteles assimilou a prudência à contemplação6 • Há de se no- meira vista. Uma v~ descoladas uma da outra, percebe-se que
tar, além disso, que, em EN I, Aristóteles argumenta em fa- a passagem da EN I 6 pode receber uma outra leitura se apro-
vor do uso da razão, que pode ser tanto o uso prático como o ximada de outras passagens do que EN X 7. Refiro-me em
puramente contemplativo. Ora, mais adiante, no livro EN particular à seguinte passagem da Ethica Eudemia III 7:
VI, há uma clara distinção da parte de Aristóteles entre sabe-
doria teórica e prática. Ambos os usos têm valor; mas é clara- Cada virtude, de certo modo, como se dirá mais
adiante, existe naturalmente e de uma outra manei-
ra, na qual é acompanhada de prudência7•
5 Segundo esta interpretação, é mais conveniente dizer não que Aristóte-
les esteja referindo-se ao intelecto em EN I 6, mas sim que dá uma des- Esta passagem sugere que, além da diversidade das vir-
crição que se mostrará mais tarde, no livro X, como unicamente satis- tudes particulares, deve-se levar em conta também o fato de
feita pela soflva. Para a defesa desta interpretação, ver A. Kenny, The serem as virtudes binárias. O ponto aqui consiste em distin-
Nicomachean Conception ofHappiness (Oxford Studies in Ancient Philo-
sophy, 1991, vol. suplem., p. 67-80) e AristotLe on the Perfect Life
(Oxford, 1992); Kenny sustenta que Aristóteles defendeu uma tese do- 7
EE III 7 1234a38-30. Mantive o TTWS sintaticamente ambíguo, como
minante do bem supremo na EN, passando a defender a tese inclusivista ocorre no original; comparando porém com EN VI (EE V) 13 1144b4-
na EE (como é bem conhecido, Kenny sustenta que a EE foi escrita após 8: rrâat yàp 8oKE"i EKaaTa Twv ~ewv imápXELv <j>úaEL rrws <... >
a redação da EN). Kal <... > ãÀÀov Tpórrov, pode-se sugerir que deve ser ligado a <j>ÚaEL
6 Gauthier & Jolif, Ethique à Nicomaque, cornment. p. 873-76. e não a ÉKáUTTJ.
80 MARCO ZINGANO EUDAIMONIA E BEM SUPREMO EM ARISTÓTELES 81

guir os modos de ser da virtude moral. Não há somente vir- Em vista desta capacidade natural de recebê-las que é aper-
tudes morais; há também, por exemplo, virtudes das funções feiçoada pelo hábito, Aristóteles chamou de natural tal tipo
reprodutivas da alma, que não são levadas em consideração de virtude, mas não se deve esquecer que se trata de uma vir-
pela análise moral. Do ponto de vista que contempla rodos tude moral natural, àpET~ <~8LK~> <j>vaLK~, obtida pelo há-
os tipos de virtude, a distinção será tripartite: as virtudes po- bito. Talvez tenha sido para evitar este tipo de mal-entendi-
dem ser ou naturais, ou adquiridas pelo hábito ou, ainda, do que Aristóteles tomou a precaução de, numa passagem,
obtidas mediante o uso da razão. Do ponto de vista restrito, lembrar que a virtude natural em questão é uma virtude ad-
porém, à virtude moral, há dois modos somente. O primeiro quirida pelo hábito, àpET~ ~ <j>vaL~ ~ €8taT~ (EN VII 9
consiste na virtude moral adquirida pelo hábito; o segundo 115la18). Mediante tal virtude, o homem faz o que deve ser
consiste na virtude moral (adquirida pelo hábito) acompa- feito. Mas o homem não faz somente o que deve ser feito; ele
nhada de razão. Aristóteles chama o primeiro de virtude (mo- o faz também de um certo outro modo, isto é, sabendo e es-
ral) natural, àpET~ <j>vaLK~. Isto pode ser enganador, pois colhendo por deliberação o que está fazendo. A diferença re-
alguém poderia imaginar que a àpET~ <j>uaLK~ em questão side não no resultado da ação, mas no modo de agir. Em
opõe-se ao mesmo tempo à virtude adquirida pelo hábito e à ambos os casos o homem pratica atos justos: pelo primeiro
obtida pelo uso da razão, sendo-nos dada naturalmente. Isto modo, ele faz precisamente o que deve ser feito; pelo segun-
não é o caso. A análise está agora restrita às virtudes morais; e do, ele faz isto apreendendo as razões em questão. Este se-
Aristóteles declara expressamente que "nenhuma das virtu- gundo modo corresponde à virtude (natural) acompanhada
des morais nos pertence naturalmente" (EN II 1 1103a19). de prudência, isto é, à virtude moral no interior da qual ope-
As virtudes morais não são nem naturais nem contra a natu- ra a virtude intelectual prática que é a prudência. Aristóteles
reza; nós temos, isto sim, por natureza (<j>ÚGEL) a capacidade denomina este segundo modo de virtude (moral) própria,
de recebê-las, e esta capacidade é aperfeiçoada pelo hábito8 • Kup(a àpET~. A virtude moral própria não pode vir
desacompanhada de prudência, pois ela é justamente a virtu-
8
de moral no interior da qual opera a virtude intelectual do
Há portanto três fatores a distinguir. Primeiro, há o fator puramente
narural, o fato de que se é homem e, por conseguinte, se tem a capaci- que deve ser feito ou evitado (a prudência).
dade de agir como homem. Segundo, agindo de uma forma e não de
outra, cria-se o hábito ou a disposição de agir assim e não diferente-
mente. Terceiro, há a intervenção da razão no interior da virtude moral: as fazem mudar; com efeito, algumas, pendendo naturalmente para am-
aqui está a marca do propriamente humano na ação. Uma passagem da bos os lados, dirigem-se ao pior e ao melhor por efeiro do hábito. Os
Política é basrante ilustrativa a este respeito: "os homens tornam-se bons outros animais vivem sobretudo pela natureza, alguns poucos segundo
e virtuosos mediante três fatores. Estes três fatores são a natureza, o há- os hábitos, o homem porém também pela razão. Com efeiro, ele é o
bito e a razão (<j>Úals €9os ÀÓyos). Com efeito, é preciso primeiro ter único que possui razão, por conseguinte é preciso harmonizar estes fa-
certa natureza, a saber, ser homem e não um outro tipo de animal; des- tores entre si, pois os homens fazem muita coisa contra os hábitos e con-
te modo, tem-se o corpo e a alma com cena qualidade. Para algumas tra a natureza por efeito da razão, se estão persuadidos de que é melhor
qualidades, de nada adianta ter nascido com tal natureza, pois os hábitos agir diferentemente" (VII 13 1332a39-b8).
82 MARCO ZIN GANO EUDAIMON IA E BEM SUPREMO EM ARI STÓTELES 83

A passagem da Ethica Eudemia III 7 citada acima capacidade racional dos contrários: o que eu posso fazer, eu
remete à passagem do livro comum EE V= EN VI 13 posso deixar de fazer. Pelo hábito de agir assim e não de modo
1144b4-17. Lá, Aristóteles começa dizendo que nossas qua- contrário eu aperfeiçôo (se agir assim for virtuoso) ou detur-
lidades morais são adquiridas de um certo modo naturalmen- po (se agir assim for um vício) minha capacidade de agir. As-
te, isto é, pelo hábito, a partir de uma capacidade natural- sim, a virtude moral é um aperfeiçoamento de minha capaci-
mente presente, mas que há também um outro modo de ser dade natural de agir. Agora, toda virtude moral humana é,
destas qualidades. Quando se apreende a razão (1144bl2: para Aristóteles, tal que, mesmo não sendo, num caso parti-
E:àv 8E. Àá~l] vouv) do porquê isto deve ser feito, uma dife- cular, acompanhada de razão ou deliberação, tem de poder
rença ocorre no agir: no seio da mesma disposição, a virtude ser acompanhada de razão 10 • Deste modo, a razão deliberativa
que antes era natural é agora virtude própria. Aristóteles con- que sempre tem de poder operar em seu interior a aperfeiçoa
clui em 1144bl4-17: se de fato opera em seu interior; em relação a este aperfeiçoa-
mento, a virtude moral será vista como incompleta ou im-
E assim como há duas espécies da parte opinante, perfeita se não operar no seu interior a apreensão de razões
a habilidade e a prudência, assim também há duas de que sempre tem de poder ser capaz. Reencontramos aqui
espécies de virtude da qualidade moral, a virtude na- o par virtude natural - virtude própria sob a forma de virtude
tural e a virtude própria, e destas duas virtudes a vir- incompleta ou imperfeita- virtude completa ou perfeita. A vir-
tude própria não se produz sem prudência. tude própria é a virtude perfeita na qual ocorre a apreensão
de razões. Não é possível ter a virtude própria sem a virtude
As virtudes morais não são alterações entre contrários moral natural, pois a virtude própria é esta virtude moral tor-
(à.ÀÀOL<~aELs-) mas aperfeiçoamentos (TEÀEL<.~aELS') de nos- nada perfeita pela apreensão de razões. A relação entre virtu-
sa capacidade de agir ou não agir face a diferentes situações. de incompleta ou imperfeita e virtude perfeita é semelhante
Aristóteles quer certo rigor de vocabulário: assim como não àquela existente entre habilidade e prudência. A prudência é
dizemos que a construção do (primeiro) telhado "altera'' a casa uma habilidade, mas nem toda habilidade é prudência: so-
mas sim que a "complementá', assim também as virtudes mente a habilidade de encontrar os meios em relação ao fim
morais não "alteram" propriamente nossa capacidade natural que é bom é dita prudência, a habilidade de encontrar os
mas a "complementam" ou a "aperfeiçoam" em uma direção meios para os fins que não são bons sendo chamada de
em detrimento da outra direção contrária sem por isso passar rravoupy(a. De modo semelhante, a virtude própria é uma
de um contrário ao outro9• Nossa capacidade de agir é uma

° Cf. EN li 4 1106a3-4: at
1
8' à pETaL rrpompÉaELS' nv€s ~ o"ÚK
9 Cf. Physica VII 3; ver R. Wardy, The Chain ofChange, Cambridge 1990, ãvEV rrpompÉUEWS' , "as virtudes são um tipo de escolha deliberada
p. 209-13. ou não são sem escolha deliberadá'.
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virtude moral, mas nem toda virtude moral é virtude própria; O "mais perfeito" refere-se ao duplo aperfeiçoamento:
há também a virtude natural, em que não ocorre a apreensão a virtude moral aperfeiçoa a disposição natural, a virtude in-
de razões que caracteriza a virtude própria' 1• telectual aperfeiçoa a virtude moral natural. A felicidade é a
Assim Aristóteles escreve em EN I 13 que "a felicidade atividade segundo a virtude própria e não segundo a virtude
é uma cerra atividade da alma segundo perfeita virtude" (I 13 moral natural. Bem mais adiante, no livro X, Aristóteles in-
1102a5-6; cf. 10 1100a4). Virtude perfeita não parece mais troduzirá um novo argumento para mostrar que, se a felici-
aqui ser uma virtude em detrimento de outras, mas um modo dade é a atividade segundo virtude perfeita, isto é, segundo
de ser da virtude moral em detrimento de um outro modo vinude que inclui apreensão de razões, isso não só não é in-
seu de ser. Esta é a razão aliás por que crianças não têm aces- compatível como há forres razões para suspeitar que a felici-
so à felicidade: a faculdade deliberativa da criança é "imper- dade primeira será a atividade que inclui ações segundo a "vir-
feirà', aTEÀÉS' (Polir. I 13 1260a14), por causa de sua idade tude mais fone", KaTà T~V KpaTLO"TTJV, isto é, a virtude mais
(EN I 10 1100a1-3; cf. MM I 4 1185a1-9): a criança está alta (a contemplação) da parte mais alta (a parte intelectual
em processo de apreender razões, ela ainda não as apreende em geral). Mas isto é um outro argumento.
perfeitamente, embora possa já fazer precisamente o que deve
ser feito (a prudência no entanto requer tempo e experiên-
cia). Ora, se relermos a passagem que deu início à discussão
(EN I 6 1098a16-18), parece razoável sustentar que Aristó- III
teles esteja sugerindo não que devemos escolher uma virtude
dentre as presentes numa lista do tipo "coragem, temperança O que parecia ser uma defesa muito forte da tese do
etc + prudência - contemplação", mas sim que, a propósito bem dominante pode ser interpretado, se tenho razão, como
das virtudes morais, devemos escolher o modo próprio de ser perfeitamente compatível com a tese do bem inclusivo. Nes-
destas virtudes, isto é, o modo no qual elas vêm acompanha- ta segunda parte, quero sugerir que uma das passagens eira-
das da virtude intelectual prática: das por Hardie como insinuando a tese indusivista vai bem
mais longe do que isso: introduz uma resposta bem precisa à
To àv8pwmvov àya8ov tJ.!uxf\s EvÉpyELa natureza do bem supremo a título de fim de segunda ordem.
yÍ.vETaL KaT' àpET~v, EL oE: TTÀEÍ.ous aí. àpETaÍ., Refiro-me à passagem EN I 5 1097b16-20. Aristóteles
KaTà T~V àpÍ.UTTJV KQL TEÀELOTÓTTJV. argumenta que a felicidade, sendo o bem preferível a todos,
não conta como um bem ao lado dos outros (j.l.~ auvapL8-
j.l.OUj.l.ÉVTJ, 1097bl7), pois, se o fosse, torna-se-ia mais prefe-
rível ainda com a adição do mais ínfimo bem. Esta passagem
foi bastante discutida mais recentemente e convém inicial-
11 A semelhança pára no faco que TTavoupyí.a é uma habilidade para o mente fazer algumas considerações füológicas. Há duas tradu-
mal, a virtude natural sendo sempre para o bem, pois é uma excelência. ções possíveis, segundo se toma o particípio no modo indica-
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tivo ou contrafatual 12• Neste último caso, Aristóteles estaria cidade não pode ser perseguida em vista de outra coisa do
dizendo que, visto que a felicidade é o bem sumamente prefe- que ela mesma). Se o conceito se comporta assim, então a
rível, é um absurdo lógico pensar que o acréscimo de um bem eudaimonia não pode contar ao mesmo título do que os ou-
a tornaria mais preferível ainda. Ora, se ela contasse como tros bens; caso contrário, o mais ínfimo bem, sendo-lhe acres-
um bem ao lado dos outros, o acréscimo do mais ínfrmo bem centado, a tornaria menos preferível do que o resultado do
acarretaria tal conseqüência. Esta leitura favorece a tese acréscimo - por conseguinte ela não é a mais preferível.
inclusivista a respeito do bem supremo. Optando, porém, Outros textos de Aristóteles indicam que o problema
pela sintaxe no modo indicativo, o que Aristóteles estaria di- aqui é uma hipótese lógica absurda e não uma consideração
zendo é que, considerando os bens em si mesmos, um a um, sobre resultados possíveis de acréscimos de bens à eudaimo-
a felicidade é o bem preferível a todos; agora, o acréscimo de nia. Um argumento semelhante já tinha sido exposto nos
um bem (mesmo de um ínfimo bem) a tornaria mais preferí- Tópicos (III 2 117a16-24). Aristóteles escreve que, geralmen-
vel do que sem este bem - assim compreendida a passagem, te, um número maior de bens é preferível a um número me-
Aristóteles estaria dizendo que a eudaimonia não contém to- nor. Isto ocorre tanto do ponto de vista absoluto - um bem
dos os bens, e que estes bens exteriores à felicidade, quando acrescido de um outro é preferível a ele somente - como
lhe são acrescentados, a tornam mais preferível ainda. Esta quando o grupo menor faz parte do grupo maior- dado um
leitura é compatível com a tese dominante do bem supremo. grupo de bens, é preferível o grupo que contém a ele e a outro
O ponto de discussão é o seguinte: a menção do acrés- bem. Há exceções, porém. Uma delas ocorre quando um dos
cimo de um (ínfrmo) bem à felicidade implica ou bem um bens tem o outro por fim: neste caso, os dois bens tomados
resultado possível (no caso da leitura no modo indicativo), conjuntamente não são preferíveis a um só dentre eles; por
ou bem uma hipótese lógica absurda (no caso contrafatual)? exemplo, a soma da cura e da saúde não é preferível à saúde,
Creio que há indícios suficientes para optarmos pelo último pois nós desejamos a cura em vista da saúde. Ora, este parece
caso. Aristóteles está fazendo uma análise conceitual. Uma das ser o caso da eudaimonia: tudo o mais é perseguido em vista
notas do conceito de eudaimonia consiste em que é o supre- dela. A soma de um ínfrmo bem e a eudaimonia não é prefe-
mamente preferível (com efeito, bens em si podem ser perse- rível à eudaimonia, pois este bem é em vista da eudaimonia.
guidos em vista deles mesmos e em vista da felicidade, a feli- O argumento parece simples e elaborado para comba-
ter sofismas; na ética, porém, ele tem uma função bem preci-
sa. O segundo capítulo do primeiro livro da Magna Moralia
12
T. lrwin menciona as duas possibilidades, preferindo a estrutura é particularmente instrutivo a respeito de sua importância.
contrafatual (Nicomachean Ethics, Hackett 1985, p. 15 e 304). R.
Posta a questão a respeito da natureza do bem supremo, duas
Heinaman (Eudaimonia and Selfsufficiency in the Nicomachean Ethics,
soluções são aventadas para serem em seguida rejeitadas.
Phronesis 33 1 1988, p. 31-53), S. White (Is Aristotelian Happiness a
Good Life or the Best Life, Oxford Studies in Ancient Philosophy VIII A primeira consiste justamente em dizer que o bem supremo
1990, p. 103-143, part. p. 119-120) e A. Kenny (op. cit.) defenderam conta como um bem entre os outros bens (1184al6: WS' Kal.
a estrutura gramatical no modo indicativo. aVTOV auvapL9~ou~Évou). Esta solução é considerada ina-
88 MARCO ZINGANO EUDA IMONIA E BEM SUPREMO EM ARISTÚTE LES 89

ceitável: o bem supremo sendo a felicidade, se a felicidade é auvapLOI.lOUI.lÉVT). Na Magna Moralia, o argumento é apre-
posta como um bem ao lado de outros, a soma destes bens sentado mais detalhadamente, o exemplo dos Tópicos sendo
com a felicidade será melhor do que a felicidade; sendo ago- dado como ilustração.
ra o maximamente preferível, esta soma é a felicidade, que Que o bem supremo seja estes bens não é incompaúvel
por conseguinte será melhor do que ela mesma, o que é ab- com a felicidade ser uma atividade. É uma lição das três Éticas
surdo. O exemplo dado para ilustrar esta impossibilidade é o de Aristóteles que o bem supremo não é outra coisa do que a
mesmo empregado nos Tópicos: a cura e a saúde. felicidade. Mas isso não quer dizer que bem supremo e felici-
Resta assim a hipótese de que o bem supremo existe dade tenham a mesma definição. A eudaimonia é defmida
isoladamente (1184a25: xwpís), para além dos bens em si. como uma certa atividade em oposição a um estado psicoló-
Esta solução é prontamente rejeitada também como absur- gico ou a uma simples disposição do sujeito; o bem supremo
da. Mas então como funciona o bem supremo a título de é definido como o fim último desta atividade. Assim como
princípio? A mesma resposta positiva aparece no corpo da distinguimos logicamente o fim (e por conseguinte o fnn úl-
rejeição das duas hipóteses: "nós concebemos a felicidade timo) da atividade, assim também distinguimos logicamente
como composta de muitos bens" (1184a18-19: T~V 8' o bem supremo da felicidade. O fim último é aquele em vis-
EÚ8aqwví.av Éx rroÀ.Àwv à:yaewv auvTÍ.0EI.lEV), "a felici- ta do qual todos os outros são perseguidos, ele mesmo con-
dade é composta de certos bens" (1184a26-27: ~ yàp tudo não podendo estar em vista de outro fim. Como bem
EÚ8aq.1.oví.a ÉaTlv EK nvwv àyaewv auyKEqlÉVTJ). E, supremo, ele tem de poder englobar todos os outros bens 13 •
como conclusão do parágrafo, lê-se o seguinte:

A felicidade não é algo outro separado dos bens


13
que a compõem, ela é estes bens (1184a28-29: oú Heinaman, que defende o modo indicativo para o particípio em
yáp EUTLV UÀÀO Tl XWPLS TOÚTWV ~ EÚ8aq.l.OVLU, 1097bl7, argumenta que, "assim compreendido, Aristóteles aceita que
há bens não englobados pela eudaimonia". É preciso ter cuidado aqui.
ànà Taiha).
A eudaimonia tem de poder englobar todos os bens. É isto o que Aris-
tóteles afirma na Rhetorica I 5 1360bl9-26: se a felicidade é o bem
A tese é, assim, que o bem supremo não conta numeri- viver acompanhado de virtude, então necessariamente são suas partes
camente como um bem porque ele é estes bens. Contar como (1360b19: àváyKT) aim1s Elvm IJ.ÉpT]) a nobreza de nascimento, a
um bem é cair numa falácia lógica de tomar a classe como riqueza, o mérito, a saúde, as honras, a sorre, as virtudes, a prudência
um de seus próprios membros. Se o bem supremo é um bem etc- isto é, Aristóteles dá uma lista com casos de todos os tipos de bens,
ao lado de tantos outros, o acréscimo de um ínfimo bem tor- pois "não há nenhum outro além destes" (1360b26: ou yàp EO"TLV
ãna rrapà Tai!Ta). A eudaimonia tem de poder englobd-los todos. Isto,
naria este grupo melhor do que ele mesmo, o que vai contra
no entanto, não quer dizer que, para que alguém seja feliz, tenha de
a definição posta no início. Na Ethica Nicomachea, Aristóte- fato de possuir todos os bens imagináveis. Aristóteles não sustenta uma
les desenvolve o argumento de uma forma mínima, insistin- tese maximalista, que seria obviamente um contra-senso. Um critério
do porém para que a eudaimonia não seja tomada como do ponto de vista da categoria da quantidade intervém: a felicidade é o
90 MARCO ZINGANO EUDAIMONIA E BEM SU PREMO EM ARISTÚTELES 91

A respeito destes bens, a divisão aristotélica é tripartite: há os O problema, porém, de apresentar a doutrina aristoté-
bens da alma (as virtudes), causas próprias da felicidade, os lica na versão de uu~rrÀ~pw~a EK Tpu;)v àya8wv reside no
bens do corpo e os bens exteriores, causas coadjuvantes, sem fato de que, ao fazer economia da noção aristotélica de auto-
os quais contudo não é possível a felicidade. Dizer que o bem suficiência, obscurece um pouco a própria tese. Em sua Éti-
supremo é estes bens não nega que a felicidade seja uma ati- cas, Aristóteles resolve o problema da quantidade destes bens
vidade; não é a coisa que muda, mas o enfoque sobre a mes- que constituem a felicidade através da noção de mhápKELa:
ma COISa. do ponto de vista da quantidade, para cada caso em conside-
Num contexto polêmico, por exemplo em confronto ração, a quantidade necessária de bens é aquela que dá ao su-
com o estoicismo, a mudança de enfoque é bastante útil. Os jeito a auto-suficiência. Obviamente não só não implica que
estóicos tomavam a virtude como causa não só própria, mas uma vida feliz exija a totalidade de bens ou tudo aquilo que
também suficiente da felicidade. Em Diógenes Laércio, en- vale a pensa conseguir, como varia numericamente a cada
contramos uma versão aristotélica adaptada a esta polêmica: caso' 5• Além disso, e isto é o mais importante, este critério de

Aristóteles manteve que a felicidade é a plenitude


(aullTTÀ~PWila) a partir de três <tipos de> bens: dos
bens da alma, os quais ele designa como primeiros Dídimo 46. 10-13. Critolao, quem "imitari voluit antiquos" (Cfcero,
em valor; dos segundos, os bens do corpo, como de Finibus V 14), podia bem ter-se inspirado nas passagens citadas da
saúde, força, beleza e outros assim; dos terceiros, os Magna Mora/ia. Ário Dídimo (ou a fonte que ele segue) critica a posi-
bens externos, como riqueza, berço nobre, reputação ção de Critolao alegando que melhor seria falar em "ativação" e não
UUIJ. TT À~PWIJ.O. Estes dois modos de falar não .são porém excludentes.
e semelhantes 14 •
Por outro lado, quando Ário limita o UUIJ.TTÀ~PWIJ.O a somente bens
do corpo e exteriores, sua crítica está facilitada por causa da limitação
concedida (126. 18-127. 2; para uma outra interpretação, ver J. Annas,
caso para uma pessoa se um certo grupo de bens (segundo uma cena The Morality ofHappiness, Oxford 1993, 413-415). Em Diógenes La-
ordem e qualidade) é tal que satisfaz a condição de auto-suficiência, ércio, a passagem continua com mais uma polêmica contra os estóicos:
isto é, não carece, no caso em questão, de qualquer outra coisa. Isto '~istóteles manteve que as virtudes não são conexas; com efeito, um
não quer dizer que a pessoa em questão tenha tudo; outros bens, aliás, homem prudente, intemperante e incontinente pode também ser igual-
podem ser incorporados sem com isso alterar o fato de que o conjunto mente justo" (V 31). A tese é boa (de fato, Aristóteles sustentou um
de seus bens constitui um caso de felicidade (assim como, na direção certo tipo de não conexão entre as virtudes), mas o exemplo é ruim:
inversa, a perda de certos bens pode destruir o ser o caso da felicidade: analisei a doutrina da conexão das virtudes em um artigo publicado
Édipo é um bom exemplo disto). nesta coletânea, "A Conexão das Virtudes em Aristóteles".
14
Diógenes Laércio Vz'ta V 30. A passagem continua dizendo que a vir-
15 Ar.Istote
' Ies sustenta assim
. uma tese modesta a respeito da quantidade
tude não é suficiente sozinha para a felicidade, pois precisa ser acom- de bens que constitui a eudaimonia: basta satisfazer, segundo a catego-
panhada dos dois outros tipos de bens. A tese de que a felicidade é um ria da quantidade, a auto-suficiência. Isto não requer a totalidade de
UUIJ.TTÀ~pw~ta dos três tipos de bens é atribuída a Critolao em Ário bens, mas uma quantidade que proteja seu possuidor, do melhor modo
92 MARCO ZINGANO EUDAIMON IA E BEM SUPREMO EM ARISTÓTELES 93

quantidade aplica-se juntamente com um critério de quali- IV


dade (aquele que distingue três tipos de bens e coloca um
deles como causa própria da felicidade) -como a quantidade J. L. Ackrill deu uma resposta próxima à que estou pro-
é promíscua em relação aos objetos aos quais se aplica, um pondo num artigo bastante influente publicado em 1974 16•
outro critério, qualitativo, discrimina os tipos e a ordem que Ele reagiu vigorosamente contra Hardie a propósito da dupla
os bens têm entre si. A noção de O"UIJ.TTÀ~pwj.J.a EK TplWV concepção aristotélica de supremo bem. Para Ackrill, Aristó-
àya9wv atenua a importância destas distinções e cria a im- teles não hesita entre um bem inclusivo e um bem dominan-
pressão de que se trata sempre de um máximo de bens inde- te: eudaimonia não é uma dentre as virtudes, mas todas elas.
pendentemente de sua ordem, o que não é o caso. Esta im- O bem supremo é o melhor sem contar como um outro bem:
pressão ia de encontro ao sentimento (correto) de que não se
precisa ter todos os bens para ser feliz, e mesmo que é possí- É o melhor, e melhor do que qualquer outra coi-
vel o ser com poucos, desde que se seja auto-suficiente. Isto sa, não como bacon é melhor do que ovos ou toma-
não impede contudo seu interesse ao pôr em relevo a lição tes (e por conseguinte o melhor dos três para esco-
aristotélica de que o bem supremo não é um bem ao lado de lher), mas no modo como bacon, ovos e tomates é
outros, mas uma coleção de bens, não um bem mas estes bens. um desjejum melhor do que ou bacon, ou ovos ou
tomates- na verdade, é o melhor desjejum sem qua-
lificação. (p. 346)

O problema, no entanto, consiste em como dar uma


possível, em sua situação precisa, das vicissitudes da vida, permitindo- interpretação alternativa para EN I 6 1098a16-18. SeAckrill
lhe dirigir sua vida e não arrastado por ela; cf. T. Irwin, Permanent tem razão, a passagem deveria apresentar "se há mais de uma
Happiness: Aristotle and Solon, Oxford Studies in Ancient Philosophy 3 virtude, então a eudaimonia é a atividade da alma segundo
1985, p. 89-123, esp. 99. S. White (op.cit., p. 134-35) escreve que "não
todas elas" e não como o texto dos manuscritos: "então se-
é claro o quanto mais ou menos bens precisamente são requeridos pela
concepção modesta que <as condições formais da eudaimonia> deli- gundo a melhor e mais perfeita''. Ele resolve o problema len-
neiam"; ele tem razão, mas tudo o que Aristóteles pode dizer é que, do esta passagem à luz de EE li 1 1219a35-39:
para cada caso, é uma quantidade auto-suficiente; ir além disto feriria
os limites da àKpL~EW em questão. White (p. 124) critica Irwin; mas E já que a felicidade, como foi dito, é algo perfei-
creio que lrwin tem razão ao assinalar que tem de incluir um número to, e há uma vida perfeita e uma vida imperfeita - e
suficiente de exemplares de alguns tipos determinados de cada tipo do mesmo modo com a virtude (pois uma é total
determinável de bem, compreendendo-se aqui por tipo determinável
os três tipos mais gerais de bem (externos, do corpo e da alma). Nós
não precisamos de todos os bens, mas seguramente de alguns; ao flló-
sofo não cabe determinar precisamente quais (isto é feito pelo pruden- '
6
Aclcrill, J. L. Aristotle on Eudaimonia. Dawes Hicks Lecrure on Philo-
te), mas investigar sobre alguns em particular e sobre sua hierarquia. sophy; Proceedings ofthe British Academy 60, 1974, p. 339-59.
94 MARCO ZINGANO EUOA!MON!A E BEM SUPREMO EM ARISTÓTELES 95

<OÀT)>, a outra é pane <llÓPLOV>) - , a atividade das Stephen White observou corretamente que não somente a
imperfeitas sendo imperfeita, a felicidade será a ati- eudaimonia seria inatingível como entraria em contradição
vidade de uma vida perfeita segundo virtude perfeita. com faros óbvios. Se nada pudesse ser acrescentado ao
desjejum de Ackrill, então ele incluiria melão, batatas,
Ackrill considera que a referência aqui a todo e parte muffins etc, e isto ad nauseam; e o que é pior, teria de incluir
torna evidente que "virtude perfeità' significa "todas as vir- rodos os ovos e bacon do mundo etc ad maiorem nauseam 18 •
tudes". No entanto, isso não parece tão claro assim. Aristóte- Esta tese maximalista obviamente não pode ser aceita. O pro-
les argumenta que o "perfeito" que se encontra em felicidade blema ficou mais grave quando a tese maximalista passou a
deve ocorrer também nos membros de sua definição. Não é ser então alvo de críticas também na perspectiva de que toda
claro em que sentido a eudaimonia é perfeita; provavelmente interpretação inclusivista da eudaimonia estaria comprome-
o é porque é o fim mais final. A vida perfeita parece o ser no tida, mais ou menos claramente, com ral rese 19 •
sentido de completa - não se tem eudaimonia por um pe- No entanto, Ackrill não se compromete obrigatoria-
queno lapso de tempo, mas sua remporalidade estende-se ao mente com um desjejum tão farto, nem se compromete com
longo da vida. O sentido em que a virtude é dita "perfeita" é a tese maximalista toda interpretação inclusivista da felicida-
provavelmente outro. A relação rodo-parte sugere uma opo- de. Apesar da ambigüidade de expressão, fortalecida pela in-
sição entre ter uma (ou algumas) virtude(s) e ter todas as vir- terpretação da auto-suficiência como não carecendo de nada
tudes; mas não há nenhum argumento anterior que suporte a título de ter tudo, o ponto de Ackrill pode ser reformulado
esta afirmação. O que se tem é que a eudaimonia é uma ati- de modo a evitar estes escolhos, pois consiste propriamente
vidade virtuosa, e não há porque supor que a virtude em ques- em assinalar que a eudairnonia inclui todos os bens intrínse-
tão sejam todas as virrudes 17• cos no sentido de que se pode dizer de todo bem em si que é
Há uma razão, porém, para se suspeitar de que a com- perseguido em vista da felicidade (por conseguinte, a
pletude não é a melhor resposta. O desjejum de Ackrill pode eudaimonia tem de poder incluir todo bem)2°. Isto não irn-
muito facilmente passar de copioso a repugnante. Ao escre-
ver que a eudaimonia "contém as atividades que têm valor
intrínseco" (p. 345), que "inclui tudo que é desejável por si 18
S. White, Aristotelian Happiness, p. 123.
mesmo" (p. 346), ou que "necessariamente inclui todas as ati-
vidades que têm valor" (p. 347), Ackrill parece esposar a tese l9 Cf. R. Heinaman, Eudaimonia, p. 48.
maximalisra segundo a qual não se pode acrescentar um bem ° Com efeito, Ackrill escreve que, se "(i) você
2
não pode dizer da
à eudaimonia porque ela já inclui todos os bens. Se for isto, eudaimonia que você a persegue em vista de outra coisa, você pode di-
zer de tudo mais que você o persegue em vista da eudaimonià' (p. 346;
grifos meus). Na seqüência, Ackrill escreve que " (ü) você não pode di-
zer que você preferiria eudaimonia mais algo extra a eudaimonià'. Se
17
Cf. M. Woods, Aristotle's Eudemian Ethics J,IJ and VIII, Oxford 1982, este algo for um bem, Ackrill está correto; mas se não pertencer a esta
p. 98-9. categoria, o próprio Aristóteles observa que então se pode aplicar o to-
96 M A RCO ZIN G AN O
EUDAIMONJ A E BEM SU PREMO EM ARI ST OTEL ES 97

plica que, para ser feliz, se tenha de ter todos os bens, mas v
sim que, se é o caso da eudaimonia, todos os bens em ques-
tão são partes dela. Formalmente, a eudaimonia inclui todos Resta um problema particularmente espinhoso a resol-
os bens (e tem de poder incluí-los); materialmente, contudo, ver. Num artigo publicado em 1958, Peter Geach chamou
casos de eudaimonia incluem quantidades auto-suficientes de atenção a uma falácia cometida por alguns filósofos a propó-
bens segundo uma certa ordem (a virtude é causa própria, os sito do bem supremo22. A falácia é bastante simples: todos
bens exteriores são causas coadjuvantes da felicidade), sem nós percebemos a diferença entre (i) "todo menino ama al-
necessariamente incluir todos os bens. guma meninà' e (ii) "há uma menina que todo menino amà'.
Mas como então interpretar a virtude perfeita em EN Esta falácia, que Geach chamou de "boy-and-girl fallacy",
I 6 1098a16-18? Numa outra passagem de EE li 1, o capítu- consiste na passagem de (i) Vx 3y (xRy) a (ii) 3y Vx (xRy).
lo de onde Ackrill retirou a referência à virtude total, Aristó- Entre outros filósofos, Geach acusa Aristóteles de tê-la come-
teles exclui a virtude da parte nutritiva da "virtude total" tido no início da Ethica Nicomachea:
(1219b21). Um pouco mais adiante, é dito que as duas ou-
tras partes que devem ser mantidas são as duas partes da alma Se (a) há, então, um fim das ações que desejamos
que participam da razão (1219b28: oúo !J.ÉPTJ l!Jvxfls Tà por si mesmo, sendo o resto desejado em vista dele, e
ÀÓyov IJ.ETÉXOVTa), isto é, aquela que é racional no sentido (Ka() se (b) não escolhemos tudo em vista de outra
de poder receber razões e aquela que é racional no sentido de coisa (se assim fosse, prosseguir-se-ia ao inifinito, de
dar ou estabelecer razões. Ora, isto parece indicar que a vir- tal forma que o desejo seria vazio e vão), é evidente
tude total é aquela que tem estas duas partes, isto é, aquela que (c) este fim é o bem e o bem supremo. (I 1
na qual a virtude intelectual age no interior da virtude moral 1094a18-22)
(a virtude própria), enquanto a virtude imperfeita é a virtude
moral natural que, sempre podendo aceitar razões, não sabe,
contudo, dar ou estabelecer razões. Isto nos remete, assim, à
distinção entre virtude moral natural e virtude moral própria. 21
Aristóteles não parece, porém, satisfeito com este vocabulário de todo
A eudaimonia, sendo algo perfeito, requer a atividade segun- e parte. No livro EN VI (EE V), quando a virtude total passa a incluir
do a virtude própria (perfeita) e não segundo a virtude natu- explicitamente a sabedoria teórica, Aristóteles apresenta a relação entre
ral21. O problema aqui ainda não é de todas (ou de quantas) as virtudes morais imperfeita e perfeita de um modo diferente, a saber,
virtudes, mas do modo de ser de cada virtude segundo a qual semelhante à relação que existe entre habilidade e prudência (cf. nota
sua atividade conduz à eudaimonia. 1 I). Em EN VI, a sabedoria teórica é parte da virtude total (13
1144a5); a razão é que é virtude de uma das duas partes racionais da
alma.
22
Geach, P. T. H istory of a Fallacy, journal of the Philosophical Arsociation
pos do "preferível" (Tópicos III 2 117a21-23). Cf. Topiques, ed. J. (Bombay) V I 9-20, I 950; republicado em Logic Matters, Oxford I 972,
Brunschwig, Paris 1967, p. 157. p. 1-13.
98 MARCO ZINGANO EUDAIM ONIA E BEM SU PREMO EM ARISTÓTELES 99

Para Geach, fica evidente aqui que Aristóteles se sente Éticà'. Os editores modernos não modificaram tal panora-
autorizado a passar de "toda série cujos termos sucessivos es- ma: Tricot comenta em nota que Aristóteles provou a exis-
tão na relação em vista de tem um termo último" a "há algo tência do bem supremo; Gauthier e Jolif, com mais cautela,
que é o termo último de toda série cujos termos sucessivos dizem somente que Aristóteles retomou uma prova de ori-
estão na relação em vista de". Ora, isto não é outra coisa se- gem platônica bem conhecida de seu auditório; Dirlmeier
não cometer a falácia do-menino-e-da-menina. menciona com aprovação o juízo de Granr24• Proceder assim
Geach liquidou assim com os anos dourados dos co- não é mais possível; é preciso agora esclarecer se Aristóteles
mentadores desta passagem. Dos comentadores gregos anti- cometeu ou não tal falácia25 •
gos, Eustrátio é quem mais impressiona. Ele não só não a viu:
ele apostou na falácia. Eustrátio interpretou a observação se-
24
mântica de Aristóteles a respeito da noção de "bem" ("bem" A. Grant, Aristotle$ Ethics, Londres 2 vols. 1885 (4ed); J. Tricor, Ethique
significa aquilo a que todo o resto tende) como uma defini- à Nicomaque, Paris 1959; Gaurhier-Jolif, Ethique àNicomaque, Louvain
1958-1959; F. Dirlmeier, Nikomachische Ethik, Berlim 1956. P.
ção do Bem transcendental (tudo tende a um único bem que
Aubenque não analisa o problema (Le probleme de l'être chez Aristote,
está acima de rodos) 23 • Defendendo uma leitura excessiva- Paris 1962; La prudence chez Aristote, Paris 1963).
mente platônica da passagem (a ponto de o impedir, por 25 G.E.M. Anscombe atribui a falácia a Aristóteles em An introduction to
exemplo, de pelo menos analisar a crítica de Aristóteles a Wittgenstein's Tractatus (Londres 1959, p. 15-16); em Intention (1958),
Platão em EN I 4), Eustrátio influenciou fortemente a tradi- ela escrevia que "parece haver uma transição il1cità' (§23); J. Ackrill
ção (principalmente através da tradução latina feita por também o acusa, desculpando-o, porém, porque o fim em questão é
Grosseteste) no sentido não só de não ver aqui nenhum pro- um fun inclusivo (Aristotle on Eudaimonia, 1974); T. Engberg-Pedersen
blema, como também de localizar nesta passagem o que há apresenta uma razão muiro singular (e discuóvel), invertendo os ter-
mos da questão, pois, para ele, unicamente a noção de "estado eudaimô-
de mais precioso na ética aristotélica. Assim, pode-se ler em
nico" pode justificar a necessidade de parar em algum ponto para cada
Alexander Grant, a respeito do regressus in infinitum, que "este série particular (Aristotle's Theory of Moral Insight, Oxford 1983, p. 31).
é o argumento sobre o qual está baseado rodo o sistema da G. von Wright afirma que o eudaimonismo psicológico seguramente
cai na falácia, mas não o atribui a Aristóteles; a posição únpar da
eudaimonia (que levou Aristóteles a considerá-la como o bem supre-
23
CAGXX 6, 5-6: Ean 11E:v yàp Kowov áyaeóv, ov TTávm E:<j>í.ETm mo) consistiria em ser o único fim que não pode ser senão fmal e não
o
Kal. 8L' TTávTa E:aTI.v Ó!lOV, Tá TE TaTTELVÓTEpa Tá TE Úlj;l]ÀÓ- que seja o fim úl rimo de rodas as nossas ações ( The Varieties of Goodness,
TEpa, 13, 5-6: TO llEV yàp KOLvov TÉÀOS TTávTwv Twv ÕvTwv ~ Londres 1963, p. 89). W Hardie procura inocentá-lo: Aristóteles afu-
ÕvTa E:aTl TO KOLVÓv E:anv áya8óv, ÕTTEp E:aTÍ.v ó 8Eós. Outros maria aqui, primeiro, que há fins em si (sua pluralidade é mencionada
comentadores atenuaram esra interpretação radical tentando volrar as- mais adiante em 1097a22-4) e, segundo, que, se há um fun único, en-
sim ao aristotelismo; Boécio da Dácia, por exemplo, estabelece um bem tão é muito importante saber qual é, sem por isso provar que há um
supremo para cada gênero de ser; no caso do homem, o bem supremo único bem último (Aristotle$ Ethical Theory, p. 16-17); T. lrwin obser-
"consiste em conhecer a verdade, fazer o bem e ter prazer em ambos" vou que o regressus in infinitum pode indicar não um absurdo, mas so-
(On the Supreme Good, ed. J . Wippd, 1987, p. 29). mente uma conseqüência indesejável da recusa de admitir um fim últi-
100 MARCO ZINGANO EUDAIM ONIA E BEM SUPREMO EM ARISTÓTELES 101

Basicamente, duas estratégias foram propostas para de- troduz na primeira parte da prótase algo como "no caso de p
fender Aristóteles. A primeira consiste em revisitar a estrutu- ser verdadeira, e visto que r, então p seria algo como r", sem
ra da passagem. Com efeito, o argumento tem, para Geach, com isso concluir, mas somente indicar ou anunciar que uma
a seguinte estrutura: "já que (b) é verdadeiro, então (a) tam- investigação vale a pena ser feita a este respeito. A segunda
bém é, e (a) é o que é dito por (c)". A estrutura não parece estratégia consiste em aceitar a estrutura de argumento e pro-
ser a melhor; foi observado que raramente Ka( introduz uma curar no contexto próximo a afirmação de algo que permita
inferência, e, mesmo que introduzisse, a estrutura deveria ser passar de fins em si a um único fim supremo. Esta estratégia
"se (b), então (a), que é (c)". Por que diabos então Aristóteles parece ser mais recompensadora, pois, nos parágrafos seguin-
teria invertido a ordem do argumento? No mesmo sentido, tes, Aristóteles passa a falar de uma ciência arquitetônica
pode-se também considerar que o "se" não figura como um suprema, a política, à qual tem de corresponder um fun de
conectivo lógico de "(p A q) ~ r", mas, propriamente, in- mesmas características, isto é, um fim supremo 26 •

26
mo único (Pfato's MoraL Theory, Oxford 1977, p. 51-2 e 295; posteri- S. Broadie procede de um modo mais complexo. Ela detecta a falácia já
ormente, sustentou que o regressus é uma condição necessária, mas não em 1094al-3, nas primeiras linhas da Ethica Nicomachea, tomando
suficiente para a existência do bem final; deve haver um bem supremo assim a observação semântica (correta) a respeito da noção de bem
porque há uma ciência suprema, a politica, e toda ciência visa a um (1094a3: "o bem é aquilo para o qual tudo tende") como conclusão da
bem, a ciência suprema visando ao bem supremo: AristotLe's First Prin- inf('rência de "cada coisa tende a um bem" a "há algo para o qual tudo
cipies, Oxford 1988, p. 359-60, 604); C. Reeve toma a passagem não tende". Isto não é formalmente válido, mas, segundo ela, Aristóteles
como um argumento a favor da existência do bem supremo, mas como não pretende que o seja. Formalmente, não há como passar a um só
uma definição do bem supremo e um argumento acerca da escolha ra- fim supremo; Aristóteles passa ao frm único não por análise conceitual,
cional; o fim último é garantido pela afirmação de que há algo, a polí- mas por força "da idéia de uma atividade realmente orientando as ener-
tica, a que tudo está subordinado (Practices of Reason, Oxford 1992, gias de pessoas que têm de viver daquilo que eles e seus companheiros
p. 110). Urmson preferiu dizer que "podemos ter um fim que englobe fazem" (Ethics with AristotLe, Oxford 1991, p. 10). Isto abriria o cami-
todos os outros" (AristotLe's Ethics, Oxford 1988, p. 11); J. Cooper in- nho à noção do bem e à conclusão de que ele existe um bem supremo.
sistiu sobre a estrutura do argumento (Reason and Human Good in No entanto, a autora observa que isso só mostra pelo momento que os
AristotLe, Harvard 1975, p. 93); R. Kraut sugeriu que o "se" da prótase bens "são bens, o que significa que eles são fins com valor" (p. 11), dan-
significa "caso for verdade que", sendo uma indicação provisória e não do valor às nossas atividades seriamente organizadas numa hierarquia,
uma demonstração (AristotLe on the Human Good, Princeton 1989, sem provar que há um único fim sob o qual todos os outros tombam.
p. 217-20). Para uma defesa particular, verT. Roche, In Defonse ofan Aristóteles ensaiaria então um novo argumento em 1094f18-22: se não
ALternative View ofthe Fountfation ofAristotLe's MoraL Theory (Phronesis há um fim último, nosso desejo seria vão. Mas isso ainda é compatível
1992 p. 46-84); para uma reconstrução lógica, B. Williams, AristotLe com uma multiplicidade de fins. Aristóteles finalmente passa à conclu-
on the Good: a formaL sketch (PhiLosophicaL QuarteLy XII 49 1962, são de um único bem supremo não mediante análise conceitual, mas
p. 289-296) e C. Kirwan, Logic and The Good in AristotLe (Phiosophi- por força novamente "de um tfatum da experiência humana por ser uma
caL QuarteLy XVII 67 1967 p . 97-114). condição necessária para muito desta experiência: o fato que sociedades
102 MARCO ZINGANO EUDAIMON IA E BEM SUPREMO EM ARISTÓTELES 103

A primeira estratégia retira sua força basicamente de verticalmente estabelecida. Uma passagem da Metaflsica (a 2
argumentos de ordem lingüística. Seu interesse é menor e 994a8-10) parece confirmar este ponto:
subserviente à análise filosófica. A segunda estratégia parece
melhor, porém um leitor atento não deixará de observar que, O em-vista-do-quê (TO ov EVEKa) não pode ir
na ordem do texto, Aristóteles sustenta primeiro a doutrina ao infinito - caminhada em vista da saúde, esta em
do bem supremo para só então investigar a ciência que dele vista da felicidade, a felicidade em vista de outra coi-
deve ocupar-se- procedimento, aliás, bem de acordo com seu sa, e assim sempre uma coisa em vista de outra.
hábito. Além disso, a afirmação de uma ciência suprema (e
conseqüentemente de seu objeto supremo) aparece atenuada Se (b) nos diz somente isso, acho difícil inocentar Aris-
por seu caráter arquitetônico em relação somente àqueles fins tóteles. O horror infiniti exige um fim último para cada série,
que caem sob uma única capacidade no interior de um varie- mas nada nos permite passar a um fim único para todas as sé-
gado de fins que são objetos de diferentes artes e ciências, sem ries. Tudo o que p<Ydemos fazer então é compreender por que
que haja necessariamente uma ciência de todos os fins (EN I Aristóteles foi vítima da falácia e procurar desculpá-lo. Para
1 1094a6-10). Ambas as estratégias têm assim um ponto fra- tanto, provavelmente o melhor a fazer é mostrar que, em pri-
co. Antes de optar por uma ou outra, é preferível então pro- meiro lugar, Aristóteles estaria em EN I 1 somente introdu-
curar compreender exatamente onde está o problema. Ora, o zindo um problema, que espera poder analisar posteriormen-
pivô da crise é certamente (h); por conseguinte, convém pri- te com mais cuidado, e que, em segundo lugar, sua concepção
meiro analisá-lo com cuidado. de bem supremo a título de bem inclusivo (desenvolvida mais
À primeira vista, (b) nos diz somente que se desejamos adiante) não o obriga a pinçar um bem em detrimento de
A em vista de B, B em vista de C, C em vista de D e assim outros, mas o leva a propor um bem que é todos estes bens.
sucessivamente, não havendo um limite onde parar, então Este bem é (formalmente) único, mas ao mesmo tempo (ma-
nosso desejo será vazio e vão. O argumento ad infinitum é terialmente) múltiplo.
um conhecido argumento desestabilizador. Não parece estar Se olharmos para EN I 5, parece ser isto o que ocorre.
em jogo aqui outra coisa do que já estava presente no Lysis de A partir de 1097a25, Aristóteles distingue três tipos de fim.
Platão: o horror infiniti exige um fim último para uma série Há (i) os fins como a riqueza, que desejamos em vista de um
outro fim. Há (ii) os fins em vista dos quais os fins (i) são
desejados; são os fins perfeitos, TÉÀELa, ou Ka8' aÚTÚ, fins
em si. Fim em si é todo fim em vista do qual os outros são
humanas existem e são organizadas" (p.l5). Esra organização é a polí-
perseguidos, ele sendo perseguido por si mesmo. Aristóteles
tica, ciência suprema à qual corresponde um fim supremo. A estratégia
adorada por S. Broadie parece-me duplicar inutilmente a rarefa de Aris-
está seguro em I 5 da pluralidade de fins TÉÀELa ou Ka8'
tóteles ao retroceder a falácia às primeiras linhas da Ethica, além de aÚTÚ: ele cita em 1097b2 pelo menos quatro tipos de fun
complicar-se com uma explicação sobre a efetividade e seriedade de que podem funcionar deste modo (honra, prazer, intelecto e
nossas atividades que é irrelevante à questão. toda virtude) . Não há um destes fins que seja o fim supremo
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único; e isto é o caso seja para diferentes homens (um perse- Mas é isso tudo o que afirma o argumento ad infinitum?
gue a honra, o outro o prazer), seja para o mesmo agente (que Talvez não seja tudo. A elucidação do conceito de eudaimonia
persegue agora X, amanhã Y, ou mesmo persegue ao mesmo revela que não somente funciona como um frm em si, mas
tempo X e Y). Há, no entanto, um terceiro tipo de fim, que que é também o ponto para o qual convergem os fms em si -
responde a um critério mais forte do que o do fim em si: é o com efeito, estes sempre podem ser em vista de outro (em vis-
fim (iii) que não somente é aquele em vista do qual os outros ta da eudaimonia), a eudaimonia não podendo mais ser em
são feitos, mas também aquele que não pode mais ser em vis- vista de outro. Sempre se pode perguntar em vista do que você
ta de nenhum outro. Não poder ser em vista de nenhum ou- persegue a honra; mas não há mais sentido em perguntar em
tro garante seu caráter radical de último e seu estatuto de mais vista do que se persegue a eudaimonia. Isto pode sugerir que
perfeito (TEÀELÓTaTov). Fins em si são perseguidos por si o argumento ad infinitum em questão é somente no sentido
mesmos, mas também podem o ser em vista de um outro; vertical (ELS' EUSuwp(av), mas também no sentido horizon-
como a felicidade é o mais perfeito fim, ela tem de poder in- tal (KaT' EL8os-, Met. a 2 994a2). No sentido vertical, ele já
cluí-los (um fim é mais perfeito do que outro quando o ou- ocorria para os fins em si; a eudaimonia funciona do mesmo
tro fim é em vista dele). Aqui Aristóteles descolou (iii) de (ii) modo que eles. No sentido horizontal, no entanto, seu com-
(o que não tinha feito na passagem falaciosa)- e (iii) é o fim portamento é outro. Enquanto diferentes séries de fins po-
que, para evitar a falácia lógiça, não pode contar ao mesmo dem subsistir umas ao lado das outras sem afetar a raciona-
título do que os outros fins. Ele não é um frm ao lado dos lidade de cada escolha, a eudaimonia é tal que tem de figurar
outros, mas é estes fins em si (e os outros fins que eles englo- como ponto único de um modo muito forte para todos os
bam) - ele é o fim perfeito simpliciter, ÚTIÀWS' TÉÀELOV fins em si. Ninguém discute se a eudaimonia é o fim último;
(1097a33). A função deste terceiro tipo de fim não é a de nós discutimos em que consiste a eudaimonia (quais fins em
fornecer um fim (numericamente uno) como fim de uma sé- si a constituem); e isto não só vale para todo agente (racional)
rie (isto já está dado pelos fins em si); ele os engloba todos como para todo o tempo em que agir racionalmente.
numa harmonia de fins. Assim, pode-se falar de um certo fim Introduzi aqui a racionalidade do agente porque pare-
que contém todos os outros a título de fun supremo em vista ce-me ser um elemento inerente ao tratamento que Aristóte-
do qual todos os outros são perseguidos, pois não se está fa- les dá à questão. No sentido vertical (ELS' ÔJ9uwp(av), trata-
lando de um fim único (numericamente). Aliás, esta parece ser se de uma condição lógica para que seja o caso do desejo: se
a solução que Tomás de Aquino encontrou. Ele escreve em não se pára em algum ponto, então o desejo é vazio e vão.
seu Comentdrio à Ética (22): "et sic necesse est esse aliquem Agora, o sentido horizontal (KaT' d8os-) vem apoiado numa
finem ultimum, propter quod ornnia alia desiderantur, et ipse tese filosófica forte de Aristóteles sobre a racionalidade do
non desideratur propter alia". Na Summa, ele explica o cárater desejo. Pode-se sustentar que os homens perseguem diferen-
especial deste aliquis finis: ele é formaliter determinado, mas tes fins em si seja porque cada um tem o seu, ou porque eles
múltiplo materia/iter. têm vários presentes ao mesmo tempo, ou porque diferem
no tempo para cada um ou para todos (agora é tal, depois tal
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outro). É perfeitamente possível conceber A como fim últi- tipo, ele não será ilimitado; mas se nada há deste tipo,
mo ao lado de B, C etc. como outros fins últimos. O próprio não haverá o em-vista-do-quê. Aqueles que supõem
Aristóteles sustenta que há diferentes bens em si e que eles o ilimitado destroem a natureza do bem sem o saber
são irredutíveis em suas diferenças como bens: (embora ninguém faça nada se não alcança um limi-
te); nem haveria inteligência (VOUS') no mundo, pois
As definições de honra, inteligência e prazer são o que tem inteligência sempre age em vista de algo, e
distintas e portadoras de diferença na medida mes- isto é um limite - com efeito, o fim é um limite.
ma em que são bens. (EN I 4 1096b23-25)
O ponto em questão parece-me ser duplo. Em primei-
Neste caso, o desejo não seria vazio ou vão - ele tem ro lugar, suponha que A seja um fim em vista do qual outras
um fim último para cada série. Ocorre mesmo o contrário: coisas são feitas. Se não houver um EOXUTOV TÉÀOS, então
ele tem fins demais. Numa pletora de fms, se cada série é es- você escolhe A em vista de B, B em vista de C e assim por
tabelecida independentemente das demais, então as escolhas diante. Isto significa que para toda série cujos termos sucessi-
finais são independentes da razão, pois nenhuma razão po- vos estão numa relação em vista de deve haver um termo últi-
derá ser aduzida para justificar a escolha desta série em detri- mo- e este deve é uma condição lógica para que haja um oi~
mento daquela outra, ou desta série agora e daquela mais tar- EVEKa. Isto não é objeto de discussão; o ponto é que o dese-
de. Ora, para Aristóteles, o desejo humano é tal que sempre jo seria vazio se não houvesse um limite. Todos nós fazemos
tem de poder acolher razões. Esta é uma tese filosófica que algo, observa Aristóteles, para alcançar um limite: "aqueles
Aristóteles procura justificar mediante análise conceitual 27 • E, que supõem o ilimitado destroem a natureza do bem sem o
para Aristóteles, se não se puder dar razões para escolher en- saber". O resultado é que, para cada série, há um termo últi-
tre A, B ou C, então o desejo humano torna-se vazio e vão. mo. Agora, isso não é tudo. Se cada série subsistir simples-
Isto pode ser pressentido na seguinte passagem da Metaflsica mente ao lado das outras, haverá escolhas fmais independen-
(a 2 994b9-16): tes de razão entre estas séries, pois nenhuma razão pode ser
aduzida para estas escolhas. Isto tornaria o desejo humano (o
O em-vista-do-quê é um fim; este é tal que não é "desejo raciocinante", ÕpE~lS ÔlaVOTJTlK~, EN VI 2
mais em vista de outra coisa, mas as outras coisas são 1139b5) novamente vazio e vão, pois "nem haveria inteligên-
em vista dele. Assim, se deve haver algo último deste cia (vous) no mundo" para decidir a respeito28 •

27
O argumento independente para sustentar tal tese é apresentado em 28 No De caelo, Aristóteles menciona o argumento do "homem que, so-
EN I 6: é o argumento da função própria do homem, que consiste frendo fortemente de fome e sede, de modo igualmente intenso, e se
numa atividade KaTà ÀÓyov T1 fllJ ávEu ÀÓyou, "atividade segundo a encontrando a igual distância do alimento e da bebida, necessariamen-
razão ou não sem razão", isto é, para a qual tem-se de poder dar razão. te fica em repouso" (II 13 295b32-34). Isto foi visto como evidência
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Não estou propondo substituir um argumento de or- (Toiho), e se (b) não escolhemos tudo em vista de
dem lingüistica por uma observação semântica provavelmente outra coisa [(bl) se assim fosse, prosseguir-se-ia ao
demasiadamente subtil para ser verdadeira. Meu ponto con- infinito, de tal forma que o desejo seria vazio e vão],
siste em assinalar que há duas razões intimamente irnbricadas é evidente que (c) este fim (TOUTO) é o bem e o bem
na rejeição do regressus in infinitum. A primeira razão consiste supremo.
em que toda série tem de ter um termo último; ela é a razão
mais evidente do porquê a série tem de parar em algum lugar. Em (a), temos os fins em vista de outros e os fins em
A segunda, embora menos evidente, não é menos importante: si; o primeiro TOUTO refere-se aos fms em si. Ora, (bl) pode
todas as séries têm de poder estar relacionadas num limite. funcionar como razão para (a) e (b) ou somente para (b).
A primeira condição garante o conteúdo ao desejo; a segunda Agora, se (bl) é uma razão para (a), (bl) menciona somente
garante a natureza humana do desejo. A primeira tese é uma a primeira razão para rejeitar a progressão ao infmito (há uma
tese lógica, aceita por todos; a segunda é uma tese ftlosófica: limite para cada série); neste caso, a falácia parece inevitável.
voluntaristas certamente não concordariam com ela. Aristó- Ou bem (bl) introduz uma razão para (b); neste caso, a ra-
teles apresenta a conta inteira, sem distinguir os gastos, e tal- zão é a segunda, o horror infiniti horizontal. Afinal, negar que
vez nem todos queiram pagá-la de uma só vez. Mas o seu hor- tudo pode ser desejado em vista de outra coisa (como é ainda
ror infiniti é duplo: ele é tanto vertical quanto horizontal. o caso para os fins em si) significa afirmar que há algo em
Se retomarmos a passagem que deu origem à discus- vista do qual não só o resto é perseguido como ele próprio
são, podemos ver que ela introduz os três tipos de fins: não pode mais figurar em vista de outra coisa. Mas, então,
(b) introduz uma condição para além dos fins em si de (a).
Se (a) há, então, um fim das ações que desejamos por Esta nova condição é a de um fim que não pode mais ser em
si mesmo, sendo o resto desejado em vista dele vista de outro - determina a extensão máxima da racionali-
dade em nossas escolhas como marca do desejo humano na
medida em que põe um limite horizontal aos fins em si. Nes-
de que não há em Aristóteles uma doutrina da vontade que se determi- te caso, o segundo TOUTO da passagem não se refere mais ao
na por si mesma (R. Loening, Die Z urechnungslehre des Aristoteles, Jena mesmo termo que o primeiro TOUTO; enquanto este primei-
1903, p. 296-9, seguido por D. ]. Allan, The Practical Syllogism, em ro refere-se a um (entre outros) bem em si, o segundo TOUTO
Autour d'Aristote, Louvain 1955, p. 325-40). No entanto, o argumen- não se refere a nenhum dentre eles, mas a este bem em vista
to funciona como redução ao absurdo do que ocorreria se não houves- do qual estes bens são horizontalmente considerados. Ora,
se razão que decidisse ou priorizasse as ações (na cosmo logia, o
como a primeira opção implica atribuir a Aristóteles uma fa-
indiferentismo defendido por Anaximandro a respeito do porquê a Ter-
ra tem uma posição central fixa é igualmente rejeitado}. Sobre auto-
lácia lógica, convém interpretá-lo, se não houver razão que o
determinação (sem acarretar o se/f desejado por Loening e Allan}, ver impeça, de modo a evitá-la - de acordo com a segunda op-
D . Furley, Se/fMovers, em Aristotle on Mind and the Senses, Cambridge ção. E isto vai mais uma vez ao encontro da tese inclusivista a
1978, p. 165-79. respeito da Euoaqwv(a: este bem não conta ao lado dos ou-
110 MARCO ZINGANO

tros, mas é estes bens em si. Bernard Williams tem razão ao


escrever que "de qualquer modo, a passagem está expressa
confusamente, e talvez seja impossível dizer o que significa
exatamente"29 ; mas, em uma tal situação, é já um ganho con-
siderável compreender as razões para tanta confusão. 4
Para retomar as seções precedentes, à guisa de conclu-
são, Aristóteles defende assim uma doutrina do bem supre-
mo que inclui bens em si, sem contar ao mesmo título do PARTICULARISMO E UNIVERSALISMO
que eles: o bem supremo é um fim de segunda ordem. A fe-
licidade é a atividade segundo a virtude perfeita, isto é, se- NA ÉTICA ARISTOTÉLICA
gundo a virtude moral acompanhada de virtude intelectual.
Ora, de sua parte, a virtude intelectual está dividida em sabe-
doria prática e teórica, a sabedoria teórica sendo a virtude
própria desta parte. No livro EN X, Aristóteles defenderá a A ausência de uma moral dos deveres em Aristóteles
tese de que a atividade segundo esta última virtude produz a foi assinalada pelos comentadores faz muito tempo; alguns
eudaimonia perfeita ou primeira, a eudaimonia segunda sen- até mesmo o censuraram abertamente por isso 1• Mais recen-
do produzida pela atividade política. Esta tese está ligada cla- temente, porém, tentou-se mostrar que este era justamente o
ramente ao que foi defendido em EN I, mas precisa de novos ponto forte da ética aristotélica. Se Aristóteles parece dar sua
apoios, sem o que há um certo artificialismo no acoplamento preferência antes ao homem prudente que mostra o que é pre-
desta tese, que é restrita a círculos ftlosóficos, àquela da ati- ciso fazer do que ao moralista que justifica seus atos apoian-
vidade virtuosa, que pertence a noções comumente aceitas. do-se num conjunto previamente dado de regras práticas, a
O livro X da EN tentará mostrar então que aqueles bens que razão é que- tentou-se mostrar- ele teria fortes razões para
incluem a contemplação constituem a felicidade primeira, crer que um tal conjunto de leis tem um papel secundário na
outras séries constituindo a felicidade segunda, a partir da tese decisão prática. Essas leis seriam algo como uma bula ou su-
geral de que a eudaimonia é a atividade segundo a virtude mário de exercícios de percepção ética ou de apreciação mo-
perfeita. Mas isto é um novo argumento. ral das situações nas quais nos encontramos. Seriam, assim,

1
Numa nota de sua tradução da Ethica Nicomachea, Barthélémy de Saint-
Hilaire queixou-se, de modo tão lapidar quanto patético, que "a moral
tem leis imutáveis e universais; Aristóteles parece esquecer-se disso muito
29
Williams, B. Aristotfe on the Good: a formal sketch, p. 292. freqüentemente" (Mora/e à Nicomaque, Paris, 3 vol., 1856, t. I p. 70).

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