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2

Virtude, Razão Prática e Valor Moral da Ação na Ética

Aristotélica

2.1
Eudaimonia, razão e moralidade
Como dissemos na introdução, nosso objetivo é analisar a estrutura da
ética de Aristóteles a partir da relação entre estes três elementos: razão prática,
virtude e valor moral da ação. Neste primeiro capítulo, procuraremos mostrar
como a concepção aristotélica de eudaimonia traz dentro de si uma relação
intrínseca entre racionalidade e moralidade, estabelecida pelo argumento do
érgon. A partir desta relação, a virtude será entendida como a harmonização de
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nossos desejos com o bom funcionamento da razão, visto como “função” do


homem.
No decorrer de todo o texto, nossa análise se baseará na Ética a Nicômaco,
principal obra do estagirita sobre o tema, embora alguns trechos da Ética
Eudêmica também venham a ser citados, quando ajudarem a esclarecer um ponto
qualquer. Não faremos referência à Magna Moralia, pois, além de não
acrescentar, a nosso ver, nenhuma informação relevante para nossa discussão,
trata-se de uma obra de autoria contestada.
Podemos considerar que a noção de eudaimonia exerce um papel central
na ética de Aristóteles. A Ética a Nicômaco, de fato, se inicia com uma
investigação sobre este conceito, chegando à conclusão de que a felicidade
16

humana é “atividade da alma em consonância com a virtude”, e que esta atividade


implica em um “princípio racional”.15 Para o filósofo grego, portanto, o vínculo
entre virtude e racionalidade está estreitamente ligado à eudaimonia.
Este termo costuma ser traduzido como “felicidade”, mas, como observa
Richard Bodéüs, para os gregos ele designa mais um “estado divino exemplar” do
que um sentimento subjetivo de satisfação.16 Trata-se, assim, de algo diferente do
que chamamos de felicidade na era moderna, o que terá importantes
conseqüências na comparação com Kant. Como veremos, a eudaimonia
aristotélica não pode ser compreendida como um simples estado psicológico de
bem-estar, devido, entre outras razões, à sua compreensão como uma atividade, o
que estaria mais de acordo com o espírito grego.17 Daí este termo ser muitas vezes
traduzido como “vida lograda” ou “florescimento” (flourishing, épanouissement,
o que podemos ainda entender como “realização”), que talvez captem melhor, de
fato, o sentido original. Estas expressões refletem a visão aristotélica (e dos
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antigos, de forma geral) de que a eudaimonia é uma forma de “boa vida”, mas não
no sentido subjetivo de bom para mim (embora também inclua este aspecto), mas
de verdadeiramente bom, o que já implica, como veremos, a noção de virtude, que
permite a apreensão do verdadeiro bem.
No decorrer deste trabalho, assim, usaremos o termo “felicidade” como
tradução de eudaimonia, como fazem a maioria dos tradutores, pois não deixa de
se tratar do equivalente grego deste conceito moderno, mas tendo sempre em
mente que não se trata de uma tradução exata.18 Como se sabe, o entendimento da
felicidade como vida boa ou lograda é fundamental para o exame da ética

15
ARISTÓTELES, EN I-7 [1098a-1098a20].
16
ARISTOTE, 2004, p.6 (apresentação por Richard Bodéüs). Ross comenta que o sentido original
era “ser protegido por um bom gênio”, mas para o senso comum grego o termo tenderia a designar
a boa fortuna, com ênfase na prosperidade ligada a bens externos (ROSS, 1995, p. 198, tradução
nossa).
17
Aristóteles considera que a felicidade não pode ser simplesmente a posse da virtude, mas o seu
exercício, ou seja, uma atividade (ARISTÓTELES, EN I-8 [1098b30-1099a5]). Como veremos na
parte 2, esta concepção difere da visão moderna (com a dos utilitaristas e, a nosso ver, a de Kant),
que tende a compreender a felicidade como um “estado de coisas” resultante de nossas ações.
18
Como diz Urmson, todos concordam que “felicidade” não é uma boa tradução para eudaimonia,
mas a aceitam na falta de algo melhor (URMSON, 1988, p. 11). Rosalind Hursthouse considera
que “flourishing” e mesmo “well-being” captam melhor o sentido original do que “happiness”,
embora nenhuma delas seja perfeita: “happiness” seria demasiado subjetivo, mas “flourishing”
pode ser aplicado também a animais e plantas, e “well-being” não teria um adjetivo que lhe
correspondesse. A autora considera, no entanto, que os dois últimos termos são melhores traduções
do que o primeiro devido à objetividade que caracterizaria a noção grega. Hursthouse dá a
entender, assim, que a interpretação mais adequada para a eudaimonia seria algo como “felicidade
verdadeira” (HURSTHOUSE, 1999, p. 10).
17

aristotélica.
Aristóteles também define a eudaimonia como “bem supremo”
(to\ a)/riston) ou “fim” (τέλος) do homem. Esta noção está estreitamente ligada,
portanto, à dimensão dos valores, o que já parece indicar, de certa forma, uma
conexão com o desejo. Vejamos, então, como o conceito de felicidade é
construído, pelo filósofo grego, a partir do de “bem” ou “fim”: logo no início da
Ética a Nicômaco, o “bem” é definido como aquilo que é visado por toda ação.
Aristóteles começa então a investigar como os diferentes bens, ou seja, os fins de
nossas ações, se relacionam entre si. Claramente, existem fins que se subordinam
a outros, sendo, portanto, meios para estes. Esse aspecto torna necessária a
distinção entre bens que são considerados em si mesmos e aqueles que são apenas
meios, estes últimos, obviamente, estando subordinados aos primeiros, que
seriam, portanto, mais desejados. Estes “fins em si” devem necessariamente
existir, para evitar uma progressão ao infinito.19 A partir destas considerações, o
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filósofo grego deduz a existência de um sumo bem, cuja investigação seria sem
dúvida útil para a vida humana.
Podemos enxergar aqui um erro lógico da parte de Aristóteles, pois, à
primeira vista, o argumento da progressão ao infinito se aplica apenas a cada
atividade em seu gênero. Um sapateiro, por exemplo, precisa realizar uma série de
fins intermediários (aprender a consertar sapatos, juntar dinheiro para abrir um
estabelecimento etc) para se tornar um sapateiro. Alguém envolvido em outra
atividade – como um soldado – também exercerá ações visando bens que são
meios para seu objetivo último, que seria, digamos, se tornar um bom soldado.
Nada impede, assim, que cada ocupação possua um “bem em si” que lhe seja
próprio, e, portanto, a impossibilidade de progressão ao infinito não permite
deduzir a existência de um único sumo bem, visado por todas as atividades
humanas. Segundo os comentadores, esta falácia lógica já estaria presente nas
primeiras linhas da EN, na passagem de “toda arte e toda investigação, bem como
toda ação e toda escolha, visam um bem qualquer” para “o bem é aquilo a que
[todas] as coisas tendem”. 20 Não temos tempo, aqui, para nos envolver nesta

19
ARISTÓTELES, EN I-2 [1094a20].
20
ARISTÓTELES, EN I-1 [1094a]. Aristóteles estaria cometendo, nas primeiras linhas da EN, a
chamada “falácia do menino-e-da-menina”: de fato, a partir da afirmação de que “toda menina
gosta de um rapaz”, não é possível deduzir que “há um rapaz de que toda menina gosta”. Este
problema foi colocado pela primeira vez, de forma mais explícita, por Peter Geach em seu artigo
18

polêmica, mas queremos apenas assinalar como este ponto está relacionado a um
outro problema, que nos interessa de forma mais direta, que é a compreensão da
eudaimonia como um bem “inclusivo” ou “exclusivo”.
W. F. R. Hardie foi provavelmente o primeiro a levantar esta questão de
forma mais explícita,21 depois retomada por outros comentadores, como Zingano.
Segundo este último, a eudaimonia é inclusiva se considerarmos que se trata de
um fim de segunda ordem, ou seja, não é um bem entre outros, mas sim uma
disposição harmoniosa que se estabelece entre nossos fins primários, visados por
nossas ações. A eudaimonia, assim, inclui os outros bens, formando, a partir
deles, um todo coerente.22
Nos exemplos que demos acima, podemos nos perguntar, de fato, em que
medida “ser um sapateiro” e “ser um bom soldado” são realmente fins últimos,
que não se subordinam a nenhum outro. Nada nos impede de perguntar ao
sapateiro por que se esforçou tanto para exercer esta profissão, e obter uma
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resposta do tipo “para ganhar dinheiro”, ou “para agradar minha família”. Como
fazem as crianças, podemos ficar eternamente neste jogo, perguntando “e por que
ganhar dinheiro” etc. Será que esta seqüência continuaria para sempre?
Intuitivamente, a única afirmação que parece ser capaz de interrompê-la é: “para
ser feliz”. Esta resposta, de fato, não permite, à primeira vista, nenhuma
instrumentalização. Este ponto será retomado por Aristóteles mais adiante, quando
distingue aqueles bens que são claramente meios – como riqueza e instrumentos
musicais - de outros que parecem ser visados em si mesmos, como é o caso das

History of a Fallacy, em 1958. Em relação a esta questão, nós tendemos a concordar com
comentadores como W. F. R. Hardie, que exime o filósofo grego de tal equívoco, considerando
que a idéia expressa no primeiro parágrafo da EN conecta-se com a do segundo ([1094a20]), pela
qual se existe um fim desejado por si mesmo e tudo o mais é desejado em função dele, então este
deve ser o sumo bem, cujo estudo seria sem dúvida importante (HARDIE, 1968, p. 16-17). Nas
primeiras linhas da EN, Aristóteles pode estar apenas expressando uma visão do senso comum
(“por isso foi dito que...”), não se preocupando tanto, portanto, com o rigor lógico da afirmação;
ou, talvez, o uso do termo “bem”, aqui, possa ter uma noção genérica, não se referindo, assim, a
um bem em particular: de fato, a partir da afirmação “toda mulher ama um homem”, não é possível
deduzir que “há um homem de que toda mulher ama”. Mas é possível, sem problemas, dizer que
“toda mulher ama o sexo oposto”, e não há mal nenhum em designar o sexo oposto pelo termo
genérico “homem”. A conclusão se torna, então, “toda mulher ama o homem”, onde “homem”,
portanto, não designa um homem particular, mas um termo genérico – dizer “o homem é aquilo de
que toda mulher ama” é algo diferente de dizer que “há um homem que toda mulher ama”.
21
Hardie, W. The Final Good in Aristotle’s Ethics, publicado originalmente em Philosophy, XL
(1965).
22
ZINGANO, 2007, p. 74; p. 490.
19

virtudes (honra, inteligência etc).23 Estes últimos não são buscados em vista de
algo que resulte deles, mas, mesmo assim, é possível afirmar que são escolhidos
em função da felicidade. Só esta última pode ser considerada, portanto, um bem
“absoluto”, “perfeito” ou “acabado” (τελείως), ou seja, somente a eudaimonia é
desejada unicamente por si mesma, sem ter em vista nada além de si própria.
Neste sentido é que, como vimos, quando pedimos aos indivíduos para
justificarem seus bens ou fins, cada um tenderá a dar respostas diferentes, de
acordo com sua ocupação e estilo de vida, mas estas justificativas tenderão, no
jogo de “por quês”, a convergir para uma única resposta final: “para ser feliz”.
Somente esta é capaz de evitar a progressão ao infinito, pois tendemos a
considerá-la uma coisa óbvia, uma verdade primária que não remete a mais nada.
À pergunta “e por que você quer ser feliz”, só podemos responder “porque sim”.
É isto o que Aristóteles quer dizer, quando, ainda no início de sua
exposição, ao se perguntar sobre a natureza do sumo bem, afirma que “todos
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consideram que é a felicidade”.24 No entanto, o filósofo grego logo se apressa em


acrescentar que há uma divergência em relação à sua natureza: a felicidade do
sapateiro, de fato, será provavelmente algo bem diferente da do soldado. Mais do
que isto, não só cada indivíduo terá uma visão própria sobre este assunto, mas esta
concepção provavelmente será algo complexo: para uma pessoa ser considerada
“feliz”, não basta que tenha um bom emprego, ou dinheiro, ou saúde, mas sim
vários destes bens, e de forma conectada, já que estes fins são, por natureza,
interligados.
É isto o que significa afirmar que a eudaimonia é um fim inclusivo ou de
segunda ordem: a felicidade não é um outro bem que se acrescenta aos demais,
mas sim um conjunto harmonioso de bens inter-relacionados, adquiridos no
decorrer da vida do indivíduo. 25 Como diz Zingano, esta concepção permitiria
evitar a falácia lógica implicada na tese de que existe um único sumo bem, pois

23
ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b-10]. Este caráter específico das virtudes – são buscadas em si
mesmas, mas, ao mesmo tempo, em vista da felicidade – as leva a serem consideradas elementos
constitutivos desta última, não possuindo com esta, assim, uma relação instrumental. Este aspecto
será mais elaborado por Aristóteles no livro VI, quando diz que a sabedoria prática – necessária
para a virtude moral no sentido próprio, como veremos -, não produz felicidade como a medicina
produz saúde, mas sim como a saúde produz saúde. As virtudes, assim, são dignas de escolha
independentemente dos seus efeitos (ibidem, VI-12 [1144a-10]).
24
ARISTÓTELES, EN I-4 [1095a20].
25
“It’s clear also that eudaemonia is a composite; the ideal life is note made ideal by just one
element that it contains, but has multiple criteria or desiderata” (URMNSON, 1988, p. 13).
20

não se trata de apenas “uma” felicidade, numericamente falando: a eudaimonia é


única formalmente, mas múltipla materialmente.26
No entanto, não fica sempre claro que Aristóteles entenda a felicidade
desta maneira. O filósofo grego parece descrevê-la assim durante quase toda a
Ética a Nicômaco,27 mas algo diferente ocorre no livro X, quando é abordado o
tema da atividade contemplativa, vista como forma suprema de felicidade. Neste
caso, teríamos um sumo bem “exclusivo”, ou seja, não apenas formal, mas
substantivo, que se acrescenta aos outros bens. Como diz Hardie, uma coisa é
dizer que o homem sábio organiza sua vida de acordo com um sistema de
prioridades, outra, bem diferente, é dizer que prioridades são essas. 28 Veremos
mais adiante que Aristóteles faz uma distinção entre as virtudes morais e as
intelectuais, e que a tese da concepção inclusiva está estreitamente ligada às
primeiras. Como nossa abordagem nos leva a enfatizar, sobretudo, as virtudes
morais, adotaremos a concepção inclusiva. Na conclusão da primeira parte,
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voltaremos a mencionar o problema de conciliar as duas caracterizações da


eudaimonia.
Ainda no início da Ética a Nicômaco, após analisar a maneira pela qual os
diferentes fins se concatenam entre si e definir o sumo bem como sendo a
felicidade, Aristóteles começa a investigar qual seria a natureza específica desta
última, a partir das posições existentes sobre o assunto, que, como vimos, são
divergentes. Seguindo um procedimento que lhe é característico, comenta
inicialmente as opiniões correntes, do senso comum, para depois analisar as visões
dos filósofos. As primeiras são organizadas em função de uma distinção entre três
“tipos de vida” (bi/oj): a agradável, a política e a contemplativa. A felicidade da
vida agradável – semelhante à dos animais, segundo Aristóteles – é baseada no
prazer, a do segundo tipo – relacionada a pessoas de maior refinamento – é
baseada na honra, e sobre o terceiro tipo, a contemplativa, ele tratará mais

26
ZINGANO, 2007, p. 104. O número de bens envolvidos seria o suficiente para a obtenção da
“autarquia” ou auto-suficiência (άύτάρκειά) do indivíduo. ZINGANO, 2007, p. 417 (Cf.
ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b6-21]; ibidem, X-6 [1176b6]). GAUTHIER & JOLIF, 1970. p. 53
(tomo II) (tradução nossa): “a felicidade não saberia se adicionar a o que quer que seja para fazer
uma soma que valeria mais que ela; ela própria é de fato a soma que inclui todos os bens”.
27
Este aspecto é explicitado pelo próprio autor no trecho em que afirma que a felicidade não pode
ser “um bem entre outros”, argumentando que, se assim fosse, sempre se poderia acrescentar-lhe
algo, obtendo assim um bem ainda maior (ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b16-21]). Desta forma, a
própria caracterização da eudaimonia como um bem absoluto implica que ela seja inclusiva.
28
HARDIE, 1968, p. 329.
21

adiante.29 O modo de viver baseado na honra é identificado por Aristóteles à vida


política, sendo esta, assim, aquela relacionada às virtudes (pelos menos as éticas,
como veremos mais adiante), sendo, portanto, a que nos interessa mais
diretamente.30
Este vínculo entre ética e política já havia sido estabelecido anteriormente,
quando, ao se perguntar sobre a ciência que tem por objeto o sumo bem, o filósofo
grego respondeu que se tratava desta última. 31 Esta relação não parece ser tão
óbvia hoje em dia, mas é preciso considerar que no período clássico não havia
ainda uma cisão tão bem definida entre a vida pública e a privada. A noção de
“indivíduo” estava, então, intrinsecamente ligada à de “cidadão”. Ross considera,
neste sentido, que a ética aristotélica é social e sua política é ética.32 Como diz
Aubenque, é somente no período helênico que os dois conceitos se separam,
levando à elaboração de éticas mais interiorizadas, como as dos epicuristas e dos
estóicos.33 Esta dimensão política e social da ética aristotélica é fundamental para
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compreendermos sua relação com a eudaimonia.34


A política, assim, é a ciência do sumo bem. Isto significa que ela sempre

29
ARISTÓTELES, EN I-5 [1095b15-1096a5]. Bodéüs considera que a eudaimonia aristotélica
tentará fundir estes três tipos de vida (ARISTOTE, 2004, p. 29, (apresentação de R. Bodéüs)). Mas
não há dúvida de que a ética – ligada às virtudes morais – está relacionada à segunda.
30
A relação entre honra e virtude se deve ao fato de que buscamos a primeira em função da
segunda, ou seja, do reconhecimento de nosso valor. Mas Aristóteles se apressa em indicar que
isto ainda é incompleto, anunciando questões que tratará mais adiante, como a relação da virtude
com a atividade e com os infortúnios.
31
ARISTÓTELES, EN I-2 [1094a25-1094b10].
32
ROSS, 1995, p. 195.
33
“Se a unidade da vida privada e da vida pública caracterizava a era clássica da Grécia, a ruptura
dos quadros da cidade em proveito de conjuntos mais vastos arruína tal unidade. Aristóteles ainda
sustenta a coincidência entre a virtude do homem público e a do homem privado; entretanto, esta
se torna inútil numa sociedade que não espera mais do homem privado que participe nos negócios
públicos. (...) É o momento em que a liberdade do homem livre, que até então se confundia com o
exercício dos direitos cívicos, se transmuta, na falta de algo melhor, em liberdade interior. (...) Tal
atmosfera de retração, ou, como se disse, de ‘abstração’, é característica das filosofias helenísticas”
(AUBENQUE, 2008, p. 33).
34
Sobre a relação entre ética e política, Bodéüs comenta que “o bem ultimamente visado pelo ser
humano para si próprio, por conferir sentido à sua vida, é necessariamente o que ele deseja
também para seus semelhantes, a política sendo a capacidade de dar à vida do outro o mesmo
sentido que à sua própria existência” (ARISTOTE, 2004, p. 29, (apresentação de R. Bodéüs),
tradução nossa). Hardie enfatiza a maneira pela qual o fim da política seria similar ao do
indivíduo, mas superior: “While the good for the state and the good for the individual are the same,
the end of the state is ‘something greater and more complete’” (HARDIE, 1968, p. 17). Já
Gauthier & Jolif consideram que Aristóteles rejeita a identificação platônica entre ética e política:
esta última teria um sentido “arquitetônico”, mais amplo que o usual, e nesta acepção a política é
que estaria submetida à ética (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 2; p. 11-12. (tomo II)). Ross tende a
concordar com estes últimos: para ele, no início da EN a ética pareceria estar submetida à política,
mas no decorrer do texto esta relação se inverteria, e no final a política seria caracterizada mais
como um apoio para a vida moral do indivíduo, fornecendo as condições para que os desejos do
homem sejam subservientes à razão (ROSS, 1995, p. 195).
22

exercerá um papel importante na estruturação dos bens particulares, já que todos


eles convergem, como vimos, para a eudaimonia. Mas isso não quer dizer que a
política seja a ciência de todos os bens. Este aspecto está ligado à rejeição da tese
platônica do “Bem em si”: de fato, após a análise das opiniões correntes sobre a
felicidade - que levou, como vimos, à distinção entre três tipos de “estilo de vida”
-, Aristóteles aborda as visões filosóficas sobre o assunto, se atendo, sobretudo, à
de Platão. A existência de um “Bem em si” é então negada pelo estagirita, pois
para ele o Bem se diz em tantas maneiras quanto o Ser.35 Umas das conseqüências
desta afirmação, justamente, é que não pode existir uma ciência única do Bem,
mas várias ciências que tratam dos diversos fins.36 A política, portanto, é ciência
do sumo bem, sem ser, no entanto, a ciência de todos os bens. Embora esta
caracterização não seja incompatível com a concepção “exclusiva” da eudaimonia
(pois dizer que o sumo bem é substantivo é diferente de afirmar que existe o Bem
em si), podemos considerar que ela reforça a tese inclusiva, pois nesta última a
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eudaimonia é vista como um princípio organizador, o que parece ter mais a ver
com a natureza da política.
Depois de refutar a visão de Platão, Aristóteles investiga quais são os bens
visados em si mesmos, o que leva, como já vimos, à caracterização das virtudes
como elementos constitutivos da felicidade, esta última sendo, assim, o único bem
“perfeito” ou “acabado” (teleios), e, portanto, auto-suficiente. O filósofo grego

35
ARISTÓTELES, Meta. IV (Γ) [1003a33]. O Bem, na verdade, se diz exatamente nos mesmos
significados do Ser, que são as categorias: esta noção significa, assim, Deus e o intelecto na
categoria da essência, a virtude na de qualidade, a justa medida na de quantidade, o útil na de
relação, a “ocasião” (καιρός) na de tempo, a “localidade conveniente” (δίαιτα) na de lugar, o
ensinar e aprender nas categorias de agir e padecer (AUBENQUE, 2008, p. 163). Isso significa que
as diferentes acepções do Bem não podem ser derivadas de um único sentido central e
paradigmático, o “Bem em si”, como acreditava Platão. Como diz Ross, “there is no form of good
separate from its particular manifestations” (ROSS, 1995, p. 199). Na Ética Eudêmica, temos: “it
is clear, then, that neither the Idea of good nor the good as universal is the good per se that we are
actually seeking” (ARISTÓTELES, EE I-8 [1218b7]). Desta forma, o “sumo bem” de que fala
Aristóteles não deve ser confundido com o bem-em-si platônico. É preciso considerar que embora
os diferentes significados do Ser e do Bem não sejam sinônimos, isso não quer dizer que sejam
totalmente independentes, o que levaria à homonímia. A solução aristotélica para determinar esta
espécie de “meio-termo” entre a sinonímia e a homonímia é a noção de significação focal
(expressão cunhada pelos comentadores modernos), pela qual as diferentes categorias se dizem
com referência a um conceito central, que é o de substância (ZINGANO, 2007, p. 573). Como diz
Hardie, isto significa que o sentido primário é um elemento na definição dos seus sentidos
secundários (HARDIE, 1968, p. 63).
36
ARISTÓTELES, EN I-6 [1096a30-35]. Aristóteles considera que as ciências dos diversos bens
são múltiplas até mesmo dentro de uma mesma categoria, dando, como exemplo, a da
oportunidade na guerra, que é a ciência da estratégia, da medicina para a saúde, na moderação para
os alimentos, na educação física para os exercícios. Cf. HARDIE, 1968, p. 61: “in the exercice of
its authority over the sciences, politcs dictates only the occasions of their application; but each is
an independent technique”.
23

chega então a um ponto de sua exposição que é vital, não só para sua própria
concepção, mas também para o tema específico de nossa tese: o famoso
argumento do érgon ou “função”.
Este argumento surge a partir de uma necessidade de explicar melhor o
que é a felicidade, e esta tarefa seria mais simples, segundo o filósofo grego, se
fosse possível determinar qual é a “função” (e)/rgon) do homem: “pois, da mesma
maneira como para um flautista, um escultor ou um outro artista, e em geral para
tudo que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e a perfeição
residem na função, com o homem, se ele tem uma função, seria aplicável o
mesmo critério”.37
A primeira parte do raciocínio talvez ainda fizesse sentido hoje em dia: de
fato, para determinar o que é ser um “bom médico”, é preciso antes compreender
o que é ser médico, ou seja, a natureza de sua atividade. Também parece ser
possível aplicar esta lógica a objetos manufaturados: a função de uma caneta, por
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exemplo – escrever – pode ser considerada o bem da caneta, assim como o bem de
um carro consistiria em transportar etc. A dificuldade está em compreender desta
forma os entes naturais, como o homem. Ser homem não é um “ofício”, e também
não parece fazer sentido – a não ser, talvez, dentro de uma concepção religiosa
teleológica - considerar que nós fomos criados com algum tipo de propósito, que
poderia ser visto como nossa função.
É preciso considerar, no entanto, que os gregos tinham uma concepção da
physis diferente da contemporânea. Nossa visão é em grande parte herdeira do
mecanicismo da ciência moderna, pela qual a Natureza pode ser descrita
unicamente em termos de causas eficientes. Os antigos, por outro lado, tendiam a
ter uma visão mais teleológica, e Aristóteles não é exceção. Na Política, por
exemplo, temos:
(...) a natureza de uma coisa é o seu estágio final, porquanto o que cada coisa é
quando o seu crescimento se completa nós chamamos de natureza de cada coisa,
quer falemos de um homem, de um cavalo ou de uma família. Mais ainda: o
objetivo para o qual cada coisa foi criada – sua finalidade – é o que há de melhor
para ela, e a auto-suficiência é uma finalidade e o que há de melhor.38

Para os gregos, assim, fazia sentido considerar que o bem de uma árvore é

37
ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b20-30].
38
ARISTÓTELES, Pol. I-1 [1252b32-1253a2]. Diga-se de passagem, esse teleologismo mais
explícito, encontrado na Política, é que levará Aristóteles àquelas conhecidas conclusões, pouco
aceitáveis hoje em dia, acerca da inferioridade natural das mulheres ou dos escravos.
24

dar frutos, ou que o bem do Sol é iluminar e aquecer. Como diz Gauthier, a
“função” é vista pelos antigos como uma forma de compreender o que algo “é”:
O érgon de um ser, sua função ou tarefa própria, é, portanto, a operação para a
qual ele é feito, e que, sendo seu fim, define também sua essência; todo ser que
tem uma tarefa a realizar existe de fato para esta tarefa, e é na realização desta
tarefa que reconhecemos que ele realmente é aquilo que é (...).39

A função do homem, assim, pode ser vista como uma forma de


compreender qual é sua verdadeira natureza, e esta estaria ligada àquilo que lhe é
específico, isto é, a razão.40 Isto, no entanto, apenas nos diz qual é o gênero do
bem humano (atividade racional da alma), mas não sua diferença específica: em
qualquer ofício, de fato, é preciso distinguir o simples exercício de uma atividade
do “bom” exercício, e esta diferença é determinada pela virtude. O bem do
homem, assim, está em uma boa e nobre realização de sua função, ou seja, de
acordo com a excelência que é própria à atividade racional de sua alma. Daí a
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conclusão final: “o bem do homem vem a ser a atividade da alma em consonância


com a virtude e, se há mais de uma virtude, em consonância com a melhor e mais
completa entre elas”.41
Alguns comentadores, como Gauthier, questionam que o érgon humano
descrito na Ética a Nicômaco faça de fato referência à concepção teleológica da
physis defendida por Aristóteles em outras obras.42 O filósofo grego, de fato, não
chega a citar explicitamente suas teorias sobre a Natureza na EN.43 Não se pode

39
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 54-55 (tomo II: comentário) (tradução nossa). Cf. ibidem, p.
136: “uma coisa só é o que é se for capaz de realizar sua função” (tradução nossa). Estes
comentadores dão como exemplo um olho, que só pode ser considerado como tal se for capaz de
enxergar. Como diz MacIntyre, “os argumentos morais dentro da tradição aristotélica – tanto em
sua versão grega quanto na medieval – envolvem pelo menos um conceito funcional central, o
conceito de homem compreendido como ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou
função essencial; (...) Aristóteles assume como ponto de partida da investigação ética que o
relacionamento entre ‘homem’ e ‘viver bem’ é análogo ao que há entre ‘harpista’ e ‘tocar bem a
harpa’” (MACINTYRE, 2001, p. 109).
40
ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b30]. Isso leva o filósofo grego a esboçar um tema que será mais
desenvolvido posteriormente, que é a divisão da alma humana em três partes ou faculdades, aqui
ainda descritas como tipos de vida ou atividade: uma vida nutritiva e de crescimento, comum a
todos os seres vivos, inclusive às plantas, uma perceptiva ou sensitiva, que também é comum aos
animais, e uma racional, específica ao homem. Esta última é também dividida em duas partes ou
sub-faculdades – a que “obedece” ao princípio racional e a que o “possui”, esta última também
tendo duas acepções: disposição e atividade. Obviamente, a função do homem está ligada a esta
última, ou seja, ao exercício ativo.
41
ARISTÓTELES, EN I-7 [1098a5-20].
42
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 243-244 (tomo I: introdução).
43
Para Gauthier, o que está em questão na ética aristotélica é o bem do homem, e não um bem
universal definido a partir da finalidade natural (o autor francês está aqui, provavelmente, visando
diferenciar a concepção aristotélica da dos estóicos, que é estabelecida a partir de uma visão mais
25

negar, no entanto, que a função do homem é estabelecida a partir de uma


referência naturalista (talvez pudéssemos falar de um “humanismo naturalista”?).
Como diz Julia Annas, o argumento do érgon faz apelo ao desenvolvimento
apropriado da natureza humana,44 o que ocorreria através do bom exercício da
razão. Para Monique Santo-Sperber, Aristóteles se serve do modelo da Natureza
para pensar a idéia de uma normatividade imanente ao próprio homem, ou seja, o
que “deve ser o homem”, o fim que ele persegue.45 Para o ser humano (assim
como para toda espécie viva) o bem consiste, assim, no desenvolvimento e
exercício, em condições favoráveis, das capacidades de sua natureza - neste caso,
da natureza humana racional.
Podemos, agora, nos perguntar qual o papel que exerce o argumento do
érgon dentro da ética aristotélica, e, sobretudo, de que maneira ele se concatena
com o que estávamos acompanhando até agora. Vimos que Aristóteles iniciou sua
Ética a Nicômaco com uma investigação sobre a natureza do bem, e, mais
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exatamente, sobre o sumo bem. Neste sentido, a idéia de determinar qual é o bem
específico do homem parece se inserir perfeitamente neste contexto. Se olharmos
mais atentamente, no entanto, perceberemos que houve algum tipo de “quebra”
aqui. Até agora, de fato, o bem estava sendo entendido como aquilo que é visado
por nossas ações, portanto de uma maneira que podemos considerar, até certo
ponto, “subjetivista” – como dissemos, a felicidade do sapateiro é bem diferente
da do soldado, e Aristóteles parecia estar perfeitamente consciente disso: a
determinação formal da eudaimonia como um bem inclusivo pode ser vista como
uma forma de respeitar, justamente, a diferença substantiva entre as felicidades
individuais, ligadas a diferentes ocupações e estilos de vida. Com o argumento do
érgon, no entanto, algo diferente parece ocorrer: o bem, aqui, não é mais
determinado por aquilo que visamos em nossas ações, mas por uma remissão à
natureza humana, portanto de uma maneira mais “objetiva”, por assim dizer.
Como comenta Tugendhat em suas Lições de Ética, neste ponto da EN parece
haver uma ruptura abrupta, pela qual um novo conceito de bem é introduzido:

cosmológica). É verdade que os exemplos apresentados para ilustrar o argumento do érgon na


Ética a Nicômaco são, sobretudo, atividades humanas ou “ofícios” (a versão francesa de Richard
Bodéüs, de fato, traduz érgon por “office”). Mas a divisão da alma humana em três partes
claramente visa, como vimos, encontrar aquilo que é específico à natureza humana (não é à toa
que neste trecho em particular Aristóteles cita, sim, entes naturais, como o boi, os vegetais etc).
44
ANNAS, 1993, p. 157. Cf. CANTO-SPERBER, 2001, p. 87, tradução nossa: “Aristóteles define
a virtude como o estado optimal das potencialidades racionais da natureza humana”.
45
CANTO-SPERBER, 2001, p. 22; p. 76; p. 88-89.
26

antes, esta noção era descrita como aquilo a que aspiramos, e agora como “aquilo
para que algo existe”.46 Seguindo a mesma linha, Urmson considera que o érgon
humano pode talvez determinar “o bem do homem”, mas isso é diferente do “bem
para o homem”.47 A diferença entre as duas acepções é facilmente percebida se
pensarmos em sua conexão com o desejo: tendemos a aceitar sem problemas a
idéia de que os fins de nossas ações são desejados por nós e, portanto, em última
instância, a própria felicidade; mas que sentido há em afirmar que desejamos
“exercer de maneira virtuosa a função que temos enquanto seres humanos”?
Na verdade, podemos até considerar que as duas acepções são aceitáveis
intuitivamente (se fizermos a concessão de que para os gregos a noção de “bem
como função de algo” se aplica aos entes naturais). O problema está em identificar
os dois sentidos, o que Aristóteles parece estar fazendo, ao passar de um ao outro
sem comentar que são diferentes. E esta distinção afeta diretamente o assunto que
está sendo tratado – a eudaimonia -, pois somente a primeira acepção parece estar
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ligada à felicidade, devido, justamente, à sua conexão com o desejo. Para


compreendermos devidamente o argumento do érgon, é preciso, portanto,
realizarmos estas duas tarefas, conforme comentamos: primeiro, determinar o por
quê deste argumento, ou seja, o papel que exerce dentro da ética aristotélica. E,
segundo, como conciliá-lo com a concepção de eudaimonia que estava sendo
defendida, até aqui, por Aristóteles.
A nosso ver, a introdução desta forma diferente de entender o bem é
considerada necessária, pelo filósofo grego, para estabelecer o nexo entre
felicidade, moralidade e racionalidade, o que não havia ainda sido feito, de forma
clara, até então. De fato, pelo tratamento anterior, nada parece impedir que um
criminoso, por exemplo, fosse feliz, desde que alcançasse seus objetivos e
estruturasse bem sua vida em função deles. Claro, podíamos considerar que a
desonra relativa a esta atividade, o fato das virtudes serem constitutivas da
eudaimonia, ou a dificuldade de organizar este tipo de “bem” de uma maneira
realmente racional, indicassem que uma pessoa viciosa não pudesse ser feliz. Mas
nada na exposição de Aristóteles negava, de forma clara, esta possibilidade. Isto
se deve ao fato, justamente, da descrição feita até então ser ainda demasiadamente
subjetivista, flertando com o relativismo, o que tende a minar a ligação entre

46
TUGENDHAT, 2003, p. 242-243.
47
URMSON, 1988, p. 20.
27

eudaimonia e moralidade.
A definição do bem “do homem”, assim, parece ser uma forma encontrada
pelo estagirita de elaborar uma concepção mais objetiva do bem. Esta objetividade
é obtida, como vimos, a partir de uma remissão à natureza humana, o que permite
chegar a uma versão mais racionalista da eudaimonia. Como veremos mais
adiante, esta “atividade racional”, implicada na definição de felicidade que
decorre do argumento do érgon, levará à noção de phrónesis ou de sabedoria
prática, sem a qual um indivíduo não pode ser virtuoso e feliz, no sentido pleno do
termo. A partir desta noção, será possível afirmar que um ladrão bem-sucedido
não possui realmente uma vida lograda, ainda que acredite nisso, pois é
impensável que um homem prudente se torne criminoso.48
Esta é assim, a nosso ver, a função do argumento do érgon dentro da ética
aristotélica: estabelecer uma conexão forte entre eudaimonia e racionalidade,
através de uma noção mais objetiva de bem, elaborada a partir da remissão a uma
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dimensão naturalista. 49 Resta ainda estabelecer como esta concepção pode ser
compatibilizada com aquela apresentada antes, onde o bem é visto como o que é
visado por nossas ações. Como dissemos anteriormente, que sentido há em
considerar que todo homem “deseja” exercer virtuosamente sua função enquanto
homem?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o bem “do” homem não é,
obviamente, substantivo, isto é, não é algo externo que procuramos obter através
de nossas ações. Fazendo um paralelo com o que vimos acerca da interpretação
inclusiva e exclusiva da eudaimonia, podemos considerar que se trata de um fim
de segunda ordem, ou seja, da maneira pela qual estabelecemos, obtemos ou
organizamos nossos bens primários. A phrónesis, entendida como excelência
racional, poderia, talvez, contribuir para a obtenção e organização (de acordo com
uma ordem de prioridades etc) destes bens. Esta seria uma visão um tanto o
quanto instrumentalista da sabedoria prática, mas, como veremos, Aristóteles dá
abertura para este tipo de interpretação. No entanto, o argumento da “função” com
48
Podemos relacionar este ponto ao comentário de Rosalind Hursthouse que citamos
anteriormente (nota 18): o conceito moderno de “felicidade” não é uma boa tradução para
eudaimonia por ser demasiado subjetivo. Neste sentido, o argumento do érgon pode ser visto
como a maneira encontrada pro Aristóteles para evitar este problema, levando a eudaimonia a
adquirir o sentido, julgado mais adequado por esta autora, de “felicidade verdadeira”.
49
Cf. GAUTHIER & JOLIF, 1970. p. 289, tradução nossa: “o que caracteriza a conduta humana
não é a procura do bem, agathon, e sim a intervenção da razão: com a razão aparece o bem moral
(...)”.
28

certeza nos diz bem mais do que isso: não seria preciso, de fato, um raciocínio tão
elaborado para chegar a uma conclusão tão óbvia, a de que o bom exercício da
razão é necessário para a obtenção e estruturação de nossos fins. O érgon é uma
reflexão sobre a natureza do bem: seu objetivo, portanto, não é simplesmente
mostrar como podemos realizar melhor a concepção exposta anteriormente, mas
sim modificá-la e complementá-la.
Podemos considerar que o que é realizado, aqui, é um deslocamento na
compreensão da eudaimonia, da esfera do simples desejo para a esfera da razão e
da moralidade. Será possível afirmar, então, que para ser feliz não basta apenas
satisfazer nossos desejos, é preciso, ainda, desejar bem. Esta mudança não chega,
obviamente, a romper com a visão anterior: a eudaimonia será ainda entendida a
partir de nossos anseios e apetites, mas estes, por sua vez, deverão se conformar à
razão, e, portanto, à moral. A obtenção de nossos fins será então uma condição
necessária, porém não suficiente, para a felicidade, pois estes fins precisarão ainda
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ser determinados por um “bom” desejo. Este, como veremos, será aquele no qual
nossas inclinações – para usar um vocabulário kantiano - se harmonizam com a
sabedoria prática. Se entendermos o érgon humano como um bem de segunda
ordem, como dissemos acima, então este não se refere apenas à maneira pela qual
obtemos e organizamos nossos bens primários, mas também, e, talvez, sobretudo,
à maneira pela qual nós os determinamos.50 O homem prudente, phrónimos, será
aquele capaz de enxergar o “verdadeiro bem”. O argumento do érgon, assim,
permite complementar e aperfeiçoar a concepção anterior de eudaimonia,
acrescentando-lhe a dimensão da razão e da moralidade, e tornando possível
concluir, como veremos, que o vicioso bem-sucedido não é realmente feliz,
mesmo que acredite sê-lo.51
Este aspecto será importante na comparação com Kant, pois podemos
considerar que a crítica deste último ao “eudaimonismo” se aplica, sobretudo, à

50
Sem isso, não seria possível diferenciar o prudente da “habilidoso”, como faz Aristóteles.
Segundo Aubenque, a habilidade, enquanto capacidade para facilmente realizar fins, combinando
os meios mais eficazes de atingi-lo, é indiferente à qualidade do fim. O habilidoso só vê o bem
quando a virtude moral o faz voltar-se para o que é bom, e, portanto, é possível ver a prudência
como a “habilidade do virtuoso” (AUBENQUE, 2008, p. 101). Cf. HARDIE, 1968, p. 236: “to
have pratical wisdom is to be able to envisage good ends and not only to be able to see how they
can be attained”.
51
Para ilustrar este ponto, podemos citar este trecho, posterior ao argumento do érgon: “Se as
atividades são, como dissemos, o que dá caráter à vida, nenhum homem feliz pode tornar-se
desgraçado, pois ele jamais praticará atos odiosos ou ignóbeis” (ARISTÓTELES, EN I-10
[1100b35]).
29

concepção que parecia estar sendo exposta no início da Ética a Nicômaco – a


felicidade como satisfação de nossos desejos, organizados de forma coerente e
harmoniosa. A modificação realizada pelo argumento do érgon, no entanto, leva a
uma versão da eudaimonia que não poderia ser completamente descartada por
Kant, pois ela estabelece uma relação intrínseca entre razão e moralidade com a
qual o filósofo alemão, em princípio, concordaria. Como diz Gauthier, “(...) a
moral de Aristóteles não é um ‘eudaimonismo’ no sentido kantiano do termo: o
bem humano (que se pode chamar de felicidade se se quiser) é primeiramente o
bem da razão, é a atividade que a razão, por tê-la reconhecido como sua perfeição
própria, se coloca como fim a ser perseguido”. 52 Este aspecto não elimina
completamente a crítica kantiana ao eudaimonismo, pois o argumento do érgon
não chega a romper com a concepção anterior, apenas modificando-a: a atividade
da alma em consonância com a virtude ainda será vista como a felicidade do
homem. No entanto, o fato desta felicidade ser compreendida a partir da relação
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entre razão e moralidade será importante em nossa tentativa de aproximar a ética


de Kant da dos antigos, como veremos mais adiante.
No eudaimonismo aristotélico há, assim, uma relação intrínseca entre
desejo e racionalidade, e é exatamente nesta relação que consiste a moralidade.
Podemos nos perguntar, agora, como se dá esta ligação. O desejo, de fato, não
pode ser “diretamente” determinado pela razão - como veremos, este aspecto está
ligado ao fato de que os gregos não possuíam uma concepção de vontade
autônoma, como ocorre em Kant. O processo pelo qual nossas inclinações se
harmonizam com a phrónesis será, portanto, complexo, e não é à toa que o
filósofo grego começa a analisá-lo já no final do livro I, logo após determinar qual
é a função do homem.
Antes de tratar deste assunto, no entanto, Aristóteles ainda aborda outros
temas, relacionados à definição da eudaimonia que acaba de apresentar, e que não
nos interessam diretamente neste momento, mas vamos citá-los aqui rapidamente,
para que nossa análise da exposição feita no livro I não fique incompleta: o
filósofo grego procura, por exemplo, enfatizar a compreensão da eudaimonia
como uma atividade (e)ne/rgeia), e não uma mera posse (dá como exemplo os
Jogos Olímpicos, onde não são necessariamente os atletas mais belos e fortes que

52
GAUTHIER & JOLIF, 1970. p. 297 (tradução nossa).
30

vencem, mas os que competem).53 Este ponto será relevante para nós futuramente,
pois deixa claro que a ação não é considerada “boa” apenas por ter sido realizada
por alguém reconhecidamente virtuoso: é preciso, por assim dizer, que a virtude
esteja presente no momento do agir, o que afeta o problema, central em nossa tese,
de determinar de onde é derivado o valor moral do ato. Aristóteles também faz um
rápido comentário sobre a relação entre felicidade e prazer, que ele analisará de
forma mais aprofundada posteriormente (livros VII e X), chegando à conclusão de
que só as ações virtuosas são aprazíveis em si mesmas, e que a felicidade é a mais
nobre e aprazível coisa no mundo. 54 Aborda então a questão de como os bens
exteriores afetam a felicidade. Este é um ponto importante, pois se trata de uma
das principais diferenças entre a concepção do estagirita e as de outros autores do
mundo antigo, notadamente os helênicos: para estes, de fato, a virtude tende a ser
vista como uma condição necessária e suficiente para a felicidade – é a chamada
“ataraxia” (a)taraci/a) -, ao passo que para o estagirita as virtudes são condições
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necessárias, porém não suficientes, 55 o que significa que os bens exteriores


contribuem, de alguma forma, para a eudaimonia.56 Esta contribuição pode se dar
de várias formas; aqui, Aristóteles, apenas introduzindo a questão, se refere ao
fato de que não se pode praticar determinados tipos de ação sem os meios
necessários.57 Este aspecto o leva a abordar outro tema - se uma pessoa pode ser

53
ARISTÓTELES, EN I-8 [1099a-10]. Como comentam Gauthier & Jolif, esta seria uma
diferença importante com a concepção platônica, pela qual a felicidade estaria na posse (κτησις) da
virtude (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 31-32 (tomo II)).
54
ARISTÓTELES, EN I-8 [1099a20-30].
55
AUBENQUE, 2008, p. 128-129.
56
Em relação a este ponto, Zingano comenta que as virtudes são causas “próprias” da felicidade,
enquanto os bens exteriores são causas “coadjuvantes”. Sem estes últimos, no entanto, não é
possível ser feliz (ZINGANO, 2007, p. 90). Segundo Gauthier & Jolif, a atividade virtuosa é a
essência da felicidade (gênero + diferença específica), enquanto os bens exteriores seriam atributos
ou instrumentos necessários (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 75 (tomo II)). Aristóteles voltará a
tocar neste ponto no livro X, comentando que o homem feliz (sendo que aqui a felicidade já é
considerada como “contemplação”) também necessita de bens exteriores, como a saúde, mas
apenas de forma moderada: “mesmo com recursos moderados, pode-se proceder virtuosamente
(...) basta que tenhamos o necessário para isso, pois a vida das pessoas que agem em conformidade
com a virtude será feliz” (ARISTÓTELES, EN X-8 [1179a4]).
57
Aristóteles aproveita esta questão para mostrar que sua concepção de felicidade, resultante do
argumento do érgon, confirma a definição da política como ciência do sumo bem: o fato de muitas
vezes precisarmos de bens exteriores para exercer nossa virtude mostraria que eudaimonia e
política estão intrinsecamente ligados, e que o principal empenho desta última é “fazer com que os
cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações” (ARISTÓTELES, EN I-9 [1099b-1100a]).
Segundo Gauthier & Jolif, Aristóteles divide os bens exteriores em duas categorias: a primeira,
como vimos, são aqueles necessários para o próprio exercício da virtude, designados pelo termo
técnico de “instrumentos” (não se pode ser magnânimo sem dinheiro, por exemplo). A segunda
categoria, mais problemática para a ética aristotélica, são aqueles bens que parecem ser necessários
31

considerada “feliz” ainda viva ou só depois de morta -,58 e, de forma interligada, o


problema da dignidade do homem virtuoso diante dos infortúnios. Este último
ponto nos interessa mais diretamente, pois, como veremos, o conceito de
“dignidade” é central para a moral kantiana. Em Aristóteles, este aspecto está
ligado ao papel secundário que os bens exteriores exercem em nossa felicidade, se
comparado ao das virtudes (aqueles estando muitas vezes diretamente
subordinados a estas, de forma instrumental, como vimos). Podemos assim
considerar que o argumento do érgon, ao conferir uma dimensão moral à
eudaimonia, reforçou ainda mais aquilo que já havíamos comentado: trata-se de
um conceito de bem diferente da noção moderna de felicidade, no qual se baseia,
como veremos, a crítica kantiana ao eudaimonismo. É possível ser feliz mesmo
diante dos desvarios da fortuna, se nossas ações estiverem de acordo com a
“atividade da alma conforme a virtude”. No entanto, como também já
comentamos, a eudaimomia ainda está relacionada à dimensão do desejo, e, neste
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sentido, pode ser aproximada do que entendemos por felicidade. Neste sentido é
que para Aristóteles os bens exteriores contribuem sim para a vida lograda, ainda
que de forma secundária.
Finalmente, no final do livro I, o autor grego começa a analisar a natureza
da virtude, em função de uma divisão da alma humana em três partes. Esta análise
decorre diretamente do argumento do érgon, como o próprio autor procura deixar
claro, ao relembrar a conclusão à que havia chegado: “uma vez que a felicidade é,
então, uma atividade da alma conforme a virtude perfeita, é necessário considerar
a natureza da virtude, pois isso talvez possa nos ajudar a compreender melhor a
natureza da felicidade”. 59 Os assuntos que foram tratados anteriormente, que
acabamos de comentar, podem quase ser vistos como uma grande parênteses, em
que foram analisadas algumas conseqüências diretas da definição de eudaimonia a
que se havia chegado, para depois retomar, por assim dizer, o curso principal da
argumentação.
Na verdade, o assunto que é tratado neste último trecho do livro I parece se

para a felicidade, mas não para a atividade virtuosa (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 70-71 (tomo
II)).
58
A conclusão, em relação a este ponto, é que homens vivos podem ser considerados felizes se
satisfizerem as condições apontadas – agir conforme a virtude e sendo suficientemente providos de
bens exteriores, por toda a vida (ARISTÓTELES, EN I-10 [1101a15-23]).
59
ARISTÓTELES, EN I-13 [1102a5]. Gauthier & Jolif consideram que esta tradução,
tradicionalmente adotada, está equivocada, pois a questão não seria compreender “o que é” a
virtude, mas sim como é possível adquiri-la (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 89 (tomo II)).
32

referir mais ao livro II, pois não se ocupa mais da eudaimonia, passando a se
concentrar na questão da virtude. A tradução francesa de Richard Bodëus, por
exemplo, divide a primeira e a segunda parte da Ética a Nicômaco neste ponto.
Nós também seguiremos esta repartição temática, considerando assim finalizada
nossa análise da noção de eudaimonia, exposta por Aristóteles no livro I.60
2.2
As virtudes morais como harmonização de nossos desejos com a
razão
Como já dissemos, o objetivo de nosso trabalho, nesta primeira parte, é
realizar uma análise da ética aristotélica, procurando determinar qual é sua
estrutura a partir da relação entre três elementos: razão prática, virtude e valor
moral da ação. No primeiro capítulo, vimos que o argumento do érgon exerce um
papel fundamental nesta relação, conferindo uma dimensão moral-racional à
felicidade. Como a razão é aquilo que é específico ao homem, ser um “bom
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homem” estará ligado à excelência racional. A noção de virtude também surge


nesta definição, enquanto diferença específica que permite distinguir o simples do
bom exercício da razão.
O argumento do érgon, assim, estabelece uma relação intrínseca entre
moral e racionalidade, e, portanto, entre virtude e razão. Mas “virtude”, aqui,
ainda parece possuir um sentido demasiado intelectual. Para analisarmos como o
valor moral da ação é compreendido a partir de elementos aretaicos – um dos
temas centrais de nosso trabalho – é necessário, ainda, determinar como os atos de
um indivíduo podem ser determinados por sua razão. Ora, nossas ações resultam
de nossos desejos, que determinam os fins que buscamos (Aristóteles ainda não
abordou explicitamente a noção de desejo, mas este está implícito em sua
definição de “bem” como aquilo que visamos ao agir). Desta forma, a questão
passa a ser determinar como nossas inclinações podem se acordar 61 com a
excelência racional.

60
Como diz Hardie, a divisão da EN em livros não corresponde exatamente àquilo que nós
chamamos hoje em dia de “capítulos”. Às vezes há a transição entre assuntos diferentes dentro de
um mesmo livro, ou um mesmo assunto dividido em dois sem motivo claro (como ocorre com a
amizade, nos livros VIII e IX), algumas passagens são repetidas sem necessidade etc (HARDIE,
1968, p. 1-3). O fato de todos os livros terem o mesmo tamanho sugere, de fato, que o critério de
divisão pode ter sido o comprimento do material usado para registrá-los (papiros etc), embora haja
claramente um esforço de tratar de um tema diferente dentro de cada unidade de comprimento.
61
Obviamente, ainda não está claro o que entendemos por “em acordo”, mas esta expressão se
tornará mais clara no decorrer de nossa análise.
33

É exatamente este assunto que Aristóteles aborda ainda no final do livro I,


a partir de uma investigação sobre a natureza de nossa alma. Esta análise é
necessária para compreender a essência da virtude, implicada na definição de
eudaimonia, pois a felicidade é uma atividade de nossa psiqué: assim,
“entendemos por virtude humana não a do corpo, mas a da alma”.62 O filósofo
grego realiza então uma divisão desta em três partes ou faculdades, de maneira
relacionada às formas de vida ou biós que, como vimos, ele citou anteriormente,
ao falar das opiniões correntes sobre a felicidade e no próprio argumento do érgon.
Uma primeira distinção é feita entre uma parte racional e outra desprovida de
razão; esta última é subdividida, por sua vez, em duas: uma de nutrição e
crescimento – comum a todos os seres vivos, inclusive aos vegetais, e que por isso
não faz parte da excelência humana -, e uma que, embora seja irracional,
“participa” da razão. Trata-se da parte apetitiva ou, em um sentido mais geral,
desiderativa. Esta teria três funções – sensação, apetites e movimento -, e, embora
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seja irracional, é capaz de ouvir a razão, mesmo que na prática isto nem sempre
aconteça. A existência desta parte de nossa alma é constatada, por Aristóteles, a
partir do fenômeno da incontinência (que será mais desenvolvido no livro VII). Os
impulsos do incontinente, de fato, parecem resistir e se opor à razão, ao passo que
o homem continente é aquele onde “este elemento irracional obedece ao
racional”.63 Como diz Gauthier & Jolif, o caso do incontinente mostra que a parte
desiderativa é distinta da racional, e o caso do continente mostra que a primeira
pode obedecer à segunda.64
Ao dividir a alma humana em três “partes” ou faculdades, Aristóteles
parece estar seguindo de perto a tradição platônica. Na República, de fato, Platão
realiza a conhecida distinção entre a alma apetitiva (e)piqumhtiko/n), ativa ou
irascível (θυµικόν) e racional (logiko/n), cada uma correspondendo a uma virtude,
respectivamente a temperança (σωφροσύνη), a coragem (a)ndrei/a) e a sabedoria
(sofi/a ou fro/nhsij), a quarta virtude, a justiça (dikaiosu/nh), sendo a harmonia
entre elas. É preciso considerar, no entanto, que a tripartição aristotélica difere da
de seu antigo mestre em pontos importantes: como comenta Reale, em Platão esta
divisão, que determina as funções da alma visando explicar o comportamento

62
ARISTÓTELES, EN I-13 [1102a15].
63
ARISTÓTELES, EN I-13 [1102b10-1103a5].
64
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 96 (tomo II).
34

humano, é feita a partir de uma concepção idealista de nossa psiqué, pela qual o
corpo é visto como seu “cárcere”. A posição do estagirita, por outro lado, seguiria
um viés não só psicológico, mas também biológico, procurando determinar quais
são as funções essenciais do fenômeno da vida. Este fenômeno pressuporia
determinadas “operações constantes, nitidamente diferenciadas, e a alma,
enquanto princípio de todos os seres vivos, deve ter capacidades ou partes que
presidem e regulam estas operações”.65 Podemos enxergar aqui, mais uma vez, a
importante dimensão naturalista da ética aristotélica. Outra diferença significativa,
comentada por Gauthier & Jolif, é que para Platão a alma se divide em partes no
sentido próprio do termo, ocupando, inclusive, locais separados (a inteligência se
situaria na cabeça, a irascibilidade no peito, e a concupiscência no ventre),
enquanto para Aristóteles tratar-se-ia mais de uma distinção entre potências ou
faculdades, que possuiriam definições – ou seja, essências – diferentes.66
Os comentadores também discutem se a concepção de ψυχή apresentada
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na EN pode ser relacionada àquela que encontramos no mais célebre tratado de


Aristóteles sobre o assunto, o Da Alma. Esta discussão gira em torno da noção de
alma como enteléquia ou “forma” do corpo.67 Esta tese, de fato, não é citada em
nenhum momento da Ética a Nicômaco, e não se sabe ao certo se ela só foi
desenvolvida posteriormente. 68 É preciso considerar que as idéias do Da Alma

65
REALE, 2007, p. 80-81.
66
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 94 (tomo II).
67
“A substância formal é a enteléquia, sendo a alma conseqüentemente a enteléquia de um corpo
deste tipo” (ARISTÓTELES, DA II-1 [412a20]). Esta descrição da alma se insere dentro da teoria
hilemórfica de Aristóteles, pela qual forma e matéria constituem um composto e só podem ser
separadas por abstração.
68
Gauthier et Jolif, por exemplo, consideram que ao escrever seu principal tratado de ética
Aristóteles “nem suspeitava” de sua teoria da enteléquia (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 56
(tomo II)). Já Nuyens desenvolveu a famosa tese da “posição intermediária”, pela qual a
concepção de alma apresentada na Ética a Nicômaco se situa entre o platonismo dos primeiros
escritos do estagirita e o que vemos no Da Alma, pois na EN ainda é aceita a distinção entre alma e
corpo, mas a relação entre as duas não é mais degradante e contra a natureza (ou seja, a alma não é
mais prisioneira do corpo) (NUYENS, 1973). Esta posição foi adotada por outros comentadores,
como Ross, e rejeitada por outros, como Hardie, que considera que as duas obras – Ética a
Nicômaco e Da Alma – estão de acordo quanto à descrição da natureza humana (HARDIE, 1968, p.
73). Hardie cita duas passagens da EN – 1178a19-21 e 1177b26-9 - em que Aristóteles descreve a
natureza humana como um composto (suntheton), provavelmente se referindo à alma e ao corpo, o
que pressuporia a doutrina da entelequia. Tendemos a concordar, no entanto, com a posição de
Bodëus, para quem o “composto”, aqui, é aquele entre razão e desejo, o que é bem mais relevante
para a ética aristotélica (ARISTOTE, 2004, p. 528 (nota do tradutor Bodëus)). A nosso ver, se
levarmos em conta apenas o trecho que se situa no final do livro I, a tese da concepção
intermediária é a mais adequada: por um lado, há com certeza uma ligação intrínseca entre alma e
corpo, pois, como disse Reale, as divisões da psiqué são descritas a partir de suas funções no
fenômeno da vida – isto é particularmente claro no caso da parte vegetativa, responsável pela
nutrição e crescimento. Por outro lado, corpo e alma parecem ser tratados como entidades
35

podem, mesmo assim, já ter sido desenvolvidas, pois na Ética a Nicômaco


Aristóteles não parece estar preocupado em ser muito preciso nestas questões: de
fato, ao afirmar que o político deve estudar a alma – pois a política é a ciência do
sumo bem –, ele acrescenta que este estudo deve ser “apenas o quanto baste para
as questões que estamos discutindo. Uma precisão maior exigiria, talvez, um
esforço maior do que necessitamos para os nossos objetivos”.69 Mais adiante, ao
introduzir a divisão principal da alma entre racional e irracional, nos diz que a
natureza específica desta distinção – o que remeteria diretamente às discussões do
Da Alma - “não tem importância alguma na discussão presente”. 70 O filósofo
grego já havia adiantado que faria referência, aqui, aos escritos exotéricos – ou
seja, destinados ao grande público -, que, podemos supor, não têm o mesmo grau
de formalismo e rigor técnico dos textos esotéricos, internos ao Liceu.71
Estas questões, assim, não são relevantes para a presente discussão, que é
essencialmente ética: o que realmente importa, na tripartição da alma apresentada
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aqui, é que a parte responsável por nossas ações – a desiderativa –, embora seja
irracional, é capaz de se harmonizar com nossa parte racional. Como diz Zingano,
para Aristóteles “o desejo humano é tal que sempre tem de poder acolher
razões”.72 Não seria nenhum exagero afirmar que é exatamente nesta capacidade
que se funda a ética aristotélica.
O que faz que exista uma ordem moral e que esta ordem seja própria ao homem, é
a dualidade de sua natureza: abaixo da razão, há no homem uma i-razão
[irraison] e a moral nasce quando a sabedoria, tendo reconhecido o fim da razão,
o impõe à i-razão: então nasce de fato o bem moral (kalon), então nasce o dever
(dei), e eles nascem do imperativo pelo qual a razão prescreve à i-razão perseguir
o bem que é dela própria, da razão: a obrigação moral não é outra coisa para
Aristóteles que este imperativo da razão.73

É interessante observar como a linguagem utilizada por Gauthier & Jolif,


aqui, lembra Kant: “imperativo”, “prescrição”, “obrigação”, “dever” etc. De fato,
a aproximação que realizaremos entre o filósofo grego e o alemão passa pela

separadas (o que contraria a tese monista da entelequia), pois, como vimos, o estagirita afirma
entender por virtude humana “não a do corpo, mas a da alma”.
69
ARISTÓTELES, EN I-13 [1102a25].
70
ARISTÓTELES, EN I-13 [1102a30].
71
Como diz Bodëus, não se sabe ao certo que escritos exotéricos seriam estes: “ces remarques
écartent expressément, comme superflues aux besoins de la politique, les théories approfondies
qu’Aristote lui-même développe sur l’âme en sa qualité de naturaliste. En échange, le philosophe
renvoie le politique à des arguments dits ‘extérieurs’ dont il va faire usage. On ne sait pas
exactement à quoi identifier ces arguments” (ARISTOTE, 2004, p.95 (nota do tradutor Bodëus)).
72
ZINGANO, 2007, p. 106.
73
GAUTHIER & JOLIF, 1970. p. 297, tomo I (tradução nossa).
36

relação intrínseca que existe, para ambos, entre moral e racionalidade, o que leva
a noção de “razão prática” a ocupar um lugar central nas duas éticas. No entanto,
o uso destes termos tipicamente kantianos pode ser considerado, como veremos,
exagerado, pois o desejo aristotélico, embora suscetível de “ouvir” a razão, não
pode ser diretamente determinado por esta - ou seja, não pode obedecer-lhe de
uma forma tão imediata, como ocorre com a vontade em Kant. Como já dissemos,
nossa tese consiste em procurar demonstrar que, levando-se em conta esta
diferença – a concepção kantiana de uma vontade autônoma, que não existia para
os antigos -, é possível ainda enxergar uma estrutura similar nas duas éticas.
O ponto que está sendo tratado aqui, portanto, é essencial para nossa tese:
Aristóteles está analisando como nossas ações podem ser determinadas por razões,
e é nesta determinação que estará, como veremos, o seu valor moral. Para que isto
ocorra, é necessário que nossos desejos estejam harmonizados com estes
preceitos, o que leva à noção, central para a ética aristotélica, de “desejo racional”
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(βούλησις). A virtude será compreendida, justamente, a partir desta harmonização.


No final do livro I da Ética a Nicômaco começa a se delinear, portanto, a relação
entre razão prática, virtude e valor moral da ação, que é o tema central de nosso
trabalho.
É preciso considerar que esta acepção de virtude, enquanto acordo da parte
desiderativa de nossa alma com a racional, é um pouco diferente da do termo
“virtude” que vimos no argumento do érgon. Ali, de fato, tratava-se simplesmente
do bom exercício da razão, enquanto aquilo que é específico ao homem. Aqui,
estamos falando de como nossos apetites podem se harmonizar com este
exercício. É preciso distinguir, assim, duas espécies de virtude, as intelectuais
(dianoétikai) e as morais (éthikai), ambas incluídas, portanto, no gênero de
“virtude” implicada na função do homem. Encontramos aqui, mais uma vez, a
distinção apresentada anteriormente entre vida contemplativa e vida política:
vimos que a felicidade desta última – intrinsecamente ligada à ética para
Aristóteles – está na honra, mas um tipo específico de honra, relacionada às
virtudes. Estas são, assim, as virtudes éticas, das quais o filósofo grego passará a
se ocupar daqui em diante, até o livro VI, em que falará da sabedoria prática, que,
embora seja uma virtude intelectual, está estreitamente ligada às excelências
morais.
No início do livro II Aristóteles começa a investigar o processo pelo qual
37

nossos desejos podem se harmonizar com a razão humana, já levando em conta a


diferença, que acaba de ser estabelecida, entre as virtudes morais e as intelectuais.
Estas últimas, por sua natureza, podem ser adquiridas pelo ensino, mas não as
primeiras, que resultam do “hábito” (e/(qoj, também traduzido por “costume”), daí,
justamente, a proximidade etimológica com h(/qoj, “caráter” ou “moral”. É preciso
considerar que esta pode não ser uma boa tradução – como comenta Hardie, ações
habituais são aquelas que realizamos de forma um tanto o quanto automática,
quase sem nos darmos conta, o que não parece ser o caso dos atos virtuosos. O
comentador sugere que algo como “treino” talvez fosse uma tradução mais
apropriada, embora ainda não inteiramente correta, pois há algo de mecânico nos
atos treinados, e, como veremos, o agente virtuoso deve ter conhecimento e
realizar escolhas.74 Esta forma de compreender o “hábito”, no entanto, pode estar
próxima do sentido visado por Aristóteles, pois este termo parece estar sendo
utilizado para designar um estágio inicial do desenvolvimento das virtudes, onde
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talvez caiba uma descrição mais mecânica, baseada na mera repetição. Daí,
justamente, o estagirita estabelecer, ainda no início do livro II, que as virtudes são
como as artes, ou seja, são adquiridas pelo exercício75 – é o tipo de coisa que “só
se aprende fazendo”, como dizemos popularmente. O filósofo grego conclui,
assim, que “tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo
moderadamente, e igualmente com a coragem, etc”.76
Obviamente, não podemos chamar uma pessoa de virtuosa apenas porque
ela age desta ou daquela maneira: a simples exterioridade da ação não nos diz qual
é o seu mérito. Como veremos mais adiante, este mérito estará ligado à disposição
interna do agente. Este aspecto se relaciona a questões que serão discutidas
posteriormente, como a da voluntariedade e a compreensão da virtude própria a
partir da phrónesis, ou seja, da capacidade de agir por razões, e não apenas por
costume. Aqui, no entanto, Aristóteles ainda está falando do processo pelo qual
adquirimos as disposições adequadas, que são necessárias, como veremos, para

74
HARDIE, 1968, p. 104. Hardie é seguido, neste aspecto, por Urmson, que considera que
“treino” (training) é uma melhor tradução do que “hábito” (habituation). O comentador cita como
exemplo o hábito de vestir uma meia antes da outra quando nos vestimos, o que, obviamente, não
serve para desenvolver nenhum tipo de disposição (URMSON, 1988, p. 25).
75
ARISTÓTELES, EN II-1 [1103a30].
76
ARISTÓTELES, EN II-1 [1103b]. Mais adiante, temos: “pelos atos que praticamos em nossas
relações com outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos; pelo que fazemos em situações
perigosas e pelo hábito de sentir medo ou de sentir confiança, tornamo-nos corajosos ou covardes”
(ibidem, II-1 [1103b12-20]).
38

podermos posteriormente agir por razões. Portanto, a idéia por trás do princípio de
que “só se aprende fazendo” não é, obviamente, que a simples repetição mecânica
de uma ação seja suficiente para a considerarmos virtuosa, mas sim que esta
repetição é capaz de gerar as disposições adequadas. Como comentam Gauthier &
Jolif, para ser virtuoso não basta realizar as mesmas obras que o homem virtuoso,
é preciso realizá-las como ele as faz. E esta “maneira” de realizá-las estaria ligada
às disposições subjetivas, à “pureza de intenção” do agente.77 A aquisição destas
disposições, assim, é que seria o objetivo do processo. Como diz o estagirita,
“nossas disposições morais nascem de atividades semelhantes a elas”. 78 As
virtudes éticas podem ser geradas, assim, por ações que são as mesmas que,
posteriormente, serão realizadas por virtude. Como dizem, mais uma vez,
Gauthier & Jolif: “a virtude, uma vez adquirida, nos faz realizar (e de uma
maneira mais perfeita, 1104b2) os mesmos atos pelos quais nós a adquirimos”.79
A diferença entre as ações que engendram a virtude e as que se seguem dela
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estaria, assim, na disposição íntima do agente.80 Podemos considerar que toda esta
discussão está relacionada à relação entre ética e política, à qual Aristóteles faz
novamente referência, considerando que os bons legisladores são justamente
aqueles que conseguem incutir, nos cidadãos, hábitos que os tornam bons.81
Podemos nos perguntar, agora, o que seria esta “disposição adequada”,
capaz de ser incutida nos indivíduos pelas atividades ligadas aos costumes. Esta
questão remete, portanto, à investigação realizada um pouco mais adiante, acerca
do gênero da virtude: Aristóteles considera que tudo o que há na alma são
“paixões” ou “afecções” (πάθη), “faculdades” ou “capacidades” (δύναµις), e
“disposições” ou “estados” (e(/cij), e a virtude, portanto, deve necessariamente ser
uma delas.82 O método utilizado para determinar qual delas se baseia na questão
do mérito: de fato, não somos louvados ou censurados por nossas paixões, e nem
pela faculdade de tê-las. As virtudes, assim, só podem ser disposições, ou seja,
“nossa posição em relação às paixões”.83

77
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 128, tomo II.
78
ARISTÓTELES, EN II-1 [1103b20-25].
79
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 124, tomo II (tradução nossa). Cf. ibidem, p. 114, tomo II.
80
“the actions that produce virtue are not in their inner nature but only in their external aspect like
those that virtue produces” (ROSS, 1995, p. 201).
81
ARISTÓTELES, EN II-1 [1103b5].
82
ARISTÓTELES, EN II-5 [1105b20]. Tratam-se das qualidades, citadas nas Categorias (VIII),
que são inerentes a um sujeito físico (ARISTÓTELES, Categ. VIII [8b25-11a40]).
83
ARISTÓTELES, EN II-5 [1105b25-1106a-15].
39

É preciso, obviamente, compreender melhor esta última expressão. Como


diz Zingano, “a disposição é o modo pelo qual o homem se comporta
relativamente às emoções”, e, mais adiante, acrescenta que se trata do “modo
como sentimos as emoções”.84 A idéia de Aristóteles parece ser a de que, embora
não possamos ser elogiados ou censurados pelo simples fato de ter as paixões, ou
pela capacidade de tê-las, nós podemos, sim, ser julgados por ter um
comportamento bom ou mau em relação a estas.85 Podemos enxergar este ponto
como uma tendência estabelecida de sentir as emoções - “toda disposição é um
comportamento estável em relação às emoções”86 -, daí, justamente, a hexis ser
muitas vezes traduzido por um “estado” de caráter. Hardie comenta, neste sentido,
que disposições são definidas em termos de ocorrências – ou seja, tendências a
reagir de determinada maneira em determinadas circunstâncias. 87 Mais adiante,
afirma que as virtudes, enquanto qualidades disposicionais adquiridas, só podem
ser definidas em termos de suas manifestações concretas, e estas definições se
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expressam em afirmações hipotéticas que mencionam as condições destas


manifestações – por exemplo, dizer que um vidro é frágil significa dizer que, em
determinadas situações, como ao sofrer o impacto de um martelo, ele se
quebrará.88 Podemos assim considerar que uma pessoa é considerada “corajosa”
quando pressupomos que ela agirá de forma corajosa em circunstâncias que
exijam esta qualidade. Neste sentido é que as virtudes são “disposições” – ou seja,
tendências a agir de determinada maneira quando a ocasião se apresenta. Estas
disposições seriam adquiridas, como vimos, pelo hábito, ou seja, por ações que se
repetem em uma certa direção, de acordo com os costumes. Este “treino” fixaria
em nós maneiras específicas de nos comportarmos em relação às emoções,
produzindo tendências de reagir às circunstâncias. Podemos considerar, assim,
que a aquisição da virtude - pelo menos neste estágio inicial - se dá quando
determinados estados de caráter se estabilizam em nós, tornando-se propensões.

84
ZINGANO, 2007, p. 145; p. 156. Zingano traduziu o termo grego πάθη por “emoção”, ao invés
de “paixão”.
85
ZINGANO, 2007, p. 156.
86
ZINGANO, 2007, p. 156.
87
Hardie analisa as várias acepções do termo “qualidade” em Aristóteles, concluindo que “to have
a quality is to have, or to lack, a capacity or liability or tendency, whether natural or acquired, to
respond in certain ways, whether actively or passively, to environmental conditions” (HARDIE,
1968, p. 98).
88
HARDIE, 1968, p. 107. Mais abaixo, na mesma página, temos: “To say that glass is brittle is to
say that when hit in a certain way it breaks. To say that a man is generous is to say that, in suitable
circumstances, he will act generously”.
40

Como diz Zingano, a distinção entre uma disposição (διάθεσις) e um estado (e(/cij)
é apenas de grau: “a disposição é um estado tornado fixo”.89
Podemos ficar tentados, aqui, a ver a disposição como uma
“potencialidade”, o que remeteria a outras obras de Aristóteles, notadamente a
Metafísica. Este termo não parece se aplicar aqui, no entanto, pois, como vimos, a
disposição é uma qualidade adquirida, portanto em ato, mas que se manifesta, em
termos de ação, em determinadas ocasiões. A questão da “potencialidade”, porém,
se torna mais relevante se pensarmos na maneira pela qual estes estados ou
disposições fazem referência à “natureza”. Vimos, de fato, que a ética aristotélica
possui uma importante dimensão naturalista, introduzida, sobretudo, através do
argumento do érgon: o bem do homem está relacionado aquilo que é específico à
sua constituição, ou seja, a racionalidade. As virtudes éticas foram definidas,
justamente, a partir da capacidade de nossa alma desiderativa em “ouvir” ou se
“conformar” à razão. Como afirmaram Gauthier & Jolif em uma passagem que
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citamos anteriormente, a moral aristotélica nasce deste dualismo da natureza


humana, que é racional e irracional. Podemos nos perguntar, assim, como esta
dimensão naturalista se liga à tese de que as virtudes são culturalmente adquiridas.
Aristóteles trata deste assunto logo no início do livro II, ao afirmar que
“não é, portanto, nem por natureza nem contrariamente à natureza que as virtudes
se geram em nós; antes devemos dizer que a natureza nos dá a capacidade de
recebê-las, e tal capacidade se aperfeiçoa com o hábito”. 90 Os comentadores
consideram, em geral, que esta passagem remete a uma distinção, realizada pelo
filósofo grego na Metafísica, entre potências racionais e irracionais. As racionais -
ou potências da alma - são “de contrários”, ou seja, suscetíveis de se atualizar em
dois sentidos diferentes, enquanto as irracionais, encontradas nos seres
inanimados, o fazem de uma só forma.91 Isto significa que as potências da alma só
podem se atualizar se algum fator novo intervir, “conduzindo-as”, por assim dizer,
para esta ou aquela direção.92 É exatamente este o papel que exerceria o hábito. O

89
ZINGANO, 2007, p. 376 (nota).
90
ARISTÓTELES, EN II-1 [1103a25]. Cf. HARDIE, 1968, p. 100: “what is natural is the capacity
to acquire virtue by habituation”.
91
“Since some such principles are present in soulless things, and others in things possessed of
soul, and in soul and in the rational part of the soul, clearly some potentialities will be non-rational
and some will be accompanied by reason. (...) And each of those wich are accompanied by reason
is alike capable of contrary effects, bu one non-rational power produces one effect”
(ARISTÓTELES, Meta. IX (Θ) [1146a36-1146b6]).
92
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 108 (tomo II).
41

exercício de determinados tipos de atividade permitiria, assim, que a potência


racional se torne ativa de uma maneira específica, “transformando em estado
habitual uma das duas possibilidades às quais se abria a capacidade natural”.93
Neste sentido é que Aristóteles comenta que as virtudes, assim como as artes, são
geradas e destruídas pelas mesmas causas e pelos mesmos meios: dependendo das
atividades que caracterizam nosso hábito, nos tornamos justos ou injustos,
corajosos ou covardes, temperantes ou intemperantes.94
Baseado nestas considerações, Zingano faz uma distinção entre virtudes
naturais e morais: as primeiras seriam as inclinações com as quais nascemos;
teríamos, assim, tendências naturais para a justiça, coragem etc, e, pela repetição
dos atos em uma direção, nos tornamos justos, corajosos etc. 95 Somente então,
neste último caso, seria possível falar de virtudes morais (neste sentido é que,
como vimos, Aristóteles considera que não somos louvados ou censurados por
termos paixões ou pela capacidade de tê-las, mas somente por nossas disposições,
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adquiridas pelo hábito). No entanto, as virtudes disposicionais também podem ser


chamadas de naturais, por serem atualizações das potências racionais de nossa
alma: “a noção de virtude natural não designa somente as inclinações com as
quais nascemos, mas também, em segundo lugar, de modo mais geral, o modo de
ser natural de nossas virtudes, o que inclui as virtudes adquiridas graças à censura
e correção”.96
Desta forma, embora as virtudes morais sejam fruto dos costumes, elas
possuem uma relação com a natureza humana, pois o hábito direciona e atualiza
potencialidades de nossa constituição. Esta relação é essencial, pois, como vimos,
a ética aristotélica possui uma importante dimensão naturalista, estabelecida pelo
argumento do érgon. No entanto, é preciso lembrar que a “função” do homem nos
diz que seu bem maior está no exercício da razão. Isto significa que a virtude não

93
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 109 (tomo II). Cf. ZINGANO, 2007, p. 262: “uma disposição é
um estado psicológico do agente de agir assim antes do que de modo contrário”.
94
ARISTÓTELES, EN II-1 [1103b13-22]. Cf. GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 111 (tomo II)
(tradução nossa): “se a virtude é o fruto do hábito, no sentido de que a virtude é a atualização em
um certo sentido de uma capacidade natural, e se, por outro lado, esta potência natural, sendo
potência racional, é potência dos contrários, é preciso concluir que a atividade e o hábito podem
gerar não somente a virtude, mas também seu contrário, a saber o vício”.
95
ZINGANO, 2007, p. 404 (nota).
96
ZINGANO, 2007, p. 401. O comentador cita uma passagem da Ética a Nicômaco – [1151a18] –
em que o filósofo grego afirma que as virtudes disposicionais são “naturais ou habituais” (ή
φυσική ή έθιστή). Este aspecto levará Zingano a dizer que os estados adquiridos pelo hábito, que
nos levam a agir em uma certa direção, podem ser chamados de “segunda natureza” ou “natureza
prática” (ibidem, p. 200; p. 263).
42

pode ser apenas um hábito ou uma potência natural. É preciso ir além, e


considerar aquele ponto em que começamos a agir não somente por inclinações,
mas por razões.
Vimos, de fato, que pela concepção teleológica dos gregos, compartilhada
por Aristóteles, a verdadeira natureza de um ente pode ser vista como o “estágio
final” de seu desenvolvimento. Como comenta Bodéüs, a virtude natural não
expressa realmente a natureza racional do homem. 97 Desta forma, quando o
filósofo grego confere à cultura um papel central no processo de aquisição das
virtudes, é preciso considerar que não se trata, aqui, de qualquer cultura. De fato,
o hábito deve incutir nos indivíduos aqueles estados que tornem possível,
posteriormente, o bom exercício da racionalidade. Como comenta, mais uma vez,
Zingano, para Aristóteles a razão não pode operar a não ser que existam
previamente as disposições morais adequadas: é o exercício e o hábito que
decidirá se “o domínio das emoções estará apto ou não ao aperfeiçoamento pela
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razão”.98 Este aspecto está diretamente relacionado à análise da alma humana, que,
como vimos, o filósofo grego realiza no final da parte I: a parte desiderativa é
“capaz de obedecer à razão” (peitarchikon tou logou), como um filho ouve seu pai,
mas nada garante que ela irá, de fato, ouvi-la. Ela só o fará se for educada para
isso (exatamente como na relação entre pai e filho, o que mostra como a metáfora
de Aristóteles é feliz). Como diz Hardie, quando somos crianças tendemos a
obedecer às regras a partir de punições ou recompensas, mas, com o tempo,
passamos a segui-las por considerá-las corretas e razoáveis.99
Estas questões estão ligadas, diretamente, ao tema central de nossa tese.
Como dissemos, nosso objetivo é analisar a relação entre razão prática, virtude e
valor moral da ação, aproximando, neste sentido, as concepções de Kant e de
Aristóteles. A idéia seria mostrar que a principal diferença entre as duas consiste

97
ARISTOTE, 2004, p. 34, (apresentação de R. Bodéüs). Bodéüs comenta a diferença,
estabelecida por Aristóteles, entre uma ação justa “por acidente” e aquela que é realmente justa por
ser deliberada, citando, como referência, uma discussão da parte V sobre a natureza do ato justo
(ARISTÓTELES, EN V-9 [1137a4-30]).
98
ZINGANO, 2007, p. 146; p. 155. Cf. ibidem, p. 379: “o homem virtuoso precisa previamente ter
os bons hábitos para então poder fazer operar em seu interior o ato racional que instaura a
prudência”.
99
HARDIE, 1968, p. 106. Cf. ibidem, p. 37: “in ethical matters the faculty of insight and
understanding can develop only in those who have learned how to conduct themselves and have
acquired a character formed by habituation (ethismos)”. Cf. ZINGANO, 2007, p. 379: “se quem
ouve um argumento não tiver a alma previamente preparada pelos costumes a agir bem, ele não
escutará nem mesmo o compreenderá”.
43

na noção kantiana de uma vontade autônoma, desconhecida pelos antigos. Apesar


disso, ambos estariam concentrados em determinar como nossas ações podem ser
determinadas por nossa razão prática.100
Não podemos nunca esquecer, portanto, que, para o filósofo grego, todo o
complexo processo de formação dos estados disposicionais pelo hábito, que
descrevemos acima, visa viabilizar a operabilidade da razão prática. Neste sentido
é que ele afirma que a virtude só pode ser considerada “perfeita” ou “completa”
quando o indivíduo passa a agir a partir de razões: “depois de ter adquirido razão,
haverá uma diferença no seu modo de agir e sua disposição, e, apesar de continuar
semelhante ao que era, passará a ser virtude no sentido estrito”.101 Mais adiante,
afirma que “na parte moral há dois tipos, que são a virtude natural e a virtude em
sentido estrito, e esta última envolve sabedoria prática”. 102 Como vimos, a
“virtude natural” (fusikh/ a)reth) deve ser entendida, aqui, como incorporando
também as disposições morais adquiridas pelo hábito. O termo “κυρίως”,
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traduzido na versão que estamos usando como “sentido estrito” da virtude, é


aquilo que Zingano chama de “próprio”, “virtude própria”. 103 Desta forma,
somente quando a prudência ou sabedoria prática passa a operar é que o indivíduo
pode ser considerado de fato (“propriamente”) virtuoso. No entanto, a prudência
só pode operar se já existirem as disposições morais adequadas: citando mais uma
vez Zingano, “a virtude moral própria somente pode engendrar-se se o agente
possuir previamente a virtude natural”.104 A virtude no sentido estrito, assim, é
alcançada a partir dos estados que adquirimos através do hábito: “a virtude própria

100
Em Kant, este processo pode ocorrer de forma mais direta, pois a vontade é capaz de seguir a
simples representação da lei, ou seja, princípios racionais - se isto não ocorre sempre na prática, é
porque estas representações competem com as inclinações sensíveis no predomínio sobre a
vontade. A moral kantiana consistirá assim, grosso modo, em uma discussão sobre como nossa
vontade pode se tornar o mais “pura” possível, ou seja, ser determinada exclusivamente pela razão.
Em Aristóteles, embora o objetivo seja, como procuraremos argumentar, similar, o processo não
pode se dar de forma tão direta, devido, justamente, à ausência de uma concepção de vontade. Daí
decorrem duas conseqüências principais: primeiro, nossas inclinações, embora suscetíveis de
“ouvir” a razão, não podem se conformar completamente a ela. Isto significa que sempre haverá
um elemento irracional em nossas ações, ou seja, elas sempre visarão algum fim desejado – daí,
justamente, a dimensão eudaimônica da ética aristotélica, e dos antigos em geral. Segundo: o
processo pelo qual se dará esta conformação é longo e complexo, por isso a ênfase muito maior
dada por Aristóteles à cultura e à educação, em comparação a Kant.
101
ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b12-13].
102
ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b15-20].
103
Ross, na versão oficial de Oxford, usa uma forma similar à nossa tradução em português,
excellence in the strict sense (ARISTOTLE, 1995, p. 1807), enquanto Bodéüs traduz como virtude
no “sentido forte”, sens fort (ARISTOTE, 2004, p. 339).
104
ZINGANO, 2007, p. 401. Cf. ibidem, p. 379: “o homem virtuoso precisa primeiramente ter os
bons hábitos para então poder fazer operar em sue interior o ato racional que instaura a prudência”.
44

é a virtude natural tornada perfeita pela apreensão de razões”.105


Mais adiante, ao falar da prudência, discutiremos como se dá este
aprimoramento da virtude disposicional a partir da apreensão de razões. Por ora, o
que nos interessa salientar é que a educação realizada pelo hábito aponta nesta
direção, ou seja, visa gerar em nós aquelas disposições que tornarão
posteriormente possível ao indivíduo agir a partir da phrônesis ou sabedoria
prática. Talvez possamos considerar que os costumes realizam uma espécie de
“ponte” entre nossa natureza racional e o exercício ativo desta potencialidade.
Esta visão estaria de acordo com a compreensão do érgon como um estágio final
ou uma “realização” (flourishing, épanouissement). Esta ligação, no entanto, não
pode ser realizada por qualquer costume. Neste sentido, podemos considerar que,
quando Aristóteles enfatiza o papel do hábito na aquisição da virtude, ele está se
referindo àquele tipo de cultura específica que pode ser encontrado nas cidades-
estado gregas.
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A tese de que os costumes são importantes para que nossa natureza


racional se realize também pode ser compreendida como uma tentativa, da parte
de Aristóteles, de “sintetizar”, por assim dizer, as principais teorias sobre a
aquisição da virtude que existiam em sua época. De fato, a idéia de que a virtude
possui uma dimensão naturalista é característica da sociedade aristocrática arcaica,
onde a arétè tendia a ser vista como algo inato, um dom da natureza.106 Por sua
vez, a visão de que ela é adquirida culturalmente pode ser relacionada ao

105
ZINGANO, 2007, p. 400 (Cf. ROSS, 1995, p. 202: “the definition of moral virtue involves a
reference to an intellectual virtue. Moral virtue is not complete in itself”). O termo τελειον, em
grego, pode ser traduzido como “perfeito” ou “completo”. Zingano considera que é preciso
distinguir os dois sentidos aqui, a virtude “perfeita” estando para a prudência como a virtude
“completa” está para a felicidade (ibidem, p. 400 (nota)). Esta discussão não interfere diretamente
com o que estamos discutindo, e assim não estamos fazendo esta distinção.
106
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 108 (tomo II). Neste comentário sobre a “síntese” realizada por
Aristóteles das diversas visões sobre a aquisição das virtudes, seguiremos, basicamente, a análise
de Gauthier & Jolif. Em relação à visão aristocrática, estes autores mostram como ela está
relacionada à compreensão originária da areté como a virtude do guerreiro, necessária para a
obtenção da glória (ibidem, p. 102). Aubenque comenta, em relação a este ponto, que o
naturalismo de Aristóteles é menos etnocêntrico que era o da Grécia arcaica aristocrática, pois se
trata da “natureza humana”, e não mais da excelência de uma raça ou classe específica
(AUBENQUE, 2008, p. 84). É preciso considerar que não deixa de haver ainda um certo
etnocentrismo em Aristóteles, devido, por exemplo, à importância cultural conferida às cidades-
estado em comparação com os países “bárbaros”, como já comentamos. Mesmo internamente, é
possível enxergar na ética do filósofo grego um certo aristocracismo, ligado, sem dúvida, à forte
estratificação da sociedade grega naquela época (Cf. ARISTÓTELES, EN I-5 [1095b15]. Cf.
HARDIE, 1968, p. 38: “for he [Aristotle] believes that the mass of mankind have no conception of
the best kind of life and make pleasure their paramount aim”). Cf. GAUTHIER & JOLIF, 1970, p.
165 (tomo II), tradução nossa: “a identificação da retidão moral e a raridade é característica da
moral aristotélica. (...) ela é um aristocracismo: difícil é a virtude, raros os que saberão atingi-la”.
45

humanismo relativista dos sofistas, que procuravam exercer, justamente, este


papel de “educadores”. Já a identificação da virtude com um conhecimento
intelectual – o que implica que ela possa ser ensinada, como uma ciência -, teria
origem, sobretudo, em Sócrates e Platão. Aristóteles está aqui, portanto,
realizando um procedimento que lhe é próprio, ao analisar as diversas opiniões
sobre um determinado assunto e considerar a “parcela de verdade” que pode haver
em cada uma delas. Sua tese, assim, aceita parcialmente as principais visões
existentes em sua época: as virtudes são adquiridas em parte por natureza, em
parte culturalmente e em parte pela apreensão de razões. Como procuramos
argumentar, a ênfase está, sobretudo, nesta última, vista como um “estágio final”
onde as virtudes adquirem seu sentido próprio, se tornando completas ou perfeitas.
Como já dissemos anteriormente, Aristóteles aceita a relação intrínseca entre
razão e moralidade, assim como Kant.
Nossa análise sobre a dimensão do “hábito”, no entanto, ainda não
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terminou: vimos, de fato, que as disposições ou estados que devem ser gerados
pelos costumes são aqueles mais adequados para o bom exercício da razão.
Podemos nos perguntar, agora, que estados são estes. Em outras palavras, após
determinar qual é o gênero da virtude moral – a disposição -, é preciso estabelecer
sua diferença específica. Trata-se, segundo Aristóteles, da mesótes (µεσότης), em
geral traduzida por “meio-termo” (moyen, mean). A idéia por trás da mesótes é
que a virtude é destruída (se torna vício) pelos extremos, ou seja, pelo excesso ou
pela falta.107 Para chegar a esta conclusão, é preciso distinguir o meio termo “no
objeto” daquele que é “para nós”. Em ambos os casos, trata-se de uma
propriedade do que é contínuo e divisível,108 onde pode-se sempre tirar uma parte
maior (to pleion), menor (to élatton), ou igual (to ison). 109 Quando são partes
iguais, podemos falar de um ponto que será eqüidistante das extremidades, ou seja,
no seu “meio” (méson). Este ponto é que, considera Aristóteles, pode ser
considerado em relação ao objeto (por exemplo, uma reta AC com um ponto B

107
ARISTÓTELES, EN II-6 [1106a25-30].
108
A tradução francesa de Bodëus também usa o conjuntivo aqui – “continue et divisible”, mas
Gauthier & Jolif consideram que o καί possui um sentido explicativo – “divisível porque contínuo”
(GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 137 (tomo II)). Os dois autores comentam, mais adiante, que para
Aristóteles as paixões e as ações são movimentos, e o movimento é um contínuo. Neste sentido,
como acabamos de ver, elas precisam aceitar o excesso, a falta e o igual (ibidem, p. 140). Cf.
ARISTÓTELES, EE II-3 [1220b22]: “we must notice that in everything continuous and divisible
there is excess, deficiency and the mean (...). For motion is continuous, and action is motion”.
109
ARISTÓTELES, EN II-6 [1106a25-30].
46

eqüidistante de A e C) ou para nós. No primeiro caso o ponto será único, no


segundo haverá uma infinidade,110 pois, considerado em relação a uma pessoa, o
meio-termo não será mais uma simples proporção aritmética: as duas
extremidades serão “demais” ou “muito pouco”, o que varia de acordo com cada
um, pois faz referência a dados subjetivos. O filósofo grego dá como exemplo
uma determinada quantidade de alimento, que pode ser pouca para um atleta, e
muita para uma pessoa comum.111
As disposições podem, assim, ser divididas em três tipos: duas serão vícios
(excesso e carência), e uma, o meio-termo, é uma virtude.112 A virtude, portanto, é
uma mediania em sua essência ou definição, mas, em relação ao sumo bem e ao
mais justo (ou seja, em termos de valor), ela é, obviamente, um extremo.113
Aristóteles passará um bom tempo descrevendo vários casos particulares
de disposições virtuosas com seus respectivos vícios, nos livros II, III e, sobretudo,
IV, e aproveitará para analisar alguns detalhes da teoria: por exemplo, há casos
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que não admitem meio-termo,114 outros em que não existe a palavra para designar
a falta ou a carência115 etc. Estas questões não afetam diretamente o assunto de
que estamos tratando.116
O que nos interessará, aqui, é a maneira pela qual este tipo específico de
disposição se relaciona ao exercício da razão, já que, como vimos, o hábito deve
incutir nos indivíduos os estados adequados para a operabilidade da razão prática.
Comentamos anteriormente que as disposições são modos de nos comportarmos
em relação às paixões: neste sentido, podemos entender a mediania como a busca
de um equilíbrio entre o “sentir excessivo” e a apatia, o que se traduz como uma

110
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 138 (tomo II). Como veremos mais adiante, em relação a um
sujeito e uma situação específicos só há um meio termo, determinado por uma regra.
111
ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b-10].
112
ARISTÓTELES, EN II-7 [1108b10-15].
113
ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a5-10].
114
ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a10-20]. No fundo, trata-se, pelo menos neste momento, de uma
questão retórica: a maldade, a inveja, o roubo etc não admitem meio-termo porque são noções que
já designam extremos. Como diz Ross, “there is no mean of an excess or a deficiency, as there is
no excess or deficiency of a mean” (ROSS,1995, p. 204).
115
ARISTÓTELES, EN II-7 [1108a5-20].
116
Muitos autores comentam que esta lista de virtudes é claramente cultural, refletindo os valores
da sociedade grega da época (cf. HARDIE, 1968, p. 119; ROSS, 1995, p. 209). Isso não deixa de
ser compreensível, até pela ênfase dada pelo filósofo grego ao papel dos costumes na formação das
virtudes. Mas é possível enxergar, mesmo assim, uma certa contradição com as premissas
naturalistas da ética aristotélica: como comenta Hardie, não é clara a conexão entre esta lista e a
discussão sobre o bem do homem no livro I (HARDIE, 1968, p. 122).
47

forma moderada de experimentarmos nossas emoções.117 Como diz Zingano, “a


razão prática, para Aristóteles, não pode operar a não ser que existam previamente
as disposições morais, isto é, paixões ou emoções moderadas pelo hábito e pelo
exercício”. 118 Já Ross comenta, se referindo ao problema que já abordamos,
acerca dos hábitos capazes de gerar a virtude: “os atos que realizamos quanto
adquirimos as virtudes terão o mesmo caráter de moderação do que aqueles dos
quais a virtude se desenvolve”.119
Podemos nos perguntar, agora, em que medida a razão prática precisaria,
para operar, de disposições moderadas. Para responder a esta pergunta,
precisamos levar em conta algumas características culturais da Grécia no período
clássico. Um dos principais ideais deste período, de fato, é a “justa medida”. As
famosas inscrições sobre o templo de Delfos, atribuídas aos setes sábios, datariam
de 650 a.C. a 550 a.C: “conheça-te a ti mesmo” (γνώθι σαυτόν) e “nada em
demasia” (mhde/n a)/gan). Como comentam Gauthier & Jolif, as duas idéias estão
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ligadas: a medida que o homem deve manter em tudo é imposta pelo


conhecimento de sua própria condição.120 Nisso são seguidos por Aubenque:
Conheça teu alcance, o qual é limitado; saiba que tu és mortal e não um deus. O
“conhece-te a ti mesmo” não nos convida a encontrar em nós o fundamento de
todas as coisas mas, ao contrário, traz à consciência nossa finitude: é a fórmula
mais expressiva da prudência grega, ou seja, da sabedoria dos limites.121

Gauthier & Jolif dedicam um bom tempo a mostrar como este princípio
impregnava a cultura grega, podendo ser encontrado na literatura (Homero,
Odisséia, I, 32-34; Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, 211, 215 – esta obra, de fato,
enfatiza a polaridade entre o excesso, (u(/brij), que leva ao sofrimento e à
destruição, e a justiça (δίκη), que constrói a harmonia), e na dramaturgia
(Eurípedes, Medéia, 1339; Ésquilo, Agamenon, 910). A busca da “proporção

117
Na verdade, a mediania não se aplica somente às paixões, mas também às próprias ações: “de
modo análogo, também existe excesso, carência e um meio termo no que diz respeito às ações”
(ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b25]). O filósofo grego não desenvolve muito este ponto, o que
leva alguns comentadores a considerar que a única virtude na qual a mediania se aplicaria às ações
seria a justiça, e todas as outras teriam um meio-termo relativo às paixões (Cf. H. von Arnim, die
drei aristotelischen Ethiken, apud GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 140-141 (tomo II)). Gauthier &
Jolif consideram, no entanto, que um aspecto está indissoluvelmente ligado ao outro: “é regulando
a paixão que a virtude regula a atividade” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 142 (tomo II), tradução
nossa; cf. HARDIE, 1968, p. 131-132). Desta forma, para Aristóteles todas as virtudes – incluindo
a justiça – teriam um meio-terno relativo às paixões e às ações (ibidem, p. 141).
118
ZIGANO, 2007, p. 146 (itálico nosso).
119
ROSS, 1995, p. 200, tradução nossa (itálico nosso).
120
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 138 (tomo II), tradução nossa.
121
AUBENQUE, 2008, p. 264.
48

harmoniosa” também pode ser facilmente observada em qualquer escultura do


período clássico – como diz Gombrich em sua História da Arte, “não existe corpo
humano que seja tão simétrico, bem formado e belo quanto o das estátuas
gregas”. 122 Este ideal se reflete também na medicina grega, que tendia a ver a
saúde como uma mistura proporcional de qualidades contrárias, e a doença como
um excesso ou uma falta.123 Diga-se de passagem, em suas análises sobre o corpo
e a alma, Aristóteles faz amplo uso do meio-termo como “saúde”, e é possível
supor que a aplicação ética desta noção foi derivada da medicina.124 Na filosofia,
os pitagóricos, para quem a proporção e a harmonia eram conceitos centrais,
talvez tenham sido os primeiros, ainda segundo Gauthier & Jolif, a usar o termo
mesótes.125 Platão, obviamente, se serve com freqüência desta noção, a começar
pela concepção da justiça como harmonia entre as diferentes partes da alma e da
cidade, o que ocorreria, como já comentamos, quando cada uma exerce
devidamente sua função.126
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Concluindo, podemos considerar que para os gregos a noção de “justiça” e


de “correção” – portanto de racionalidade - estava estreitamente ligada a um ideal
de equilíbrio e de harmonia, de justa medida e proporção, de afastamento dos
extremos. 127 É este ideal, assim, que Aristóteles expressa ao considerar que a
virtude moral está na busca pela mediania nas paixões e nas ações. Veremos mais
adiante que o meio-termo pode ser visto como uma regra estabelecida pela reta
razão. 128 Assim, para Hardie “desvios do que é certo podem ser excessivos ou

122
GOMBRICH, 1972, p. 68. Ao expor sua teoria sobre o meio-termo, Aristóteles faz alusão aos
artistas – considerados em um sentido obviamente mais amplo do que os escultores, mas com
certeza incluindo-os -, comentando que se costuma dizer que nada é possível acrescentar nem tirar
das boas obras de arte, pois o excesso e a falta destroem a excelência destas obras, e o meio termo
a preserva – daí os bons artistas sempre buscarem a justa medida em seu trabalho
(ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b5-15]).
123
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 143-144 (tomo II).
124
“Não é inútil se lembrar que a aplicação moral da teoria do justo meio foi sugerida a Aristóteles
pelo emprego que fazia dele a medicina” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 144 (tomo II), tradução
nossa).
125
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 143-144 (tomo II).
126
PLATÃO, 2006, p. 170-171 [443d]) Cf. Protágoras 343 b, Górgias 506e, Filebo 64e, Leis 756e,
Político 283c-285c.
127
Como diz Aubenque, ao analisar a origem da palavra phrónesis: “o traço geral da evolução – ou
antes da ausência de evolução – da palavra phronêsis nos parece residir em que a idéia de um ato
ou de uma função intelectuais foram freqüentemente associados à idéia de limite, inicialmente
entendida num sentido negativo, ou, posteriormente, positivo, de equilíbrio” (AUBENQUE, 2008,
p. 249)
128
“A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e
consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio
racional próprio do homem dotado de sabedoria prática” (ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a]).
49

defectivos”, e “o que é certo é definido como estando dentro de certos limites, e


neste sentido é uma mediania”. 129 É neste sentido, portanto, que as paixões
moderadas são as mais adequadas para o exercício da racionalidade. 130 Elas já
apontam, por assim dizer, nesta direção, e assim o indivíduo habituado a estes
estados já está “preparado” para completar sua virtude moral pela apreensão de
razões. Daí a afirmação do filósofo grego, numa clara alusão ao argumento do
érgon, de que as disposições virtuosas farão o homem desempenhar bem sua
função.131
O processo de harmonização de nossas inclinações com a razão, no entanto,
é mais complexo do que a simples formação de estados disposicionais a partir do
hábito. Vimos, de fato, que para Aristóteles a parte irracional de nossa alma é
capaz de “ouvir” a racional, o que aponta para uma necessidade de transformação
do desejo pela razão. Essa racionalização do desejo seria fundamental para a
futura operabilidade da razão prática. No capítulo seguinte, analisaremos como se
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dá a formação do desejo racional (βούλησις), a partir, sobretudo, de elementos


relativos ao fenômeno da responsabilidade moral, como escolha ou decisão
(προαίρεσις) e deliberação (βούλευσις).

129
HARDIE, 1968, p. 142.
130
Podemos considerar que este ideal se perde, em certa medida, no período helênístico. Daí
muitas das escolas deste período – como os epicuristas e estóicos – terem uma postura mais
radical, visando não a moderação, mas a extirpação das paixões. Como diz Ross, “we must not
say, however, that virtue is freedom from pleasure and pain; the tendencies to feel pleasure and
pain are not to be suppressed but to be moulded into the right shape. We must learn to take
pleasure in the right way and at the right time. Aristotle neither praises nor condemns the
tendencies inherent in man” (ROSS, 1995, p. 201).
131
ARISTÓTELES, EN II-6 [1106a20-25]. Este aspecto reforça, assim, aquilo que estamos
procurando mostrar no decorrer desta exposição: o tempo todo, Aristóteles parece estar
preocupado em estabelecer como nossas ações podem ser determinadas pela razão. Esta
preocupação remete diretamente ao argumento do érgon, pelo qual o bem do homem está no
cumprimento de sua função, ou seja, no exercício da racionalidade. Ora, podemos considerar que
este objetivo, ainda que por motivos ou justificativas diferentes, é compartilhado por Kant. Se
aceitarmos, assim, a idéia de que os dois filósofos partem de uma premissa comum – a relação
intrínseca entre razão e moralidade -, as principais diferenças entre suas concepções poderiam ser
explicadas pela ausência em Aristóteles de uma concepção de vontade autônoma. Para os antigos,
nossas ações só podem ser internamente determinadas por nossos desejos, e, portanto, para que
possamos “agir conforme a razão”, estes precisam se harmonizar a nosso intelecto. Daí, como
vimos, a definição das virtudes morais como uma conciliação da parte desiderativa de nossa alma
com a parte racional. A ausência de uma concepção de “vontade” faz com que este processo seja
longo e complexo, daí a maior ênfase do filósofo grego na dimensão afetiva da virtude e na
educação, tema que abordamos no decorrer deste capítulo. Como já dissemos, os motivos que
levam os dois filósofos a estabelecer a relação intrínseca entre razão e racionalidade podem ser
diferentes - neste sentido, a palavra “premissa” pode não ser a mais adequada, já que este ponto
pressupõe outras questões. Nosso argumento, no entanto, é que a partir do momento em que esta
relação é estabelecida, é possível analisar as éticas dos dois autores da maneira como estamos
fazendo, considerando que ambos tem um objetivo comum, ou seja, estabelecer como nossas ações
podem ser determinadas pela razão.
50

2.3
A racionalização do desejo como doutrina “moderada” da vontade
A passagem da dimensão afetiva da virtude moral para a racional se dá a
partir da questão da voluntariedade, que envolve noções como escolha e
deliberação. A justificativa para esta análise estaria no fato de que somente
paixões e ações voluntárias são louvadas ou censuradas. 132 Antes de abordar o
elemento racional implicado nesta noção, Aristóteles procura determinar qual é a
sua natureza, ou seja, o que faz com que uma ação possa ser dita voluntária e
outra não. A conclusão à qual chegará é a de que dois pressupostos são
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necessários: primeiro, o princípio motor da ação deve estar no próprio agente, e,


segundo, este deve ter conhecimento das circunstâncias particulares em que está
agindo.133
Esta definição faz referência aos dois critérios da ação involuntária,
analisados logo no início da parte III: a compulsão (qumo/j) e a ignorância
(a)/gnoia). O primeiro caso se caracteriza, justamente, pelo fato de o princípio
motor da ação não estar no agente. 134 A aplicação deste critério encontra
dificuldades em relação a atos que Aristóteles chama de “mistos” (embrouillés,
mixed), que seriam em princípio considerados involuntários, mas podem ser
voluntários em determinadas circunstâncias: por exemplo, alguém que comete um
ato ignóbil para salvar entes queridos, ou se desfaz de bens preciosos para impedir
que um navio afunde em uma tempestade. O filósofo grego conclui, assim, que os
termos “voluntário” e “involuntário” devem ser aplicados ao momento em que se
dá a ação.135 A análise do segundo critério, a ignorância, também faz alusão às

132
ARISTÓTELES, EN III-1 [1109b30]. Cf. idem, EE II-6 [1223a13]: “it is clear that excellence
and badness have to do with matters where the man himself is the cause and source of his acts”.
133
ARISTÓTELES, EN III-1 [1111a20-25].
134
“É compulsório ou forçado aquele ato cujo princípio motor é externo ao agente”
(ARISTÓTELES, EN III-1 [1110a]). Mais adiante, temos: “Que espécie de ações, pois, devem ser
chamadas forçadas? São aquelas que, sem restrições de nenhum tipo, a causa é externa ao agente,
o qual em nada contribui para tal ação” (ibidem, III-1 [1110b]).
135
ARISTÓTELES, EN III-1 [1110a5-15].
51

particularidades das circunstâncias: após realizar algumas distinções - por


exemplo entre involuntário e não-voluntário (que ocorreria quando uma pessoa
não sente remorso após agir por ignorância), e entre agir por ignorância e “na”
ignorância (quando estamos embriagados ou encolerizados) 136 -, Aristóteles
investiga o que, exatamente, é ignorado no ato involuntário, e chega à conclusão
de que não se trata dos interesses do agente – isso é o que torna os homens maus -,
ou do universal,137 mas sim das circunstâncias que envolvem a ação.138
Esses aspectos fazem referência a uma importante dimensão da ética
aristotélica, chamada pelos estudiosos de “particularismo”. Trata-se da tese de que
o valor moral de uma ação não é fixo, ou seja, determinado a priori, mas depende
do contexto em que ela se dá. Este ponto já havia sido anunciado pelo filósofo
grego anteriormente, por exemplo quando, ao tratar da mediania, afirmara que o
meio-termo consiste em sentir pelo motivo e da maneira certa, em relação aos
objetos e às pessoas certas, no momento certo.139 Como diz Zingano, “o agente
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sempre deve agir em função das circunstâncias”; “não há assim regras e códigos
previamente estabelecidos, que bastaria seguir, mas é preciso decidir caso a caso
(...) a ação moral só revela sua verdade nos casos singulares, imersa nas
circunstâncias no interior das quais se produz”.140 Podemos relacionar este aspecto
a uma tese introduzida por Aristóteles logo no início da Ética a Nicômaco, pela
qual não se deve esperar, nas reflexões sobre a ética, o mesmo grau de precisão de
ciências como a matemática.141 Na parte II, volta a mencionar este ponto, desta

136
ARISTÓTELES, EN III-1 [1110b15-30]. Como diz Urmson, a distinção entre involuntário e
não voluntário está no fato de que, no primeiro caso, o agente teria agido corretamente se não
estivesse na ignorância (daí, justamente o remorso), ao passo que no segundo caso ele teria agido
da mesma maneira; quanto à distinção entre “por” e “na” ignorância, o ponto é que o agente pode
ser responsabilizado por este último tipo (por exemplo, por ter ficar bêbado). Aristóteles está, aqui,
procurando diferenciar a ignorância justificável da não justificável (URMSON, 1988, p. 46-49).
137
A ignorância do universal – ou, como diz Gauthier & Jolif, “do que deve ser feito o do que
devemos nos abster” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 184 (tomo II), tradução nossa), e que, ainda
segundo os mesmos comentadores, corresponderia à premissa maior do silogismo prático (ibidem,
p. 184) -, terá relevância para o problema da acrasia, analisado pelo filósofo grego na parte VII da
EN.
138
ARISTÓTELES, EN III-1 [1111a15-20].
139
ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b20-25].
140
ZINGANO, 2007, p. 336-337.
141
“Nossa discussão será adequada se tiver a clareza que comporta o assunto, pois não se deve
querer a mesma precisão em todos os raciocínios, assim como não se deve exigi-la nos produtos de
todas as artes mecânicas. As ações belas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande
variedade e flutuações de opinião (...) Por conseguinte, tratando de tais assuntos, e partindo de tais
premissas, devemos contentar-nos em indicar verdade de forma aproximada e sumária: quando
falamos de coisas que são verdadeiras apenas em linhas gerais e com base em premissas da mesma
espécie, não devemos esperar conclusões mais precisas” (ARISTÓTELES, EN I-3 [1194b10-25]).
52

vez relacionando-o de forma mais explícita ao particularismo:


(...) o tratamento da teoria sobre a conduta se fará em linhas gerais e não de
maneira precisa, conforme fizemos ver desde o princípio desta investigação: as
explicações que estamos procurando devem estar de acordo com os respectivos
assuntos; as questões que dizem respeito à conduta e ao que nos convém não têm
fixidez nenhuma, do mesmo modo que nada tem de fixo as que dizem respeito à
saúde. E se é assim com a explicação em geral, o exame dos casos particulares
será ainda mais carente de exatidão, visto que não há arte ou preceito que abranja
a todos eles, senão que as próprias pessoas atuantes devem considerar, em cada
caso, o que é mais adequado à ocasião, tal qual acontece na arte da navegação ou
na da medicina.142

O final deste trecho deixa clara a relação do particularismo com a visão de


que o próprio indivíduo é o juiz do que deve ser feito em cada situação – tese que
não levará ao relativismo, pois é preciso, ainda, fazer a distinção entre aqueles que
julgam mal e aquele que julga bem, ou seja, o homem virtuoso, o prudente. Como
diz Aristóteles pouco depois, “as ações são ditas justas e temperantes quando são
tais como as que praticaria o homem justo ou temperante”.143 Voltaremos a tocar
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neste assunto mais adiante, ao tratar da phrónesis.


O particularismo da ética aristotélica também pode ser relacionado a
determinadas teses ontológicas defendidas pelo estagirita: Zingano comenta, por
exemplo, que esta dimensão deriva, em parte, do caráter indeterminado das
144
ações, mas que é, preciso, ainda, acrescentar o caráter indefinido das
circunstâncias.145 Pierre Aubenque, em seu A Prudência em Aristóteles, passa um
bom tempo analisando esta última tese, relacionada à impotência da forma em
dominar a matéria, o que faz com que o mundo só seja racional em suas partes
superiores. 146 Não nos interessa, neste trabalho, investigar esta contrapartida
metafísica do particularismo aristotélico, mas apenas suas implicações éticas.
Trata-se, de fato, de uma importante diferença com a concepção de Kant, que é
fundamentalmente universalista. Na segunda parte de nossa tese, procuraremos
argumentar que essa divergência se deve, sobretudo, ao conceito de uma vontade

142
ARISTÓTELES, EN II-2 [1104a-10].
143
ARISTÓTELES, EN II-4 [1105b5].
144
O comentador brasileiro mostra como há dois tipos de contingência para Aristóteles – a
contingência natural, “aquilo que é no mais das vezes”, e a indeterminação, “aquilo que não é mais
assim do que não assim”. A ação seria indeterminada neste segundo sentido, pelo fato, que já
citamos anteriormente, de que a potência racional é uma potência de contrários (ZINGANO, 2007,
p. 115-116; p. 122).
145
“Se o caráter indefinido das circunstâncias acrescenta-se à natureza indeterminada da ação,
então o particularismo na ética parece impor-se como a boa resposta” (ZINGANO, 2007, p. 137).
146
AUBENQUE, 2008, p. 141; p. 143.
53

autônoma, por sua vez ligado à dimensão transcendente da razão kantiana, o que
faz com que a determinação da ação possa se dar a priori, ou seja, prescindindo de
elementos empíricos. Veremos mais adiante, no entanto, que o particularismo de
Aristóteles não impede que sua concepção de razão prática – a phrónesis –
também envolva elementos universalistas.
Vimos, assim, que o particularismo aristotélico começa a aparecer, de
forma mais explícita, quando o filósofo grego analisa o problema da
voluntariedade. Talvez não seja por acaso, justamente, que este último termo só
possa ser devidamente compreendido levando-se em conta ausência de uma
concepção de “vontade” neste autor. Gauthier & Jolif comentam, de fato, que as
noções de “voluntário” e “involuntário” não devem ser aplicadas aqui, por trazer
consigo implicitamente a de vontade, que só foi desenvolvida posteriormente.147
Embora concordemos com esta observação – este aspecto inclusive sendo, como
já dissemos, relevante para nossa tese -, nós preferimos continuar a utilizar aqui
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“voluntário”, fazendo, sempre que for necessário, a ressalva de que não possui
exatamente o sentido atual. Trata-se de um termo, de fato, que é utilizado na
maioria das traduções de referência, como a de Oxford (“voluntary”). 148 Este
procedimento, a nosso ver, evita entrarmos em uma discussão etimológica que
complexificaria desnecessariamente nossa análise, e que, diga-se de passagem,
não nos sentimos capazes de realizar.
Mesmo mantendo esta terminologia, portanto, podemos considerar que a
noção aristotélica de voluntariedade só pode ser devidamente compreendida se
levarmos em conta a ausência de uma concepção de vontade neste autor. Quando
ele diz, assim, que o princípio motor da ação deve estar no próprio agente, isto
significa, em uma primeira abordagem, que o fim visado é desejado por este
agente. Toda ação, de fato, tem em vista um fim – como foi estabelecido logo no
início da Ética a Nicômaco – e este é colocado pelo desejo. 149 Podemos nos

147
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 169-170 (tomo II). Os dois autores traduzem έκον e έκούσιος
por “agir de son plein gré”, expressão que pode ser entendida em português, justamente, como
“voluntário”, mas que em francês possui um sentido mais fraco do que “volontaire”, podendo,
assim, ser entendida como o consentimento do agente na ação - o que coincidiria com a tradução
de Bodéüs, “ato consentido”, acte consenti.
148
Alguns autores de língua inglesa contestam esta tradução. É o caso, por exemplo, de Urmson,
que prefere usar os termos “intended” e “contrary to intention” (URMSON, 1988, p. 42).
149
Quando abordarmos a visão de Kant, mais adiante, veremos que para ele a razão prática é capaz
de gerar fins que lhe são próprios, fins “puramente racionais”, por assim dizer. Esta seria, mais
uma vez, uma conseqüência direta de concepção kantiana de uma vontade autônoma, e justamente
por isso não a vemos em Aristóteles.
54

perguntar, no entanto, como conciliar este aspecto com a relação intrínseca entre
razão e moralidade, que, como vimos, foi estabelecida pelo argumento do érgon.
A partir desta relação, Aristóteles definiu a virtude moral a partir da capacidade da
parte irracional de nossa alma em “ouvir” a racional. O filósofo grego procurou
então ressaltar, na parte II, a importância do hábito na preparação de nossos afetos
para que possa haver esta harmonização. No entanto, podemos considerar que
ainda resta um hiato a ser preenchido, que é, justamente, o momento em que a
parte desejante “ouve” a racional. Se nossas ações são necessariamente fruto de
nossos desejos, então como podem ser resultado da razão prática?
Aristóteles começa a responder a esta questão logo após a análise da
natureza da voluntariedade, de que tratamos acima, ao abordar o problema da
escolha (προαίρεσις), relativa aos meios necessários para a realização da ação.
Podemos considerar, portanto, que esta é a forma encontrada pelo estagirita para
introduzir o elemento racional na determinação de nossos atos: de fato, mesmo
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que o fim seja colocado pelo desejo, o agente deve ainda decidir como atingi-lo, o
que implica em uma forma de deliberação, onde as diversas possibilidades à sua
disposição são pesadas, levando, assim, à opção dos meios mais adequados.150
Embora esta deliberação não seja necessária para a voluntariedade - pois
crianças e animais inferiores podem agir voluntariamente sem fazer escolhas151 -,
Aristóteles considera que só podemos falar de responsabilidade moral a partir
desta noção. O filósofo grego faz menção, de fato, à relação íntima da escolha
com a virtude, o que dá a entender que o elogio e a censura de uma ação
voluntária seriam resultantes de nossa capacidade de escolher. Como diz Zingano,
“a escolha basta assim para fundar a responsabilidade moral, ainda que não incida
senão sobre os meios”.152 Isso se deve ao fato, justamente, de que a escolha dos
meios, por ser fruto de uma deliberação, envolve um elemento racional. A ação
passa então a pertencer ao agente em um sentido mais forte, tornando-o
responsável, já que a simples relação fim-desejo pode remeter à natureza do
agente (ainda que trabalhada, como vimos, pelo hábito), portanto a algo mais

150
Hardie: “the deliberation of the agent is indeed addressed to the question, not whether to seek a
certain end, but how to achieve it” (HARDIE, 1968, p. 168).
151
ARISTÓTELES, EN III-1 [1111b5-10].
152
ZINGANO, 2007, p. 307. Mais adiante, temos: “O que faz com que sua ação seja sua é
propriamente o fato que podia não fazer o que fez, e ele podia não o fazer não porque podia ter um
outro desejo, mas porque podia pesar as razões envolvidas e agir em função do reconhecimento do
valor moral aceitável ou censurável de seu ato” (ibidem, p. 309).
55

inato.153
Neste sentido, justamente, é que esforço inicial de Aristóteles, ao
introduzir a noção de escolha, consiste em mostrar que esta implica em princípio
racional e pensamento, ou seja, em um cálculo (λόγος) ou reflexão (διάννοια)
sobre que meios adotar para atingir o fim visado - um processo que será chamado
de βούλευσις, “deliberação”.154 Para chegar a esta conclusão, o estagirita realiza o
procedimento característico de estabelecer a diferença específica desta noção:
argumenta, então, que a escolha não pode ser a cólera (anger, ardeur) ou um
apetite – pois estes também estão presentes nos seres irracionais, e o apetite se
relaciona com o que é agradável e doloroso -, e nem com o desejo, pois se pode
desejar o impossível, ou algo que não está relacionado a nosso esforço pessoal.155
Além disso, o desejo se relaciona com os fins, e a escolha com os meios.156 Aqui
aparece, de forma clara, esta célebre doutrina aristotélica, relacionada ao fato de
que a ação possui necessariamente um elemento irracional – nossos fins, assim,
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são colocados pelo desejo, e não pela razão, mas veremos mais adiante que este
ponto pode ser complexificado. Finalmente, o filósofo grego descarta a hipótese
de que a escolha poderia ser uma espécie de opinião, pois esta última também
pode se referir a coisas impossíveis, e se distingue por sua verdade e falsidade, ao
passo que a escolha é boa ou má. Por este processo eliminativo, assim, Aristóteles
conclui que a escolha requer um princípio racional e pensamento, e, como seu
próprio nome sugere, consiste em eleger algo de preferência a outras coisas – no

153
“Os fins nos aparecem segundo a natureza, e disso – é dado por suposto – não somos a causa”
(ZINGANO, 2007, p. 316). Em relação à questão da responsabilidade moral, Aubenque comenta
que Aristóteles desloca a sede da imputabilidade moral da esfera da intenção, como ocorre nas
escolas socráticas, para a escolha dos meios. O comentador francês considera que esta é uma
forma encontrada pelo estagirita de expressar a visão grega de que a vontade - o desejo racional -
nunca é responsável pelo mal, mas sim o mal responsável pela má qualidade do desejo, e, portanto,
não julgamos alguém por sua vontade ou desejo, mas por suas escolhas (AUBENQUE, 2008, p.
220; p. 222). Já Gauthier & Jolif fazem uma crítica à noção de responsabilidade moral de
Aristóteles, considerando que o autor grego confunde este problema com o da liberdade
psicológica: uma coisa é se perguntar se somos livres ao realizar uma ação, outra se somos
moralmente responsáveis (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 172-173 (tomo II)). Este problema
estaria ligado a uma outra confusão, desta vez entre espontaneidade e liberdade (ibidem, p. 174).
Este aspecto poderia, a nosso ver, ser relacionado à ausência de uma concepção de vontade em
Aristóteles, mas não temos tempo de desenvolver isso aqui, pois nosso objetivo não é tanto
analisar as noções de liberdade ou de responsabilidade moral, mas sim a relação entre razão prática
e virtude.
154
ARISTÓTELES, EN III-2 [1111b10-1112a15].
155
Trata-se, aqui, do desejo racional (βούλησις). O apetite, a cólera (ou paixão) e o desejo racional
são todos tipos de desejo, considerado em seu sentido mais amplo (όρεξις). Cf. ARISTÓTELES,
DA II-3 [414b2].
156
ARISTÓTELES, EN III-2 [1111b25-30].
56

caso, como já dissemos, os meios relativos à obtenção do fim.157


A partir desta última descrição é que será estabelecido a relação entre
προαίρεσις (escolha) e βούλευσις (deliberação). A segunda seria necessária para a
primeira, a primeira podendo assim ser vista como o resultado da segunda. Essa
afirmação é, no geral, correta, mas o procedimento que leva de uma à outra é mais
complexo, envolvendo conceitos como juízo (γνώµη) e decisão. Acompanhemos,
assim, o raciocínio de Aristóteles, para tentar compreender este processo.
O filósofo grego começa por analisar qual é o objeto da deliberação, e
conclui que só deliberamos sobre aquilo que está ao nosso alcance e pode ser
realizado por nosso próprio esforço. 158 Não há, por exemplo, deliberação nas
ciências exatas – este aspecto está relacionado à discussão, que será realizada na
parte VI, sobre a diferença entre o intelecto especulativo, que se refere ao que é
invariável, e o intelecto prático, que se refere àquilo que é contingente. Este ponto
remete, assim, às teses ontológicas ligadas ao particularismo, que mencionamos
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anteriormente. De fato, o filósofo grego acrescenta, logo adiante, que só


deliberamos sobre as coisas cujo desfecho é obscuro e indeterminado. Como
comenta Zingano, a deliberação é de “direito” na ação devido ao caráter
ontologicamente indeterminado das circunstâncias.159
Após fazer referência à relação entre deliberação e contingência,

157
Para todo o argumento exposto neste parágrafo: ARISTÓTELES, EN III-2 [1111b5-1112a20].
158
ARISTÓTELES, EN III-3 [1112a30].
159
“Aristóteles pode mostrar que, a despeito de seu caráter evanescente no domínio das técnicas e
das ciências, a deliberação não é meramente um fenômeno a ser substituído, pois, no domínio da
ação, em função da indeterminação das circunstâncias nas quais se produz a ação, ela é um
procedimento não só de fato, mas de direito. No campo da ação, que difere em suas condições do
campo da técnica, o deliberar não é um mero paliativo, ele é um procedimento racional de
decisão” (ZINGANO, 2007, p. 273). O comentador brasileiro parece opor este aspecto da
concepção aristotélica à de Platão, para quem a deliberação poderia ser vista como uma espécie de
paliativo na ausência da ciência. É interessante observar a relação destas teses metafísicas com
outras questões, como por exemplo, a política: Pierre Aubenque comenta, neste sentido, que a
deliberação é uma espécie de meio-termo entre a ciência e adivinhação imediata (εύβουλία), ou
seja, um saber aproximativo, da ordem da opinião, e que esta caracterização pode ser vista como
fruto de um processo de laicização e humanização do saber, ligado à democracia. O caráter
indeterminado do mundo – nem caótico, nem inteiramente ordenado – teria como contrapartida a
condição humana de criatura entre os animais e os deuses.159 O destino (τύχη) da tragédia grega
cede então lugar à deliberação. Para mostrar a ligação desta noção com o processo democrático,
Aubenque analisa a evolução etimológica do termo βούλευσις, derivado de βούλή, que se referiria,
em Homero, ao Conselhos dos Anciãos, e na Atenas democrática ao Conselho dos Quinhentos. A
deliberação aristotélica seria, assim, a forma interiorizada de seu equivalente público, praticada na
Assembléia do povo: “a análise de Aristóteles manifesta o vínculo profundo entre uma filosofia da
contingência e a prática do sistema democrático, ou seja, deliberativo”; mais adiante, temos: “a
democracia deliberativa e, inicialmente, a instituição patriarcal do Conselho dos anciãos fornecem,
pois, o modelo da conduta individual prudente” (AUBENQUE, 2008, p. 168; p. 180-181; p. 183; p.
184).
57

Aristóteles volta a repetir que só deliberamos sobre os meios, não sobre os fins: de
fato, um médico, um orador ou um estadista não discutem se devem,
respectivamente, curar, persuadir ou assegurar a ordem pública, ou seja, sobre os
fins de suas atividades. Eles dão o fim por estabelecido e investigam quais os
meios que lhes permitem atingi-lo.160 Neste sentido, o fim pode ser considerado
como o princípio que dá origem à deliberação. O filósofo grego faz uma
comparação com o que ocorre nas deduções matemáticas: os princípios primeiros
não podem ser investigados, mas partimos deles para chegar às conclusões. De
forma similar, na deliberação (que também é uma investigação, como a
matemática), o fim exerce esta função de princípio do qual se parte, sem poder ele
mesmo ser deliberado. 161 Surge então uma análise retroativa, pela qual se
concatenam os diversos meios necessários para atingir o objetivo visado, até
chegarmos àquele que se encontra, de forma mais imediata, ao nosso alcance. A
percepção deste meio imediato é que poria fim à deliberação. 162 Desta forma,
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como diz Aristóteles, o que vem em último lugar na análise é o primeiro na ordem
de execução.163 O meio imediato é, assim, o objeto de escolha, aquilo pelo qual
nos decidimos através da deliberação.164
O estagirita passa então a analisar como se dá, exatamente, esta escolha.
Este é um ponto particularmente importante para nossa tese, pois se trata do
momento exato em que ocorre a conexão, por assim dizer, entre desejo e razão,
fazendo com que aquele possa ser influenciado por esta. Em um primeiro
momento, o resultado da deliberação se dá sob forma ainda puramente intelectual,
através de um juízo (γνώµη) de que determinado meio é o mais adequado para
atingir o fim.165 O juízo, assim, é aquilo que fecha propriamente a deliberação. Ele

160
ARISTÓTELES, EN III-3 [1112b10-15].
161
O fim é, assim, άρχή προαιρέσεως, princípio da deliberação (ARISTÓTELES, EN VI-2
[1139a33-35]). Cf. ZINGANO, 2007, p. 302.
162
“A deliberação é limitada pelo alto: ela parte de um dado, o fim, sobre o qual não deliberamos;
ela é igualmente limitada por baixo: ela se interrompe quando percebemos a presença ou a
possibilidade de um dos meios considerados, que se torna assim o último: é a sensação que fecha a
deliberação” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 204 (tomo II), tradução nossa). Na Ética Eudêmica,
temos: “All consider this till they have brought the beginning of the process to a point in their own
power” (ARISTÓTELES, EE II-10 [1226b12])).
163
ARISTÓTELES, EN III-3 [1112b25].
164
ARISTÓTELES, EN III-3 [1113a5].
165
É preciso considera que, embora possua uma dimensão essencialmente intelectual, o juízo se dá
acerca de questões humanas, e neste sentido não se confunde com a ciência. Aubenque comenta,
neste sentido, que “julgar não é somente uma qualidade intelectual. O homem de bom julgamento
(εύγνώµων) não se confunde com o homem de ciência; ele não tem nenhum conivência com os
princípios e não pode se abrigar atrás de nenhuma demonstração. Além disso, sabe que o
58

se distingue da decisão (προαίρεσις), pois esta última consiste em decidir agir, e


portanto implica em uma dimensão que não é mais somente intelectual, mas
também desejante, pois o desejo é o motor que nos leva a adotar um determinado
meio para atingir um fim. Como dizem Gauthier & Jolif:
O decidido, é algo deliberado, e é o intelecto que delibera; mas o decidido, não é
somente algo deliberado, é também algo desejado, e resta explicar como ele pode
ser assim desejado; não é evidentemente em virtude da deliberação (κατά τήν
βούλεµσιν), mas em virtude do desejo (κατά τήν βούλησιν); é porque desejamos a
saúde que, tendo julgado a partir da deliberação que o melhor meio de alcançá-la
é a fricção, passamos a desejar a fricção. O papel do juízo ao qual chega a
deliberação é precisamente incluir a fricção, enquanto meio, no desejo da saúde
166
que é o fim.

A decisão possui assim uma dimensão intelectual e desiderativa, e,


portanto, podemos considerar que a προαίρεσις – a resolução de adotar um
determinado meio que foi julgado o mais adequado pela deliberação para atingir o
fim desejado – é o momento exato em que ocorre esta convergência entre desejo e
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razão, que é tão fundamental para a ética aristotélica.167 O juízo, de fato, faz com
que o meio que é seu objeto seja incluído no desejo do fim do qual ele é meio. Em
outras palavras: o fato do objeto escolhido em função da deliberação ser um meio
para um fim desejado faz com que este meio também passe a ser desejado, e agora
nós temos, assim, um desejo baseado em razões. Dessa forma, a própria ação
também se segue imediatamente da deliberação.168 Podemos portanto dizer que
assim como o fim é o princípio da deliberação (a)rxh/ proaire/sewj), a escolha é o
princípio da ação (a)rxh/ pra/cewj), e, portanto, o que Aristóteles está fazendo,
aqui, é descrever como nosso atos podem resultar de nossa razão, ainda que
determinados pelo desejo.
Para compreender melhor este aspecto, analisemos como o desejo é, por

verdadeiro nos assuntos humanos não se confunde com o demonstrável. É justamente o


reconhecimento dos limites da ciência que faz seu valor propriamente moral” (AUBENQUE,
2008, p. 242).
166
É preciso considerar que a diferença entre juízo e decisão pode ser mais uma distinção de
“razão” do que de “fato” (para usa um vocabulário leibniziano), pois aquilo que é julgado como
meio adequado passa a ser imediatamente desejado (Cf. GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 206
(tomo II)). Cf AUBENQUE, 2008, p. 196: “por certo, esta escolha [προαίρεσις] é, ela mesma, um
desejo (όρεξις), pois somente se quer os meios porque se quer o fim, e a escolha dos meios
permanece subentendida à vontade do fim, sem a qual perderia toda razão de ser; nesse sentido, a
proairesis conserva um aspecto volitivo”.
167
ZINGANO, 2007, p. 302.
168
“A decisão não se distingue realmente do juízo que fecha a deliberação: ela é este mesmo juízo,
não enquanto ele enuncia uma afirmação, mas enquanto que, sob o empuxo do desejo que o
inspirou e que o penetra, ele é o motor” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 212 (tomo II), tradução
nossa. Cf. ibidem, p. 204).
59

assim dizer, transformado pela deliberação e pela decisão. O resultado deste


processo é aquilo que Aristóteles chama de desejo racional ou deliberado,
o)/recij bouleutikh, ou simplesmente βούλησις. Como diz Zingano, “o agente
busca realizar seu desejo, mas, visto que a escolha dos meios é governada pelo ato
de pesar razões, trata-se agora de um desejo deliberativo, e quem decidiu por
deliberação sobre como agir deseja agora conforma a deliberação (...) o desejo se
apresenta agora comandado ou reformulado pelo ato de pesar razões relativamente
aos meios”. 169 Desta forma, o desejo “conforme a deliberação” não é mais
simplesmente irracional, pois o agente passa, agora, a agir em função de razões.
Citando mais uma vez Zingano:
(...) o agente age doravante em função do que ele reconhece como sendo uma boa
razão para fazer ou abster-se de fazer em relação ao um fim dado previamente
(...) o que faz com que sua ação seja sua é propriamente o fato que podia não
fazer o que fez, e ele podia não o fazer não porque podia ter um outro desejo, mas
porque podia pesar as razões envolvidas e agir em função do reconhecimento do
valor moral aceitável ou censurável de seu ato.170
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Percebe-se facilmente a relação estreita deste processo com a


responsabilidade moral: a ação passa a pertencer ao agente em um sentido forte,
pois a escolha faz com que o princípio motor volte a ele, pelo fato de ser a sua
parte dirigente que escolhe.171
De forma geral, Aristóteles distingue três tipos de desejo (o)/recij): o
apetite, a paixão e o desejo racional.172 Os dois primeiros pertencem a um gênero
comum, o desejo irracional, o)/recij a)/logoj.173 Podemos assim considerar que a
deliberação sobre os meios gera um tipo de desejo que “participa” da razão.
Reencontramos, aqui, aquilo que foi dito no final da parte I da EN, sobre a
capacidade da alma desiderativa de “ouvir” a racional. Obviamente, isso só é
possível por causa de determinadas características da concepção aristotélica de

169
ZINGANO, 2007, p. 307-308.
170
ZINGANO, 2007, p. 309.
171
Como diz Aubenque, a προαίρεσις é a sede da imputabilidade, opõe-se à coação e é o
fundamento dos atos voluntários (“feitos de bom grado”, “de plein gré”), os únicos que são objetos
de louvor e de censura (AUBENQUE, 2008, p. 194-195). Sobre a “parte dirigente” - na tradução
francesa de Bodéüs “partie qui dirige”, na de Oxford “ruling part” -, esta expressão com certeza
faz referências à discussão, na parte VI, sobre as diferentes partes do intelecto, e os comentadores
em geral consideram que nossa parte dirigente é a inteligência (σύνεσις). Bodéüs comenta, no
entanto, que isso não é inteiramente correto, pois a inteligência não “dirige” nada sem o desejo
(ARISTOTE, 2004, p. 149, nota do tradutor).
172
ARISTÓTELES, DA II-3 [414b2]. Cf. ARISTÓTELES, EE II-7 [1223a26]: “desire is divided
into three sorts, wish, anger, and sensual appetite”.
173
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 191 (tomo II).
60

pathé (πάθη), “paixão”, “emoção”, 174 particularmente o fato desta possuir um


elemento cognitivo, ligado à opinião que a constitui: como diz Zingano, “aos
olhos de Aristóteles, há um juízo no interior mesmo das emoções”; “Podemos
assim considerar que as emoções se formam a partir de uma cognição – sentir é
tomar alguma coisa sob um certo ângulo”.175 É esta dimensão da pathé aristotélica
que torna possível, portanto, à parte irracional de nossa alma “ouvir” a racional e
ser aprimorada por ela (vimos que este processo não se dá necessariamente, daí a
importância desta capacidade ser desenvolvida pelo hábito e pelos costumes).176
Como acabamos de expor, este “aprimoramento” se dá a partir da deliberação, que
introduz um elemento cognitivo no desejo através da προαίρεσις, a escolha ou
decisão acerca dos meios. O resultado deste processo é um “desejo racional”,
βούλησις, que possui uma dimensão racional e uma dimensão irracional.
Conforme já havíamos comentado, a ética aristotélica gira em torno desta
dualidade da natureza humana, consistindo, grosso modo, em investigar como
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nossos desejos e afetos podem se harmonizar à razão. Nossa ênfase, neste


trabalho, está sendo justamente em analisar este processo, por consideramos que
trata-se de algo similar ao que veremos em Kant - com a diferença de que neste
último a vontade é que deve se conformar à razão prática do agente. Neste
sentido, para o filósofo alemão será possível – pelo menos em princípio – eliminar
qualquer traço de irracionalidade na ação moral, ao passo que para Aristóteles este
aspecto não pode ser completamente suprimido. É preciso se contentar, por assim
dizer, em aperfeiçoar o irracional a partir do racional. Daí o eudaimonismo da
ética aristotélica, o que desaparece em Kant.
O processo de racionalização do desejo pode ser melhor compreendido se
considerarmos a maneira pela qual mesmo a apreensão dos fins é afetada. Vimos,
de fato, que uma das principais teses aristotélicas acerca da deliberação é que esta
se refere somente aos meios. No entanto, há várias maneiras pela qual, no decorrer

174
Zingano caracteriza esta noção como uma afecção que é ela própria fonte de ação, podendo
assim ser entendida como uma “tendência” (ou seja, a paixão aristotélica não se limita a sofrer
algo passivamente, como em outros autores), acompanhada de prazer e de dor (ZINGANO, 2007,
p. 148; p. 151).
175
ZINGANO, 2007, p. 152; p. 155. Zingano cita alguns trechos, particularmente da Retórica,
onde o estagirita descreve como a emoção é sempre engendrada a partir de uma imaginação ou
juízo: ARISTÓTELES, Ret. II-2 [1379a22]; II-5/6 [1382a22-1383b20].
176
“Para Aristóteles, o desejo humano é tal que sempre tem de poder acolher razões” (ZINGANO,
2007, p. 106). Em outro trecho, temos: “Já que as emoções se formam a partir de uma cognição,
por isso mesmo elas não são refratárias a toda razão; ao contrário, podem escutar a razão e, deste
modo, aperfeiçoar-se, tornando-se assim emoções moderadas pela razão” (ibidem, p. 154).
61

deste processo, os fins acabam sendo indiretamente racionalizados.


Ressaltaremos, aqui, as que nos parecem ser as principais: em primeiro lugar, a
deliberação pode nos fazer perceber que determinados fins não são atingíveis.
Aristóteles já havia comentado esse aspecto ao tratar da questão da concatenação,
afirmando que “se chegamos a uma impossibilidade abandonamos a busca (por
exemplo, se precisamos de dinheiro e não há como conseguí-lo), mas se uma coisa
parece possível, tentamos fazê-la. Por coisas ‘possíveis’ quero dizer aquelas que
se podem realizar graças ao esforço próprio”.177 Podemos assim considerar que a
deliberação faz com que nossos objetivos se tornem mais realistas, por assim
dizer, com isso racionalizando aquilo que é determinado pelo desejo. Como diz
Aubenque, queremos o bem, mas escolhemos o melhor possível,
be/ltiston e)k tw=n dunatw=n, nos conformando assim àquilo que é humanamente
viável. 178 Outro processo diz respeito a um ponto que também já havia sido
assinalado por Aristóteles, logo no início da Ética a Nicômaco, quando fez a
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distinção entre bens como meios e como fins. Todo bem é, por definição, um fim
(pois é aquilo que é visado por uma ação), mas na maioria das vezes também é um
meio para atingir outros objetivos. Vimos, de fato, que somente as virtudes são
buscadas por si mesmas, embora mesmos estas sejam visadas enquanto
constituintes da eudaimonia, que seria, assim, o único bem “absoluto”, “perfeito”
ou “acabado” (τελείως). Isso significa que, embora não possamos deliberar sobre
aquele fim que funciona como princípio da própria deliberação, nada impede que
possamos fazer isto quando este fim é um meio para atingir outro bem. Podemos
usar como exemplo o caso citado pelo próprio Aristóteles, quando disse que sendo
médicos não nos cabe deliberar sobre o fim da atividade da medicina, mas
somente como atingi-lo. Nada nos impede, no entanto, de deliberar se querermos
ou não ser médicos, quando somos mais jovens. Também podemos nos perguntar
qual o interesse de curar as pessoas, ou seja, para que “serve” o fim desta
atividade, e perceber que este é um meio para melhorar a qualidade de vida geral,
prolongar a longevidade etc – e então podemos deliberar se a medicina é mesmo o
melhor meio para atingir tais fins. Como diz mais uma vez Zingano:
Se considerarmos as deliberações não para baixo, isto é, em direção aos objetos

177
ARISTÓTELES, EN III-3 [1112b25]. Esse aspecto é que levará à definição final da proairesis
como “desejo deliberativo das coisas que dependem de nós”, βουλευτική όρεξις τών έφ ήµίν
(ibidem, III-3 [1113a11]).
178
AUBENQUE, 2008, p. 213-214.
62

últimos da ação, mas para cima, em direção aos fins tornados meios para
deliberações superiores, aos moldes de uma cadeia de silogismos que se pode
considerar tanto para baixo quanto para cima, tudo, ou quase tudo, pode ser
179
objeto de deliberação.

Estas são, assim, duas maneiras pelas quais nossos fins podem ser
racionalizados, ainda que não determinados diretamente pela razão. Mas talvez o
processo principal pelo qual isto se dá seja a partir da relação de nossos objetivos
com nossas disposições, que podem, como comentamos, ser harmonizadas com a
parte racional da alma. Vimos, de fato, que o processo educativo, para Aristóteles,
deve procurar gerar nos indivíduos aquelas disposições que são as mais adequadas
para o exercício da razão. Ora, este processo afeta, justamente, aquilo que cada
indivíduo enxerga como sendo o “bem”. Como diz Aristóteles, “cada disposição
de caráter tem sua idéia própria acerca do nobre e do agradável”.180 Deste modo, a
formação através dos hábitos, culminando com a racionalização do desejo ligada à
deliberação, afeta a maneira pela qual concebemos nossos “fins”.
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Essa questão está ligada a uma discussão acerca do aspecto “aparente”


(faino/menon a)gaqo/n) e “verdadeiro” (a)gaqo/n a(plw=j) da noção de Bem. Não por
acaso, Aristóteles aborda este problema logo após a análise do processo ligado à
deliberação, que descrevemos acima. O estagirita começa mencionando duas teses
opostas, uma pela qual o desejo pode visar o bem absoluto, ou seja, aquilo que é
realmente um bem, e outra pela qual o objeto de desejo é apenas o que parece ser
o bem a cada um. 181 Embora não sejam explicitamente citados, não é difícil
reconhecer aqui a posição de Platão e dos sofistas, respectivamente.182 Podemos
considerar que Aristóteles faz uma proposta intermediária, pela qual ambas as
posições estão, em um certo sentido, corretas: todo bem é aparente, mas isso não
impede que alguns sejam “verdadeiros”. Isso significa dizer que, embora todos os
bens sejam subjetivos, em alguns casos eles podem também ser objetivos. Urmson
procura lidar com esta questão a partir de uma distinção de que Aristóteles não

179
ZINGANO, 2007, p. 302.
180
ARISTÓTELES, EN III-4 [1113a30-35].
181
ARISTÓTELES, EN III-4 [1113a15-23].
182
Como dizem Gauthier & Jolif: “para Platão, para que façamos o que desejamos, não basta fazer
o que acreditamos ser um bem, é preciso que façamos o que é realmente um bem: o objeto do
desejo, é o bem, e não o bem aparente, como acreditavam os sofistas” (GAUTHIER & JOLIF,
1970, p. 207 (tomo II), tradução nossa). Os comentadores franceses citam como exemplos desta
posição platônica os diálogos Górgias (468a-d), Carmides (167e) e Ménon (78a). O desejo, aqui, é
o desejo racional – podemos assim considerar que a posição de Platão implica que aquele que
deseja algo “mau” não deseja realmente, no sentido racional do termo.
63

dispunha, mas que, segundo o comentador inglês, teria contribuído para tornar sua
tese mais clara: aquela entre a dimensão intencional e a extensional de
preposições do tipo “X deseja Y”. A intencional consiste, grosso modo, em uma
descrição da intenção do agente, enquanto a extensional é uma descrição correta
dos fatos.183 Essas duas dimensões não precisam necessariamente coincidir – por
exemplo, posso desejar um emprego por acreditar que ele fará de mim um homem
rico, mas depois verificar que estava com uma idéia equivocada, ou desejar me
casar com alguém por acreditar que esta pessoa possui certas qualidades, e depois
descobrir que ela na verdade não as possui.184 Nada impede, no entanto, que os
dois aspectos – intencional e extensional - possam coincidir.
Dizer que todo bem é aparente, assim, significa dizer que esta noção é
sempre caracterizada como sendo o objeto de um desejo, ou seja, que possui uma
dimensão intencional que lhe é inerente. Não é possível, portanto, conceber o Bem
como algo que independa deste caráter subjetivo, no que a concepção de
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Aristóteles se afasta da de Platão. Mas isso não quer dizer que não se possa falar
de um bem objetivo ou verdadeiro: o que o estagirita afirma, é que este caráter
objetivo não pode ser concebido independentemente do subjetivo.185
A pergunta que se coloca, agora, é o que diferencia os casos em que esses
dois aspectos coincidem - quando o bem subjetivo é também verdadeiro – dos
casos em que não isso não ocorre – quando o bem subjetivo é falso. Em outras

183
URMSON, 1988, p. 58-59. Lingüisticamente falando, podemos relacionar a “intensão” de uma
expressão ao seu significado conotativo, e a “extensão” ao seu significado denotativo. A extensão
de uma sentença é aquilo que é significado por ela, estando assim diretamente ligado ao seu valor
de verdade, ao passo que a intensão seria aquilo que é expresso: o conceito expresso pelo termo, a
propriedade expressa pelo predicado, a proposição asserida pela sentença. Há, portanto, uma
diferença entre a intensão e a “intenção”, que se refere à dimensão subjetiva do agente, mas estes
dois aspectos podem estar ligados, como ocorre, justamente, em proposições do tipo “X deseja Y”
(Cf. The Cambridge Dictionary of Philosophy, NY, Cambridge University Press, 1999, p. 439-
441; José Medina, Linguagem – Conceitos-Chave em Filosofia, Porto Alegre, Artmed, 2007, p.
51-52). Como diz Zingano, “somente as proposições práticas envolvem necessariamente um
contexto intensional, o que as distingue das proposições teóricas, que podem ser intensionais, mas
são nas mais das vezes formuladas de modo perfeitamente extensional. Convém assinalar que o
fenômeno lógico da intensionalidade tem no fenômeno psicológico da intencionalidade sua
expressão primária ou básica” (ZINGANO, 2007, p. 513, grifo nosso).
184184
Esta caracterização deixa clara a importante dimensão cognitiva da intenção, relacionada não
só à emoção, mas também a determinadas crenças do sujeito – vimos, justamente, que para
Aristóteles os desejos e emoções possuem esta dimensão cognitiva. Mais adiante, abordaremos o
importante papel que a noção de razão prática exerce na determinação do que nos aparece como
“bem”.
185
Podemos talvez fazer uma analogia entre este tipo de raciocínio e aquele utilizado por
Aristóteles na sua teoria hilemórfica, pela qual forma e matéria formam um composto (a
substância), não existindo, assim, separadamente. De forma similar, o caráter subjetivo e o
objetivo do Bem, embora não se confundam, também nunca se separam.
64

palavras, o que impede que a concepção aristotélica seja uma forma de


relativismo? A diferença estará, justamente, na virtude. Vimos, de fato, que a
concepção de bem depende do caráter de cada um, e assim o homem virtuoso, o
prudente, será a norma e medida do bem verdadeiro.186 Como diz Aubenque, “o
bem real é aquele que aparece como tal à vontade do homem valoroso; nele,
faino/menon a)gaqo/n e a)gaqo/n a(plw=j coincidem”, e, mais adiante: “são os
homens de valor que são juízes do próprio valor”.187 Para Hardie, “a virtude dirige
a escolha para o fim certo”,188 e na Ética Eudêmica vemos que “da correção do
fim e da escolha a causa é a excelência”.189 Este aspecto está diretamente ligado,
obviamente, à racionalização do desejo que estamos discutindo: como dizem
Gauthier & Jolif, o objeto do desejo irracional é o bem aparente, e o do desejo
racional é o bem real. 190 Reencontramos aqui a formulação que já havíamos
estabelecido desde o argumento do érgon, quando dissemos que o homem
virtuoso é aquele que deseja bem, sendo que a “qualidade” do desejo consiste,
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justamente, em sua harmonização com a razão. Mais adiante, ao tratarmos da


phrónesis, retomaremos este assunto, procurado delimitar de maneira mais
específica o que seria o bem “real”.
Resumindo, podemos considerar que o processo de formação de nosso
caráter – que pode ser entendido, grosso modo, como a racionalização do desejo e
de nossos afetos, através da formação pelo hábito e do procedimento ligado à
deliberação – é uma outra forma, sem dúvida a principal, pela qual nossos fins
podem se acordar com a razão, mesmo sem serem determinados diretamente por
ela. Este aspecto levará Aristóteles mesmo a afirmar, em algumas passagens, que
os fins podem ser escolhidos,191 o que parece, obviamente, entrar em contradição
direta com a tese de que só deliberamos sobre os meios. Este ponto pode ser

186
“talvez a maior diferença entre o homem bom e os outros está em aquele perceber a verdade em
cada classe de coisas, e ser dessas coisas, por assim dizer, norma e medida” (ARISTÓTELES, EN
III-4 [1113a32-35]).
187
AUBENQUE, 2008, p. 79; p. 80.
188
HARDIE, 1968, p. 169, tradução nossa.
189
ARISTÓTELES, EE II-11 [1228a1], tradução do inglês nossa.
190
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 211 (tomo II). Para enfatizar esta oposição, os comentadores
franceses não mencionaram que o bem real é também aparente. Neste sentido, teria sido mais
correto dizer, a nosso ver, que o objeto do desejo irracional é apenas aparente.
191
Por exemplo, no final do livro II da Ética Eudêmica, quando diz que julgamos o caráter de um
homem por suas escolhas, ou seja, pelo objeto em função do qual ele age, e não pelo próprio ato.
Este aspecto estaria ligado ao fato de que uma ação, tomada isoladamente, pode ser involuntária
(segundo os critérios analisados anteriormente, a compulsão e a ignorância), mas ninguém escolhe
involuntariamente (ARISTÓTELES, EE II-11 [1228a1-15]).
65

melhor compreendido, no entanto, se considerarmos que para o estagirita os


indivíduos são, pelo menos em parte, responsáveis por seus vícios e virtudes. De
fato, na Ética a Nicômaco temos:
Ora, o exercício da virtude relaciona-se com os meios; portanto, a virtude
também está ao nosso alcance, da mesma forma que o vício. Com efeito, quando
depende de nós o agir, igualmente depende o não agir, e vice-versa, ou seja,
assim como está em nossas mãos agir quando isso é nobre, assim também temos
o poder de não agir quando isso é vil; e temos o poder de não agir quando isso é
nobre, do mesmo modo que temos o poder de agir quando isso é vil. Por
conseguinte, depende de nós praticar atos nobres ou vis, e se é isso que significa
ser bom ou mau, então depende de nós sermos virtuosos ou viciosos.192

Nesta passagem, a responsabilidade acerca da virtude é relacionada à


possibilidade de agir ou não agir – como já comentamos anteriormente, as ações
possuem, para Aristóteles, um caráter indeterminado, devido à potência racional
ser uma potência de contrários. A nosso ver, este aspecto está sendo trazido à
tona, aqui, para ampliar o conceito de voluntariedade que havia sido discutido até
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então. Tínhamos visto, de fato, que a deliberação sobre os meios faz com que o
princípio motor da ação volte ao agente, tornando-o moralmente responsável. Essa
voluntariedade pode ser considerada limitada pelo fato de nossas ações
dependerem, sobretudo, de nossos desejos. No entanto, a análise sobre a noção de
“hábito” havia mostrado que a formação de nosso caráter se dá a partir de ações
que são repetidas em uma certa direção. Desta forma, a versão limitada da
voluntariedade (acerca dos atos) pode levar a uma voluntariedade acerca da
geração, em nós, de determinadas disposições, se tornando assim uma versão mais
forte de nossa responsabilidade moral sobre as ações. Aristóteles menciona, de
fato, o problema da voluntariedade logo após a passagem citada acima: “ou então
teremos de contestar o que acabamos de dizer, e negar que o homem seja um
princípio motor e pai de suas ações como se fosse de seus filhos”, e, mais adiante,
“as ações cujos princípios motores estão em nós devem também depender de nós e
ser voluntárias”.193 Como nossas ações são fruto de nosso caráter, dizer que estas
dependem de nós implica em considerar que nossa formação também depende de
nós. Como vimos acima, isso significa que mesmo os fins nos quais baseamos
nossas ações são, de certa forma, voluntários, pois estes dependem de nossa
virtude. Este é o assunto abordado em seguida pelo filósofo grego, relacionando-

192
ARISTÓTELES, EN III-5 [1113b6-13].
193
ARISTÓTELES, EN III-5 [1113b16-23].
66

o, justamente, à questão do “bem aparente”:


Mas alguém poderia objetar que todas as pessoas desejam o bem aparente a cada
uma delas, mas sobre a aparência ninguém tem controle, uma vez que os fins se
afiguram a cada um sob uma forma correspondente ao seu caráter. Respondemos
que, se cada homem é de certo modo responsável por sua disposição moral, será
também de certo modo responsável pela aparência.194

O estagirita cita então o argumento de que nossa visão moral seria


“natural”, ou seja, dependeria de nosso nascimento. Quando analisamos o
processo educativo ligado aos hábitos, mencionamos que a proposta de Aristóteles
procurava reunir as três principais teses sobre a aquisição das virtudes existentes
na sua época, segundo as quais estas seriam fruto da natureza, da cultura ou do
intelecto. A concepção aristotélica, assim, aceita que há um elemento naturalista
na composição de nosso caráter, que, portanto, não pode ser absolutamente
voluntário. No entanto, é possível falar de um certo nível de voluntariedade (mais
adiante, o filósofo grego irá dizer, justamente, que “nós somos de certo modo
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[aitios pōs] responsáveis por nossas disposições de caráter”)195, primeiro por causa
do elemento intelectualista, mas também porque o próprio processo educativo é,
para Aristóteles, voluntário em um certo sentido. O processo pelo qual isso se dá,
que citamos acima, volta, de fato, a ser mencionado pelo estagirita: “é no
exercício de determinadas atividades que se formam as disposições de caráter”.196
O filósofo grego comenta, por exemplo, que, se levamos uma vida desleixada, nos
tornaremos, provavelmente, pessoas descuidadas. 197 Quando estas disposições
tiverem sido fixadas, não teremos mais muita escolha de sermos ou não este tipo
de pessoa, mas podemos mesmo assim ser responsabilizados pela vida desleixada
que as gerou. Como diz Hardie, “se um homem que não é ignorante pratica ações
que o tornam injusto, sua injustiça é voluntária. Mas, tendo se tornado injusto, ele
não pode, se desejar, cessar de sê-lo”.198 Neste sentido, nossas disposições podem
ser consideradas uma “segunda natureza” ou “natureza prática” do agente, que, ao
contrário da primeira, é parcialmente voluntária. Isso significa dizer que nossos
fins também serão, em parte, fruto de nossa escolha, pois, como vimos, o que nos
aparece como sendo o “bem” depende de nosso caráter. Como diz o filósofo

194
ARISTÓTELES, EN III-5 [1114a33-1114b2].
195
ARISTÓTELES, EN III-5 [1114b22] (grifo nosso).
196
ARISTÓTELES, EN III-5 [1114a10].
197
ARISTÓTELES, EN III-5 [1114a3-5].
198
HARDIE, 1968, p. 175, tradução nossa.
67

grego: “Assim somos responsáveis por nossa forma de conceber o fim, na exata
medida em que somos responsáveis por nosso caráter”.199
Graças à razão deliberativa, sou senhor de minhas ações; como as disposições são
geradas pelas ações, sou em parte causa de minhas disposições. Ora, as
disposições práticas constituem o que se pode chamar de natureza prática do
agente, e os fins aparecem ao agente em função de sua natureza (prática); por
conseguinte, em uma certa medida, sou causa do fato de que certos fins apareçam
200
a mim.

Zingano faz, a nosso ver, um bom resumo de todo o processo:


A ética aristotélica constrói-se em torno desta inversão: no lugar de partir dos
fins, ela se insinua pelos meios e daqui retorna aos fins, pois, ao se decidir por
deliberação sobre os meios para obter um fim, nos tornamos senhores de nossas
ações; senhores de nossas ações, somos em um certo sentido responsáveis de
nossas disposições; responsáveis em um certo sentido de nossas disposições,
somos então, em uma certa medida, autores de nossa natureza prática; ora, visto
que o fim aparece em função da natureza (prática) do agente, em certo sentido
somos autores de nossos fins.201

Resumindo, podemos considerar que há várias maneiras pela qual nossos


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fins podem ser influenciados, ainda que não diretamente determinados, pela razão.
Este aspecto está relacionado, assim, ao processo de racionalização de
nossos desejos, culminando na noção de βούλησις, que possui uma dimensão
irracional e uma racional – daí a afirmação de Aristóteles, pela qual a proairesis
pode ser chamada tanto de desejo racional (o)/recij bouleutikh) quanto de
intelecto desejante (o)rektiko/j nou=j). 202 Como dissemos na introdução, nossa
análise da ética aristotélica visa mostrar que o objetivo maior do filósofo grego é
estabelecer como – e até que ponto - nossas ações podem ser determinadas pela
razão (o que seria um objetivo similar ao de Kant). Podemos agora afirmar que a
racionalização do desejo é a maneira encontrada por Aristóteles para explicar
como as ações do agente podem ser resultado de sua razão prática. Este duplo
aspecto da βούλησις – ser motor de nossos atos e ao mesmo tempo possuir uma

199
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 215 (tomo II), tradução nossa. Os comentadores franceses se
apressam em acrescentar que esta resposta de Aristóteles pode ser considerada insuficiente, pois
não se aplica à formação dos jovens, mas somente a homens já formados. Nos parece ser possível
afirmar que para Aristóteles a educação propriamente dita, que recebemos quando somos mais
jovens, não encerra completamente nossa formação, que continua, em certa media, durante a idade
adulta, quando então somos mais responsáveis pelo estilo de vida que levamos.
200
ZINGANO, 2007, p. 319-320. Urmson também menciona esta “segunda natureza” do agente:
“Aristotle compares acquiring a good character with acquiring a skill (...). Gradually, by practice
and repetition, it becomes effortless and second nature” (URMSON, 1988, p. 26).
201
ZINGANO, 2007, p. 164.
202
“A escolha, por conseguinte, é ou raciocínio desiderativo ou desejo raciocinativo”
(ARISTÓTELES, EN VI-2 [1139b4]).
68

dimensão racional – é o que levará este termo a ser traduzido em latim como
voluntas, “vontade”.203 Do ponto de vista filosófico, no entanto, esta tradução não
é correta, pois a vontade pode ser vista como um desejo essencialmente racional,
ou seja, uma atividade da alma racional por excelência.204 Como dizem Gauthier
& Jolif, ainda que o objeto e a regra (trataremos deste ponto mais adiante) da
βούλησις sejam fornecidos pela razão, ele permanece sendo um ato da parte
irracional da alma.205 Podemos assim considerar que o processo de racionalização,
que estamos descrevendo, não chega a eliminar completamente um elemento
irracional do desejo que é irredutível, o que diferencia definitivamente a βούλησις
daquilo que será posteriormente conhecido como “vontade”.
Por outro lado, por se tratar de um elemento irracional aprimorado pela
razão, a βούλησις também se diferencia de concepções puramente irracionais do
desejo, como encontraremos por exemplo em Kant e, em certa medida, nos
estóicos. Daí alguns autores, como Zingano, falarem de uma doutrina “moderada”
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da vontade em Aristóteles.206 Ross também comenta que a doutrina aristotélica da


escolha é claramente uma tentativa de formular uma concepção de vontade:
segundo o autor inglês, isso se deve, justamente, ao fato de que a escolha
deliberada não é um elemento racional que simplesmente se acrescenta ao desejo
e é guiado por ele: a βούλησις é razão e desejo (desejo guiado por razão e razão
acionada por desejo), e não apenas desejo “mais” razão.207 Neste sentido, a tese
aristotélica de que a deliberação se aplica somente aos meios não implica que a
razão possua para o filósofo grego um papel meramente instrumental – no que sua
doutrina se diferencia da de outros autores que defendem esta última posição,

203
ZINGANO, 2007, p. 191. Segundo alguns comentadores, Cicero parece ter sido o principal
responsável por esta tradução. Voltaremos a este ponto mais adiante, quando discutiremos o
surgimento histórico da voluntas.
204
“Para os escolásticos, a voluntas é precisamente um desejo racional no sentido de ser uma
atividade da alma racional, que possui nela mesma uma faculdade desejante distinta da faculdade
desejante irracional, idéia totalmente estrangeira a Aristóteles” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p.
194 (tomo II), tradução nossa).
205
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 193 (tomo II).
206
ZINGANO, 2007, p. 320.
207
“It has often been complained that the psychology of Plato and Aristotle has no distinct
conception of the will. Aristotle’s doctrine of choice is cleary an attempt to formulate such a
conception. Some of the features of his doctrine are a great advance on any previous thought on
the subject – the distinction of choice from appetite and rational wish; (...) the recognition of it as
implying both desire and reason, and not merely desire + reason, but desire guided by reason and
reason fired by desire” (ROSS, 1995, p. 207).
69

como Hume ou Nietzsche.208 A diferença fundamental está o fato de que a o)/recij


aristotélica é transformada pela razão ao “ouvi-la”. Se Aristóteles insiste que a
deliberação se dá apenas sobre os meios, é para descrever a contribuição desta no
processo de transformação do desejo, e não apenas para enfatizar o seu caráter
instrumental. O resultado, assim, é um desejo que pode ser considerado racional,
sem deixar nunca de ser irracional.
Podemos assim concluir nossa análise sobre a racionalização do desejo em
Aristóteles. Esse processo, como vimos, foi descrito pelo estagirita a partir de
noções ligadas à voluntariedade, como escolha e deliberação. Na verdade, esta
formação já havia sido iniciada na educação provida pelos hábitos, pois, como
vimos, esta deve gerar disposições moderadas, que são as mais adequadas para o
exercício da razão. Daí, justamente, as virtudes disposicionais serem definidas por
Aristóteles, na parte II da EN, como “disposições de caráter relacionadas com a
escolha”.209 Havíamos comentado, no entanto, que as virtudes morais só adquirem
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seu sentido próprio ou estrito (κυρίως) quando o agente passa a agir a partir de
razões que ele próprio se dá – podemos assim considerar que somente com a
deliberação ocorre de fato, no sentido próprio, a racionalização do desejo.
Se formos, agora, resumir o que fizemos até aqui, no primeiro capítulo
vimos que o sumo bem do homem está ligado, em Aristóteles, ao bom exercício
da razão, devido ao argumento do érgon. Isso significa que o valor moral de
nossos atos dependerá da capacidade da parte irracional de nossa alma em “ouvir”
a racional. Nos capítulos 1.2 e 1.3 analisamos, justamente, como se dá este
processo pelo qual nossos desejos se harmonizam com a razão: primeiro a partir
da formação, pelo hábito, de estados disposicionais de acordo com a mediania, e,
depois, com o surgimento do desejo racional ou βούλησις.
Resta-nos, agora, analisar o “bom exercício da razão” a que se referia o
argumento do érgon, ou seja, aquilo que é “ouvido” pela parte irracional de nossa
alma no caso das virtudes éticas. Trata-se da phrónesis (φρόνησις) ou sabedoria
prática, muitas vezes também traduzida como “prudência”. Tentaremos mostrar, a
partir desta noção, que a ética aristotélica também possui uma dimensão racional

208
“We have been misled by the expression ‘means to an end’ and it is quite easy to seet hat such a
confined account of the role of reason that leaves it the sole tasks of discovering facts and means
to an end is quite inadequate for Aristotle’s needs” (URMSON, 1988, p. 83-84).
209
ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a1]. A tradução de Oxford diz “concerned with choice”, mas a
francesa de Bodéüs prefere “estado decisional”, “état décisionnel”.
70

prescritiva, a partir da qual seria estabelecido o valor moral de nossos atos.

2.4
Sabedoria prática e prescritividade
A noção de phrónesis (φρόνησις) só será devidamente analisada no livro
VI da Ética a Nicômaco. Nos livros IV e V, após as discussões que abordamos
acima, Aristóteles começa a tratar das diversas virtudes particulares. Podemos
considerar que as principais são a coragem, a temperança e a justiça, sendo que
esta última ocupa um livro inteiro (V), não só por sua importância, mas também
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por sua atipicidade.210 Como já comentamos anteriormente, não nos interessa aqui
esta análise de disposições virtuosas específicas, mas apenas como estas se
relacionam com a razão prática.
O livro VI, assim, é aquele em que o filósofo grego examina a noção de
phrónesis. Logo no início, faz menção à doutrina da mediania. Ao tratar
anteriormente deste tema, Aristóteles já havia mencionado que o meio-termo é
estabelecido por uma regra da reta razão (o)rqo/j lo/goj): a definição formal da
virtude dada na parte II da EN, que nós citamos parcialmente mais acima, nos diz
que “a virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de
ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós,
que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de
sabedoria prática”.211 Embora exista uma certa discussão entre os comentadores
sobre como o termo λóγω deve ser entendido neste trecho,212 o livro VI retoma

210
Aristóteles comenta, como exemplo desta atipicidade, que o meio-termo da justiça tem um
sentido diferente das outras virtudes (ARISTÓTELES, EN V-5 [1133b30]), e que esta, em seu
sentido amplo, se confunde com a própria virtude (ibidem, V-1 [1130a09]). A mediania, no caso
da justiça, também parece se aplicar mais às ações do que às paixões, diferentemente das outras
virtudes (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 141 (tomo II)).
211
ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b36], grifo nosso.
212
A tradução de Oxford diz que o meio-termo é simplesmente “determinado pela razão”:
“determided by reason in the way in which the man of pratical reason wisdom would determine
it”. Os tradutores franceses, no entanto, tendem a discordar desta interpretação. Bodéüs considera
que Aristóteles não está realmente dizendo no livro II que a razão determina a norma racional do
Bem, mas apenas a definição formal da virtude, ou seja, sua essência (ARISTOTE, 2004, p. 117,
71

esta formulação de uma maneira mais clara: “o meio termo é determinado pelos
ditames da reta razão” (to\ de\ me/son e)stin w(j o( lo/goj o( o)rqo/j le/gei).213 Esta
afirmação está de acordo com a idéia de que a educação pelos hábitos visa
preparar nossos afetos para “ouvir” a razão, o que, por sua vez, está de acordo
com a tripartição da alma realizada por Aristóteles, e com a compreensão das
virtudes morais a partir do argumento do érgon: o bem do homem está na
atividade da alma em consonância com a virtude daquilo que lhe é peculiar, daí a
divisão da virtude em dianoéticas, ou seja, intelectuais no sentido mais estrito do
termo, e as virtudes éticas, que consistem, como vimos, em um aprimoramento do
irracional pelo racional. A prudência será uma virtude intelectual: trata-se,
justamente, da parte de nossa alma racional que é “ouvida” pela irracional.
Desta forma, a idéia de que nossos atos devem se acordar com o bom
exercício da razão culmina na noção de razão prática e seus “ditames”. Este
aspecto está diretamente ligado à mediania, pois, como vimos, os gregos tendiam
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a compreender a racionalidade a partir da doutrina do nada em demasia e da justa


medida, daí, justamente, a razão reta determinar o meio-termo. A importância da
phrónesis dentro da ética aristotélica confirma, assim, o que havíamos dito no
início de nossa exposição: a concepção de Aristóteles possui uma estrutura similar
à de Kant, pois para o filósofo grego, assim como para o alemão, o valor moral de
uma ação depende se sua harmonização com a razão prática.
No entanto, uma série de perguntas ainda precisam ser respondidas, como
a natureza destes ditames da razão, e como esta dimensão “imperativa” da
phrónesis pode ser conciliada com o caráter deliberativo (meios-para-fins) que foi
discutido na parte III. O conceito de sabedoria prática parece reunir ambos os
aspectos, pois, além de determinar o meio-termo, também é definido por

nota do tradutor). Esta tese não se sustenta, a nosso ver, pois neste caso não haveria necessidade de
dizer que esta definição é dada pelo homem dotado de sabedoria prática. Além disso, o próprio
Bodéüs parece reconhecer, posteriormente, o papel da razão no estabelecimento do meio-termo, ao
traduzir o trecho inicial do livro VI por “le milieu est comme la raison, si elle est droite, le
proclame” (ibidem, p. 289). Gauthier & Jolif passam um bom tempo analisando como o termo
λóγω deve ser entendido na definição formal de virtude no livro II – fazendo distinções, por
exemplo, entre “determinado por um logos” e “em relação a um logos”, ou “norma enquanto
plano”, concluindo que a “norma” aqui, é ao mesmo tempo o que permite atingir o fim desejado e
o que se impõe com autoridade (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 149 (tomo II)). Discutiremos
mais adiante a conciliação destes dois últimos aspectos citados pelos comentadores franceses.
213
ARISTÓTELES, EN VI-1 [1138b19]. Na tradução de oxford “the intermediate is determined
by the dictates of reason”, e na francesa de Bodéüs “le milieu est comme la raison, si elle est
droite, le proclame”.
72

Aristóteles como a excelência na deliberação.214


Já na introdução do livro VI, o filósofo grego comenta que “em todas as
disposições de caráter que mencionamos, assim como em todos os demais
assuntos, há uma meta certa a visar, no qual o homem, orientado pela razão, fixa o
olhar”.215 Neste trecho a mediania parece se subordinar a algum tipo de objetivo
(σκοπός), ou seja, um fim (τέλος). A regra da reta razão, assim, poderia ser
entendida como algum tipo de norma (o(/roj) que precisa ser seguida para que
atinjamos um determinado fim.
Como comentam Gauthier & Jolif:
O justo meio das virtudes morais é determinado pela regra reta, que Aristóteles
nos dirá ser obra da sabedoria prática que é a phrónesis. Mas a aplicação desta
regra reta é ela mesma função do objetivo que ela visa, ou seja, o fim à qual ela é
ordenada, fim que é a norma suprema das virtudes morais.216

Podemos adivinhar que este fim seja a eudaimonia. De fato, os


comentadores franceses acrescentam logo em seguida que “a norma à qual
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Aristóteles nos remete, não é uma norma ideal, uma qualquer Idéia do Bem, é o
fim real e concreto do homem, este bem humano que ele não cessou de opor ao
Bem-em-si”.217
Em uma primeira aproximação, assim, a ligação do caráter prescritivo com
o deliberativo parece se dar desta forma: “devo” fazer aquilo que leva à
eudaimonia. Esta formulação, no entanto, ainda não esclarece realmente a relação
entre a norma e os fins da ação: seria meramente instrumental? Isto parece
estranho, dado o caráter constitutivo da função do homem para sua felicidade.
Também não fica clara de que forma a prescrição do meio-termo se liga à
deliberação de meios-para-fins. Para tentar responder as estas perguntas,
precisamos acompanhar a exposição de Aristóteles, no livro VI, acerca da
natureza da razão prática.
O filósofo grego começa procurando diferenciar a sabedoria prática da
filosófica, a partir de uma divisão no interior da alma racional, entre aquela parte
que contempla o que é invariável, e a que contempla o que é passível de variação.

214
“(...) a pessoa que é capaz de deliberar possui sabedoria prática” (ARISTÓTELES, EN VI-5
[1140a30-31]). Cf. ibidem, VI-7 [1141b10]: “deliberar é acima de tudo a função do homem dotado
de sabedoria prática, aliás, deliberar bem”.
215
ARISTÓTELES, EN VI-1 [1138b21].
216
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 437 (tomo II), tradução nossa.
217
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 438 (tomo II), tradução nossa.
73

A primeira é chamada de científica (e)pisthmoniko/n), e a segunda de calculativa


(λογιστικόν). Esta distinção, assim, se deve ao fato de os objetos contemplados
serem de duas espécies (variáveis e não variáveis), o que implica que as partes
correspondentes também sejam de espécies diferentes. O cálculo é como a
deliberação, e ninguém delibera sobre coisas invariáveis.218 Reencontramos aqui
as teses ontológicas que havíamos citado anteriormente, e que levam a
importantes conseqüências dentro da ética aristotélica, como o particularismo.
Este aspecto também afeta diretamente o problema de determinar a natureza da
eudaimonia – se esta deve ser compreendida como um bem inclusivo ou
exclusivo, como vimos -, pois ambas as partes estão implicadas no argumento do
érgon, já que as duas pertencem à nossa alma racional. Voltaremos a este ponto
mais adiante.
Aristóteles se preocupa então em estabelecer em que consistiria a
excelência das duas partes da alma racional, a partir daquilo que seria a sua função
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(pois a virtude de algo consiste em cumpri-la devidamente): por se tratarem de


faculdades intelectuais, sua função seria a “verdade”. Neste sentido, a excelência
da razão prática não consiste mais no meio-termo, como ocorria com as virtudes
morais. A virtude do intelecto calculativo, assim como a do intelecto científico,
consiste em dizer a verdade, e, como dizem Gauthier & Jolif, “todo o esforço de
Aristóteles vai consistir em mostrar o sentido que reveste a noção de verdade no
caso do intelecto prático”.219
Essa linha de raciocínio leva o filósofo grego a analisar, então, as
disposições através das quais a alma possui a verdade, e estas seriam cinco: a arte,
o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão
intuitiva. O estagirita parece estar seguindo, aqui, um procedimento que lhe é
característico, considerando que a natureza da razão prática só pode ser
devidamente compreendida a partir da sua diferença específica em relação às

218
ARISTÓTELES, EN VI-1 [1139a5-16]. Esta divisão da parte racional da alma em duas sub-
partes já havia sido anunciada por Aristóteles no final da parte I, conforme comentamos na
ocasião. Gauthier & Jolif comentam que no livro VI parecem se misturar duas concepções
diferentes da alma racional: uma mais antiga, pela qual se trataria de duas partes distintas, que
remetem à divisão platônica em parte científica e parte opinante, e uma concepção nova pela qual
o intelecto científico e o intelecto prático seriam funções de uma mesma faculdade, o que
consistiria uma crítica de Aristóteles a Platão (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 442 (tomo II)).
219
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 443 (tomo II), tradução nossa.
74

outras disposições do mesmo gênero (ou seja, também ligadas à “verdade”).220


As duas primeiras disposições abordadas são a ciência e a arte: o
conhecimento científico tem por objeto o que é necessário em um sentido absoluto
do termo, isto é, o que é eterno, e, além disso, é um tipo de conhecimento que
permite demonstrações a partir de universais, atingidos por indução.221 Já a arte
(τέχνη - termo que possui, como se sabe, um sentido mais amplo do que o atual,
se aplicando a todo tipo de técnica que “produz” algo), é separada da atividade
moral a partir de uma distinção, que se tornou famosa, entre “ação” (πράξις) e
“produção” (ποίησις): os bens “produzidos” são externos às suas atividades, ao
passo que os bens das ações são internos.222
A diferenciação com as duas disposições restantes – sabedoria filosófica e
razão intuitiva – se dá a partir da caracterização da σοφία como uma junção entre

220
Gauthier & Jolif comentam a aparente contradição desta enumeração de cinco disposições com
a tese de que só pode haver duas virtudes intelectuais, já que são duas as partes ou funções da alma
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racional. Aristóteles estaria aqui se referindo a uma opinião corrente (“admitamos que existam
cinco disposições”), para depois reduzi-las a apenas duas (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 452
(tomo II)).
221
ARISTÓTELES, EN VI-3 [1139b25-30]. O próprio Aristóteles remete esta análise àquilo que é
dito nos Segundos Analíticos. É preciso considerar que a indução não faz, ela própria, parte da
ciência, mas da quinta disposição, que será analisada mais adiante pelo filósofo grego: a razão
intuitiva ou inteligência. A junção da ciência com a razão intuitiva resultará na filosofia, que é a
excelência do intelecto científico (ARISTÓTELES, EN VI-7 [1141a17]). Isso confirma o
comentário feito por Gauthier & Jolif que citamos na nota anterior, pelo qual as cinco disposições
que estão sendo analisadas acabarão remetendo apenas às duas virtudes da parte racional.
222
“Enquanto produzir tem uma finalidade diferente do próprio ato de produzir, o mesmo não
ocorre com o agir, pois a finalidade da ação está na própria ação” (ARISTÓTELES, EN VI-5
[1140b6]). A arte e a razão prática também diferem por seus procedimentos, embora de forma
mais sutil do que ocorreu no caso da ciência: o filósofo grego afirma que “a capacidade
raciocinada de agir é diferente da capacidade raciocinada de produzir” (ARISTÓTELES, EN VI-4
[1140a3]). O termo utilizado aqui – µετά λογου – é mais amplo do que a deliberação, indicando
um estado “refletido”, “raciocinado”, “apoiado em provas” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 459
(tomo II)). Como comentam os autores franceses, este termo pode se aplicar, por exemplo, à
ciência – que não aceita deliberação -, e mesmo, em um sentido ainda mais amplo, à virtude moral
de forma geral (ibidem, p. 459). Mais adiante, no entanto, o filósofo grego dará a entender que a
arte também se baseia na deliberação – pois as coisas produzidas também são variáveis -, mas de
uma maneira diferente da razão prática, devido ao fato, justamente, de seus objetos serem
diferentes. No final das contas, a arte não será considerada sequer uma virtude (ARISTÓTELES,
EN VI-5 [1140b22-25]). Este aspecto está diretamente relacionado ao fato da arte não se referir a
“ações” nos sentido próprio do termo, pois nestas ultimas os bens são internos, e não externos.
Aristóteles dá como exemplo desta diferença o fato de nas virtudes preferirmos o erro involuntário,
enquanto na arte é o contrário. A arte não está, assim, ligada às virtudes morais. Isso não impede,
no entanto, que ela também seja comandada pela phrónesis (ARISTOTE, 2004, p. 307, nota do
tradutor). Zingano comenta que a diferença na aplicação da deliberação à arte e à ação moral
possui uma base ontológica: no caso das técnicas, este processo parece possuir para Aristóteles um
caráter ainda platônico, pelo qual a deliberação é necessária apenas devido a uma falha no
conhecimento científico, enquanto a ação moral é ontologicamente indeterminada – em outras
palavras, nesta última a deliberação estaria “de direto”, e nas atividades técnicas apenas “de fato”
(ZINGANO, 2007, p. 126). É preciso considerar que, embora sejam diferentes, a arte pode ser
considerada subordinada à razão prática, pois o uso daquilo que é produzido, em última instância,
se insere dentro de alguma ação que é seu próprio fim (ROSS, 1995, p. 222).
75

a intuição (νούς), que permite a determinação dos seus primeiros princípios, e a


ciência, que realiza demonstrações a partir destes princípios. 223 Este tipo de
conhecimento seria superior à razão prática, pelo fato, sobretudo, de seus objetos
serem os mais elevados, enquanto os da phrónesis são humanos, e o homem não é
o que há de melhor no mundo; além disso – de forma relacionada – os objetos da
primeira são invariáveis, e os da segunda não.224 A distinção entre phrónesis e
sofia se dá, assim, pelo fato do domínio da primeira não ser o Bem ou o Mal em
geral, mas para o homem.225
A partir destas diferenciações, o estagirita chega a uma primeira definição
da razão prática: “uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir no tocante às
coisas que são boas ou más para o homem”. 226 Pierre Aubenque descreve de
forma bastante clara, a nosso ver, todo o processo que levou a esta conclusão:
segundo o comentador francês, Aristóteles estabelece primeiro que a prudência é
uma disposição (portanto não é ciência) que é prática (portanto não é arte). Ora,
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esta definição ainda se aplica às virtudes de forma geral, o que leva o estagirita a
especificar que, enquanto as virtudes morais são disposições práticas concernentes
à escolha, a sabedoria prática é uma disposição prática que concerne a regra da
escolha (ou, como é em geral traduzido, “capacidade verdadeira e raciocinada de
agir”). Não se trata assim, como no caso das virtudes morais, de uma retidão da
ação, mas sim da correção do critério.227 A “verdade” da sabedoria prática seria,
portanto, a regra verdadeira.
Esta última definição, no entanto, ainda se aplicaria à sabedoria filosófica,
levando Aristóteles a realizar uma última especificação, estabelecendo, como
vimos, que os objetos da razão prática são o bem e o mal para o homem. Desta
forma, fica estabelecida a diferença especifica da prudência em relação às outras
disposições da alma pela qual possuímos a verdade, levando à definição que

223
“a sabedoria deve ser uma combinação da razão intuitiva com o conhecimento científico”
(ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140a27]). Aristóteles acrescentará mais adiante ([1141b3]) que esta
intuição deve se referir daquilo que é mais elevado. O filósofo grego também se refere à
determinação dos primeiros princípios como sendo fruto às vezes da indução, e às vezes da
intuição – Gauthier & Jolif comentam, neste sentido, que a indução prepara a via para a intuição,
ao reunir os dados relativos aos casos particulares, e assim o conhecimento dos princípios poder
ser indiferentemente atribuída à indução (concluída pela intuição) ou à intuição (preparada pela
indução) (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 490 (tomo II)).
224
ARISTÓTELES, EN VI-7 [1141a20-25].
225
AUBENQUE, 2008, p. 62.
226
ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140b1]. Na verdade, esta definição aparece logo antes da análise
da sabedoria filosofia e da razão intuitiva, mas já leva em conta estas futuras conclusões.
227
AUBENQUE, 2008, p. 61.
76

vimos acima, repetida por Aristóteles pouco depois: “uma capacidade verdadeira e
raciocinada de agir no que diz respeito às ações relacionadas com os bens
humanos”. 228 Esta caracterização é apoiada na visão popular acerca do homem
sábio: “julga-se que seja característico de um homem dotado de sabedoria prática
ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para ele, não sob
um aspecto particular (...), mas sobre aquelas que contribuem para a vida boa de
um modo geral”. 229 A sabedoria prática aparece, assim, como a excelência no
deliberar acerca daquilo que é bom para o homem no decorrer de toda sua vida –
em suma, daquilo que é relativo à eudaimonia.
Esta primeira definição da phrónesis ainda enfatiza, claramente, a relação
meios-para-fins que vem sendo abordada desde o livro III, o que confirma a
caracterização da prudência como a “excelência na deliberação”. É preciso
considerar que não se trata, aqui, de uma deliberação qualquer, mas aquela que
porta sobre o que é bom ou mau para “o” homem, ou seja, aquele “bem
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verdadeiro” que, como vimos, é enxergado pelo homem virtuoso. Daí a idéia,
como veremos mais adiante, de que a relação entre as virtudes morais e a
phrónesis é dupla: as primeiras, por um lado, precisam da segunda para se
tornarem próprias, mas, por outro lado, a segunda só pode operar a partir das
primeiras, pois são estas que visam o verdadeiro bem que é o objeto da sabedoria
prática.230
Esta caracterização inicial da phrónesis não esclarece muita coisa sobre a
dimensão prescritiva que havia sido anunciada no início do livro VI. A seqüência
da exposição de Aristóteles, no entanto, trará alguns elementos mais úteis neste
sentido: após a definição que vimos acima, o filósofo grego passa a analisar uma
série de virtudes intelectuais que estariam, de alguma forma, implicadas na
sabedoria prática, de forma relacionada à apreensão dos particulares.231 De fato, a

228
ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140b20]. Bodëus prefere “estado verdadeiro” (état vrai) a
“capacidade”.
229
ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140a27]. Mais adiante, teremos: “delibera bem, no sentido
absoluto da palavra, o homem que visa calculadamente ao que há de melhor para os homens,
naquilo que é atingível pela ação” (ibidem, VI-7 [1141b12]).
230
Neste sentido é que, como comenta Ross, a “verdade” do intelecto calculativo é a verdade sobre
“os meios que levam à satisfação do desejo reto” (ROSS, 1995, p. 222, tradução nossa). A
correção do critério visado pela sabedoria prática, assim, pressupõe que o bem visado seja o bem
verdadeiro, estabelecido pelo homem dotado de virtude moral.
231
Como comentam Gauthier & Jolif, a idéia aqui, assim como na lista anterior (as cinco
disposições ligadas à “verdade”), parece ser a de mostrar que as principais virtudes ou disposições
conhecidas na época podem ser reduzidas a apenas duas, correspondendo às duas partes ou
77

comparação anterior com a sabedoria filosófica havia levado Aristóteles a


estabelecer esta importante característica da prudência: 232 “essa espécie de
sabedoria não se relaciona apenas com o universal mas também com os casos
particulares, que se tornam conhecidos pela experiência”; “o erro na deliberação
pode ser tanto em relação ao universal como ao particular”; “a sabedoria prática se
relaciona com o fato particular imediato, que é objeto não de conhecimento
científico mas de percepção”.233 Aqui começa a se delinear de forma mais clara
esta dupla dimensão da phrónesis aristotélica, que se refere ao universal e ao
particular, e podemos adivinhar que o caráter “prescritivo” que estamos
investigando remeterá, justamente, à relação entre estes dois elementos.
Como dissemos, para analisar como se dá esta apreensão o filósofo grego
menciona uma série de virtudes conhecidas em sua época, tanto na cultura popular
quanto no meio intelectual: o “bom conselho” (eu)bouli/a), 234 a “perspicácia”
235
(eu)stoixi/a), a “vivacidade de espírito” (a)gxi/noia), o “bom senso” ou
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“discernimento” (γνώµη) e a “inteligência” ou “compreensão” (σύνεσις). 236 As


mais importantes, que afetam de forma direta o que estamos discutindo, são a
primeira, o bom conselho ou eu)bouli/a, e a última, a inteligência ou σύνεσις.
O bom conselho pode ser entendido como uma correção ou habilidade na
deliberação, e neste sentido praticamente se confunde com a prudência. Esta
habilidade permite, por exemplo, aos sábios governarem a cidade, mas também a

funções do intelecto: a sabedoria filosófica e a prática (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 507-509
(tomo II)). Esta nova lista remeteria, direta ou indiretamente, à classificação da academia
platônica.
232
O filósofo grego começa distinguindo aquilo que poderíamos chamar de “níveis de
particularidade”, a partir da diferença entre razão prática individual (que é como chamamos
comumente este tipo de conhecimento) e a política. Esta última, de fato, também exige uma
excelência na deliberação acerca daquilo que é bom para os homens, a partir da administração da
cidade. Já havíamos comentado como para Aristóteles a ética e a política estão intrinsecamente
relacionados. O estagirita afirma, então, que consideramos possuidor de sabedoria prática o
indivíduo que sabe o que é bom para si mesmo, mas talvez o bem particular de cada um não possa
existir sem alguma forma de governo (ARISTÓTELES, EN VI-8 [1141b22-1142a11]).
233
ARISTÓTELES, EN VI-8 [1142a13]; ibidem, VI-8 [1142a20]; ibidem, VI-8 [1142a27].
234
Os tradutores franceses – Bodéüs, Gauthier & Jolif – adotam esta expressão, enquanto a
tradução em português que estamos usando e a inglesa de Oxford preferem “excelência na
deliberação”. Adotamos aqui a versão francesa por considerar que ela deixa mais claro que esta
disposição não se confunde com a razão prática.
235
Aqui os franceses discordam, pois Bodéüs usa a expressão “intuition juste”. A versão em
português e a de Oxford traduzem εύστοχία por “habilidade de fazer conjecturas”. Preferimos
adotar a versão de Gauthier & Jolif.
236
Seguimos mais uma vez os franceses. Na tradução em português “vivacidade intelectual”, na de
Oxford “readiness of mind”.
78

si mesmos. 237 Aristóteles procura mostra que esta capacidade difere da ciência
(por envolver cálculo e investigação), da perspicácia (pois esta – que pode ser
entendida como a habilidade em atingir o objetivo visado, aproveitando a ocasião
propícia -, não pressupõe raciocínio, e, além disso, é rápida demais), e da
vivacidade de espírito (pois esta pode ser entendida como uma forma de
perspicácia rápida). Podemos assim considerar que bom conselho se liga de forma
mais direta à phrónesis, sendo uma excelência no raciocínio ou reflexão (διάνοια),
ou seja, uma forma de correção da deliberação. O filósofo grego enfatiza este
aspecto, comentando que não se deve confundi-la com uma correção de
conhecimento ou de opinião.238 Para compreender melhor em que consistira esta
“correção”, Aristóteles analisa seus objetos, concluindo que esta excelência deve
ser entendida como uma correção quanto ao fim, ao modo e a ao tempo gasto na
deliberação. 239 Podemos nos perguntar, a partir desta definição, qual seria a
diferença entre o bom conselho e a sabedoria prática propriamente dita. Bodéüs
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faz uma interessante observação neste sentido, considerando que o bom conselho
seria o equivalente da phrónesis nas questões relativas a fins específicos, sendo
que as duas coincidem, assim, quando se referem ao fim absoluto ou supremo.240
Aristóteles trata então da inteligência ou compreensão (σύνεσις),

237
Neste sentido, ela também possui o sentido de “resolução feliz” (GAUTHIER & JOLIF, 1970,
p. 511 (tomo II)).
238
ARISTÓTELES, EN VI-9 [1142b8].
239
ARISTÓTELES, EN VI-9 [1142b27]. A ênfase no “modo” é interessante por deixar claro que
não basta que o fim seja apropriado, ou seja, a doutrina aristotélica não prega que “o fim justifica
os meios”. O filósofo grego faz uma comparação com o silogismo no qual uma premissa falsa
pode levar a uma conclusão correta (ibidem, VI-9 [1142b22]). Desta forma, não há excelência na
deliberação se alcançamos o objetivo correto pelo meio incorreto. A correção quanto ao “fim”
também levanta questões, pois parece haver, aqui, uma contradição com a doutrina aristotélica de
que a deliberação se refere somente aos meios. Este aspecto é reforçado pela caracterização do
bom conselho que vem logo a seguir: “a excelência na deliberação será a correção na deliberação
do que conduz ao fim cuja concepção [apprehension] verdadeira constitui a sabedoria prática”
(ibidem, VI-9 [1142b33]). Vimos anteriormente que o fim visado pelo desejo não deixa de ser
“racionalizado” para Aristóteles, ainda que não determinado diretamente pela razão. Este trecho
específico não parece fazer menção a este aspecto, mas alguns comentadores consideram que é
possível elaborar interpretações que evitam a contradição. Gauthier & Jolif, por exemplo, sugerem
que o relativo “cujo” (ού) se refere à toda a frase, e não apenas a τέλος, permitindo que a
afirmação seja entendida como “a prudência é a apreensão (aperception) verdadeira daquilo que é
útil para o fim” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 518 (tomo II)). Já para Bodéüs o filósofo grego
não diz nesta frase que deliberamos sobre o fim, mas sim que a phrónesis é uma crença verdadeira
acerca do fim, implicando, assim, na verdade em sua apreensão (ARISTOTE, 2004, p. 327 (nota
do tradutor Bodëus)). Esta última interpretação, a nosso ver, está em acordo com o processo de
“racionalização dos fins” que mencionamos acima. Como comentaremos mais abaixo, parece-nos
que aquilo que caracteriza a sabedoria prática é o fim visado ser a própria eudaimonia, e, neste
nível, praticamente tudo pode ser considerado meio, e, portanto, sujeito à deliberação, em função
de sua relação com o sumo bem. Voltaremos a este ponto mais adiante.
240
ARISTOTE, 2004, p. 327 (nota do tradutor Bodëus).
79

diretamente ligada à apreensão dos particulares: para estabelecer este aspecto, o


filósofo grego começa criticando a concepção platônica da σύνεσις: “a
inteligência não se relaciona com as coisas eternas e imutáveis, nem com qualquer
outra que vem a ser, mas aquelas sobre as quais podemos ter dúvidas e deliberar.
Por conseguinte, os seus objetos são os mesmos que os da sabedoria prática”.241
No entanto, haveria uma diferença fundamental entre phónesis e inteligência: “a
sabedoria prática emite ordens, já que seu fim é o que se deve e o que não se deve
fazer, enquanto a inteligência limita-se a julgar”.242 O caráter prescritivo da razão
prática aparece aqui, mais uma vez, de maneira explícita, e, para compreendê-lo, é
preciso analisar sua diferença com a inteligência: como comentam, mais uma vez,
Gauthier & Jolif, existe um certo desacordo entre os comentadores sobre a
prioridade de uma capacidade sobre a outra – Aristóteles não deixa claro o que
vem antes ou depois -, e os dois autores franceses, junto com Tomás de Aquino,
consideram que é o julgamento da inteligência que antecede o caráter imperativo
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da phrónesis. Como havia ocorrido anteriormente com a noção de προαίρεσις


(“escolha”, “decisão”), que, como vimos, é fruto da junção do juízo (γνώµη) e do
desejo, o julgamento (κρίσις), puramente intelectual, também só se tornaria
“imperativo” a partir da intervenção do desejo retificado pela virtude moral, ou
seja, o desejo racionalizado, a βούλησις. 243 Descrita desta forma, a relação
inteligência-phrónesis parece ser similar à juízo-decisão, mas se dando em um
outro nível: de fato, esta última correspondia ao momento em que surge o desejo
racional ou βούλησις, enquanto que na primeira este já se encontra, por assim
dizer, formado, o que significa que já houve o processo de racionalização dos fins
que comentamos anteriormente. Daí, como vimos, a caracterização da phrónesis
como uma excelência da deliberação “acerca daquilo que é bom para o homem no
decorrer de toda sua vida”, ou seja, em relação à eudaimonia.
Tudo se passa, a nosso ver, como se a junção intelecto-desejo se sucedesse
em dois níveis: em um primeiro momento, isto ocorre em relação a objetivos mais

241
ARISTÓTELES, EN VI-10 [1143a6]. Como comenta Aubenque, “a σύνεσις não designa a
inteligência do teólogo, nem mesmo a do físico, mas antes a capacidade de analisar e discernir as
situações concretas” (AUBENQUE, 2008, p. 241).
242
ARISTÓTELES, EN VI-10 [1143a8]. Na tradução de Oxford “issues commands”, na de
Bodéüs “est prescritive”.
243
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 529-532 (tomo II). Cf. AUBENQUE, 2008, p. 241: “a
inteligência tem, pois, o mesmo domínio da prudência (ou seja, o que devém enquanto depende de
nós) e dela difere somente pelo fato de que é crítica, enquanto a prudência é normativa
(έπιτακτική)”.
80

simples e imediatos do dia-a-dia. A racionalização do desejo que resulta deste tipo


de deliberação, no entanto, faz com que passemos a enxergar “mais longe”, por
assim dizer (por exemplo, a partir da estruturação desses fins mais imediatos entre
si, pelo reconhecimento de que estes são meios para outros fins etc), e com isso o
bem visado passa a ser, em última instância, a própria eudaimonia. Então, neste
segundo nível, ocorre um outro julgamento que, juntando-se com o desejo já
racionalizado, resulta na noção de sabedoria prática. Daí a excelência na
deliberação (a boa escolha) ter como objeto não aspectos particulares e isolados,
mas aquilo que contribui para a vida boa como um todo.244 Daí, da mesma forma,
a idéia que só podemos falar de sabedoria prática quando as virtudes morais já
estão operantes, como já comentamos.245
Este aspecto possui interessantes conseqüências, a nosso ver, acerca da
questão de os fins serem ou não ser estabelecidos pela razão. Havíamos
argumentado que o encadeamento dos diferentes objetivos entre si faz com que,
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em última instância, todos, com exceção da eudaimonia, possam ser vistos como
meios para outros bens. Isso significa dizer que, quando o fim visado é a própria
eudaimonia, então tudo pode objeto de deliberação. É exatamente isso o que
ocorreria na sabedoria prática. Daí, justamente, a idéia de que a prudência se
refere mesmo àquilo que tomamos usualmente como fins, pois, neste nível, estes
podem ser apreendidos em função de sua relação com o sumo bem.246
Após a discussão sobre as disposições listadas acima – todas, volta a

244
ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140a27].
245
Após a inteligência, Aristóteles aborda a última virtude ou faculdade intelectual ligada à
phrónesis: o bom senso ou discernimento, γνώµη. Ele é compreendido com a reta discriminação
do que é honesto ou equitativo (ARISTÓTELES, EN VI-10 [1143a19]) (nossa tradução em
português traduz γνώµη como “discernimento”, os franceses como “bom senso” e a de Oxford
como “judgement”). Segundo, mais uma vez, Gauthier & Jolif, este termo designa a aptidão de
reconhecer uma coisa pelo que ela realmente é (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 533 (tomo II)).
Neste sentido a γνώµη pode ser considerada, a nosso ver, um caso particular da σύνεσις, pois esta
é um julgamento geral sobre as ações, enquanto a primeira porta somente sobre as ações
equitáveis.
246
Podemos nos perguntar em que medida a diferença entre as concepções “inclusiva” e
“exclusiva” da eudaimonia, que mencionamos na parte 1, afeta este aspecto. Faria sentido dizer
que um fim de segunda ordem pode ser diretamente “visado”, de forma que todos os outros bens
se tornem meios para ele? A nosso ver sim, pois senão não o chamaríamos de “fim”. Ainda que a
eudaimonia possua uma unidade apenas formal, enquanto um conjunto harmonioso ou um sistema
de prioridades de bens inter-relacionados, podemos mesmo assim considerar que esta
harmonização e hierarquização são “buscadas”, tornando os fins substantivos sujeitos à
deliberação, em função de sua contribuição para esta harmonização. Além disso, mesmo se
considerarmos que a própria eudaimonia não pode ser diretamente visada, os bens a que se refere a
sabedoria prática com certeza são mais gerais do que nossos objetivos do dia a dia, e, portanto,
podemos ainda considerar que a deliberação da prudência porta sobre praticamente todos os fins,
apreendidos como meios para estes bens mais gerais.
81

insistir, relacionadas com coisas imediatas, ou seja, particulares 247 -, o filósofo


grego considera terminada sua análise sobre o que são as sabedorias filosófica e
prática. Podemos ficar um pouco decepcionados, pois o que foi feito, basicamente,
foi mostrar como as diversas virtudes intelectuais conhecidas na época se
incorporam a estas duas. No decorrer deste processo, pontos importantes foram
estabelecidos acerca da phrónesis, como uma definição formal a partir de sua
diferença específica, e a relação com o particularismo. Mas podemos considerar
que a questão central que estamos analisando - o caráter prescritivo da razão
prática – ainda não foi respondida de forma clara, embora, como vimos, ela pareça
estar de alguma forma ligada à apreensão dos particulares.
O livro VI, no entanto, não se encerra quando Aristóteles diz ter concluído
sua descrição das duas formas de sabedoria. Há ainda um trecho final no qual o
autor se propõe a discutir o problema da “utilidade” da razão prática. Este ponto
levará ao desenvolvimento de algumas questões importantes para a ética
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aristotélica, que podem nos ajudar a esclarecer o que estamos investigando.


O questionamento acerca da utilidade da sabedoria prática se dá a partir de
dois pontos: de fato, mesmo que se tenha demonstrado que a phrónesis é a
“disposição da mente que se ocupa com as coisas justas, boas e nobres para o
homem”, podemos ainda nos indagar, primeiro, se este conhecimento nos torna
melhores – afinal, conhecer a arte da medicina não nos faz mais saudáveis -, e,
segundo, se a prudência possui alguma utilidade para as pessoas que já possuem a
virtude moral. Em suma, pode parecer, à primeira vista, que tanto as pessoas
viciosas quanto as virtuosas não precisam da razão prática.248
A resposta a estas questões leva Aristóteles a esclarecer, como dissemos,
alguns aspectos importantes de sua doutrina, já anunciados anteriormente: o autor
começa considerando que os efeitos da sabedoria (especulativa e prática) não
devem ser vistos com aqueles que existem entre a medicina e a saúde, mas sim

247
Cada uma delas exerceria uma função diferente, por assim dizer, dentro desta apreensão – a
razão intuitiva requerida pelo raciocínio prático, por exemplo, apreende o fato último e invariável,
ou seja, a “premissa menor” (ARISTÓTELES, EN VI-11 [1143b3]). Reencontramos aqui a idéia
de que o objetivo maior de Aristóteles, no decorrer desta exposição, é mostrar que todas estas
disposições, conhecidas na época, estão contidas nas sabedorias filosófica e prática. A cinco
últimas, como havíamos comentado, consistiriam em formas diferentes de aprender o particular,
relacionando-se, assim, diretamente à phrónesis. O caráter prescritivo desta última, no entanto, se
deve à relação deste particular com uma premissa universal, que nos cabe, ainda, analisar.
248
Outro problema se dá na suposta inferioridade da sabedoria prática em relação à filosófica. Para
todo este trecho: ARISTÓTELES, EN VI-12 [1143b21-33].
82

entre saúde e saúde. 249 Como comentam Gauthier & Jolif, o estagiritia estaria
dizendo, aqui, que a relação entre sabedoria e felicidade não é eficiente e
transitiva, mas sim formal e imanente.250 Isto se deveria o fato, justamente, de a
sabedoria estar implicada na própria essência da felicidade. 251 Reencontramos,
aqui, o aspecto central que havíamos comentado ao abordar o argumento do
érgon: este último não deve ser entendido com um meio de atingir uma concepção
de felicidade pré-estabelecida, mas sim como uma reflexão sobre a própria
natureza da eudaimonia. Daí, justamente, as virtudes (tanto éticas quanto
dianoéticas, pois ambas são ligadas ao bom exercício da razão), serem
constitutivas da felicidade, e não meros instrumentos. Como havíamos visto, estas
virtudes são buscadas por si mesmas, embora se possa ainda dizer que são
valorizadas em função da felicidade, sendo assim a eudaimonia o único bem
perfeito e acabado.252
Após responder à questão sobre a utilidade da razão prática a partir da
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relação formal entre virtude e eudaimonia, o filósofo grego começa a preparar o


terreno para a noção de “virtude própria”, que mencionamos ao tratar da mediania
das paixões formada pelos hábitos. O autor retoma então a distinção entre a ação
que apenas parece, externamente, ser virtuosa, e aquela que possui, de fato, a
disposição interna adequada: 253 “para alguém ser bom é preciso ter uma certa
disposição quando pratica esses atos, isto é, a pessoa deve praticá-los em
decorrência da escolha e visando os próprios atos”.254 Percebe-se, assim, como
algo foi acrescentado desde que este ponto foi abordado no livro II: antes tratava-
se apenas da diferença entre a mera imitação externa do ato e as ações motivadas,
internamente, pelas disposições adequadas. Agora é acrescentada a noção de
escolha, ou seja, de deliberação, portanto de responsabilidade moral. A idéia

249
ARISTÓTELES, EN VI-12 [1144a3].
250
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 547 (tomo II). Cf. HARDIE, 1968, p. 235: “philosophic
wisdom, as part of the complete excellence of man, is not indeed an efficient, but a formal cause of
happiness”.
251
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 545 (tomo II). Bodéüs considera que a relação saúde-saúde não
é de causalidade formal, mas sim final (ARISTOTE, 2004, p. 336 (nota do tradutor Bodëus)).
Mesmo nesta interpretação, a nosso ver, é mantida a relação com a essência (já que é esta que
estabelece o télos).
252
Não por acaso, o estagirita volta a mencionar o argumento do érgon logo após o trecho que
citamos acima, considerando que “a função de um homem somente é perfeita quando está de
acordo com a sabedoria prática e com a virtude moral” (ARISTÓTELES, EN VI-12 [1144a8]).
253
Como vimos, esta distinção havia sido feita no livro II, quando foi discutido como a mera
repetição de determinadas ações, pelo hábito, acaba criando as disposições adequadas.
254
ARISTÓTELES, EN VI-12 [1144a20].
83

parece ser, a nosso ver, a de que há vários níveis de “propriedade” do ato moral:
no início temos sua imitação externa, depois o estado disposicional interno (fruto
do hábito), e, finalmente, a deliberação – ou seja, a capacidade de nos darmos
razões – que lhe confere um último grau de propriedade, por assim dizer. A partir
daí, Aristóteles volta a falar, agora de forma mais conclusiva, da relação dupla que
existe entre a disposição virtuosa e a deliberação: “esta [a virtude moral] faz com
que nosso objetivo seja certo, e a sabedoria prática, com que escolhamos os meios
certos”.255 O filósofo grego chama de “habilidade” (δεινότης) o “olho da alma”
(ψυχής o)/mma), que só alcança o pleno desenvolvimento com a virtude moral, pois
esta lhe mostra o fim certo. Se o fim for mau, a habilidade se torna mera astúcia.
Só se poderá falar de sabedoria prática, assim, se o fim for nobre (o que
corresponde à noção de “bem verdadeiro” que vimos mais atrás), e, portanto, a
phrónesis depende da virtude moral – daí, justamente, a importância do hábito na
formação de nossas disposições de acordo com o meio-termo.256
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Aristóteles procurará agora mostrar o outro lado da questão, ou seja, como


a própria disposição moral também precisa da sabedoria prática para se tornar
“própria”. O autor retoma, então, a noção de virtude natural (inicialmente, a nosso
ver, em seu sentido mais estrito, de disposição hereditária, e no decorrer do texto
percebe-se que ele começa a falar da “segunda natureza” prática, que são as
disposições geradas pelo hábito), para mostrar que estão são insuficientes se não
forem acompanhadas pela razão, podendo até se tornar nocivas:
Com efeito, até as crianças e os animais selvagens têm as disposições morais
naturais para estas qualidades, todavia quando elas não estão acompanhadas da
razão, são evidentemente nocivas; apenas nós parecemos perceber que elas
podem levar-nos para o mau caminho, da mesma forma que um corpo robusto,
porém destituído de visão, pode cair desastrosamente em razão de esta lhe faltar;
porém, depois de ter adquirido a razão, haverá uma diferença no seu modo de agir
e sua disposição, e, apesar de continuar semelhante ao que era, passará a ser
virtude no sentido estrito.257

Chega-se, assim, à noção de virtude própria que só pode ser obtida através
da sabedoria prática.258 Esta conclusão leva ao desenvolvimento de vários pontos
importantes, como, por exemplo, a interdependência das virtudes: para o estagirita,

255
ARISTÓTELES, EN VI-12 [1144a9].
256
Como diz Aubenque, que já havíamos citado em relação a este ponto na primeira parte, “a
habilidade enquanto tal é indiferente à qualidade do fim”, e, assim, a prudência pode ser vista
como “a habilidade do virtuoso” (AUBENQUE, 2008, p. 101).
257
ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b8].
258
ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b17].
84

de fato, quem possui a phrónesis as possui todas, e, inversamente, a posse de


todas as virtudes (ainda que não no sentido próprio) é uma pré-condição para a
operabilidade da razão prática.259 Este ponto é importante para nossa tese, pois
mostra que o fato de haver várias virtudes éticas substantivas não impede que
todas sejam entendidas a partir da harmonização de nossas inclinações com a
razão.
Aristóteles também discute mais pormenorizadamente a maneira pela qual
a sabedoria prática está implicada nas virtudes, afirmando que estas não são
apenas disposições que “concordam” com a reta razão, mas sim em que está
presente a reta razão. Esta diferença é estabelecida a partir dos termos µετά
(“segundo”) ou κατά (“com”, “acompanhada de”). Como comenta Zingano
(citando outros autores, como Grant e Tomás de Aquino), esta diferença é
necessária para indicar que a sabedoria prática é de fato necessária para uma
pessoa ser virtuosa, pois seria possível agir “segundo a razão” ser possuir
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efetivamente a prudência.260 Isso significa que esta deve ser um princípio interno
da ação, o que permitirá uma aproximação com a conhecida distinção kantiana
entre agir “por dever” e “conforme ao dever”.
Outro ponto importante é a diferença entre a doutrina aristotélica e o
socratismo, que identifica virtude e ciência. O estagirita afirma que Sócrates tinha
em parte razão, pois as virtudes implicam a sabedoria prática, mas, no entanto,
não se identificam com ela; ou seja, elas envolvem, de fato, uma regra e um
princípio racional, mas sem consistir em regras e princípios racionais. Como
havíamos mencionado anteriormente, a proposta de Aristóteles parece incorporar
as principais visões acerca da aquisição das virtudes em sua época: o naturalismo
aristocrático, o culturalismo humanista dos sofistas, e o intelectualismo de
Sócrates. Neste sentido, a visão do estagirita pode ser entendida como um
“intelectualismo moderado”, onde as virtudes não se confundem com o
conhecimento, mas implicam, ainda assim, uma atividade racional. Este aspecto
remete ao dualismo da natureza humana no qual se baseia a ética aristotélica:
podemos considerar que esta última consiste, assim, em um aprimoramento do

259
ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b35]. Para Zingano, a razão prática não pressupõe todas as
virtudes, mas apenas um bom número delas (ZINGANO, 2007, p. 424). Esta interdependência se
deve, por um lado, ao fato de que as virtudes só adquirem seu sentido próprio através da razão
prática, e esta, por sua, vez, por consistir em uma deliberação sobre os fins verdadeiramente bons,
depende das virtudes morais, pois são elas que apontam para estes fins.
260
ZINGANO, 2007, p. 365-366.
85

irracional pelo racional. Desta forma, as virtudes morais pertencem à parte


irracional de nossa alma, mas quando esta “ouve” a razão - daí, portanto, o
elemento intelectualista (racional), mas moderado pela presença do irracional.
Ainda nos falta esclarecer, justamente, em que consiste esse princípio
racional que estaria implicado nas virtudes. Ao que tudo indica, este corresponde
à “regra reta” tantas vezes mencionada durante a Ética a Nicômaco, assim como
aos “ditames da razão” mencionados no início do livro VI. Podemos considerar
que, até o final do livro VI, esta pergunta ainda não foi respondida de forma clara.
No entanto, o filósofo grego forneceu alguns elementos que, com a ajuda dos
comentadores, podem nos permitir construir uma resposta.
O primeiro destes elementos é o chamado silogismo prático, ao qual
Aristóteles faz referência no livro VI, por exemplo em [1144a31].261 O filósofo
grego não chega a dar um tratamento esquemático a este tema, mencionando-o, de
forma mais relevante, em três passagens de sua obra: De Motu 7 [701a1], De
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Anima III 11 [434a16-22], e na própria Ética a Nicômaco no livro VII [1147a25-


1147b15], quando aborda o problema da acrasia. Este último trecho é, a nosso ver,
o mais significativo. Nele, Aristóteles descreve as duas principais premissas – a
maior e a menor - como se referindo, respectivamente, a algo universal e a algo
particular: “uma premissa do silogismo é universal, e a outra diz respeito a fatos
particulares, e com relação a esta última nos deparamos com algo que é da esfera
da percepção”. 262 Mais adiante, indica que a conclusão do silogismo deve ser
considerada a própria ação, que se seguiria imediatamente, assim, das premissas
anteriores. 263 Como já havíamos comentado, esta relação universal-particular
parece estar diretamente ligada à prescritividade da razão prática aristotélica, que
estamos, justamente, investigando. De fato, o exemplo de silogismo dado no
trecho citado acima contém, claramente, esta dimensão: “tudo o que é doce deve
ser provado” (premissa maior), “isto é doce” (premissa menor), o que levaria
como conclusão à ação de provar o doce.264 Como diz Aubenque, a razão prática

261
“Com efeito, os silogismos relacionados com os atos a praticar começam assim: ‘visto que o
fim, ou seja, o que é melhor, é desta natureza...’”.
262
ARISTÓTELES, EN VII-3 [1147a26].
263
“No caso das premissas de ordem prática, ela [a alma] agirá imediatamente (...) o homem capaz
de agir e que não é impedido deverá proceder imediatamente de acordo com a conclusão”
(ARISTÓTELES, EN VII-3 [1147a28-32]).
264
ARISTÓTELES, EN VII-3 [1147a29].
86

une as premissas maior e menor através do dever. 265 Para compreender esta
dimensão, é preciso, assim, analisar como se dá esta união.
Segundo Gauthier & Jolif, a premissa maior é a representação de um
objeto de ação considerado “bom”, e é assim apresentado à faculdade desejante. A
premissa menor é fornecida pela percepção de um objeto particular que pode ser
incluído na categoria universal da premissa maior.266 Isso fica claro no exemplo
dado pelo próprio Aristóteles: o que é doce deve ser provado, isto é um doce,
portanto... A premissa maior, assim, parece estabelecer uma noção de “dever” a
partir de uma concepção de algo como sendo “bom”. Este aspecto fica
particularmente claro em De Motu Animalum, onde é dito que a primeira premissa
fornece o bem – preciso de uma roupa, este é o bem a ser buscado – e a menor o
“possível”, ou seja, o manto é uma roupa.267 Esta descrição do silogismo prático
torna mais fácil compreender sua relação com o processo deliberativo de meios-
para–fins. Podemos considerar que o termo médio estabelece um objetivo
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imediato inserindo-o dentro de um bem maior. Este objetivo imediato pode ser
visto tanto como o resultado da deliberação – preciso de uma roupa, o que posso
fazer para conseguí-la -,268 tanto como aquilo que dá início à deliberação: preciso
de uma roupa de forma geral, este manto é uma roupa, então preciso deste manto,
como obtê-lo? Como dissemos anteriormente, a relação entre meios e fins é
complexa, pois, com exceção da eudaimonia, todo fim também pode ser meio, e,
assim, a relação entre os eixos universal-particular e meio-fim também é
complexa. Mesmo a premissa universal pode ser fruto de uma deliberação – a
máxima “preciso de uma roupa” pode ser estabelecida a partir de um objetivo
maior, como, por exemplo, se proteger do frio.
Devido a esta forte ligação com a relação meios-para-fins, podemos
considerar que o silogismo prático não chega, realmente, a acrescentar nenhuma

265
AUBENQUE, 2008, p. 230 (citando J. Walter).
266
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 610 (tomo II). Cf. HARDIE, 1968, p. 276: “the universal
premiss is a rule stating that everything of a certain sort is good; the particular premiss states that
here is something of that sort”. Em outra passagem, Hardie comenta que a premissa maior
expressa um valor, enquanto a menor expressa um fato (ibidem, p. 250). Ver também Aubenque:
“a premissa maior exprime um princípio geral (por exemplo, a temperança é uma virtude), a
premissa menor subsume o conceito de tal ato particular à maior (este é um ato de temperança), a
conclusão exprime a decisão de cumprir este ato” (AUBENQUE, 2008, p. 224).
267
ARISTÓTELES, MA 7 [701a19-24].
268
Ou seja, o objetivo imediato se inseriria, neste caso, como um meio para atingir o bem maior -
havíamos visto, ao falar da deliberação, que esta se encerra com o estabelecimento de um meio
que esteja ao nosso alcance.
87

informação relevante sobre a prescritividade da razão prática. Seu principal mérito


consiste apenas em deixar mais claro que esta dimensão está inserida no processo
deliberativo. Como diz Zingano, a deliberação não pode ser reduzida a um
silogismo (pois não pode ter a forma de uma demonstração, devido às teses
ontológicas ligadas à indeterminação da ação), mas, por consistir em um
procedimento racional, ela precisa poder ser apresentada de forma inferencial.269
Seguindo a mesma linha, Aubenque considera o silogismo como uma
reconstrução abstrata do ato terminal de decisão, que mascara a deliberação que
está por trás.270 Invertendo um pouco esta colocação, podemos considerar, como
dissemos acima, que a principal vantagem do silogismo consiste em tornar mais
explícito o eixo universal-particular, e, portanto, a dimensão prescritiva que está
implicada no procedimento da razão prática. Este aspecto, no entanto, não se opõe
de forma alguma ao eixo meio-fim, mas, ao contrário, está diretamente ligado a
ele, como vimos: a premissa universal pode, grosso modo, ser relacionada à
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colocação de um bem, o que gera um “dever” ligado à obtenção deste fim (desejo
emagrecer, portanto “devo” evitar doces; desejo ser atleta, portanto “devo” me
exercitar etc). Colocado esta forma, o caráter prescritivo da razão prática
aristotélica se assemelha àquilo que Kant chamará de imperativo hipotético
assertórico-prático, relativo à escolha dos meios para se atingir a felicidade,
consistindo, assim, em preceitos de prudência, e não possuindo, para o filósofo
alemão, o valor moral dos imperativos categóricos.271
Esta caracterização instrumental da razão prática não parece condizer, no
entanto, com uma série de elementos contidos na ética aristotélica, que abordamos
no decorrer deste trabalho. Vamos relembrar, aqui, os mais significativos: em
primeiro lugar, o argumento do érgon - vimos, de fato, que este não consiste em
uma reflexão sobre “como” atingir uma concepção de felicidade já pré-
estabelecida, mas sim em uma reflexão sobre a própria natureza da eudaimonia.
Conforme comentamos no primeiro capítulo, Aristóteles parece descrever duas
concepções diferentes de “bem”, uma relativa aos fins colocados por nossos
desejos, e outra relativa ao bom exercício daquilo que é peculiar ao homem, ou
seja, a racionalidade. A idéia parece ser, assim, que a primeira concepção precisa

269
ZINGANO, 2007, p. 287.
270
AUBENQUE, 2008, p. 224.
271
KANT, FMC 4:414-416.
88

ser complementada pela segunda: a felicidade está necessariamente ligada a


nossos desejos, mas existem diferentes “níveis”, por assim dizer, de felicidade. A
verdadeira – a eudaimonia – só ocorrerá se estes desejos ouvirem a razão.
Percebe-se claramente como a relação que é estabelecida aqui não é, de forma
alguma, instrumental. Se o desejo “ouvisse” apenas no sentido de consultar a
razão sobre os melhores meios de atingir determinado fim, ele permaneceria
fundamentalmente o mesmo. Ora, a proposta de Aristóteles, claramente, consiste
em uma transformação do desejo pela racionalidade. Esta transformação é
necessária, a nossa ver, devido à relação intrínseca razão-moralidade que foi
estabelecida no argumento do érgon: o homem só estará exercendo devidamente
sua função se nossas ações estiverem de acordo com nossa alma racional, e, como
a causa eficiente destas ações é o desejo, é preciso que este se harmonize com
aquela.
O processo pelo qual se dá esta harmonização, como vimos, é complexo, e
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podemos identificar três etapas principais: primeiro, a formação de estados


disposicionais virtuosos através do hábito, que possuem como diferença específica
o meio-termo, pelo fato, justamente, da mediania corresponder a uma regra
determinada “por um princípio racional próprio dotado do homem de sabedoria
prática”.272 A segunda etapa corresponde ao processo deliberativo de meios-para-
fins envolvendo a proiarésis, que leva propriamente à formação da boulésis ou
desejo racional. Finalmente, a terceira etapa ocorre quando os dois estágios
anteriores viabilizaram a operabilidade da phrónesis ou razão prática: as virtudes
morais tornam possível ao homem virtuoso enxergar o “verdadeiro bem”, e a
deliberação feita a partir deste fim supremo não é mais uma simples habilidade,
mas sim sabedoria. Esta, por sua vez, permite às virtudes morais completarem seu
processo de formação e se tornarem próprias, ao serem acompanhadas da reta
razão.
Todo este processo, que se inicia no argumento do érgon e culmina na
noção de sabedoria prática, e que tentamos descrever durante nosso trabalho,
deixa claro que a relação razão-desejo não é instrumental. Podemos considerar
que a ênfase de Aristóteles nesta dimensão da deliberação se deve, sobretudo, ao
fato de que o fim precisa necessariamente ser colocado pelo desejo. Vimos, no

272
ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b36]. Como diz Hardie, as virtudes morais, adquiridas pelo
hábito, “involve conformity to rational principles” (HARDIE, 1968, p. 101).
89

entanto, que a partir desse caráter aparentemente instrumental a parte irracional de


nossa alma é levada a “ouvir” a razão, e é por este aprimoramento que se formam
as virtudes morais. Se a relação desejo-razão fosse apenas de meios-para-fins, não
faria sentido, portanto, falar de uma ética ou uma moralidade (ou, pelo menos, não
de uma ética racionalista, como é o caso da de Aristóteles).
Podemos assim considerar que aquilo que é “ouvido” pela parte irracional
é algum elemento intrínseco à própria racionalidade. Ao que tudo indica, este
elemento seria o meio-termo. Vimos, de fato, que só somos capazes de ouvir a
razão se nossas disposições estiverem de acordo com a mediania, e Aristóteles
chega a dizer explicitamente que o meio-termo é determinado por uma regra da
reta razão. Podemos lamentar que este aspecto não tenha sido deixado mais claro
pelo filósofo grego, mas, a nosso ver, há dois possíveis motivos para isso:273 o
primeiro é que, de todos os livros da Ética a Nicômaco, o VI, onde em princípio
seriam analisados os “ditames” da razão, parece ser aquele que chegou até nós de
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forma mais fragmentária. 274 Alguns comentadores consideram mesmo que este
livro conteria duas concepções diferentes de sabedoria prática (uma delas oriunda
da Ética Eudêmica), e que teria sido escrito antes do livro III.275
Outro motivo, mais importante, está na própria indeterminação do meio-
termo, devido ao particularismo da ética aristotélica. Ao tratar da mediania, no
livro II, já havia sido mencionado que esta varia de acordo com os indivíduos e
com as situações.276 Isto gera uma certa dificuldade, assim, de precisar “em que
consiste” a regra reta. Este aspecto pode ser relacionado, a nosso ver, à maneira
pela qual o individuo propriamente virtuoso – o prudente – “encarna”, por assim,
dizer, a reta razão. Aristóteles afirma em várias passagens, de fato, que o homem

273
“É em vão que procuraríamos na Ética a Nicômaco um texto onde Aristóteles tenha tentado
definir ex professo o que ele entende por ‘dever’. É verdade, mas isso não significa que Aristóteles
não tenha sabido muito bem o que ele pretendia exprimir por esta palavra, e ele nos disse bastante
sobre isso, ainda que ocasionalmente e brevemente, para que nós possamos nos dar conta que ele
tinha de fato uma idéia clara e tecnicamente elaborada do ‘dever’. Pois, como nós vimos, ele
explicitamente identificou ‘o que devemos fazer’ ao ‘meio-termo’ da virtude, e este meio-termo
ele próprio a ‘o que ordena a regra reta’, o que é, indiretamente, identificar ‘o que se deve fazer’ e
‘o que ordena a regra reta’; e, esta identificação, Aristóteles a fez diretamente” (GAUTHIER &
JOLIF, 1970, p. 571-572 (tomo II), tradução nossa).
274
Ao mencionar um trecho do livro VI ([1139b5-11]) que parece uma nota destacada do resto do
texto, Gauthier & Jolif comentam que “este é um exemplo flagrante do estado de inacabamento e
desordem no qual chegou até nós o livro VI” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 446 (tomo II),
tradução nossa).
275
AUBENQUE, 2008, p. 226.
276
ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b20-25].
90

bom deve ser considerado a norma e medida da ação correta.277 Trata-se de um


ponto da ética aristotélica muito valorizado pelos autores contemporâneos das
virtue ethics: suas concepções são muitas vezes chamadas de “agent-centered”,
por defender que o indivíduo virtuoso possui um caráter fundacional na
moralidade, se opondo assim à visão das duty ehics.
No caso específico de Aristóteles, esse aspecto é derivado, como dissemos,
da indeterminação do meio-termo ligada ao particularismo. Isso pode ficar mais
claro se enxergarmos aqui uma crítica direcionada a Platão: para este último o
desejo deve ser regulado a partir da referência ao Bem-em-si, que serve, assim, de
medida. Como dizem Gauthier & Jolif, Aristóteles rejeita essa referência abstrata,
considerando que a medida é o próprio homem virtuoso. 278 Desta forma, a
regulação objetiva de Platão seria substituída por uma regulação que é subjetiva,
embora também objetiva no caso do prudente, que enxerga o verdadeiro bem.
Este último ponto é central para compreender o problema com que
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estamos lidando: podemos considerar que o caráter inerentemente “subjetivo” da


justa medida aristotélica faz com que se tenha a impressão de que não há
realmente tal medida, o que reforçaria a tese de que a razão possui para Aristóteles
um caráter meramente instrumental e subordinado ao desejo. No entanto, como
vimos anteriormente, no indivíduo virtuoso o subjetivo é também objetivo:
podemos assim considerar que a “regra reta” da prudência possui, sim, uma
objetividade, sendo, neste sentido, válida para todos os seres racionais, um pouco
como será o caso em Kant. Esta validade universal se deve ao fato de que o meio-
termo é um elemento intrínseco à própria natureza da razão – vimos que para os
gregos a racionalidade era naturalmente associada ao ideal de equilíbrio e justa
medida, daí a relação, em Aristóteles, entre a mediania e o “bom exercício da
razão” que é a função do homem. O que ocorre na concepção de Aristóteles, ao
contrário das de Kant e Platão, é que este caráter objetivo não pode ser separado

277
“As ações são ditas justas e temperantes quando são tais como as que praticaria o homem justo
ou temperante”(ARISTÓTELES, EN II-4 [1105b5]); “o homem bom avalia corretamente todas as
coisas, e em cada classe de coisas a verdade lhe aparece com clareza. De fato, cada disposição de
caráter tem sua idéia própria acerca do nobre e do agradável, e talvez a maior diferença entre o
homem bom e os outros está em aquele perceber a verdade em cada classe de coisas, e ser dessas
coisas, por assim dizer, norma e medida” (ibidem, II-4 [1105b5]).
278
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 208 (tomo II). Para Aubenque, o prudente “não é apenas o
intérprete da regra reta, mas é a própria reta regra” (AUBENQUE, 2008, p. 71). Mais adiante,
temos: “a participação imediata na moralidade, ou seja, a elaboração espontânea da reta regra, só é
reservada durante a vida a um pequeno número de eleitos: os outros viverão talvez sob a reta regra,
mas não serão a reta regra, que só o prudente encana” (ibidem, p. 104).
91

do subjetivo. Daí, portanto, a idéia de que o homem prudente “encarna” a regra


reta, sendo, ele próprio, norma e medida da ação moral. Isto não quer dizer, no
entanto, que este possua o caráter fundacional preconizado por muitos autores
contemporâneos das virtue ethics: de fato, se assim fosse, não haveria como
estabelecer nenhum critério objetivo que justificasse o que é a virtude, o que
acabaria levando a um relativismo semelhante aos dos sofistas, pelo qual “o
homem”, de forma geral, é a medida de todas as coisas. Em Aristóteles,
justamente, existe uma reflexão sobre a natureza da virtude – a partir, sobretudo,
do argumento do érgon – que é anterior ao homem virtuoso, e é exatamente a
partir da referência a estes critérios que ele pode ser dito virtuoso. O mais correto,
portanto, seria dizer que é somente através do prudente que podemos conhecer os
ditames da razão.279
Podemos considerar, portanto, que a frase “o certo é aquilo que faz o
prudente” não corresponde realmente à definição da regra reta, mas sim a uma
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tese epistemológica, pela qual só a conhecemos através do homem virtuoso. Esta


regra, em Aristóteles, não é definida a partir do sábio, muito menos a partir da
felicidade – “o certo é aquilo que contribui para a felicidade”. O certo é definido,
em Aristóteles, a partir do bom exercício da razão, ou seja, a partir de certas
características intrínsecas à própria racionalidade. A partir desta caracterização é
que serão então definidos o homem virtuoso – como aquele que faz o que é certo -
e a felicidade verdadeira, a eudaimonia, como cumprimento da função do homem.
Desta forma, o processo complexo pelo qual a alma irracional é levada a
“ouvir” a racional faz com que os fins objetivos, visados pelo homem virtuosos,
280
tenham incorporado, por assim dizer, a prescritividade da razão. Para
atingirmos a eudaimonia ou felicidade verdadeira, não podemos desejar qualquer

279
“Não é o prudente que torna as ações boas, mas ele é o nosso único critério para penetrar a
obscuridade inerente ao domínio prático” (ZINGANO, 2007, p. 516). Segundo Aubenque,
“Aristóteles não cede nenhum lugar ao relativismo, o qual, ao contrário, quer superar. O que quer
dizer é que nem todos os homens têm o mesmo valor, e que se não há mais, como para Platão, uma
Medida transcendente que permita julgá-los, são os homens de valor que são juízes do próprio
valor” (AUBENQUE, 2008, p. 80). “A virtude consiste em agir segundo o justo meio e o critério
do justo meio é a regra reta. Mas o que é a regra reta? Aristóteles não nos dá nenhum meio de
reconhecê-la, senão apelando para o homem prudente” (ibidem, p. 70). “A prudência é a virtude
intelectual que permite a cada vez definir a norma (...) a virtude moral consiste, como vimos, em
aplicar a regra determinada pelo homem prudente” (ibidem, p. 76) .
280
Havíamos dito anteriormente que o momento exato em que o desejo “ouve” a razão se dá no
decorrer da deliberação, quando juízo e desejo se juntam para formar a boulésis. Isto é correto,
mas a importância deste processo para a ética aristotélica está na racionalização do desejo que daí
resulta, o que leva a um sentido mais forte, por assim dizer, pelo qual a alma irracional “ouve” a
racional, levando nossos fins a estarem de acordo com o meio-termo.
92

coisa nem de qualquer maneira, é preciso que nossos desejos se harmonizem com
o bom exercício da razão, que determina a regra verdadeira que é o meio-termo
(regra esta que só podemos conhecer através do homem prudente em situações
específicas). A prescritividade da razão, assim, está na maneira pela qual os fins
incorporam o princípio do meio-termo a partir da racionalização do desejo.281
Podemos, agora, retornar ao silogismo prático com outros olhos: havíamos
dito que a premissa maior faz referência a um determinado “bem”, e a menor à
percepção de um caso particular que se incluí na categoria deste bem. Esta
descrição parecia conferir à razão prática um papel meramente instrumental.
Agora, no entanto, podemos afirmar que os preceitos da razão já estão embutidos,
por assim dizer, na concepção de “bem” implicada na premissa maior – daí,
justamente, a idéia que a phrónesis só opera quando nossos desejos, e
conseqüentemente nossos fins, já foram racionalizados. Se a premissa maior
afirma, assim, que “eu devo evitar doces”, esta noção de “bem” claramente traz
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consigo o ideal de justa medida e de moderação – e, exatamente por isso, pode ser
chamada de “bem verdadeiro”. 282 Esta é uma outra forma, a nosso ver, de
compreender a questão: a diferença entre o bem meramente subjetivo e o “bem
verdadeiro”, que além de ser subjetivo é também objetivo, se deve ao fato de que
neste último a regra do meio-termo já foi assimilada. Por isso, justamente, trata-
se de um bem que é também objetivo: a regra do meio-termo, de fato, é ”objetiva”

281
“O que faz o valor de um ato, é a medida. (...) esta medida só poderia ser aos olhos de
Aristóteles um logos, ou seja, uma regra racional. É por possuir esta regra e conformar sua vida a
ela que o virtuoso é a medida, métron ou kanôn, das ações moralmente boas”; “em uma palavra, o
justo meio, é o dever”; “está, portanto, fora de dúvida que o imperativo que é a regra não imprime
uma regulação, mas exprime uma obrigação propriamente dita”; “a regra reta, diz Aristóteles, é a
própria prudência. (...) esta prudência que medindo nossas ações as faz ‘belas’, ou seja,
moralmente boas, e comandando-as as transforma em ‘deveres’, que, em uma palavra, constitui os
valores morais” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 568-569; p. 569; p. 573; p. 575, (tomo II),
tradução nossa).
282
“A virtude mantém o olho da alma direcionado para o fim verdadeiro do homem, porque ela
está pronta a aceitar o imperativo racional que será o silogismo maior da ação virtuosa: ‘este é o
fim e o bem supremo’” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 553 (tomo II), tradução nossa). A relação
entre o dever e os “fins” pode explicar porque Aristóteles comenta em algumas passagens que a
sabedoria prática também apreende os fins (ARISTÓTELES, EN VI-9 [1142b33]). Vimos que
estes trechos geraram uma certa polêmica entre os comentadores, já que parecem contradizer a
doutrina de que a deliberação só se refere aos meios. A nosso ver, a idéia de que a prescritividade
da razão prática está contida na concepção dos fins implica que a prudência deve sim, de alguma
forma, ser capaz de “apreendê-los”. Como dissemos anteriormente, uma boa forma de
compreender este ponto é considerar que, a partir do momento em que o fim visado é o bem
supremo, tudo passa a ser passível de deliberação, enquanto meios (instrumentais ou constitutivos)
para a eudaimonia. Podemos considerar que a noção de “dever” surge justamente quando a razão
prática considera que um determinado bem contribui ou não para a verdadeira felicidade – estes
seriam, justamente, os “bens verdadeiros”. Enquanto tais, sua inserção na eudaimonia estará ligada
à sua conformação com a justa medida.
93

por ser fruto do bom exercício da razão, tendo assim validade para todos os seres
racionais (daí, como vimos, a sabedoria prática ser incluída entre as disposições
cujo objeto é a “verdade”). 283 Neste sentido, o bem supremo apreendido pela
prudência do homem virtuoso pode ser considerado geral ou universal, o bem
“do” homem.284
Um exemplo hipotético pode, talvez, nos ajudar e enxergar melhor este
ponto: suponhamos que alguém se encontre em uma situação na qual precisa
arriscar a própria vida para salvar uma criança. Pela visão moderna, diríamos que
há, aqui, um conflito entre a felicidade pessoal deste indivíduo, que dependeria da
preservação de sua própria vida, e as exigências da moralidade. Podemos afirmar
com segurança, no entanto, que pela concepção aristotélica este indivíduo deve se
arriscar para salvar a criança, pois fugir seria um ato de covardia, portanto
contrário ao meio-termo. Neste sentido, a ética de Aristóteles contém, sim, a
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283
“A regra reta é a prudência; diríamos ainda melhor: é o prudente, ou, como gosta de dizer
Aristóteles, é o virtuoso, pois, como insiste aqui Aristóteles, o prudente e o virtuoso são um só.
Mas, é preciso insistir, é por sua sabedoria que o virtuoso é regra e medida do bem moral. Sem
dúvida, é a virtude moral que, mantendo-o na boa direção, permite à prudência enxergar o
verdadeiro fim, mas permanece que é ela que o enxerga, e é também ela que descobre os meios de
realizá-lo; ora, tão pessoal quanto ela seja, - e neste sentido, mas somente neste sentido, podemos
dizer que a regulação moral é, para Aristóteles, subjetiva , - a prudência é uma virtude intelectual,
e por ser uma virtude intelectual e enquanto tal, acima de tudo, fazedora de verdade, a regulação
que ela impõe à vida moral é uma regulação objetiva” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 557 (tomo
II), tradução nossa).
284
Como diz Zingano, “para a ação, que é um contingente indeterminado, a deliberação é de regra
e através dela a razão impõe algo em detrimento de outro, introduzindo a necessidade na norma
prática. (...) Em termos kantianos, esta relação equivale a pôr como condição de adoção do ponto
de vista moral o acatamento de uma máxima que possa ao mesmo tempo valer para todo agente
racional. (...) ora, a tese de Aristóteles não está longe disso. O prudente, aquele que sabe deliberar
bem, possui a faculdade de ver o que é bom para si e para os homens; ele busca realizar o bem não
só para si, mas para todos, e isto através da razão. O prudente põe-se assim do ponto de vista
moral, que é justamente aquele ponto que todo homem pode acatar se se determinar pela razão”
(ZINGANO, 2007, p. 129). É preciso considerar que “aquilo que é bom para todos os homens” – a
eudaimonia – pode ter duas acepções, uma ligada à razão prática e outra à teoria. Falaremos deste
ponto mais adiante.
Pode ser interessante comentar, aqui, se haveria alguma diferença em considerar que o bem
verdadeiro é “geral” ou “universal”. É sabido que para Aristóteles as leis morais são
generalizações que podem admitir exceções, aspecto ligado, justamente, ao seu particularismo
(ZINGANO, 2007, p. 327-328). Se considerarmos a máxima “não devo comer doces”, por
exemplo, é possível imaginar circunstâncias em que o “bem” estará em comê-los – por exemplo,
se estivermos muito magros por conta de alguma doença. O próprio meio-termo, no entanto, não
parece admitir exceções: ele sempre acompanhará a noção de bem. Podemos considerar que os
desvios em relação às regras contidas nas premissas maiores ocorrem, justamente, pelo fato da
mediania variar de acordo com as circunstâncias, o que faz com que, em alguns casos, ela possa
levar a um resultado diferente daquele preconizado pela regra. A justa medida é uma característica
intrínseca ao bom funcionamento da razão prática, sendo assim constitutiva, segundo o argumento
do érgon, do bem do homem. Neste sentido, podemos afirmar que o meio-termo possui uma
validade universal e objetiva.
94

noção de que se deve fazer alguma coisa “porque é o certo”, o “certo” sendo
entendido, justamente, como “aquilo que é prescrito pela razão”. Como diz

Zingano:
O homem verdadeiramente corajoso enfrenta os perigos não porque deseja, para
dar um exemplo, ser reconhecido por seus pares, sua reputação sendo para ele um
fim superior mesmo ao permanecer vivo, mas porque reconhece, nas
circunstâncias nas quais se produz a ação, as razões que determinam enfrentar os
perigos e, em conseqüência, lhes dá seu assentimento. Age por razão; (...) Tudo o
que Aristóteles quer é fundar a possibilidade que um homem deixe de tomar o
dinheiro do vizinho não porque teme por sua reputação (ou a polícia, ou ambos),
mas porque reconhece que este ato é injusto e, em função deste reconhecimento,
abstém-se de agir.285

Obviamente, na visão do estagirita o “agir corretamente” está inserido na


felicidade: no exemplo que demos acima, podemos considerar que se o indivíduo
fugisse e deixasse a criança morrer ele não seria de forma alguma feliz, pois
covardes não podem atingir a eudaimonia. Como já dissemos, a ética aristotélica
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se baseia em uma possível harmonização entre o racional e o irracional. Este dois


lados da moeda são representados, justamente, pelas duas concepções de “bem”
apresentadas no livro I: como fins de nossas ações e como função do homem.
Podemos considerar que é fundamental – talvez o ponto mais fundamental de toda
a ética aristotélica – o fato de que essa duas concepções não são essencialmente
relacionadas, sendo, assim, autônomas uma em relação à outra: uma coisa é dizer
que o bem é aquilo que é visado por meu desejo, e outra coisa é dizer que o bem
está no cumprimento da minha função. Como dissemos, reencontramos aqui a
dualidade da natureza humana que está na base da ética aristotélica: a primeira
concepção de bem pode ser relacionada à nossa alma irracional, e a segunda à
parte racional. Todo o esforço subseqüente de Aristóteles, no decorrer da Ética a
Nicômaco, consiste em compatibilizar esses dois aspectos. Isto é possível através
de uma relação em que há concessões de ambas as partes: a razão, por um lado,
reconhece que não pode determinar as ações sem o desejo (devido à ausência de
uma concepção de vontade): nosso atos visam fins postos por nossa parte
irracional, e o intelecto deve se contentar em apenas influenciar este processo. Por
outro lado, o desejo também reconhece que não pode apenas “usar” a
racionalidade para atingir qualquer fim, devendo também ouvi-la e se conformar a

285
ZINGANO, 2007, p. 161-162.
95

ela. Podemos assim considerar que o bem “racional” possui, nesta relação, uma
preponderância sobre o irracional, no sentido de que é este último que deve se
adequar ao primeiro, e não o contrário: a razão não modifica em nada sua
concepção do que é certo, a parte irracional é que deve, sim, modificar sua visão
de felicidade. O “certo”, portanto, não é definido de maneira instrumental - como
“aquilo que contribui para minha felicidade” - mas sim a partir de características
intrínsecas à própria razão, como o meio-termo (assim como será a
“universalidade” para Kant). O resultado é uma concepção de felicidade que
incorpora a relação intrínseca entre razão e moralidade, fazendo com que a pessoa
virtuosa seja feliz por fazer o que é certo.
Nosso esforço, no decorrer desta primeira parte de nosso trabalho,
consistiu em tentar mostrar que o eudaimonismo da ética aristotélica não impede
que esta possua, assim, a dimensão prescritiva da razão. Desta forma, é possível
dizer que as diferenças entre sua concepção e a de Kant se devem, sobretudo, a
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dois fatores: primeiro, em Aristóteles este caráter prescritivo é limitado pelo


elemento irracional inerente às nossas ações, que faz com que estas não possam
ser totalmente determinadas pela razão, como ocorrerá em Kant. A racionalidade
aristotélica, como dissemos, se contenta em influenciar o processo. O outro fator é
a rejeição, da parte do filósofo grego, de qualquer dimensão transcendente dos
princípios racionais, o que faz com que só tenhamos acesso a eles através das
ações do homem prudente em cada situação particular. Estes dois fatores, assim,
dão a falsa impressão de que a prescritividade da razão está ausente em
Aristóteles. Como diz Aubenque:
Se a inteligência que aqui não se chama νούς, mas διάνοια, σύνεσις ou γνώµη,
não é mais o reflexo do inteligível, não significa que não haja mais norma, mas
que a inteligência é para si mesma sua própria norma. Mesmo que Aristóteles
abandone a transcendência do inteligível, isso não significa substituí-la pela
transcendência ilusória de qualquer irracional, mas pela imanência crítica da
inteligência. Ele substitui a intelecção dos inteligíveis, como fundamentação da
regra ética, pela inteligência dos inteligentes, e a sabedoria das Idéias pela
prudência dos prudentes, mas trata-se ainda e sempre, embora sob uma nova
forma, de um fundamento intelectual. Aristóteles particulariza, individualiza,
relativiza a inteligência, mas não renuncia ao intelectualismo.286

Antes de terminar, gostaríamos de mencionar alguns temas importantes


para a ética aristotélica que não foram abordados por nós, por não afetarem

286
AUBENQUE, 2008, p. 86.
96

diretamente o tema de nossa tese. Podemos resumi-los em cinco: as virtudes


particulares, o prazer, a amizade, a acrasia e a contemplação.
O caso das virtudes particulares já foi comentado anteriormente, mas
agora, após a conclusão final, podemos justificar melhor nossa posição: vimos, de
fato, que todas as virtudes são compreendidas a partir da relação que se estabelece
quando nossos afetos e desejos “ouvem” a parte racional de nossa alma. Podemos
assim considerá-las como espécies do gênero “virtude moral”, cuja diferença
específica é a mediania, estabelecida a partir de uma regra da reta razão. Neste
sentido, as características específicas de cada virtude – relacionadas, podemos
supor, ao tipo de situação ou atividade em que são necessárias – não são
relevantes para nossa tese. Este aspecto é reforçado pela interdependência das
virtudes, que citamos mais acima – quem possui a phrónesis as possui todas, e,
inversamente, a posse destas é uma pré-condição para a operabilidade da primeira.
Esta interdependência se deve, justamente, ao fato de as virtudes só adquirirem
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seu sentido próprio quando são acompanhadas pela sabedoria prática.287


A questão do prazer é discutida por Aristóteles em vários trechos da Ética
a Nicômaco, sobretudo nos livros VII (capítulos 11-14) e X (capítulos 1-5).
Grosso modo, o estagirita entende esta noção como algo que não é uma atividade
em si, mas acompanha as atividades, contribuindo para sua perfeição e
completude.288 O prazer, assim, reforça a virtude, pois, segundo o filósofo grego,
fazemos as coisas melhor quando as fazemos de forma prazeroza.289 Este aspecto,
no entanto, não chega a afetar a estrutura da ética aristotélica - ou seja, a maneira
qual o valor moral da ação deriva de nossas virtudes, entendidas como
harmonização do desejo com a razão prática -, e, portanto, também não é
relevante dentro de nossa abordagem.
Aristóteles dedica dois livros inteiros da Ética a Nicômaco (VIII e IX) à
amizade, o que reflete, em grande parte, aspectos culturais da Grécia clássica.
Podemos mais uma vez considerar que trata-se de um tema incidental, pois a
amizade não é exatamente uma virtude - na verdade, esta última é que afeta o

287
“Na doutrina aristotélica, as virtudes morais são inseparáveis uma das outras porque elas são
inseparáveis da sabedoria prática, que ela própria pressupõe que as possuamos todas”
(GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 558 (tomo II), tradução nossa).
288
ARISTÓTELES, EN VII-4 [1174b24-1175a17].
289
“De fato, cada atividade é intensificada pelo prazer que lhe é próprio, uma vez que cada classe
de coisas é mais bem julgada e feita com maior precisão por aqueles que se dedicam com prazer à
correspondente atividade” (ARISTÓTELES, EN VII-5 [1175a30]).
97

estudo da primeira, pois a amizade perfeita seria aquela baseada na aretè.290 A


principal relevância desta análise para a ética estaria na ênfase na dimensão social
desta última – o termo phília (φίλια), de fato, possui um sentido bem mais amplo
do que o que chamamos de “amizade” hoje em dia.291 No entanto, como nosso
objetivo é estudar a relação entre virtude e razão prática, podemos nos concentrar
na dimensão individual desta ética, à qual se dedica, na maior parte do tempo,
Aristóteles.
Os dois temas restantes, acrasia e contemplação, já afetam, de forma mais
direta, o assunto que estamos abordando. O tratamento dado pelo filósofo grego à
acrasia é complexo: grosso modo, este fenômeno é descrito como uma falha não
do conhecimento universal (premissa maior do silogismo prático), mas do “juízo
de percepção” (premissa menor), ou seja, do reconhecimento de que a regra
universal se aplica àquela situação particular. Esta falha pode ser descrita como
uma espécie de esquecimento ou bloqueio momentâneo, que levaria o indivíduo a
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não usar o conhecimento que possui. Este esquecimento seria similar, em certa
medida, ao que ocorre com as pessoas bêbadas, loucas ou que estão dormindo, e é
produzido, no caso da acrasia, por um apetite muito forte.292 O que possui mais
relevância para nós, aqui, é a idéia de que a continência não é uma virtude.293 O
indivíduo continente (e)gkrath/j), para Aristóteles, é aquele que resiste a seus
apetites maus em função do princípio racional.294 Neste sentido ele se diferencia
não só do incontinente ou acrático, mas também do homem temperante, que não
precisa realmente se esforçar para controlar seus apetites, pois estes já estão
harmonizados com a razão. 295 A idéia de que a temperança é superior à
continência reforça a visão de que o valor moral da ação é derivado das virtudes
290
ARISTÓTELES, EN VIII-2 [1156b6].
291
URMSON, 1988, p. 109. O comentador inglês considera que os livros VII e VIII são dedicados
a analisar o papel das relações sociais – pelo menos algumas delas – na boa vida, de forma
coerente com a relação intrínseca, já estabelecida, entre ética e política.
292
ARISTÓTELES, EN VII-3 [1147a1-1147b20]. Cf. URMSON, 1988, p. 91-92.
293
Aristóteles, de fato, considera que a virtude se opõe ao vício, enquanto a continência se opõe à
incontinência: “há três espécies de disposições morais a serem evitadas: o vício, a incontinência e
a bestialidade. As disposições contrárias a duas delas são evidentes: uma chamamos virtude e
outra, continência” (ARISTÓTELES, EN VII-1 [1145a15-20]). A continência, de fato, é um estado
de caráter, mas não possui a diferença específica das virtudes, a mediania. É preciso considerar
que a continência, embora não seja uma virtude, é uma coisa boa e louvável (ibidem, VII-1
[1145b7]). Como comenta Urmson, é possível fazer uma gradação, em ternos de mérito,
começando pelo virtuoso, depois o continente, depois o incontinente e finalmente a pessoa de mau
caráter (URMSON, 1988, p. 31).
294
ARISTÓTELES, EN VII-1 [1145b14].
295
“no homem temperante o elemento apetitivo deve harmonizar-se com o princípio racional”
(ARISTÓTELES, EN III-11 [1119b16]).
98

éticas. Este aspecto será interessante na comparação com Kant, pois, como
veremos, este último aparentemente defende uma tese contrária, pela qual o valor
da ação é maior quando o agente contraria suas próprias inclinações. No entanto,
tentaremos argumentar que esta oposição é apenas aparente, pois, se enfatizarmos
não as inclinações, mas sim a virtude – que para Kant se liga à vontade -, então a
estrutura das duas concepções ainda seria similar, pois em ambas o valor moral da
ação é fruto da virtude: o que ocorre é que para Aristóteles esta noção se liga às
inclinações, enquanto para Kant pode haver oposição entre as duas.
A questão da contemplação (θεωρία) é a mais complexa de todas as que
estamos citando aqui, e, provavelmente, uma das mais controversas da ética
aristotélica. No final do livro I, como vimos, o estagirita divide as virtudes em
duas espécies, as éticas e as dianoéticas. O argumento do érgon, ao estabelecer
uma relação intrínseca entre o exercício da razão e a eudaimonia, implica que
cada uma destas virtudes tenha uma felicidade correspondente. Podemos assim
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falar de uma eudaimonia ética ou “política”, fruto da harmonização de nossas


inclinações com a razão, e uma dianoética ou puramente intelectual, que seria a
contemplação. O problema que se coloca, então, é determinar a relação entre estas
duas instâncias, e este ponto, justamente, é controverso. Alguns autores
consideram que a felicidade política deve ser vista apenas como uma preparação
ou um caminho para a contemplação, 296 enquanto para outros é possível

296
Gauthier & Jolif, por exemplo, consideram que o bem supremo visado pela phrónesis é a
contemplação: “o justo meio das virtudes morais é determinado pela regra reta, que Aristóteles
dirá ser obra da sabedoria prática que é a phrónesis. Mas a aplicação desta regra reta é função do
objetivo, σκοπός, visado por ela, ou seja o fim, τέλος ao qual ela se ordena, fim que é ao mesmo
tempo a norma suprema, όρος, das virtudes morais. Este fim e esta norma, é a contemplação, obra
da filosofia, sophia” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 437 (tomo II), tradução nossa). Mais
adiante, temos: “há aqui duas questões bem distintas: 1 – qual é a regra reta? Resposta: é aquela
formulada pela sabedoria prática, phrónesis; 2- Qual é a norma suprema à qual este regra reta se
refere? Resposta: é a contemplação, obra da filosofia, sophia” (ibidem, p. 438-439, tradução
nossa). Em outra passagem, ao analisar o trecho [1144a3-8] da Ética a Nicômaco (que chegamos a
citar acima, onde o filósofo grego diz que as sabedorias prática e filosófica produzem a felicidade
“como a saúde produz saúde”), os comentadores franceses concluem que a phrónesis deve ser
considerada a causa eficiente da eudaimonia, enquanto a sophia seria a causa formal - dando a
entender, assim, que a primeira é como uma preparação para a segunda: “a sabedoria prática só faz
a felicidade enquanto causa eficiente, organizando a vida de maneira que possa florescer a
contemplação, e somente a filosofia, ou mais exatamente seu ato, a contemplação, faz a felicidade
enquanto causa formal” (ibidem, p. 547 (tomo II), tradução nossa). Ross expressa opinião
semelhante, ao afirmar que “sabedoria prática é o poder de deliberar bem, não sobre coisas
particulares a serem feitas, ou estados particulares como saúde e força a serem produzidos (estes
são objetos da arte), mas sobre ‘coisas boas em si mesmas’ (...) Assim o homem sábio prático deve
saber, desde o início, quais são as coisas ‘boas para o homem’; segundo a visão de Aristóteles ele
deveria conhecer a conclusão à qual ele próprio chega no livro X, que a melhor coisa para o
homem é a vida de contemplação, e ele deveria deliberar sobre os meios pelos quais isso pode ser
99

estabelecer uma certa independência entre estas duas instâncias. 297 Há também
respostas mais sofisticadas, como a de Von Hooft, para quem cada forma de
felicidade corresponderia a um período diferente da vida do indivíduo. 298
Podemos considerar, no entanto, que estas diversas interpretações não afetam o
núcleo central de nossa tese, por dois motivos: primeiro, porque o tema que
estamos abordando é a questão ética, e, portanto, podemos restringir nossa análise
apenas às virtudes morais. Segundo, mesmo que estas últimas sejam vistas como
um caminho para chegar à contemplação, a estrutura que procuramos estabelecer
ainda seria a mesma: nossa análise, de fato, enfatizou a relação intrínseca entre
moralidade e racionalidade, pela qual a parte irracional de nossa alma deve se
harmonizar ao bom exercício da razão. Ora, a contemplação é uma atividade
puramente intelectual, e, portanto, a conformação da felicidade ética à
contemplativa não modifica, realmente, esta estrutura. O que ocorreria, nesta
leitura, é que a subordinação de nossas inclinações se daria em dois níveis,
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atingido” (ROSS, 1995, p. 223, tradução nossa). Podemos também citar, nesta linha, Stephen
Engstrom, que menciona o mesmo trecho do livro VI a que se referiram, acima, Gauthier & Jolif:
“assim como a medicina enxerga como trazer a saúde à existência, a sabedoria prática enxerga
como trazer à existência a sabedoria filosófica; (...) Esta subordinação da phrónesis à sophia
parece ser confirmada no livro X, quando Aristóteles, ao afirmar que as ações nobres na guerra e
na vida política visam alguma eudaimonia além de si mesmas, argumenta que somente a atividade
contemplativa da razão (nous) – a atividade do filósofo – é ‘eudaimonia completa’, enquanto a
vida de acordo com a virtude ética é eudaimonia somente ‘de uma maneira secundária’ (X 7-8). A
subordinação também parece ser confirmada na conclusão da Ética Eudêmica, onde Aristóteles,
novamente fazendo uma analogia com a medicina, sugere que a sabedoria prática estabelece
comandos em função da contemplação de deus, e também que esta relação com a contemplação
fornece a ‘regra reta’ pela qual a sabedoria prática determina a mediania na qual consistem as
virtudes éticas (1249a21-b25)” (Stephen Engstrom, “Hapiness and the Highest Good”, in
ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 114, tradução nossa). Os trechos das obras de Aristóteles
citadas por estes comentadores não serão analisadas diretamente por nós, pois, como estamos
tentando argumentar, trata-se de um tema que não afeta diretamente nossa tese.
297
“Porém, a contemplação não exclui as outras virtudes; ao contrário, ela as supõe. Aristóteles
pode assim escrever que a felicidade estende-se até onde vai a contemplação sem por isso dizer
que só há felicidade lá onde houver contemplação. (...) a felicidade, ela, inicia no domínio moral e,
somente quando o homem já está ai instalado, pode acrescentar a atividade contemplativa e tudo
organizar em torno dela. (...) Porém, se a felicidade pode incluir a contemplação e assim tornar-se
completa, resta que ela pode também não incluir a contemplação, sem por isso deixar de ser
felicidade, exceto que o será em um segundo grau, a felicidade segunda da vida política”
(ZINGANO, 2007, p. 510-511).
298
“A Ética de Aristóteles é um manual para viver bem que se revela de acordo com os estágios de
vida de sua audiência. A primeira divisão da obra é dirigida à juventude e àqueles que têm
responsabilidade para com os jovens. A segunda divisão da obra é dirigida a adultos maduros que
tomam decisões autonomamente. A terceira e última divisão, eu gostaria agora de sugerir, é
dirigida a homens mais velhos que estão aposentados. Estes homens não são mais homens de
estado tomando parte ativa na política da cidade e, obviamente, não são mais soldados. O que é
então para eles a maneira mais valorosa de viver? A vida de contemplação” (VAN HOOFT, 2006,
p. 77, tradução nossa).
100

primeiramente em relação à razão prática, e então, por intermédio desta, à razão


contemplativa.
Concluindo, podemos considerar, como dissemos, que este cinco temas,
mesmo sendo importantes para a ética aristotélica, não são relevantes para nossa
abordagem.

2.5
Conclusão da parte 1
Como dissemos na introdução, o objetivo deste trabalho é o de analisar as
estruturas das éticas de Kant e de Aristóteles, entendidas a partir da relação entre a
prescritividade da razão prática, o valor moral da ação e a noção de virtude. Nesta
primeira parte, assim, fizemos uma investigação da concepção aristotélica,
procurando enfatizar, sobretudo, a dimensão prescritiva da razão prática, que não
é tão óbvia no filósofo grego quanto será em Kant. A ausência de uma concepção
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de “vontade”, de fato, leva nossas ações a serem determinadas, em última


instância, pelo desejo, conferindo à racionalidade um papel aparentemente
instrumental. Procuramos, no decorrer de nossa análise, discordar desta
interpretação, mostrando que a razão prática aristotélica possui, sim, uma
dimensão prescritiva, e que esta exerce uma função central na concepção do
estagirita.
O primeiro elemento que aponta fortemente nesta direção é o argumento
do érgon, pelo qual o bem do homem está no bom exercício da razão, e não em
algo que obtemos através dele. Como conseqüência desta tese, está a idéia de que
a parte irracional de nossa alma deve “ouvir” a racional, em uma relação inversa,
portanto, àquela que poderia se esperar em uma concepção instrumentalista. Ao
que tudo indica, aquilo que é “ouvido” por nossos desejos deve possuir uma
dimensão prescritiva, como parece sugerir a metáfora da relação entre pai e filho.
Procuramos, a partir de então, mostrar como a ética aristotélica é
estruturada em torno desta dimensão prescritiva, a começar pela noção de virtude,
entendida como estados disposicionais, frutos do hábito, cuja diferença especifica
é a mediania, estabelecida por uma regra reta da razão prática. As noções de
“deliberação” e “escolha”, por sua vez, parecem, à primeira vista, corroborar a
interpretação instrumentalista, pois, como o próprio estagirita afirma, só
deliberamos e fazemos escolhas sobre meios. Procuramos argumentar, no entanto,
101

que estas noções fazem parte de um processo complexo pelo qual nossos desejos
são racionalizados, e, portanto, indiretamente, também nossos fins. A relação da
escolha e da deliberação com a voluntariedade e responsabilidade moral deixam
claro o papel central exercido pela razão prática na ética aristotélica.
Os fins racionalizados seriam “objetivos”, bens “do homem”, válidos para
todos os seres humanos, e, por que não dizer, para todos os seres racionais, como
afirmará Kant. A deliberação sobre estes fins, visados pelo homem virtuoso, é
aquilo que Aristóteles chamará de sabedoria prática. Esta noção é diretamente
ligada pelo autor aos “ditames” da razão. Podemos considerar que isto se dá,
sobretudo, pelo fato de que os bens objetivos incorporaram, por assim dizer, a
regra reta, adquirindo, com isso, uma dimensão prescritiva, assim como os meios
para atingi-los. Desta forma, “vencer uma batalha com honra”, “ajudar uma
criança em apuros”, “ser honesto”, e mesmo fins aparentemente mais banais como
ter uma alimentação equilibrada, possuem uma força prescritiva pelo fato de
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conterem em si os ideais de harmonia e justa medida que os gregos associavam à


racionalidade. Podemos lamentar que estas prescrições não sejam tão explícitas
em Aristóteles como serão em Kant, mas isso pode ser explicado, conforme
comentamos, por diversos fatores: o elemento irracionalista sempre presente nas
ações, o particularismo – o meio-termo varia de acordo com as pessoas e as
circunstâncias -, e a negação de uma dimensão transcendente das normas da razão,
o que faz com que o sábio encarne, por assim dizer, a regra reta, que só é
conhecida, portanto, através dele.299
Podemos assim concluir nossa análise, nesta primeira parte, afirmando que
a ética aristotélica possui, sim, uma dimensão prescritiva da razão prática, e que
esta exerce uma função essencial na sua estrutura. Mais ainda, podemos afirmar
que esta prescritividade pode ser entendida como um princípio formal: a regra
reta, de fato, não nos diz “o quê” fazer, mas sim como agir.300 Este formalismo

299
Mais adiante, na parte 2, argumentaremos que o particularismo pode ser relacionado à ausência
de uma noção de “vontade” no estagirita: de fato, embora a razão prática forneça o princípio
formal no qual se baseia a ação moral, o conteúdo da ação não deriva diretamente deste princípio,
pois deve se harmonizar com o desejo. Neste sentido, justamente, é que o meio termo “varia de
acordo com as circunstâncias”. Em Kant, a noção de vontade permite que a matéria da ação derive
diretamente do princípio formal – daí, justamente, ser possível estabelecer a priori quais são os
“ditames” da razão, em termos de conteúdo.
300
Obviamente, a prescritividade da razão, enquanto princípio formal, também acaba
influenciando “o quê” fazemos, pois não são todas as ações que podem assumir uma forma de
acordo com este principio. Este ponto ficará mais claro na parte 2, quando falarmos de Kant.
102

está perfeitamente de acordo com a compreensão da regra reta a partir da


mediania e da justa medida. Trata-se de um ponto importante na comparação com
Kant, pois, como veremos na parte 2, o filósofo alemão define os ditames da razão
como princípios formais.
A estrutura da ética aristotélica, que nos propomos a analisar, pode assim
ser descrita, a nosso ver, da seguinte forma: o valor moral da ação depende de sua
adequação a um princípio formal fornecido pela razão prática, e as virtudes são
disposições do agente em agir segundo estas prescrições. Na parte 2,
procuraremos mostrar que a ética de Kant possui uma estrutura semelhante.

2. 6
Apêndice da parte 1: o surgimento histórico da noção de vontade
No decorrer da parte 1, deixamos claro que é fundamental para nossa tese
a idéia que os antigos, e particularmente Aristóteles, não possuíam uma noção de
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“vontade”, o que significa dizer que para estes autores as ações são sempre
realizadas, em última instância, a partir do desejo, possuindo, assim, um
componente irracional. Dada a importância deste ponto para o que estamos
tentando demonstrar – que as éticas de Aristóteles de Kant possuem uma estrutura
similar -, cumpre-nos, antes de abordar a concepção do filósofo alemão, fazer uma
rápida exposição sobre o desenvolvimento histórico da noção de vontade. Para
isso, nos basearemos, sobretudo, em dois autores, Gauthier & Jolif e Albrecht
Dihle.
A análise de Gauthier & Jolif se concentra em três pontos: o
intelectualismo dos estóicos, o termo voluntas como uma má tradução pelos
latinos de certos vocábulos gregos, e o desenvolvimento desta noção por alguns
autores cristãos, notadamente Santo Agostinho e São Máximo o Confessor. Os
comentadores franceses procuram contestar a interpretação tradicional pela qual
Agostinho teria sido o criador da “vontade”, mostrando que sua noção de voluntas
é grandemente baseada nos estóicos. Desta forma, o verdadeiro inventor da
vontade moderna teria sido São Máximo o Confessor.
Começando pelo estoicismo, Gauthier & Jolif mostram como seus autores
retornaram a um intelectualismo do qual Aristóteles havia procurado se afastar
(em uma crítica, como vimos, a Sócrates e Platão): o “élan moteur” estóico (όρµή)
já postula a razão, de fato, como uma força ativa, motor de nossas ações. Crisipo,
103

um dos primeiros autores deste movimento, considerava que a όρµή é um


imperativo da razão que exclui qualquer elemento afetivo. Como dizem os
autores, “Crisipo – e este é seu golpe de gênio – fez da razão não mais, como
Aristóteles, uma potência passiva, mas uma faculdade essencialmente ativa e
dinâmica. (...) Porque a razão é essencialmente dinâmica, o imperativo racional
que é a όρµή é motor por si mesmo. Não há nenhuma necessidade de apelar, como
fazia Aristóteles, ao desejo (ainda que racional) que o anima; é à razão, e somente
à razão, que cabe o papel de motor”.301 Mais adiante, Gauthier & Jolif comentam
que ao lado da noção de όρµή – a razão enquanto atração (attrait), que nos
comanda a fazer algo -, Crisipo postulou também a άφορµή, ou seja, a razão
enquanto repulsão (retrait), que nos proíbe de fazer algo. Esta última pode
assumir diversas formas, entre elas a υέλησις, que os comentadores traduzem
como vontade (volonté), descrito como um desejo consentido ou voluntário
(souhait qu’on fait de son plein gré).302 Podemos assim considerar que Crisipo se
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aproximou bastante da noção de vontade, se a entendermos, como fazem os


comentadores franceses, como um desejo essencialmente racional. O
intelectualismo mais radical deste autor, no entanto, não teria sido acompanhado
por seus sucessores: Panécio e Possidônio, já no médio-estoicismo, quebram com
o monismo da alma de Crisipo, levando a όρµή a recuperar sua dimensão
irracional, o que a reaproxima do apetite aristotélico, porém com uma importante
diferença: para este autores, o desejo ocorreria após o juízo da razão, ou seja, o
assentimento.303 Gauthier & Jolif consideram que este aspecto será importante no
desenvolvimento da concepção estóica da escolha (έχλογή), que terá grande
influência no futuro desenvolvimento da vontade, ligada, no pensamento cristão, à
capacidade do indivíduo em escolher livremente entre o bem e o mal.304
Gauthier & Jolif procuram então mostrar como surgiu o sentido filosófico

301
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 246-247 (tomo I), tradução nossa.
302
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 247 (tomo I).
303
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 248; p. 251 (tomo I). Os comentadores franceses citam
Alexandre de Afrodísia, Nemésio e Aspásio como autores que contribuíram para a elaboração
desta noção de assentimento.
304
Ainda segundo Gauthier & Jolif, a noção de “escolha” se refere sobretudo, para os estóicos, à
escolha entre indiferentes, mas também aquela entre o bem e do mal: “segue daí que, se a ação
reta, o χατόρυωµα que caracteriza a prudência, consiste em aderir ao bem e fugir do mal, sua tarefa
é escolher as coisas conforme a natureza” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 248; p. 253 (tomo I)).
Como dissemos acima, para este autores esta noção afetará o futuro desenvolvimento da noção de
vontade no pensamento cristão, por ser anterior ao desejo, se adequando melhor, assim, ao livre-
arbítrio cristão, que permite escolher livremente entre o bem e o mal.
104

de voluntas na língua latina: em seu uso popular, tratar-se-ia de um termo de


sentido amplo, podendo designar todo tipo de sentimentos, inclinações ou estados
de espírito. Os primeiros usos filosóficos da palavra teriam sido feitos por
Lucrécio, mas de forma vaga, como “bom prazer” (se opondo, assim, ao simples
prazer, voluptas), princípio do movimento de todos os animais, “tendência
espontânea e natural do ser”.305 Cícero, no entanto, seria o autor que exerceu um
papel mais decisivo na elaboração do sentido filosófico de voluntas, não tanto pela
originalidade de seu pensamento, mas, segundo os comentadores franceses, pela
imprecisão de suas traduções: voluntas traduziria έχών (espontaneidade),
βούλησις (desejo racional) e προαίρεσις (decisão).306 Desta forma, noções ligadas
ao desejo se fundiram a outras puramente intelectuais, o que teria contribuído para
a forte dimensão racional da voluntas.
Gauthier & Jolif abordam então o pensamento cristão: contrariamente à
interpretação tradicional (inclusive do autor de que falaremos mais adiante,
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Albrecht Dihle), eles consideram que não foi Santo Agostinho o verdadeiro
inventor do sentido moderno de “vontade”. A voluntas agostiniana não
acrescentaria muita coisa à noção dos estóicos latinos: “se ninguém nunca definiu
a concepção agostiniana de vontade, é simplesmente porque esta concepção não
existe: dos traços da ‘vontade’ que foram identificados em Agostinho, não há
nenhum que já não se encontre nos estóicos”.307 O empréstimo mais importante
que Agostinho teria feito aos estóicos seria a noção de consentimento
(συγχατάνεσις), que mencionamos mais acima, que seria, justamente, um ato da
vontade: a fé é assim definida como o consentimento que nos faz aceitar como
verdadeiros os ensinamentos da Igreja, e o pecado é o consentimento que nos faz
ceder à tentação. 308 A pretensa originalidade desta doutrina em relação aos
estóicos seria, no fundo, resultado das más traduções de Cícero:
Seria um erro saudar este ‘voluntarismo’ como uma alteração consciente e
refletida da doutrina estóica e um pensamento original de Agostinho; não, é
simplesmente o resultado lógico da inabilidade de Cícero como tradutor: foi de
fato Cícero que tinha traduzido (e traído) a doutrina estóica que fazia da
συγχατάνεσις um julgamento do qual somos mestres e, portanto, responsáveis

305
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 256 (tomo I). A interpretação da voluntas lucreciana como
“tendência espontânea do ser” teria sido feita, segundo os dois autores, por M. Robin.
306
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 256 (tomo I). Os autores comentam ainda que esta tradução
teria influenciado outros filósofos latinos, como Sêneca (ibidem, p. 257-258).
307
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 259 (tomo I), tradução nossa.
308
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 260 (tomo I). Os autores citam, como passagens em que
Agostinho trata deste assunto, De mendacio IX 13-14.
105

(έχούσιος), ao dizer que o consentimento é um ato “voluntário”,309 terminologia


reproduzida no século II por Aulu Gelle, em um texto que era familiar a Santo
Agostinho. É, portanto, certamente deste erro de tradução que derivam os textos
310
de Santo Agostinho que fazem do consentimento um ato da vontade.

Os comentadores franceses consideram que Santo Agostinho teria se


baseado nestes erros para tornar a voluntas mais abrangente, fazendo-a incluir, por
exemplo, o apetite estóico (όρµή), de forma que as paixões se tornam também
voluntates.311 Mas esta abrangência, justamente, faz com que esta noção acabe se
tornando um conceito superficial, sem a precisão, por exemplo, da voluntas
escolástica, faculdade rigorosamente definida por sua dupla oposição à razão e ao
apetite sensível.312 A vontade agostiniana seria, assim, “um movimento da alma
como um todo cujo conceito permanece muito vago”.313
São Máximo o Confessor teria sido, para Gauthier & Jolif, o verdadeiro
criador da noção escolástica de vontade, que foi, por sua vez, a base do conceito
moderno. O pensamento do autor medieval gira em torno da figura de Cristo,314 e
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um dos principais problemas ligados a este tema é a necessidade de conciliar o


caráter humano da Sua vontade com a impossibilidade de pecar. Para isso, São
Máximo distinguiu dois tipo de querer, o natural (υέληµα φυσιχόν), que é a
vontade humana, e o querer gnômico (υέληµα γνωµιχόν), que é a vontade passível
de pecar, que Cristo, portanto, não possuiria.
O querer natural é sem dúvida o desejo racional aristotélico. Mas, ao invés de
fazê-lo surgir, como Aristóteles, sobre o fundo indiferente do desejo, São
Máximo, que neste ponto ultrapassa de longe Aristóteles, o faz surgir na υέλησις,
palavra que Aristóteles ignorava como também ignorava a coisa que ela designa.
A υέλησις não é mais um desejo racional por acidente, é um desejo racional por
natureza, é uma faculdade (δύναµις), levada por seu próprio impulso, antes de
qualquer intervenção do conhecimento, em direção a este mesmo bem universal
que a razão é feita para conhecer. Esta faculdade é uma propriedade da natureza
humana e é também naturalmente que surge nela, assim que intervém uma
representação simples, exclusiva de toda deliberação, o ato que é o desejo
racional, elevado assim pela primeira vez à dignidade de ato da vontade.315

309
Gauthier & Jolif citam como passagem de Cícero Acad. Post., XI 40.
310
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 260-261 (tomo I), tradução nossa.
311
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 261-262 (tomo I).
312
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 262 (tomo I).
313
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 262 (tomo I), tradução nossa.
314
Como dizem Reale e Antiseri, “o núcleo essencial do pensamento de Máximo está na
tematização do papel central da pessoa de Cristo de um ponto de vista tanto antropológico quanto
metafísico, ontológico e cosmológico” (REALE & ANTISERI, 2005, p. 61).
315
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 264 (tomo I), tradução nossa. Na nomenclatura de Máximo, a
vontade (υέλησις) seria a faculdade, e o desejo racional (βούλησις) seu ato (ibidem, p. 264 (nota
dos autores)). Já o querer gnômico não é uma propriedade essencial de nossa natureza, mas sim
106

O querer natural de São Máximo, assim, seria uma forma de desejo


essencialmente racional, e não acidentalmente, como ocorre com a βούλησις
aristotélica. A precisão conceitual com que o autor medieval elabora esta noção -
como uma faculdade própria à natureza humana -, levam Gauthier & Jolif a
considerar que esta foi a primeira forma de “vontade”, no sentido estrito do termo,
a surgir na história da filosofia.
A concepção de vontade elaborada por São Máximo, retomada por João
Damasceno no seu De Fide Orthodoxa, se impôs à teologia cristã, não somente
para os gregos, mas também para os latinos, e a força de um longo hábito a faz
parecer hoje tão natural aos espíritos formados na escola da escolástica (...) que
ela lhes parece uma verdade de bom senso: que Aristóteles não tenha percebido
esta evidência, eis o que é para eles impensável! O historiador não pode esquecer
que foi preciso aos homens, após Aristóteles, onze séculos para inventar a
“vontade”.316
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Albrecht Dihle, em The Theory of Will in Classical Antiquity, faz uma


análise que difere da de Gauthier & Jolif, embora com vários pontos em comum.
Dihle enfatiza a importância desta noção para a doutrina cristã, onde a
“obediência” aos mandamentos divinos não é um ato do intelecto nem do desejo,
mas de uma terceira instância, que é a vontade.
O autor começa por mostrar a importância da questão ontológica: os
filósofos gregos, de fato, tendiam a enxergar o mundo em termos de sua ordem,
regularidade e beleza, que podiam ser compreendidas pela mente humana. Este
tipo de cosmologia se opunha, assim, à idéia de uma “vontade” divina capaz de
interferir no mundo de forma imprevisível. 317 Estas visões de mundo terão

uma maneira contingente de viver, uma disposição ou hábito adquirido, nosso caráter, que é
passível de pecado (ibidem, p. 265).
316
GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 266 (tomo I), tradução nossa.
317
“A teologia na tradição da filosofia greco-romana não se preocupava muito com o problema do
poder divino, que é a diferença mais significativa entre o homem e Deus segundo a experiência
religiosa fundamental: έπεί ή πολύ φέρτεροί είσιν (pois, na verdade, eles são de longe mais
poderosos), para citar a fórmula homérica. A teologia grega filosófica se concentrava, ao invés
disso, desde o início, na ordem, regularidade, e beleza que são estabelecidas e mantidas pela
atividade divina. (...) Esta teologia filosófica ou cosmologia se baseava em uma pressuposição
básica: a mente humana é capaz de perceber e compreender a ordem racional do universo e,
conseqüentemente, a natureza do divino. (...) Natureza, cosmos, ordem do universo, providência –
todos estes conceitos ilustram que tudo acontece somente em conseqüência de um arranjo
preconcebido e racional, sem uma vontade separada interferindo, espontaneamente, no processo”
(DIHLE, 1982, p. 2, tradução nossa). Cf. ibidem, p. 102, tradução nossa: “A mesma vontade [do
Deus cristão], inexplicável e insondável como é, interfere continuamente com a vida do homem
através de atos e ordem e promessas. Tanto os eleito quanto os não-eleitos precisam lidar com as
107

influência decisiva na moral:


Quando a filosofia grega se voltou para problemas sociais e morais no século V
A.C., sua principal tarefa foi a de encontrar padrões de conduta moral que fossem
tão racionais e geralmente aplicáveis quanto as regras da ordem cósmica. Se a
razão era, de fato, o único fator estruturante e animador, se o universo era
racional, a ação humana só podia ser avaliada por padrões fornecidos pela razão.
O mesmo intelecto humano tinha que perceber a ordem da natureza e os objetivos
da ação. A ação era moralmente boa se concordasse com a ordem racional do
universo. Conseqüentemente tinha que ter origem na compreensão racional do
mundo em que vivemos. O homem podia agir bem se tivesse conhecimento da
natureza. A identidade entre pensamento se aplicava tanto à cosmologia quanto à
ética. Mesmo nesta descrição extremamente breve das bases da filosofia moral
grega, é fácil perceber que o conceito de vontade não tem lugar nestas idéias. 318

Na moralidade cristã, por outro lado, esta dimensão racional não era
essencial, conseqüência de o próprio universo, comandado pelo arbítrio divino,
não ser tão acessível ao entendimento humano. A questão central, então, passou a
ser a obediência, e não o conhecimento:
O conceito de Vontade Livre resulta de uma visão completamente diferente. O
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mundo como é experimentado na vida humana deve sua existência a um criador


que é livre para interferir, a qualquer momento, com o que estiver acontecendo
com sua criação. É somente por benevolência que Ele também conferiu alguma
regularidade ao processo cósmico. Portanto o homem deve experimentar, em
primeiro lugar, a vontade do criador. Ele se torna consciente de sua própria
intenção através de contínuos atos de obediência ou desobediência – quer dizer
atos de vontade – pelos quais ele reage livremente aos desígnios da vontade
divina.319

Esta diferença cosmológica, assim, acaba afetando a psicologia moral das

manifestações imprevisíveis e a soberania sem restrições da vontade divina através da história da


humanidade”. Podemos considerar, parece-nos, que a noção de vontade divina – enquanto
instância passível de intervenções imprevisíveis, “do nada” - se liga, de certa forma, à de “criação
a partir do nada” (ex nihilo), conceito cristão que, como se sabe, era estranho aos gregos.
318
DIHLE, 1982, p. 37, tradução nossa.
319
DIHLE, 1982, p. 72, tradução nossa. Em outro trecho, Dihle comenta como “diferentemente do
conceito do Velho Testamento, a tragédia grega não prevê a possibilidade de que o homem possa
responder à intenção de um dos deuses por um simples ato de obediência, sem uma compreensão
devida da situação dada” (ibidem, p. 17, tradução nossa). Mais adiante, cita a posição de Sêneca
como emblemática da mentalidade grega: “non pareo deo sed assentior ‘eu não obedeço a Deus,
mas concordo com ele’ (Epistulae, 96.2). A obediência ao divino, na visão do filósofo estóico, está
longe de ser um ato da vontade. Ela resulta ou ainda é idêntica a um reconhecimento da ordem
divina da natureza, e leva o homem a concordar, livre e voluntariamente, com o que a natureza ou
Deus o ordenou a ser e a fazer. Este acordo é atingido, sem nenhuma coerção externa e sem
nenhum ato de submissão, através de uma atividade intelectual livre, e não-influenciada, da parte
do homem. Deo parere libertas est: ‘obediência a Deus é liberdade’ (De Vita Beata, 15.3). Isto é
possível porque a vontade de Deus ou natureza está longe de ser arbitrária ou imprevisível: Sua
illis in lege aeterna voluntas est; statuerunt quae non mutarent ‘a vontade dos deuses repousa em
leis eternas; são estabelecidas para serem imutáveis’ (Sêneca, De Brevitate Vitae, 6.23.1). Não
havia nenhuma necessidade de um termo que denotasse volição enquanto tal no quadro destas
idéias sobre Deus, o universo e o homem” (ibidem, p. 18, tradução nossa).
108

duas escolas: como diz Dihle, para os gregos esta se baseava na interação entre o
racional e o irracional: “dentro dos limites impostos pela lei divina, o homem é
visto agir de acordo com suas próprias forças racionais e irracionais”. 320 Mais
adiante, temos: “esta psicologia partida, que explica o comportamento humano na
base da interação entre forças racionais e irracionais, e que não tem lugar para o
conceito de vontade, prevalece no decorrer da tradição grega dos tempos de
321
Homero em diante”. Emoção e razão, assim, são sempre claramente
distinguidos um do outro, ambos sendo necessários para a realização de qualquer
tipo de ação – daí, justamente, a necessidade de descrever cuidadosamente sua
interação. 322 Não é muito difícil enxergar aí elementos característicos da ética
aristotélica, que expomos no decorrer da parte 1.
Por outro lado, o conceito de vontade, como será desenvolvido
posteriormente, não pode ser descrito em termos racionais ou irracionais. Trata-se,
por assim dizer, de uma terceira instância, onde a intenção não é derivada da razão
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ou da emoção, mas considerada em si mesma: “a palavra ‘vontade’ e seus


equivalentes nas linguagens modernas, como é aplicada na descrição e avaliação
da ação humana, denota pura volição, independentemente de sua origem tanto
cognitiva quanto emocional”. 323 Mais adiante, temos: “os gregos não tinham
nenhuma palavra deste tipo em sua linguagem para denotar vontade ou intenção
enquanto tal”.324
Nem Platão nem seus sucessores puderam introduzir o fator isolado da intenção
ou da volição em sua doutrina da ação humana. Em sua tentativa de estabelecer o
quadro psicológico dos padrões morais, eles sempre mantiveram a bipartição
tradicional entre intelecto e emoção, forças racionais e irracionais da alma. Eles
se concentraram no problema de como a razão, da qual a realização primária é
sempre a cognição, poderia ser e continuar mantida como o fator dominante na
vida moral, como a natureza requeria.325

320
DIHLE, 1982, p. 27, tradução nossa.
321
DIHLE, 1982, p. 27, tradução nossa. Anteriormente, o autor já havia comentado, em relação à
psicologia moral grega baseada na interação entre o racional e o irracional, que “não há
necessidade para uma vontade intermediária, da qual a ação dependeria inteiramente, e à qual todo
julgamento moral sobre o comportamento humano se referiria em última instância” (ibidem, p. 27,
tradução nossa).
322
DIHLE, 1982, p. 27-28.
323
DIHLE, 1982, p. 20, tradução nossa.
324
DIHLE, 1982, p. 20, tradução nossa. Mais adiante, Dihle acrescenta: “Nosso termo ‘vontade’
denota somente a intenção resultante, deixando de fora qualquer referência especial a pensamento,
instinto ou emoção como fontes possíveis desta intenção. Os gregos, por outro lado, só conseguem
expressar a intenção juntamente com uma de suas causas, mas nunca de seu próprio direito”
(ibidem, p. 24-25, tradução nossa).
325
DIHLE, 1982, p. 54, tradução nossa. Em outros trechos, o autor comenta como o livre-arbítrio
grego não consistia, como para Santo Agostinho, na liberdade de direcionar a intenção para onde
109

Dihle se concentra, então, no processo histórico que permitiu o surgimento


da vontade cristã. Começa por considerar que as escolas helênicas lidavam com
diversos problemas que apontavam para esta noção, sem, no entanto, alcançá-
la.326 Em seguida aborda a junção da filosofia grega com o pensamento cristão,
em autores como São Paulo e Fílon de Alexandria: ambos teriam introduzido a
noção de “consciência” para explicar o ato de obediência, que não pressupõe
nenhum conhecimento anterior. 327 Dihle mostra como este tipo de concepção
deriva diretamente do Velho Testamento: de fato, o Deus judeu – Yahveh -
sempre foi descrito em termos de suas qualidades de “vontade”, como
misericordioso, zeloso, vingativo, dominador etc.328 Tanto em São Paulo quanto
em Fílon, a consciência moral é uma resposta à vontade divina, resposta esta que
não pode ser invalidada pela razão ou pela emoção. 329 Estes dois autores, no
entanto, não teriam cunhado o conceito de vontade:
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São Paulo teria sido mais facilmente compreendido em sua doutrina, se tivesse
introduzido um termo inequívoco para denotar a vontade do homem. (...) Não
existe este termo na linguagem de São Paulo e seus contemporâneos. Mesmo a
vontade de Deus, que fornece a causa última para a emergência da vontade
humana, e que deve ser destacada, na linguagem do homem, dos planos e
pensamentos de Deus – pois estes, ao contrário dos comandos da vontade divina,

se queira (ibidem, p. 45), e como para os gregos, de forma geral, nunca podemos ter certeza do que
devemos fazer, enquanto as ordens do Deus cristão são bem explícitas (embora seus desígnios não)
(ibidem, p. 74).
326
“Todos estes detalhes da doutrina estóica e epicuriana claramente indicam que o problema da
vontade como um fator independente da cognição, na explicação psicológica e na avaliação moral
da ação humana, com freqüência surge no curso das discussões filosóficas. Porém ninguém na
tradição escolar da filosofia helenística parece ter sido preparado para responder a isso por uma
teoria da vontade. A primazia e dignidade da razão, da qual a função principal é indubitavelmente
cognitiva, estava firmemente estabelecida durante este período” (DIHLE, 1982, p. 63, tradução
nossa). Mas adiante, comenta que embora a “escolha” estóica apontasse diretamente para o livre-
arbítrio cristão, por ser anterior ao desejo, ela ainda pressupõe a dependência da ação em relação
ao intelecto, não aceitando ainda, portanto, a idéia de uma vontade que independa tanto da emoção
quanto da cognição. O “ato de vontade” cristão, de fato, é sempre livre, independente de qualquer
esforço intelectual (ibidem, p. 69-71).
327
“Para São Paulo, todo cumprimento factual da Lei é primariamente um ato de obediência,
apropriado em toda criatura em direção ao Criador. Ele pode ser realizado, como São Paulo
observa, com e sem o conhecimento explícito do mandamento divino, e é somente o ato em si
mesmo que realmente conta” (DIHLE, 1982, p. 80, tradução nossa). A “consciência” moral não
teria origem no intelecto, apenas indicando ao indivíduo - de forma espontânea - se seus atos estão
ou não de acordo com a vontade de Deus (ibidem, p. 81).
328
DIHLE, 1982, p. 91-92.
329
Esta obediência estaria diretamente ligada à fé: “a fé é então descrita como um fenômeno da
vontade ao qual se relacionam as decisivas realizações na vida religiosa e moral” (DIHLE, 1982,
p. 75, tradução nossa). Mais adiante, o autor comenta que “a soberania de Deus, que está acima da
compreensão humana e não pode ser avaliada por padrões de racionalidade ou probabilidade,
requer, da parte do homem, um ato da vontade, quer dizer obediência ou desobediência,
aceitamento ou recusa” (ibidem, p. 76).
110

são inexplicáveis para a mente humana -, não tem termo definitivo. Θέλησις,
Θέληµα, βουλή, βούλησις, βούληµα, εύδοκία, νώµη são usados quase sempre
como sinônimos com referência à vontade de Deus nos primeiros escritos da
literatura cristã.330

Fílon também não teria cunhado este termo, por motivos semelhantes aos
de São Paulo: “Fílon descreve a vontade de Deus em grande detalhe, e
basicamente de acordo com a tradição religiosa de seu povo, mas sem o uso de um
termo específico e inequívoco”.331 Segundo Dihle, ambos os autores ainda

estavam muitos presos ao vocabulário grego:


Este conceito de vontade é inerente à doutrina de Fílon da consciência, assim
como aos ensinamentos de São Paulo. Mas nenhum deles chegou a escolher um
termo definitivo para denotar o conceito. Ambos tinham que se apoiar no
vocabulário grego contemporâneo, que havia sido formado, em grande extensão e
durante um grande período de tempo, por doutrinas filosóficas. (...) Tanto São
Paulo quanto Fílon tinham que usar o grego contemporâneo, e este fato os
impediu de cunhar o termo inequívoco que denotasse o conceito de vontade, ao
qual ambos tinham sido levados em suas especulações.332
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É interessante observar como este é um ponto comum à análise de Dihle e


de Gauthier & Jolif: ambos consideram que a noção de vontade ficou implícita
durante algum tempo – na doutrina dos estóicos, ou no Velho Testamento -, mas
sem chegar a ser criada como um conceito específico e bem definido, em parte
devido ao uso do vocabulário grego, que não continha termos que denotassem este
significado.
Dihle fala então rapidamente dos gnósticos, que teriam contribuído
fortemente para a elaboração do conceito “metafísico” da vontade de Deus, mas
sem fazer, no entanto, a passagem para a vontade “humana”.333 Caberia a Santo
Agostinho o mérito de, pela primeira vez na história da filosofia, ter feito esta
passagem. Ao contrário de Gauthier & Jolif, portanto, Dihle segue a interpretação
tradicional pela qual o filósofo medieval foi o inventor desta noção. Se apoiando
330
DIHLE, 1982, p. 83, tradução nossa. Mais adiante, temos: “São Paulo nunca cunhou um termo
para denotar o conceito essencial de vontade no contexto de sua soteriologia e antropologia.
Intenção enquanto tal é chamada por uma grande variedade de palavras” (ibidem, p.86).
331
DIHLE, 1982, p. 93, tradução nossa.
332
DIHLE, 1982, p. 98, tradução nossa.
333
Dihle considera que a concepção da realidade dos gnósticos pressupõe a “vontade” como fator
metafísico, levando-a a se tornar uma entidade ontológica em seu próprio direito, e não um sub-
produto da cognição. O trabalho de neo-platônicos como Plotino e Porfírio teria sido intensamente
aproveitado por autores cristãos do século quarto (como Marius Victorinus e Gregório de Nissa,
além dos chamados “Padres”), que tentavam formar uma clara concepção da vontade de Deus em
sua doutrina da Trindade (DIHLE, 1982, p. 106-107; p. 115-116; p. 119).
111

na tese de que o homem foi feito à imagem de Deus,334 Agostinho teria utilizado
seus métodos de introspecção e auto-exame para elaborar uma concepção
psicológica, e não ontológica, da vontade,335 que seria anterior tanto à dimensão
racional quanto irracional do homem.336 Assim como os comentadores franceses,
Dihle também assinala a importância das traduções de Cícero,337 acrescentando a
contribuição específica de Sêneca, que, em seus últimos escritos, teria
aparentemente se dado conta das implicações do termo voluntas, descrevendo-o
como um impulso para a ação que poderia ser apreendido independentemente
tanto da razão quanto do desejo irracional - mas sem, no entanto, elaborar uma
noção clara de “vontade”.338 Os motivos pelos quais nenhum dos autores latinos
tardios teriam chegado a este conceito seriam similares aos que vimos acerca dos
primeiros autores cristãos: a dependência da tradição filosófica grega.339
O autor conclui, então, fazendo o que nos parece ser um bom resumo de
sua análise, que enfatizou, como vimos, a maneira pela qual diversas tradições –
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bíblica, neo-platônica, gnóstica e latina - teriam sido sintetizadas na obra de Santo

334
“Santo Agostinho abordou o problema da vontade de várias formas, mas sempre baseado na
crença bíblica de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus” (DIHLE, 1982, p. 124,
tradução nossa).
335
“Santo Agostinho concebeu sua teoria no ponto de vista psicológico” (DIHLE, 1982, p. 124,
tradução nossa). Cf. ibidem, p. 23, tradução nossa: “A contribuição essencial de Santo Agostinho
ao desenvolvimento da noção medieval e moderna de vontade precisa ser enxergada no contexto
mais amplo da mudança de uma abordagem ontológica para uma psicológica, para a religião e a
ética, que ele iniciou”.
336
“Das reflexões de Santo Agostinho emergiu o confeito de uma vontade humana, anterior e
independente do ato de cognição intelectual, além de ser fundamentalmente diferente da emoção
sensual e irracional, pelo qual o homem pode responder aos comandos inexplicáveis da vontade
divina” (DIHLE, 1982, p. 127, tradução nossa). Cf. ibidem, p. 128-129, tradução nossa: “Santo
Agostinho interpretou a liberdade de escolha, tradicionalmente atribuída a todos os seres racionais,
como liberdade de vontade. (...) A direção da vontade, no entanto, é pensada e falada como sendo
independente da cognição do melhor e do pior. (...) A resposta ao chamado de Deus precede,
enquanto decisão da vontade, todo tipo de raciocínio e de fato leva à cognição intelectual”.
337
“Quando Cícero traduziu a terminologia ética e psicológica da filosofia grega, ele em geral
usou velle e voluntas para expressar intenção consciente e deliberada em contraste com impulso
irracional, força instintiva, ou compulsão externa. (...) Cícero, no entanto, usou a palavra voluntas
não somente para denotar o que era chamado προαίρεσις ou βούλησις em grego. Às vezes, até
mesmo em textos filosóficos, voluntas significa desejo, ou intenção mais espontânea do que
deliberada, e em outras passagens o próprio impulso (όρµή), que provém da deliberação ou da
atitude moral consciente, é chamado voluntas. A ampla área semântica aparentemente ligada a esta
palavra no vocabulário filosófico de Cícero corresponde ao uso geral em seu tempo” (DIHLE,
1982, p. 134, tradução nossa).
338
DIHLE, 1982, p. 134-135.
339
“A filosofia romana, em grande parte por depender inteiramente da tradição grega, não
desenvolveu a noção distinta de vontade antes de Santo Agostinho. Por outro lado, o uso das
palavras velle/voluntas, em textos filosóficos e não-filosóficos, parece indicar que a idéia de uma
volição pura, enquanto separada da cognição e da emoção, era inerente, embora indistintamente,
no vocabulário romano” (DIHLE, 1982, p. 135, tradução nossa). A idéia de Dihle parece ser,
assim, a de que os romanos, embora tenham desenvolvido um termo de significado bastante
próximo da “vontade”, não chegaram a construir o conceito específico.
112

Agostinho:
Santo Agostinho foi, de fato, o inventor de nossa noção moderna de vontade, que
ele concebeu para as necessidades e propósitos específicos de sua teologia, e em
continuidade com as tentativas dos teólogos gregos, que desenvolveram sua
doutrina da Trindade em termos da ontologia neo-platônica. Ele deu o passo
decisivo em direção ao conceito de vontade humana ao reinterpretar um termo
hermenêutico como sendo antropológico. Isto eventualmente o levou a uma
descrição filosófica adequada do que a tradição bíblica ensinou sobre a queda do
homem, salvação, e conduta moral. Mas, ao fazê-lo, Agostinho foi grandemente
ajudado e tacitamente guiado pelo vocabulário latino de seu tempo.340

Se formos, agora, concluir esta rápida exposição acerca do surgimento


histórico da vontade, podemos dizer que, apesar das diferenças entre as
abordagens de Dihle e de Gauthier & Jolif, ambas compreendem esta noção como
um impulso à ação “de seu próprio direito”, ou seja, que independe de instâncias
externas, como a razão ou a emoção. A intenção é, assim, considerada em si
mesma. Isto pode parecer contraditório com a descrição, feita por Gauthier & Jolif,
da vontade como “um desejo essencialmente racional” – mas é preciso considerar,
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a nosso ver, que quando Dihle enfatiza a independência desta em relação à razão,
ele está, na verdade, se referindo ao fato da vontade não pressupor nenhum tipo de
conhecimento cognitivo. Ora, isto também é válido para o “desejo racional” de
que falam Gauthier & Jolif - como atesta o comentário, citado acima, acerca da
concepção de Máximo o Confessor: “é uma faculdade, levada por seu próprio
impulso, antes de qualquer intervenção do conhecimento, em direção a este
mesmo bem universal que a razão é feita para conhecer”. Parece-nos que os
comentadores franceses estão chamando de “vontade”, aqui, um impulso à ação
que se baseia em razões (que estabeleceriam, entre outras coisas, o fim da ação),
mas estas estão, por assim dizer, incorporadas ao próprio impulso, não derivando,
assim, de uma instância que lhe seja exterior. Trata-se, no fundo, de uma visão
que identifica a vontade à razão prática – o que parece corresponder, como
veremos adiante, à posição de Kant. Se Dihle não enfatiza tanto este aspecto, isso
se deve provavelmente ao fato de sua análise girar, sobretudo, em torno da
contribuição da tradição judaico-cristã, enquanto os autores franceses parecem dar
mais destaque à influência estóica. Ambas as abordagens, no entanto, concordam
que a vontade é um impulso à ação tomado em si mesmo, independentemente de
outras instâncias. O que ocorre, como dissemos, é que Gauthier & Jolif descrevem

340
DIHLE, 1982, p. 144, tradução nossa.
113

esta independência a partir da incorporação, pela vontade, da dimensão racional,


enquanto Dihle parece enxergá-la mais a partir da visão agostiniana da “livre
escolha”, necessária para a noção de “fé”, entendida como obediência aos
mandamentos divinos. Apesar destas diferenças, ambos os comentadores
concordam que o conceito de vontade não existia para os gregos, particularmente
no período clássico, ao qual pertence Aristóteles (o período helenístico, como
vimos, pode talvez ser considerado de transição, onde a noção ainda não existia,
mas já havia discussões que apontavam para sua criação). Os dois também
concordam que a “vontade” independe de qualquer instância irracional: isso
significa, portanto, que nossos atos não derivam mais do desejo, como ocorria na
concepção de Aristóteles. Na parte 2, analisaremos a importância desta noção para
a ética de Kant. Como veremos, a vontade kantiana pode ser compreendida a
partir da relação entre duas faculdades, a Wille e a Willkür, sendo que a primeira
parece se aproximar mais do “desejo essencialmente racional” de Gauthier &
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Jolif, e a segunda da “livre escolha” de Dihle.

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