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Introduçã o
Em 86c, Só crates parece ter removido os obstá culos colocados em seu caminho
em 80b-e. Meno aprova a lembrança e certamente aceita que ele tem o dever de
indagar. Se Só crates pudesse seguir o seu caminho a partir de agora, eles
retomariam imediatamente sua busca pela definiçã o de virtude.
Antes de prosseguirmos, vale a pena fazer uma pausa para considerar como seria
essa investigaçã o à luz das afirmaçõ es metodoló gicas e epistemoló gicas feitas
entre 81b e 86c. O problema da descoberta exigia que começá ssemos com uma
especificaçã o conhecida do objeto de investigaçã o. No caso de uma investigaçã o
de definiçã o, no entanto, nã o há nada que possamos saber sobre virtude sem
conhecer a pró pria definiçã o. A soluçã o de Só crates é dizer que temos
conhecimento inconscientemente, mas, no nível consciente, temos que começar
da mera conjectura. Nã o haverá 'rochas duras da certeza' a partir da qual
trabalhar, 1 e as suposiçõ es feitas no início ou ao longo do caminho estarã o
sujeitas a revisã o. Mas aparências à parte, essa investigaçã o está na verdade
sendo guiada pelo conhecimento latente gradualmente retornando à consciência.
Como em mais detalhes esse processo funcionará ? Podemos seguir nossa
sugestã o de uma observaçã o feita em 81c9 – d3:
Como toda a natureza é semelhante, e a alma aprendeu tudo, nada impede que
alguém se lembre de apenas uma coisa (que as pessoas chamam de
"aprendizado") e, assim, descobre tudo o mais. . .
A realidade é estruturada, assim como nossa consciência prévia. A presença
contínua dessa estrutura em nossa memó ria nos permite usar cada item recém-
registrado para avançar para o pró ximo. Portanto, pode haver um ato de
lembrança no início da investigaçã o, que resulta na formaçã o de uma crença
verdadeira².
Já discutimos essas linhas ao avaliar o cará ter de Meno acima (pp. 63-4). Mas a
mesma passagem também é de importâ ncia central para a compreensã o do
método filosó fico do Meno. Só crates começa repetindo algumas restriçõ es
metodoló gicas do início do diá logo, mas depois anuncia que está preparado para
fazer uma concessã o a Meno, que por sua vez anuncia a introduçã o de um novo
método, o 'método de hipó tese'.
Este é um tó pico que exerceu duplamente os comentadores. Primeiro, nas linhas
imediatamente apó s a citaçã o, Só crates 'ilustra' o método com um exemplo
geométrico cuja opacidade confunde estudiosos modernos há mais de um século.
Segundo, ele rapidamente aplica o método em um contexto distintamente
filosó fico, usando-o para responder à pergunta sobre a aquisiçã o da virtude. Ao
fazer isso, ele envia sinais conflitantes sobre como o método deve ser aplicado e
até sobre o que realmente é. Novamente, o resultado foi um prolongado debate
acadêmico.
Na minha opiniã o, fizemos o má ximo de progresso possível na primeira ediçã o.
Entre todas as diferentes soluçõ es para o enigma do exemplo geométrico de
Só crates, descreverei o que me parece o melhor disponível nas pá ginas 133–7
abaixo. No que diz respeito ao segundo, podemos avançar bastante se
esclarecermos exatamente qual concessã o metodoló gica Só crates está fazendo a
Meno nas linhas citadas.
O método
Hipó tese como compromisso
O exemplo geométrico
À luz disso, o método da hipó tese surge como uma inovaçã o importante e, como
a teoria da lembrança, deveria ser adotado, desenvolvido e modificado em
diá logos posteriores. Mas isso apenas exacerba um problema que levantei acima.
Abertamente, Só crates apresenta o método como o segundo melhor, e o faz
puramente porque Meno é muito impaciente para seguir o método preferido. No
entanto, se tudo isso estava acontecendo, por que Platã o refinaria o método e o
reintroduziria em trabalhos posteriores? Existe uma razã o mais séria para
introduzi-lo além de acomodar a impaciência de um interlocutor em particular?
Há sim. A real importâ ncia do método no Meno é que ele representa um
compromisso entre o que eram para Platã o duas forças muito poderosas. Por um
lado, havia uma necessidade premente de obter uma resposta para uma questã o
de importâ ncia prá tica - como a virtude é adquirida. A urgência dessa pergunta
para Platã o é clara pelo nú mero de seus diá logos em que ela aparece: Alcibíades
I, Laches, Protá goras, Eutidemo, Repú blica e Leis. Por outro lado, eu sugeriria
que Platã o é fortemente atraído por um certo purismo metodoló gico: sempre
que possível, uma investigaçã o deve prosseguir com base em uma especificaçã o
explicitamente conhecida ou conjunto de premissas. Mas seguir a rota purista
nesse caso corre o risco de adiar perguntas prá ticas indefinidamente em favor de
investigaçõ es mais abstratas - indefinidamente, porque a busca por definiçõ es
morais se mostrou tã o ilusó ria. No entanto, lançar-se cedo demais para a questã o
prá tica corre o risco de cair em suposiçõ es - possivelmente errô neas - sem
sequer ter consciência do que sã o. Seguir o método da hipó tese nos permite
construir argumentos dedutivos rigorosos, o tempo todo cientes do que estamos
dando como certo. Isso pode ser concedido à antiga metodologia purista. Ao
mesmo tempo, podemos começar a abordar questõ es prá ticas importantes,
tendo reconhecido que estamos fazendo isso com base em uma suposiçã o
provisó ria de que precisamos revisitar em algum momento posterior e
possivelmente derrubar.
Um bom paralelo para isso pode ser encontrado na Repú blica, cuja pró pria
pergunta premente é se a justiça beneficia o agente, uma questã o intimamente
ligada à questã o de como se deve levar a vida de alguém (344e1–3). Para
responder à pergunta, no entanto, precisamos descobrir o que é justiça. Mas
acontece que uma resposta realmente adequada a essa pergunta envolveria uma
investigaçã o muito longa sobre a Forma do Bem (cf. 504b1–4 com 435d1–5). Os
puristas metodoló gicos adiariam a pergunta original até que concluíssem o
inquérito ao Bem, um processo que pode levar muitos anos (trinta, no caso dos
governantes do estado ideal: cf. 540a4-9). Mas, para Platã o, a pergunta original é
muito urgente e precisa ser respondida, mesmo que apenas de maneira
provisó ria. Nesse sentido, ele faz Só crates seguir uma rota mais curta. Eles
definirã o a justiça no indivíduo, verificando se ele tem a mesma estrutura que o
estado, que eles concordaram em ser apenas em virtude da harmonia entre suas
três partes. Se eles podem mostrar que a alma também tem três partes, entã o
podem definir provisoriamente sua justiça nas mesmas linhas. O que é
particularmente interessante para nossos propó sitos é que o principal
argumento para dividir a alma se baseia em uma mera hipó tese (437a6): nada
pode experimentar estados contrá rios (por exemplo, desejos) no mesmo
respeito ao mesmo tempo. Como a alma pode ser atraída e repelida pela mesma
coisa, deve ter partes diferentes. Essa é a base sobre a qual o argumento
prossegue, e Só crates reconhece explicitamente que ele ainda pode ser
derrubado.
É no mesmo espírito que eu argumentaria que o método de hipó teses é avançado
no Meno - como uma maneira de progredir em um tó pico de preocupaçã o
urgente e de olhos claros sobre a falibilidade do raciocínio de alguém. Nesse
caso, mostra que Platã o construiu esta seçã o do Meno para operar em dois
níveis, da mesma maneira que encontramos nas partes anteriores do diá logo,
especialmente na passagem das lembranças. Nos anos 80d e 86c-d, Meno solicita
que Só crates introduza uma importante inovaçã o epistemoló gica ou
metodoló gica. Em um nível, Só crates dá sua resposta apenas como uma maneira
de se engajar com as motivaçõ es rebeldes de Meno - na maneira de se lembrar de
reenergizá -lo, na passagem de hipó teses para acomodar sua impaciência. No
nível mais profundo, no entanto, Platã o está usando cada episó dio para trazer à
atençã o do leitor uma séria dificuldade, como é evidenciado pela importâ ncia das
soluçõ es, as quais continuam sendo destaque em outros trabalhos.
Visto sob esse prisma, a passagem de hipó teses se une à s outras três que discuti
como exemplo em que Platã o coloca o histó rico Só crates em julgamento. O
padrã o, como vimos emergir, é que Meno (apesar de si mesmo) lança um desafio
a uma suposiçã o especificamente socrá tica. Nesse caso, a suposiçã o é de que
devemos obter conhecimento da definiçã o de virtude antes de examinarmos se
ela é ensiná vel.
Há boas razõ es para acreditar que essa suposiçã o é socrá tica, pelo menos na
evidência de Laches e Protá goras. No Laches, Só crates afirma que, para saber
como a virtude é melhor adquirida, é preciso primeiro saber o que é.23 A
passagem relevante de Protá goras chega logo ao final. Na 360e, Só crates mostra
o estranho estado de coisas que alcançaram. Protá goras acha que virtude nã o é
conhecimento, mas é ensiná vel; Só crates pensa que é conhecimento, mas nã o é
ensiná vel. No entanto, se é conhecimento, é ensiná vel,
e se nã o é conhecimento, nã o é ensiná vel. Ele entã o acrescenta:
E eu gostaria de trabalhar nesse assunto até que finalmente alcancemos o que é a
virtude e depois voltemos e consideremos se é ensiná vel ou nã o, para que,
porventura, o seu Epimeteu nã o nos engane e nos tropeçar em nossa
investigaçã o, enquanto ele nos ignorava. conta de sua distribuiçã o. Gosto mais do
Prometeu da sua fá bula que do Epimeteu; pois ele é ú til para mim, e tomo o
pensamento de Promethean continuamente para minha pró pria vida quando
estou ocupado com todas essas perguntas.24
Poder-se-ia pensar que isso apenas torna suficiente o conhecimento da definiçã o
para saber se a quantidade é possível. 25 Mas isso falha em explicar a urgência
com que Só crates busca a definiçã o. Se existe outra maneira de determinar se a
virtude é ensiná vel, por que ele nem a menciona? Também nã o devemos ignorar
a referência a Epimeteu e Prometeu. Isso remonta ao mito de Protá goras na
parte anterior do diá logo, onde Zeus ordenou que os dois distribuíssem
qualidades diferentes entre todos os animais que lhes permitiriam sobreviver.
Porém, quando Epimeteu chegou à raça humana, ele nã o tinha mais nada a dar,
deixando Prometeu intervir e roubar para a humanidade o dom do fogo. O ponto
da referência posterior é que Epimeteu omitiu o que era necessá rio para a
sobrevivência humana (321c1–3), que Prometeu, por outro lado, procura
fornecer. Da mesma forma, Só crates leva em consideraçã o o que é necessá rio
para resolver sua pergunta.
As outras características que fazem dessa passagem no Meno uma instâ ncia de
Só crates em julgamento se encaixam prontamente. A posiçã o socrá tica está
claramente sendo contestada, mas novamente Meno o faz apesar de si:
aprendemos através dele, e nã o dele. Certamente, seus motivos e atitudes sã o
questioná veis, pois o episó dio é desencadeado porque ele é indisciplinado, assim
como foi obtuso no primeiro episó dio, ressentido no segundo e obstrutivo no
terceiro. Por fim, Platã o apresenta uma emenda à visã o socrá tica - embora desta
vez dentro do pró prio diá logo (assim como na Repú blica). A esse respeito, 86d-
87b está mais pró ximo do episó dio da lembrança do que da passagem da arraia,
onde Só crates se recusa a admitir que o elenchus pode ser outra coisa senã o
benéfico.
em que sentido o conhecimento pode ser aprendido?
Antes de prosseguir, precisamos fazer uma pausa sobre a afirmaçã o de que o
conhecimento pode ser ensinado (87c1–3). Claramente, isso é central no
argumento do diá logo como um todo; pois combinado com a tese de que virtude
é conhecimento, ornece uma resposta à pergunta original de Meno sobre a
aquisiçã o da virtude.
Mas há algo intrigante sobre a reivindicaçã o e a maneira como ela é introduzida:
. . . se [a virtude] é semelhante ou diferente do conhecimento, é ensiná vel ou nã o
- ou, como dizíamos agora, é recordá vel? Nã o vamos discutir sobre qual palavra
usar. Mas é ensiná vel? Ou nã o está claro para todos que apenas o conhecimento
pode ser ensinado a alguém? (87b6-c3)
Ao comentar o exame do garoto escravo apenas algumas pá ginas antes, Só crates
insistira em que ele nã o estava ensinando o garoto, apenas fazendo perguntas
(82e4 e 85d3; cf. 82b6-7). Embora este ponto diga respeito à recuperaçã o da
crença verdadeira do menino, também se aplica à recuperaçã o do conhecimento,
que é uma continuaçã o do mesmo processo (85c9-d4). Portanto, pode ser uma
surpresa que Só crates logo depois anuncie que o conhecimento, e somente o
conhecimento, é capaz de ser ensinado. O que ele também diz, quase como
parêntese, é que a expressã o 'lembrá vel' pode ser usada de forma intercambiá vel
com 'ensiná vel' - a diferença é apenas uma terminologia (87b8 – c1).
Para remover qualquer inconsistência em suas vá rias observaçõ es sobre ensino
e conhecimento, precisamos distinguir diferentes concepçõ es de ensino. Entendo
que em 87b-c 'ensiná vel' significa algo bastante específico: o conhecimento pode
ser recuperado com a ajuda do questionamento. É somente nesse sentido, onde o
professor atua como um catalisador que trabalha com os recursos inatos do
aprendiz, que o conhecimento é passível de aprendizado.26
Esse senso de ensino deve ser contrastado com a abordagem resumida nas
relaçõ es de Gorgias com Meno. Embora Gó rgias nã o tenha afirmado ensinar a
virtude, ele (aos olhos de Meno) ensinou a ele o que é virtude. Mas a maneira
como ele fez isso foi transferindo informaçõ es. No Simpó sio (175c7– e2), o
orador Agathon, que também pode estar sob a influência de Gó rgias (cf. 198c1–
2), acredita na possibilidade de aprender por transmissã o simples, como se o
conhecimento pudesse ser transmitido por uma pessoa para outro líquido como
em um recipiente. É nesse sentido que Só crates nega que está ensinando o
escravo. Se interpretamos seu argumento corretamente, ele está fazendo uma
afirmaçã o plausível de que a percepçã o de relacionamentos ló gicos nunca pode
ser transmitida por boatos. Pode-se dizer que o tipo de ensino em que Só crates
está interessado é 'maieutic' - ou seja, o professor atua como parteira, ajudando o
aluno a extrair conhecimento de dentro. Isso, no entanto, levanta uma questã o
adicional. Quando Só crates reivindica o papel de parteira no Theaetetus 149a-
151d, ele fica claro que ele pró prio nã o tem conhecimento. Se quisermos falar
sobre ensinar no sentido maiêutico no Meno, precisamos perguntar se alguém
pode ensinar (ou seja, tornar alguém mais informado) sem ter conhecimento
pró prio.
No modelo de transmissã o do ensino, o professor deve ter conhecimento, pois o
que está fazendo é transmitir algo que já possui a outra pessoa. Mas, quando
Só crates se move para um novo modelo de ensino, ele preserva esse aspecto do
antigo? Em princípio, ele nã o precisa. Pois se o aluno já tem o conhecimento
recentemente, tudo o que o professor precisa fazer é fazer as perguntas certas
para despertá -lo. Pode-se argumentar que fazer as perguntas certas nã o requer
conhecimento por parte do professor. A crença verdadeira pode ser suficiente.
De fato, pode-se levar o aluno a se lembrar, fazendo-lhe perguntas baseadas em
falsas crenças.
No entanto, existem dificuldades com a sugestã o de que o professor de mecâ nica
nã o exija conhecimento. Eles devem fazer as perguntas certas na ordem certa. Se
eles tiverem apenas crença verdadeira, poderã o começar fazendo as perguntas
apropriadas, mas, como a crença verdadeira é instá vel, mais cedo ou mais tarde
sairã o do caminho. Por sua vez, isso prejudicará o processo de lembrança. Isso
nã o significa negar que o aprendiz possa finalmente recuperar seu
conhecimento. Mas o que aconteceria no cená rio que acabamos de imaginar é
que o professor e o aluno se tornariam co-inquiridores. Nã o haveria mais
assimetria entre eles para justificar chamar um de professor e o outro de aluno.
Em vez disso, os dois se instigariam a se lembrar.
Nesse caso, Só crates no Meno deve insistir em que mesmo o professor de
'mecâ nica' precisa de conhecimento. Se, nos está gios iniciais da lembrança, o
aluno se apó ia em perguntas feitas por alguém mais avançado, essa pessoa ainda
nã o é professora no sentido estrito. Um verdadeiro professor é alguém capaz de
tornar o outro como ele, ou seja, conhecedor ou, no contexto do Meno, virtuoso.
Este ponto será importante quando considerarmos um dos argumentos de
Só crates abaixo que a virtude nã o é ensiná vel (p. 175).
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