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Capa Preta

Era um pássaro do sertão, um sofrê, belo, ágil, jovial, de dorso e asas negras e
de peito amarelo. Um dia, por aqui passou um homem com ele encerrado em uma gai
ola. Teceu elogio às suas qualidades, e propôs-me comprá-lo. Disse-me ser um pas
sarinho especial, bom de canto, manso e ensinado a ponto de jamais fugir, mesmo
diante da portinhola da gaiola aberta. E, ato contínuo, como demonstração do que
dizia, escancarou-a. O pássaro ficou inquieto, saltitou, moveu com rapidez a ca
becinha para todos os lados, inclinando-a, às vezes. Depois saiu da gaiola, e, c
hilreando, alçou vôo, volteou em torno do seu dono, que lhe estendeu o braço esq
uerdo, sobre o qual a ave pousou, vitoriosa, cantando ‘seu canto sem medida, ale
gre e brando’.
Fiquei maravilhado e imediatamente resolvi comprá-lo, com gaiola e tudo. Paguei
baratinho, pois o homem era pobre e precisava de dinheiro, coitado. Provavelment
e, sem tostão, olhou os cantos da casa, viu a gaiola e seu irrequieto habitante,
e resolveu fazer uns trocados. Após alguns regateios, fechei o negócio, pendure
i a gaiola na parede da sala, e o sofrê se tornou o novo membro da família.
Esta, por sua vez, surpresa e espantada diante das habilidades do pássaro, aprov
ou o negócio. Que amor!, dizia minha mãe, que passou a cuidar dele. Meu caçula,
com sua mania de nomear os bois, às voltas com o tabuleiro de xadrez, decifrava
partidas do Capablanca, e teve logo a idéia de batizar o jovem morador com o nom
e de Capa Preta, em razão da cor negra que se espalhava, brilhante, sobre o dors
o e as asas da ave.
E assim, durante cerca de cinco anos, Capa Preta se tornou a criatura mais disti
nta da minha casa. Comia frutos e migalhas de pão ensopado em leite. Bicava, def
ensivo, os dedos da minha mãe, quando ela lhe ia trocar o alimento ou o vaso d’á
gua e proceder à limpeza dos dejetos, de maneira que entre eles dois se estabele
ceu uma relação direta e amorosa, pois o pássaro era inteligente, fazia diabrura
s e só faltava falar, e minha mãe, fingindo recriminá-lo, mitigava o seu próprio
problema de solidão e viuvez. Aliás, ela, resmungona, ralhava o tempo inteiro c
om ele, que, teimoso, não deixava por menos e cacarejava em resposta. Mas, sobre
tudo, ele cantava, e como! Celebrava a alegria de viver. Era um pássaro feliz. M
uitas vezes, eu me escondia atrás das portas para não o perturbar e escutar seu
canto agudo e curioso. Depois, abria-lhe a porta da gaiola, e ele saia para o se
u pequeno vôo matinal. Adejava da cozinha para a sala, pousava nos ombros e cabe
ças dos circunstantes, ou se escondia entre os livros da estante, e ali ficava q
uieto.
De repente, voava para a pequena varanda do apartamento e saltitava de uma plant
a a outra da comportadíssima floresta doméstica constituída de vasos e xaxins, c
ontente de fruir um pouco de alguma liberdade. Era o rei do terraço.
Depois se cansava das brincadeiras, voava de volta para a sua casinha, entrava p
ela portinhola, pois, com apetite de leão, queria comer alguma coisa, bicar um p
edacinho de maçã, e beber um pouco d’água, levantando a cabecinha a cada gole. E
ra de fato, um pássaro manso, domesticado, criado, desde tenra idade, em cativei
ro, de sorte que parecia haver perdido a fé na virtude de voar. Voar, voar mesmo
, voar de verdade, pelos céus azuis, saborear a verdadeira liberdade, entre os d
emais pássaros que gritavam nas árvores da vizinhança.
Às vezes, porém, ele ficava triste, enfezado, silencioso, e se recusava a sair d
a gaiola. Se alguém se aproximasse, ele se encolhia, em posição de ataque, agres
sivo. Estava com raiva. Nessas horas era necessário respeitá-lo, deixá-lo em paz
com a sua mágoa, com a sua dor. Lembrava estas pessoas solitárias, abandonadas,
sem parente nem aderente, sem amigos, sem ninguém, sem eira nem beira, que de r
epente sentem vontade de largar tudo, mandar tudo para o inferno, partir, meter
o pé na estrada, sair pelo mundo afora. Que nós, humanos, também somos assim, se
res do momento, inconstantes e ambivalentes.
Porém, na vida dos pássaros, como na dos homens, sempre chega um dia de rupturas
e desafios.
Pois não é que ontem, num desses passeios matinais no interior da casa, o Capa P
reta deu a louca, resolveu assumir os ônus e riscos da liberdade? Voou do terraç
o para uma árvore na rua, onde permaneceu alguns momentos, gritando, enquanto mi
nha mãe, aflita e ingênua, pedia-lhe para voltar. Ele, porém, fugiu, deixando-no
s a todos com o coração despedaçado. Sumiu, desapareceu, se escafedeu. Abandonou
sua gaiola pendurada na parede, vazia, absurda, em silêncio veemente. Ficamos a
flitos, pensando e temendo coisas, ele era bobinho, quase não sabia voar, um pre
dador pode matá-lo, um gato comê-lo. Será que ele vai sobreviver, se adaptar á n
ova situação, se defender das intempéries, dos ataques, e conseguir alimentos? P
ara mitigar o sofrimento, preferimos acreditar que sim, que ele vai vencer e ser
feliz em sua nova vida, e quase sorrimos interiormente, admirados, para não diz
er invejosos, da sua coragem.
O certo, entretanto, é que todos em casa estamos tristes e chocados. De vez em q
uando, alguém diz: - ‘mas que bobagem, era só um passarinho’. E nos calamos, pen
sativos. Depois, para piorar o nosso ânimo, veio esta chuva, teimosa, insistente
, este frio, cortante como a navalha de um espanhol, e o vento, um vento violent
o que vira e revira as copas das árvores, uivante. Estamos tristes e amolados. S
aio ao terraço, olho as árvores vizinhas como quem procura alguma coisa. Depois,
volto à sala, aborrecido e magoado. Imaginar que um passarinho, um simples pass
arinho, resolve ir-se embora e deixa uma família inteira triste, pensativa, saud
osa, e à beira das lágrimas.
Carlos Roberto Santos Araujo.

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