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Carlos Roberto Santos Araujo

Um poema de Mario de Andrade.

Mario de Andrade, que meditou a vulnerabilidade do indivíduo no mundo


moderno (“o vento corta os seres pelo meio”) e percebeu o desespero do
homem desarvorado na cidade imensa (“As pombas se agarram aos
arranha-céus. Faz frio. Faz chuva. E faz angústia”), teve também altos
momentos de carinho pela sua cidade natal: “Na Rua Aurora nasci/ Na
aurora da minha vida / E numa aurora cresci”. Amou e estremeceu São
Paulo. Celebrou-a, desde seu primeiro livro, Paulicéia Desvairada, (“São
Paulo, comoção da minha vida!”) até sua ultima coletânea de poemas, Lira
Paulistana, (“Quando eu morrer, quero ficar, / Não contem aos meus
inimigos, / Sepultado em minha cidade. / Saudade”). Mesmo para o clima
hostil de São Paulo ele tinha um sorriso de aprovação: ”Minha Londres das
neblinas finas...”. O vento cortante das constantes invernias parecia-lhe
alegre e zombeteiro: “O vento é como uma navalha / Nas mãos de um
espanhol”. Se na “Meditação sobre o Rio Tietê” ele sofre pelas mazelas
paulistanas (“É noite, e tudo é noite/ Sob o arco admirável da Ponte das
Bandeiras”.), se em “Viola Quebrada” ele lamenta seu sofrimento pessoal
(“Raiva, anseios, luta, vida/ Miséria tudo passou-se / Em São Paulo.”), na
maioria das vezes é com olhos de ternura que vê sua cidade: “As rosas...os
milhões de rosas paulistanas.”Amava as manhãs paulistas (“Abro a tua
porta ainda úmido do orvalho da manhã”), e se apaixonava pelas tardes da
sua terra: “Tarde tardonha e sobretudo tarde /Imóvel”.

Milliet chegou a afirmar que Mario em seu amor por São Paulo viveu a
sublimação do amor sexual. Sensual, Mario celebrava a vida: “Eu danço
manso a dança do ombro/ Eu danço...Não sei mais chorar!...” Como
Rimbaud, que proclamava “un long, immense et raisonné dérèglement de
tous les sens”, Mario buscava o excesso: “Tarde, recreio do meu dia, é
certo, / Que só no teu parar se normaliza / A onda de todos os
transbordamentos/ De minha vida inquieta e desregrada”. Jamais
choramingava: “A vida é para mim está se vendo/ Uma felicidade sem
repouso. / Eu nem sei mais se gozo, pois o gozo/ Só pode ser sentido em se
sofrendo”. Esta sensualidade faculta-lhe dizer: “A própria dor é uma
felicidade!”. Seus sentidos estão atentos ao ambiente, de modo que um
simples perfume de rosa provoca-lhe um estado psicológico especial:
“Deve haver aqui perto uma roseira florindo/ Não sei... sinto por mim uma
harmonia/ um pouco da imparcialidade que a fadiga traz consigo”.

Se Eliot, em “The Waste Land”, censura abril por ser o mais cruel dos
meses, “the cruellest month”, por misturar memória e desejo e compelir
raízes preguiçosas com chuvas de primavera, Mario, ao contrário, pelo
mesmo motivo, celebra o mês de abril, a que associa lembrança e volúpia:
(“Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril” (I – Girassol da
madrugada) ou ainda “Oh espelhos, Pireneus, caiçaras insolentes, por que
não sereis sempre assim?/ Abril...”(Lira Paulistana). Em muitas destas
tardes ele se embevecia diante dos revérberos mortiços dos úmidos
crepúsculos do abril paulistano. Como neste

“Poema da amiga

A tarde se deitava nos meus olhos


E a fuga da hora me entregava abril.
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar e não sei por que te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.


Estavas longe, doce amiga; e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa
Mexendo asas azuis dentro da tarde.”

Quem viu São Paulo das tardes de abril e maio, sabe do que Mário está
falando. Aliás, outros poetas paulistas também cantaram tais poentes.
Guilherme de Almeida o diga. Sérgio Milliet afirmava: “Crepúsculos de
abril, ó tão suave/ descanso que precede outro descanso. / São Paulo de
abris e maios/ Sabendo a marzipã”. São tardes intimistas, em que os casais
se tornam mais carinhosos. Aqui, Mario se reporta a estas tardes outonais,
matizadas pelas cores violáceas e desmaiadas da estação de baixas
temperaturas, o outono paulistano, de frio moderado. Tardes de raios
solares mortiços, filtrados pelas nuvens plúmbeas, pela bruma e pela névoa.
Tudo convida à intimidade e ao carinho. Daí o poeta afirmar, num verso de
beleza admirável - “A tarde se deitava nos meus olhos”, traduzindo a
sensualidade da tarde, felina, voluptuosa.

No verso seguinte, também belíssimo, ele diz: “a fuga da hora me


entregava abril”. Em fins de março, ao pôr-do-sol, ao cair da tarde, a
passagem do tempo (a fuga da hora) trazia o mês de abril, com seu frio
excitante. Tudo isso criava um clima, ‘um ar’ familiar, íntimo, com sabor,
não de adeus, mas de até-logo, de promessa de reencontro: “Um sabor
familiar de até-logo criava um ar e, não, sei por que te percebi”. O poeta
desperta a sua sensualidade, a vontade de amar e a memória da amada.
Expectante, sua lembrança se excita, e ele pressente a namorada, (que aqui
ele chama de amiga, como nas ‘canções de amigo’ do cancioneiro
medieval) ao seu lado, em carne e osso: “Não sei por que, te percebi”.
Percebeu-a, ‘sentiu’ sua presença, e se alegrou. Daí o verso seguinte:
“Voltei-me em flor”. Agora, ele utiliza a imagem da flor para simbolizar a
felicidade, e, no caso concreto, a expressão dessa felicidade, o sorriso. O
poeta se volta sorrindo, (em flor), olha em torno, em busca da amada, mas
descobre, desiludido, que se enganara, que tudo fora mera impressão, que
ninguém estava ali: “Mas era apenas tua lembrança. Estavas longe, doce
amiga”. Findo o êxtase, ele se depara com a dura realidade: “E só vi no
perfil da cidade/ O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa/ Mexendo asas
azuis dentro da tarde”. Frustrado pela ausência da amada, vê somente as
sombras (o arcanjo de asas azuis) do arranha-céu cor de rosa, a se
projetarem sobre o corpo da cidade antropomórfica, (de perfil) e, como ele,
também solitária.

Se em outros poemas Mário se caracteriza pela incontinência verbal, pelas


deformações vocabulares, pelo trocadilho, pela alternância de motivos
(populares e cultos), pela linguagem marcada, não pela ironia, mas pelo
sarcasmo, neste, o autor se revela um mestre de contenção verbal, se
desvencilha do retórico, a fim de melhor apreensão do sensível. A captação
lírica se depura, a dicção se torna enxuta e equilibrada. Nesta canção de
intensa cor local, ele nos mostra São Paulo transfigurada pelas imagens do
fantástico. A cidade adquire o aspecto de miragem, sinestésica. As cores
cambiantes do crepúsculo se esmaecem em novas cambiantes. Dai, ele falar
em arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa. Na hierarquia celeste, os anjos,
os arcanjos, os querubins, os serafins, seres de luz e de amor, são espíritos
cheios de cores que vão do verde ao róseo. Segundo William Blake, que era
um visionário e especialista no assunto, a depender das emoções, os anjos
passam do azul intenso dos altíssimos empíreos ao amarelo solar, e deste ao
róseo festivo: “So he took his wings, and fled;/ Then the morn blushed rosy
red”(Angel) No caso do “Poema da Amiga”, os raios solares, (o arcanjo),
se lançam à frente do edifício, iluminam-no e projetam-lhe as sombras
(asas azuis), de modo que, à medida que anoitece, o poeta se descobre
solitário enquanto a cidade mergulha no reino das imponderabilidades.

Carlos Roberto Santos Araújo.

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