Onde viveste durante tantos anos, Entre flores belíssimas da selva, Plantadas no jardim, e, no quintal, As árvores do Sul, feitas de fábula E lenho escurecido em cujos galhos, Cheios de frutos auríferos e oblongos, O vento murmurava antigas confidências.
Ao pisar a soleira da tua porta,
Vi que a poeira, sarcástica, sorria Dos cuidados que tinhas com limpeza, Ao tentares varrer o pó do mundo: A limpeza das roupas e das mãos, A mesa limpa, a vida limpa: - Meu filho, ao tomares banho, Esfrega-te bastante com sabão e bucha!
E como reprovavas a sujeira,
A nódoa de banana na camisa, A mancha de café na minha gola, O cheiro de suor no colarinho. Porque sempre sonhaste a transparência: Expulsavas aranhas e baratas Que se escondiam sob pedras negras, Embora respeitasses a esperança verde E outros seres frágeis Que nas noites chuvosas chegavam de visita.
Agora, todavia, a poeira ri,
Salta como clown sobre o tablado, E, feérica, flutua e rodopia No luminoso raio de sol Que a telha vã projeta no soalho; Espalha-se nos móveis e alfaias, Tapa as frinchas deixadas nas paredes E desenha bastos bigodes nas meninas Que brincam de ciranda no álbum de fotografias.
Ratos roem caminhos indevassáveis,
Na cumeeira, cupins se banqueteiam. A memória, porém, resta intocada, E nela tua casa resplandece, Onde falávamos de coisas corriqueiras, Formigas pixixicas e mitos familiares.
“O cacau é boa lavra”, tu cantavas,
E, cantando, choravas de saudade Dos dias de ainda ser menina Numa terra negra, de massapé e lama, Lavrada pela foice e pela enxada.
Por isso sugerias-me plantar
Cacaueiros, somente cacaueiros, Em honra do teu pai, um pioneiro Das atlânticas matas grapiúnas. E o vulto do meu avô Saía da sua bruma, Descia da serra mais alta, Com passos de quem nem pisa, Adentrava tua casa, E pousava no meu ombro, A mão, levíssima brisa, Como o toque de uma sombra.
Num canto do quarto, tua máquina
De costura, Vigorelli, Recorda os tempos de vigor e sacrifício Em que os teus olhos estavam sempre atentos Às meias furadas do teu filho adolescente.
Cerzideira de lavras e palavras,
Costureira do ardor e da memória, Remendavas os dias prisioneiros dos bordados. No interior de tua solidão sem lágrimas, Desafiavas o alpendre, Elevavas torres orgulhosas A céus nem sempre unânimes Pois transidos de nuvens.
Relâmpagos cintilavam nos teus olhos
E chuvas molhavam-te os lábios pressurosos De vinho purpúreo Sabendo a sangue de martírios e avelãs.
Chegou então a hora dos destroços,
Teu corpo se quebrou sobre teus próprios ossos, As estruturas da casa saltaram Nos ares, aos pedaços. O telefone rompeu o silêncio da madrugada Anunciando o fim da tua longa espera.
Agora que o sol da tua pele
Dissimula os últimos revérberos, A noite desce sobre os arrozais dos teus cabelos, Dissolve os campos de ontem, Transforma em cinza o trigo do teu ventre. Teu corpo se verga como folha seca, Não mais respira, pelos poros dos instantes, O ardor violento do dia que se esvai, Enquanto a tua fronte se eleva lentamente Às dimensões perenes Como rosa colhida na manhã da véspera.
Agora, em tua varanda, procuro o teu rosto
Embuçado talvez entre as sombras da noite, Converso contigo que me escutas em silêncio E em silêncio respondes com teu sorriso discreto. Nunca tivemos um colóquio tão sereno, Nunca tivemos um diálogo tão completo. Morreres foi para mim teu ensinamento supremo. Tu, que me ensinaste a vida, hoje me ensinas a morte, Pois se pudeste morrer, de que me serve outra sorte? Agora a morte me assusta muito menos.