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A escola dos maus alunos

Regressa ao passado de estudante para reviver os dias difíceis do cábula que não queria
aprender e passar despercebido. Cresceu, foi professor, tornou-se escritor. O francês
Daniel Pennac escreveu Mágoas da Escola para pôr o dedo em algumas feridas - suas e
da comunidade educativa.

A metáfora sobre o amor no ensino surge no final do livro. Com um aviso no cimo da página. "É
verdade, entre nós, é malvisto falar de amor em matéria de ensino. Experimentem e verão. É o
mesmo que falar de cordas em casa de um enforcado." A seguir, centra-se nas andorinhas que
entram no quarto e procuram a saída. Há as que encontram o céu à primeira tentativa e as que
esbarram contra os vidros das janelas. "Nem sempre se é bem-sucedido, às vezes enganamo-
nos no traçado do caminho, há quem não acorde, fique caído no tapete ou parta o pescoço
contra o vidro seguinte; esses permanecem na nossa consciência como zonas de remorso
onde repousam as andorinhas mortas no nosso jardim, mas pelo menos tentamos, teremos
tentado. São os nossos alunos." "Uma andorinha aturdida é uma andorinha a reanimar." Ponto
final.

Daniel Pennac, autor do livro Mágoas da Escola, foi um mau aluno. E é exactamente deste
ponto de vista que remexe nas questões educativas, misturando recordações e reflexões sobre
pedagogia. A frustração dos péssimos alunos, a exclusão e o que não resulta no sistema de
ensino. O seu livro ganhou o Prémio Renaudot em 2007, está traduzido em 24 países, mais de
800 mil exemplares foram vendidos em França, e acaba de chegar a Portugal numa edição da
Porto Editora.

Sentia-se um aluno perdido num mundo que só os outros compreendiam. "Na minha infância,
chegava todos os dias a casa perseguido pela escola. As minhas cadernetas reflectiam a
censura dos professores." Lições por estudar, trabalhos por fazer. A contracapa do livro
recupera as observações dessa fase. "Não fez nada e rendeu ainda menos", "fala muito, mas
nem uma palavra em inglês", "deve esforçar-se mais", "demasiadas ausências". E a típica
frase: "O terceiro período será decisivo." "As palavras do professor são toros flutuantes aos
quais o mau aluno se agarra num rio cuja corrente o arrasta para as grandes quedas. Repete o
que o professor disse. Não para encontrar algum sentido, não para que a regra tome forma;
mas sim para resolver o assunto, momentaneamente, para que me ?deixem em paz'", escreve.

Há várias recordações. "Basta um professor - um único - para nos salvar e nos levar a
esquecer todos os outros." Pennac não esquece os quatro "salvadores". O primeiro, um
professor de Francês, encomendou-lhe um romance no 9.º ano. "(...) pela primeira vez na
minha vida escolar, um professor atribuía-me um estatuto; eu existia escolarmente aos olhos
de alguém, como um indivíduo que tinha uma linha a seguir, que mantinha o ritmo." Seguiram-
se mais três que transbordavam vontade de ensinar e estimulavam o desejo de saber. Um
professor de Matemática, uma professora de História e outro de Filosofia. "Não por se
interessarem mais por mim do que pelos outros, não, demonstravam a mesma consideração
pelos bons e maus alunos, e sabiam reanimar nos segundos o desejo de compreender". "Os
professores que me salvaram - e que fizeram de mim um professor - não tinham recebido
nenhuma formação para esse fim. Não se preocuparam com as origens da minha incapacidade
escolar. Não perderam tempo a procurar as causas nem tão pouco a ralhar comigo. Eram
adultos confrontados com adolescentes em perigo", acrescenta.
Um mau aluno que em Setembro de 1969 entrou numa sala de aula como professor. "Mas, já
professor, soube instintivamente que seria inútil agitar o futuro debaixo do nariz dos meus
piores alunos." Um docente que viveu a escola como aluno interno e constantemente debaixo
da sombra dos zeros das classificações. "Uma parte do meu trabalho consistia em persuadir os
meus alunos mais desleixados de que a cortesia predispõe à reflexão mais do que um tabefe,
de que a vida em comunidade compromete, de que o dia e a hora de entrega de um trabalho
não são negociáveis, de que um trabalho medíocre tem de ser refeito para o dia seguinte, de
que isto, e mais aquilo, mas de que nunca, mesmo nunca, eu e os meus colegas os
abandonaríamos a meio do caminho". Com outra regra: não deixar que as três palavras "falta
de bases" entrassem no vocabulário educativo.

Conhecia-os bem. Detectava-os com facilidade. Mais uma metáfora. "Os nossos ?maus alunos'
(alunos considerados sem futuro) nunca vão sozinhos para a escola. O que entra na sala de
aula é uma cebola: algumas camadas de tristeza, de medo, de inquietação, de rancor, de raiva,
de desejos insatisfeitos, de renúncias furiosas, acumuladas sobre um fundo de passado
humilhante, de presente ameaçador, de futuro condenado. Reparem, vejam-nos chegar, o
corpo em transformação e a família dentro da mochila. A aula só poderá começar realmente
depois de pousarem o fardo no chão e descascarem a cebola."

Pennac lembra as dúvidas dos professores. "Afinal, não é por minha culpa que este rapaz
ainda se encontra no oitavo ano! Que lhe ensinaram, então, os meus predecessores? Só a
escola deve ser posta em causa? Que pensam os pais? Imaginarão que com as turmas que
tenho a meu cargo e o meu horário posso recuperar tamanho atraso?" Passa-se a batata
quente. "Quente, a batata é-o sobretudo para os pais. Não se cansam de a passar de uma mão
para a outra. As mentiras quotidianas do filho esgotam-nos: mentiras por omissão, efabulações,
explicações exageradamente pormenorizadas, justificações antecipadas."

Na sua opinião, os professores não estão preparados para a colisão entre o saber e a
ignorância. Há uma explicação, dada por uma professora, que não esquece. Uma boa turma
não é um regimento que acerta o passo e a marcha, mas sim uma orquestra que se dedica a
estudar a mesma sinfonia. Pennac tentou incutir o gosto pela leitura de textos nas suas aulas.
E estendia as mãos aos alunos. "Eu parecia um nadador-salvador. Os mais fracos avançavam
a custo, com a cabeça fora da água, segmento por segmento, agarrados à prancha das minhas
explicações, depois nadavam sozinhos, começando por algumas preposições, até se
aventurarem rapidamente num parágrafo inteiro, sem ler, de cabeça". Um cábula que quis ser
professor, que deixou a escola há 12 anos e que hoje é um escritor de respeito. "(...) sempre
encorajei os meus amigos e os meus alunos mais espertos a tornarem-se professores. Sempre
pensei que a escola é feita, em primeiro lugar, de professores. Quem me salvou na escola,
senão três ou quatro professores?"

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