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Dissociação

A obra Psicose 4:48 é um hit. Mesmo antes de comparecer ao


espetáculo no festival, tratei de bisbilhotar no Youtube e pude assistir a mais
de vinte versões entre teatro e dança de categoria profissional, amadora,
estudantil e até variantes domésticas do texto de Sarah Kane.

Possivelmente esse grande número de montagens seja indicativo de


algo que atravessa pessoas de diferentes lugares, idades e culturas,
motivação a qual este breve comentário não pretende dar conta. Por minha
parte, contento-me em levantar a questão.

Inicialmente podemos dizer que Psicose 4:48 fala da depressão suicida.


Assim, por uma necessidade ingênua de unir-se a biografia da autora com sua
obra , costuma-se montá-lo como um solo feminino. No entanto, a peça oferece
canais para se sair do drama de gênero e aceitar seu caráter de fala plural. De
fato, o drama pessoal de Sarah Kane, sua morte e a possibilidade de Psicose
4:48 ser uma espécie de testamento macabro, francamente não me
interessam, não quando eu leio o texto ou aprecio ao espetáculo. Realizar tal
conexão seria reduzir a sua obra a um amontoado de clichês, coisa que seu
belo texto de fina poesia não o faz, de sorte que esta também não é a intenção
da montagem.

De maneira parcelada e descontínua Psicose fala da desintegração das


identidades e da consciência de pertencer a uma sociedade mergulhada no
preenchimento compulsivo  de seus vazios de existência. Assim, habita-se um
tempo e um lugar capazes de enlouquecer aos menos avisados, aos quais só
resta regurgitar. E cada um o faz como pode.

O fato é que tamanha incomunicabilidade só pode ser plenamente


enfocada no campo do simbólico, na leitura do artista, como o fizeram Marcos
Damasceno, Rosana Stavis, Marcelo Bagnara e toda a equipe. Contudo,
talvez falte à montagem um maior entendimento do que Hans Thies Lehmann
(que recentemente esteve por estas plagas) chama de poética da perturbação,
no interior da qual “ as imagens perturbam as palavras”, poética esta capaz de
instaurar uma narrativa em paradoxo e não um circuito no qual as palavras
remetem as ações e vice-versa.

Na montagem londrinense há dois atores, pequena mesa, cadeira


hospitalar, uma cadeira de rodas e remédios. Em Psicose 4:48 Rosana Stavis é
corajosa e sabe despojar-se de vaidades, fazendo uma interpretação forte mas
que por vezes desliza para o exagero com choro e gritos em excesso. Receita
esta, que na minha opinião, sublinham mais do que acrescentam. Mas
percebe-se seu excelente arcabouço de atriz e sua grande dose de entrega
para que se estabeleça a teatralidade.

Conforme declarou no programa da peça, o diretor Marcos Damaceno


busca gestos precisos e uma elocução que procura valorizar a poesia do texto
( já bastante fragmentado e concretista, não necessitando de mais efeitos de
fala.). Acrescente-se a isso os acertos do diretor na composição dos
elementos espaciais e pictóricos.

Entretanto, em relação ao andamento e a intensidade há uma rigidez a


qual divide a peça em lento ou rápido e piano ou forte. Tais usos baseiam-se
numa estrutura por vezes esquemática e redutora das nuances contidas no
interior da própria encenação, que aqui não se realiza plenamente.

Por outro lado, está claro que a equipe quer fugir dos maniqueísmos
acomodadores, seu maior trunfo. Quanto a isto, não sentimos raiva ou medo,
nem pena ou ojeriza, apenas uma certa claustrofobia, acertada, mas que logo
se afasta pois a intimidade proposta não se efetiva. A montagem não busca
estabelecer uma real conexão emocional ou um apelo à plateia como
testemunha ocular. Os gritos e o alto volume da trilha sonora só fazem afastar
o espectador. Desta forma, em Psicose 4:48 saímos mais distantes do que
quando chegamos.

Jacqueline Pinzon, diretora e pesquisadora teatral do Núcleo Constantin - Teatro de


Investigação e da Companhia do Carvão. Mestranda do PPGAC UFRGS com pesquisa voltada
para a presença das novas mídias na cena contemporânea.

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