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Fernando Novais
ito ou realidade, a chamada cisão. Caio Prado J r . , ainda que, quanto
"Revolução de 30" parece ter a nós, seja sempre e antes de tudo histo-
indiscutivelmente estimulado riador, cultivou também a filosofia, a
entre nós as atividades intelec- economia e o ensaio político. Aqui cui-
tuais, particularmente voltadas para a daremos exclusivamente de sua obra
interpretação do país; "nunca se falou historiográfica, não nos aventurando pe-
tanto em realidade brasileira como nessa las sendas filosóficas nem mesmo quando
época — cada um, claro está, vendo-a tratarmos de problemas metodológicos,
de maneira diferente."1 Do volumoso quer dizer, esses problemas serão vistos
1
Wilson Martins. História
da Inteligência brasileira (São
caudal de publicações de então, contudo, tal como aparecem na prática do histo- Paulo. 1979), vol. V I I . p. 1.
poucas resistiram à corrosão definitiva riador, e não nas formulações do filó-
do tempo, que vai separando impiedosa- sofo. O mesmo para a teoria econômica,
mente o joio do trigo. Dentre essas pou-
por mais que estejam interpenetradas na
cas, que ainda hoje mantêm sua vitali-
dade, Evolução política do Brasil (1933) obra. Dada a postura metodológica do
talvez não tenha, quando de seu lança- autor — Caio Prado Jr. é marxista ex-
mento, despertado o interesse que depois plícito — essa fusão é absolutamente
viria a consolidar.2 Hoje, quando pen- natural, e necessária, pois as fronteiras 2
Em seu minucioso levanta-
samos nas grandes "interpretações" sur- entre as ciências tendem a se diluir. Não m ento das public aç ões , W.
Martins não menciona Evo-
gidas naquele contexto, é sobretudo para significa isso que deixem de existir espe- lução política no contexto de
5 0 , ref erind o -se d ep o is às
três obras que nos voltamos: além do cializações e formações profissionais, suas reedições.
livro de Caio Prado Jr., Casa Grande & nem que trabalhos centrados numa ou
Senzala (1933) de Gilberto Freyre e noutra direção careçam de validade; sig-
Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buar- nifica, sim, que devem ser vistos como
que de Holanda. De lá para cá, os três partes de um conjunto mais amplo e
autores enriqueceram enormemente nos- integrado, etapas de um roteiro mais
sa brasiliana, por caminhos diversos e longo a ser percorrido. O que tentare-
às vezes opostos, mas vale lembrar aque- mos é traçar o perfil de sua obra de
le ponto de partida: aparecem no bojo historiador, enfatizando o que nos pareça
do que porventura se possa chamar a mais relevante em contribuições, indican-
"geração de 30", nos quadros de nossa do a leitura que nos pareça mais fiel
história intelectual. e compreensiva; não deixaremos, é claro,
de discutir e questionar alguns pontos, e
ixado esse patamar, convém avançar observações preliminares para
esclarecer objetivos e limita- situá-lo na historiografia e na cultura
ções, antes de avançar o passo. brasileira. Não trataremos, porém, da
Efetivamente, o título acima coerência do conjunto da obra (história,
não é uma manifestação da modéstia; filosofia, economia). Pensamos que essa
antes, pretende ser um exercício de pre- caracterização inicial seja uma etapa im-
zante de São Paulo, 4 Caio Prado Jr. do Jr.; apenas procuramos indicar al- 4
Cf. Darrel Levi. A família
desde muito jovem tornou-se militante guns aspectos, mais ligados à configura- Prado, trad. Port, São Pau-
lo, 1977.
comunista e pensador marxista. Sua pro- ção das obras, isto é, aos temas aborda-
dução intelectual configura a praxis-teó- dos, à linha de interpretação, e ao estilo
rica em sentido pleno, pois fundada do discurso. Iniciada, em 1933, como
diretamente na atividade política. É aí indicamos, prossegue com Formação do 7
Bibliografia de Caio Prado
que radicam, evidentemente, as opções Brasil Contemporâneo (1942), e Histó- Jr.: Evolução política do Bra-
sil, 1933. URSS, um novo
mais fundas, — que por serem a um ria econômica do Brasil (1945), reto- mundo, 1934 (2.ª ed. 1935).
mando-se depois com A Revolução bra- Formação do Brasil contem-
tempo intelectuais e existenciais assu- porâneo, 1942 (17.ª ed. 1981).
mem a força de convicções extremas, sileira (1966) e História e Desenvolvi- História econômica do Brasil,
1945 (28.ª ed. 1983). Evolu-
marcando a coerência que atravessa toda mento (1968). Quase todos os livros de ção política do Brasil e ou-
tros estudos, 1946 (12.ª ed.
a obra. Mais ainda, a recorrência e insis- Caio Prado Jr. têm várias edições. A 1980). Dialética do conheci-
tência em certos temas, problemas, ex- partir de 1946 Evolução política do Bra- mento, 1952 (6.ª ed. 1980).
Diretrizes para uma política
plicações, posições: nesse retornar quase sil é reeditado com outros estudos, de econômica brasileira, 1954.
Esboço dos fundamentos daa
obsessivo a certos pontos parece expres- grande interesse.7 Trata-se de merecido teoria econômica, 1957 (5.
êxito intelectual. Em seus pontos altos ed. 1969). Introdução à lógi-
sar-se a reafirmação daquelas opções ou ca dialética, 1959 (4.ª ed.
rupturas. Percurso de vida e andamento há consenso no reconhecimento de que 1979). O mundo do socialis-
mo, 1962 (3.a ed. 1967). A
do discurso relacionam-se, assim, ilumi- se trata de um marco em nossa historio- revolução brasileira, 1966 (6.ª
ed. 1978). História e desen-
nando-se mutuamente. É, por outro lado, grafia e nos estudos brasileiros em geral. volvimento, 1968 ( 3 . ª ed.
sua origem de classe, a que se liga uma Quando do aparecimento de Formação 1978). Estruturalismo de Le-
vi-Strauss, marxismo de Al-
refinada e sólida formação intelectual, do Brasil Contemporâneo (1942), em thusser, 1971. A questão
agrária no Brasil, 1979 (3.ª
que de certo modo permitiu a Caio amplo comentário, escrevia José Honó- ed. 1981).
rio Rodrigues que "esse livro marca uma 8 José Honório Rodrigues.
Prado Jr. escapar do esquementismo em Notícia de vária história, Rio
que tantas vezes sossobram os intelec- fase crítica na história de nossa histó- de Janeiro, 1959, p. 92. A
resenha saíra no suplemento
tuais marxistas. Marxismo, para ele, não ria."8 E recentemente, em seu movi- literário de O Jornal.
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CAIO PRADO JÚNIOR. HISTORIADOR
mentado balanço da cultura brasileira Até certo ponto pode-se dizer que a sua
contemporânea, Carlos Guilherme Mota utilização tem sido antes tópica, seja in-
destaca que "com as interpretações de corporando elementos de sua exposição,
Caio Prado Jr., as classes emergem pela seja aprofundando temas laterais por ele
primeira vez nos horizontes de explica- suscitados. Não quero dizer que o livro
ção da realidade social brasileira — en- não tenha sido compreendido, mas que
quanto categoria analítica." 9 não se tomou como tema a discussão 9
Carlos Guilherme Mota.
Ideologia da cultura brasilei-
Enquanto José Honório refere-se a e o aprofundamento de sua linha de aná- ra , São Paulo , 1 9 7 7 , p . 28 .
Formação do Brasil Contemporâneo, lise. Em certos casos, efetivamente, essa 10 Cf. K. Marx — Contribui-
ção à critica da economia po-
Carlos Guilherme reporta-se a Evolução atitude empobreceu o aproveitamento lítica, trad. de Florestan
Fernandes, São Paulo, 1946,
política do Brasil. São livros de índole da obra. pp. 219-231.
inteiramente diversa, mas ambos de À simples leitura, percebe-se que, de-
grande penetração; daí o juízo altamen- pois de indicar o tema (Introdução), o
te positivo dos críticos. O mais antigo autor procura definir o que chamou de
(Evolução política, 1933) é um ensaio, "sentido da colonização"; segue-se a
navegando nas grandes linhas; Forma- análise dos vários setores da realidade
ção do Brasil (1942) é uma pesquisa em histórica agrupados em três conjuntos:
profundidade, um corte num "momento "Povoamento", "Vida material" e "Vi-
decisivo" de nossa história. O primeiro da Social", cada um deles subdivididos
funda-se mais na bibliografia anteceden- em capítulos. Nota-se que as conside-
te, questionando-lhe as visões; o segun- rações iniciais ("sentido"), voltam ao
do sem ignorar a historiografia, baseia- final de cada capítulo, sendo por isso
se essencialmente nas fontes coesas, —- consideradas "chave" para a compreen-
correspondência de autoridades, memó- são; esse texto, — a Introdução — sem-
rias, viajantes etc. E o fato de o autor pre citado, tornou-se "clássico". Uma
desempenhar-se excelentemente nos dois indagação mais profunda revela o mo-
estilos de trabalho já nos ajuda a com- vimento do discurso: recorte do objeto,
preender seu êxito intelectual, o impac- apreensão de seu sentido, reconstrução
to da obra no conjunto. E isto nos re- do real a partir desse "sentido". E o seu
mete para um outro traço, característico travejamento dialético vai transparecen-
de seus trabalhos: eles se estruturam do: o sentido, isto é, a essência do fenô-
sempre em torno de um eixo básico, e meno, explica as suas manifestações, e
se desdobram por veredas laterais, sem- ao mesmo tempo explica-se por elas.
pre muito sugestivas de novos caminhos Não se trata, portanto, na constante re-
de pesquisa. Há, assim, no conjunto e corrência ao ponto inicial, de simples
em cada obra, esse núcleo recorrente de recurso de ênfase; uma vez fixada a es-
concentração, e os desdobramentos que sência do fenômeno, dispõe-se da cate-
se vão dispersando. Trata-se, desde logo, goria explicativa básica para a recons-
da perseguição permanente à mesma pro- trução da realidade, dando-lhe inteligibi-
blemática básica (a identidade nacional, lidade: daí, a volta permanente ao pon-
as possibilidades de mudança inscritas to de partida. É, em suma, essa catego-
no processo histórico), e da sua retoma- ria que explica os vários segmentos (dá-
da de vários ângulos e direções. lhes "sentido"), ao mesmo tempo em
que por eles se explica, isto é, a análise
etenhamo-nos, portanto, nes- dos vários segmentos vai eriquecendo e
tes pontos centrais, à procura comprovando a categoria fundamental.
de seus procedimentos meto- Recortado o objeto, a análise desdo-
dológicos. A estrutura analíti- bra-se, portanto, em dois movimentos:
ca de Formação do Brasil Contemporâ- da aparência para a essência, e da essên-
neo, ponto mais alto da obra historio- cia para a realidade. E isto nos remete
gráfica, oferece, a nosso ver, o caminho diretamente para o Marx do post-facio
mais seguro de acesso a esse núcleo mais da Contribuição à crítica da economia
decisivo de sua contribuição, ou seja, os política,10 onde esses dois movimentos
temas visados, a formulação da proble- são claramente indicados, e o livro de
mática, as categorias através das quais Caio Prado Jr. começa a aparecer como
se procede à reconstrução da realidade. um exemplo bem-sucedído na prática da
É curioso notar que, embora o livro dialética. Por isso, entendê-lo como um
tenha sido saudado desde o início, e exemplo de interpretação econômica da
venha sendo citado e estudado constan- história, ou mesmo como manifestação
temente, não se tenha destacado essa de economicismo, — como tantas vezes
articulação mais geral que o caracteriza. tem ocorrido — parece uma leitura aca-
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CAIO PRADO JÚNIOR. HISTORIADOR
F
voltada para dentro, centrada no merca-
do interno, — em processo de constitui-
ção. Esta linha seria desenvolvida na inalmente, caberia discutir o
História econômica, e retomada em Di- interior da "geração de 30",
retrizes para uma política econômica com que iniciamos estas notas.
(1954). Aqui, para além da análise do E isso levaria à comparação
processo histórico, mas a partir dela, se com as obras de Gilberto Freyre e Sérgio
transita para as potencialidades nele ins- Buarque de Holanda. Sérgio Buarque, de
critas, caminhando-se no sentido da atua- mais difícil assédio, formula mais expli-
ção política efetiva. Como que se recom- citamente a questão da identidade na-
põe de novo coerência da obra no con- cional, que acompanha a obra dos três,
junto. É essa última dimensão que se os quais, na procura dessa identidade,
enfatiza em A Revolução brasileira formularam diferentes "interpretações".
(1965) e A questão agrária no Brasil Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre formam
(1979). Por todas essas obras, o autor um curioso contraponto. Ambos se ligam
foi semeando pistas e sugerindo temas, às classes dominantes, de duas regiões
alguns tratados por novos pesquisadores, que entretanto evoluem de forma diver-
outros ainda não abordados, à espera dos gente. Se, em São Paulo, pode-se pensar
estudiosos. Esse caráter seminal é outra num declínio de estilo aristocratizante de
marca das grandes obras. uma elite da camada dominante, esta
Grande obra, no seu conjunto, tiveram como um todo está em franca ascenção
razão os críticos ao considerá-la um mar- econômica; no Nordeste, ao contrário, a
co em nossa história intelectual. Talvez decadência econômica faz declinar inexo-
valha a pena meditar um pouco sobre o ravelmente o peso de suas elites no con-
significado dessa avaliação. Pois quando junto da nação. Gilberto Freyre talvez
dizemos que uma obra é um "marco" por isso, analisa sempre o Brasil a par-
convém explicar em que "série". Neste tir de seu passado, isto é, daquilo que
sentido, três ângulos de análise se abrem, deixou de ser; Caio Prado Jr., ao con-
altamente sugestivos, para uma avaliação trário, pensa sempre o país pelas suas
crítica da obra historiográfica de Caio potencialidades, isto é, pelo que ele pode
Prado Jr. Ela pode, obviamente, ser vis- vir a ser. Se esta visão talvez possa con-
ta no quadro da historiografia brasileira, siderar-se utópica, a primeira é segura-
e é isto que vimos esboçando, com essas mente nostálgica.
notas preliminares. Não pode haver dú-
vida quanto ao seu significado preemi- Fernando Novais é historiador e professor da Faculdade
nente nesse campo, não somente pela de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo.
contribuição efetiva como pela fermen-
tação que vem provocando. Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
Mas Caio Prado Jr. historiador pode v. 2, 2, p. 66-70, jul. 83