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GÊNEROS DISCURSIVOS:

A DIFÍCIL ARTE DA GUERRA E DA PAZ

Cláudio Cano

E se houvesse, algum dia, alguém que passasse a considerar a língua para muito além
de um sistema abstrato de formas lingüísticas? E se esse alguém, além de jogar por terra tal
objetivismo abstrato, também negasse a possibilidade de que a língua se constitui a partir de
processos enunciativos que se dão na base de uma monologia isolada? E se, caso fosse
possível, houvesse quem, para além dessa negação da língua isoladamente monológica,
fenômeno da expressão de uma consciência isolada: um subjetivismo individualista, negasse
também e veementemente toda e qualquer possibilidade de olhar para a língua enquanto
fenômeno restrito ao processo psicofisiológico de sua produção?
Haveria quem ousasse negar todas as concepções de linguagem do estruturalismo
assim como de Saussure, seu fundador; contrapor-se às concepções humboldtianas de
linguagem assim como às clássicas formulações da escola formalista? Haveria quem negasse
tão concretamente todos os resultados dos metódicos trabalhos do comportamentalismo
americano? Haveria tal revolucionário, tal subversor ou tal insubordinado?
Houve: Mikhail Bakhtin.
Em uma obra extensa e nada "digerível", esse autor restabelece novos pontos de fuga
para o cenário das ciências da linguagem. Dentre seus trabalhos merece destaque, sem dúvida,
o ensaio Os gêneros do discurso1, publicado em Estética da criação verbal, obra que nasceu
entre 1952 e 1953 e que se mostra extremamente atual quanto à relevância das discussões que
propõe acerca da linguagem.
Nesse ensaio o autor de Marxismo e filosofia da linguagem2 e de Problemas da
poética de Dostoievski3 dedica-se a discutir a importância da noção de gênero para os estudos
lingüísticos em particular, e da filosofia da linguagem em geral. A discussão presente nesse
importante trabalho parte de uma total reformulação de muitos dos caros conceitos que
compunham (e compõem) a lingüística estruturalista – os conceitos de enunciado e
enunciação.

1
BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 2.ed. Trad. feita a partir do
francês de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo : Martins Fontes, 1997a. p. 277-358.
2
______. (1929) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico
na ciência da linguagem. 4.ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec,
1997b.
3
______. Problemas da poética de Dostoievski. 2.ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997c.
Entretanto, diferentemente do que podem pensar seus virtuais e desavisados leitores –
ainda que familiarizados com o arcabouço conceitual da lingüística – suas idéias não são de
fácil compreensão, pois se baseiam em intrincada rede conceitual cuja urdidura é muito
particular ao círculo lingüístico de Bakhtin: a singularidade de ver no dialogismo um
elemento fundamental na constituição da linguagem e, conseqüentemente, do discurso.
A premissa da dialogia como princípio constitutivo de todo e qualquer processo
enunciativo transforma as noções de enunciado e enunciação. A partir da articulação entre
gêneros que obedece, principalmente, ao critério da complexidade – gêneros primários:
comunicação verbal espontânea; gêneros secundários: comunicação cultural complexa –
Bakhtin amplia horizontes e abre novas perspectivas para o que se entende por gêneros
discursivos. Tais perspectivas são fundamentais, segundo o autor, para a definição e
circunscrição da natureza do enunciado, o que significa afirmar que a noção de gênero está
intimamente ligada e se faz dependente para a noção de enunciado.
O convite à sua leitura se justifica, assim, ao mostrar que
A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo histórico de formação
dos gêneros secundários do outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado (e, acima de tudo, o
difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões de mundo). (BAKHTIN, 1997a, p.282)

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