gostaria de manter o Departamento de Cultura mais regularmente a par de nossa viagem! Mas o senhor me conhece bem demais para que minha preguiça possa surpreendê-lo. Vive-se uma existência tão diferente e, cabe dizer, encontram-se tantas dificuldades diárias que a correspondência passa naturalmente ao segundo plano, sem nem sequer nos darmos conta do fato. Espero que o senhor possa me desculpar. Acabamos de terminar a primeira parte de nosso trabalho: durante um mês e meio, circulamos entre os diversos grupos sobreviventes de índios cadiueus. Esse estudo concluiu-se com uma permanência de quinze dias na última aldeia ainda próspera: Nalike. Ali, todas as mulheres pintam o rosto com desenhos de um refinamento prodigioso e fazem uma cerâmica bela e sóbria, da qual recolhi numerosos exemplares. E subsistem ainda relatos interessantes sobre as lendas e a organização social do passado. As condições materiais são evidentemente duras: no Pantanal, o calor é muitas vezes arrasador, o que não nos impediu de tremer de frio em algumas noites de Nalike, e os mosquitos são exatamente como os imaginávamos. Mas há tantos objetos de interesse e de admiração que tudo o mais assume importância bem restrita. Partiremos em seguida rumo ao alto São Lourenço, na direção dos bororos. Será o fim de nossa viagem. Receba, meu caro senhor, nossos sentimentos de devoção e simpatia, Claude Lévi-Strauss
"Quanta coisa admirável o senhor recolheu!"
214, rua Cincinato Braga São Paulo, 25 de outubro de 1936
Meu caro senhor,
espero que o senhor possa me perdoar por ter tardado tanto a agradecer sua remessa tão amável. Mas quis ler imediatamente o seu livro, e meus parcos conhecimentos de português tornam uma empreitada dessas, se não difícil, ao menos muito lenta... Acabo de ler o seu Ensaio apenas, e gostaria de manifestar sem demora o quanto me apaixonou. Seu comentário dá a ver, no texto musical, uma quantidade de traços que uma leitura descuidada certamente deixaria escapar. Quanta coisa admirável o senhor recolheu! Com um instrumento improvisado, fabricado com uma só corda, passei uma noite inteira a decifrar essas árias que são de uma riqueza melódica, de um sabor, de uma poesia extraordinárias. O senhor permitiu que eu me aproximasse de mais um aspecto do Brasil; sou-lhe mil vezes grato. No momento em que termino esta carta, Serge Miller telefona para me participar o acordo entre o prefeito e o senhor quanto às conferências de minha mulher. Ela me pede que lhe exprima seus agradecimentos, aos quais junto os meus, pelas horas tão encantadoras que o senhor me proporcionou. Peço-lhe que receba meus sentimentos de admiração e simpatia. Claude Lévi-Strauss
"Seus corpos não são bonitos"
Utiariti, 17 de janeiro de 1938
Meu caro senhor,
escrevo-lhe de Utiariti, aonde chegamos ontem, de caminhão, depois de uma viagem difícil: entre Rosário e Diamantino, numa espécie de deserto chamado de Serra do Tombador, uma peça essencial do caminhão se quebrou, e ficamos ali por quatro dias, enquanto um de nossos homens partia a pé, a fim de buscar socorro de Cuiabá pelo telégrafo mais próximo. Esse banho forçado -e esperado- de sertão nos permitiu caçar e experimentar o que, daqui em diante, será o melhor de nossa dieta: sopa de arara, cozido de tatu, churrasco de veado e caititu, tudo regado a licor de buriti; não é um menu digno de um clube de exploradores? [...] Da viagem, não direi nada. Esta região do Brasil é um matagal deserto e desesperador, através do qual viajamos por 700 kms. Em Utiariti, fomos muito bem recebidos pela equipe do telégrafo, que nos havia preparado um belo rancho à beira-rio, localizado, por uma gentileza à qual fui muito sensível, junto do acampamento nambiquara. De modo que lhe escrevo entre uns quinze homens, mulheres e crianças na nudez mais agressiva (pois, é uma pena, seus corpos não são bonitos), mas de humor extremamente hospitaleiro, por mais que se trate do mesmo grupo (e provavelmente dos mesmos indivíduos) que massacrou a missão protestante de Juruena, há cinco anos. Infelizmente, o trabalho promete ser de uma dificuldade extrema: nenhum intérprete à mão, ignorância total do português e língua de uma fonética que parece inabordável à primeira vista. Mas faz apenas 24 horas... Por outro lado, seus cantos -tivemos uma sessão musical em nossa honra- são de um corte quase europeu, e, a estrutura melódica, muito "quadrada", mas inscrita em 4/4, 5/4, faz pensar em canções populares transcritas por um compositor moderno. Sinto amargamente a falta dos gravadores do departamento. [...] Minha mulher e eu enviamos nossos cumprimentos. Claude Lévi-Strauss P.S.: ia me esquecendo de dizer que o aparelho de rádio, testado e inaugurado pelo telegrafista da Candos, funciona perfeitamente. De Cuiabá, escutaremos São Paulo, Santos, Campinas. Infelizmente, a rádio Pakulka não responde nem às suas mensagens nem aos meus telegramas!
"A expedição marcará época"
São Paulo, 14 de [?] de 1938
Meu caro senhor,
na confusão da chegada, não tenho como enviar mais que uma palavra apressada, mas não quero perder este primeiro correio. A alegria do regresso foi bastante diminuída pela ausência de tantos amigos; sobretudo o senhor e Paulo Duarte. Quanto à viagem, foi longa e difícil. Mas jamais esquecerei esses oito meses, repletos de experiências apaixonantes. Em termos científicos, creio que recolhemos um belo material, e muita coisa nova. O suficiente para alterar profundamente os conhecimentos atuais. Sinceramente, penso que a expedição marcará época. As coleções começarão a chegar na semana que vem. Vou me pôr imediatamente ao trabalho. Adoraria vê-lo, conversar com o senhor. O senhor deve vir a São Paulo neste mês ou no próximo? Talvez eu mesmo tenha que ir ao Rio. Concluo às pressas. Queira receber, meu caro senhor, minha amizade fiel e devotada. Claude Lévi-Strauss
As cartas acima serão publicadas pela "Revista do Instituto de Estudos Brasileiros", no
segundo semestre deste ano. Traduções de Samuel Titan Jr.