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Cartas a Mário de Andrade

"As condições materiais são duras"


" Corumbá, 15 de janeiro de 1936

Meu caro senhor,


gostaria de manter o Departamento de Cultura mais regularmente a par de
nossa viagem! Mas o senhor me conhece bem demais para que minha
preguiça possa surpreendê-lo. Vive-se uma existência tão diferente e, cabe
dizer, encontram-se tantas dificuldades diárias que a correspondência passa
naturalmente ao segundo plano, sem nem sequer nos darmos conta do fato.
Espero que o senhor possa me desculpar.
Acabamos de terminar a primeira parte de nosso trabalho: durante um mês e
meio, circulamos entre os diversos grupos sobreviventes de índios cadiueus.
Esse estudo concluiu-se com uma permanência de quinze dias na última aldeia
ainda próspera: Nalike. Ali, todas as mulheres pintam o rosto com desenhos de
um refinamento prodigioso e fazem uma cerâmica bela e sóbria, da qual recolhi
numerosos exemplares. E subsistem ainda relatos interessantes sobre as
lendas e a organização social do passado.
As condições materiais são evidentemente duras: no Pantanal, o calor é muitas
vezes arrasador, o que não nos impediu de tremer de frio em algumas noites
de Nalike, e os mosquitos são exatamente como os imaginávamos. Mas há
tantos objetos de interesse e de admiração que tudo o mais assume
importância bem restrita. Partiremos em seguida rumo ao alto São Lourenço,
na direção dos bororos. Será o fim de nossa viagem.
Receba, meu caro senhor, nossos sentimentos de devoção e simpatia,
Claude Lévi-Strauss

"Quanta coisa admirável o senhor recolheu!"


214, rua Cincinato Braga
São Paulo, 25 de outubro de 1936

Meu caro senhor,


espero que o senhor possa me perdoar por ter tardado tanto a agradecer sua
remessa tão amável. Mas quis ler imediatamente o seu livro, e meus parcos
conhecimentos de português tornam uma empreitada dessas, se não difícil, ao
menos muito lenta... Acabo de ler o seu Ensaio apenas, e gostaria de
manifestar sem demora o quanto me apaixonou. Seu comentário dá a ver, no
texto musical, uma quantidade de traços que uma leitura descuidada
certamente deixaria escapar. Quanta coisa admirável o senhor recolheu! Com
um instrumento improvisado, fabricado com uma só corda, passei uma noite
inteira a decifrar essas árias que são de uma riqueza melódica, de um sabor,
de uma poesia extraordinárias. O senhor permitiu que eu me aproximasse de
mais um aspecto do Brasil; sou-lhe mil vezes grato.
No momento em que termino esta carta, Serge Miller telefona para me
participar o acordo entre o prefeito e o senhor quanto às conferências de minha
mulher. Ela me pede que lhe exprima seus agradecimentos, aos quais junto os
meus, pelas horas tão encantadoras que o senhor me proporcionou. Peço-lhe
que receba meus sentimentos de admiração e simpatia.
Claude Lévi-Strauss

"Seus corpos não são bonitos"


Utiariti, 17 de janeiro de 1938

Meu caro senhor,


escrevo-lhe de Utiariti, aonde chegamos ontem, de caminhão, depois de uma
viagem difícil: entre Rosário e Diamantino, numa espécie de deserto chamado
de Serra do Tombador, uma peça essencial do caminhão se quebrou, e ficamos
ali por quatro dias, enquanto um de nossos homens partia a pé, a fim de buscar
socorro de Cuiabá pelo telégrafo mais próximo. Esse banho forçado -e
esperado- de sertão nos permitiu caçar e experimentar o que, daqui em diante,
será o melhor de nossa dieta: sopa de arara, cozido de tatu, churrasco de
veado e caititu, tudo regado a licor de buriti; não é um menu digno de um clube
de exploradores? [...]
Da viagem, não direi nada. Esta região do Brasil é um matagal deserto e
desesperador, através do qual viajamos por 700 kms. Em Utiariti, fomos muito
bem recebidos pela equipe do telégrafo, que nos havia preparado um belo
rancho à beira-rio, localizado, por uma gentileza à qual fui muito sensível, junto
do acampamento nambiquara. De modo que lhe escrevo entre uns quinze
homens, mulheres e crianças na nudez mais agressiva (pois, é uma pena, seus
corpos não são bonitos), mas de humor extremamente hospitaleiro, por mais
que se trate do mesmo grupo (e provavelmente dos mesmos indivíduos) que
massacrou a missão protestante de Juruena, há cinco anos. Infelizmente, o
trabalho promete ser de uma dificuldade extrema: nenhum intérprete à mão,
ignorância total do português e língua de uma fonética que parece inabordável
à primeira vista. Mas faz apenas 24 horas...
Por outro lado, seus cantos -tivemos uma sessão musical em nossa honra- são
de um corte quase europeu, e, a estrutura melódica, muito "quadrada", mas
inscrita em 4/4, 5/4, faz pensar em canções populares transcritas por um
compositor moderno. Sinto amargamente a falta dos gravadores do
departamento. [...]
Minha mulher e eu enviamos nossos cumprimentos.
Claude Lévi-Strauss
P.S.: ia me esquecendo de dizer que o aparelho de rádio, testado e inaugurado
pelo telegrafista da Candos, funciona perfeitamente. De Cuiabá, escutaremos
São Paulo, Santos, Campinas. Infelizmente, a rádio Pakulka não responde nem
às suas mensagens nem aos meus telegramas!

"A expedição marcará época"


São Paulo, 14 de [?] de 1938

Meu caro senhor,


na confusão da chegada, não tenho como enviar mais que uma palavra
apressada, mas não quero perder este primeiro correio.
A alegria do regresso foi bastante diminuída pela ausência de tantos amigos;
sobretudo o senhor e Paulo Duarte. Quanto à viagem, foi longa e difícil. Mas
jamais esquecerei esses oito meses, repletos de experiências apaixonantes.
Em termos científicos, creio que recolhemos um belo material, e muita coisa
nova. O suficiente para alterar profundamente os conhecimentos atuais.
Sinceramente, penso que a expedição marcará época.
As coleções começarão a chegar na semana que vem. Vou me pôr
imediatamente ao trabalho. Adoraria vê-lo, conversar com o senhor. O senhor
deve vir a São Paulo neste mês ou no próximo? Talvez eu mesmo tenha que ir
ao Rio.
Concluo às pressas. Queira receber, meu caro senhor, minha amizade fiel e
devotada.
Claude Lévi-Strauss

As cartas acima serão publicadas pela "Revista do Instituto de Estudos Brasileiros", no


segundo semestre deste ano.
Traduções de Samuel Titan Jr.

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