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Abstract: This article includes two moments: in the first, we summarize the importance
of photographic work during the three phases of research among street dwellers
(data collection, analysis, and presentation of results); in the second, we dwell on a
photograph taken from field work in order to build hypotheses and arguments about
urban nomads.
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O empreedimento fotográfico feito nesta pesquisa só foi possível devido ao apoio financeiro da
Fapergs. Agradeço à professora doutora Claudia Fonseca pelas sugestões relativas a este artigo.
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Mestre em Antropologia Social.
move outro uso da foto perante o público, ao explicitar a reflexão sobre a ima-
gem que antes ficava subentendida. Se o destino é o mesmo – descrever e
explicar a existência nômade dos habitantes das ruas – o desafio deste atalho é
outro: extrair de um fragmento visual do trabalho de campo as hipóteses e
argumentos que sustentam a dissertação.
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No final da pesquisa, também foi possível documentar os ajardinamentos, gradeamentos e aterros
dos lugares mais procurados por moradores de rua – estratégias da municipalidade para evitar a
ocupação desses logradouros.
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Embora esse aspecto não estivesse em questão no trabalho, as reações que os indivíduos fotografa-
dos tinham perante a sua imagem também forneciam dados importantes de pesquisa.
Foto do trabalho de campo, tirada a pedido do casal, sob a elevada em que habitou durante parte do ano de
1993, nas proximidades do centro de Porto Alegre, ao lado da Estação Rodoviária (foto de Mauro Bruschi).
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Os trabalhos plásticos e a maioria das fotografias foram feitos por Mauro Bruschi, entre 1991 e 1994.
ra, oferece maior abrigo e privacidade do que a parte externa. A luz que invade
a cena a partir da direita indica o limite da estrutura na parte superior, mas
nenhuma parede, cerca ou divisória marca a separação entre a “casa” e a
“rua”. No centro, cinzas, restos de madeira e tijolos empilhados sustentando
uma grade com latas por cima indicam a fogueira como artifício de cocção (e
provavelmente de aquecimento, iluminação e aproximação). Outros tipos de
madeira aparecem como combustível em potencial: ripas, caixote, uma porta
estragada (atrás do casal) e ainda um balcão velho e despedaçado que, no
momento, serve de móvel para guardar utensílios de cozinha – panelas, e reci-
pientes de plástico e de metal.
Mas não basta relacionar os elementos da cultura material – é preciso
entender o seu significado no que concerne ao modo de vida do grupo. Não
resta dúvida de que se trata de um “acampamento”, mesmo que o vocábulo
seja impróprio, já que se refere a “instalar em campo”. A estrutura em declive
sugere uma via de trânsito. Logradouro planejado em sua parte superior para a
circulação, o controle dos fluxos, do espaço e do tempo citadinos, mas esqueci-
do pelos urbanistas em sua parte inferior. O espaço público ocioso foi apropri-
ado e investido de uma significação individual e coletiva distinta daquela para a
qual foi projetado. Ou seja, o espaço foi territorializado, subjetivado, revestindo-
se de um sentido e de uma finalidade domiciliar. Ora, esse comportamento
revolta e desconcerta os agentes municipais, que, na tentativa de preservar o
espaço público (mesmo que ocioso, como neste caso), utilizam-se de diferentes
estratégias para desterritorializar os moradores de rua, aumentando assim a
mobilidade de suas vidas. A subversão da ordem citadina não se restringe à
confusão entre os domínios doméstico e público. O meio urbano é sedentário
por excelência. O surgimento das cidades, como o do Estado, é indissociável do
sedentarismo. Assim, a vida de “acampamentos”, sem fixação de moradia, não
se adéqua à noção sedentária de habitação; pelo contrário, constrange, ameaça
a sua ordem.
Ao lado das panelas dispostas sobre o balcão e sobre a grade da fogueira
em brasa, vemos recipientes de plástico e de metal. Trata-se de embalagens de
alimentos à disposição no mercado. Não é difícil acertar, devido às condições
materiais do casal, que ele não adquiriu aqueles produtos através do comércio,
mas que somente teve acesso às suas embalagens depois de outros indivíduos
consumirem as mercadorias, ejetando seu invólucro. Ou seja, foi provavelmen-
te na rua, em algum lixo residencial ou comercial, que o casal coletou aquelas
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Seria extrapolar os limites dos dados visuais dessa única foto falar da coleta também de alimentos
dentre os resíduos do meio urbano. A imagem a que nos atemos também não pode nos revelar
questões importantes do trabalho de campo como a prática de assalto e roubo a que alguns grupos
da rua se dedicam e cuja analogia com as atividades de caça são interessantes – sobre essa questão,
ver Durieu (1909) e Lomnitz (1977 apud Fonseca, 1988, p. 52).
Referências
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus,
1990.
FONSECA, Claudia. Feminino, masculino e formas de poder: o código de honra
em uma vila porto-alegrense. Cadernos de Estudos, Porto Alegre: PPGAS/
UFRGS, n. 10, 1988.
MAGNI, Claudia T. Nomadismo urbano: uma etnografia sobre moradores de
rua em Porto Alegre. Tese (Mestrado em Antropologia Social)–PPGAS,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1994.
SAHLINS, Marshal. Sociedades tribais. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.