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Introdução
A novela O pintor de retratos, do escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, traça
um painel artístico, histórico, político e cultural de um período de grandes transformações,
tanto na história e literatura, como na pintura e fotografia, ocorrido entre o final do século
XIX e o início do século XX. O autor, com uma narrativa concisa, aborda tais transformações
sociais, mesclando figuras reais com personagens fictícias, em que o pintor de retratos
italiano, Sandro Lanari, depois de tentar a sorte em Paris, acaba por vir ao Rio Grande do Sul,
em busca de uma nova vida, e involuntariamente torna-se fotógrafo-retratista.
A fotografia na novela de Assis Brasil serve como a metáfora da transformação da
sociedade agrária gaúcha para o modelo industrial, e o confronto entre a civilização européia,
responsável pelos avanços tecnológicos, e a barbárie, personificada na Revolução Federalista,
conhecida também como a da Degola, em que Sandro Lanari, personagem principal do
enredo, terá uma participação emblemática ao capturar em uma fotografia o instante brutal,
por ele batizado de a Foto do Destino. Destino esse que lhe trará muitas surpresas.
Embora os descaminhos futuros, Sandro Lanari nasceu pintor. Seu pai era
pintor, seu avô também fora, e assim por anteriores seis gerações, todos
foram pintores. 1
1
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Porto Alegre: L & PM, 2005, p. 11.
2
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Entrevista. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, sábado, 02 jul. 1993, p. 6.
3
Nadar e até posar para o mesmo, mas dias depois ao receber pelo correio a foto, é tomado de
ódio, não somente por Nadar, mas por todos os fotógrafos-retratistas, já que não se reconhece
naquele retrato.
Acaba, em crise, decidindo viajar para o Brasil, em busca da terra prometida. “Lá
abaixo, na metade inferior do planeta, ficava o Rio Grande do Sul, a selva que nunca teria
escutado o nome de Nadar. 3
Na segunda parte do livro, Lanari desembarca no cais de Porto Alegre, com todos os
seus apetrechos de pintor, mais o livro inseparável de Cenino Cenini, que seu pai lhe deu de
presente. Espanta-se com a quantidade de negros na rua, confundindo-os com maometanos.
Acaba se instalando na Pensão Itália, de um compatriota, localizada no coração da cidade, a
popular e conhecidíssima Rua da Praia. Na sala da pensão há um retrato de Garibaldi, o Herói
de Dois Mundos. Lanari, um forasteiro em terra estrangeira aprende a se moldar ao local e
suas idiossincrasias para não chamar a atenção. “No terceiro dia não o notavam mais”. 4
Não demora e Lanari descobre que em Porto Alegre já havia outro pintor de retratos,
chamado Alcides, considerado por ele inofensivo e primário. Porém, logo vem a saber que a
cidade está repleta de fotógrafos-retratistas, em sua maioria italianos como ele. Como todo
europeu, tinha uma visão estereotipada do país, pois “Julgava que no Brasil a fotografia não
fosse desenvolvida”. 5 O mito do bom selvagem que perdura até hoje impede que a metrópole
enxergue a periferia.
Desgostoso com a monotonia da cidade e sua arquitetura portuguesa, coloca um
anúncio em jornal fazendo propaganda de si mesmo. “E ele, Sandro, era um artista que trazia
nas costas a Europa e seus séculos de civilização”. 6 Um dia, passeando pela cidade encontra
uma adolescente com incrível semelhança com o retrato de Sarah Bernhardt. “Chamou-a de
Sarah, embora sua homônima fotográfica fosse bem mais bonita”. 7 Devido a pintura de um
retrato do Bispo da cidade vira celebridade. Num dos encontros seguintes com o religioso há
um diálogo interessante, em que o Bispo compara a pintura feita por Lanari ao retrato tirado
por Carducci, um fotógrafo italiano destacado na cidade, em que o mesmo conclui: “Estive
pensando (...) até que ponto é lícito intervir na representação do homem, que é feito à imagem
e semelhança de Deus?” 8; referindo-se aos retoques á imagem pintada e fotografada por
ambos, que não são de fato a imagem real e sim uma representação. Em crise, passa a refletir
3
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Op. cit., p. 48.
4
Idem, p. 52.
5
Ib idem, p. 53.
6
Ib idem, p. 55.
7
Ib idem, p. 56.
8
Ib idem, p. 61.
4
sobre o ato de criação: “Aqueles retoques eram o símbolo da mediocridade. Nadar jamais
fizera retoques na imagem e semelhança de deus. Nadar era único” 9; concluindo que “Ele,
Sandro Lanari, sim, melhorava os modelos. Mas enfim, ele se constituía da mesma podre
matéria de Carducci”. 10
No velório de um pintor paisagista, acaba conhecendo pessoalmente o fotógrafo
Carducci. Da conversa entre ambos, algumas farpas do fotógrafo ao chamar o defunto de
artista e comentar que as pessoas estavam, preferindo a fotografia à pintura, pelo fato que esta
tornara-se cara. “E no século do telégrafo e da locomotiva as pessoas têm pressa”. 11
Em resposta, Lanari alfineta, contra-argumentando que “A fotografia apenas capta um
instante do fotografado. (...) O retrato pintado, pela observação demorada que o pintor faz do
caráter do retratado, só esse retrato produz toda a verdadeira psicologia do modelo”. 12
Ao que Carducci rebate dizendo que essa fidelidade a realidade só existe “se o artista
13
assumir toda a estrutura moral do retratado”, e que se assim for, ele prefere a fotografia à
pintura, pois haverá sempre o distanciamento entre o retratado e o retratista.
Sandro Lanari ao receber convite de um advogado influente opositor do Presidente do
Estado, e apreciador das belas artes, para morar de graça em sua casa, logo vem a descobrir
que a idéia deve ter partido da moça que o impressionara antes por ser a sósia de Sarah
Bernhardt. Todavia, apesar da incrível semelhança, “enjoava-o à morte o sutil mas real cheio
14
de cavalariça que emanava das roupas de Violeta” ; e apesar desse desconforto, Lanari
“Passou a fantasiá-la perfumada, recém-saída do banho, envolta na veste romana, como no
retrato de Nadar”. Desconforto e idealização comprovam a intenção do autor em mostrar que
a personagem principal da novela, mesmo que integrando-se cada vez mais à sociedade e sem
paulatinamente aceito por esta, mantém no seu íntimo o apego às tradições do Velho Mundo e
seus referenciais. Em sua errância, continua sendo o estrangeiro a olhar para aquele povo com
os mesmos olhos de quando estava na Europa.
Como não poderia deixar de ser, em se tratando de uma novela, cujo personagem tem
uma admiração por um retrato de Sarah Bernhardt que toma vida num clone, no outro lado do
oceano, o envolvimento dos dois acontecerá ao natural, ainda mais que os quartos de ambos
ficam um de frente ao outro. E o inevitável acontece e o tempo passa.
9
Ib idem, p. 62.
10
Ib idem, p. 62.
11
Ib idem, p. 70.
12
Ib idem, p. 70.
13
Ib idem, p. 71.
14
Ib idem, p. 74.
5
Política lembra, de certa forma, o ato de posar e defender uma imagem pública que
nem sempre é o retrato fidedigno da realidade privada. Entrementes, na opinião do Presidente,
ocorre justamente o oposto, quando reclama que “Por mim, mandaria fazer uma fotografia. É
mais rápido, custa menos e é autêntica. Sob esse prisma, a fotografia pode até ser autêntica a
pose, não ao homem, enquanto a pintura pode retratar nuances e tons em claro-escuro do
objeto retratado que a fotografia, por ser instantânea, não consegue capturar. O próprio ato de
deixar-se posar permite ao pintor ─ mais do que ao retratista, pelo tempo maior de exposição
ao olhar do artista ─, a percepção de detalhes de mudança de comportamento, enquanto o
modelo está em um estado de suspensão de suas atividades normais.
Ao final da segunda parte do livro, Sandro precisa fugir da casa do advogado, pois este
deseja matá-lo. Aconselhado por Antonia, meretriz da rua dos Pecados Mortais, foge pelo rio
até a cidade de Rio Pardo.
Na terceira parte de O pintor de retratos, Sandro Lanari, ainda pintor e agora fugitivo
da ira do pai de Violeta que descobri seu envolvimento afetivo, viaja de barco pelo rio Jacuí
em direção a cidade de Rio Pardo. Se em Porto Alegre, que acabara por acostumar-se, já tinha
restrições, viver como fugitivo, sem nenhum conforto, no interior do Rio Grande do Sul era
uma nova dolorosa experiência para o pintor. Três meses se passam e Sandro sonhava, ora
com Violeta, ora com o retrato de Sarah Bernhardt. Trouxe consigo o inseparável livro de
pinturas de Cenino Cenini. Em troca do pagamento da pensão de dona Moça, pinta em três
dias seu retrato, deixando-a “com dez anos a menos, e com um chapéu francês. Era um retrato
15
Ib idem, p. 91.
6
16
rude, sem verniz, mas o acharam ‘bem parecido’, embora não fosse mais do que isso”. Por
causa disso, torna-se famoso no bordel.
Em uma noite foi acordado por um freqüentador do bordel, que veio lhe pedir para
pintar seu pai morto, um coronel, como eram chamados os estancieiros no Rio Grande do Sul.
O inusitado e paradoxal da situação era que, segundo o filho, “(...) o defunto odiava
fotografias, pois as pessoas lhe pareciam mortas. Os parentes não queriam que ele partisse
levando a lembrança de sua figura. Mas queriam-no vivo, para que o enxergassem pendurado
17
num prego”. Interessantíssima construção narrativa, passível de diversas interpretações,
como a de que a fotografia, pela sua instantaneidade não traz a emoção que uma pintura
provoca. Um retrato de Mona Lisa ladeado por uma fotografia de La Gioconda ─ se isso fosse
possível ao tempo de Leonardo Da Vinci (embora isso ele tentara inventar 18) ─, mostraria que
a fotografia seria um instantâneo histórico da musa de Da Vinci, enquanto o quadro, como
uma obra-prima inigualável por nenhum retratista que não seu autor, é passível, até hoje das
teorias mais mirabolantes, dentre elas de que seja o auto-retrato de Leonardo, por exemplo.
O que corrobora com a impressão de que fotografia está para história, como a pintura
para a literatura. Se o primeiro par busca com sofreguidão retratar o verídico, o instantâneo, o
real; o segundo, ao contrário, utiliza-se da realidade como pano de fundo para retratar fatos
imaginários, que, embora fictícios, poderia ter acontecido ou vir a acontecer, mas que só
existem no universo mágico criado pelo pintor em sua tela e o mundo diegético criado pelo
escritor em seu livro. Só existem enquanto arte. E só enquanto arte tem significado, inclusive,
quando fito para contestar ou criticar a realidade, de fotógrafos e historiadores, que
reproduzem instantes, que não podem nem devem ser a expressão do todo.
Outros retratos foram solicitados nas redondezas pelos moradores, e a cada descrição
do autor estão ali presentes os arquétipos dos habitantes do Rio Grande do Sul, estancieiros,
matronas, políticos, novos ricos, viúvas e outros personagens típicos do Sul do Brasil,
acabando por tornar-se artista ambulante. Nessa trajetória, de estância em estância vai
conhecendo o Estado, ouvindo notícias de uma possível revolução
E por onde passa o pintor de retratos vai colecionando paixões fugazes.
16
Ib idem, p. 104.
17
Ib idem, p. 105.
18
Por volta de 1554, Leonardo Da Vinci descobriu o princípio da câmera escura: a luz refletida por um objeto
projeta sua imagem no interior de uma câmera escura a partir de um orifício para a entrada da luz. Baseados
nesses princípios, os artistas simplificaram o trabalho de copiar objetos e cenas, entrando dentro de câmeras para
apreciar e apropriar-se da imagem refletida em uma tela ou um pergaminho preso na parede oposta ao orifício da
caixa. In: Esko Männikkö e a linguagem fotográfica. Disponível em:
<http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/edu/esko_mannikko.htm >. Acesso em: 06 mar. 2008, p. 3.
7
Após três anos da sua fuga estoura a Revolução de 1893, que irá marcar por completo
sua viagem e vida. É um momento histórico que ainda hoje divide historiadores, em vista de
que tanto a Revolução Farroupilha como a Federalista de 1893 ─ mais conhecida como a da
Degola, pela maneira que eram executados os inimigos sem fazer prisioneiros ─, tiveram
momentos de barbárie. O próprio uso do termo Revolução, que remete a intensa participação
da população, é discutível, já que ambas formam movimentos organizados por estancieiros,
representantes da oligarquia política sul-rio-grandense contra o poder oficial, do Império, no
primeiro levante, e do Estado do Rio Grande do Sul e seu Presidente, com poderes ilimitados.
Entretanto, a de 1835 foi glorificada, mitificada e idealizada na historiografia oficial pelos
mesmos que, partidários do castilhismo-borgismo e do positivo adotado por ambos, e
vencedores na encarniçada guerra fratricida, elegeram a revolta contra Júlio de Castilhos,
como algo a ser varrido dos livros de História, ou quando muito mencionada de forma
depreciativa. Tal atitude terá reflexos inclusive na literatura gaúcha, que glorificará a
Revolução Farroupilha e tecerá sobre a Federalista um painel de sangue, violência e barbárie,
como de fato o foi, e em quantidade superior a dos Farrapos, mas não tão diversa como a
maioria das guerras o são.
Emblemática é a opinião do historiador militar Emilio de Souza Docca que silencia
sobre um aspecto relevante da historiografia sul-rio-grandense, que trata da revolta de
federalistas contra ditadura científica (e positivista) de Julio de Castilhos, riscando-a do seu
19
livro História do Rio Grande do Sul. Cabe esclarecer que Souza Docca era positivista e
simpatizante do castilhos-borgismo, como muitos homens das letras de sua época, que foram
responsáveis pela elaboração discursiva, em prosa e/ou verso, de exaltação da Farroupilha e
do banimento (ou redução da importância) da Federalista dos livros de História.
Alheio a tudo isso, o italiano Lanari, em suas andanças pelo Rio Grande, resolve
desfazer-se do inseparável Il Libro dell’Arte, de Cenino Cenini, jogando-o num arroio, como
forma de demarcar a nova vida, dizendo: “Vai-te, petulante, que não tens nenhum valor nesta
20
parte do mundo”. Numa prova inequívoca de que s valores do hemisfério Sul são
radicalmente diversos do Norte.
Não demora e o pintor de retratos encontra pelo seu caminho a tal Revolução, ficando
no olho do furacão político e militar que irá dividir novamente o Rio Grande do Sul.
19
TREZZI, Humberto. A degola como vingança. In: Memorial da Barbárie. Caderno de Cultura, Jornal Zero
Hora, Porto Alegre, 02 nov. 2002, p. 5.
20
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Op cit., p. 118.
8
Quem o visse meses mais tarde, não o reconheceria com aquela barba e as
duas cartucheiras de bandido atravessadas ao peito. Deram-lhe um
fardamento pela metade, um poncho e o posto de capitão honorário.
Como passasse a usar o chapelão militar, largou o panamá sobre uma
pedra. Dois cães o disputavam numa briga colossal. Rolavam pelo chão e
levantavam poeira. O panamá ficou em frangalhos. 24
E ainda que não se intenção do autor, tal descrição da aculturação inversa do civilizado
pelo bárbaro remete por parte do leitor de uma novela ambientada em um conturbado período
histórico diversas interpretações. A mudança radical de vestimenta e de hábitos, do chapéu
21
Ib idem, p. 125.
22
Ib idem, p. 125.
23
Ib idem, p. 125.
24
Ib idem, p. 126.
9
panamá para o chapelão militar e o aspecto fotográfico de bandidão, aliado a figura simbólica
de dois cães furiosos disputando um símbolo de civilização que jaz em frangalhos, remete à
imagem do monumento erguido à memória de Julio de Castilhos, em 1913, na Praça da
Matriz, em Porto Alegre, em que o “bárbaro togado” 25 é encarado por um dragão com feições
de cão. O irônico é saber que “Júlio de Castilhos morreu em agosto de 1903, durante uma
26
cirurgia da garganta. Nunca anistiou os vencidos” . A garganta, por ironia do destino ou
simples fatalidade, foi a região da anatomia humana utilizada pela Degola, como ficou
conhecida a revolta contra o governo centralizador de Castilhos, e o mais irônico em tudo isso
é que tal prática foi usada indiscriminadamente por ambos os lados da disputa, entre
federalistas (maragatos) e pica-paus castilhistas (chimangos).
Não se pode aludir a essa dicotomia a intenção de Assis Brasil em colocar o público e
notório degolador maragato Adão Latorre, em sua trama como um castilhista. Porém, tal fato
dá margem a diversas elucubrações. Em sua filosofia da composição de O pintor de retratos o
autor abre espaço para diversas discussões entre atos e práticas civilizatórias e bárbaras. O
próprio termo bárbaro, em sua origem era designação de estrangeiro e não necessariamente
um invasor violento. De certa forma, etimologicamente, por mais paradoxal que seja, Lanari
poderia ser considerado era um “bárbaro” civilizado entre bárbaros incultos. É o que deprecia
o próprio pintor de retratos, acostumado ao uso das tintas e colorações: “Para ele, a revolução
27
era um embate de lenços brancos contra vermelhos” sem maiores nuances que não as cores
em disputa.
É naquela errância pelo interior do Rio Grande do Sul, em sua história local, que vai
aos poucos descobrindo o sentido da própria vida.
Sem remorsos, constatou que a pintura não era forte em seu espírito, tanto
que a abandonara como se nunca a tivesse praticado. Aquilo era coisa de
Curzio, que o obrigara a ser pintor. Mas o que ele, Sandro, na verdade
queria? Era um menino, em Ancona, e naquele tempo, o mais importante
era Catalina. E fizera uma mistura tremenda. Dois homens o habitavam:
aquele que pintava e o Outro, que precisava seguir a obscura vida. 28
E é nessa alteridade que o pintor de retratos descobre que a pintura era uma imposição
familiar, hábito comum àquela época dos filhos seguiram a profissão dos pais, gostassem dela
ou não.
25
TREZZI, Humberto. Castilhos e os republicanos. In: Memorial da Barbárie. In: Caderno de Cultura,
Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 2 nov. 2002, p. 5.
26
TREZZI, Humberto. Op. cit., p. 5.
27
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Op. cit., p. 126.
28
Ib idem, p. 127.
1
“(...) Deixava para trás sua vida de pintor. Tudo ficara sobre uma coxilha.
A primeira geada do ano recobriria a maleta dos pincéis. A chuva, ao
penetrar a caixa de cartolina das aquarelas, dissolveu e misturou as cores,
criando um arco-íris que foi aos poucos absorvido pelo solo. Em
novembro em quero-quero depositou os ovos ali perto”. 29
Copiou-a. Nadar nunca teria obtido uma foto como aquela. Nadar era um
fotógrafo de maricões, safados e financistas. Em tempo algum passara por
seu efeminado estúdio algo que se comparasse com aquele drama.
Sandro mergulhava o papel no fixador. Essa foto seria o sinal de sua arte.
Valia mais que todas as fotos de Nadar. E voltaria muito a ela, como quem
volta a um fetiche. Para sinal visível do caráter único daquela foto,
quebrou a chapa e o negativo. 30
29
Ib idem, p. 136.
30
Ib idem, p. 137.
1
Arquitetura textual que demonstra total domínio do autor sobre a história que é
contada, sob o enfoque local e nacional, que evidencia o declínio da pecuária e da agricultura
como forças decisórias, e a ascensão da indústria e do comércio, em busca do Progresso.
Ordem e Progresso são lemas positivistas, que estão expressos na Bandeira Nacional do
Brasil. E se Sandro Lanari utiliza dessas alegorias para a capa do livro comemorativo, está
aderindo, como a maioria dos homens de seu tempo ao ideal positivista que encontrará no
Brasil, e mais precisamente no Rio Grande do Sul um ambiente propício para que tal doutrina
33
Ib idem, p. 157.
34
Ib idem, p. 157.
1
perdure por longo prazo. Curiosamente, os ensinamentos de dois franceses, Auguste Comte
(positivismo) e Allan Kardec (espiritismo), encontrarão no país uma repercussão e
experimento que nunca obtiveram na terra natal de seus autores.
Segundo Lanari, a associação com Carducci revelara-se (mais que um trocadilho) mais
útil do que imaginara, pelo conhecimento que este tinha e as sugestões que ele dava para as
dúvidas que o outro tinha. Aprendeu tudo o que pôde, pois Carducci começara a apresentar os
sinais do tempo. Apenas Sandro passa a fotografar e tornar-se cada vez mais conhecido, sendo
notícia de jornal. E quando uma dessas notas compara suas fotos com a impressão de
ganharem vida, tal comentário remete imediatamente seu autor à imagem de Nadar.
Como uma teia de aranha, que parte do centro da questão e vai ampliando seu enfoque
a partir da periferia, a narração volta-se agora para o centro da questão: O que é afinal arte?
Pode a fotografia ser comparada á pintura no quesito artístico? E mais, quem é de fato o
artista? Aquele que cria ou o que copia, e persegue um modelo até que se assemelha sua cópia
ao original? Poderá a arte marginal ou de periferia, do Novo Mundo, comparar-se ao do
centro cultural da Humanidade, que é o Velho Mundo? Pode-se almejar à fama e o
reconhecimento fora do eixo cultural que determina o que deve ser considerado belo e o que é
a mera representação do banal?
A própria visão que Sandro Lanari tem da esposa Violeta presta-se a interpretações. Já
não possui o mesmo frescor da juventude, isso é fato, contudo, olhar que o marido distende a
esposa não é mais o do pintor de retratos, mas do fotógrafo, que procura no objeto focado a
expressão mais espelhada da realidade.
Quando Carducci morre, a placa no estabelecimento comercial é substituída por:
“Sandro Lanari ─ Retratista. Sucessor do Comendador L. Carducci”. Logo em seguida, o
autor demonstra como funciona o mecanismo capitalista em que temos valor enquanto
produzindo para a manter a engrenagem social em funcionamento. E “Todos que a viam [a
placa anteriormente citada] afirmavam: assim deveria ser a ordem lógica das coisas. Um ano
depois, constava apenas o nome de Sandro”. 36
35
Ib idem, p. 161.
36
Ib idem, p. 163.
1
Sandro via a imagem que emergia do papel. Reconhecia seu sorriso, mas
era o sorriso do Outro. Veio-lhe a indisposição que sentira anos atrás,
quando em Paris abria o envelope com aquele seu primeiro retrato: agora
estava, entre suas mãos, aquele mesmo olhar. 41
41
Ib idem, p. 177.
42
Ib idem, p. 178.
43
Ib idem, p. 178.
44
Ib idem, p. 178.
45
Ib idem, p. 181.
1
O livro O pintor de retratos de Luiz Antonio de Assis Brasil, traça um painel político e
social, artístico e cultural de uma época, que promove o entrecruzamento de discursos e de
narrativas entre História e Literatura, mesclando figuras históricas com personagens fictícias.
Com o deslocamento de Sandro Lanari, personagem principal da novela O pintor de
retratos, do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, ocorre o primeiro rito de passagem, entre o
mundo do europeu, em que vive sem posses, ocupação e futuro incertos, vindo para a terra
desconhecida e exótica do Novo Mundo, e, ao mesmo tempo, local das infinitas
possibilidades no imaginário do Velho Mundo. No Brasil, tudo sempre foi tardio, desde os
movimentos literários e artísticos, até as questões científicas e tecnológicas. Mas
ironicamente, neste ambiente em que Lanari vem se instalar já é conhecida a fotografia ─ a
grande revolução tecnológica da época ─, graças a compatriotas seus que se estabelecem em
Porto Alegre. Ainda que haja o natural choque de culturas, por causa de hábitos e costumes
diferenciados, logo Lanari vê-se incorporado àquele ambiente primitivo, pois ele próprio
paradoxalmente um provinciano no Velho Mundo, que partindo primeiramente de sua
pequena cidade na Itália, não se adapta à Paris cosmopolita. Ainda que sendo um artista, com
passado familiar na pintura, ele não deixa de ser um homem rude, que acaba encontrando
ironicamente refúgio em um rude e dividido Rio Grande do Sul de guerras fratricidas. Um
destino a procura de uma foto para ser emoldurada?
A relação entre a Foto do Destino e o imaginário do personagem, deve-se ao fato de
que através dela, Lanari pensa atingir o status de um Nadar, sem dar-se conta de quem a
imagem deve ter uma significação e um sentido, e não a mera exposição de um fato a uma
câmera fotográfica. O livro discute a relação entre o retratista e o retratado, o quadro e a
moldura social, a ética e a moral.
retratista da realidade. Mas ambas são formas de mostrar a realidade, mas não a realidade em
si, já que ambas captam apenas um fragmento do tempo, e o ponto de vista do retratista, seja
artista plástico ou fotógrafo.
Assim como a fotografia foi influenciada em seus primórdios pelo que existiam antes
dela, a pintura, e pelos primeiros usuários que eram justamente os pintores; assim ocorreu
com a história, mais precisamente, a historiografia, em vista que os primeiros historiadores
eram homens das letras, em sua maioria escritores e poetas, que imprimiam aos seus relatos
históricos o Romantismo a que estavam atrelados por convicções literárias e políticas.
Sobre a linguagem fotográfica, Barthes diz que
Considerações finais
Se “A fotografia nasce na primeira metade do século XIX, época marcada por rápidos
e importantes progressos ocorridos nas mais diversas áreas, desde a agricultura até os
transportes e a indústria” 49, que culminará com os avanços proporcionados pela Revolução
47
Idem, p. 5.
48
Ib idem, p. 5.
49
GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres. Entre a pintura e a fotografia publicitária, o desfocar: um discurso do
texto imagético. In: Cadernos de Pós-Graduação em Letras. São Paulo: Mackenzie. V. 2. n. 1., p. 13-21. 2003.
1
Presume-se, assim, que mesmo que a fotografia seja, na maior parte dos
casos, aceita como verdade, como prova dos fatos, como um documento
histórico, ela pode também ser utilizada com fins não tão confiáveis desta
forma, de maneiras questionáveis. A partir do momento em que o
contexto pode ser transformado, esta esfera de realidade fotográfica se
esvai. 52
Disponível em:
http://www4.mackenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/Cadernos/Volume_3/Entre_a_pintur
a.pdf. Acesso em: 06 mar. 2008, p. 14.
50
Idem, p. 15.
51
Ib idem, p. 15.
52
Ib idem, p. 16.
1
53
Ib idem, p. 17.
54
Expressão cunhada por José Castello, na resenha “O Pintor de Retratos” é talhado a golpes de faca, publicada
em O Estado de São Paulo. Caderno 2. 12 ago. 2001.
55
GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres. Entre a pintura e a fotografia publicitária, o desfocar: um discurso do
texto imagético. In: Cadernos de Pós-Graduação em Letras. São Paulo: Mackenzie. V. 2. n. 1. p. 13-21. 2003.
Disponível em:
http://www4.mackenzie.com.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/Cadernos/Volume_3/Entre_a_pintur
a.pdf. Acesso em: 06 mar. 2008, p. 19.
56
LEENHARDT, Jacques. Leituras de fronteiras. Modelos de leitura, história e valores. In: AGUAIR, Flávio e
alii (orgs.). Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1987, p. 282.
2
E a novela O pintor de retratos traz em seu corpo as muitas possibilidades de ver uma
imagem e contar uma história, a partir da fragmentação do personagem principal e da própria
sociedade real, em plena transformação.
E é o próprio Assis Brasil quem melhor discute as relações entre história e literatura,
pintura e fotografia, ao escrever que
Assis Brasil não se considera um escritor de romances históricos. Confessa que “Só
pela história se entende um povo e sua cultura” 58, e que seu maior interesse “é entender os
personagens, o que está por baixo. As pessoas, mais do que o fato histórico, que é o pano de
fundo. (...)” 59. Como faria um fotógrafo-retratista, colocou um dos períodos mais delicados da
história do Rio Grande do Sul como pano de fundo para retratar personagens, que partem do
mito ─ do Novo Mundo ─ encontrando nesse caminho a redenção e a própria humanidade.
Se, como o próprio autor, declarou em entrevista que “(...) O mito é revisitado para se
descobrir sua humanidade”, sua narrativa é plenamente exitosa nesse objetivo.
Referências:
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. História e literatura. In: MAZINA, Lea e APPEL, Mirna
(orgs.) A geração de 30 no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000,
p. 255-261.
CASTELLO, José. “O Pintor de Retratos” é talhado a golpes de faca. São Paulo, O Estado de
São Paulo. Caderno 2. 12 ago. 2001.
57
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. História e literatura. In: MAZINA, Lea e APPEL, Mirna (orgs.). A geração
de 30 no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000, p. 259.
58
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio. Entrevista. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, sábado, 02 jul. 1993, p. 6.
59
Idem, p. 6.
2
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